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DESERTAÇÃO
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E
INSTITUCIONAL
DESERTAÇÃO
JULIANE TAGLIARI FARINA
Orientadora Profa. Dra. Tania Mara Galli Fonseca
Dissertação apresentada como
requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em Psicologia
Social e Institucional da
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul
Porto Alegre
2009
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3
A meu pai, Marcos Elias Farina,
por ter me iniciado nas artimanhas do sensível;
À minha mãe, Valdete Tagliari Farina,
pela força da terra;
À minha orientadora Tania Mara Galli Fonseca,
por permitir que os delírios se escrevam;
À minha amiga Sara Caumo Guerra,
pelos passamentos;
À minha amiga e colega Débora de Moraes Coelho,
pela riqueza dos trajetos;
À minha amiga Mariane Sobrosa,
porque precisamos de leitores;
À minha terapeuta Maria Célia Detoni,
porque sem clínica não há crítica;
A meu amigo e colega Rafael Adaime,
por tê-lo encontrado no meio do caminho;
À Marciele e Liliane,
pelos olhares;
À Vanessa e Bibiana,
pelo ‘con fiar’ nas borboletas;
Aos colegas Daniel Dutra Trindade, Bianca Sordi Stock,
Luis Artur Costa, Vilene Mohelecke e Andréia Oliveira,
pelos ensinamentos e parcerias;
A mais amigos e intercessores:
Carolina Santana, Alice Frainer, Ana Cláudia Araújo, Cássio Turra, Itamar Comaru e
toda a Confraria da Polenta;
Clarice Nejar, Luciene Luzardo e todas as mulheres que chicam;
Paula Flores, Heloísa Helena, Simone e Quérlei Scremin, as ‘soy mujer’;
Luciana Knijnik, Rodrigo Lages, Branca Chedid, Paulo Luiz Sousa, Marcos Kligman,
Carina Sehn, Lídiston Pereira, Roberta Rodrigues;
Nenas e Nenos, Chicas e Chicos,
e tantos outros,
porque a conversa é o canal mais livre para o pensamento e a troca de perspectivas;
A todos os companheiros invisíveis, inomináveis e inumanos
que não compreendem agradecimentos
Muito Obrigada!
4
Dedico este texto ao Felisdônio
5
“As coisas que não existem são mais bonitas”
Felisdônio
(Barros, 1993, p. 8)
6
RESUMO
Esta dissertação acompanha o movimento de desterritorialização
realizado pela Psicologia, a partir de um encontro com a Filosofia da Diferença.
Através de cenas protagonizadas pelo personagem Ela, assistimos a um
processo de rachadura dos territórios aprisionantes da subjetividade
contemporânea, das grandes categorias molares e das micropolíticas que os
sustentam. A escrita, lugar de intensificação absoluto da imaginação, revela-se a
linha de fuga que nos leva ao encontro das intensidades perversas e anômalas,
produtoras dos desertos que guardam a potência de começar um novo mundo.
ABSTRACT
This paper follows the deterritorialisation movement accomplished by
Psychology in its encounter with the Philosophy of Difference. Through the
scenes of the character Ela, we witness a crack process of the confinement
territories of contemporary subjectivity, of the large molars categories and the
micropolitics that support these territories. The writing, place of absolute
intensification of the imagination, is the line of flight that led us to the perverse
and anomalous intensities, producing the deserts that keep the power to start a
new world.
7
PLANO DE FUGA
09
Por uma psicologia pagã
10
Os Rebanhos Contemporâneos
16
A ponta de desterritorialização
20
Partida
23
Minha filha, tudo é uma questão de bom senso: tenha juízo!
26
A vida acontece
28
Clínica e Criação
32
Fantasmas do Futuro
35
Rota de Fuga
37
ELAS
38
CENA 1: uma tarde - Sonhos de rebanho em catástrofe
39
O DESVIO
40
Minha filha, tenha juízo!
44
Quem disse isso?
44
Como rachar o quadrado?
47
Acontecimento
49
E então, o que se passou?
50
8
CENA 2: ocaso - Os duplos contra as essências
53
O ESPELHO
54
Não!
56
O outro lado do espelho
57
Perversão e Crueldade
59
O Espelho como Labirinto
63
A Palavra Fantasma
64
CENA 3: uma noite - Do sonho à insônia
66
OS CÃES
67
Solidão & Cia
68
Insônia
71
Por que só Eu?
72
Devir-animal
74
Uma noite acaba com o juízo de Deus
76
Anomalia
77
Travessura
78
BIOGRAFIAS DO CLINAMEN
79
Escrever a Vida
80
A Solidão como Precursor Sombrio
84
Bibliografia e Discografia
87
9
PLANO DE FUGA
10
Por uma psicologia pagã
É preciso começar por algum ponto. Nós partimos do seguinte: todo o
pensamento que serve de base para a psicologia moderna se encontra numa
empreitada que inicia com Platão, passa pelo Cristo de São Paulo, tem seu
clímax em Descartes e se aperfeiçoa com alta tecnologia nos pressupostos
capitalísticos contemporâneos. Esta é a empreitada que funda o ser humano
como um ser moral, ser da consciência, sustentado pelo pensamento ortodoxo.
Partindo deste cenário, esta dissertação intenta, de alguma forma, ultrapassar o
diagnóstico das doenças da moral: escravidão, rebanhamento e monocultura
humana. Pretensamente, queremos ser os médicos dessa civilização, tal como
quis Nietzsche.
É com ele que diferenciamos o psicólogo moderno de um autêntico
psicólogo, pois o bom gosto de um autêntico psicólogo é pagão: consiste em
“opor-se ao modo de expressão vergonhosamente moralizante que enlameia
todo juízo moderno sobre o homem e as coisas” (Nietzsche, 1998, p. 126). É o
próprio esgotamento
1
de uma doutrina que nos levará à sua diferença. Nós
pensamos que nos sentíamos cansados, pois tínhamos a sensação de que
havíamos dito o bastante que não pensamos em termos de sujeito, o dado e
incontestável sujeito, individual e universal, dotado de um mundo interno
1
Para Deleuze (2005) “o esgotado é muito mais do que o cansado”, uma vez que o cansado é aquele pra
quem não mais possibilidade. O cansado do cotidiano é aquele que descansa para viver o possível um
pouco mais. Mas o esgotado é aquele que esgotou as possibilidades de tal forma que encontrou o espaço
vazio, renunciando a toda necessidade, preferência, finalidade ou significação, conseguindo encontrar o
fora dos objetivos e dos projetos preestabelecidos, liberando-se dos possíveis sempre porvir.
11
profundo e inatingível ou atingível, talvez, por um psicólogo. Mas, falaremos
ainda mais um pouco. Se os ouvidos ainda não se cansaram, hão de se esgotar...
que o conceito de sujeito é um artifício sofisticado, é preciso dissecá-lo
para poder ultrapassá-lo, é preciso esgotá-lo. O sujeito é “o mais sólido artigo
de fé” criado, o mais sofisticado dos ideais inventados sobre a Terra. Toda
uma espécie humana se sustenta sobre ele: sob a roupagem da indiferença, da
virtude e do livre arbítrio, escondem-se a fraqueza e a opressão de toda a
espécie (Nietzsche, 1998, p.37). Sentimo-nos agora, um pouco impacientes, mas
não cansados. Buscaremos o esgotamento por mais árduo que nos pareça, pois
sabemos que operamos com forças minoritárias e que as forças majoritárias que
combatemos estão em plena produção.
Mas como um ideal pode ser criado com tamanha força?
Platão inventa a transcendência opondo à vida imanente uma pretensão
ideal, submetendo a vida a uma verdade divina, a uma seleção conforme o
juízo de Deus (Nietzsche, 1998, p. 140). As ideias ganham status de
anterioridade em relação à encarnação. As almas encarnadas, por sua vez,
devem ser pretendentes a cópias o mais fiel possível da essência divina,
garantindo seu valor de semelhança. Ancorado nas essências ideais, o
platonismo funda o domínio da filosofia como domínio da representação
preenchido pelas cópias-ícones, pelo fundamento enquanto modelo do Mesmo,
do semelhante, da identidade. Antes a justiça (a essência), depois a qualidade
de justo e, por fim, os justos (pretendentes de primeira ordem, semelhantes
mais próximos da ideia) (Deleuze, 2003, p. 260-262).
Terreno fértil explorado pelos ideais judaico-cristãos: o homem feito à
imagem e semelhança de Deus (uma essência cuja representação então se torna
infinita), mas que deturpa essa semelhança pelo pecado. Pretender à
purificação, como finalidade superior, é o aperfeiçoamento cristão do ideal
platônico (Idem, p. 263). Maldita vontade de espelho!
Podemos compreender o uso da figura de Cristo para fundar uma
religião do Poder, uma maneira terrível de julgar em nome de Deus, através de
12
uma crença na imortalidade, numa vida além da vida, no reino dos céus. Toda
a moral que nos faz estar sempre ausentes do presente (Nietzsche, 1998, p.7).
Antes da aparição de Cristo, Roma cultivava valores ativos como valores
de nobreza: veracidade, audácia, revide instantâneo contra o inimigo, coragem,
magnanimidade, constituição física poderosa, saúde florescente, rica, através da
guerra, da aventura, da dança, da caça, enfim de uma existência livre e
contente, em oposição aos valores baixos, plebeus, de covardia, de mentira, de
impotência. A nobreza romana criava os critérios do que era bom ou mal a
partir daquilo que era vivido, o sentido do afeto era colado ao acontecimento
(Deleuze, 1997, p. 146-147), a imanência imperava.
A Judéia, por sua vez, apresenta sua nobreza sacerdotal, de hábitos
hostis à ação, hostis aos valores de quem escravizava os judeus: jejuns,
abstinências sexuais, isolamentos, ódios contra inimigos espirituais (Nietzsche,
1998, p.24-25). Roma sob a égide dos pontífices é a Roma que aterrará os seus
teatros (Artaud, 1999 p. 22), nada mais apresentará aos Deuses e, a partir daí,
um só Deus comandará o espetáculo.
Assim, o que era nobre passa a ser ‘o mal’ e o que era ruim passa a ser ‘o
bem’. Os sofredores, os escravizados recriaram os valores humanos através do
ódio e da vingança. Faz-se brotar do ódio um novo amor: o amor pelas alturas,
pelo além. Cristo, o Deus na cruz, é o Deus que se sacrifica pelos pecados do
homem, pecados que outrora foram valores nobres. Cristo crucificado permitirá
o golpe de mestre de São Paulo, a catequização do inimigo: triunfo da moral
escrava, rebanhos com desejo de rebanho, rebanhos do senhor na terra
esperando a redenção no Reino dos Céus, onde a vigança será degustada como
se deve: fria, depois de cozida por muito ressentimento, por muito rancor às
grandes aves de rapina. O que outrora fora uma ação imediata, torna-se uma
reação retardada e relegada a Deus, à sua lei, ao reino das alturas e do além
(Nietzsche, 1998, p.17-46).
Como se não bastasse ter feito da opressão um bem, a moral escrava
ainda inventa um Deus a quem obedecer. A senha mentirosa do ressentimento,
o privilégio da maioria através da promessa que o homem faz a Deus: ser bom
13
para ser recompensado no além da vida, no dia de nossa morte, amén. Este é o
grande engodo, a grande promessa: o altruísmo como valor em si acaba por
dizer não à vida ao mesmo tempo em que se torna um sofisticado instrumento
de coerção social. O homem animal de rapina tem seus instintos amestrados
para tornar-se manso e civilizado, doméstico e comunitário, dotado de
compaixão e responsabilidade, de orgulho pelo sofrimento, de mérito por ser-
assim. A partir de então, as virtudes altruístas, a compaixão, a abnegação, a
humildade, a paciência, a vergonha, o sacrifício foram tomados como valores
em si, impassíveis de qualquer crítica e nos esquecemos das causas do juízo de
valor deixando-nos aprisionar por eles (Idem, p.17-46).
Mas jamais esquecemos o que prometemos. “Prosseguimos querendo o
querido”, sendo assim, sendo Eu-Mesmo, tal qual Deus quis. Cadeias que o
acontecimento do acaso tem dificuldade de quebrar. Enquanto queremos o que
o amanhã promete e fazemos promessas ao amanhã, não descarga, ação,
presente. Cultivamos uma tentação pelo nada.
Por isso é preciso apontar uma grave diferença entre o nobre egoísta e o
exemplar de rebanho, o sujeito altruísta. Enquanto o primeiro é bárbaro, audaz,
tem desprezo pela segurança e digestão fácil, e quando inventa Deus é para que
ele seja espectador de suas obras e seus espetáculos, o segundo acrescenta
sempre mais prudência e controle dos instintos pois sofre os efeitos dos castigos
prometidos por seu Deus julgador. O primeiro nada deve pois sempre age. O
segundo está sempre retardando a ação, em dívida com o mais terrível dos
agiotas, o promotor da dívida infinita, o juízo de Deus, encarnado na
comunidade, que, quando traída em seus valores, também saberá cobrar seu
preço.
Mas, no primeiro caso, a nobreza não é do indivíduo, é da força. É ela
que é potente e busca cada vez mais potência. Enquanto ‘sujeito’ já é um
conceito reativo, adaptativo, é a criação de um animal que sabe fazer
promessas, um animal responsável. Por isso ele foi tornado uniforme, igual
entre iguais, previsível e portanto, confiável, mas através da fórmula do
indivíduo soberano, dotado de livre-arbítrio, de poder sobre si mesmo:
14
consciência cavada pela memória dos castigos e das penas, triunfo da culpa
vivida no encarceramento da comunidade e na promessa da paz (Nietzsche,
1998, 47-72).
E os velhos instintos? Deixaram de fazer suas exigências? Não, mas
tiveram que buscar subterfúgios, meios subterrâneos de satisfação, pois, no
momento em que não puderam mais se descarregar para fora, para a ação,
tiveram que se voltar para dentro, possibilitando a interiorização do homem, e
a formação de uma alma individual. Assim surge a má-consciência, a auto-
vigilância, o auto-flagelo, o auto-castigo, enfim, o Estado interiorizado: o
próprio homem responsável por seu amansamento. Eis a mais sinistra das
doenças: o sofrimento do homem consigo mesmo (Idem p.72/73). Puro engodo,
talvez o pior de tantos que nos contaram: descoletivizar a alma é estratégia
indispensável ao sucesso dessa empreitada rumo à domesticação do homem.
Foi assim que uma população bárbara, “sem normas e sem freios” pôde
ser tornada estável e maleável, dando início à forma Estado, aos controles da
maioria pelo juízo de Deus na Terra (Idem p.74/75). O Estado, o primeiro
escalão do governo de Deus, seguido na hierarquia pela figura paterna.
Toda esta hostilidade contra a vida afirmada pelo sentimento de
rebanho. Toda crueldade do mundo tornada afável porque se vive como todo
mundo, porque somos todos semelhantes a Deus e uns aos outros e somos
livres para obedecer. É no seio de um rebanho que se pode criar um sujeito
dotado de livre arbítrio que sabe exatamente o que deve escolher entre o bem e
o mal: o bem determinado por Deus.
No seio deste rebanho surge o sujeito moderno, capitaneado pela
filosofia cartesiana. O idealismo dogmático de Platão é reeditado quando a
unidade metafísica da alma é transposta para a substância pensante
concentrada no núcleo da consciência de onde conclui-se, simploriamente, que
o ato de pensar tem como causa um sujeito que pensa. A gramática toma o
trono da verdade absoluta já que o ‘Eu’ é sujeito e o ‘penso’ é predicado
(Giacóia Jr., 2002, p. 201) .
15
É assim que o homem mata Deus para colocar-se no lugar dele. Em vez
de ser sobrecarregado de cima, o próprio homem se encarrega de colocar seu
peso sobre as costas. O essencial não muda, os valores de bem, de verdadeiro,
de divino podem vir de Deus, do ideal de progresso, de felicidade, de utilidade
ou da consciência pensante, mas são ainda valores que submetem a existência a
seus julgamentos (Deleuze, 2007, p. 21).
Acabamos por suportar “miséria, privação, mau tempo, enfermidade,
fadiga e solidão” (Nietzsche, 1998, p. 35) como se fossem fardos normais a que
se carregar, pois somos consolados pela esperança da transcendência, do
mundo do além e do amanhã. Enquanto que na vida imanente o que domina é
“a contingência absoluta, com a mecânica absurdidade de todo o acontecer”
(Idem, p. 67), pois “não podemos atuar isoladamente em nada” (Idem, p. 8).
Por isso queremos o esquecimento de si, como esquecimento ativo, como
antídoto contra a interiorização do ressentimento, em proveito da memória do
mundo: uma memória liberadora contra a memória escravocrata da neurose.
Pois a neurose é a doença do homem do ressentimento: a busca de um ideal
ascético através de uma moral sublime e suas santas virtudes não passam de
um labirinto de ideias fixas, de um excesso de sentimento, que se colocam como
barreiras contra a vida, contra a saúde e o vigor da espécie humana.
‘... Está aberto o caminho para novas versões e
refinamentos da hipótese da alma: e conceitos como “alma
mortal”, “alma como pluralidade do sujeito” e “alma como
estrutura social dos impulsos e afetos” querem ter, de agora
em diante, direitos de cidadania na ciência. Ao pôr fim à
superstição que até agora vicejou, com luxúria quase tropical,
em torno à representação da alma, é como se o novo psicólogo
se lançasse em um novo ermo e uma nova desconfiança para
os velhos psicólogos, as coisas talvez fossem mais cômodas e
alegres; mas afinal ele que precisamente por isso está
condenado também à invenção e, quem sabe?, à descoberta.’
(Nietzsche, 2003. pág. 19/20)
16
Os Rebanhos Contemporâneos
Mas hoje não vivemos uma existência suficientemente terrena? não
matamos Deus? Não! Proliferam as igrejas e os templos evangélicos, endurecem
os fundamentalismos religiosos e, quando nos sentirmos ateus, o reino dos céus
estará no prêmio da loteria. A cada aposta, nova oportunidade para o mesmo
sonho. A felicidade e a recompensa permanecem no amanhã: casas, carros,
viagens, status... dinheiro até para ajudar o próximo! Acreditando que somos
nobres egoístas somos ainda rebanho, talvez nunca tenhamos sido tão rebanho
como hoje.
Tão sedentos de democracia como de rebanho, queremos para todos o
que queremos para nós e sabemos direitinho o que devemos querer. A ordem
capitalística contemporânea aproveita o ensejo para roubar nossos corpos para
que com eles se produzam os organismos necessários às maquinarias da
produção (Deleuze; Guattari, 2002, p.69), rebanho produtivo movido a desejo...
Corpos-chip: ágeis, conectados, consumidores de velocidade; corpos-
zumbis: deprimidos, incompreendidos, habitantes de buracos, consumidores de
psicofármacos e TV a cabo dublada; corpos-manequins: magros, consumidores
de tendências de moda; corpos-trabalhadores-livres: privatizados, participantes
do capital estrangeiro, consumidores de emprego e índices econômicos; corpos-
mães: amorosas donas de casa que trabalham fora, consumidoras de sabão em
pó e Biotônico Fontoura; corpos-adolescentes: sempre novos consumidores...
E nós consumimos, nem que seja idealizadamente, o que é vendido. E
tudo pode ser vendido! O privilégio da vida é concedido a quem tem o poder
de compra. E o privilégio continua sendo, mais do que nunca, a virtude
suprema. O que se pode e o que não se pode ter e ser são os dois lados da
mesma moeda, moeda de circulação planetária, movida à transcendência
capitalística. Em troca, ganhamos uma alma com selo de qualidade:
propriedade particular e intransferível.
Assim, estamos muito interessados na dimensão capitalística da
produção de subjetividade, nos modos de existência produzidos em série, nos
17
sintomas que aí se gestam, mas não apenas porque nos pensamos aptos a
explicar o que está acontecendo, deste modo podemos acabar fazendo “alianças
vergonhosas” com esse presente, com “a baixeza e a vulgaridade da existência
que impregnam as democracias”, com esses modos de existência e de
pensamento-para-mercado” (Deleuze; Guattari, 1992. p. 140), rebanhos pós-
modernos dos quais a psicologia raramente escapa. Não queremos apenas
explicá-los, queremos ultrapassá-los.
Assim como não podemos esquecer as causas do império do juízo de
valor, não podemos deixar de dissecar os mecanismos da produção de
subjetividade capitalística, que nos chegam através da mídia, da família, enfim,
de todos os equipamentos que nos rodeiam, e que não são apenas transmissões
de significações através de enunciados significantes; nem são modelos de
identidade ou identificações com pólos maternos, paternos etc. São, mais
especificamente, sistemas de conexão direta: de um lado, as grandes máquinas
produtoras de sentido e valor e, de outro, as instâncias psíquicas, a maneira de
perceber o mundo. Neste sentido, o indivíduo é uma produção subjetiva e o
terminal individual se encontra na posição de consumidor de subjetividade
(Guatarri; Rolnik, 1993, p. 27).
Acabamos capturados por matérias de expressão características da era
da mídia: matérias de expressão limpas de afeto. Tornamos-nos presas fáceis
das centrais distribuidoras de sentido e valor, onde a mídia desempenha,
provavelmente, o papel principal (Rolnik, 2006, p.43/44). Deus pulveriza assim
seu ponto de vista e nos a ilusão da livre escolha, mas é ainda a escolha do
sujeito que se crê dotado de livre-arbítrio, livre para escolher o que já existe.
A ordem capitalística é, então, projetada na realidade do mundo e na
realidade psíquica. Ela incide nos esquemas de conduta, de ação, de gestos, de
pensamento, de sentido, de sentimento, de afeto etc. Ela incide nas montagens
da percepção, da memorização, na modelização das instâncias intra-subjetivas,
enfim, fabrica a relação do homem com o mundo e consigo mesmo (Guatarri;
Rolnik, 1993, p. 31).
18
Evidenciam-se então as raízes da psicologia e sua ascendência judaico-
cristã: um território que enfatiza as produções políticas da modernidade, onde
ações normalizadoras da vida humana são operadas através de uma produção
subjetiva que se centraliza no modo-de-ser indivíduo. se estabelecem certas
naturezas, modelos e identidades que, de maneira ortodoxa, passam a orientar
predominantemente as práticas da psicologia, despolitizando-as. É a psicologia
de um humano conformado com a condição de sujeito que o destitui do poder
de conectar-se de múltiplas e diferentes formas, que se debruça sobre a análise
de sofrimentos individuais derivados de conflitos psíquicos que se processam
no interior do indivíduo e a ele se referem (Abreu; Coimbra, 2005. p.42/43).
É neste cenário que a psicologia encontrará este sujeito que fala de si, um Eu
para quem ofertará um “código pré-existente de interpretação” (Deleuze, 2006b,
p.346).
Incansável de ter opinião sobre tudo, a psicologia se alia aos
equipamentos produtores de sentido e valor e não cansa de dizer aos pais como
serem pais, aos professores como serem professores, às mulheres como serem
mulheres, ao Eu como ser Eu...
Mas nós não queremos falar para os pais, para os professores, para as
mulheres, para o Eu, nem queremos falar no lugar deles. Isto não é uma
questão de opinião, é uma questão de devir. Um pensador não é pai, professor,
mulher, Eu, mas se torna, não pára de se tornar, mas para que pais, professores,
mulheres, Eus... possam eles mesmos se tornarem outra coisa, escapando de
seus territórios existenciais aprisionantes. Algo de um passa ao outro, pois “o
devir é sempre duplo, e é este duplo devir que constitui o povo por vir e a nova
terra”, o desejo de revolução que nos arrasta (Deleuze; Guattari, 1992.
p.142/143).
Temos mais fios para tecer o mundo, muito mais fios do que os que
dispomos na produção de corpos-consumidores e seus territórios pré-
moldados, comprados à prestação de uma vida inteira pelo direito do final
feliz. A vida se presta a muito mais do que ao desejo de ficar no mesmo lugar,
19
no absoluto, no eterno, com essa maldita vontade de espelho! (Guatarri; Rolnik,
p.284, 1993).
Por isso nos inscrevemos num paradigma ético-estético-político onde
nosso trabalho é “liberar a vida onde ela é prisioneira ou tentar fazê-lo num
combate incerto” (Deleuze; Guattari, 1992. p. 222) opondo-nos a um método
que dispõe de um conjunto de regras que tem valor em si, um sistema de
verdades que compõe um campo de saber dado a priori (Rolnik, 1993, p. 243).
Colocamo-nos, então, diante da criação não de conceitos, mas de linguagens
e mundos contidos no plano de imanência infinito que o pensamento ortodoxo
tentou de muitas formas dominar, tentando estancar seu movimento (Deleuze;
Guattari, 1992. p. 67-70).
Queremos investir em tessituras desconhecidas, temos desejo de
aventura e desejo de aventura é desejo de desterritorialização desses territórios
tão demasiadamente humanos. Então, deixaremos de simplesmente decalcá-los
e entendê-los. Tentaremos liberar a subjetividade dessas micropolíticas que
produzem a ilusão de que encarnamos modelos universais ou individualmente
originais: de novo, os dois lados da moeda corrente... (Guattari; Rolnik, p.284,
1993). Na ilusão de que somos livres enquanto indivíduos, tornamo-nos
escravos de uma única perspectiva, a suposta perspectiva universal e humana
que nos alia aos objetivos de mercado.
Neste sentido, o Estado é quem melhor encarna este absoluto, nos
deixando pensar que se não estivermos inseridos nele, não seremos ninguém. O
Estado condiciona a relação das pessoas e das coisas entre si do ponto de vista
de uma central que se distribui molecularmente por toda a paisagem social.
Mas ele não é um ponto de vista. É o ponto de vista, aboluto e universal, sobre o
qual não se pode ter outro ponto de vista: seu desejo é ser universal. Para tanto
desenvolve aparelhos de captura do desejo e de produção de subjetividade
adequados às condições históricas de cada período, mas sempre com o objetivo
de transformar o multiverso em universo. “O Estado é um Eu que nunca é
outro” (Viveiros de Castro, 2008, p.229-230).
20
E para que os corpos sejam colocados a serviço da estratificação própria
de seu tempo é necessário torná-los organismos. O regime macroperceptivo e
seu ponto de vista absoluto toma o poder e, então, temos “olhos para ver,
pulmões para respirar, boca para engolir, língua para falar, cérebro para
pensar, ânus, laringe, cabeça e pernas” (Deleuze; Guattari, 2004b. p.11) e
também identidade, CPF, endereço, nacionalidade, município, estado, país,
governo, estrada, horário, informação... “Nós não paramos de ser
estratificados” (Deleuze; Guattari, 2004b. p.21) em nosso corpo próprio ou em
todo o aparato maquínico que nos rodeia (máquina de Estado, máquina
familiar, máquina burocrática, máquina midiática...)
A ponta de desterritorialização
O terreno onde a ordem capitalística semeia sua produção foi arado na
chamada sociedade disciplinar, onde a subjetividade privatizada e
individualizada foi aperfeiçoada através de um sistema de controle-repressão
preocupado em docilizar os corpos para torná-los força de trabalho. Nessas
condições, público e privado, indivíduo e sociedade, dentro e fora do corpo
tiveram limites muito claros.
Contemporaneamente, na passagem para a sociedade de controle, a
subjetividade tem passado por um sistema de controle-estimulação que
embaralha o que era claramente oposto: os corpos são impelidos a expandirem-
se externamente, conectando-se direta e cotidianamente com as necessidades do
mercado global, transformando em certeza a impressão de que é impossível
passar despercebido (Sant’Anna, 2002).
Enquanto isso, a psicologia de que falamos acima mantém suas análises
sobre a suposta interioridade conflitiva individual forjada na Sociedade
Disciplinar ou então sobre a crise dessa interioridade como se estivéssemos
trocando algo ruim por algo pior ainda. Começamos a experimentar um
processo de externalização da existência, mas que pouco margem à
21
coletivização. O Eu ainda resiste em sua realidade física material, seu ideal
corporificado na obrigação de externalizar-se: fotologs, perfis no orkut,
interminável investimento em imagem pessoal... A pele que era impermeável às
forças do mundo para guardar as profundidades do modo-indivíduo-de-ser,
continua impermeável para tornar-se mera superfície de inscrição das
necessidades do capitalismo de consumo.
Nada mais pode ficar invisível. As narrativas do Eu se colam ao visível,
ao facilmente comunicável, ao facilmente identificável segundo padrões
majoritários, ao facilmente enunciável do outro sobre si. O outro é sempre
especular, “um outro que é segundo em relação ao Eu” (Bezerra Jr.,2002, p. 229-
238), que assegura este mundo como possível, e não um outro estranho,
estrangeiro, desconhecido, incompreensível, que carrega consigo as potências
de uma terra e de um povo por vir. Nada mais desconhecemos e nada mais
suportamos desconhecer. que na sociedade de controle somos
intermitentemente controlados, não suportamos não controlar.
No primado do individualismo nada se divide, tudo serve à exclusão do
outro que não reconhece o Eu e não é por ele reconhecido (idêntico,
semelhante, fiel, sem mistérios e, de preferência, bonito). Deixamos de falar de
um Eu interiorizado (Homo Psychologicus) para falarmos o que devemos falar,
o que de ante-mão o será desvalorizado, o que estará de acordo com o que
aparece e será facilmente reconhecido. É uma cultura da sensação, do
espetáculo e da opinião, onde não lugar para uma interioridade enigmática
(Bezerra Jr.,2002, p. 229-238).
Porém, tal transmutação evidencia a crise de um individualismo ainda
muito caro à humanidade, em agonia diante de suas últimas tentativas de
sobrevivência. Enquanto outras possibilidades não frutificam, este ainda é um
território de existência majoritário. Exteriorizado, um Eu ainda se conserva e se
oferta não mais às tiranias da intimidade, mas às tiranias da exterioridade...
A humanidade passa de um ideal de convivência comunitário à
contagem numerológica da população do mundo. E quanto mais humanidade
somos, menos somos coletivo, multiplicidade. Não mais ilhas perdidas,
22
terras distantes, tribos isoladas, tempo ou espaço intransponíveis, parece que
matamos as mitologias. Mas queremos nos livrar das “tiranias da intimidade”,
portanto não somos saudosistas! Então, não seria a externalização massificada
do individualismo sua última combinatória, sua exaustão, seu caminho para o
esgotamento? Caminho para a liberação desta funesta necessidade de atomismo
que acabou por gerar o “atomismo da alma” (Nietzsche, 2003, p. 19/20).
Estamos subindo à superfície, mas “não desfizemos ainda
suficientemente nosso EU” (Deleuze; Guattari, 2004b, p.10/11). um devir de
superfície a nos arrastar e precisamos estar atentos! Uma existência de
superfície não pensa em seus territórios como envólucros impermeáveis,
destinados à proteção. Um território terá sempre áreas de fronteira (Cunha,
2002). Passarão por ele, elos e nós de uma teia que sente e dá sentido aos
movimentos pelos quais se prolonga. Signos maquínicos de conexão entre os
nós nos tornam mais vivos do que os estratos de “organização, subjetivação e
significância” que aprisionam a vida num “espírito de rebanho” (Sant’Anna,
2002). Um devir-aranha
2
nos arrasta para fora de nossa vida de gado.
Temos uma ferramenta pelo menos: a crítica, a potência clínica que nos
possibilita perguntar sobre o domínio dos modos de produção de subjetividade
majoritários: “como não ser governado assim, por isso, em nome desses
princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos? Não
dessa forma, não para isso!” (Foucault, 1978). Sem essas perguntas não nos
desterritorializamos nem nos deixamos desterritorializar.
Mas estaremos ainda mais atentos, não teremos a desterritorialização
como um fim em si mesma. Nosso fim está no meio, no desvio, na linha de
fuga, mas pegamos essa linha para tecer com ela, para fazê-la dramatizar.
Sairemos do país do espelho, através do espelho, para o outro lado do espelho,
mas para criar um além do espelho. A viagem pode até ser solitária, mas a
2
“A aranha nada vê, nada percebe, de nada se lembra. Acontece que em uma das extremidades de sua teia
ela registra a mais leve vibração que se propaga até seu corpo em ondas de grande intensidade e que faz,
de um salto, atingir o lugar exato. Sem olhos, sem nariz, sem boca, a aranha responde unicamente aos
signos e é atingida pelo menor signo que atravessa seu corpo como uma onda.” (Deleuze, 2006c,
p.172/173)
23
“solidão é povoada pelos encontros com o irredutivelmente outro” (Guatarri;
Rolnik, p.290, 1993).
Partida
Depois da impaciente empreitada anterior, o ponto de partida dessa
dissertação é a largada para uma aventura: a filosofia como potência de
reterritorialização de um território do qual nos desterritorializamos: a
psicologia. E, se nos desterritorializamos da psicologia foi porque não nos
sentíamos muito confortáveis, tínhamos certa desconfiança desse território, não
achávamos um bom terreno para fixar raízes, quiçá para desenvolver uma
agricultura. Do interior, fomos às fronteiras, de onde poderíamos fazer outros
agenciamentos... A partir daí não elogiaríamos mais a profundidade, teríamos
preferência pelo superficial: membranas de contato, peles permeáveis, por onde
elementos desterritorializantes e desterritorializados podem se prolongar,
podem vazar, podem entrar, sair, capturar outros... Descobriríamos aí, a
potência de não fixar raízes: passamos a desconfiar da necessidade de
fundamento e também das grandes plantações monocultoras. Ainda queríamos
a fertilidade, porém, não procederíamos mais por filiação arborescente, e sim,
por alianças de expansão rizomática.
A reterritorialização ocorre com a filosofia. Não com qualquer ou com
toda a filosofia, mas com uma filosofia que, como nós, se desterritorializa do
pensamento ortodoxo e procura reterritorialização e consistência no
pensamento da diferença e da relação.
Acompanhamos Nietzsche, Deleuze e Guattari numa matilha que é por
esses nomes arrastada e que também os arrasta numa filosofia da diferença, do
sentido, do desejo e da multiplicidade, num pensamento pluralista, ontológico,
ético e trágico. Não sabemos mais quem somos nós. A matilha não tem nome e
não empunha bandeiras. Os elementos dessa matilha não dizem Eu. Mas não
24
basta dizer que não diremos mais Eu, é necessário não precisar dizê-lo
(Deleuze; Guattari, 2004a, p.11).
O que teremos, então, é cartografia, mapas rizomáticos do próprio
movimento de desterritorialização por que passamos e horizontes passíveis de
reterritorialização, sempre lembrando que nunca fixamos território, que
habitamos sempre uma terra movediça e nos movemos sem sentido
predeterminado. A cada encontro reconfiguram-se os contornos territoriais e
reinventam-se outros jeitos de andar, de olhar, de sentir, pois desde que demos
a largada, vimos o chão sair dos pés e o u cair do alto. Ocupamos quatro
dimensões. Quatro dimensões da proposição, quatro dimensões do tempo,
quatro dimensões do espaço... nos liberamos das trindades. Encontramos uma
“quarta pessoa do singular” (Deleuze, 2003, p. 105), uma dimensão virtual, a
superfície do sentido, a transversalidade, os fantasmas, as matilhas, os objetos
parciais, as multiplicidades...
Operamos a diáspora de um território essencialmente antropomórfico.
Operamos num fora do antropomorfismo, num campo transcendental
impessoal e pré-individual que não pode mais ser sustentado pelo primado de
uma consciência pessoal e individual, que demarca o espaço e distribui sobre
ele formas fixas e sedentárias. Este campo é formado de emissões de
singularidades móveis e nômades sobre uma superfície inconsciente que
preside a gênese dos indivíduos e das pessoas.
Para tanto, encontramos teorias geomórficas, cosmogênicas e
caosmóticas, do acontecimento e do sentido. Teorias de pontos singulares
capazes de ultrapassar a síntese da pessoa e a análise do indivíduo que tanto
comprometem a psicologia, quanto a cosmologia e a teologia, disciplinas
dominadas pelas essências metafísicas e suas conseqüentes categorias: a
identidade e a representação, as propriedades e as classes (Deleuze, 2003, p. 79;
105-106).
É preciso reverter o platonismo e a transcendência que dominam o
pensamento filosófico, desmantelando a solidez de seus territórios, abalando
seus contornos... Operamos uma “terapia da desobsessão” (Viveiros de Castro,
25
2007, p.100), uma clínica da clínica, pois nossas ferramentas são outras. São
tecnologias de clinamen e perspectivismo: construímos os mapas que
percorremos. O movimento registrado é o dos desvios, das rachaduras, dos
clinamens, e não das linearidades, dos caminhos majoritários, das generalidades
etc. Temos perspectivas internas e imanentes a esses mapas, não os olhamos de
cima, nem de baixo. “Pois não pontos de vista sobre as coisas; as coisas e os
seres é que são pontos de vista”: cada poro, um ponto de vista; cada célula, um
ponto de vista, o ponto de vista da mosca, da onça, do rio... a terra como ponto
de vista. Pontos de vista das relações que se estabelecem com outros elementos
(Viveiros de Castro, 2007, p.98), lembrando que o trajeto nunca é o mesmo nos
dois sentidos: o olho visto não a mesma coisa que o olho que vê...
idas...
Entramos em cenas do cotidiano, cenas do extraordinário, cenas
ficcionais, cenas literárias, cenas cinematográficas... não importam essas
distinções. Tentamos fazer essas ferramentas de crítica e de clínica funcionarem
nelas como formas singulares e imanentes de olhar, de andar, de sentir... Mas
apesar das torções no antropomorfismo, não deixamos de falar da vida
humana, pois
“as pessoas psicológicas e morais são também feitas
de singularidades pré-pessoais e seus sentimentos, seu
pathos se constituem na vizinhança destas singularidades,
pontos sensíveis de crise, de retrocesso, de ebulição, nós e
núcleos” (Deleuze, 2003, p.58).
Servimo-nos de uma cena como “uma lente de aumento com que se pode
tornar visível um estado de miséria geral, porém dissimulado, pouco palpável”
(Nietzsche, 2008, p.30), e não podemos ser senão revolucionários que não
admitem “um estado de coisas em que o hipócrita domine” (Idem, p.41). E
então nossos olhos de psicólogo, procuram o verdadeiro realismo, uma
curiosidade encontrada nas volúpias da enfermidade, que através de caminhos
tortuosos segue rumo à tarefa de transvaloração dos valores (Idem, p.39-43).
Mas uma mesma cena poderá nos servir também de lente multifocal e
nos permitirá ver movimentos moleculares, microfísicos, que operam à margem
26
das grandes categorias molares e antropomórficas e fazem com que todo o
movimento humano se componha de um movimento caósmico.
Minha filha, tudo é uma questão de bom senso: tenha juízo!
Começamos onde o pensamento ortodoxo começa a ruir, exatamente ali,
onde ergue suas ilusões de verdade: o senso comum e o bom senso, os dois
lados da moeda da doxa.
Se utilizarmos uma lente de aumento, veremos que o bom senso é uma
verdade apenas parcial. Ela se une ao sentimento do absoluto para criar esta
instância essencialmente distribuidora e repartidora. O bom senso quer prever
mais do que agir, molda o sentido do tempo como uma flecha com sentido
único, que vai de um passado representável a um futuro provável, do particular
ao geral, do mais diferenciado ao menos diferenciado, do singular ao regular,
do notável ao ordinário... Bom senso essencialmente agrícola, inseparável da
colocação de cercas: operações de classe média, tarefa reguladora e
compensadora das partes (Deleuze, 2006a, p. 316-319; Deleuze, 2003, p.78-80).
Cada um no seu quadrado, cada um com sua casa, sua cama, seu marido, seus
filhos... sonhando em ter sua casa com suíte de casal, seu marido, seus filhos...
Gesta-se o tal senso comum, a faculdade universal de identificação.
Nele, faculdades diversas da alma e órgãos diferenciados do corpo são referidos
a uma unidade: aquela capaz de dizer Eu. Um e mesmo Eu percebe,
imagina, lembra-se e respira, dorme, anda, come, sonha... e tudo que encontra é
um mesmo objeto: Eu vejo, Eu toco, Eu como, Eu percebo, Eu imagino, Eu
lembro... O outro é um objeto assim reconhecido porque não é Eu: intermitente
processo de recognição e distribuição sedentária que se ilude em compartilhar
um Mesmo mundo. (Deleuze, 2006a, p. 316-319; Deleuze, 2003, p.78-80).
E assim, o bom senso e o senso comum se refletem entre si numa regra de
partilha universal que é universalmente partilhada. Regra que assegura as
ilusões de uma verdade universal e eterna e estabelece a filiação entre o Eu, o
27
mundo e Deus, a trindade absolutista (Deleuze, 2006a, p. 316-319; Deleuze,
2003, p.81).
Somos envolvidos de tal forma por essas ilusões de universalidade,
transcendência, eternidade e discursividade que acabamos por suportar o peso
da circulação das opiniões dominantes e suas palavras de ordem, fazendo-nos
prisioneiros de um horizonte relativo e imóvel e participantes de um rebanho
de discurso igualitário: terreno fértil para a maquinaria do ressentimento. É
como se não pudéssemos suportar os movimentos e as velocidades infinitas da
imanência, de um horizonte absoluto, das singularidades de superfície, das
potências da vida (Deleuze; Guattari, 1992, p. 67-68).
Enquanto somos integrantes submissos de um rebanho, submetemos o
pensamento às exigências da representação, onde um “elemento do saber se
efetua através de um objeto pensado recognitivamente por um sujeito que
pensa” (Deleuze, 2006a, p. 272). Assim, a diferença não pode ser pensada em si
mesma, na relação do diferente com o diferente, mas apenas através de
categorias representacionais: a identidade, a semelhança, a oposição e a
analogia.
3
Categorias que organizam o mundo daqueles que não conseguem
descrever ou comparar variações sem pressupor um fundo invariável, sem
perguntar onde estão os universais, quem são seus superiores e seus
subordinados, qual é a sua fatia do bolo. Contra esses, nós nos movemos,
destronando as noções metafísicas de essência e de tipo. Reivindicamos uma
atividade do pensamento que não seja a de reconhecer, classificar e julgar por
meio de substâncias extensivas. Começa uma torção que nos joga ao amplo
espaço das multiplicidades e que tem como efeito, entre outros, a liberação do
pensamento como diferença intensiva (Viveiros de Castro, 2007, p.95-98).
3
Identidade, fundada neste sujeito pensante que estende “ao conceito seus concomitantes subjetivos, a
memória, a recognição e a consciência de si”; semelhança que submete a diferença ao que reconhece
como igual e remete o diverso ao estatuto de negativo; oposição e contradição que coloca o diverso de
cabeça para baixo no intuito de produzir um contrário para afirmar o mesmo e, por fim, analogia que
determina os gêneros e as categorias que permitirão que a diferença seja julgada como o que é ou não é,
fazendo da diferença uma simples diferença conceitual ((Deleuze, 2006a, p. 363-374).
28
Porque é no pensamento que ocorre a desterritorialização absoluta: a
terra como puro plano de imanência. Mas esta desterritorialização absoluta
precisa encontrar uma desterritorialização relativa, aquela que movimenta os
territórios que se inscrevem sobre a terra, para poder dramatizar as ideias.
Pensar por imanência é pensar geograficamente, ter por verbo de operação o
conectar; enquanto que pensar por transcendência opera projetando tanto o
passado reconhecido quanto o futuro provável sobre o que acontece (Deleuze;
Guattari, 1992. p. 117).
Nós corremos com a matilha que quer pensar diferente e a partir da
diferença. Não podemos mais marchar com os rebanhos que não podem criticar
o que pensam porque para isso teriam que desconstruir as próprias categorias
através das quais pensam que pensam (Viveiros de Castro, 2007, p.97). Nesta
perspectiva dominante, a razão ganha todas as batalhas e acaba por endossar a
união mística do Capital com a terra, tal como experimentamos no império
planetário capitalístico contemporâneo (Idem, p.92-97).
A vida acontece
Agora, com uma lente multifocal, evocamos singularidades provenientes
de uma superfície de incorporais, pré-pessoais, pré-individuais. Nós nascemos
para encarná-las. Tornamo-nos a quase-causa do que se produz em nós. Mas
isso não quer dizer que somos a carne de tudo o que acontece, de todo e
qualquer acidente. O acontecimento se distingue do acidente porque está
sempre em excesso. O que é próprio do acontecimento não é a sua efetuação,
mas a suspensão na decomposição do instante numa multiplicidade em devir.
O acontecimento é a pura reserva do que ainda não é (Pelbart, 1998. p. 95-96).
Buscamos a potencialidade das variações existenciais através de um
plano que se constrói a partir de encontros e acontecimentos em incessante
mutação. Como espaço de clinamem, um acontecimento que produz rupturas,
catalisa fluxos e decompõe-se em diversos outros, carrega a potência de ser um
29
analisador. Como forma de crítica e não de compreensão, o espaço do clinamen
é aquele onde se produz um desvio, “desventurados equívocos de re-criação”
(Bloom, 1991. p. 75), onde as linhas se esvanecem na própria ilusão de
continuidade, fixidez e permanência. Assim, os movimentos do plano
produzidos pelos encontros possibilitam uma cartografia da confluência e da
dispersão de suas linhas (Passos; Barros, 2000. p. 76).
O clinamen é o desvio que se no choque com a intempestividade dos
acasos. Então, não somos nem indivíduos fechados sobre si, nem meros corpos
de inscrição de necessidades mercadológicas. Provenientes do que
contemplamos (Deleuze, 2006a, p.115), “somos seres acidentais” (Tarde, 2007. p.
171): um rosto é um encontro fortuito de traços; uma ideia é um encontro
fortuito de memórias (Idem, p.137); um corpo é uma associação, uma
combinatória, enfim, um encontro fortuito destinado a outros encontros tão
imprevisíveis quanto irreversíveis. E são estes os encontros que nos dão
possibilidades de desviarmos do ‘si mesmo’ para podermos expandir e tatear
em todos os sentidos (Idem, p.172).
“Nossas mutilações, nossas feridas são nossos
sinais de identificação; e na sucessão de aventuras que
caracterizam cada momento de nossa vida, não posso ver
senão a continuação da aventura primeira, do casamento
único, singular, ao qual devemos o fato de termos
aparecido, de termos sido individualizados um dia.
Nascidos de um encontro, que nos fez diferentes de todo
resto do universo, vamos nos esbarrando e nos alterando
até a morte; e tudo isto é justamente chamado fortuito, pois
os seres que assim se cruzam não se buscavam, mas nem
por isso seu cruzamento foi menos necessário e fatal”
(Idem, 2007. p. 178-179).
Por isso devemos ser dignos do que nos acontece, querer algo no que
acontece, arrancar algo do que acontece! Amor fati: o combate dos homens
livres! É isso que faz com que não sejamos simples obras do acaso e nem donos
de um “livre arbítrio” individual. Não ouviremos nem veremos muito. A
autodefesa estará no gosto que faz a seleção: “diremos não, onde o sim é um
altruísmo, e diremos não o mínimo possível” (Nietzsche, 2008, p.44).
30
Assim, acrescentamos a uma necessidade orgânica, uma vontade
espiritual. “O necessário não me fere, amor fati é minha natureza mais íntima”
(Idem, p. 101). Pois todo acontecimento tem o momento de sua efetuação, sua
encarnação em estados de coisas, indivíduos, pessoas, mas tem também seu
excedente, aquilo que não pode se realizar, mas por isso mesmo espera por
criação, por linguagem para se exprimir... (Deleuze, 2003, p.151-156). “Eis
porque a linguagem não cessa de nascer”, porque o sentido é anterior à
significação (Idem, p. 171). Neste ponto, nos desvencilhamos da interpretação
que opera como sobrecodificação. Tudo é interpretação, portanto, o que
fazemos e faremos serão novas interpretações.
Temos necessidade de sentido. Somos habitados por espíritos ávidos que
não se cansam de perguntar “que diferença há?” (Deleuze, 2006a, p.121). A
necessidade se inscreve na abertura desta questão e é muito mal compreendida
quando tomada como uma estrutura negativa, relacionada à carência, à
intencionalidade e à utilidade, como uma falta que exige uma ação de
satisfação. Ela se inscreve muito melhor na emergência de um excesso
acontecimental (Maciel Jr; Melo, 2006, p. 77).
O acontecimento produz “um intervalo entre a percepção e a ação, um
interstício onde se aloja uma afecção” (Pelbart, 1998. p.52) e abre uma fissura na
superfície onde os sentidos são produzidos, descolados das ações e paixões dos
corpos. Por isso o Eu é sempre rachado por essa forma pura e vazia do tempo
(Deleuze, 2006a, p.133) e o sentido não habita outro lugar senão uma fissura.
Fissura que não se encontra nem no exterior nem no interior, mas na
fronteira, insensível, incorporal, ideal
4
, onde tudo de ruidoso acontece: a mesma
4
A partir daqui haverá uma distinção necessária entre a ideia platônica, descendente de uma essência
metafísica que preexiste à encarnação e o conceito de Ideia que encontramos na obra deleuziana,
principalmente em Diferença e Repetição. Deleuze (2006a, p. 271/272) opõe a Ideia enquanto estrutura-
acontecimento-sentido e a ideia enquanto representação: “na representação o conceito é como a
possibilidade; mas o sujeito da representação determina ainda o objeto como realmente conforme ao
conceito, como essência. Eis por que, em seu conjunto, a representação é o elemento do saber que se
efetua no recolhimento do objeto pensado e em sua recognição por um sujeito que pensa. Mas a Ideia
importância a características totalmente diferentes. A virtualidade da Ideia nada tem a ver com uma
possibilidade. A multiplicidade não suporta nenhuma dependência em relação ao idêntico no sujeito ou no
objeto. Os acontecimentos e a singularidades da Ideia não deixam subsistir nenhuma posição da essência
como ‘aquilo que a coisa é’. Sem dúvida, é permitido conservar a palavra essência (...) quando ela é
precisamente o acidente, o acontecimento, o sentido, não somente o contrário do que se chama de
31
fissura que racha o Eu, racha o mundo! Por isso a fissura do acontecimento é
desejável e tem como tema um inevitável ferimento, que faz da doença uma
exploração da saúde. Ela opera relações complexas de interferência e
cruzamento entre o que acontece no interior e no exterior: experimentação
terrificante de distensão das bordas... (Deleuze, 2003, p. 158-164)
A fissura prolonga sua linha reta incorporal e silenciosa na superfície e os
golpes exteriores e os ruidosos impulsos internos a fazem desviar,
aprofundando-a, inscrevendo-a, efetuando-a na espessura do corpo (Deleuze,
2003, p. 159). Então, não porque distinguir acontecimentos privados de
acontecimentos coletivos. Assim como a guerra não é assunto privado, não
ferimento que não seja de guerra e oriundo da sociedade inteira! (Idem, p.155).
É isso que nos a potência de um pensamento clínico: um pensamento ético,
estético e político capaz de denunciar e destituir “tanto a potência do
ressentimento no indivíduo quanto a opressão na sociedade” em qualquer caso.
Muito mais um geomorfismo: as grandes fissuras substituindo a fina porcelana
íntima e familiar (Idem, p. 158).
E muito mais geografia do que história! É certo que a história é capaz de
falar das condições das quais nos desviamos para produzir o novo e sem as
quais o devir permaneceria indeterminado. Mas o devir não é histórico. É, sim,
o elemento não-histórico, a-histórico, capaz de engendrar-se com o que está fora
de uma determinada configuração territorial. É a geografia que arranca a
história do culto da necessidade e das origens para afirmar a irredutibilidade da
contingência, a potência do meio (Deleuze; Guattari, 1992, p.117). Para além do
físico e do humano, geografia é paisagem, atmosfera, hecceidade em suas
eminentes e imanentes rachaduras: a singularidade de um dinamismo espaço-
temporal e sua dramatização.
Em vez de nos aliarmos à história na procura de cadeias causais,
deixando-nos fascinar pelas origens e suas explicações, agimos sobre ela
fazendo-a desviar de si através de sua própria força propulsora (Passos; Barros,
essência, mas o contrário do contrário: a multiplicidade é tanto aparência quanto essência, tanto múltipla
quanto una”.
32
2001. p. 76). Em vez de fazer a história dos heróis, fazemos a geografia dos
rebeldes (Branco, 2000, p. 35).
Para tanto, não salvaremos a organização da superfície, a linguagem e a
vida, se não nos arriscarmos nessa distensão. Não atingiremos esta política e
esta guerrilha, sem provarmos ao menos um pouco essas fissuras que nos
colocam à margem e comprometem o corpo em busca de uma grande saúde:
apreender a verdade eterna do acontecimento. Mas devemos também duplicar
essa efetuação dolorosa numa contra-efetuação que a transfigura, que a
transvalora, que nos leva mais longe do que acreditávamos que poderíamos ir
(Deleuze, 2003, p. 154): a vida como obra de arte.
Clínica e Criação
Apresentamos cenas, casos ou causos, não histórias de sujeito. Histórias
de sujeito responderiam à pergunta que é? e às suas derivadas quem é?, por que
é?, como é?, questões que prejulgam as respostas, pois as circunscrevem numa
suposta essência identitária. Trabalhamos essas cenas como mapas, como
paisagens, reavendo seu movimento real, aquele que percorre uma
multiplicidade, descolando-o de um movimento abstrato que percorre apenas
as categorias representacionais identitárias, remetendo-o à sua heterogênese
singular. Fazemos as perguntas como?, onde?, quando?, quanto?, livrando-nos do
verbo ser e remetendo o caso às suas verdadeiras coordenadas espaço-
temporais, que são traçadas a cada encontro de singularidades (Deleuze, 2006b,
p.151-154).
Montamos, então, mapas conceituais, existenciais e artísticos para propor
um programa clínico muito mais próximo de uma máquina produtiva do que
de uma máquina interpretativa.
Tornar visíveis modos de existência criadores é a única maneira de viver
a existência como problema e o pensamento como intensidade e experimentar
a única possibilidade da vida: a produção, a criação. A superioridade
33
intensiva é a dos afectos, o encontro com o heterogêneo onde toda a
afectividade se abala e se redistribui sob um critério imanente. A autoafirmação
de nossas faculdades coincide com a afirmação do novo, do desvio, da saída
(Zourabichvili, 2004, p. 60-61). Mas não fugimos do mundo, acompanhamos um
mundo em fuga.
Pois a vida não encontra o mundo pré-concebido, a vida faz dos
processos de experimentação, destruição e criação do mundo, processos
simultâneos que não têm outro funcionamento que não o agenciamento e a
relação de componentes muito diversos. Componentes bioquímicos,
comportamentais, perceptivos, hereditários, adquiridos, improvisados, sociais
podem se envolver em agenciamentos que não respeitam distinção de ordem,
nem hierarquia de formas. O que os mantém juntos não são causalidades
lineares, mas sim, seu componente mais desterritorizalizado, capaz de abrir um
agenciamento pra interagenciamentos (Deleuze; Guattari, 2002, p.150-151).
Devires moleculares, animais, vegetais, cósmicos se inserem na potência
imanente da paisagem, sem, com isso, comprometer o desenvolvimento das
sociedades. Isso é antes o que acontece, mas é abafado pelas formas majoritárias
de relação: o Estado, a família, a conjugalidade, a propriedade, que não
admitem a crítica em nome da manutenção de um suposto equilíbrio
homeostático (Guattari; Rolnik, p. 283, 1993). Territórios humanos, com bichos
humanos, línguas humanas, cenários humanos, trajetos humanos... tudo tão
demasiadamente humano que nos produz náusea... Mas parece que o rebanho
luta para continuar cansado em sua analgésica produção de si mesmo. Sentimo-
nos longe do esgotamento.
Então, o que é mais essencial num programa clínico é tratar de
problemas e de questões como potências críticas. Pois os problemas e as
questões são potências vindas de um fundo virtual e que se deixam resolver
apenas parcialmente, numa coordenada espaço-temporal, uma hecceidade, tão
momentânea quanto evanescente. São potências do inconsciente, de absurdo e
de enigma que não se reduzem nem ao questionador, nem ao questionado
(Deleuze, 2006a, p. 277).
34
Aqui o problema é o da insuficiência do lógico e do consciente: a clínica
se no deslize, no desvio de uma organização para a outra ou numa
desorganização criadora e a crítica age como determinante desses níveis
diferenciais (Deleuze, 2003, p. 86).
Não forneceremos, portanto, representações que nos possibilitariam a
compreensão do inconsciente, queremos produzir inconsciente! Pois a estrutura
do inconsciente é questionadora e problematizante e não conflitual, oposicional
ou de contradição (estrutura que o compreende submisso às categorias da
representação). O próprio inconsciente é o virtual
5
em sua potência
problemática expansível (Deleuze, 2006a, p.165).
Reivindicamos o futuro como desdobramento e explicação do múltiplo,
do diferente, do fortuito por si mesmos. Então é preciso que a clínica se ocupe
mais da obra e da produção do que do agente como sua condição. O sujeito é
uma interface entre o virtual e o atual e é nos processos de atualização que um
sujeito pode experimentar a potência da criação de sentidos como processo de
distinção intermitente de um todo indiferenciado, do mundo e,
consequentemente, de si mesmo.
Trata-se de produzir, na obra, um movimento capaz
de comover o espírito fora de toda representação; (...)
inventar vibrações, rotações, giros, gravitações, danças ou
saltos que atinjam diretamente o espírito (Deleuze, 2006a,
p. 29).
“A que estaríamos destinados senão a problemas que exigem até mesmo
a transformação de nosso corpo e de nossa língua?” (Deleuze, 2006a, p.272). O
movimento clínico torna-se essencialmente cartográfico e a experimentação,
uma pura potência do falso, em direção ao futuro.
5
Em Deleuze, o virtual não se opõe ao real, apenas ao atual. O virtual significa que nem tudo é dado,
nem passível de ser dado, mas que tudo que acontece provem do mundo enquanto imanência, onde o real
se constitui de uma parte virtual e outra atual (Zourabichvili, 2004, p. 62-63). Porém, o virtual não pode
ser confundido com o possível. Este se opõe ao real e depende das características do já existente (e,
portanto, representado) que lhe conferem possibilidade. a atualização do virtual “sempre se faz por
diferença, divergência ou diferençação. A atualização rompe tanto com a semelhança como processo
quanto como com a identidade como princípio” (Deleuze, 2006a, p. 316-319).
35
Porque temos direito ao futuro, “um elevado direito ao futuro”
(Nietzsche, 2008, p.16). Mas um futuro diferente daquele previsto pelo senso
comum e o bom senso: o futuro como um presente seguinte. O futuro aberto
por esta fissura acontecimental é onde a ação e a obra são o que interessa! O
Eu é fragmentado, pois a ação se volta contra o agente. Ela não quer o Eu como
condição, quer atingir o incondicionado, o virtual, aquilo que ainda não é.
Esfacela-se o Eu, pois o que se vê no espelho é o desigual em si.
Fantasmas do Futuro
Temos então um exercício filosófico que busca tudo que é estranho e
questionável no existir, tudo que o juízo torna negativo e a moral se esforça por
banir. Um perspectivismo, uma psicologia do ver além do ângulo, uma
transvaloração dos valores (Nietzsche, 2008, p.16-22), sem que isso implique
simplesmente inversões, que dariam ao negativo o estatuto de verdade. O que
se opõe ao verdadeiro não é o falso. Esses são os dois lados da moeda corrente
da ortodoxia. O que se opõe ao verdadeiro é o não-senso, o disparate, o
paradoxo, os fantasmas.
Inventam-se fantasmas como efeitos. “Pois não causas e efeitos entre
os corpos: todos os corpos são causas, causas uns com relação aos outros, uns
para os outros. A unidade das causas entre si se chama Destino na extensão do
presente cósmico”. os efeitos são incorporais, atributos, acontecimentos que
subsistem e insistem na superfície. A liberdade está salva na interioridade do
destino como ligação das causas e na exterioridade como laço da distância entre
os efeitos (Deleuze, 2003, p. 5-7).
E os fantasmas são puro efeito: não representam uma ação ou uma
paixão, mas seus resultados, puros acontecimentos que diferem em natureza de
suas causas e que estão sempre em excesso em relação às suas efetuações. É
que o acontecimento reside por inteiro e se oferece à contra-efetuação: nossa
mais alta liberdade, seu desenvolvimento e sua transmutação (Deleuze, 2003, p.
36
217-219). Caminho de glória do fantasma: operação proustiana que percorre a
transfiguração de um signo mundano em um signo de arte. Experiências
psíquicas que fazem a comunicação de séries disparatadas.
Os fantasmas carregam tanto a potência de um passado imemorial, um
passado de que não nos lembramos, povoado de pura virtualidade, de seres
inexplicáveis pelo presente, quanto uma potência de futuro. O futuro está no
virtual e não no amanhã.
Assim, o exercício reminiscente não busca o passado empírico, como se
pudesse reapresentá-lo e representá-lo ao modo de um flashback (Pelbart, 1998.
p. 15). Toda reminiscência é um passado que se apresenta como um fantasma,
um objeto virtual. Por isso os deslocamentos e os disfarces... Por que
procuraríamos o que atrás do disfarce? Por que correríamos atrás daquilo
que permanentemente se desloca? Se a graça está justamente no disfarce que se
apresenta e no movimento que se faz?
“Desmascarar alguma coisa ou alguém é uma ilusão” (Deleuze, 2006a,
p.157). Atrás de uma máscara há outra máscara que apresenta, comunica e
movimenta um objeto virtual que é sempre um objeto parcial. Mas falamos de
uma parcialidade que não provém de uma origem total (o suposto objeto real
encontrado num antigo presente), muito menos ele é parcial porque lhe falta
uma parte. Permanecer não-totalizável é a essência do objeto virtual, pois ele
não faz parte de um antigo presente, arquivo de memórias-lembranças, e sim,
de um passado puro. É em direção a este passado puro e imemorial que nos
remetemos eroticamente, durante o exercício da reminiscência, a um passado
que jamais foi presente. Ao procurar um mesmo suposto verdadeiro que se
repetiria sob os disfarces, ignoramos a diferença, um objeto virtual que insiste
em animar o real (Idem, p.150-155): sua potência de futuro! Então, não importa
a direção que tomamos, a busca é sempre da aventura, não da origem...
Desviamo-nos da origem (Deleuze, 2003, p. 312-313) e “o investimento
especulativo substitui a regressão psíquica” (Idem, p. 245)
Portanto, não nos ocupa a preocupação em distinguir real de imaginário.
“O que aparece no fantasma é o movimento pelo qual o Eu se abre à superfície e
37
libera as singularidades acósmicas, impessoais e pré-individuais que
aprisionava”: Narciso ferido, verbos no infinitivo que escapam dos sujeitos e
dos adjetivos (Idem, p. 219-220)...
Então, não somos livres enquanto indivíduos. Esta há de ser a mais
terrível das prisões. Somos livres na virtualidade ilimitada da conexão dos
efeitos, nas sínteses disjuntivas de que são formados, dos quais somos parte da
causa, a quase-causa, o Destino. Habitamos hecceidades, individuações sem
sujeito (Deleuze; Guattari, 2004). Podemos até nos sentir mais livres. Porém, a
liberdade que podemos encontrar está longe de ser representável, quiçá nos
devolverá algum conforto ou apaziguamento perdido. É a liberdade de habitar
a mais movediça das terras.
“E sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo
que é mítico, fantástico, gigantesco: a vida é sobrenatural”
(Lispector, 1998, p. 27).
“E quando estranho a palavra aí é que ela alcança o
sentido. E quando estranho a vida aí é que começa a
vida” (Idem, p. 76).
Rota de Fuga
Atravessar rebanhos capitaneados por identidade e representação para
destroná-los de suas ilusões de verdade. Desmontar pensamentos de rebanho
ali mesmo onde eles pensam se sustentar. Agir por entre os universais. Andar
pelo proibido. Buscar a aventura. Não estar seguro nem suficientemente forte,
pois não haverá “um sistema, apenas linhas e movimentos” (Deleuze; Guattari,
2002b. p. 170). Integrar um corpo-matilha, sem órgãos nem patrões, um corpo
do qual não se tem ideia antes de sua encarnação. Frequentar a superfície.
Afetar-se pelo movimento do vento. Falar por bocas solares que cantam e voam
quando atravessadas pelo vento. Trocar perspectivas. Operar no infinitivo.
Habitar hecceidades. Sair pela tangente. Escapar para o cosmos. Ter como fim,
sempre e só, uma ilha deserta... Criar outro outrem.
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ELAS
39
CENA 1: uma tarde
Sonhos de rebanho em catástrofe
Todo mundo quer a vida que eu pedi a Deus
(Lisboa, 1988)
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O DESVIO
Ela vinha destacada da paisagem, tão absorta em pensamentos que se
repetiam, tão assustada com o que não acontecia que poderia entrar para a estatística
como mais uma vítima de atropelamento em frente ao Pronto-Socorro da cidade. A
questão é que Ela não era dada a estatísticas, localizava-se mais precisamente nos
desvios-padrão. Mas não sabia disso, porque queria sempre saber que lugar ocupava nas
estatísticas e só compreendia dos desvios, o padrão.
– Tia?! Quer comprar toalha?
Aquela voz estranha fez um buraco em seu monocórdico mundo interno,
congestionado de um conflito existencial que desembocava sempre na mesma crença
“Eu sou sozinha” – e que redundava sem parar.
– Toalha?! Não, não preciso de toalha.
– Pano de prato tia, eu tenho pra vender!
Ao olhar para aquele estatístico menino, encontrou um olhar estranho no olhar
de uma menina.
– Como é teu nome?
– Pra que tu quer saber meu nome?
– Me diz teu nome!
– É Lívia, tia!
Naquela tarde, não deixou que passassem por ela conflitos-padrão como ‘dar ou
não dar esmolas’, ‘alimentar ou não a exploração infantil’... Nem perguntas estatísticas
do tipo “você estuda?”; “quem te manda vender pano de prato?” ou então “quanto é?”.
Deixou que se produzisse entre elas uma pergunta-desvio:
– Vamos passar a tarde juntas?
41
Agora, encontramos a integrante de um rebanho composto de sujeitos
que pensam habitar identidades, séries identitárias. Resolvemos acompanhá-la:
Ela se reconhece numa série identificatória mulher-classe-média-sozinha e
reconhece uma série identificada como criança-de-rua-pobre-pedinte.
Acompanhamos como se processa seu pensamento: é um pensamento
subjetivador/subjetivado que redunda numa palavra de ordem: Eu sou sozinha.
É notável como, nesta afirmação, o sujeito e o predicado do ser tornam-se o ser.
Como integrante deste rebanho, habita os currais neuróticos: como
podemos acompanhar, Ela procura a saída na própria afirmação da palavra
de ordem que a escraviza Eu sou sozinha; as explicações numa pergunta que
remete essa palavra de ordem a um passado por Ela vivido por que Eu sou
sozinha? e o futuro a uma previsibilidade que promete dar continuidade ao
circuito Eu acabarei sozinha.
Julga-se em condições de categorizar o que encontra por meio de uma
operação generalizadora, um “clichê perceptivo” (Deleuze/Guattari, 1992. p.
194). Tem um olho objetivador/ojetivado. O que encontra é a série que este olho
foi treinado a identificar: criança-de-rua-pobre-pedinte.
É um rebanho de sujeitos cindidos: uma realidade subjetiva e uma
objetiva. O Eu se percebe separado do mundo e ergue barreiras impermeáveis
para assegurar sua identidade. A existência é afirmada numa profundidade
interior, onde o pensamento é dominado por representações que objetivam o
que é exterior (Albuquerque, 2002. p. 220-221). Este processo faz com que Ela se
pense sujeito de enunciação, ou seja, tudo que diz provém de si mesma e é
remetido a si mesma (Deleuze, 2006b, p.346).
42
Tal rebanho está sob o legado de um bom senso que fixa as séries a um
sentido único e de um senso-comum que designa as identidades como
identidades fixas (Deleuze, 2003. p. 3). Habitam-se, assim, séries exclusivas
destinadas a um fim, uma ordem e um percurso resignado que fazem ver a
injeção e o consumo de crenças encontradas no inconsciente e que nada têm de
irracionais, pelo contrário, são demasiadamente racionais e adequadas à ordem
estabelecida (Deleuze; Guattari, 1996. p. 62/63).
E, neste ponto, o pensamento ortodoxo começa a ruir, pois o bom senso é
uma verdade parcial (a razão) que se une ao sentimento do absoluto para
caracterizar-se como essencialmente distribuidor e repartidor. Desta forma, é
capaz de conjurar as diferenças numa regra de partilha universal que
uniformiza o diverso e igualiza o desigual. O bom senso quer prever mais do
que agir, moldando o sentido do tempo como uma flecha que vai de um
passado representável a um futuro provável, do particular ao geral. É que se
gesta o senso comum definido “subjetivamente pela suposta identidade de um
Eu como unidade e fundamento de todas as faculdades e, objetivamente, pela
identidade de um objeto qualquer ao qual se julga que todas as faculdades se
reportem” num intermitente processo de recognição. Assim, o bom senso e o
senso comum se refletem entre si constituindo as duas metades da ortodoxia:
regra de partilha universal e regra universalmente partilhada que assegura as
ilusões de uma verdade universal e eterna (Deleuze, 2006a, p. 316-319).
Vejamos: quando mulher-classe-média-sozinha e criança-de-rua-pobre-
pedinte se encontram, o pensamento do rebanho encara este encontro como se
ele não produzisse qualquer alteração, como se as séries continuassem de
acordo com o senso-comum: a mulher-classe-média-sozinha compra um pano
de prato ou não compra um pano de prato da criança-de-rua-pobre-pedinte,
umas moedinhas ou um cachorro-quente, mas a criança-de-rua-pobre-pedinte
continua sendo identificada como criança-de-rua-pobre-pedinte.
“Existe aí, como para cada um de nós, uma linha de
segmentaridade dura em que tudo parece contável e
previsto, o início e o fim de um segmento, a passagem de
um segmento a outro. Nossa vida é feita assim: não apenas
43
os grandes conjuntos molares (Estados, instituições,
classes), mas as pessoas como elementos de um conjunto,
os sentimentos como relacionamentos entre pessoas são
segmentarizados, de um modo que não é feito para
perturbar nem para dispersar, mas ao contrário, para
garantir e controlar a identidade de cada instância,
incluindo a identidade pessoal.” (Deleuze/Guattari,
2004b, p. 67)
Quando linhas de segmentaridade duras como essas tomam a
centralidade da existência, bloqueia-se (ou dificulta-se bastante) a passagem de
devires capazes de produzir outramento tanto em nossas pequenas vidas
pessoais quanto no microfascismo relacional que estas séries camuflam. A
noção de um EU idêntico a si mesmo é cúmplice das estruturas opressivas
(Nietzsche apud Deleuze, 2006a. p. 169): maldita vontade de espelho!
Entendemos que a produção subjetiva centralizada na interioridade das
séries identitárias se caracteriza pelo estabelecimento de naturezas, modelos e
pensamentos que acabam por despolitizar a existência, dificultando a fluidez
que permite a criação, a invenção, a conexão. Mas em nosso plano, não consta
simplesmente negar ou esconjurar séries identitárias. Trata-se, também, de
afrouxar os pontos de amarra que aprisionam a existência, remetendo essas
séries às máquinas que as produzem, descentralizando e desnaturalizando o
sujeito de enunciação, numa tentativa de politizar a subjetividade e seus
processos de produção (Abreu; Coimbra, 2005. p.42/43).
“Não se luta contra os clichês perceptivos e afetivos
se não se luta contra a máquina que os produz” (Deleuze;
Guattari, 1992. p. 194).
Para que um clichê perceptivo seja colocado em questão, é preciso que
algo abale sua fixidez, sua certeza. E eis que uma pergunta acontece: Vamos
passar a tarde juntas?. Aí está o escape, o desvio, o clinamen, o ponto de
afrouxamento para onde voltamos nossa atenção, pois diante dessa pergunta,
ocorre um deslizamento inevitável dessas ries. “Tudo flui” (Nietzsche, 2003.
p. 239/240), mesmo quando os rebanhos se deixam viver sobre pontes ou entre
cercas, mantidos por sentinelas de palavras de ordem e de ressentimento.
44
Minha filha, tenha juízo!
A história da perspectiva dominante é paralela ao desenvolvimento de
uma doutrina do juízo generalizada, o ponto de vista universal e absoluto do
Estado, “ponto em que a acusação, a deliberação e o veredicto se confundem ao
infinito” (Deleuze, 1997, p. 143). A condição do juízo é ter a consciência de ter
uma dívida infinita e impagável para com uma divindade tão absoluta, que é
eterna. A vida passa a ser julgada conforme supostos valores superiores: os
lotes e os cercadinhos que culminam no loteamento de si mesmo com direito a
tribunal interiorizado e sonhos que não são mais do que promessas de
continuar sob o jugo de Deus.
A doutrina do juízo reservou-se inclusive o direito de dizer como seria
um mundo sem juízo (Deleuze, 1997, 153): um mundo onde o pai sempre fará
falta, um mundo sem a segurança da verdade, um mundo bárbaro e sem
ordem.
Mas o que é verdade? Verdade é o que está perto demais... mas não
podemos estar perto demais, perto demais podemos ver de que é feita tal
verdade! Então o juízo nos mantêm à distância do que produz o próprio
julgamento. Quem quer estar seguro por uma verdade inventada? Quem quer
sonhos colonizados por imagens cafonas e idealizadas de televisão? Quem quer
pensar o que deve ser pensado? Quem quer uma felicidade ofertada como
Éden a merecer, buscar e comprar e então gozar... Quem quer um
inconsciente ocupado, colonizado, loteado, construído e decorado? uma
existência de rebanho é capaz de se conformar com a condição de sujeito
eternamente insatisfeito, vendendo seu desejo para ficar cada um no seu
quadrado.
Quem disse isso?
“Chamamos palavras de ordem não uma categoria
particular de enunciados explícitos (por exemplo, no
imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de
45
qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja,
com atos de fala que se realizam no enunciado, e que
podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem não
remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os
atos que estão ligados aos enunciados por uma ‘obrigação
social’. Não existe enunciado que não apresente esse
vínculo, direta ou indiretamente. Uma pergunta, uma
promessa são palavras de ordem” (Deleuze/Guattari,
2004b. p. 16).
Eu sou sozinha repetia Ela a si mesma, às vezes com vontade de chorar, às
vezes tentando se convencer de que essa situação não mudaria e deveria se
conformar com isso, afinal, era estatístico: o índice de mulheres sozinhas
aumentava vertiginosamente e, inevitavelmente, algumas teriam que habitar
esse lugar. Mas nos seus pensamentos mais íntimos Ela achava que alguma
coisa poderia acontecer, que deveria acontecer, que Ela tinha direito que
acontecesse! Ela pedia justiça à vida, queria garantias de que venceria a aposta,
fazia promessas para merecer o prêmio com que sonhava.
Às vezes, quando sentava sozinha no seu café preferido, aquele daquele
cantinho meio escondidinho do shopping, imaginava que sentaria um homem
culto, educado e bem vestido numa mesa próxima à sua, se interessaria pelo
que Ela estava lendo, conversariam sobre isso, ele descobriria como Ela era uma
mulher maravilhosa e jamais a deixaria sozinha de novo.
Qualquer semelhança com os roteiros dos folhetins televisivos não será
mera coincidência: as imagens clichê não cansam de dominar a imaginação e
colonizar o inconsciente. Os rebanhos não cansam de inventar pretextos para
seus sofrimentos, não cansam de revolver seu passado e seu presente buscando
histórias escuras e questionáveis como explicações causais. É assim que Ela se
intoxica do próprio veneno, pois no mesmo momento em que procura os
culpados de seu sofrimento, conclui que Ela pode ser culpada de si mesma,
algo que Ela mesma fez é responsável pela punição que cumpre e a redenção
de lhe trazer o apaziguamento perdido. Ideal ascético que move tanto as
religiões escravocratas, quanto os ideais modernos. É o motor da esperança,
enquanto estado de espera, retardo da ação:
46
Assim, como produto da cisão Eu-mundo, o desejo, neste tipo de
rebanho, é tomado idealisticamente, determinado como falta, falta do objeto
real que é remetido a uma produção social exterior ao mesmo tempo em que,
interiormente, produz-se um imaginário que duplica a realidade como se
houvesse um “objeto sonhado por detrás de cada objeto real” ou uma produção
mental por detrás das produções reais (Deleuze; Guattari, 1996. p. 29/30).
O cara da mesa ao lado tomava seu café rapidamente, mal lia o jornal e
quiçá percebia sua presença. Ironicamente, ouvia Ivete Sangalo, redundante, ao
fundo vem meu amor, me tirar da solidão... e seus pensamentos voltavam ao ponto
de onde haviam partido, sem nunca terem saído da série: sou sozinha, por que sou
sozinha? acabarei sozinha...
Ela sonhava com o poder de realizar seus sonhos e obter os privilégios de
quem os conquista. Acabava por significar sua existência resignando-se
ressentidamente à redundância da palavra de ordem Eu sou sozinha e dando a
seu desejo um único sentido, apontado pela palavra de ordem dominante que a
permitiria dizer Eu sou casada. Percebemos então, como não se trata da
enunciação de um indivíduo e sim, de um agenciamento coletivo de enunciação
que se significa e se subjetiva num indivíduo. E a significância e a subjetivação
são grandes instrumentos de aprisionamento da vida, pois
“não existe significância independente das significações
dominantes nem subjetivação independente de uma ordem
estabelecida de sujeição” (Deleuze; Guattari, 2002a. p. 17).
Quando Ela afirma essa crença, carrega o peso de (re)senti-la.
Perpetuando assim, o espírito do rebanho
6
e seu desejo de dominar, que avalia
o valor de suas afirmações pelo peso que carrega e seu mérito, pelas promessas
que faz (Deleuze, 2006b. p.158-159).
6
“Esse é um dos principais sentidos do terminus nietzscheano ‘rebanho’, moral do ‘rebanho’, perspectiva
do ‘rebanho’, que tem a função de ressaltar o ponto de vista e o modo dominante de valoração do senso
comum, o igualitário e uniformizante; pois, em um rebanho, desconsideram-se principalmente as
possibilidades de singularização. A desconstrução desta perspectiva levaria as superstições e os
preconceitos ancestrais que fundamentam a psicologia a uma renovação através de uma concepção
pluralista da subjetividade (Giacóia Jr, 2001. p. 41-43)
47
“É em sua vitória que os escravos formam um tipo
7
(Deleuze, 1976. p. 97),
um rebanho carregado de memória. Um tipo que não (re)age, apenas
(re)sente (Ibidem. P. 92). Por isso a questão é como fazer o movimento, como
esburacar essas linhas duras, “para parar de bater com a cabeça” (Deleuze,
1991. p.2) e curvar as costas.
No dia em que Ela encontrou Lívia, encontrou um nome próprio, uma
singularidade que escapava das determinações dos clichês perceptivos. Alguma
coisa aconteceu e não era nada do que Ela idealizava. Não sabemos o que
aconteceu depois da pergunta vamos passar a tarde juntas?, mas para que tal
pergunta se produzisse foi preciso que Ela se esquecesse de afirmar Eu sou
sozinha tanto quanto de se perguntar por que Eu sou sozinha?. Quando esqueceu
de si mesma nada faltava e muito havia para juntar.
“Concluir-se-á imediatamente daí que nenhuma
felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança,
nenhum orgulho, nenhum gozo do instante presente
poderiam existir sem a faculdade do esquecimento”
(Deleuze, 1976. p. 94).
Como rachar o quadrado
A mulher-classe-média-sozinha se conjuga com o seguinte modo de
habitar a rua: espaço estriado, composto de caminhos que a levam de um ponto
a outro, traçados previamente e percorridos em automóvel próprio. Os pontos
são (re)conhecíveis: a casa, o trabalho, o shopping, a terapia, o supermercado, o
salão de beleza... Vai também ao parque mais próximo a para praticar suas
caminhadas diárias.
A paisagem é (re)conhecida: automóveis, ônibus, outdoors, os pontos de
referência (o Mac Donalds; o Pronto-Socorro; o colégio onde matricularia seus
filhos, se os tivesse), os jacarandás, as crianças-de-rua-pobres-pedintes... A
trilha sonora também: buzinas, motores, alarmes, sirenes, as chamadas da rádio
7
“Um tipo é, na verdade, uma realidade ao mesmo tempo biológica, psíquica, histórica, social e política”
(Deleuze, 1976. p. 92).
48
que ouve no carro e no walkman quando vai caminhar, o apresentador do
telejornal, a atriz da novela, tia, me dá uma moeda?...
“Todo um jogo de territórios bem determinados,
planejados. Tem-se um porvir e não um devir” (Deleuze;
Guattari, 2002a. p. 67).
Por fim, a rua guarda tudo aquilo de que Ela se protege: o frio, a sujeira,
o mau-gosto, o calor, a violência, as crianças-de-rua-pobres-pedintes, os
mosquitos...
Em tempos contemporâneos a rua não é lugar para encontros. Ela é capaz
de percorrer diversos pontos da cidade sem conversar com ninguém. Vive o
paradoxo de ser sozinha na multidão; de sentir-se disponível onde todos os
lugares estão ocupados; de pensar que tem menos do que merece onde
tanto para criar; de percorrer apenas os caminhos necessários onde tantos a
percorrer sem motivo algum; de ver a rua se tornar tanto mais perigosa quanto
menos a ocupa... Mesmo vivendo tais paradoxos não os habita. No império do
senso-comum não há paradoxos, todos estão nos seus lugares: a mulher sozinha
em seu carro, a criança pedinte na rua...
Naquela tarde, não conseguira colocar o carro no estacionamento para
clientes do prédio de sua terapeuta, então o deixou na rua, há duas quadras dali
e pensou que engraçado! Moro nesta cidade vinte anos, acho que nunca passei
nesta rua –. Quando ouviu aquele som tão corriqueiro: tia, quer comprar toalha?
percebeu-se na rua, na mesma rua que a criança-de-rua-pobre-pedinte. Mas por
que estavam na mesma rua, não era a mesma rua e Ela conseguiu encontrar
os olhos de uma criança e não de qualquer criança-de-rua-pobre-pedinte.
Surge então uma rua desconhecida, um espaço de deriva, composto
também de caminhos que podem nos levar às bordas daquilo que
reconhecemos. Ela não mais passava pela rua, mas habitava a rua como espaço
“onde se constroem territórios existenciais” (Fonseca, 2003. p. 256) com a
matéria disponível, com aquilo que podemos encontrar por , sem nunca ter
procurado, quiçá esperado idealisticamente, como Ela esperava que o cara da
mesa ao lado viesse morar bem no meio do seu quadrado.
49
Porque a rua é, por excelência, um espaço liso, uma superfície plana,
naquele momento, Ela pôde habitar um paradoxo: a mesma rua da qual se
defendia era o único espaço que lhe permitiria a criação de outra vida.
Ao habitar este paradoxo roçava uma borda, um limite, onde um
impulso criativo e experimentador podia ser encontrado, pois o paradoxo doa
sentidos, abalando a fixidez e o sentido único do bom-senso e do senso-comum.
Mas permitir o paradoxo é conceber a superfície onde se o acontecimento, o
acontecimento como sentido, que possibilita experimentações e modificações
nos corpos. Porque os encontros se dão na superfície é que um interior
profundo e impermeável, envenenado de memória individual e colonizado por
imagens clichê e palavras de ordem torna-se capaz de se abrir aos
acontecimentos do mundo! (Gil, 2002. p.131)
Acontecimento
Esta cena nos permite falar de um acontecimento. Mas qual é o
acontecimento? Não ter estacionamento interno e Ela ineditamente desviar seu
rumo para uma rua nunca dantes trafegada? Ou abandonar as perguntas
estatísticas para realizar uma pergunta-desvio? Ou surpreender-se com o olhar
de uma menina? Ou trocar o adjetivo ‘sozinha’ pelo verbo juntar?
É tudo isso e nada disso ao mesmo tempo. Para que tenhamos um
acontecimento precisamos estar diante do involuntário, do acaso, o que
localizaria o acontecimento no evento imprevisível que fez com que o caminho
habitual se desviasse e Ela se encontrasse na rua, para mirar a criança nos
olhos e então acontecer um convite. Mas o acontecimento se distingue do
acidente. O que é próprio do acontecimento não é a sua efetuação, mas a
suspensão na decomposição de um instante numa multiplicidade. O
acontecimento é a pura reserva do que ainda não é (Pelbart, 1998. p. 95-96). É
puro devir.
50
Nesta perspectiva, a existência é um fenômeno estético, movido pelo
devir. E é da afirmação de um devir que trata o acontecimento, pois nada é e
tudo está, ao mesmo tempo em que passa. Nada de culpado ou responsável
na existência, pois nada podemos pedir ao devir, ele não tem objetivo. Entre o
devir e o ser jogo, dança; não apostas, garantias ou promessas
(Deleuze, 1976. p. 19/20;38).
No dia narrado, Ela saía da terapia. Lá, disse mil vezes: Eu sou sozinha,
perguntou mil vezes por que Eu sou sozinha? e previu mil vezes se as coisas
continuarem assim, Eu acabarei sozinha; respondeu mil vezes que a culpa era das
estatísticas; do medo de ter um casamento desastroso, qual fora o dos seus pais;
da imbecilidade dos homens; depois pensou mil vezes que a culpa era sua, que
não era boa o bastante para casamentos... Por fim, concluiu uma única e última
vez, a vida é assim mesmo e jurou nunca mais voltar, pois a terapeuta não lhe
prometera a cura para sua solidão.
8
Quando Ela dá um único sentido ao desejo, não afirma o acaso, não
dança, não joga com ele, crê numa finalidade comum a cada lance e conta com
vários lances para uma mesma aposta. Não é à toa que gosta de estatísticas:
quer saber das probabilidades e, dentro do que é provável, não há nada a
inventar, apenas segue-se o senso comum. “Saber afirmar o acaso é saber jogar
(Deleuze, 1976. p. 22) com ele:
“não uma probabilidade repartida em muitas vezes, mas
todo o acaso em uma vez; não uma combinação final
desejada, querida, aspirada, mas a combinação fatal, fatal e
amada, o amor fati.” (Ibidem)
E então, o que se passou?
Quando perguntamos ‘o que se passou?’ não perguntamos se, ao se
encontrarem, elas passaram a tarde juntas ou não, se se gostaram, aonde foram,
8
Aí estão: ressentimento, má consciência e, por fim, o niilismo, a aceitação do real tal qual é e o peso que
ele faz carregar. “Por isso Nietzsche apresenta o asno e o camelo como impermeáveis a todas as formas
de sedução e tentação: são sensíveis apenas ao que têm sobre o dorso, ao que chamam de real. (...). O real
tal qual é, é uma idéia de asno” (Deleuze, 1976. p. 151)
51
se conversaram e sobre o quê... Queremos saber onde está a rachadura do
terreno:
Sozinha, por exemplo, pode sofrer um deslocamento da série identitária
para se tornar um predicado livre, um atributo impessoal, pré-individual. Não
prometemos, portanto, que o encontro entre as duas tornaria a sozinha
acompanhada, ou faria com que a criança deixasse de ser de rua ou pobre ou
pedinte, fazendo-as habitar séries ainda mais aceitáveis pelo senso-comum e
pelo bom senso: mulher-classe-média-casada ou criança-com-histórico-de-rua-
abrigada-freqüentando-escola-de-qualidade...
O que se passa na ordem do molecular, do imperceptível, do devir é o
que interessa. O que se passa é uma complicação das séries, pois as existências
não mudam de modo, mas um encontro coloca os modos de existência dados
pelo senso-comum em suspensão, liberando a ética nômade do devir (Pelbart,
1998. p.100). É que a individualidade se descola dos sujeitos para dar lugar a
individuações
9
momentâneas, tão fugazes e evanescentes quanto um olhar e
uma tarde... São hecceidades:
Como o olhar, que não está no olho visto nem no olho de quem vê. O
olhar é uma intensidade, um encontro, um afecto impossível de ser objetivado,
pois o sentido de um afecto se produz no acontecimento.
Diante da pergunta Vamos passar a tarde juntas? as séries identitárias
podem sofrer um processo de deslizamento, de desvio, de bifurcação, de
fragmentação, de clinamen, livrando-as da homogeneidade linear de uma cadeia
causal, remetendo os predicados à sua heterogênese, impessoalidade e pré-
individualidade e, assim, liberando-os para se agenciarem de múltiplas formas.
Então, a pergunta que nos interessa não é mais quem é Ela?, como Ela se
tornou o que é? ou quem Ela se tornará? e sim, como se passa uma tarde? e como uma
tarde passa?.
9
A individuação é um conceito desenvolvido por Gilbert Simondon a partir de uma crítica ao princípio
que cola a individuação ao indivíduo já constituído e, por conseguinte, pulveriza esta colagem por toda
parte. “Na realidade o indivíduo pode ser contemporâneo de sua individuação” e ela, contemporânea
de um princípio genético e não reflexivo, num movimento que vai do pré-individual ao indivíduo. Assim,
o indivíduo não é somente resultado, é meio de individuação. Este conceito permitirá então, distinguir
singular de individual: “singular sem ser individual, eis o estado do pré-individual” (Deleuze, 2006b, p.
117/118)
52
Numa tarde, os seres, o cenário, a atmosfera compõem-se mutuamente
arrebatando-nos na afecção singular de um instante que nos arranca das
afecções usuais e da percepção ordinária, tanto quanto da falsa centralidade de
nossas memórias individuais (Zourabichvili, 2004. p.44). Tornamo-nos uma
curiosa mistura, encontrando meios de “se ajeitar com o momento presente,
com o tempo que está fazendo, com essas pessoas que estão aí". Paramos de ser
sujeitos para nos tornarmos “acontecimentos que não se separam de uma hora,
de uma estação, de uma atmosfera, de um ar, de uma vida” (Deleuze/Guattari,
2002b. p. 49).
53
CENA 2: ocaso
Os duplos contra as essências
Jamais me deixarei submeter a esse
tribunal de justiça! Não sou nenhuma súdita
deste reino. Sou rainha de um país
estrangeiro!
Mary Stuart
10
10
Mary Stuart é a Rainha da Escócia do texto de Friedrich Schiller. O fragmento foi retirado da
montagem de Georgette Fadel e Juliana Galdino em reportagem para o programa Starte da Globo News,
em janeiro de 2009.
54
O ESPELHO
Lá vem Ela, imperecível, incorruptível, isolada de todas as outras em seu belo
corpo ideal, salto, gloss e baton.
Do outro lado, vem Ela, a cópia fiel, imperecível, incorruptível, isolada de
todas as outras em seu belo corpo ideal, salto, gloss e baton.
A ideia que tinham de seus corpos existia antes mesmo de os encarnarem.
Elas se encontram, miram-se nos olhos e se reconhecem. Simultaneamente,
olham para o lado. Elas se encontram no espelho e, do outro lado, no outro espelho.
Quantas de nós! Ela procura desesperadamente por si mesma em sua
imagem múltipla. – Onde estou? Onde estás? – Quem é esta outra que me espreita ali
do espelho e Eu não reconheço? O gloss se foi, uma perna falta, um salto quebra, uma
mão bifurca, o nariz aumenta, o queixo cai e os olhos duplicam.
Uma luz se desvia dos olhos múltiplos e se insinua vertiginosamente por
baixo das saias e dos saltos, pervertendo as ideias dos corpos e suas pretensões, lançando
as almas a uma distância impensável. Ela e a outra veem com todos os olhos a imensidão
escura de que eram feitas. As imagens se descolam dos corpos liberando seus simulacros
para se produzirem ao infinito... Já não encontram mais o ponto de onde viam e falavam.
Agudos, os olhos se multiplicam e os ouvidos ecoam. Os pontos de vista se perdem. Da
escuridão ouve-se o canto sem palavra de uma boca sem corpo carregada de um hálito
azul de onde emergem monstros e ciborgues e centauros e extraterrestres e fantasmas...
que ainda são Elas, mas agora esquivam-se das cópias que nascem abortadas em suas
almas bem pequenas: não marcham com as semelhantes, caminham entre elas na ponta
dos pés, malandramente, assim, de viés.
O corpo perece, se corrompe e se mistura. Perde-se numa multidão de
elementos que não o originais, nem cópias, nem modelos, nem reproduções. As bocas
se permutam e não são todas vermelhas de gloss e baton; são azuis, de vinho e noite,
passando de um corpo a outro, falando línguas gagas por entre babas que não pertencem
a Ela.
Não há posse. Mas Ela ainda reclama seu corpo ideal:
55
Não tinha eu saído de gloss e baton? Aquela ali por acaso sou Eu, de boca
azul? Mas que boca é essa, que vem assim se instalar nesta outra que me olha do outro
lado de mim?
Ela tenta desesperadamente resgatar seu Eu tentando em vão aprisioná-lo na
cópia fiel de si mesma, mas os espelhos se liquefazem, as existências se desorganizam e a
epidemia contagia todos os corpos do plano. Os limites se rompem e tudo transborda: as
peles produzem abscessos, as bocas vomitam, escarram, esporram, tudo sua e se infiltra,
fazendo poros nas peles que outrora se acreditaram paredes. Efeitos fluidos criam os
mundos onde Ela se banha.
A noite joga seu jogo atrativo e esconde suas sombras. Ela se lança a uma
estranha intimidade com o vazio da escuridão. As formas que ela habitava não existem,
não profundidade. A noite é pura superfície onde se misturam beleza e imperfeição,
logos e loucura, cegueira e fotografia, zelo e negligência... paradoxos embaralhando os
contrários.
Ela espia a noite. Apenas uma olhada delicada na morte de seu infinito
interior a faz avançar no vazio exterior.
Ela duplica o que vê, a língua denuncia o que diz e multiplica o que fala.
Ecoa um grito da boca azul.
Mas a boca se cala. O corpo é abandonado aos fantasmas e às imaginações
silenciosas que, ao falar, desaparecem... A palavra que a liberta não é a que fala de sua
bela alma nem aquela que impera sua ordem, é aquela que suspende o corpo para
pulverizar as identidades com toda sorte de almas e instintos.
Ela se despe de si, traveste-se de outra, insinua-se para o Pai e o estupra com
um sopro; violentando a lógica ao passar a língua ardilosamente sobre o sexo, povoa o
mundo de sua prole louca. Fatalidade da experiência, língua da violência, protuberância
alcoólica, que conserva em sua saliva ácida o contágio do gosto pelo vinho. E Ela
continua com sede, muita sede quando Deus acorda o dia. Estômago infinito a devorar
todos os monstros que cuspira, tentando reter na infinidade de suas entranhas divinas
toda a multiplicidade que havia parido.
56
Não!
Agora Ela não era mais que a infinidade limitada de suas combinações
atômicas multicoloridas, mas isto não era suficiente para apaziguá-la e livrá-la
das tiranias do infinito prazer e da infinita dor, falsas promessas de um corpo
Uno, unidade do Todo, Ideal imortal. A aposta de Deus na clausura da carne,
no confinamento do espírito, na alma personalizada nada mais era que a falida
e frustrada profundidade clara e monocórdica de um interior que acreditava
falar de si. Quanto mais tentava denunciar a lei do Pai, com mais lei o Pai se
apropriava dEla, instituindo de novo sua existência individual.
Ela se indignava, mas não era capaz de sátira nem de satisfação
(Nietzsche, 2003, p. 34). Àquele que a dizia o que devia fazer, Ela respondia o
que queria fazer e seria sempre o contrário do que Ele dizia. Ela ainda não sabia
que poderia criar o mundo, mas desfazia-se cruelmente do mundo que a havia
criado. Era profana: a vaca que amaldiçoa o leite dos caretas! E libertina!
Afrontando os valores estabelecidos “para destruir-lhes o significado” (Borges,
In: Sade, 2003, p. 213)
–Perverte teu corpo e teus sujos segredos! Nada do que pensas é teu! Nada do
que dizes és tu! Nada conheces do lugar em que estás!
Dioniso precisa ser chamado e a embriaguez, provocada pelo vinho. A
noite precisa ser evocada, do contrário, Ela dormirá o sono dos justos,
entorpecida pela bênção de Deus e seus sonhos de rebanho.
“É noite; ai de mim, que tenho de ser luz! E sede do
que é noturno. E solidão!
57
É noite: como uma nascente, rompe de mim, agora, o
meu desejo – e pede-me que fale” (Nietzsche, 2006, p. 137)
O outro lado do espelho
É diante do espelho, o monumento humano do reflexo das semelhanças,
que Ela se transfigura. O espelho é agora o mais profundo: é a pele do mundo.
A mesma membrana que protege a forma é a superfície de contato capaz de
transmutação. algo que se do outro lado do espelho e que não é reflexo,
nem reflexão. A tentação está em relacionar-se exatamente com o que não é
espelho... Narciso fere a si mesmo ao tocar em sua imagem: o espelho se liquefaz.
Through the looking-glass
11
... É por através do espelho que se encontra o
outro lado do espelho e faz-se a travessia. Do outro lado do espelho outro
mundo:
“Agora para ver a passagem. A gente pode dar
uma espiadinha na passagem que para o resto da Casa
do Espelho, desde que se deixe a porta de nossa sala de
visitas bem aberta. É muito parecida com o nosso corredor,
que a gente sabe que pode ser completamente diferente
mais adiante” (Carrol, 2008, p. 24-25).
O que se do outro lado do espelho é uma imagem em fuga, pois
quando enxergamos reflexo nada para atravessar. Ela, mesmo diante do
desespero de procurar uma imagem semelhante de si mesma, consegue se
relacionar com aquilo que pergunta ‘que diferença há?’.
O espelho derrete e passa-se para o outro lado... o lado do impossível ou
do que se liberta do possível. Porque o mundo possível se opõe ao real, mas
depende das categorias do existente para assegurar sua possibilidade, sua
promessa, sua transcendência: outrem como estrutura e como garantia
(Deleuze, 2006a, p.388/389).
É como a companhia que Ela esperava. Era a companhia possível, era
este outrem a priori, a companhia dos sonhos arados pelo rebanho. mora a
11
Título original em inglês do livro de Lewis Carrol, que no Brasil tem a tradução de Alice no País do
Espelho, a continuação de Alice no País das Maravilhas.
58
neurose: outrem ainda funciona embora não haja ninguém para preenchê-lo
(Deleuze, 2003, p. 323). Eis o desespero dEla: reter o mundo tal qual é: que
“idéia de asno”! Ora, se outrem é uma estrutura transcendente, outrem a priori
não é ninguém e é, portanto, vontade de nada. Mas Ela diz “não!” Basta desta
maldita vontade de espelho, de encontrar o reflexo de um mundo pré-
concebido! Mas para isso será preciso
“apreender Outrem como sendo Ninguém e, depois, ir
ainda mais longe, atingir regiões em que a estrutura-
outrem não funciona mais, distante dos objetos e dos
sujeitos que ela condiciona, para deixar que as
singularidades se desdobrem, se distribuam na Ideia pura e
que os fatores individuantes se repartam na pura
intensidade. É bem verdade que, neste sentido, o pensador
é necessariamente solitário e solipsista” (Deleuze, 2006a,
p.389).
a solidão da neurose que refaz a si mesma, no esforço atroz de
resguardar a estrutura outrem, o mundo possível e previsível, instaurado pelo
tribunal da realidade. É a “solidão dos dadivosos” e suas idéias claras.
E a solidão dos que tem desprezo pelo claro, que enxergam nas
idéias claras, idéias mortas (Artaud, 1999, p. 40). Esta é a solidão que produz
deserto e faz todo o mundo percebido desmoronar, mas em proveito de outra
coisa (Deleuze, 2003, p. 319).
Enquanto o possível se opõe ao real, garantindo assim o título de seu
descendente fiel, feito à sua imagem e semelhança, o atual e o virtual se
irmanam compondo todo o real. A passagem do virtual ao atual não se por
filiação, mas “por diferença, divergência ou diferençação. A atualização rompe
tanto com a semelhança como processo quanto com a identidade como
princípio” (Deleuze, 2006a, p. 316-319).
Não seria também este o programa para uma reversão do platonismo?
A procura de um outro outrem? É por isso que os sonhos do pensador são
sempre sonhos de ilha deserta: sonhos que pervertem os sonhos do rebanho
sem impor sobre eles a oferta de uma nova terra. Só o deserto permite a
imaginação, o inconsciente. O impulso imaginativo opera como a geografia
59
insular: separação e recriação que retoma o combate entre o oceano e a terra
(Deleuze, 2006b, p.19), desmanchando a submissão do homem a um céu
profundo que ele mesmo inventou como algoz.
“Ainda neste momento olho para o meu futuro – um
vasto futuro como para um mar liso: nenhum anseio o
encrespa” (Nietzsche, 2008, p. 47)
Perversão e Crueldade
A perversão aparece como potência capaz de introduzir o desejo num
outro sistema. Mas estaríamos nós defendendo a perversão. Sim! Por que não?
A fama da perversão se porque ela sempre é julgada em relação aos atos
e ofensas dirigidos às suas supostas vítimas. Mas estamos além do
comportamento. Falamos de uma perversão pensada fora do sujeito, a
perversão como “altruicídio” (Deleuze, 2003, p.329).
Crueldade não é derramamento de sangue! O cruel está muito mais
próximo da crueza, daquilo que ainda não se fez, de uma energia ainda não
domesticada. A crueldade é uma dramatização difícil e cruel antes de tudo para
o si mesmo, pois nós somos livres, tão livres quanto o céu que desaba sobre
nossas cabeças! (Artaud, 1999, p. 89)
Então, não é possível atacar o idealismo sentimental e combater os
costumes e a religião sem ser perverso. Eis a aventura de Sade que é também a
aventura de Nietzsche, um grito dos fortes contra a força dos fracos: – Contra os
valores burgueses e suas virtudes de rebanho comedido, o império
intransigente e terreno da carne! A aristocracia verdadeiramente atéia (Borges,
In: Sade, 2003, p. 206-214) encarando a dessubjetivação: matando Deus mata-se
também o Eu, pois “Deus é a única garantia da identidade do Eu” (Deleuze,
2003, p. 302).
O ateísmo é uma nova inocência e não uma simples agnose, é uma ilha
deserta. E a perversão é uma intensidade e não a identidade semijurídica e
semipsiquiátrica (Deleuze, 2003, p. 314) com a qual nos acostumamos a julgar
60
comportamentos. Há em Sade um retorno à afirmação dos afetos do corpo
como valor. Mesmo que tenham sido reduzidos pelo senso comum à
libertinagem dos prazeres sexuais, o que importa é a política, a revolução que
sua palavra convoca como reativação do corpo vibrátil silenciado pelas virtudes
ascéticas, revolução cuja potência se aloja nos poderes da imaginação: “a
imaginação é o aguilhão dos prazeres.(...). Ela é inimiga da regra, idólatra da
desordem e de tudo que leva as cores do crime” (Sade, 2003, p. 61). Os
libertinos freqüentadores das alcovas sadianas eram instruídos e educados para
tomarem gosto pelos atos de volúpia ali incentivados. Não timas, nem
algozes. As únicas vítimas são aquelas que insistem em representar os papéis
perigosos das virtudes quiméricas.
Sade e Nietzsche evocam o futuro através dos poderes da legislação:
criticar os valores estabelecidos como superiores à vida e criar os novos valores,
valores da própria vida. Nietzsche, o médico que considera os fenômenos como
sintomas, o artista que cria perspectivas, o louco que perturba o pensamento e
se perde com ele (Deleuze, 2007, p. 17-19); Sade, o libertino, o preceptor imoral,
que evoca o legislador que jamais estuda o efeito de um delito individualmente,
e sim, seu efeito de massa. Sade faz uma torção nas noções de adultério, aborto,
libertinagem, casamento, incesto, assassinato, paternidade... Sade legisla por
um outro mundo. É o que ele propõe, por exemplo, no exame do roubo. A que
serve uma lei que proíbe o roubo? “É justa a lei que ordena quem nada possui
respeitar quem tudo tem?” (Sade, 2003, p. 142-143).
Em plena Revolução Francesa, Sade escreve: “franceses, mais um
esforço se quereis ser republicanos!” (Idem, p. 125-180), pois Sade não podia
acreditar numa república alicerçada por valores religiosos e falsos princípios
morais. Seus ensinamentos descolavam a natureza da criação divina, o prazer
sexual das obrigações reprodutivas, a legislação da ereção de leis universais, a
imaginação dos preconceitos.
Jamais haverá leis que contenham a imaginação (Idem, p. 15-66). “Sade
não deixa que fale, como lei sem lei do mundo, mais do que a nudez do desejo”
(Foucault, 1990, p. 21)
61
E Nietzsche (2003, p. 117/118) estende sua “mão criadora para o
futuro”, é assim que legisla, criando novos valores, pervertendo as verdades
criadas pelos operários da filosofia, fazendo da vontade de verdade, vontade de
poder.
É através da imaginação e da palavra que natureza e razão se unem
para que o pensamento seja forte e cruel o suficiente para violentar a
sensibilidade e a religião que se unem no coração dos virtuosos, os medrosos,
os fracos de espírito (Borges, In: Sade, 2003, p. 222/223). Enfim:
“Desatar a alma humana de todas as suas amarras,
submergi-la em terrores, calafrios, ardores e êxtases, de tal
modo que ela se liberte como que por encanto de todas as
pequeninas misérias do desgosto, da apatia, do desalento:
que caminhos levam a esse fim? E quais os mais seguros
entre eles?... No fundo todo grande afeto tem capacidade
para isso, desde que se descarregue subitamente: cólera,
pavor, volúpia, vingança, triunfo, desespero, crueldade”
(Nietzsche, 1998, p. 128).
Decorre daí um juízo que não pode vir de Deus, um juízo que não pode
ocorrer fora da experiência, pelo contrário, é um efeito dela, do exercício dos
sentidos (Sade, 2003, p. 134) que reivindicam os direitos da imaginação. E isto
acontece num sistema anárquico capaz de questionar o homem, suas idéias
sobre a realidade e seu lugar poético (Artaud, 1999, p. 105).
É preciso, sim, apelar para ideias incomuns, pois elas terão a potência de
criar um equivalente terreno para a metafísica celeste, sem que isso signifique a
morte da poesia, da magia ou do encantamento. São ideias
12
que se destinam ao
ilimitável, pois estão no rastro da criação, do devir, do caos. Colocam em
relação o homem, a sociedade, a natureza e os objetos (Artaud, 1999, p. 102) e
apagam os reflexos de subordinação e hierarquia. Tudo são atmosferas a
habitar.
A perversão é a virtualidade do espírito, mas do espírito enquanto força
e não enquanto alma individual. assim o espírito é capaz de delirar (Artaud,
12
Ver nota no. 4
62
1999, p. 27-29), por forças de intensidade anômala que cavam no espírito
estranhos canais (Idem, p. 60)...
Ela perverte a ordem divina da integridade do corpo. Onde o juízo do
Deus-Pai diz: reencontre o seu Eu Ela vai mais longe, não encontrou ainda
seu “Eu voador” (Deleuze, 2003, p.321) não desfez ainda suficientemente seu
Eu! (Deleuze; Guattari, 2004b, p. 11)
O corpo pelo qual Ela se fazia à imagem de Deus se formava agora das
conexões, densidades, choques, encontros, movimentos graças aos quais se
forma toda a coisa. “Novas versões e refinamentos da hipótese da alma”
(Nietzsche, 2003, p. 19/20) emergiam ali. Ela se deixava violentar, estuprar,
travestir e assim matava o Deus-Pai que a aprisionava. Metamorfoseava-se
numa multiplicidade intensa e voltava a ser ela não mais Ela ainda Ela no eterno
retorno da diferença de si.
O que Ela procurava no espelho agora eram seus disfarces, suas
máscaras. Multiplicar os espelhos é multiplicar as máscaras e os disfarces...
segundas roupas que colocam um corpo em relação com todos os cruzamentos
das perspectivas do ar (Artaud, 1999, p. 56), em comunicação com forças puras
como a luz e o som. uma crueldade em tudo o que age e tudo que age
encena e faz cenário: faz “nascer no inconsciente imagens enérgicas e, no
exterior, o crime gratuito” (Idem, p. 92-102). uma força inteligente em
estreita relação com a fatalidade, um precursor sombrio capaz de relacionar
elementos heterogêneos produzindo uma hecceidade.
A intensidade perversa revoga a integridade do corpo e suspende a
identidade da pessoa. assim o corpo se torna linguagem, palavra liberta das
virtudes da bela alma, da “função privativa da pessoa” determinada por Deus
(Deleuze, 2003, p.300). As causas são corporais, mas os efeitos são incorporais,
duplos sem semelhança, linguagem, arte!
Arte que se produz na ação. E não a arte descolada da vida e fixada em
monumentos. Arte da vida, do cotidiano em sua potência de extraordinário,
capaz de unir num mesmo instante, ação e pensamento.
63
Ela substituía, assim, a anamnese pelo esquecimento e a interpretação
pela experimentação. Encontrava o mundo fascinante da perda da identidade
do Eu, onde coisas e seres pensam através dEla, falam com Ela e por Ela se
escrevem. O fantasma de ser Ela faz voltar à superfície, vindos de fora, todos
os simulacros que querem experimentar seu poder de simulação na loucura de
perder o mundo e perder a si, num conhecimento sem começo nem fim.
O Espelho como Labirinto
No encontro dos espelhos, a imagem una do corpo se desfaz e assim,
livre da imagem semelhante, o Eu delira e se extravia. Perder-se é sempre
perder-se de si e perder o mundo. Abre-se o espaço, o deserto, a fissura que
racha o Eu e o Mundo. A consciência cai do trono. E o entendimento se no
encantamento intempestivo e na experiência paradoxal (Oliveira, 2009).
O agora é uma catástrofe (Seligmann-Silva, 2000, p. 82)! Desativa-se a
consciência e a representação universal. A catástrofe de si libertou o que outrora
era irrepresentável, para ser o ainda não representado, o que não quer se deixar
representar, o excesso do acontecimento mantendo a potência do quase... Ela
não mais Ela ainda Ela quase Ela porque não há testemunhas da catástrofe dEla.
É o acontecimento guardando seu excesso. Não era mais, “que alívio!” (Hilst,
2006, p. 55)
A forma outrora essencial cambaleia e novos modos de existência
reivindicam seus direitos de ocupar o espaço. Ela percebe os “observadores
parciais” que a habitam, as múltiplas almas que pensam por através de um
corpo, para muito além de sua materialidade. múltiplos Eus e tudo pode
reagir a tudo (Oliveira, 2009).
Foi aí que Ela quase
13
morreu. Quase! Porque quem morreu foi a sua bela
alma ideal habitando seu belo corpo ideal. O corpo ressurge, desfigurado e
13
uma economia da “quasidade”: “O sobrenatural não é o que acontece em outro mundo; o
sobrenatural é aquilo que quase-acontece em nosso mundo, ou melhor, ao nosso mundo, transformando-o
em um quase-outro mundo. Quase-acontecer é um modo específico de acontecer: nem qualidade nem
64
esquartejado, mas nunca tão potente! Era ainda Ela mas não mais Ela. Ela não
diria mais ‘Eu’, mas atentaria para aquilo que a permitiria fazer ‘Eus’. A
sensibilidade, a vontade e o pensamento não eram mais atributos da alma,
estavam presentes em toda parte. Seu corpo era agora um campo de forças,
uma superfície de cruzamento de infinitas perspectivas, natureza labiríntica e
insondável de toda a experiência (Giacóia, 2002, p. 208-212).
O espelho como o labirinto é o círculo vicioso e tortuoso do eterno
retorno, destruidor de identidades, pois ali a alma se projeta em suas inúmeras
individuações, papéis e personagens (Dias, 2002, p. 264).
A Palavra Fantasma
Um olhar perspectivo se refina: os corpos não agem por necessidade,
mas por expressão. Aquilo que deles se descola só tem com eles relação fraterna
e não de filiação, não operam em profundidade, mas em superfície: os duplos
são produções, não consequências.
Da vontade de espelho, passamos aos estranhos espelhos, onde nos
relacionamos com fantasmas, falamos de fantasmas, fantasmas que se criam na
linguagem que se inventa para falar deles e fazê-los falar: “desvio fantástico do
nosso mundo” (Deleuze, 2003, p. 313).
uma rachadura do casal no fantasma: sua fórmula permite que se
do casal sexuado ao pensamento, das funções reprodutivas aos coitos
elementares, pois quando se abre a fissura, dessexualiza-se uma energia da
profundidade dos corpos para que seja liberada para a superfície de incorporais
onde se o sentido. Esta energia espera por núpcias capazes de parir, para
muito além de crianças, linguagem. O processo do fantasma é ir do figurativo
ao abstrato, do signo mundano ao signo da arte. É o lugar do eterno retorno.
Retoma-se o combate entre a boca e o cérebro: quando o cérebro vence, liberta a
quantidade, mas quasidade. Não se trata de uma categoria psicológica, mas ontológica: intensidade ou
virtualidade puras” (Viveiros de Castro, 2008, p. 238/239).
65
boca dos alimentos excremenciais e das vozes caladas para nutri-la com todas
as palavras possíveis (Deleuze, 2003, p. 226-230)
Os fantasmas nascem para ver e falar. São os portadores dos espelhos
múltiplos onde as ações se repetem em mil sentidos diversos (Sade, 2003, p. 30).
São a magia, o encantamento e o pavor operando como pestes desmoralizantes
que nos fazem olhar a vida como um sonho e aterrorizar-nos com ela...“pensar
é sempre seguir a linha de fuga do voo da bruxa” (Deleuze; Guattari, 1992, p.
59).
uma potência de êxtase que podemos arrancar do cotidiano, numa
comunhão com a superfície, num estado de esquecimento do Eu onde a solidão
do ponto de vista se desfaz ao mesmo tempo em que se multiplica. São jogos de
espelho, jogos de noite: “o olho de sonho que parece nos absorver e diante do
qual nós mesmos parecemos fantasmas” (Artaud, 1999, p. 71)
66
CENA 3: uma noite
Do sonho à insônia
Adeus Adeus! Ó juventude! Ó meio-dia! Agora o
sol se pôs e chegou a noite, a meia-noite, uiva o cão, o
vento;
Não é um cão, o vento? Gane, ladra, uiva, Ah!
Ah! Como suspira! Como ri! Como rouqueja e arqueja a
meia-noite!
Com quanta lucidez, fala essa ébria poetisa! Terá
bebido, também, a sua própria embriaguez? Ter-se-á
tornado, na vigília, clarividente? Estará ruminando o
passado?
– Seu sofrimento, rumina, em sonho, a velha e
profunda meia-noite, e, mais ainda, o seu prazer. Porque é
o prazer, se o sofrimento é profundo: é o prazer mais
profundo que a ansiedade.
(Nietzsche, 2006, p. 375)
67
OS CÃES
Ela queria ficar mais tempo... mas todos queriam ir embora.
Por que ir embora? Ir embora do quê?
Ela ficaria sem carona, sem companhia, mas ficaria.
– O que tu vais ficar fazendo aí sozinha? – disse aquele que a acompanhava.
Ela ficou!
Ficou com a praia,
Ficou com o mar,
Ficou com a água,
Ficou com o vento,
Ficou com Iemanjá...
Ficou ali, exatamente onde estava.
O sono pediu por um leito. Ela teve medo... ficara sem carona, ficara sem
companhia... A casa era longe e haviam lhe dito que o bairro era perigoso. No quase-
silêncio e no quase-vazio da noite, Ela andava...
Aos primeiros passos um cão a acompanhava, em seguida outro, mais outro e
outro ainda... E assim andaram pelas ruas, Ela e sua matilha, Ela na matilha, Ela da
matilha. Sem sono, sem palavras, sem destino, sem latidos. faro, puro faro. E a lua
como bússola sem norte: inebriante sentido...
Quando o dia ameaçou acordar, estava em frente ao portão da casa que não
buscava. Abriu o portão e todos os cães se sentaram, menos o primeiro que entrou com
Ela. Quando Ela chegou à porta, ele lhe deu as costas, juntou-se à matilha e seguiram a
andança.
Ela pensou: como se fica sozinho?
68
Solidão & Cia
Foi justamente a solidão que a levou ao encontro com o inumano. Perdia
assim sua identidade solitária. Estava sozinha porque estava deserta de si e não
porque carregava o peso da significação da solidão humana, da falta de um
outro para quem guardava o lugar vazio da cama... Ela não puxaria mais o
arado que recorta os apartamentos de 3 dormitórios com suíte para... Nem quer
mais entender por que é que a gente é assim. Ela está em busca da aventura,
pois, até agora, a busca da origem só havia lhe apontado um futuro previsível.
Algo escapava da ladainha de suas perguntas pessoais insolúveis em si
mesmas: Por que Eu sou sozinha?... Encontrava-se num campo de batalha onde
esta pergunta não produzia sentido algum. Algo de anômalo (Deleuze;
Guattari, 2002a, p. 25-26) se passava nEla, algo que se diferenciava muito de
seus sentimentos de anormalidade em relação à maioria.
Ela se encontrava fascinada, inclinada em direção àquilo que a arrastava
para fora, que a tomava como um portal, um limiar por onde poderia fugir da
sua casa cheia de objetos faltantes, para conectar-se com o que a vida pode
oferecer de desconhecido (Deleuze; Guattari, 2002a, p.33). Uma potência de
matilha fazia o Eu vacilar, um afecto a atingia como uma Natureza
desconhecida, arrancando-a da humanidade, produzindo um desejo de
“desumanização” (Deleuze, 2003, p. 313).
A solidez do significado geral das palavras e dos sentimentos subjetivos
de solidão e companhia começa a derreter. Não se fica sem levar a faculdade
de estar acompanhado ao seu limite, ao seu ponto de saturação e esgotamento.
69
Não se chega ao sentido de companhia sem esgotar o sentido da solidão. E o
sentido, não o encontramos nos estados de coisas dos corpos, mas nos
acontecimentos que os acometem, e no modo como esses acontecimentos se
comunicam enquanto efeitos incorporais independentes de suas causas
corporais (Deleuze, 2003, p. 175).
Companhia e solidão se descolam da essência e passam a operar no
acontecimento. Não é necessário, portanto, invocar a identidade e a contradição
desses conceitos, pois é a contradição suposta nesses conceitos que produz uma
incompatibilidade e não o inverso. Enquanto acontecimentos puros, um não é
mais positivo do que o outro, nem sequer podemos supor que relação têm um
com o outro.
“Trata-se de uma distância positiva entre diferentes”: não os
identificamos como contrários, mas afirmamos a distância que os relaciona.
se localiza a arte do perspectivismo, onde não conseguimos mais dizer “vice-
versa”. É assim que nos livramos do ponto de vista como juízo de Deus e
passamos a ter a vida mesma como procedimento (Deleuze, 2003, p. 178-179).
Ela andava cansada de procurar companhia, a companhia possível,
aquela que sempre está num lugar que não é o que se está agora. Mas cansada,
sempre dormia para sonhar... E acordava disposta à mesma procura, ao mesmo
sonho, ao mesmo cansaço... Naquela noite as companhias que não a
acompanhavam deixaram de povoar seus sonhos com promessas para o dia de
amanhã. Viver esperando alguém que caiba no seu sonho é esperar um outro que
se sabe quem é: maldita vontade de espelho!
Mas naquela noite Ela se tornou insone. E é assim que a aventura
continua: quando o dia acorda, a aventura não terminou, encontra-se
exatamente no meio. Não retorno: “o trajeto não é o mesmo nos dois
sentidos” (Viveiros de Castro, 2007, p. 102). Experimentou o paradoxo e não
pôde mais restituir o sentido único do bom senso: o que era verdade passava a
ser tolice e o que era tolice passava a ser... A solidez dos nomes gerais das coisas
derreteu e foi arrastada por verbos de puro devir que deslizam na linguagem
dos acontecimentos (Deleuze, 2003, p.3).
70
E quando a coisa explode e perde sua identidade, não há pressa em
procurar uma palavra para assegurar sua integridade (Deleuze; Guattari, 2004a,
p., p.41), aproveita-se esse vazio de incerteza pessoal para experimentar a
multiplicidade criadora do inconsciente.
Parte-se do acontecimento que é anterior e original em relação aos
predicados (Deleuze, 2003, p. 177) e nele encontraremos verbos. Então, antes
da companhia encontramos o acompanhar, verbo conector por excelência. Mas
qual é mesmo o verbo que antecede a solidão? encontramos a solidão como
conceito, como essência. A significação humana de solidão é solapada pela
passagem das matilhas e dos devires: a vida pode ser pensada enquanto
multiplicidade. A única solidão possível é a solidão do ponto de vista que se
pretende universal.
Quando Ela acordou, lembrou do que pensou ao ver o primeiro cão
juntando-se ao bando e dando-lhe as costas: como se fica sozinho? E fez-se outra
pergunta: como se fica acompanhado? A segunda pergunta não é filha da primeira:
é a própria bifurcação de um devir que não produz outra coisa senão ele
próprio e se multiplica nas questões que produz. É da ordem da contaminação,
funciona por comunicação e contágio entre elementos heterogêneos (Deleuze;
Guattari, 2004b, p. 23), através de verbos conectores.
Portanto, se uma vida se faz atravessada por uma fissura, por um
ferimento que insiste em ser chamado de solidão e que se prolonga tocando
uma mesma melodia em todos os tons possíveis é para afirmar um conjunto
expansível de correspondências não causais, um sistema de ecos expressivos e
não uma causalidade necessitante. Uma fissura se expande para “fazer da
doença uma exploração da saúde e da saúde uma investigação da doença”, sem
que aí se componha uma nova contradição (Deleuze, 2003, p. 176-179).
71
Insônia
Mas alguém poderia perguntar se Ela e os cães teria sido um sonho. Não
importa, afinal somente os cães poderiam testemunhar. E a matilha desconhece
tanto os julgamentos, quanto as metáforas. O que importa é que Ela não
retornará às ilusões do senso comum só porque acordou ou porque amanheceu.
Não se pode despotencializar a experiência inconsciente desta maneira! “Não
dessa forma, não para isso!” (Foucault, 1978). Muito menos se pode submetê-la
ao pessoalmente vivido, ou opô-la a um suposto consciente superior, a uma
suposta realidade que submeteria os universos fantasmáticos a uma segunda
categoria. Lembremo-nos: produzimos inconsciente por estranhas conexões e
não por meio de derivações filiativas: o sonho não é filho da realidade!
O inconsciente não lida com pessoas e objetos. Um inconsciente povoado
de pessoas e objetos é um território colonizado, terreno arável de
monocultura humana. O inconsciente conhece os trajetos e os devires de
elementos que se desenraízam da terra e levantam voo. (Deleuze, 1997, p.75). É
assim que a alma pega uma estrada e foge da neurose, da clausura do
indivíduo, de uma memória particular.
Quando sonho e realidade são opostos, caímos nas categorias do juízo
que arremessam o sonho num vazio onde não se enfrenta as exigências do
conhecimento e da experiência. É assim que a suposta realidade ergue seus
muros e seus pedestais e instaura seu tribunal do juízo, o ponto de vista que se
pretende consciente, só, único, absoluto e universal. É preciso um sono sem
sonhos, onde a imaginação não se opõe à realidade. Um sono que percorra uma
noite e a habite com a claridade dos relâmpagos, onde os cães devoram os
sonhos de rebanho; uma insônia que preenche a noite e a povoa de sonhos que
tomam para si o movimento real mesmo que o insone permaneça imóvel:
embriaguez dionisíaca que escapa ao juízo.
Produz-se, então, o real, não se responde a ele (Deleuze, 1997, p. 134).
Faz-se existir, não se julga (Idem, p. 153). O que entre real e imaginário é
uma relação de contágio. Não basta que a paisagem real evoque paisagens
72
semelhantes ou vizinhas, para nelas se espelhar. É preciso que dela se
desprenda uma paisagem virtual, imaginária que se introduza no real,
perseguindo-o tanto quanto é perseguida por ele (Artaud, 1999 p. 97). São as
trajetórias da libido impregnando a história e a geografia; um devir que faz a
trajetória desviar de um sentido reconhecível a priori e a posteriori (Deleuze,
1997, 76/77), “bússola sem norte”.
Encontramo-nos agora em pleno “campo de imanência do desejo, o
plano de consistência própria do desejo”, que pode ser ocupado e povoado
por forças, intensidades que passam, fluem, circulam e por ele se fazem passar,
fluir, circular. Onde “o desejo se define como processo de produção” que não
cessa de produzir e não tem qualquer instância exterior preestabelecida a quem
se destinar. O desejo não é a expressão de uma falta que torna o corpo um oco a
ser preenchido, o desejo produz e não há pedidos a fazer ao desejo.
“Não se morre nos sonhos. Neles, a vontade atua até
o absurdo até a negação do possível, até uma espécie de
transmutação da mentira com a qual de refaz a verdade
(Artaud, 1999 p. 10).
Por que só Eu?
Quando a alma se atomiza num indivíduo, estamos diante do
aperfeiçoamento subjetivo dos pressupostos platônicos e cartesianos: a
micropercepção da alma fica reduzida à interioridade e esta, reduzida aos
regimes macroperceptivos do juízo de Deus: normopatia neurótica. O
pensamento se torna obediente e tem dificuldades para embarcar no devir e
criar cartografias. Está a serviço da conservação e de um modo de existência.
Concebe o desejo como caos e a subjetividade como interioridade. Aí, vemo-
nos diante de representações paralisadas que nomeiam e julgam toda a
sensação. Os corpos dotam-se de um dentro, um abismo, uma essência, uma
identidade que se morre de medo de perder porque nunca está
73
satisfatoriamente preenchida. É um lugar onde tudo que vibra é neutralizado e
acaba se apagando; “corpo vibrátil amortecido de uma subjetividade que ficou
reduzida ao ego” (Rolnik, 2006, p. 43/44). Enfim, corpos aprisionados na
estratificação organizadora, significante e subjetivadora (Deleuze; Guattari,
2004b, p.22). Corpos que dizem Eu, ao mesmo tempo que buscam seguir o
conselho paralizante: “seja você mesma”. Ora, se sou Eu mesma, por que
devo buscar sê-lo?
A neurose não é uma passagem da vida, é o próprio bloqueio do
processo, é a própria interrupção da vida (Deleuze, 1997, p. 13). O corpo é
impermeabilizado e dificulta o contato com os elementos desconhecidos que
são encontrados a cada encontro. A experimentação e os agenciamentos com o
que está do lado de fora, com o virtual, é extremamente dificultada. Mas é
preciso arriscar a própria pele para encontrar a pele do mundo: a potência da
criação está na borda e não no centro!
Ela foi embora ficando, tornando-se insone, desterritorializando-se da
companhia humana, da casa humana, do sonho humano. A liberdade era
aterrorizante:
O Eu não passa de uma alegoria, de uma imagem produzida para ser
espelhada no olhar de um outro espelhável, possível. Imagem infinita em
dívida infinita consigo mesma. É um reflexo, não uma verdadeira relação. É
preciso deixar de pensar-se como um Eu, para poder pensar-se como fluxo,
conjunto de fluxos em relação com outros fluxos, almas plurais. “A alma, como
vida dos fluxos, é querer-viver, luta e combate, abraço”, conversa (Deleuze,
1997, p. 62).
74
Devir-animal
“Percebo que tenho a cabeça demasiado inclinada
para o lado esquerdo. Tento fazê-la voltar ao centro. Vai
gradativamente inclinando-se para a esquerda. E o fato
de eu estar em também me preocupa. Como é possível
que possa manter-me em pé? Ficaria mais cômodo de
quatro, os olhos raspando o chão, as mãos bem abertas
coladas à superfície das ruas”. (Hilst, 2006, p. 42)
Explica-se mal a sexualidade pela organização binária dos sexos, ou pela
sua duplicação na bissexualidade de dois sexos. Por isso o que era cansaço de
espera se converteu em esgotamento. O que era um interminável jogo de
espelhos das binaridades de Estado, ampliou-se para uma sexualidade que
coloca em jogo n sexos, devires de máquina de guerra por onde o amor passa:
incontrolável emissão de partículas...
A libido se libertou da bissexualidade (Deleuze; Guattari, 2002, p.70)
encerrada no leito do quarto e está tão desgarrada quanto Ela. Os investimentos
e contra-investimentos englobam tudo: a agitação das massas, os signos
coletivos, as partículas do desejo, o movimento das matilhas (Deleuze; Guattari,
2004a, p.49)...
Uma matilha a encontrou desgarrada do rebanho, Ela não sabe bem se foi
por escolha ou porque foi arremessada para fora por forças inomináveis. Ela
encontra uma saída, exatamente quando estava dentro, dentro da noite, no
próprio vazio aberto pela noite... Nada falta. Foge-se daquilo que está cheio
demais.
Desgarrada do rebanho, Ela se torna um elemento desterritorializado
agenciando-se com uma matilha de cães de rua. Mas a matilha não é um
simples agrupamento de cães. São noite e rua, ao abrirem seu vazio, que fazem
a matilha, reunindo Ela e os cães na hecceidade de uma noite, num
acontecimento cuja individuação não passa por uma forma e não se faz por um
sujeito (Deleuze; Guattari, 2002, p.52). Uma matilha opera por soma e
expansão. Ela não se tornou um cão, mas vários entre outros. O que interessa é
75
sua posição em relação à multiplicidade que a atravessa e que por Ela se
expande (Deleuze; Guattari, 2004a, p.42).
Um cão de rua não é o cão abandonado, carente do lar humano perdido.
O cão de rua desconhece o universo doméstico, não sente falta de nada. O
mundo é sua casa. Andar com ele é devir-animal. É uma convivência inumana.
Vê-se bem como a noção de comportamento ficou insuficiente:
enxergamos agenciamentos, se opera por agenciamento... E o agenciamento
se sempre pelo componente mais desterritorializado (Deleuze; Guattari,
2002, p.150). Ou seja, o desgarrado do rebanho é que pode arrastar a matilha e
agenciar-se com outros elementos que não aqueles que moram dentro da casa,
do cercadinho, ou do sonho com aquele que falta na cama... Os devires-animais
não são sonhos nem fantasmas de substituição: são perfeitamente reais (Idem,
p.18).
Num devir-matilha, não se parece com um cão, não se imita um cão, não
se vive como um cão. Arrastamos uma multiplicidade capaz de minar as
grandes estruturas molares, a família, a profissão, a conjugalidade... E Ela é
arrastada por esta corrente alternativa que tumultua tanto os projetos
significantes quanto os sentimentos subjetivos (Deleuze; Guattari, 2002, p.12).
Naquela noite, Ela quase se tornou um cão. Quase nada aconteceu, mas
algo quase aconteceu. Ela quase ficou com os cães e quase não ficou mais
sozinha. E é esse quase que retorna para repetir o que não aconteceu (Viveiros
de Castro, 2008, p. 239), o que ainda pode acontecer, o que ainda não se faz
ideia. Encontramos aí, a reserva do que ainda não é...
Ela era livre, por um instante tão fugaz e tão claro quanto o rasgo aberto
no céu por um relâmpago. não era o camelo que carregava as promessas do
mundo, nem o boi que puxava o arado da monocultura dos homens.
Experimentava-se quase-cão, mas não saberia dizer o que é um cão. Entre Ela e
os cães, o que havia em comum era o que os separava. O que ocorria era um
combate de pontos de vista. E, num instante, Ela quis perder, quis perder seu
ponto de vista: ponto de vista tão demasiadamente humano, tão falsamente
universal, que era boi cansado de vencer sem enfrentar nenhum combate. O que
76
Ela experimentava era o combate entre seres livres. Porque não era nem homem
nem cão, escapava de toda pretensão de absoluto. O que se comunicava não era
o cão e o homem, mas o elementar e o cósmico através do devir de uma noite.
Ela em coito com a lua...
Uma noite acaba com o juízo de Deus
Uma noite: artigo indefinido que efetua sua potência quando faz devir o
termo, e o despoja das características formais que nos fazem crer que sabemos o
que é uma noite, o que pode uma noite, porque a chamamos “a noite”. A
noite é a generalidade escravocrata e absolutista de todas as singularidades
noturnas. Uma noite guarda as potências de catástrofe dos sonhos do rebanho:
singularidades no mais alto grau... uma noite, uma mulher, um cão... (Deleuze,
1997, p. 12-13)
Ela se destitui do poder e da escravidão de dizer Eu, mas isso não quer
dizer que ela se desindividua: Ela não é nem imprecisa, nem geral. Ser mulher é
um predicado individual e universal, uma espécie molar. Mas ser uma mulher é
um devir. Seus traços a arrastam ao indefinido como potência que se instala nos
limites imanentes da hecceidade que habita: a individuação de uma noite
(Idem).
Uma noite é povoada de formas acidentais que se distinguem das formas
essenciais e dos sujeitos determinados. A individuação de uma noite, de uma
estação, de um acontecimento se nas gradações de temperatura, nas
velocidades dos corpos, nas densidades da atmosfera, nas intensidades da luz,
do som e do vento... (Deleuze; Guattari, 2002b, p. 38). Quando “música é
perfume”
14
.
Não nada “como” uma noite (Deleuze; Guattari, 2002b, p. 66). Não
similitude, apenas uma vizinhança intensiva, uma contigüidade absoluta. Não
14
Frase de Maria Bethânia que dá título ao documentário do diretor francês Georges Gachot (França-
Suiça, 2005) sobre o trabalho da cantora. Maria Bethânia fala, neste momento do filme, da potência da
música em criar e transformar atmosferas.
77
filiação natural, mas uma aliança contranatureza. Enquanto a neurose se
debate na impermeabilidade da simbologia edípica, um pouco de esquizofrenia
escapa e faz ver que estamos doentes do mundo e não de pai e mãe, do real e
não de símbolos (Deleuze, 1997, p. 15).
Numa noite a libido investe no indefinido, no indeterminado e não sente
falta de nenhuma determinação. O nome do pai, o juízo de Deus e a identidade
do Eu liberam a vida de seus furores possessivos, pessoais, derivativos e
causais. Os investimentos seguem seu caminho amoral e a-histórico: função
fraterna do acontecimento, destituindo a função paterna e a suposta
universalidade edípica: entre irmãos não sentimos falta de Deus, nem de pai,
nem de patrão, nem de juiz. A aliança substitui a filiação. A fraternidade coloca
questões que já não são particulares ou individuais. Seus problemas são sempre
impessoais, históricos, geográficos, coletivos, problemas de um povo, de todos
os povos: programa político e não edípico. A hecceidade é a hora do mundo,
uma noite é tudo que Ela tem e numa noite está tudo que Ela quer, mas não
conhece (Deleuze, 1997, p. 77;91-98).
A fraternidade surge contra as particularidades que opõem o homem ao
homem e dão sustentação à irremediável ordem humana. É um pragmatismo
acontecimental contra o universal e o absoluto. E aos que se apressarem em
denunciar os perigos das sociedades sem pais, jogamos ao vento o perigo do
retorno do pai (Deleuze, 1997, p 102): onde o pai falta carência, mas quando
não se chama mais pelo pai surge o oxigênio. Vamos chamar o vento! A
psicologia fraterna é pagã! Não deve nada! Mas vê-se, esta fraternidade nada
tem a ver com aquele “amar ao próximo como a si mesmo”, esta é uma
armadilha tão paralizante quanto o “seja você mesma”.
Anomalia
Muito diferente do anormal que só ocupa a posição de negativo do
normal, um anômalo é um “indivíduo excepcional”: um louco, um demônio,
78
uma feiticeira, um médium, um ermitão, um monstro, um náufrago, uma
andarilha, uma única vidente entre uma multidão de cegos, um outsider, um
marginal, uma solitária... Indivíduo que tem muitas posições possíveis, porque
é um fenômeno de borda, a ponta onde começa a desterritorialização (Deleuze;
Guattari, 2002b. p. 27) rumo à ilha deserta. São seres que sofrem de amnésia
(Deleuze, 2006b, p.19).
Ela, uma ponta de desterritorialização do rebanho, se encontrou com a
matilha através de um primeiro cão, o elemento conector... “Há uma estranha
aliança entre a matilha e o solitário”. Existências de matilha não estão
relacionadas apenas a animais. Muitos fenômenos que margeiam a existência
humana se servem de um funcionamento de matilha: sociedades secretas,
políticas de feitiçaria, terreiros de santo, filosofias das alcovas sadianas. É
preciso uma concentração de múltiplas energias para se baixar um santo,
ninguém baixa o santo sozinho, embora ele se individue num corpo, o corpo do
“indivíduo excepcional”, o corpo capaz de dar contorno à potência das forças
que nos atravessam.
Fenômenos que insistem em nos liberar da procriação dependente da
bissexualidade conjugal e da linha sanguínea dominada pelo sobrenome
paterno. Sociedades que funcionam fraternalmente (de funcionamento
rizomático, em oposição à linha paterna e estatal de funcionamento
arborescente), proliferam-se por contágio, comunicam-se por segredos à
margem do Estado, movimentam-se sem que sejam percebidos pelos limiares
majoritários de percepção (Deleuze; Guattari, 2002b. p. 28-31). Pervertem os
saberes de Estado ao ocuparem os lugares vazios, as ilhas desertas.
A solidão agora é um devir que escapa do que está cheio demais, se torna
náufrago do mundo possível, em busca da aventura do deserto.
Travessura
“Maturidade do homem: significa reaver a seriedade
que se tinha quando criança ao brincar” (Nietzsche, 2003, p.
71)
79
Atinge-se a solidão como gosto. O gosto que “é, ao mesmo tempo, peso e
balança e pesador” (Nietzsche, 2006, p. 148). Justo Ela, que quando criança
adorava esperar que todos dormissem para brincar acordada com seus sonhos,
queria de novo estar sozinha com seus brinquedos, com suas invenções, com
seus escritos, com aquilo que só uma noite pode ofertar.
Ao fim, a solidão é uma travessura gasosa, como seu avô chamava o
refrigerante de garrafa de vidro que escondia dentro do armário que tinha
cheiro de pão torrado. À noite, Ela sorrateiramente surrupiava na madrugada
de uma quarta-feira a bebida borbulhante só permitida aos domingos...
A solidão retorna enquanto afirmação. Os fantasmas que eram reflexos
atormentadores retornam como duendes zombeteiros...
“Tenho necessidade de solidão, quer dizer,
recuperação, retorno a mim, respiração de ar livre, leve,
alegre” (Nietzsche, 2008, p. 31).
80
BIOGRAFIAS DO
CLINAMEN
81
Escrever a Vida
“Através do teu coração passou um barco que não
cansa de seguir sem ti o seu caminho” (Brener, 2006).
A escrita, nesta dissertação, é uma experiência radical de alteridade, pois
não é o registro da pesquisa, é a própria pesquisa e também sua metodologia.
Não é fácil explicar como e em que momento Ela surgiu. sabemos que Ela
inicia a jornada como um “tipo psicossocial” (Deleuze; Guattari, 1992, p. 90),
habitante comum do contemporâneo: mulher de idade mediana moradora de
uma grande cidade do terceiro mundo, no início dos anos 2000, portadora de
uma queixa mais comum que o tipo psicossocial que encarnava “eu sou
sozinha, eu me sinto sozinha, acabo sempre sozinha...”, ladainha que vai dos
consultórios de psicologia aos glamourosos episódios do Sex and the City
15
,
quase sem escalas.
Mas quando começamos a escrever com Ela, sentimos a caneta ser
arrastada para fora dos planos que tínhamos, pueris planos de diagnosticar o
contemporâneo e encontrar algumas saídas. Mas é Ela que foge e não pára de
fugir, porque quando algo se escreve, um movimento se faz. É através dEla que
esse movimento se faz, mas não é Ela quem faz o movimento. Ela se transforma
num personagem, um agente de enunciação onde o Eu é uma terceira pessoa.
Ela devém Ela, mas não é Ela, porque “devir não é ser” (Deleuze; Guattari, 1992,
15
Famoso seriado do canal norte-americano HBO e transmitido no Brasil pelo Multishow, ambientado na
Nova Iorque contemporânea. O seriado tem como protagonistas quatro mulheres na faixa dos 30-40 anos
e faz um retrato das problemáticas cotidianas que elas enfrentam, pretendendo atingir certa “subjetividade
feminina” contemporânea e globalizada.
82
p. 87). Enquanto personagem, sua função é produzir afectos que transbordem
as afecções e percepções ordinárias e conceitos que transbordem as opiniões
correntes. E isso se passa quando o afecto encontra o pensamento e faz dele
uma potência de afectação. (Deleuze; Guattari, 1992, p. 87).
Portanto, Ela não é um sujeito. As cenas que aqui se contam não são
histórias da vida de um indivíduo. São cenas da vida (real, imaginária, onírica,
cinematográfica...). Ela encarna o corpo dessubjetivado em algumas de suas
múltiplas individuações. O que se escreve é a experiência de um outro que não
existe enquanto sujeito, mas é um outro atualizado pela escrita, um fantasma do
futuro, um rebelde, um maldito, um místico, o inumano, o louco (Branco, 2000,
p. 58).
O corpo que fala na escrita não é mais o corpo organismo, o corpo do
indivíduo contando sua historieta individual. É um corpo sem órgãos que cria
uma voz estrangeira que faz falar através de um corpo, quase como uma
vertigem, um povo, um povo por vir. um desmanche do psicologismo, um
teatro cruel, onde a palavra se descola de seu despotismo significatório para
nomear algo do acontecimento. Foi preciso escrever para matar o Deus que a
julgava e determinava seu sentido... escrita parricida como toda escrita (Branco,
2000, p. 26).
O texto é o espelho deformador e múltiplo do que outrora pensou-se um
rosto, uma vida, um indivíduo, uma identidade, uma memória.
se é um só, quando não espelhos. Não vida sem espelhos. Mas o
espelho não reflete o Mesmo. O que se vê é já vertigem, criação, fuga do
representável justamente diante da tentativa de representar-se. O espelho não é
um reflexo, é a porta do labirinto (Branco, 2000, p. 53-54), caminho para a
morte, mas também perspectiva de renascimento no útero da terra, no encontro
da ilha deserta, lugar de decomposição e renovação.
Na tentativa de colocar a vida na história de um indivíduo e numa linha
de tempo, a memória confunde a si mesma. Assim como o sujeito se perde
exatamente quando tenta biografar-se. Minha vida não sou Eu... A vida não é
Eu.
83
O testemunho mostra-se insuficiente para dar conta do acontecimento e a
escrita foge, pega a estrada, rumo à autoria daquilo que excede a efetuação do
acontecimento. O virtual força sua atualização e também o retorno de um
excedente ao virtual. O esquecimento, como força ativa, corta o fio de Ariadne
do caminho de volta e a mão a Dioniso. Percebe-se, então, que o caminho
jamais será o mesmo nos dois sentidos e a memória funcionará sempre como
“uma ilha de edição” (Wally Salomão) rumo ao encontro dos signos da arte. O
testemunho acaba sendo sempre o testemunho da imaginação.
É a operação proustiana que disseca o funcionamento da memória como
produção dos signos da arte. Num primeiro momento, um encontro com
signos mundanos, signos vazios que pretendem que o sentido se cole à forma
do objeto. Mas é justamente esta vacuidade, que espaço para o excedente
que a forma não atualiza, que os transforma em signos amorosos, capazes de
convocar uma interpretação silenciosa do mundo que o objeto amado implica e
nos impele a explicar. Esta estranha alegria experimentada pelo encontro com o
objeto, faz com que a qualidade sensível se descole do objeto e se transforme
num signo sensível. É aí que opera o erotismo do exercício reminiscente: a
busca do objeto perdido só consegue recriar eternamente o cenário onde surge o
sensível. Chega-se então ao signo da arte, que jamais recria o mundo, mas cria
outros mundos como meios espirituais povoados de essências alógicas que
ultrapassam “tanto os estados da subjetividade quanto as propriedades do
objeto”. Os signos da arte atingem o imaterial, a total liberdade em relação aos
objetos que os emanam (Deleuze, 2006c, p. 3-37).
Assim, a escritura é um duplo da vida, labirinto rizomático das
multiplicidades (Feitosa, 2002, p.63). Pois a palavra não é a coisa, a palavra é
uma perversão, uma impostura, uma máscara, o que de voz na letra, o que
há de corpo. (Branco, 2000, p. 46-51). Dos signos mundanos aos signos da arte: é
por isso que se escreve. a obra de arte revela a essência e a ideia
16
como
unidade última do signo e do sentido, não mais enquanto analogia, mas como
diferença última e absoluta (Deleuze, 2006c, p. 39).
16
Conforme nota no.4
84
O ponto de vista de cada sujeito exprime um mundo completamente
diferente e que não existe fora desse sujeito que o exprime. Mas este mundo não
se confunde com o sujeito: são as essências que se descolam e se enrolam no
sujeito, constituindo a subjetividade. Assim, a essência enquanto diferença, não
é individual, é individuante. É uma diferença interna, qualitativa, “que, sem a
arte, seria o eterno segredo de cada um de nós” (Proust em: Deleuze, 2006c, p.
39). Portanto, “só há intersubjetividade artística” (Deleuze, 2006c, p. 40).
Entre dois pontos existirá o texto. A função do homem como ponte é
radical: o homem como conector dos encontros inesperados do diverso (Branco,
2000, p. 42) a caminho da superação de si mesmo. O homem é a ponte entre o
animal e o super-homem, “sua transição e seu ocaso” (Nietzsche, 2006, p. 38).
Mas é bom que se diga: o super-homem não é um indivíduo, é um estado (Dias,
2002, p. 262), chegar até ele não é evoluir, é percorrer uma distância: a estranha
geografia que se encontra presente no texto místico, imaginação coletiva de
ritos e mitologias... onde começa a literatura (Deluze, 2006b, p.20). O impulso e
o desvio são inevitáveis: aventura da palavra e palavra como aventura.
A Solidão como Precursor Sombrio
adj. 1. Desacompanhado; solitário. 2.
Isolado. 3. Único. Adv. 4. Apenas;
somente; exclusivamente. S.m. Indivíduo
solitário.
Solidão s.f. 1. Lugar solitário, afastado;
ermo. 2. Estado de quem se acha ou vive
só.
Solitário adj. 1. Que está só; isolado. 2.
Deserto; ermo. S.m. 3. Pessoa que vive na
solidão. 4. Jóia, anel com uma pedra
preciosa engastada.
Esta dissertação tinha até meados de dezembro o título de “Dramas do
Clinamen”, porque as duas cenas escritas até então eram a tentativa de fazer os
desvios acidentais do cotidiano dramatizarem novos modos de existência. O
85
ponto de partida era o conceito de acontecimento na obra deleuziana.
Queríamos vê-lo trabalhar, queríamos saber como operar com ele.
Mas a solidão, que aparecia inicialmente como queixa discursiva de um
tipo psicossocial contemporâneo, arrastava os conceitos que havíamos
escolhido como ponto de partida do trabalho, embora ainda não fosse visível.
Quando avistamos sua presença insistente, a solidão não se configurava como
um objeto de pesquisa, porque não era como tema que ela funcionava, parecia-
nos que esta palavra operava na pesquisa como uma espécie de “precursor
sombrio”
17
, como antes da visão há o noturno, “a figura secundária de um
companheiro sempre oculto, mas que se impõe com uma evidência
imperturbável” (Foucault, 1990, p. 61/62). Por isso falamos dela, tal como
fazemos: no final e não no título.
Aparecem, ao longo da escrita, como o transcendental
18
da solidão, seus
duplos erigidos: uma solidão que levanta voo, que liberta os seres e as palavras
das prisões da identidade e da identificação. Não escrevíamos sobre solidão,
mas com a solidão... Eis o paradoxo: estar acompanhado de solidão. A solidão
se torna plural, escrevemos solidões...
E, assim, a solidão parte para o deserto. Começa a jornada como solidão
de camelo, solidão de rebanho, sólida solidão, carregada de ressentimento e
culpa... No meio do caminho, faz-se solidão de leão que se enraivece, se indigna
e diz ‘não’! É, ali, solidão líquida, sedenta de noite e embriagada de vinho que
grita obscenidades na janela para importunar o justo sono dos vizinhos... Mas
faz falar seu direito de futuro ao final: é a solidão da criança que diz sim!
Solidão gasosa, embriagada de agora, embriagada de ar... que dança e ri.
Encontramos agora a solidão como sofrimento trágico, a solidão que se
espelha e que retorna. Pois “o homem trágico afirma mesmo o mais duro
17
O precursor sombrio seria um agente, uma força capaz de colocar em comunicação séries heterogêneas
e disparatadas, operando como diferenciador das diferenças, onde uma aparente semelhança e uma
provisória identidade surgem como efeitos desta comunicação (Deleuze, 2006a, p.174/175).
18
Para Deleuze, transcendental não se confunde com o transcendente que coloca os objetos fora e acima
do mundo. Ao contrário, é aquilo que faz nascer o mundo, mas que não pode ser captado pelo senso
comum. É um empirismo superior, impessoal, constituído de singularidades pré-individuais, nunca
genéricas ou antecipáveis
(Zourabichvili, 2004, p. 27-28).
86
sofrimento, de tal forma que ele é forte, rico e capaz de divinizar a existência”
(Nietzsche, In: Deleuze, 2007, p. 65) Quando se quer de novo, o Eu que quer
muda, torna-se continente de múltiplas individuações e é capaz de recapitular
em si mesmo “a totalidade da existência passada, presente e futura”. Só resta ao
Eu querer-se outra vez, não como resultado de suas possibilidades prévias, mas
como um momento fortuito. É isso que faz do eterno retorno a experimentação
radical da renúncia à identidade uma vez por todas (Dias, 2002, p. 264-267).
Por fim a solidão revela sua potência: a liberdade de não ser. A solidão
no deserto, o nomadismo de ser. E afinal, como se fica sozinho?
“Sonhar ilhas, com angústia ou alegria, pouco
importa, é sonhar que se está separando, ou que se está
separado, longe dos continentes, que se está ou perdido;
ou, então, é sonhar que se parte do zero, que se recria, que
se recomeça” (Deleuze, 2006, p. 18)
87
Bibliografia e Discografia
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3. O Velho Leon e Natália em Coyoacán (Vitor Ramil/Paulo Leminski). Vitor
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4. Skap (Zeca Baleiro). Zeca Baleiro. Onde andará Stephen Fry? Faixa 11, 1997.
5. Corsário (João Bosco/Aldir Balnc). Zizi Possi. Sobre Todas as Coisas. Faixa 04,
2000.
6. Não existe pecado ao sul do Equador/Boi voador não pode (Chico Buarque/Ruy
Guerra). Chico Buarque. Chico Canta. Faixa 06, 1973.
7. Bicho de sete cabeças (Itamar Assumpção). Itamar Assumpção e As Orquídeas
do Brasil. Bicho de sete cabeças vol. II. Faixa 16, 1994.
8. Comida (Arnaldo Antunes
/ Marcelo Fromer, Sérgio Britto). Marisa Monte.
Marisa Monte. Faixa 01, 1988.
9. Palavra Acesa (Fernando Filizola). Quinteto Violado. Aa Amazônia. Faixa
01, 1978.
10. Não digas nada (João Ricardo /Fernando Pessoa). Secos e Molhados. Dois
Momentos vol. I. Faixa 16, 2000.
11. Para ver as meninas (Paulinho da Viola). Jards Macalé. 4 batutas & 1 coringa.
Faixa 01, 1987.
12. Fadas (Luiz Melodia). Elza Soares. Do cóccix até o pescoço. Faixa 09, 2004.
13. Debaixo d’água (Arnaldo Antunes) / Agora (Tony Bellotto, Charles Gavin,
Branco Mello, Nando Reis, Marcelo Fromer, Paulo Miklos, Sérgio Brito e
Arnaldo Antunes). Maria Bethânia. Mar de Sophia. Faixa 08, 2006.
14. O Vento (Dorival Caymmi). Gal Costa. Gal canta Caymmi. Faixa 05, 1976.
15. Cavalo de pau (Alceu Valença). Alceu Valença. O Melhor de Alceu Valença.
Faixa 08, 1999.
16. Mais Além (Lenine). Lenine e Marcos Suzano. Olho de Peixe. Faixa 11, 1993.
17. Mistério do Planeta
(Galvão / Moraes Moreira). Novos Baianos. Acabou
Chorare. Faixa 06, 1972.
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