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Assim, acrescentamos a uma necessidade orgânica, uma vontade
espiritual. “O necessário não me fere, amor fati é minha natureza mais íntima”
(Idem, p. 101). Pois todo acontecimento tem o momento de sua efetuação, sua
encarnação em estados de coisas, indivíduos, pessoas, mas tem também seu
excedente, aquilo que não pode se realizar, mas por isso mesmo espera por
criação, por linguagem para se exprimir... (Deleuze, 2003, p.151-156). “Eis
porque a linguagem não cessa de nascer”, porque o sentido é anterior à
significação (Idem, p. 171). Neste ponto, nos desvencilhamos da interpretação
que opera como sobrecodificação. Tudo é já interpretação, portanto, o que
fazemos e faremos serão novas interpretações.
Temos necessidade de sentido. Somos habitados por espíritos ávidos que
não se cansam de perguntar “que diferença há?” (Deleuze, 2006a, p.121). A
necessidade se inscreve na abertura desta questão e é muito mal compreendida
quando tomada como uma estrutura negativa, relacionada à carência, à
intencionalidade e à utilidade, como uma falta que exige uma ação de
satisfação. Ela se inscreve muito melhor na emergência de um excesso
acontecimental (Maciel Jr; Melo, 2006, p. 77).
O acontecimento produz “um intervalo entre a percepção e a ação, um
interstício onde se aloja uma afecção” (Pelbart, 1998. p.52) e abre uma fissura na
superfície onde os sentidos são produzidos, descolados das ações e paixões dos
corpos. Por isso o Eu é sempre rachado por essa forma pura e vazia do tempo
(Deleuze, 2006a, p.133) e o sentido não habita outro lugar senão uma fissura.
Fissura que não se encontra nem no exterior nem no interior, mas na
fronteira, insensível, incorporal, ideal
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, onde tudo de ruidoso acontece: a mesma
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A partir daqui haverá uma distinção necessária entre a ideia platônica, descendente de uma essência
metafísica que preexiste à encarnação e o conceito de Ideia que encontramos na obra deleuziana,
principalmente em Diferença e Repetição. Deleuze (2006a, p. 271/272) opõe a Ideia enquanto estrutura-
acontecimento-sentido e a ideia enquanto representação: “na representação o conceito é como a
possibilidade; mas o sujeito da representação determina ainda o objeto como realmente conforme ao
conceito, como essência. Eis por que, em seu conjunto, a representação é o elemento do saber que se
efetua no recolhimento do objeto pensado e em sua recognição por um sujeito que pensa. Mas a Ideia dá
importância a características totalmente diferentes. A virtualidade da Ideia nada tem a ver com uma
possibilidade. A multiplicidade não suporta nenhuma dependência em relação ao idêntico no sujeito ou no
objeto. Os acontecimentos e a singularidades da Ideia não deixam subsistir nenhuma posição da essência
como ‘aquilo que a coisa é’. Sem dúvida, é permitido conservar a palavra essência (...) quando ela é
precisamente o acidente, o acontecimento, o sentido, não somente o contrário do que se chama de