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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Ruben Artur Lemke
A ITINERÂNCIA E SUAS IMPLICAÇÕES NA CONSTRUÇÃO
DE UM ETHOS DO CUIDADO
Porto Alegre
2009
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Ruben Artur Lemke
A ITINERÂNCIA E SUAS IMPLICAÇÕES NA CONSTRUÇÃO
DE UM ETHOS DO CUIDADO
Dissertação apresentada como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Psicologia Social. Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Social. Instituto de
Psicologia. Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.
Orientadora: Rosane Azevedo Neves da Silva
Porto Alegre
2009
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Ruben Artur Lemke
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação
A ITINERÂNCIA E SUAS IMPLICAÇÕES NA CONSTRUÇÃO DE UM
ETHOS DO CUIDADO
como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicologia Social pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Dissertação defendida e aprovada em 27/05/2009
Comissão Examinadora:
_______________________________________________________
Analice de Lima Palombini, Drª – Universidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS
_______________________________________________________
Luis Antonio dos Santos Baptista, Dr. - Universidade Federal Fluminense / UFF
________________________________________________________
Rosemarie Gärtner Tschiedel, Drª - Universidade Federal do Rio Grande do Sul / UFRGS
Aos trabalhadores itinerantes que no cotidiano de suas práticas lutam para construir um
outro mundo possível.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora Rosane Neves pela paciência e coragem, ao ter, como uma at,
acompanhado os caminhos sinuosos da errância do meu pensamento.
Aos professores do PPGPS, principalmente à professora Tânia Galli, pela
intensidade de seus seminários e pelas certeiras indicações bibliográficas.
Aos professores da banca de qualificação, Analice Palombini e Antônio Baptista,
pelas inestimáveis sugestões.
Ao professor Omar Bravo e aos colegas do grupo de pesquisa, Janete Shubert,
Álvaro Lima, Vânia Mello, Gustavo Zambenedetti e Michele Cervo, pela convivência, pela
amizade, pelas trocas e pelo aprendizado.
Aos professores Magda Dimenstein, Henrique Nardi e Simone Paulon. À professora
Mara Carneiro por acompanhar meu estágio de docência. Á CAPES pela bolsa de mestrado
no ano de 2008.
Aos professores da Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva da Escola de
Saúde Pública, Sandra Fagundes, Manuel Mayer, Rose Mayer, Mirian Dias, Eduardo Xavier,
Vera Wildner, Vera Resende e Cláudia Cruz pelo inestimável aprendizado e pela influência
marcante na minha vida. Do mesmo modo à Simone Frichembruder e ao Régis Cruz.
Agradeço especialmente à Patrícia Genro, que me aconselhou a fazer o mestrado no
PPG/PS da UFRGS. À professora Virginia Kastrup pela indicação e envio de textos.
Ao Fórum Gaúcho de Saúde Mental, por manter acesa a luta no estado. À Equipe
Itinerante da Pensão Nova Vida e ao Antônio Lancetti, pela inspiração contagiante de seus
textos, assim como a todos ats, ACS e redutores de danos que se dispuseram a repartir
suas experiências com a escrita. Ao Denis Petuco pelo relato de experiência. Às equipe de
Saúde da Família Osmar Freitas e Pitoresca por permitir acompanhar o cotidiano de suas
práticas, principalmente os ACS.
Aos companheiros da Comissão de Direitos Humanos do CRP/07, Pedro Pacheco,
Ivarlete Guimarães, Fátima Fischer, Bianca Sordi, Aline, Roberto, Helen, Josefina e demais.
Aos colegas da gestão do CRP/07, principalmente Tatiana Ramminger, Henrique Zilli, Paula
Guntzel, Loiva Santos, Deise Nunes e Karen Eidelwein pelas interlocuções.
À Angela Vencatto pela antiga amizade e pela cuidadosa revisão do texto. Ao
Partinobre pelo empréstimo dos livros. À Josi Cerveira e aos meus compadres Cristofher,
Jaque Becker e sua pequena Laura pela sólida amizade.
Aos amigos e companheiros pela boa convivência nas bandas, escaladas e festas,
Alisson Perotto, Marcelo Cúria, Sandro e Rudah Azevedo, Márcio Fialho, Max Rivera,
Leandro Amaral, Danilo Rosa, Elton Comoretto. Ao Marcelo Câmera, também pelas
interlocuções geográficas.
Ao Mateus Kütter, Régis Silva, Dagoberto Barbier, André Vergara, Leandro Rosa,
Mateus Cunda e Fabio da Costa pela amizade e pelas trocas.
Ao Luiz, Dione, João, Ingrid, Deda, Leandro e Eduardo por toda ajuda e pelo convívio
próximo.
Agradeço a Deus, aos meus avós, aos meus queridos pais, Edgar Lemke e Gisela
Lemke e aos meus irmãos, Cristiano, Michel e Lílian, por uma série de coisas que não cabe
neste parágrafo.
E finalmente ao meu grande amor, Aline, por estar sempre do meu lado e ao meu
filho Pedro Artur, pela viva companhia nas tarde solitárias de escrita.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo problematizar a itinerância como um modo de
operacionalizar o cuidado no território. Com a emergência do Sistema Único de Saúde a
noção de território se tornou um princípio organizador dos processos de trabalho nas
políticas de Atenção Básica e Saúde Mental. No campo delicado de articulação entre estas
políticas, as práticas itinerantes passaram a ter uma importância estratégica na
desinstitucionalização das práticas e na construção da integralidade do cuidado. Tomamos a
desinstitucionalização e a integralidade como os operadores conceituais que marcam a
diferença que as reformas Psiquiátrica e Sanitária pretendem imprimir nas práticas de
cuidado. Advertimos que ao ingressar numa postura de busca ativa no território de vida dos
usuários, as práticas itinerantes se inserem num campo de tensões, no qual podem tanto
ser convocadas a funcionar como uma peça do aparelho de Estado no controle da
população, como se situar num lugar estratégico para a construção de um cuidado
contextualizado aos modos de vida dos usuários. Defendemos que é possível resistir ao
mandato social de controle e construir uma ética do cuidado com a itinerância ao explorar a
potência política do movimento e transformar o território dos usuários num laboratório de
invenção de vida.
PALAVRAS-CHAVE:
Cuidado; Desinstitucionalização; Território; Psicologia Social
ABSTRACT
This work aims to problematize the itinerancy as a way to operationalize the care in the
territory. The emergence of the Sistema Único de Saúde the notion of territory has become
an organizing principle of work processes in the policies of primary health care and mental
health. In the delicate field of coordination between these policies, itinerant practices now
have a strategic importance in the deinstitutionalization of practices and the construction of
the integrality of care. We take the deinstitutionalization and integrality as conceptual
operators that make the difference that Psychiatric and Health reforms want to print in the
care practices.
Warned that by joining in a posture of active search in the life territory of
users, the itinerant practices fall in a field of tensions, which can both be called to work as a
part of the State apparatus to population control, as in a strategic place for the construction
of a carefully contextualized to life ways of users. We believe that is possible to resist the
social control mandate and build an ethic of care with itinerancy to explore the political power
of the movement and transform the territory of the users in a laboratory for life invention.
KEYWORDS
Care; Deinstitutionalization; Territory; Social Psychology
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................................ 9
1 PRÁTICAS DE CUIDADO NO SUS............................................................................................ 12
1.1 Território como plano de transversalização das políticas de Saúde Mental e Atenção
Básica......
........................................................................................................................................
14
1.2. A itinerância como modo de operacionalizar o cuidado no território ...................................... 24
1.3 Três tecnologias de cuidado que utilizam a itinerância como modus operandi ......................
31
1.3.1 Os acompanhantes terapêuticos .............................................................................. 32
1.3.2 Os agentes comunitários de saúde .......................................................................... 38
1.3.3 Os redutores de danos ............................................................................................. 44
2 A LÓGICA TERRITORIAL NAS PRÁTICAS DE CUIDADO....................................................... 52
2.1 Desinstitucionalização das práticas ......................................................................................... 53
2.2 Integralidade do cuidado .......................................................................................................... 58
2.3 Dimensão cuidadora: paradigma de cuidado e subjetividade .................................................. 61
2.4 A lógica manicomial e o modelo sintomatológico .................................................................... 69
2.5 Saúde como exercício normativo em relação com a dinâmica do território ............................. 74
2.6 A busca ativa como princípio político da lógica territorial ........................................................ 78
3 O TERRITÓRIO COMO CAMPO INTENSIVO DAS PRÁTICAS DE CUIDADO ........................
84
3.1 O problema da percepção do movimento ................................................................................ 84
3.2 A complexidade movente do território ...................................................................................... 85
3.3 Princípios de cartografia para uma práxis territorial ................................................................. 88
3.4 A itinerância como ethos do cuidado ....................................................................................... 93
3.4.1 A composição de territórios existenciais .................................................................. 95
3.4.2 Ethos nômade: movimento no plano intensivo ......................................................... 99
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 108
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................................................
110
9
INTRODUÇÃO
Em março de 2008, durante uma reunião entre instituições que se ocupam da Saúde
dos Povos Indígenas
1
, alguns gestores da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA)
relataram, inconformados, que haviam construído uma Unidade Básica de Saúde moderna,
confortável e bem equipada numa comunidade indígena, porém não conseguiram atingir
seus objetivos de atender às necessidades de saúde daquele grupo, utilizando a unidade
construída como centro das operações. A população simplesmente não procurava a unidade
e por alguns períodos deslocava seu acampamento para longe da mesma. Diante da
inconformidade dos gestores, um estagiário de antropologia pediu a palavra e lembrou aos
presentes que se tratava de uma comunidade guarani que tinha costumes nômades e que,
por isso, não fazia sentido algum para aquele grupo um estabelecimento fixo de saúde. O
estagiário perguntou por que os gestores não haviam pensado em compor uma equipe
itinerante de saúde, que pudesse acompanhar a comunidade em suas movimentações.
No campo das políticas públicas
2
, tem sido recorrente a utilização do expediente da
itinerância para operacionalizar objetivos e desenvolver projetos, principalmente nas áreas da
saúde e da assistência social
3
. Diversas tecnologias de cuidado têm sido implementadas
utilizando o deslocamento nos territórios de vida dos usuários tanto com o objetivo de cobrir
uma maior extensão territorial, alcançando grupos populacionais vulneráveis e/ou em
contexto de miséria, numa lógica de busca ativa, quanto para atender às demandas de
usuários que não se adaptam aos equipamentos tradicionais de atenção. Podemos citar
como exemplo desses grupos populacionais os moradores de rua, as comunidades
indígenas de costumes nômades, as pessoas que usam drogas e que não se adaptam a
protocolos clínicos que exigem a abstinência e os usuários
4
refratários ao atendimento nos
serviços de Saúde Mental.
Essas tecnologias de cuidado, embora possuam diferenças específicas quanto aos
seus objetivos, amplitude de ações e população alvo diferenças referentes às políticas
públicas às quais se vinculam –, guardam em comum algumas características formais que as
1
Relato fornecido por Bianca Sordi.
2
Uma definição possível para Política Pública é entendê-la como um programa de ação governamental,
resultado de processos orçamentários, legislativos ou administrativos juridicamente regulados a fim de coordenar
os meios à disposição do Estado e às atividades privadas para a realização de objetivos socialmente relevantes
e politicamente determinados (BUCCI, 2006).
3
A constituição de 1989 definiu que a Saúde, a Assistência Social e a Previdência compõem a Seguridade
Social, que é um conjunto articulado de políticas destinadas a garantir esses direitos sociais (BRASIL, 2006).
4
Usuário é um termo de cunho político utilizado para se referir ao cidadão de direito usuário das políticas
públicas. No caso do Sistema Único de Saúde, todos o usuários, pois os gestores e trabalhadores da saúde,
em algum momento, também são usuários do sistema. Por esse motivo, Merhy (2005) afirma que todo
trabalhador ou gestor de saúde está diante da pergunta se seria usuário das práticas que está produzindo.
10
atravessam e colocam em questão a ética do cuidado no trabalho junto aos espaços de
existência dos usuários.
A prática dos trabalhadores itinerantes se situa num campo de tensão em que pode
tanto ser constantemente convocada a atuar como um artefato a serviço da Razão de Estado
no controle e normalização de populações e no silenciamento de diferenças incômodas,
como estar numa posição estratégica para a construção de um cuidado contextualizado nos
modos de vida dos usuários. A entrada que esses trabalhadores realizam no cotidiano de
vida das pessoas, nos seus domicílios, nas suas famílias e nas suas comunidades pode
somar forças a qualquer um destes pólos: tanto para a capilarização de um controle mais
acurado e minucioso quanto para a contextualização de um cuidado que atue pela promoção
de saúde, no sentido da melhoria da qualidade de vida das pessoas e do incremento de
ganhos de autonomia dos usuários.
Com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS)
5
, cujas bases fundamentam-se
nos princípios de universalidade e equidade que se voltam para a criação de estratégias
que promovam o acesso à saúde para as populações mais vulneráveis – e de integralidade –
que faz com que essas estratégias levem em consideração a complexidade dos territórios
existenciais dos usuários –, as tecnologias de trabalho itinerante passaram a ter uma
relevância estratégica especial.
A universalidade, que torna a saúde um direito social de todos e dever do Estado em
provê-la mediante a criação de políticas públicas, exige estratégias para aumentar a
cobertura da atenção. E a equidade, princípio político de justiça social, requer que as ações
de saúde sejam intensificadas nas populações mais vulneráveis, que estão em maior
sofrimento, com o objetivo de aplacar suas vulnerabilidades sociais. Esses dois princípios
juntos, um referente à extensividade e outro à intensividade das ações, lançam o desafio de
levar as iniciativas de saúde aos contextos mais distantes e de difícil acesso, às populações
mais vulneráveis e tradicionalmente refratárias às ações de saúde.
Este trabalho propõe pensar a itinerância como um modo de operacionalizar o
cuidado no território e algumas implicações éticas, teóricas e práticas daí decorrentes. Não
tem a pretensão de fazer uma genealogia das práticas itinerantes na saúde. A intenção é
problematizar o sentido que a itinerância adquire com a implantação do SUS, no contexto
mais específico das transformações propostas pela Reforma Psiquiátrica e pela Reforma
Sanitária presentes nas atuais políticas de Saúde Mental e Atenção Básica.
5
O SUS é legalmente instituído pela Constituição de 1989 e regulamentado pela Lei Orgânica de Saúde (Lei
8.080 de 1990). Os dois documentos definem a configuração jurídico-normativa da política de saúde do Brasil,
estabelecendo a saúde como um direito social universal do cidadão e dever do Estado. Antes do SUS, as ações
de assistência individual estavam ligadas à previdência e as ações coletivas, como as campanhas de vacinação
e controle de endemias, estavam ligadas à saúde pública. Só os trabalhadores que contribuíam regularmente ao
então chamado Instituto Nacional de Previdência Social tinham direito à assistência médica.
11
A itinerância tem tido um papel importante de articulação entre as atuais políticas de
Saúde Mental e Atenção Básica, em que o deslocamento das intervenções para o território
de vida dos usuários passa a ter uma importância renovada. No contexto dessas políticas, o
princípio de desinstitucionalização proveniente da Reforma Psiquiátrica e o princípio de
integralidade proveniente da Reforma Sanitária são operadores conceituais que marcam a
diferença das transformações que as reformas se propõem a imprimir no cotidiano das
práticas de cuidado.
No entanto, a itinerância como modo de operacionalizar o cuidado no território traz
consigo alguns questionamentos éticos. O primeiro questionamento necessário é pensar em
que medida as práticas itinerantes, ao deslocarem as intervenções para o território de vida
das pessoas local onde os usuários estão inseridos em sua rede de relações e em sua
situação material de existência –, expressam de fato uma mudança significativa na produção
do cuidado em saúde. Entendemos que o mero deslocamento em um plano extensivo não
garante a ruptura com as lógicas hegemônicas, normativas e reducionistas que as atuais
políticas públicas de Saúde Mental e Atenção Básica visam combater: o deslocamento
espacial pode ser uma simples estratégia de refinamento e capilarização do controle das
populações.
Um segundo questionamento é saber em que medida esses deslocamentos no
território produzem mudança no plano intensivo das práticas e dos territórios subjetivos dos
usuários. Trata-se, nesse caso, de pensar o modo de operar itinerante como um constante
deslocamento para além de um âmbito estritamente espacial, afirmando seu potencial de
produzir um cuidado contextualizado ao território existencial dos usuários e de criar linhas de
fuga aos constantes movimentos de captura das instituições que buscam a sedentarização
da vida.
Entendemos que a experiência desses trabalhadores itinerantes, em função da
complexidade e dos acidentes a que estão expostos em seus percursos, tem o potencial de
produzir o estabelecimento de uma relação peculiar com o território e o rompimento com o
instituído, abrindo assim espaço para a criação de novas produções de sentido no campo
das práticas de cuidado em saúde. Pois, se é um fato que as práticas itinerantes operam um
deslocamento espacial no ato de ir ao encontro do usuário em seu território de vida, resta
saber qual o campo de possibilidade dessas experiências produzirem o movimento de
acompanhar o usuário na construção e/ou ampliação de seu território existencial.
12
1 AS PRÁTICAS DE CUIDADO NO SUS
Dois movimentos sociais tiveram importância fundamental na consolidação do ideário
do SUS: a Reforma Psiquiátrica
6
e a Reforma Sanitária. Os dois movimentos, embora
possuam suas especificidades, tomaram consistência no mesmo contexto de luta pela
redemocratização do país, conjugam os mesmos princípios doutrinários e organizativos, e
têm como pontos de intersecção a produção do cuidado e o desafio de situar o território dos
usuários como locus privilegiado das ações, ou seja, de algum modo, trazer as práticas de
cuidado para mais perto do “mundo dos usuários”. Como importantes conquistas do SUS,
pautadas e tencionadas por esses dois movimentos, podemos citar a organização de um
sistema de saúde que tem na Atenção Básica seu eixo articulador e a criação de uma rede
de serviços territoriais para atenção em Saúde Mental, em substituição aos hospitais
psiquiátricos.
A Reforma Sanitária de nosso país tem uma história de lutas, vitórias, avanços e
retrocessos. Baseada no ideal democrático de acesso universal à saúde como direito social
de todo cidadão e dever do Estado, foi e segue sendo, como aponta Feuerwerker (2005),
uma proposta, pois define princípios e proposições como as contidas na VIII Conferência
Nacional de Saúde e no texto constitucional. Da mesma forma, é um projeto, pois apresenta
um conjunto articulado de políticas públicas que comportam uma consciência sanitária, o
ideal da participação popular e a vinculação da saúde a lutas políticas mais amplas. No
entanto, segundo o autor, também é um processo, pois possibilitou a conformação de um
projeto político-cultural consistente que se materializou na construção do Sistema Único de
Saúde. Além de propor um modelo democrático de participação popular para a organização
do sistema, a Reforma Sanitária operou uma ampliação do conceito de saúde, reconhecendo
a determinação social do processo saúde-doença e colocando em evidência a necessidade
de atenção integral à população. Esse movimento também foi marcado por fortes críticas às
práticas de cuidado hegemônicas, com seu viés normalizador e reducionista.
O movimento de Reforma Psiquiátrica é contemporâneo ao Movimento Sanitário, mas
tem sua história inscrita no contexto internacional pela superação da violência manicomial
(BRASIL, 2005). Processo político e social complexo, o movimento partiu da crítica ao
6
O movimento pela Reforma Psiquiátrica no Brasil teve como antecessor o Movimento dos Trabalhadores em
Saúde Mental, que se formou no final da década de 1970. No II Encontro Nacional dos Trabalhadores de Saúde
Mental, realizado em 1987, em Bauru/SP, tornou-se o Movimento de Luta Antimanicomial ao agregar
intelectuais, políticos, usuários e seus familiares e adotar a consigna “Por uma sociedade sem manicômios”.
Reforma Psiquiátrica foi o termo que passou a ser estrategicamente utilizado quando, na VIII Conferência
Nacional de Saúde, o Movimento Sanitário passou a se chamar Reforma Sanitária (AMARANTE, 1996, 2003).
Segundo Dalla Vecchia e Martins (2008), Reforma Psiquiátrica é o nome que agrupa as transformações
adotadas como política de Estado e o processo conflitivo entre as demandas do Movimento de Luta
Antimanicomial e as políticas de governo efetivamente implantadas.
13
manicômio
7
e passou a incidir sobre os pressupostos da psiquiatria e seus efeitos de
normalização e controle. A materialização no campo jurídico dos embates produzidos pela
crítica foi a aprovação de leis
8
que asseguram os direitos dos portadores de transtornos
mentais e de portarias e decretos que determinam e regulam a criação progressiva de
serviços substitutivos de base territorial. Segundo Amarante (2003), a Reforma Psiquiátrica
produz tensionamento em quatro âmbitos. Primeiro no âmbito teórico-conceitual que se
refere à crítica ao conjunto de questões que se situam no campo da produção de saberes
que fundamentam o saber/fazer da psiquiatria. A segunda dimensão é a técnico-assistencial
que é a crítica ao modelo de cuidado baseado no isolamento, na tutela, na custódia, na
disciplina e na vigilância. A terceira dimensão é o campo jurídico-político no qual a crítica
incide em noções que ligam a loucura à periculosidade, irracionalidade, incapacidade e
irresponsabilidade civil. A quarta dimensão é relativa ao imaginário social da loucura no
campo sociocultural, no qual a crítica incide sobre o senso comum que relaciona loucura à
incapacidade de estabelecer trocas sociais e simbólicas.
Em relação ao campo técnico-assistencial, a consolidação do SUS no Brasil trouxe as
condições institucionais para pôr em andamento um processo de desospitalização, uma
reorientação dos aparelhos de atenção, com a progressiva abolição dos dispositivos
produtores de exclusão, segregação, privação de liberdade e violação dos direitos humanos,
e a construção de dispositivos assistenciais substitutivos ao modelo hospitalar. No campo
jurídico-político, foram aprovadas leis que asseguram essas transformações e garantem
direitos básicos aos usuários, assim como formulação de políticas públicas inclusivas. No
entanto, é no campo epistemológico e sociocultural que reside o ponto crucial de mudança
nas práticas de cuidado: mudar o modo de pensar e estabelecer relação com a loucura e a
diferença não se garante nem por força de lei nem com a construção de novos módulos
assistenciais. É na micropolítica das práticas e da vida cotidiana que é possível produzir
diferença. Neste ponto, para a Reforma Psiquiátrica brasileira é fundamental o conceito de
desinstitucionalização, influência direta da Psiquiatria Democrática italiana.
Desinstitucionalizar é produzir uma ruptura prático-teórica na produção do cuidado. É colocar
em questão a própria instituição doença mental e toda a parafernália conceitual e técnica
erigida historicamente para dar resposta a esse fenômeno da humanidade, para que,
7
A palavra ‘manicômio’ é utilizada desde 1987 pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental para
reforçar o caráter asilar, segregante, violento, tutelar e médico-jurídico das instituições asilares. Portanto, não
distinção conceitual entre hospício, hospital psiquiátrico, clínica psiquiátrica, asilo ou manicômio (AMARANTE,
1996).
8
A primeira lei aprovada no país foi a do Estado do Rio Grande do Sul, a Lei 9.716 de 07/08/1992, que garante
direitos aos usuários portadores de sofrimento psíquico, disciplina e limita o regime de internações e determina a
extinção progressiva dos leitos psiquiátricos e sua substituição por serviços de base territorial. A Lei Federal
10.216 foi aprovada em 06/04/2001, depois de 12 anos de luta, e teve o parágrafo relativo à extinção dos
hospitais psiquiátricos vetado.
14
partindo dessa ruptura, seja possível a produção de uma relação com a diferença em outras
bases, em que a ética esteja num primeiro plano em relação aos saberes instituídos.
1.1 Território como plano de transversalização das políticas de Saúde Mental e
Atenção Básica
A renovação da importância do tema da territorialidade nas práticas de saúde é um
ponto de intersecção
9
para as duas correntes políticas que forjaram o campo de lutas que se
institucionalizou como o Sistema Único de Saúde: os movimentos pela Reforma Psiquiátrica
e pela Reforma Sanitária. A rede de serviços de atenção integral em Saúde Mental
10
,
conquista da luta pela Reforma Psiquiátrica, produz o deslocamento das práticas dos
grandes hospitais psiquiátricos para o local de vida dos usuários, com o objetivo de promover
a inclusão social ou a reabilitação psicossocial das pessoas portadoras de sofrimento
psíquico, na luta por garantir o pertencimento dos usuários a um território.
A territorialidade é um tema onipresente nas políticas ligadas à Saúde Mental e à
Atenção Básica. A palavra território aparece em inúmeras leis, portarias, resoluções, textos
técnicos e teóricos da saúde, mas surge com diversos sentidos. Não obstante sua
importância estratégica na elaboração e execução das políticas públicas e na produção das
práticas de cuidado, território é mais uma palavra polissêmica no vasto campo da saúde.
Na Reforma Psiquiátrica, construir um cuidado situado no território é, antes de tudo,
uma premissa ética. De acordo com Silva, M. (2005), o presa in carico”, dos italianos, o
“tomar encargo” ou a “tomada de responsabilidade” de uma equipe de saúde por um
determinado território foi uma diretriz de trabalho nas experiências de desinstitucionalização
em Triste, diretriz essa que teve influência na formulação de políticas públicas de saúde no
Brasil. Nas políticas de Saúde Mental, a tomada de responsabilidade pelo território opera
como uma tecnologia de gestão e de organização dos processos de trabalho. É uma
estratégia para quebrar a cristalização de duas lógicas, a dos especialistas e a do
encaminhamento do encargo para outras estruturas externas ao território. Porque a primeira
prende os profissionais à necessidade de legitimar suas técnicas e teorias mais que cuidar
das necessidades da população. A segunda legitima a existência dos grandes hospitais
psiquiátricos.
9
Outro ponto de intersecção apresentado anteriormente é a produção do cuidado.
10
Conjunto de estabelecimentos substitutivos ao hospital psiquiátrico: Centros de Atenção Psicossocial (tipo I, II,
III, Álcool e Outras Drogas, Infância e Adolescência), Serviços Residenciais Terapêuticos, Leitos Psiquiátricos
em Hospital Geral, Oficinas de Geração de Renda e Trabalho e outros.
15
A tomada de responsabilidade pelo território tem como objetivo combater a exclusão,
o abandono e a desresponsabilização pelo cuidado, principalmente nas situações complexas
que extrapolam os limites das racionalidades técnicas dos profissionais. Nesse sentido, tem
como efeito produzir um incremento de complexidade no plano das práticas, pois a tomada
de responsabilidade significa fazer encargo do cuidado integral da população de um território
(SILVA, M, 2005).
Pitta (2001) alega que o primeiro passo para a tomada de responsabilidade pelo
cuidado é distinguir território de área geográfica. A autora defende uma compreensão mais
subjetiva do território para pensar agenciamento de cuidado e inclusão social, que incluiria os
seus habitantes, suas movimentações e suas produções de sentido. O território na saúde
deve ser entendido como um “espaço suporte” que delimita a atuação de uma equipe que
tem a responsabilidade de dar materialidade ao acolhimento do sofrimento. Deve ser tomado
em sua “dimensão de dinâmica e tensão que torna vivo, humano e contraditório o lugar onde
pessoas e instituições permanentemente negociam espaços de subordinação e liberdade”
(PITTA, 2001, p. 23).
Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) são a principal estratégia para a
reversão do modelo na Reforma Psiquiátrica brasileira, e têm como função criar e articular
um modelo de atenção territorial ao promover o “progressivo deslocamento do centro do
cuidado para fora do hospital, em direção à comunidade” (BRASIL, 2004b, p. 25). O manual
técnico do CAPS define como objetivo do serviço integrar os usuários “... a um ambiente
social e cultural concreto, designado como seu ‘território’ o espaço da cidade onde se
desenvolve a vida cotidiana” (BRASIL, 2004b, p. 9).
Os CAPS são conceituados como serviços de atendimento em saúde mental de base
territorial e comunitária e que têm o objetivo de substituir a lógica do atendimento
hospitalocêntrico por outra lógica que permita cuidar dos usuários sem afastá-los de seu
contexto de vida, promovendo o exercício de seus direitos civis. O CAPS é responsável pela
organização da rede de cuidados no seu âmbito de atuação e, nesse sentido, o manual
destaca a importância da articulação do CAPS com os serviços da Atenção Básica e sugere
justamente a noção de território como um dos principais pontos dessa integração (BRASIL,
2004b).
O manual define o território como uma área geográfica com seus recursos afetivos – a
rede de relações sociais –, os recursos sanitários, econômicos e culturais que devem ser
ativamente incluídos no cuidado. Como lugar de vida do usuário, o território deve ser
constantemente ressignificado e reconstruído nos processos de reabilitação psicossocial. De
acordo com o manual:
16
Território não é apenas uma área geográfica, embora sua geografia também
seja muito importante para caracterizá-lo. O território é constituído
fundamentalmente pelas pessoas que nele habitam, com seus conflitos,
seus interesses, seus amigos, seus vizinhos, sua família, suas instituições,
seus cenários (igreja, cultos, escola, trabalho, boteco etc.). (BRASIL, 2004b,
p. 11).
No documento apresentado na Conferência Regional de Reforma dos Serviços de
Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas (BRASIL, 2005), é ressaltada a importância dos
conceitos de território, rede e autonomia. Pois só com um funcionamento articulado em rede
se é capaz de dar conta da complexidade da demanda de Saúde Mental e da difícil tarefa de
reinserção social. O território é considerado o locus estratégico de atuação dos dispositivos
de atenção articulados em rede para a produção de autonomia dos usuários:
O território é a designação não apenas de uma área geográfica, mas das
pessoas, das instituições, das redes e dos cenários nos quais se dá a vida
comunitária. Assim, trabalhar no território não equivale a trabalhar na
comunidade, mas a trabalhar com os componentes, saberes e forças
concretas da comunidade que propõem soluções, apresentam demandas e
que podem construir objetivos comuns. Trabalhar no território significa
assim resgatar todos os saberes e potencialidades dos recursos da
comunidade, construindo coletivamente as soluções, a multiplicidade de
trocas entre as pessoas e os cuidados em saúde mental. É a idéia do
território, como organizador da rede de atenção à saúde mental, que deve
orientar as ações de todos os seus equipamentos. (BRASIL, 2005 p. 26).
A atual Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool
e Outras Drogas (BRASIL, 2004c) adotou a estratégia da Redução de Danos (RD) como
paradigma no cuidado de pessoas que usam drogas. A noção de território faz parte da
conceitualização de RD na qual a política a considera como:
Estratégia de saúde pública que visa a reduzir os danos causados pelo
abuso de drogas lícitas e ilícitas, resgatando o usuário em seu papel
autorregulador, sem a preconização imediata da abstinência e
incentivando-o à mobilização social nas ações de prevenção e de
tratamento, como um método clínico-político de ação territorial inserido na
perspectiva da clínica ampliada. (BRASIL, 2004c, p. 25, [Grifos nosso]).
A ação territorial é um elemento constitutivo do modelo de atenção da RD. A política
nacional afirma que os dispositivos de atenção devem se direcionar à reinserção social e
17
fazer uso eficaz da noção de território e de rede, trabalhando numa lógica ampliada de
Redução de Danos com uma postura de busca ativa no conhecimento das necessidades e
no enfrentamento dos problemas de saúde de modo contextualizado ao meio cultural e à
comunidade em que os usuários estão inseridos. Na RD, o território é um locus de
integração da dimensão clínica com a dimensão política do cuidado:
A abordagem se afirma como clínico-política, pois [ ] a redução de danos
deve se dar como ação no território, intervindo na construção de redes de
suporte social, com clara pretensão de criar outros movimentos possíveis
na cidade, visando a avançar em graus de autonomia dos usuários e seus
familiares. (BRASIL, 2004c, p. 12).
Nas políticas de saúde mental, a palavra território é utilizada em dois sentidos.
Primeiro, no sentido de âmbito de atuação das equipes ou dos módulos assistenciais, nos
quais a noção de território é utilizada como um princípio ordenador das práticas e
organizador do acesso, assim como para a divisão das responsabilidades entre gestores e
trabalhadores
11
. Um segundo sentido é a ideia da construção de um modelo de atenção de
base territorial-comunitária em oposição ao modelo asilar. Um modelo de atenção que
funcione numa lógica territorial
12
que esteja sintonizado com o local de vida e a rede de
relações dos usuários e que tenha o território como centro de articulação das práticas de
cuidado. É possível entender a lógica territorial como uma oposição à lógica manicomial e a
territorialização do cuidado como uma condição indispensável para superar o ideal de
isolamento das instituições asilares.
No âmbito da Atenção Básica
13
, que se tornou eixo estruturante do Sistema Único de
Saúde (BRASIL, 2007) como conquista do movimento sanitário, o território também se torna
locus privilegiado para as ações. Na Atenção Básica, o tema do território está presente
principalmente na constituição de recortes geográficos e na responsabilização pela saúde da
11
Na portaria GM no 336, de 19 de fevereiro de 2002, por exemplo, o território do CAPS é definido como o
âmbito no qual as equipes são responsáveis pela organização da demanda e da rede de cuidados em saúde
mental, assim como da supervisão e da capacitação dos módulos assistenciais em relação a temas de saúde
mental no seu território (BRASIL, 2004a).
12
Na portaria GM no 251, de 31 de janeiro de 2002, aparece a noção de uma atenção territorial com o objetivo
de promover a reintegração social e familiar e prevenir novas internações (BRASIL, 2004a p. 122). A Portaria
336/GM, de 19 de fevereiro de 2002, define que os CAPS devem se constituir como serviços ambulatoriais que
funcionem segundo uma lógica territorial (BRASIL, 2004a, p. 125).
13
As políticas de Atenção Básica têm uma longa história. Segundo Franco e Merhy (2006), em 1920 um
médico inglês chamado Bertrand Dawson se opôs ao modelo flexneriano, propondo que os serviços de saúde se
ocupassem de ações preventivas e terapêuticas, a regionalização da estrutura de atenção e a incorporação de
médicos generalistas. Essas ideias se desenvolveram como a Medicina Comunitária e se difundiram pelo mundo
por meio de instituições como a Universidade Johns Hopkins e a Fundação Rockefeller. A Declaração de Alma
Ata, de 1978, é um marco conceitual em relação aos Cuidados Primários em Saúde e os considerou como
estratégia mundial prioritária para garantir a saúde como um direito universal. A declaração não usa o termo
território e sim, comunidade.
18
população adscrita nesses recortes, utilizando-se de ferramentas da epidemiologia e da
vigilância sanitária para identificar os fatores determinantes do processo saúde-doença do
território. Isso se com o objetivo de focalizar os esforços nos problemas mais comuns
presentes no território para garantir a universalidade do acesso.
No Brasil, as políticas de saúde anteriores ao SUS sempre tiveram presente a noção
de espaço ou território, seja na preocupação de atingir a enorme extensão territorial do país
no combate às endemias rurais, seja nas ações de higiene e saneamento dos espaços
urbanos. Mas é com o surgimento do SUS que o território passa, por influência da
Organização Pan-Americana de Saúde e pela contribuição teórica da Epidemiologia Social
Latino-Americana, a ter o sentido de um território processo no qual, além da sua dinâmica
epidemiológica, são consideradas as dinâmicas sociais, políticas e econômicas (SILVA
JUNIOR, 1997; FRANCO; MERHY, 2006).
Uma experiência importante desse momento de transição foi a de implantação dos
Distritos Sanitários
14
na Bahia, que ocorreu a partir de 1987, acompanhou a
institucionalização do SUS e se tornou referência para diversos estados na organização das
políticas locais. Nessa experiência, os sanitaristas baianos criaram uma concepção de
território como processo, inspirada nos textos do geógrafo brasileiro Milton Santos, um
território em permanente construção, uma arena política onde os diversos sujeitos sociais
competem:
O território processo transcende à sua redução a uma superfície-solo e às
suas características geofísicas, para instituir-se como um território de vida
pulsante, de conflito de interesses, de projetos e de sonhos. Esse território,
então, além de um território solo é, também, território econômico, político,
cultural e sanitário. (MENDES apud SILVA JUNIOR, 1997, p. 78).
A Atenção Básica é definida pela atual política nacional (BRASIL, 2007) como o
contato preferencial dos usuários com o SUS e se caracteriza pela manutenção de um
cuidado integral e continuado, baseado numa relação de vínculo, responsabilização e
respeito às singularidades dos usuários em seu contexto sociocultural. A noção de
territorialidade faz parte da conceitualização da Atenção Básica no texto da política
nacional, no qual esta é entendida como:
14
O Distrito Sanitário é a unidade mínima do sistema de saúde com base territorial/populacional. É composto por
um conjunto de equipamentos que têm o objetivo de promover ações de prevenção e recuperação da saúde e
garantir o acesso a níveis mais complexos de atenção pelo mecanismo de referência e contrarreferência. O
Distrito Sanitário se situa nos marcos teóricos do modelo assistencial “Sistemas Locais de Saúde” (SILOS). Os
SILOS foram propostos pela OPAS como estratégia prioritária para garantir o ideal de “Saúde para todos no ano
2000”. A implantação do modelo visa à reorientação dos sistemas nacionais de saúde. No Brasil, foi utilizado
como estratégia para ampliar a cobertura assistencial e muitos dos seus princípios foram incorporados ao SUS
(SILVA JUNIOR, 1996).
19
Conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que
abrangem a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o
diagnóstico, o tratamento, a reabilitação e a manutenção da saúde. É
desenvolvida por meio do exercício de práticas gerenciais e sanitárias
democráticas e participativas, sob forma de trabalho em equipe, dirigidas a
populações de territórios bem delimitados, pelas quais assume a
responsabilidade sanitária, considerando a dinamicidade existente no
território em que vivem essas populações. Utiliza tecnologias de elevada
complexidade e baixa densidade, que devem resolver os problemas de
saúde de maior freqüência e relevância em seu território. (Brasil, 2007, p.
12).
De um modo geral, podemos depreender dois usos da noção de territorialidade no
texto que define as diretrizes da referida política. Primeiramente, o sentido de constituição de
“territórios adscritos” (BRASIL, 2007 p. 12, 14, 20, 30). Nesse sentido, a territorialização é a
definição de áreas que delimitam uma população em relação às quais determinadas equipes
de saúde possuem a responsabilidade sanitária e também por meio das quais se ordenam o
acesso das populações às políticas de saúde e se organizam os fluxos de referenciamento e
contrarreferenciamento aos níveis mais especializados de atenção.
Um segundo sentido, que não se dissocia do primeiro, refere-se à noção de território
como princípio constitutivo dos processos de trabalho das equipes de Atenção Básica ou da
Estratégia de Saúde da Família (BRASIL, 2007 p. 20, 28). O território, nessa perspectiva,
constitui um eixo organizador das ações das equipes da Atenção Básica. Faz parte deste
princípio: estar sintonizado com a dinâmica da população local, o conhecimento de suas
vulnerabilidades, das áreas e fatores de risco a que as famílias ou indivíduos estejam
expostos, a criação ou a identificação de indicadores de padrões de saúde e de
morbimortalidade, seu monitoramento e análise, e a realização de um diagnóstico da
situação de saúde da população, levando em conta as dimensões sociais, econômicas,
culturais, demográficas e epidemiológicas do território. Também são de fundamental
importância no processo de trabalho das equipes a adoção de postura pró-ativa no
enfrentamento dos problemas mais frequentes e a manutenção de um vínculo ao longo do
tempo com a comunidade. Todos esses processos sempre referidos ao território adscrito.
Em todos os documentos analisados, tanto o das políticas de Saúde Mental como o
das políticas de Atenção Básica, predominam estes dois sentidos: o de território adscrito ou
de âmbito de atuação, que é o uso da noção de território como recorte do espaço para
organizar a atenção, regular o acesso e os fluxos, e disciplinar as responsabilidades de
usuários, trabalhadores e gestores, que se coaduna com o princípio de descentralização
político-administrativa do SUS. O outro sentido considera o território como um princípio
20
constitutivo dos processos de trabalho e das práticas de cuidado, ou seja, um componente
da construção de um modelo de cuidado territorial
15
.
A Política Nacional de Atenção Básica reconheceu a expansão de abrangência
nacional do Programa de Saúde da Família (PSF) e o adotou como estratégia prioritária
para a reorientação da Atenção Básica, passando a denominá-la Estratégia
16
de Saúde da
Família (ESF). O Ministério da Saúde havia adotado, desde 1994, o PSF e, desde 1991,
o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS)
17
como propostas de modelo para
qualificar a estrutura da Atenção Básica no Brasil e para aumentar a cobertura de acesso
ao SUS (BRASIL, 2007).
Filiada conceitualmente à corrente da Saúde Coletiva
18
brasileira denominada
Vigilância à Saúde
19
, a ESF tem como premissa básica a vigilância aos fatores
determinantes das condições de saúde da população de um território adscrito. A ESF vem
sendo implantada nos municípios de todo o país com o objetivo de reordenação do modelo
de atenção e reversão do enfoque centrado unicamente na cura biológica de indivíduos,
para um modelo de promoção integral e continuado de saúde para a família e a
comunidade. A estratégia é composta por equipes multiprofissionais, as Equipes de Saúde
da Família, integradas, em sua maioria, por enfermeiros, médicos, auxiliares de
enfermagem e os Agentes Comunitários de Saúde. Elas devem produzir práticas de saúde
baseadas no vínculo e na corresponsabilidade entre profissionais e comunidade (BRASIL,
2007).
Um dos propósitos da ESF é ampliar as possibilidades de intervenção sobre a
complexidade do processo saúde-doença, tomando o modelo da determinação social
20
. A
ESF como política de Atenção Básica funciona com a delimitação de uma determinada área
geográfica que fica sob responsabilidade das equipes de saúde. Essa área passa a
15
Seria possível dizer que o primeiro sentido está mais ligado aos processos de gestão do sistema e o segundo
mais ligado aos processos de trabalho, desde que não se esqueça que os dois processos são indissociáveis na
construção das práticas.
16
O termo “estratégia” substituiu o termo “programa” para marcar a diferença em relação aos programas verticais
do Ministério da Saúde e situar a Saúde da Família no marco de uma estratégia para a reversão do modelo e
melhoria da qualidade da Atenção Básica.
17
O PACS será abordado mais detidamente no capitulo 1.3.2
18
A “Saúde Coletiva” é um movimento que procura fundar um campo teórico, metodológico e político que prioriza
o social como categoria de análise, que passa a considerar as práticas sanitárias como práticas sociais e que
tece uma crítica ao viés positivista das práticas tradicionais de Saúde Pública (CAMPOS, 2000; MATTOS, R,
2001).
19
A “Vigilância à Saúde” é um movimento que surgiu no final dos anos 80 conseguindo pautar muitos debates
sobre as políticas públicas e práticas sanitárias no decorrer dos anos 90. Entre esses debates, está o da adoção
da ESF e do PACS como alternativa para a Atenção Básica no país. Essa corrente sugere que a ênfase recaia
nas práticas sanitárias que visem ao enfrentamento dos problemas relacionados com as condições de vida de
uma população adscrita e que as ões de saúde tenham um impacto positivo nas condições de existência dos
grupos populacionais (CARVALHO, 2002).
20
Determinação social da saúde é uma concepção marxista advinda da Epidemiologia Social Latino-Americana e
faz parte do conceito de saúde presente na Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080 de 1990). A ideia fundamental é de
que a saúde é determinada em grande parte pelos modos de organização social, que estabelecem as
possibilidades de acesso aos bens e serviços fundamentais para a saúde.
21
funcionar como o locus operacional das ações. A estratégia também elegeu a família e seu
contexto sociocultural como núcleo básico das ações de saúde.
Franco e Merhy (2006) teceram algumas críticas à ESF. Primeiro, lembram que o
PACS e o PSF surgiram no campo de tensão que se formou entre o ideal de saúde como um
direito social do SUS e o contexto econômico de ajuste neoliberal, no qual o tema de
racionalização de custos era premente. Desse modo, os autores alertam que se a ESF ficar
restrita ao uso instrumental da epidemiologia e da vigilância sanitária para dar conta dos
problemas do território, corre o risco de criar práticas mais higienistas do que sanitárias
dentro de um ideário preventivista de atender às populações pobres com baixos custos.
Negligenciando a complexidade do sofrimento dos indivíduos singulares no território e
reservando as conquistas da clínica à iniciativa privada e às populações mais favorecidas.
Da mesma forma, Franco e Merhy (2006) criticam o caráter compulsório das Visitas
Domiciliares, que podem facilmente ter um efeito de intromissão na privacidade e na
liberdade dos usuários. Também consideram que o excesso de diretrizes ditadas
verticalmente pela estratégia, pode coibir o exercício profissional criativo. De qualquer modo,
os autores consideram que a ênfase no território é um ganho, pois tende a gerar a produção
de vínculo e a responsabilização, assim como o foco na família que pode deslocar a ideia de
um “indivíduo orgânico” para um “sujeito em relação”.
Apesar dessas críticas bem fundamentadas, a maioria dos autores ressalta os
avanços da ESF. Machado et al (2006) consideram que o principal diferencial do trabalho das
equipes da ESF reside na possibilidade de construir intervenções no território onde vivem as
famílias e as comunidades. Fato esse que possibilita uma visão ampliada do processo
saúde-doença, potencializando a realização de ações de maior impacto sobre a vida das
pessoas porque contextualizadas socialmente.
O que torna a ESF uma política pertinente para o desenvolvimento de ações de
Saúde Mental é, segundo Abdalla et al (2006) e Alves (2001), o fato de que a Saúde da
Família tem como objeto de atenção a pessoa e seu contexto familiar e comunitário, e não a
doença. Além disso, a ESF leva em conta a multifatorialidade do processo saúde–doença,
estabelecendo a integralidade como princípio de trabalho e a noção de problema de saúde
enquanto um conjunto complexo.
Desde a Declaração de Caracas
21
, está impressa a recomendação de que as políticas
de Saúde Mental se insiram na estratégia de Atenção Primária (Atenção Básica). Segundo a
21
A Declaração de Caracas, principal produto da Conferência Regional para Reorientação da Assistência
Psiquiátrica no Continente, foi adotada pela Organização Mundial de Saúde em 14 de novembro de 1990 e é um
marco conceitual na luta por uma sociedade sem manicômios na América Latina. A declaração reconheceu
oficialmente que o hospital psiquiátrico viola os Direitos Humanos e não permite um cuidado integral, contínuo e
inserido no contexto comunitário dos pacientes e que provoca o isolamento das pessoas de seu meio de vida,
gerando maior incapacidade para o convívio social. A Lei de Reforma Psiquiátrica Brasileira (Lei 10.216 de 2001)
se ancorou nessa declaração.
22
declaração, a rede de cuidados primários permite a construção de um cuidado centrado no
território e nas redes sociais do usuário, possibilitando a permanência do paciente em seu
contexto comunitário. A Lei 224 de 29 de janeiro de 1992, promulgada após a Lei Orgânica
da Saúde, apontou diretrizes para as ações de Saúde Mental na Atenção Básica (BRASIL,
2004a). A III Conferência Nacional de Saúde Mental reafirma essa integração, entendendo a
Atenção Básica como um conjunto de ações e serviços em um território articulado sob o eixo
do acolhimento e do vínculo: “... atendendo ao Princípio da Integralidade, é necessário incluir
a atenção aos portadores de sofrimento psíquico nas ações básicas de saúde e, também,
incorporar as ações de saúde mental no Programa de Saúde da Família” (BRASIL, 2002, P.
48). A mesma recomendação está impressa nos relatórios da 12ª e da 13ª Conferência
Nacional de Saúde (BRASIL, 2004, 2008a).
Existe, atualmente, uma grande preocupação no SUS em criar uma articulação entre
ações e serviços de Saúde Mental e a rede de Atenção Básica, e tem se evidenciado que a
fronteira entre as duas políticas é complexa e em alguns pontos difusa (DALLA VECCHIA,
MARTINS, 2008). Essa articulação se torna indispensável para uma consequente
desinstitucionalização das práticas de cuidado direcionadas aos portadores de sofrimento
psíquico e às pessoas que usam drogas. Esses dois grupos populacionais comumente m
dificuldade de ter acesso aos serviços de saúde, porque ainda persiste no imaginário social a
resposta de confinamento. A loucura e a substância química costumam obturar a percepção
dos serviços para as demais necessidades de saúde. Por isso, as políticas de Saúde Mental
devem considerar a Atenção Básica um de seus eixos estruturantes.
Depois de um intenso diálogo entre os coordenadores de Saúde Mental e Atenção
Básica, foram apontados como princípios fundamentais dessa articulação: a noção de
território, a organização dos serviços em forma de rede, a desinstitucionalização, a
intersetorialidade, a reabilitação psicossocial, a interdisciplinaridade, a promoção de
cidadania e a construção de autonomia dos usuários e seus familiares (BRASIL, 2004b).
No entanto, na atual Política Nacional de Atenção Básica, a Saúde Mental é
mencionada como mais uma atenção especializada a ser ofertada pelo fluxo de referência
e contrarreferência
22
(BRASIL, 2007, P. 31). Para romper com a lógica da Saúde Mental
como uma especialidade, a Coordenação-Geral de Saúde Mental, em articulação com a
Coordenação de Gestão da Atenção Básica, recomendou a tecnologia do Apoio Matricial
22
O sistema de referência e contrarreferência é a partir de um modo hierarquizado de pensar e dividir as
necessidades de saúde em diferentes veis de complexidade um arranjo organizacional para disciplinar os
fluxos de encaminhamento. Partindo da Atenção Básica, tida como porta de entrada do sistema, referencia-se os
usuários aos níveis mais especializados de atenção (ambulatorial e hospitalar). A contrarreferência é o
encaminhamento de retorno para o serviço de referência do usuário (Unidade Básica de Saúde ou Unidade de
Saúde da Família). Dentro dessa lógica, as demandas de Saúde Mental são consideradas mais uma
especialidade, como a cardiologia ou a dermatologia.
23
Especializado, ficando os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) responsáveis técnicos
pela efetivação do apoio (BRASIL, 2004b).
O Apoio Matricial é um desenho organizacional proposto por Campos (1999) que
consiste em uma equipe fornecer apoio em áreas específicas às equipes responsáveis
pelas ações básicas de saúde de determinado território adscrito, evitando a necessidade de
encaminhamento. A equipe de Apoio Matricial trabalha na lógica da corresponsabilidade
com as equipes locais – as Equipes de Referência –, realizando discussões, intervenções e
atendimentos conjuntos, a fim de oferecer retaguarda assistencial, suporte técnico e apoio
pedagógico. As ões de Apoio Matricial devem se efetuar em conjunto com as equipes
locais, pois assim as intervenções teriam, além do caráter clínico, um caráter pedagógico,
de instrumentalização e de potencialização das equipes locais.
Esse arranjo organizacional tem como objetivo quebrar a lógica dos
encaminhamentos e, como efeito, desenhar projetos terapêuticos que passam a ser
executados por um número maior de trabalhadores em que a responsabilidade maior
continua sendo a da Equipe de Referência (CAMPOS; DOMITTI, 2007). O matriciamento
pode se dar de vários modos, dependendo do entendimento e do uso que cada equipe de
apoiadores faz dessa tecnologia. De qualquer forma, o apoio matricial tem como objetivo
potencializar as equipes a fim de manter o cuidado localizado no território do usuário
23
.
Muitos apoiadores matriciais insistem na importância de circular no território com as
equipes locais, realizando intervenções conjuntas fora dos estabelecimentos de saúde, e
perceber, durante as caminhadas, o reflexo ativo do território na subjetividade dos usuários
e como os modos de vida repercutem nas práticas de cuidado
24
.
Dalla Vecchia e Martins (2008) consideram três questões fundamentais no processo
de articulação das políticas de Saúde Mental e Atenção Básica. Primeiro, a necessidade de
reconhecimento institucional da dimensão da subjetividade no processo saúde-doença, pois
a pressuposição de níveis estanques de complexidade teve como efeito a captura e a
redução do sofrimento psíquico no registro da doença mental, apartando a subjetividade das
necessidades fundamentais de saúde. Segundo, problematizar a implicação dos
trabalhadores com a loucura, pois a tendência geral é desautorizar a pessoa com transtornos
mentais. Por último, uma avaliação crítica do lugar delegado à família no processo de
23
Em 24 de janeiro de 2008, foi aprovada a Portaria MS 154, que cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Família
(NASF) e institui incentivo financeiro com o objetivo de ampliar a abrangência de ações da Atenção Básica e sua
resolutividade. A portaria estabelece que os NASF sejam constituídos por profissionais de diversas áreas de
conhecimento e que atuem na lógica do Apoio Matricial em parceria com as Equipes de Saúde da Família,
ampliando as ações nos territórios. O Ministério recomenda que cada NASF conte com um profissional de saúde
mental e que cada núcleo fique responsável por, no mínimo, oito e, no máximo, vinte equipes de saúde da
família (BRASIL, 2008b). A portaria favorece os municípios com menos de 20.000 habitantes e que, portanto,
não têm CAPS.
24
Conforme relatos de Leo Nepomuceno, Marcela Lucena e Henriette Mourão no seminário nacional O Núcleo
de Apoio à Saúde da Família e a Prática da Psicologia”, realizado em Brasília em 2008, pelo Conselho Federal
de Psicologia.
24
cuidado, evitando os lugares comuns de culpabilização do grupo familiar. Uma estratégia
fundamental, segundos os autores, para avançar nessa integração é superar a centralidade
do uso dos enquadres tradicionais nas ações sobre o território da comunidade:
Alguns profissionais mais ‘flexíveis’ (com relação ao enquadre das ações de
cuidado) vêem com certa reserva visitas domiciliares ou outras atividades
no espaço da comunidade, quanto às possibilidades de cuidado de pessoas
com transtornos mentais. Situações como violência doméstica (contra
crianças, adolescentes, idosos), assistência à população de rua e a
complexa atuação diante de problemas relacionados ao uso de álcool e
outras drogas exigem da atuação na atenção sica uma disponibilidade
para atuar em espaços ‘não protegidos’. Intervenções que priorizam a
articulação com a rede social de apoio da pessoa e da família e ações
destinadas à redução de danos são emblemáticas ao apresentar o potencial
de ações ‘extramuros’ (ou seja, centradas nas famílias e comunidade) na
desinstitucionalização dos cuidados de pessoas com transtornos mentais na
atenção básica. (DALLA VECCHIA; MARTINS, 2008, p. 13).
1.2 A itinerância como modo de operacionalizar o cuidado no território
A itinerância foi um modo de organizar uma infinidade de ações na saúde pública com
uma diversidade de objetivos. Apenas a título de exemplo, podemos citar algumas
experiências. A itinerância teve uma importância muito grande no período da Primeira
República, nas operações do “sanitarismo campanhista”
25
, que se destinavam a combater as
epidemias urbanas e rurais. As “brigadas mata-mosquito” envolvidas no conflito da revolta
da vacina em 1904 –, os “guardas da malária” e os “auxiliares de saneamento” são exemplos
disso. A itinerância era utilizada nessas experiências com o objetivo de livrar a sociedade das
epidemias, higienizando
26
os bolsões de pobreza, sanando estradas e portos para não
25
O Sanitarismo Campanhista foi um modelo de saúde pública de inspiração americana, mas que foi importado
de Cuba e que se tornou um dos pilares das políticas de saúde no Brasil e no continente americano. Na Primeira
República, o modelo se tornou eixo estruturante das políticas de saúde e se coadunava com as políticas de
urbanização e de habitação. Esse modelo formou uma estrutura administrativa centralista e tecnoburocrática
regida por um corpo médico proveniente da oligarquia agrária brasileira. Segundo Luz (1991), esses traços
permanecem em muitas instituições de saúde pública no Brasil. Na Primeira República, as campanhas sanitárias
obtiveram resultados positivos no combate às epidemias, mas no que se refere às relações de poder “... o
próprio nome sugere que o modelo campanhista é de inspiração bélica, concentra fortemente as decisões, em
geral tecnocráticas, e adota um estilo repressivo de intervenção médica nos corpos individual e social” (LUZ,
1991, p. 139). É importante lembrar que acompanhavam essas ões no espírito da Primeira República “o
ideário do progresso e a afirmação do processo civilizatório em um país que parecia estar condenado por seu
passado colonial e escravista e pela propalada inferioridade racial de sua população” (LIMA et al, 2002, p.44).
26
No esforço que foi realizado para controlar as grandes endemias de febre amarela, peste bubônica e varíola
que assolavam o continente americano, estiveram em voga as teorias contagionistas do fim do século XIX e dos
primórdios da escola bacteriológica. Essas teorias se encontravam abrigadas na disciplina da higiene, que era o
campo de conhecimento que se ocupava das condições de saúde dos coletivos humanos. A higiene era o estudo
do homem e dos animais em sua relação com o meio, visando ao aperfeiçoamento do indivíduo e da sua
espécie, e propunha vários preceitos com o intuito de normalizar a vida social. A corrente “contagionista”
25
prejudicar atividades mercantis, como a exportação do café, nem a entrada da mão-de-obra
dos imigrantes, que se tornou necessária depois da abolição da escravidão (JUNIOR;
NOGUEIRA, 2002).
Em 1920, como mais uma estratégia de aperfeiçoar os serviços de profilaxia e
educação higiênica, Carlos Chagas conseguiu estabelecer, junto à Fundação Rockefeller, um
projeto de cooperação técnica para criar uma escola de “enfermeiras visitadoras”, que
funcionaria inspirada nos princípios de Florence Nightingale
27
. A escola tinha como objetivo
formar trabalhadoras itinerantes com uma consistente formação nos pressupostos científicos
da época para substituir as “visitadoras de higiene”, que não tinham educação formal ou que
apenas recebiam cursos pontuais de médicos sobre os pressupostos da higiene (NETO,
1997).
Segundo Neto (1997), o trabalho das enfermeiras visitadoras era considerado
imprescindível para a consecução das políticas de saúde higienistas. Um regulamento de
1920 dizia que as visitas dessas enfermeiras deveriam ser “sempre feitas de modo discreto e
benévolo e com o assentimento das pessoas da falia” (NETO, 1997, p.6) e que as
enfermeiras tinham como dever “ensinar o paciente a obedecer aos preceitos higiênicos
determinados pelo médico. Para tanto, tornava-se imprescindível que ela o visitasse e que se
intrometesse na intimidade de sua casa, em seu quarto: territórios dominados
preferencialmente pelo médico” (NETO, 1997, p. 6).
Neto (1997) relata que um médico defensor do modelo higienista, chamado Thibau
Jr., afirmou certa vez que a enfermeira visitadora deveria “conhecer para cuidar” e “conhecer
para convencer”, usando de “delicadeza e tato” e de “modo insinuante” para obter a
aceitação das medidas profiláticas. O papel da enfermeira visitadora era frequentar a
intimidade das famílias, normalizar e disciplinar suas condutas de modo mais incisivo e direto
do que se efetuava nos hospitais.
Como um exemplo da assistência psiquiátrica, em 1927, num contexto de muita
popularidade entre os psiquiatras das ideias de eugenia (COSTA, 1989) e quatro anos após
defendia a ideia que um indivíduo poderia transmitir a doença diretamente a outro indivíduo, ou indiretamente
através de objetos contaminados pelo doente ou pelo ar circundante. Essa era a justificativa das práticas de
isolamento compulsório, a desinfecção de objetos e a prescrição da quarentena. Outra corrente era a
“anticontagionista”, que defendia a ideia da infecção como modelo explicativo: a doença era adquirida nos locais
insalubres, local de emanação nos miasmas, ou seja, não havia contágio direto. As ações propostas eram
sanear lugares insalubres águas paradas, casas populares, lixo e esgoto e nisso se baseavam as propostas
de reforma urbana do século XIX na Europa. Os pressupostos higiênicos foram os motores de um grande
processo de controle sobre os modos de vida das populações pobres sem uma preocupação com as suas
condições materiais de existência (LIMA, 2002). As palavras de Carlos são emblemáticas do pensamento
higienista. “... não é tratando a pobreza que se cura a tuberculose; o tratamento da tuberculose é que representa
um dos melhores meios preventivos da pobreza... ” (NETO, 1997, p. 6).
27
Florence Nightingale criou a Escola de Enfermeiras St. Thomas em Londres, em 1860, onde introduziu noções
como a de organização, método e lógica racional no trabalho da enfermagem, associando a isso o espírito de
abnegação e de sacrifício dos cuidadores (NETO, 1997).
26
a criação da Liga Brasileira de Higiene Mental
28
, foi aprovada uma lei que reorganizava a
assistência psiquiátrica e previa a criação da figura das “visitadoras psiquiátricas”. Estas
eram mulheres treinadas para terem um olhar acurado no esquadrinhamento dos loucos e
desequilibrados, funcionando como uma linha avançada da psiquiatria sobre o corpo social,
atentas aos sinais de degeneração mental (CUNHA apud PALOMBINI, 2007).
Em 1949, foi criado o Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência (SANDU)
no segundo governo Vargas. Em 1942, foi criado o Serviço Especial de Saúde Pública
(SESP) que, fruto de um convênio entre Estados Unidos e Brasil, tinha o objetivo de manter a
saúde de regiões que produziam materiais estratégicos para a guerra, como a borracha da
Amazônia e os minérios de Goiás. O SESP atuou em áreas geográficas distantes e pobres e
foi pioneiro na atenção básica domiciliar (MERCADANTE, 2002).
Também existiu a figura do “auxiliar de saúde” do Programa de Interiorização das
Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), de 1976, e do Programa Nacional de Serviços
Básicos de Saúde, de 1982, que tinham o objetivo de ampliar a extensão da cobertura e
ampliar o acesso a grupos marginalizados a ações básicas de saúde (SILVA; DALMASO,
2002; MARQUES; PADILHA, 2004).
Esses foram alguns exemplos pontuais, fragmentários e esparsos no tempo, mas que
servem para demonstrar o quanto a relação da itinerância com a saúde pública foi marcada,
de modo mais evidente na Primeira República, por concepções higienistas e práticas
normalizadoras que contribuíram muito para o processo de medicalização da sociedade.
Caracterizaram-se em muitos momentos pela execução de ações autoritárias que incidiam,
preferencialmente, nas camadas desfavorecidas da população. Muitas ações tiverem um viés
de culpabilização dos indivíduos em relação ao seu estado de saúde, a “raça” a que
pertenciam, seu comportamento moral ou seu nível de instrução. Também a constante
preocupação de que os trabalhadores itinerantes, que se introduziam na vida cotidiana dos
cidadãos, recebessem, como aporte de autoridade e legitimidade às suas práticas, instruções
mínimas sobre os “fundamentos científicos” que definiam o processo saúde-doença de cada
época. Instrução que se efetuava por meio de um profissional hierarquicamente superior,
28
Segundo Maciel (2001), a Liga Brasileira de Higiene Mental foi fundada em janeiro de 1923 por Gustavo
Riedel, no Rio de Janeiro. Desde sua criação até o término de suas atividades, no início dos anos 50, o trinômio
eugenia, higiene e prevenção sempre ocupou lugar central nos seus programas de ação. Movidos pelo ideal do
aperfeiçoamento racial, a liga reivindicava a tarefa de regenerar a nação e evitar a degeneração mental de sua
população, segundo as medidas preventivas de caráter eugênico e higiênico. Eugenia foi um termo cunhado pelo
inglês Francis Galton, em 1869, que, utilizando ideias da seleção natural, elaborou a doutrina do
aperfeiçoamento da raça humana. É interessante observar que muitos psiquiatras eminentes pertenciam tanto à
Liga de Higiene Mental como à Liga Pró-Saneamento, criada em 1918. Segundo Costa (1981), foi justamente a
ideia de prevenção, de uma ação anterior ao surgimento dos sinais clínicos da doença, que funcionou como
porta de entrada, permitindo o acoplamento das ideias eugenistas à psiquiatria organicista, fazendo com que a
eugenia dominasse o pensamento da Liga, convertendo-a a veículo de propaganda ideológica do nazismo.
Guiados pela crença na neutralidade da ciência em relação aos valores morais, os psiquiatras brasileiros
iniciaram uma cruzada preventiva aos vícios, à ociosidade e à miscigenação, e passaram a considerar transtorno
mental evidência de degeneração.
27
como a supervisão permanente de um enfermeiro, médico ou psiquiatra, ou eventualmente
através de cursos.
Parece que em determinado ponto, como mostra o caso das enfermeiras visitadoras,
surgiu a ideia de que, por meio de uma relação de afeto, as prescrições normativas poderiam
ser acatadas com mais facilidade. As enfermeiras visitadoras também parecem demonstrar o
surgimento da ideia de uma “função de intérprete” entre o mundo dos “homens da ciência” e
a imensa população de “necessitados”. Algumas experiências também apontam que no
objetivo de prevenção havia a noção vaga de que frequentar os locais de vida dos pacientes
era uma forma de “atacar o mal em sua própria fonte
29
”.
Com a implantação do SUS, baseado nos princípios de universalidade, equidade,
integralidade, participação popular, descentralização e promoção de autonomia, assim como
a ampliação do conceito de saúde, que passa a ser compreendido como um complexo
processo resultante das condições materiais de vida, as experiências de trabalho itinerante
passaram a ter outro sentido e exercer funções diferentes. Ao menos em intenção.
A Declaração de Alma-Ata
30
, em 1978, recomendava a figura de um agente
comunitário assim como a VIII Conferência Nacional de Saúde recomendou a adoção dos
“agentes populares” para trabalhar com os cuidados primários em saúde (BRASIL, 1986).
Mas foi só no ano seguinte da promulgação da Lei Orgânica de 1990 que se institucionalizou
a figura dos agentes comunitários de saúde com a criação, pelo Ministério da Saúde, do
“Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde” (PNACS).
Foi em Santos, berço de importantes experiências do Movimento Sanitário, em 1990,
que surgiu a primeira experiência brasileira de trabalho de campo dos Redutores de Danos
(SOUSA, 2007). Do mesmo modo, a Portaria MS 224 de 1992, primeira portaria relativa às
políticas de Saúde Mental pós Lei Orgânica da Saúde, estabelece a Visita Domiciliar como
uma ação das equipes de Saúde Mental na comunidade (BRASIL, 2004a). Um tipo de
atividade surgida no Brasil por volta dos anos 1960 em clínicas privadas, e que então era
denominada de Acompanhamento Terapêutico, vai aos poucos se inserindo nas políticas
públicas e se afirmando como um “dispositivo clínico” da Reforma Psiquiátrica (PALOMBINI,
2006).
A III Conferência de Saúde Mental propôs a criação de equipes volantes de saúde
mental” que fossem orientadas pelos princípios da Reforma Psiquiátrica e funcionassem
como referência às equipes da ESF e das UBS. A conferência também recomendou a
implantação de serviços de atendimento ou de internação domiciliar em saúde mental que
29
Segundo a fala de Ethel Parsons, preceptora do curso de enfermeiras visitadoras, no Congresso dos Práticos,
em 1922 (NETO, 1997).
30
Resultado da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, que se realizou na cidade de
Alma-Ata, na antiga URSS, de 6 a 12 de setembro de 1978. A declaração reconhece a saúde como um direito
humano fundamental e recomenda a adoção da Atenção Primária como estratégia para atingir a meta de “saúde
para todos”.
28
fossem realizados por “equipes itinerantes”, por ACS ou ainda equipes da ESF (BRASIL,
2002, p. 50).
A possibilidade de pensar a itinerância como um modo singular de operacionalizar o
cuidado no território parte de diversas experiências de atenção que têm sido construídas no
cotidiano das práticas de saúde ao longo das duas últimas décadas e das reflexões teóricas
que partem delas. Uma experiência que se tornou referência no país para a inserção de
ações de Saúde Mental na Estratégia de Saúde da Família foram as Equipes Volantes de
Saúde Mental do projeto Qualis
31
. Em seu relato sobre essas experiências e ao estabelecer a
partir daí uma “síntese metodológica”, Lancetti (2002), coordenador do projeto, lançou as
bases sobre as quais construiu a ideia de uma clínica peripatética.
As Equipes Volantes de Saúde Mental atuavam na comunidade tendo como princípio
fundamental da metodologia de trabalho a produção de uma corresponsabilidade com as
Equipes de Saúde da Família. Desse modo, deslocavam-se pelo território adscrito dentro da
lógica de busca ativa, indo até as famílias em situação de maior vulnerabilidade em
companhia dos ACS ou de algum técnico da ESF. Utilizavam o que o autor (LANCETTI,
2002) denominou de fator surpresa como estratégia de intervenção, pois as visitas nos locais
de vida das pessoas eram realizadas sem aviso prévio. Era um modo de evitar as habituais
respostas dos usuários às habituais intervenções e desestabilizar os lugares instituídos.
Segundo Lancetti (2006b), as ações de saúde sustentadas pela surpresa se fundamentam na
paradoxal relação de forças entre o poder de polícia médica dos profissionais de saúde e o
poder de afetação que podem produzir nos encontros com o usuário. Quando esse jogo de
forças é usado em defesa da vida, os trabalhadores de saúde atingem o que o autor chama
de ascendência afetiva.
Eram durante as caminhadas entre um atendimento e outro, pelos territórios dos
usuários, que os casos clínicos e as estratégias terapêuticas eram discutidos pela equipe, ao
modo peripatético
32
. Além do princípio da corresponsabilidade entre as equipes, a prioridade
aos casos mais graves e do fator surpresa, as equipes volantes tinham como princípio de
trabalho que todas as ações fossem pautadas pelo conceito de cidadania, porque antes de
uma formação patológica, o usuário é um cidadão. O segundo princípio é considerar que os
usuários não padecem do corpo ou da mente separadamente, porque as condições
ambientais, sociais e mentais são ecologias interrelacionadas. O terceiro princípio afirma que
os processos de produção de saúde devem ocorrer no universo existencial das pessoas e
31
Essa experiência, que se tornou referência nacional para as ações de Saúde Mental na Estratégia de Saúde
da Família, foi arbitrariamente interrompida no final de 2008.
32
Peripatético: expressão usada para designar a escola filosófica fundada por Aristóteles, que adquiriu o
costume de ministrar os ensinamentos em caminhadas pelos jardins de Apolo. Provêm de peripatéõ: Passear, ir
e vir conversando (LANCETTI, 2006b).
29
em diálogo com seus interlocutores invisíveis
33
. As equipes devem conhecer os sistemas que
estruturam a vida do coletivo, os interlocutores invisíveis com os quais dialogam e os modos
daquela cultura explicar e lidar com o sofrimento (LANCETTI, 2002).
Como as equipes volantes atuam em parceria com a ESF, outro princípio proposto é
considerar como paciente a família como um todo – entendida como o grupo de pessoas que
coabitam e identificar as depositações” que o grupo familiar e a comunidade realizam nos
desviantes, sejam loucos, drogados ou deprimidos. As práticas devem se voltar ao
fortalecimento da família para que esta possa ajudar seus membros problemáticos.
(LANCETTI, 2002).
Outro princípio proposto por Lancetti (2006b) é o da complexidade invertida. As ações
de saúde realizadas na Atenção Básica são tradicionalmente consideradas como sendo
ações de baixa complexidade, enquanto as ações realizadas em serviços, como centros
cirúrgicos e grandes hospitais (Atenção Terciária), são consideradas de alta complexidade
34
.
Lancetti (2006b) defende a ideia de que, em se tratando de sofrimento psíquico, é
exatamente o contrário: os procedimentos realizados dentro dos hospitais psiquiátricos são
procedimentos simples e tendem à simplificação. A vida do paciente, na medida em que vai
cronificando, tende a ficar cada vez mais empobrecida. as ações no território são muito
mais complexas, com todos os atravessamentos sociais e culturais, as condições materiais
de vida e os riscos que comporta um setting que não é fixo e que impõe constantes
deslocamentos aos trabalhadores.
Existem na literatura diversas denominações para esse modo de operacionalizar o
cuidado. Pelliccioli et al (1987) utilizaram a expressão clínica itinerante para se referirem ao
trabalho clínico realizado pelos acompanhantes terapêuticos (ats). Rolnik (1997) usou o
termo clínica nômade para expressar um modo de cuidado que se no “fora” dos códigos
instituídos, que ultrapassa os territórios conhecidos e sedentarizados, deixando-se afetar
pelos fluxos e intensidades para além do mundo das representações. Palombini (2004) usou
o termo clínica em movimento ao se referir às práticas dos ats e Silva A. (2005) usou o termo
fazer andarilho. Lancetti (2006b) e Araújo (2006) usaram o termo clínica peripatética para
definir esse modo de cuidado que pressupõe um deslocamento pelo território do usuário.
Araújo (2006) usa o termo ao falar do acompanhamento terapêutico, sinalizando assim um
33
Expressão proveniente de Thobie Nathan, etnopsicanalista francês que estuda os sistemas terapêuticos
tradicionais de diversos lugares do mundo. Os “seres invisíveis” são as divindades, os espíritos, os demônios, e
as “ações invisíveis” são as feitiçarias, os malefícios e os encantamentos. Para o autor, é imprescindível dialogar
com seriedade com essas dimensões invisíveis de cada cultura porque elas têm efeitos materiais na vida das
pessoas. Intervenções que levam em conta a relação com essa dimensão como um postulado técnico, sem a
considerar uma mera crença ou um fantasma psíquico” dos indivíduos o que inevitavelmente aprisionaria o
sofrimento em um “eu interiorizado” –, remetem o sujeito a práticas rituais que o vincularão ao grupo a que
pertence (NATHAN, 1996a).
34
A atual Política Nacional de Atenção Básica reconheceu a complexidade dos cuidados primários, usando a
expressão: “utiliza tecnologias de elevada complexidade e baixa densidade, que devem resolver os problemas
de saúde de maior frequência e relevância em seu território” (Brasil, 2007, p. 12).
30
modo de operar o cuidado que se sem local fixo, nos passeios, nos percursos de saídas.
Lancetti (2006b) usa o termo práxis peripatética para designar as diversas experiências de
produção de saúde que se dão peripateticamente, ou seja, em movimento.
Petuco e Medeiros (2008) usam o termo clínica aberta para designar o trabalho dos
acompanhantes terapêuticos e dos redutores de danos. Os autores consideram a clínica
aberta, antes de uma questão de método, uma experiência ética dos trabalhadores de saúde
que só se atualiza na práxis. Pois as ações de uma clínica aberta são assentadas no
acolhimento radical dos usuários em sua diferença. Segundo os autores, essa práxis dos
acompanhantes terapêuticos e dos redutores de danos têm como efeito produzir um
tensionamento constante a todo tipo de institucionalização das práticas de cuidado.
Souza (2007), ao falar do trabalho dos redutores de danos, considerou esse uma
modalidade de clínica a céu aberto que tem o desafio de se constituir como uma práxis que
afirme o território como um espaço de produção de subjetividade. Lancetti (2006a) também
usa o termo clínica cartográfica para se referir às práticas de saúde que possuem um setting
móvel, em contraposição às práticas que utilizam um setting fixo, e que, segundo o autor,
produzem uma “clínica arqueológica“:
Da mesma forma que o divã favorece a regressão e uma clínica
arqueológica o cenário móvel, a montagem em movimento se
sustenta com relações de afeto, de força, e diferenças produzidas na
produção de subjetividade ocorrem no percurso e na construção de
um mapa a outro. (LANCETTI, 2006a, p. 24).
Em Porto Alegre, a equipe de saúde mental da Pensão Protegida Nova Vida adotou
um modo de trabalho itinerante. Segundo a equipe, a itinerância foi uma resposta à exigência
de criação de novas formas de intervenção no trabalho com portadores de sofrimento
psíquico nos quais os modos tradicionais de atenção não davam conta das necessidades de
saúde que surgiam no decorrer dos processos de inserção social. Para a equipe, ficou claro
que teriam de deslocar suas intervenções para fora do espaço protegido das instituições.
Adotaram, assim, a itinerância como novo modo de atenção, realizando as intervenções fora
do espaço protegido das instituições, as quais nomearam Atendimentos Domiciliares
Terapêuticos, para inscrever suas ações no marco das intervenções em saúde, ao invés da
tradicional Visita Domiciliar (NETO et al, 2004).
A itinerância passou a ser o recurso utilizado para operacionalizar as intervenções no
“lugar onde estava o usuário” na sua casa, na pensão, na família ou na rua –, realizando
ações das mais diversas complexidades, como acompanhar o usuário nas compras, no seu
convívio com os vizinhos, nos conflitos familiares e no cuidado com os filhos. Consideram
31
que ao ingressarmos terapeuticamente no mundo do nosso usuário, estamos construindo
junto com ele novas formas de morar, de se relacionar e de viver” (NETO et al, 2004, p. 22,
23 [Grifos dos autores]). Também relatam que com suas experiências puderam verificar que,
mesmo no trabalho com usuários com transtornos psíquicos severos e/ou longo histórico de
institucionalização, é possível construir um novo caminho, refazer histórias, histórias
inéditas, incluídas num social que forçosamente vai se desestabilizar” (NETO et al, 2004, p.
23).
Os autores dessa experiência consideram sua prática um trabalho processual e
permanentemente aberto à modificação: “... é um modo de trabalho onde é permitido
experimentar o caminho, errar, desconstruir e construir novamente” (NETO et al, 2004, p.
23). Por último, os autores conceituam a itinerância tanto como o movimento realizado no ato
de ir ao encontro do usuário, como os movimentos que se produz ao acompanhar o usuário
na comunidade, garantindo o seu pertencimento a um território. A equipe também considera
itinerância a abertura de novos caminhos que o pensamento percorre em decorrência da
complexidade das práticas.
1.3 Três tecnologias de cuidado que usam a itinerância como modus operandi
Três experiências de trabalho itinerante que se materializaram no campo das políticas
públicas de saúde e que se vinculam de modo estreito às problemáticas suscitadas pelo
movimento da Reforma Psiquiátrica e Sanitária são as práticas dos acompanhantes
terapêuticos (ats), os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e os redutores de danos. As
três experiências adquiriram uma consistência própria e transitam entre as políticas de Saúde
Mental e Atenção Básica e, com a institucionalização do SUS, passam a ter uma importância
estratégica relevante na produção de mudança no modelo de atenção.
1.3.1 Os acompanhantes terapêuticos
O Acompanhamento Terapêutico (AT)
35
é uma prática de cuidado que tem como
principal característica privilegiar o espaço aberto da cidade para criar laços entre o usuário e
o território por ele habitado, utilizando a experiência de circulação pelo tecido urbano como
35
Vamos usar a abreviação de AT para Acompanhamento Terapêutico e at para acompanhante terapêutico,
consagrada pelo uso desde a publicação de Barreto (1998).
32
dispositivo de produção de saúde. Ainda que, como lembra Cabral (2007), seja entre quatro
paredes que muitos acompanhamentos iniciam – uma instituição psiquiátrica, o quarto de um
usuário –, é sempre com o objetivo de ampliar o território de circulação do usuário: do quarto
à sala, da sala à rua, da rua à cidade. Mas a autora lembra que a prática do acompanhante
terapêutico (at) não pode ser medida ou compreendida pelos espaços que percorre e que
ganhar a rua não significa tirar o usuário de seu enclausuramento. Mas, para tirar o usuário
de seu enclausuramento, o AT se utiliza da potência terapêutica do contato com a
complexidade do espaço social e da experiência urbana, fazendo com que as intervenções
produzidas pela cidade tenham uma função terapêutica e criem um espaço para novas
produções de sentido (SILVA; SILVA, 2006).
O AT tem sua origem histórica na figura dos atendentes psiquiátricos das
experiências das Comunidades Terapêuticas, que surgiram na década de 1960
36
, sendo que
a maior parte dos autores estabelece conexões com as diversas experiências alternativas de
cuidado com a loucura. Experiências que passam a existir a partir da década de 1950 e que
comportavam uma crítica ao modelo manicomial da psiquiatria clássica e a denúncia de que
o sistema de enclausuramento, além de violento, era ineficaz. Experiências essas que foram
aos poucos deslocando suas intervenções para as ruas (ARAUJO, 2005; SILVA; SILVA,
2006). Piccinini (2006), um psiquiatra que trabalhou como at na Clínica Pinel
37
nos seus
primeiros anos de funcionamento, afirma que o surgimento do AT não tem relação alguma
com a Reforma Psiquiátrica e ocorreu em virtude da introdução da psiquiatria dinâmica no
Brasil nos anos 1960. Uma afirmação como essa, segundo Palombini (2007), demonstra o
campo de tensão que acompanha a história do AT. É justamente nesse campo de tensão,
nesse “espaço de fricção” do embate político entre as forças da psiquiatria clássica e as
forças dos diversos movimentos reformistas, que a autora situa seu plano de emergência.
Mas o que nos interessa no contexto deste estudo é entender a inserção da prática
dos ats nas políticas públicas de saúde. O AT ingressa nas políticas públicas no Brasil no
momento em que o manicômio é posto em questão. Desse modo, Palombini, Cabral e Belloc
(2005), e Palombini (2004, 2007) afirmam, a partir de suas experiências, que o ingresso do
36
Essa função de um trabalhador que acompanha o usuário por suas incursões pelo espaço urbano foi
denominada de atendente grude, depois atendente psiquiátrico, na Clínica Pinel em Porto Alegre na década de
1960, depois auxiliar psiquiátrico, na Clínica Villa Pinheiros, no Rio de Janeiro, entre os anos de 1969 e 1976. Na
Argentina, psicanalistas que trabalhavam em hospitais psiquiátricos acabaram criando novas funções para os
então chamados auxiliares psiquiátricos ou atendentes terapêuticos que passaram a ser chamados amigos
qualificados. Nome que chegou à instituição A Casa” por intermédio de uma psicanalista argentina. Nos anos
1980, consolida-se a nomenclatura de acompanhante terapêutico como resultado da movimentação dos próprios
agentes dessa prática que, com uma nova nomenclatura, tinham o duplo objetivo de demarcar uma autonomia
em relação ao saber psiquiátrico e destacar o caráter terapêutico de sua função (REIS NETO, 1995; BARRETO,
1998; PALOMBINI, 2007; SILVA, A, 2005; CABRAL, 2005).
37
A Clínica Pinel, ou Associação Encarnación Blaya, foi criada em 1960 por Marcelo Blaya e funcionou nos
moldes de uma Comunidade Terapêutica. Além de ter sido inovadora em muitos aspectos, é considerada a
pioneira no Brasil no uso de um trabalhador que acompanhava o louco nas suas incursões pela rua, os então
chamados atendentes psiquiátricos”. Blaya fez sua formação nos Estados Unidos, onde se impressionou com o
trabalho de agentes que circulavam com os loucos nas ruas americanas (SILVA; SILVA, 2006; CABRAL, 2005).
33
AT nas políticas públicas foi possível no contexto de políticas de Saúde Mental, que,
sintonizadas com os preceitos da Reforma Psiquiátrica, puseram-se a construir uma rede
substitutiva ao manicômio. Foi nesse contexto, de lutas pela desmanicomialização, que o AT
foi demandado em função das singularidades do trabalho com a loucura. Segundo Palombini
(2007b), na perspectiva da Reforma Psiquiátrica, a prática dos ats é lançada em uma nova
correlação de forças, na qual o AT ganha uma nova intensidade e uma função estratégica
nos processos de desinstitucionalização.
Segundo Pelliccioli e Guareschi (2004), o AT tornou-se um dispositivo complementar
à Reforma Psiquiátrica e contribuiu ativamente para a efetivação e consolidação desta,
ampliando o território de atuação das práticas de cuidado aos portadores de sofrimento
psíquico. Segundo os autores, o AT tornou-se um projeto político de transformação da
realidade no momento em que passou a operar na luta pela cidadania do louco e afirmar,
com seus percursos, o seu direito de acesso aos locais públicos que a cidade oferece.
Como a nova rede de serviços tinha como premissa funcionar numa lógica territorial,
os ats passaram a ter uma importância fundamental para a construção de práticas territoriais,
radicalizando o seu sentido e levando ao limite suas possibilidades. Os ats passaram a atuar
pela desinstitucionalização dos usuários tornados crônicos pelos anos de violência
manicomial e se tornaram peça chave no cuidado dos usuários que não se beneficiam de
nenhuma outra forma de atenção. É comum a equipe de um CAPS chamar um at para
compor a linha de cuidado quando diversas outras intervenções já falharam.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, o trabalho do AT teve e continua tendo uma
importância enorme no trabalho de desinstitucionalização dos antigos moradores do Hospital
Psiquiátrico São Pedro e no processo de passagem dos moradores ao Serviço Residencial
Terapêutico (SRT) Morada São Pedro. Nesse complexo trabalho de acompanhar os usuários
no processo de apropriação de sua nova condição de vida, sua casa, seu bairro e sua renda,
os trabalhadores demonstraram o potencial do AT na ampliação dos territórios de vida dos
usuários e, como afirma Palombini (2004, 2006), na construção de redes que tornam possível
a superação do manicômio.
A crítica ao manicômio e a concomitante teorização sobre a territorialidade das
práticas de cuidado dos ats surge principalmente com o tema da cidade. A cidade com
suas casas, ruas, praças, bares, linhas de ônibus, lojas e cinemas passa a ter valor de
setting: “A cidade, e não mais o asilo, é o espaço em que a experiência da loucura requer ser
acompanhada”. Desse modo, os ats passam a operar “entre lugares, entre o serviço e a rua,
entre o quarto e a sala, fora de lugar, a céu aberto” (PALOMBINI, 2006, p. 117). Assim
relatam os autores responsáveis por um projeto de inserção de ats na rede de Saúde Mental:
34
De início, a cidade foi concebida em nosso projeto como palco da clínica, ou
como seu elemento acessório, que vinha dar concretude e permanência a
conteúdos psíquicos de frágil consistência. Na medida, porém, em que o
trabalho avançava, de forma que o AT ia desbravando ruas, cantos, quartos,
foi-se revelando a potência contida na interação com cada um dos gestos e
objetos que compõem o cotidiano urbano. A cidade, os seus espaços e
tempos, em sua rica variabilidade, passou a ser concebida como matéria
constitutiva e primeira dessa clínica. (PALOMBINI; CABRAL; BELOC, 2005,
p. 8).
Segundo Palombini (2006, 2007), o AT tornou-se um dispositivo clínico-político da
Reforma Psiquiátrica. Para a autora, esse dispositivo é composto por cinco elementos
chaves para o seu funcionamento. Primeiro uma disponibilidade para o encontro com o outro,
uma abertura para a alteridade, para o desconhecido e para o imprevisto, assumindo tanto a
dimensão de risco que isso comporta quanto o potencial de invenção. O segundo elemento é
que, para se aventurar no desconhecido, os ats necessitam de um espaço de continência
que possa potencializar o pensamento e as práticas, diferente do espaço institucional no qual
estão inseridos, no sentido de preservar a dimensão do fora, que é tão cara ao AT. O terceiro
elemento é a inserção nas políticas ligadas ao processo de Reforma Psiquiátrica. O quarto
elemento é o uso de uma teoria da clínica
38
como caixa de ferramentas para o trabalho, na
qual a autora considera importante a presença dos seguintes princípios: a ideia de que a
subjetividade se produz na relação com uma alteridade, a ideia de que a subjetividade não se
deixa apreender completamente por um saber, que uma dimensão de resistência
(inconsciente) que não se deixa capturar pelos poderes do Estado e da ciência. Por último,
considerar que o AT se desenrola numa cidade que é processual, produtora de relações,
negociações e conflitos, não uma cidade da homogeneização, da ordem e do silenciamento
da diferença.
No contexto deste estudo, sobre a itinerância como modus operandi, queremos reter
três pontos importantes. Primeiro que, em sua caminhada constitutiva, o AT ajudou a
desconstruir dois pilares do modo como tradicionalmente se pensa a prática clínica: o ideal
de terapeuticidade do isolamento e o ideal da neutralidade científica. Segundo que a prática
do AT produz desestabilização em vários níveis. Terceiro que o AT se situa num campo de
tensão em que pode, a todo momento, ser convocado a engendrar práticas eficazes de
controle, assim como pode produzir mudanças e desestabilizações significativas na vida do
usuário e no plano das práticas.
O ideal do isolamento se refere a crença de que um lugar protegido, afastado do
convívio social e regido por uma harmônica razão, teria o poder de restituir a razão eclipsada
38
A autora afirma que no Brasil, pela biografia disponível, o AT encontra sua sustentação teórica principalmente
no pensamento de Lacan, Winnicott ou Deleuze e Guattari.
35
pela loucura. Como lembra Palombini (2006), é no asilo que a psiquiatria
39
surge e a partir
dela as diversas “disciplinas psi”. Cada disciplina tem suas próprias formas de pensar a
clínica e suas próprias dificuldades em se libertar do ideal do isolamento. A neutralidade
científica é, para a autora, uma estratégia de mistificação que tem a função de recobrir o
mandato social do técnico que é indissociável de um tipo específico de exercício de poder.
Esse mandato social que o mito da neutralidade encobre se articula perfeitamente ao
ideal de isolamento. Pois, segundo Araújo (2005, p. 9), separar o louco do corpo social faz
parte do projeto de uma sociedade que pretende se manter “sóbria, constante, regida por
princípios morais incontestáveis [...] pelos princípios de uma razão eficaz, prática e positiva”.
O autor lembra que a clínica herdou o ideal de neutralidade do pressuposto epistemológico
contido no pensamento ocidental de que só a separação entre o observador e seu objeto de
estudo poderiam produzir um conhecimento fidedigno da realidade. E o autor afirma que, no
cotidiano das práticas dos ats, qualquer ideal de neutralidade é posto de lado. Uma das
primeiras denominações dessa prática foi a de “amigo qualificado”, o que segundo o autor
denuncia que, desde o início, essa prática se insinuava para fora dos marcos da
neutralidade
40
.
É possível dizer que passou a fazer parte do ethos dos ats o reverso do ideal do
isolamento e da neutralidade cientifica, pois, ao invés do isolamento, os ats construíram uma
lógica territorial de cuidado, usando o potencial terapêutico da rua e da cidade em suas
intervenções e, no lugar da neutralidade científica, os ats construíram uma postura política
ativa. Muitos ats se engajam numa verdadeira militância em defesa da vida e dos direitos de
cidadania do louco, seu direito de circular e pertencer ao território urbano.
Essas duas ideias, a de que o AT ajudou a desconstruir dois pilares da tradição
clínica e a de que sua prática produz desestabilizações, ambas se referem ao poder de
desinstitucionalização que a tecnologia do AT carrega consigo. Quanto à desestabilização
que a prática do AT produz, Palombini (2006) relata, a partir de sua experiência como
supervisora de ats, o quanto essa prática marca a formação e a trajetória profissional dos
estudantes que com ela se aventuram. Isso quer dizer que, de algum modo, as itinerações
dos ats produzem diferença na sua formação e no seu pensamento, de algum modo seus
praticantes são coagidos, pela complexidade das práticas, a abandonar certezas, modelos
prontos e estereótipos e se lançar no plano da invenção. Da mesma forma, o AT produz
39
Segundo Alves (2001), foi usando a mesma máxima que Pasteur aplicou às bactérias no século XVIII, no auge
do positivismo de que é preciso isolar para conhecer e conhecer para intervir –, que Jean Tenon fundou o
hospício. E a partir do hospício surge o saber psiquiátrico.
40
Araújo (2005) problematiza a mudança da denominação de “amigo qualificado” para acompanhantes
terapêuticos. Situa o incômodo com relação ao termo amigo, ao entendimento da amizade restrita ao modelo
familiar: amizade entendida como sinônimo de fraternidade. Segundo o autor, a amizade tomada como uma
função política, que a cada encontro engendra uma diferença, é uma amizade que se qualifica pela diferença, é
uma amizade qualificante. Essa política da amizade, que engendra novos modos de se relacionar, é uma zona
de indiscernibilidade entre clínica e política.
36
desestabilização nas instituições, pois, ao acompanhar o usuário a céu aberto, é com uma
visão diferente dele que o at retorna à instituição, marcando uma dissonância em relação ao
olhar da equipe. A relação que se estabelece com o usuário nas ruas não é a mesma que a
construída dentro de uma instituição. O at traz, dessa forma, uma diferença do fora que
produz um tensionamento e faz com que a equipe problematize suas práticas e possa
quebrar cristalizações, tanto da imagem que faz do usuário como do seu repertório de
intervenções
41
.
Por esses motivos, é possível afirmar que se os ats ingressam nas políticas públicas
como operadores a serviço dos processos de desinstitucionalização dos usuários, acabam
produzindo o efeito de desinstitucionalizar as práticas. Como afirmam Palombini, Cabral e
Belloc (2005), “o exercício mesmo do acompanhamento veio a moldar de forma particular o
plano da clínica, possibilitando aberturas, deslocamentos, desconstruções”.
Essa potência inerente ao AT, de desinstitucionalizar práticas, aparece na própria
história de sua constituição como um modo singular de operar a clínica. Silva A. (2005) e
Silva e Silva (2006), ao problematizar esse percurso, afirmam que o AT, num primeiro
momento, funcionava a partir do que chamam de “uma prática integrativa
42
de adaptação
unidirecional do louco, ou desviante ao meio social, que era considerado uma entidade
natural e imutável. Os acompanhantes terapêuticos funcionavam então como soldados da
psiquiatria que escoltavam os loucos na rua, levando consigo as mesmas instituições
psiquiátricas: uma hierarquia rígida e objetalizante, a preocupação central com o objeto
“doença psiquiátrica” ao invés da “existência-sofrimento”. Essa lógica adaptativa tinha o
efeito de deslocar o programa de controle para além dos muros do manicômio.
Mas, segundo os mesmos autores, pelo golpe de força do encontro com o “dispositivo
rua”, a partir das práticas integrativas, surgiu um modo próprio de operar a clínica. O
dispositivo rua é entendido como encontro de forças que produz vida, diferença, linhas de
fuga, o novo. A rua como dispositivo produz esse efeito de transformar um programa
adaptativo em uma estratégia
43
clínica que não toma a rua como um pano de fundo ou palco
estático para as suas atividades, mas como uma rede de forças que produz subjetividade e
que pode adquirir função terapêutica, fazendo uso do tecido urbano como espaço para novas
41
Isso só pode ocorrer, é claro, quando há algum nível de permeabilidade na equipe.
42
Mauer e Resnizky (1987) atribuem como função do AT, entre outras, servir como “modelo de identificação”, ser
“ego auxiliar”, representar o terapeuta fora do setting ajudando o paciente a metabolizar interpretações e adquirir
mecanismos de defensivos mais adaptativos.
43
Silva e Silva (2005) diferenciam “programa” de “estratégia” baseados em Edgar Morin. “Programa” supõe uma
sequência fixa de atos definidos a priori. “Estratégia” é um cenário de ação que se modifica em função dos
acontecimentos e imprevistos que surgem no curso da ação. Quando o AT funciona como uma estratégia, ele
consegue fugir de funcionar na lógica de um programa adaptativo.
37
produções de sentido
44
. Por isso, a recomendação ética dos autores para que os ats não se
deixem capturar pela lógica adaptativa de controle é estar permeável às forças da rua.
O último ponto que gostaríamos de destacar é que a prática do AT se situa num
campo de tensões, em que pode ser convocado a atuar tanto no controle quanto na
produção de saúde
45
. Nesse sentido, Silva e Silva (2006) situam a emergência da figura do at
justamente no contexto de passagem da “terapêutica disciplinar para a terapêutica de
controle”, na qual o advento dos psicofármacos teve grande importância. Os autores
lembram que uma das primeiras tarefas delegadas ao at pelo psiquiatra era supervisionar a
administração das medicações e vigiar o comportamento do louco fora da instituição.
Palombini (2007) indaga se a simples passagem do espaço hospitalar para o território
da cidade pode subverter as relações de poder que remontam suas origens ao manicômio.
Para a autora, o AT habita esse campo de forças em que pode deslocar o controle para o
território urbano ou, por outro lado, passar a operar no registro de uma máquina de guerra
46
.
Segundo Palombini (2006), para caminhar na direção de uma máquina de guerra e dos
caminhos desviantes da invenção, alguns elementos são importantes. Primeiro abandonar o
mito da neutralidade científica, assumindo o caráter político das intervenções clínicas,
colocando em evidência as relações de poder implicadas. Também o uso de uma
concepção de subjetividade que prescinda do ideal iluminista de transparência e aceite o
caráter conflitual da subjetividade, com sua dimensão inconsciente que se manifesta como
resistência, é um modo de criar distância de uma perspectiva de governo das almas e de
disciplinarização dos corpos.
Do mesmo modo, é necessário tomar a cidade em sua dimensão processual, como
território conflitivo e polissêmico que não se deixa capturar completamente por um uso
funcional, e fazer uso do traçado desviante das ruas, lugar de onde pode advir o imprevisto e
a produção de deslocamentos, estando permeável ao jogo de forças da cidade. Desse modo,
o AT pode funcionar num registro de guerra, furando cercos, desestabilizando códigos
instituídos, inventando novos modos de relação e novas formas de habitar a cidade
(PALOMBINI, 2006).
Por fim, gostaríamos de apenas citar uma noção que, mesmo de modo vago, está
presente no AT, mas que vai ter uma importância fundamental na experiência dos ACS. A
noção que os ats funcionam como um produtor de laço, uma espécie de “elo de ligação”, na
expressão de Ibrahim (1992, p. 47). Essa função de “elo de ligação”, dependendo do
44
Segundo Araújo (2005, p. 10), o AT deve ter como função devolver o louco ao convívio social, desde que
“sempre visando um regime de variação constante em seu estatuto social, assim como da forma que a
sociedade entende e lida com a loucura”.
45
Silva A. (2005) afirma que, dependendo da correlação de forças, o AT pode ser: uma prática de integração,
uma prática de inclusão ou uma atividade revolucionária que canalize a radicalidade da Reforma Psiquiátrica.
46
Veremos o tema da máquina de guerra no capitulo 3.
38
contexto teórico ou político, pode ser entre terapeuta/equipe/instituição e o paciente, ou entre
o paciente e a realidade, ou ainda entre o paciente e o corpo social.
1.3.2 Os agentes comunitários de saúde
A experiência dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS) é outra tecnologia de
cuidado que opera produzindo itinerários no território de vida dos usuários. Suas ações,
vinculadas às políticas de Atenção Básica, têm como objetivo produzir um cuidado
contextualizado ao modo de vida das comunidades. A figura dos ACS se institucionaliza no
SUS, assim como o PSF, no contexto teórico de crítica ao modelo tradicional de atenção à
saúde, em relação ao seu viés fragmentário e reducionista por ter a doença como objeto
exclusivo de intervenção e estabelecer uma relação objetalizadora com os usuários (SILVA
et al, 2005).
No epicentro da luta pela universalidade do acesso e pela integralidade da atenção
está esse trabalhador andarilho com seus percursos pela comunidade. Essa experiência
surge como uma estratégia de extensão de cobertura das ações de Atenção Básica para
possibilitar o acesso de populações que vivem em contexto distante dos serviços de saúde.
Mas, além da extensão do acesso, passou a se depositar nas práticas dos ACS a esperança
de construir um cuidado mais integral, na medida em que o agente pode funcionar como um
elo entre as equipes de saúde e os modos de vida das comunidades.
Por isso, para ser ACS é necessário viver no território da comunidade onde vai atuar,
além de ter ensino secundário completo e participar de um curso introdutório. A Política
Nacional de Atenção Básica define como atribuições do ACS realizar busca ativa,
desenvolver ações de integração entre a equipe de saúde e uma população adscrita com
base geográfica definida – a micro-área – e cadastrar todas as famílias dessa área. Estar em
estreito contato com as famílias, desenvolvendo ações educativas e de vigilância sanitária,
visando à promoção de saúde e à prevenção de doenças. Acompanhar, por meio de visitas
domiciliares, os indivíduos, a família e os grupos sob sua responsabilidade. Todas essas
funções se dão sob a supervisão de um enfermeiro, sendo que os ACS podem ou não estar
vinculados a uma Equipe de Saúde da Família
47
(BRASIL, 2007).
47
Anteriormente, a portaria 1.886/GM de 1997 havia estabelecido as seguintes atribuições: identificação dos
portadores de deficiência psicofísica com orientação aos familiares para o apoio necessário no próprio domicílio;
incentivo à comunidade na aceitação e inserção social dos portadores de deficiência psicofísica; realização de
ações para a sensibilização das famílias e da comunidade para a abordagem dos direitos humanos.
Curiosamente, a portaria proibia aos ACS realizar atividades no interior da unidade de saúde.
39
Os princípios do que viria a se institucionalizar como o Programa de Agentes
Comunitários de Saúde (PACS) estão lançados desde 1978 pela Declaração de Alma-Ata: “[
] agentes comunitários [ ] convenientemente treinados para trabalhar, social e tecnicamente,
ao lado da equipe de saúde e responder às necessidades expressas de saúde da
comunidade” (OPAS, 2009). Mas é difícil compor uma história para essa figura. Em sua
caminhada constitutiva, os ACS já se denominaram “visitadores sanitários”, “guardas da
malária”, “auxiliares de saneamento” e “auxiliares de saúde”. Segundo Rocha apud Nogueira
et al (2000, p. 11):
A idéia de criar a função de agente comunitário de saúde vem de muito
longe. O primeiro registro sobre este tipo de trabalho, ou similar aos ACSs,
foi na Mongólia, China, cerca de 50 anos. Camponeses eram recrutados
pelas organizações locais do Estado, começando pelo interior, e eram
treinados para dar os primeiros socorros. Como nômades, eles andavam em
grupo de quatro a cinco e acampavam em vilarejos e pequenos
agrupamentos onde atuavam como enfermeiros, conhecidos como
ajudantes de saúde.
Silva e Dalmaso (2002) relatam que a ideia de agentes comunitários, que teriam um
papel de elo
48
entre serviços de saúde e comunidades, é um conceito que, das mais diversas
formas, nomenclaturas e racionalidades, apareceu em diversas partes do mundo. Na
América Latina, segundo Ferraz e Aerts (2005), a inserção dos agentes comunitários nas
políticas de saúde ganhou um impulso nos últimos anos, quando os ministérios da saúde da
América do Sul passaram a receber apoio financeiro de agências internacionais para utilizar
esses trabalhadores. Um fator importante na implantação dos agentes comunitários é o fato
de que os profissionais técnicos não costumam se dispor a trabalhar nas periferias urbanas e
nas zonas rurais. Um agente treinado poderia desenvolver cuidados básicos de saúde
nesses amplos espaços descobertos.
O Programa Nacional de Agentes Comunitários de Saúde
49
(PNACS), criado pelo
Ministério da Saúde em 1991 e que, em 1992, passou a se chamar Programa Agentes
Comunitários de Saúde (PACS), foi a recuperação de diversas experiências no país, como o
Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), o Programa
Nacional de Serviços Básicos de Saúde e o Programa de Preparação Estratégica do Pessoal
48
Parece que a ideia de um “elo de ligação” é bastante antiga, como demonstra a fala de Ethel Parsons, uma
professora do curso para enfermeiras visitadoras, no Congresso dos Práticos em 1922: “E assim nos tornamos
as únicas intérpretes colocadas entre os homens de ciência e os milhões de necessitados de saúde que aqueles
pretendem servir” (NETO, 1997, p.3).
49
A profissão ACS foi criada pela Lei 11.507 de 10 de julho de 2002, que vincula o exercício ao âmbito do SUS.
Essa lei foi revogada pela Lei 11.350 de 5 de outubro de 2006, que regulamenta o regime de contratação do
ACS e do Agente de Combate às Endemias.
40
de Saúde (PREPS)
50
, todos com objetivo de extensão de cobertura e ampliação de acesso a
grupos marginalizados
51
. Em 1994, o Ministério da Saúde cria o Programa de Saúde da
Família (PSF) com o qual o PACS passa a ter estreitas relações
52
(SILVA; DALMASO, 2002;
MARQUES; PADILHA, 2004).
Na literatura disponível, gostaríamos de ressaltar alguns pontos. Primeiro que o
trabalho do ACS comporta duas dimensões – uma técnica e uma política. A dimensão
técnica se refere às suas atribuições como trabalhador de saúde vinculado ao sistema. A
dimensão política se refere à sua função de ser um agente transformador das práticas
promovendo a reorientação do modelo de atenção em direção ao cuidado integral das
famílias no seu território, assim como promover a organização da comunidade para a
transformação social e para a melhoria das suas condições de existência (SILVA;
DALMASO, 2002). Mobilizando e inserindo-se nas redes de relações e lideranças, ampliando
o leque de alianças em defesa da vida (BUCHABQUI et al, 2006).
Podemos compreender como uma função do ACS, que se situa num campo de
indiscernibilidade entre a política e a técnica, a sua contribuição na construção de um modelo
de cuidado territorial. Nunes et al (2002, p. 1644) consideram que o trabalho dos ACS tem o
efeito de diluir as fronteiras estabelecidas pelas paredes do posto de saúde: “as fronteiras se
alargam, a lógica das interações se transforma” e afirma que o contato intenso com o
cotidiano de vida das famílias pode construir uma rede de relações produtora de novos
significados. O contato próximo com a comunidade põe em evidência que as necessidades
de saúde não se restringem às de ordem biológica, mas incluem as existenciais e afetivas.
Mendonça (2004, p. 362) também considera as “atividades extramuros”, realizada pelos
ACS, o componente de um novo perfil de atenção. Apropriando-se da dimensão política de
sua prática, o ACS pode se tornar “... uma linha de vanguarda para abertura de caminhos
que possibilitem melhorar a saúde dos brasileiros” (MENEGOLLA et al, 2003, p. 84). Desse
modo, o trabalho dos ACS tem o potencial de se tornar “... uma construção que se aventura
por novos caminhos” (BACHILLI et al, 2008, p. 59).
Um segundo ponto que gostaríamos de destacar é que o ACS emerge na situação
paradoxal em que, ao mesmo tempo em que vai ao encontro dos ideais da Reforma Sanitária
de universalidade e equidade no acesso e integralidade do cuidado, sintoniza-se com as
50
O PIASS funcionou entre 1975 e 1976. O PREPES funcionou entre 1976 e 1979.
51
Duas experiências importantes nas vésperas da institucionalização do SUS foi a do Ceará, em 1987, quando a
introdução do ACS apresentou impacto significativo no perfil de mortalidade infantil, e a de Manguinhos, no Rio
de Janeiro, em 1986, uma das primeiras experiências urbanas (GIFFIN; SHIRAIWA, 1989). Curiosamente, as
duas experiências foram protagonizadas por mulheres por sua importância no cuidado da família e da
comunidade. A criação do PNACS foi com a intenção de replicar no restante do país a experiência bem-sucedida
do Ceará (NOGUEIRA et al, 2000; KLUTHCOVSKY; TAKAYANAGUI, 2006).
52
O PACS é considerado uma estratégia de transição para implantação do PSF.
41
políticas econômicas de ajuste neoliberal de racionalização de custos
53
. A consolidação
institucional do SUS com seu ideário de saúde como um direito social se justamente
nesse período histórico. Desse modo, o trabalho dos ACS tem esta dupla direção: a de ser
um modo de racionalizar custos e a de ser um modo de ampliar o acesso e de focalizar a
atenção em grupos vulneráveis, atendendo a um princípio equitativo de justiça social. Por
esse motivo, a prática dos ACS comporta o risco de ser uma cesta básica simplificada para
os pobres, que por meio das práticas de educação em saúde e das visitas domiciliares tenha
como efeito a medicalização, a normalização e o controle da vida no território comunitário.
Produzindo desse modo uma divisão social as conquistas tecnológicas da clínica ficam
reservadas às classes favorecidas e aos grupos populacionais vulneráveis, a vigilância
sanitária e a epidemiologia (FERNANDES, 1992; NUNES et al, 2002; MENDONÇA, 2004,
BORSTEIN; STOTZ, 2008).
Mas autores como Lima e Moura (2005) afirmam que o PACS pode ser considerado
uma forma de discriminação positiva, um modo de focar a atenção nos grupos mais
excluídos para atingir melhores patamares de equidade. Mesmo com tantas contradições, a
comunidade passa a receber serviços dos quais sempre fora excluída e passa a ter alguma
possibilidade de participar do controle desses serviços, por meio dos ACS
54
, que também são
moradores do território.
O conflito produzido por esse paradoxo é lançado na dinâmica da prática cotidiana.
Somado a esse conflito e por ser a linha de frente do sistema de saúde no território
comunitário, incide sobre as práticas dos agentes toda a tensão gerada pelo descompasso
que ainda existe entre o ideal de universalidade, equidade e integralidade e as possibilidades
reais do sistema em atender a esses direitos sociais. Recaem muitas expectativas sobre os
ombros dos ACS: de serem um agente de mudanças quando o contexto é de realidades
instituídas (MENENGOLLA et al, 2003); de serem promotores da integralidade quando o
sistema local não lhes fornece a retaguarda necessária (MARTINEZ; CHAVES, 2007); além
de sofrerem um excesso de idealização, que Tomaz (2002) chamou de “super-heroização” e
“romantização” de seu papel. Isto ocorre quando lhe atribuem a função de solitariamente ser
a mola propulsora da consolidação do SUS.
A ideia de que um contingente de trabalhadores profundamente inseridos em suas
comunidades, com o treinamento e a supervisão adequados, pode estender a cobertura de
diversas ações preventivas, realizando busca ativa e detecção precoce de problemas, está
53
Assim como PSF, os ACS surgem no contexto político-econômico de ajuste neoliberal na América Latina, no
qual uma série de orientações das cartilhas dos organismos financeiros internacionais, como o Banco Mundial,
recomendavam redução do papel do estado, mais racionalidade nos investimentos e corte nos gastos com
políticas sociais. Curiosamente, uma orientação neoliberal era sintônica com os ideais democráticos do SUS: a
participação da sociedade civil no controle da execução das políticas do Estado (MENDOÇA, 2004; LIMA;
MOURA, 2005).
54
Além dos ACS, esse controle se exerce por meio dos Conselhos Locais de Saúde.
42
presente em muitos textos escritos por profissionais das mais diversas especialidades.
Parece que cabe ao ACS, em suas caminhadas pela comunidade e no contato com as
populações, integrar diversas políticas fragmentadas na produção do cuidado. Sobre o corpo
desse trabalhador pesa todo esse campo de tensões.
O terceiro ponto é que a característica que aparece com mais insistência nos textos é
a função de “elo de ligação” do ACS. Nogueira et al (2000, p. 10) afirmam que o ACS no
território,
É um elo entre os objetivos das políticas sociais do Estado e os objetivos
próprios ao modo de vida da comunidade; entre as necessidades de saúde
e outros tipos de necessidades das pessoas; entre o conhecimento
popular e o conhecimento científico sobre saúde; entre a capacidade de
auto-ajuda própria da comunidade e os direitos sociais garantidos pelo
Estado.
Silva et al (2005) afirmam que o ACS tem a função de integrar partes que no modelo
tradicional se encontram fragmentadas, assim como traduzir para a equipe o cotidiano da
comunidade em seu “modo de andar na vida”. Todavia, preferem a expressão laço
55
no lugar
de elo. Elo remete a uma estrutura fria, mecânica e fechada em si mesma. Laço traz a ideia
de movimento, de um trabalho artesanal. Faria parte desse trabalho artesanal construir um
território comum, em que possa haver diálogo, encontro e interação fora de códigos
hierarquizantes de saberes e papéis institucionais.
Ainda quanto ao tema do elo, o ACS ao se apropriar da dimensão política de sua
prática, pode fazer uso dessa posição singular que ocupa de habitar na interface entre um
aparelho de Estado e um território comunitário e, usando sua “credencial da saúde”, ajudar a
construir entre os dois passagens, caminhos solidários que facilitem o acesso de usuários em
vulnerabilidade aos seus direitos sociais.
O quarto ponto é que, de todas as experiências de trabalho itinerante, o ACS é o que
tem sua prática mais codificada seja pelos protocolos dos programas de planejamento
vertical das ações programáticas, seja pela exigência de metas de produtividade. Ou ainda
pelo tipo de relação que os enfermeiros supervisores ou as equipes de saúde podem
estabelecer com esse profissional. Nesse sentido, quanto mais autoritária for e quanto mais
restrito for o entendimento de saúde por parte dos gestores municipais, mais duras se tornam
essas linhas que regulam as práticas. A tendência nesses casos é um uso utilitarista dos
55
A expressão “laço” é encontrada nos textos dos ats. Assim, por exemplo, Almeida (2006) considera o AT uma
estratégia clínica que atua no campo social, apoiando o usuário onde este se encontra inserido, sendo um
instrumento importante para a sustentação de um “laço social possível”.
43
ACS, que se tornam simples agentes burocráticos, um recurso humano simplificado. Mas
mesmo nas condições mais duras, quando o ACS é quase esvaziado de seu papel político,
podem ocorrer subversões. É comum ouvir relatos em que os ACS transgridem algumas
normas referentes às suas atribuições em benefício da saúde da comunidade.
Assim, por exemplo, Garrafa (2008), uma trabalhadora de Saúde Mental que realiza
um apoio matricial para Equipes de Saúde da Família, observou um processo de ampliação
do campo de ação dos ACS quando as intervenções feitas nas visitas domiciliares se
mostravam insuficientes para resolver determinadas situações em contextos de grande
vulnerabilidade social. A autora relata que, diante de impasses, os agentes produziam um
novo movimento com o convite: “vamos juntos?”. Segundo a autora,
O acompanhamento do sujeito ou da família em seu trânsito pelo território
subverte a proposta de “visita domiciliar” que sintetiza, na maioria dos
casos, a atuação dos agentes nesses programas sociais. Diante das
situações de alta complexidade encontradas nos territórios mais
vulneráveis, famílias e agentes ultrapassam as fronteiras do espaço
residencial e acrescentam novas diretrizes para as políticas de atenção a
essa população. (GARRAFA, 2008 p. 1).
Por último, gostaríamos de ressaltar a importância dos ACS na articulação das
políticas de Saúde Mental e Atenção Básica. Os ACS e os demais técnicos da Estratégia de
Saúde da Família atualmente realizam diversas ações relacionadas à Saúde Mental no
território de vida das pessoas. É evidente que a dimensão da subjetividade está sempre
posta na produção de cuidado e é um plano constitutivo da integralidade. Mas, com o fim
progressivo dos manicômios, os profissionais da Atenção Básica são convocados a
acompanhar a saúde de pessoas com grave sofrimento psíquico ou envolvimento
problemático com o uso de drogas, sendo que sua sensibilidade para essa questão é
fundamental para o estabelecimento de um cuidado territorial para essa população. Ainda
mais levando em conta que muitos territórios ainda não contam com CAPS. Rios (2007)
relata que o tema da Saúde Mental é uma preocupação importante no cotidiano das práticas
dos ACS.
Quando um ACS ingressa com intensidade no cuidado com o sofrimento psíquico, é
difícil diferenciar sua função com a de um at. Mattos S. (2002), uma ACS, relata uma ação de
alta complexidade que realizou na Atenção Básica: o acompanhamento de Leão, um louco
da comunidade. Exercendo uma função de AT, a ACS vinculou-se a um usuário que causava
medo e rechaço nas pessoas da comunidade. Começou a acompanhar o usuário em dias
alternados e aos poucos foi conhecendo os elementos que compunham seu universo
44
existencial, os seus livros e os diversos bilhetes que colava na parede para conseguir se
organizar. A partir desse vínculo terapêutico, o usuário rompeu seu isolamento e enfrentou o
medo de andar nas ruas. Começou a frequentar o posto de saúde e a participar de um grupo
de caminhadas. Depois de muita resistência por parte de seus vizinhos, essa intervenção
mudou o olhar da comunidade em relação a esse usuário singular. Com o tempo, começou a
sair sozinho de casa e começou a ter relações com algumas mulheres, algo que sempre
havia desejado.
Lancetti (2006b p. 90) relata situações em que os agentes comunitários,
estabelecendo o que denominou “laços de amizade plenamente terapêuticos”, enfrentavam
diversas situações complexas, evitando internações e cuidando de pessoas com grave
sofrimento psíquico. Para o autor, o ACS é um trabalhador fundamentalmente afetivo, que se
situa numa posição paradoxal de ser membro da comunidade e ao mesmo tempo integrante
do sistema de saúde. Podem formar uma espécie de “polícia médica revolucionária” ao se
imiscuírem no território existencial das pessoas e ao tecerem redes microssociais que
produzem efeitos terapêuticos. Segundo o autor, essa posição paradoxal do agente
comunitário e sua condição de trabalhador afetivo lhe colocam numa posição estratégica de
incidir nos processos de produção de subjetividade.
1.3.3 Os redutores de danos
Os redutores de danos são trabalhadores de saúde que operacionalizam em campo
ações no cuidado de pessoas que usam drogas, numa lógica de busca ativa, indo até o
território dos usuários. As ações dos redutores se balizam nos princípios da Redução de
Danos (RD), que é um modo de trabalhar em Saúde Coletiva que tem produzido resultados
importantes com determinados grupos populacionais que costumam ter dificuldade de
acesso aos serviços por questões relativas ao preconceito e ao estigma social que recai
sobre o usuário de drogas.
A RD surgiu como movimento social internacional em resposta à crescente crise do
HIV/AIDS na década de 80 e tem por objetivo principal minimizar os danos provocados pelo
uso de substâncias químicas
56
. No Brasil, surgiu na cidade de Santos, que foi laboratório de
56
A RD como lógica de cuidado tem como marco histórico o ano de 1926, na Inglaterra, quando o relatório do
Comitê Rolleston, produzido por um grupo de médicos, recomendava a prescrição de opiáceos e cocaína para
dependentes no manejo dos sintomas de abstinência. Entretanto, apenas na década de 1980, ações baseadas
nesses princípios foram sistematizadas em programas. Os primeiros centros de distribuição de seringas foram
criados na Holanda e na Inglaterra e resultaram da pressão do movimento de uma associação holandesa de
usuários de drogas denominada Junkiebond. Esses usuários pleitearam das autoridades sanitárias de Amster
o fornecimento de agulhas e seringas descartáveis para o uso de heroína. As autoridades negaram o
45
importantes e pioneiras experiências de políticas públicas quando a Secretaria Municipal de
Saúde, em 1989, iniciou a primeira experiência de distribuição de material para uso seguro
de drogas injetáveis. Experiência que logo foi interrompida pelo Ministério Público sob a
acusação de promover apologia ao uso de drogas. Em 1990, em um movimento clandestino,
a organização não-governamental Instituto de Estudos e Pesquisas em AIDS (IEPAS), de
Santos, foi para as ruas distribuir seringas limpas e ensinar a limpar os equipamentos de
uso
57
(POLLO-ARAUJO; MOREIRA, 2008; SOUZA, 2006; NARDI; RIGONI, 2005, 2009).
O conceito mais genérico de RD, segundo o State National Library of Medicine em
seu verbete Harm Reduction’, é “a aplicação de métodos projetados para reduzir o risco do
dano associado a certos comportamentos, sem diminuição na frequência daqueles
comportamentos” (POLLO-ARAUJO; MOREIRA, 2008. p. 11). A RD, como uma prática de
saúde pública, é entendia como uma série de procedimentos que tem como objetivo
minimizar as consequências adversas do uso ou abuso de drogas (NARDI; RIGONI, 2005;
LANCETTI, 2006b).
A RD é um modelo de atenção aos problemas relativos ao uso de drogas, alternativo
ao paradigma da abstinência. O paradigma da abstinência se assenta nos dois modelos
morais de entender o uso ou como criminalidade ou como doença psiquiátrica. A RD
reconhece a possibilidade de estabelecer a abstinência como um objetivo possível
58
, mas
não a considera uma exigência nem condição para o tratamento. Opera a partir de metas
escalonadas
59
, que podem ser a simples diminuição do uso, a substituição de uma
substância por outra menos nociva (crack por maconha), a substituição da via de
administração (cocaína injetável por inalada) ou apenas a administração da substância de
modo mais seguro (substituição de seringas usadas por novas e instruções sobre como
administrar de modo mais seguro) (MARLATT, 1999; BASTOS, 2003).
Lancetti (2006b, p. 82) considera a RD uma prática clínica porque ela tem a
potencialidade de produzir um desvio (clinamen), que consiste em criar uma experimentação
de vida, cuidado e solidariedade, justamente onde os movimentos têm um potencial de
morte. A postura ética do redutor de danos produz territórios de cuidado, tolerância e
fornecimento sob o argumento do risco do lixo séptico ficar espalhado nos parques da cidade, pondo em risco de
contaminação a população. Nisso surgiu a ideia da troca de seringas usadas por novas, que logo foi aceita e
reduziu drasticamente os índices de infecção por HIV e hepatites dos usuários de drogas, primeiro na Holanda e
depois na Inglaterra. As primeiras experiências contavam com a figura de um agente de campo (POLLO-
ARAUJO; MOREIRA, 2008).
57
No Rio Grande do Sul, a RD iniciou em 1996, no município de Porto Alegre, sendo oficializado em 1997 como
política municipal de saúde de DST/AIDS.
58
Conforme afirma Souza (2007), a RD não se opõe às estratégias que tenham a abstinência como direção, mas
à rede de instituições que fazem da abstinência a única direção possível de tratamento. Segundo o autor, a
moral articulou o campo da saúde ao campo da justiça, fazendo da abstinência ao mesmo tempo uma norma
psiquiátrica e uma forma jurídica de regulação de condutas desviantes.
59
Segundo Reale (2005), o trabalho com metas escalonadas na RD introduz nos planos terapêuticos a ideia de
progressão, de movimento. Desse modo, o usuário pode transitar por diferentes matizes transicionais,
expandindo suas experiências de produção de saúde livre do jogo dualista do tudo ou nada, da abstinência total
ou do consumo suicida.
46
solidariedade que são verdadeiros antídotos ao narcisismo mortal do uso suicida de drogas.
Um redutor descreve deste modo a emergência da clínica da RD a partir das ações de troca
de seringas:
A gente cuidava do corpo, do sangue, e de repente se dava conta que tava
cuidando da pessoa. Da gente mesmo... E assim, creio, inventamos um jeito
de pensar o cuidado com pessoas que usam drogas. Acreditamos nesse
jeito, que às vezes lembra muito a clínica do AT. E o entendemos de que
modo a gente poderia separar o cuidado do corpo e o cuidado da mente. Se
separássemos, a coisa simplesmente não funcionaria
60
.
Segundo Souza (2007), a RD avançou de uma concepção reduzida de prevenção de
DST/AIDS entre usuários de drogas injetáveis, numa dimensão concreta de troca de
seringas, para uma proposta ampliada de produção de saúde, tornando-se um paradigma de
cuidado na atual política nacional de álcool e outras drogas
61
.
Mas, além de comportar uma dimensão clínica de integralidade e de ética de cuidado,
a RD tem uma importante função política na construção da universalidade do acesso aos
serviços de saúde. Essa função começa pelo seu potencial de embaralhar certos códigos ao
prescindir do imperativo da abstinência, que historicamente tem marginalizado um
contingente importante de populações vulneráveis.
Segundo Nardi e Rigone (2005), estabelecer a abstinência como condição sine qua
non para qualquer abordagem de cuidado produz a segregação dos usuários e impossibilita
o acolhimento destes nas políticas de saúde. Além do mais, prescindir do imperativo da
abstinência é uma forma de resistência às políticas do aparelho de Estado que são
atravessadas por uma lógica de controle das populações e homogeneização do social, que
no caso do uso de drogas se traduz na prescrição indistinta de abstinência e numa política de
segurança repressiva. Por isso, a RD é uma estratégia política de fundamental importância
para produzir acesso às políticas de saúde a um contingente enorme de grupos
marginalizados.
As políticas repressivas e proibicionistas, segundo Petuco e Medeiros (2008), têm
como consequência situar as relações do Estado com o fenômeno das drogas no registro da
violência, sendo que as intervenções mais duras costumam se concentrar nas comunidades
mais empobrecidas, criminalizando e violando seus territórios de vida. No campo das ações
de saúde, essa apologia da guerra tem como efeito impossibilitar o acolhimento das pessoas
que usam drogas, ou produzir uma resposta que se compara em violência à que o
60
Depoimento pessoal de Denis Petuco ao falar pelo coletivo de redutores sintetizando a emergência da clínica
da RD.
61
Conforme Brasil (2004c).
47
manicômio clássico reservou à loucura. Segundo os autores, a RD é uma possibilidade
concreta de trabalhar com produção de saúde nessas redes sociais marginalizadas.
Segundo Lancetti (2006b), além de divergir das políticas proibicionistas, a RD é uma
prática em defesa da vida sintônica aos princípios das reformas Sanitária e Psiquiátrica.
Alguns autores, como Conte et al (2004), Nardi e Rigone (2005), consideram a Redução de
Danos uma estratégia importante de articulação das políticas de Saúde Mental e da Atenção
Básica, pelo seu potencial de construir redes, pela flexibilidade nos modos de trabalho e pelo
respeito às subjetividades e aos direitos humanos
62
. A RD tamm se constitui como um
instrumento de luta pela garantia dos direitos dos usuários de drogas (NARDI; RIGONE,
2009), de exercício de cidadania e de produção de autonomia.
Aos três caminhos que a sociedade modula como resposta ao fenômeno do uso de
drogas
63
, três percursos cristalizados, de conversão em resposta à falta moral, de abstinência
como cura pela doença psiquiátrica ou de punição pelo delito criminal, os redutores de
danos, em sua prática cotidiana, possibilitam uma quarta via: a construção de cidadania.
Construção de cidadania é entendida aqui como uma abertura de caminhos, bifurcações,
linhas de fuga, que abrem uma infinidade de problemas, novos rumos, novas alternativas, um
novo olhar e a produção de novos sentidos no cuidado de pessoas que usam drogas.
Se os ats colocaram a “clínica em movimento” (PALOMBINI et al, 2004), os redutores
de danos, segundo a expressão de Petuco e Medeiros (2008), colocaram a clínica em um
“movimento clandestino”. Porque o trabalho dos redutores de danos se constituiu
historicamente por meio de pequenas transgressões, burlas de normas e prescrições no
cotidiano das práticas, quando restrições de viés proibicionista tentam engessar o escopo de
suas ações clínicas de cuidado.
A práxis dos agentes redutores
64
é um importante exemplo de trabalho no território de
vida dos usuários. Os redutores são trabalhadores que lidam especialmente com problemas
relacionados ao uso de substâncias químicas, desenvolvendo uma série de atividades como
a troca e a distribuição de seringas e as intervenções de educação em saúde. Essas
atividades têm a característica de serem desenvolvidas “em campo”, circulando em
determinado território e mantendo um contato próximo e contínuo com a comunidade, numa
lógica de “busca ativa”. Um dos principais instrumentos de trabalho dos redutores de danos é
o princípio ético de não tecer julgamentos de valor sobre a vida das pessoas com as quais
62
Entre diversas ações possíveis, o trabalho de campo dos Agentes Comunitários de Saúde é um ponto
estratégico para desenvolver ações de redução de danos.
63
É comum ouvir hoje, pelos militantes do paradigma da abstinência, que ao usuário de crack restam três
aminhos: hospício, cadeia ou cemitério.
64
O modo mais comum de organização das ações de RD no Brasil é o Programa de Redução de Danos (PRD). O
PRD possui uma estrutura de trabalho que conta com uma coordenação, responsável pelos trâmites burocráticos,
e uma equipe de redutores de danos, responsável pela operacionalização das ações de RD em campo. Contudo,
existem locais que contam apenas com ações em RD, sem um programa estruturado. As ações podem ser
desenvolvidas por redutores de danos de modo pontual ou por Agentes Comunitários de Saúde (NARDI; RIGONE,
2009).
48
atuam, estabelecendo vínculos solidários nos quais os usuários podem encontrar condições
de decidir sobre as ações a serem desenvolvidas em relação à sua saúde, respeitando sua
vontade e seu tempo, até que possam, pouco a pouco, estabelecer formas de cuidado de
si”
65
(NARDI; RIGONI, 2005). Segundo Petuco e Medeiros (2008), os redutores de danos são
trabalhadores que:
Atuam junto de pessoas que usam drogas, nos locais onde estas vivem e
convivem, operando estratégias de promoção de saúde que têm como base
o acolhimento, a construção de vínculos e a busca de construção de
itinerários terapêuticos que privilegiem o sujeito. Uma proposta de busca
ativa, cujo desenho é diferente daquele traçado por agentes comunitários de
saúde, na medida em que os territórios da RD são concebidos pelos
usuários dos serviços, e não pelos profissionais de saúde, [...] assim como
com o AT. (PETUCO; MEDEIROS, 2008, p.6).
Conte (2004) também ressalta essa proximidade entre as práticas de cuidado dos
redutores de danos e dos ats. Afirma que o trabalho dos redutores se assemelha ao trabalho
dos ats pela mobilidade de suas ações. Assim como o at, o redutor tem um trabalho ativo, ele
vai a campo, no local onde os usuários se encontram, constrói vínculos e respeita o ritmo e a
demanda do usuário, baseando suas ações naquilo que é viável e não normas ideais de
saúde.
A redução de danos permite uma mobilidade que nos coloca em outra forma
de relação com o social, servindo-nos, muitas vezes, de referência, de
ponte, entre o sujeito e o laço social do qual está apartado. Lembra o
trabalho do acompanhante terapêutico. (CONTE, 2004 p. 28).
Outra proximidade com o trabalho dos ats é a importância que os redutores atribuem
a um espaço continente de supervisão para a potencialização de suas práticas
66
. Nardi e
Rigone (2009) relatam que uma reivindicação dos redutores é de um espaço de supervisão
para as atividades de campo, que não tenha um viés burocrático e não esteja atrelado às
questões administrativas da coordenação. Um espaço em que possam produzir reflexão e
discussão acerca das práticas com as respectivas mobilizações afetivas produzidas pelo
trabalho de campo.
65
Todas as ões são pautadas no sentido de que o cuidado de si se coloque como uma opção ético-estética e
não uma prescrição moral. Se o redutor consegue agir desse modo, compõe um movimento de resistência ao
modo de subjetivar dominante, abrindo espaço para singularizações ao prescindir o uso de técnicas de controle
que se baseiam em pressupostos morais e normas universais de saúde (NARDI; RIGONI, 2005).
66
A importância da supervisão como espaço de continência que potencializa os ats a se lançarem com mais
intensidade na aventura de suas andanças é relatada por Palombini (2004, 2006).
49
Petuco e Medeiros (2008) afirmam que há uma mobilidade instituinte na tecnologia de
cuidado dos redutores de danos assim como há na dos ats, porque ao mesmo tempo
constroem e questionam o campo da Reforma Psiquiátrica, produzindo problematizações,
criando resposta do movimento da reforma por questões colocadas pela sociedade, e
produzindo desacomodações no próprio campo da Reforma Psiquiátrica. A RD, além de se
constituir como dispositivo da reforma, traz contribuições que ampliam seus conceitos,
possibilitando a experiência ética de uma escuta radical e ampliando o escopo das ações
clínicas.
Por se distanciarem dos protocolos tradicionais, tanto os ats como os redutores
possuem uma potência transgressora em suas ações, de desestabilização do instituído e de
resistência aos modos de captura. As ações de um redutor de danos se baseiam numa
postura ética que reconhece em ato os efeitos normativos da sociedade, que está sempre
produzindo a figura do anormal, do louco e do drogado. Essa postura ética, segundo Petuco
e Medeiros (2008), permite ao redutor transitar pelos territórios da cultura de uso, dialogar
com os saberes e produzir saúde, fugindo do dualismo entre o combate ou a apologia e
desconstruindo a naturalização e banalização tanto da criminalização como da cultura de
consumo.
Segundo os autores, os redutores de danos e os ats, por atuarem em contextos mais
abertos, no qual o trabalhador se livre para inventar novas propostas, podem produzir
aberturas criativas e oferecer novas ferramentas de cuidado e uma prática pautada na
singularidade dos casos e situações ... no exercício do movimento e da improvisação
(PETUCO; MEDEIROS, 2008 p. 14).
Souza (2007) considera a prática dos redutores de danos uma das clínicas que se
produz a céu aberto e se realiza no território, e que tem o desafio de fazer do território um
espaço de produção de subjetividade. Os redutores de danos produzem territórios
existenciais ao instaurarem ilhas de solidariedade onde apenas havia criminalização e ao
atualizarem em campo os princípios das políticas públicas, conferindo direção a um projeto
clínico político no território. A ação dos redutores de danos permite que os processos de
territorialização sejam redirecionados por diferentes agenciamentos que possibilitam a
criação de espaços de autonomização e singularização subjetiva.
Segundo Souza (2007), a RD equipa o território com diferentes dispositivos que
podem oferecer saídas aos problemas políticos que marginalizam os usuários de drogas. Os
dispositivos também podem produzir agenciamentos que revertem o sentido negativo de
contágio, entendido como signo de morte, para um sentido positivo de contágio, como
produção de vida e solidariedade. Isso significa não tomar por mortífero o uso de drogas em
si, mas todo o contexto de extermínio que incide sobre os territórios de maior vulnerabilidade
50
social
67
. Para o autor, é na zona de interação entre a clínica e a política que devemos
entender como os redutores vêm consolidando um novo modo de produzir cuidado no
território, possibilitando que as minorias marginalizadas se organizem em redes de
cooperação.
...
Cada uma das três experiências apresentadas, de trabalhadores que abandonam
ambientes protegidos e partem em direção ao território de vida dos usuários, tem sua própria
história, suas singularidades, assim como surgem para dar resposta a problemas específicos,
mas guardam entre si um grau de transversalidade. Os ACS podem ingressar numa função
AT (MATTOS, S, 2002; GARRAFA, 2008), ou realizar ações de RD. Os redutores são
considerados um tipo especial de ACS (NARDI; RIGONE, 2005) e existe uma semelhança
entre a clínica dos ats e dos redutores de danos (CONTE, 2004; PETUCO; MEDEIROS,
2008).
Os textos da Política Nacional de Atenção Básica e da Política Nacional de Atenção
aos Usuários de Álcool e Outras Drogas, assim como as portarias e normativas da Política
Nacional de Saúde Mental, nos deixam algumas pistas sobre as expectativas que as políticas
públicas atuais depositam nos trabalhadores itinerantes no exercício de suas práticas:
trabalhar numa lógica territorial, manter uma relação com a população do território baseada
no vínculo, no acolhimento e na responsabilização, assim como ter uma postura de busca
ativa em relação aos problemas de saúde no território (BRASIL, 2004a, 2004b, 2004c, 2005,
2007).
Além de empregar a itinerância como modus operandi, as três experiências se
materializam nas políticas públicas a partir da consolidação do SUS, quando passam a ter
uma importância estratégica na consecução dos desafios lançados pela Reforma Psiquiátrica
e pela Reforma Sanitária, seja de desinstitucionalização da loucura, de possibilitar a
universalidade do acesso, seja de construir a integralidade do cuidado. As três experiências
se tornam importantes nas políticas de Saúde Mental ou Atenção Básica, ou no espaço de
articulação destas, no qual a construção de práticas territoriais de cuidado se torna, além de
uma necessidade pragmática, um imperativo ético.
67
De acordo com Lancetti (2006b) e Souza (2007), todo o complexo “droga”, ou seja, a complexa rede de
produção, circulação, comercialização, uso suicida, repressão, combate e toda a corrupção e violência que se dá
nesse circuito, sintoniza-se com o atual modo de produção capitalista, com seu apelo exacerbado ao consumo e
ao imediatismo.
51
A construção de um cuidado territorial se torna um imperativo ético, como veremos a
seguir, quando as práticas de saúde incorporam os princípios de desinstitucionalização e
integralidade. Esses dois princípios podem marcar a dimensão política do trabalho itinerante
no território de vida dos usuários, afastando suas práticas de um viés reducionista ou de
controle e normalização da vida, ao mesmo tempo em que abrem um plano de consistência
no qual o potencial político do movimento pode ser explorado na construção de um novo
modo de atenção.
52
2: A LÓGICA TERRITORIAL NAS PRÁTICAS DE CUIDADO
O SUS possui duas linhas de princípios, sendo que uma delas se refere aos princípios
organizativos do sistema: a regionalização e a hierarquização em níveis crescentes de
complexidade, a descentralização
68
da gestão e a participação popular
69
. A outra linha se
refere aos princípios doutrinários, que são as premissas éticas que orientam as práticas e os
serviços de saúde: a universalidade, a equidade e a integralidade. A Lei Orgânica da Saúde
(Lei 8.080 de 1990) acrescenta ainda mais um princípio que podemos considerar uma
premissa ética nas práticas de cuidado: “a preservação da autonomia dos usuários na defesa
de sua integridade física e moral” (BRASIL, 2006, p. 13). É importante lembrar que esses
princípios foram forjados num contexto de lutas e de oposição ao regime militar e carregam
uma crítica radical às práticas instituídas naquela época. Apesar de o SUS ser uma realidade
de duas décadas e de seus princípios terem se institucionalizado legalmente, ainda carregam
potencial instituinte, porque a luta para atingir o ideário proposto pela Reforma Sanitária não
se encerrou. um longo caminho pela frente, além de persistirem práticas e concepções
criticáveis de outrora.
Desse modo, podemos considerar como premissas éticas do SUS os princípios de
universalidade, equidade, integralidade e autonomia dos usuários. Também podemos incluir,
como uma contribuição advinda do campo da Reforma Psiquiátrica, a desinstitucionalização
das práticas de cuidado. Pois o princípio basilar da bioética da “não maleficência” afirma que,
em primeiro lugar, no campo da saúde não é permitido causar dano. Uma primeira atitude
ética na constituição das práticas é r em questão, desconstruir ou abandonar todo saber,
sistema explicativo, protocolo clínico e modelo de intervenção que produza efeitos
iatrogênicos.
A seguir nos deteremos em dois princípios que se articulam: a desinstitucionalização
e a integralidade. O primeiro princípio, proveniente da Reforma Psiquiátrica, demarca um
movimento necessário para a construção de uma prática ética de cuidado e, nesse sentido,
traz uma importante colaboração e pode produzir tensionamento em todo o campo da saúde
ao colocar em questão o modo como construímos o objeto de nossas intervenções, nosso
modo de olhar e seus efeitos sobre os sujeitos das intervenções. O segundo, marca singular
do SUS, sintetiza o ideário da Reforma Sanitária e o diferencia das demais práticas de viés
reducionista, que na saúde pública são correlatos às políticas neoliberais e aos interesses
68
A descentralização leva em conta a noção de territorialidade para identificar prioridades de intervenção e
assumiu no país a forma de uma progressiva municipalização da gestão das ações e serviços de saúde
(BRASIL, 2006).
69
O Brasil tem um arcabouço institucional para garantir a participação popular: os Conselhos de Saúde e as
Conferências de Saúde, que ocorrem em esfera local, municipal, estadual e nacional. Ambos são
regulamentados pela lei 8.142 de 28 de dezembro de 1990.
53
corporativos e econômicos de exploração do sofrimento e da pobreza humana.
Consideramos a desinstitucionalização e a integralidade dois operadores conceituais
70
que
remetem à dimensão ética do cuidado e demarcam a diferença que as reformas Psiquiátrica
e Sanitária pretendem produzir por meio das políticas de Saúde Mental e Atenção Básica.
2.1 Desinstitucionalização das práticas
Em nosso país, o movimento pela Reforma Psiquiátrica teve a influência direta das
experiências da psiquiatria democrática italiana
71
. Esse movimento forjou como principal
operador o conceito de desinstitucionalização. Segundo Amarante (1996), o conceito de
desinstitucionalização é uma diferença entre os movimentos pelas reformas Sanitária e
Psiquiátrica, no que se refere à profundidade da crítica produzida e do nível de exigência
qualitativa das transformações no âmbito do modelo que se quer implementar. Para o autor,
embora tenha surgido como crítica à natureza do saber médico e de seu efeito de
normalização, a Reforma Sanitária tem se afastado progressivamente da crítica,
concentrando sua atenção em mudanças predominantemente administrativas e dos
aparelhos assistenciais. Negligenciando a crítica ao modelo de atenção e as repercussões
desse modelo na produção de cuidado, acaba-se privilegiando uma abordagem
exclusivamente técnica, com a consequente medicalização do sofrimento, a divisão do
homem em órgãos e sistemas, o hiper-intervencionismo diagnóstico e a manutenção de
interesses do complexo médico-industrial. Nesse sentido, a desinstitucionalização é um
operador conceitual chave para pensar a produção de cuidado em todo o campo da saúde,
em virtude da amplitude do rompimento epistemológico que produz.
As estratégias de saúde orientadas pelo conceito de desinstitucionalização partem do
reconhecimento de que “... se a realidade é essencialmente construída, pode ser
substancialmente modificada” (AMARANTE, 1996, p. 21). Partindo da crítica ao saber
psiquiátrico, desinstitucionalizar, segundo Rotelli et al (1992), é colocar em questão a
instituição “doença mental” e todo aparato conceitual e metodológico erigido historicamente
para dar resposta a essa questão. Os autores italianos teceram uma severa crítica ao
paradigma racionalista da psiquiatria baseado no modelo problema/solução, e no
70
Operador conceitual se refere à ideia de que os conceitos não o abstrações com conteúdo independente e
autônomo do seu contexto de uso. Mas são ferramentas que operam na realidade, intervindo em problemáticas
para desestabilizar, criando novas conexões com outros conceitos e com o plano no qual intervém. A questão
não é o que o conceito significa, mas o que ele pode fazer no real social (DELEUZE; GUATTARI, 1992).
71
Além da Psiquiatria Democrática Italiana, a Reforma Psiquiátrica brasileira sofreu influência da experiência da
Psiquiatria de Setor e Psicoterapia Institucional da França, das Comunidades Terapêuticas da Inglaterra e da
Saúde Mental Comunitária (Psiquiatria Preventiva) dos EUA (AMARANTE, 1996; COSTA-ROSA, 2000).
54
procedimento linear, sequencial e fixo do diagnóstico, prognóstico, prescrição de tratamento
e cura. Para eles, o erro da psiquiatria foi ter cindido um objeto fictício, a “doença
psiquiátrica” da “... existência global, complexa e concreta do paciente e do corpo social”
(ROTELLI, 1992, p. 28). No entorno desse recorte artificial, constituíram-se aparatos
científicos, legislativos e administrativos, ou seja, um conjunto de instituições, todas referidas
à “doença psiquiátrica”. Desinstitucionalizar é desconstruir todas essas instituições para
retomar o contato com as questões existenciais do sofrimento, da existência doente. A
desinstitucionalização é uma intervenção prática que efetua o desmonte das “determinações
normativas, as definições científicas e as estruturas institucionais” (ROTELLI, 1992, p. 29)
que fizeram com que a doença mental assumisse um modo específico de expressão. Desse
modo, o objeto de atenção se descentra, deixa de ser o recorte fictício da “doença
psiquiátrica” e passa a ser “a existência sofrimento dos pacientes e a sua relação com o
corpo social” (ROTELLI, 1992, p. 30).
Desinstitucionalizar é o processo crítico e prático que busca um duplo movimento:
desconstruir as instituições que aprisionam a loucura e possibilitar a reconstrução da
complexidade do objeto de cuidado
72
, grosseiramente simplificado pelas instituições
psiquiátricas. A ão terapêutica passa a ser tamm entendida como a ação de
transformação institucional, um processo crítico voltado para a reorientação das práticas de
cuidado. O cuidado passa a ser entendido não mais como tratamento ou cura, mas como um
projeto de invenção de vida e o estabelecimento de regimes de sociabilidade nos quais haja
lugar para a loucura e a diferença. Como dizem os autores: o problema não é a cura [...],
mas a produção de vida, de sentido, de sociabilidade...” (ROTELLI et al, 1992 p. 30).
Desinstitucionalizar é, portanto, produzir práticas que possibilitem a existência dos usuários
no tecido social – em seus territórios de vida –, lidando com o sofrimento psíquico na rede de
complexidade que lhe é inerente e da qual é sistematicamente subtraído por determinadas
racionalidades estritamente técnicas. Essa rede de complexidade é “... a existência
sofrimento dos pacientes e sua relação com o corpo social” (ROTELLI, 1992, p. 90). Segundo
o autor, a desinstitucionalização requer dos trabalhadores de saúde um campo de ação
complexo que convoca a dimensão afetiva na relação terapêutica e a construção ativa de
instrumentos que possam contextualizar o setting
73
de cuidado.
72
Esse segundo movimento da desinstitucionalização é análogo ao projeto de integralidade da Reforma
Sanitária. A biomedicina tende a fazer com as doenças em geral o mesmo que a psiquiatria fez com a “doença
mental”, pois possui a mesma racionalidade cartesiana que tem como efeito nas práticas obturar o sujeito pela
objetivação de uma doença descolada desse sujeito e isolada de seu contexto (PINHEIRO et al, 2005). A marca
singular da desinstitucionalização é a ênfase na desconstrução dos sistemas explicativos e do paradigma
racionalista que tem efeitos extremamente iatrogênicos para os usuários.
73
Setting é entendido no campo da saúde, mais especificamente no âmbito das psicoterapias, como o conjunto
de constantes, incluindo o enquadre espaço-temporal em que se desenrolam as ões clínicas. A prática do
Acompanhamento Terapêutico suscitou um debate em torno da conceituação do setting, sua abrangência e sua
ampliação.
55
Um elemento de suma importância na produção do cuidado na experiência italiana é
que a “... desinstitucionalização requer a relação com um território” (ROTELLI et al, 1992, p.
47). Os autores lembram que quase todos os projetos de reforma psiquiátrica ao redor do
mundo tiveram como diretriz a criação de serviços comunitários, o “deslocamento da
intervenção terapêutica para o contexto social das pessoas” (ROTELLI, 1992, p. 20).
Mas alerta Rotelli (1992) que esse projeto, sem uma concomitante
desinstitucionalização paradigmática do aparato institucional construído ao redor da doença
psiquiátrica, acaba gerando, além da construção de estabelecimentos comunitários, um
efeito indesejado: a coexistência da internação psiquiátrica com os serviços substitutivos.
Essa coexistência entre os serviços territoriais e as estruturas psiquiátricas funciona como
um circuito espiral que alimenta os problemas tornando-os crônicos, porque nesse circuito a
internação psiquiátrica funciona sempre como ponto de descarga, necessário e recorrente. A
anterior “estática da segregação” em uma instituição separada e total passa a ser substituída
pela “dinâmica da circulação entre serviços especializados e prestações pontuais e
fragmentadas...” (ROTELLI, 1992, p. 23)
74
.
Quando Basaglia (2005a) visitou os serviços comunitários do programa Kennedy nos
EUA, que se inspiravam nas concepções da Psiquiatria Preventiva
75
, logo percebeu que um
processo de desospitalização e o deslocamento do cuidado para o território da comunidade
sem a ruptura com o paradigma da psiquiatria tinham como efeito, antes de cuidar das
pessoas, ampliar o território de atuação da psiquiatria e o processo de medicalização da vida
social. Sem a ruptura paradigmática, esse deslocamento acaba criando o que o autor
chamou de instituições de tolerância, que se destinam a resolver tecnicamente os conflitos
sociais, como um complemento necessário às instituições de violência explícita que são os
manicômios. Enquanto as instituições de violência apartam da sociedade os elementos de
distúrbio, as instituições de tolerância se ocupam em readaptar o leque cada ver mais amplo
de marginalizações que o sistema socioeconômico continua a produzir.
Segundo Basaglia (2005a, p. 156), o deslocamento das práticas para o território, sem
levar em conta o significado político das ações técnicas, faz com que a prevenção
76
sirva
para “dilatar o campo da doença, mais que para reduzi-lo”. Pois a desinstitucionalização,
sendo uma crítica ao paradigma e função social da psiquiatria, trata-se de um processo
político que
74
Essa passagem se aplica bem a muitos municípios brasileiros que ainda mantêm seus hospitais psiquiátricos,
formando o que Giovana Del Giucci (A REFORMA PSIQUIÁTRICA ITALIANA, 2007) denomina sistema duplo, no
qual uma rede territorial coexiste com o hospital psiquiátrico e as duas faces do sistema competem em termos de
referência simbólica e recursos financeiros. A existência de um sistema duplo é solo propício para espalhar pelo
território da comunidade a lógica do manicômio.
75
Psiquiatria Preventiva também é conhecida por Saúde Mental Comunitária.
76
Segundo Costa (1981), a prevenção em psiquiatria opera com dois pressupostos problemáticos: a noção de
sujeito universal, e a crença na possibilidade da predição calculada das condutas, sentimentos e desejos. Essas
noções, segundo o autor, se mantêm vivas e parasitam muitas ideias reformistas.
56
... se insere em um contexto mais amplo de problematizar, na busca de
desconstruir, um mandato social dado à psiquiatria, de normatização da
sociedade, que em sua vertente mais perceptível endereça ao hospital
psiquiátrico e seus instrumentos (teóricos e práticos, internos e externos da
instituição) o papel de ‘dar conta’ da desigualdade e da exclusão produzidas
pelo modo de produção do Estado. (AMARANTE, 2005 p. 73).
Segundo Amarante (1996, 2005), algumas noções foram fundamentais para Basaglia
adotar a concepção de desinstitucionalização como algo radicalmente diferente de uma mera
desospitalização da assistência. Esse operador conceitual foi construído sobre o horizonte
dos conceitos de neurose institucional de Burton e de instituição total de Goffman. Esses
conceitos colocaram em evidência a amplitude iatrogênica do processo de institucionalização
e mostraram o estrago subjetivo que as instituições produzem para além dos muros da
internação. A concepção que complementou a maquinaria do conceito foi o procedimento de
suspensão analógica de Husserl, que Basaglia adotou para colocar a “doença mental” entre
parênteses. Essa operação não teve a intenção de negar a materialidade do sofrimento
psíquico, mas de colocar em questão a competência do saber psiquiátrico para explicar e
responder a esse fenômeno
77
. Esse procedimento de suspensão visava à desnaturalização
das concepções que são construídas historicamente e produzem certos efeitos, tendo por
objetivo atingir um plano que preceda qualquer forma de classificação e a partir do qual seja
possível enxergar o sujeito e seu modo de agir
78
.
A institucionalização foi entendida por Basaglia como um complexo de danos que
envolvem a mortificação e a violação da subjetividade, a destruição dos projetos de
existência dos usuários e a sua submissão a uma “carreira moral
79
”. O poder de
institucionalização é o conjunto de forças e aparelhos institucionais que tem como efeito fazer
com que, na medida em que o usuário se objetiva nas regras impostas, haja uma progressiva
redução e restrição de si (AMARANTE, 1996).
A partir dessa compreensão do poder de institucionalização para além dos muros dos
manicômios é que, segundo Amarante (1996), Basaglia distanciou-se das Comunidades
Terapêuticas e deslocou o foco de sua atenção para a desinstitucionalização do ambiente
externo, aspirando produzir mudanças na relação do corpo social com a loucura. Assim
deslocou a crítica para o mandato social de administração das populações desviantes do
conjunto de saberes e práticas psiquiátricas e os efeitos de exclusão desse mandato.
77
A crítica e a luta contra a institucionalização dos trabalhadores foi influência de Gramsci e Sartre, referente ao
papel do técnico, da ciência e das instituições (AMARANTE, 1996).
78
Nesse sentido, a desinstitucionalização é um movimento de reversão, pois a psiquiatria colocou o sujeito e seu
contexto entre parênteses para se ocupar de uma abstração, a “doença mental”.
79
Expressão cunhada por Goffman (1986) que designa o itinerário de degradação psíquica que internos
percorrem ao ingressar numa instituição total.
57
Algumas instituições, como as Comunidades Terapêuticas, conseguiram abandonar a
violência dos manicômios, mas sem problematizar seu mandato social, continuaram sob a
égide da complacência e da tolerância, a administrar as populações medicalizando os
problemas sociais
80
. Essas instituições de tolerância, apesar de terem superado a violação
de direitos humanos do manicômio, não se relacionavam com o louco como um ator político,
cidadão de direitos.
O movimento de desinstitucionalização também passou a criticar o trabalho das
equipes multiprofissionais que, sem portar a crítica ao instituído, promovem uma “...
psiquiatrização dos problemas sociais e difusão capilar dos mecanismos de controle social
na comunidade...” (ROTTELI, 1992, p. 22), que, segundo Basaglia (2005a, p. 157),
“conseguem criar um rede técnico-social muito mais penetrante e sutil, na qual a barreira
entre norma e desvio faz-se cada vez mais frágil e discriminatória”. Desse modo, as diversas
disciplinas, sem levar em conta a dimensão política e ética do cuidado, formam
... um conjunto de saberes institucionais que organiza os ‘problemas
mentais’ e sociais em múltiplos e diversos critérios médicos, sociológicos,
antropológicos, disciplinares, jurídicos e normativos. A interdisciplinaridade,
que viria compor um quadro mais completo de saberes em torno de um
objeto de conhecimento, termina por construir novos objetos que, em última
instância, servem para criar novos significados para o desvio e a atitude
desviante (AMARANTE, 1996, p. 92).
Uma repercussão direta do conceito de desinstitucionalização nas práticas de cuidado
é a recusa do isolamento do usuário como método de terapêutica. Uma prática de cuidado só
pode ser consequente se for relativa ao sujeito em seu contexto existencial. Acima de tudo, o
conceito de desinstitucionalização é uma postura ética e política diante do sofrimento
humano, mas também é um procedimento técnico, pois para se ter acesso ao mundo
subjetivo do usuário, é necessário, em primeiro lugar, tirar do caminho todas as codificações
que impedem a passagem de um processo de cuidado. Nesse sentido, segundo Amarante
(1996), a desinstitucionalização é um procedimento permanente e provisório. Provisório
porque é precondição para emergir os sujeitos do cuidado e seus afetos, obturados pela
abstração da “doença psiquiátrica”. Permanente porque é um princípio ético-técnico de
colocar persistentemente em discussão os saberes instituídos e seus efeitos práticos, assim
como não estagnar diante de uma realidade que é apresentada como natural e
inquestionável.
80
Ao colocar em questão a função social do técnico, a desinstitucionalização também comporta uma crítica à
função de mistificação do pressuposto de “neutralidade científica”.
58
2. 2 Integralidade do cuidado
Merhy (2005) considera a integralidade
81
uma categoria analítica do pensamento, que
porta uma crítica às lógicas reducionistas e contém a intenção de produzir mudanças radicais
nas ações de saúde, contextualizando-as ao modo de vida dos usuários. Segundo Mattos, R.
(2001), integralidade é um termo que carrega diversos sentidos oriundos de diferentes
contextos. Não obstante sua polissemia, o termo tem em comum a mesma função política,
que é de se constituir como uma imagem objetivo, ou seja, uma bandeira de luta que agrupa
um conjunto de enunciados portadores de valores e características que são consideradas
desejáveis por um grupo agente de mudanças, pois coerente com seus ideais. Segundo o
autor, uma imagem objetivo é algo que move, coloca as práticas e seus atores em
movimento e marca uma diferença entre o que se deseja produzir daquilo existente,
imprimindo uma direção aos rumos que se quer traçar na transformação da realidade. Não é
uma utopia, porque a imagem objetivo pressupõe um horizonte temporal definido. Sobretudo,
a imagem objetivo parte de um pensamento crítico, que provém da indignação com o que
existe e o que tem como efeito o desejo de sua transformação. Outra característica
importante é que uma imagem objetivo contém enunciados gerais, então não diz de modo
definitivo e minucioso como será a realidade a ser construída. A imagem objetivo remete a
um campo virtual de possíveis.
Desse modo, o princípio da integralidade no SUS remete a diversos sentidos de
projetos políticos distintos, mas articulados entre si, pois forjados no mesmo contexto de
lutas. Assim, para a medicina integral
82
, integralidade é considerada uma boa prática médica:
a atitude desejável do médico que se recusa a ver o paciente como somente um aparelho ou
sistema biológico e se preocupa em apreender para além da queixa expressa o conjunto das
necessidades de saúde do paciente. Outro sentido se refere ao projeto de intervir de modo
articulado nos vários níveis de prevenção possíveis dentro do modelo da História Natural da
Doença
83
. Do mesmo modo, significa a oferta de um leque diversificado de ações, assim
81
Segundo Merhy (2005), quem produz o sentido das palavras são os trabalhadores da saúde, em seus atos, no
cotidiano dos serviços. O autor faz o importante alerta para não fetichizar as palavras, como se elas tivessem em
si o poder de produzir mudança. Pois as palavras que portam o ideário das reformas correm o constante risco de
captura pelas práticas hegemônicas, corporativo-centradas.
82
Medicina Integral é um movimento que teve origem nas discussões sobre o ensino médico nos Estados
Unidos. Era uma crítica à postura fragmentária das especialidades médicas que leva os profissionais a adotarem
intervenções cada vez mais reducionistas que desconsideram o contexto psicológico e social da vida de seus
pacientes. A crítica se voltou aos currículos baseados no modelo flexneriano. No Brasil, a medicina integral se
inseriu nas discussões da medicina preventiva, um núcleo de resistência à ditadura militar que foi braço
importante do que veio a se transformar no Movimento Sanitário (MATTOS, R, 2001).
83
A História Natural da Doença foi um modelo desenvolvido nos EUA no âmbito das práticas da medicina
comunitária. Baseia-se na dinâmica do equilíbrio e do desequilíbrio de três fatores: homem, hospedeiro e agente
patogênico, demarcando dois momentos do processo de adoecimento: pré-patogênico e patogênico. O primeiro
corresponde ao equilíbrio ainda não rompido e o segundo ao equilíbrio rompido. O modelo propõe três níveis de
59
como a crítica aos programas voltados a “uma doença”, que operam na lógica da
inclusão/exclusão de seus beneficiários e que são decorrentes do modelo flexneriano, que
pressupõe uma determinação unicamente nosológica das intervenções (MATTOS, R, 2001;
SILVA JUNIOR, 1997; ALVES, 2001).
Integralidade também significa a superação das dicotomias presentes nas práticas de
saúde, propondo a integração entre as ações preventivas e curativas, a integração entre o
conhecimento da clínica e o instrumental epidemiológico, da atuação no plano individual e
coletivo, da articulação da atenção à demanda espontânea de cuidados com as ações
programáticas de enfrentamento às necessidades de saúde que são identificadas num
território (SILVA JÚNIOR, 1997; MATTOS, R, 2001; PINHEIRO et al, 2005).
Dessa imagem objetivo referida anteriormente, Mattos R. (2001) destaca três
principais sentidos no princípio de integralidade. Primeiro a integralidade entendida como
uma postura ética dos profissionais diante de suas práticas, que inclui uma abertura para
trabalhar com um plano de possíveis. Segundo a integralidade entendida como um princípio
de organização contínua dos processos de trabalho das equipes e dos arranjos
organizacionais dos serviços, que devem estar sempre abertos de modo a ampliar a
apreensão das necessidades de saúde da população. Por último, a integralidade entendida
como o princípio orientador das políticas públicas que devem levar em conta o contexto
social dos seus usuários e se recusar a objetivar e recortar os sujeitos sobre os quais
incidem, ampliando o horizonte dos problemas a serem tratados. Em todos esses sentidos, a
integralidade representa uma recusa ao reducionismo e à objetivação dos sujeitos e uma
afirmação da abertura ao diálogo com o usuário.
Para entender a integralidade como uma atitude ética do profissional em sua prática,
podemos tomar como ilustração as implicações decorrentes da leitura, ou não, das
necessidades de saúde para além das demandas expressas pelos usuários ou na escolha da
racionalidade técnica que irá operacionalizar essa leitura. Segundo Mattos R. (2001), um
profissional pode adotar a conduta inaceitável de apenas silenciar o sofrimento manifesto do
usuário, sem reconhecer os fatores de risco presentes em seu contexto de vida. Por outro
lado, ao buscar integrar em suas ações – em resposta à queixa do usuário – algumas
atividades de cunho preventivo, o profissional deve ter um cuidado especial para não dar
continuidade ao projeto de medicalização
84
da sociedade. Pois a demanda é explícita,
relativa a uma experiência de sofrimento do usuário e de seu pedido imediato de ajuda,
enquanto a necessidade de saúde depende da leitura do profissional. Por isso, a atividade
ação: Atenção Primária (no período pré-patogênico), Atenção Secundária (diagnóstico e tratamento) e Atenção
Terciária (recuperação do dano e reabilitação) (CARVALHO et al, 1998).
84
Medicalização é o processo social por meio do qual a medicina foi assumindo a responsabilidade de um
crescente número de aspectos da vida social, aplicando os conhecimentos sobre a doença para normalizar a
vida social, recomendando hábitos e comportamentos, sugerindo modos de vida (MATTOS, R, 2001).
60
preventiva corre o risco de estar a serviço do controle das populações, da medicalização da
vida e da exploração econômica do sofrimento humano.
que diferenciar um uso dessas formas de intervenções preventivas que
simplesmente expande o consumo de bens e serviços de saúde ou que
simplesmente integra dispositivos de sustentação da ordem social (através
da regulação dos corpos) do uso judicioso e prudente dessas mesmas
técnicas de prevenção, feito na perspectiva de assegurar o direito dos
beneficiários à saúde. (MATTOS, R, 2001, p. 50).
Portanto, a integralidade tem a importante função ética de inserir o cuidado na
complexidade do contexto de vida dos usuários, em seu território, deslocando a tônica da
demanda para as necessidades de saúde. Ter a integralidade como princípio de trabalho é
ampliar a percepção, descentrar o olhar dos sistemas fisiológicos em direção aos contextos e
interações. Refere-se também a um modo de apreender as necessidades de saúde, que
pode ser mediado por racionalidades técnicas, como a epidemiologia ou a clínica, ou mesmo
captado no plano do sensível pelos trabalhadores. De qualquer modo, tendo a integralidade
como princípio de trabalho, sempre se é remetido a uma relação de alteridade com o usuário,
uma vez que a leitura das necessidades não pode desconsiderar o modo pelo qual o usuário
significa e vive seu processo saúde-doença e o seu modo singular de levar a vida. Sendo
assim, a questão da subjetividade está sempre presente nas práticas de cuidado. Segundo
Mattos (2001), ao abandonar a relação com um órgão doente e se lançar em uma relação
não objetivante com o outro, nos deparamos com suas aspirações, seus desejos e seus
sonhos, que só podem ser apreendidos subjetivamente, numa relação sujeito a sujeito.
Nesse sentido, integralidade também remete a uma dimensão relacional do cuidado.
Segundo Pinheiro et al (2005), a prática da integralidade carrega em si uma potência
inovadora e emancipatória porque supõe uma postura de escuta ativa das necessidades
numa relação de alteridade com o usuário. Ao definir que o objeto de trabalho em saúde é o
usuário e seu contexto de vida
85
, produz-se a opção política de incluir nas práticas a
dimensão da subjetividade que caracteriza um sujeito social, que porta aspirações, desejos e
uma história singular de vida. Uma prática integral tamm significa a construção de campos
de mediações na delimitação das necessidades de saúde, pois se as demandas também são
produtos de um processo histórico de medicalização da sociedade, a integralidade requer
levar em conta o cidadão como um sujeito político que possa produzir crítica ao instituído.
Uma prática integral requer o reconhecimento da autonomia dos usuários e das relações e
interações sociais como exercício de liberdade.
85
O sujeito em sofrimento conforme expressão de Silva et al (2005, p. 75).
61
Pinheiro e Guizardi (2005) afirmam que, se a integralidade é um conceito de difícil
apreensão, é mais ainda de difícil operacionalização, pois não resulta simplesmente da
organização técnica e nem da aplicação direta dos saberes disciplinares existentes. Segundo
os autores, a integralidade como princípio e prática tem ocorrido principalmente nos espaços
moleculares das instituições e do campo social, e a consideram uma prática social de ação
política que incide nos modos de andar a vida” dos usuários. Nesse sentido, entendemos
que os trabalhos itinerantes estão ajudando a materializar, no cotidiano de suas práticas, o
princípio da integralidade.
Em práticas itinerantes, como a dos Agentes Comunitários de Saúde e dos Redutores
de Danos, a integralidade é, sobretudo, um divisor de águas entre o que seria uma medicina
barata e versátil voltada para intervenções pontuais às populações pobres, como pregam as
políticas neoliberais, e uma prática complexa e sintonizada aos modos de vida dos usuários.
Uma prática voltada para a defesa da vida individual e coletiva dos territórios e implicada com
os projetos de felicidade dos usuários, que carregue consigo a crítica e a inconformidade
com a situação aviltante de grande parte da população do país e não aceite a exploração
econômica da situação de saúde dessas populações.
2.3 Dimensão cuidadora: paradigma de cuidado e subjetividade
O cuidado, segundo Pinheiro e Guizardi (2005), é o locus onde se produzem os
sentidos e as ões de integralidade. De acordo com Alves e Guljor (2005), o cuidado
86
é o
resultado da desinstitucionalização das práticas, quando se desconstrói o isolamento com o
exercício de práticas de liberdade, quando se desloca o olhar da doença para projetos de
invenção de vida que levem em conta o contexto de existência dos usuários. Desse modo, o
tema da produção do cuidado é um ponto de intersecção entre a Reforma Sanitária e a
Reforma Psiquiátrica e, segundo Merhy (2005), é o referente simbólico do trabalho em todo o
campo da saúde.
Nenhuma reforma social pode deixar de ser um projeto com suas propostas e tornar-
se um processo com um plano de consistência próprio se não for levado adiante pelos
trabalhadores ou militantes no cotidiano de suas práticas. Segundo Merhy (2002), é
justamente na micropolítica dos processos de trabalho que reside o ponto crítico na
consolidação do sistema de saúde, pois é nesse território que se decidem as disputas sobre
86
O termo cuidado, segundo Alves (2001), indica um modo de atenção que leva em conta a integralidade e é
usado no lugar de tratamento”, que se refere a uma resposta técnica linear a uma determinada codificação
diagnóstica.
62
como irão se conformar as tecnologias, que saberes serão incorporados nas práticas e que
concepções adotar sobre o processo saúde-doença. É no cotidiano das práticas, em sua
micropolítica, que os trabalhadores imprimem sentido às palavras que portam o ideário das
reformas e dão materialidade às suas implicações e intencionalidades. Sendo assim, o
território das práticas é um campo virtual de possíveis, no qual seus atores podem
simplesmente reproduzir as práticas hegemônicas ou serem agentes produtores de
transformações.
O mundo do trabalho, na sua micropolítica, nos encontros que provoca,
abre-se para nossas vontades e desejos, condenando-nos também à
liberdade e a estarmos diante de s mesmos, dos nossos atos e nossas
implicações. (MERHY, 2005, P. 198).
Feuerwerker (2005) considera que, mesmo o trabalhador de saúde situado num
contexto engessado por um alto grau de prescrição vertical das ações, tem um pequeno
espaço de autonomia para o seu agir, o qual irá usar orientado por seus próprios valores. Os
trabalhadores que sabem jogar o jogo das relações de poder e conseguem ampliar seu
espaço de governabilidade têm uma importância fundamental como atores de transformação
das práticas.
Para Merhy (2002), o cotidiano de trabalho em saúde é um campo micropolítico em
que atuam intensamente diferentes forças e no qual se podem produzir práticas de diferentes
qualidades. Nessa micropolítica dos processos de produção de saúde, o autor diferencia
duas dimensões: o trabalho vivo e o trabalho morto. O trabalho morto são as ferramentas,
equipamentos e técnicas estruturadas que se acumulam ao longo do tempo e que se fazem
presentes no processo de trabalho. O trabalho vivo é a produção em ato. O saber fazer de
um profissional comporta simultaneamente uma dimensão de trabalho vivo e outra de
trabalho morto, pois conjuga a acumulação de saberes e experiências com a sua constante
atualização prática em ato. Essa atualização em ato sempre ocorre no encontro com o
usuário.
Segundo Merhy (2002), no campo do trabalho vivo predomina o que chama de
tecnologias leves. Para o autor, o trabalhador de saúde leva consigo em suas práticas três
tipos de valises tecnológicas. Nas mãos carrega uma valise com tecnologias duras. Na
mente carrega as tecnologias leve-duras. E, no espaço relacional entre o trabalhador e o
usuário, faz uso das tecnologias leves, que ganham materialidade em ato. As tecnologias
duras são os equipamentos clínicos, como as medicações, as vacinas, a balança do ACS e o
kit dos redutores de danos. As tecnologias leve-duras são os saberes clínicos ou
63
epidemiológicos estruturados. As tecnologias duras e leve-duras compõem a dimensão do
trabalho morto nos atos produtores de saúde, enquanto as tecnologias leves se materializam
na dimensão do trabalho vivo.
no encontro com o usuário em ato que se atualizam as tecnologias leves.
Nesse encontro, ocorre uma intersecção das tecnologias dura e leve-dura com as
necessidades de saúde do usuário, seu modo singular de andar na vida, suas ideias e seu
desejo. Essa intersecção é o trabalho vivo em ato e contamina o campo produzindo altos
graus de incerteza e aberturas. As tecnologias leves são as tecnologias do encontro, que se
produzem na dinâmica relacional entre usuário e trabalhador. Merhy (2002) cita como
exemplos dessas tecnologias leves o vínculo, o acolhimento e a responsabilização pelo
cuidado.
Quanto maior a composição das caixas de ferramentas para a configuração do
cuidado, maior será a possibilidade de se compreender o problema de saúde do usuário e a
ele responder de modo adequado. O autor (MERHY, 2002) defende a construção de um agir
implicado dos trabalhadores com a defesa da vida, em que as práticas não se centrem na
execução de procedimentos e nem em interesses coorporativos dos núcleos profissionais,
mas que as práticas se integralizem em torno do cuidado do usuário. O desafio é produzir
procedimentos usuário-centrado sem perder a eficácia das intervenções dos distintos núcleos
profissionais. E também evitar que as lógicas hegemônicas, como é o caso do modelo
médico neoliberal, capture e submeta as outras lógicas ao seu funcionamento, obliterando o
seu núcleo cuidador
87
, núcleo esse comum a todos os campos profissionais que operam o
cuidado em saúde.
Esse núcleo cuidador é o território do trabalho vivo, onde predominam as tecnologias
relacionais. Merhy (2002, 2005) denomina esse núcleo de “dimensão cuidadora”. Podemos
pensar a dimensão cuidadora como a abertura de um espaço relacional onde, ao invés da
objetivação determinada pelo uso estrito de racionalidades técnicas, esteja colocada a
possibilidade dos sujeitos expressarem seus desejos, seus projetos de vida e sua história
singular. Inscrevem-se nessa dimensão as relações intercessoras com a subjetividade dos
usuários, o estabelecimento de uma relação acolhedora baseada no vínculo, na
responsabilização e na produção de autonomia. A partir dessa relação, a dimensão
cuidadora é o ponto a partir do qual se produz a articulação dos saberes no sentido de
compor o leque mais amplo possível de valises tecnológicas, em que a lógica do mundo do
usuário seja respeitada e colocada num plano para o qual convertam as lógicas profissionais.
87
A diferenciação do autor entre núcleo profissional e núcleo cuidador é semelhante aos conceitos de núcleo e
campo dos saberes e práticas em Campos (2000). Núcleo, para Campos, é o conjunto de saberes e práticas
específicas de cada profissão da área da saúde, enquanto campo são os saberes e práticas comuns a essas
profissões na produção do cuidado no âmbito da Saúde Coletiva.
64
Pois a soma das lógicas dos núcleos profissionais não conta da complexidade do
cuidado. A complexidade das conexões do usuário com seu contexto extrapolam a
capacidade de apreensão das racionalidades técnicas das diversas profissões. A dimensão
do cuidado se na relação de alteridade com um outro, que não é uma abstração de um
campo de saber, mas
... um outro que é um mundo de necessidades, rico de complexidades
lógicas, pois pode conter desde dimensões restritas às formas corporais de
sofrer, até necessidade de ser escutado, vinculado, inserido em redes
comunicativas com outros, com vontades cidadãs. (MERHY, 2005, p. 199).
Por isso que o autor considera o cuidado não um procedimento sobre um objeto, mas
o referente simbólico das práticas de saúde para os quais se dirigem vários pedidos
possíveis. Essa dimensão é, segundo Merhy (2005), o terreno mais aberto no agir em saúde,
não esplenamente capturado e coloca em evidência as limitações das práticas instituídas.
Essa dimensão cuidadora, que se produz em ato e por meio de tecnologias leves, é cheia de
porosidades, ruídos e vazamentos, que são aberturas para o mundo do usuário e
possibilidade de movimento instituinte no campo das práticas.
No campo das profissões e dos saberes, a produção do cuidado de que falamos aqui,
um cuidado orientado pelos eixos conceituais da desinstitucionalização e da integralidade,
dá-se num espaço que Ceccim (2005) denomina entre-disciplinar. É nesse lugar, ainda não
capturado pelos efeitos de sedentarização das atribuições profissionais, que se prescinde de
hierarquização técnica ou social, que é possível construir uma prática de cuidado mestiça
capaz de se desvencilhar dos limites disciplinares impostos pelas profissões e de criar uma
porosidade própria à alteridade dos usuários e dos saberes. Segundo o autor, a ética da
entre-disciplinaridade é
... um lugar de sensibilidade e equilíbrio metaestável, em que a prática
terapêutica emergiria em clínica mestiça ou clínica nômade; em que todos
os potenciais seguiriam se atualizando e o equilíbrio não seria outro que não
a transformação permanente. (CECCIM, 2005, p. 265).
Para Ceccim (2005), essa ética entre-disciplinar não se situa em nenhuma margem
definida de uma identidade profissional, ou em nenhum dos pólos de alguma dicotomia
alocada no campo da saúde como duas margens opostas. Mas a possibilidade de uma
abertura para a alteridade, de uma melhor capacidade de apreender a complexidade de
65
conexões que desenham o processo saúde-doença na direção de um cuidado integral. Situa-
se numa terceira margem, que á a margem da travessia
88
, do intermezzo. A margem do
movimento, da não sedentarização em nenhuma das duas margens. É nessa terceira
margem, lugar de tensão e indiscernimento, mas também de invenção e de abertura para a
diferença, que um trabalhador pode, ao transitar, convocar a aprendizagem e produzir novos
sentidos nas práticas de saúde. É nessa terceira margem que é possível se engajar em
projetos de invenção de vida.
Esse lugar ético da entre-disciplina é que pensamos ser estratégico aos trabalhadores
itinerantes transitarem para que possam explorar a potência política de seus movimentos. De
fato, os trabalhadores itinerantes habitam um lugar do entre, nas brechas existentes entre as
diversas disciplinas, entre os saberes populares e técnicos, entre os diferentes territórios e os
serviços. Produzindo elo entre usuários e sistema de saúde ou laço entre loucura e corpo
social. Além de produzir ligação entre as partes, o trabalhador itinerante é aquele que se
ocupa das populações que ficam nos interstícios das ofertas de atenção dos módulos
assistenciais e que realizam muitas ações que escapam ao escopo das disciplinas tornadas
sedentárias. É justamente nesse lugar de instabilidade e indefinição que o movimento pode
se tornar mais potente
89
.
Por último, Merhy (2005), alerta para a importância do paradigma com que se opera
na produção do cuidado, pois condiciona as conformações tecnológicas e o modo de ver os
usuários. Assim o paradigma positivista do modelo flexneriano produz a imagem de um
usuário como um organismo ou sistema biológico desconectado do meio, que porta a
necessidade fragmentada de um indivíduo sem subjetividade, intenções e vontades. O que é
ótimo e funciona perfeitamente dentro de um bloco cirúrgico. Mas deslocar esse mesmo
paradigma para o território de vida dos usuários tem o efeito de impossibilitar a produção de
um cuidado integral, além de tender para um vs de controle das populações ao resolver
tecnicamente problemas que são de ordem política e de estabelecer uma relação
objetalizante com o usuário
90
.
Segundo Campos (2000), as práticas de saúde produzem uma infinidade de matizes
entre o controle sobre a vida e a produção de autonomia dos usuários. Nesse sentido, o
paradigma em que se apoiam as concepções e práticas de saúde têm importância
fundamental para determinar em qual dos pólos irão operar as práticas. Paradigmas como o
88
A imagem da terceira margem como lugar de travessia o autor retira do conto de Guimarães Rosa “A terceira
margem do rio” e do filme de Walter Salles Jr. Diários de Motocicleta”. O filme tem uma cena em que o jovem
Che atravessa um rio que separa duas cidadelas, a dos enfermos e a dos profissionais de saúde.
89
É claro que não nos referimos aqui a qualquer tipo de instabilidade no plano das condições de trabalho, tipo de
vínculo e remuneração, pois a precarização do trabalho é um tipo de instabilidade que produz sofrimento e
despotencialização.
90
Os autores da Saúde Coletiva consideram como paradigma hegemônico o modelo médico neoliberal, que tem
como característica principal a centralidade nos procedimentos em relação aos quais o usuário se torna mero
suporte (MERHY, 2005).
66
positivista e o estruturalista, segundo o autor, tendem a considerar o usuário como um objeto,
receptor passivo das ações. Quando lidamos com um outro que não é um órgão ou sistema
biológico, lidamos inevitavelmente com a questão da subjetividade, que está sempre posta
nas relações de cuidado e nos processo saúde-doença. Contudo, a dimensão da
subjetividade e dos seus processos de produção não pode ser apreendida por coordenadas
estritamente técnicas.
As proposições de Guattari (1992) sobre um paradigma estético processual são
favoráveis para pensar as práticas sociais que atuam com âmbitos processualmente criativos
da existência, como é o caso da vida e da subjetividade. Segundo o autor, essas práticas não
devem ser regidas pelos paradigmas da tecnociência, pois “dão ênfase ao mundo objetal de
relações e de funções, mantendo sistematicamente entre parênteses os afetos subjetivos, de
modo que o finito, o delimitado coordenável, acabe sempre prevalecendo sobre o infinito de
suas referências virtuais” (GUATTARI, 1992, p. 129).
Segundo Guattari (1992), ao contrário da ciência, a arte
91
é um campo que tem a
potencialidade de, a partir da finitude de um material sensível, tornar-se suporte da produção
de afetos e perceptos que possam se descentrar das referências e coordenadas pré-
formadas. Por isso, o autor entende que a estética deve ser o principal modo de valorização,
pois a arte leva ao extremo “a capacidade de invenção de coordenadas mutantes, de
engendramento de qualidades de ser inéditas” (GUATTARI, 1992, p. 135). O autor não se
refere aqui à arte institucionalizada, mas à dimensão ontogênica da criação que considera
um foco de resistência ao processo de homogeneização do social efetuado pelo modo de
produção capitalista, que subordina todas as esferas de valorização da vida ao valor
econômico. Pois o capital trata no mesmo plano formal os valores de desejo, uso, troca, e
“faz passar qualidades diferenciais e intensidades não discursivas sob a égide exclusiva de
relações binárias, e lineares” (GUATTARI, 1992, p. 133), sobrecodificando todas as demais
esferas de valorização.
Segundo Guattari (1992), nas sociedades arcaicas os modos de valorização não
estavam fragmentados e descolados, mas eram plenamente integrados ao cotidiano da vida
social. Desse modo, o psiquismo dos indivíduos não se organizava em faculdades
interiorizadas, mas se dirigia aos diversos registros expressivos e práticas tribais que se
conectavam diretamente à vida social e ao mundo externo. Era uma subjetividade
territorializada de modo coletivo, polissêmico e transindividual, que se produzia no interstício
entre as esferas móveis de valorização e a complexidade das matérias de expressão dos
territórios do clã.
91
Bergson (2006) afirma que a arte por si só basta para demonstrar que a ampliação das faculdades perceptivas
é possível. Na arte, é possível demonstrar nas coisas mais qualidades e mais matizes do que se percebe
naturalmente.
67
Na medida em que se foi acentuando o processo de individualização da subjetividade,
foram se segmentando os diversos modos de valorização, que formaram pólos distintos e
transcendentes e determinaram profundamente o modo de apreensão cognitiva que fazemos
de nosso mundo: a Verdade das racionalidades lógicas, o Bem da vontade moral, a Lei do
espaço público, o Capital das trocas econômicas e o Belo da esfera estética. Esses recortes,
segundo o autor, foram acompanhados de um despedaçamento da subjetividade, que se
desdobrou em faculdades como a Razão, a Afetividade e a Vontade (GUATTARI, 1992).
A autonomização dessas esferas substituiu a interdependência rizomática
92
dos
valores territorializados por uma arborescente hierarquia de valores, além de criar uma série
de dicotomias, como indivíduo e sociedade, natureza e cultura, sensível e inteligível. Houve
uma simplificação nos processos de subjetivação: da complexa determinação das
heterogêneas matérias de expressão de um território existencial à modelagem, assentada
sobre a sombra de um “eu”, de faculdades mentais, que funcionam como “peças compatíveis
com a mecânica social dominante” (GUATTARI, 1992, p. 134).
Segundo Guattari (1992), o campo da percepção e do afeto estético é um foco de
resistência para as singularidades e para a heterogênese, frente às sobrecodificações do
modo de subjetivação dominante e suas modelizações adaptativas, graças à sua
possibilidade de abrir linhas de fuga a partir dos materiais finitos, ao campo virtual dos
possíveis que formam os infinitos incorporais. O autor propõe que a “potência estética do
sentir” (GUATTARI, 1992, p. 130) venha a ocupar uma posição de transversalidade em
relação aos demais campos de conhecimento e práticas, operando como um paradigma,
intensificando a potência de criação e de consistência autopoiética. Pois o constante choque
entre os processos criativos e os papéis instituídos
... sua propensão a renovar suas matérias de expressão e a textura
ontológica dos perceptos e dos afetos que ele promove, operam se não uma
contaminação direta dos outros campos, no mínimo o realce e a reavaliação
das dimensões criativas que os atravessam... (GUATTARI, 1992, p. 135).
Desse modo, o autor não propõe abandonar as racionalidades científicas de cada
campo de conhecimento, mas colocar essas racionalidades em novas bases, no plano de um
paradigma ético-estético, que amplie o poder de criação das demais esferas de valorização e
crie linhas de fuga ao regime de transcendência reducionista. Operar com o paradigma
estético tem como efeito promover a heterogenização dos universos de referência e a sua
transversalização no mesmo plano de consistência, multiplicando focos autopoiéticos nos
92
A diferença entre o modelo arborescente e o rizomático será abordado no capítulo 3.
68
diversos territórios existenciais. Guattari (1992) no paradigma estético a possibilidade de
libertar os diversos campos do conhecimento da necessidade de um referente transcendente
como garantia de consistência teórica se essa consistência passar a ser buscada na
imanência dos processos de criação.
O paradigma estético também tem implicações éticas e políticas, pois ao falar em
criação, deve-se levar em conta a responsabilidade da instância criadora com os processos
de criação e os efeitos de inflexão que produzem no estado de coisas. Mas, nesse
paradigma, as decisões éticas não se baseiam em um referente transcendente, mas no
próprio “movimento de criação processual” (GUATTARI, 1992, p. 137), que se afirma como
fonte de existência.
O paradigma estético é processual porque ele propõe abandonar as coordenadas
imutáveis das esferas de valorização transcendentes para se firmar no movimento imanente
dos processos criativos, no qual cada acontecimento se torna um foco de relance processual.
Movimento esse que implica numa ruptura com a individualização da subjetividade e com as
dicotomias impostas pelos referentes transcendentes aos diversos territórios existenciais,
entre o indivíduo e a sociedade, o corpo e a mente, a natureza e a cultura, que são próprias
das racionalidades técnicas modernas, presentes no campo da saúde (GUATTARI, 1992).
As práticas sociais regidas por um paradigma estético podem se libertar de certa
concepção de subjetividade pensada como uma essência universal e imutável, um continente
vazio que comporta todas as modalidades de existência. Pois tal concepção pode
esterilizar as singularidades e delimitar os modos de manifestação da subjetividade em
coordenadas pré-estabelecidas, engendrando práticas normalizadoras da existência. Por
outro lado, conceber a subjetividade como um permanente processo de produção, colocando
a ênfase não mais no ser, mas nos modos de ser, pode engendrar práticas que produzam
heterogeneidade e complexidade, “maquinação para criar o existente” (GUATTARI, 1992, p.
139).
Do mesmo modo, Guattari, como exemplo de uso do paradigma estético, propõe uma
“redefinição aberta do corpo”. Uma definição que rompe com a dicotomia entre “matéria e
espírito
93
e na qual as diversas territorialidades existenciais, reunidas de modo transversal,
possibilitam uma abordagem combinada de estratégias clínicas.
93
Com a intenção de superar a dicotomia entre matéria e espírito, Nathan usa a noção de desordem”, que
remete aos seres ou ações invisíveis do território do paciente ao invés de doença, que está muito colado a uma
sintomatologia orgânica. O autor alega que o recorte entre medicina do corpo e medicina da alma o tem
sentido para as práticas de cuidado, servem apenas para a edificação de disciplinas. O autor usa o termo
“desordem que deixa aberta as possibilidades de se inscrever o sofrimento nos diversos paradigmas” (NATHAN,
1996a, p. 14).
69
... o corpo concebido como intersecção de componentes autopoiéticos
parciais, de configurações múltiplas e cambiantes, trabalhando em conjunto
assim como separadamente mesmo: o corpo próprio especular, o corpo
fantasmático, o esquema corporal, neurológico, o soma biológico e
orgânico, o eu imunitário, a identidade personológica no interior dos
ecossistemas familiares e ambientais, a rostidade coletiva, os ritornelos
místicos, religiosos, ideológicos. (GUATTARI, 1992, p. 148).
O paradigma estético processual ajuda a pensar a dimensão cuidadora das práticas
de saúde e se coaduna com o princípio de desinstitucionalização, que afirma que o objetivo
das práticas é invenção de vida, e com o princípio da integralidade, que afirma que o cuidado
tem de estar conectado à complexidade do universo existencial dos usrios. A concepção
processual e transversalista de subjetividade e de corpo são imprescindíveis para forjar
práticas baseadas num novo amor pelo desconhecido” (GUATTARI, 1992, p. 147), numa
ética da diferença e numa política de ruptura constante com dogmatismos que esterilizam os
núcleos autopoiéticos da existência. Uma prática que faça dos acontecimentos um foco de
relance processual, em que o evento de uma crise, por exemplo, ao invés de ser o marco de
uma estagnação da vida, possa ser o advento de um deslocamento.
2.4 A lógica manicomial e o modelo sintomatológico
Basaglia (2005b) afirmou que o projeto comum das diversas operações táticas
baseadas no paradigma da desinstitucionalização na Itália era a destruição da lógica
manicomial. No contexto deste trabalho, entendemos lógica manicomial como o conjunto de
racionalidades que, constrangendo o pensamento e a ação, coloca-se como obstáculo na
produção de um cuidado integral. Pois a primeira ideia que a estrutura manicomial impõe às
práticas é a retirada do usuário da complexidade de seu contexto de vida, usando o
isolamento como método de terapêutica.
Mas do que se trata afinal essa lógica manicomial? Que racionalidades a compõem?
Uma primeira observação feita por Amarante (2005) afirma que, para além de um conjunto
de enunciados científicos, a cultura manicomial é uma forma moral de compreender a
loucura. É possível pensar a estrutura do manicômio como o modelo que condensa de modo
emblemático as racionalidades disciplinares das instituições de confinamento, as suas
relações de poder, a violência exercida sobre as populações desviantes e o seu desrespeito
pela diferença. Racionalidades essas que se ocultam em tecnologias específicas de poder.
Segundo Foucault,
70
A crítica do poder exercido sobre os doentes mentais ou os loucos não pode
restringir-se às instituições psiquiátricas [...]. A questão é: como são
racionalizadas as questões de poder? Perguntá-lo é a única maneira de
evitar que outras instituições, com os mesmos objetivos e os mesmos
efeitos, assumam os mesmos papéis. (FOUCAULT, 1990, p. 87).
Segundo Araújo (2005), a desospitalização do louco não garante a hospitalidade com
a loucura. A desospitalização pode, por meio de um movimento complexo e sutil, substituir as
visíveis instituições de disciplina por um controle invisível das virtualidades. No post-scriptum
sobre as Sociedades de Controle, Deleuze (1992) deixa um alerta sobre um novo cenário, no
qual novas forças estão substituindo as antigas. Com a crise generalizada das instituições
disciplinares e seus meios de confinamento, segundo o autor, pode-se observar que as
“formas ultra-rápidas de controle ao ar livre” progressivamente vão substituindo as disciplinas
“que operam na duração de um tempo fechado” (DELEUZE, 1992, p. 220). Para exemplificar,
usa a crise do hospital como meio de confinamento, crise a qual a sociedade respondeu com
as políticas de setorização, com a criação dos hospitais-dia e os atendimentos domiciliares.
Deleuze (1992) afirma que essas observações sobre a sociedade de controle não são
uma apologia ao pessimismo e não importa perguntar o que é mais penoso ou suportável, se
o regime de disciplina ou o de controle. O importante é conhecer bem o cenário que se
anuncia para construir novas armas, porque é nele que irão se desenrolar as lutas contra as
formas de sujeição e é no contexto desse regime que podem emergir novos movimentos de
resistência. A sociedade de controle tem uma lógica própria, sintonizada com a lógica do
modo capitalista de produção contemporâneo. Se a disciplina opera por meio de um conjunto
de instituições que tem em comum uma linguagem analógica, o controle é um sistema de
desenho e distribuição variável que tem uma linguagem numérica. Se a disciplina é um
molde, o controle é uma modulação permanente em constante variação (DELEUZE, 1992).
Segue agora uma tentativa de delimitar algumas linhas constituintes da lógica
manicomial, alguns destes residui manicomiali, que são modos de relação, técnicas de
subjetivação que têm sua origem nas instituições disciplinares e que o deslocamento das
intervenções de saúde para o território de vida dos usuários corre o risco de alastrar em
extensão. Racionalidades que, numa estrutura de arquitetura disciplinar, adquirem a forma
da violência explícita, mas que ao ar livre, no território de vida dos indivíduos, tornam-se mais
sutis, versáteis e complexas. Como aponta Basaglia (2005a), movimentos reformistas que
não colocam em análise seu mandato social, tendem a transformar as instituições de
violência em instituição de tolerância, na qual se mantém os mesmos pressupostos e a
71
mesma função social de administração das populações desviantes, que a violência passa
a ser implícita.
O acoplamento dessas lógicas às políticas de Saúde Mental e Atenção Básica tem o
efeito tanto de tornar o deslocamento das práticas de saúde para o território de vida dos
usuários uma capilarização do controle por meio da transformação das técnicas disciplinares
em medidas de homogeneização do social, como de assegurar a inocuidade do potencial
disruptivo do ideário dessas políticas. Podemos entender a lógica manicomial como o
conjunto de pressupostos implícitos e explícitos, que constrange o exercício de práticas
pautadas por uma ética territorial de cuidado.
Esse conjunto de pressupostos, quando incidem nas práticas de saúde, resulta em
políticas de subjetivação que restringem os territórios existenciais, estanca o movimento do
modo singular do usuário “andar a vida” e o aprisiona em formas identitárias, anulando ou
negativando suas diferenças. Esses pressupostos fazem com que as práticas de saúde
cristalizem itinerários de segregação e banalizem cotidianamente a violência implícita que é o
silenciamento de diferenças incômodas no cumprimento de um mandato de homogeneização
do social.
Em relação à abolição das estruturas manicomiais, Pelbart (1992) coloca um
importante alerta sobre os riscos que corremos ao derrubar seus muros: criar uma
sociabilidade asséptica que neutralize todo o potencial de desterritorialização
94
da loucura. O
autor questiona se a libertação do louco não é parte de uma estratégia de homogeneização
do social. “Ao borrarmos essa fronteira simbólica e concreta entre a sociedade e seus loucos
não estaremos, sob pretexto de acolher a diferença, simplesmente abolindo-a?” (PELBART,
1992, p. 132, 133).
De acordo com Pelbart (1992), não basta destruir os manicômios livrando os loucos
se forem mantidos intactos os manicômios mentais, os espaços subjetivos onde confinamos
nossas desrazões. O desafio, segundo o autor, é “... libertar o pensamento dessa
racionalidade carcerária
95
...” (PELBART, 1992, p. 135). Porque a racionalidade carcerária faz
com os loucos o que faz com todas as outras minorias: atribui uma identidade e define um
lugar estático. Lancetti (1992) nos lembra que o manicômio não é um usurpador da
identidade, como muitos autores alegam, mas sim um produtor maciço da identidade, tanto
do “doente mental” quanto daqueles que se ocupam de seu “tratamento”.
94
Pelbart (1992) define desterritorialização como o poder de embaralhar códigos instituídos, subverter as regras
do jogo, transpor e deslocar seus limites, assumindo uma estranheza irredutível aos sistemas de demarcação de
lugares e atribuição de papéis da Razão de Estado.
95
Abolir a racionalidade carcerária não significa deixar-se inundar pela irracionalidade, mas aprender a transitar
para além dos muros do império absoluto da razão, não burocratizando os acontecimentos com cálculos de
controle, mas fazendo do pensamento e das práticas um campo criativo de experimentação (PELBART, 1992).
Sobre mentalidade carcerária, ver o texto de Baptista (2008) sobre o filme Edifício Máster.
72
As políticas de Saúde Mental defendem a ideia de produzir o cuidado nos marcos de
uma lógica territorial em contraposição a uma lógica manicomial, que é o conjunto de
racionalidades que regem o funcionamento dos grandes asilos. Essas lógicas são
diferenciadas por Costa-Rosa (2000) sob os nomes de modo asilar e modo psicossocial.
O modo asilar, em relação à forma de conceber a “doença”, coloca toda ênfase nas
determinações orgânicas e o meio básico de ação é o medicamentoso. Não existe nenhuma
consideração pela existência de um sujeito como subjetividade desejante e, desse modo, ele
é excluído do tratamento. A intervenção é centrada no organismo do indivíduo isolado de seu
contexto. o modo psicossocial leva em conta que os fatores determinantes do processo
saúde-doença podem ser de ordem política, biológica, social ou cultural, sendo que a ênfase
nas intervenções se dará em relação a cada problemática singular, podendo compor um
leque variado de dispositivos. As intervenções não se voltam para uma “doença”, mas para
uma “existência-sofrimento” de um sujeito em sua rede de relações, sendo que o sujeito é
considerado agente ativo de mudança e cogestor de seu cuidado (COSTA-ROSA, 2000).
O modo asilar tem relações de poder/saber completamente verticalizadas e fabrica
instituições que funcionam como pontos de descarga, depositórios para onde são enviados
os indivíduos problemáticos de uma sociedade, assim como um discurso que fixa os usuários
na imobilidade e no mutismo. no modo psicossocial existe uma preocupação constante
em produzir horizontalização nas relações e, no lugar do mutismo, a participação dos
usuários e a interlocução com seu mundo; no lugar da imobilidade, produzir o livre trânsito
dos usuários em seu espaço social. Para isso, o modo psicossocial requer a territorialização
do cuidado (COSTA-ROSA, 2000).
Em relação à ética do cuidado, o modo asilar tem como meta a remoção ou o
tamponamento dos sintomas com o objetivo de adaptar o “ego” do indivíduo à realidade, ou
suprir alguma de suas carências. No modo psicossocial, a supressão sintomática é apenas
uma meta secundária. O objetivo é o reposicionamento subjetivo do usuário frente à vida e
ao seu sofrimento, numa ética da singularidade e do desejo, que leve em conta a sua
subjetividade e seu contexto sócio-cultural. (COSTA-ROSA, 2000).
As políticas de Atenção Básica têm o desafio de assegurar a universalidade do
acesso a serviços de qualidade, de acordo com o ideário da saúde como um direito social,
por meio da produção de um cuidado usuário-centrado e sob a consigna da integralidade, do
acolhimento, do vínculo, da responsabilização e da produção de autonomia, em oposição à
hegemonia do modelo médico neoliberal, que é flexneriano, hospitalocêntrico e centrado nos
procedimentos médicos. Modelo que por um lado tem baixa resolução no atendimento às
necessidades de saúde dos usuários e, por outro, tem altos custos, o que ao mesmo tempo
inviabiliza as políticas universalizantes e é bastante lucrativo para o complexo médico
industrial (FRANCO; MERHY, 2006).
73
Tanto o que Franco e Merhy (2006) chamam de modelo médico neoliberal, quanto o
que Costa-Rosa (2000) chama de modo asilar, guardam pontos em comum. A ênfase nos
aspectos técnicos obtura a dimensão ética e política das práticas de cuidado. O objeto de
intervenção se desenha de tal modo que as intervenções estabelecem uma política de
subjetivação objetalizadora que impossibilita o diálogo com o universo existencial do usuário.
O que pode unir tanto as críticas tecidas no campo das políticas de Saúde Mental
como as tecidas nas políticas de Atenção Básica é o que Tenório (2001) denomina de
modelo sintomatológico
96
. O modelo sintomatológico tem como principal característica supor
que o sintoma é um mal em si a ser “debelado”. O modelo subordina o conjunto de saberes a
um paradigma estritamente técnico-científico, centrando toda a sua atenção na pura
expressividade dos sintomas e estabelecendo como único objetivo a sua mitigação
97
. É um
modelo de atenção em que a finalidade se reduz a obter resultados fixos, determinados
previamente. Desse modo, impede a produção de um cuidado territorial por operar apenas
com lógicas exógenas ao território dos usuários. Nesse modelo, o contato com o usuário tem
a única finalidade de identificar sintomas, que catalogados, irão determinar uma conduta
terapêutica. As práticas terapêuticas se reduzem então a um monitoramento de sintomas, em
que não preocupação alguma com as possíveis articulações destes com a dramática da
existência ali colocada, a história do sujeito, seu território de vida e sua rede de relações.
É uma característica da lógica manicomial e do modelo sintomatológico desqualificar
os saberes locais e os sistemas explicativos dos usuários, produzindo o que Nathan (1996b)
denominou de um embate epistemológico pela hegemonia do “pensamento branco”
98
. Do
mesmo modo, está presente o que os autores da desinstitucionalização chamam de ideologia
de recâmbio, que é a transposição de saberes e de tecnologias produzidas em um contexto
para outro em que são tomados acriticamente como uma verdade naturalizada e
inquestionável
99
. Assim também a ideologia da diversidade, que é a intensificação radical das
96
É importante esclarecer que não se trata aqui de uma crítica à semiologia clínica. No trabalho itinerante, por
exemplo, é muito importante saber ler os sinais que indicam uma situação de risco. Mas, mesmo nesse caso, a
leitura é do contexto. A crítica se refere ao modelo de leitura dos sintomas que forma conjuntos abstratos
descolados da realidade do usuário. Um tipo de leitura que, ao não remeter os sinais e sintomas às suas
conexões com o contexto de vida do usuário, tem por efeito medicalizar, psiquiatrizar ou psicologizar problemas
sociais e questões existenciais.
97
No campo da subjetividade, isso tem como resultado transformar as práticas em um ataque direto à toda
produção desejante. Assim, o delírio, enquanto uma produção subjetiva singular, passa a ser combatido na pura
negatividade de sintoma como um mal em si, sendo desconsiderada sua dimensão produtiva de tentativa de
reposicionamento subjetivo (TENÓRIO, 2001).
98
Assim, por exemplo, Nathan (1996, p. 16) afirma que, ao ingerir um medicamento, ingere-se todo um sistema
explicativo, pois o medicamento contém a teoria inteira que presidiu sua formação”. Segundo o autor, para as
sociedades tradicionais, um sintoma nunca se refere a um indivíduo. Ele é um sofrimento, um fardo, seja para um
casal, uma comunidade ou um clã. Uma intervenção individualizante tipicamente ocidental como a
medicamentosa tem o feito de perpetuar a colagem da pessoa ao seu sintoma.
99
Guattari (1992) denomina sobrecodificação o movimento de utilizar instrumentos de determinado tempo-espaço
para pensar os fenômenos de outros territórios existenciais.
74
diferenças, mas apenas como o objetivo político de afirmar a superioridade das normas de
um grupo para conferir inferioridade ao “desvio” de outro (AMARANTE, 1996).
A esse conjunto de racionalidades, do qual tentamos delimitar aqui algumas linhas,
contrapõe-se uma lógica territorial de cuidado. A lógica territorial se traduz em produção de
práticas de respeito ao mundo do usuário e de sintonia ao seu modo de vida. Nessa lógica,
os operadores conceituais de desinstitucionalização e integralidade são essenciais, pois
ambos se articulam e agem no duplo sentido de proteger o usuário da violência da imposição
de lógicas exógenas ao seu modo de vida e de amarrar as práticas a esses modos de vida,
contextualizando as problemáticas na complexidade que lhes são inerentes.
2.5 Saúde como exercício normativo em relação com a dinâmica do território
A ética imanente às praticas de saúde está inexoravelmente ligada à concepção de
saúde com que se opera. No SUS, a saúde passou a ser entendida como um complexo
processo resultante das condições materiais de existência, conforme a definição dada pela
Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080 de 1990). A saúde tem como fatores determinantes e
condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio
ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e aos
serviços essenciais(BRASIL, 2006 p. 10). A partir desse marco legal, baseado no Modelo
da Determinação Social da Doença
100
, o conceito de saúde no SUS está irremediavelmente
ligado à questão da territorialidade e aos modos de organização dos grupos sociais. Essa
concepção também liga saúde à ideia de processualidade, pois os seus determinantes e
condicionantes não são estáticos, mas dinâmicos e mutáveis como são os processos
naturais e sociais. Em Canguilhem (1995), podemos encontrar bases teóricas para pensar a
relação da saúde com o meio, assim como o exercício de práticas de saúde no território de
vida dos usuários que não sejam a simples replicação de lógicas exógenas aos seus modos
de existência.
Um pressuposto implícito de grande importância no campo da saúde é a crença de
que existem normas universais de saúde, estabelecidas definitivamente por uma ciência do
normal, como pondera Canguilhem (1995). Esse pressuposto tem como resultado direto nas
práticas conceber como objetivo do trabalho em saúde a condução dos usuários no retorno à
100
O Modelo da Determinação Social da Doença busca superar o modelo simplista de causa e efeito para
explicar a doença. Entende a doença como um processo que tem como elemento modelador a estrutura social.
Tal abordagem do processo saúde-doença tornou-se referência para a constituição na década de 1970, na
América Latina, de um campo denominado Epidemiologia Social, como um contraponto à Epidemiologia Clínica
tradicional, baseada na noção de causalidade (CARVALHO et al, 1998).
75
boa norma, no retorno a um estado de normalidade. Como resultado político, esse
pressuposto serve para fundamentar a manutenção do ideal de homogeneização do social e
normalização da vida.
Canguilhem (1995) propõe o conceito de normatividade
101
como crítica à noção de
normalidade. A normatividade refere-se a uma característica fundamental da vida de que
todo organismo vivo, em contínua interação com a polaridade dinâmica de seu meio, tem o
poder de se autodeterminar, de construir normas de vida para si. O autor critica as
concepções que consideram a doença uma variação quantitativa do normal e defende uma
concepção fenomenológica e valorativa de doença, baseada na experiência subjetiva da
pessoa em sofrimento. É só o individuo, no plano de sua experiência em relação com seu
meio
102
, que pode definir a linha que diferencia a saúde da doença. Uma média estatística
não pode dizer se um indivíduo é normal ou não, pois uma média não pode ser aplicada a
indivíduos de diferentes contextos, porque as normas se transformam em função das
condições singulares da relação com o meio.
Nessa concepção fenomenológica defendida por Canguilhem (1995), o limite entre o
normal e o patológico seria impreciso se considerados diversos indivíduos simultaneamente,
mas se torna preciso no momento em que se considera o mesmo indivíduo na sucessão de
seus estados, em diversos momentos de sua existência. Aquilo que é normal por ser
normativo em determinadas situações, pode se tornar patológico em outra situação se não
puder se alterar conforme as contingências do meio. O indivíduo sabe que está doente
quando tem um sentimento de vida contrariada, quando se percebe incapaz de realizar os
movimentos que uma nova situação de vida lhe impõe. Um organismo normativo
103
possui
um reservatório de possíveis, não se paralisa diante das flutuações e acidentes do meio,
mantendo uma amplitude de movimentos possíveis. Saúde significa normatividade nas mais
diversas situações de vida, uma margem de tolerância às infidelidades do meio.
Assim, segundo Canguilhem (1995), o estado patológico ou anormal não é
consequência da ausência de norma. A doença é ainda uma norma de vida, mas é uma
norma inferior, na medida em que não tolera nenhum desvio nas condições em que é válida,
por ser incapaz de se transformar em outra norma. O ser vivo doente ficou normalizado em
condições bem definidas e perdeu a capacidade normativa, a capacidade de instituir normas
101
De acordo com Puttini e Júnior (2007), o conceito de normatividade da vida em Canguilhem tem dois
sentidos. É um princípio ontológico inerente à toda a vida na terra, mas também é um princípio epistemológico
utilizado pelo ser humano na compreensão da vida.
102
Ao analisar a noção de meio na história das ciências, Canguilhem (1992) denuncia a origem mecanicista da
noção na física de Newton e propõe cuidar para que essa origem não comande o sentido e, por consequência, o
uso. Para o autor, o meio não é de modo algum estático. Em sua concepção normativa da vida, Canguilhem
considera que todo ser vivo, como eleitor de valores vitais, acaba por produzir um meio próprio, numa relação
dinâmica com o ambiente geográfico. O meio próprio do homem é o mundo de sua percepção e o campo de sua
experiência.
103
Para o autor, a saúde em seu sentido absoluto é a indeterminação inicial da capacidade de instituição de
novas normas biológicas. Cada doença reduz esse potencial, pois gasta o seguro biológico inicial.
76
diferentes em condições diferentes. A doença surge quando o organismo não consegue
transformar suas normas de acordo com as exigências do meio, chegando a reações
catastróficas
104
. A preocupação central de uma existência em sofrimento é escapar da
angústia das reações catastróficas, criando um ambiente mais protegido para si. Esse ser
vivo pode ser considerado doente por precisar de normas bem restritas.
Canguilhem (1995) afirma que a doença é uma nova dimensão da vida, na qual existe
um imperativo de criação, pois o organismo em sofrimento precisa criar novas constantes,
outras normas de vida. Uma ideia fundamental do autor é que a vida não conhece a
reversibilidade dos acontecimentos. A vida não admite restituições, retorno a um estado
anterior, mas admite inovações fisiológicas. A amplitude da redução dessa possibilidade de
inovação dá a medida da gravidade da doença.
A preocupação da existência em sofrimento de evitar situações geradoras de reações
catastróficas exprime uma tendência de conservação. Essa tendência não é uma lei geral da
vida e sim, de uma vida limitada. O ser vivo sadio, antes da conservação, procura realizar a
sua natureza em expansão, enfrentando os riscos que isso comporta. A preocupação central
num ser vivo normativo não é a conservação, mas sim a expansão da vida. Nesse sentido,
segundo Canguilhem (1995), existem duas qualidades de instituição de novas normas.
Primeiro a instituição de novas constantes, nas quais a estabilização não constituirá
obstáculo a uma nova superação. São as constantes normais de valor propulsivo que são
constantes saudáveis pelo seu poder de incrementar a normatividade. Segundo a instituição
de constantes cuja estabilização envolve o fato de que o ser vivo se cristaliza numa situação
de centrar todos os seus esforços na preservação de qualquer perturbação eventual. São
constantes normais de valor repulsivo que têm como efeito a morte da normatividade. Nesse
sentido, podem ser consideradas constantes patológicas.
O conceito de normatividade é uma ferramenta estratégica na construção de práticas
de cuidado que escapem de um viés de normalização da vida e levem em conta a existência
em sofrimento em relação com seu contexto. Pois a normatividade possibilita pensar o
processo saúde-doença e o trabalho na saúde fora de uma lógica de restituição de normas
universais de saúde, situando o cuidado no âmbito de uma prática criativa de incremento do
poder normativo dos usuários para que estes possam sair do estado de estagnação em que
se encontram
105
.
Do mesmo modo, o conceito de normatividade é estratégico na construção de um
cuidado integral, pois escapa das dicotomias ainda presentes nas práticas de saúde, entre o
104
Essa noção de reação catastrófica é importante para pensar o sofrimento como condição de existência. Uma
crise psíquica, uma tentativa de suicídio, uma agressão ou uma grave afecção orgânica podem ser entendidos
como a reação de uma existência que perdeu o poder de normatividade diante das contingências do meio e fez
catástrofe.
105
Tobie Nathan (1996a) entende que a prática clínica é tirar o sujeito de um estado de paralisação e permitir
que ele crie outros modos de existência.
77
que seria a saúde do corpo ou da alma, ou ainda do plano econômico-social. Uma hérnia de
disco, um transtorno depressivo ou uma situação de desemprego são fatores que geram um
sentimento de vida contrariada, restringem o exercício de normatividade, instauram normas
de valor repulsivo e podem levar a uma reação catastrófica. Nos três exemplos, a clínica tem
como função restituir a normatividade e possibilitar a instauração de constantes de valor
propulsivo para que o usuário siga seu movimento de expansão de vida. Merhy (2002)
considera a normatividade, ou a produção de ganhos de autonomia, como o objetivo último
de todas as práticas de saúde
106
.
No plano da subjetividade, a normatividade costuma ser entendida como autonomia
107
ou como exercício de normatividade psíquica
108
. A normatividade no plano das trocas sociais
é denominada por Tikanori (2001) como exercício de contratualidade. Esse autor considera
Reabilitação Psicossocial o processo pelo qual se trabalha pelo incremento do poder
contratual do usuário para que este possa ter participação no âmbito das trocas sociais.
Produzir autonomia é entendido pelo autor como uma questão de produção de valor. Pois,
quando um usuário é afastado do espaço social e é isolado num manicômio lugar da troca
zero –, ele é excluído do âmbito das trocas sociais.
O usuário num manicômio é impedido de participar do espaço das trocas sociais,
porque ele é triplamente negativizado: na materialidade de seus bens que é impedido de
gerir ou possuir, e na imaterialidade de suas palavras e afetos porque suas palavras são
tomadas como irracionais e seus afetos desnaturados. Abolir as instituições manicomiais não
garante o ingresso no plano das trocas sociais. É preciso criar estratégias para aumentar o
valor simbólico atribuído aos usuários para as trocas sociais, sua capacidade normativa de
acordo com as diversas situações de vida que enfrente. Nesse sentido, o autor entende
produzir autonomia como depender do maior número possível de pessoas, o que amplia a
possibilidade de responder normativamente às infidelidades do meio do que seria a
estagnação de depender excessivamente de poucas relações sociais.
Uma ética territorial de cuidado impõe às práticas de saúde, no contexto de vida dos
usuários, um objetivo diferente da restituição de normas perdidas, pois a vida não conhece a
reversibilidade de seus acontecimentos ou a diminuição da distância dos usuários de normas
ideais de saúde. A ética territorial impõe às práticas de cuidado o objetivo de acompanhar o
usuário em sua singularidade, no processo de criação de novas normas que tenham valor
106
Segundo Machado et al (2005), a expressão modos de andar na vida”, muito usada nos textos teóricos de
Saúde Coletiva e que se refere à preocupação em preservar ou possibilitar a autonomia do usuário e o respeito
pelas suas singularidades, foi tomada da obra de Canguilhem, do conceito de normatividade.
107
Eirado e Passos (2004) pensam a autonomia a partir do conceito de autopoiese proposto por Maturana e
Varela. Porque o estabelecimento de normas de um organismo para si mesmo é um ato criador e as normas
criadas passam a fazer parte do modus vivendi do organismo, não o determinando por constrangimento, mas se
constituindo como um novo território onde pode desenvolver suas potencialidades.
108
Normatividade psíquica” é um termo que alguns autores da reforma psiquiátrica utilizam para definir
autonomia. Assim, por exemplo, foi usado nesses termos por Benilton Bezerra Junior no simpósio internacional
“O futuro da autonomia: Uma sociedade de indivíduos?”, ocorrido em maio de 2007.
78
propulsivo, inventando estratégias que permitam que a vida não interrompa seu movimento
de expansão.
2.6 A busca ativa como princípio político da lógica territorial
Uma postura importante da Saúde Coletiva é considerar as práticas de saúde não
como práticas médicas ou psiquiátricas, mas práticas sociais (MATTOS, R, 2001) e, portanto,
políticas. Um deslocamento imprescindível para a materialização dos princípios do SUS é
retirar, segundo a expressão de Guattari (1990), o avental branco da neutralidade técnica e
ingressar no movimento de uma ação política.
No âmbito do SUS, podemos ver a transformação de um princípio estritamente
técnico se tornar princípio político e o concomitante abandono da neutralidade na noção de
busca ativa. Trabalhar na lógica da busca ativa é uma das expectativas que se tem sobre a
prática dos trabalhadores itinerantes e é bastante mencionada na legislação e nos textos
técnicos de saúde, além de ser considerada uma atribuição de todos os profissionais da ESF
na Política Nacional de Atenção Básica (BRASIL, 2007). O sentido mais comum atribuído à
“busca ativa”, muito usado nas ações de Vigilância Sanitária, de Vigilância Epidemiológica e
de Saúde do Trabalhador, é ir à procura de indivíduos com o fim de uma “identificação
sintomática”, principalmente das doenças e agravos de notificação compulsória (BRASIL,
2001).
Por mais importante que possa ser a busca ativa como identificação sintomática em
diversos contextos do SUS, o que diferenciaria as práticas itinerantes de hoje, das práticas
de saúde higienistas da Primeira República, se as primeiras operassem apenas com esse
sentido estrito do conceito de busca ativa? Além, é claro, do avanço na compreensão
científica de muitos agravos e das formas de tratamento. Operando estritamente nesse
sentido, as práticas permanecem coladas ao que Tenório (2001) chamou de modelo
sintomatológico. Os operadores conceituais de desinstitucionalização e integralidade
requerem uma torção no conceito de busca ativa, uma subversão do seu uso. O que de fato
parece ocorrer.
Busca ativa também passou a ser entendida como um movimento de ir à
contracorrente do automatismo da demanda espontânea, no sentido de cartografar as
necessidades de saúde para além dos agravos de notificação compulsória de determinado
território. Esse sentido tamm pode ser encontrado na Política Nacional de Atenção Básica,
com o termo postura pró-ativa frente aos problemas de saúde-doença da população”
(BRASIL, 2007, p. 22). E esse também foi o sentido que os redutores de danos conferiram ao
79
termo com suas práticas, tomando ele do modelo sintomatológico e subvertendo seu sentido
para o uso político de manter uma postura ativa para acessar o mundo dos usuários e suas
necessidades. A torção de sentido provocou o deslocamento de um mero identificar um
quadro sintomatológico para o movimento de acessar o território do usuário, estabelecer
vínculo terapêutico e se integrar ao seu meio cultural
109
. Em Ayres (2004, p. 9), podemos
encontrar uma expressão que foge completamente do modelo sintomatológico: busca ativa
de projetos de felicidade”.
O princípio de busca ativa é talvez a característica mais marcante das práticas
itinerantes, presente desde o sanitarismo campanhista, seja na busca de lugares insalubres
de emanação de miasmas, de vetores ou de indivíduos contaminados, sempre na luta contra
as doenças contagiosas. Com o conjunto de transformações propostas pelos movimentos de
Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica, a itinerância passou a ter outra função política
diferente da identificação de riscos de contágio e de quadros sintomáticos, deslocando a
busca ativa do modelo sintomatológico que caracteriza a medicina flexneriana e a psiquiatria.
A busca ativa torna-se uma postura política de trabalho sob a bandeira da integralidade do
cuidado, que pressupõe atender às necessidades de saúde para além da demanda
espontânea. A busca ativa de quadros sintomáticos é, sem dúvida, uma ação importante em
diversas frentes no âmbito do SUS, mas o problema é que o modelo sintomatológico tende a
se impor a todo o momento e capturar o sentido da busca ativa, tornando inócuo o seu
potencial de ação política no mesmo momento em que se converte em pura estratégia de
controle das populações.
A atividade está no cerne da experiência dos trabalhadores itinerantes. Mas do que se
trata essa atividade? A compreensão da busca ativa como uma postura política pode ser
pensada a partir das considerações que Hannah Arendt (2005) faz sobre o princípio da vita
activa como condição inerente da existência humana. Por vita activa
110
a autora entende três
dimensões da existência que são: o labor, que se refere aos processos biológicos do corpo
humano, sendo que a condição humana do labor é a própria vida; o trabalho, que se refere
ao mundo artificial produzido pelo homem e cuja condição humana é o que a autora
denominou mundanidade; e, por último, a ação. Esta a “única atividade que se exerce
diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, correspondente à
condição humana da pluralidade” (ARENDT, 2005, p. 15).
Segundo Arendt (2005), todas as condições da existência humana, a vida, a
mundanidade e a pluralidade, têm relações com a política. Mas a pluralidade é a condição
109
Esse sentido pode ser encontrado na Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de
Álcool e outras Drogas de 2004 com o termo procura ativa (BRASIL, 2004c) e na descrição que Nardi e Rigoni
(2005) fazem das práticas dos redutores de danos.
110
A autora conta que vita activa na tradição ocidental é considerado hierarquicamente inferior à vita
contemplativa, porque enquanto a primeira se ocupa das coisas mundanas, a segunda se ocupa da experiência
do eterno.
80
por excelência de toda a vida política porque os homens vivem num mundo habitado por
outros homens
111
e onde, apesar de todos serem humanos, são diferentes em seus modos
de ser.
A ação seria um luxo desnecessário, uma caprichosa interferência com as
leis gerais do comportamento, se os homens não passassem de repetições
interminavelmente reproduzíveis do mesmo modelo, todas dotadas da
mesma natureza e essência. (ARENDT, 2005, p. 16).
Esse entendimento da ação como atividade política inerente à condição da existência
humana é um caminho para deslocar o movimento produzido pelos trabalhadores itinerantes
para além do plano estritamente espacial. Nisso reside a possibilidade de situar suas práticas
em outro plano, no plano político, que Arendt (2005) chama de esfera pública e que é o
espaço do agir político, no interstício que há entre os sujeitos da ação política.
Mas, segundo Ortega (2000), esse agir de que fala Hannah Arendt não é executar um
comportamento como uma peça de engrenagem de um imenso aparelho burocrático. É um
agir que não tem a ver com replicação, mas com criação. Do mesmo modo, o espaço público
de que fala a autora não é um espaço homogêneo, preso ao Estado, mas um espaço político
que se apresenta com uma multiplicidade de aspectos e que não precisa de um suporte
institucional para existir. Há muita possibilidade de ação e muitos espaços podem ser
criados, só é necessário que os sujeitos se articulem por meio do discurso e da ação,
começando de algum modo a agir, criar e experimentar. Nesse sentido, os movimentos de
Reforma Psiquiátrica e Sanitária forjaram um discurso que agrega atores políticos, que não
depende exclusivamente do abrigo de uma instituição para agir.
A política é entendida por Arendt como um agir em liberdade e o exercício político
como uma atividade de criação, o desenvolvimento de novas formas de amor mundi, o
afrontamento do instituído e a experimentação de novas formas de sociabilidade: o que move
a política é “uma vontade de agir, de transgredir e superar os limites” (ORTEGA, 2000, p. 24).
Segundo Arendt (2005), a expressão vita activa sempre teve a conotação negativa no
ocidente de “inquietude”, dentro de uma tendência apontada por Rolnik (2006, p. 20) que
valoriza a quietude e recusa as turbulências da vida em sua natureza de perpétuo processo
criativo, assim como menospreza a fragilidade desses processos. Assim, a inquietude, como
resultado da ação de forças que produzem incômodos que nos implicam, tem um valor
político muito importante, o de propulsão, o de uma força motriz que faz agir, que nos tira de
111
A autora lembra das expressões latinas “inter homines esse (estar entre homens), para designar viver, e
“inter homines esse desinere” (deixar de estar entre homens), para designar morrer entre os romanos, um povo
altamente político.
81
nossa inércia sedentária, põe-nos em movimento e nos acopla às “várias formas de
engajamento nas coisas deste mundo” (ARENDT, 2005, P. 26).
Essas inquietações que os negócios do mundo nos produzem têm ressonância com
o conceito de implicação de Lourau (1993). A implicação fala da relação que se estabelece
entre o sujeito e as coisas do mundo, em que não existem mais dois pólos estáveis de sujeito
e do objeto mundano, mas uma conexão que desestabiliza os pólos da relação num
movimento de mútua transformação. Essa transformação que ocorre, seja por atração seja
por propagação, dá-se quando nas práticas, os encontros fortuitos ou os pequenos
acontecimentos, funcionam como partículas atratoras, produzindo perturbações ou desvios
(KASTRUP, 2007b). Gabriel Tarde (2007) alegou que só podemos conhecer do mundo aquilo
que com ele temos em comum.
Segundo Ortega (2000), a ação política, tal como a define Arendt, tem a propriedade
de produzir subjetividade, pois é no espaço intersubjetivo da esfera pública que os sujeitos se
constituem. A pluralidade é a condição humana de possibilidade para a ação e é por meio
desta e do discurso que os homens se distinguem em suas diferenças. Mas não se trata de
uma visão essencialista da subjetividade, em que ação e discurso seriam modos de
expressar, modos de revelar o sujeito imutável por trás das ações. Não se trata de uma
revelação, mas de uma produção. O sujeito constitui-se de modo coextensivo às suas ações.
Ortega (2000) afirma que agir politicamente é arriscar, porque requer coragem para a
experimentação e para iniciar um processo que é irreversível e imprevisível. é possível
agir ... se sairmos da esfera da segurança e confrontarmos o novo, o aberto, o contingente,
se aceitarmos o encontro e o convívio com novos indivíduos, o desafio do outro, do estranho
e desconhecido, [...] como forma de [...] recriar o amor mundi” (ORTEGA, 2000, p. 32).
Nesse sentido, de acordo com Ortega (2000), o agir político tem uma dimensão de
acontecimento. É preciso lembrar que Arendt distingue a fabricação da ação. Fabricar é agir
baseado em cálculos de controle dos resultados, supostamente previsíveis a partir das
ações. Um exemplo de fabricação na área da saúde são as rotineiras intervenções
unilineares do modelo sintomatológico, de diagnóstico, prescrição e prognóstico com o
objetivo definido de esbatimento de determinado quadro sintomático. O agir político, ao
contrário, é a irrupção de algo novo, é um acontecimento que quebra o automatismo de
repetição da rotina burocrática do mundo do trabalho iniciando um processo com desenlace
desconhecido. O acontecimento é uma interrupção na mecânica das repetições e a
introdução do acaso e da diferença. Mas não introduz a novidade de modo caótico: é um fértil
acoplamento entre a consistência do conhecido e a fragilidade criativa do novo.
O agir humano é o nascimento do sujeito político. Arendt (2005) utiliza a palavra
milagre para se referir ao poder do acontecimento de interromper processos naturalizados e
considera que a capacidade de produzir milagres e transgredir limites é inerente ao agir
82
humano. Mas, segundo Ortega (2000), contra esse potencial do agir e do pensar humano,
ergueu-se toda a tradição filosófica ocidental com a intenção de acabar com o imprevisível,
de domesticar o novo e o desconhecido, estabilizando os assuntos humanos pela criação do
que o autor chama de ordem antipolítica.
Ortega (2000) disse que Arendt não tinha a intenção de prescrever como uma norma
universal o uso do agir político. Ao invés disso, o que Arendt fez foi, através de um apelo
retórico, demonstrar como é prazenteiro esse envolvimento nos negócios do mundo e a
alegria que acompanha as experimentações e o gozo que produz estar implicado nessa
condição fundamental da existência humana que é a ação política.
Isso é muito interessante, pois permite pensar o agir político nas práticas itinerantes,
não como mais uma prescrição moral sobre os trabalhadores, mas como um convite para
uma nova relação com o trabalho, baseada no prazer da experiência e da ão, na
responsabilidade e no amor para com os negócios do mundo. E também a uma nova relação
com os usuários, que passam a ser coatores políticos.
Por mais que o deslocamento das práticas de saúde para o território de vida dos
usuários corra o risco de instaurar mecanismos de controle a céu aberto, se tomarmos o
exemplo das políticas de Saúde Mental, é inegável que existe um ganho político, porque o
manicômio é um lugar em que se estabelece um estado de dominação. Segundo Foucault
(2006), a dominação ocorre quando as relações de poder se imobilizam e fica bloqueada
qualquer possibilidade de reversão do movimento. Nesse sentido, é possível pensar que a
Reforma Psiquiátrica, ao abolir o manicômio, destitui estados de dominação e instaura um
novo campo de possibilidades para as relações de poder. Quando as relações de poder se
colocam novamente em movimento, a luta se contextualiza em termos do exercício de
práticas de liberdade.
As ações de saúde deslocam-se para o território dos usuários e o território é um
espaço político por excelência. Segundo Foucault (2006, p. 277), “se relações de poder
em todo campo social é por que liberdade por todo lado”. Embora as políticas de saúde
também expressem o exercício do biopoder, o fato é que no território as coisas se tornam
mais complexas. Se as estratégias de controle tornam-se sutis e voláteis, é preciso lembrar
também que se ampliam as possibilidades de resistência dos usuários, suas estratégias para
quebrar cristalizações e bloqueios nas relações de poder. O fato é que os usuários são
atores políticos que, pela situação de saúde ou por determinadas vulnerabilidades, podem
estar jogando com bastante desvantagem os jogos de poder. Pensando desse modo, o
trabalho em saúde seria o de cultivar o que Foucault (2006) chama de práticas de
liberdade
112
e, para isso, é preciso fortalecer os atores que estão em desvantagem, seja
112
As práticas de liberdade, para Foucault (2006), consistem na ação de praticar a liberdade com ética, enquanto
a ética é a forma refletida de liberdade. Nardi e Silva (2005) entendem a ética como o exercício de
83
cuidando de uma afecção no corpo, seja ajudando a adquirir um direito social ou permitindo a
saída de uma relação afetiva de sujeição, mantendo móveis as relações de poder.
Por prática de liberdade no contexto do cuidado é possível entender tanto o agir
político dos trabalhadores como a situação desejada de potencializar o usuário como agente
político no seu modo de andar na vida, ou seja, ampliar o grau de liberdade com que vive a
sua existência. Desse modo, o cuidado também pode ser entendido como um plano que
constitui trabalhadores e usuários como sujeitos éticos e políticos de suas ações. Pensar o
trabalho desse modo é fazer do território das práticas um plano no qual os diversos atores
possam, por meio de seus discursos e de suas ações, estilizar a existência
113
na presença de
outros atores políticos (FOUCAULT, 2006, ORTEGA, 2000).
Assim, de modo indissociável à política e à ética, soma-se o plano de uma estética
do cuidado. Esse plano se refere a duas linhas. A primeira é, no sentido de uma estética da
existência, criar nas práticas a possibilidade de estilizar a existência como forma de
singularização frente a normas sociais vigentes e às políticas de subjetivação serializantes
(FOUCAULT, 2006, GUATTARI; ROLNIK, 1986). A segunda é no sentido de conceber o
cuidado como invenção de vida ou de criação das condições de possibilidade para a
existência, como defendem os teóricos da desinstitucionalização (ROTELLI et al, 1992). As
duas linhas estão ligadas ao que Guattari (1992, p. 130) denomina “potência estética do
sentir”. Concebendo as práticas de cuidado sobre o prisma do paradigma estético proposto
pelo autor, política, ética e estética são três planos indissociáveis. Política como movimento
do corpo na ão em liberdade; a ética como movimento do pensamento na crítica aos
modos de existência; e a estética como movimento de ampliação da percepção. Três
componentes importantes na construção de um cuidado territorialmente contextualizado.
problematização dos modos de existência, problematização das formas como o sujeito se constitui na relação
consigo e na relação com o mundo.
113
No sentido de Foucault (2006), de criar uma estética de existência, conforme “A ética do cuidado de si como
prática de liberdade”.
84
3: O TERRITÓRIO COMO CAMPO INTENSIVO DAS PRÁTICAS DE CUIDADO
3.1 O problema da percepção do movimento
Para falar sobre a itinerância, precisamos primeiro pensar sobre o problema da
percepção do movimento. Bergson (2006) considera um erro confundir o movimento com
aquilo que se percebe estritamente no extenso percorrido. Um trabalhador da saúde sai da
UBS, o ponto A, e vai até a casa de um usuário, ponto B. Do ponto A ao B podemos dizer
que o trabalhador percorreu dez quadras, contando cada esquina que ele atravessou.
Segundo o autor, com esse cálculo não estamos apreendendo a natureza do movimento,
estamos apenas medindo o espaço percorrido por um móvel, as suas paradas ou as
passagens por pontos estáticos. Ou seja, nós estamos confundindo o movimento com um
plano estático. “Como poderia o movimento aplicar-se sobre o espaço que percorre?”,
pergunta o autor (BERGSON, 2006, p. 164).
É que, para Bergson (2006, p. 165), “o movimento é a própria realidade” e o que
percebemos como estático é um efeito semelhante ao que ocorre quando, em duas linhas
paralelas de trem, um passageiro de uma linha tem a impressão de ver um passageiro da
outra linha parado atrás de sua janela, enquanto ambos estão em movimento. Desse modo,
perceber um objeto como imóvel é uma questão de ajuste de velocidades e direções dos
móveis. O autor considera que pelas necessidades práticas dos automatismos do cotidiano é
apenas a percepção da imobilidade que guardamos e dela fazemos um absoluto.
Segundo o autor, num deslocamento, não é o movimento que nossa percepção e
atenção costumam apreender, “são as próprias posições, aquela que o móvel deixou, aquela
que ele assumirá, aquela que ele assumiria caso parasse no meio do caminho” (BERGSON,
2006, p. 165), porque precisamos da imobilidade para tentar compreender o movimento.
Nossa percepção, presa à condição de mero auxiliar do replicar mecânico das ões
cotidianas, é constantemente recortada pelas necessidades da vida prática.
Antecipadamente classifica e etiqueta os objetos percebidos: “mal olhamos o objeto, basta-
nos saber a que categoria pertence” (BERGSON, 2006, p. 158). É pelas margens do rio que
pensamos compreender seu fluxo. Nesse sentido, para o autor, o papel do pensamento é
ampliar a percepção do real por meio de um deslocamento da atenção e “romper com certos
hábitos de pensar e de perceber que se nos tornaram naturais” (BERGSON, 2006, p. 163).
Segundo o autor, “diante do espetáculo dessa mobilidade universal, alguns dentre nós
serão tomados de vertigem. Estão habituados à terra firme; não conseguem se acostumar ao
jogo e ao balanço do mar. Precisam de pontos ‘fixos’ aos quais fixar a vida e a existência”
85
(BERGSON, 2006, p. 173) e afirma que é necessário se tranquilizar, pois se olharmos o
movimento e a mudança sem nenhum “véu interposto”, iremos perceber que o movimento é
constitutivo da realidade e o que pode haver de mais sólido, substancial e durável.
Bergson (2006) afirma que todo movimento é indivisível, não pode ser reduzido ou
decomposto segundo a trajetória que desenhou. O fato de podermos tomar o espaço e dividi-
lo metricamente, como a um tabuleiro de xadrez, não significa que possamos fazer isso com
o movimento. Mesmo que uma caminhada, por exemplo, seja uma série de atos indivisíveis,
(um passo depois do outro), não é possível decompor a caminhada segundo os critérios de
uma outra lei, como a do espaço percorrido, em que podemos reter as posições assumidas,
mas não as transposições. Do mesmo modo, o movimento não implica a existência de um
móvel, não precisa do suporte de coisas que se movam, mesmo porque, segundo o autor,
não existe um objeto inerte ao qual o movimento possa vir a se somar. Bergson (2006, p.
171) indaga: “O que é o móvel ao qual o nosso olho vincula o movimento como que a um
veículo? Simplesmente uma mancha colorida, que sabemos bem que se reduz, em si
mesma, a uma série de oscilações extremamente rápidas”. Porque o real é a própria
mobilidade, num devir universal.
Se agora passamos a considerar a aparente imobilidade de um atendimento sentado
em uma cadeira ou sobre um leito, um arranjo efêmero entre diversas mobilidades, mera
questão de ajuste entre velocidades e trajetórias, é preciso pensar: numa prática itinerante,
qual a amplitude do leque em termos de qualidades de movimentos que está em causa?
Podemos concluir que o movimento no plano espacial perde sua importância diante do fluxo
torrencial da realidade. Supomos, a partir daqui, que o movimento no plano espacial guarda
uma importância relativa em dois aspectos: como valor descritivo e como fator de exposição.
Valor descritivo porque transforma o corpo num móvel facilmente identificado por nossa
percepção habitual. Fator de exposição porque ao se deslocar, os trabalhadores se expõem
tanto à complexidade movente de um território como aos acidentes e imprevistos dos
itinerários. Perceber o devir universal é perceber que não se está em movimento sobre um
território estático, mas que os percursos se desenham num território vivo e complexo, um
campo movente de intensidades.
3.2 A complexidade movente do território
A restituição de uma existência em sofrimento à complexidade que lhe é inerente,
como nos processos de desinstitucionalização, assim como a contextualização das práticas à
complexidade do território de existência dos usuários na produção de um cuidado integral,
86
requerem ferramentas para pensar e agir na complexidade. Julgamos que o conceito de
rizoma é um modo possível de pensar a multiplicidade movente do território.
O rizoma é proposto por Deleuze e Guattari (1995) como antídoto ao secular modelo
da árvore, tão enraizada no pensamento ocidental. O pensamento arborescente é o
pensamento binário, das hierarquias e das dicotomias. É o pensamento que busca uma
origem, uma centralidade, uma causa ancestral como chave explicativa de todos os
processos da existência. O rizoma, ao contrário, não tem início nem fim. Não possui um
ponto de origem ou princípio centralizador. O ponto de partida é sempre o meio, a partir do
qual o rizoma cresce e transborda, constituindo multiplicidades. Os autores descrevem
alguns princípios de seu funcionamento.
O primeiro e segundo princípios são conexão e heterogeneidade. O rizoma conecta
um ponto a qualquer outro ponto e cada um de seus traços não remete necessariamente a
traços de mesma natureza: um rizoma conecta regimes de signos diversos, incluindo regimes
de elementos assignificantes, ao contrário da árvore que fixa uma ordem estrutural. Num
rizoma “... cadeias semióticas de toda natureza estão conectadas a modos de codificação
muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas etc., colocando em jogo não
somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 15). Nesse sentido, não há uma separação entre os
agenciamentos coletivos de enunciação e os agenciamentos maquínicos, pois o rizoma
conecta as cadeias semióticas com as maquinarias sociais, as organizações de poder e os
movimentos sociais.
O terceiro princípio é o da multiplicidade. Ela é rizomática e não possui nem sujeito
nem objeto, nem uma unidade centralizadora, mas determinações, grandezas e dimensões.
Na medida em que uma dimensão vai crescendo numa multiplicidade, ela muda sua
natureza, pois as possibilidades de combinação também crescem. Se numa estrutura
arbórea existem pontos ou posições, num rizoma só existem linhas. Um rizoma não é
passível de sobrecodificação, que reduza a multiplicidade a algum tipo de unidade fora da
dimensão das linhas que o constituem. As multiplicidades formam um plano de consistência
de dimensões crescentes, segundo o número de linhas que se agenciam nele (DELEUZE;
GUATTARI, 1995).
O quarto princípio é o de ruptura assignificante. Em contraposição aos cortes
significantes que separam as estruturas, um rizoma pode ser rompido em qualquer parte e
ser retomado em qualquer outra linha. O rizoma compreende linhas de segmentaridade nas
quais ele é territorializado, organizado e significado, mas contém também linhas de
desterritorialização pelas quais foge sem parar. ruptura cada vez que as linhas
significantes eclodem em uma linha de fuga. Mas essa linha de fuga é parte integrante do
rizoma. Deleuze e Guattari (1995) usam como exemplo de conexão transversal entre linhas
87
diferentes a evolução aparalela entre a vespa e a orquídea. A orquídea cria uma imagem de
vespa e atrai esta, que passa a funcionar como uma peça de seu aparelho de reprodução,
transportando seu pólen até outras orquídeas. Duas séries heterogêneas, uma série vegetal
e outra série animal, uma linha rompe de uma das séries num movimento de
desterritorialização e se reterritorializa em outra série num agenciamento criativo.
O último princípio é o de cartografia. Ela opõe-se ao decalque que é inerente ao
pensamento arborescente, com suas noções de um eixo genético ou de uma estrutura
profunda, que reproduzem cristalização de codificações e decalques reproduzíveis ao
infinito. Decalcar é reproduzir as cristalizações, a partir de uma estrutura que sobrecodifica:
“A árvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques são como folhas da árvore”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 21). O decalque estabiliza e neutraliza as multiplicidades
introduzindo e propagando as redundâncias e retratando apenas os pontos de estruturação
e bloqueio. O rizoma, ao contrário, traça uma cartografia, desenha uma mapa móvel que
contribui para a conexão entre os campos. Desse modo, no exemplo da vespa e da
orquídea, não se trata de a orquídea ter feito um decalque da vespa, mas sim que as duas
desenham uma cartografia própria na multiplicidade de um rizoma.
A principal característica de uma cartografia é que ela se volta para um campo
experimentação no real. Pode ser desenhada como uma obra de arte ou como uma ação
política. Antigamente não existiam satélites para compor os mapas e os geógrafos ou
navegadores realizavam suas cartografias no movimento de suas expedições, percorrendo
litorais, penetrando rios, atravessando vales e florestas, serpenteando as montanhas. O
desenho do mapa ia se compondo e mudando conforme os deslocamentos de um ponto a
outro e os acidentes geográficos encontrados no percurso.
O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável,
reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode
ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser
preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 22).
Um mapa tem múltiplas entradas enquanto o decalque retorna sempre ao mesmo
ponto e, como diz Rolnik (2006, p. 65), numa cartografia, “todas as entradas são boas,
desde que as saídas sejam múltiplas”. Segundo Deleuze e Guattari (1995), como um
princípio de método, é preciso remeter sempre os decalques à complexidade de um rizoma,
e não o contrário. Porque o decalque da árvore e o mapa do rizoma coexistem e não se
trata de um dualismo maniqueísta. Os rizomas cruzam suas linhas com as raízes das
árvores e se confundem com elas. “Existem nós de arborescências nos rizomas, empuxos
88
rizomáticos nas raízes” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 31). Pois, assim como as
multiplicidades se enraízem em totalizações e as linhas de fuga terminam por reproduzir
aquilo que desmancham, qualquer elemento de uma árvore pode iniciar a produção de um
novo rizoma: “no coração de uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um galho” (p.
24).
Esse ponto é importante para pensar o trabalho nos territórios existenciais. Ter como
princípio de método remeter os decalques ao rizoma, é tentar perceber quais linhas
persistem nas territorialidades endurecidas e nas existências estagnadas, mesmo
subterrâneas, continuando a fazer obscuramente rizoma” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.
24). É usar o mapa para colocar os impasses em perspectiva e poder visualizar as rotas de
fuga, perceber que operações transformadoras são possíveis, que raiz estratificada se pode
romper, que novas conexões se pode fazer, que agenciamento entre fluxos semióticos,
materiais e sociais é possível. Nesse ponto, Zourabichvili (2004) faz um alerta de prudência.
O rizoma é tão generoso quanto é cruelmente seletivo. Porque, por mais improváveis que
possam ser as conexões entre linhas de natureza tão diversa, o rizoma se amplia onde
determinados efeitos têm lugar. Não é qualquer conexão que é produtiva.
Nesse sentido, no trabalho no campo da saúde, tão repleto de estruturas arbóreas em
suas teorias e práticas, trata-se de estrategicamente adotar uma postura rizomórfica: “Ser
rizomorfo é produzir hastes e filamentos que parecem raízes, ou melhor ainda, que se
conectam com elas penetrando no tronco, podendo fazê-las servir a novos e estranhos usos”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 24). É poder agir entre os galhos molares estabelecidos
pelas políticas públicas de saúde, como os programas verticais da ESF, de modo a explorar
a molecularidade desses interstícios e o potencial de conexão de suas linhas rizomáticas.
A cartografia é uma estratégia do pensamento e da percepção para o movimento
nesses territórios que não são extensos estáticos, mas platôs
114
zonas de intensidade
contínua compostos por uma multiplicidade que se conecta por linhas a outros platôs,
formando um rizoma.
3.3 Princípios de cartografia para uma práxis territorial
A cartografia tem sido utilizada como estratégia de estudo no âmbito da subjetividade,
no qual tem se destacado seu potencial como intervenção de campo nas práticas sociais
114
A noção de platô é tomada de Gregory Bateson e é entendida por Deleuze e Guattari (1995, p. 33) como
“uma região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se desenvolve evitando toda orientação
sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior”.
89
(KASTRUP, 2007b, 2007c). Rolnik (2006) afirma que os relevos formados pelas paisagens
psicossociais também podem ser cartografados. Deleuze e Guattari afirmaram que uma
cartografia pode ser traçada como ação política (1995)
115
.
Assim entendemos que alguns elementos ligados ao uso da cartografia como
estratégia de produção de conhecimento podem ser de inestimável valor para as
intervenções nas práticas de cuidado no território. Pois, como afirma Kastrup (2007b), a
cartografia é sempre de um território existencial, que não é possível dissociar a
subjetividade de suas conexões com o mundo, sua rede processual de produção. Por isso, a
cartografia não é uma estratégia histórica, mas geográfica e transversal. Segundo a autora, a
preferência pela geografia está no entendimento que a processualidade ocorre de um
agenciamento de vetores, forças e linhas que atuam simultaneamente, sempre em
movimento. Desse modo, configuram um rizoma, que é o campo intensivo no qual a
subjetividade se produz numa relação criativa.
Dos elementos da cartografia destacamos como importantes instrumentos para uma
práxis no território o critério estético, o princípio ético, a modulação da percepção e o
funcionamento da atenção na inserção do cartógrafo em campo.
Rolnik (2006) diferencia a cartografia da representação de um todo estático. A
cartografia é um traçado que acompanha os movimentos de transformação na paisagem. A
autora considera tarefa primordial do cartógrafo dar voz às afecções que pedem passagem
e, para isso, é necessário que esteja mergulhado nas intensidades do tempo-espaço que
percorre, sempre atento às diversas linguagens que possam servir de matéria-prima para o
traçado de uma cartografia que coloque em perspectiva os problemas de determinado
território existencial.
Segundo Rolnik (2006), a cartografia ocupa-se das estratégias do desejo no campo
social como são os movimentos sociais, as transformações nos modos de sensibilidade e
as manifestações, como a violência e os quadros clínicos. Para esse fim, o cartógrafo faz
uso de matérias de qualquer frequência, linguagem ou estilo, tudo o que servir de matéria
para produção de sentido. Seu critério estético é decidir que matérias de expressão podem
formar composições que tornem possível dar expressão às intensidades que pedem
passagem e que podem criar ou ampliar territórios existenciais.
A esse critério estético, a autora acrescenta um princípio ético: o que interessa ao
cartógrafo “... nas situações com as quais lida é o quanto a vida está encontrando canais de
efetuação” (ROLNIK, 2006, p. 68). A ética do cartógrafo é sustentar o movimento de
expansão da vida. Essa ética do cartógrafo se acopla à concepção de saúde em
Canguilhem e a todas as práticas de saúde que operam sob a consigna “em defesa da
115
Lancetti (2006b), ao falar sobre a clínica peripatética, afirmou que os conceitos de cartografia, assim como o
de agenciamento, têm uma riqueza muito grande a ser explorada pelas práticas clínicas.
90
vida”
116
. Em relação à política, Rolnik (2006) afirma que a cartografia ocorre no plano da
micropolítica por incidir na dimensão das políticas de subjetivação e na ampliação do
alcance do desejo como produtor de constelações existenciais.
Kastrup (2007c) afirma que a cartografia tem um caráter político de intervenção,
porque ao fazer o mapa de um campo de forças, o cartógrafo é conduzido pelo desejo de
produzir inflexões no estado de coisas. Quando são detectadas e evidenciadas certas linhas
que se encontram presas, bloqueando o movimento, ou linhas que se encontram soltas,
pedindo um novo agenciamento para tornar mais consistente os territórios existenciais, ao
trabalhar sobre essas linhas, o cartógrafo incide nos processos de produção de
subjetividade. Liberando os fluxos, produzindo novas conexões e desta forma atualizando
virtualidades. Outra ideia política fundamental da cartografia é que não se compõem mapas
sobre determinados grupos e seus territórios, mas é com esses grupos que se desenha um
traçado do plano coletivo de forças que formam seus territórios existenciais.
Segundo Rolnik (2006), o que define a prática de um cartógrafo é o exercício de sua
sensibilidade. Pois, para cartografar territórios existenciais e atingir suas intensidades, ele
precisa fazer um uso especial de sua percepção. Ele precisa entrar em um estado intensivo,
no qual pode afetar e ser afetado pela dinâmica das ondas e vibrações das intensidades que
se produzem num território. Segundo a autora, acessar esse estado intensivo é fazer do
corpo um corpo vibrátil.
Para atingir o plano intensivo, o cartógrafo não deve temer movimentações. “Deixa
seu corpo vibrar todas as frequências possíveis e fica inventando posições a partir das quais
essas vibrações encontrem sons, canais de passagem, carona para a existencialização
(ROLNIK, 2006, p. 66, [grifos da autora]). O corpo vibrátil precisa produzir um olhar híbrido,
um composto formado por um olho molar e outro molecular para poder perceber a tensão
criativa que se produz no ritmo das estabilizações e desestabilizações, entre as formas
constituídas e os fluxos que lhe constituem, entre os nós da árvore e as linhas do rizoma.
Para Kastrup (2007a, 2007b), o cultivo da atitude atencional pode tornar o cartógrafo
apto a acessar o plano das intensidades. Deleuze (2009) fala que a postura de um animal
territorial é um constante “estar à espreita”. Um animal territorial está sempre à espreita da
emergência de algum signo que evidencie um acontecimento e exija o disparo de alguma
operação. Do mesmo modo, segundo Kastrup (2007c), o cartógrafo, ao se imiscuir em
determinado território existencial, parte antes de tudo em busca de signos, portanto deve
manter essa atitude à espreita. Os territórios existenciais são compostos por regimes de
signos, cada um com sua lógica e sua semiótica. Os cruzamentos dos regimes de signos
ajudam a entender a configuração de um território. A autora usa como exemplo alguns
116
A autora afirma que, nessa defesa radical da vida, o cartógrafo deve saber ser cruel quando percebe que
reatividade das forças começa a agir na destruição de si e do outro.
91
regimes que, de algum modo, estão sempre presentes nas práticas de saúde: signos
religiosos, familiares, de violência e sexuais.
O mapa é o desenho de um campo problemático composto pelos signos. Como são
eles que demarcam os limites de um território, é por meio deles que seus limites podem ser
ampliados. Eles são ao mesmo tempo os limites e os possíveis pontos de abertura do
território. Os signos são frutos de um encontro, são pontos de intensidade que afetam e
forçam a pensar
117
. Eles são índice de uma urgência que emerge no território, seja a
existência de um nó a ser desatado seja uma linha solta que pode realizar conexões
produtivas para reativar os processos de invenção (KASTRUP, 2006c). A atenção a esses
pontos de intensidade é o que Eirado e Passos (2004) definem como estar receptivo às
exigências de criação, às virtualidades que assombram e transbordam, ao que existe de
excesso nas formas atuais e pede passagem para um novo devir. Detectar o reservatório
virtual de saúde naquilo que Gabriel Tarde (2007) chama de forças expectantes, que estão
adormecidas, mas que têm uma avidez de vida e o potencial de atingir um estado desperto
de forças vivas.
Mas, para estar receptivo ao encontro com os signos, Kastrup (2007a, 2007c) aponta
a necessidade de cultivar uma atenção que é ao mesmo tempo flutuante, concentrada e
aberta ao presente, capaz de entrar em sintonia fina” com as intensidades do território
existencial. Essa é uma tarefa muito difícil, pois nossos sentidos costumam estar obturados
pela atividade da recognição
118
, que torna a atenção seletiva e sensível apenas às formas,
afastando-nos do presente e nos conduzindo aos esquemas já conhecidos.
Essa sintonia fina com as intensidades do presente requer um esforço constante
para suspender o saber e refrear a recognição, porque a atenção como um exercício de
seleção de informações impede a cartografia. Na cartografia, o funcionamento da atenção
não se em ... atos de focalização para preparar a representação das formas de objetos,
mas se faz através da detecção de signos e forças circulantes, ou seja, de pontas de
processo em curso” (KASTRUP, 2007a, p. 15). Desse modo, cartografar requer uma atitude
atencional de outra qualidade, uma atenção que deixe de procurar elementos específicos e
esteja aberta aos encontros e suas afetações em um estado de ativa receptividade ao que
emerge no campo, não caindo nem num relaxamento passivo, nem numa rigidez controlada
(KASTRUP, 2007a).
117
Deleuze (2006, p. 315), em Diferença e Repetição, define as qualidades expressivas como signos que
“fulguram na abertura de uma diferença”.
118
A autora afirma que a atenção seletiva e a recognição são centrais na política cognitiva realista. Política
cognitiva é definida por Kastrup (2007a, p. 15, 16) como “... um tipo de atitude ou de relação encarnada no
sentido de que não é consciente, que se estabelece com o conhecimento, com o mundo e consigo mesmo.
Tomar o mundo como fornecendo informações prontas para serem apreendidas é uma política cognitiva realista;
tomá-lo como uma invenção, como engendrado conjuntamente com o agente do conhecimento, é outro tipo de
política, que denominamos construtivista”. Por ser uma posição epistemológica dominante, o realismo cognitivo
acaba sendo incorporado como atitude natural.
92
Kastrup (2007a) define quatro variedades no funcionamento atencional do cartógrafo:
o rastreio, o toque, o pouso e o reconhecimento atento. O rastreio é uma varredura do
campo, que tem como alvo elementos móveis ou alvos em variação contínua. É uma
atenção movente para acompanhar mudanças de posição, de velocidade e de ritmo,
rastreando signos de processualidade. O toque é quando a atitude atencional se depara
com um ponto de intensidade, uma rugosidade do ambiente que denuncia um processo em
curso, que requer uma nova atenção concentrada. É quando as orelhas do lince se ouriçam.
A importância do toque está na localização de traços intensivos que podem desenterrar uma
linha rizomática.
O pouso é quando a percepção realiza uma parada e o campo se fecha, produzindo
um novo território de observação. A atenção muda de escala e se constitui outra janela
atencional. A autora toma de Vermersch a noção de janela atencional para diferir os quadros
de apreensão
119
. Esse autor descreve cinco janelas: joia, página, sala, pátio e paisagem,
onde “cada janela cria um mundo e cada uma exclui momentaneamente as outras, embora
outros mundos continuem copresentes” (KASTRUP, 2007a, p. 19). A janela joia é a atenção
focada e minuciosa da ourivesaria, do cirurgião e das bordadeiras. Ela torna mais intenso o
enquadre e inibi as bordas do campo perceptivo. A página permite um pequeno
movimento de orientação no campo perceptivo. Na sala existe o movimento entre o foco e
uma multiplicidade de elementos com graus variados de nitidez. A janela pátio é a atenção
do caçador, envolve a atividade de detecção e é a atitude atencional das atividades de
deslocamento e orientação. A paisagem é um voo panorâmico capaz de estabelecer uma
conexão entre elementos distantes.
Por fim, o reconhecimento atento é quando o cartógrafo é atraído por algo e se
aproxima para ver o que está acontecendo. Kastrup (2007a) utiliza a distinção de Bergson
entre reconhecimento automático e reconhecimento atento. O primeiro é, por exemplo,
deslocar-se com desenvoltura por um território conhecido sem prestar atenção ao caminho.
Mas, como na cartografia se trata justamente de produzir algum conhecimento no percurso
realizado, ela requer um deslocamento com reconhecimento atento do terreno, aos seus
contornos singulares, sem a interferência dos compromissos da ação. No reconhecimento
atento não um movimento linear, como na recognição, de rebater a percepção numa
imagem ou esquema prévio. Com a suspensão do automatismo sensório motor, a memória
e a percepção passam a trabalhar juntas, produzindo múltiplos circuitos, que vão ampliando
a cognição e resultam em diferentes construções.
119
Segundo esse autor, a janela atencional é a organização momentânea de um campo, um horizonte e uma
periferia, a partir de um centro mais pregnante. Segundo Kastrup (2007a), a noção de movimento é essencial
nesse conceito, porque enfatiza a mobilidade da atenção em cada janela e o movimento da atenção de uma a
outra janela.
93
É interessante que Kastrup (2007a) recorra ao procedimento de suspensão do
método de redução fenomenológica de Husserl para pensar o esforço de interromper a
atividade recognitiva. Na fenomenologia de Husserl, suspensão é a desmontagem da atitude
natural e foi justamente esse o procedimento que Basaglia utilizou para elaborar o conceito
de desinstitucionalização e colocar a “doença mental” entre parênteses. Ele afirma que é
preciso suspender a racionalidade linear da psiquiatria nas práticas de cuidado, pois para ter
acesso à subjetividade do louco é necessário suspender todas as racionalidades referidas à
loucura.
As ões pautadas pela desinstitucionalização, assim como exigem a suspensão da
recognição para poderem se conectar com algo diferente da cristalização de uma
localização identitária, também requerem um tipo especial de atenção ao território
existencial dos usuários. Do mesmo modo, a integralidade exige uma amplitude de olhar
sobre o território e um tipo de atenção em sua processualidade para perceber a tônica da
necessidade em uma intensidade que emerge no cipoal de complexidade do território. Seja
uma relação que se tornou opressora, um modo de ser despotencializado diante da vida,
uma afecção no corpo ou um direito social obstruído.
A importância dos princípios da cartografia para a operacionalização das práticas de
cuidado no território não reside apenas no seu potencial de ativar a percepção na apreensão
das linhas e dos nós problemáticos que compõem um território existencial. Sua importância
está, sobretudo, no seu caráter de intervenção, no seu potencial de criar ou ampliar
territórios existenciais ao liberar canais estancados e dar passagem a intensidades
bloqueadas. A cartografia é um exercício político de colocar em perspectiva os limites de um
território, evidenciado pelos seus nós, apontando os caminhos possíveis para a ampliação
de suas fronteiras em defesa dos movimentos de expansão da vida.
3.4 A itinerância como ethos do cuidado
Para pensar a itinerância como um ethos do cuidado, um modo de estar e de se
mover no território produzindo saúde, gostaríamos de retomar o conceito da equipe itinerante
da Pensão Nova Vida. Seguindo o texto que a equipe construiu em cima de suas
experiências, podemos decompor seu conceito de itinerância nas práticas de cuidado em
quatro elementos: 1) O movimento realizado no ato de ir ao encontro do usuário; 2) Os
movimentos que os trabalhadores produzem ao acompanhar o usuário no processo de
construir seu pertencimento a um território; 3) O movimento de desestabilização que a
invenção de novos caminhos produz no pensamento e no real social (NETO et al, 2004).
94
O primeiro elemento do conceito agrupa um número enorme de experiências e não
pode diferenciar as práticas itinerantes que operam sob a égide dos princípios do SUS,
principalmente a desinstitucionalização e a integralidade, de práticas meramente higienistas,
como as do sanitarismo campanhista da Primeira República. O segundo e o terceiro
elementos já demarcam uma diferença. Não se trata mais de um simples pragmatismo de
acesso com o objetivo de alcançar fisicamente os usuários, o que pode estar tanto a serviço
do controle de populações como da promoção de saúde. Trata-se do movimento político de
agir em contato com os elementos do território do usuário, afetando de algum modo esse
território e sendo afetado por sua complexidade.
O primeiro elemento do conceito aponta para um movimento num plano extenso. É
um fato que a itinerância como modo de operacionalizar as práticas implica o movimento
sobre um plano espacial. E, produzir um deslocamento que se estritamente no plano
espacial, pode resultar apenas na ampliação da extensão de cobertura de um modelo de
atenção, como o sintomatológico, e não implica necessariamente alguma mudança nas
práticas. o segundo e o terceiro elementos apresentados apontam para a produção de
movimentos de outra qualidade, movimentos que produzem algum tipo de diferença, seja na
vida do usuário, seja no corpo social, no pensamento do trabalhador ou no plano das
práticas.
Como afirmamos anteriormente, o movimento no plano espacial guarda uma
importância relativa como fator de exposição. Fator de exposição porque, ao se deslocar, os
trabalhadores se expõem tanto à complexidade movente de um território como aos afetos,
acidentes e encontros dos itinerários que produzem desestabilizações. A exposição à
complexidade do território contribui para a construção da integralidade do cuidado, assim
como a desestabilização produzida pelos imprevistos contribui para a desinstitucionalização
das práticas. O primeiro nível de exposição territorializa o pensamento aos modos de vida
dos usuários, contextualizando as práticas de cuidado. O segundo nível de exposição
desterritorializa o pensamento possibilitando a invenção de saídas criativas, a criação de
linhas de fuga.
Esse é um campo de possíveis que a itinerância constitui para a ética do cuidado no
território traçar, a partir do fator de exposição, um plano intensivo que permita explorar a
potência política do movimento. Um plano que não restrinja o movimento à extensão da
cobertura da atenção, mas também amplie a possibilidade de produzir mudança nas práticas
e no real social ao deslocar a natureza do próprio movimento. A seguir nos deteremos nas
qualidades dos movimentos que se pode depreender a partir do segundo e do terceiro
elementos do conceito acima exposto.
95
3.4.1 A composição de territórios existenciais
Em seu segundo elemento, o conceito da Equipe Itinerante da Pensão Nova Vida
considera itinerância a movimentação que os trabalhadores produzem ao acompanhar os
usuários no processo de construir seu pertencimento a um território. Não é possível pensar
esse processo de pertencimento como uma vinculação unilateral de um sujeito a um
território naturalizado, pois como indica o terceiro elemento do conceito de itinerância, nesse
processo o próprio território vai se desestabilizar. Como lembram os autores da
desinstitucionalização, para fazer caber a diferença no corpo social é necessário um
trabalho inventivo de projetos de vida e de novos regimes de sociabilidade. Esse é um
componente estético do trabalho itinerante: acompanhar os usuários na apropriação dos
meios para constituir ou ampliar seus territórios de existência
120
.
Um território, segundo Deleuze e Guattari (1997a), é produto de um processo de
territorialização dos meios e dos ritmos. Quando os meios e os ritmos adquirem valores
expressivos, passam a compor um sistema semiótico, um regime de signos.
Precisamente, território a partir do momento em que componentes de
meios param de ser direcionais para se tornarem dimensionais, quando
eles param de ser funcionais para se tornarem expressivos. território a
partir do momento em que expressividade do ritmo. É a emergência de
matérias de expressão que vai definir o território. (DELEUZE; GUATTARI,
1997b, p. 121).
São as qualidades das matérias de expressão
121
que produzem território, as
qualidades dos componentes do meio e a expressividade dos ritmos. As matérias de
expressão são elementos de apropriação subjetiva no sentido de que elas desenham os
contornos do território que pertencerá ao sujeito, que as carrega no corpo, as produz ou as
120
Os territórios existenciais são formados por regimes de signos: seus limites o são espaciais, mas
semióticos. Segundo Canguilhem (1992. p. 17), “... o ser vivo não é uma máquina que responde por movimentos
a excitações, é um maquinista que responde a sinais por meio de operações”. Cada ser vivo constrói um mundo
próprio na relação que estabelece com o seu meio, através de sua atividade perceptiva. O autor se apoia na
distinção que Uexküll faz entre os termos Umgebung e Umwelt. Umgebung é o meio banal, enquanto Umwelt é o
mundo próprio do ser vivo, de seu comportamento, que cada organismo compõe para si como característica
inerente à própria vida. O Umwelt forma um conjunto de excitações, com valor de significado e sinais. Pois não
basta que uma excitação seja produzida em um meio geográfico, é preciso que ela seja captada pelo aparelho
perceptivo de um animal, tendo um valor de sinal. Deleuze e Guattari (1997a, p. 145) chamam esses sinais de
matérias de expressão, que pressupõem uma “percepção que as discerne, as seleciona”.
121
Na natureza, podemos observar como cores, cantos e gestos se tornam matérias de expressão. As cores que
produzem certos animais são estados de membrana que estão ligados ao funcionamento fisiológico. A cor é
funcional e transitória quando está ligada a alguma operação como a reprodução, a luta ou a fuga. Mas se torna
expressiva quando adquire tanto uma constância temporal como um alcance espacial. Assim a cor passa a ser
uma marca territorializante (DELEUZE; GUATTARI, 1997a).
96
utiliza. Essas qualidades expressivas têm uma objetividade própria no território que elas
desenham: entram em relações móveis umas com as outras, as quais vão ‘exprimir’ a
relação do território que elas traçam com o meio interior dos impulsos e o meio exterior das
circunstâncias” (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p, 124, [Grifos dos autores]).
Para que as qualidades tomem a consistência expressiva, é necessário que, além do
alcance espacial, mantenham uma constância temporal. É pelo conceito de ritornelo
122
que
os autores vão pensar a dimensão temporal dos processos de territorialização como um
movimento musical clico de variação infinita. Porque territorializar, segundo os autores, é
musicalizar o meio, é compor melodias por intermédio das matérias de expressão e ritmos,
por meio da repetição periódica dos componentes do meio, costurando blocos de espaço-
tempo, criando ritmos territoriais e paisagens melódicas (DELEUZE; GUATTARI, 1997a).
O conceito que melhor descreve o singular artesanato de acompanhar um usuário no
processo de apropriação dos meios e de harmonização dos ritmos na composição de seu
território subjetivo é o conceito de agenciamento. Ele é um modo de pensar essa função tão
presente nas práticas itinerantes, descrita ora como elo que liga partes e ora como produtor
de laço entre realidades difíceis de amarrar. Como vimos anteriormente, o trabalhador
itinerante pode ocupar o espaço ético entre-disciplinar e, a partir dessa posição paradoxal,
articular matérias de linhas heterogêneas. Essa posição, somada ao contato que tem com o
território dos usuários, confere ao trabalhador itinerante um lugar estratégico para disparar
agenciamentos.
Um agenciamento ocorre quando se conectam linhas de natureza heterogênea e têm
como efeito político dar consistência à produção desejante. O agenciamento é o modo pelo
qual o desejo como força em estado bruto se territorializa, porque o desejo requer ser
agenciado para produzir real social (GUATTARI; ROLNIK, 1987). É sobre um campo de
desejo que um agenciamento se constitui e é pelo agenciamento que se pode explorar a
potência transformadora do desejo. Como a composição de territórios existenciais não é
uma ciência que permita cálculos de controle, esse é um trabalho que exige uma postura
ativa de experimentação política do desejo na busca de conexões que possam articular
linhas heterogêneas de um rizoma e disparar o movimento de um agenciamento, que nunca
terá um curso previsível. Os agenciamentos mantêm-se em movimento e vão se deslocando
122
Segundo Zourabichvili (2004), a palavra ritornelo remete ao tema nietzscheniano do Eterno Retorno. Segundo
Deleuze e Guattari (1997a, p. 168), “não o Tempo como forma a priori, mas o ritornelo é a forma a priori do
tempo que fabrica tempos diferentes a cada vez”. O ritornelo é composto por três aspectos indissociáveis, três
momentos sucessivos ou simultâneos. Primeiro é o movimento de demarcação de um centro de estabilidade, o
estabelecimento momentâneo de um começo de ordem no caos. Segundo é a criação de um em-casa, o traçado
de um círculo na fragilidade do centro estável. Na demarcação do círculo atuam elementos, marcas e referências
de toda espécie. Esse círculo mantém no exterior as forças do caos, protegendo em seu interior forças de
criação. Terceiro é o movimento de abrir o círculo, não em direção às forças do caos que lhe fustigam, mas em
outra região, na direção de um futuro apontado pela direção do feixe de forças criativas em produção que o
círculo abriga.
97
de um a outro num constante processo de territorialização, desterritorialização e
reterritorialização.
Um agenciamento é uma conexão de componentes heterogêneos que adquirem
consistência e produzem um acoplamento de relações materiais com um regime de signos.
Um agenciamento produz território quando alguns signos adquirem valor de propriedade e
passam a demarcar esteticamente os limites de uma apropriação subjetiva. Deleuze e
Guattari (1997a, p. 132) afirmam que o território é o “primeiro agenciamento, a primeira
coisa que faz agenciamento, o agenciamento é antes territorial”.
O agenciamento é o que faz do devir expressivo dos componentes do meio um
território
123
, assim como o território cria agenciamentos. Ele possui duas dimensões. Por um
lado é agenciamento de enunciação e por outro é agenciamento maquínico. A primeira
dimensão é a sua expressão que comporta um sistema semiótico, um regime de signos. A
segunda dimensão é o seu conteúdo, que comporta um sistema pragmático de ações.
Somente quando uma relação de pressuposição recíproca entre estas duas dimensões,
expressão e conteúdo, é que se pode falar propriamente em agenciamento. Estas duas
faces, conteúdo e expressão, formam o aspecto de territorialidade dos agenciamentos, mas
um agenciamento também comporta linhas de desterritorialização (DELEUZE; GUATTARI,
1997b).
As linhas de desterritorialização são aquelas que podem atravessar e arrastar o
agenciamento, abrindo-o para outros ou complexificando o próprio agenciamento. Porque
assim como a territorialidade dos agenciamentos tem origem nos elementos descodificados
do meio, do mesmo modo o agenciamento pode se prolongar nas linhas de
desterritorialização que engendra. Nessas linhas, o agenciamento apresenta matérias não
formadas, forças e funções livres que podem servir de matéria-prima para a invenção
(DELEUZE; GUATTARI, 1997b).
Diferentes tipos de agenciamentos se articulam e se alternam e possuem
componentes que servem como vetor de passagem de um a outro. Os componentes de
passagem formam pontes, acesso e são os responsáveis pela formação de novos
agenciamentos no seio de um agenciamento territorial. É a partir deste que se parte para
outros agenciamentos, sociais e sexuais (DELEUZE; GUATTARI, 1997b).
Essa noção de componentes de passagem tem importância clínica, pois é de
agenciamento em agenciamento que se constrói ou se ampliam territórios existenciais e que
a vida pode seguir seu curso de expansão. Por essa noção os trabalhadores de um
residencial terapêutico
124
podem vislumbrar melhor o potencial clínico dos diversos
123
O ritornelo é um agenciamento territorial.
124
Os Serviços Residenciais Terapêuticos, que abrigam usuários egressos de hospitais psiquiátricos, são
laboratórios riquíssimos de experimentações políticas sobre a territorialidade humana.
98
elementos expressivos do cotidiano. O cheiro do café que um usuário aprende a passar
depois de anos de institucionalização num manicômio produz território, é um elemento de
agenciamento territorial (ir ao bar de minha escolha, andar pela minha rua, escolher as
marcas de café e filtro, meu próprio fogão, bule, cozinha, modo de preparo e o cheiro que se
espalha pela minha moradia como uma melodia). O cheiro de café ultrapassa os limites da
moradia e ganha a rua. A partir daí pode facilmente se converter em um componente de
passagem do agenciamento territorial a um outro agenciamento, social ou sexual. Um
vizinho sente o cheiro e vem visitar, um começo de conversa, começo de amizade ou início
de namoro. O cheiro de café passa a ser um conversor de agenciamento.
Pensando dessa forma os elementos do cotidiano passam a ter outro sentido.
Constituir uma moradia, comprar a toalha que enfeita a mesa, os quadros da parede, as
roupas do corpo e as contas de luz deixam de ser banalidades do dia a dia, meras questões
“extraclínicas”, e adquirem grande importância na constituição de um território existencial e
na produção de saúde. A consistência
125
de um agenciamento pode emergir dos elementos
mais simples, dos quais extrai toda força contida nos materiais.
Um território existencial não é apenas a demarcação de um domínio de apropriação
subjetiva, mas também a criação de um estilo do habitar, de um ethos, uma morada. É a
criação de um estilo de existência, de um modo singular de andar na vida
126
. E para criar um
estilo é necessário o estabelecimento de uma distância crítica, um espaço para o movimento
de estilização. “O território é primeiramente a distância crítica entre dois seres de mesma
espécie. O que é meu é primeiramente minha distância” (DELEUZE; GUATTARI, 1997a, p,
127). O estabelecimento de uma distância crítica
127
tem por função manter afastadas as
forças do caos, mas também é a distância que permite um processo de diferenciação
128
.
Não é possível territorialização sem distância crítica, que não é uma distância métrica, mas
rítmica.
É possível perceber a importância dessa noção de distância crítica ao ouvir os
relatos dos ats que acompanham um usuário que possui um membro da família quase
colado em seu corpo, que estabelecem uma relação que torna quase impossível um
trabalho terapêutico. Um at pode levar muitos anos acompanhando um usuário na
construção de uma distância mínima que permita territorializar seu desejo. Do mesmo modo
125
Tomada de consistência é quando uma multiplicidade de componentes heterogêneos deixa de ser um
conjunto discreto e passa a ter consistência expressiva. Ocorre por meio de uma série de acoplamentos
rizomáticos, densificações e intensificações, uma série de superposições de diferentes ritmos, em que o
importante o é impor uma forma, mas enriquecer, tornar consistente, para poder captar forças de maior
intensidade (DELEUZE; GUATTARI, 1997a).
126
Nesse sentido, criar um território existencial é fazer de si uma obra de arte, como propõe Foucault (2006)
numa estética da existência.
127
Além da distância crítica, um agenciamento territorial também tem o seu período crítico, que é tempo propício
aos acontecimentos.
128
O distanciamento geográfico entre exemplares da mesma espécie é um elemento importante na especiação,
na diferenciação de um grupo em relação à sua espécie original.
99
ocorre quando é demandado pela família acompanhar um usuário nos primeiros momentos
de engate de um processo de abstinência. todo um problema complexo de distâncias
colocado. O usrio fica encurralado entre o buraco negro de um uso destrutivo e todo
aparato policial que se arma em sua volta. Enquanto não existe uma distância crítica, não há
espaço para a criação de um gesto espontâneo
129
.
Por último, algumas linhas de desterritorialização podem, numa passagem delicada,
desembocar no vazio de um buraco negro. Este é efeito do fechamento de um
agenciamento que, no movimento de deslocamento para outro agenciamento, não
encontrou a consistência necessária e caiu num vazio, girando em círculos. O cuidado
nesse caso é conseguir encontrar as linhas soltas ou interceptadas, que por mais frágeis
que sejam, possam funcionar como vetores de territorialização, como fios condutores que
conduzam a um meio que tenha estabilidade suficiente para iniciar a consolidação de um
novo agenciamento territorial. E deste modo acompanhar o processo de saída do usuário da
situação catastrófica e de restituição de seu poder normativo, suportando a vertigem desses
movimentos delicados no cruzamento dos limiares na construção de novas realidades
130
.
3.4.2 Ethos nômade: movimento no plano intensivo
Abrir um campo de possibilidades para a produção de movimentos que vão além do
plano estritamente espacial requer que os trabalhadores itinerantes se tornem outsiders não
apenas de módulos assistenciais. Requer também conseguir manter uma posição de
exterioridade de certas racionalidades técnicas e de seus paradigmas, que obturam tanto o
pensamento como a percepção na construção das práticas de cuidado e costumam funcionar
como peças componentes do aparelho de Estado na administração das populações e no
silenciamento de diferenças incômodas. O tema do nomadismo em Deleuze e Guattari pode
ajudar a pensar o coeficiente de desprendimento necessário em relação às coordenadas de
referências dominantes para o exercício das práticas de cuidado no território.
O nomadismo é discutido pormenorizadamente por Deleuze e Guattari (1997b) no
Tratado de nomadologia: a máquina de guerra, que é um tratado político que se ocupa da
contínua tensão que na relação das maquinarias sociais com a tendência de unificar e
129
Gesto espontâneo, no sentido de Winnicott, como uma manifestação criativa e genuína, no sentido de se
diferenciar das expectativas normativas do ambiente.
130
Os autores afirmam que muitos processos inovadores, para se efetuarem, precisam antes cair em um buraco
negro que faz catástrofe.
100
homogeneizar do Estado
131
. O tratado fornece alguma pista sobre o agir político nos
interstícios das linhas duras da racionalidade burocrática do Estado e queremos dele tomar
as consequências que podem ter para o plano das práticas dos trabalhadores itinerantes, a
proposição que contém o tratado, de que pode haver dentro dos limites do Estado algo que
todavia mantém com este uma relação de exterioridade e possui uma natureza diferente.
Essa proposição aponta para a possibilidade de criar um meio de exterioridade para o
pensamento e para as ações, para pensar e agir de um modo diferente da Razão burocrática
do Estado.
Nos dias de hoje, podemos pensar o nomadismo
132
como um agenciamento que se
forma pelas maquinarias sociais no interior do próprio Estado, que forma máquinas de criar
e pensar que resistem à tendência de homogeneização, afirmando uma exterioridade e uma
diferença que o Estado tende a reduzir. São máquinas de luta que dispõem de forças vivas
e revolucionárias que podem contrapor ao Estado um novo ritmo, um outro dinamismo.
... um movimento artístico, científico, “ideológico”, pode ser uma máquina de
guerra potencial, precisamente na medida em que traça um plano de
consistência, uma linha de fuga criadora, um espaço liso de deslocamento
[...] é esse conjunto que define o nômade, ao mesmo tempo em que define
a essência da máquina de guerra. (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 109,
110).
Essa exterioridade de uma máquina de guerra é difícil de ser pensada porque,
segundo os autores, tomamos o modelo do aparelho de Estado como a imagem de nosso
pensamento. A máquina de guerra é “uma pura forma de exterioridade, ao passo que o
aparelho de Estado constitui a forma de interioridade que tomamos habitualmente por
modelo, ou segundo o qual temos o hábito de pensar” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 15).
Assim como Arendt afirmava que a ação política não necessita de instituições para se
131
Deleuze e Guattari (1997b) partem em suas análises da relação que os guerreiros nômades travavam com as
formações estatais com as quais se deparavam. Uma relação complexa em que os nômades lutavam para
manter o horizonte de suas estepes livre das demarcações territoriais dos Estados, numa permanente luta que
os nômades tinham para conjurar a formação ou evitar a permanência ou crescimento dos Estados; e da parte
dos Estados em destruir os nômades ou se apropriar da máquina de guerra que eles formavam, colocando-a a
serviço dos seus interesses sedentários.
132
Shöpke (2004, 176) afirma que os nômades e os sedentários atualmente ocupam o mesmo espaço geográfico,
porém atuam em planos distintos. Criar é uma atividade nômade, assim como reconhecer e reproduzir é uma
atividade sedentária: “o mundo nômade é o mundo das diferenças, é um mundo de devires, é um mundo de
intensidades”. O nômade hoje é aquele que não se submete aos valores do Estado, aos seus objetivos
sedentários. Seu olhar desconhece as codificações que aprisionam a vida e o seu ímpeto é lutar contra todas as
forças sedentarizantes com suas perpétuas tentativas de codificação. O nômade luta constantemente contra os
valores que são permanentemente produzidos pelas forças sedentárias e que têm por efeito constranger a
possibilidade de criação.
101
produzir, uma máquina de guerra se forma nos interstícios das instituições, é a afirmação de
uma exterioridade em relação às instituições
133
.
Aqui também não se trata de uma dicotomia, “... mas de coexistência e concorrência,
num campo perpétuo de interação no qual é preciso pensar a exterioridade e a interioridade,
as máquinas de guerra de metamorfose e os aparelhos identitários de Estado” (DELEUZE;
GUATTARI, 1997b, p. 24, [Grifos dos autores]). O importante para as práticas de saúde é a
tensão criativa ou destrutiva entre esses dois pólos de natureza completamente diferente e
ter em mente que além da forma Estado, existe outro modo de se relacionar com as
práticas, com o pensamento e com a vida. E, para o nosso tema do trabalho itinerante, é de
ajuda pensar que é possível em certos momentos abandonar as linhas duras de uma
“campanha militar”, que tem suas origens no sanitarismo campanhista da Primeira
República e agir mais ao modo de uma guerrilha. Porque os guerrilheiros, assim como os
nômades, compõem um mapa movediço e têm um funcionamento rizomático.
Funcionar nessa pura exterioridade de uma máquina de guerra é produzir um
agenciamento nômade. Zourabichvili (2004) afirma que a forma de expressão de um
agenciamento nômade é a máquina de guerra, enquanto seu conteúdo é a metalurgia.
Conteúdo e expressão formam um composto articulado com um espaço liso. No
agenciamento, o espaço liso é indissociável do movimento que se produz nele, que é
movimento absoluto. O agenciamento nômade então contém estes elementos: o espaço liso,
o movimento absoluto e a metalurgia itinerante.
A produção de um espaço liso
134
é o objetivo primeiro da máquina de guerra. A
guerra, contrariamente ao que se pensa, não é o objeto direto da máquina de guerra. O que
o nômade deseja antes de tudo é alargar os horizontes da estepe e livrá-la de toda formação
que constrange seus movimentos. A guerra entra em cena quando os nômades têm seu
movimento impedido pelas formações de um aparelho de Estado. O espaço liso é vetorial,
projetivo ou topológico, no qual os fluxos se distribuem num turbilhão por um espaço aberto.
O espaço liso se contrapõe ao espaço estriado. O estriado é um espaço burocratizado pelas
forças sedentárias, que divide os homens segundo hierarquias e regula os movimentos com
muros e caminhos; é um espaço métrico, fechado sobre si mesmo. No primeiro caso, não se
faz partições e se ocupa o espaço por uma turbulência na qual o movimento acaba afetando
133
Num plano macropolítico, podemos pensar a Luta Antimanicomial e o movimento sanitário como máquinas de
guerra que se erguerem como um movimento revolucionário afirmando suas diferenças em relação ao Estado e
que depois tiveram suas produções apropriadas por este, na forma das políticas do SUS, que por sua vez se
tornou o plano de consistência a partir do qual se produziram outros agenciamentos subversivos. No plano
micropolítico das práticas de cuidado, essa é uma batalha que se no cotidiano, num movimento contínuo
entre o instituinte e o instituído.
134
Em Diferença e Repetição existe referência a dois modos de ocupar o território, dois tipos de distribuição.
Uma distribuição implica a partilha métrica do distribuído, com determinações fixas e proporcionais,
estabelecendo territórios bem delimitados. A outra é a distribuição nomádica, sem propriedade, sem cercas e
sem medida (DELEUZE, 2006 p. 68). Não se trata da partilha de um território, mas da distribuição em um
território sem limites precisos, que por isso produz distúrbios subversivos nas rígidas estruturas sedentárias.
102
simultaneamente todos os pontos; no segundo, mede-se o espaço para poder ocupá-lo
(DELEUZE; GUATTARI, 1997b).
Nos trajetos de uma existência nômade, o intermezzo, o entre dois pontos toma uma
consistência própria. Os pontos de paradas nos trajetos são apenas repousos necessários
para retomar o movimento. O princípio territorial do nômade é habitar e manter o espaço liso,
para isso que o nômade luta e se move, esse é seu ethos, fazer proliferar a estepe. São
traços essenciais do espaço liso se atualizar de modo rizomático e compor uma cartografia
móvel, por isso ele possui variabilidade e engendra uma “polivocidade de direções”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 54).
Por isso, o espaço liso tem uma importância clínica nas práticas itinerantes. Um
redutor de danos compõe um espaço liso ao prescindir de codificações morais em relação ao
uso de drogas e suas divisões dicotômicas e propõe, sobre a consigna da cidadania, uma
multiplicação de caminhos possíveis, diferentes dos caminhos socialmente cristalizados, que
produzem uma resposta tão dura. O espaço liso na produção de saúde se refere tanto ao
modo de habitar e de se mover no território quanto ao modo de operar o pensamento. Nas
práticas, reproduzimos um espaço estriado cada vez que travamos uma relação burocrática
com o território e o confundimos com demarcações que provêm de lógicas exógenas a ele,
ou quando agimos com um repertório de movimentos rigidamente delimitados, como num
jogo de xadrez
135
. No plano do pensamento, produzimos um espaço estriado abstrato cada
vez que não conseguimos suspender a atividade de recognição ou nos desprendermos
minimamente de certas racionalidades técnicas. O pensamento não segue um livre curso,
mas se constantemente bloqueado ou constrangido em seu movimento. O pensamento
tem o seu fluxo conduzido por canais definidos, como água encanada. Quando se efetua um
desprendimento da estriagem do espaço mental, o pensamento funciona como o fluxo
torrencial de um rio que corrói as margens e que, quando adquire força, ultrapassa seus
limites, arrebenta diques e alaga os vales
136
.
Segundo Machado (1990), produzir um espaço liso pelo pensamento é criar um
segundo espaço abstrato, um espaço diferencial. Produzir esse espaço diferencial é fazer do
135
Deleuze e Guattari (1997b) utilizam a teoria dos jogos para explicar a diferença entre os dois espaços,
mostrando a diferença entre o xadrez, um jogo de Estado, e o go, um jogo nômade, sob o ponto de vista das
peças, das relações entre as peças e do espaço a que se reportam. O xadrez é uma guerra institucionalizada, no
qual cada peça e seus movimentos estão intrinsecamente codificados. Cada peça tem um valor hierárquico e
seu repertório de ações possíveis limitados e determinados pelas regras do jogo, que se estende sobre um
tabuleiro quadriculado. O go, ao invés de peças, joga-se com grãos ou pastilhas, que não têm nenhuma
propriedade intrínseca e seus movimentos são direcionados pela situação. Sua relação extrínseca se com
constelações de outros grãos, em que o objetivo é se inserir para cercar, arrebentar as constelações inimigas.
136
Segundo Deleuze e Guattari (1997b), o pensamento ocidental se moldou à imagem e semelhança do Estado,
numa cumplicidade deste com a razão, no qual a razão se confunde com o Estado de direito e o Estado é uma
manifestação da razão. A forma Estado forjou uma imagem do pensamento. Um agenciamento nômade é um ato
de violência contra essa imagem do pensamento, um contra-pensamento que se coloca em conexão com um
campo de exterioridade, com as forças do Fora.
103
pensamento uma estepe desertificada das codificações da razão sedentária e suspender o
que Deleuze (2006) denomina de imagem moral do pensamento, que carrega uma série de
pressupostos explícitos e implícitos, todos comprometidos com valores sedentários e com a
manutenção do estado de coisas. Pois a função do aparelho de Estado é primeiramente
conservar. O espaço diferencial é uma abertura intensiva do pensamento para a diferença
em seu estado puro, livre das malhas da representação. No caso dos trabalhadores de
saúde, operar num espaço liso é conseguir se desprender da racionalidade técnica do
modelo sintomatológico e dos pressupostos da lógica manicomial.
Esse espaço diferencial é a criação de um plano de consistência que implica a
potencialidade de construir intervenções que abram novos caminhos, que criem linhas de
fuga e devolvam a potência ao movimento. No trabalho itinerante, esse espaço diferencial
pode ser pensado como tendo função análoga à função que o setting tem para as diversas
práticas psi. A produção desse espaço liso, desse espaço diferencial, dar-se-ia colocando as
práticas de saúde e seu arsenal técnico sob novas bases, que inclua o plano da
afectabilidade e uma profunda conexão com o território existencial dos usuários. Habitando
esse segundo espaço em suas práticas, o trabalhador pode acessar o plano das
intensidades e se tornar um artesão de territórios existenciais e um produtor de linhas de
fuga. É nesse espaço que o pensamento suspende a recognição, adquire a sua potência
própria de criação e no qual se pode produzir o que os autores da desinstitucionalização
denominam invenção de vida.
Habitar o espaço diferencial significa atingir a máxima força criadora, produzindo
diferença em um mundo que tem a semelhança como ideal e possibilitando a composição de
práticas que funcionam como verdadeiras máquinas de guerra, as quais podem, segundo as
palavras de Shöpke (2004, p. 28), “... produzir uma existência singular, um modo de existir
ético e estético”. A formação de um espaço diferencial possibilita uma atividade criadora que
reinventa a existência e não se submete aos valores pré-estabelecidos. É uma topologia
como a do espaço liso que um movimento de desinstitucionalização pressupõe. Colocar
efetivamente a “doença mental” entre parênteses, suspender um conjunto de codificações
para ver emergir vida e o desejo é uma estratégia de guerra nômade. Assim como prescindir
de racionalidades técnicas que costumam produzir medicalização e a normalização da vida.
O espaço liso é indissociável ao movimento que se produz sobre ele o movimento
absoluto a ponto de não ser possível definir se é o espaço liso que permite o movimento
absoluto num agenciamento nômade ou se é o movimento absoluto que produz um espaço
liso. O movimento absoluto se efetua quando a um movimento relativo se soma um vetor de
velocidade. A velocidade se materializa quando um móbil se desvia de sua linha de queda ou
de gravidade: Lento e rápido não são graus quantitativos de movimento, mas dois tipos de
104
movimentos qualificados, seja qual for a velocidade do primeiro e o atraso do segundo”
(DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 39 [Grifos dos autores]).
Um movimento absoluto é movimento que adquire velocidade e, por isso, desvia-se
produzindo um deslocamento turbilhonar que a um tempo ocupa e traça um espaço liso.
Os autores não consideram velocidade uma mudança quantitativa no movimento, mas um
fator que produz uma mudança de qualidade no movimento. Assim distinguem movimento de
velocidade.
O movimento pode ser muito rápido, nem por isso é velocidade; a
velocidade pode ser muito lenta, ou mesmo imóvel, ela é, contudo,
velocidade. O movimento é extensivo, a velocidade intensiva. O movimento
designa o caráter relativo de um corpo considerado como “uno”, e que vai
de um ponto a outro; a velocidade, ao contrário, constitui o caráter absoluto
de um corpo cujas partes irredutíveis (átomos) ocupam ou preenchem um
espaço liso, à maneira de um turbilhão, podendo surgir em qualquer ponto.
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 52 e 53, [Grifos dos autores]).
Nesse sentido, segundo Deleuze e Guattari (1997b), é possível um deslocamento
sem movimento relativo. É possível pensar o nomadismo como um movimento intensivo
137
sem deslocamento espacial. Assim como um deslocamento espacial pode ou não possuir
intensidade alguma.
O movimento no plano geométrico produzido pelos trabalhadores itinerantes quando
estes partem em busca dos usuários no local em que se encontram, é um movimento
relativo. Um deslocamento sobre um extenso métrico com o concomitante gasto energético
no trabalho de ir de um ponto a outro de um espaço estriado. Mas, como dissemos
anteriormente, esse movimento relativo funciona como fator de exposição, no qual o
pensamento pode ser atingido por um vetor de velocidade e produzir desestabilizações.
Para Deleuze e Guattari (1997b), só há nomadismo na produção de movimento
absoluto, que se realiza em velocidade intensiva e produz linhas de fuga,
137
Quanto ao termo intensidade, em Diferença e Repetição, Deleuze (2006) afirma que “intensidade é a forma
da diferença como razão do sensível. Toda intensidade é diferencial, diferença em si mesma (p. 314)”. Cada
intensidade é um acoplamento que revela o conteúdo qualitativo da quantidade. O autor chama disparidade o
estado de diferença “infinitamente desdobrada, ressoando indefinidamente”. Usa a seguir disparidade, diferença,
intensidade e diferença de intensidade como termos equivalentes e relata que a física definiu a energia pela
combinação de dois fatores: o intensivo e o extensivo. Usa como exemplo a força e o comprimento da energia
linear, tensão superficial e superfície para a energia de superfície, tensão e volume para o volume, altura e peso
para a energia gravitacional, e temperatura e entropia para a energia térmica. Deleuze afirma que a intensidade
é inseparável da extensidade que a refere sempre a um plano extenso e que conhecemos intensidades já
desenvolvidas num plano extenso e recobertas por qualidades. Essas últimas “são signos e fulguram na abertura
de uma diferença (p. 315)”. A intensidade, ou quantidade intensiva, é o desigual em si. É a diferença na
quantidade, o que de irredutível na diferença de quantidade: é a qualidade da quantidade. Segundo Deleuze,
a intensidade faz da diferença um objeto de afirmação.
105
desterritorializações. Não consideram nômades aqueles que realizam movimentos relativos,
deslocando-se de um ponto a outro de um espaço estriado.
Mas Orlandi (2005), partindo dessas questões, divide o nomadismo em dois tipos: o
nomadismo extensivo e o nomadismo intensivo. O primeiro produz zonas de determinação e
estabilização de lugares e relações. Seus movimentos afetam a variação numérica das
quantidades e qualidades implicadas e constituem uma gama variada de operações
estabilizadoras. o nomadismo intensivo produz zonas de indeterminação e instabilidade
implicando variações de quantidades intensivas. Para o autor, quando falamos em
nomadizar, afirmamos nossa inevitável oscilação longitudinal entre repousos e movimentos,
entre lentidões e velocidades...” e a “... oscilação latitudinal das intensidades de que somos
capazes, do nosso poder de afetar e ser afetado” (ORLANDI, 2005, p. 65). O autor afirma
que o que torna um movimento absoluto é a sua intensidade.
“Se o movimento é relativo por ser ‘extensivo’, então seu devir absoluto
implica uma vibração intensiva, implica a ‘velocidade’ dita ‘intensiva‘. Mesmo
quando me desloco de um lugar para outro em um nomadismo extensivo,
estou exposto à emergência de nomadismos intensivos por ocasião de
instantâneos encontros (ORLANDI, 2005, p. 52 e 53)”.
Ao levar em conta essas considerações, é possível pensar a prática dos
trabalhadores itinerantes como um exercício de nomadismo extensivo, que produz
movimentos relativos que expõe o pensamento, em virtude dos acidentes de percurso e dos
encontros nos caminhos, ao contato com vetores de velocidade, que podem transmutar o
movimento relativo em absoluto. O nomadismo extensivo também expõe os trabalhadores
aos afetos e às matérias de expressão do território, elementos intensivos que podem atingir o
movimento da percepção, do pensamento e da ão, produzindo a aceleração dos mesmos,
sua intensificação e disparando um agenciamento nômade.
Para produzir mudanças nas práticas de cuidado, não basta pensar em movimentos
relativos sobre um extenso estriado. A produção de diferença requer movimentações no
plano intensivo. O movimento no plano das intensidades carrega em si a potência
desinstitucionalizante, como requer a luta pela Reforma Psiquiátrica, pois às vezes “um
acontecimento microscópico estremece o equilíbrio do poder local” (DELEUZE; GUATTARI,
1995, p. 25). Se o movimento relativo possibilita a contextualização do cuidado, uma vez que
coloca o trabalhador a percorrer a complexidade do território dos usuários, a irrupção de
movimentos absolutos se torna uma contraparte necessária, porque permite o
desprendimento necessário das racionalidades técnicas que extrapolam os muros do
manicômio.
106
Os autores definem itinerância como o movimento de seguir um fluxo, não um circuito
cristalizado. Alguém se torna itinerante quando se desvia do circuito e segue um fluxo. Por
isso, o itinerante é, em primeiro lugar, um artesão: o artesão será, pois, definido como
aquele que está determinado a seguir um fluxo de matéria [...]. É o itinerante, o ambulante.
Seguir o fluxo da matéria é itinerar, é ambular” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 92 [Grifos
dos autores]). O artesão não é aquele que sobre um material aplica uma forma pré-
estabelecida, mas aquele que segue as linhas do material, os constrangimentos da matéria,
e nesse agenciamento de suas técnicas, com as singularidades da matéria, cria algo novo.
Assim podemos pensar que o que define a itinerância de um trabalhador de saúde é
quando este se desprende de uma linha molar de seus circuitos cotidianos e segue o fluxo
das matérias de expressão dos territórios, ou um fluxo de desejo dos usuários no complexo
artesanato de criar ou ampliar territórios subjetivos. O trabalhador passa a ter um olho de
artesão, percebendo com mais intensidade a potência de criação contida no material desses
fluxos. O trabalhador itinerante pode se tornar um nômade cada vez que, ao seguir o fluxo
desses materiais, é atingido por um vetor de velocidade e produza uma linha de fuga criativa.
Um tipo muito especial de artesão é o artesão do metal, o que nos leva ao último
componente de um agenciamento nômade: a metalurgia itinerante. Na metalurgia itinerante
reside a maior ambiguidade de uma máquina de guerra. A metalurgia é uma projeção
afectiva
138
que se forma na topologia do espaço liso e que pode ter duas direções: a criação
e a destruição. O metal é uma força viva e maleável que produz tanto armas de guerra como
ferramentas de trabalho. Essa ambiguidade continua mesmo depois da forja, pois o que vai
determinar se um machado ou martelo é uma arma de destruição ou ferramenta de criação é
o agenciamento no qual ingressa.
A importância da metalurgia itinerante nas práticas de cuidado reside no seu devir de
criação e na possibilidade de fazer dos elementos técnicos do trabalho armas de guerra. A
luta pelas reformas Psiquiátrica e Sanitária requer da máquina de guerra seu potencial de
criação, mas também de destruição. Certas ações requerem atos de violência, como
intervenções em instituições que violam direitos humanos ou denúncias, golpes de força, que
tiram as situações de certos impasses e devolvem a potência do movimento, num complexo
e delicado equilíbrio entre o trabalho e a guerra, de fazer passar de um a outro, do trabalho
para a guerra e da guerra para o trabalho. Pois as máquinas podem fazer a guerra se
criam outra coisa ao mesmo tempo” (DELEUZE; GUATTARI, 1997b, p. 110).
Segundo Deleuze e Guattari (1997b), uma velha estratégia burocrática do aparelho de
Estado para sedentarizar o movimento dos artesões itinerantes e seu potencial subversivo é
138
Deleuze e Guattari (1997b) diferenciam sentimentos de afectos. Os sentimentos são conteúdos tomados em
uma forma de interioridade. Os afectos são projetivos, são arremessados como flechas num meio de pura
exterioridade em que adquirem velocidades intensivas.
107
produzir uma divisão entre o trabalho manual e o intelectual, entre a prática e a teoria, a
imagem e a semelhança da relação entre governados e o governante. Aqui está uma
indicação precisa para manter a itinerância e possibilitar agenciamentos nômades nas
práticas de saúde: não separar o trabalhador daquilo que pode o seu pensamento. Se de fato
se efetiva essa divisão entre trabalho manual e intelectual, o trabalhador se despotencializa e
tende a apenas replicar técnicas e reproduzir ações.
Além de evitar a tradicional organização piramidal do trabalho, é preciso ter um
cuidado especial nas práticas itinerantes com os espaços de supervisão. Cuidar que tipo de
relação os ACS irão ter com seus enfermeiros supervisores e que tipo de relação os
apoiadores matriciais irão estabelecer com as equipes de referência. Os ats e os redutores
de danos têm afirmado a importância de um espaço de supervisão continente, que tenha
uma topologia lisa e não reproduza essa divisão burocrática da Razão de Estado entre
trabalhadores e intelectuais.
Ao falar do nomadismo não tivemos intenção de procurar fórmulas políticas a serem
replicadas nas políticas públicas. Apenas chamar atenção para o fato de que é possível
encontrar elementos ou ferramentas que confiram ao pensamento, em suas conexões com
as práticas, maior velocidade e consistência. Do mesmo modo, defender a importância
política de investir nos pequenos desvios, nas pequenas rotas de fuga, e na força política da
indisciplina e do questionamento dos códigos e das hierarquias instituídas. Pequenas
nomadizações cotidianas que podem ajudar na resistência à banalização da vida e à
anulação da diferença.
108
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A itinerância como modo de operacionalizar as práticas sempre teve importância nas
políticas de saúde no Brasil. No período da Primeira República, foi fundamental nas
operações do sanitarismo campanhista, no combate às endemias rurais e epidemias
urbanas. As práticas itinerantes orientaram-se pelas concepções científicas de cada
período, e quando se orientaram por concepções higienistas e eugênicas, estiveram
envolvidas em ações autoritárias de saneamento dos espaços urbanos, como
desalojamentos, imposição de vacinação ou quarentena.
Com a emergência do Sistema Único de Saúde como um processo resultante das
lutas da Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica, a noção de território tomou a dimensão
de princípio organizador dos processos de trabalho, notadamente nas políticas de Atenção
Básica e Saúde Mental. Nesse contexto, e diante dos princípios éticos de universalidade,
equidade, integralidade, desinstitucionalização e autonomia, as práticas itinerantes sofreram
uma torção e passaram a ter uma importância estratégica nesse campo delicado de
articulação entre as políticas de Saúde Mental e Atenção Básica, na construção da
integralidade do cuidado e na desinstitucionalização das práticas no território. Podemos
considerar a desinstitucionalização e a integralidade como os operadores conceituais que
marcam a diferença que as reformas Psiquiátrica e Sanitária pretendem imprimir nas
práticas de cuidado em relação ao modelo sintomatológico, que sintetiza tanto as
racionalidades do manicômio como da proposta reducionista da medicina neoliberal.
Pelo acoplamento das racionalidades do modelo sintomatológico, as práticas
itinerantes correm o constante risco de carregar muitos de seus vícios higienistas e estarem
funcionando como uma peça do aparelho do Estado no controle racional das populações e
no silenciamento das diferenças incômodas, ao embrenhar-se numa postura de busca ativa,
com fluidez no território de vida dos usuários. Não obstante, mesmo que com o
deslocamento das práticas de saúde para o território se corra o risco de estar produzindo
capilarização das técnicas de controle, é preciso lembrar que também no território as
relações de poder tendem a ser mais móveis, reversíveis e instáveis, assim como as
estratégias de resistência mais complexas. Porque o usuário é um sujeito político e o
território é uma arena de lutas, em que pulsa vida, conflitos, jogos de força, regimes de
sociabilidade e produção de subjetividade.
Para não sucumbir a uma mera estratégia de controle, é necessário traçar um plano
intensivo que explore a potência política do movimento. A partir desse plano, é possível
transmutar as ações da replicação técnica de um mero pragmatismo de acesso em um
engajado agir político criativo, no qual a responsabilização pelo cuidado passa a ser uma
109
questão de amor aos negócios do mundo, o acolhimento uma postura de atenção às
necessidades postas na complexidade movente do território, e o vínculo uma constante
temporal que ajuda a dar consistência a territórios existenciais.
O que permite aos trabalhadores itinerantes deslocar a natureza de seus
movimentos é o coeficiente de transversalidade e desprendimento que conseguem manter.
O coeficiente de transversalidade refere-se à possibilidade de transitar entre os diversos
paradigmas que operam nas práticas, entre os paradigmas técnico-científico e estético,
entre as linhas molares e moleculares, entre as estruturas arbóreas e as linhas rizomáticas.
O coeficiente de desprendimento refere-se à possibilidade de operar fora dos sistemas de
referência dominantes, criando linhas de fuga. Uma maior transversalidade e um maior
desprendimento afastam as práticas da reprodução e as aproximam do processo de criação.
O movimento empreendido pelas caminhadas dos trabalhadores itinerantes, além do
valor pragmático de acesso, tem uma importância relativa referente ao seu valor como fator
de exposição. Primeiro porque territorializa o pensamento em sua conexão com as práticas
de cuidado aos territórios existenciais dos usuários. Segundo porque pode produzir
desterritorialização e possibilitar a criação de linhas de fuga, quando o pensamento ou a
percepção adquirem velocidades intensivas por serem atingidos por um vetor de velocidade
desestabilizante, um acidente, um encontro, um afeto.
A itinerância torna-se uma ética de cuidado quando consegue transformar o território
num laboratório de experimentação política e de invenção de vida.
110
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