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vencer os escrúpulos de que ela se honra e em levá-la docemente até onde
temos vontade de fazê-la ir. Mas quando chegamos a vencê-la, não há mais
nada a dizer e nem a desejar; toda a beleza da paixão acaba aí. (MOLIÈRE,
1956, V. I, p. 779-780 - a tradução é nossa)
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Portanto, para ele, o único prazer encontrado numa relação amorosa está no tempo em
que a conquista dura, é o prazer de ouvir um “não” que o leva a lutar com todas as suas armas
até conseguir o “sim” desejado. Mas depois de já ter dominado o coração uma vez, não lhe
resta nada mais a fazer, segundo suas próprias palavras, depois da conquista efetivada; só se
pode afundar em uma afeição sonolenta e doméstica, até surgir outro amor. E é isso o que
mais provoca a revolta dos religiosos que tentam proteger “a moral e os bons costumes”, e
que são representados pelo personagem Sganarelle que, embora não possa demonstrar isso a
seu amo, confirma não aceitar as suas atitudes e o define a Gusman da seguinte maneira:
Mas por precaução eu te conto, inter nous, que Dom Juan, meu mestre, é o
maior celerado que a terra jamais viu, um furioso, um cão, um demônio, um
Turco, um herege, que não crê nem em Céu nem em Inferno [...]. Não lhe
custa nada prometer casamento, é o que ele utiliza como armadilha para
enganar as moças, e é um noivo de mão-cheia. (MOLIÈRE, 1956, v. I, p.
777 – a tradução é nossa)
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Um pouco mais à frente, Dom Juan faz um grande discurso explicando a Sganarelle
por que ele não pode ser fiel a uma só mulher, pois, como há muitas mulheres bonitas, ele tem
que fazer justiça a todas, e não é o fato de ter encontrado uma bela mulher que o fará fechar os
olhos para todas as outras. No trecho a seguir podemos observar a frieza do caráter de Dom
Juan e a maneira como ele concebe o amor:
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On goûte une douceur extrême à réduire par cent hommages le coeur d’une jeune beauté, à voir de jour en jour
les petits progrès qu’on y fait, à combattre par des transports, par des larmes et des soupirs, l’innocente pudeur
d’une âme qui a peine à rendre les armes, à forcer pied à pied toutes les petites résistances qu’elle nous oppose, à
vaincre les scrupules dont elle se fait un honneur et la mener doucement où nous avons envie de la faire venir.
Mais lorsqu’on est maître une fois, il n’y a plus rien à dire ni rien à souhaiter; tout le beau de la passion est fini.
(MOLIÈRE, 1956, V. I, p. 779-780).
No romance, quando o Marquês Anônimo rememora a estréia da peça cita esta passagem:
“Como é delicioso, como é extasiante dominar com centenas de demonstrações de devoção o coração de uma
jovem mulher; acompanhar dia a dia os pequenos progressos feitos; enfrentar com arroubos, suspiros e lágrimas
o inocente pudor de uma alma que reluta em ceder; superar, passo a passo, todas as pequenas resistências que ela
opõe; afinal, subjugar seus orgulhosos escrúpulos e levá-la a consentir. Mas após termos sido bem-sucedidos, o
que resta? O que mais se pode querer? Tudo aquilo que encanta o apaixonado acabou.” (FONSECA, 2000, p. 81-
82)
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“Mais par précaution je t’apprends, inter nous, que tu vois en Dom Juan, mon maître, le plus grand scélérat
que la terre ait jamais porté, un enragé, un chien, un démon, un Turc, un hérétique, qui ne croit ni Ciel, ni Enfer
[...]. Un mariage ne lui coûte rien à contracter; il ne se sert point d’autre pièges pour attraper les belles, et c’est
un épouser à toutes mains.” (MOLIÈRE, 1956, v. I, p. 777)