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ELAINE CRISTINA CARON
A METAFICÇÃO E AS ENTRELINHAS EM
O DOENTE MOLIÈRE (2000),
DE RUBEM FONSECA
ASSIS
2008
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1
ELAINE CRISTINA CARON
A METAFICÇÃO E AS ENTRELINHAS EM
O DOENTE MOLIÈRE (2000),
DE RUBEM FONSECA
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e
Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual
Paulista para a obtenção do título de Mestre em Letras
(Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social).
Orientadora: Drª. Maria Lídia Lichtscheidl Maretti
ASSIS
2008
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Caron, Elaine Cristina
C293m A metaficção e as entrelinhas em O doente Molière (2000),
de Rubem Fonseca/ Elaine Cristina Caron. Assis, 2008
141f. : il.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Fonseca, Rubem, 1925- 2. Molière, 1622-1673. 3. Lite-
ratura brasileira – História e crítica. 4. Gêneros literários. 5.
Intertextualidade. I. Título.
CDD 869.909
869.93
3
Ao Leandro, que mesmo estando longe sempre
soube se fazer presente;
Aos meus pais, Luiz e Zezinha, a quem devo
tudo o que sou.
4
AGRADECIMENTOS
Gostaria de deixar meus mais sinceros agradecimentos...
Aos meus pais, Luiz e Zezinha, pelo amor com que sempre se dedicaram à nossa
família e, especialmente, pela confiança em mim depositada.
À minha querida orientadora Drª. Maria Lídia L. Maretti, pelo carinho com que
sempre me recebeu e ouviu; pela paciência; pelo exemplo de humildade, dedicação e amor
com que desenvolve seu trabalho; e, sobretudo, por dividir comigo a paixão por Rubem
Fonseca e Molière.
À Drª. Ana Maria Carlos pela atenção e gentileza com que me atendeu quando
solicitada, e pelas valiosas observações e sugestões apontadas tanto no trabalho final de sua
disciplina como no Exame de Qualificação.
Ao Dr. Antonio Roberto Esteves, pela leitura cuidadosa do trabalho, pelas importantes
observações e sugestões apontadas no Exame de Qualificação e, principalmente, pela
generosidade ao mostrar-me aspectos do texto fonsequiano ainda invisíveis para mim.
Aos amigos queridos...
Àqueles que conheço desde a infância e que sempre estiveram ao meu lado, tanto nos
momentos de comemoração como também naqueles difíceis: Elaine, Roberta, Sandra, Aline,
Marco.
E àqueles que tive o prazer de encontrar nos corredores e salas-de-aula da Faculdade:
Geovana e Jaison – que sempre me apoiaram e muito me ensinaram em nossas longas
conversas (hoje um pouco mais escassas) e que sempre se lembraram de mim ao verem nas
estantes de alguma livraria ou sebo o nome de Rubem Fonseca. À Ariane, com quem dividi
bons momentos durante a graduação e o estágio de francês; à Dani que me conforta e me
encoraja sempre; à Fernanda e à Sandra pelas preciosas dicas.
Obrigada a todos pela compreensão quanto à ausência e pelo incentivo.
À minha família: aos meus irmãos Lucimar e Carlos, pelo exemplo de determinação;
ao meu cunhado Cido pelo bom-humor de sempre; à Ana Claudia que já não sei mais se é
cunhada ou irmã; à Gabriela, Amanda e Thalia, minhas sobrinhas amadas que me
entusiasmam com sua alegria; ao meu sobrinho Arthur pela alegre companhia de todos os
dias, e por demonstrar sintomas de que compartilha comigo o gosto pelas histórias.
À Terezinha, Francisco, Luciano e toda sua família por terem me acolhido com amor.
A todos aqueles que direta ou indiretamente estiveram envolvidos neste processo:
professores; funcionários da seção de pós-graduação e da biblioteca; professores do programa
de pós-graduação; colegas de graduação, da segunda habilitação e das disciplinas da pós-
graduação que, com suas contribuições durante as aulas e também nos corredores, muito me
ajudaram, ainda que não saibam disso.
A CAPES por financiar esta pesquisa.
E, finalmente, um agradecimento especial ao Leandro que escolheu estar ao meu lado,
compartilhando as alegrias e também as angústias do processo de confecção deste trabalho e,
que além do amor, me deu amizade, compreensão e incentivo, sem o qual eu talvez não
tivesse conseguido chegar até aqui. Muito obrigada.
5
“Moral: existem idéias obsessivas, nunca pessoais, os livros se
falam entre si, e uma verdadeira investigação policial deve provar
que os culpados somos nós.”
(Umberto Eco, Pós-escrito a O Nome da Rosa)
“A resposta pós-moderna ao moderno consiste em reconhecer que
o passado, já que não pode ser destruído porque sua destruição
leva ao silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de maneira não
inocente.”
(Umberto Eco, Pós-escrito a O Nome da Rosa)
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RESUMO
O doente Molière (2000), de Rubem Fonseca (1925 - ), é um romance que narra os
acontecimentos que marcaram a vida e que circundaram a morte do dramaturgo francês
Molière (1622-1673). A narrativa é feita por seu amigo marquês, que prefere se manter
anônimo: ele se sente torturado por sua consciência, por se ter calado durante muito tempo a
respeito da possibilidade de envenenamento do autor de Le malade imaginaire (1673), e
decide agora esclarecer o pretenso assassinato. Observando os recursos utilizados na escritura
deste romance, constatamos vários elementos que nos permitem vê-lo como o que Linda
Hutcheon chama de romance histórico pós-moderno (1991), sendo que alguns deles são os
seguintes: há presença de hibridismo genérico, já que se trata de um romance que mescla
teatro, narrativa policial e histórica; a metaficção – dado que o narrador alude constantemente
ao processo de produção da obra e conta um acontecimento baseado na história; a paródia dos
gêneros – há uma nítida subversão genérica, assim como a presença do procedimento
intertextual, principalmente com as obras do dramaturgo Molière, já que o romance tem como
substrato motivador Le malade imaginaire, além de outras peças importantes da carreira do
dramaturgo. Além disso, merecem também a nossa atenção as citações provenientes dos
Essais de Michel de Montaigne (1580).
Palavras-Chave: Rubem Fonseca, O doente Molière, romance brasileiro contemporâneo,
metaficção historiográfica, hibridismo genérico, intertextualidade.
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RÉSUMÉ
O doente Molière (2000), de Rubem Fonseca (1925 - ), est un roman racontant les événements
qui ont marqué la vie et surtout la mort du dramaturge français Molière (1622-1673). Le récit
est fait par son ami le Marquis, qui préfère se maintenir anonyme: il se voit torturé par sa
conscience, pour s’être longtemps tu à propos de la possibilité d’empoisonnement de l’auteur
de Le malade imaginaire (1673), et décide maintenant d’éclairer le prétendu meurtre. Si l’on
observe les recours employés dans l’écriture de ce roman, on constate la présence de plusieurs
éléments qui nous permettent de l’envisager comme ce que Linda Hutcheon nomme le roman
historique post-moderne (1991), parmi lesqueles on peut citer les suivants: la présence de
l’hybridité générique, puisqu’il s’agit d’un roman qui mélange le théâtre, les récits policier et
historique; la métafiction – car le narrateur fait constamment allusion au processus de
production de l’oeuvre et raconte un événement basé sur l’histoire; la parodie des genres – il
y a une subversion générique nette, ainsi que la présence de l’intertextualité avec plusieurs
auteurs, notamment avec les oeuvres de Molière, puisque le roman suppose Le malade
imaginaire comme sa source de motivation, outre d’autres pièces importantes dans la carrière
du dramaturge. Et il y a encore plusieurs citations des Essais de Michel de Montaigne (1580)
qui méritent aussi notre attention.
Mots-clés: Rubem Fonseca, O doente Molière, roman brésilien contemporain, métafiction
historiographique, hybridité générique, intertextualité.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................... 08
1. CAPÍTULO I: OS ELEMENTOS PÓS-MODERNOS DE O DOENTE
MOLIÈRE.................................................................................................................. 12
1.1. Rubem Fonseca e os dois lados do crime........................................................... 12
1.2. O contexto da obra de Rubem Fonseca e a recepção de O doente Molière....... 18
1.3. A pós-modernidade – a contradição e o paradoxo como elementos
constitutivos da literatura........................................................................................ 24
1.4. O hibridismo genérico....................................................................................... 27
1.5. Rubem Fonseca coloca em xeque a historiografia oficial: uma versão fictícia
da morte do dramaturgo francês................................................................................ 30
1.6. Um detetive indiscreto: o Marquês Anônimo e a tradição do gênero policial... 40
1.7. As pistas............................................................................................................. 54
1.8. A dimensão memorialística de O doente Molière.............................................. 65
2. CAPÍTULO II: METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA: OS PARADOXOS
DA PÓS-MODERNIDADE E A “PRESENÇA” DA HISTÓRIA EM O DOENTE
MOLIÈRE.................................................................................................................. 75
2.1. O conceito de metaficção historiográfica e de paródia..................................... 75
2.2. Elementos pós-modernos na literatura fonsequiana.......................................... 81
2.3. Em meio às fofocas dos bastidores.................................................................... 86
2.4. A metaficção e as “mãos sujas”......................................................................... 89
2.5. O século XVII e sua ideologia........................................................................... 96
2.6. Um livro de muitas faces: as várias narrativas de O doente Molière................. 101
3. CAPÍTULO III: O DOENTE MOLIÈRE NA MIRA DO OLHAR
INTERTEXTUAL..................................................................................................... 105
3.1. O conceito de intertextualidade na literatura pós-moderna.............................. 105
3.2. O teatro de Fonseca ........................................................................................... 114
3.3. Rubem Fonseca leitor de Molière: O mito de Dom Juan e a construção dos
personagens nos romances fonsequianos.................................................................. 117
3.4. Dom Juan e o Marquês Anônimo: a incorporação do mito............................... 122
3.5. Outras relações intertextuais.............................................................................. 127
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 136
REFERÊNCIAS........................................................................................................ 138
9
INTRODUÇÃO
Este trabalho que, inicialmente, tinha como título “História, Ficção e Intertextualidade
em O doente Molière (2000), de Rubem Fonseca”, é fruto de várias etapas da pesquisa que
datam desde a Iniciação Científica (iniciada em 2005 com o patrocínio da FAPESP), até as
disciplinas da pós-graduação, passando pela segunda habilitação em Língua e Literaturas
Espanhola e Hispano-americana. Como se trata de uma ampliação do Projeto de Iniciação
Científica, resolvemos incluir aqui os resultados daquele trabalho – com as devidas alterações
– além de acrescentar questões que surgiram durante e após seu desenvolvimento. Portanto,
mesmo apresentando um título e um direcionamento um pouco diferentes, o objetivo nunca
foi deixado de lado, ou seja, mantivemos nosso foco, durante todo esse percurso, de estudar as
características da pós-modernidade encontradas em O doente Molière.
Destas características, resolvemos nos aprofundar principalmente em quatro, sendo a
primeira a presença do hibridismo genérico, já que se trata de uma narrativa que, por um lado,
é romance policial, histórico e autobiográfico e, por outro, pode até mesmo ser lido como uma
biografia do dramaturgo Molière, haja vista que muitos elementos biográficos estão presentes
na construção da narrativa. Portanto, com base em todos estes aspectos do romance, pode-se
afirmar que, embora a ficha catalográfica o defina como “ficção policial e de mistério”, em
nosso estudo constatamos que a melhor definição seja romance brasileiro pós-moderno, dados
os diversos gêneros que constituem esta narrativa e que só poderiam conviver dentro do
gênero romanesco, que é híbrido em sua essência e que possibilita uma série de diferentes
leituras.
A segunda característica da pós-modernidade por nós investigada é a metaficção
historiográfica, termo utilizado por Hutcheon (1991) para descrever e estudar esta relação
contraditória e complexa do passado com o presente e da história com a ficção, muito comum
nos romances pós-modernos, e, também presente em O doente Molière, dado que a narração
tem como tema um acontecimento baseado na história e como personagens figuras ilustres do
passado. Além disso, o estudo da metaficção tem espaço em nosso trabalho, haja vista que o
narrador alude constantemente ao processo de produção da obra.
Apoiados na teoria da paródia desenvolvida por Hutcheon (1985), iremos abordar de
que maneira o romance pode se configurar como uma paródia dos gêneros, por meio da
constatação de que há uma nítida subversão genérica.
10
Além da reflexão sobre os traços de pós-modernidade relacionados acima,
destacaremos a investigação do procedimento intertextual, o que constitui uma novidade com
relação ao trabalho de pesquisa de iniciação científica. Esta quarta característica será
analisada a partir da reflexão sobre o diálogo que é estabelecido entre o romance de Fonseca e
as peças de Molière nele citadas, principalmente Le malade imaginaire (O doente
imaginário), de 1673, e Dom Juan, de 1665. A primeira peça é o substrato motivador do
romance, tendo em vista que o título não é apenas uma referência inocente, mas anuncia todo
um trabalho de pesquisa e conhecimento da obra do dramaturgo francês e, desta forma,
estabelece um diálogo com ela tanto no plano do conteúdo como também no plano formal.
Por sua vez, a relação com a peça Dom Juan se dá notadamente na construção do
personagem-narrador já que, de acordo com nossa leitura, ele seria uma reencarnação do
personagem que se tornou um mito na literatura ocidental. Outras relações intertextuais
também estão presentes no romance e merecem nossa atenção, por se tratar de um elemento
caro à pós-modernidade, que vem explorando-o de uma forma muito consciente e que
garantem ao texto literário sua “abertura”, ou seja, a possibilidade de variadas leituras,
conforme o repertório de cada leitor.
Embora todas estas questões se entrecruzem no processo de construção da obra,
dificultando estabelecer os limites de cada uma, em nosso trabalho optamos por separá-las a
fim de alcançar maior clareza no estudo de cada uma. Para tanto dividimos o presente estudo
em três grandes partes.
No capítulo I, intitulado “Os elementos pós-modernos de O doente Molière”, após
situar o romance no contexto da obra fonsequiana, tratamos das inovações propostas pela
literatura pós-moderna e dos elementos encontrados no romance de Fonseca que nos
permitiram colocá-lo na esfera do que se chama romance pós-moderno. Em seguida,
abordaremos a questão do caráter híbrido da narrativa, em sua mescla de romance histórico,
policial, autobiográfico e memorialístico, além de refletir sobre os aspectos referentes a outros
gêneros (teatro, diário, cartas) que são incorporados na própria estrutura do romance.
Para isso, tomamos como base o texto de Mikhail Bakhtin (1990), “Epos e romance
(sobre a metodologia do estudo do romance)”, em que o teórico destaca as propriedades do
romance como gênero em constante evolução, além de apontar seu caráter essencialmente
híbrido. Esta consciência de que o próprio gênero nasceu por meio das mesclas e parodizações
de gêneros anteriores a ele nos proporcionou olhar de uma forma mais crítica para O doente
Molière, numa tentativa de buscar quais os gêneros que mais se destacaram neste processo de
11
releitura da obra de Molière e, de certa forma, da tradição literária ocidental, mas sobretudo,
buscar quais os objetivos de Fonseca ao tomar como modelo estrutural e/ou temático
determinados gêneros literários.
No segundo capítulo, “Metaficção historiográfica: os paradoxos da pós-modernidade e
a “presença” da história em O doente Molière”, considerando o conceito de metaficção
historiográfica proposto por Hutcheon, em sua Poética do Pós-Modernismo, (1991),
abordamos a forma como esta “presença do passado” é apresentada no romance, observando
principalmente a maneira como os personagens históricos, e os problemas por eles
enfrentados no século XVII são desenvolvidos. Além disso, é necessário destacar que a pós-
modernidade trabalha exaustivamente com a consciência de que o discurso historiográfico
sempre privilegiou apenas um lado – o dos vencedores –, e que, por se tratar de discurso, não
consegue alcançar a pretensa objetividade. Isto fez com que os rumos dos estudos da história,
assim como também o do romance histórico, mudassem e que todo o processo de escrita e
leitura da história fosse revisto.
O romance pós-moderno, através da metaficção historiográfica, se propõe, portanto, a
sugerir novas versões e a preencher as lacunas do discurso historiográfico, tendo como
principais instrumentos deste trabalho a paródia e a ironia. Desta forma, a volta ao passado
não leva a um retorno nostálgico ou saudosista, e sim a uma reavaliação crítica, estabelecendo
com ele um diálogo irônico. É com base em tais reflexões que lemos O doente Molière,
considerando as investidas metalingüísticas do narrador, bem como as soluções narrativas
pós-modernas encontradas para re-contar um episódio da história literária francesa.
Pensando na forma como o procedimento intertextual é visto e trabalhado na
contemporaneidade, fizemos, no último capítulo, “O doente Molière na mira do olhar
intertextual”, um levantamento sobre o desenvolvimento de seu estudo e a verificação de
como as relações intertextuais se apresentam no romance em questão. Nosso objetivo, neste
capítulo, foi o de refletir sobre o importante papel da tradição literária e o de analisar de que
forma Fonseca trabalhou com esta questão, buscando as “intenções” que estão por trás do
diálogo com a obra de Molière e, principalmente sua peça O doente imaginário, pois em se
tratando de uma obra pós-moderna devemos ter em vista que muito mais que uma simples
referência, a ligação a esta peça se configura como uma das chaves de leitura para o romance.
E finalmente, nas Considerações Finais, foi o momento em que analisamos o
progresso dos estudos e em que medida o presente trabalho poderá contribuir para os estudos
da obra fonsequiana.
12
Neste momento, tendo estabelecido a maneira como conduziremos o presente trabalho,
parece-nos interessante relembrar um texto em que Eco recupera uma metáfora de Borges –
“um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam” – e a completa, afirmando que mesmo
que as trilhas que existem neste bosque não estejam bem definidas, “todos podem traçar sua
própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore e, a cada
árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção.” (ECO, 1999, p.12).
Esta é uma bela metáfora para a leitura, pois como o próprio Eco afirma, no texto
narrativo o leitor é obrigado o tempo todo a decidir qual caminho irá seguir.
Vejamos, pois, os caminhos que nós abrimos neste bosque...
13
CAPÍTULO I
OS ELEMENTOS PÓS-MODERNOS DE O DOENTE MOLIÈRE
1.1. Rubem Fonseca e os dois lados do crime
Conhecido sobretudo por seus livros de contos Lúcia McCartney (1965), Feliz ano
novo (1975) e O cobrador (1979), e por seus romances O caso Morel (1973); Bufo &
Spalanzani (1986) e A grande arte (1983), em que o lado mais violento e cruel do homem
moderno é deflagrado de uma forma ágil e crua, por meio de uma linguagem direta que
contém ecos da oralidade, Rubem Fonseca se tornou o iniciador, na literatura brasileira, do
que Alfredo Bosi chamou de conto “brutalista” (BOSI, 1975, p.18 ).
Imagem do caos e da agonia de valores que a tecnocracia produz num país
de Terceiro Mundo é a narrativa brutalista de Rubem Fonseca que arranca a
sua fala direta e indiretamente das experiências da burguesia carioca, da
Zona Sul, onde, perdida de vez a inocência, os “inocentes do Leblon”
continuam atulhando praias, apartamentos e boates e misturando no mesmo
coquetel instinto e asfalto, objetos plásticos e expressões de uma libido sem
saídas para um convívio de afeto e projeto. (BOSI, 1975, p. 18)
Pouco se sabe a respeito da vida particular deste escritor avesso à imprensa e à
exposição, que começou a carreira literária quase aos quarenta anos. O certo é que nasceu em
11 de maio de 1925, em Juiz de Fora (MG), e ainda criança mudou-se para o Rio de Janeiro,
onde estudou Direito e foi delegado de polícia por algum tempo. Estas particularidades da
vida de José Rubem Fonseca nos interessam unicamente pelo fato de ser este o universo
representado constantemente em sua obra: o Rio de Janeiro como cenário, os advogados, os
inspetores de polícia, os investigadores particulares e médicos legistas como personagens; o
submundo do crime e a prostituição como alguns dos temas que freqüentam seus contos e
romances.
Diferentemente do que se poderia esperar, no entanto, a arte de Fonseca, mesmo sendo
construída dentro deste universo de violência urbana, não se torna panfletária. O que
queremos dizer com isso é que em suas narrativas Fonseca não tenta justificar a violência
como sendo proveniente apenas das classes desfavorecidas, que não possuem educação e
condições financeiras adequadas. Ele representa uma sociedade que, de modo geral, tem visto
seus valores morais e éticos sendo diluídos a ponto de quase desaparecerem, em que a
individualidade tornou-se mais importante que a preocupação com o próximo. Nestas novas
14
condições, em que tudo passa a ser relativizado, também os papéis de mocinho e bandido são
diluídos e, por isso, nenhum personagem é totalmente bom ou totalmente ruim. Eles são
indivíduos dos quais o leitor sempre tem que manter certa desconfiança e que podem
apresentar ações e reações surpreendentes e inesperadas.
Os narradores, que na grande maioria dos contos e romances são também os
protagonistas das histórias, transmitem ao leitor o seu próprio ponto de vista da situação
narrada e, desta forma, Fonseca consegue o mesmo efeito que Umberto Eco diz ter buscado
ao escrever O nome da Rosa (1980): utilizando uma máscara ele se esconde atrás de
advogados como Mandrake (narrador de A grande arte e outros contos – um de seus
personagens mais famosos), de lutadores profissionais, de garotas de programa, executivos,
damas da alta sociedade, assassinos profissionais, entre outros, permitindo que eles falem por
si, e evitando, assim, que algum juízo de valor, revelado pela voz do homem José Rubem
Fonseca, eventualmente apareça.
Afora isso, como aponta Fernanda Cardoso (2007) em um artigo sobre os romances
policiais de Fonseca, o escritor consegue o que poucos alcançaram: representa tanto os que
vivem à margem do sistema, os excluídos, como os que constituem o que chamamos de elite,
ou seja, aqueles que tiveram acesso à boa educação, à cultura e aos luxos adquiridos pelo
dinheiro. O que mais chama a atenção é que nos dois casos a mesma verossimilhança pode ser
verificada, pois o escritor conhece muito bem os dois universos e tudo o que os rodeia, e, no
entanto, não toma partido nem de um e nem de outro.
O mundo marginal das grandes cidades é representado em contos como “Henri”
(2004, p. 46), “Passeio Noturno” (2004, p.243), “Família” (2004, p. 624) e “O cobrador”
(2004, p. 272) com uma grande intensidade e por meio de uma linguagem tão forte e violenta
que transporta o leitor para dentro do mundo narrado, causando uma sensação de choque e
impotência diante dos acontecimentos da narrativa que, ao mesmo tempo em que nos fazem
lembrar as notícias policiais que lemos todos os dias nos jornais, são construídos por meio de
um trabalho com a linguagem que os torna poéticos. A grande arte de Fonseca é, portanto, a
de extrair poeticidade até mesmo da violência. Isso acontece porque, assim como um
cirurgião, o escritor sabe até onde pode ir com seu bisturi: cada palavra é pesada e medida
para que o texto não caia no excesso que pode levar ao mau gosto e agredir
desnecessariamente o leitor.
Como sabemos, Rubem Fonseca além de contista e romancista, também é roteirista,
tendo adaptado para o cinema algumas de suas próprias obras, como é o caso de Relatório de
15
um homem casado (1974), filme dirigido por Flávio Tambelini, A grande arte (1991), filme
dirigido por Walter Salles Jr. e Bufo & Spallanzani (2000) – em colaboração com Patrícia
Melo –, dirigido por Flávio Tambelini. Também é seu o roteiro do filme O homem do ano
(2003), dirigido por seu filho José Henrique Fonseca e baseado no romance O matador
(1995), de Patrícia Melo.
Podemos, portanto, em vista desta outra habilidade de Fonseca, chegar à constatação
de que a linguagem dinâmica de sua narrativa seja, talvez, uma influência da expressão
cinematográfica a qual ele tem se dedicado como roteirista, pois a linguagem utilizada em
seus contos e romances é rápida, direta, formada por períodos curtos que dão agilidade à
narrativa, assim como, geralmente, são curtos os diálogos e ágeis as cenas destes filmes.
Alfredo Bosi diz que “a dicção que se faz no interior desse mundo é rápida, às vezes
compulsiva; impura, se não obscena; direta, tocando o gestual; dissonante, quase ruído.”
(BOSI,1975, p.18)
Além disso, toda informação que acompanha as falas dos narradores e dos
personagens agregam noções pontuais do ambiente e das características necessárias para que
o leitor consiga, em sua mente, visualizar o que se passa, sem que isso trunque o texto por
excesso de descrições. Segundo as palavras de Ariovaldo José Vidal, em Roteiro para um
narrador,
Há também em seu estilo, como já observou a crítica, muita influência do
modo cinematográfico de narrar. Quem lê seus contos percebe de imediato a
agilidade criada pelos cortes bruscos: bastaria pensar a esse respeito no
“Caso F. A.”, em que o corpo flexível, ágil, dançante do narrador passa
veloz pelas frases curtas e rápidas que compõem a narrativa. A agilidade
lembra Dashiell Hammett, e sobretudo a narrativa febril de James Cain.
(2000, p.125)
Outra característica dos contos de Fonseca narrados em primeira pessoa é o fato de
haver uma indistinção entre o tempo dos acontecimentos, ou da narrativa, e o tempo da
escrita, da narração, como se a narrativa fosse transcrita ao mesmo tempo em que os fatos
ocorrem. Vidal diz que “um dos aspectos mais visíveis nesse sentido é o procedimento da
presentificação do tempo narrativo, enunciado e enunciação estreitando-se no ritmo veloz das
ações.” (2000, p.125).
Vejamos um excerto do conto “O cobrador”, publicado pela primeira vez em 1979 no
livro de mesmo título:
16
A rua está cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para
fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, boceta,
cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes, estão me devendo. Um
cego pede esmolas sacudindo uma cuia de alumínio com moedas. Dou um
pontapé na cuia dele, o barulhinho das moedas me irrita. Rua Marechal
Floriano, casa das armas, farmácia, banco, china, retratista, Light, vacina,
médico, Ducal, gente aos montes. De manhã não se consegue andar na
direção da Central, a multidão vem rolando como uma enorme lagarta
ocupando toda a calçada. (FONSECA, 2004, p.273)
Neste conto, um homem inconformado com sua condição e com o que chama de falta
de oportunidades narra suas peripécias pelas ruas do Rio de Janeiro ao decidir cobrar seus
direitos à sociedade. Na abertura de “O cobrador”, o leitor é levado pelo personagem-narrador
a uma sala de espera de um consultório de dentista onde ele está aguardando para ser
atendido. Logo em seguida o leitor testemunha uma de suas cobranças: o dentista, ao terminar
de arrancar o dente, pede o pagamento, mas o narrador se nega a pagar e explica: “Eu não
pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!” (FONSECA, 2004, p.
273), e dá um tiro no joelho do dentista e sai.
O leitor ainda desacostumado com o estilo fonsequiano pode ficar perplexo com a
forma com que é introduzida esta narrativa, pois a presença de uma linguagem direta, com
reflexos da oralidade e o uso de palavras de baixo calão, e a agilidade da cena não deixam
tempo para o leitor se acostumar com a violência do personagem-narrador. Contudo, após o
tiro aparece o trecho transcrito acima, em que o personagem, mesmo sem nome ainda,
aparece, de certa forma, humanizado. Ele que antes parecia um animal seguindo seu instinto
de violência, agora ganha contornos humanos. Ainda está sem rosto e sem nome, é verdade,
mas já deixa de ser apenas um agressor para se mostrar também agredido, representando
outras pessoas que também estão pelas ruas procurando seu espaço e esperando a educação, a
comida e a dignidade que a sociedade lhes deve.
No entanto, como cabe lembrar, Fonseca não defende seu personagem, ele aparece
desnudo de compaixão e de dignidade. Prova disso é o fato de ele não se envergonhar em
agredir um cego que pede esmolas e que é tão desprovido quanto ele, apenas por se sentir
incomodado com o barulho das moedas.
Neste conto, assim como em muitos outros, está presente a influência negativa da
cidade grande que condiciona o comportamento dos personagens. O “cobrador” parece
desorientado e enlouquecido pelo barulho e pelo caos provocado pela “enorme lagarta” que
vem rolando pelas ruas. Essa imagem que Rubem Fonseca utiliza nos remete a dois grandes
17
escritores do século XIX – Baudelaire (1821-1867) e Poe (1809-1849) – que também
representaram o impacto que a multidão provocava nos seres humanos.
Segundo Lídia da Cruz C. Moreira (2007), o texto “O homem das multidões” (“The
man of the crowd”) de Poe teve influência sobre “As multidões” (“Les foules”) de Baudelaire
e por isso, em seu artigo, ela estabelece uma relação entre os dois escritores e seu tempo. No
século XIX, as multidões eram ainda uma novidade, pois as grandes metrópoles haviam
crescido muito rapidamente; desta forma, havia variadas formas de olhar para a grande
quantidade de pessoas que preenchiam as ruas. Moreira cita o poeta Percy Bysshe Shelley,
para quem “O inferno é uma cidade muito parecida com Londres – uma cidade populosa e
fumacenta.” [2007]. Já para outros, como Baudelaire e Poe, saber apreciar as multidões pode
proporcionar muitos prazeres. No entanto, o que nos interessa é a maneira utilizada por eles
para descrever as multidões, principalmente por Poe, que as compara a “densas e contínuas
marés de povo” e “densa turba” (POE, 1986).
Rubem Fonseca, ao utilizar a expressão “enorme lagarta” em referência à multidão
(2004, p. 273), dialoga com a mesma idéia contida nos textos de seus predecessores de que a
multidão se apresenta como uma unidade, como a “comunhão universal” [s.d] do poema de
Baudelaire. Contudo, seu personagem não encontra nela nenhum prazer; muito ao contrário,
ele se sente contrariado e esta ivresse causada pela multidão é um dos fatores que o levam a
cometer seus crimes.
Como no exemplo de “O cobrador”, grande parte dos contos fonsequianos tem sua
narração feita em primeira pessoa. O personagem protagonista-narrador conta fatos de seu
cotidiano, recortes de uma vivência permeada pela violência e pelo individualismo. O que
chama a atenção é que na maioria das vezes ele não nega ou esconde que comete crimes ou
que possui um comportamento diferente do que é estabelecido como “normal”; ao contrário,
sua narrativa é uma maneira de expandir seus sentimentos e pensamentos, mesmo os mais
absurdos. Podemos citar como exemplo o conto “Henri”, em que um homem que seduz
mulheres para depois matá-las narra sua última conquista; ou “Copromancia” (2004), em que
o narrador é uma espécie de vidente que tem como objeto de decifração excrementos; ou
ainda “O corcunda e a Vênus de Botticelli” (2004), em que o narrador é corcunda e conta os
artifícios que utiliza para seduzir mulheres bonitas, para depois abandoná-las.
Para imprimir-lhes verossimilhança, sejam estes personagens marginalizados ou
cultos, Fonseca adere – em sua escrita – ao modo de falar típico do mundo que envolve cada
personagem. Desta forma, faz uso de gírias e palavras de baixo calão, ao mesmo tempo em
18
que emprega palavras sofisticadas e termos específicos (das várias áreas do saber científico,
das artes, da medicina ou do direito). É notável a caracterização dos personagens também no
que diz respeito ao vocabulário e aos temas que circundam suas vidas, com variações de
acordo com o sexo, a idade e a ocupação de cada um, o que se configura como um dos
elementos apontados pela crítica para a garantia da verossimilhança.
Mesmo representando e denunciando a realidade das metrópoles e de seus moradores,
a literatura fonsequiana não pode ser classificada como uma literatura engajada, pois não há
em sua prosa parcialidade. Os personagens não são condenados ou absolvidos, o que nos é
apresentado, enquanto leitores do mundo marginal de Fonseca, é uma perspectiva, um modo
de olhar para esse mundo, sem que seja necessário tomar o partido do personagem e explicar
o motivo de ele ter chegado a determinada ação, inocentando-o e/ou atribuindo culpa ao
governo, à elite, ou a quem quer que seja. O núcleo dos privilegiados também não está isento,
também eles cometem crimes. As culpas, quando existem, são imputadas pelos próprios
personagens, garantindo a isenção do ponto de vista do autor.
Os contos são, em grande parte, recortes de um mundo e de uma realidade que muitas
vezes se tenta esconder, mas que existe e está cada vez mais presente na vida das pessoas. A
literatura de Rubem Fonseca busca a representação do cotidiano das grandes cidades, do
homem na contemporaneidade, da perda dos valores éticos e morais.
Chama a atenção na obra de Fonseca, embora exista uma presença muito forte da
criminalidade e do lado torpe do homem, haver também, não raro, uma outra face: a da arte.
Os narradores fonsequianos, mesmo os mais sádicos, os mais desumanos, são apreciadores da
arte, são leitores e conhecedores da alta literatura e da música erudita, e, portanto, de certa
forma, acabam sendo humanizados por ela.
O leitor acostumado à narrativa do ex-delegado de polícia não estranha o fato de que,
em meio à narração dos crimes e à exposição de cenas de intimidade dos personagens,
apareçam citações e referências aos grandes nomes da literatura e das ciências tais como
Blaise Pascal, no conto “Henri” (2004, p. 46); Gustave Flaubert, James Joyce, Luís de
Camões, Carlos Drummond de Andrade, Machado de Assis, Marcel Proust, Fernando Pessoa,
no conto “Agruras de um jovem escritor” (2004, p. 225); Franz Kafka, em “Lúcia
McCartney” (2004, p. 109); Molière, Jean Racine, Michel de Montaigne, em O doente
Molière (2000). Por isso os críticos se referem à literatura fonsequiana como sendo composta
por uma mescla entre o que é cotidiano, comum e muitas vezes grosseiro, e a alta cultura.
19
Fonseca coloca o grotesco e o sublime lado a lado, a excreção e a poeticidade na mesma
página.
Estas duas faces das narrativas de Fonseca apontam para um procedimento que tem se
tornado muito comum na contemporaneidade que é o de dar várias possibilidades de leitura
para um mesmo texto. Umberto Eco define o efeito poético “como a capacidade que tem um
texto de gerar leituras sempre diversas, sem nunca esgotar-se completamente.” (1985, p.13) –
é o que ele chama de “obra aberta” (ECO, 1997). Segundo esta teoria, os vários planos de
leitura conseguem atingir um amplo público leitor sem que haja a perda de qualidade
constatada em alguns best-sellers. Um romance como O nome da rosa consegue agradar tanto
a um leitor inexperiente, que busca apenas o entretenimento, como a um leitor mais
experiente, que busca relações intertextuais com outros livros e gêneros. Além disso, há a
possibilidade de o leitor, que em um primeiro momento é fisgado apenas pelo enredo, passar
para o(s) plano(s) seguinte(s). Esta é uma das características da pós-modernidade a qual
abordaremos no decorrer do trabalho, e que supõe, como um instrumento importante para a
sua configuração, a questão dos gêneros literários.
1.2. O contexto da obra de Rubem Fonseca e a recepção de O doente Molière
Os leitores da obra de Rubem Fonseca, acostumados a romances e contos policiais que
têm como cenários as grandes e caóticas cidades modernas na qual circulam todos os tipos de
personagens como detetives particulares, delegados, halterofilistas, garotas de programa, altos
executivos, enfim, personagens comuns que compõem a sociedade carioca representada por
Fonseca, estranharam quando surgiu O doente Molière, em 2000, já que a nova trama não
tratava mais de uma história sobre o caos e a violência das grandes cidades brasileiras, mas de
uma história sobre Molière e as peripécias de um Marquês indiscreto, da corte de Luís XIV,
em pleno século XVII.
Após a publicação de Confraria dos Espadas (contos, 1998), os leitores de Fonseca
talvez esperassem a publicação de um novo livro do autor em que houvesse histórias
mesclando violência e erotismo, além de muito suspense, traços marcantes de sua narrativa.
Contudo, em 2000, após uma espera de dois anos, surge O doente Molière, romance que
difere, aparentemente, de tudo o que ele vinha escrevendo até então. A narrativa foi escrita a
convite do editor da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, e faz parte de uma série chamada
20
“Literatura ou morte”, que tem como objetivo a criação, por autores contemporâneos, de
romances policiais inspirados na obra e/ou na biografia de grandes nomes da literatura, de
acordo com as predileções de cada colaborador. Entre os títulos publicados estão Medo de
Sade (2000), de Bernardo Carvalho; Os leopardos de Kafka (2000), de Moacyr Scliar; Borges
e os Orangotangos Eternos (2000), de Luis Fernando Veríssimo; A morte de Rimbaud (2000),
de Leandro Konder; Stevenson sob as palmeiras (2000), de Alberto Manguel; Bilac vê
estrelas (2000), de Ruy Castro; Adeus Hemingway (2000), de Leonardo Padura Fuentes, além,
é claro, de O doente Molière.
Na construção deste romance, Fonseca é levado pelo tema a se remeter ao passado e a
buscar os elementos que comporão a trama no século XVII e na biografia de Molière,
dramaturgo muito lido e representado até hoje e que protagonizou inúmeras polêmicas na
corte do rei Luís XIV. Portanto, este estranhamento por parte do público leitor é
compreensível, já que houve uma mudança significativa tanto no que diz respeito à temática
como ao espaço, quando pensamos em suas obras mais conhecidas pelo leitor comum (A
grande arte, Bufo & Spallanzani, Feliz Ano Novo)
1
. No entanto, este romance gerou um
problema no panorama da obra de Rubem Fonseca, pois, sem saberem como tratar este texto
inusitado, tanto seus fiéis leitores como também uma parte da crítica acabaram esquecendo O
doente Molière, deixando-o de lado. Embora estejamos falando de uma obra recente, parece-
nos que, por ter recebido o Prêmio de melhor romance do ano, da Associação Paulista de
Críticos de Arte (APCA) em 2000, sua repercussão foi restrita.
Esta “crise” foi agravada pelo fato de se tratar de um texto de encomenda, ou seja,
como fazia parte de um projeto da editora e não de “necessidade interna” do autor, este fato
tornou-se um forte argumento para fortalecer a falta de interesse pelo livro
2
. Um
levantamento
3
sobre o que foi publicado até então a respeito da obra indicou que muito
pouco, e em âmbitos restritos, se estudou este texto de Rubem Fonseca. Chegaram ao nosso
conhecimento apenas alguns artigos de jornal e de revista que trataram rapidamente do livro
para divulgá-lo na época da publicação e algumas sinopses de sites de livraria.
1
Muito embora, neste momento, Fonseca já tenha publicado o romance Agosto e também contos como “H. M. S.
Cormorant em Paranaguá” (ver: ESTEVES, 2007), ambos de extração histórica.
2
A nosso ver esta informação – o romance compor um projeto da editora – não tem relevância quanto à
qualidade ou não da obra, no entanto, constatamos em eventos dos quais participamos e em pesquisas nos meios
eletrônicos que, infelizmente, existe preconceito com relação a isso. Desta forma, deixamos aqui registrada nossa
observação, sem que haja, de nossa parte, interesse maior em discutir esta questão.
3
Pesquisas em bancos de dissertações/teses (Capes, da Unicamp e da Usp); pesquisas em alguns dos jornais
importantes; busca por livros ou revistas contendo artigos; pesquisas na internet.
21
Em um texto publicado pela revista Veja, em abril de 2000, o jornalista Carlos Graieb
já no título anuncia como, segundo ele, alguns leitores reagiriam ao ler O doente Molière. Em
seu texto intitulado “Uma decepção” ele afirma que, apesar de todo o talento e prestígio de
Fonseca, ao lançar este livro, se houvesse uma Bolsa de Valores da Literatura, as ações do
autor cairiam. Ele segue dizendo que o livro é “chocho” e que
Fonseca inventou ainda um bom narrador-detetive, um marquês rico,
mulherengo e de gostos cultivados. Mas, aí, surgem os problemas. O maior
deles: o autor fica encalacrado entre as necessidades de um romance
histórico e as de um policial. Ele precisa invocar o espírito de uma época
passada e, ao mesmo tempo, manter a agilidade e a tensão da narrativa.
Como não consegue, o resultado é um livro inconvincente. (GRAIEB, 2000)
O que constatamos com a leitura desta resenha superficial sobre o romance é que o seu
autor desconsidera o fato de que na literatura contemporânea as fronteiras entre os gêneros
vêm se esfacelando cada vez mais, e que isso, ao invés de fazer com que o autor fique
“encalacrado” entre um gênero e outro, proporciona ao leitor diversas possibilidades de
leitura. O fato de haver mais de um gênero constituindo o texto não faz com que não possa
haver uma valorização, pois vemos em O doente Molière um trabalho bem sucedido com
relação à linguagem e com as questões de gênero literário que proporcionam um texto
instigante, em que há muito mais que a simples discussão temática sobre a morte de Molière.
É preciso, em se tratando de um livro contemporâneo – e, ainda mais quando falamos sobre
Rubem Fonseca, que antes de tudo é um grande leitor – saber enxergar além do aparente,
buscar nas entrelinhas as várias referências ao processo de leitura e ao ato de escrever, o
questionamento dos valores morais, entre outros elementos que fazem parte do universo
fonsequiano e que colocam sua obra no rol da boa literatura brasileira contemporânea. Como
conseqüência disto é possível notar que seus contos e romances vêm sendo admitidos no meio
acadêmico.
Apesar das críticas negativas, também chegaram ao nosso conhecimento resenhas
interessantes que apontaram pontos favoráveis do livro e que nos ajudaram a nortear nossas
reflexões. Dentre estes artigos merecem destaque os textos “A grande arte de Molière”,
publicado por Cecília Costa em abril de 2000 no jornal O Globo; “Afinal, quem matou
Molière?”, de Macksen Luiz, publicado no Jornal do Brasil em 13 de maio de 2000; “Rubem
Fonseca reinventa Molière em trama policial”, de Luiz Zanin Oricchio, publicado em O
Estado de S. Paulo em 17 de abril de 2000, e “Rubem Fonseca fala de morte em seu novo
livro”, publicado na Tribuna da Bahia também em abril de 2000, por Nelson de Sá.
22
Os quatro textos são resenhas escritas para divulgar O doente Molière e, embora sejam
curtos e seus autores não tenham tido a oportunidade de aprofundar suas idéias, lançam
questões importantes. Cecília Costa discorre sobre a pesquisa que Fonseca realizou para
representar a época do “Rei Sol” e sobre a já tradicional tendência do escritor em escrever
narrativas policiais, “para quem escrever uma novela policial é puro divertimento, engenho e
arte”. Outro aspecto que a resenhista destaca como “condimento” do livro é a presença de
trechos das peças de Molière e dos Ensaios de Montaigne, aproveitando-se disso para permitir
que seu narrador utilize também novas máximas, inventadas pelo romancista já que por
diversas vezes o narrador cita máximas que atribui a Montaigne e outras que ele mesmo criou,
mas que poderiam ter sido criadas pelo ensaísta francês. Para ela a presença feminina também
merece destaque na obra, já que são várias as mulheres que nela aparecem: preciosas,
ridículas ou não, grandes damas, cortesãs, atrizes.
Macksen Luiz, como crítico de teatro, destaca principalmente a relação entre o gênero
teatral e o texto de Fonseca. Para ele, O doente Molière é “um simulacro teatral, erguido
através de crônica histórico-policial”, o que já indica que sua perspectiva considera a mescla
dos gêneros como elemento constituinte da obra. Outro elemento apontado por ele é a
ausência do suspense, pois em sua trama Fonseca empresta elementos das peças de Molière
que eram permeadas por doença, morte e desonestidade no exercício da cura, e assim, “tece
um rendilhado de frases que contam muito de um tempo e alguns traços de um homem”, em
que a pergunta “Quem matou Molière?” não tem tanta importância.
Em “Rubem Fonseca reinventa Molière em trama policial”, Oricchio explora um
elemento que chama de “anticlímax” apontando para o fato de que, como Fonseca conhece e
domina muito bem o gênero policial, ao invés de buscar uma solução fácil, preferiu trabalhar,
nesta narrativa, de uma forma mais oblíqua, já que aquele que tenta desvendar o crime – o
Marquês Anônimo – não é uma parte desinteressada, ele é “suspeito e hesitante”.
Nelson de Sá (2000), por sua vez, comenta o procedimento intertextual com as obras
de Molière e de Montaigne, já que, além dos trechos do dramaturgo que foram inseridos ao
longo da narrativa, encontramos citações literais (e pretensamente literais) dos Ensaios de
Montaigne. Afora isso, ele discorre sobre a identificação entre o escritor brasileiro e o
dramaturgo francês, já que ambos foram censurados: Molière teve a encenação da peça
Tartufo (1664) proibida e Fonseca foi censurado pela ditadura, seu livro de contos Feliz ano
novo cassado.
23
Em Os crimes do texto (2003), obra em que Vera Lúcia Follain de Figueiredo
analisa diversos contos fonsequianos, foi possível encontrar um trecho em que ela, ainda que
de forma rápida, aponta alguns aspectos importantes do romance O doente Molière, como a
“multiplicação do indivíduo em inúmeros outros que acaba desfazendo as dicotomias
escritor/personagem, realidade/ficção.” (2003, p.65). Figueiredo nos mostra que o próprio
Molière se multiplicava ao ser ao mesmo tempo escritor, diretor e ator de teatro e ao encenar
suas peças que criticavam uma sociedade em que também era possível perceber que tudo era
representação. Afora estes textos, nenhum trabalho de fôlego veio a nosso conhecimento.
Como comenta Nelson de Sá, outra novidade deste romance é a possibilidade do jogo
mais aberto com a intertextualidade, procedimento que já havia sido explorado na obra de
Fonseca, mas de uma forma mais diluída, permitindo que houvesse vários planos de leitura,
conforme o repertório de leitura e a “bagagem cultural” de cada leitor. Contudo, em O doente
Molière, a intertextualidade, com todas as suas implicações (reconhecimento da fonte,
compreensão do contexto em que se aplica e constatação de paródia do texto com o qual se
estabelece a relação intertextual), se acentuou de forma que alguns leitores, que deixaram
depoimentos sobre a leitura de O doente Molière em diversos sites da internet, julgaram que
a leitura, a quem falta o conhecimento dos temas do século XVII e da obra de Molière, pode
tornar-se difícil e cansativa. Isto, de certa forma, pode ocorrer se pensarmos que neste livro as
pistas para o desvendamento do suposto crime estão exatamente nas comédias escritas pelo
dramaturgo francês, sendo o procedimento intertextual não um mero enfeite do texto, mas um
instrumento, uma chave para a leitura do livro.
Contudo, devemos ressaltar que o não conhecimento das fontes não se torna, nesta
obra tipicamente pós-moderna, um requisito essencial, pois é perfeitamente possível ler O
doente Molière e se deliciar apenas com a trama ou com os ousados comentários do narrador,
mesmo sem ter tido contato prévio com Molière e sua obra. Desta forma, o que se pode
constatar é que há em uma mesma narrativa diferentes perspectivas de leitura que podem
agradar e conquistar os mais diversos tipos de leitor, desde os que buscam o simples
entretenimento até os que estão em busca de algo mais, como referências a obras da literatura
universal ou reflexões sobre os processos que envolvem a leitura e a escritura.
Ao estabelecer a estrutura do conto policial, Ricardo Piglia (1994) afirma que este
sempre é composto por duas histórias, em que a primeira história é narrada em primeiro plano
24
e está visível, enquanto que a segunda é narrada em um segundo plano, que é construída de
um modo elíptico e fragmentário.
Tomando este exemplo podemos perceber que Fonseca, ao construir O doente
Molière, vai buscar no modelo do conto policial os elementos estruturais para sua narrativa.
Tematicamente isso fica claro desde o momento em que se lê a contracapa do livro, pois ali já
é lançada a questão do possível envenenamento; no entanto, a partir da leitura atenta do
romance, surge o elemento de surpresa ao qual se refere Piglia: no final da narrativa, a história
secreta aparece na superfície (p. 37). Sendo assim, qual seria esta história secreta que vai
sendo tecida nas entrelinhas da história aparente? A história da literatura ocidental.
Em meio às “fofocas” e comentários do narrador é tecido um panorama da literatura,
do cânone ocidental. Em O doente Molière muitos escritores dos gêneros narrativos e,
principalmente aqueles que compõem as chamadas narrativas do “eu”, aparecem como
personagens, desfilando aí suas obras. No entanto, essa questão não se restringe à simples
alusão, pois Fonseca incorpora na estrutura de seu romance tais questionamentos.
Além disso, e o que talvez seja mais importante, é a simbologia contida em O doente
Molière, no sentido de representar a “morte” da tragédia e da épica (e dos gêneros
constituídos a que se refere Bakhtin), ao mesmo tempo em que morre Molière (final do século
XVII), e a ascensão do romance, que se dará no século XVIII. Esta leitura é feita no sentido
em que a peça que é o substrato motivador do romance de Fonseca é justamente a última
escrita pelo dramaturgo francês, somando-se a isso o fato de ser após sua representação que
ele veio a falecer.
Este trabalho estrutural realizado por Fonseca demonstra a qualidade da obra que,
além de deleitar o leitor e instigá-lo por meio de um mistério provocado pela dúvida e pela
busca de uma solução (encontrar o culpado para um suposto crime), também proporciona o
prazer na investigação das pistas intertextuais espalhadas ao longo do texto e na busca da
história secreta. Assim, o leitor, ao observar o trabalho do detetive na narrativa, também se
ocupa em desvendar os “mistérios do texto” (FIGUEIREDO, 2003).
25
1.3. A pós-modernidade – a contradição e o paradoxo como elementos constitutivos da
literatura
O termo “pós-modernismo”, desde que começou a ser empregado, tem causado muitos
debates acalorados e dividido a crítica em dois grupos bastante distintos: os defensores e os
detratores.
O ponto principal de toda a problemática em torno do termo vem, segundo Hutcheon,
da dificuldade que os críticos têm demonstrado em compreender que, ao se estudar o pós-
modernismo, não se pode deixar de lado o modernismo, já que aquele literalmente depende
deste. Hutcheon diz que o moderno está embutido no pós-moderno, mas que esse
relacionamento entre os dois fenômenos estilísticos é altamente complexo por ser estabelecido
em uma relação de conseqüência, diferença e dependência ao mesmo tempo (HUTCHEON,
1991, p.61).
Hutcheon aponta para o fato de o pós-modernismo ser essencialmente paradoxal.
Segundo a crítica canadense, os modelos binários de oposições elaborados pelos críticos na
tentativa de depreciar ou defender a estética pós-moderna não funcionam. Não é mais
possível, quando se trata de uma obra pós-moderna, falar em uma relação de “ou isto ou
aquilo”: o que se deve fazer é uma tentativa de compreender que a inovação trazida pela nova
estética é a de estabelecer relações de soma - “isso e aquilo”. O pós-moderno é tudo ao
mesmo tempo: contraditório e paradoxal. Nas palavras de Hutcheon,
o pós-modernismo é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e
depois subverte, os próprios conceitos que desafia – seja na arquitetura, na
literatura, na pintura, na escultura, no cinema, no vídeo, na dança, na
televisão, na música, na filosofia, na teoria estética, na psicanálise, na
lingüística ou na historiografia. (HUTCHEON, 1991, p.19)
E ela também nos mostra que, como é contraditório e atua dentro do próprio sistema
que subverte, o pós-modernismo não pode ser visto como um novo paradigma ou como um
movimento vanguardista, pois ele não substitui o humanismo liberal – sistema em que
vivemos – mesmo que o conteste, pois “a cultura é desafiada a partir de seu próprio interior:
desafiada, questionada ou contestada, mas não implodida.” (HUTCHEON, 1991, p.16).
Ao longo de seu estudo, a crítica cita as principais contradições do pós-modernismo e
desenvolve sua reflexão a partir de tais premissas. Vamos apontar algumas delas a fim de
deixar clara a perspectiva que tomamos ao usar o termo e como o entendemos.
26
As principais contradições do pós-modernismo seriam a mescla de gêneros elitizados e
populares, que diminui a distância entre formas artísticas altas e baixas, e possibilita a criação
de romances altamente apreciados pela crítica sem deixar de fazer parte do rol de leituras das
massas (e Hutcheon cita como exemplos alguns romances como O nome da rosa, que são
estudados nas universidades e se tornaram best-sellers (p. 69)); o gosto pelas diferenças, pela
afirmação da comunidade descentralizada (p. 29); a pluralização da Cultura, que se tornou
culturas por causa do impulso homogeneizante da sociedade de consumo (p. 30); a
autoconsciência de seus paradoxos e de seu caráter provisório (p. 43); a volta ao passado, ou
melhor, a busca pela “presença do passado” (“título dado à Bienal de Veneza de 1980, que
assinalou o reconhecimento institucional do pós-modernismo na arquitetura” (HUTCHEON,
1991, p. 20)), mas não com nostalgia: com a consciência de que só podemos estar em contato
com o passado a partir de uma história que é construção humana, é elaborada por meio da
escritura, da seleção de fatos e acontecimentos. Portanto, é necessário resgatar este passado a
partir de um distanciamento crítico que é alcançado por meio da paródia e da análise irônica
dos discursos historiográficos.
É este último tópico o mais enfatizado e desenvolvido por Hutcheon em sua Poética:
Apesar de seus detratores, o pós-modernismo não é anistórico nem
desistoricizado, embora realmente questione nossos pressupostos (talvez não
admitidos) sobre aquilo que constitui o conhecimento histórico. Não é
nostálgico ou saudosista em sua reavaliação crítica da história. Os trabalhos
recentes de Hayden White, Paul Veyne, Michel de Certeau, Dominick
LaCapra, Louis O. Mink, Frederic Jameson, Lionel Gossman e Edward Said,
entre outros, levantaram a respeito do discurso histórico e de sua relação
com o literário as mesmas questões levantadas pela metaficção
historiográfica: questões como as da forma narrativa, da intertextualidade,
das estratégias de representação, da função da linguagem, da relação entre o
fato histórico e o acontecimento empírico, e, em geral, das conseqüências
epistemológicas e ontológicas do ato de tornar problemático aquilo que antes
era aceito pela historiografia – e pela literatura – como uma certeza.
(HUTCHEON, 1991, p.14)
Linda Hutcheon trata da arte pós-moderna de um modo geral. No entanto, resolve
privilegiar o gênero romance em uma de suas formas, a que chama de metaficção
historiográfica, termo pelo qual entende “aqueles romances famosos e populares que, ao
mesmo tempo, são imensamente auto-reflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal,
também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos” (1991, p. 21). Ela dá como
exemplos dessas “obras populares paradoxais” (1991, p. 11) romances como Cem anos de
27
solidão, de García Márquez; O nome da rosa, de Umberto Eco; e Famous last words, de
Findley, entre outros.
Outra contradição do pós-modernismo é a coexistência de gêneros literários
heterogêneos (HUTCHEON, 1991, p. 21), como em O nome da rosa em que estão misturados
o gênero policial, o histórico e o filosófico; ou como em A rainha dos cárceres da Grécia
(1976), de Osman Lins, em que gêneros distintos como o diário e o ensaio crítico são
mesclados na produção de um romance biográfico; ou ainda, uma obra como Cem anos de
solidão (1967), em que a crônica se une à narrativa fantástica. É a partir deste ponto que
partiremos para discutir um dos elementos tipicamente pós-modernos mais importantes para o
estudo de O doente Molière – a questão do hibridismo genérico.
Podemos ver que na estética que se convencionou chamar de pós-modernismo o gosto
pela multiplicidade, pelas diferenças e pela impossibilidade de classificação foi levado ao
extremo.
As fronteiras entre os gêneros literários tornaram-se fluidas: quem pode
continuar dizendo quais são os limites entre o romance e a coletânea de
contos (Lives of girls and women [Vidas de meninas e mulheres], de Alice
Munro), o romance e o poema longo (Coming Through Slaughter [Vindo
através da matança], de Michael Ondaatje), o romance e a autobiografia
(China men [Homens da China], de Maxine Hong Kingston), o romance e a
história (Shame [Vergonha], de Salman Rushdie), o romance e a biografia
(Kepler, de John Banville)? (HUTCHEON, 1991, p. 26-27)
Assim também ocorre em O doente Molière, pois nele existem múltiplas vertentes que
se mesclam para produzir a narrativa: trata-se de um romance histórico, pois a ação se passa
no século XVII, com uma tentativa bem sucedida de reconstrução e representação da
sociedade francesa da época; ao mesmo tempo, ele também possui elementos que o
caracterizam como romance policial, já que há um misterioso crime a ser desvendado pelo
narrador; inicia-se com uma apresentação dos personagens típica das peças escritas para
teatro; é narrado por um personagem instigante que, ao reconstruir de forma bem humorada
um painel de sua época, traça seu perfil físico e psicológico, além de contar ao leitor detalhes
de sua vida particular, o que poderíamos denominar de romance autobiográfico; e por fim,
constitui-se tematicamente na biografia do dramaturgo francês Molière.
Traçando um paralelo com o exemplo citado por Hutcheon no primeiro capítulo da
primeira parte de sua Poética, em que ela fala sobre o romance A morte de Artemio Cruz, de
Carlos Fuentes, podemos dizer que Rubem Fonseca, ao escrever O doente Molière, também
28
aponta já no título para uma irônica inversão das convenções biográficas – considerando que,
como apontamos acima, podemos ver o romance a partir também desta vertente. No livro de
Fuentes é a morte (explícita no título) e não a vida o objeto de enfoque da trama; portanto, a
inversão é muito mais acentuada. Contudo, tendo em vista que a palavra “doente” aparece no
título do livro de Fonseca e a morte do personagem é apresentada no primeiro capítulo,
observamos que o gênero biográfico é parodiado e subvertido, pois as ações do personagem
em vida serão importantes, no romance, exclusivamente para ajudar a desvendar o motivo de
sua morte, ao contrário do que aconteceria em uma “autêntica” biografia, na qual a vida tem
destaque e a morte é apenas um triste desfecho.
1.4. O hibridismo genérico
Ao estudar a teoria do romance em Bakhtin (1990), uma das primeiras constatações a
serem feitas sobre o romance é que se trata de um gênero jovem, em constante
desenvolvimento e, sobretudo, híbrido, já que seu nascimento e desenvolvimento se dão sob
nossos olhos e através da mescla e do reaproveitamento de outros gêneros já existentes. Estes
gêneros são revistos, parodiados e questionados pois a preocupação do romance enquanto
gênero a se constituir é a de como os gêneros já constituídos poderiam se adequar ao novo
mundo que surge, no qual a verdade e o passado absoluto da epopéia não têm mais espaço.
Desta forma, o melhor representante seria um gênero que expressa as tendências evolutivas
deste novo mundo.
O termo “híbrido”, conforme aponta Zilá Bernd (2005), vem do grego hybris, cuja
etimologia remete a ultraje, correspondendo a uma miscigenação ou mistura que violava as
leis naturais. Para os gregos, o termo correspondia à desmedida, ao ultrapassar das fronteiras,
ato que exigia imediata punição. A palavra remete, portanto, ao que é “originário de espécies
diversas”, miscigenado de maneira anômala e irregular. Ela afirma que esta origem
etimológica foi responsável pelo fato de serem considerados como sinônimos de híbrido,
palavras como irregular, anômalo, aberrante, anormal, monstruoso, etc. Híbrido é também o
que participa de dois ou mais conjuntos, gêneros ou estilos; assim, considera-se híbrida a
composição de dois elementos diversos anomalamente reunidos para originar um terceiro
elemento que pode ter as características dos dois primeiros reforçadas ou reduzidas.
29
Stelamaris Coser (2005), por sua vez, em seu texto “Híbrido, hibridismo e
hibridização”, destaca que este conceito está carregado de ambigüidade e polêmica e que, por
isso, merece ser pensado no amplo contexto de suas manifestações. Na pós-modernidade, a
utilização e a discussão sobre o termo híbrido e seus correspondentes, é fruto do fenômeno
sociodemográfico das migrações e deslocamentos dentro de um mesmo país ou entre países e
continentes, que, invariavelmente, têm como resultado a miscigenação cultural.
No entanto, Coser aponta para o fato de que a princípio, o hibridismo nos reporta à
biologia e à preocupação com a mistura das espécies que aflora em pesquisas e escritos
europeus (e eurocêntricos) do século XIX. Ela lembra ainda que a primeira definição de
híbrido proposta pelo Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa aponta para o conteúdo
negativo do termo, que estaria ligado a “animal estéril, bastardo”. Além disso, ela também
destaca que a etimologia truncada da palavra colaborou para que o termo absorvesse
conotações desfavoráveis. (COSER, 2005, p. 165).
Como vários estudos da biologia chegaram à conclusão de que alguns animais e
plantas híbridos se tornavam estéreis, instaurou-se a idéia de que a miscigenação poderia ser
danosa e perigosa também para o ser humano, desta forma, o preconceito contra o termo se
difundiu. Somente depois de outros estudos em que se constatou que as espécies híbridas
tornavam-se mais resistentes que as homogêneas, a hibridização começou a ser aceita, mas,
mesmo assim, durante o século XIX a idéia de que a miscigenação provocaria a degeneração
das espécies predominou.
Em seu verbete do Dictionnaire International des Termes Littéraires, Jacqueline
Viswanathan [s.d] aponta que esta conotação negativa persistiu ainda por muito tempo, até o
termo ser aproveitado na terminologia lingüística. Passou-se, assim, a entender por híbrido
um discurso em que há dois elementos de línguas diferentes ou de estilos diferentes.
Posteriormente, o uso do termo se estendeu para o campo dos estudos literários, no qual
“hibridismo” pode ser definido como o fenômeno da coexistência de gêneros literários
distintos em uma mesma obra.
Essa definição, apontada por Viswanathan, só pôde ser feita a partir dos estudos de
Bakhtin, nos quais destaca ser o romance o gênero híbrido por excelência, pois nasceu da
mescla e do cruzamento de outros gêneros.
É justamente aqui – no cômico popular – que é necessário procurar as
autênticas raízes folclóricas do romance. O presente, a atualidade enquanto
tal, o “eu próprio”, os “meus contemporâneos” e o “meu tempo” foram
originariamente o objeto de um riso ambivalente, objetos simultâneos de
30
alegria e de destruição. E é aqui precisamente que se forma uma nova atitude
radical em relação à língua e à palavra. Ao lado da representação direta – da
ridicularização da atualidade vivente – floresce a parodização e a
travestização de todos os gêneros elevados e das grandes figuras da
mitologia nacional. (BAKHTIN, 1990, p. 412)
Portanto, os gêneros “sério-cômicos” são os predecessores, os que “representam a
primeira etapa, legítima e essencial, para a evolução do romance enquanto gênero em devir.”
(1990, p. 413); a partir do riso, o passado absoluto épico atualiza-se e rebaixa-se nas parodias
e travestimentos, passa a ser representado no nível da atualidade.
Mas, se o romance nasceu a partir de outros gêneros, seu nascimento não significou
uma conformidade a eles, muito pelo contrário, pois ele tem uma natureza diferente daquela
dos outros gêneros e
Com ele e nele, em certa medida, se originou o futuro de toda literatura. Por
isso, uma vez nascido, ele não pode ser simplesmente um gênero ao lado dos
outros gêneros e tampouco pode estabelecer relações mútuas com eles, no
sentido de uma coexistência pacífica e harmoniosa. Diante do romance todos
os gêneros começam a ressoar de maneira diferente. Tem início um longo
conflito pela romancização dos outros gêneros, pelo engajamento deles na
zona de contato com a atualidade inacabada. (BAKHTIN, 1990, p. 427).
Portanto, contemporaneamente, o termo possui uma conotação positiva, sendo reflexo
do gosto pós-moderno, pela diversidade e pela heterogeneidade, demonstrando-se mais uma
vez que as categorias e as formas clássicas que primavam pela pureza e separação dos gêneros
já perderam seu espaço, dando lugar a uma nova estética em que a mescla de estilos e gêneros
diferentes enriquecem o texto e ampliam as possibilidades de leitura. Coser afirma que, na era
pós-moderna, a interculturalidade e multipolaridade apresentam desafios e, portanto, há
necessidade de se repensar as definições de comunidade e nação. Desta forma, o conceito de
híbrido e os processos de hibridização ou hibridismo passaram a ser valorizados,
principalmente dentre os novos conceitos e abordagens difundidos nos países de língua
inglesa, para depois difundirem-se para o resto do mundo.
Como afirmamos anteriormente, este gosto pela variedade e pela mescla de gêneros se
acentua principalmente no período identificado por Hutcheon como pós-modernidade;
segundo ela, podemos observar que a mídia, nos tempos atuais, influencia a escrita
contemporânea. Não é raro encontrarmos romances que aderem aos elementos midiáticos em
sua própria constituição. Entretanto, isto não é uma novidade, pois desde a década de 1920 já
era possível apontar o florescimento da influência dos meios de comunicação, em especial o
31
cinema e o jornalismo, nas obras dos escritores vanguardistas que caminhavam rumo à nova
estética.
Desta forma, ao apresentar uma estrutura em que pelo menos três vertentes genéricas
se mesclam na constituição da narrativa, O doente Molière dá continuidade a esta relativa
nova tradição de romances que buscam atingir um maior número de leitores por causa de suas
variadas possibilidades de leituras. Cada leitor irá destacar um ponto que mais lhe chamou a
atenção, ou seja, para uns, o romance pode parecer uma narrativa histórica, para outros, a
ligação com o gênero policial será mais visível, outros ainda buscarão na leitura elos com as
leituras que fez ao longo da vida, e assim por diante. Mas o que é importante salientar é que
nenhuma dessas perspectivas de leitura exclui a outra. Quando pensamos em um romance
pós-moderno devemos partir do principio de que todas as possibilidades somam-se para gerar
uma obra inesgotável.
1.5. Rubem Fonseca coloca em xeque a historiografia oficial: uma versão fictícia da morte do
dramaturgo francês
No artigo “Narrativas de extração histórica”, Antonio Roberto Esteves e Heloísa Costa
Milton (2007, p.9), chamam a atenção para a proliferação de narrativas que exploram o
elemento histórico:
Nunca se viram tantas biografias, seja de personagens históricos mais
recentes e nacionais, seja de personagens que trazem à tona tempos
longínquos ou lugares distantes e exóticos. Proliferam romances históricos,
que tratam diretamente de certos episódios históricos ou que têm como
protagonistas personagens que ocuparam a linha de frente na história, assim
como histórias romanceadas e obras cuja classificação como história ou
ficção não oferece dúvidas. Há, ainda, crônicas de viagem de épocas
referentes a períodos históricos diversificados, biografias, autobiografias,
livros de memória, reportagens, etc., subgêneros narrativos que, tanto quanto
o romance histórico, são claramente híbridos. (p. 9)
Além das narrativas citadas acima, Esteves e Milton destacam também o surgimento
de um grande número de filmes, novelas ou seriados de televisão, tanto no Brasil como no
exterior, nos quais a ação é concentrada no passado. Entender as causas deste fenômeno é
difícil, mas alguns elementos, que podem ter colaborado para o sucesso da atual recriação do
passado, são apontados pelos estudiosos: a hiperfragmentação cultural causada pela
globalização, que transformou a cultura em objeto de consumo; a rapidez na produção e
divulgação de informação que acaba por produzir indivíduos cada vez mais individualistas e
32
fechados em si mesmos, que, alienados dos meios de produção, perdem seus parâmetros
quanto à produção artística, facilitando ao mercado criar necessidades, ao mesmo tempo que
se incrementa por meio delas; além disso, o desejo de fuga do cotidiano hostil também seria
motivo do sucesso destas narrativas, entre outros citados por Esteves e Milton. (2007, p. 11-
12).
Ainda que a contemporaneidade tenha demonstrado um interesse maior pelas
narrativas de extração histórica, não data daí sua criação. Sabemos que as raízes da narrativa
histórica se misturam com as do próprio gênero romanesco, pois o homem sempre sentiu
necessidade de contar seu passado, suas lendas e as histórias que conhecia. Até mesmo antes
de existir a escrita, esta necessidade já habitava o ser humano.
É por esta razão que a ficção e a história se mesclaram para formar este subgênero e,
embora Aristóteles os tenha separado claramente, destacando como tarefa do historiador tratar
do que realmente aconteceu, enquanto que a do poeta devia ser a de tratar do que poderia ter
acontecido, o que vemos, na prática, é que os dois discursos sempre caminharam lado a lado.
Esteves e Milton citam como exemplo a história dos povos gregos que chegou até nós por
meio da obra do poeta Homero.
Somente a partir do século XIX a história passou a ter um caráter científico e suas
dimensões épica, mítica e dramática foram reduzidas. Apesar de ser muito difícil estabelecer
os limites precisos entre as duas disciplinas, elas se afastaram e assim pôde surgir a narrativa
histórica ficcional. O modelo de romance histórico, tal como conhecemos hoje, surgiu apenas
no século XIX, embora possamos encontrar, segundo afirma George Lukács, até mesmo na
Antigüidade e na Idade Média o que ele chama de “antecedentes do romance histórico” (1965,
p.17). Entretanto, o teórico húngaro defende que essa variante genérica se cristalizou tendo
como ponto de referência os romances de Walter Scott (1771-1832), cujo modelo foi recriado
já a partir do Romantismo; entretanto, duas de suas características foram mantidas, sendo
essenciais para a sua existência enquanto subgênero. Elas são citadas por Esteves e Milton em
outro texto, “O novo Romance Histórico Hispano-americano” (2001, p. 89), os quais afirmam
que a primeira condição é a de que se trate realmente de romance, ou seja, de ficção, de
produto da invenção; e a segunda é que a narrativa se fundamente em fatos históricos reais e
não inventados.
O romance histórico, em suas origens, tinha como principal objetivo o de contribuir
para a construção de uma identidade nacional, pois ele surgiu em uma época em que
começava a nascer o sentimento de nacionalidade, de pátria. A busca de elementos de um
33
passado repleto de glórias ou a idealização e a supervalorização dessas vitórias foram parte de
suas funções nesses projetos nacionalistas. Segundo Vera Follain de Figueiredo (2003, p.
128), trata-se de um momento no qual tanto os defensores da restauração como os que
procuravam manter vivos os ideais da revolução burguesa revelavam uma consciência
histórica crescente e buscavam fazer grandes reinterpretações do passado seja para idealizar a
Idade Média, em contraponto com as contradições e conflitos do período revolucionário, seja
para dar ênfase ao progresso humano, ressaltando como passo decisivo a Revolução Francesa.
Foi, portanto, justamente durante o Romantismo que este subgênero pôde florescer.
Ainda segundo Esteves e Milton, os princípios básicos do romance scottiano são:
a) a ação do romance ocorre num passado anterior ao presente do escritor,
tendo como pano de fundo um ambiente histórico rigorosamente
reconstruído, onde figuras históricas ajudam a fixar a época, agindo
conforme a mentalidade de seu tempo; b) sobre esse pano de fundo histórico
situa-se a trama fictícia, com personagens e fatos criados pelo escritor. Tais
fatos não existiram na realidade, mas poderiam ter existido, já que sua
criação deve obedecer à mais estrita regra de verossimilhança. (ESTEVES e
MILTON, 2001, p.88),
Este modelo criado por Scott foi muito reproduzido e se expandiu por todo o mundo.
Muitos de nossos escritores românticos nele se inspiraram para criar suas obras, como é o
caso, por exemplo, de José de Alencar. Entretanto, para adequar o modelo à realidade local,
algumas mudanças tiveram que ser feitas.
No Brasil, por exemplo, como não há uma longa historiografia, por ser um país
relativamente jovem – quando comparado aos países europeus que têm séculos de história –, a
ação teve que ser deslocada da Idade Média para a época das conquistas, da colonização, e o
grande herói nacional deixou de ser o cavalheiro branco para ser o bom selvagem, natural da
terra.
A partir da segunda metade do século XX, porém, ele teve uma grande revitalização
na América Latina, principalmente nos países hispano-americanos. Surgem romances como
El reino de este mundo (1949) e El arpa y la sombra (1979), de Alejo Carpentier; Yo el
supremo (1974), de Augusto Roa Bastos; Terra nostra (1975), de Carlos Fuentes; Aventuras
de Edmond Ziller en tierras del Nuevo Mundo (1977), de Pedro Orgambide; Damión (1978),
de Abel Posse, entre outros. Esse novo subgênero de romance se expande rapidamente em
todo o continente tendo uma grande e favorável acolhida por parte do público e da crítica.
(2001, p.90)
34
O Brasil, por sua vez, também tem um número representativo de romances que
abordam questões históricas e que, por isso, se inserem nesse novo momento da história do
gênero. Basta para isso assinalar que, a partir da metade da década de 1970 e início da década
de 1980, houve entre nós um aumento significativo na publicação de romances deste
subgênero. É o caso, por exemplo, de romances como Galvez, imperador do Acre (1976),
Mad Maria (1980), O brasileiro voador (1986) e Lealdade (1997) do amazonense Márcio
Souza; Em Liberdade (1981), de Silviano Santiago; Viva o povo brasileiro (1984) e O feitiço
da Ilha do Pavão (1997), de João Ubaldo Ribeiro; Boca do Inferno (1989), O retrato do rei
(1991), A última quimera (1995), de Ana Miranda; todos citados por Esteves (1998) e que,
como ele mesmo destaca, são apenas alguns dos muitos exemplos de romances que poderiam
ser citados para ilustrar a amplitude desta tendência.
O romance histórico do século XX começa a mudar a forma de como se olha para o
passado e, conseqüentemente, de como se escreve sobre o passado, ou seja, o esquema
proposto por Scott, que já havia sido alterado ao longo dos anos, é agora “transgredido”,
“subvertido”. Convenciona-se classificar os romances desta fase como Novos Romances
Históricos ou Romances Históricos Pós-Modernos (há variações conforme o teórico), como
novo subgênero.
A grande maioria dos teóricos concorda com a existência de duas fases principais: a
do romance histórico clássico e a do novo romance histórico, tendo em vista que entre estes
dois grandes marcos há uma variedade considerável de novas formas, mas que não chegam a
romper ou mudar significativamente as características do subgênero. Entretanto, Vera Lúcia
Follain de Figueiredo, em seu texto “Detetives e historiadores” (2003), traça uma nova
tipologia na qual propõe três momentos.
O primeiro é o romance histórico clássico que surge na Europa no século XIX e do
qual Walter Scott é considerado um dos maiores representantes. Neste momento olha-se para
o passado, geralmente a Idade Média, com nostalgia e busca-se nas glórias passadas afirmar o
nacionalismo e projetar esses valores positivos para o futuro.
O segundo momento proposto por Figueiredo é o romance histórico que surge na
América Hispânica no século XX: é o chamado Romance de Resistência, que questiona
ferozmente as verdades históricas. Existe, conforme a estudiosa, uma “proposta de releitura da
história como parte do esforço de descolonização, que se realiza contra toda uma mentalidade
perpetuada pelas elites locais, pelos discursos da história oficial.” (2003, p.130). Esta fase do
romance histórico, como já expusemos anteriormente, teve maior repercussão na América
35
Hispânica. El reino de este mundo (1949), de Alejo Carpentier, é o romance que marca a
transição entre um momento e outro, embora ainda não apresente todas as inovações
constantes nos que o sucederam.
O terceiro momento, finalmente, surge nas últimas décadas do século XX e é o que ela
chama de romance histórico pós-moderno. O que caracteriza este terceiro momento do
subgênero histórico é que não há interesse, por parte dos escritores, em criticar a fundo e
corrosivamente a história oficial: “a versão ficcional pode se constituir pelo viés do humor,
desconstruindo a ‘grandiosidade’ dos gestos consagrados pela história oficial, para oferecer ao
leitor cenas dos bastidores, segredos de alcova, mexericos de antigamente.” (2003, p.132).
Portanto, o romance histórico pós-moderno, segundo Figueiredo, não tem como objetivo
centralizar a tensão existente no romance de resistência; ela está, ao contrário, diluída, já que
o interesse não é o de criticar corrosivamente fatos e personagens históricos e nem de
engrandecê-los.
O principal ponto discutido por este terceiro momento do romance histórico é o da
necessidade de preencher as lacunas deixadas pelos registros oficiais; contudo, isto é feito
sem que haja uma tentativa de apagar tudo o que já foi escrito, mas tentando proporcionar
uma nova maneira de olhar para a história. Este voltar-se para o passado deve ser feito de
forma consciente e reflexiva; por isso também a historiografia deve fazer parte deste jogo
admitindo-se como uma construção, um discurso produzido por pessoas que, mesmo que
tentem desaparecer por trás do texto, são responsáveis pelas escolhas tomadas em sua
realização.
Além disso, uma questão importante tratada pelos romances históricos pós-modernos
é a de que o passado não é repleto apenas de glórias, mas também de muitas outras histórias
que o discurso historiográfico omitiu, seja simplesmente por querer fazê-lo, por descuido ou
por falta de percepção. Portanto, não há uma única versão verdadeira, tudo depende do ponto
de vista pelo qual os fatos da “passeidade”, termo utilizado por Leenhardt e Pesavento (1998),
são interpretados.
Em um primeiro momento, a história foi escrita pelos dominadores; portanto, o
discurso é em princípio suspeito, não podendo ser aceito sem questionamentos. A tarefa do
romancista é, portanto, a de apontar os fatos que a história oficial não mostra e revisá-los. Se,
por um lado, o romance de resistência faz esta revisão a partir da perspectiva engajada política
e socialmente, o pós-moderno, por outro, traz esta preocupação mas coloca a ênfase não só na
36
denúncia das “faltas” que o discurso historiográfico cometeu, mas, principalmente, de forma a
reconstruir a história por outra(s) ótica(s), que pode(m) ser a do humor e da ironia.
O romance histórico pós-moderno toma como princípio o fato de que o discurso da
História tem vazios que devem ser preenchidos, e para esse trabalho o autor conta com total
liberdade, pois já “que tudo são versões, o autor tem toda a liberdade de apresentar a sua
própria versão” (FIGUEIREDO, 2003, p.132), o que pode ser feito com o auxílio da
imaginação e com uma pesquisa detalhada de documentos e fatos de época.
É neste ponto que voltamos nossa atenção para o romance de Rubem Fonseca e
passamos a analisar algumas das principais características do romance histórico pós-moderno
presentes nele. A história central gira em torno das circunstâncias da morte do dramaturgo
Molière, que, segundo os estudos historiográficos, aconteceu logo após a encenação de uma
de suas peças. Rubem Fonseca, servindo-se deste fato, documentado pela história, parte para
um trabalho imaginativo e cria a sua própria versão: “na verdade”, Molière foi envenenado.
O mais interessante e sintomático do esforço criador do autor na releitura da morte do
dramaturgo é a grande pesquisa desenvolvida a respeito da época, das personagens, dos
costumes, de toda a obra de Molière e da repercussão que ela teve. No começo de seis dos
quinze capítulos que compõem o livro, o narrador introduz trechos selecionados das peças de
Molière e tece comentários a propósito da encenação, de como o público reagiu, quem eram
as pessoas que se sentiram agredidas pelas críticas de Molière, entre outras coisas. A partir
desses dados comprováveis historicamente, o autor cria toda uma atmosfera de
verossimilhança para a sua versão dos fatos.
Além de apresentar uma nova versão para os fatos da vida e da morte de Molière – que
no final do romance não chega a desmentir a oficial, mas a explica, conforme veremos mais
tarde –, outra característica bastante marcante do romance histórico pós-moderno, e presente
no romance de Rubem Fonseca, é a maneira como é construída esta nova versão – por meio
de elementos como a paródia e a ironia. Não se trata apenas de uma crítica feroz à sociedade
francesa do século XVII, mas também de uma desconstrução da “grandiosidade” dos fatos
históricos pelo viés do humor. O narrador conta a seus interlocutores as intrigas e manobras
políticas, a hipocrisia de uma sociedade que gira em torno das aparências e os costumes fáceis
das cortesãs: tudo isso vem à tona por meio dos comentários e “fofocas” que o narrador faz.
Um exemplo disso é quando fala dos estranhos hábitos do irmão do rei, Monsieur, contados a
ele, pela própria esposa:
37
Recordei as anedotas interessantes sobre Monsieur, uma delas contada pela
própria Liselotte. Certo dia, numa festa, a Princesa Palatina me disse,
observando o marido dançar: Monsieur dança bem, mas parece uma mulher
dançando. Depois Liselotte segredou-me ao ouvido uma confidência:
Monsieur é muito supersticioso, você sabe disso, mas descobri nele uma
crendice singular. Ele carrega um rosário e outras relíquias, mesmo quando
vai para cama. Uma noite dessas, quando Monsieur já dormia, eu, já tendo
uma idéia do que ia descobrir, levantei as cobertas e verifiquei que aquela
parte do corpo que só os homens possuem estava envolvida por cordões com
pequenas imagens religiosas da Virgem. (FONSECA, 2000, p.50)
E segue a explicação que Monsieur deu a Liselotte de que é uma proteção e que ela
não entende dessas coisas por ter sido protestante. Os dois riem e ela pede ao Marquês que
não comente com ninguém. Como podemos ver, o próprio narrador utiliza a palavra
“anedota”; portanto, o que vem em seguida não tem valor de documento histórico e nem é
isso o que quer o Marquês, ele apenas se diverte e diverte seu possível leitor. Trata-se, pois,
de uma paródia do próprio gênero, do romance histórico tradicional.
Ainda podemos pensar na forma como as personagens históricas são desconstruídas:
“dessacralizadas”, elas aparecem no romance com todos os seus defeitos, tanto físicos quanto
psicológicos, sendo que o narrador não poupa nem mesmo a si próprio, fazendo questão de
revelar a mesquinhez de seus atos. Ele parece não se preocupar com o julgamento que o leitor
possa fazer e confessa que, quando Molière morreu, ele acabou se calando quanto à suspeita
de envenenamento, pois corria o risco de ser acusado, já que era amante da mulher do
dramaturgo. Em seguida, pode se ler o trecho em que o marquês faz sua “confissão”:
Por que guardei em segredo a revelação que Molière me fizera? Por que, em
vez de procurar um padre, não fui em busca do dr. Mauvillain, médico do
comediante, ou outro qualquer, para tentar salvá-lo? A resposta é uma só:
para me proteger. Eu era amante de Armande. Se descobrissem que Molière
fora envenenado eu acabaria sendo considerado o principal, senão o único
suspeito da morte dele [...]. O veneno apontaria para mim. Por isso calei-me.
Não ter sido feita a autópsia deixava-me numa situação confortável, como
também ao verdadeiro assassino – pois, em princípio, não houvera
assassinato. (FONSECA, 2000, p.31).
Ao falar da figura do Rei Luís XIV, assim como fez com seu irmão, Monsieur , o
narrador também não procura engrandecê-lo; ao contrário, ele “eclipsa” o Rei Sol.
Primeiramente falando de seu aspecto libertino, comparando-o com as outras pessoas que
cometiam adultério: “Além do mais, todo mundo cometia adultério, começando pelo nosso
bem-amado rei, que levava as amantes para residir no palácio e não podia ver mulher bonita
38
sem cortejá-la.” (FONSECA, 2000, p.35). Ao colocar o rei no mesmo nível das outras pessoas
que, por serem comuns e humanas, possuem fraqueza e cometem crimes e pecados, o narrador
dá início a um processo de desconstrução desta figura tão forte que é um rei em pleno século
XVII, ainda mais quando este rei é aquele que se vê acima de tudo e todos – L’état c’est moi!
4
Para explicitar ainda mais essa “dessacralização”, é interessante fazer um contraponto
com o livro A fabricação do rei, de Peter Burke, em que o historiador traça a forma como a
imagem de Luis XIV foi construída ao longo de seu reinado por meio da arte. Na fala do
Marquês há um grande distanciamento irônico que desconstrói o poder de Luís: que era
sempre representado como um grande homem que, aliás, estaria muito próximo dos deuses.
Veja-se o que afirma Burke a este respeito:
Existiu um mito de Luís XIV no sentido de que ele era apresentado como
onisciente [informé de tout], invencível, divino e assim por diante. Era o
príncipe perfeito, associado ao retorno da idade de ouro. Poetas e
historiadores qualificavam o rei como “herói” e seu reinado como “uma série
ininterrupta de maravilhas”, para usar as palavras de Racine. Sua imagem
pública não era simplesmente favorável: tinha uma qualidade sagrada. (p.18)
Portanto, reiteramos que, quando compara o rei aos outros que também cometiam
adultério e os iguala, o Marquês Anônimo está desconstruindo essa figura tão nobre e
“sagrada”. Sem falar no fato de que o rei, como um grande mecenas, patrocinava poetas,
dramaturgos e pintores, e gostava de ser comparado a Luís IX (o São Luís) e a Cristo, na
figura do bom pastor (quadro provavelmente pintado por Pierre Paul Sevin). Por isso, ao
expor um pecado que fere os mandamentos de Deus e da Igreja Católica enquanto instituição,
de forma tão aberta e natural, o narrador está pondo em prática seu projeto de descontrução da
figura do rei.
Fisicamente, o narrador ironiza em diversas passagens o fato de o rei não ser tão alto
quanto gostaria, e diz ser este um dos motivos de sua antipatia por ele, Marquês, que o havia
representado tão bravamente em batalhas.
A fim de realizar seu projeto de desconstrução de Luís XIV, o Marquês utiliza
principalmente duas estratégias: elogia somente as qualidades do rei que também possui,
como, por exemplo, o amor ao teatro e às mulheres, para desta forma se enaltecer pela
comparação; e quando fala dos defeitos, como a altura, por exemplo, sempre se mostra
superior. Vejamos o trecho abaixo:
4
Como se sabe, trata-se da famosa frase atribuída a Luís XIV.
39
O rei era um homem elegante, mas creio que gostaria de ser da minha altura,
o que não conseguia nem mesmo usando seus sapatos de salto muito alto;
diziam que tínhamos o nariz parecido, mas em sendo verdade, isso não me
deixava feliz, pois o nariz do rei era o único traço feio em seu rosto. Eu era
dezesseis anos mais velho do que ele, mas parecíamos da mesma idade. Aos
cinqüenta anos, idade em que os homens já estão caquéticos, eu parecia ter
trinta. (FONSECA, 2000, p.26)
É interessante observar, neste trecho, a perspectiva que o Marquês adota ao olhar para
o rei, pois todos os períodos em que se refere a ele são acompanhados de uma imagem
negativa, quando não de uma negação: “o rei é elegante, mas gostaria”; “não conseguia”;
“tínhamos o nariz parecido, isso não me agradava”. A competição entre os dois também
acontecia no campo amoroso, a tal ponto que o Marquês confessa ter dividido com o rei uma
de suas amantes, fato este que teria desagradado muito à majestade.
Além de tudo, ele termina por “desconstruir” moralmente a figura do rei em sua
característica fundamental: a justiça, já que ele era considerado o representante de Deus na
Terra. O narrador faz isso ao contar que o rei decide encerrar as investigações sobre os crimes
de envenenamento que aconteceram na corte quando percebe que o nome da Madame de
Montespan, uma de suas preferidas, está “perigosamente” envolvido.
Esta imagem do rei é exatamente o contrário da que foi construída por Molière em O
doente imaginário, já que na peça ele é engrandecido e exaltado. No prólogo que antecede a
peça, há um diálogo entre os deuses, as ninfas e os pastores no qual eles disputam quem faz a
mais bela poesia que retrate a grandeza, a força e a coragem de Luís XIV e chegam até
mesmo a colocá-lo acima dos semideuses.
Como Molière havia conseguido o apoio do rei e sua companhia carregava o nome de
“Troupe du roi”, este prólogo se torna muito importante para evidenciar a relação entre Luís e
os artistas em sua corte. Era necessário engrandecer cada vez mais o monarca e colaborar com
o seu projeto pessoal de construção ou, para utilizar o termo de Burke, de fabricação de sua
imagem. Projeto contra o qual o personagem-narrador Marquês trabalha, já que não precisava
se submeter, pois não tinha conseguido se tornar um grande escritor de tragédias, como
quisera. A respeito disso, há uma passagem em que o Marquês diz:
Se havia uma coisa que me consolava por eu não ter me tornado um autor de
tragédias era essa subordinação absoluta à vontade do rei, que, usando o seu
direito divino sobre todas as coisas, decidia, em última instância, o que podia
ou não ser representado, ou também o que podia ser escrito e publicado.
Dobrar os joelhos apenas fazendo mesuras nas festas era menos doloroso.
(FONSECA, 2000, p.73)
40
No entanto, esta afirmação é irônica e levanta uma inegável suspeição sobre as “boas
intenções” deste narrador: se ele, Marquês, tivesse o talento necessário para ser um grande
dramaturgo, não chegaria mesmo a elogiar o rei, para, desta forma, realizar seu sonho? Isto
não se pode saber ao certo e também não é o foco de nosso estudo; contudo, vale ressaltar que
a ironia contida no discurso do Marquês ao satirizar o rei e o modo como mostra seu orgulho
ferido por não ser escritor de teatro, são recursos explorados por Fonseca que dão ao
personagem uma força e uma vivacidade que o colocam ao lado de seus outros grandes
narradores, também muito narcisistas e radicais em sua maneira de viver e se expressar. Além
disso, o personagem-narrador ao explorar um novo gênero se propõe a realizar seu próprio
projeto que é o de mostrar seu talento como escritor.
Outros setores da sociedade francesa também são extremamente ridicularizados, além
da desmistificação da cidade de Paris. Mesmo sendo um dos centros culturais da Europa, o
que se vê na obra de Rubem Fonseca é a opção por representar a realidade do século XVII tal
como ela era, e não uma cidade idealizada. O Marquês descreve, portanto, uma Paris
enlameada e suja:
Eu, na carruagem, entrei na rua Fromanteau e fui até a igreja St. Nicholas du
Louvre, mas o padre se recusou a acompanhar-me quando eu disse do que se
tratava. A essa decepção acrescentei o dissabor de ter minha carruagem
atolada na Fromanteau, e como não havia ninguém perto para nos socorrer,
tive de saltar e sujar meus sapatos, minhas meias, até mesmo a minha
culotte, para ajudar a livrar as rodas da lama e do lixo que as prendiam.
(FONSECA, 2000, p.23).
Finalmente, como última observação, ressaltamos a intensa presença da metaficção, ou
seja, a inserção de um narrador que tece, ao longo da narrativa, vários comentários sobre
como se dá o processo de produção da obra:
Selecionei alguns trechos das minhas anotações para serem publicados
anonimamente, como parte das minhas memórias. As descrições que faço
das intrigas e escândalos da corte, da efervescência dos salões, da influência
perniciosa do clero e de outras corporações, da rivalidade entre artistas,
nobres e áulicos, podem não parecer, mas estão ligadas ao tema principal
desta seleção: o mistério da morte de Molière, vítima de tantas aleivosias,
incompreensões, injustiças e violências em razão das peças que escreveu.
(FONSECA, 2000, p.16).
41
O que se pode concluir disso é que Rubem Fonseca utilizou de forma harmoniosa
vários elementos da nova narrativa histórica pós-moderna, na construção de um romance que,
ao mesmo tempo em que é um “passeio” pela França do século XVII, instiga o leitor,
“fisgando-o” pela curiosidade e sugerindo-lhe uma parceria no desvendamento do mistério
que criou sobre a morte de Molière. Além disso, ele dissemina em seu texto questionamentos
sobre a tradição, o cânone literário e também sobre o florescimento do romance como um
gênero do “novo mundo”, coerente com as novas maneiras de pensar e enxergar este mundo.
1.6. Um detetive indiscreto: o Marquês Anônimo e a tradição do gênero policial
O romance policial, que atualmente é um dos gêneros literários mais vendidos em todo
o mundo e que faz sucesso entre praticamente todas as faixas etárias, surgiu em meados do
século XIX, a partir do modelo criador por Edgar Allan Poe; contudo, segundo Clélia Simeão
Pires, em seu artigo intitulado “A tipologia do romance policial” (2005), é possível encontrar
os antecedentes desse subgênero narrativo já muito antes. Pires afirma que a figura do detetive
na narrativa policial deu-se por acaso, numa narrativa que não tinha esse cunho. Trata-se de
Zadig ou o destino (1748), de Voltaire, em que o protagonista que dá título à história possui
um alto poder de dedução e de percepção. Estas qualidades aparecem principalmente em um
episódio em que Zadig, tendo encontrado na estrada alguns dos melhores caçadores do reino,
é questionado sobre o desaparecimento da cadela da rainha e do cavalo do rei, pois nenhum
deles conseguira obter pistas de qual teria sido o destino deles. Mesmo sem nunca ter visto os
tais animais, Zadig os descreve com minúcia de detalhes, mas afirma não saber onde eles
estão; desta forma, ele é acusado de ter roubado os animais reais. Zadig somente consegue
escapar do exílio na Sibéria ao apresentar argumentos dotados de raciocínio lógico bastante
convincente para provar ao júri que realmente não os vira, mas, apenas seus rastros deixados
pela estrada.
Assim, a lógica perfeita de Zadig foi apontada pelos historiadores do gênero
policial, como a avant-première do espírito de deteção [sic], transformando
o personagem, no antecessor de uma galeria de detetives de ficção que viria
mais tarde resultar na narrativa policial. (PIRES, 2005).
Além da história de Voltaire, podemos apontar como um outro antecessor do romance
policial de enigma a narrativa gótica. Esta, segundo Sandra Guardini Vasconcelos (2002), é
42
uma modalidade literária das mais antigas e de longa tradição, em que a fantasia, que sempre
esteve presente nos mitos, lendas e no folclore, lança suas raízes também na literatura da
desrazão e de terror que se convencionou chamar de “gótica”.
Vasconcelos ressalta que é preciso não se esquecer de que, assim como no século
XVIII, o termo “gótico” ainda é revestido de ambivalência e tensão e, por isto mesmo, é
utilizado em diferentes contextos e de maneiras variadas. Mas, semanticamente, a origem do
termo está ligada aos godos ou às tribos nórdicas européias, e também “a qualquer coisa que
fosse medieval ou até mesmo pós-romana.” (2002, p. 119).
Ela aponta ainda para o fato de que o gótico foi construído como uma categoria
controvertida que remetia às origens do povo inglês e de sua cultura, “que queria distinguir-se
da greco-romana e que, acreditando-se promotora do amor à liberdade e da democracia,
possuía uma história cuja permanência se identificava na arquitetura gótica” (p. 119). No
entanto, apesar desta conotação mais positiva, o termo gótico era empregado para distinguir
tudo que fosse antiquado, feudal e irracional, caótico e não-civilizado, em outras palavras, o
oposto de “clássico”.
A publicação de The Castle of Otranto [O castelo de Otranto], de Horace
Walpole, em 1764, reintroduziu, por assim dizer, no seio dos ideais
neoclássicos de harmonia, decoro e moderação, o horrível, o insano e o
demoníaco, encarando as contradições que marcaram a assim chamada Era
da Razão. Com esse gênero literário, reapareciam em cena os fantasmas e
espectros que, tendo habitado a literatura até o século anterior, o mundo
racional e bem ordenado dos augustanos havia relegar ao esquecimento.
(VASCONCELOS, 2002, p. 119).
Como discurso literário, o efeito "gótico" consiste na criação de uma atmosfera
narrativa, que deve envolver o leitor na história, para em seguida assustá-lo, mas de modo que
lhe provoque prazer. Desta forma, as histórias geralmente se passam na Idade Média que é a
“época das trevas” e do mistério; os cenários são os castelos e abadias habitados por espectros
ou clérigos maléficos
5
; há descrições de ambientes estranhos, oníricos e fabulosos; é intensa a
presença do locus horrendus (as florestas sombrias, as grandes altitudes, os lugares muito
frios, os desertos e os abismos); a obsessão pelo passado também aparece como um elemento
da narrativa gótica. Além disso, a ameaça quase sempre era manifesta em países (ou por
personagens provenientes de países) católicos em que as monarquias absolutistas e a
Inquisição não respeitavam os direitos dos cidadãos. Portanto, entendida como efeito
5
Estes personagens são emblemáticos no sentido de representarem a decadência moral e física. Em muitos casos
eles trazem no próprio corpo estes estigmas. O corcunda, personagem de Notre-Dame de Paris (1831), de Victor
Hugo, é um exemplo disso.
43
narrativo, a literatura gótica é um dos mais influentes modelos narrativos para as histórias de
romance policial, por criar a atmosfera de suspense e medo.
Mas, conforme assinala Sandra Lúcia Reimão (1983), foi somente no século XIX que
vários acontecimentos e transformações propiciaram o florescimento do gênero policial. Ela
aponta várias circunstâncias fundamentais para que, por volta de 1840, época em que Poe
publicou as narrativas que fundaram o gênero, este se estabelecesse com sucesso. O primeiro
deles é o surgimento dos jornais populares de grande tiragem, pois antes disso, embora a
imprensa já existisse desde o século XIII, não se cultivava o hábito da leitura cotidiana de
jornais. Portanto, quando alguns periódicos começaram a publicar seções em que se criam e
valorizam os chamados “fatos diversos” – “dramas individuais, via de regra banais, ou crimes
raros aparentemente inexplicáveis” (p. 12) – o público leitor se sentiu atraído e passou a
consumir este tipo de leitura. Reimão afirma que “o desafio do mistério aliado a um certo
prazer mórbido na desgraça alheia e ao sentimento de justiça violada que requer então
reparos, são basicamente os elementos geradores da atração e do prazer na leitura deste tipo
de narrativa.” (p. 12-13).
Desta forma, verifica-se que ao satisfazer estes prazeres, ao mesmo tempo em que
habitua o público leitor a esse tipo de narrativa, os jornais criam condições favoráveis para o
surgimento de um novo gênero que irá reaproveitar os mesmos elementos deste tipo de
narrativa.
Outro fator apontado por Reimão é o de o novo público, criado pelos jornais de grande
tiragem, habitar um novo espaço – as cidades industriais. No pós Revolução Industrial, estas
cidades abarrotadas de pessoas, cheias de ruas e becos, serão o cenário ideal dos romances
policiais. Os castelos e mosteiros isolados que apareciam constantemente nas narrativas
góticas deixam de ser o ambiente favorito dos escritores do novo gênero. Assim, “as fachadas,
as multidões humanas, os labirintos de ruas serão, quase sempre, personagens mudos
constantes nas narrativas policiais”. (p. 13).
O fato de a polícia, neste momento, ser composta por ex-condenados é outro elemento
que favorece a criação do romance de enigma. A polícia, como instituição, começou a ser
organizada no início do século XIX, sendo que seus membros eram recrutados dentre os ex-
condenados. Em um primeiro momento isso foi bem aceito pela sociedade, pois como este
tipo de policial possuia um conhecimento empírico do mundo marginal, saberia como agir e
como desvendar mais facilmente os crimes. No entanto, dentro de pouco tempo, a população
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se mostrou desconfiada e insatisfeita com a polícia, pois o limite entre um contraventor e um
ex-contraventor é muito tênue.
O ex-condenado mais famoso de todos, segundo Reimão, é Vidocq (1775-1857) que
publicou em 1828 suas memórias. Nelas ele narrou como fazia para desvendar os crimes que
lhe eram apresentados, com base em seus conhecimentos empíricos. É em oposição a este tipo
de investigador que são criados personagens como o detetive Dupin, que não fazem parte da
polícia enquanto instituição e, que, normalmente desprezam seus métodos.
O Positivismo, um dos últimos movimentos filosóficos a obter grande divulgação e
aceitação fora do grupo dos especialistas, foi outro fator que exerceu um papel decisivo na
proposta literária de Poe e na criação de seu personagem Dupin. O pressuposto fundamental é
a crença de que os fenômenos são regidos por leis que “existiriam tanto no nível do mundo
natural quanto do orgânico e do universo humano” (REIMÃO, 1983, p.15), portanto o espírito
humano estaria submetido a leis como qualquer outro fenômeno. Além disso, a teoria da
associação de idéias – amplamente desenvolvida nas narrativas policiais – teve seu maior
desenvolvimento por John Stuart Mill e estava muito em voga.
Ainda no mundo das idéias, encontramos o último dos fatores que, segundo Reimão,
favoreceram o sucesso da narrativa policial: o criminoso passa a ser visto como um inimigo
social. Após o surgimento do Poder Judiciário, a noção de crime e de criminoso foi se
modificando aos poucos; se antes o crime era cometido contra indivíduos, no entanto, após a
solidificação dos novos conceitos, passa-se a ter noção de que a infração às leis do Estado
prejudica não mais somente uma pessoa, mas toda a sociedade. Além disso, a figura do
criminoso é patologizada, ele é um doente mental que se encontra com os sentimentos éticos e
morais deteriorados.
A primeira narrativa policial, considerada pelos estudiosos como a fundadora do
subgênero, é Assassinatos na Rua Morgue, de Edgar Allan Poe, publicada em 1841, em que,
pela primeira vez, aparece o famoso detetive Auguste Dupin. Com esta narrativa, Poe
estabeleceu um modelo cujas regras foram seguidas por vários escritores, com poucas
alterações.
No romance policial clássico, segundo Tzvetan Todorov (2006), em seu artigo
“Tipologia do Romance Policial”, a narrativa de enigma apresenta duas histórias diferentes. A
primeira é a história do crime e a segunda é a história do inquérito, obedecendo esta ordem
cronológica. A história do inquérito não apresenta muita ação, sendo que se trata da
observação, por parte dos personagens que irão desvendar o crime, dos indícios deixados pelo
45
criminoso e a racionalização lógica dos fatos. Assim, a regra do romance policial clássico é a
de que a narrativa seja feita em retrospectiva e nunca pelo próprio detetive, mas por seu
assistente.
Para o detetive do romance policial clássico, investigar é um hobby e sua proposta é a
de ocupar o ócio, já que ele não encara isso como um trabalho. A narrativa é construída por
uma combinação de ficção com raciocínio e influências lógicas: é por meio de inferências
exatas e da leitura via intelecto dos índices deixados pelo assassino que o detetive desvenda os
enigmas. O detetive clássico é imune, infalível, e nenhum acontecimento pode feri-lo ou
desviá-lo de seu objetivo, enquanto o narrador não é assim: ele erra várias vezes e não
consegue ter o mesmo grau de racionalidade que o detetive tem, o que o identifica com o
leitor.
Além disso, como aponta Pires (2005), o escritor deve pensar no desfecho de cada
história a priori, para que a lógica seja perfeita e cada incidente caminhe em direção ao final
previsto. Além disso, o medo é o propósito primeiro do romance policial; por isso, por meio
da linguagem e da palavra, o medo se torna uma tortura da imaginação e é estabelecida uma
relação poética entre leitor e narrador. Como a linguagem é importante para que o escritor
alcance o efeito desejado, o abuso de superlativos e de hipérboles é recorrente. Finalmente, os
jogos intertextuais em que o narrador critica, elogia ou recontextualiza outra narrativa também
estão presentes neste subgênero, seja por meio da ligação entre as aventuras passadas pelo
mesmo detetive ou por meio de ligações entre a tradição da narrativa de enigma.
Depois do sucesso dos detetives de Poe e de estabelecido o paradigma da narrativa
policial, surge um dos detetives de maior sucesso em todo o mundo, Sherlock Holmes, criado
por Conan Doyle (1859-1930). Nos romances de Doyle observam-se algumas alterações em
relação ao modelo de Poe, como por exemplo, a importância central que o narrador ganha. O
Dr. Watson é um narrador fixo que aparece em vários romances, é um memorialista que narra
as aventuras de seu grande companheiro, o detetive Holmes.
Como o detetive é uma “mente dedutiva” que, através de pistas, vestígios e indícios,
reconstrói a história do crime e encontra o culpado, é necessário que exista alguém que
reconstrua os passos que ele deu para chegar até o culpado, evidenciando sua genialidade em
desvendar o crime, daí a importância dos personagens-narradores.
Nos romances de Doyle, o narrador onisciente é descartado, dado que ele vai ter tantas
dúvidas quanto o leitor, pois possui uma visão parcial dos fatos e pode até se deixar enganar
pelo detetive, deixar que evidências passem despercebidas, o que o humaniza. O detetive, por
46
sua vez, por apresentar um comportamento e um raciocínio tão exatos, assemelha-se a uma
máquina de pensar.
Seguindo a tendência dos romances de Doyle, vemos que surgem várias outras
possibilidades de tipos de narrador para o romance de enigma, como o narrador impessoal, a
presença de vários narradores, ou de personagens-narradores que podem ser fixos,
memorialistas ou historiógrafos dos detetives. Watson, por exemplo, é uma espécie de
detetive do detetive, pois ele seleciona as aventuras a serem narradas e opta pela forma de
narrar. Outra mudança marcante que acontece com o desenvolvimento do gênero é que o
detetive também é humanizado, já que ele já não tem mais tantas certezas e começam a
aparecer seus “defeitos”: ele deixa de ser uma máquina dedutiva perfeita para se transformar
em um homem que também pode cometer erros.
Em 1928, Van Dine publicou, no The American Magazine, “As vinte regras do
Romance Policial”, as quais deveriam nortear a produção dos romances de enigma. Estas
regras foram reduzidas a oito por Todorov em seu já citado ensaio:
1. O romance deve ter no máximo um detetive e um culpado, e no mínimo
uma vítima (um cadáver).
2. O culpado não deve ser um criminoso profissional; não deve ser o
detetive; deve matar por razões pessoais.
3. O amor não tem lugar no romance policial.
4. O culpado deve gozar de certa importância:
a) na vida: não ser um empregado ou uma camareira;
b) no livro: ser uma das personagens principais.
5. Tudo deve explicar-se de modo racional; o fantástico não é admitido.
6. Não há lugar para descrições nem para análises psicológicas.
7. É preciso conformar-se à seguinte homologia, quanto às informações
sobre a história: “autor: leitor = culpado: detetive”.
8. É preciso evitar as situações e as soluções banais (Van Dine enumera dez
delas). (TODOROV, 2006, p.100-101)
Jorge Lima (2003), por sua vez, enumera quais seriam essas soluções banais a que
Van Dine se referia, são elas: a descoberta da identidade do culpado ao comparar uma ponta
de cigarro encontrada no local do crime com o tipo de cigarro que fuma um suspeito; algum
truque em uma sessão espírita que faça com que o criminoso, tomado de terror, se denuncie;
presença de falsas impressões digitais; o álibi ser construído por meio de um manequim;
haver um cão que não late, revelando assim que o intruso é um familiar do local; o culpado
ser irmão gêmeo do suspeito ou um parente que se parece com ele a ponto de levar ao engano;
a seringa hipodérmica e o soro da verdade; o assassinato ser cometido numa peça fechada, na
47
presença dos representantes da polícia; o emprego das associações de palavras para descobrir
o culpado; a decifração de um criptograma pelo detetive ou a descoberta de um código
cifrado.
Entretanto, vale ressaltar que o próprio Van Dine nem sempre seguia as regras que ele
próprio estabeleceu e, ao longo do tempo, elas foram sendo “subvertidas”. Algumas das obras
de Agatha Christie, que têm como personagem Hercule Poirot, por exemplo, o detetive mais
conhecido depois de Holmes, rompem com a estrutura clássica do romance policial em
questões essenciais como a possibilidade de o ajudante do detetive ser o assassino, e de todos
os personagens principais poderem morrer.
Com base no modelo clássico de romance de enigma criado por Poe, surgiram (e ainda
surgem) muitas vertentes de narrativas policiais. Outro tipo bastante divulgado é a série noir
ou romance negro, cujo criador foi Dashiell Hammett. Mas um dos seguidores mais
expressivos do “romance negro” e que o tornou mais conhecido foi Raymond Chandler.
A partir de 1945 começou a ser publicada na França a coleção Série Noire, que fez
com que o “romance negro” atingisse seu ápice de reconhecimento de público. No entanto,
sua plataforma de lançamento foi a revista Black Mask, uma revista barata, de baixa qualidade
e de gosto duvidoso, mas onde em 1925, Hammett começou a publicar seus contos
6
. Seu
detetive, Sam Spade, é uma figura antológica do romance policial. (REIMÃO, 1983, p.51).
Vários fatores históricos influenciaram o surgimento deste tipo de romance, tais como
a expectativa gerada pela percepção de que o mundo estava às vésperas da Segunda Guerra
Mundial. Além disso, uma crise assolava o mundo todo, pois havia acontecido o “Crack” da
Bolsa de Nova Iorque. Também nesta época novas idéias surgem com a filosofia de
Nietzsche, com o vitalismo de Bergson e com a psicanálise de Freud, além da oposição entre
Existencialismo e Positivismo.
Por causa dos fatores apontados acima e que refletiram no modo de o ser humano
pensar a vida e, conseqüentemente, no modo de pensar a arte, o romance negro abandonou
várias das características clássicas, como o otimismo, a moralidade convencional, o espírito
conformista e a presença de um mistério, acrescentando uma série de inovações ao romance
de gênero policial, tais como o fato de a ênfase recair na ação e não mais na dedução do
detetive; de situações angustiantes e violentas tornarem-se temas destes romances; de o
emprego da linguagem coloquial ser utilizada de forma consciente pelo escritor; de ocorrer
uma síntese entre o protagonista e o narrador em um único personagem; de deixar de existir
6
Chandler, dez anos mais tarde, também iniciria sua carreira nesta revista, embora esta já estivesse em uma fase
melhor.
48
garantia da imunidade física do detetive, portanto, ele deixa definitivamente de ser uma
máquina e é humanizado; de não haver mais verdade indiscutível, e tudo passar a ser
relativizado; e, finalmente, o fato de haver a presença de uma crítica ético-social-política que
passa a fazer parte das narrativas. Além de todas estas inovações, a intertextualidade e a
paródia tornam-se elementos constitutivos da narrativa, pois o detetive deste tipo de romance
satiriza o detetive infalível dos romances clássicos, e o leitor ganha um papel importante
diante do texto – ele precisa complementá-lo.
Segundo Reimão (1983), a partir de uma rápida análise dos romances policiais
contemporâneos, podemos chegar à conclusão de que o gênero, atualmente, tem como base as
seguintes características: a evolução do detetive que deixa de ser uma máquina de raciocínio
para ser humanizado: podendo cometer erros, estar submetido ao acaso e possuir desvios de
caráter; a deteriorização do romance policial tendo em vista o modelo criado por Poe; a não
alteração da estrutura básica do romance de enigma, que é o jogo; a ausência de
verossimilhança nos crimes e de plausibilidade do detetive; o detetive da “série noire” é rude,
vulgar e deselegante, além de ser detetive por profissão, diferentemente do detetive de Poe,
que era um homem culto e polido e desvendava os crimes por prazer. Por tudo isso, o
romance da “série noire” configura-se como uma inversão paródica do romance de enigma,
pois “subverte” o próprio gênero com a presença do humor.
Por se tratar de um tipo de narrativa que caiu rapidamente no gosto popular, e como
teve seu modelo estrutural amplamente explorado, gerando uma produção em série de fácil
distribuição, consumo e assimilação, a que veio se somar o fato de ter sido um dos gêneros
narrativos mais aproveitados pelo cinema, o romance policial sempre pertenceu ao rol das
literaturas de massa, o que sugere que não há uma preocupação com a qualidade estética e
com as questões literárias discutidas nos gêneros “altos”.
Contudo, os autores da contemporaneidade têm resgatado o romance e o conto policial
a fim de usá-lo como artifício para incluir nele a “alta literatura”. Desta forma, o gênero que
atrai por trazer histórias misteriosas e intrigantes num primeiro plano, que funciona como uma
“pílula dourada”, e em um segundo plano traz reflexões filosóficas, questionamentos sobre a
literatura e sobre o mundo, entre outras questões. Portanto, esta retomada do modelo de
narrativa policial não se dá de modo ingênuo, ela utiliza a forma, a própria estrutura do
gênero, para implodi-lo por dentro, subvertendo-o.
49
Um dos nomes mais importantes desta nova fase da narrativa policial é o escritor
argentino Jorge Luís Borges que, sem dúvida, modificou tudo o que foi escrito depois e até
mesmo o modo como a literatura policial que foi escrita antes de sua obra é lida hoje.
Como aponta Ricardo Piglia, em O laboratório do escritor, Borges difundiu
amplamente o romance policial inglês, já que este fazia parte de sua formação como leitor,
mas não só por isso; também e, talvez principalmente, com outros interesses: como forma de
se favorecer, preparando os leitores das suas próprias narrativas policiais:
O romance policial inglês fora difundido com grande eficácia por Borges,
que, por um lado, procurava criar uma recepção adequada para seus próprios
textos e tentava tornar conhecido um tipo de narrativa e de manejo da intriga
que estava no centro de sua própria poética, e, por outro, fez um uso
excelente do gênero: “La muerte y la brújula” é o Ulisses do conto policial.
A forma chega ao seu auge e se desintegra. (PIGLIA, 1994, p. 78)
O próprio Borges afirma isso, ainda que indiretamente, em um de seus ensaios,
intitulado “O conto policial”. Ele afirma que “falar do conto policial é falar de Edgar Allan
Poe, criador do gênero.” (1987, p. 31). Não pela importância em si de cada página que Poe
nos deixou, mas pela memória de sua obra, como um todo e, principalmente, por ele ter criado
o tipo de leitor de ficção policial: “Nós, ao lermos uma novela policial, somos uma invenção
de Edgar Allan Poe” (p.37). E a existência desta invenção – o leitor de narrativas policiais – é
essencial para a que a leitura da obra de Borges alcance o efeito esperado.
Há um tipo de leitor atual, o leitor de ficção policial. Esse leitor, que se
encontra em todos os países do mundo e que se conta aos milhões, foi criado
por Edgar Allan Poe. Suponhamos que não exista esse leitor, ou – algo
talvez mais interessante – que se trate de uma pessoa distante de nós. Pode
ser um persa, um malaio, um camponês, uma criança, uma pessoa a quem
dizem, por exemplo, que Dom Quixote é um conto policial. Imaginemos que
esse hipotético personagem tenha lido novelas policiais e comece a ler Dom
Quixote. Quê lê, então? (BORGES, 1987, p. 32).
A questão proposta por Borges neste texto é a que vai, segundo Piglia, permear toda
sua obra, pois se o modelo estrutural da narrativa policial clássica supõe sempre duas histórias
– uma visível, que é construída em primeiro plano e outra secreta – que se cruzam. “Para
Borges a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a
monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os
gêneros lhe oferecem.” (p.40). Todos os seus contos são construídos com base nesse
procedimento. A história visível seria contada segundo os estereótipos (levemente parodiados)
50
de uma tradição ou gênero, enquanto a história secreta – que é o tema central – seria uma
história construída com duplicidade, pois ela narra, por exemplo, a história de alguém que
constrói perversamente uma trama secreta com os materiais da história visível.
É desta maneira que é construído o conto “La muerte y La brújula”, de Ficciones
(2005), e é também desta forma que Luís Fernando Veríssimo, discípulo do escritor argentino,
construiu Borges e os orangotangos eternos (2000), em que a história secreta é a obra do
mestre.
Na contemporaneidade, portanto, o modelo policial clássico, funciona como um
exemplo vivo na memória coletiva e que servirá de base para paródias e desconstruções. Em
entrevista ao jornalista Ubiratan Brasil (2007) sobre um debate que iria acontecer no Instituto
Cervantes, o escritor argentino Pablo de Santis, destaca que a figura do detetive clássico,
solitário, foi substituída por equipes de especialistas, portanto o detetive como herói (como
Dupin, por exemplo) não existe mais.
Ele ainda afirma que o gênero, com as mudanças sofridas, ganhou em realismo, mas
perdeu seu destino. Porque, para ele, o gênero nunca foi uma representação dos métodos
policiais, mas sim a revelação de como a história verdadeira está escondida, de como o
passado cai com todo seu peso sobre o presente. O detetive é, portanto, uma figura com um
grande peso metafórico, é a representação do homem que busca a verdade em um mundo de
aparências enganosas.
Por esta razão a pós-modernidade retoma, de forma consciente e deliberada, o gênero
policial, pois os escritores/críticos se identificam com a figura do detetive. O escritor Flávio
Carneiro, em uma resenha sobre Borges e os orangotangos eternos, de Luís Fernando
Veríssimo, em que dialoga com o texto “A leitura de ficção”, de Ricardo Piglia, sintetiza esta
identificação:
O crítico é como um detetive que tenta decifrar um enigma, ainda que não
haja enigma. É um aventureiro que se move entre os textos perseguindo um
segredo que, às vezes, não existe. Nesse sentido, o prazer da crítica – ou, de
um modo geral, da leitura – estaria não num objetivo final, o de desvendar o
mistério, mas nas próprias conjecturas, nas formulações possíveis. (2005,
p.37)
Portanto, na pós-modernidade mais que se preocupar com os resultados das
“investigações” o leitor/crítico valoriza a busca, o processo de leitura que constrói e
desconstrói os sentidos do texto.
51
Na modernidade acreditava-se na existência de uma Verdade, mas como esta crença se
dissipou, a conclusão a que se chegou é que existem inúmeras verdades e, que cada nova
resposta/descoberta pressupõe sua superação e/ou questionamento. A teoria pós-modernista
não se preocupa mais com a Verdade, mas com a(s) busca(s), pois tudo é provisório e
mutável, tudo depende do ponto de vista de cada leitor. Portanto, o detetive perfeito que
consegue estabelecer uma lógica imutável não tem mais espaço, pois a casualidade ganha
espaço na nova narrativa policial.
A partir destas reflexões a respeito do desenvolvimento que o romance policial teve
desde seu surgimento, passamos a destacar os aspectos do romance policial presentes nos
romances de Rubem Fonseca, a partir de uma breve análise de suas características e aquelas
do romance policial clássico e suas evoluções.
Os romances de Rubem Fonseca seguem a linha dos romances policiais que romperam
com os modelos clássicos. Um dos primeiros aspectos é o de que o narrador, na maioria dos
casos, é o próprio detetive, e não mais apenas um assistente, como acontecia nos romances
policiais de Doyle, em que Holmes era o detetive e o Dr. Watson, o seu assistente. Estão
somados em uma só figura dois papéis distintos: aquele que desvenda o crime e o que narra a
trajetória para chegar à descoberta. Além disso, o detetive que vai trabalhar para desvendar o
crime não é mais uma máquina de raciocínio que nunca falha e que tem sempre todas as
respostas; ao contrário, ele é cheio de dúvidas, engana-se várias vezes, faz falsas conjeturas.
Os romances de Fonseca são compostos por narrativas policiais que são nitidamente
marcadas pela influência de Doyle. Neles, segundo Cardoso (2007), o
enigma inicial fica por
conta de um crime brutal que geralmente é um homicídio. Este crime gera toda uma atmosfera de
mistério e tensão no romance que fará com que o leitor não desgrude os olhos de suas páginas antes do
desenlace. Ainda pode-se notar uma semelhança na maneira como se iniciam as investigações, pois o
primeiro passo é sempre o do investigador, que visita o local do crime em busca dos primeiros indícios
que nortearão o processo investigativo, seja este o detetive genial – Sherlock Holmes, Dupin – ou um
investigador comum – Mandrake, Guedes ou Mattos. Além disso, ela aponta outros exemplos quase
irrelevantes do ponto de vista da comparação que estamos estabelecendo, mas que sugerem alguma
semelhança, como, por exemplo, a relação entre Mandrake e Wexler, em A grande arte (1983) e
Sherlock e Watson, nas aventuras escritas por Doyle. Nos dois casos o investigador conta com a ajuda
de um amigo para solucionar crimes, no entanto, é visivelmente marcada a distância intelectual e
dedutória entre os dois companheiros. O detetive sempre se sobressai no que diz respeito à análise dos
indícios, muito embora os detetives de Fonseca não sejam infalíveis como o de Doyle e possam ser
confundidos pelo criminoso.
52
Contudo, segundo a estudiosa, são as diferenças em relação ao modelo que mais
chamam a atenção, pois Fonseca segue a linha dos escritores que desde a década de 30
desconstroem o modelo policial. Nos romances de Fonseca, o detetive não tem a mesma
capacidade de raciocínio infalível que os detetives de Poe, Hammet ou Chandler, apontados
por Boileau e Narcejac. Os papéis de vilão e mocinho não são mais tão bem definidos como
eram no romance policial clássico, sendo que tudo passa a ser relativizado e há a perda da
esperança positivista. Mesmo o criminoso sendo encontrado, a realidade mostra que ainda
existirão crimes. Além disso, os romances podem apresentar finais abertos ou dúbios, que
requerem um leitor culto, sagaz e inteligente, capaz de completar, com suas próprias
experiências, os vazios do texto.
Outra característica, própria da narrativa fonsequiana, seja quando fala sobre
halterofilistas, executivos, homossexuais, delegados e detetives de polícia, assassinos
profissionais, garotas de programa ou miseráveis que vagam sem rumo, é que os bandidos
nunca sentem remorsos. Vale lembrar o conto “O cobrador”, do qual falamos no início do
capítulo. O personagem é cruel, e não tem nenhuma compaixão, nem mesmo por seus pares.
Afora isso, a flexibilidade de seus personagens, que passam com a maior rapidez de
mocinho a bandido e vice-versa e acabam por se tornar personagens inclassificáveis, é outra
característica marcante das narrativas de Fonseca. São vários os exemplos que podemos citar
de personagens que no desenrolar da narrativa caem no rol de suspeitos, mesmo sendo um dos
que aparentemente tentam desvendar o crime. Um caso muito interessante é o comentado por
Maria Lídia L. Maretti em seu texto “Entre o lógico e o mitológico” (1986, p.115-138), em
que ela aponta para a dúvida de Raul quanto à investigação de Mandrake em A grande arte:
Questionando o suicídio de Lima Prado e usando para isso o critério da
veracidade; contestando a seguir a validade da leitura dos Cadernos do
mesmo Lima Prado; sugerindo, enfim que qualquer um – até mesmo
Mandrake – podia ter praticado os crimes, a função de Raul neste trecho é a
de amenizar o poder atribuível à narrativa de esclarecer todo o processo.
(MARETTI, 1986, p. 122)
Portanto, segundo Maretti, a lógica do mundo marginal em Rubem Fonseca supõe que
ninguém está livre de ser suspeito, pois já que “a paixão é inerente ao ser humano, todos os
homens passam a ser, também, potencialmente suspeitos.” (p.122).
Embora apresente grandes mudanças e inovações quando comparado ao paradigma de
romance policial clássico, O doente Molière não sugere a transgressão do gênero, como
53
podemos encontrar em alguns romances atuais. Ainda existe um crime e um detetive que
consegue descobrir a identidade do assassino; todavia, obedecendo à lógica dos romances
policiais de Rubem Fonseca, apontada por Maretti, qualquer um dos suspeitos poderia ter sido
o criminoso, pois o sentimento que impulsiona o verdadeiro assassino poderia vir de qualquer
outro, já que o motivo seria o mesmo: Molière incomodava por ridicularizar pessoas e classes
importantes da sociedade francesa; logo, ele deveria ser silenciado.
Como nenhum de seus biógrafos conseguiu explicar o que de fato ocorreu, isso cria,
portanto, uma atmosfera de incertezas que abre possibilidades para que haja algum fato que
ainda não tenha sido explicado, que poderia muito bem ser um crime. Vale lembrar que,
segundo Pierre de Beaumont (1969, p.71), que escreveu sobre a vida de Molière, houve sim
uma suspeita, ainda que pequena de que o dramaturgo pudesse ter sido envenenado.
7
Portanto, utilizando-se de um fato verídico que é o incômodo causado por Molière a
muitos dos que foram alvo de sua sátira e da possível suspeita causada pela morte repentina, o
narrador consegue convencer o leitor de que no mínimo haveria a possibilidade de que essa
hipótese fosse verdadeira.
Entretanto, como podemos observar por meio da afirmação de Maretti sobre a lógica
do mundo fonsequiano, e que não falha em O doente Molière, o leitor perde rapidamente a
segurança e a confiança também no narrador. Primeiro porque ele não se identifica
nomeando-se apenas como Marquês Anônimo e dizendo ser de “ilustre estirpe” (FONSECA,
2000, p.15), portanto estando numa situação muito cômoda para dizer qualquer coisa sem
correr o risco de ser desmascarado. Em segundo lugar, porque declara ter sido informado pelo
próprio Molière da suspeita do envenenamento, mantendo-se, contudo, calado por medo de se
ver envolvido nas suspeitas de crimes de envenenamento que assolavam Paris. E, finalmente,
por declarar ter sido amante de Armande, esposa do autor de Le malade imaginaire.
Esta atmosfera de incertezas se torna mais intensa a cada momento. O Marquês quer
muito se tornar um grande autor como Molière ou Racine. Demonstra um grande desdém por
este por ter sido franco demais a respeito de sua falta de talento para escrever tragédias, ao
mesmo tempo em que demonstra uma grande afeição por aquele que, embora tenha sido mais
7
Em Beaumont pode-se ler: Le lendemain, l’Église défend qu’on enterre le grand auteur, un comédien, dans un
cimetière. A la demande du roi, on pourra cependant, de nuit, venir mettre le corps en terre. Déjà le bruit court
que Molière a été empoisonné... Une fois de plus, on ne sait rien. Une seule chose est certaine: la médecine
moderne n’arrive pas à expliquer une mort si rapide.
(No dia seguinte, a Igreja não aceita que se enterre o
grande autor, um ator, em um cemitério. A pedido do rei, entretanto, será possível, durante a noite, enterrar o
corpo. A partir de então, correm os rumores de que Molière foi envenenado... Uma vez mais, não se sabe nada.
Uma única coisa é certa: a medicina moderna não consegue explicar uma morte tão rápida.
– a tradução é
nossa).
54
sutil, lhe mostrou a mesma coisa. O leitor, por isso, pode ficar confuso e duvidar da
sinceridade do Marquês. Além de que se torna cada vez mais difícil estabelecer uma fronteira
entre a “realidade” e a ficção, pois a vontade de se tornar escritor pode ter feito com que o
Marquês inventasse tudo isso.
O narrador afirma que o tema central de seu livro, que conta parte de suas memórias, é
o mistério da morte de Molière, mas neste ponto ele também nos deixa com dúvidas: qual
seria verdadeiramente seu maior objetivo – fazer justiça a Molière ou satisfazer sua vaidade
tornando-se um escritor?
É, portanto, este clima que perpassa todo o livro e que acaba por transgredir o gênero
policial, pois, como sabemos, nos famosos romances policiais tradicionais o detetive sempre é
alguém acima de qualquer suspeita e em quem o leitor confia inteiramente. Mas em um
contexto em que tudo é relativizado, o detetive também se torna um criminoso potencial.
Em O doente Molière, o crime foi cometido por uma “necessidade” da classe médica,
que foi bastante atacada por Molière, e encarada por ele como sendo composta por sabichões
que não conseguiam nem mesmo diferenciar uma doença real de uma encenação. É o que
acontece na sua peça Le malade imaginaire, em que Argan finge estar muito doente, à beira
da morte, para descobrir se sua mulher e sua filha realmente o amam. Quando uma junta de
médicos é chamada para tentar descobrir qual é a sua doença, eles acabam por fazer uma
grande confusão e não chegam a conclusão alguma. E esta não foi a única peça de Molière em
que os grandes médicos da corte francesa apareceram para provocar boas gargalhadas.
No entanto, quem realiza o assassinato é a cozinheira de Molière, uma personagem
que pouco aparece e que fora apontada como uma das únicas pessoas em quem o dramaturgo
confiava. Além disso, ser morto por uma simples cozinheira, quando havia afrontado os mais
altos setores da sociedade francesa, chegava a ser humilhante. É nestes termos que o narrador,
o Marquês Anônimo, fala quando revela o nome do assassino:
Quem envenenara Molière fora La Forest, a empregada dele. Não consegui
esconder meu desapontamento. A assassina ser a cozinheira tirava a paixão,
a grandeza, até mesmo o horror que aquele crime devia conter. Um homem
como Molière merecia ter como assassino o próprio rei. (FONSECA, 2000,
p.134).
Como podemos observar, a descoberta do assassino não provoca grande choque, como
seria de se esperar em um romance policial clássico. Ela chega a decepcionar o leitor, que
segue a narrativa esperando o desenrolar do mistério, pois o narrador tem em mente o que
55
significa o grande momento da revelação do culpado nesse gênero, e por isso mesmo ele
“brinca” com o leitor, supondo-o desapontado também. Contudo, os romances policiais que
tomaram como exemplo o modelo clássico, e o alteraram, modificaram uma das regras
básicas que era a de que o assassino deveria ser um dos personagens principais, conforme
estabeleceu Van Dine. Portanto não é raro encontrar histórias, dentro da tradição do gênero,
em que ao final de toda a investigação se chegava à conclusão de que o assassino era o
mordomo. Trata-se, portanto, de uma paródia do próprio gênero, em seu modelo clássico,
além da configuração, neste romance, de um diálogo com a tradição.
1.7. As pistas
Rubem Fonseca ao recriar a trajetória de Molière transforma o dramaturgo em seu
personagem e, por meio do discurso de seu narrador, apresenta-o aos seus leitores trazendo a
tona aspectos de sua vida que darão consistência à hipótese de ele ter sido assassinado por
envenenamento.
Retomando, portanto, o suposto mistério da morte do dramaturgo francês, vemos
através dos olhos deste narrador que Molière está em cena com sua última peça, O doente
imaginário, e que a sala do Palais-Royal está cheia. Entretanto, a peça neste dia não termina
como nos outros. O público distraído confunde o mal-estar de Molière com a encenação, mas
os atores e o Marquês, que haviam assistido outras apresentações, percebem que algo não está
bem. Ao terminar o espetáculo, levam-no para casa e, como notam que o estado do escritor é
preocupante, sua mulher Armande, alguns atores da trupe e o próprio Marquês saem em busca
de um padre. Mas, antes de o Marquês sair, Molière lhe faz uma confissão: “Fui mortalmente
envenenado”.
Mesmo assim, ele tenta encontrar um padre que dê a benção antes da morte ao
dramaturgo, e não conta a ninguém o que ouviu do amigo. Quando regressam a casa, não
havia mais o que fazer: Molière já havia morrido, sozinho, às dez horas da noite do dia 17 de
fevereiro de 1673.
O Marquês se cala na ocasião da morte, para que o fato não complique seus próprios
interesses, pois ele já corria o risco de estar envolvido em outro crime de assassinato por
envenenamento e não queria ver sua nobre reputação envolvida nesses escândalos. Além do
mais, ele era amante de Armande; portanto, seria o principal suspeito se a verdade viesse à
56
tona. Contudo, quando o outro fato se esclarece e ele não corre mais nenhum risco, sente-se
atormentado pela consciência e decide encontrar o assassino de seu amigo. Como não pode se
utilizar dos meios policiais, recorre à sua memória e às suas anotações, tentando descobrir
quem teria interesse na morte do dramaturgo.
Assim, as peças de Molière aparecem como pistas que levarão o detetive ao assassino,
já que ele jamais acreditou no motivo que o dr. Mauvillan, médico particular de Molière,
alegou para o acontecido: morte natural devida a uma antiga doença que o deixava deprimido
e ranzinza. Para o Marquês, Molière nunca estivera muito doente, ele era apenas um falso
doente, assim como todos os seus personagens doentes e se queixava pelo fato de ser um
hipocondríaco; para o Marquês, “Argan era ele, Alceste era ele, Arnolphe era ele, Harpagon,
Tartufo, Ariste, Mascarille, Monsieur Jordan, George Dandin, todos os seus personagens, por
mais paradoxal que possa parecer, de certa forma eram ele.” (FONSECA, 2000, p.47).
A afirmação do personagem-narrador nos remete a frase dita por Flaubert, na defesa
de sua obra: “Madame Bovary c’est moi”; o que evidencia o jogo estabelecido pelos dois
escritores entre ficção e realidade, tema este que percorre toda a narrativa de Fonseca.
No trecho abaixo, de O doente imaginário, Argan chega a acreditar que está mesmo
muito mal por ouvir Toinette dizer isso com tanta força, e acaba não acreditando em Cléante,
que diz que ele tinha boa aparência:
Cléante: – Senhor, estou feliz em encontrá-lo de pé e ver que estais passando
melhor.
Toinette (fingindo estar com raiva) – Como, passando melhor? Isto é falso. O
senhor passa sempre mal.
Cléante: – Ouvi dizer que estava melhor, e lhe acho boa cara.
Toinette: – Que quer dizer com esta boa cara? O senhor tem cara muito ruim, e
só impertinentes dizem que está melhor. Ele nunca andou tão mal.
Argan: – Ela está certa.
Toinette: – Ele anda, dorme, come e bebe como todo mundo; mas isto não
impede que esteja muito doente.
Argan: – Isto é verdade. (MOLIÈRE, 2005, p.87)
Para o Marquês, Molière era Argan porque o dr. Mauvillan também se enganara nos
exames do dramaturgo, dizendo que sua morte se deu porque ele estava muito doente,
enquanto o Marquês sabia que ele havia sido envenenado. É por este motivo, somado à
confissão que o próprio dramaturgo lhe fizera no leito de morte e também ao grande número
de casos de envenenamento – inclusive aqueles em que ele mesmo atuava como suspeito –
que o Marquês viu essa dúvida crescer e decidiu esclarecer o mistério da morte de Molière:
57
Mas quem o teria envenenado? Pela minha cabeça passava a imagem sem
rosto de uma preciosa ridícula, um burguês gentil-homem, um padre, um
fanático religioso, um nobre ofendido, um autor consumido pela inveja e
mesmo um ator rancoroso, todos segurando na mão um frasco de veneno.
(FONSECA, 2000, p.51)
Desta forma, no romance de Fonseca, as peças de Molière passam a ser as pistas que,
ao serem investigadas minuciosamente, levarão ao verdadeiro assassino. O interessante nesta
obra é que a busca pelo assassino não provoca um grande suspense como em outros romances
e contos, pois geralmente os textos policiais constroem seu suspense com base em pelo menos
dois mistérios: quem cometeu o crime e qual o motivo que o levou a cometê-lo. Estas duas
perguntas ligam-se, mas não se anulam, pois de posse de uma das respostas ainda fica a outra
dúvida.
Em O doente Molière, o suspense quase desaparece porque a razão pela qual o crime
teria ocorrido estava bastante clara: Molière tinha muitos inimigos, pois ridicularizava
constantemente, em suas peças, os burgueses tolos, as preciosas ridículas, os médicos
charlatões, os religiosos hipócritas e toda espécie de cinismo que podia ver ao seu redor, e
devido também “à sua índole nervosa e às suas oscilações de humor” (FONSECA, 2000,
p.43) Portanto, a única dúvida que persiste é a do nome do assassino. No entanto, de certa
forma também não há suspense nisto, pois como o próprio personagem-narrador Marquês
deixa claro quando elenca os possíveis suspeitos, qualquer um deles poderia ter envenenado
Molière, já que o motivo era exatamente o mesmo. Assim, o desvendamento do crime fica em
segundo plano e serve de pretexto para um passeio pelas obras do dramaturgo e também pela
literatura francesa do século XVII.
Este passeio pelas obras de Molière será o método empregado pelo detetive Marquês
Anônimo para identificar o assassino. Sendo assim, o personagem-narrador empreende uma
busca detalhada no sentido de tentar encontrar as pistas que o levariam ao assassino, mas
como o local do crime já não poderia ser examinado por já terem se passado muitos anos,
além disso, não foi feita nenhuma autópsia, portanto, em princípio não houve crime. A única
forma de investigar, sem que a polícia seja alertada, é elaborando uma lista de suspeitos e
buscando, através da memória, as pistas deixadas pelo criminoso.
A primeira pista poderia estar na peça As preciosas ridículas. Para avaliar a reação
provocada por sua estréia, o Marquês Anônimo rememora a visita aos salões das duas
preciosas que foram vítimas da sátira do dramaturgo. Ele havia feito essa peregrinação
durante alguns dias depois da estréia da peça para constatar o efeito que ela produziu nos
58
espíritos dos que a assistiram. No primeiro salão visitado, o da Madame Rambouillet, ele
percebeu uma irritação por parte dos freqüentadores, principalmente por parte do abade Cotin
que viria a ser um inimigo feroz de Molière e dos artistas presentes que acusavam o
dramaturgo de plágio.
Molière sofreu essa acusação durante toda sua vida artística mas, segundo o Marquês,
grande conhecedor da obra do amigo, a acusação só era verdadeira em relação a duas peças
que foram encenadas na província, O ciúme de Barbouillé e O médico voador, que teriam sido
copiadas de antigas comédias italianas. (FONSECA, 2000, p. 58-59).
Segundo Iracema Kuhlmann (1998), estudiosa da obra de Molière, por muito tempo os
biógrafos do dramaturgo tiveram dúvidas quanto à autoria de O médico voador (Le médecin
volant), mas, a partir de uma análise das outras peças encenadas no interior do país, foram
constatadas várias semelhanças que possibilitaram a atribuição dessa autoria. Ainda segundo
Kuhlmann, a produção de Molière é dividida formalmente em duas fases, uma anterior a Luís
XIV, quando ele teve que peregrinar com sua trupe pelo interior e pôde deixar que as
influências da arte popular permeassem suas peças:
A dramaturgia de Molière se constrói em meio a dois ambientes, em meio a
dois tempos diferentes, antes e depois de Luís XIV. Antes, quando a arte
pode ser construída com a contribuição e a influência de todas as expressões
artísticas espontâneas; no caso do teatro, a pantomima e a farsa relacionadas
à commedia dell’arte e a todas as tradições que se misturam livremente. É
dessa fonte que Molière sacia a sua sede histriônica, nas províncias, junto à
sua trupe. Essa é a primeira fase da sua dramaturgia, e das suas regras
construídas na prática. (1998, p.49)
A outra fase é marcada pelo reinado do “Rei Sol” em que ele e sua trupe voltam a
Paris e obtêm importantes patrocinadores, como o irmão do rei e até mesmo o próprio rei.
Hauser, citado por Kuhlmann, diz que a estética do classicismo é guiada pelos princípios do
absolutismo, e que também as formas sociais e econômicas antiindividualistas foram
derivadas da idéia do Estado Absoluto. O absolutismo teriam surgido porque a França passava
por muitas guerras religiosas, carnificinas, epidemias e fome, e o povo buscava paz a qualquer
preço. (1998, p.48). Sendo assim, a arte também, como o Estado tinha fortes regras a serem
seguidas e isso limitava formalmente a produção artística que tinha que corresponder ao
modelo político que lhe financiava.
Voltando à investigação do Marquês, percebemos que, após relembrar as visitas feitas
nos mais importantes salões da esplendorosa Paris de Luís XIV, – sendo eles o da marquesa
de Rambouillet; da madame de Scudéry; o salão da duquesa de Montpensier, La Grande
59
Mademoiselle, prima do rei; o salão da madame de Combalet, sobrinha de Richelieu; o salão
de Ninon de Lenclos, onde ele se sentia muito à vontade e, finalmente, o salão dos Scarron, ou
seja, Françoise d’Aubigné e seu marido, o escritor Paul Scarron, no qual a repercussão não
fora desfavorável a Molière –, o Marquês chega à conclusão de que, algum tempo depois da
estréia da peças, ninguém mais se chocava com a sátira contida em As preciosas ridículas, a
não ser os padres, como Jules Mascaron e o abade Cotin, além dos artistas que insistiam em
denegrir a imagem de Molière como plagiário. Portanto, o Marquês “podia, sem susto,
suprimir do [seu] rol de suspeitos uma preciosa ridícula.” (FONSECA, 2000, p. 66).
Uma pista leva a outra e assim é possível passar para o próximo suspeito. O Marquês
então rememora a estréia de Tartufo. Com a querela provocada por esta peça e pela Escola de
mulheres (1662), Molière, que já não era bem quisto pelos membros da Igreja pelo simples
fato de ser dramaturgo, pois “os comediantes, por exercerem uma profissão considerada
infame, são excomungados” (FONSECA, 2000, p. 24), passou a ser ainda mais perseguido.
O narrador afirma em sua narrativa que clero se mobilizou contra a peça, o padre
Roullé escreveu um libelo em que afirmava que Molière era a encarnação do demônio e a
Companhia do Santo Sacramento se reuniu após a première de Tartufo para examinar a forma
mais rápida de castigar Molière. Mas o dramaturgo era hábil com as palavras e reescreveu a
peça colocando frases que enalteciam a figura do rei:
Molière acrescentou no final da peça uma longa fala, na boca do meirinho
que aparentemente vai expulsar Orgon e a família de suas propriedades, para
que Tartufo se apodere delas. Acalme-se, diz o meirinho a Orgon, vivemos
sob o regime de um príncipe inimigo da fraude, um monarca que pode ler o
coração dos homens, a quem a arte de nenhum impostor engana.
8
(FONSECA, 2000, p.72-73)
Segundo o Marquês, quando Molière leu a ele este trecho que acrescentou a Tartufo,
perguntou-lhe se ele se lembrava de uma frase de Montaigne que dizia o seguinte: “Meu
espírito não foi feito para se dobrar, mas meus joelhos sim.”
Molière é conhecido na história, segundo Barbosa (2008), juntamente com Racine e
Boileau, por suas bajulações cortesanescas. Contudo, bajular o rei e exaltar suas conquistas é
uma tarefa necessária para aqueles que querem a proteção de Luís XIV pois, como a estudiosa
do século XVII aponta, os intelectuais que não o faziam eram punidos, como o historiador
8
Efetivamente o personagem, no texto de Molière, diz:
Remettez-vous, Monsieur, d’une alarme si chaude.
Nous vivons sous un Prince ennemi de la fraude,
Un Prince dont les yeux se font jour dans les coeurs,
Et que ne peut tromper tout l’art des imposteurs.
(MOLIÈRE, 1956, V. I, p. 771)
60
Mézeray, que fez algumas críticas em seus escritos e teve imediatamente sua pensão reduzida
por Colbert.
Havia, como já dissemos quando exploramos a questão da narrativa histórica, um
projeto por parte do rei com a finalidade de aumentar a sua glória. Desta forma, ao nomear
Racine e Boileau como historiógrafos reais,
Esperava-se que uma obra de história incluísse uma série de passagens
primorosas, dedicadas ao “caráter”, ou retrato moral, do soberano, de um
ministro ou comandante, o vívido relato de uma batalha e a apresentação de
debates, com falas atribuídas a participantes eminentes [mas freqüentemente
inventadas pelo historiador]. (BURKE, 1994, p. 36)
De modo a completar este projeto grandioso, Luís XIV mandou criar e organizar as
academias existentes e Colbert incentivou Baluze e Clérambault a montarem uma Biblioteca
em 1663, entre outros projetos grandiosos, levados à frente pela iniciativa do rei e conduzidos
por Colbert. (BARBOSA, 2007). Os artistas escrevem e se apresentam para alegrar e entreter
o rei e seus cortesãos. Contudo, como bem lembra Barbosa,
Os homens de letras como Molière, Nicolas Despréaux, mais conhecido
como Boileau, Racine e Lulli não foram somente entretenedores e cortesãos
ociosos. É claro que eles eram encarregados de fornecer divertimento ao
teatro da corte: as comédias de Racine e as óperas e balés de Lulli o atestam
muito bem. No entanto, em sua Ode sur La prise de Namur, de 1692, o poeta
Boileau cantou as vitórias reais. (BARBOSA, 2007, p. 64).
Eles eram, portanto, parte integrante do projeto real e por isso deviam sempre render
homenagens e glorificar a figura de Luís XIV; era como se os intelectuais fossem os planetas
gravitando em torno do sol. É por esta razão que o Marquês, ao relembrar a frase de
Montaigne, citada por Molière, afirma que este é o único ponto em que agradece por não ter
se tornado um escritor, pois, por ser um dos comediantes da corte e por sua trupe levar o
nome de Troupe du roi, Molière tinha que se subordinar “à vontade absoluta do rei”
(FONSECA, 2000, p. 73). Por isso teve que fazer mudanças no Tartufo.
No entanto, mesmo com as mudanças aprovadas pelo rei, seus inimigos não deixam de
persegui-lo, e por isso o Marquês diz que “tinha notícias de que muitos membros da
corporação médica, da nobreza e do clero, principalmente jesuítas, além dos membros da
Companhia do Santo Sacramento, se reuniam para discutir qual a melhor maneira de calar
Molière.” (FONSECA, 2000, p.73)
61
Outro fato que levou o Marquês Anônimo a suspeitar ainda mais de que um fanático
religioso ou um membro do clero pudesse ter cometido o crime é o de seu pai, que fazia parte
da Companhia do Santo Sacramento, ter-lhe perguntado se ele havia se chateado com o que a
Companhia havia feito a Molière. Embora seu pai tenha dito que se referia somente à
interdição do Tartufo, ele ficou muito desconfiado e por isso procurou o Sr. Couthon, também
membro da Companhia, e o padre Roullé.
Como podemos constatar, o capítulo “A encarnação do demônio”, mais que uma
tentativa de descobrir o assassino, funciona como um pretexto para expor a crítica de Molière,
mas também para o Marquês fazer a sua crítica aos membros do clero, já que afirma
concordar com a opinião que o amigo tinha a respeito deles: “Em minha opinião, beatos e
padres da Igreja, em sua maioria, são verdadeiros tartufos.” (FONSECA, 2000, p. 70).
Essa opinião vem do fato de a instituição Igreja, representada por seus membros, agir
conforme seus próprios interesses e não em defesa dos necessitados, e por isso Molière a
ataca tão insistentemente. No entanto, com isso ele ganha poderosos opositores, já que os
cardeais e abades mais importantes tinham o apoio do rei.
Alguns anos antes de Tartufo, a peça Escola de mulheres foi considerada uma paródia
imoral da educação cristã nos conventos e dos princípios sagrados do matrimônio e causou
muita polêmica. O próprio Marquês insere esse fato em sua narrativa testemunhando que um
fanático religioso chegou a agredir Molière e que os libelos aumentaram nesta época, sendo o
comediante “acusado de herege impiedoso, corno sem-vergonha e depravado incestuoso.”
(FONSECA, 2000, p. 70).
Na tentativa de encontrar alguma pista que leve ao assassino, o Marquês resolve
relembrar os acontecimentos da estréia de Dom Juan, por suspeitar que, por ter causado tanta
exaltação, possa levar a alguma conclusão importante. Esta peça estréia um ano após a
première de Tartufo e estava fadada a causar o mesmo furor, pois foi alvo da tirania dos
moralistas que ao se unirem conseguiram também a sua interdição.
Bonzon (1960) afirma que esta peça teve que ser escrita muito rapidamente e sem
muita preocupação com as regras, por causa das necessidades da trupe de Molière, mas, por
manter o rigor e a violência do rascunho, onde há uma mescla do realismo brutal, do patético
e do cômico, evoca o drama shakespeariano. (1960, p. 99)
Deshusses (1984), por sua vez, indica que Molière, ao retomar a história deste
personagem que já havia se tornado um mito na Espanha, Itália e inclusive na França, tendo
sido representado por diversos escritores, mescla o fantástico ao cotidiano e o trágico ao
62
cômico, na construção de um personagem que se configura como um dos mais complexos e
mais ambíguos de sua obra.
Esta questão da ambigüidade também é apontada pelo personagem Marquês como
uma estratégia utilizada por Molière para conseguir dizer tudo o que queria através de seu
personagem sem, no entanto, poder ser acusado de herege:
Claramente, não se tratava de uma obra edificante, em que os pecadores são
execrados. Até ser engolido pelas chamas no último ato, Dom Juan, um
ateísta inteligente e irresistivelmente atraente, tem inúmeras oportunidades
de defender com brilho e eloqüência a sua irreverente filosofia. Mas também
não é uma peça de exaltação da licenciosidade. Aqueles que vão ao teatro
com espírito sectário só entendem aquilo que querem entender. (FONSECA,
2000, p. 83).
Contudo, de nada adiantou: os libelos se espalharam e o rei proibiu que a peça fosse
encenada. O Marquês, mais uma vez se colocando como defensor e amigo de Molière, afirma
que a polêmica é causada por Dom Juan e Tartufo serem peças que evidenciam a hipocrisia e,
“na verdade, somos todos hipócritas, e a falsa devoção é uma das suas formas mais comuns.
Levamos uma vida corrupta e egoísta [...], mas não deixamos de praticar nossa religião.”
(FONSECA, 2000, p. 84); daí os poderosos se sentirem ameaçados. Como Molière aponta
justamente para essa fraqueza humana, não pode ser perdoado e por isso Dom Juan não foi
mais encenado enquanto ele viveu.
Em um movimento circular, observamos o fim levar de volta ao início, e a última peça
explorada pelo Marquês ter o mesmo tema da primeira: os médicos charlatões. O amor
médico é uma comédia-balé que tem como enredo a história de uma moça que, para não se
casar com o pretendente escolhido por seu pai, finge-se doente. Como vemos, os falsos
doentes estão por toda a obra de Molière, mas não seria perigoso se fingir doente? Segundo o
que mostram os médicos das peças de Molière, mais perigoso era estar doente, pois a
medicina era praticada por eles sem que tivessem certeza do que estavam fazendo ou falando.
Em O amor médico, cinco charlatões são chamados para cuidar da moça enferma, mas
nenhum deles consegue descobrir o que ela realmente tem; assim, em uma confusão de
“latinórios”, sangrias e vomitórios, a platéia ria largamente. O problema é que esses cinco
médicos, segundo o narrador de Fonseca, representavam os doutores mais conhecidos da
França: “Des Fougerais, o mais célebre de Paris; d’Aquin, médico do rei; Esprit, médico de
Monsieur, e Yvelin, médico de Madame (então, Henriette-Anne d’Angleterre).” (FONSECA,
2000, p. 89).
63
No capítulo 1, “Uma profissão infame”, em que aparece o trecho de O doente
imaginário e, portanto, pela primeira vez a crítica aos médicos, o Marquês, ao comentar a
dificuldade de se conseguir a autorização da Igreja para enterrar dignamente Molière no
cemitério, explica:
Os comediantes, por exercerem uma profissão considerada infame, são
excomungados. Conforme as decisões da prelazia de Paris, não se pode dar
comunhão a pessoas publicamente indignas e manifestamente ignóbeis
como as prostitutas, os usuários, os feiticeiros e os comediantes.
(FONSECA, 2000, p.24)
Este trecho nos remete diretamente ao título do capítulo; entretanto, a peça cujo trecho
está citado é uma crítica que ridiculariza os médicos e revela seu charlatanismo. Portanto,
paira uma incerteza: qual seria, na verdade, a profissão infame?
O Marquês, como amigo de infância de Molière e grande admirador de suas peças,
não poderia estar falando senão dos médicos, pois ele em vários momentos compartilha da
opinião que Molière tinha deles. Este, segundo o próprio narrador, estava há algum tempo
enfermo e nenhum médico conseguia descobrir exatamente que mal o afligia; daí a sua
descrença nesta ciência. Neste aspecto, além de O doente Molière dialogar com O doente
imaginário quanto ao tema da crítica ao charlatanismo, também estabelece uma relação
interdiscursiva com a biografia do dramaturgo. Vários são seus biógrafos que relatam este mal
desconhecido que acabou por lhe tirar a vida.
Por esta razão, o Marquês acredita que poderia ter sido um médico o responsável pelo
assassinato de Molière, pois o ódio de quem matou o dramaturgo poderia muito bem ter
esperado um bom tempo para concretizar a sua vingança. Além disso, para o narrador, “eles
são responsáveis por tantas mortes que mais uma não pesaria em suas consciências.”
(FONSECA, 2000, p. 90).
Quando o Marquês procura novamente o dr. Mauvillan, que durante anos fora médico
de Molière, e pede para que ele explique novamente as causas de sua morte, ouve uma
explicação confusa, com um palavreado sem sentido que servia de máscara para sua
ignorância. O dr. Mauvillan tenta dissipar as suspeitas do Marquês, mas com seu nervosismo
consegue apenas fazer com que elas aumentem.
O Marquês afirma que, no prefácio feito para a edição de Tartufo, o dramaturgo
escreveu que os nobres, as mulheres pretensiosas, os cornos, os médicos haviam se submetido
às suas críticas, mas que os hipócritas e os falsos devotos, ao se verem representados,
64
reagiram demonstrando toda a sua influência. “Mas eu o adverti de que a nobreza e a
corporação médica também estavam ressentidas.” (FONSECA, 2000, p.91).
Não seria fácil para os vaidosos médicos se esquecerem de cenas como as de O doente
imaginário ou de O amor médico, em que são representados como personagens patéticos que
se atrapalham em meio a citações em latim e com prescrições totalmente equivocadas. O fato
é que a classe médica é realmente uma das mais ridicularizadas por Molière.
Dentre suas peças, cinco expressam o tema já no título: Le médecin amoureux (O
médico apaixonado), 1658; Le médecin volant (O médico voador), 1859; L’amour médecin
(O amor médico), 1665; Le médecin malgré lui (O médico contra a vontade), 1666; Le
malade imaginaire (O doente imaginário), 1673. Mas muitas outras trazem o tema em seu
interior; um exemplo disso é a peça Dom Juan em que, mesmo tratando de um tema
totalmente diferente daquele de O doente imaginário, Molière não perde a chance de
ridicularizar a classe médica.
No terceiro ato, cena I, para não ser encontrado pelos irmãos de Elvire, que querem
capturar Dom Juan para fazê-lo se casar com a irmã desonrada, Sganarelle se finge de médico
e, quando ele e seu mestre já estão a salvo, ele comenta com Dom Juan, que por causa de seu
disfarce, foi procurado por diversas pessoas:
Dom Juan: - Você lhes respondeu que você não entendia nada disso?
Sganarelle: - Eu? De forma alguma! Eu quis defender a honra de minha
vestimenta, pensei no mal e dei receitas a todos.
Dom Juan: - E quais remédios você lhes receitou?
Sganarelle: - Na verdade, Senhor, eu os peguei onde pude; fiz minhas
receitas ao acaso, e seria uma coisa engraçada se os doentes se curassem e
viessem me agradecer.
Dom Juan: - E por que não? Por qual razão você não terá os mesmos
privilégios que têm os outros médicos? Eles não têm mais mérito que você
nas curas dos doentes, e toda a arte deles é puro fingimento. Eles não fazem
nada além de receber a glória dos êxitos, e você pode se aproveitar como
eles da felicidade do doente, e ver serem atribuídos a seus remédios tudo o
que pode derivar dos favores do acaso e das forças da natureza. (MOLIÈRE,
1956, v. I, p. 800 – a tradução é nossa)
9
9
Dom Juan: - Tu leur as répondu que tu n’y entendais rien?
Sganarelle: - Moi? Point de tout! J’ai voulu soutenir l’honneur de mon habit, j’ai raisonné sur le mal et leur ai
fait des ordonnances à chacun.
Dom Juan: - Et quels remèdes encore leur as-tu ordonnés?
Sganarelle: - Ma foi, Monsieur, j’en ai pris pas où j’en ai pu attraper; j’ai fait mes ordonnances à l’aventure, et ce
serait une chose plaisante si les malades guérissaient et qu’on m’en vînt remercier.
Dom Juan: - Et pourquoi non? Par quelle raison n’auras-tu pas les mêmes privilèges qu’ont tous les autres
médecins? Ils n’ont pas plus de part que toi aux guérisons des malades, et tout leur art est pure grimace. Ils ne
font rien que recevoir la gloire des heureux succès, et tu peux profiter comme eux du bonheur du malade, et voir
attribuer à tes remèdes tout ce qui peut venir des faveurs du hasard et des forces de la nature.” (MOLIÈRE, 1956,
v. I, p. 800)
65
O que se pode notar, portanto, é que a grande pista que levará o narrador a chegar mais
próximo da elucidação do mistério da morte de Molière é a sátira aos médicos, que conheciam
as propriedades dos remédios e podiam passar facilmente sem suspeita, ainda mais podendo
evitar a autópsia, como ocorreu com o comediante.
Assim, a relação que está anunciada desde o título, com a peça O doente imaginário,
em que Molière interpretava o papel de um falso doente que punha à prova a sabedoria dos
médicos, ridicularizando-os, teria custado caro a ele. O preço – sua vida – foi pago quando
ainda utilizava as roupas do personagem. Portanto, a sucessão de cenas em que ele fazia uma
intensa crítica à afetação, ridicularizando e escarnecendo dos médicos colocados em situações
extremamente cômicas e exageradas que levavam o leitor/espectador ao riso, lembra o famoso
romance do italiano Umberto Eco, O nome da rosa. Assim como no mosteiro medieval, o riso
também se tornou perigoso nos palcos dos teatros franceses, e a punição foi severa e
silenciosa.
1.8. A dimensão memorialística de O doente Molière
Em O doente Molière, o narrador é um Marquês que prefere se manter anônimo: ele,
que outrora sonhara em ser um grande autor de tragédias, decide agora publicar um livro
contendo suas memórias. E, embora as condições de produção da narrativa revelem detalhes
de sua história particular, seu tema central são as circunstâncias da morte de seu amigo, o
dramaturgo francês Molière, como ele próprio afirma.
No prólogo, intitulado “Registros”, tendo como recurso a metalinguagem, o Marquês
Anônimo se apresenta e expõe ao leitor a gênese da obra que apresenta e os motivos que o
levaram a publicá-la. Assim se inicia o prólogo: “Sou um marquês de ilustre estirpe, da
melhor nobreza, mas não sou escritor, apenas um leitor constante dos bons autores. Gostaria
de escrever para teatro, de ser como o meu amigo Molière ou como Racine”. (FONSECA,
2000, p.15)
Por ser um leitor voraz dos grandes autores e um amante das artes, sente despertar em
si o desejo de também se tornar um nome consagrado da literatura. Por isso decide escrever
uma tragédia. E, para ter seu talento comprovado, pede a Racine que a leia. O dramaturgo,
muito objetivamente, o aconselha a desistir do teatro, pois, além de se tratar de um gênero que
66
requer um dom especial – que ele não tem, exige também um conhecimento de inúmeros
preceitos que ele ignora. E acrescenta que, se ele tivesse vontade de escrever, deveria produzir
cartas ou diários, que não supõem obediência a regras e nem requerem talento.
Neste ponto da narrativa, no que chamamos de “história invisível”, mais que
ridicularizar a figura do Marquês como escritor, está sendo introduzida a discussão dos
gêneros. De um lado aparecem os gêneros “tradicionais”, que, neste contexto, são
representados pela tragédia; e de outro, os outros gêneros que não desfrutam deste status, mas
que também compõem o panorama literário francês de forma bastante significativa. Um
exemplo disso é a presença, no romance, de personagens históricos representantes destes
gêneros: Madame de Scudéry, escritora de várias novelas galantes que retratavam as
personalidades que freqüentavam seu salão, é autora de Artemène ou le Grand Cyrus (1649-
1653), considerada a maior novela da literatura francesa; Madame de Sévigné, teve suas
cartas reunidas em um livro, e se tornou um clássico do gênero epistolar; Madame de La
Fayette, autora de A princesa de Clèves; além disso, aparecem também La Rochefoucauld,
autor de reflexões e pensamentos na forma de epigramas, máximas e aforismos; Charles
Perrault que foi o primeiro escritor a reunir e publicar os contos-de-fada da tradição oral; e La
Fontaine, famoso por suas fábulas.
Vemos, portanto, que no discurso do Marquês, ao comentar a posição de Racine sobre
sua peça e sua atuação como escritor, Fonseca insere, ainda que veladamente, a questão dos
gêneros narrativos que estão ganhando cada vez mais espaço e que culminarão, no século
seguinte (XVIII) a ascensão do gênero romanesco.
Voltando ao personagem-narrador, certamente toda essa franqueza fere o orgulho do
Marquês pois, mesmo reconhecendo em diversos momentos o grande talento de Racine,
jamais demonstra afeição por ele em seus relatos; ao contrário, ao se referir a Racine na
ocasião do enterro de Molière, chama-o de ingrato por não ter comparecido ao enterro: “O
ingrato havia esquecido que fora Molière que abrira caminho para o seu sucesso ao encenar
sua primeira tragédia, A tebaida, quando Racine era totalmente desconhecido.” (2000, p. 27).
Certamente o rancor do Marquês, muito mais que da injustiça contra o amigo, vem da
injustiça sofrida por ele próprio quando não teve quem lhe abrisse caminho para o sucesso.
Contudo, o Marquês Anônimo não se satisfez com a resposta de Racine e procurou
Molière pedindo-lhe que lesse sua peça e dissesse o que dela pensava. Molière demorou
vários dias até dar uma resposta e quando o fez foi de maneira evasiva, dizendo que as
tragédias são mais difíceis de agradar, e que, embora sua peça tivesse muitas qualidades,
67
ainda não estava pronta para ser encenada. O Marquês compreendeu que aquela havia sido
uma maneira sutil que seu amigo encontrou de lhe dizer o mesmo que Racine já havia dito em
outras palavras: que ele era um escritor medíocre. Ele decidiu então se conformar com isso,
desistiu de escrever para o teatro e de ser um artista; mas não se aborreceu com Molière, pois
o amava. A partir daí, passa a registrar em cadernos os acontecimentos que lhe chamam a
atenção. Com relação às sua memórias, ele diz que
Mesmo não sendo escritor sempre registrei em cadernos acontecimentos
dramáticos ou pitorescos, da minha vida e da dos outros. O que faço não é
um diário, pois não escrevo todos os dias, somente quando algum assunto
me comove de alguma forma, ou me assombra, ou por algum motivo
desperta a minha curiosidade. E também não consigno, na abertura dos meus
registros, as datas em que foram feitos, apenas os títulos que dou aos temas
adotados. Posso ser às vezes um pouco prolixo, impreciso e fale
excessivamente da minha vida, mas isso me parece normal, em escritos
dessa natureza. (FONSECA, 2000, p.16)
Alguns trechos dessas anotações foram selecionados por ele mesmo para serem
publicados como parte de suas memórias, sendo que, para isso, explica a natureza dos
elementos de que dispõe para escrever sua obra e o método adotado em sua escritura e, mais
adiante, qual o tema central da obra, que é o mistério da morte de Molière.
Como podemos constatar até aqui, a mescla de gêneros e o uso de diversos elementos
caros aos romances pós-modernos causam problemas se se quiser dar definições claras aos
textos que lêem, pois a presença do hibridismo genérico faz com que haja uma
impossibilidade de classificação. Ou seja, não é possível afirmar categoricamente, de modo a
eliminar outras opções, que se trata de um romance histórico, de uma narrativa memorialística
ou de uma biografia porque há também inúmeros elementos concernentes a outros gêneros, e
por isso algumas confusões podem ocorrer.
Ao olharmos para o romance tendo em vista o narrador, corremos o risco de afirmar
que se trata de uma biografia ou de uma autobiografia. A primeira hipótese pode ser aceita,
pois, em meio às suas lembranças, o narrador conta a vida de Molière e traça seu perfil,
citando datas, fatos e acontecimentos que realmente, segundo outros biógrafos, aconteceram
na vida de Jean-Baptiste Pocquelin. Por outro lado, não podemos aceitar a hipótese de que se
trata de uma autobiografia, mesmo que o narrador conte ao leitor sua vida, seus sonhos, os
problemas que o assolaram, pois, como diz Philippe Lejeune (1975), para que uma narrativa
68
seja caracterizada como autobiografia é importante que haja uma identidade de nome entre o
autor (o nome que aparece na capa do livro), o narrador do texto e o personagem. Portanto,
esta única característica elimina a hipótese da autobiografia, pois como sabemos somente há
identidade de nomes entre o narrador e o personagem. O nome do autor que aparece na capa é
outro, é Rubem Fonseca. Tendo isto em vista, podemos dizer que, além de ser uma biografia,
trata-se também de um romance autobiográfico, ou memorialístico, ou ainda, considerando as
investida pós-modernas, uma autobiografia apócrifa ou uma paródia de uma autobiografia.
O romance autobiográfico, segundo Lejeune, freqüentemente imita os processos que a
autobiografia emprega para nos convencer da autenticidade de sua narrativa, como, por
exemplo, a utilização de datas, de personagens e de fatos reais.
O Marquês, como narrador de suas memórias, enquanto passeia por suas lembranças
tentando encontrar suspeitos do assassinato de Molière, não deixa de reafirmar sua presença
na vida do dramaturgo. Ele cita sugestões que deu ao amigo a fim de auxiliá-lo na reescritura
de algumas peças (como é o caso de Tartufo), para amenizar a polêmica criada em torno das
obras; cita também as ajudas que prestou; as vezes que o confortou quando o amigo se sentia
desanimado por perdas amorosas ou por causa das intrigas das outras trupes de teatro, e das
pessoas que o detestavam etc. No trecho a seguir, o Marquês elabora uma espécie de lista dos
momentos em que se fez presente na vida de Molière:
Sempre apoiei Molière, desde que ele, ainda muito jovem, contra a vontade
do pai, começou a freqüentar o ambiente teatral e fez amizade com a Béjart e
com Tibério Fiorilli, célebre como Scaramouche [...]. Molière e a Béjart
fundaram l’Illustre Théâtre. Ajudei-os a debutar em Paris com a proteção do
tio de Luís XIV, o príncipe Gaston d’Orléans. [...]. Ajudei-os a voltar da sua
peregrinação pela província para Paris, em 1658, conseguindo que fizesse
um espetáculo para o rei [...] Quando uma atriz da trupe, a bela Marquise-
Thérèse, de quem Molière era amante, deixou a companhia e juntou-se ao
grupo do teatro Bourgogne (dizem que teria se casado secretamente com
Racine), foi junto a mim que Molière veio se lamentar. [...] ajudei-o depois a
sair da melancolia em que mergulhou quando Madeleine o deixou
definitivamente. Quando ela morreu, fui um dos amigos que lhe prestaram
solidariedade em sua dor. [...]. Minha vida estava ligada à de Molière. Eu era
seu amigo. (FONSECA, 2000, p.32-34)
Toda essa descrição do trajeto de Molière, tanto na vida artística como na particular,
tem a função de mais uma vez dar respaldo ao Marquês. Citando datas e acontecimentos que
podem ser comprovados pelos historiadores e pelos biógrafos de Molière, o narrador tenta
convencer o leitor de que seu discurso é confiável, de que suas memórias correspondem à
69
“verdade”, além de constituírem uma tentativa de convencer o leitor de que ele não deve ser
incluído no rol dos suspeitos.
Além da não identidade entre os nomes do autor, narrador e personagem, outros dois
elementos nos mostram, dentro do próprio romance, esta diferença entre autobiografia e
romance autobiográfico. Antes do prólogo, na página 9 do romance, há um tópico intitulado
“Principais personagens desta novela (por ordem de aparição)”. Nesta passagem, que vai até a
página 11, estão elencados todos os personagens que aparecem ao longo da narrativa
10
, e suas
características, assim como dados históricos sobre eles
11
. O primeiro personagem que
encabeça a lista é o Marquês Anônimo, sendo que sua descrição é “Marquês Anônimo. Amigo
e colega de Molière. (Único personagem fictício)” (FONSECA, 2000, p. 9). Lembrando ainda
as palavras de Lejeune ao definir o gênero autobiográfico, temos que se trata de uma narrativa
retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando ela dá
ênfase a sua vida individual, em particular à história de sua personalidade.
Além disso, à página 21 encontramos uma nota explicando a grafia do verdadeiro
nome de Molière, que foi ali inserida não pelo narrador Marquês, mas por uma segunda
instância narrativa, que, num jogo proposital do autor, pode ser confundido com o escritor
empírico Rubem Fonseca. Nesta nota, o segundo narrador diz que na época o nome se
escrevia “Pocquelin”, como faz o Marquês Anônimo, autor do livro, e também como fez J. L.
Grimarest, no clássico La vie de M. de Molière, publicado em 1705; e assina como “R. F.”.
As iniciais do fim na nota estão presentes para fazer um jogo com o leitor e tentar
fazê-lo acreditar que se trata realmente de Rubem Fonseca; além disso, este narrador afirma
ser o Marquês o autor deste livro. Portanto, “R. F.” seria uma espécie de editor da obra. Fato
este que tenta dar verossimilhança à possibilidade de autobiografia.
Neste momento, torna-se necessário tomar um texto de Umberto Eco, a fim de
esclarecer as possíveis confusões entre leitor/autor empírico/modelo. Em sua conferência
“Entrando no bosque”, que juntamente com outras cinco foram publicadas no livro Seis
passeios pelos bosques da ficção, Eco nos lembra que,
O leitor-modelo de uma história não é um leitor empírico. O leitor empírico
é você, eu, todos nós, quando lemos um texto. Os leitores empíricos podem
10
Esta lista é comum ao teatro, onde normalmente, antes da peça, é apresentada uma lista de personagens. No
entanto, este aspecto do romance será tratado mais adiante. Por ora cabe ressaltar que se trata de mais um gênero
que compõe a narrativa.
11
Como depois da publicação de contos como “Pierre Menard, autor del Quijote” (2005), de Borges, ficou difícil
acreditar em tudo que os narradores contemporâneos afirmam, realizamos uma pesquisa a fim de constatar se tais
personagens históricos realmente existiram. Nossa pesquisa, ainda que superficial, comprovou a existência de
todos eles, sendo que as características atribuídas pelo autor conferem com as deixadas pelos biógrafos e
estudiosos do século XVII.
70
ler de várias formas, e não existe lei que determine como devem ler, porque
em geral utilizam o texto como um receptáculo de suas próprias paixões, as
quais podem ser exteriores ao texto ou provocadas pelo próprio texto. (1999,
p.14)
Este leitor empírico pode, inclusive, mudar o sentido de uma narrativa por causa de
alguma experiência por ele vivida. Uma pessoa que está triste por uma frustração amorosa,
por exemplo, ao ler uma comédia pode não achá-la engraçada ou não rir nem mesmo nas
cenas burlescas, mas é seu estado de espírito que está influenciando sua leitura. O leitor-
modelo não é assim, ele não é influenciado por sentimentos externos ao texto.
O leitor-modelo, portanto, é aquele que o escritor tem em mente quando escreve um
texto: “uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda
procura criar.” (p.15). Eco destaca que durante uma leitura cabe observar as regras do jogo, e
que o leitor-modelo é alguém que está ansioso para jogar (p. 16).
Da mesma forma, como o leitor-modelo é uma criação, o autor-modelo também o é.
Quem determina as regras do jogo e as limitações? Em outras palavras,
quem constrói o leitor-modelo? [...] Mas, depois de estabelecer com tanta
dificuldade a distinção entre leitor-modelo e leitor empírico, cabe-nos ver o
autor como uma entidade empírica que escreve a história e decide que leitor-
modelo lhe compete construir, por motivos que talvez não possam ser
revelados e que só seu psicanalista conheça? Deixem-me dizer que não tenho
o menor interesse pelo autor empírico de um texto narrativo (ou de qualquer
outro texto, na verdade). (1999, p. 17)
Para Eco o que importa é o autor-modelo, que surge com o texto, numa espécie de
jogo que às vezes tem como finalidade ludibriar o leitor. Ele destaca o fato de que alguns
livros escritos em primeira pessoa podem levar o leitor ingênuo a pensar que o “eu” do texto é
o autor, mas, evidentemente, não é; é o narrador, a voz que narra. Ele cita como exemplo P.
G. Wodehouse que escreveu na primeira pessoa as memórias de um cachorro – “uma
demonstração incomparável de que a voz que narra não é necessariamente a do autor.” (p. 19-
20).
Existem, portanto três entidades: um escritor; um narrador (que diz “eu” na narrativa),
e um autor-modelo, que em geral é difícil de identificar (nada sabemos sobre ele a não ser o
que essa voz diz entre o primeiro e o último capítulos da história), e que, muitas vezes, se
identifica com o que a teoria literária chama de estilo:
O autor-modelo é uma voz que nos fala afetuosamente (ou imperiosamente,
ou dissimuladamente), que nos quer a seu lado. Essa voz se manifesta como
uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos são dadas passo
a passo e que devemos seguir quando decidimos agir como o leitor-modelo.
(1999, p. 21)
71
O leitor-modelo é criado com o texto e aprisionado a este, ele somente usufrue da
liberdade que o próprio texto lhes dá. Desta forma, seguindo o modelo proposto por Eco ao
analisar Gordon Pym, de Poe, podemos observar que em O doente Molière, o Marquês
Anônimo que é o narrador, constrói seu discurso com a intenção de fazer o leitor acreditar que
se trata do autor empírico da obra, pois descreve seu método criativo, além de afirmar que se
trata de uma história verdadeira.
No entanto, alguns elementos da narrativa nos apontam o autor-modelo que é o
responsável pela criação do narrador, assim como de tudo que não faz parte do texto
narrativo, ou seja, os paratextos
12
: lista de personagens, nota explicativa sobre a grafia do
nome de Molière, os apêndices, ou textos complementares: “Sobre o escritor-personagem”.
Nos dois últimos casos, como já referimos, aparece a assinatura “R. F.”, no entanto não se
trata do escritor empírico Rubem Fonseca, mas do autor-modelo, que pode até mesmo possuir
o mesmo nome, mas que é construído a partir da mesma matéria que todos os outros
personagens, ele é construído pelo discurso.
A partir deste momento o leitor tem certeza de que o Marquês Anônimo, assim como
Pym, é um personagem fictício que faz parte da história, mas não dos paratextos. Além disso,
seu nome é incluído na lista de personagens como “único personagem fictício.” (FONSECA,
2000, p. 27)
Voltando ao gênero autobiográfico, vemos que outro aspecto que chama a atenção
quando pensamos na possibilidade de autobiografia é o fato de o Marquês contar os detalhes
de sua vida de uma maneira muito aberta, de modo a não excluir nem mesmo seus “defeitos”,
expondo sua vida sexual e sua vaidade ao leitor. Porém, ele faz isso anonimamente. Lejeune
diz que é impossível que a vocação autobiográfica e a paixão pelo anonimato coexistam no
mesmo ser, pois o que define realmente uma autobiografia para quem a lê é o pacto, é a
identidade selada pelo nome próprio, pois de outra forma o leitor não teria como saber quem é
realmente o “eu”. (LEJEUNE, 1975, p. 33)
É por isso que mais uma vez ressaltamos que se trata aqui de um romance pós-
moderno, pois a presença da paródia dos gêneros é constante e há uma “subversão” das regras
clássicas dos gêneros, que são mesclados conscientemente, culminando em um texto que
propicia leituras a partir de diferentes perspectivas.
12
Adotamos aqui a definição de paratexto desenvolvida por Gérard Genette, em seu Palimpsestes, que afirma
ser este o segundo tipo de transtextualidade por ele analisado. Os paratextos constituem uma relação, geralmente
menos explicita e mais distante, mas que é responsável pelo formato da obra literária. Seriam entre outros
exemplos de paratextos o título, o subtítulo, a nota de rodapé, a epígrafe, o prefácio, posfácio. (GENETTE,
1997).
72
Contudo, ao analisarmos o modo de construção do romance, vemos que a mescla
genérica e também temática nele existentes não é desinteressada ou casual, pois em meio ao
principal tema aparente, que é o assassinato de Molière, o narrador constrói, com o auxílio da
paródia, um panorama do século XVII francês, discute questões literárias, provoca a releitura
de muitas obras por meio da intertextualidade, desenvolve comentários sobre o papel do
escritor e a questão do talento, além de levar o leitor aos palcos em que Molière encenou suas
peças, numa tentativa de resgatar o sentido e o efeito que elas provocavam na buliçosa corte
de Luís XIV.
É importante observar como aparece habilmente a problemática do século XVII a
respeito da querela entre os intelectuais que queriam manter na literatura a tradição clássica,
como Ronsard, que chefiava o grupo que se empenhou em afastar a tradição poética medieval,
a base de estudo e imitação da poética clássica e da utilização do soneto, da ode e do verso
alexandrino (defendido também por Boileau em sua Art Poétique) – e que se tornou o período
de ouro da literatura francesa, com as obras principais de Corneille, Racine, Molière, La
Fontaine, Bossuet, La Rochefoucauld, todos escritores que aparecem em O doente Molière); e
os que queriam inovar trazendo para a arte temas de extração popular, como é o caso de
Perrault.
Este foi um momento muito importante porque enquanto em outros países, como a
Inglaterra, a prosa de ficção já havia conquistado grande parte do público leitor, fazendo um
grande sucesso, na França, alguns intelectuais ainda insistiam em negar a importância dos
gêneros que em menor ou maior grau, ditariam os elementos que configuram o romance.
Como o Marquês queria ser escritor e, segundo Racine, não dominava as técnicas e
não possuía talento para isso, o dramaturgo lhe sugere que escreva cartas, já que não requeria
muito esforço e domínio das regras clássicas. Portanto, vemos que a prosa, neste momento, na
França, é relegada ao segundo plano, é uma forma literária secundária, reservada aos que não
possuíam talento. Ciente disso, Rubem Fonseca escolhe justamente a narrativa em prosa para
expor esta temática, uma forma de narrativa que acima de todas sabe se debruçar sobre si
mesma e se mostrar autoconsciente da sua constituição híbrida, paródica e “transgressora” – o
romance pós-moderno.
No capítulo que dedica ao plurilingüismo no romance, Bakhtin define como
construção híbrida o enunciado que, segundo índices gramaticais (sintáticos) e
composicionais, pertence a um único falante, ou seja, um único autor; mas onde, na verdade,
73
se confundem dois enunciados, dois modos de falar, dois estilos, duas linguagens, duas
perspectivas semânticas e axiológicas.
Entre esses enunciados, estilos, linguagens, perspectivas, não há nenhuma
fronteira formal, composicional ou sintática: a divisão das vozes e das
linguagens ocorre nos limites de um único conjunto sintático,
freqüentemente nos limites de uma proposição simples, freqüentemente
também, um mesmo discurso pertence simultaneamente às duas línguas, às
duas perspectivas que se cruzam numa construção híbrida, e, por
conseguinte, tem dois sentidos divergentes, dois tons [...]. As construções
híbridas têm importância capital para o estilo romanesco. (1990, p.110-111)
Além de destacar a importância das construções híbridas no romance, o teórico russo
aponta para o fato de este gênero, exatamente por ser muito jovem e estar em constante
evolução, admitir que sejam introduzidos em sua composição diferentes gêneros. Estes
gêneros podem ser tanto literários: novelas, peças líricas, poemas; como extraliterários:
científicos, religiosos, retóricos. O romance, portanto, desde sua criação sempre incorporou
em seu interior outros gêneros, sendo que estas mesclas sempre foram realizadas pelos
escritores e são responsáveis por sua característica fundamental, que é a de ser um gênero
inacabado.
E, sendo assim, para Bakhtin, uma das formas mais importantes e substanciais de
introdução e organização do plurilingüismo no romance são os gêneros intercalados.
Existe um grupo especial de gêneros que exercem um papel estrutural muito
importante nos romances, e às vezes chegam a determinar a estrutura do
conjunto, criando variantes particulares do gênero romanesco. São eles: a
confissão, o diário, o relato de viagens, a biografia, as cartas, e alguns outros
gêneros. Todos eles podem não só entrar no romance como seu elemento
estrutural básico, mas também determinar a forma do romance como um
todo (romance-confissão, romance-diário, romance epistolar, etc.). (1990, p.
124).
Como podemos perceber, todos estes gêneros compõem o que se convencionou
chamar de narrativas do “eu”. Como aponta Sandra Guardini em seu texto “Ascensão do
romance” (2002, p. 9), o processo de formação e ascensão do romance na Inglaterra do século
XVIII encontrou um quadro bem definido no que diz respeito aos modelos estéticos e
literários à sua disposição. Como exemplo disso, ela destaca a popularidade dos “romances”
de educação de Fénelon e a voga da ficção heróico-galante representada pelos “romances” de
Honoré d’Urfé, Mlle. de Scudéry, La Calprenède. Estes “romances” citados por Vasconcelos
não correspondem ao sentido de romance como gênero, mas à acepção de estória romanesca.
74
Eis algumas de suas características: são muito longos e cheios de complicações; possuem
enredos frouxos; apresentarem um mundo aristocrático, artificial e idealizado.
Além desses tipos de narrativa, Vasconcelos aponta para o fato de que numa vertente
mais realista, existiam romances de costumes ou picarescos, como ou de Scarron ou de Sorel,
ou ainda, as narrativas picarescas espanholas (Lazarillo de Tormes, Dom Quixote), que faziam
grande sucesso. Ainda havia uma linha de produção ficcional doméstica: biografias de
criminosos e prostitutas, literatura de viagem, com suas histórias de peregrinos, viajantes e
piratas, e as novelas de amor e novelas pias. (VASCONCELOS, 2002, p. 10)
Como podemos observar, muitos dos gêneros e escritores citados por Vasconcelos,
que faziam sucesso na Inglaterra e que deixaram marcas que o romance iria aproveitar, eram
franceses. Portanto, o fato é que havia outras vertentes da literatura francesa, além da tragédia.
Contudo, alguns grupos conservadores procuravam negar a importância das narrativas em
prosa, relegando-a aos gêneros “baixos”, não lhes dando o status de que a tragédia dispunha
naquele momento. Contudo, esta situação estava prestes a mudar.
É por esta razão que é sintomático o trabalho de Fonseca de retomar gêneros que
faziam parte da tradição literária francesa (ainda que em segundo plano) para utilizar como
metáfora da morte do teatro clássico, já que a peça que serve como substrato motivador para o
romance é O doente imaginário, peça na qual após a atuação Molière morreu. E junto com ele,
simbolicamente, a grande era do teatro clássico.
Se o século XVII foi o século do teatro e dos grandes dramaturgos em toda Europa, o
século XVIII será o século do romance, gênero que vindo de baixo, aos poucos foi ganhando
todas as atenções tanto dos escritores como também do público leitor.
Uma das principais características deste novo gênero é sua relação com o tempo,
diferentemente da epopéia que cantava um passado distante e absoluto, o romance se volta
para a atualidade e se propõe a fazer uma representação da realidade. No caso de O doente
Molière, esta representação acaba sendo uma representação tanto da corte francesa do século
XVII como também da literatura ocidental de todos os tempos, pois o que parece que ser o
verdadeiro tema – a história secreta desta narrativa –, é a morte da épica e o nascimento de um
gênero que se adéqua perfeitamente às características do tempo em que se desenvolve.
No próximo capítulo trataremos mais a fundo da questão da versão histórica contada
por O doente Molière tendo como base o conceito de metaficção historiográfica, criado por
Linda Hutcheon (1991).
75
CAPÍTULO II
METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA: OS PARADOXOS DA PÓS-MODERNIDADE E A
“PRESENÇA” DA HISTÓRIA EM O DOENTE MOLIÈRE
2.1. O conceito de metaficção historiográfica e de paródia
Quando falamos sobre o pós-modernismo, no capítulo anterior, observamos que,
segundo Linda Hutcheon, em sua Poética do Pós-modernismo (1991), a partir da década de
70 estabeleceu-se na Europa e nas Américas um novo movimento estético que trouxe várias
inovações na arte de modo geral, e que na literatura tem se expressado com o que ela nomeia
de metaficção historiográfica. O princípio básico deste paradigma é de que se trata de um
momento paradoxal em sua própria essência que, ao contrário de uma mudança utopicamente
radical, como assinalam alguns de seus opositores, é uma nova forma de refletir sobre vários
aspectos da cultura. Ela faz questão de salientar que não se trata de uma ruptura com as
teorias anteriores, mas de uma nova forma de trabalhar com a cultura, que é “uma tentativa de
verificar o que ocorre quando [ela] é desafiada a partir de seu próprio interior: desafiada,
questionada ou contestada, mas não implodida.” (HUTCHEON, 1991, p. 16).
Assim, o que está sendo contestado pelo pós-modernismo são os princípios da
ideologia dominante, desde a noção de originalidade e autoridade autorais até a separação
entre o que é estético e político.
O pós-modernismo ensina que todas as práticas culturais têm um subtexto
ideológico que determina as condições da própria possibilidade de sua
produção ou de seu sentido. E, na arte, ele o faz deixando visíveis as
contradições entre sua auto-reflexividade e sua fundamentação histórica.
(HUTCHEON, 1991, p. 15)
O pós-modernismo trouxe para as artes em geral grandes inovações que são, na
verdade, reflexos de como o ser humano vê a si mesmo em pleno fim do século XX e início
do XXI. No século XIX, por exemplo, era possível acreditar em uma literatura que atingisse
uma representação satisfatória, porque convincente, da realidade humana. Contudo, com o
desenvolvimento das ciências e tecnologias que trouxeram provas cada vez mais claras de que
o ser humano é um ser muito complexo, a literatura e as artes também sofreram mudanças. A
consciência profunda de que o processo de escrita é uma construção que recebe influências
76
externas a ele, mesmo quando o escritor procura alcançar ao máximo a objetividade, provocou
questionamentos e reflexões importantes para a configuração do novo panorama artístico e
literário.
Se a literatura é uma forma de expressão do homem, ela deve estar de acordo com as
características deste homem. E se ele não é simples, por que ela seria? Por isso vemos
surgirem novas estéticas em todas as formas de expressão artística, que tentam dar conta da
representação do ser humano em toda a sua complexidade; por isso Hutcheon diz que o que
ela nomeia de pós-modernismo é:
Fundamentalmente contraditório, deliberadamente histórico e
inevitavelmente político. Suas contradições podem muito bem ser as mesmas
da sociedade governada pelo capitalismo recente, mas, seja qual for o
motivo, sem dúvida essas contradições se manifestam no importante
conceito pós-moderno de “presença do passado” (HUTCHEON, 1991, p.20)
Mas essa consciência da “presença do passado” não leva a um retorno nostálgico e sim
a uma reavaliação crítica, um diálogo irônico com o passado da arte e da sociedade, que
problematiza suas formas estéticas e suas formações sociais através da reflexão crítica. É com
base em tais reflexões que lemos O doente Molière, pois não se trata de uma obra que trabalha
com uma visão nostálgica e idealizadora do século XVII, mas que, a partir de um diálogo
crítico que constata e avalia com ironia e com afastamento este passado, o dessacraliza.
Além disso, é importante lembrar o que diz Hutcheon (1991) quando trata da questão
da história na pós-modernidade: segundo ela, o pós-modernismo foi muito criticado por seus
detratores que o acusavam de “anistórico”. Para ela, isso não é uma verdade, pois o pós-
modernismo tem como uma de suas principais características o voltar-se para a história com
um olhar crítico e estabelecer uma relação deste passado com o presente.
A fim de desenvolver essa tese, Hutcheon aprofunda o seu estudo no que denomina de
metaficção historiográfica que, como já dissemos, é um elemento pós-moderno refletido na
literatura e que trata desta relação contraditória e complexa do passado com o presente e da
história com a ficção. Ela utiliza como exemplo o romance A mulher do tenente francês, de
Fowles, e afirma:
Entretanto, essa paródia ampla e complexa não é apenas um jogo para o
leitor acadêmico. Ela tem a declarada intenção de impedir que qualquer
leitor ignore o contexto moderno e o contexto social, e também estético,
especificamente vitoriano. Também não podemos dizer que se trata de “uma
simples estória” ou que fala “apenas sobre o período vitoriano”. O passado é
77
sempre colocado criticamente – e não nostalgicamente – em relação ao
presente. (HUTCHEON, 1991, p. 70)
Assim também acontece com O doente Molière, no qual, embora a trama se passe na
corte do rei Luís XIV, em pleno século XVII, a paródia configurada no texto também deixa
claro que, mesmo falando da França absolutista, vêm à tona questões contemporâneas. Assim
como em A mulher do tenente francês, questões como a sexualidade, a ciência, a religião, o
poder e a relação do mundo com a arte, além da criminalidade, são colocadas em causa e
dirigidas ao leitor do século XX, juntamente com as convenções literárias do passado.
Hutcheon afirma ainda que a crescente uniformização da cultura de massa é uma das
forças totalizantes que o pós-modernismo desafia. Desafia mas não nega, pois o que ele tenta
fazer é mostrar a existência das diferenças e não a identidade hegemônica, como a maioria
dos teóricos afirma. (1991, p.22) É por esta razão que os escritores do pós-modernismo
conseguem produzir obras que alcançam um grande sucesso tornando-se best sellers, mas que
ao mesmo tempo trazem discussões tão importantes como, por exemplo, sobre a maneira
como a história oficial foi escrita e de que forma ela é lida na atualidade, além de resgatar
aqueles que sempre permaneceram fora do discurso da história, mas que foram parte
constituinte dela.
Hutcheon explica o motivo de privilegiar, dentre as outras manifestações artísticas, o
gênero romance, e especialmente uma de suas formas, que é o que ela denomina de
metaficção historiográfica, pelo fato de serem obras que refletem uma intensa auto-
reflexividade e que mesmo assim alcançam um grande público. Além disso, são paradoxais e
se apropriam de fatos e personagens históricos com o intuito de repensar a história.
Portanto, como vimos, a metaficção historiográfica é uma das faces mais exploradas
pelo romance pós-moderno, muito embora o pós-modernismo tenha sido acusado de ser
anistórico. Hutcheon afirma que um dos poucos denominadores comuns entre os
depreciadores do pós-modernismo – marxistas e tradicionalistas – é a concordância de que
este paradigma apresenta relutância em conhecer “a realidade do tempo passado e dos
acontecimentos anteriores”, como afirma o historiador David Fischer, ou ainda como Hayden
White, que declarou que a literatura contemporânea (pós-moderna) tem como característica “a
convicção subjacente de que a consciência histórica precisa ser eliminada” (HUTCHEON,
1991, p.121-122).
No entanto, a teórica do pós-modernismo explica que ao invés de querer eliminar a
história ou relutar em conhecer a realidade dos acontecimentos do passado, o pós-modernismo
78
busca enfrentar o “pesadelo da história”, pois pensa nela, crítica e contextualmente, através da
consciência de que o passado realmente existiu, mas que só podemos ter notícias dele por
meio da historiografia, ou seja, de um discurso histórico e ideologicamente determinado.
(HUTCHEON, 1991, p. 121 e 126).
Citando o texto “History and Literature: Branches of the same tree” de Russel Nye,
Hutcheon nos aponta a condição da história e da literatura, que até o século XIX eram
consideradas ramos de uma mesma árvore do saber que procurava interpretar a experiência,
com o objetivo de aceitar e elevar o ser humano.
Portanto, como aponta Peter Burke, não é de se estranhar o fato de que em uma época
em que a história era vista como gênero literário, Luís XIV tenha nomeado como seus
historiógrafos oficiais o poeta Boileau e o dramaturgo Jean Racine, que teriam dedicado
muitos anos para produzir uma história de seu reino completamente voltada para a ostentação
da glória do Monarca. Naquele momento
esperava-se que uma obra de história incluísse uma série de passagens
primorosas dedicadas ao “caráter”, ou retrato moral, do soberano, de um
ministro ou de um comandante, o vívido relato de uma batalha e a
apresentação de debates, com falas atribuídas a participantes eminentes (mas
freqüentemente inventadas pelo historiador). (BURKE, 1994, p.36)
A história era escrita, portanto, para celebrar a grandiosidade dos poderosos e para
manter no consciente coletivo o fato de terem existido grandes heróis; por isso podia ser
representada com todas as tintas que a imaginação dos literatos pudesse conceber, incluindo
as invenções.
No entanto, no século XIX isso mudou radicalmente e houve uma separação que levou
ao surgimento das duas disciplinas, tal como as conhecemos atualmente, e a história, a partir
dos estudos de Ranke, passou a ser entendida como um discurso científico. Desta forma, a
separação entre os estudos históricos e a literatura se acentuou, ainda que existissem algumas
características comuns às duas. É por esta razão, pela consciência de que as duas disciplinas
não são tão distantes assim que a teoria e a arte pós-modernas têm contestado esta separação
entre o literário e o histórico e pensado mais em suas semelhanças que em suas diferenças.
Dentre as semelhanças apontadas pela teoria pós-moderna estão o fato de ambas
terem sua força pautada na verossimilhança, ambas serem identificadas como construtos
lingüísticos, convencionalizadas em suas formas narrativas e nada transparentes em termos de
linguagem ou estruturas e, além disso, acrescenta-se o fato de que ambas parecem ser
79
intertextuais, pois desenvolvem os textos do passado com sua própria textualidade complexa.
(HUTCHEON, 1991, p. 141)
Portanto, o exercício feito pela pós-modernidade é o de voltar a ligar as duas
disciplinas, mas por meio de outro viés, por meio da consciência de que ambas são versões,
produtos de uma sociedade com leis, ideologias e preconceitos e que, por serem escritas por
pessoas, não conseguem estar isentas de ter ali registradas suas idéias, suas interpretações,
“invenções”, omissões, etc., mesmo que isso não aconteça intencionalmente.
Outra questão bastante explorada pelo pós-modernismo – e também por outras
correntes como a do novo historicismo – e que surge com força nos romances de metaficção
historiográfica é da história oficial. Segundo muitos teóricos, a história sempre foi escrita
pelos vencedores; desta forma, só houve espaço para um discurso, para uma versão. A
metaficção historiográfica sugere a possibilidade de outras versões, principalmente as
versões dos que nunca tiveram voz, dos ex-cêntricos, para utilizar um termo que Hutcheon
emprega ao falar dos grupos excluídos, sejam eles os negros, as mulheres ou os
homossexuais:
A metaficção historiográfica demonstra que a ficção é historicamente
condicionada e a história é discursivamente estruturada, e, nesse processo,
consegue ampliar o debate sobre as implicações ideológicas da conjunção
foucaultiana entre poder e conhecimento – para os leitores e para a própria
história como disciplina. (HUTCHEON, 1991, p. 158)
Como diz Hutcheon em seguida, ao problematizar quase tudo que o romance histórico
antes tomava como certo, a metaficção historiográfica desestabiliza as noções aceitas de
ficção e história. Não é negada a existência do passado, mas a forma como ele chegou até nós,
pois a ênfase agora recai na consciência de que a história é um construto, um simulacro, e “só
podemos conhecê-lo por meio de seus vestígios, suas relíquias” (HUTCHEON, 1991, p. 158).
Portanto, o romance de metaficção historiográfica nos pede que lembremos que “a própria
história e a própria ficção são termos históricos e suas definições e suas inter-relações são
determinadas historicamente e variam ao longo do tempo.” (HUTCHEON, 1991, p.141)
A discussão sobre a relação entre a arte e a história vem desde Aristóteles, que dizia
que o historiador deveria falar somente sobre o que ocorreu enquanto o poeta falaria sobre o
que poderia acontecer; contudo, isso não impedia que alguns personagens e fatos históricos
aparecessem nas tragédias:
80
Considerava-se que a escrita da história não tinha nenhuma dessas limitações
convencionais de probabilidade ou possibilidade. No entanto, desde então
muitos historiadores utilizaram as técnicas da representação ficcional para
criar versões imaginárias de seus mundos históricos e reais (ver Holloway
1953; G. Levine, 1968; Braudy 1970; Hederson 1974). O romance pós-
moderno fez o mesmo, e também o inverso. Ele faz parte da postura pós-
modernista de confrontar os paradoxos da representação fictícia/histórica, do
particular/geral e do presente/passado. E, por si só, essa confrontação é
contraditória, pois se recusa a recuperar ou desintegrar qualquer um dos
lados da dicotomia, e mesmo assim está mais do que disposta a explorar os
dois. (HUTCHEON, 1991, p. 142).
Assim como a ficção histórica e a história narrativa, a metaficção também se preocupa
com o problema da natureza dos fatos e evidências, pois, como já apontamos anteriormente,
os documentos históricos muitas vezes foram e são colhidos por meio de testemunhas. Sendo
assim, como é possível haver neutralidade e objetividade? É esta questão que vai ser
largamente discutida, pois começa a existir a noção de que tudo são versões.
Mas mesmo assim a teoria pós-moderna sofreu acusações de ser anistórica por muitos
de seus detratores; contudo, ela se abriu ainda mais para a história. Isto, no entanto, não pôde
ser feito de uma forma inocente, já que a presença do passado se dá a partir dos textos – sejam
eles históricos ou literários. Por isso, embora os romances de metaficção histórica se situem
dentro do discurso histórico, eles se recusam a perder sua autonomia de ficção. Um dos
elementos mais utilizados nesta reconstrução do passado, já que isso não pode acontecer
inocentemente, é a paródia que é abordada de outra maneira, pois Hutcheon, em Uma teoria
da paródia (1985), propõe um novo estudo sobre este elemento retomado na pós-
modernidade, abordando-o através de uma perspectiva diferente das que eram conhecidas até
então.
O que Hutcheon apresenta é um estudo que não trata a paródia apenas como
ridicularização de uma obra anterior e que não está ligada somente à sátira (que, ao contrário
da paródia, simultaneamente tem alcance moral e social e intenção aperfeiçoadora), como
propunham outros teóricos mais antigos. Ela afirma que a grande maioria das teorias
existentes que tratam da paródia parte do sentido etimológico da palavra, em que “para” é
traduzido como “contra”, “oposição”; portanto, paródia seria o canto paralelo, que confronta
um texto anterior com intenção de zombar dele ou de torná-lo caricato (HUTCHEON, 1985,
p.48). Entretanto, a teórica canadense lembra que este não é o único significado de “para”:
“em grego também pode significar ‘ao longo de’, e, portanto existe uma idéia de um acordo
ou intimidade, em vez de um contraste.” (HUTCHEON, 1985, p.48).
81
É nesta segunda acepção etimológica da palavra que ela vai basear seu estudo e
mostrar que a paródia, principalmente a pós-moderna, não pode ser vista somente como
oposição e ridicularização. Mas como uma forma, no caso dos romances de metaficção
historiográfica, de incorporar literalmente o passado textualizado no texto do presente.
Tendo isto em vista, é importante lembrar que paródia é repetição; porém, é repetição
com diferença, e não simples cópia, sendo esta incorporação feita reflexivamente e buscando
recontextualizar e reelaborar convenções, usando a ironia para depreciar ou enaltecer e criticar
tanto construtiva como destrutivamente os textos do passado.
2.2. Elementos pós-modernos na literatura fonsequiana
Depois de explicar o modo pelo qual entendemos, neste estudo, os conceitos de pós-
modernidade e de metaficção historiográfica, tomando como base a teoria de Hutcheon
(1991), passaremos, neste tópico, a uma análise do romance de Fonseca, na tentativa de
identificar como a presença do passado é assimilada em O doente Molière.
Se retomarmos o texto de Figueiredo (2003), poderemos observar que o que
caracteriza essa fase atual da literatura histórica, é a “descrença dos tempos atuais”
(FIGUEIREDO, 2003, p. 132). E, portanto, são obras que vêem a história como uma farsa
burlesca que diverte o público e reforça a idéia de que, ontem como hoje, tudo se resume
“numa comédia, encenada por arrivistas, a se repetir eternamente.” (p. 132).
A obra de Fonseca é um exemplo disso, pois, como a própria Figueiredo lembra, os
personagens dos romances do ex-delegado de polícia são arquétipos de Dom Juan; portanto,
mais de três séculos depois ainda é possível encontrar os mesmos tipos espalhados por aí.
Com a consciência trazida pelas novas teorias e reforçada pelo pós-modernismo de
que tudo são versões e de que a escrita passa por um filtro que é o escritor, formado e
condicionado conforme as ideologias e leis do meio em que vive, e que por mais objetivo que
este queira ser sempre terá que fazer escolhas, o escritor ganha autonomia para escrever sua
própria história e as pesquisas documentais e o exercício da imaginação funcionam como
elementos para a composição do enredo.
O que diferencia este novo romance histórico daquele que fundou as bases do gênero é
que hoje estes dois elementos – história e ficção – estão no mesmo nível, sendo que o autor
82
não precisa escolher entre inventar ou narrar história, ele pode contar história burlando os
fatos, inventando outros e/ou escondendo-os, mas sempre optando por um olhar que tente
preencher o espaço vazio deixado pela ausência de projeto e, por isso, sua
ação corrosiva não tem um alvo determinado, absolutiza-se. Trabalha-se com
a crítica de costumes, trazendo à luz aspectos dissolutos da vida privada,
motivações mesquinhas que pautam as ações dos poderosos e, em alguns
casos, mantém-se um nível de heroicização de alguns personagens
históricos, cuja biografia, reproduzida no romance, desperta a curiosidade do
leitor. (FIGUEIREDO, 2003, p. 132-133)
Neste trecho estão resumidos os artifícios que a nosso ver são os mais amplamente
utilizados por Fonseca na construção de O doente Molière. Através de uma crítica de
costumes que deflagra desde os modismos tolos até o aspecto moral da sociedade parisiense
do século XVII, ele consegue apontar para o leitor do século XX as heranças do passado que
ainda resistem em nosso meio.
Ao retomar a peça Les précieuses ridicules, de Molière, através de seu personagem-
narrador, Fonseca introduz uma discussão sobre questões que têm sido tema de muitas
reflexões na pós-modernidade, como, por exemplo, a da leitura e do conhecimento. No
entanto, ele assinala para o fato de que Molière também se preocupava com isso, pois de uma
maneira extremamente irônica ele apresenta as duas personagens Cathos e Magdelon,
preocupadas com a quantidade de obras que chegariam a seu conhecimento para garantir a
conversação nos salões, ao mesmo tempo em que não se preocupam com a qualidade do que
estava sendo escrito. Mascarille fala às duas tolas preciosas, personagens da peça de Molière,
na adaptação feita pelo Marquês para a abertura do capítulo cinco:
Eu vos prometo que não se fará um verso em Paris que não seja do vosso
conhecimento antes de todo mundo. Vereis correr pelos belos salões de Paris
duzentas canções, igual número de sonetos, quatrocentos epigramas e mais
de mil madrigais, sem contar os enigmas e os retratos de minha autoria.
13
(FONSECA, 2000, p.56)
Antes dessa fala, Magdelon dizia que era muito importante saber tudo o que acontecia
no meio intelectual, que fulano escreveu a mais bela trova do mundo, que certo senhor
escreveu uma sextilha a uma dama, que beltrana escreveu uma ária, entre outras coisas;
13
Fonseca utilizou quase que na íntegra a frase do personagem de Molière, pois na versão original lemos:
“Je vous promets qu’il ne se fera pas un bout de vers dans Paris que vous ne sachiez par coeur avant tous les
autres. Pour moi, tel que vous me voyez, je m’encrime un peu quand je veux ; et vous verrez courir de ma façon,
dans les belles ruelles de Paris, deux cents chansons, autant de sonnets, quatre cents épigrammes et plus de mille
madrigaux, sans compter les énigmes et les portraits.” (MOLIÈRE, v. I, 1956, p. 231-232)
83
enquanto Cathos dizia que achava ridículo uma pessoa se considerar espirituosa sem conhecer
as trovas que são feitas todos os dias e que morreria de vergonha se lhe perguntassem sobre
alguma novidade que não conhecesse.
Desta forma, ao retomar a sátira de Molière em que Mascarille exagera
desmedidamente os números de obras que elas iriam conhecer, Fonseca intensifica o trabalho
do dramaturgo francês e faz com que as duas deslumbradas pareçam ainda mais ridículas.
Além disso, o escritor brasileiro está novamente trabalhando nas entrelinhas de sua história
secreta a questão da literatura ocidental, da formação da tradição e do leitor.
Outro aspecto presente na obra de Molière apresentado ao público contemporâneo por
Fonseca é o do fanatismo religioso, ou o do uso da religião como forma de subjugar as
pessoas. O Marquês Anônimo, ao relembrar a primeira apresentação de Tartufo ainda
incompleta, mostra que, por ser uma crítica à Igreja, a peça é rapidamente interditada e,
mesmo depois de ter sido revisada e atenuada a ligação entre o perverso Tartufo e a religião,
foi alvo de inúmeras calúnias, libelos e, por parte de alguns religiosos, a tentativa de
conseguir uma punição definitiva a Molière.
Em várias de suas peças, como na citada anteriormente, em Escola de mulheres, e
muitas outras, o dramaturgo defende a idéia de que os beatos e padres, em sua maioria, eram
verdadeiros tartufos e que o ensino religioso nos conventos estava totalmente equivocado. Por
esta razão ele faz um grande número de inimigos, pois o poder da Igreja junto ao Estado
francês era muito grande.
O Marquês, como bom memorialista que é, não poderia deixar de contar esse episódio
da vida de Molière, em que o dramaturgo foi chamado de “encarnação do demônio” em um
libelo assinado pelo padre Roullé:
Logo que fundada a Companhia do Santo Sacramento tinha muito poder
junto à Igreja. Richelieu, quando principal ministro de Luís XIII, usara a
Companhia para dar uma interpretação jesuítica ao Edito de Nantes, de
maneira a prejudicar os protestantes, que estavam autorizados a praticar a
sua religião. Luís XIV, anos depois, sem precisar do apoio da Companhia,
revogaria o Edito, acabando totalmente com a liberdade religiosa e alguns
privilégios dos protestantes, o que provocou a fuga de centenas de milhares
de huguenotes para países protestantes. (FONSECA, 2000, p. 71-72)
Neste trecho, por meio do discurso ficcional do Marquês Anônimo, Fonseca introduz
reflexões sobre a historiografia, pois os fatos apontados pelo narrador são verídicos, ou seja,
constam na história oficial, podem ser comprovados pelos biógrafos do dramaturgo.
84
Molière era um poeta excepcional e, mesmo quando obrigado a retirar trechos de suas
peças e a fazer mudanças para agradar o rei e o clero, deixava entrever ainda alguma revolta.
Com sua habilidade, conseguia ao mesmo tempo enaltecer e criticar. Um trecho de Tartufo
citado pelo narrador de Fonseca mostra esta habilidade do dramaturgo: Orgon, que fora
enganado por Tartufo, e seu filho Damis, querem puni-lo pela força, então Cléante, seu tio
intercede: “Vivemos numa época e sob um governo em que não se deve recorrer à violência.”
14
(p. 72)
O mesmo escritor que vê injustiças sendo cometidas e a força do poder e do dinheiro
sendo empregadas é “obrigado” a colocar estas frases na boca de um de seus personagens.
Esta leitura contemporânea, que está afastada temporal e ideologicamente do século XVII,
chega ao leitor do século XX de modo irônico, principalmente quando é retomada pelo
Marquês Anônimo que se coloca como uma voz dissonante da oficial, desnudando toda a
hipocrisia de sua sociedade.
O trabalho do Marquês, segundo ele, é o de tentar fazer justiça a seu amigo,
descobrindo quem o envenenou. Contudo, podemos fazer um paralelo com o trabalho
“quixotesco” a que Figueiredo se refere ao analisar a situação do detetive Mandrake, em A
grande arte:
A figura do detetive que persegue o profissional do crime, que sai em busca
de um culpado, se revela obsoleta, já que existe toda uma engrenagem
anônima a sustentar a violência nas grandes cidades que torna quixotesco o
confronto individual com o mundo do crime. (FIGUEIREDO, 2003, p.46).
Isto nos faz pensar na busca do Marquês em desvendar os acontecimentos que
envolveram a morte de Molière, pois, se ele foi mesmo envenenado como confessou ao
Marquês durante sua agonia, e tendo ele tantos inimigos poderosos querendo calá-lo, esta
busca também se torna vã, pois a descoberta do assassino não elimina o fato de que outra
pessoa pudesse tê-lo matado. Além disso, outros aspectos contribuem para que o trabalho do
Marquês se configure como uma empresa quixotesca. O primeiro é o fato de o Marquês não
poder acionar a polícia e nem utilizar outro meio legal, já que se sentia acuado, com medo de
ser envolvido nos assassinatos que sua amante, Madame de Brinvilliers, havia cometido.
14
Aqui também Fonseca foi fiel ao texto de Molière, que em francês é:
“Nous vivons sous un règne et sommes dans un temps
Où par la violence on fait mal ses affaires.” (MOLIÈRE, v. I, 1956, p. 759)
85
O segundo é que os crimes por envenenamento proliferavam na corte de forma
assustadora. No romance o Marquês Anônimo alude a um episódio em que até mesmo um
padre chegou a procurar o chefe da polícia de Paris para lhe contar que muitas pessoas haviam
se confessado dizendo terem cometido assassinatos com venenos. Desta forma, em uma
investigação superficial, sem ajuda de meios eficientes como a tortura – muito empregada na
época – seria impossível descobrir quem teria comprado o veneno que matou Molière.
E por último, um outro fator que leva a pensar no aspecto quixotesco é o encerramento
das investigações que estavam sendo feitas a mando do rei que, ao constatar que uma de suas
amantes estava envolvida em crimes desta natureza, decidiu mandar encerrar os processos
para não criar maiores complicações.
Portanto, de certa forma, o Marquês Anônimo e Mandrake têm obstáculos parecidos
no desempenho de suas buscas pelos assassinos. No entanto, nos dois casos, somos levados a
desconfiar da versão dos narradores, pois eles narram de uma maneira onisciente e são ao
mesmo tempo criadores e intérpretes de textos. (FIGUEIREDO, 2003, p. 46). Em ambos os
romances (A grande arte e O doente Molière) a narrativa que chega ao leitor passa
duplamente pelos narradores, pois são frutos da análise de anotações e, portanto, subjetivas.
Em O doente Molière a narrativa é duplamente subjetiva já que a narrativa é análise das
anotações do próprio personagem-narrador.
Além disso, o próprio nome, Mandrake – igual ao do ilusionista dos quadrinhos – ou a
ausência dele – Marquês Anônimo – é mais um elemento que os torna passíveis de suspeição.
Figueiredo aponta para o fato de a dúvida em relação à veracidade da narrativa de Fonseca ser
recorrente em sua obra. O leitor é ludibriado o tempo todo e isso faz com que ele não consiga
se acomodar na leitura: é preciso trabalhar e desvendar os crimes do texto. Ela explicita o jogo
criado pelos narradores, que acaba por comprometer até mesmo a figura do leitor, da seguinte
forma:
Ambos os romances mencionados [A grande arte e Bufo & Spallanzani] nos
levam a concluir que se o detetive pode ser o criminoso e se detetive e
narrador se confundem, logo, o narrador pode ser o culpado. Por outro lado,
o narrador se coloca como leitor de textos alheios – documentos, diários, etc.
– a partir dos quais constrói sua interpretação, tornando também tênue [sic]
os limites entre ler e criar. Ora, se é possível o detetive/narrador ser o
criminoso e se este se confunde com a figura de um leitor de textos alheios,
logo diluímos também as fronteiras entre o leitor e o criminoso.
(FIGUEIREDO, 2003, p. 46)
86
Diluídas todas as fronteiras reforça-se a idéia de que todos estão sujeitos à
desconfiança, pois não há mais ninguém acima de qualquer suspeita, portanto, na ficção
fonsequiana a lógica que rege o mundo de seus personagens é a de que todos são suspeitos.
(MARETTI, 1986).
Ainda podemos pensar que o que está por trás destes narradores, tanto os do Rio de
Janeiro contemporâneo como o da Paris do século XVII, é a descrença, o ceticismo. Não é
possível acreditar em mais nada, nem mesmo na justiça, porque, de alguma forma todos eles
também estão envolvidos em injustiças e passam a ser tão suspeitos quanto os verdadeiros
criminosos.
2.3. Em m
eio às fofocas dos bastidores
Um dos personagens históricos mais ilustres que aparece em O doente Molière é o rei
Luís XIV, o “Rei Sol”, como ficou conhecido; ele se tornou um dos símbolos da França e foi
responsável por grandes acontecimentos, como a construção do Palácio de Versalhes e a
transferência da corte para lá, pelo florescimento da cultura e da arte, além, é claro, da
manutenção de um Estado absolutista.
Contudo, o que chama a atenção é, como já apontamos, o esforço empreendido pelo
narrador do romance de Fonseca, no sentido de “eclipsar” a figura do rei. No romance esta
figura quase mitológica é apresentada despida de parte de sua glória, já que o Marquês se
propõe a um trabalho inverso àquele proposto pelo rei e seus ministros. Ou seja, enquanto
Luís XIV tentava entrar para a história como um ser dotado de características sobre-humanas,
comparando-se a deuses, santos e grandes heróis, o Marquês resgata sua humanidade
assinalando as semelhanças entre eles dois e, principalmente, as que o entristeciam pela
comparação. Este narrador, que se coloca no mesmo nível do rei ao usar o pronome “nós”,
não aponta para os traços reais que seriam comuns à literatura do século XVII, como sua
iluminação, sua imponência e generosidade; mas para características que ofuscam seu brilho.
Um exemplo disso é o fato de ter sido enganado por uma de suas amantes:
Sua majestade ocasionalmente revelava manifestações de desagrado em
relação a mim, talvez porque eu não demonstrasse muito entusiasmo ao ser
convidado para caçar com ele. [...] Ou mais provavelmente a causa de nosso
desentendimento fosse termos repartido, durante algum tempo, os favores de
uma jovem e bela condessa. (FONSECA, 2000, p. 25-26)
87
Neste trecho é sintomática a maneira como Fonseca trabalha, em O doente Molière,
com a presença do passado; o processo de incorporação da história oficial visando à criação
de uma nova versão deste momento histórico é alcançado por meio das fofocas, dos
comentários dos bastidores e também por meio da divulgação de intrigas. Afinal, é como um
personagem do filme de Vera Belmont (1997) diz à Marquise, quando esta está prestes a
iniciar sua visita aos salões da corte, “no teatro da realeza, o melhor acontece nos bastidores”.
Um recurso muito utilizado pelo narrador-escritor e que aponta para a forma como os
fatos históricos são incorporados ao romance é a apresentação de seu método de escrita e dos
materiais de que dispõe para escrever a nova versão da morte de Molière, que são as
anotações e as lembranças apócrifas do que acontecia na corte. Desta forma, o que configura
O doente Molière como um romance histórico pós-moderno, é o apelo ao que é extra-oficial,
ao que não está registrado pela história fabricada pelo próprio rei. O Marquês inclui na
narrativa de suas memórias comentários sobre os personagens históricos com os quais
convive, conta o que presenciou ou ouviu de uma maneira muito “natural”. A história, em sua
narrativa, perde o status de ciência para se tornar “fofoca” e, desta forma, constituir uma nova
versão, construída pelo viés do humor e da ironia. No entanto, cabe lembrar que a visão dos
personagens históricos contra a qual o narrador trabalha não é somente aquela do século
XVII, construída pelo próprio rei, mas principalmente a leitura da história feita pelo século
XX.
É assim, por exemplo, que Charlotte-Elisabeth da Baviera, a Princesa Palatina, é
chamada muito intimamente apenas pelo apelido de Liselotte, e o fato de ela ter se convertido
ao catolicismo e perdido os direitos ao trono da Inglaterra para se casar com Monsieur e se
tornar a cunhada do “Rei Sol” ser exposto ao leitor com a mesma naturalidade de uma
conversa íntima.
Outro alvo de seus “mexericos” é o irmão do rei. O Marquês comenta seus hábitos,
seu gosto por festas e por rapazes, o luxo de suas roupas e jóias, além do fato de ele lutar todo
empoado, com os lábios pintados e sem capacete, “para não amassar a peruca”. Além das
fofocas, o Marquês também gosta de incluir em seus relatos as anedotas espalhadas a respeito
das pessoas notáveis. Uma delas, que ele teria ouvido de Liselotte, sobre Monsieur, foi
incluída em suas memórias:
Monsieur é muito supersticioso, você sabe disso, mas descobri nele uma
crendice singular. Ele sempre carrega um rosário e outras relíquias, mesmo
quando vai para a cama. Uma noite dessas, quando Monsieur dormia, eu, já
88
tendo uma idéia do que ia descobrir, levantei as cobertas e verifiquei que
aquela parte do corpo que só os homens possuem estava envolvida por
cordões com pequenas imagens religiosas da Virgem. (FONSECA, 2000, p.
50).
O importante episódio da Fronda, que será detalhado no próximo tópico, também é
introduzido por meio de comentários feitos pelo narrador ao rememorar sua visita ao salão da
duquesa de Montpensier, La grande Mademoiselle, filha do tio de Luís XIV, Gaston
d’Orléans, e que, segundo ele, tomou partido pelos revolucionários neste episódio.
Os dogmas da Igreja Católica, vigentes na época, e o poder por ela conquistado são
representados no romance principalmente através dos problemas enfrentados por Molière com
os padres e abades que queriam proibir suas peças de serem encenadas. Contudo, a nosso ver,
o trecho que melhor deflagra esta questão é o da proibição do sepultamento cristão aos
comediantes que não tivessem renunciado a sua profissão:
Molière não havia feito essa renúncia e não podia ser sepultado em
cerimônia cristã. Os adversários do teatro, notadamente todos aqueles que
execravam o autor de Tartufo e D. Juan e haviam conseguido a interdição
das duas peças, exigiam que se impedisse a realização da cerimônia.
(FONSECA, 2000, p. 24-25)
O sepultamento só pôde ser realizado com a interferência do rei, mas mesmo assim o
dramaturgo sofreu as conseqüências de ter desafiado a Igreja, já que seu enterro teve que
acontecer durante a noite, na ala reservada aos suicidas e pagãos, já que por não ter
renunciado ao teatro, Molière, segundo os princípios da Igreja, não era cristão.
Os usos e modas da corte também são temas de suas memórias, no entanto, o
personagem-narrador, ao falar da maneira de se vestir, na Paris de Luís XIV, adota uma
perspectiva diferente daquela de seu tempo, pois seus comentários supõem o olhar distanciado
do século XX. Como aqueles costumes eram normais na época, este estranhamento aparente
em seu discurso não se justificaria em um nobre do século XVII, que estaria acostumado à
ostentação e ao luxo. Afora isso, ao falar sobre a dificuldade que encontrava em decidir se os
corpos das mulheres que lhe interessavam eram belos, ele desfia comentários sobre a moda
dos vestidos e sobre como eles denunciavam a posição social da mulher:
As roupas que elas usavam eram excessivamente ornamentadas, com rendas
e fitas, de cores variadas, amarelas, azuis, rosa brilhante (que chamavam de
“aurora”) e faixas bordadas de ouro, que guarneciam a frente do corpete e a
ampla saia de cima, cujo comprimento da cauda variava segundo a posição
social. (FONSECA, 2000, p. 60)
89
Além da moda feminina ele também discorre sobre o costume dos homens de usar
perucas que, assim como a cauda dos vestidos, também definiam a posição social do homem:
“Ela [Armande] retirou a minha peruca e afagou-me a cabeça; senti a delicadeza de seus
dedos na minha pele; não era raro homens da minha categoria, obrigados a usar peruca
constantemente, rasparem a cabeça”. (FONSECA, 2000, p. 45).
Contudo, ao descrever os hábitos da corte e a moda, ele deixa entrever que
compartilha da opinião de Molière, que satirizava em suas peças a ornamentação exagerada
dos trajes usados na corte e, principalmente, quando eram copiados pelos burgueses,
tornando-os ridículos. No entanto cabe lembrar que esta é uma leitura do nosso século, com
distanciamento crítico. O fato de o narrador possuir este afastamento é o que o diferencia
daqueles narradores dos romances históricos clássicos que pensavam de acordo com seu
tempo.
2.4. A metaficção e as “mãos sujas”
O tema da escrita e os problemas enfrentados pelos escritores são constantemente
explorados nos contos e romances de Fonseca. Como aponta Lafetá (2004), a propósito do
conto “Intestino Grosso”, que tem como trama uma entrevista concedida a um jornalista por
um escritor famoso, a problemática que envolve o processo da escrita e da produção literária é
colocada pelo personagem-escritor de forma muito transparente, já que ele alude ao constante
confronto com a tradição pelo qual todo escritor passa e ao confronto consigo mesmo.
Vejamos um trecho do conto citado por Lafetá em que aparecem estas preocupações:
“Quando foi que você foi publicado pela primeira vez? Demorou muito?”
“Demorou. Eles queriam que eu escrevesse igual ao Machado de Assis, e eu
não queria, e não sabia.”
“Quem eram eles?”
“Os caras que editavam livros, os suplementos literários, os jornais de letras.
Eles queriam os negrinhos do pastoreio, os guaranis, os sertões da vida. Eu
morava num edifício de apartamentos no centro da cidade e da janela do meu
quarto via anúncios coloridos em gás néon e ouvia barulho de motores de
automóveis.” (FONSECA, 1994, p.461).
Nas respostas do escritor está explícito principalmente o problema do choque com a
tradição, pois o fato de ter existido um Machado de Assis, um Alencar, ou um Euclides da
90
Cunha, entre outros, no século XIX, modifica todo o cenário literário daí em diante, todos os
novos escritores passam a ser comparados a eles. Da mesma forma, tudo o que foi escrito
antes passa a ser visto através de um novo modo de olhar. Esta questão do confronto com a
tradição nos faz pensar no texto de Borges, “Kafka e seus precursores” (2007), em que ao
tentar identificar os precursores do autor de Metamorfose, encontra uma série de textos
contendo elementos kafkanianos, contudo, o que chama a atenção do narrador deste texto é
que os textos nada têm em comum, a não ser o dito elemento kafkaniano, portanto a
conclusão a que chega é que, na verdade, o precursor deles é o próprio Kafka. Esta ironia com
que Borges trata a questão da tradição indica a forma como ele a compreende: que ela, a
tradição, se elabora unicamente no presente, pois é a ficção de Kafka, lida hoje, que fará com
que se volte os olhos para o passado, na tentativa de encontrar os modelos que o teriam
influenciado. Desta forma, é o próprio Kafka que cria seus precursores.
Neste confronto com a tradição, o escritor entrevistado em “Intestino grosso” lança
uma frase bastante marcante depois de dizer que possui uma biblioteca com cerca de cinco
mil livros e que já os leu quase todos. Ele diz que odeia Joyce e odeia todos os seus
antecessores e contemporâneos (LAFETÁ, 2004, p. 374). Lafetá nos lembra ainda que este
mesmo confronto aparece também no romance Bufo & Spallanzani, em que o escritor
Gustavo Flávio se vê atormentado em sonho por Tolstoi, que molha uma pena em um tinteiro
e diz ter feito isso “duzentas mil vezes” para escrever Guerra e Paz e lhe oferece a mesma
pena dizendo que agora é a vez dele. Mas ele se sente incapaz e atormentado:
Perpassa por mim uma sensação aterradora, a certeza de que não conseguirei
estender a mão centenas de milhares de vezes para molhar aquela pena no
tinteiro e encher as páginas vazias de letras e palavras e frases e parágrafos.
Então me vem a certeza de que morrerei antes de realizar este esforço sobre-
humano. Acordo aflito e infeliz e fico sem dormir o resto da noite.
(FONSECA, [s.d.], p. 7-8)
Esta sensação de incapacidade para preencher a folha em branco e de sofrimento com
a existência de grandes escritores que produziram obras que parecem jamais poder serem
superadas, que causa tanta angústia em Gustavo Flávio a ponto de fazê-lo perder o sono, é
constante na literatura fonsequiana, pois um dos temas mais explorados pelo ex-delegado de
polícia é justamente o processo que envolve a produção e a recepção da arte literária.
O Marquês Anônimo também quer se tornar um escritor, mas diferentemente de
Gustavo Flávio ou do escritor entrevistado em “Intestino grosso”, ele quer escrever porque
sente um enorme desejo de se tornar um famoso e aplaudido dramaturgo, mas se depara com
91
o cânone. A existência de um Molière, de um Racine, de um Boileau na mesma sociedade em
que ele vive o impossibilita de sequer tentar alcançar a fama, e antes mesmo de sofrer o
fracasso nos palcos da corte, estes mesmos se encarregam de apontar-lhe seus defeitos como
dramaturgo.
Além deste angustiante confronto com a tradição e consigo mesmo, por parte dos
escritores-personagens, outro tema que se deixa entrever nos contos e principalmente em
alguns romances de Fonseca é o da autoria:
A tematização da autoria está presente também nos romances de Rubem
Fonseca. Já em O caso Morel, o personagem-autor se duplica nas figuras do
criminoso e do escritor e ambas desdobram a figura do “autor implícito”, que
não precede o texto, não lhe é exterior, mas fabricado por ele. Através do par
Morel/Vilela, põe-se em fábula a posição fronteiriça do escritor, que lhe
permitiria ocupar diferentes lugares sem se fixar em nenhum deles, deslizar,
em sua ficção, através das diferentes divisões sociais. (FIGUEIREDO, 2003,
p. 63)
Os personagens-escritores de Fonseca são sempre suspeitos pois, como lidam muito
bem com a ficção que é “mentira”, também conseguem mentir na vida “real” e ludibriar tanto
os outros personagens, como também o leitor. Figueiredo cita um trecho de O caso Morel em
que Morel fala de como Gustavo Flávio possui uma vida sórdida, uma vez que foi policial,
advogado e escritor e, portanto, “teve sempre as mãos sujas”. Figueiredo lembra-nos que
Essa “vida sórdida” – polícia, advogado e escritor – confunde-se com a de
Rubem Fonseca, que passou pelas mesmas profissões. Há, portanto, um
deslizamento constante entre as figuras de Morel, Vilela e Rubem Fonseca
que abala as fronteiras entre o biográfico e o ficcional. (FIGUEIREDO,
2003, p. 64)
Este deslizamento pode ser entendido como uma ferramenta literária, no sentido de
estabelecer um jogo com o leitor, pois se nos lembramos das palavras de Eco de que o texto
narrativo se propõe, por meio deste jogo, a criar a figura do leitor-modelo, esta confusão
provocada pela identificação entre o leitor-empírico e os personagens-narradores seria uma
provocação a fim de selecionar o leitor que está pronto para este tipo de narrativa. Como
observamos ao falar do gênero policial, a literatura pós-moderna direciona o leitor-modelo
para a busca das pistas deixadas ao longo da narrativa, ao desvendamento da segunda história,
aquela que está secreta, sendo tecida nas entrelinhas do texto.
92
É interessante observar como o Marquês Anônimo acaba incorporando as mesmas
figuras que Mandrake, mesmo que extra-oficialmente. Ele toma as vezes de advogado ao
defender Molière que havia tido sua imagem denegrida pelos que o acusavam de incesto por
ter se casado com a mulher que, segundo as “más línguas”, poderia ser sua filha e que o
chamavam de “corno” por Armande ser uma mulher promíscua (FONSECA, 2000, p. 32). Por
outro lado, ele próprio se institui como única autoridade capaz de desvendar o envenenamento
de Molière já que não podia envolver a polícia na investigação, por medo de se comprometer.
E, finalmente, ele é o escritor que, sem poder escrever para o teatro, escreve suas memórias.
Portanto, assim como os outros personagens-escritores de Fonseca, ele também tem as “mãos
sujas”.
Figueiredo aponta para o fato de, em E do meio do mundo prostituto só amores
guardei ao meu charuto (1997), Amanda, ao oferecer-se para arrumar os arquivos de Gustavo
Flávio, torna-se suspeita de ter praticado os crimes em torno dos quais gira o enredo do livro:
Organizar arquivos é assumir responsabilidades sobre o passado,
selecionando o que fica e o que é eliminado, determinando o lugar que cada
documento vai ocupar. Se tudo é texto, Amanda pode ter eliminado as
personagens que fizeram parte da história de Gustavo Flávio, visando a
reescrever o passado do ex-marido. (FIGUEIREDO, 2003, p. 64)
Da mesma forma, o Marquês Anônimo torna-se suspeito do assassinato de Molière,
primeiramente por ter motivos para isso, afinal, como ele mesmo diz, “todos sabem que os
amantes matam discretamente os maridos a quem enganam, com veneno, ao contrário dos
maridos, que, quando se contrariam ao serem enganados, o que é raro, matam com
estardalhaço.” (FONSECA, 2000, p. 31). E em segundo lugar, por ser ele próprio quem narra
suas memórias, organizando-as conforme sua vontade. Portanto, assim como Amanda, ele
pode assumir responsabilidades sobre o passado e decidir o que deve ser dito, o que deve ser
omitido e quais mentiras deve inventar. Como se trata de um texto que é protegido pelo
anonimato, tudo é possível, inclusive reescrever um passado do qual não é mais possível ter
provas.
Outra característica da narrativa do Marquês Anônimo e que pode ser encontrada em
outros textos de Fonseca, assim como em grande parte da literatura contemporânea, é a
presença de uma narrativa que ao mesmo tempo em que apresenta um desfecho, deixa dúvidas
no leitor quanto à possibilidade de outros finais. Aqui o Marquês aponta um responsável pelo
assassinato; contudo, aventa possibilidades de outros terem desejado matar Molière e se expõe
93
como uma figura pouco confiável e que manipula os fatos como quer, explicando que as
investigações sobre os envenenamentos cessaram a mando do rei e por isso não há nenhum
relato oficial que sustente a versão de que Madame Voisin tenha vendido o veneno a La
Forest.
Esse ingrediente de dúvida, que não permite que os textos contemporâneos se fechem,
constituindo-se como obras abertas, é explicado por Umberto Eco como um fenômeno
literário em que a estrutura das obras de arte, tanto no cinema, como na pintura, na música e
na literatura,
é ambígua e submetida a certa indeterminação de resultados, tal acontece
porque as formas, deste modo, se adaptam a uma visão do universo físico e
das relações psicológicas propostas nas disciplinas científicas
contemporâneas, e sentem a impossibilidade de se falar deste mundo nos
mesmos termos formais com que era possível definir o Cosmo Ordenado que
já não é o nosso. (ECO, 1997, p. 255)
Se pensarmos na força que teve a tragédia durante o século XVII francês e nos autores
que se mantiveram como grandes nomes da literatura mundial, veremos que há uma relação
muito forte entre a forma como escreviam – atendendo às três regras de unidade do teatro – e
a forma de governo, pois, como o rei é o centro mantendo uma política absolutista e é quem
patrocina a cultura, tudo tem que estar em acordo, sem dissonâncias. Luís XIV é o “Sol” e
tudo devia girar em torno de seu eixo, inclusive a arte. Portanto, como assinala Deshusses,
todos os escritores eram encorajados pelo mesmo ideal de rigor e perfeição e
Sob a bandeira de um rei autoritário e mecenas que assegura o brilho da
França em toda a Europa, os artistas e escritores tinham consciência, face às
exigências de um público escolhido, de trabalhar para a edificação de uma
grande obra comum. Conjunção efêmera e única das artes, das ciências e da
política, assim foi o classicismo. (DESHUSSES, 1984, p. 125 – a tradução é
nossa)
15
Por esta razão, o patrimônio literário do século XVII é freqüentemente reduzido ao
reinado de Luís XIV, pelo fato de apresentar uma grande proliferação artística, tanto no que
diz respeito ao número de obras produzidas, como também à qualidade delas.
15
“Sous la bannière d’un roi autoritaire et mécène qui assure le rayonnement de la France dans toute l’Europe,
les artistes et écrivains avaient conscience, face aux exigences d’un public choisi, de travailler à l’édification
d’une grande oeuvre commune. Conjonction éphémère et unique des arts, des sciences et de la politique, tel fut
le classicisme. ” (DESHUSSES, 1984, p. 125)
94
Mas em nossa época, em que tudo passa a ser relativizado e na qual há uma maior
abertura política em muitos países, também a arte passa a ser mais livre e pode apontar outras
versões. O romance passa a ser o gênero que melhor representa o mundo moderno por ser
semelhante a ele, pois, como afirma Bakhtin,
O romance é o único gênero por se constituir, e ainda inacabado. As
forças criadoras do gênero agem sob nossos olhos: o nascimento e a
formação do gênero romanesco realizam-se sob a luz da História. A
ossatura do romance enquanto gênero ainda está longe de ser
consolidada, e não podemos ainda prever todas as suas possibilidades
plásticas. (1990, p. 397).
Além disso, ele destaca que por ser um gênero jovem – o único mais jovem que a
escritura e os livros, também é o que melhor se adapta “às novas formas da percepção
silenciosa, ou seja, à leitura.” (1990, p. 397).
A presença do dialogismo no interior do romance provoca revoluções no modo de
fazer e pensar a literatura. Este é um termo que, segundo Fernandes (2005), passou a ser
empregado depois da tradução e divulgação da obra de Mikhail Bakhtin, que consiste em uma
teoria do conhecimento de orientação pragmática e nela se concebe a existência e o
comportamento humanos em função do modo como os homens usam a linguagem. Fernandes
lembra que a linguagem é viva e por isso alguns fatores a determinam:
Nesta perspectiva, quer o falante na sua individualidade quer no respectivo
discurso são concebidos não isoladamente mas em contexto e em relação e
ambos são encarados como ocupando um lugar único e irrepetível,
historicamente determinado pelas coordenadas espácio-temporais
(cronótopo) que, em cada momento, o definem. (FERNANDES, 2005)
Ainda segundo a teórica, de todas as formas literárias a que mais favorece o
dialogismo é o romance, que estabelece uma relação peculiar com a linguagem, muito
diferente da que mantém com os gêneros canônicos (épico, lírico e dramático), pois
Enquanto para estes [os gêneros canônicos] a linguagem é algo que tem de
conformar-se às regras que os definem, regras que se antepõem à própria
linguagem, espartilhando-a, o romance abre-se à linguagem nos seus
diversos níveis de existência e de concretização, procurando acomodá-la. É a
diversidade característica do plurilinguismo que determina a configuração
romanesca. Enquanto os outros géneros manifestam uma orientação
centrípeta relativamente ao universo linguístico encarado como uno e único,
o romance exibe caracteristicamente uma orientação centrífuga, sendo
permeável à diversidade lingüística que questiona e relativiza o
monolinguismo. (FERNANDES, 2005)
95
Esta orientação centrífuga é alcançada algumas vezes pelo riso, seja por meio da
paródia, do pastiche ou da ironia, e foi encontrada por Bakhtin em outras obras anteriores ao
Dom Quixote, que é considerado por muitos estudiosos como o primeiro romance, de acordo
com os parâmetros do gênero que conhecemos atualmente. Estas obras constituem, segundo
Bakhtin, a pré-história do romance. Entre as citadas pelo crítico, estão o romance de Rabelais,
a sátira menipéia, da Grécia antiga, e a comédia macarrônica da Idade Média.
É importante perceber que o processo dialógico dentro do romance consiste na
“inclusão do discurso e perspectiva do senso-comum no tecido da prosa narratorial, que assim
passa a reverberar ironicamente a posição crítica do narrador autoral face àquele”
(FERNANDES, 2005), e por isso prevê a existência de várias vozes, várias visões de mundo
diferentes convivendo no mesmo texto.
Sendo assim, segundo António Lopes,
A relação entre o leitor e as linguagens do romance é indirecta.
Consequentemente, todo o enunciado de certa personagem que nos surja
revestido de uma certa autoridade (seja sob a forma de autoritarismo, de
tradicionalismo, ou de oficialismo) é passível de ser não só contestado, como
ainda “travestido” e “parodiado”. (LOPES, 2005)
A partir destas afirmações sobre o dialogismo e sua relação com o romance podemos
pensar como isso se manifesta em O doente Molière. Como vimos acima, o discurso, o
emprego da linguagem ocorrem em dado espaço e tempo histórico e sofrem influências deste
contexto. Portanto, o fato de encontrarmos um romance que relativiza as noções do passado,
ludibria o leitor com um jogo de meias-verdades e traça um perfil irônico dos personagens
historicamente consagrados, representa as características do mundo e da sociedade em que ele
foi criado.
O que torna essa questão ainda mais interessante do ponto de vista do discurso é que
este romance pós-moderno trata de uma época absolutamente oposta àquela em que foi
escrito. Podemos ver no fato de Fonseca ter escolhido o século XVII como cenário de sua
narrativa uma sintomática vontade de expressar mais claramente a relação dialógica no
romance. Podemos afirmar isso pois é visível a existência de duas vozes ideológicas
diferentes. A primeira é a voz da época, do século XVII, ou seja, sob o domínio de um rei
absolutista só era possível haver uma concepção de arte e de mundo. A segunda voz que surge
neste contexto é a do narrador que, contrariamente ao discurso vigente, mostra ao leitor sua
própria maneira de enxergar o reinado de Luís XIV e sua própria concepção de arte.
96
Mais uma vez é preciso destacar a importância do contexto social, econômico e
ideológico para que se perceba a importância fundamental que tudo isso teve sobre o modo de
se escrever e sobre o que foi escrito. O século XVII, que viu florescer grandes nomes do
teatro francês que se tornaram referências para a literatura universal, possui características
pontuais que revelam o motivo de esse ter sido o século escolhido e não o XVI ou o XVIII.
Mas antes de continuarmos a discussão sobre o romance, parece-nos importante lançar
um panorama do século XVII para, desta maneira, observar efetivamente as mudanças
econômicas e, sobretudo, políticas que colaboraram para que houvesse uma grande mudança
na França do século XVII, o que se refletiu na arte e nos valores sociais.
2.5. O século XVII e sua ideologia
Ao estudar o século XVII é impossível não refletir sobre o fato de que as
circunstâncias que levaram à instauração do estado absolutista na França foram fundamentais
para que Luís XIV tenha governado da forma como o fez e para que a arte do século XVII
tenha tido as características e a força que conhecemos hoje. Desta forma, parece-nos
importante fazer um passeio por esta França tendo a consciência de que tanto a política, como
a religião e a arte são divididas, na França, em duas fases: antes de Luís XIV e depois dele.
Com a tomada de poder de Luís XIII, depois da morte de Henrique IV, o novo rei
nomeia como seu primeiro ministro o cardeal Richelieu, que consolida duramente a
autoridade real, sendo que o pensamento político do cardeal é guiado pela La raison d’État, e
tudo é subordinado ao poder do Estado, encarnado pela figura do rei. Contudo, neste
momento historicamente conturbado, surgem dois grupos que procuram minar o poder real:
os nobres e os protestantes.
Os nobres não querem perder seus privilégios e, para tentar vencer Richelieu, buscam
o apoio de outros países, principalmente da Espanha. Contudo, a empresa falha e, como
punição pela traição, muitos nobres são executados em praça pública. Após subjugar tais
nobres, Richelieu precisa conter os protestantes que no reinado de Henrique IV formam uma
espécie de estado dentro do estado. Para combater essa concorrência, o primeiro ministro de
Luís XIII fortalece o cristianismo e persegue os protestantes.
Após a morte de Luís XIII, um ano depois da de seu primeiro ministro, o reinado se
encontra sem um rei, pois o sucessor ao trono era ainda muito jovem. Desta forma, inicia-se o
97
período de regência e Mazarin é nomeado Primeiro Ministro por Ana da Áustria, a rainha
mãe. Mazarin segue a política de Richelieu, principalmente no que diz respeito à política
exterior, chegando em 1648 a consolidar suas fronteiras naturais a leste. Mas, mesmo assim,
internamente ele não consegue ter o mesmo sucesso que seu predecessor e, como as guerras
para a conquista de novos territórios e os “prazeres da corte” custam caro, o reino se vê cada
vez mais dependente dos impostos. (DESHUSSES, 1984, p. 118)
A França passa, portanto, por um momento muito difícil: o povo está extremamente
descontente e os nobres e parlamentaristas se aproveitam desse fato para se oporem a
Mazarin, e todos os príncipes que Richelieu havia humilhado e reprimido se juntam à
Rebelião, que foi chamada de Fronda. Na madrugada de 5 para 6 de janeiro de 1649 a corte é
obrigada a deixar Paris e Mazarin é encurralado pelo príncipe Condé, que entra em Paris com
seu exército e derrota o do Regente, sendo então aclamado. Mas o povo não aceita e sai às
ruas protestando. A revolução está prestes a explodir, mas os homens de Condé ficam com
medo e abandonam Paris. Assim, o exército real é reconstituído e, comandado por Turenne,
faz com que Condé fuja para a Espanha.
Portanto, quando Luís XIV ascende ao trono, em 1661, o país está arruinado pelos
conflitos e guerras. O rei indica então Colbert para assumir a administração financeira e
econômica e, neste momento, instaura-se o Mercantilismo já que o novo administrador do
reino entende que somente a indústria pode desenvolver o país e trazer de volta o dinheiro.
Assim, a França passa a ter uma marinha potente e um exército bem treinado e, com 19
milhões de habitantes, é o país mais forte da Europa.
Luís XIV resolve não delegar seus poderes e une-se a pessoas restritamente
escolhidas, que formam o Conselho Supremo, com o qual o rei se reúne a cada dois dias. Sob
o governo de Luís XIII e Mazarin a nobreza tinha muitos poderes, mas, como o novo rei não
pode esquecer a Fronda, que ficou guardada em sua mente como uma grande traição, decide
concentrar seu poder, dificultando a possibilidade de ser prejudicado pelos nobres.
(DESHUSSES, 1984, p.119).
Luís XIV transfere a corte para Versalhes, a 18 quilômetros de Paris. Neste palácio a
glória do rei é consagrada pois, além de ser uma representação do poder real, é uma prisão de
ouro para os nobres, onde devem executar as tarefas impostas por suas posições e, ao mesmo
tempo, permanecem sob os olhos vigilantes do rei. A corte é composta de nobres e artistas,
porque Paris e Versalhes são passagem obrigatória para quem quer sucesso, pois há um
centralismo cultural e Luís XIV protege os artistas e escritores lhes garantindo a posição
98
almejada. A grande parte das obras-primas do século XVII são produzidas entre os anos de
1660-1675.
O teatro e as artes fazem parte da vida social da corte parisiense do século XVII e são
fundados sob as bases do sistema de governo, pois é por ele patrocinado. O rei patrocina os
artistas e, desta forma, eles têm que aderir às regras impostas pelo mecenas e atender às suas
expectativas.
Na elaboração desta doutrina clássica que não deve ser nem extravagante
nem chocante, trata-se na verdade de agradar a um público escolhido. No
século XVII, não existe escritor solitário. A literatura é fundada em um
consenso, quase uma colaboração, entre o escritor e o público, para quem
são escritas estas obras. Este público, cujas reações são tão importantes, é na
verdade muito restrito: por volta de três mil pessoas, reunidas quase
exclusivamente em Paris e em Versalhes. Ele é composto de cortesãos, de
políticos, de grandes burgueses, negociantes e comerciantes, que gravitam ao
redor do rei. Todos juntos, eles sãos animados por um mesmo ideal: a
preocupação com a ordem e o amor pelas coisas bem feitas. Para agradar a
este público, é necessário satisfazer às suas exigências: ser claro, ordenado,
vigoroso, tanto na estrutura como na expressão da obra. Toda a estética
clássica se reduz a extrair da complexidade viva a ordem que permite
apreendê-la e o equilíbrio que permite apreciá-la. (DESHUSSES, 1984,
p.124 – a tradução é nossa)
16
Como é possível observar no trecho acima, o público clássico que tem acesso à
literatura é muito restrito, tanto no que diz respeito ao número de pessoas como também aos
lugares em que se encontram esses leitores, já que praticamente só em Paris e Versalhes são
encontradas pessoas letradas. Isso se deve ao fato de o pequeno público ser composto por
nobres que fazem parte da corte.
A restrição a um circuito artístico pequeno, juntamente com a política absolutista
instaurada na França, culmina na existência de um único discurso possível, que era o do
dominante, ou seja, do “Rei Sol”. As outras pessoas, como bem aponta Deshusses, gravitam
ao redor dele e repetem a mesma ideologia, a mesma voz. Em tal contexto é, portanto,
impossível a existência de uma voz ou de vozes dissonante(s).
16
“Dans l’élaboration de cette doctrine classique qui ne doit être ni extravagante ni chocante, il s’agit en fait de
plaire à un public choisi. Au XVIIe siècle, il n’y a pas d’écrivain solitaire. La littérature est fondée sur un
consensus, presque une collaboration, entre l’écrivain et le public, pour qui sont écrites ces oeuvres. Ce public,
dont les réactions sont si importantes, est en fait très restreint : environ trois mille personnes, rassemblées
presque exclusivement à Paris et à Versailles. Il est composé de gens de la cour, de politiciens, de grands
bourgeois, marchands et commerçants, qui gravitent autour du roi. Tous ensemble, ils sont animés d’un même
idéal : le souci de l’ordre et l’amour des choses bien faites. Pour plaire à ce public, il faut répondre à ses
exigences : être clair, ordonné, vigoureux, tant dans la structure que dans l’expression de l’oeuvre. Toute
l’esthétique classique se réduit à dégager de la complexité vivante l’ordre qui permet de la saisir et l’équilibre
qui permet de l’apprécier.” (DESHUSSES, 1984, p.124)
99
Assim, podemos concluir que o personagem-narrador criado por Fonseca não se
identifica com essas limitações e propõe um discurso que vai de encontro com essa ideologia
e, por isso, ele não pode identificar-se, divulgar sua verdadeira personalidade, ainda mais
fazendo parte da nobreza, já que possui o título de Marquês, e tendo como dever apoiar o rei.
Segundo Barbosa, “no século XVII há uma grande relação entre arte e poder. Luís
XIV (1638-1715) e seus conselheiros preocupavam-se muito com a imagem real, por isso
recorreram a todas as formas de representações para aumentar a sua glória.” (BARBOSA,
2007, p. 62). Por outro lado, para Peter Burke, glória era uma palavra-chave no reinado de
Luís XIV, e “a personificação da glória aparecia em peças teatrais, em balés e em
monumentos públicos. Há uma Fonte da Glória nos jardins de Versalhes.” (BURKE, 1994,
p.17). A partir de 1662, conforme ainda aponta Burke, o rei adotou a imagem do sol como seu
emblema pessoal, pois não haveria nunca nada que se igualasse ao brilho e esplendor do sol,
que era único e necessário a todos. Desta forma sua imagem se torna ainda mais forte e
absoluta.
Como parte do trabalho de fabricação desta imagem, os palácios reais e a cidade de
Paris deviam refletir a grandiosidade do regime e contribuir para a glória do rei. Por isso, sob
a administração de Colbert, Paris ganha grandiosos edifícios como arcos do triunfo,
pirâmides, túmulos e obeliscos. É durante seu reinado que é construído o Palácio de
Versalhes, que vem a se tornar residência real por muitos anos e que, além de ser um
instrumento para representar e ostentar o poder do “Rei Sol”, mantém os poderosos sob seus
raios.
Barbosa comenta que Colbert e seu conselheiro no âmbito literário, Jean Chapelain,
constatam que somente as construções não são suficientes para representar toda a glória de
Luís XIV. Portanto, já que o rei ama as artes e as protege, encontram nisso mais um
instrumento de representação da glória real, através de um mecenato de Estado.
Assim, os artistas deveriam utilizar seu talento criador com o propósito de enaltecer a
figura real. Com o intuito de estimular e controlar a produção artística, Colbert impõe a
disciplina nas Belas-Artes criando o academismo, que significa a regulamentação, a palavra
de ordem na produção intelectual e artística. Em 1663, é instituída a Petite Académie, que iria
administrar as produções artísticas e intelectuais através de um conselho restrito, formado por
personalidades como Jean Chapelain, Amable de Bourzeis, Cassagnes, Charles Perrault e
François Charpentier. (BARBOSA, 2007, p. 63).
100
A figura do rei como um mecenas se constrói nas peças de Molière, pois, como vimos,
é trabalho dos artistas da corte elevar a glória do rei. Na leitura feita por Fonseca, em O
doente Molière, o Marquês não participa do projeto pessoal do rei de passar para a história
como um grande homem, de ser lembrado como alguém que quase se igualou aos deuses. No
entanto, o projeto do Marquês vai de encontro ao de Luís, pois ele é representado o mais
humanamente possível. São seus defeitos físicos, suas fraquezas que são expostos. Mas,
mesmo assim, a figura do rei como um mecenas que apoia os artistas é construída pelo
narrador:
Molière supondo que a estréia seria feita para o rei, chegara a escrever um
prólogo que ele mesmo leria, dizendo que depois das gloriosas vitórias
militares e políticas do nosso Augusto Monarca, todos aqueles cuja atividade
era escrever deviam dedicar-se a celebrar-lhe a fama ou a diverti-lo.
(FONSECA, 2000, p.21)
O Marquês destaca, no entanto, que o patrocínio dado pelo rei não é desinteressado, há
uma necessidade, por partes dos artistas, de lhe servirem, seja para o aumento de sua glória,
seja para diverti-lo.
Nos anos 60 do século XVII, Colbert estende o trabalho de criação da imagem real
fundando Academias e oficializando as já existentes, dentre as quais estão: Académie
Française, Académie de Peinture, Académie des Inscriptions et Belles-Lettres, Académie
Mazarine de Peinture et Sculpture, Académie France à Rome, Académie des Sciences,
Académie de Musique (em que Lulli se destacou como superintendente e diretor) e Académie
Royale d’Architecture. (BARBOSA, 2007, p. 63).
A organização de academias por Colbert implicava a elaboração de uma
verdadeira doutrina no campo das artes. A adoção de lições de Antiguidade
Clássica, a distribuição dos prêmios aos artistas mais esmerados e
disciplinados, enfim, toda essa organização dos artistas que dava
uniformidade ao mecenato real era conseqüência da organização de
Versalhes. (BARBOSA, 2007, p. 64).
O “Rei Sol” busca reunir à sua volta escritores, sábios e poetas franceses, como
também estrangeiros, objetivando ilustrar, e manter sob controle, Versalhes e seu reinado.
Desta forma, muito mais que entreter a corte, a função de artistas como Molière, Racine,
Corneille, La Fontaine, Lulli, entre outros, é a de colaborar na fabricação da imagem do rei.
Os artistas que agradam o Rei com suas produções são por ele protegidos com pensões e
devem residir em Versalhes, estando sempre à disposição do Sol. Molière, por exemplo, é
101
patrocinado pelo rei e sua companhia de teatro pode levar o nome de Troupe du roi por um
bom tempo. Ele também escreve várias peças a pedido do rei, para comemorar ocasiões
importantes, como a inauguração do palácio.
Como indica Shennan, citado por Barbosa, as obras de arte produzidas sob o impulso
da Petite Académie e financiadas pelo rei servem como propaganda da França e do Rei Sol.
Assim, a concessão de pensões aos artistas por Luís XIV não é um ato desinteressado, já que
o rei espera em troca que os artistas exaltem a ele e a seu reino. (BARBOSA, 2007, p.65).
Uma observação muito importante feita por Burke, que lembramos para contrapô-la
com o perfil que o Marquês traça para o rei, é a de que o rei não era representado pelos
artistas e escritores como ele realmente era, mas havia uma fabricação de sua imagem,
pretendendo com isso consagrar o perfil do maior monarca do universo. É por isso que sua
imagem sempre aparecia ligada à dos maiores homens da história, os heróis do passado:
Alexandre, o grande; Ciro da Pérsia, seu avô Henrique IV; e também à dos deuses e heróis da
mitologia grega: Hércules, Apolo, entre outros. Bossuet chega a representá-lo como a figura
de Deus na terra. (BURKE, 1994, p. 18)
2.6. Um livro de muitas faces: as várias narrativas de O doente Molière
Como podemos constatar, na história da literatura desde Dom Quixote, que muitos
teóricos dizem ser um dos primeiros a utilizar este procedimento, até romances atuais como O
nome da rosa, passando por um grande número de romances, a necessidade de amparar-se em
documentos na tentativa de criar uma atmosfera de verossimilhança para a narrativa é um
artifício também utilizado em O doente Molière. Nos casos citados anteriormente, é a
repentina aparição de um manuscrito antigo que instiga o narrador a organizá-lo e publicá-lo.
No romance de Fonseca não há manuscrito de um terceiro, mas as próprias páginas de
anotações de um certo Marquês, que prefere manter-se anônimo e que acompanhou fatos,
observou pessoas, investigou outras e, depois de todo este processo, fez uma interpretação de
todo o material recolhido e é “responsável” pela produção da narrativa e pela decisão de
publicá-la.
Isso tudo aparece de forma explícita já nas primeiras páginas do livro e também é
parte constituinte da narrativa. O narrador – o Marquês Anônimo – faz questão de deixar clara
a origem de seus escritos, insistindo no fato de que se trata de um relato subjetivo. Em A
102
grande arte, segundo Maretti, “A necessidade desse esclarecimento introduz a relativização
entre o que é contado e o fato puro e simples, marcando assim o caráter de representação da
criação literária.” (1986, p.120). Esse esclarecimento de que o texto apresentado ao leitor faz
parte das anotações e recordações de alguém também acontece em O doente Molière, pois
assim o escritor estabelece um jogo com o leitor, que tem consciência de que o que lê é uma
criação literária. É por isso que Fonseca, ao construir o romance, provavelmente prevê um
leitor perspicaz o bastante para dar continuidade ao jogo.
Um artifício muito explorado na pós-modernidade, como elemento para denunciar a
autoreflexividade do romance, é a mise en abyme. Este termo se refere a uma técnica de
encaixe e foi definido por André Gide, que empregou esse procedimento nos estudos literários
após perceber que certas narrativas conseguiam o mesmo efeito dessa visão em profundidade
e com reduplicação reduzida, sugerido pelas caixas chinesas ou pelas bonecas russas (RITA,
2005).
Pela sua constituição podemos arriscar dizer que o romance por nós estudado é
construído por meio deste procedimento de encaixe, pois já nas primeiras páginas do livro há
uma lista em que aparecem os nomes dos personagens e a indicação de que o Marquês
Anônimo é o único personagem fictício. Sendo assim, temos em um primeiro plano uma
primeira história que não é a narrativa do Marquês Anônimo, mas a engloba. Esta narrativa é
produzida pelo autor-modelo, segundo a classificação de Eco, – “R. F.” –, provavelmente
responsável pelo sumário (embora não o assine); pela lista de personagens e suas
identificações (pois, tendo em vista que o Marquês Anônimo está citado como personagem
fictício, não poderia ser sua a produção deste texto); pela nota explicativa da grafia do nome
de Molière e, finalmente, pelo texto intitulado “Sobre o escritor-personagem”, que se
configura como uma rápida biografia de Molière. Nos dois últimos aparecem as iniciais “R.
F.”, num jogo que pretende levar o leitor a identificar este autor-modelo com o autor empírico
Rubem Fonseca. Esta espécie de moldura do romance também conta uma história, mas esta
não tem como tema a morte do dramaturgo, e sim o próprio processo de escrita. É nestes
pequenos elementos, que podem passar despercebidos aos olhos de um leitor desatento, que se
configura o jogo entre o autor e o leitor.
A segunda narrativa é a do personagem fictício Marquês Anônimo, que se apresenta
aos seus leitores dizendo que a publicação do livro, como parte de suas memórias, tem como
tema principal o esclarecimento da misteriosa morte de Molière, além, é claro, de divagações
sobre sua vida pessoal.
103
O que podemos concluir, portanto, de todo este procedimento estrutural é que, em seu
romance, Fonseca trabalha em um campo muito tênue, em que realidade e ficção estão lado a
lado, mas o que faz com que este trabalho não fracasse é a autoconsciência do trabalho
literário, marcada, como vimos, principalmente no plano formal. Este aspecto de O doente
Molière, que é muito explorado na pós-modernidade e que já foi utilizado por Fonseca em A
grande arte, como aponta Maretti (1986), demonstra uma preocupação por parte do escritor
em criar um jogo entre a realidade e a ficção que englobe também o leitor.
O narrador explicita sua condição de intérprete dos fatos e documentos e, por isso,
protegido por sua versão ficcional, pode correr riscos e não precisa deixar de lado a
possibilidade de, através de suas “invenções”, contar a história verdadeira, pois muitas vezes
se diz mais verdades em uma ficção do que no próprio empenho de contar a verdade,
conforme nos lembra Mario Vargas Llosa em La verdad de las mentiras (1990).
Por outro lado, o narrador é contemporâneo a Molière e é seu amigo de infância,
portanto, seu discurso configura-se como um testemunho dos fatos vividos ao lado de Molière
e também dos observados, o que aumenta a verossimilhança de seu relato. Segundo Maretti
(1986), ao falar de A grande arte, “o romance se pensa a si mesmo em seu valor próprio, em
sua função cultural”; portanto, podemos chegar à conclusão de que tanto A grande arte como
O doente Molière – por se posicionarem frente à arte e à “realidade” de forma semelhante –
desvinculam-se de seu compromisso pragmático com a verdade e sugerem que a literatura,
mesmo quando deduz, conclui e/ou imagina, pode estar mais próxima da verdade que a
própria historiografia.
Em O doente Molière, o Marquês Anônimo só tem acesso aos fatos por meio do que
ouviu do próprio Molière, que estava agonizando e confessou sua suspeita de ter sido
envenenado; do que pôde recuperar de suas próprias anotações, e dos fatos que conseguiu
resgatar por meio da memória. Portanto, ele supõe que a soma de todas essas informações e a
devida interpretação o levaria à “verdade”.
Portanto, como temos observado, o tempo em que se passa a ação da narrativa não é
escolhido aleatoriamente, mas por alguma razão que fica clara no romance e que tem suma
importância na caracterização da metaficção historiográfica. Nesse ponto podemos ser
questionados a respeito da idéia do romance, que se deu por conta de um convite da editora e
não pela vontade livre de seu escritor. Contudo, pelo que se soube pelos artigos de jornal que
foram escritos para divulgar tanto a coleção “Literatura ou morte” como os romances que dela
104
fazem parte, a cada escritor foi dada a oportunidade de escolher um ícone da literatura
universal para tornar personagem de sua trama.
Tendo isto em vista, pensamos que não foi por mero acaso que Rubem Fonseca
escolheu Molière para ser “vítima” de sua narrativa policial. Podemos acreditar em algumas
circunstâncias que podem ter aproximado o ex-delegado de polícia do polêmico dramaturgo
francês. A primeira delas é o fato de as peças de Molière fazerem parte da biblioteca de
Fonseca, enquanto leitor. Essa afirmação decorre do fato de O doente Molière não ser a
primeira obra em que seu autor cita o dramaturgo, já que em vários outros romances e contos
suas peças são citadas. São exemplos disso a epígrafe de E do meio do mundo prostituto só
amores guardei ao meu charuto (FONSECA, 1997), retirada da peça Don Juan, de Molière; a
presença de uma frase atribuída a Molière no conto “Romance negro”: “Un homme mort n’est
qu’un homme mort, et ne fait point de conséquence” (2004, p. 482); em Bufo & Spallanzani,
quando o policial Guedes pergunta a Gustavo Flávio se seu nome verdadeiro é este, o
personagem-escritor responde:
Nós, os escritores, gostamos de usar pseudônimos. Stendhal chamava-se
Henry Beyle; o nome verdadeiro de Mark Twain era Samuel Langhorne
Clemens; Molière era o criptônimo de Jean-Baptiste Pocquelin. George Eliot
não era nem Jorge, nem Eliot nem homem, era uma mulher de nome Mary
Ann Evans. (FONSECA, s. d., p. 47-48)
Além disso, recuperando o que diz Figueiredo, quando trata de O doente Molière em
Os crimes do texto (2003), os narradores dos romances fonsequianos se constituem como
releituras contemporâneas do famoso personagem Don Juan, que não é criação de Molière,
mas que foi relido por ele em uma peça que leva o nome do personagem como título.
Figueiredo afirma que, assim como Don Juan, um personagem inconstante que passa a vida
em busca de mudanças e assim conquista muitas mulheres sem ficar definitivamente com
nenhuma, os narradores fonsequianos também buscam as paixões e para isso são auxiliados
por suas diversas máscaras. Por isso, no próximo capítulo iremos abordar a questão da
intertextualidade no romance.
105
CAPÍTULO III
O DOENTE MOLIÈRE NA MIRA DO OLHAR INTERTEXTUAL
3.1. O conceito de intertextualidade na literatura pós-moderna
Embora seja um elemento muito recorrente nos textos literários contemporâneos, e,
principalmente, nos pós-modernos, em que se cultiva o gosto pelo jogo detetivesco, de caça às
pistas de outros textos inseridos dentro daquele que se lê, as relações intertextuais não são
exclusivas deste período.
No Renascimento, por exemplo, existia a concepção de Imitatio, segundo a qual o
artista procurava alcançar ao máximo a perfeição a que os gregos clássicos haviam chegado.
Quanto mais parecida fosse a obra, maior seu valor, exatamente pelo fato de rememorar o
grande artista. Neste caso, a cópia não possuía o valor negativo que foi agregado a ela no
Romantismo com sua busca pela “originalidade”, pois, o objetivo naquele momento, era
utilizar uma referência, um modelo consagrado, para valorizar o novo trabalho, ao mesmo
tempo em que se homenageava o antecessor. Portanto, o diálogo entre as obras e a retomada
de textos anteriores sempre existiu, e cada obra-de-arte se tornava parte de um patrimônio
cultural coletivo, não era de domínio individual. Esta é uma das razões que explicam o fato de
que muitas das obras deste período são anônimas; elas não eram assinadas, pois não existia a
preocupação com o conceito de propriedade autoral. Contudo, quando as obras artísticas
passaram a ser comercializadas, transformando-se, desta forma, em objeto de consumo, o
conceito de plágio passou a existir e, assim, a peça, o poema, a estátua, que imitasse ou
retomasse um modelo já existente, sofria acusações e era desvalorizada.
Molière, por exemplo, foi vítima constante dessas acusações por utilizar temas e
modelos da Commedia dell’ arte para escrever suas primeiras farsas e comédias, como
L’étourdi (1653) e Le dépit amoureux (1656) (DESHUSSES, 1984, p.152). Nas biografias
escritas sobre ele, é constante a remissão às pessoas que escreviam libelos acusando-o de
plagiário. Rute Miguel, no entanto, defende-o apontando para o fato de que na grande maioria
de suas peças, “longe de imitar peças estrangeiras, Molière criou personagens francesas
distintas com bases nas características sociais que as identificavam e que ele próprio
observava.” (MIGUEL, 2005).
106
Em O doente Molière, a questão do plágio vem à tona quando o Marquês Anônimo
menciona as constantes intrigas que os inimigos de Molière e os escritores invejosos criavam
para deturpar-lhe a imagem. Ele relembra que, em uma das visitas feitas ao salão da Madame
de Rambouillet, no intuito de observar a repercussão de Les précieuses ridicules, ouviu alguns
comentários de que aquela seria mais uma peça em que o dramaturgo plagiara os italianos que
dividiam com ele a sala do Petit-Bourbon. A fim de contestar estas acusações que seu amigo
sofreu, diz:
Eu conheço bem toda a obra de Molière e posso assegurar que essa acusação
de plágio, a rigor, só era verdadeira em relação a duas peças que Molière
encenou, na província, como se fossem de sua autoria, O ciúme de
Barbouillé e O médico voador, copiadas de antigas comédias italianas. O
estouvado foi apenas inspirada em O descuidado, do italiano Beltrame.
Também os cinco atos de Despeito amoroso não podem ser considerados um
plágio, pois Molière apenas usou algumas situações de uma farsa italiana. É
comum, no teatro, o autor se inspirar em textos mais antigos, construindo,
muitas vezes, uma obra nova, superior em todos os sentidos. Por acaso a
Fedra de Racine é um plágio do Hipólito de Eurípedes? E as peças de
Corneille, têm algum tema original? Mas apenas o meu amigo era chamado
de plagiário. (FONSECA,2000, p. 58-59)
Podemos observar neste trecho que, embora o narrador de Fonseca seja um homem do
século XVII, possui um discurso pós-moderno, no sentido de trazer à tona questionamentos
que, somente à luz das novas teorias literárias, conseguem ser explicados de forma
convincente. O Marquês enceta uma discussão importante, pois como o classicismo
valorizava os modelos clássicos, toda obra que neles se inspirassem era bem aceita; é o caso
da Fedra de Racine, que tinha como modelo a peça de Eurípedes. No entanto, se o modelo
fosse a arte popular, como algumas comédias e farsas do começo da carreira de Molière que
foram inspiradas na commedia dell’arte, o escritor estava mais propenso a sofrer críticas.
A pós-modernidade, no entanto, trouxe à tona questionamentos quanto à originalidade,
pois os estudos dos gêneros literários apontaram para o fato de que, na verdade, não se pode
falar em “obra original”, já que na prática tudo é uma retomada, uma releitura, um
reaproveitamento do que já existia. Bakhtin (1990) observa isso quando discorre sobre o
surgimento do gênero romanesco: segundo o teórico russo, ele não foi inventado sem que
houvesse alguma relação com os outros gêneros, muito pelo contrário, ele é fruto do
questionamento, da releitura dos outros gêneros existentes, tendo em vista uma nova época,
em que surgiam novas necessidades.
107
Por esta razão, atualmente, o aspecto negativo dos conceitos de cópia e de plágio – que
no Romantismo tinham grande importância – vêm perdendo a força. Nestes termos, o avanço
alcançado pelas novas teorias que consideram positivamente este processo, tanto na literatura
como na arte de um modo geral, foi a possibilidade de estabelecer diálogos com obras
distantes tanto temporal como geograficamente, sem que isso fosse encarado com o aspecto
negativo do conceito de plágio.
A consciência de que, além da estrutura, também os temas não podiam ser originais já
está presente na enunciação do Marquês, mas isto aparece para nós leitores, afastados
temporamente, como uma perspectiva de leitura do século XX, pois no século XVII esta
consciência ainda não existia e só viria à luz muito mais tarde.
Quem primeiro abriu as portas para os estudos sobre a intertextualidade foi Mikhail
Bakhtin, com seus estudos sobre a polifonia e o dialogismo, a partir das análises das obras de
Dostoiévski, nas quais observa as relações do romance moderno com a tradição. Em sua
teoria sobre a polifonia, Bakhtin aponta que, dentro de um mesmo texto, várias vozes
diferentes criam uma relação dialógica, ou seja, de choque, de confronto, o que proporciona
aos personagens terem sua própria ideologia, seus próprios modos de ver o mundo,
independentes daqueles do autor. É isso o que diferencia um romance monológico (em que a
única voz é a do autor) de um romance polifônico.
Além do dialogismo, Bakhtin trabalha com a noção de intertextualidade na própria
concepção de linguagem que constrói: a intersubjetividade é o espaço de existência da
linguagem, é um processo social e quaisquer manifestações suas são de base relacional e
interacional quando processada entre os indivíduos de uma sociedade.
Entretanto, segundo José Luiz Fiorin, Bakhtin, em seus trabalhos, empregou o termo
intertextual, uma única vez: “as relações dialógicas intertextuais e intratextuais. Seu caráter
específico (extralingüístico). Diálogo e dialética.” (apud FIORIN, 2006, 162). No entanto,
pode-se chegar à conclusão de que este seria um problema de tradução, pois o termo aparece
somente nas versões francesa e portuguesa, sendo que esta foi traduzida do francês, e, como
tudo indica, já estava influenciada pelos estudos de Kristeva, que foi a responsável por
introduzir os estudos bakhtinianos na França. Quando comparada à versão em espanhol, que
foi traduzida diretamente do russo, nota-se que não há nenhuma ocorrência deste termo.
O termo “intertextualidade”, portanto, foi definido por Kristeva que, a partir dos
estudos das obras Problemas da poética de Dostoiévski e A obra de François Rabelais, de
Bakhtin, concebeu sua famosa teoria de que “todo texto se constrói como um mosaico de
108
citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” (KRISTEVA, 1974, p.
64), ou seja, dentro de cada discurso existe um outro discurso, há sempre uma retomada de
textos anteriores.
Antoine Compagnon, em seu O trabalho da citação, cria uma imagem muito
interessante sobre o ato da leitura e da citação:
Escrever, pois, é sempre reescrever, não difere de citar. A citação, graças à
confusão metonímica a que preside, é leitura e escrita, une o ato de leitura ao
de escrita. Ler ou escrever é realizar um ato de citação. A citação representa
a prática primeira do texto, o fundamento da leitura e da escrita: citar é
repetir o gesto do arcaico do recortar-colar, a experiência original do papel,
antes que ele seja a superfície de inscrição de letra, o suporte do texto
manuscrito ou impresso, uma forma da significação e da comunicação
lingüística. (COMPAGNON, 1996, p.31)
A intertextualidade, no entanto, não se limita somente à relação explícita de um
determinado texto com outro; esta retomada pode se dar também pela vinculação entre os
gêneros ou com outras expressões artísticas como pintura, escultura, cinema, entre outros.
Como podemos constatar a partir da leitura de Compagnon, todo texto – e aqui
utilizamos o conceito de texto de Kristeva, como sinônimo de discurso – se apresenta em
relação com outro(s), pois está inserido em um sistema e surge para dialogar com ele, seja
para confirmá-lo, repensá-lo, ou contrariá-lo. Se a obra não for colocada em um contexto, não
for relacionada com algo que a precedeu, se torna, segundo Jenny, uma palavra desconhecida:
“Fora da intertextualidade, a obra literária seria muito simplesmente incompreensível, tal qual
a palavra duma língua ainda desconhecida.” (1979, p.5, tradução nossa).
A partir das constatações de Bakhtin e de Kristeva, que foram aprofundadas por
muitos outros estudiosos, foi possível olhar para os textos literários de uma nova forma, em
que seria impossível negar o importante papel da tradição e do diálogo que ela provoca em
cada nova obra. Desta forma é que pretendemos olhar para O doente Molière e buscar as
“intenções” que estão por trás do diálogo tanto no âmbito temático quanto no formal que é
travado principalmente com a peça O doente imaginário sem, contudo, esquecer as demais
citadas ao longo do romance.
Portanto, é a partir da segunda metade do século XX que a consciência e a valorização
da intertextualidade como recurso da produção literária passaram a ser exploradas mais
deliberadamente e, desta forma, houve uma retomada significativa em romances, contos e
outros gêneros do uso da intertextualidade de uma forma bastante racional, chegando até
mesmo a se configurar como um jogo entre autor e leitor.
109
Com isso, os estudos da intertextualidade começaram a proliferar a tal ponto que hoje
é praticamente impossível não tentar fazer a relação entre o texto que lemos e tudo o que seu
autor leu, além das marcas deixadas por estas leituras. E também das nossas leituras.
Como vimos, o desenvolvimento dos estudos sobre intertextualidade teve um
momento menos intenso e difícil no passado, pois não havia uma tradição de estudos desta
natureza. Segundo Paulino, Walty & Cury (1995, p.21), a crítica literária do Romantismo
privilegiava a originalidade e, desta forma, a relação entre os textos ficava em segundo lugar e
a intertextualidade não era percebida como um processo constitutivo da literatura. Isso
determinou o fato de que até meados do século XX estudos deste tipo praticamente não
existissem.
De acordo com Jenny (1979, p.6), se este aspecto da obra literária pôde ser omitido
por tanto tempo, foi porque seu código cegava de tão evidente, e somente a partir do momento
em que uma crítica formal se revelou foi possível situar a intertextualidade no funcionamento
da literatura.
Atualmente, contudo, as relações intertextuais têm ganhado bastante interesse e,
embora existam muitas linhas teóricas que, inclusive, diferem entre si, por sugerirem termos e
perspectivas distintas, a premissa de que é impossível ler um texto que utilize uma forma ou
um tema pela primeira vez, ou em outras palavras, que seja totalmente original, é um
consenso geral. Portanto, a percepção de que existem estas relações é o ponto de partida que
possibilita olhar para o panorama literário sem que se esqueça de que cada obra surge dentro
de um sistema que pode determinar essa obra através de uma influência positiva, ou
negativamente.
Esta tendência da literatura contemporânea e, principalmente da pós-moderna, impede
que a leitura seja passiva ou um simples passatempo, mesmo que o leitor assim o queira, pois
ele é jogado para dentro da obra e se torna parte indispensável na criação do sentido do texto.
A leitura pós-moderna se torna uma caça às citações, alusões e ao processo de aquisição de
conhecimento, fazendo com que o leitor, desta forma, se identifique com um detetive que faz
investigações em busca da biblioteca do autor que lê; um jogo consciente de esconde e revela,
pois cada texto tem em sua tessitura fios de inúmeros outros textos e, a partir de uma
determinada obra, passa-se a ter contato com um grande número de outras por meio das
relações intertextuais.
Essas relações podem aparecer de duas maneiras: a primeira é quando as referências
estão explícitas, quando o autor cita as leituras que fez durante sua trajetória e revela
110
abertamente a identidade dos autores com quem dialoga. A segunda, muito mais comum na
contemporaneidade, é quando as referências estão deliberadamente implícitas, e o autor
incorpora ao seu texto imagens, expressões e pensamentos de outros sem identificar ou
indicar a existência deste processo. Isso, além da possibilidade de se tornar um jogo, uma
investigação, proporciona a possibilidade de variadas leituras de um mesmo texto, conforme o
reconhecimento ou não das citações.
Autores como Ítalo Calvino, Umberto Eco, Gabriel García Márquez, Jorge Luis
Borges, José Saramago, James Joyce, Osman Lins, Moacyr Scliar e Rubem Fonseca, entre
inúmeros outros, recheiam seus textos com citações, alusões e referências, parodiando e/ou
reescrevendo textos da tradição literária, o que enriquece o repertório do leitor, pois a leitura
deixa de ser plana e acabada para se tornar uma rede infinita de ligações. Um texto leva a
outro, que remete a um terceiro e, assim por diante, fazendo uma ligação entre eles em um
emaranhado de leituras que se entrecruzam.
Esta retomada de obras anteriores é um processo muito importante da produção de
cada época, pois cada nova obra, segundo o pensamento de Bloom (1991), vem contestar as
predecessoras, num processo edipiano de matar o pai, ou seja, a geração mestre. A partir de
cada nova obra, o déjà écrit tem que ser repensado e reavaliado, pois, como ela nasce dentro
de um sistema pré-estabelecido, vem para desestabilizá-lo.
Além disso, segundo Ivete Lara Camargos Walty e Maria Zilda Ferreira Cury,
referências, alusões, epígrafes, paráfrases, paródias ou pastiches são algumas das formas de
intertextualidade de que lançam mão os escritores em seu diálogo com a tradição. Para
exemplificar esse diálogo as teóricas citam exemplos na literatura em que isso ocorre:
Tomás Antônio Gonzaga retoma Camões. Drummond retoma Gonzaga.
Adélia Prado retoma Drummond. Eça de Queiroz relê Flaubert, relido
também por Machado de Assis. Esse diálogo, no entanto, não se dá sempre
em harmonia. Se a tradição pode, de certa forma, ser reiterada com as
diferentes retomadas que dela se fazem, pode também ser relativizada ou
mesmo negada. (2005)
Outra questão apontada por elas é o questionamento, na contemporaneidade, do
plágio, que passa a ser desqualificado como roubo. Michel Schneider (1990), citado pelas
autoras, faz isso quando discute a questão da autoria:
Se todo texto é só uma série de citações anônimas, não susceptíveis de
atribuições, por que então assinar um texto defendendo essa
intertextualidade absoluta? Se o texto moderno, segundo Barthes, essa
111
“citação sem aspas”, por que deveria ficar ligado a um nome, uma vez que
esse nome não poderia, de modo algum, atestar ou indicar a origem? (2005)
Através de um texto de Borges, “Kafka e seus precursores”, como lembram Walty e
Cury,
é possível perceber que a intertextualidade, quando centrada na figura do leitor, perturba
qualquer possibilidade de cronologia rígida para a historiografia literária, na medida em que
as associações feitas são livres. Borges inverte o processo de produção textual transformando
Kafka em modelo para aqueles que escreveram antes dele. Isso é possível porque o leitor ativa
sua biblioteca interna a cada texto lido, estabelecendo nexos relacionais entre o que lê e o que
já foi lido.
Walty e Cury
atentam ainda para o fato de que até mesmo o conceito de tradução é
revisto, numa perspectiva intertextual, como uma leitura da obra, uma recriação. Assim são
relativizadas as noções de cópia e modelo, fonte e influência. Isso porque, segundo elas, a
cópia pode levar a uma releitura desconstrutora do modelo:
A crítica literária brasileira contemporânea, valendo-se de tais relativizações,
produziu textos que nos permitem reler a própria história da colonização
com novos olhos. Ensaios como “Nacional por subtração”, de Roberto
Schwarz (1989); “O entre-lugar do discurso latino-americano”, “Eça, autor
de Madame Bovary” (1978) e “Apesar de dependente, universal” (1982), de
Silviano Santiago; e “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura
brasileira”, de Haroldo de Campos (1992) integram esse debate. (2005)
A literatura, a crítica, enfim, todas as formas de expressar a arte ou dela tratar,
configuram-se à luz destes novos conceitos, como “retomadas de outras produções,
perfazendo um jogo infinito que enreda autores e leitores”. Schneider retomando a idéia de
Genette afirma:
O texto literário é um palimpsesto. O autor antigo escreveu uma “primeira”
vez, depois sua escritura foi apagada por algum copista que recobriu a
página com um novo texto, e assim por diante. Textos primeiros inexistem
tanto quanto as puras cópias; o apagar não é nunca tão acabado que não
deixe vestígios, a invenção, nunca tão nova que não se apóie sobre o já-
escrito. (apud WALTY, CURY, 2005)
Diluir questões como a da leitura e do próprio ato de fazer literatura em textos que
chamam atenção do público pelo gênero e/ou pela intriga é um artifício que tem sido muito
explorado pelos escritores contemporâneos, que cada vez mais têm que lutar contra a
televisão e a internet, que proporcionam entretenimento rápido e sem que haja muito esforço
112
por parte do espectador e que vêm transformando as pessoas em leitores passivos, que criam
resistência em ler romances que exigem uma maior dedicação.
É claro que muitos outros fatores têm contribuído para o agravamento desta questão,
como a escassez de tempo do homem na contemporaneidade, que precisa realizar muitos
projetos ao mesmo tempo. Contudo, o que estamos tentando discutir é a leitura na
contemporaneidade e os artifícios aos quais os escritores têm aderido para conseguir atingir os
leitores.
Dentre os artifícios utilizados pela literatura contemporânea e, principalmente a pós-
moderna, destaca-se a mescla dos diversos gêneros, e também o uso da intertextualidade. Por
meio da relação com outros livros ou mesmo com histórias que estão no consciente popular, o
escritor consegue encontrar um mote para levar o leitor a estabelecer uma relação entre os
outros textos citados ou parodiados e traçar ele mesmo tais relações intertextuais.
É desta maneira, tendo em vista esse jogo de leituras entrecruzadas, que procuramos
abordar O doente Molière, pois, nesta obra, todas as grandes peças do dramaturgo francês do
século XVII são recuperadas e expostas a um público distante daquele que assistiu Molière
nos palcos do Palais-Royal, mas ao qual esta obra ainda tem muito a dizer, e se torna mais
interessante pela nova forma como é apresentada.
Neste romance, Rubem Fonseca, além de dialogar com a peça que é o seu substrato
motivador – O doente imaginário (1673) –, insere trechos de outras peças do mesmo
dramaturgo. Podemos observar que, no início dos capítulos 1: “Uma profissão infame” (p.17);
5: “Os salões das preciosas ridículas – e das não ridículas” (p.53); 6: “A encarnação do
demônio” (p.67); 7: “Dom Juan, o pecador irresistível” (p.79), e 8: “Sangria, clister e
vomitório” (p.85), aparecem trechos de peças de Molière, que são, respectivamente, O doente
imaginário (1673), As preciosas ridículas (1659), Tartufo (1664), Don Juan (1665) e O amor
médico (1665).
Entretanto, não há referência apenas à obra de Molière, pois outros escritores
contemporâneos a ele também desfilam ao longo do romance, como é o caso de Racine,
Corneille, Madame de Sévigné, La Fontaine, Boileau, Chapelle, Madame de La Fayette e La
Rochefoucauld. Além disso, também aparecem no romance discussões sobre leituras feitas na
época, como o caso da obra de Montaigne, que é citada ao longo de todo o livro.
Ainda é traçado um diálogo com a biografia do dramaturgo: são inseridos fatos de sua
vida pública e particular, detalhes sobre a criação e a adaptação de suas peças, em uma
tentativa de refazer os passos de Molière que o levaram à glória e também de mostrar as
113
inúmeras críticas que sofreu e tudo que teve que enfrentar ao decidir criticar setores poderosos
da sociedade francesa do século XVII.
Como vimos na primeira parte deste texto, há uma grande mescla de gêneros e
subgêneros que constituem o romance e que fazem parte de um processo que chamamos de
hibridismo genérico. Neste capítulo, gostaríamos de apontar para o fato de que a relação
intertextual, além de decorrer do diálogo entre determinadas obras artísticas, tamm pode ser
identificada na relação entre diversos gêneros, o que chega a dificultar, senão impossibilitar, a
inclusão da narrativa dentro dos padrões de determinado gênero.
É o que acontece com O doente Molière pois, ao dar-lhe um rótulo, como por exemplo
de “romance histórico”, perde-se todo um efeito de leitura e deixa-se de notar os aspectos
referentes a outros gêneros, como romance policial, drama, entre outros; embora considere as
outras relações intertextuais que estão arraigadas ao gênero, principalmente no que diz
respeito aos textos da historiografia. Contudo, esta é uma marca importante da pós-
modernidade, há variadas maneiras de se ler o mesmo romance sem que haja perdas com isso;
muito ao contrário, como nos mostra a teórica do pós-modernismo, Linda Hutcheon, já que
cada nova leitura, cada nova perspectiva encontrada pelo leitor soma pontos, tanto para a obra
como também para ele.
Como podemos observar, o texto de Rubem Fonseca, bem de acordo com a literatura
pós-moderna, sugere um grande leque de leituras que podem ser realizadas, de acordo com o
caminho que cada um decide seguir. Neste momento, portanto, se faz necessário optar por
algumas coisas e deixar outras de lado: assim, a leitura que iremos desenvolver neste capítulo
abordará mais profundamente apenas a relação intertextual entre O doente Molière e a obra de
Molière e, dada a sua relativa extensão, mais especificamente com a peça O doente
imaginário. Também a relação intertextual entre os subgêneros romanescos que mais se
destacam, como o romance histórico, o policial, o memorialístico e o gênero teatral ganham
lugar em nosso estudo.
114
3.2. O teatro de Fonseca
Ao abrir o romance, após o sumário, a página que temos diante dos olhos leva ao alto:
“Principais personagens desta novela (por ordem de aparição)” (FONSECA, 2000, p.9), em
que os personagens são dispostos em uma lista, com seus nomes, ocupações e alguns até com
características de personalidade.
Este aspecto da obra, que pode até passar despercebido em um primeiro momento,
começa a incomodar, a provocar estranhamento quando ganha a devida atenção. Pois, se se
trata de um romance histórico-policial, qual a finalidade de elencar os personagens, e ainda
mais por ordem de aparição, como acontece nas peças teatrais?
Responder a esta questão não é tão simples quanto pode parecer, mas um dos
primeiros motivos que conseguimos enxergar é o de reforçar o que o título, O doente Molière,
deixa claro: trata-se de uma obra que estabelece uma relação intertextual com outra: O doente
imaginário, de Molière. Contudo, a partir da leitura do livro, observamos que essa relação não
se dá apenas no âmbito desta obra, mas também com o próprio gênero teatral, pois vários
trechos de peças são citados ao longo das 145 páginas do romance.
Como sabemos, as peças teatrais são escritas principalmente visando à representação
cênica. Portanto, o autor, já no início de seu texto, fornece dados que serão essenciais para o
diretor na escolha do elenco e na montagem da peça. Como no teatro, o texto se restringe
basicamente às falas dos personagens, não há espaço para outras informações, a não ser nas
didascálias, ou seja, em tudo o que no texto dramático não se destina a ser dito pelos
personagens e que, na representação cênica, desaparece enquanto discurso e surge diante dos
espectadores como ação ou presença física, sejam elas expressões fisionômicas dos atores,
objetos ou cenário:
As didascálias, que são a voz directa do dramaturgo, diferenciam-se
visualmente do resto do texto por estarem escritas entre parêntesis ou por
estarem impressas em itálico, ou de qualquer outra forma que marque bem
que se trata de um texto à margem das falas das personagens. Tais
indicações cumprem uma dupla função: situam o diálogo, a acção, num
contexto imaginário, a nível do acontecimento ficcional (aproximando-se do
papel da descrição no género narrativo) e, a nível da representação, fornecem
instruções àqueles que transformam o texto em espectáculo (encenadores,
actores, cenógrafo...). A segunda função evoca o significado da palavra
grega que está na origem do termo “didascália” - “didaskália” (“instrução”) e
do verbo “didáskein” (“ensinar”). (MIGUEL, 2005)
115
Entretanto, como o romance supõe uma leitura silenciosa e solitária, sua estrutura
flexível permite ao escritor apresentar os personagens no decorrer da narrativa, podendo,
assim, discorrer aleatoriamente sobre suas características físicas e psicológicas, bem como
narrar suas aventuras. Por isso não haveria necessidade de os personagens estarem dispostos
em uma lista no início do texto.
A partir destas reflexões, a conclusão a que se pode chegar é que o autor utiliza este
recurso estrutural do texto teatral exatamente para explicitar a relação interdiscursiva que está
estabelecida no romance. O narrador irá recuperar algumas das grandes peças de Molière com
a aparente intenção de recordar os fatos que envolveram suas estréias e a recepção do público
para, desta forma, descobrir quem poderia ter sido o assassino do amigo. Contudo, o que pode
ser de fato a intenção do autor é o que a própria coleção de que o romance faz parte sugere:
resgatar grandes autores através de suas obras e biografias.
Apesar de a lista de personagens ser semelhante às dos textos teatrais, ela se diferencia
em um aspecto: o fato de haver, além dos nomes dos personagens, algumas colocações que
dizem respeito às características psicológicas e ao comportamento social dos mesmos. Esta é
uma saída bem sucedida para manter no plano formal uma estrutura parecida com a do texto
dramático, mas sem, contudo, deixar de incluir características da prosa romanesca.
Avançando um pouco mais a leitura, uma espécie de prólogo chama a atenção mais
uma vez. Sob o título de “Registros”, o narrador explica o que escreve e o motivo pelo qual
escreve. Trata-se de um marquês que prefere se manter anônimo: ele, que outrora sonhara em
ser um grande autor de tragédias, decide agora publicar um livro contendo suas memórias.
Tendo como recurso a metalinguagem, o Marquês Anônimo se apresenta e expõe ao
leitor a gênese da obra que apresenta e os motivos que o levaram a publicá-la. Assim se inicia
o prólogo: “Sou um marquês de ilustre estirpe, da melhor nobreza, mas não sou escritor,
apenas um leitor constante dos bons autores. Gostaria de escrever para teatro, de ser como o
meu amigo Molière ou como Racine”. (FONSECA, 2000, p.15)
Por ser um leitor voraz dos grandes autores e um amante das artes, sente despertar em
si o desejo de também se tornar um nome consagrado da literatura. Por isso decide escrever
uma tragédia. E, para ter seu talento comprovado, pede a Racine que a leia. O dramaturgo,
muito objetivamente, o aconselha a desistir do teatro, pois, além de se tratar de um gênero que
requer um dom especial que ele não tem, exige também um conhecimento de inúmeros
preceitos que ele ignora. E acrescenta que, se ele tivesse vontade de escrever, deveria produzir
cartas ou diários, que não supõem obediência a regras e nem requerem talento. Certamente
116
toda essa franqueza fere o ego do Marquês e faz com que ele passe a desprezar Racine. Prova
disso é que ele jamais irá demonstrar afeição pelo autor de Andrômaca (1667) e Fedra (1677)
em seus relatos.
Contudo, o Marquês Anônimo não se satisfaz com a resposta de Racine e procura
Molière pedindo-lhe que leia sua peça e diga o que dela pensa. Molière demora vários dias até
dar uma resposta e, quando o faz, é de maneira evasiva, dizendo que as tragédias são mais
difíceis de agradar, e que, embora sua peça tivesse muitas qualidades, ainda não estava pronta
para ser encenada. O Marquês compreende que aquela havia sido uma maneira sutil que seu
amigo encontrou de lhe dizer o mesmo que Racine já havia dito em outras palavras: que ele
era um escritor medíocre. Ele aparentemente se conforma com isso e desiste de escrever para
o teatro e de ser um artista, passando então a ter como lema uma frase atribuída a Montaigne:
“Minha arte e minha profissão é viver.” (FONSECA, 2000, 16). Ele afirma ainda não se
aborrecer com Molière, pois o ama.
O hábito por ele cultivado ao longo dos anos de registrar em cadernos os
acontecimentos que lhe chamavam a atenção faz com que ele decida selecionar alguns trechos
dessas anotações para serem publicados como parte de suas memórias, cujo tema central,
segundo ele, é o mistério da morte de Molière.
Como o Marquês é uma figura muito ambígua e suas frases têm sempre um jogo de
dissimulação em que ora mostra uma face, ora esconde outra, não seria difícil acreditar que a
publicação de uma obra tão instigante não fosse um mero ardil com intuito de provar a Racine
seu engano, portanto, a questão não seria a de ele ser um escritor medíocre, mas de não ter
utilizado o gênero apropriado.
Nas entrelinhas de toda essa discussão entre os gêneros aparecem principalmente dois
elementos importantes do século XVII, que o situam como um momento de transição. O
primeiro é a questão do gênero, do surgimento do romance, como gênero em desenvolvimento
e prestes a “tomar” o lugar dos tradicionais. O segundo elemento que desponta neste episódio
é a ascensão da burguesia e o fim da nobreza, dos tempos heróicos. O escritor que tem o
sucesso no momento é Racine, um burguês que vive de seu trabalho, enquanto que o nobre de
“ilustre estirpe”, aparentemente, não consegue alcançar seu objetivo.
117
3.3. Rubem Fonseca leitor de Molière: O mito de Dom Juan e a construção dos personagens
dos romances fonsequianos
Em 15 de fevereiro de 1665, Molière e sua trupe, que nesta época levava o nome de
Troupe de Monsieur, por ser patrocinada pelo irmão do rei Luís XIV, representam pela
primeira vez a peça Dom Juan, ou le festin de pierre. A peça, embora tenha sido um sucesso
de público durante as quinze primeiras apresentações, contribuiu significativamente para o
aumento da querela com os grupos de devotos e foi impedida de ser representada durante
muitos anos. Sua volta aos palcos ocorreu somente após a morte de seu autor.
Dom Juan, traz a história de um jovem nobre que cultiva o gosto pela conquista de
belas jovens, desafiando, desta forma, as regras sociais e religiosas, pois não quer ligar-se a
nenhuma mulher por muito tempo, mas somente pelo tempo necessário para satisfazer seus
desejos.
Embora tenha desenvolvido bem o personagem, Molière não foi o responsável por sua
criação. Segundo afirmam os pesquisadores do mito, como Ian Watt (1997), Pierre Deshusses
(1984) e Leyla Perrone-Moisés (1988), o mito de Dom Juan surgiu na Espanha e de lá passou
para a Itália e depois para a França. Há um consenso de que o primeiro registro escrito do
mito de Dom Juan seja El burlador de Sevilla y el convidado de piedra, do escritor espanhol
Tirso de Molina.
Ian Watt, em seu livro Mitos do individualismo moderno, em que analisa, além de
Fausto, Dom Quixote e Robinson Crusoe, também o mito de Dom Juan, destaca que El
burlador de Sevilla foi publicado em 1630, como parte integrante de uma coleção que
continha doze peças de diversos autores. No entanto, há uma incerteza quanto à data de sua
criação, mas para Watt ela possivelmente se deu por volta de 1616, quando é certo que
Molina esteve em Sevilha.
A peça El burlador de Sevilla, de Molina, alcançou um considerável – mas não
excepcional – sucesso na Espanha. Em outros países, no entanto, começou a ser recebida
antes mesmo que decorresse o tempo de uma geração. Neste mesmo período registraram-se
fora da Espanha nada menos que cinco diferentes versões dramáticas. Molière, que sem
dúvida conhecia algumas dessas peças e sentiu-se atraído pelo tema rapidamente
popularizado, decidiu retomá-lo e escreveu seu Dom Juan, ou le festin de pierre.
Durante muito tempo a crítica foi hostil com relação à peça, mas já há algum tempo,
especialmente depois da montagem de 1947 em Paris, em que célebres atores a representaram,
Dom Juan passou a ser sua peça mais discutida. Watt destaca que entre o período que vai de
118
1802 a 1961 haviam sido publicados apenas trinta e dois livros a respeito desta peça, enquanto
que entre 1961 e 1993, surgiram vinte e sete novos livros dedicados ao Dom Juan de Molière.
(WATT, 1997, p. 210).
Além de Molière, muitos outros escritores de todos os tempos se propuseram a recriar
Dom Juan, são vários os exemplos de narrativas que direta ou indiretamente retomam este
personagem. Contudo, embora algumas das características do personagem de Tirso de Molina
tenham sido alteradas ao longo do tempo nas várias versões, é possível verificar que traços
importantes da personalidade do personagem foram preservados. Leyla Perrone-Moisés, em
seu ensaio “Don Juan na literatura de hoje”, ao analisar exemplos de narrativas
contemporâneas em que o mito do sedutor é recobrado (La Habana para um infante difunto,
do cubano Guillermo Cabrera Infante; Babel de una noche de San Juan, 1º tomo da série
Larva, do espanhol Julián Rios, e Le Coeur absolu, do francês Philippe Sollers), destaca
alguns deles: “Outros traços de Don Juan que todos eles partilham são a vitalidade, a
irreverência, a provocação, a ausência de sentimento de culpa, por outras palavras sua incrível
saúde física e mental.” (1988, p.131).
A partir de tais considerações passemos, portanto, a alguns romances de Rubem
Fonseca em que se pode constatar que este mito foi recobrado, ainda que de maneira indireta.
Em seu texto “Don Juan e seus artifícios” (2003, p. 63), Figueiredo discorre sobre a
semelhança encontrada entre a figura deste sedutor, que é um “herói inconstante, que cria a
ilusão de mudança através dos disfarces que gosta de usar, que assume outros rostos quando
lhe interessa, que se multiplica.” (FIGUEIREDO, 2003, p. 66) e os narradores dos romances
de Fonseca, que também são personagens que vivem rodeados por mulheres e empenham
parte de suas vidas em novas conquistas, indo de mulher a mulher, mas não por falta de amor,
como bem lembra Figueiredo. Eles seriam, portanto, “encarnações” de Dom Juan, inclusive
pelo fato de muitas vezes estarem envolvidos em grandes problemas por conta destas
conquistas. Basta lembrar os “apuros” enfrentados por Gustavo Flávio (personagem do
romance Bufo & Spallanzani, de 1986) ou Mandrake (personagem de A grande arte, de 1983
e de vários contos) e como eles conseguem abalar relações em que havia amor somente por
causa de mais uma aventura amorosa, ou como esse ímpeto de conquistador acaba por lhes
atrapalhar a vida profissional.
Gustavo Flávio, por exemplo, em sua angústia de escrever, comenta que não consegue
compreender Flaubert, que dizia que era necessário economizar as energias para a escrita,
119
citando para isso a frase atribuída ao escritor: “réserve ton priapisme pour le style, foutre ton
encrier, calme-toi sur la viande.” (FONSECA, [s.d.], p. 8), e diz que ele não “fode seu
tinteiro”, não consegue deixar de ter amantes, pois é uma necessidade sua, como é para outros
escritores diferentes de Flaubert, mas “em compensação não tenho vida social, não atendo o
telefone, não respondo cartas, só revejo meu texto uma vez, quando revejo.” (FONSECA,
[s.d.], p. 8) Desta maneira, Gustavo Flávio vive como Dom Juan, que também não tinha vida
social, pois sempre precisava se esconder e fugir após cada nova conquista.
O Marquês Anônimo, da mesma forma, tenta seguir uma máxima de Montaigne, que
aconselha a fugir da volúpia ainda que isso custe a vida. Nos Ensaios, Montaigne realmente
escreve:
Os sábios bem ensinam a nos precavermos contra a traição dos nossos
apetites e a discernir entre os prazeres verdadeiros e integrais e os prazeres
díspares e mesclados com mais trabalhos. Pois a maioria dos prazeres, dizem
eles, excitam e abraçam para nos estrangular [...]. Deve dizer adeus a toda a
espécie de esforço, sob qualquer aparência que se apresente; e fugir em geral
das paixões que impedem a tranquilidade do corpo e da alma, e escolher o
caminho que for mais de acordo com o seu humor. (MONTAIGNE, 2003)
No entanto, ele não consegue e quase é arrastado à forca por causa de sua volúpia,
pois sua paixão por Marie-Madeleine d’Aubray é tão voraz e ele se entrega tão ingenuamente
que não consegue enxergar quem ela é realmente.
Mandrake, por sua vez, diz que a culpa de ele não conseguir ser fiel a nenhuma mulher
é delas próprias, pois mesmo que ele ficasse quieto, elas o provocavam. Assim, de mulher em
mulher, ele ia vivendo, pois “era bom não resistir à sedução de uma mulher bonita. Ada, a
graça muscular; Lilibeth, o matiz da pele. Pensei em Berta Bronstein e Eva Cavalcanti
Meier.” (FONSECA, 1990, p. 38). Mandrake age exatamente igual ao Dom Juan de Molière,
que dizia a Sganarelle que não se podia, ao avistar uma bela mulher, esquecer que existiam
outras, era necessário fazer justiça a todas as belezas.
Esta relação entre os personagens de Fonseca e o mito do sedutor imortalizado
também por Molière ressalta ainda mais a intertextualidade entre os textos dos dois escritores.
Ainda mais quando nos lembramos, mais uma vez, que o Dom Juan de Molière é um texto
que faz parte da biblioteca particular do escritor Rubem Fonseca, pois os ecos desta leitura
são encontrados, além de em O doente Molière, também em E do meio do mundo prostituto
só amores guardei ao meu charuto, que utiliza um trecho da peça como epígrafe.
120
Desta forma, ao estabelecer esta relação intertextual na criação dos personagens,
Figueiredo não está descobrindo uma mera coincidência, mas apontando para um processo de
incorporação da leitura das peças de Molière na obra de Fonseca.
Sobre O doente Molière, ela comenta:
O próprio narrador pode ser visto como um personagem de Molière – sua
vida, suas opiniões, por vezes, confundem-se com as de Don Juan, e, como
este, o Marquês também assume várias máscaras e daí explica-se o fato de
ele não ter nome próprio. Não custa lembrar que Don Juan apresenta-se para
Isabel, em El burlador de Sevilla, de Tirso de Molina, como homem sem
nome. (2003, p. 66).
O fato de o Marquês não se nomear pode ter diversas razões, mas sem dúvida a
explicação dada por Figueiredo é extremamente convincente, pois ao retomar características
próprias de um personagem que se tornou um mito moderno, Fonseca está inserindo seu
personagem em uma grande rede de relações intertextuais, portanto, nada mais natural que
estabelecer um jogo também com o primeiro Dom Juan. Leyla Perrone-Moisés observa que
nos três romances que estuda o personagem principal também é ‘un hombre sin nombre’,
como o Don Juan Tenório, de Tirso de Molina. (1988, p. 132)
Não se pode esquecer que El burlador de Sevilla é uma peça que surge na época da
Contra-Reforma e que pode até mesmo ser lida como uma obra didática e moralizante, pois o
personagem Dom Juan Tenório é construído dentro de uma concepção maniqueísta em que
existe o Bem e o Mal e conforme o arrependimento ou não, ele pode ser salvo ou punido.
Mas Watt aponta como característica básica deste personagem o fato de ele querer
tornar-se uma lenda viva, pois o Dom Juan de Tirso de Molina não estaria interessado
verdadeiramente no amor, na verdade, ele não é nem mesmo um grande amante das mulheres:
É absolutamente significativo o fato de que os quatro encontros sexuais de
Dom Juan apresentados na peça resultem de engodos. Nos casos de Dona
Isabel e Dona Ana, Dom Juan é recebido não como ele mesmo, mas como
Dom Octavio e de La Motta, respectivamente; nos casos de Tisbea e Aminta
– em que não se disfarçam porém faz uso de certa retórica amorosa – a
mulher só se rende depois de receber as mais solenes e repetidas propostas
de casamento imediato. (WATT, 1990, p. 107-108)
Afora isso, ele não se configura um amante das mulheres principalmente pelo fato de a
escolha da mulher ser sempre puramente circunstancial e pelo ato amoroso durar apenas o
tempo necessário para sua satisfação carnal. Watt destaca que “nos casos de Aminta e Tisbea,
121
antes mesmo de ir para a cama com as seduzidas ele ordena a Catalinón que mantenha os
cavalos selados, prontos para uma rápida fuga.” (1990, p. 108).
Esta seria, portanto, uma das principais diferenças entre o Dom Juan de Tirso de
Molina e o de Molière, pois embora o amor declarado pelo personagem do dramaturgo
francês seja, de fato duvidoso, ele é atraído pelas mulheres, sendo a beleza delas o que o move
em suas conquistas.
Watt (1997) destaca que, além dos dois temas aparentes na peça de Molina, o do
velhaco que ludibria quatro mulheres e o da estátua de pedra de um homem morto que é
convidado para cear, há ainda um terceiro tema que está expresso por uma frase que aparece
várias vezes na peça e, que segundo pesquisas, seria seu nome primitivo: “Tan largo me
fiáis”, que é uma expressão espanhola que significa “Que longo prazo me dais”.
Dom Juan é, portanto, um homem que acredita que pode viver seus desatinos
conforme deseja e que um dia, quando estiver velho, poderá pedir perdão e se arrepender de
seus pecados, sendo salvo do castigo eterno pregado pela Igreja; portanto, de algum modo, ele
se caracteriza como um personagem cristão, embora apresente uma lógica hipócrita. Ele é,
segundo as palavras de Watt, “um emblema moral” (1990, p. 126).
O Dom Juan de Molina é um vilão irremediável, não um trapaceiro cômico;
ele não tem a seu favor uma só boa ação, sequer um único pensamento
generoso. O propósito de Molina era forçar seu público a tirar conclusões
positivas do impiedoso castigo a que Deus submete a alma de Dom Juan.
(1990, p. 126).
O personagem de Molière, por outro lado, se mostra descrente de todos os preceitos
católicos, é cético e sem nenhum remorso, posicionando-se contra a moral e a religião.
Segundo Alfred Bonzon (1960, p.99), Molière utiliza a figura de Dom Juan, conhecida do
público, para encarnar sua revolta contra o clero que o perseguia, e isso não quer dizer que
Molière seja cínico, ateu e profanador como Dom Juan, mas neste momento ele busca a
vingança de ver, no quinto ato, seu perverso personagem dar uma lição aos hipócritas.
Além disso, o personagem é construído com uma fundamentação teórica que justifica
sua transgressão aos valores. São várias as cenas em que ele discorre sobre o motivo de suas
conquistas e acrescenta razões que quase convencem o próprio Sganarelle, que nunca está de
acordo com suas atitudes. No trecho a seguir, depois de ouvir as explicações de Don Juan
sobre o motivo de ele não poder se contentar com a primeira moça que encontra, Sganarelle se
mostra confuso:
122
Sganarelle – Realmente! Eu tenho a dizer..., eu não sei o que dizer; porque o
senhor muda as coisas de uma maneira, que parece que o senhor tem razão, e
todavia é verdade que o senhor não a tem. Eu tinha os mais belos
pensamentos do mundo, e seus discursos me confundiram todo. Desisto;
numa outra oportunidade eu colocarei minhas argumentações por escrito
para discutir com o senhor. (MOLIÈRE, 1956, p. 780 – a tradução é nossa)
17
O Marquês pode ser considerado uma encarnação deste mesmo Dom Juan porque não
acredita nas punições pregadas pela Igreja. Ele vive desregradamente, tem várias amantes e
compartilha das opiniões de Molière sobre o clero, chegando a afirmar que um de seus
integrantes poderia ser o responsável pelo assassinato do seu amigo.
Portanto, ao construir um personagem inspirado em Dom Juan, Rubem Fonseca
resgata, além da relação com o Dom Juan de Molière, uma relação com toda a tradição da
literatura que abordou este tema, ressalvadas as suas diferenças. E assim também o Marquês
que usa várias máscaras, é ambíguo e encobre suas verdadeiras intenções, tendo o leitor de
desconfiar delas.
3.4. Dom Juan e o Marquês Anônimo: o mito do conquistador na pós-modernidade
Como vimos anteriormente, tanto Dom Juan como o Marquês Anônimo são exímios
sedutores que, por amarem demais a beleza feminina, não conseguem ser constantes no amor.
No entanto, uma diferença os separa: Dom Juan não consegue manter um relacionamento
estável com nenhuma mulher por muito tempo, ele gosta somente da conquista, dos
momentos que antecedem a conjunção carnal; assim, ele faz inúmeras promessas, inclusive a
de tomar a moça em casamento, mas, ao alcançar seu objetivo que é o de ver a amada
entregue à sua paixão, ele a abandona. O motivo é explicado por ele mesmo a seu criado
Sganarelle:
Experimentamos uma doçura extrema em vencer por cem homenagens o
coração de uma bela jovem, em ver dia a dia os pequenos progressos que
nisso fazemos, em combater por manifestações exaltadas, por lágrimas e
suspiros, o inocente pudor de uma alma que a muito custo entrega as armas,
em forçar passo a passo todas as pequenas resistências que ela nos opõe, em
17
Sganarelle. – Ma foi! J’ai à dire..., je ne sais que dire; car vous tournez les choses d’une manière, qu’il semble
que vous avez raison; et cependant il est vrai que vous ne l’avez pas. J’avais les plus belles pensées du monde, et
vos discours m’ont brouillés tout cela. Laissez faire; une autre fois je mettrai mes raisonnements par écrit pour
disputer avec vous. (MOLIÈRE, 1956, p. 780)
123
vencer os escrúpulos de que ela se honra e em levá-la docemente até onde
temos vontade de fazê-la ir. Mas quando chegamos a vencê-la, não há mais
nada a dizer e nem a desejar; toda a beleza da paixão acaba aí. (MOLIÈRE,
1956, V. I, p. 779-780 - a tradução é nossa)
18
Portanto, para ele, o único prazer encontrado numa relação amorosa está no tempo em
que a conquista dura, é o prazer de ouvir um “não” que o leva a lutar com todas as suas armas
até conseguir o “sim” desejado. Mas depois de já ter dominado o coração uma vez, não lhe
resta nada mais a fazer, segundo suas próprias palavras, depois da conquista efetivada; só se
pode afundar em uma afeição sonolenta e doméstica, até surgir outro amor. E é isso o que
mais provoca a revolta dos religiosos que tentam proteger “a moral e os bons costumes”, e
que são representados pelo personagem Sganarelle que, embora não possa demonstrar isso a
seu amo, confirma não aceitar as suas atitudes e o define a Gusman da seguinte maneira:
Mas por precaução eu te conto, inter nous, que Dom Juan, meu mestre, é o
maior celerado que a terra jamais viu, um furioso, um cão, um demônio, um
Turco, um herege, que não crê nem em Céu nem em Inferno [...]. Não lhe
custa nada prometer casamento, é o que ele utiliza como armadilha para
enganar as moças, e é um noivo de mão-cheia. (MOLIÈRE, 1956, v. I, p.
777 – a tradução é nossa)
19
Um pouco mais à frente, Dom Juan faz um grande discurso explicando a Sganarelle
por que ele não pode ser fiel a uma só mulher, pois, como há muitas mulheres bonitas, ele tem
que fazer justiça a todas, e não é o fato de ter encontrado uma bela mulher que o fará fechar os
olhos para todas as outras. No trecho a seguir podemos observar a frieza do caráter de Dom
Juan e a maneira como ele concebe o amor:
18
On goûte une douceur extrême à réduire par cent hommages le coeur d’une jeune beauté, à voir de jour en jour
les petits progrès qu’on y fait, à combattre par des transports, par des larmes et des soupirs, l’innocente pudeur
d’une âme qui a peine à rendre les armes, à forcer pied à pied toutes les petites résistances qu’elle nous oppose, à
vaincre les scrupules dont elle se fait un honneur et la mener doucement où nous avons envie de la faire venir.
Mais lorsqu’on est maître une fois, il n’y a plus rien à dire ni rien à souhaiter; tout le beau de la passion est fini.
(MOLIÈRE, 1956, V. I, p. 779-780).
No romance, quando o Marquês Anônimo rememora a estréia da peça cita esta passagem:
“Como é delicioso, como é extasiante dominar com centenas de demonstrações de devoção o coração de uma
jovem mulher; acompanhar dia a dia os pequenos progressos feitos; enfrentar com arroubos, suspiros e lágrimas
o inocente pudor de uma alma que reluta em ceder; superar, passo a passo, todas as pequenas resistências que ela
opõe; afinal, subjugar seus orgulhosos escrúpulos e levá-la a consentir. Mas após termos sido bem-sucedidos, o
que resta? O que mais se pode querer? Tudo aquilo que encanta o apaixonado acabou.” (FONSECA, 2000, p. 81-
82)
19
“Mais par précaution je t’apprends, inter nous, que tu vois en Dom Juan, mon maître, le plus grand scélérat
que la terre ait jamais porté, un enragé, un chien, un démon, un Turc, un hérétique, qui ne croit ni Ciel, ni Enfer
[...]. Un mariage ne lui coûte rien à contracter; il ne se sert point d’autre pièges pour attraper les belles, et c’est
un épouser à toutes mains.” (MOLIÈRE, 1956, v. I, p. 777)
124
Aconteça o que acontecer, eu não posso negar meu coração a tudo o que eu
vejo de amável; e desde que um belo rosto me queira, se eu tivesse mil
corações, eu os daria todos. As inclinações nascentes, mais que tudo, têm
charmes inexplicáveis, e todo prazer do amor está na mudança. (MOLIÈRE,
1956, v. I, p. 779 – a tradução é nossa)
20
Ele é, portanto, um homem que não acredita na existência de uma relação amorosa
constante e feliz. A felicidade só é encontrada por ele na mudança, nos arrebatamentos da
conquista. É por isso que não acredita no casamento, no qual se deve unir a uma mulher para
o resto da vida e ser-lhe fiel. Dom Juan afirma que isso não é compatível com seu humor:
Sim; mas a minha paixão por Dona Elvira está desgastada, e o compromisso
não é compatível com o meu humor. Eu amo a liberdade no amor, você sabe,
e eu não poderia me decidir a fechar meu coração entre quatro muralhas. Eu
te disse vinte vezes, eu tenho uma inclinação natural a me deixar levar para
tudo o que me atrai. Meu coração é de todas as belas mulheres, e elas
existem para serem tomadas uma a uma, e para serem mantidas o quanto for
possível. (MOLIÈRE, 1956, v. I, p. 809 – a tradução é nossa)
21
O Marquês Anônimo também gosta muito da liberdade, mas, ao contrário de Dom
Juan, não busca somente o prazer no momento da conquista. Ele gosta de se envolver com as
mulheres, porque acredita, assim como Montaigne, que “a felicidade está em usufruir e não
apenas em possuir” (MONTAIGNE, 2003), ou seja, para ele o prazer não está em conquistar
uma bela mulher, mas também em saber desfrutar de sua companhia.
O que o assemelha a Dom Juan é o fato de não conseguir se manter fiel e querer ter
todas as mulheres que deseja. Segundo ele, sua opção por não se casar vem do fato de já ter se
casado uma vez, mas como ficou viúvo, decidiu que esta seria a melhor opção. Além disso,
ele já tem uma certa idade e gosta de sua liberdade.
Quando fala de seu relacionamento com Armande depois da morte de Molière, o
Marquês Anônimo, explicando que não conseguia resistir a uma nova paixão mesmo estando
“alucinadamente apaixonado por outra mulher” (p. 44), se define como um incontrolável
conquistador e confessa ao leitor:
20
Quoi qu’il en soit, je ne puis refuser mon coeur à tout ce que je vois d’aimable; et, dès qu’un beau visage me le
demande, si j’en avais dix milles, je le donnerais tous. Les inclinations naissantes, après tout, ont des charmes
inexplicables, et tout le plaisir de l’amour est dans le changement. (MOLIÈRE, 1956, v. I, p. 779)
21
Oui; mais ma passion est usée pour Done Elvire, et l’engagement ne compatit point avec mon humeur. J’aime
beaucoup la liberté en amour, tu le sais, et je ne saurais me résoudre à renfermer mon coeur entre quatre
murailles. Je te l’ai dit vingt fois, j’ai une pente naturelle à me laisser aller à tout ce qui m’attire. Mon coeur est à
toutes les belles, et c’est à elles à prendre tour à tour, et à garder tant qu’elles le pourront. (MOLIÈRE, 1956, v. I,
p. 809)
125
Antes de continuar quero dizer que à medida que envelhecia, eu me tornava
mais libidinoso. Quando ia a um salão, ao contemplar um colo voluptuoso
minha mente era invadida por pensamentos fesceninos; uma boca mais
carnuda sugeria-me os mais refinados prazeres; o movimento langoroso de
um corpo feminino me enlevava. Sentia desejo por quase todas as mulheres,
muitas nem mesmo bonitas, mas que atraíam-me por alguma particularidade,
a atitude, o olhar, o tom de voz, a perfeição do talhe que eu podia presumir
sob o traje mais pudico. E nenhuma consideração de prudência ou bom senso
impedia-me de tentar possuir a mulher que desejasse, fosse ela uma
marquesa inexpressiva, uma grande duquesa, uma princesa de sangue real.
(FONSECA, 2000, p. 44-45)
Por este trecho, pode-se perceber que neste aspecto libidinoso o Marquês Anônimo se
assemelha muito a Dom Juan, pois ele também se encantava por toda bela mulher que cruzava
seu caminho e não media esforços e nem artifícios para seduzir as jovens senhoras, pois, pelo
que consta em seus relatos, ao invés de se sentir atraído somente pelas donzelas, como Dom
Juan, que era fascinado pelo fato de ser o primeiro a romper as barreiras do orgulho e da
timidez, o Marquês se sente irresistivelmente seduzido pelas mulheres comprometidas. O caso
mais notório é o de Armande, esposa de Molière:
Era uma adolescente, mas aos poucos foi se transformando em uma mulher
muito bonita, e por uma dessas armadilhas do destino a minha atração por
Armande tornou-se irresistível tão logo ela se casou com Molière, com cerca
de vinte anos de idade. (FONSECA, 2000, p. 32)
Como vemos pela confissão do Marquês, o seu medo de ser levado a um novo
matrimônio regia suas escolhas; assim, somente depois de ver Armande comprometida seus
desejos puderam ser ouvidos. Contudo, um aspecto salientado pelo Marquês em seu relato
marca muito bem sua diferença de caráter com relação ao Dom Juan, pois nosso nobre
narrador faz questão de salientar que é uma alma delicada e, portanto, a mulher que se deita
com ele merece todo o seu respeito, estima e até compaixão, se for o caso. (p. 44). O que ele
prova ao deitar-se com Armande, mesmo não querendo estar com ela e ao protestar diante de
suas acusações de desamor, negando “talvez com veemência excessiva” (p. 46).
Talvez estivesse com medo de que Armande quisesse estabelecer comigo
laços mais fortes, pois uma coisa é ser amante de uma mulher casada, outra é
ser amante de viúva; esta quer uma ligação permanente, quer que o amante
se torne marido. Aos cinqüenta anos de idade, ao ter enviuvado muito cedo,
eu não pretendia me casar novamente [...]. Mais do que ir ao teatro, eu
gostava de passar as noites nas alcovas e nos salões, indo de um lugar para o
outro. (FONSECA, 2000, p.47-48)
126
Neste trecho, vemos outra diferença entre o Marquês e Dom Juan, já que este ama sua
liberdade. É verdade que já havia tentado constituir uma família, mas, como tinha enviuvado
muito cedo, decide ficar livre para viver suas aventuras. Aquele, ao contrário, jamais fez outra
coisa senão prometer casamento e depois fugir quando o cumprimento da promessa lhe era
exigido.
Mas, no final das contas, o Marquês acaba admitindo que não é tão irresistível,
descobre que sua sedução não é tão infalível, pois uma de suas amantes – a que ele mais
amava, Marie-Madeleine d’Aubray, a Marquesa de Brinvilliers – só ficou com ele por ele ser
tolo e por ajudá-la a desviar as atenções de seu outro amante e porque ele havia servido o
exército real. Tudo isso lhe vem à tona por conta de suas pesquisas sobre os casos de
envenenamento, motivo pelo qual marca uma entrevista com La Reynie, seu amigo particular
e chefe da polícia de Paris, responsável pelas investigações sobre os vários casos de
assassinato por envenenamento na corte, especialmente o da família d’Aubray. La Reynie lhe
diz:
Serei franco. Sabíamos que você era um dos amantes da marquesa, mas não
tínhamos certeza se estava envolvido direta ou indiretamente com os crimes.
[...] A marquesa está presa na Conciergerie. Submetêmo-la aos mesmos
interrogatórios, e ela o inocentou. Disse que você era um ingênuo que a
tratava como se ela fosse uma deusa, que não sabia de nada do que estava
acontecendo. [§] Ouvi o que ele dizia calado, cabisbaixo, infeliz.
(FONSECA, 2000, p. 112)
Ele se sente humilhado ao constatar que a única mulher que ele realmente amou o
enganava e pensava que ele era um ingênuo, ainda mais quando La Reynie, utilizando uma
fina ironia, muito comum no discurso do Marquês, acrescenta:
Descobrimos toda essa trama por acaso, disse La Reynie. Sainte-Croix, um
oficial de cavalaria que servia no regimento de Tracy, era amante da
marquesa. A marquesa sentia uma especial atração por oficiais de cavalaria,
pois outro dos seus amantes foi o marquês de Nadaillac, capitão da cavalaria
ligeira, que aliás era primo do marido dela. Você foi capitão de cavalaria
durante a guerra, não foi? (FONSECA, 2000, p. 113)
Portanto, a conclusão a que chegamos é que o Marquês Anônimo é um Dom Juan
contemporâneo, ele não consegue ser sempre o senhor da situação, também pode ser
ludibriado e se apaixonar, fazendo papel de inocente. Mas, sobretudo, é um personagem pós-
moderno e embora muitas vezes pareça ser ingênuo, no que diz respeito ao relacionamento
amoroso com Marie-Madeleine d’Aubray, o leitor não pode perder de vista que ele é um
personagem que vai se construindo ao longo do próprio discurso. Desta forma, sua
127
ingenuidade também pode se constituir em um artifício para atrair o leitor e fazê-lo aderir ao
seu ponto de vista.
Outra característica do romance a que nos referimos ao longo do trabalho e que
podemos utilizar como elemento que fecha a questão do mito de Dom Juan em O doente
Molière é a presença do procedimento de encaixe de narrativas – a mise en abyme – já que a
narrativa do Marquês Anônimo recupera todas as outras narrativas geradas em torno deste
mito. Portanto, ao citar o texto de Molière e construir um personagem que ao mesmo tempo
resgata e subverte as características do famoso conquistador espanhol, Fonseca consegue um
efeito de multiplicação das narrativas, pois a partir do seu próprio Dom Juan todos os outros
vêm a tona e, como bonecas russas ou caixinhas japonesas, vão se desdobrando infinitamente.
3.5. Outras relações intertextuais
Ao ler a obra de Fonseca com uma atenção um pouco maior que aquela necessária
para desvendar o desfecho das narrativas, encontramos pistas que nos levam a desvendar
também os crimes do texto, para utilizar uma expressão de Figueiredo (2003), na tentativa de
verificar “o deslizamento constante que a ficção do escritor realiza entre o dentro e o fora, o
próprio e o alheio e entre autor e leitor.”(p. 12). Esta, como vimos, é uma característica da
estética pós-moderna e aponta para a dissolução das antíteses, para a convivência das
contradições na literatura, além de uma deslocalização da leitura. Figueiredo afirma que
No texto literário, o jogo constante de remissões a outros textos fluidifica as
margens que delimitariam a sua interioridade, como se a literatura impressa
se deixasse contaminar pelo movimento característico das técnicas de
hipertextualização e de navegação pela internet, espelhando o
desenraizamento espaço-temporal operado, nas sociedades capitalistas pós-
industriais, pela tecnociência, pelo mundo das finanças e pelos meios de
comunicação de massa. (FIGUEIREDO, 2003, p. 12)
Portanto, depois de variadas leituras do romance de Fonseca e também das peças de
Molière, constatamos que, embora o diálogo com estas seja o mais explícito e no qual recai a
maior atenção do escritor, é possível verificar uma proliferação de citações e referências a
grandes escritores e intelectuais da França, que recheiam a narrativa e proporcionam uma
busca detetivesca também às leituras feitas pelo autor, já que muitas destas referências são
incorporadas ao texto, o que comprova que acima de tudo ele é um grande leitor.
128
O escritor e ensaísta francês Michel de Montaigne (1533-1592), considerado o
inventor do ensaio pessoal, é constantemente citado pelo Marquês, que o lê freqüentemente e
diz tê-lo como Mestre, além de comentar que o gosto pelo ensaísta também era compartilhado
por Molière.
Ao longo do romance há pelo menos seis aforismos que o Marquês utiliza e cuja
autoria atribui a Montaigne. São eles: “Minha arte e minha profissão é viver.” (p. 16); “O
arrependimento, como nos ensina Montaigne, é uma negação do nosso desejo e uma oposição
às nossas fantasias.” (p. 35); “Como diz Montaigne, citando Sêneca, os prazeres leves são
loquazes e as grandes paixões silenciosas” (p. 44); “Meu espírito não foi feito para se dobrar,
mas meus joelhos sim.” (p. 73); “Meu mestre Michel de Montaigne aconselha a fugir da
volúpia, ainda que nos custe a vida.” (p. 105), e “Abri uma página ao acaso e li uma frase que
dizia ser sinal de fraqueza, e não de virtude, ir agachar-se sob o túmulo a fim de escapar dos
golpes do destino.” (p. 124).
No entanto, uma confissão feita pelo próprio Marquês deve chamar a atenção do
leitor: “Para consolar Molière eu costumava lhe dizer que a inveja era uma forma de elogio e
que Montaigne dizia que era melhor ser invejado do que amado. Montaigne nunca disse isso,
mas o meu amigo acreditou na mentira.” (FONSECA, 2000, p. 59). Esta confissão de que
mentiu para Molière a respeito da autoria de uma máxima deve fazer com que o leitor fique de
sobreaviso, pois, se ele mentiu para Molière, pode muito bem ter mentido sobre outros
também e ter ligado ao nome de Montaigne os seus próprios pensamentos
22
.
Conquanto não se possa afirmar categoricamente que todas as frases atribuídas a
Montaigne pelo Marquês Anônimo sejam de fato de sua autoria, temos indícios que apontam
para o fato de que, mesmo que não sejam literalmente do ensaísta, configuram-se como
“ecos” de sua obra. Os indícios aos quais nos referimos são, em primeiro lugar, a
comprovação de que realmente uma das frases é de autoria do ensaísta francês, embora
contenha algumas modificações. Em seus Ensaios, ele diz: “Viver é o meu trabalho e a minha
arte” (2003), e o Marquês, por sua vez, afirma que “Minha arte e minha profissão é viver.” (p.
16), já que neste momento da narrativa, em que o Marquês está explicando o porquê de não
poder se tornar um grande dramaturgo e como conseguiu se conformar com esta situação, sua
ênfase recai na arte, que era seu objetivo.
22
Neste sentido, a intenção inicial de nosso trabalho era, a partir do estudo da obra de Montaigne, constatar a
veracidade ou não de todas estas citações. Contudo, devido à escassez de tempo e também ao alerta recebido por
parte do(a) parecerista da FAPESP, resolvemos, pelo menos por enquanto, adiar esta empresa.
129
Além da máxima constatada como autêntica, o outro indício reside no fato de que
muitas das opiniões expressas pelo personagem Marquês e várias de suas próprias máximas se
assemelham ao pensamento de Montaigne e a trechos de seus Ensaios. Assim, o nosso nobre
narrador é fruto de várias relações intertextuais e sua construção é inspirada, sobretudo, nas
personagens das peças de Molière, e entre eles especialmente Dom Juan, e nos pensamentos
de Montaigne.
No entanto, o diálogo que Fonseca estabelece com o ensaísta francês não se dá apenas
no plano temático, ou seja, nas divagações e opiniões do Marquês, mas também no plano
formal, expresso principalmente na estrutura que a obra ganha. É por esta razão que é
importante ter em vista as explicações dadas pelo narrador (suposto criador da narrativa) no
início do romance sobre o porquê de escolher escrever um texto em prosa em um momento
marcado pela “soberania” da tragédia. Como não podia ser dramaturgo já que teve sua
inaptidão atestada por Molière e Racine, e quer, mesmo assim, se tornar um escritor, ele
decide seguir outro caminho.
Ele poderia aceitar a sugestão de Racine e escrever cartas, mas, ao que consta, não
sentia muito prazer neste gênero tão em voga no século XVII. Tal julgamento vem do fato de
ele, ao comentar o gosto de Madame de Sévigné, uma de suas amantes, por escrever cartas,
afirmar que eles haviam feito um acordo de não escreverem um ao outro, pois “na verdade eu
odiava escrever cartas, mesmo de amor, que são as únicas agradáveis de escrevinhar.”
(FONSECA, 2000, p.100).
Portanto, já que as cartas estavam descconsideradas, nada melhor que seguir os passos
de seu Mestre e escrever ensaios pessoais, pois assim poderia escrever sobre os assuntos de
que gostava, sem ter que levar em conta as regras rigorosas. Estruturalmente, a narrativa do
Marquês é muito semelhante à dos Ensaios de Montaigne, que são uma espécie de auto-
retrato em que ele analisa as instituições, as opiniões e os costumes da sua época, através do
viés humanista. Montaigne divide sua obra de acordo com o tema que escolhe para discorrer e
vai pensando ao sabor dos seus interesses e caprichos. Assim também o Marquês afirma fazer,
pois, segundo ele, escreve de acordo com seu bel prazer, sem doutrina e sem ser moralista,
mas, assim como seu mestre, é rigoroso quanto à ética. Seu princípio mais importante é o de
jamais desrespeitar ou ignorar uma dama que lhe tivesse prestado favores. E, ainda como seu
mestre, não deixa de criticar os falsos beatos e os médicos.
No entanto, o romance não é desenvolvido ao bel prazer do personagem, ele segue um
roteiro para descobrir o “assassino” de Molière, seu metódo é bastante claro, pois faz uma
130
lista contendo todos os suspeitos e através de sua investigação, vai eliminando nomes até
chegar ao último – o criminoso.
Os Ensaios são compostos de três volumes que estão divididos em capítulos. Os
títulos dos capítulos, assim como os da narrativa do Marquês, são escolhidos de acordo com
os temas tratados. No primeiro volume, Montaigne, em seu prólogo “Au lecteur”, explica
como concebe sua obra, como se deu a escolha dos assuntos e como o leitor deve recebê-la.
Abaixo podemos observar um trecho deste prólogo:
Eu quero que me vejam em minha maneira simples, natural e ordinária, sem
estudo e artifício: pois sou eu que eu descrevo. Meus defeitos se lerão ao
vivo, minhas imperfeições e minha forma ingênua, tanto quanto a reverência
público me permitiu [...]. Assim, Leitor, sou eu-mesmo a matéria de meu
livro: não há razão para que você empregue seu lazer em um assunto tão
frívolo e tão vão. A Deus, então. [§] De Montaigne, 12 de junho de 1580.
(MONTAIGNE, 2004 – a tradução é nossa)
23
O prólogo “Registros” do Marquês Anônimo segue, portanto, o estilo e a construção
da apresentação de Montaigne a seus leitores; no entanto, dois aspectos devem ser levados em
conta. O primeiro é que Montaigne usa o artifício de se mostrar humilde dizendo que o leitor
não deveria empregar seu tempo de lazer em um livro tão frívolo, enquanto o Marquês utiliza
outro artifício, o que aponta para seu caráter vaidoso, que é o de indicar ao leitor que o seu
livro é muito importante, já que contém explicações sobre um grande mistério da história da
literatura – a morte repentina de Molière. O outro aspecto digno de nota é que Montaigne
afirma que seus Ensaios têm como tema ele próprio, enquanto o Marquês diz que o tema
principal de suas memórias é a morte de Molière, mas ao longo da narrativa acaba se
deixando levar por seu narcisismo e falando, talvez excessivamente, de si mesmo.
Como apontamos na Introdução, outros personagens que figuravam na corte de Luís
XIV também circulam em O doente Molière. Entre eles estão Boileau, La Fontaine, Charles
Perrault, Racine, Lulli, Pierre Mignard, Chapelle, Corneille, Madame de Sévigné, Madame de
La Fayette e François de La Rochefoucauld.
De todos eles destaca-se, ao longo do romance, Racine que, inclusive figura como um
dos suspeitos apontados pelo narrador – um escritor invejoso – devido aos desentendimentos
que o autor de Andrômaca e o de Tartufo tiveram. Destaca-se ainda a figura da Madame de
23
“Je veux qu’on m’y voye en ma façon simple, naturelle et ordinaire, sans estude et artifice: car c’est moy que
je peins. Mes defauts s’y liron au vif, mes imperfections et ma forme naïfve, autant que la reverence publique me
l’a permis [...]. Ansi, Lecteur, je suis moy-mesme la matiere de mon livre: ce n’est pas raison que tu employes
ton loisir en un subject si frivole et si van. A Dieu donq. [§] De Montaigne, ce le 12 de juin 1580.”
(MONTAIGNE, 2007)
131
Sévigné, que ficou célebre pelas cartas que escrevia aos amigos e a sua filha contando
episódios e “mexericos” da corte, e que depois foram publicadas, desenhando um retrato
daquela sociedade. No romance, o Marquês afirma ter sido seu amante e, por isso, ter tido a
oportunidade de ler algumas daquelas cartas antes de serem enviadas. Ele afirma que eram
cartas muito bem escritas, mas que Marie, como a chamava, não era muito generosa com as
pessoas a quem retratava e que ela abordava muitos assuntos: fofocas, Descartes, sistemas
gramaticais, entre outras coisas (FONSECA, 2000, p. 99).
A Madame de La Fayette, cortesã que tinha um dos salões mais conceituados de Paris
e que era escritora, também não poderia deixar de ser citada. O Marquês afirma que seu
romance A princesa de Clèves obteve um grande sucesso ao ser publicado, mas que sofreu
suspeitas de que na verdade não teria sido escrito por ela, mas por Jean Renault de Sangrais.
O Marquês comenta que Boileau a teria defendido dizendo que era uma ótima escritora. Desta
maneira, o narrador deixa ainda mais clara a afirmação de que as intrigas na corte eram
terríveis e que não havia limites para os invejosos. (FONSECA, 2000, p. 32)
Podemos ainda dizer que, para além da referência com os textos literários, há também,
em O doente Molière, relações interdiscursivas com outras formas de arte. A primeira a que
nos referimos está explícita no romance e se dá na ligação com a pintura. Há nele pelo menos
duas referências explícitas à pintura. A primeira diz respeito a um quadro pintado por
Mignard retratando a cortesã Ninon de Lenclos, dona de um dos salões mais freqüentados de
Paris (FONSECA, 2000, p.65). Além deste, o Marquês também se refere a um outro, também
pintado por Pierre Mignard, que seria o retrato de Molière: “Constantemente admiro o retrato
de Molière que tenho em minha casa, pintado por Mignard. Não quero esquecer meu amigo.”
(FONSECA, 2000, p. 139-140). Abaixo podemos ver a pintura a óleo que se encontra no
Museu Condé, em Chantilly, na França:
132
133
A outra relação não está explícita, mas dadas as variadas referências ao tema no
decorrer do romance e sabendo que Rubem Fonseca está ligado à sétima arte, já que também
é roteirista de cinema, podemos estabelecer uma ligação entre o filme francês Marquise
(1997), da diretora Vera Belmont, com O doente Molière.
Os vestígios da possível relação entre as duas obras estão espalhados pelo romance,
mas podemos citar como exemplo o enfoque dado ao personagem Racine, que sempre aparece
ligado à Marquise ou a questões tratadas no filme, como, por exemplo, o fato de Molière ter-
lhe aberto caminho com a encenação de A Tebaida, quando Racine ainda era desconhecido.
(FONSECA, 2000, p.27).
Em outro trecho do romance que tem correspondência com o enredo do filme, o
Marquês conta as desilusões que Molière sofreu quando a atriz du Parc deixou sua trupe:
Quando uma atriz da trupe, a bela Marquise-Thérèse, de quem Molière era
amante, deixou a companhia e juntou-se ao grupo do teatro Bourgogne
(dizem que teria se casado secretamente com Racine), foi junto a mim que
Molière veio se lamentar. (FONSECA, 2000, p.33).
No filme, Marquise-Thérèse, além de muito bela, é uma dançarina excepcional; por
isso, chama a atenção do Gros-René du Parc, um ator da companhia de Molière que,
apaixonado, casa-se com a dançarina e a leva para Paris, onde consegue um lugar para ela na
trupe de Molière. Infelizmente, ela não tinha muito talento como atriz e por isso perde papéis
importantes, sendo escalada apenas para os números de dança. É assim que durante uma de
suas apresentações Racine a descobriu e, tal como em O doente Molière, ele é caracterizado
como um homem ambicioso que não se importa em virar as costas a quem devia fidelidade e
menos em dobrar-se a quem podia ajudá-lo.
Segundo a resenha de Ana Carolina Rocha (1998), a beleza e a ambição de Marquise
abrem as portas para uma carreira de sucesso como atriz e como amante dos maiores figurões
da corte, mas o problema está em que, ao entrar no jogo de interesses e sedução da corte
francesa, o preço é alto, e ela teve que pagar por ele. O preço a que se refere Rocha é o de
protagonizar sua própria tragédia: morrer envenenada, quando era ainda muito jovem e estava
sendo descoberta como um grande talento. O Marquês Anônimo também comenta este
episódio, aproveitando para maldizer Racine, de quem ele tinha uma mágoa pessoal:
Sim, eu estava mesmo muito confuso, a ponto de suspeitar de Racine. Eu
sempre vira alguma coisa sinistra em suas feições, mesmo antes de a nossa
amizade ter azedado, antes da morte por envenenamento da Marquise-
Thérèse, a du Parc, para muitos causada por Racine, que tinha muito ciúme
da antiga amante de Molière. (FONSECA, 2000, p.98).
134
Para finalizar, o episódio em que o Marquês Anônimo discorre sobre as disputas entre
a trupe de Molière e a do Teatro Bourgogne também é representado no filme. No romance, ao
procurar o médico de Molière, o dr. Mauvillan, o Marquês relembra os dissabores
profissionais do dramaturgo:
Mas Molière tinha razão para sofrer daquela maneira, eu disse, ninguém
mais iria ver um Alexandre representado por La Grange se em outro teatro, o
papel era desempenhado por Floridor. Nâo havia ator dramático que pudesse
se ombrear com Floridor, que representava com um estilo declamatório,
enfático, pomposo. Confesso que se eu fosse um escritor de tragédias, ele
não seria escolhido por mim. (FONSECA, 2000, p. 90-91)
No filme de Vera Belmont também vemos Molière sofrer grandes desgostos com os
problemas que a companhia enfrentava, principalmente pelo fato apontado pelo Marquês, o de
por não possuir atores acostumados a encenar tragédias e por ter que concorrer com grandes
atores do gênero. Marquise compartilha a opinião do Marquês sobre Floridor, dizendo em
duas ocasiões que ele não é tão bom como dizem. Em uma cena em que estão ensaiando a
peça Andrômaca e Floridor a corrige constantemente, ela diz a Racine: “E você acha que é
fácil morrer de amor por esse velho babão, impotente e senil?” (BELMONT, 1997 – a
tradução é nossa)
24
Ainda no campo das ligações intertextuais não explícitas, podemos citar dois livros
que somente pelo nome já causam suspeita. O primeiro é Madame de Brinvilliers, la
Marquise aux poisons (1971), personagem que em O doente Molière é amante do Marquês
Anônimo e é condenada por assassinato, e o segundo La Reynie et la police au Grand Siècle
(1962), cujo personagem-título também tem papel importante no romance de Fonseca, pois é
ele quem comanda as investigações e ajuda o Marquês a descobrir quem foi o assassino de
Molière.
Outros dois escritores célebres também retrataram o caso de Madame Brinvilliers; são
eles: Arthur Conan Doyle, no livro The Leather Funnel Tales of Terror and Mystery (1922), e
Alexandre Dumas (pai) no texto “La Marquise Brinvilliers”, que está no livro Les crimes
célèbres (1839-1840). Não se sabe se Fonseca leu estes livros, mas o que nos chama a atenção
aqui é saber que há, na história literária, interesse por estes temas.
24
“Et crois-tu qu’il est facile de mourir d’amour pour ce vieux barbon, impuissant et sénile?” (BELMONT,
1997)
135
Como pudemos observar ao longo deste capítulo, as relações intertextuais contidas no
romance em questão são muitas e trabalham no texto como instrumentos e meios de alcançar
muitos efeitos; contudo, o que tentamos demonstrar com este estudo foi o modo como
Fonseca, ao resgatar um autor do século XVII, considerado um dos maiores escritores do
teatro francês, conseguiu imprimir uma nova leitura a suas peças, que, longe de desvinculá-las
de seu valor inicial, agrega-lhes outros valores. Além disso, com o estudo das peças de
Molière pode-se verificar que na verdade o mote do romance não é descobrir o culpado pelo
suposto crime contra sua vida, mas mostrar à sociedade do século XX os crimes cometidos
contra sua arte.
Crimes que felizmente foram corrigidos, pois Molière é encenado pelo mundo afora e
tem, sem dúvida, seu lugar reservado entre os maiores escritores de todos os tempos.
136
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Romancista, contista e roteirista de cinema; cerca de vinte e cinco livros publicados no
Brasil, além de vários deles terem sido publicados também no exterior; ganhador de vários
prêmios importantes, tanto no Brasil como fora; Rubem Fonseca é o que se pode chamar de
um escritor pós-moderno, está sempre atento às várias expressões artísticas e consegue
incorporá-las com muita habilidade em suas narrativas.
No entanto, durante nossa pesquisa para a realização deste trabalho, pudemos
constatar que apesar de toda a versatilidade de Fonseca em se dedicar a vários gêneros e trazer
para dentro de sua literatura questionamentos a respeito da arte, da leitura e do mundo, de um
modo geral em suas obras, o leitor comum, em sua grande maioria, conhece apenas o Rubem
Fonseca que representa a violência no Rio de Janeiro contemporâneo.
Desta forma, este trabalho tem como objetivo dar seqüência a uma linha de estudos
que privilegie os elementos pós-modernos contidos na obra de Fonseca, que proporcionam
leituras abertas e múltiplas, pois como pudemos observar neste estudo, todos os elementos
que chamamos de pós-modernos (hibridismo genérico, intertextualidade, paródia, metaficção
historiográfica) são os instrumentos utilizados conscientemente pelo escritor para
proporcionar ao texto essa multiplicidade de leituras e de graus de leitura no mesmo texto,
conforme a observação das características genéricas e também, das ligações intertextuais
observadas, com relação à tradição dos gêneros.
Tomemos mais uma vez como exemplo o romance O nome da rosa, de Eco, que a
nosso ver é um dos melhores livros para exemplificar isso, dada sua popularidade: se um
leitor de romances policiais, que conhece bem os grandes títulos do gênero , começa a ler o
livro, já nas primeiras páginas traçará uma relação entre este e aqueles que leu há algum
tempo, talvez os de Conan Doyle, pela relação entre o título de um de seus livros e o
sobrenome do personagem, ou ainda pelo fato de o narrador ter uma função e um nome
parecidos ao do famoso Dr. Watson. Mas se este leitor for um conhecedor da literatura
hispano-americana irá imediatamente observar os labirintos, a biblioteca, o bibliotecário cego,
ligando-os à figura e às obras de Jorge Luís Borges. Ou ainda, se este leitor tiver tido contato
com a obra de Cervantes poderá notar que o mote do manuscrito encontrado também está
presente. Da mesma forma, um leitor que conheça latim fará uma leitura distinta do que
aquele que nada sabe sobre esta língua distante, porque poderá decifrar o código.
137
Mas e se ele nunca leu nenhum destes livros? Ele também será capaz de levar a leitura
até o fim e também fará ligações entre outras expressões de arte com as quais teve contato: os
filmes que assistiu e as histórias que já ouviu. Portanto, trata-se de um momento diferente
daquele do pós-guerra em que se produziam textos experimentais, praticamente restritos ao
seleto grupo de intelectuais que conseguiam discutir as questões hermeticamente escondidas
na narrativa. A pós-modernidade quer resgatar o leitor, permitindo que ele mesmo faça a
escolha pelos caminhos, que ele mesmo decida se vai seguir à esquerda ou à direita da árvore
que se lhe apresenta.
Assim, Fonseca espalha por todo seu romance pistas que ao serem identificadas ou
não, direcionam para as múltiplas leituras. Cabe ao leitor decidir qual caminho vai trilhar, mas
todas elas levam, direta ou indiretamente àquela história secreta, pois mais que questionar se
houve realmente um assassinato, ou quem matou Molière, ou ainda os motivos que teriam
levado ao assassinato, O doente Molière vem para representar a grande mudança que houve
no panorama da literatura ocidental e que já estava fervilhando na França e em outros países
da Europa, quando as cortinas se fecharam para Molière – a ascensão e cristalização do
romance como gênero da Era Moderna e Pós-Moderna.
Após todos estes anos em companhia de Rubem Fonseca, Molière e todos os
elementos que compõem suas obras, é muito difícil colocar um ponto final neste estudo,
principalmente quando constatamos que muitas coisas, além das que aqui desenvolvemos,
poderiam ter sido exploradas. No entanto, ao mesmo tempo em que provoca angústia, isto
também serve de conforto, dado que esta é uma das características mais importantes da obra
literária, segundo as teorias da pós-modernidade.
O poeta Mario Quintana afirma que há duas espécies de livros: uns que os leitores
esgotam, outros que esgotam os leitores. Que bom que podemos colocar O doente Molière
dentro dessa segunda categoria, pois em quase cinco anos de estudos ele ainda não apresenta
sinais de se render totalmente.
138
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