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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
MARIA CRISTINA CAMINHA DE CASTILHOS FRANÇA
MEMÓRIAS FAMILIARES EM FESTA:
ESTUDO ANTROPOLÓGICO DOS PROCESSOS DE RECONSTRUÇÃO
DAS REDES DE PARENTESCO E TRAJETÓRIAS FAMILIARES
Porto Alegre
2009
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1
MARIA CRISTINA CAMINHA DE CASTILHOS FRANÇA
MEMÓRIAS FAMILIARES EM FESTA:
ESTUDO ANTROPOLÓGICO DOS PROCESSOS DE RECONSTRUÇÃO
DAS REDES DE PARENTESCO E TRAJETÓRIAS FAMILIARES
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob
orientação da Profª. Drª. Cornelia Eckert.
Porto Alegre
2009
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2
FOLHA DE APROVAÇÃO
MARIA CRISTINA CAMINHA DE CASTILHOS FRANÇA
MEMÓRIAS FAMILIARES EM FESTA:
ESTUDO ANTROPOLÓGICO DOS PROCESSOS DE RECONSTRUÇÃO
DAS REDES DE PARENTESCO E TRAJETÓRIAS FAMILIARES
Tese de Doutorado aprovada no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela seguinte banca examinadora:
_______________________________
Drª. Ellen Woortmann
_______________________________
Drª. Maria Eunice Maciel
_______________________________
Dr. Valdir Morigi
_______________________________
Drª. Cornelia Eckert (presidente)
Porto Alegre
2009
3
DEDICATÓRIA
À minha mãe, Maria Caminha de Castilhos
França, que, sabiamente, construiu com seus filhos o
sentido de família enquanto um lugar seguro e
sempre acolhedor.
4
AGRADECIMENTOS
Este trabalho deve muito a algumas pessoas e instituições, por diferentes razões, e eu
gostaria de agradecer especialmente:
à minha orientadora, Profª. Drª. Cornelia Eckert, por compartilhar comigo o tema, não
só no papel de “ator social” que viveu e vive esse evento familiar, mas sendo também uma
interlocutora sempre disposta a oferecer estímulos e, principalmente, a provocar o percurso
sobre novos caminhos, ouvir com interesse, paciência e ânimo todas as questões, dúvidas e
problemas que surgiam durante o processo de reflexão. Por sua amizade, principalmente, que
se traduziu muitas vezes na compreensão silenciosa dos momentos difíceis pelos quais passei,
permitindo que meu tempo interno fluísse, respeitosamente;
à Profª. Drª. Maria Eunice, também minha professora desde a graduação, por ter
despertado, naquele período, meu interesse pelas questões antropológicas e por ter sempre se
colocado à disposição contribuir, disponibilizando, principalmente, o seu carinho;
de igual modo, à Profª. Drª. Claudia Lee Fonseca, pelas excelentes contribuições,
muitas sugestões, exemplos e críticas fundamentais oferecidos durante o exame de
qualificação. Agrego a esse momento o conhecimento desenvolvido na disciplina realizada no
mestrado sobre Família e Parentesco;
ao Prof. Dr. Valdir José Morigi, pelas preciosas sugestões para o aprofundamento das
reflexões sobre o tema, também durante o exame de qualificação. Esse momento
proporcionou ampliar a visão sobre a abordagem que vinha sendo feita por mim sobre o tema;
aos professores do PPGAS/UFRGS, especialmente ao Prof. Ruben Oliven, pelo
constante incentivo e cordialidade no tratamento dispensado ao processo de “construção”
antropológica ao longo do doutoramento;
aos funcionários do PPGAS/UFRGS – Rose, Alexandre e Lena –, sempre prontos a
atender as solicitações (em geral já com o tempo próximo ao limite) de forma solidária. A
presença de vocês foi sempre um sinal de amizade e carinho;
ao NAVISUAL (Núcleo de Antropologia Visual)/PPGAS/UFRGS, pelo debate,
construção e apoio sistemático a todas as demandas com imagens, bibliografia, oficinas sobre
a etnografia, etc. Ao núcleo, sob a direção da Profª. Cornélia, devo uma fatia significativa do
conhecimento conquistado na área da antropologia, não só a visual. Em especial, quero
agradecer ao Luciano Vianna, que gentilmente disponibilizou do seu tempo para auxiliar-me
com parte das imagens fílmicas;
ao meu aluno e amigo Diego Porto Ritzel, pela produção do capítulo de imagens. Sem
o auxílio do domínio técnico e a sensibilidade de um quase historiador que lhes são próprios,
o capítulo não teria saído da situação de intenção;
ao Unilasalle/Canoas, em especial: aos colegas com os quais tive a possibilidade de
dialogar; aos funcionários da biblioteca, com quem pude sempre contar para consultas,
reservas e dúvidas sobre regras de escrita; à equipe do setor de pesquisa, que
compreensivamente atendeu às solicitações de ausência no período de escrita; e,
5
especialmente, à equipe da pesquisa de que faço parte na instituição: às professoras Josiane
Sivieiro e Liliane Guterres e às bolsistas Paula Azevedo e Giana Tubino;
ao Irmão Justo, não apenas como informante, mas como amigo querido que não
poupou seu tempo ao ouvir minhas dúvidas, ao propor soluções, disponibilizando seu acervo
e, por fim, tendo sido minha mais importante fonte de apoio intelectual e afetivo. Conhecê-lo
e contar com sua amizade é um privilégio sem fim;
a todas as famílias e aos seus membros que, gentilmente, cederam seu tempo e espaços
de intimidade para atender às minhas questões de investigação. Compartilhar as diferentes
etapas da pesquisa, os momentos de festa e os diálogos foi um privilégio imensurável. A
minha gratidão será eterna;
às amigas Ana Maria Colling, Neiva Garcia e Liliane Guterres, por empréstimos de
livros e apoio quando houve solicitação;
ao meu irmão Beto que, mesmo dispondo de um tempo restrito, garimpou livrarias em
Paris em busca de obras ora solicitadas por mim, ora reconhecidas por ele como importantes;
e à minha cunhada Ivana, pela companhia pacienciosa nas jornadas incessantes entre
bibliotecas e livrarias em Paris;
ao meu irmão Jairo e à minha cunhada Beatriz, pela organização impecável da festa
em homenagem à nossa mãe e que, ao fazer parte desta tese, fez com que eu a festejasse
duplamente;
à minha família, por todo apoio, carinho e amor. Em especial, a minha gratidão ao
Fernando, à Manuela e à Fernanda, por suportarem pacientemente a minha distância da vida
familiar durante esse período e por terem dado o suporte “logístico” em muitos dos
compromissos cotidianos. Amo vocês;
à minha mãe agradeço pelo incentivo constante para a superação das dificuldades e
dos limites de resistência física e emocional que muitas vezes senti insuperáveis. As suas
orações e a atitude sempre compreensiva sobre as ausências, às vezes em períodos em que
prescindia de minha companhia, me fortaleceram para persistir. Ela é, por isso e por ter feito
da nossa existência em família uma constante celebração, a razão disto tudo; e é a ela que
ofereço as memórias familiares em uma festa que é nossa;
a todos agradeço profundamente e dedico o resultado do trabalho.
Maria Cristina Caminha de Castilhos França
Abril/2009
6
RESUMO
Estudo antropológico sobre memórias familiares reordenadas a partir da realização das Festas
de Família, vistas como rituais familiares contemporâneos, ora denominando-se Festa ou
Encontro da Família “Tal”. A pesquisa etnográfica foi realizada com famílias “em e de”
diferentes cidades do Rio Grande do Sul entre os anos de 2004 a 2009. Compreende-se Festa
de Família como um acontecimento que tem se tornado freqüente na sociedade brasileira
contemporânea. O evento apresenta o aspecto ambíguo da busca dos indivíduos por sua
ancestralidade em meio ao mundo moderno, no qual a valorização da individualização parece
tornar as pessoas menos vinculadas a formas locais e fixas de solidariedade. Vistas como rito
– que busca revivificar ou engendrar novas formas identitárias sob novos comportamentos,
com as recomposições familiares requeridas pelas situações contemporâneas –, as Festas de
Família podem ser percebidas como instrumento de aprendizagem, implicando, desse modo, a
continuidade das gerações, dos grupos etários ou dos grupos sociais dentro dos quais elas se
produzem.
Palavras-chave: Memória familiar. Família. Etnia. Gerações. Narrativa. Festa.
7
ABSTRACT
Anthropological study on family memories that are reorganized with Family Parties, seen as
contemporary family rituals, being called Party or Gathering of a given family. The
ethnographical research was done with families “in and from” different cities in Rio Grande
do Sul between 2004 and 2009. A Family Party is understood as a happening that has become
frequent in contemporary Brazilian society. The event presents the ambiguous aspect of the
individual’s search for their ancestors amidst a modern world, in which the valorization of
individualization seems to make people less connected to local and fixed forms of solidarity.
Seen as a rite – which aims to revive or engender new forms of identity, with new behaviors,
with the family rearrangements required by contemporary situations – the Family Parties can
be seen as a learning instrument, implying the continuity of the generations, of the age groups
or social groups in which they are produced.
Key words: Family memory. Family. Ethnicity. Generations. Narrative. Party.
8
“O passado é sempre conflituoso. A ele se referem, em concorrência,
a memória e a história, porque nem sempre a história consegue
acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição
que coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida,
de justiça, de subjetividade). Pensar que poderia existir um
entendimento fácil entre essas perspectivas sobre o passado é um
desejo ou um lugar comum.
Além de toda decisão da justiça e da responsabilidade, há algo
inabordável no passado. Só a patologia psicológica, intelectual ou
moral é capaz de reprimi-lo; mas ele continua ali, longe e perto,
espreitando o presente como a lembrança que irrompe no momento
em que menos se espera ou como a nuvem insidiosa que ronda o fato
do qual não se quer ou não se pode lembrar. Não se prescinde do
passado pelo exercício da decisão nem da inteligência; tampouco ele
é convocado por um simples ato da vontade. O retorno do passado
nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas de um
advento, uma captura do presente. Propor-se não lembrar é como se
propor não perceber um cheiro, porque a lembrança, assim como o
cheiro, acomete, até mesmo quando não é convocada.”
(Do livro “Tempo Passado”, de Beatriz Sarlo.
Trecho extraído do caderno cultura – ZH 13.10.2007).
9
LISTA DE IMAGENS
Os mosaicos das imagens fotográficas que estão dispostas no corpo da tese têm os créditos a
diferentes autorias: algumas foram captadas por mim ao longo do trabalho de campo, outras
foram captadas nos sites das famílias e outras, ainda, fazem parte dos acervos e álbuns
familiares, gentilmente cedidas pelos guardiões das mesmas.
Página 250
Parte III - Capítulo 1: O valor moderno da reconstrução da memória familiar
Mosaico - As Festas de Família e os ritos religiosos de revitalização das crenças e de
reafirmação dos sentimentos de si e da unidade familiar.
Fonte: Maria Cristina Caminha de Castilhos França
Página 262
Parte III - Capítulo 2: A família, a nação, a cultura e o pertencimento
Mosaico - A construção lúdica dos pertencimentos familiar e ao local de origem.
Fonte: Maria Cristina Caminha de Castilhos França
Página 281
Parte III - Capítulo 3: A reconstrução das trajetórias familiares e as formas de adoção de
recursos tecnológicos
Mosaico - Os genealogistas e suas formas de registro: entre os modelos artesanais e os
modelos digitais.
Fonte: Maria Cristina Caminha de Castilhos França
Página 300
Parte III - Capítulo 4: A cidade, o consumo e o filme crítico
Mosaico - As Festas de Família anunciadas na mídia, tendo como referência a sua origem
étnica.
Fonte: Coluna Túnel do Tempo do Jornal Zero Hora e Jorev – Jornal Evangélico Luterano.
Página 314
Parte III - Capítulo 5: Os rastros: família e parentesco ou rede de sociabilidade entre memória
e esquecimento?
Mosaico - Os rastros afetivos que comportam motivos para permanecer como lembrança.
Fonte: Maria Cristina Caminha de Castilhos França e Acervo da Família Flach
Página 345
Apêndice A
Mosaico - Os personagens
Fonte: Maria Cristina Caminha de Castilhos França e Zilá Bernd.
Página 346
Apêndice B
Mosaico - Fotos oficiais das famílias
Fonte: Maria Cristina Caminha de Castilhos França, Acervos da Família França e da Família
Só.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................14
1.1 As festas familiares como uma questão antropológica...............................................14
1.2 A emergência de um tema no percurso acadêmico ....................................................16
1.3 O protótipo de um doutorado .....................................................................................18
1.3.1 Contexto e Universo............................................................................................19
1.3.1.1 Quadro de festas ...........................................................................................19
1.3.1.2 Quadro de entrevistados ...............................................................................20
1.3.1.3 Quadro de genealogistas...............................................................................21
1.4 Tipos ideais: a motivação como referência ................................................................23
1.4.1 Tipo 1: a Festa de Família como modismo em tempos de globalização.............23
1.4.2 Tipo 2: a Festa no Interior ...................................................................................23
1.4.3 Tipo 3: a Festa Homenagem................................................................................25
1.5 A pesquisa toma fôlego ..............................................................................................25
1.6 A organização da tese.................................................................................................28
PARTE I...................................................................................................................................37
Capítulo 1 Festas de Família: memórias em imagens ..........................................................37
Capítulo 2 A pesquisa etnográfica em espaços nem tão públicos........................................43
2.1 Percorrendo caminhos entre similitudes e estranhamentos........................................43
2.2 A observação: entre o desconhecido e o limite do conhecido....................................47
2.3 Diálogos possíveis: entrevistas e interações...............................................................49
2.4 Revendo posições, definindo novos caminhos?.........................................................51
2.5 A força das imagens na compreensão dos tempos familiares ....................................54
2.6 A construção da rede: solidariedades e tecnologias ...................................................55
2.7 As dificuldades entre as datas e os locais dos eventos...............................................56
Capítulo 3 A Alta Modernidade e o indivíduo no mundo globalizado ................................57
3.1 A família hoje: entre a permanência e as alterações...................................................62
3.2 As redes de parentesco: ênfase à “religação”.............................................................66
3.3 O ritual festivo: instaurar ou restaurar?......................................................................68
3.4 A tradição revisitada de tempos em tempos...............................................................71
3.5 O tempo de festejar.....................................................................................................75
3.6 O lugar de celebração: um espaço de significação afetiva.........................................77
Capítulo 4 Memórias em jogo no tempo das Festas de Família...........................................80
4.1 A memória coletiva e transgeracional........................................................................80
4.2 A memória compartilhada..........................................................................................81
4.3 As memórias (intra e trans)geracional e compartilhada nas Festas............................83
PARTE II..................................................................................................................................87
Capítulo 1 As Festas de Família como “modismo em tempos de globalização”.................87
1.1 A Festa da Família Brust............................................................................................92
1.1.1 Histórias da Vó Selma e do Vô Idílio: a experiência de ser uma parenta afim...92
1.1.2 A Festa em Nova Friburgo (RJ) e a ligação com os Brust do Sul.......................94
1.1.3 Reflexões.............................................................................................................97
1.2 A Festa da Família Flach............................................................................................98
1.2.1 O encontro com o genealogista ...........................................................................98
1.2.2 Os primórdios da Festa......................................................................................102
1.3 A busca da Família Von Wurmb: e o ramo do Brasil?.............................................105
11
1.4 A Festa da Famiglia Calliari ....................................................................................108
1.4.1 O contato da famiglia por meio da mídia..........................................................108
1.4.2 Jorge: o arqueólogo moderno............................................................................112
1.4.3 Marinês: uma das fontes de memórias ..............................................................114
1.4.4 Tio Milo: entre memórias e risadas...................................................................116
1.5 A Festa da Família Pretto.........................................................................................118
1.5.1 O Pequeno Encontro: a intensidade da convivência..........................................121
1.6 A Família Mundstock...............................................................................................123
1.6.1 A Festa em imagens...........................................................................................131
1.6.1.1 Reflexões sobre as imagens editadas ou sobre o que foi significativo.......133
1.6.2 O 2º Encontro de Primos: memórias das experiências vivenciadas entre
contemporâneos..........................................................................................................135
1.7 A Festa da Família Só...............................................................................................140
1.7.1 Memórias compartilhadas: um encontro entre duas gerações...........................142
1.7.2 A genealogia Só: a continuidade da sua construção..........................................148
1.7.3 A Festa: o encontro de motivações....................................................................151
Capítulo 2 As Festas no Interior.........................................................................................155
2.1 A Festa da Família Saltiel.........................................................................................156
2.1.1 Eduardo: o organizador .....................................................................................156
2.1.2 Norma: relatos de viagem..................................................................................157
2.1.3 A cidade contexto..............................................................................................160
2.1.4 O espaço da festa: a natureza como cenário......................................................161
2.1.5 Entrando na rede................................................................................................161
2.1.6 A performance da consagração..........................................................................162
2.1.7 O passeio ...........................................................................................................163
2.1.8 Os jogos de interação.........................................................................................163
2.1.9 Reflexões...........................................................................................................166
2.2 A Festa da Família Weber........................................................................................170
2.2.1 Conhecendo Gladis............................................................................................171
2.2.2 A festa colaborativa dos Weber.........................................................................175
2.3 A Festa da Família Finamor, Fortes e Jornada.........................................................178
2.3.1 As alianças familiares........................................................................................178
2.3.2 A carreata de abertura da Festa..........................................................................182
2.3.3 E a ética do informante?....................................................................................183
2.3.4 A 20ª Festa das Famílias Finamor, Fortes e Jornada.........................................185
2.3.5 Uma festa diferenciada......................................................................................186
2.3.6 Revendo a ética do informante..........................................................................187
2.4 A Família Gayeski....................................................................................................187
2.4.1 O colega Miguel ................................................................................................188
2.5 Festa da Família Valer..............................................................................................191
2.5.1 Seu Geraldo .......................................................................................................191
2.5.2 Relatos de viagem..............................................................................................192
2.5.3 Bem-vindos: a cidade também festeja...............................................................193
2.5.4 O espaço da Festa: um topos familiar................................................................194
2.5.5 O rito sagrado e a expectativa de unicidade......................................................195
2.5.6 A parte lúdica e o esforço de integração............................................................196
2.5.7 A ‘negociação’ sobre os conflitos .....................................................................201
2.5.8 Notas de campo .................................................................................................202
2.6 A Família Rocha.......................................................................................................203
12
2.6.1 Paulo Ricardo Bittencourt Rocha, o organizador da festa e apaziguador de
conflitos? ....................................................................................................................203
Capítulo 3 As Festas homenagem ......................................................................................211
3.1 A Festa da Família Scliar .........................................................................................211
3.1.1 Lúbia, organizadora da Festa.............................................................................212
3.1.2 A idéia de festejar..............................................................................................215
3.1.3 Os últimos preparativos.....................................................................................217
3.1.4 A Festa e a forte adesão.....................................................................................219
3.1.5 Os contornos da distinção..................................................................................221
3.1.6 Um momento que revela as relações.................................................................222
3.1.7 Interações: a construção da “familiaridade”......................................................223
3.2 A Família Vasconcellos............................................................................................224
3.2.1 Os preparativos da Festa da Família Vasconcellos ...........................................226
3.2.2 Encontro com a família......................................................................................228
3.2.3 A auto-imagem da Vasconcellândia..................................................................229
3.2.4 O espírito de Natal.............................................................................................230
3.2.5 A benevolência como valor-família ..................................................................231
3.2.6 O Instituto Vó França: a versão moderna da memória......................................232
3.3 A Festa da Família França........................................................................................234
3.3.1 Trajetória e contexto social................................................................................234
3.3.2 Os preparativos da Festa....................................................................................238
3.3.3 A Festa e a comunhão das redes de pertencimento...........................................239
3.3.4 Os discursos de homenagem e revisitando as identidades plurais ....................240
3.3.5 Reflexões...........................................................................................................243
PARTE III ............................................................................................................................. 250
Capítulo 1 O valor moderno da reconstrução da memória familiar ................................... 250
1.1 Festas de Família: a reinvenção de uma identidade?................................................252
1.2 As Festas e a identidade religiosa.............................................................................257
1.3 Projetos individuais e projetos familiares: um cenário de conflitos?.......................259
Capítulo 2 A Família, a nação, a cultura e o pertencimento ...............................................262
2.1 A reconstrução do parentesco...................................................................................264
2.2 Mudança de rumo: do sangue ao afeto? ...................................................................268
2.3 A força da identidade étnica.....................................................................................270
2.4 A nação: como se (re)constrói o pertencimento? .....................................................274
2.5 A dinâmica dos processos culturais..........................................................................277
Capítulo 3 A reconstrução das trajetórias familiares e as formas de adoção de recursos
tecnológicos ........................................................................................................................281
3.1 Os atores sociais que assumem o papel de guardiões da memória familiar.............282
3.2 As interações tecnológicas .......................................................................................287
3.3 O “Projeto Imigrantes”.............................................................................................293
3.4 O papel do jornal no evento festivo..........................................................................297
Capítulo 4 A cidade, o consumo e o filme crítico ...............................................................300
4.1 A reivindicação da territorialidade como traço identitário.......................................304
4.2 A sociedade de consumo ..........................................................................................306
4.3 O consumo da e na festa...........................................................................................307
4.4 O filme Festa de Família ..........................................................................................309
4.4.1 Um roteiro crítico..............................................................................................309
4.4.2 A imagem da família .........................................................................................310
4.4.3 A Festa vista como ritual...................................................................................311
13
4.5 A cidade, a família e o consumo...............................................................................312
Capítulo 5 Os rastros: família e parentesco ou rede de sociabilidade entre memória e
esquecimento? .....................................................................................................................314
5.1 As festas e os rastros.................................................................................................316
5.2 E o que é esquecer? ..................................................................................................319
5.3 As redes de sociabilidade: a construção de novos laços...........................................320
5.4 É medo de esquecer? ................................................................................................321
PARTE IV Conclusões...........................................................................................................323
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................327
APÊNDICE A – Personagens ................................................................................................345
APÊNDICE B – Fotos oficiais ...............................................................................................346
ANEXO A – Coluna de Moacyr Scliar no Cardeno Donna do Jornal Zero Hora
(26.03.2006) ...........................................................................................................................347
14
INTRODUÇÃO
1.1 As festas familiares como uma questão antropológica
A questão central desta tese trata de memórias familiares reordenadas a partir das
Festas de Famílias. Compreende-se Festa de Família como um evento congregador em torno
de uma linhagem familiar. Esse acontecimento é esporádico ou cíclico e envolve uma
complexa e antecipada organização a partir da mobilização de uma rede de parentesco.
Partimos do pressuposto de que esse encontro apresenta o aspecto ambíguo da busca dos
indivíduos pela sua ancestralidade em meio ao mundo moderno, no qual a valorização da
individualização parece tornar as pessoas menos vinculadas a formas locais e fixas de
solidariedade
1
. Por outro lado, a individualização do mundo moderno frente ao processo de
mundialização da cultura (Ortiz, 1994, p. 29) implica na redefinição de fronteiras em que os
atores sociais buscam reconstituir laços sociais ou de religação (religare) a sistemas
simbólicos de pertencimento como a uma linhagem de parentesco ou a um nome de família
ancestralmente comum.
A pesquisa antropológica dessas festas remete, portanto, para questões como a
reordenação do parentesco, as relações geracionais e a transmissão das experiências de vida e
memórias de família. Partimos de um estudo etnográfico no contexto brasileiro urbano, mais
especificamente em cidades do Rio Grande do Sul, um estado brasileiro que conheceu forte
colonização de imigrantes europeus no período entre os séculos XVII a XX, como apontam os
dados que seguem abaixo
2
:
Imigração Local de origem Ano Local de instalação Cidades
Alemães
Hunsrück, Saxônia,
Württeerg, Saxônia-
Coburg
1824 Real Feitoria do Cânhamo
e Vale do Rio dos Sinos
São Leopoldo,
Novo Hamburgo,
Pomeranos
(poloneses)
Pomerânia –
província da Prússia
– século XVIII
1858 Harmonia Harmonia São
Lourenço do Sul
Italianos Piemonte,
Lombardia e
Vêneto
1872 Entre os Vales dos rios
Caí e das Antas
Vilas de Conde
D’Éu (Garibaldi) e
Dona Isabel (Bento
Gonçalves)
Espanhóis Século
XVII
Reduções Jesuíticas São Miguel, Santo
Ângelo
1
Giddens (1997), Canclini (2003), Castells (2006).
2
Fontes de consulta das informações da tabela e observações anexadas:
LAZZAROTTO, Danilo. História do Rio Grande do Sul. Ijuí: Unijuí, 2001.
http://www.riogrande.com.br/historia/colonizacao6.htm
15
Judeus russos Bessarábia 1904 Colônia Philippson e
Fazenda Quatro Irmãos
Santa Maria e Passo
Fundo
Negros Angola, Congo e
Moçambique*
1635* –
1780
1ª área: situava-se ao
longo da Estrada dos
Tropeiros, que ligava o
extremo sul do Rio
Grande ao resto do país
pelo roteiro Rio Grande-
Mostardas-Porto Alegre-
Gravataí-Santo Antônio
da Patrulha-Vacaria, ao
longo do qual se
localizavam as maiores
estâncias
2ª área: estava no eixo
Porto Alegre-Caí-
Taquari-São Jerônimo-
Santo Amaro-Rio Pardo-
Cachoeira, ao longo do
Jacuí
3ª ocupação (1780):
região das Charqueadas –
Pelotas
Foram deslocados
para diferentes vilas
e distritos do RS
Japoneses Japão 1956 Inicialmente formaram
relações de parceiros ou
meeiros agrícolas e
espalharam-se por
diferentes locais
Com o auxílio do
governo japonês,
foram adquiridas
terras nas seguintes
localidades: Ivoti,
Terra de Areia e
Itapuã
Austríacos Boêmia - Gablonz 1873 Vale do Sampaio –
Venâncio Aires
Linha Brasil
Paverama
Portugueses
açorianos
Ilhas dos Açores Século
XVII –
1748
Margens do Rio Jacuí Vilas de Santo
Amaro, Triunfo e
Taquari
* Dados imprecisos, tendo em vista a condição de escravos de várias regiões da África desembarcados no porto
do RJ.
** Desde 1635, havia escravos negros que estavam distribuídos em duas áreas, mas foi a partir de 1780 que
houve a concentração de negros em Pelotas, com a instalação das charqueadas.
Mediante um histórico de colonização e em face dos processos de transculturalização
no bojo da globalização, não é de se estranhar a consolidação do fenômeno das festas
familiares que coloca em alto relevo o sobrenome de uma linhagem familiar. Enquanto um
fenômeno crescente nas últimas décadas, esses eventos trazem no seu bojo, primordialmente,
a recomposição de memórias familiares em consonância com uma variedade de fenômenos
sociais como a reordenação da genealogia, as inúmeras trajetórias familiares, as diferentes
representações culturais sobre o sistema de rede familiar e rede de parentesco que dinamizam
relações geracionais.
Não obstante, a tessitura social resultante de intensas transformações observadas nas
últimas décadas, as representações dos grupos familiares acerca dessas transformações, bem
16
como os novos significados e valores que têm expressão nas práticas e experiências sociais
criadas por esse evento festivo são questões que tangenciam o estudo aqui desenvolvido.
As Festas de Família, enquanto um evento que tem como potencial constituir a
memória familiar como contendo “qualidades simbólicas de uma ‘identidade-valor’” (Eckert,
1993, p. 4), imprimem lógica e sentido às trajetórias familiares e à reconstituição de redes de
relações familiares no presente. Com essa força de transmitir a memória familiar entre as
diversas gerações implicadas no processo da Festa, esse evento reorganiza os laços de grupos
familiares em face às experiências de desenraizamento dos indivíduos e de
destradicionalização das relações socais. Ressurge, assim, como uma prática social que
reestrutura os sujeitos modernos fragmentados; ou, ainda, como uma forma de aliança num
mundo globalizado, onde o Outro está em um lugar em que o Sujeito poderia estar; ou, ainda,
como um lugar de expressão das identidades familiares e sociais específicas e,
concomitantemente, como um agente de uniformização e reordenação de solidariedades.
Trata, efetivamente, de ordenar os vínculos de parentesco em que três e até quatro gerações
estão reunidas em torno de laços materiais, afetivos, sociais e simbólicos, configurando um
patrimônio familiar.
1.2 A emergência de um tema no percurso acadêmico
Os temas sobre família e memória intergeracional e intrageracional (Ricoeur, 2001)
têm sido o mote de meus estudos de antropologia. Sem dúvida, o interesse sobre o tema tem
origem na minha trajetória familiar, na qual a ausência do meu pai em virtude de seu
falecimento precoce resultou em um núcleo cujos membros tiveram seus vínculos mais
fortificados, talvez como uma forma de defesa, talvez pela responsabilidade centrar-se em um
adulto apenas, talvez porque assim deveria acontecer... O que cabe chamar a atenção é que
não tenho dúvidas de que o interesse sobre o tema parte de experiências pessoais vivenciadas
no meu pequeno núcleo familiar.
O processo de reflexão propriamente dito foi iniciado na pesquisa que desenvolvi no
Mestrado em Antropologia Social, que resultou na dissertação defendida em 2002
3
. A
pesquisa foi desenvolvida na cidade de Teutônia (interior do Rio Grande do Sul) e realizada
com base nas narrativas biográficas de antigos moradores descendentes de imigrantes alemães
3
Dissertação de Mestrado em Antropologia Social: “A cidade narrada na memória dos velhos habitantes de
Teutônia (RS): estudo etnográfico de memória intrageracional e compartilhada sobre as experiências
transmitidas na relação entre avós e netos”. Ano de obtenção: 2002. Orientadora: Profª. Drª. Cornelia Eckert.
17
que colonizaram a região do Vale do Taquari. A partir da etnografia, em que pude conviver
com famílias, ouvir as histórias narradas por avós e os relatos de filhos e netos, busquei
identificar as tradições e suas formas de transmissão de geração a geração por meio de
experiências vivenciadas no cotidiano da comunidade em questão. Tendo por perspectiva a
história social do grupo de imigrantes e o processo de fundação e dinamização da cidade em
seus aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, a pesquisa reordenava as narrativas
dos avós sobre as diversas e complexas formas de socializar seus filhos e netos à tradição de
seu ethos de pertencimento e enraizamento em uma trajetória de descendência alemã. Do
mesmo modo, as narrativas elucidaram como essa geração de avós ressituava os valores desse
ethos no tempo presente e os ressignificava sob a luz das novas condições socioculturais
advindas das transformações decorrentes da modernidade.
Seguindo a teoria da fenomenologia da memória de Paul Ricoeur (2001), os dados
etnográficos foram analisados a partir do conceito de rastro. Nesse sentido, a memória era
trabalhada nessas práticas sociais de convívio e nas sociabilidades diversas que configuravam
a transmissão de saberes em um contexto familiar, inseridos em uma ordem maior que era a
da comunidade local.
A emergência de signos de pertencimento, os sentimentos de similitude, de pertença a
um local ou a um grupo social é um movimento recorrente em tempos de globalização e
indefinição de espaços. Nesse sentido, pode-se reconhecer o papel dos avós quando
transmitiam ensinamentos práticos, mantinham expostos objetos significativos para seus netos
ou, ainda, quando definiam valores por meio de comportamentos e palavras.
Esse período foi marcado por questionamentos que ultrapassavam o objeto a ser
investigado. Naquele momento, foi possível perceber a grande preocupação centrada em torno
da manutenção dos laços familiares. Esses laços eram expressos ora na transmissão de saberes
e práticas que passavam de geração a geração, ora na busca de reuniões periódicas que
promovessem e reafirmassem a relevância e o significado da linhagem histórica da família.
Após o retorno de Teutônia e a escrita da dissertação, o que ficou para trás não deixou
de reincidir: a busca por um espaço que permitisse uma maior mobilização de familiares,
vivendo próximos ou não, mesmo que distanciados por fronteiras geográficas interestaduais
ou internacionais, era cada vez mais recorrente. Esse fenômeno teve um reforço significativo
quando minha principal informante na pesquisa de mestrado, a Vó Selma
4
, organizou sua ida
4
Vó Selma é avó de meu marido, responsável pela memória familiar e por transmitir às gerações mais novas
valores, hábitos coletivos e perpetuados no contexto familiar. Ela é de origem teuto-brasileira, nascida em
Teutônia (RS). A notícia sobre a 1ª Festa da Família Brust, realizada em 2002, pegou-a de surpresa e foi motivo
18
ao Rio de Janeiro em 2002, então aos 91 anos, para participar do 1º Encontro ou Festa da
Família Brust.
Já com o objetivo de desenvolver um programa de doutoramento, em um dado
momento de reflexão sobre os encaminhamentos dos projetos do Núcleo de Antropologia
Visual e participando como pesquisadora no Navisual (Núcleo de Antropologia Visual,
Laboratório de Antropologia Social, PPGAS, UFRGS), foi discutida a perspectiva de
realizarmos um documentário sobre Festas de Família. Nessa ocasião, houve a sugestão de
minha orientadora de doutorado no PPGAS/UFRGS, Profª. Drª. Cornelia Eckert, sobre a
possibilidade da tomada desse tema como projeto de doutorado, convergindo com os
interesses de pesquisa do Navisual. Lembro que nessa reunião, Cornelia argumentava ser esse
um fenômeno que crescia tanto na Europa quanto no Brasil, tendo a experiência pessoal de
vivenciar as Festas da família Mundstock (linhagem materna), que reunia, a cada dois anos,
parentes vindos dos diversos pontos do Rio Grande do Sul, de outros Estados do Brasil, da
Alemanha e dos EUA. O desafio foi imediatamente aceito.
Com o tema definido, fui à busca de subsídios que o sustentassem em uma proposta de
tese de doutoramento. Para a elaboração do projeto necessário para a seleção no
PPGAS/UFRGS realizei, então, algumas entrevistas com pessoas que estiveram ou estavam
envolvidas com a organização das Festas ou Encontros da Família ou, ainda, aqueles que
eram responsáveis pela elaboração da árvore genealógica familiar. Já nesse período alguns
dados significativos foram sendo desenhados.
1.3 O protótipo de um doutorado
A partir do nascimento do projeto doutoral, cabia, então, refletir o contexto em que as
reuniões periódicas eram idealizadas, bem como as motivações que levaram diversas famílias
a recorrer desse dispositivo em que se têm distintas gerações associadas em torno de uma
história familiar comum.
de grande alegria e movimentação da família para participar do evento. O “tronco” do RS não sabia que havia
parentes espalhados pelo país. A história familiar era contada a partir da chegada do imigrante no Rio Grande do
Sul; portanto, o fato de saber que há outros familiares e que a história é bem mais ampla do que se conhecia até
então fez com que Vó Selma “arrecadasse” netos e bisnetos para acompanhá-la ao evento. No período não pude
ir, pois estava envolvida com a conclusão da dissertação de mestrado. No entanto, as informações trazidas por
ela foram valiosas para melhor entendimento do objeto de investigação para a elaboração da tese de doutorado.
19
1.3.1 Contexto e Universo
As famílias que compreendem a pesquisa pertencem aos estratos sociais de camadas
médias e altas. Para especificar o universo de pesquisa e o contexto social, cultural e espaço-
temporal em que a pesquisa transcorre, foram feitos quadros de orientação das festas
perscrutadas, de informantes: organizadores e participantes; e, por fim, o quadro de
genealogistas e as condições que constroem a rede de parentesco.
1.3.1.1 Quadro de festas
Família Cidade Local Data Nº de partici-
pantes
(em média)
Origem
étnica
Religião Organizadores
Calliari Bento
Gonçalves
Hotel Dall’Onder 12/10/2006 220
participantes
italiana católica Dorval Callari
Valer Nova Bréscia Salão Paroquial
da Igreja
São João
25/09/2005 400
participantes
italiana católica Noeli Ana Valer
B. Battisti
Mundstock Capão da
Canoa
Casa do Pastor
Kurt Eckert
17/01/2009 30
participantes
alemã luterana Cornelia Eckert,
Clarissa Eckert
Baeta Neves e
Cordula Eckert
Scliar Porto Alegre Clube
Campestre
01/04/2006 250
participantes
russa judaica Lúbia Scliar
Zilberknop
e
Marili Scliar
Buchalter
Pretto Lajeado AABB/
Lajeado
24/09/2006 40
participantes
italiana católica Ida Berté Pretto
Jornada,
Finamor e
Forte
Santiago Clube Militar
de Santiago
13/10/2006 600
participantes
italiana e
francesa
católica Ervino Finamor
França Porto Alegre Holiday Inn
Porto Alegre
(Hotel)
15/12/2007 80
participantes
espanhola
e
portuguesa
católica Jairo Renato
Caminha de
Castilhos França
e
Beatriz Giovanini
de Castilhos
França
Saltiel Caraá Camping da
Praia João
Fernandes
12/11/2006 150
participantes
alemã católica Eduardo e
Débora Saltiel
20
1.3.1.2 Quadro de entrevistados
Nome dos
Entrevistados
Profissão Idade Local onde
mora
Data de
contato
Meio de
contato
Veículo/
pessoa mediador
Norma Beatriz
Ruttke Von
Saltiel
Enfermeira 50 anos Porto
Alegre/RS
12/11/2006 Presencial Eduardo Saltiel (filho
de Norma e
organizador da Festa)
Dalva Brust Psicóloga e
Sexóloga –
Consultora em
RH
51 anos Nova
Friburgo/RJ
06/07/2005 Meios
eletrônico e
telefônico
Selma Brust
de Vasconcellos
Marinês,
Tio Milo e
Dorval Calliari
Thiago e
Antônio Callliari
Professora e
comerciante
Empresário
Estudantes
61 anos
87 anos
60 anos
14 e 13
anos
Joaçaba/SC
Curitiba/PR
Porto Alegre
12/10/2006
25/10/2006
Presencial e
meio
eletrônico
Coluna ZH
“Túnel do Tempo”
José Arvedo
Flach
(Irmão Justo)
Professor
universitário
aposentado e
Psicólogo
86 anos Canoas 07/08/2004
25/03/2005
13/06/2006
(contato
sistemático)
Presencial e
meio
eletrônico
Encontro casual
no Unilasalle
Gladis Weber Dona de casa
e estudante
53 anos Canoas 01/10/2007 Presencial e
meio
eletrônico.
Aluno do curso
de Letras/Unilasalle:
Carlos Daniel Reinoso
Ingo Von
Wurmb
E
Gisélia Padilha
(Wurmb)
Engenheiro da
indústria
automobilístic
a BMW.
Dona de casa
e estudante
52 anos
40 anos
Munique/Ale
manha
Canoas
17/06/2007
17/12/2005
Meio
eletrônico e
presencial
Aluna do curso
de História/Unilasalle
Gisélia Padilha
(Wurmb)
Geraldo e
Bermela Valer
E
Noeli Ana
Valer B.
Battisti
Motorista e
proprietário
de táxi e dona
de casa.
Funcionária
da Prefeitura
de Nova
Bréscia
60 anos,
58 anos
e 53
anos
anos.
Lajeado
Nova Bréscia
25/09/2005
30/11/2005
Presencial e
via telefone.
Colega de mestrado
Fernanda Vali
Nummer
Ida Berté
Pretto
Dona de casa 72 anos Porto Alegre 24/09/2006
17/12/2006
Presencial Bernardo Pretto
José Antônio Só
de Castro,
Edith Só e Maria
José Só
Administrador
e prestador de
consultoria a
empresas
Dona de casa
Arquiteta da
Metroplan
64 anos
87 anos
59 anos.
Porto Alegre 30/06/2007
15/09/2007
Presencial e
meio
eletrônico
Em um site da
família somente
captado através
do Google
Judith
Vasconcellos
Funcionária
pública e
estudante
55 anos Canoas 14/06/2006
21/06/2008
Presencial e
meio
eletrônico.
Aluna de Filosofia
do Unilasalle
Flávia Mundstock,
Mara Mundstock
Rosane Mundstock
Pizarro
Eduardo Eckert
Nunes da Silva
Professora de
música
aposentada.
Advogada
aposentada.
Arquiteta
Estudante
64 anos
56 anos
49 anos
12 anos
Santa Rosa
Santa Rosa
Jundiaí/SP
Porto Alegre
17/01/2009 Presencial Profª. e Orientadora
Cornelia Eckert
Brasil Finamor,
Castorina Finamor
Jornada de Medeiros
e Elviro Finamor
Funcionário
público.
Historiadora
Funcionário
público
77 anos
48 anos
70 anos
Porto Alegre
São
Leopoldo e
Porto Alegre
Presencial Coluna do Jornal ZH
“Túnel do Tempo”
21
Paulo Bittencourt
Rocha
Administrador
, vinculado ao
setor de RH
da empresa
Ipiranga.
43 anos Porto Alegre 06/11/2007 Presencial Aluno do curso
de Biologia/Unilasalle
Miguel Gayeski Professor
universitário
aposentado
66 anos Canoas, no
período da
entrevista, e
atualmente
reside em
Florianópolis
12/9/2004
23/3/2005
Presencial Site da Representação
Central da
Comunidade
Brasileiro-Polonesa
do Brasil
(www.braspol.com.br)
Floriano Guterres Advogado e
funcionário do
Banco do
Brasil
aposentado
78 anos Porto Alegre 28/08/2004 Presencial e
via
telefônica
Colega no Navisual
e no Unilasalle
Lúbia Scliar
Zilberknop
Professora
universitária
aposentada
67 anos Porto Alegre 29/3/2006 Presencial e
email
Coluna de Moacyr
Scliar
no Jornal ZH em
26/3/2007
1.3.1.3 Quadro de genealogistas
Nome Idade Início da
Investigação
Fontes de pesquisa Meio de Divulgação
Floriano Guterres 77 anos 1991 A busca percorre os arquivos Público e
da Cúria de Porto Alegre.
Carta escrita e
sua máquina de
escrever ‘Olivetti’
Ricardo Ceccagno 25 anos 2003 Inicia com os descendentes brasileiros
e estende com as informações de um
parente que vive na Itália.
Meio digital
José Arvedo Flach 86 anos 1995 Busca por troncos: descendentes dos
três irmãos que vieram ao Brasil.
Visitou a cidade de origem familiar na
Alemanha, com os quais mantém
contato sistemático.
Formato de cadernos
e meio digital
José Carlos Só de
Castro
64 anos 1994 Dá continuidade à genealogia
elaborada parcialmente por sua mãe,
que havia sido iniciada por um
pesquisador e um genealogista, Prof.
Jorge Felizardo e Paulo Feijó,
respectivamente.
Meio digital
Jorge Calliari 46 anos 1998 Busca em arquivos e informações
orais. Envia por e-mail parte da árvore
para os parentes mais distantes para
complementação.
Meio digital
Ingo Von Wurmb 50 anos 1880
(aproximadamente)
Busca por parentes que deixaram a
Alemanha no ano de1900, segundo
documentos. Adota a internet para a
localização dos mesmos e, a seguir,
manda uma correspondência via
correio.
Editados quatro livros
(1500 páginas ao total)
e meio eletrônico
A noção que guia o referencial teórico-metodológico desta tese é o conceito de
memória coletiva que é vivida, interpretada e reconstruída por membros de famílias para
organizar um evento que congregue os familiares. Com base nesse pressuposto, busquei
relacionar os jogos da memória, tendo por referência as noções de “memória coletiva
22
transmitida por gerações” (Halbwachs, 1990) e/ou “memória compartilhada” (Ricoeur, 2000),
a partir de uma etnografia da memória familiar, que se pode denominar de “etnografia da
duração” (Eckert; Rocha, 2001).
Para tanto, coloco em evidência as Festas de Família enquanto “parte do mundo ao
alcance comum de um grupo” (Schutz, 1979), grupo este, em específico, o das “organizações
de parentesco mais ou menos rígidas, que ordenam o mundo social em zonas de proximidade
variável, desde a intimidade familiar até à estranheza” (Schutz, 1979, p. 79). Ou seja, apoiei a
análise das reuniões familiares nas considerações fenomenológicas de Alfred Schutz, que tem
seu pensamento sobre o “Mundo da Vida” orientado a partir da Filosofia de Edmund Husserl
e a “Sociologia da Ação e Compreensão” de Max Weber.
Entre os rastros perscrutados, estavam as diferentes intencionalidades sobre a
realização de um Encontro de Família. Dessas motivações, foram destacadas três lógicas de
iniciativas:
a) festa que resulta da iniciativa de reestruturação da árvore genealógica, nas quais
muitos parentes não se conheciam ou desconheciam a existência de laços
familiares e de parentesco com determinadas linhagens. Denomino esse formato
de Festa de Família “como modismo em tempos de globalização”;
b) festa motivada em reunir ocasionalmente familiares que se dispersaram em locais
diversos. Esse encontro geralmente ocorre em alguma cidade interiorana e reúne
os parentes que partiram em função das atividades de trabalho e oportunidade de
emprego ou estudo, residindo em capitais, cidades de forte desempenho financeiro
ou centros universitários. Denomino essa de Festa no Interior;
c) Festa em homenagem ao(s) ancestral(is) vivo(s) ou morto(s), em geral
considerado(s) guardião(ões) da memória familiar. Esse evento também pode
coincidir com um aniversário do(a) homenageado(a), de uma boda de ouro, de
esmeralda, de diamante ou de platina. Denomino essa de Festa Homenagem.
Resumidamente, pude identificar esses formatos como privilegiados, o que não
descarta derivações e singularidades em cada ocasião, nem que em uma mesma família ocorra
o cruzamento entre intencionalidades e iniciativas. Busquei, então, me apropriar desses
sistemas de festas para fins de desenvolvimento do nosso tema de tese, considerando esses
três tipos ideais:
23
1.4 Tipos ideais: a motivação como referência
1.4.1 Tipo 1: a Festa de Família como modismo em tempos de globalização
Este formato é considerado a “febre” do momento. Parte em geral da iniciativa de
algum membro da família que se elege como guardião da memória e passa a pesquisar a
árvore genealógica. Em geral, a reconstituição da árvore mobiliza uma rede enorme de
parentes, ultrapassando as fronteiras nacionais. No Brasil, a moda consiste em reconstituir a
linhagem de origem européia, partindo dos descendentes de imigrantes que vieram para o
Brasil entre os séculos XIX e XX.
Esse modismo surge na Europa na década de 1980, especificamente na França, como
apontam os estudos de Segalen e Zonabend: “Festas familiares reunindo 500 descendentes de
determinado antepassado animam locais, fortificam solidariedades, alimentam imaginários
(Segalen; Zonabend, 1999, p. 125). De igual modo, encontrei relatos de eventos e reuniões
familiares na Alemanha, através de uma correspondência enviada por um senhor a um parente
no Brasil e na Suécia, por meio de um texto de David Gaunt em um livro organizado por
Martine Segalen. Observa-se, portanto, uma retomada dos estudos sobre famílias e parentesco
em uma abordagem que envolve sentidos diversos, entre eles o de continuidade e o de
perpetuação, estendidos em um âmbito internacional.
1.4.2 Tipo 2: a Festa no Interior
Nesta motivação encontrei o esforço do reencontro de familiares e parentes dispersos
por razões diversas em diferentes cidades. Em geral, são famílias que partem do interior do
Estado para morar na capital, e essa alteração entre viver o rural e viver o urbano coloca os
indivíduos em uma situação de deslocamento e desacomodação em que a reunião com seus
parentes, que também passam por esse “conflito identitário”, os levam a se unirem para
congregar e reafirmar as suas origens interioranas.
As festas no interior também surgem de grupos familiares que têm a origem em um
tronco específico, isto é, do interior de uma grande família, núcleos que descendem de um dos
imigrantes ou de um dos filhos do imigrante que abre a genealogia de uma dada família
realizam “pequenos encontros familiares” em períodos intermediários aos grandes encontros.
Em geral, os familiares deslocam-se à cidade de origem do ascendente comum, como se esse
24
fosse o genuíno espaço da memória familiar, um lugar da memória
5
que Nora (1984)
reconhece como lugares que compreendem, em graus diferentes, as dimensões material,
simbólica e funcional. A dimensão material sendo aquela que denota uma certeza, pois é
visível, não tem a finalidade desejada, uma vez que só é lugar de memória se a imaginação o
investe de uma aura simbólica, se for objeto de um ritual quando é acionado periodicamente
para revelar-se na lembrança.
A festa no interior refaz o espaço familiar e é o ponto de encontro que, por meio da
reunião de parentes próximos, é preenchido a partir da cumplicidade que a estrutura familiar
comporta, uma vez que este espaço-lugarejo “acumula, no decurso do tempo, as marcas das
práxis acumuladas” (Santos, 2004, p. 33). Há, portanto, uma identidade construída a partir da
origem espacial que refere o antepassado comum ao pequeno grupo ou “tronco” que, no
entanto, revela relações de alteridade entre seus membros articulando outros elementos, entre
os quais os deslocamentos, a apreensão de novos espaços e a adoção de novos valores,
conjunto que marca as trajetórias individuais. Segundo Bosi, “o desenraizamento é condição
desagregadora da memória” (2004, p. 28) e, para o grupo que busca reavivar os sentimentos
de identificação, o local “fundador” é uma totalidade estruturada, pois é comum a todos e
confraternizar ali é também promover “o reencontro do caminho familiar” (Bosi, 2004, p. 75).
A idéia do espaço também é analisada por Ricoeur ao pensar sobre “marcas exteriores
adotadas como apoio e escalas para o trabalho da memória” (2007, p. 156). Na seqüência da
sua reflexão afirma, ainda, que as comemorações em lugares consagrados pela tradição se
relacionam a experiências vividas que se instalam como memória coletiva, tais como as
lembranças de ter moradia (casa ou cidade) ou ainda de viagens que tecem ao mesmo tempo
uma memória íntima e uma memória compartilhada entre pessoas próximas.
Observa-se, então, que a dimensão do espaço físico comporta o tempo da memória
que, junto a um passado histórico, legitimam as ações que redefinem a coesão do grupo
familiar. A Festa no Interior busca atualizar os sentidos, expressar relações simbólicas e
fortalecer o sentimento comum que se produz nas relações interativas entre os que festejam
entre si e entre o espaço em que habitam as lembranças que visam à reconstrução subjetiva do
passado.
5
Ver também em Le Goff (2003), Yates (2007).
25
1.4.3 Tipo 3: a Festa Homenagem
Outro formato percebido é o de famílias que têm referência em um parente, idealizado
por seus membros como um “pai fundador”. Na ausência deste por morte, a reunião busca
vivificar valores e sentimentos comuns definidos, em um dado momento da história familiar,
por esse membro já falecido. Por vezes, a Festa Homenagem refere-se a um membro que
aniversaria e que é imbuído de uma significância ímpar no núcleo familiar, seja pela idade
avançada e, em geral, o mais idoso da parentela, seja por sua posição de guardião da memória
familiar, seja pela comemoração de bodas
6
de ouro, diamante ou platina de um casal que se
destaca por alguns dos motivos já anunciados.
Cabe reiterar que as motivações não indicam exclusividade às comemorações. Há
famílias que organizam grandes festas chamadas aqui de “festas em tempo de globalização” e,
em outros momentos, realizam “festas no interior” ou “festas homenagem”. Por outro lado,
muitas festas de família “em tempos de globalização” foram idealizadas a partir de encontros
de parentes em festas “homenagem” ou “no interior”.
1.5 A pesquisa toma fôlego
Tendo os pressupostos antropológicos definidos, pude então analisar com mais
acuidade esses fenômenos como práticas sociais no contexto das relações de parentesco e
familiares no mundo contemporâneo. O tema da tese estava consolidado: tratar da memória
familiar, a partir da reordenação das relações entre seus membros, que se manifesta ao longo
da produção de um evento nomeado Festa de Família.
Desde os primeiros passos da chamada inserção no campo, percebi que a pesquisa
privilegiaria o ponto de vista da geração mais velha para conhecer, a partir de seus
testemunhos, o processo de (re)construção dos vínculos familiares. Não obstante, há a
constatação do interesse e a iniciativa de membros mais jovens. Conforme o relato das festas
familiares da minha orientadora, é um primo seu, jovem historiador residente em Porto
Alegre, que resolve reconstruir a árvore genealógica da família. Inicia a pesquisa consultando
os parentes residentes no Rio Grande do Sul e logo surge a idéia de organizarem uma festa
6
As bodas, nesses casos, referem-se à comemoração do aniversário de casamento do casal homenageado. A
classificação em bodas de ouro (50 anos), de diamante (60 anos) e de platina (65 anos) é atribuída em muitos
países ocidentais. A origem etimológica da palavra boda indica que ela provém da palavra latina votum, que
significa promessa e tem uma forte relação à dimensão religiosa, cuja promessa indica “para toda a vida”,
segundo o ditame de seu ritual.
26
para reunir todos que constam na árvore genealógica. Também conheci um jovem que, por
iniciativa própria, passou a buscar a reordenação da origem familiar, tendo como facilitador o
uso da internet para alcançar o contato com parentes no exterior e constituir a tessitura do
parentesco.
Pode-se afirmar, então, que algumas questões passaram a orientar meu roteiro de
investidas em campo. Que famílias promovem festas? O que as motiva a se reunirem? Como
vivem? Como se organizam e interagem? Quais seus conflitos e contradições? Quais são suas
referências ao passado e seus projetos futuros? Que discursos proferem nas festas sobre o que
deve ser transmitido às gerações mais novas? Como a pesquisa das árvores genealógicas
aponta para rearranjos de novos formatos familiares?
Tratou-se, nesse sentido, de dar conta da trajetória familiar a partir da noção de uma
memória coletiva que se reatualiza diante das transformações vividas no processo dos
cotidianos de seus antepassados e nos seus próprios, segundo as narrativas dos festeiros sobre
as experiências de vida na família e na sociedade contemporânea. Segundo Claude Lévi-
Strauss (1975), os homens, ao narrarem (“o mito”) o que pensam, contam a si mesmos os
eventos e acontecimentos que lhes significam e lhes dão sentido lógico de existência no
mundo (p. 241). Narrar o tema da família, das relações geracionais, das práticas e
comportamentos familiares é tomar consciência dos eventos e dos acontecimentos que lhes
tornaram o que são hoje. A divulgação desses aspectos aos membros do grupo familiar produz
um estado mental que é ritualizado em eventos cotidianos (falar o dialeto, por exemplo) e em
eventos extraordinários (festas anuais, por exemplo) que colocam em evidência a memória
coletiva do grupo.
Em todos os formatos de festa, não há dúvida quanto às facilidades de comunicações
advindas do progresso técnico e tecnológico. Nesse sentido, o tema dos encontros familiares
relaciona-se a novas formas de relações, interações e sociabilidades suscitadas pelas
tecnologias advindas de um mundo globalizado. As atuais tecnologias de comunicação –
telefone, internet, correio, etc. – apresentam-se como fortes aliadas no árduo trabalho para
compor as genealogias, pensado por meio de uma analogia à tarefa de arqueólogos: a
reconstrução das redes de parentesco com base em rastros, indícios. Há, ao final, referência a
essa questão de modo mais aprofundado.
Outro aspecto que orienta todas as festas é a celebração dos ancestrais e, nesse sentido,
o idoso é reconhecido como guardião da memória familiar e narrador em potencial,
assumindo um papel social valorizado. A sua posição no contexto festivo é a do ancestral
27
representativo da continuidade do grupo de parentesco, o modelo a ser seguido pelas gerações
mais novas.
Cabe ressaltar que as festas são, de fato, apenas o contexto comemorativo de um
processo que articula uma complexa mediação de configuração e reconfiguração das relações
de parentesco. Sendo assim, das atividades anteriores à festa propriamente dita, cita-se a
necessidade de reconstrução das genealogias com a finalidade de reconstruir as relações
existentes entre as pessoas e os grupos a que elas pertencem. Essa atividade por si só exige a
constituição de uma rede de parentes que contribua para a circularidade das informações sobre
os indivíduos que se encontram unidos entre si por um complexo interligado de laços
ramificados, num processo análogo a uma “arqueologia”
7
desse complexo.
Todas as festas consistem, então, em um processo de organização prevendo o pré-
evento, o evento propriamente dito e o pós-evento, como bem nos ensina a Teoria do Processo
Titual de Victor Turner (1974). E, seguindo a perspectiva de Mariza Peirano sobre o conceito
atual de ritual: “[...] evitamos uma definição rígida e absoluta. A compreensão do que é ritual
não pode ser antecipada. Ela precisa ser etnográfica, isto é, apreendida pelo pesquisador em
campo, junto ao grupo que ele observa” (Peirano, 2003, p. 9).
As Festas de Família foram analisadas a partir dos significados que envolvem cada
etapa desse evento, todas elas envolvendo inúmeras tarefas, várias pessoas e situações que as
constituem. Há, em todas elas, uma convencionalidade expressa, porém, não rígida. Contêm,
invariavelmente, um contexto de transmissão de valores e conhecimento, além de um espaço
próprio para resolver as crises ou conflitos e reproduzir as relações sociais.
Considerando, na sociedade moderna, o contexto individualista e de institucionalidade
das fases da vida, as noções de crise e conflitos são vividas como dramas pessoais nos seres
singulares. Esses conflitos vividos no interior da família enquanto um espaço das emoções, da
privacidade e da intimidade têm nas diferentes gerações contemporâneas (por exemplo, avós,
pais e netos) diferentes interpretações sobre a vida familiar. Os espaços de negociação desses
conflitos estão sendo criados e recriados ao longo das relações sociais tecidas no cotidiano.
Não obstante, as características que assume a individualização nas sociedades modernas
correspondem às características do modelo de família de que estamos tratando. Ou seja,
segundo Luiz Fernando Dias Duarte, a fragmentação observada nos indivíduos reflete na
fragmentação da família quando a família nuclear passa a corresponder a uma “espécie de
7
Segundo Ginzburg (2002, p. 57), “a arqueologia, ou antiquariato, destinada a reconstruir eventos não
testemunhados diretamente, implicava instrumentos intelectuais diversos dos usados da historiografia. [...] Em
ambos os casos, tratava-se de conjecturar o invisível a partir do visível, do rastro”.
28
indivíduo (indiviso) coletivo”. Outro aspecto importante é a adoção da residência
monofamiliar como forma de evitação às “aderências consideradas perversas, perturbadoras
da paz doméstica” (Duarte, 1995, p. 33). No entanto, essa problemática em um âmbito mais
amplo é percebida pelo autor com variações de modelo a partir da “tripartição habitual” das
classes sociais. Ou seja, “a maior parte das afirmações de senso comum relativas à família no
mundo ocidental moderno referem-se às suas características dentro do universo das camadas
médias” (Duarte, 1995, p. 33-5) altamente vinculada à ideologia individualista. Entretanto, há
a incorporação da “solidariedade de linhagem”, que se traduz na relação das unidades
familiares com o capital econômico, bem como na identidade que se expressa sob a forma de
nome de família.
1.6 A organização da tese
Para situar o leitor nas discussões que engendram esta tese, trago, neste momento, a
forma como foi estruturada. A Parte I, nos capítulos 1 e 2, aponta ao leitor a perspectiva
etnográfica e o referencial teórico que fundamentaram a pesquisa de campo. O esforço
empreendido nessa etapa da tese é o de mapear as estratégias da produção do conhecimento
sobre o tema proposto, que resumem desde as atividades de coleta de dados e, com ela, as
dificuldades enfrentadas em adentrar em espaços de intimidade dos grupos, lidar com as
constantes revisões e desconstruções da minha visão de mundo até a apreensão do caráter do
encontro intersubjetivo que define o encontro com o Outro, cuja relação dialógica “faz com
que os horizontes semânticos em confronto – o do pesquisador e o do nativo – abram-se um
ao outro, de maneira que transforme tal confronto em um verdadeiro ‘encontro etnográfico’”
(Cardoso de Oliveira, 2000, p. 24).
Em meio a um momento histórico em que a vida se apresenta orientada pela
transitoriedade do novo e pela angústia das incertezas sobre si, anuncia-se aos homens
descobrir e reinventar os exíguos espaços de certeza, os caminhos para superar a
inconclusividade sobre os problemas que lhes são colocados na vida cotidiana. Diante da
diversidade, combinam-se tempos históricos que incorporam, também, “efetivas relações
datadas, vestígios de outras estruturas e situações que são ainda, no entanto, relações vivas e
vitais e que anunciam a historicidade do homem nesses desencontros de tempos, de ritmos e
de possibilidade, nessas colagens” (Martins, 2008, p. 2). Essas relações datadas são as
estruturas fundamentais do familismo, da religiosidade, de raízes, daquilo que ficou
residualmente à margem das transformações velozes de uma contemporaneidade. Os
29
indivíduos buscam nessas “ressonâncias” estruturais as concepções tradicionais a respeito de
parentesco (que nos interessa particularmente) entre outros relacionamentos, em uma visão
ampliada e revigorada pelo conjunto de outras tantas experiências agregadas a eles pela
demanda do mundo atual. Essas concepções tradicionais apresentam-se reinventadas e
expressas em uma outra dinâmica que, no entanto, busca fortalecer as concepções
ordenadoras da vida social provenientes desse enraizamento.
Com base no exposto e tendo como objetivo alcançar as estratégias que as famílias
adotam para reordenar as “ressonâncias” sobre as estruturas do familismo diante de uma forte
diversidade sobre os membros que congregam o grupo familiar, passo a percorrer as redes
sociais que, em diálogo, definiram os caminhos que percorrem em busca dos espaços de
certeza, dos lugares que os fixam e que lhes proporcionam referências.
Os capítulos 3 e 4, aderindo a uma forma clássica para a escrita desta tese, tratam do
percurso teórico que fundamenta o estudo sobre a construção das memórias familiares a partir
das Festas de Família. O capítulo 3, mais especificamente, aborda a modernidade tardia ou
alta modernidade em suas configurações e como os indivíduos se adaptam ou são adaptados a
viver o mundo sob as inúmeras demandas e contingências que suscitam estilos de vida mais
individualizados e em situações de desencaixe e risco. O capítulo 4, por sua vez, contempla o
referencial teórico que fundamenta a reflexão sobre as memórias transgeracionais e
compartilhada que cerca o trabalho de campo e a escrita que aqui é apresentada.
Na Parte II, nos capítulos 1, 2 e 3, trato exclusivamente das Festas de Família
classificadas pelas diferentes motivações que levam à realização de tal evento. Não obstante,
percebe-se que a maior densidade dos eventos recai sobre as famílias oriundas de imigrantes
europeus que têm na etnicidade uma estratégia de pertencimento bastante significativa. Desse
modo, a cada etnia proponho uma breve revisão da historicidade sobre a imigração, tendo em
vista que as situações diferenciadas definem destinos e trajetórias específicas. A seguir, trato
particularmente de cada uma das famílias que tenho acompanhado na pesquisa de campo.
Em cada evento analisado, esclareço que tenho como objetivo tratar:
a) da apresentação dos personagens, estando esses definidos pelos papéis assumidos
no evento: ora como guardiões da memória familiar, ora organizadores das festas
ou da genealogia, ora como descendentes mais diretos do fundador da linhagem;
b) a seguir, proponho as memórias familiares que se apresentam como intencionais a
vivificar a memória individual em uma dimensão coletiva e que se traduz em
reconstruir a trajetória do grupo familiar com base na eficácia da simbologia dos
vínculos com o território parental, da saudade e do tempo;
30
c) a descrição das Festas de Família em que busco enfatizar o conjunto de ações
reincidentes e singulares que delineiam a imagem familiar a ser divulgada e
apreendida entre seus membros.
Cabe chamar atenção à demanda que a organização de uma festa pode resultar de
diferentes iniciativas. Essas iniciativas advêm de um indivíduo que passa a ter interesse em
reconstituir a árvore genealógica de sua linhagem familiar até sugerir a uma rede de parentes
um momento ápice como uma festa. Ou, em outras situações, pode ser um grupo de familiares
que toma a iniciativa de criar uma comissão organizadora e, a partir dessa comissão, buscar os
outros parentes para organizar e divulgar um encontro familiar. Ou, ainda, em uma ocasião
em que alguns membros se encontram e que pode ser um aniversário, um casamento, um
velório, um enterro, etc., um pequeno grupo decide promover um encontro da família
ampliada. Portanto, observa-se que essa prática apresenta-se disseminada em muitas famílias
e que os encontros anteriores não celebram a família extensa, o “pai fundador” ou o
emblemático local de origem.
A Parte III diz respeito às interpretações das festas e de todas as categorias que essas
comemorações envolvem. O capítulo 1 trata da reconstrução das memórias familiares, tendo
em vista o valor moderno que subsidia essa reconstrução. Ou seja, a ação de rememorar dos
sujeitos envolve o aspecto construtivo da memória, tendo em vista a reconstrução subjetiva do
passado. Essa premissa indica a consideração de um passado vivido subordinado aos que
atuam sobre a reconstrução de uma memória em interação no presente. Cabe, portanto, referir
que o fenômeno da evocação e a experiência de recordar – que se estabelece entre o que
lembrar e o que esquecer – se produzem subjetivamente em função de um presente sob uma
condição objetiva.
As memórias familiares centram-se em acontecimentos compartilhados e que
estruturam as famílias em um passado comum, tendo como referência os resíduos
(Halbwachs, 2006, p. 43), os rastros (Ricoeur, 1997, p.196), os vestígios mnemônicos (Le
Goff, 2003, p. 420) ou os indícios (Ginzburg, 2003, p. 150) que permaneceram como imagem
não localizada, mas que surge como reflexo de uma “intuição sensível” (Blondel apud
Halbwachs, 2006, p. 42). Isto é, a reconstituição das lembranças está relacionada a uma
“aproximação de percepções determinadas pela ordem em que se apresentam determinados
objetos sensíveis, ordem essa resultante de sua posição no espaço” (Halbwachs, 2006, p. 53).
Festejar no interior é evocar as lembranças por meio de um espaço que refere a um passado
significativo à família, considerando que cada memória individual é um ponto de vista sobre a
memória coletiva, tendo em vista as outras tantas experiências em outros ambientes que
31
concorrem à complexidade das combinações entre todas para cada um dos indivíduos
envolvidos.
Nesse sentido, o capítulo 2 trata dos indivíduos nesses diversos ambientes coletivos
que habitam o mundo da vida e que tecem a compreensão dos mesmos sobre a releitura da
memória familiar. Esse capítulo busca mapear o indivíduo no mundo e o conjunto de
mudanças e rupturas que concorrem para a alteração de valoramentos, permitindo novos
enquadramentos e classificações sociais. Esses elementos implicam em uma vida cotidiana
como realidade, uma vez que é interpretada pelos indivíduos e subjetivamente dotada de
sentido para estes, na medida em que forma “um mundo coerente” (Berger; Luckmann, 1996,
p. 35). Os autores interacionistas propõem uma análise do cotidiano a partir das relações face
a face, tendo em vista que a realidade apresenta-se ao sujeito como um mundo intersubjetivo
em que há a participação junto a outros indivíduos, e indicam a apreensão dos outros
indivíduos por meio dos processos tipificadores. Ou seja, aos outros o sujeito atribui ‘tipos’
que os colocam em um lugar definido na relação face a face, sendo que esse esquema
tipificador é naturalmente recíproco e, portanto, está em contínua negociação. Essas
tipificações vão se tornando anônimas à medida que se distanciam das situações face a face
em se tratando de conhecidos e contemporâneos. No entanto, há uma breve abordagem à
relação do indivíduo com os predecessores e sucessores, sendo que aos primeiros há uma
breve indicação a um conteúdo fortemente mítico, portanto, muito próximo às comemorações
de famílias de origem européia que reverenciam os antepassados imigrantes; e, por sua vez,
aos sucessores – indicados como altamente anônimos pela ausência de relações com as
“gerações futuras” – mas que, no entanto, tornam-se alvos de campos semânticos em que se
constroem a experiência, tanto biográfica quanto histórica, a serem objetivados, conservados e
acumulados. É, portanto, na acumulação que se constitui um acervo social de conhecimento
como o familiar, a ser transmitido de uma geração a outra.
O capítulo 3 busca analisar a reconstrução das trajetórias familiares, traçando as
estratégias adotadas a partir de um repertório de tecnologias que favorecem a (re)construção
de uma tradição a ser tecida em uma experiência compartilhada. As intensas mudanças
promovidas por novas formas de interação têm dotado os indivíduos de uma maior
possibilidade relacional, não mais e especificamente face a face, mas tendo instrumentos
tecnológicos como mediadores de comunicação e informações compartilhadas. Esse universo
se configura em uma “modernidade [em que] a realidade social e cultural é produzida pela
consciência da transitoriedade do novo e do atual” (Martins, 2008, p. 18). Ou seja, é um
mundo social “amplamente identificado com sentimentos de desorientação e mal-estar”
32
(Giddens, 1997, p. 73) que coloca os indivíduos em situação permanente de escolha e de
decisão, sem o tempo necessário para a ponderação sobre as possíveis formas de ser e de agir
dentro das opções relacionadas ao estilo de vida definido sob a orientação do lugar que cada
um ocupa na sociedade.
Esse campo de possibilidades, que assume grandes proporções no mundo
contemporâneo e é problematizado por Zygmunt Bauman como “excesso e não da falta de
escolha” (Bauman, 2001, p. 75), distancia-se dos espaços de tradição que proporcionam um
horizonte de ação relativamente fixo, mas que, no entanto, observam-se elementos oriundos
de uma comunidade local que são incorporados às práticas locais e tornam-se hábito. Segundo
Giddens, sua análise sobre a destradicionalização das sociedades atuais compreende o hábito
como uma possível forma pessoal de rotinização e afirma que “o significado psicológico
dessas rotinas não deve ser subestimado [e que] são de importância básica para a segurança
ontológica, porque proporcionam um meio estruturador para a continuidade da vida através de
contextos diferentes de ação” (Giddens, 1997, p. 124). A rotinização das Festas de Família
pode ser relacionada à reordenação de elementos que identificam os indivíduos a um espaço
social em que a continuidade é condição para a acomodação das emoções, mediando a vida
cotidiana e a vida privada. E, apropriando-me da visão de Velho sobre “a noção de que os
indivíduos escolhem ou podem escolher é a base, o ponto de partida para se pensar em
projeto” (1997, p. 24), as Festas de Família percebidas sob esse ponto de vista assumem a
dimensão e a instância desindividualizadoras, cuja rotinização e performance remete esse
evento à categoria de ritual. Nesse sentido, “os rituais são, de certa maneira, um mecanismo
para tentar lidar com a permanente ambigüidade de fragmentação individual e totalização
social” (Velho, 1997, p. 25).
Cabe ressaltar, então, que os elementos tradicionais sugeridos anteriormente são
reconfigurados em uma perspectiva atual em que as tecnologias, o consumo e o culto à
autonomia e valorização de si mesmo promovem novas percepções e produzem novas
conformações sobre os laços familiares. Percebe-se que a apropriação e a habilidade em lidar
com as atuais formas de comunicação trouxeram a possibilidade de alargamento de
perspectiva a nível planetário e, certamente, esse novo cenário assume o papel de agente
facilitador da redescoberta da rede de parentesco em que os indivíduos empreendem uma
busca minuciosa e tantas vezes quimérica das raízes ancestrais.
As reconfigurações no interior das famílias são significativas, desde a organização do
“parentesco que [hoje] se organiza com base em vínculos sociais radicalmente diverso”
(Segalen, 1991, p. 14), as posições de gênero nos arranjos familiares, o aumento da
33
expectativa de vida, as migrações, etc. Por vezes, o domínio sobre os usos da tecnologia
promove o deslocamento da figura de guardião da memória, atribuindo àquele que, por meio
dos sistemas de comunicação, detém a possibilidade de estocar e acessar informações sobre o
parentesco e atuar na reconstituição histórica da família.
O capítulo 4 traz a reflexão sobre o deslocamento dos membros de uma família para as
cidades e a adoção de modos de vida alternativos. A adaptação a novos padrões de vida
inconstantes e etéreos exigiu dos indivíduos formas diversas de articular e perseguir as
demandas que a vida prática lhes confinou. Os ritmos do cotidiano nas cidades, muito distante
dos ritmos da vida comunitária vivenciada no interior ou, ainda, as disjunções promovidas
pela busca de encontrar ‘um lugar’ em meio a um ambiente hostil e solitário, colocou o sujeito
em uma condição “atomizada” em que sua inserção é singular nos diferentes grupos ou
‘comunidades’
8
nos quais atua. Essa inserção promove a fragmentação desse sujeito e implica
em uma instabilidade identitária significativa, de modo a colocá-lo em um processo de
incertezas contínuo em relação ao que viveu, em um período de sua vida, em um lugar
confortável e aconchegante com sentidos e emoções amplamente compartilhados. Por outro
lado, a vida na cidade proporciona a experiência da ‘liberdade’ conquistada pelo
afrouxamento dos modos mais conservadores ou fixos que a vida no interior conformava.
A ampliação do campo de possibilidades e, dentro dessa perspectiva, o consumo,
passa a ser uma estratégia cultural importante no processo de “autodefinição e de
automanutenção” (Friedman, 1999, p. 330) do indivíduo. Nessa direção, Friedman traz a idéia
do consumo como uma estrutura específica do desejo expresso em uma estratégia específica
do consumo que define os limites de espaço de uma identidade específica. Ou seja, “as
estratégias de consumo só podem ser realmente apreendidas quando compreendemos a forma
específica em que se constitui o desejo. E, por ora, presumiremos que este último é um
aspecto dinâmico da formação da personalidade ou da identidade pessoal” (Friedman, 1999,
p. 330).
Observa-se, de modo explícito, o consumo imerso no universo da festa com a venda de
souvenires que têm impresso o nome da família, o que leva à compreensão de que o espaço
familiar muito próprio de um mundo íntimo e de encontro afetivo está inserido em um sistema
mais amplo e atende de forma eficaz o desejo, não só de confraternizar, mas também de
consumir.
8
Essa questão remete à idéia de ‘campos sociais’ em Bourdieu (1998) ou ‘comunidades imaginadas’ em Lash
(1997).
34
O capítulo 5, por fim, trata dos rastros que sinalizam os códigos de pertencimento e
atuam como referências identitárias que se constroem com base em uma memória
compartilhada na sobreposição temporal, em um tempo híbrido, encerrando referenciais
específicos de reelaboração e incorporação de um passado renovado por novos sentidos e
significados do presente. A reordenação da família e da estrutura simbólica da rede de
parentesco traz a notoriedade aos aspectos originais que compuseram a trajetória familiar. A
valorização dos vínculos a alguém, a um lugar ou, ainda, a um nome de família são ordenados
a partir de uma memória que é seletiva (ou arbitrária), e o que não foi anunciado ou
‘esquecido’ também indica o caráter sagrado que a festa busca apresentar. A sociabilidade
entre seus membros é um fator decisivo para a sua continuidade, e as formas adotadas para
permanecer serão abordadas por meio da análise dos jogos de reciprocidade que se constroem,
gradativamente, e se desvanecem ou se preservam ao longo da festa.
Para organizar essas festas, a pesquisa genealógica, não raro, traz novidades no que se
refere às novas formas de família. Esse aspecto diz respeito ao formato atribuído ao sistema
de parentesco frente ao processo de “desincorporação” das relações sociais (Giddens, 1997, p.
111) no mundo contemporâneo e perceber os significados atribuídos pelos grupos familiares
às novas conformações de parentesco como os processos de adoção ou, ainda, a fecundação
artificial com doadores anônimos, entre outras.
A partir das memórias de famílias de origem européia, isto é, de famílias descendentes
de imigrantes que vêm para o Brasil entre os séculos XIX e XX, e a valorização da
identificação com uma linhagem que se expressam nas festas ou encontros remete à reflexão
sobre a instituição familiar, à variedade de seus formatos e ao reconhecimento da sua força e
resistência ao, estrategicamente, permanecer no tempo. A valorização “daqueles que vieram
para o Brasil” repousa simbolicamente na imagem da coragem diante da renúncia (em alguns
casos, da própria família) e da conquista heróica e civilizadora das terras brasileiras. Por sua
vez, é recorrente em algumas famílias o desejo de buscar a parentela que os emigrados
deixaram nos países de origem. Essa tarefa torna-se um desafio importante e são vários os
casos relatados de parentes que aproveitam uma viagem de turismo ou funcional para procurar
por parentes por meio de guias telefônicos ou de registro de imóveis. No entanto, outras
famílias representam a sua origem a partir daqueles que aportaram no Brasil. Entre esses
casos, houve uma justificativa de que o contato com parentes que permaneceram na Itália não
foi bem recebido, e o motivo atribuído a essa ausência de receptividade era o receio de que os
familiares descendentes dos que partiram pudessem reivindicar direitos sobre a parte nos bens
herdados que cabia aos seus antepassados.
35
Contudo, a memória familiar tem expressado significativamente a figura de
personagens e de lugares. As Festas Homenagem situam-se desse modo, em vista da
importância da história familiar iniciar em um personagem que vem de algum lugar para
fixar-se em outro e, a partir dali, construir uma história particularizada em seus descendentes.
Esse sujeito fundador é densamente provido de atributos positivos: a ele cabem as lembranças
estritamente morais que darão a todos um destino compartilhado, a transmissão do ethos
religioso, a ética pelo trabalho, etc. Em alguns casos, o seu lugar de origem é a referência para
marcar a distinção, as categorias adscritivas que regulam e orientam as interações sociais
dentro e fora do grupo de pertencimento (Barth apud Poutignat, 1997). A memória serve para
perpetuar e reafirmar esse estatuto que coloca a família em algum lugar, a partir de um
determinado sujeito, e a genealogia é a “prova” legítima que consagra o grupo familiar diante
dos outros.
As famílias interioranas ou com características interioranas por um lado trazem as
características de um contexto urbano conquistado, muitas vezes, através dos filhos que
partem em busca de novas possibilidades, mas, por outro lado, mantêm fortemente as
características de uma vida ritmada pela sociabilidade “de interior”, onde se colocam de
forma mais intensa as relações intergeracionais, as relações familiares, de vizinhança, de
bairro, relações religiosas e associativas, e onde pessoas e redes se cruzam, conformando um
território de pertencimento e de identidade no cotidiano, em que uma memória coletiva é
tecida.
A reordenação da ancestralidade, a compreensão das várias transformações sobre o
parentesco, a identificação dos elementos (símbolos, conceitos, imagens e estereótipos)
selecionados pelos atores sociais, que se mobilizam pelo resgate e reafirmação de valores
familiares e a relação transgeracional que envolve o evento são indicadores determinantes
para a reflexão que estrutura a Parte III.
Nessa direção, o trabalho de campo mostrou a importância de reordenar as diferentes
trajetórias familiares e as representações que os diferentes grupos atribuem às alterações no
sistema de parentesco clássico. Essas demandas provenientes do processo de modernização,
cuja reincidência dos relatos sobre a importância de conhecer a vida de genearcas e as
realizações das sucessivas gerações de descendentes são justificadas como necessárias para
compreender a vida e as realizações atuais da família e para sonhar sobre suas perspectivas
futuras.
Recompor a tessitura familiar é um trabalho de memória constante e envolve o grupo
de forma densa e contínua. Reconhecidos os movimentos da memória articulados pelos atores
36
entrevistados, traz à tona um passado reordenado pelas experiências vividas até o presente,
como também uma consciência espaço-temporal que vincula um processo contínuo de
aprendizado.
37
PARTE I
Capítulo 1
Festas de Família: memórias em imagens
Pensar as memórias familiares, pequenos espaços de vida e lembranças reconstruídos
nas Festas de Família é um exercício que passa, necessariamente, pela minha própria
experiência no mundo das imagens, tenham elas sido construídas com bases acadêmicas como
as fotográficas, fílmicas, sonoras, ou sido aquelas que forjam a nossa presença no mundo
acomodando as nossas emoções como as imagens fluidas, fantasiosas ou oníricas. Meu
encontro com as imagens em um suporte tecnológico se deu na minha infância e de forma
“consoladora”, isto é, em substituição à ausência de meu pai, que havia falecido
repentinamente, minha mãe comprou uma televisão
9
. Em um primeiro momento, parece algo
incabível e inusitado. No entanto, nossas vidas – minha, de meus irmãos, de minha mãe e dos
vizinhos – tiveram o espaço ampliado de comunicação e partilha, cujo ambiente privado da
casa permitiu construir um cotidiano com novos ritmos e interações que nutriam com mais
intensidade os laços sociais.
As sessões eram restritas em local e horário. Elas ocorriam na “sala da televisão” – um
quarto da casa que foi transformado para dar um lugar de excelência àquela que provocaria
mudanças significativas na vida dos moradores do edifício e redondezas – e o horário era ao
entardecer, depois de ter ido à escola, ter feito os temas de casa, de ter brincado na rua, de ter
tomado banho para, então, assistir aos programas com nossos amigos até a hora do jantar. As
vizinhas, mães das crianças, não cansavam de agradecer pelo momento tranqüilo que tinham
para elaborar o jantar ou para descansar do dia de trabalho. No domingo à tarde, eram elas as
espectadoras junto com minha mãe e as crianças. Minha lembrança desse tempo é restrita pela
pouca idade, mas quando encontramos amigos que participaram desses momentos, eles
trazem seus estoques de informações que, nem sempre, correspondem às imagens que
subjetivamos ao interpretar os acontecimentos e transformá-los em memória (individual) das
experiências vivenciadas coletivamente.
Quando falei anteriormente sobre o impacto que a televisão teve sobre a vida dessa
pequena comunidade, quis dizer que a participação nas sessões significou muito mais do que
pedaços do tempo que ficaram no passado; na verdade a sua obra veio a ser o pano de fundo
9
Cabe lembrar que a televisão chega a Porto Alegre em 1956, mas ela se torna popular no início da década de
1960.
38
para as associações que foram elaboradas com base na partilha de emoções em comum.
Muitas das lembranças dessa época foram retomadas na festa de homenagem aos 90 anos de
minha mãe. Lá estavam muitos dos produtores desse tempo, e o conjunto de lembranças
acionadas revelou o persistente trabalho de reconstruir os afetos consolidados na memória.
A vida seguiu e novas imagens foram sendo incorporadas. Em um determinado
momento, o envelhecimento provocou a minha atenção e a necessidade de entendê-lo a partir
de uma gama enorme de imagens que eram, em certa medida, negativas. A inconformidade
com a perspectiva reincidente e diante dos novos formatos que surgem com a adesão das
demandas dos “jovens idosos”, ativamente organizados em grupos de terceira idade e dotados
de recursos materiais
10
suscitaram questionamentos que encontraram, em uma disciplina na
graduação sobre pesquisa qualitativa, ótimas possibilidades de resposta na voz e no
encantamento que o tema exercia na Profª. Cornelia Eckert e que, habilidosamente, transmitia
a seus alunos posições de análise muito além do que se tem divulgado. Com isso,
(re)encontrei as minhas aspirações de antropóloga: poder conhecer as diferentes imagens que
se constrói com base nos sentidos que os diferentes grupos dão a essa etapa da vida.
Alguns semestres mais tarde coloquei em prática o que estava apenas no plano do
desejo: fui a campo! O meu contato inicial foi em uma Clínica Geriátrica com idosos que
viviam especificamente a imagem negativa do envelhecimento: a ausência de papéis sociais e
a diluição de laços afetivos com locais, pessoas e conexões com o mundo exterior. No
entanto, o micromundo de indivíduos que compartilhei durante muitas tardes resultou na
escuta de ricas narrativas sobre suas trajetórias de vida que organizavam seus relatos, muitas
vezes, apoiados em fotografias dispostas em álbuns, nem sempre em uma ordem de
acontecimentos. Esse fato marcou as entrevistas mais frutíferas desse projeto que desenvolvi
para a conclusão de uma disciplina. Nesse período, aprofundei minhas interlocuções com a
Profª. Cornelia e passei a pensar no projeto de conclusão do bacharelado sobre o tema em
questão. O vínculo não ficou restrito ao estudo sobre o envelhecimento; com ele as imagens
fotográficas foram tomando forma como uma narrativa outra que passa a assumir o papel de
recurso, não só como estímulo às lembranças dos idosos que narravam suas memórias, mas
também como uma outra forma de escrever a realidade.
No mestrado, aprofundei um pouco mais a imagem no trabalho antropológico, não
somente como aluna da disciplina “Antropologia Visual e da Imagem”, como também passei
a atuar como pesquisadora associada voluntária no NAVISUAL – Núcleo de Antropologia
10
Sobre esse tema são importantes os estudos desenvolvidos no Brasil por Debert, Lins de Barros, Eckert,
Peixoto.
39
Visual –, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Os anos que se seguiram foram de aperfeiçoamento contínuo
previsto no projeto do Núcleo e em constante diálogo com o BIEV (Banco de Imagens e
Efeitos Visuais), sob a coordenação da Profas. Dras. Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia
Eckert.
Nesta tese busco trazer imagens fotográficas gentilmente cedidas do acervo de
algumas famílias ou produzidas por mim ao longo do trabalho de campo; foram agregados
também fragmentos de filmes produzidos nas Festas de Família sobre o ritual em si ou de
momentos especiais de depoimentos sobre um membro ou sobre as trajetórias familiares. Esse
conjunto, fundado em dois suportes técnicos diferentes – a fotografia e o vídeo –, compõe um
material rico para pensar as imagens de família e sobre as formulações que diferentes grupos
sociais fazem delas. As imagens registram momentos harmônicos, uma vez que é assim que
as famílias querem ser vistas: “em festa”. Essa estética de uma auto-imagem positivada traduz
com intensidade os ritos familiares que buscam fixar lembranças e, como estratégia de
perdurar no tempo, testemunham os momentos divertidos e felizes que servirão de herança às
novas gerações.
Por meio de fotos, cada família constrói uma crônica visual de si mesma – um
conjunto portátil de imagens que dá testemunho da sua coesão. Pouco importam as
atividades fotografadas, contanto que as fotos sejam tiradas e estimadas. A
fotografia se torna um rito da vida em família exatamente quando, nos países em
industrialização na Europa e na América, a própria instituição da família começa a
sofrer uma reformulação radical. Ao mesmo tempo [em] que essa unidade
claustrofóbica, a família nuclear, era talhada de um bloco familiar muito maior, a
fotografia se desenvolvia para celebrar e reafirmar simbolicamente a continuidade
ameaçada e a decrescente amplitude da vida familiar. Esses vestígios espectrais, as
fotos, equivalem à presença simbólica dos pais que debandaram. Um álbum de fotos
de família é, em geral, um álbum sobre a família ampliada – e, muitas vezes, tudo o
que dela resta (Sontag, 2004, p. 19).
O conjunto que abre esta tese é composto de imagens elaboradas em dois suportes
distintos: a máquina fotográfica e a filmadora. Os autores dessas imagens variam de igual
modo – ora são os próprios membros de uma família, ora são imagens colhidas em diferentes
acervos da família extensa, ora são imagens de empresas contratadas para realizar a filmagem
no evento, ora são de minha própria autoria. O material cedido pelas famílias traz momentos
que marcam os acontecimentos expressivos de suas trajetórias em uma construção fixada em
imagens positivas que buscam operar o consenso, o equilíbrio da ordem e provocar a imagem
de “regras” de comportamentos. Essa seleção não se restringe apenas às imagens em que são
apresentados os membros da família em eventos significativos. Nela há, também, uma prévia
40
seleção estética que observa a aparência física do que portam as imagens fotográficas ou a
eliminação das imagens as quais não apresentam uma aparência ideal (enquadramento, de
foco, de luminosidade, etc.) ou, ainda, uma seleção de imagens sobre os membros que estas
apresentam, quando nela estão membros que não “estão mais na família”.
As imagens desvelam momentos íntimos, restritos ao grupo familiar, evocando
lembranças de histórias vivenciadas em comum e construídas como “perfeição”, e por isso
mantida como informação, como código objetivado de construção de um ethos familiar.
Nesse sentido, apoiada em Bittencourt (1998), a adoção do uso da imagem para pensar as
memórias familiares assume o papel importante de representação do conhecimento
conquistado no período de trabalho de campo. Ou seja, as imagens produzidas por mim ou o
contato com fotografias de arquivos particulares foi adotado para ampliar a compreensão do
sistema simbólico que habita o universo familiar sendo que este, por sua vez, pressupõe e se
apresenta sempre tão íntimo, tão restrito e privado aos seus membros. Por um lado, são
percebidas como fonte de dados em que o caráter documental registra possibilidades outras de
dialogar com diferentes contextos familiares cujos desdobramentos são bastante significativos
sobre a representação das estruturas de organização familiar, dos sistemas de aliança entre os
membros, dos padrões de comportamento, dos estilos de vida. Por outro lado, as imagens
induzem à interpretação por meio da sua potencialidade reflexiva e, nesse fenômeno,
provocam a percepção de múltiplas dimensões que resultam das orientações do próprio
sistema cultural em que elas se inserem.
Os grupos familiares mantêm acervos produzidos em diferentes contextos e, de modo
geral, são eventos que marcam positivamente as reuniões familiares. Esse aspecto é decisivo
na manutenção de um acervo, visto que a fotografia mantém a capacidade de reter os fatos,
congelar o momento e fazê-los preservar no tempo. No entanto, a imagem é portadora de uma
dupla mensagem, segundo Barthes, aquela que busca mostrar uma suposta reprodução do real
(denotação) e aquela que está no interior de um sistema culturalmente definido e comporta
sentidos de uma linguagem simbólica (conotação). Segundo o autor, a imagem fotográfica
favorece a mensagem que denota o “real”, e os arquivos de família apresentam-se
recorrentemente imagens posadas em um clima de euforia, como “um certificado de
presença” (Barthes, 1984, p. 129).
A formação do conjunto de imagens que foram selecionadas tem como objetivo
compor uma narrativa em que depoimentos são dispostos entre imagens e sons das festas. Os
depoimentos trazem testemunhos sobre o parente homenageado ou buscam, na narrativa,
reafirmar o passado reordenado no presente. Em meio à acusação de que o momento
41
contemporâneo traduz a sociedade do esquecimento marcada pelo domínio homogeneizador
da informação midiática, a recuperação do passado individual e coletivo desses grupos sociais
por meio das imagens que lhes servem também como suporte à memória configura-se como
um dos caminhos possíveis para a compreensão dos processos de redefinição dos sentidos
sobre os laços familiares que articulam passado, presente e futuro.
Frente às fraturas que desagregam as redes de sociabilidade, a fotografia tornou-se
uma forma de preservar um pouco daquilo que o cotidiano não permite viver.
Possuir retratos daqueles que estimamos é uma defesa contra o futuro incerto e
sempre sujeito a novas rupturas: é uma forma de exorcizar um pouco a ansiedade e
remorsos provocados pelo desaparecimento de nossos parentes e amigos (Sontag,
2004, p. 18).
A seleção de imagens busca narrar as estratégias de (re)construção e consolidação de
laços cuja intencionalidade referida constantemente é a perpetuação da família como bem
simbólico. Nesse sentido, há o interesse de que os momentos registrados e retidos em imagens
eternizem os projetos familiares a serem passados de geração a geração e, dessa forma,
constroem-se “linguagens lúdicas” (Lëvy, 1995, p. 7) em que imagens, sons e textos
articulam-se na construção de uma memória familiar. Pode-se pensar essas linguagens como
os quadros sociais da memória
11
(Halbwachs, 1994), quando os membros de uma família
recorrem à escolha de determinadas imagens que se relacionam aos quadros estáveis que
operam na manutenção das estruturas já estabelecidas. Por outro lado, a fotografia de família
deve ser pensada como um documento que assume a função mediadora dos processos
interativos ao servir de suporte para a duração ao reter a dimensão de memória e tempo. Nesse
sentido, o registro de imagens fílmicas ou fotográficas propõe atuar sobre a permanência das
famílias em uma sociedade dominada pelas sensações de tudo ser transitório, tudo ser
efêmero. A fotografia, segundo Jacques Le Goff (2003, p. 460), revoluciona a memória
multiplicando-a e democratizando-a com uma precisão e uma verdade visuais, permitindo
guardar a memória do tempo e da evolução cronológica. Refere-se ao álbum de família e cita
Pierre Bourdieu, com observações à atribuição que este faz ao papel de “chefe de família”
como o retratista da família, interpretado, ao que parece, por Le Goff como referência ao pai.
A crítica pontua a mãe como retratista, atribuindo à ação do registro fotográfico a “um
vestígio da função feminina da conservação da lembrança ou, ao contrário, uma conquista da
11
Na obra Les cadres sociaux de la mémoire, Halbwachs afirma que as memórias devem ser pensadas a partir de
convenções sociais, que o autor denominou quadros sociais da memória, que só alcança-se a compreensão dessas
convenções no mundo empírico observável, portanto não a partir das intenções dos indivíduos e, por fim, que o
passado que existe é apenas aquele que é reconstruído continuamente no presente.
42
memória do grupo pelo feminismo?” (Le Goff, 2003, p. 461). Podemos acrescentar à crítica
que, atualmente, o termo “chefe de família” não refere exclusivamente ao pai.
A Galeria de Retratos democratizou-se e cada família tem, na pessoa do seu chefe, o
seu retratista. Fotografar as suas crianças é fazer-se historiógrafo da sua infância e
preparar-lhes, como um legado, a imagem do que foram [...]. O álbum de família
exprime a verdade da recordação social. Nada se parece menos com a busca artística
do tempo perdido que essas apresentações comentadas das fotografias de família,
ritos de integração a que a família sujeita os seus novos membros. As imagens do
passado dispostas em ordem cronológica, “ordem das estações” da memória social,
evocam e transmitem a recordação dos acontecimentos que merecem ser
conservados porque o grupo vê um fator de unificação nos monumentos da sua
unidade passada ou, o que é equivalente, porque retêm do seu passado as
confirmações da sua unidade presente. É por isso que não há nada que seja mais
decente, que estabeleça mais confiança e seja mais edificante que um álbum de
família: todas as aventuras singulares que a recordação individual encerra na
particularidade de um segredo são banidas, e o passado comum ou, se se quiser, o
menor denominador comum do passado tem a nitidez quase coquetista de um
momento funerário freqüentado assiduamente (Bourdieu apud Le Goff, 2003, p.
460).
Com relação à adoção da imagem como instrumento de pesquisa, é no momento
posterior que os registros passarão a atuar como dado, como expressão de uma representação
da realidade observada. A captação da imagem, no caso da fotografia realizada pelo
pesquisador, tem a intenção de reter o olhar sobre as formas que os sujeitos ou grupos sociais
atuam sobre as suas experiências e se relacionam entre si. O pesquisador seleciona, dentro de
um repertório amplo de interações, momentos que revelarão aspectos “mais densos de
significado” (Guran, 1998, p. 90)
12
. No entanto, a composição da narrativa em imagens
proposta na apresentação da tese passa por um plano concebido a partir do conjunto de
estratégias adotadas para a pesquisa e a construção de um saber, de um sentido sobre o objeto
pesquisado. Os fragmentos de diferentes expressões é resultado do imenso catálogo de
concepções e alternativas de reordenação da memória familiar de seus membros, que buscam
superar as inúmeras dificuldades cotidianas, reinventando caminhos para permanecer.
12
GURAN, M. A fotografia eficiente e as Ciências Sociais. In: ACHUTTI, L. E. Ensaios sobre o fotográfico.
Porto Alegre: PMPA, 1998.
43
Capítulo 2
A pesquisa etnográfica em espaços nem tão públicos...
Por ocasião do aniversário de nossa mãe, um dos meus irmãos apontou, em seu
discurso de homenagem a ela, um dos seus atributos maiores, que é o de reconhecer a
alteridade como um fenômeno sempre agregador, que traz consigo a capacidade de ampliar a
própria visão, seja não compartilhando dos mesmos valores, seja reconhecendo esse Outro
muito próximo a nossa expressão no mundo. Naquele momento, reconheci que estava na
minha (nossa) formação esse aspecto preponderante para atuar como antropóloga. Estar e
pensar no Outro é a tarefa ímpar para as análises microssociais em que se debruça a
Antropologia.
2.1 Percorrendo caminhos entre similitudes e estranhamentos
Nesse sentido, o tradicional método etnográfico permanece sendo o caminho para se
compreender ou dar sentido ao Outro e aos obstáculos que surgem naturalmente ao se propor
uma comunicação inter e intra-social. A preocupação com a alteridade e o estranhamento
acompanha o fazer antropológico na medida em que podemos pensá-los como situações que
propulsionam o trabalho de campo.
Não obstante, ao pesquisar no interior da sua própria sociedade, o etnógrafo tem uma
outra delimitação de fronteiras sócio-culturais, onde o Outro não é percebido apenas
objetivamente, como também o Outro enquanto sujeito com o qual nos identificamos. Esse
aspecto é refletido como um “próximo” encerrado em um limite marcado pela cognição, pela
espacialidade e até pelos afetos, mas fundado em uma perspectiva mais genérica. No entanto,
compreendi como um desafio antropológico de maior magnitude trabalhar com a minha
própria família, em que parte do espaço da intimidade será desvendado, onde a compreensão
sobre as particularidades não decorrem exclusivamente de uma racionalidade, de um olhar
definido pelo interesse acadêmico e legítimo. Pensar e falar sobre a própria família é um
exercício de intensa reflexão sobre as escolhas do que publicizar, uma vez que a exposição
desse espaço estritamente íntimo, que é ancorado em percepções quase sagradas, abarca temas
de forte interdição como as afinidades, os conflitos, os segredos, entre tantos outros. Falar
sobre a própria família é expor o sagrado e, principalmente, o segredo daquilo que é mais
privado e que se tem a segurança de que a sociedade não tem conhecimento. Encontrei em
44
Luiz Fernando Dias Duarte a dimensão desse lugar quando, efetivamente, me vi tendo, na
própria experiência, um dado significativo a ser analisado:
Embora seja comum a utilização de metáforas do sagrado para se referir à família,
tanto no senso comum ocidental quanto nas teorias e descrições sociológicas, esse
recurso serve apenas ao realce da gravidade da experiência dessa instituição pelos
sujeitos sociais mais do que à exploração de uma solidariedade fenomenológica
efetiva entre essas duas dimensões da vida social. Torna-se, assim, necessário levar
a sério essa afinidade e tentar entender a experiência da vida familiar nas sociedades
modernas como caracterizada por uma crucialidade e intensidade próximas de uma
‘religiosidade’ [...] (Duarte, 2006, p. 1).
Observar e falar de ‘dentro’ parece que se cria um dilema sobre o olhar antropológico
que pressupõe a capacidade de estranhamento ao ‘outro’ – que sou eu e que são os meus –
acompanhada de um distanciamento para que efetivamente seja revelado. De modo geral, as
negociações do antropólogo em campo envolvem a complexidade das relações que marcam as
reciprocidades entre este e o Outro. Ser o Outro elimina a perspectiva contrastiva que sustenta
a reflexão antropológica e, mais ainda, subverte a negociação entre “as subjetividades”, que
busca desvendar o conhecimento sobre o estranho. O domínio do código que estrutura as
relações familiares e a afetividade subjacente a estas é a aceitação que, nos casos em que o
ponto de vista é o do Outro, o pesquisador almeja e negocia incessantemente em seu trabalho
de campo para ser e manter-se “em campo”.
Esse aspecto foi alvo, sem dúvida, de uma seleção do que seria colocado em
exposição. Essa seleção esteve, por muito tempo, em pauta nas reflexões sobre a escrita.
Tratava-se, na verdade, de escrever sobre a própria identidade, e não me furtei dessa premissa:
mantive em silêncio, do mesmo modo que sempre se fez no interior do meu núcleo familiar –
a contenção dos conflitos familiares que são deixados ao tempo para que esse atue na redução
da dimensão que as tensões assumiram de imediato. O silêncio é o primeiro ato e, a seguir,
adota-se o aconselhamento daquele que estiver mais distante da tensão e do constrangimento
gerado.
As reflexões metodológicas surgiram em diferentes momentos e sempre estiveram em
pauta a relação sujeito-objeto, “experiência próxima versus experiência distante” (Geertz,
1983), “observar o familiar” (Velho, 1978), transformar o “exótico em familiar” e o “familiar
em exótico” (Da Matta, 1978). No entanto, as decisões sobre o que privilegiar e o que refutar
trouxe certa angústia, pois a ambigüidade está colocada quando se assume dois papéis
imprescindíveis no caso em questão: o de pesquisadora e o de “nativa”. O fenômeno está no
fato de o próprio antropólogo ser objeto de sua própria etnografia.
45
Enfim, o discorrido acima buscou expressar o impasse e a decisão de manter a Festa
Homenagem realizada pela minha família, tendo em vista que as comemorações, como um
dos fatores de existência e de reprodução de relações no interior de um grupo social, como
bem nos ensina Marcel Mauss (2003), engendram a realização de uma parte significativa da
etnografia. E, ao decidir manter a festa da minha própria rede de pertencimento, o
envolvimento pessoal exigiu atuar sem que houvesse a intervenção ao habitus
13
ou à história
na qual meu grupo familiar recria a sua existência segundo o universo simbólico dos seus
membros e as condições sociais em que estão inseridos. Nesse sentido, manter o silêncio
sobre os conflitos é manter a prática cotidiana, agir com respeito a essa lógica êmica e
“calculada” racionalmente com o intuito de “obedecer” o sentido do arranjo estabelecido
como estratégia da manutenção dos laços familiares. A decisão sobre a minha conduta teve
em Schutz a inspiração na solução do dilema, quando este afirma que
[...] para os que cresceram dentro do padrão cultural, não só as receitas e suas
possibilidades de eficiência, mas também as atividades típicas e anônimas que elas
requerem, são ‘pontos pacíficos’ não-questionados, que lhe dão tanto segurança
quanto confiança. Noutras palavras, essas atitudes, por sua própria tipicidade e por
seu próprio anonimato, não se situam dentro do estrato de relevâncias do ator, o qual
requer conhecimento explícito de, mas situam-se na região da mera familiaridade, na
qual basta confiar (Schutz, 1979, p. 92).
Pensar a cultura como um texto a ser lido ou interpretado, conforme nos traz Clifford
Geertz (1989, p. 15), onde esta (cultura) é vista como “teia de significados” que constitui o
seu caráter simbólico e a etnografia como uma “descrição densa”, propõe tanto compreender a
primeira como lugar onde se buscam os elementos de trabalho ou fatos objetivos e a segunda
como encontrar o sentido dos significados desses elementos ou fatos objetivos. Nessa direção,
a conquista dos sentidos sobre o recorte da realidade proposto nesta tese pressupõe que a
adoção dos contextos sociais em que os indivíduos construtores dos sentidos almejados estão
situados sejam tomados como referência. Para a apreensão dos significados que determinam
as práticas sociais ou os pontos de vista dos grupos pesquisados, foram utilizados dados de
observação participante, depoimentos (entrevistas semi-estruturadas), documentos escritos e
imagéticos. Contudo, é imprescindível destacar a relação de proximidade e confiança
conquistada ao longo do trabalho de campo, norteada por princípios éticos. Essa relação entre
13
“Produto da história, o habitus produz práticas individuais e coletivas, logo, história, conforme os esquemas
engendrados pela história; ele assegura a presença ativa de experiências passadas que, depositadas em cada
organismo sob a forma de esquemas de percepção, de pensamento e ação, tendem, mais seguramente que todas
as regras formais e todas as normas explícitas, a garantir a conformidade das práticas e sua constância do tempo
(Bourdieu, 1980, p. 91).
46
pesquisador e pesquisado foi construída com bases dialógicas em que o empreendimento
sobre essa modalidade visa captar os muitos campos semânticos, nem sempre distintos,
evocados por todos. Ou seja, trata-se de apreender e aprender a partir da polifonia na qual os
papéis sociais ficam suspensos e dão lugar às vozes dos indivíduos em uma relação
intersubjetiva. Ouvir e falar sobre as experiências cotidianas construídas em diferentes
formatos e delas abstrair as conexões de sentido que estruturam o encontro entre sujeitos
individuais
14
.
Desde a pesquisa exploratória em 2004, que fiz em auxílio à elaboração do projeto de
pesquisa e que era um dos critérios de seleção para o ingresso no Doutorado do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social, mantenho a prática das anotações em um diário ou
caderno de campo. Entre os diversos recursos que os antropólogos adotam para o
desenvolvimento da coleta de dados, o diário de campo é aquele mais pessoal, mais preciso
sobre as representações que fazemos do universo de pesquisa. A riqueza maior que ele
explicita é o amadurecimento sobre as concepções que vamos, gradativamente, acenando
como categoria fundamental para compor a interpretação do fenômeno que elegemos como
objeto alvo de nossas intenções enquanto pesquisadores. Confesso que, à medida que o tempo
passava, a pesquisa tomou fôlego e o diário de campo – algumas pequenas cadernetas –, que
antes era amplamente utilizado com detalhes e estruturado em total desordem de anotações
que iam desde descrições etnográficas, a endereços, contatos e emoções, deixou de ser o único
recurso para expor “impressões brutas”. Com alguns tantos dados coletados, passei a adotar o
computador como outra possibilidade de diário e foi quando dei início a exercícios de
reflexão sobre a perspectiva entre o “eu” e a racionalidade da “investigadora”. No entanto, ao
iniciar a escrita formal da tese, minha primeira medida foi retornar aos velhos e surrados
diários em busca, primordialmente, de inspiração.
Relendo-os, muitas situações vieram à memória e, em alguns dados nos quais me
atrevi a traçar algumas observações mais analíticas nos diferentes momentos em que cada
acontecimento teve lugar nos diários, percebi que nunca escreveria um texto definitivo, um
texto escrito sob acontecimentos e conhecimentos acabados. A espontaneidade que encerra as
anotações, muito mais nos textos das cadernetas que naqueles textos mais elaborados em uma
pasta chamada “diário” no computador, aproxima-se muito das entrevistas realizadas com os
idosos ao longo do trabalho de campo, em que a força das lembranças é apresentada em meio
a rupturas de um tempo contínuo fixado em calendários, em meio a descontinuidades que
14
Esse aspecto foi analisado com base em Geertz (2001), Caldeira (1988), Cardoso de Oliveira (1986) e Peirano
(1991 e 1995).
47
alteraram as previsões mais certas sobre as trajetórias pessoais e que promoveram
possibilidades outras sobre as experiências e vivências assumidas por novos caminhos. Enfim,
essa (des)ordem dos escritos descompromissados com a formalidade e que encerra uma gama
enorme de fragmentos tem, também, a pretensão de preencher os vazios de tempo, como a
oralidade nas entrevistas que neles se alicerça. Por conta disso, trago, ao longo do texto,
fragmentos dos diários, por entender que eles expressam o momento vivido no trabalho de
campo, dotando a narrativa do aspecto sensível de “estar lá”.
Tendo como centralidade o tema “memória”, fiz uso da etnografia da duração (Eckert;
Rocha, 2000), na qual a interpretação das noções de tempo, memória e narrativa dispostas em
um conjunto dissociável se expressa em uma perspectiva de “discordância dos instantes
vividos que conformam uma existência humana” (Eckert; Rocha, 2000, p. 19). Isto é, a
proposta é adotar a visão da memória enquanto
[...] a obra de recordar, que parte de uma intenção presente, “nenhuma imagem surge
sem razão, sem associação de idéias” (Bachelard, 1989. p. 51), ou seja, sem que ali
estejam presentes as estruturas espaço-temporais através das quais a memória se
configura como construção de um ato de duração (Eckert, Rocha, 2000, p. 39).
Compreender a recordação, por vezes anunciada nas festas como conformadora de um
ethos familiar, traz à tona a obrigatoriedade de relacioná-la ao instante em que ela é evocada e
que tem, na sua construção, representações diferenciadas, uma vez que corresponde às
descontinuidades das experiências vividas nos sujeitos que a evocam. Ressituá-la no presente
é reconhecer a sobreposição de um conhecimento de si, subjetivo, e do mundo, por meio das
experiências desse sujeito que recorda. Isso significa observar que estão em jogo a
intencionalidade e a representação sobre a recordação inseridas em um contexto comum,
porém, percebidas subjetivamente como (re)composição do passado.
2.2 A observação: entre o desconhecido e o limite do conhecido
Buscar, portanto, a descrição etnográfica sob uma concepção interpretativa, requer a
observação direta e participante de onde foram percebidas as diferenças culturais que foram
abordadas relacionalmente: grupos que compartilham e/ou grupos que disputam interesses.
Nesse sentido, aponta-se o recurso comparativo, uma vez que a temática proposta no trabalho
envolve grupos de diferentes lugares e com inúmeras possibilidades de escolha para expressar
modos de vida e de representar as experiências. Ou seja, as famílias, ao buscarem interações
48
com outros núcleos que as compõem, compreendem a possibilidade de atualizar as relações
em seus interiores e reconhecer outras tantas formas de pensar sobre si mesmas.
A prática da observação participante se deu em diferentes espaços e tempos familiares.
Em meio a inúmeras formas de reunião que ora a família extensa compunha o cenário e ora a
família de ‘um tronco’ era o panorama observável, a minha presença também foi alvo de
diferentes formas de receptividade. Esse aspecto aponta, sem dúvida, à maneira como eu me
aproximo de cada uma das famílias, ou seja, o processo de formação de rede deixa muito
claro o grau de receptividade em cada uma das situações. Foi mais fácil, obviamente, quando
a aproximação se fez em torno de um relacionamento com algum membro ou algum vínculo
próximo à família, e quando me aproximei por meio de anúncios veiculados nos meios de
comunicação. Não posso me furtar de refletir que há, também, em jogo, a posição que cada
família ocupa em uma escala social e intelectual dos membros organizadores, bem como de
sua origem étnica e local. Nessa direção, os estudos de Elizabeth Bott (1976) sobre família e
rede social trazem essa questão a partir de uma reflexão sobre a família e o ambiente social
em que ela se encontra. Segundo a autora, as “redes de malha estreita” são aquelas que se
mantiveram em seus locais de origem – cidades do interior, no caso desta tese – e mantêm,
portanto, um grau de conexidade amplo com relacionamentos sociais externos (vizinhança,
escola, igrejas, associações, etc.) e estão imediatamente mais próximos local e afetivamente à
sociedade em sua totalidade. Entretanto, as famílias urbanas apresentam-se mais
individualizadas da sociedade e, ainda, submetidas a uma individuação em sua estrutura
nuclear. Ou seja, as famílias urbanas estão submersas em uma sociedade cujas redes sociais
são do tipo “malha frouxa”, com poucos e restritos vínculos com outras redes, mas também
denotam um processo de individuação em que “a família nuclear é nitidamente separada,
diferenciada como um distinto, e em certa medida autônomo, grupo social” (Bott, 1976, p.
112). Na seqüência das suas observações, a autora acena para diferentes fatores que afetam as
variações de conexidade nas redes de parentesco e sua relação com a sociedade mais ampla,
sendo que essas variações não operam isoladamente; elas operam por meio de complexas
combinações, tais como: os vínculos econômicos (ligados à empresa da família, por exemplo),
a localização das redes – moradia próxima e status social semelhante –, o grau de
oportunidade para fazer relacionamentos fora da rede, a mobilidade física e social que implica
a estabilidade e continuidade dos relacionamentos no interior das redes e, de igual modo, as
características das personalidades internas dos grupos familiares que promovem reações, por
vezes diversas, no interior da própria família. Esses fatores apontam, mais especificamente,
49
aos vínculos que as famílias mantêm entre seus membros e com aqueles que ingressam em
momentos pontuais, como no caso do meu papel de pesquisadora.
A Festa de Família, em específico, leva o direcionamento da pesquisa etnográfica às
situações de performance ao longo do evento, nas quais busquei observar as diferentes
participações dos envolvidos, as escolhas entre tipos de cerimônia, o caráter da festa
(solenidade/espontaneidade), com o intuito maior de compreender o sentido atribuído à
polissemia e às plasticidades de formas e sentidos dos rituais, e as relações ambíguas de
significados, formas e modos de transmissão. Foram observadas, in loco, nove Festas de
Família, sendo três do tipo “modismo em tempos de globalização”, três do tipo “Festa no
Interior” e três do tipo “Festa Homenagem”. Juntamente à observação participante, tive
acesso às filmagens ou aos acervos fotográficos das Festas de Família nas quais não pude
comparecer e que, agregando-os às entrevistas concedidas, foram considerados significativos
para compor, portanto, o conjunto de dados etnográficos que sustentam esta tese. Desse modo,
acompanhei em diferentes “suportes” dezesseis famílias que realizam festas entre as
tipificações perscrutadas. As famílias situam-se nas camadas médias da estratificação social.
Em todas elas, no entanto, esse conceito deve ser relativizado em vista dos diferentes estilos
de vida que se inserem no interior dessa categoria. Em uma perspectiva econômica, a
categoria de camadas médias é procedente, no entanto, as dimensões políticas e culturais
merecem um cuidado especial, pois as expressões de urbanidade ou de estilo de vida
interiorana mostram-se descontínuas e situadas em contextos absolutamente distintos.
Em cada uma das famílias foram entrevistados um ou mais integrantes, sendo que os
critérios para selecioná-los foram: ser um dos guardiões da memória, ser um dos responsáveis
pela construção da genealogia familiar e ser um dos organizadores da festa. Essa atribuição de
tarefas não indica, necessariamente, que o entrevistado não comporte apenas uma dessas
funções. Em alguns casos, há a sobreposição de tarefas pelo grau de envolvimento que
demanda cada uma das funções, ou ainda, os entrevistados percebem essas atividades
imbricadas no processo de reordenação do grupo familiar.
2.3 Diálogos possíveis: entrevistas e interações
Para buscar o estranhamento e a alteridade sobre o que é proposto neste trabalho,
foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas e relatos biográficos que têm como objetivo
estimular a narrativa que situa a relação entre as diferentes “culturas” dos grupos que
compõem a rede de parentesco. Buscou-se, através desta técnica, compor as trajetórias
50
familiares que são focalizadas em alguns aspectos específicos dentro do conjunto de
depoimentos que encerram a experiência como participante e/ou líder das Festas de Família.
As entrevistas com os membros das famílias foram feitas em espaços privados, isto é,
na residência dos entrevistados, uma vez que se observa nessa conduta o auxílio constante de
suportes facilitadores da rememoração disponíveis no ambiente. Em quatro casos, a entrevista
ocorreu no ambiente de trabalho dos entrevistados, tendo em vista que não foi possível
encontrar uma data disponível para que ocorresse em outro local. Cabe ressaltar que, mesmo
nessa situação, não houve restrição ao tempo de entrevista. Há, ainda, alguns retornos aos
entrevistados nessa situação que foram feitos por meio eletrônico, tendo sido em virtude do
mesmo motivo anunciado anteriormente.
Cabe chamar a atenção sobre o fato de que foram realizadas, também, duas entrevistas
com profissionais que lidam diretamente com o tema Festa de Família. Um dos entrevistados
foi o jornalista Olyr Zavaschi do Jornal Zero Hora
15
, que mantém uma coluna “Túnel do
Tempo”, na qual há, freqüentemente, anúncios de Festas de Família ou breves históricos
familiares por conta do aniversário de chegada do ancestral imigrante em solo brasileiro. Foi
realizada, também, uma entrevista com o casal Ivam e Susana Sandini, que tem uma empresa
especializada
16
em encontrar, nos arquivos oficiais, o ingresso do imigrante no Brasil,
facilitando, assim, a construção da trajetória da família no interior do território brasileiro e
fornecer as referências de localização dos parentes que permaneceram na Europa. Entre essas
atividades, a empresa “Projeto Imigrantes” também organiza Festas de Família, promove a
busca de brasões e da origem dos nomes de família e produz souvenires para a
15
O Jornal Zero Hora é um dos jornais de maior tiragem do Porto Alegre. É uma das empresas ligadas ao
“Grupo RBS, [que] é uma empresa de comunicação multimídia que opera no Rio Grande do Sul e em Santa
Catarina. Fundado por Maurício Sirostsky Sobrinho, no dia 31 de agosto de 1957, em Porto Alegre, o Grupo foi
o pioneiro no modelo regional de televisão no país e é também a mais antiga afiliada da Rede Globo. Atualmente
conta com mais de 5,7 mil colaboradores e possui sucursais multimídia e escritórios no Paraná, em São Paulo, no
Rio de Janeiro, no Distrito Federal, em Minas Gerais e no Mato Grosso do Sul” (http://rbs.com.br – consulta
realizada em 17/10/2008).
16
“O Projeto Imigrantes surgiu há mais de 25 anos, a partir da iniciativa do empresário Ivam Sandini de
pesquisar seus próprios antepassados. Inicialmente, formou-se um banco de dados com mais de 100.000 nomes
de imigrantes entrados pelo Rio Grande do Sul, para consulta de amigos e interessados. Com o passar dos anos,
as pesquisas continuaram, abrangendo outros estados e épocas. Neste momento, o Projeto Imigrantes teve uma
grande expansão, ajudando pessoas do Brasil todo a resgatar suas raízes e conhecer melhor seu passado. Em
1995, uma parceria firmada com um sólido grupo americano de pesquisas, viabilizou ao Projeto Imigrantes
materiais importantíssimos na área de Heráldica e Onomástica. Essas pesquisas estão firmadas em mais de 70
anos de pesquisas e presentes em 22 países. Atualmente, o banco de dados do Projeto Imigrantes conta com mais
de 2,8 milhões de nomes de imigrantes, vindos desde 1737, pelos portos do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo.
Na área de Heráldica e Onomástica, possui mais de 300.000 brasões e 800.000 históricos de sobrenomes
disponíveis para pesquisa. É importante ressaltar que esses números vêm sendo ampliados a cada dia, através do
trabalho de nossos pesquisadores” (http://www.projetoimigrantes.com.br – consulta realizada em 17/10/2008).
51
comercialização nas festas, tais como toalhas, canecas, roupões de banho, camisetas, etc., que
trazem a insígnia da família contratante desse serviço.
Com um dos entrevistados, dispus de muito do seu tempo em inúmeros encontros. Sua
narrativa centrou-se na sua trajetória pessoal de forma densa, configurando a técnica de
história de vida. Os dados apreendidos ultrapassaram a sua história pessoal, fornecendo
elementos culturais significativos de sua origem étnica, do seu local de origem e de suas
inserções na família, que permaneceu na Alemanha, das quais foi possível ele reconhecer
hábitos semelhantes e bem característicos da sua realidade vivenciada como descendente de
imigrantes alemães aqui no Brasil.
Para a realização de todas as entrevistas, foi adotado uso de gravador, de máquina
fotográfica e de anotações em diários de campo. Houve ocasiões em que alguns entrevistados
solicitaram a não gravação de determinados trechos, tendo em vista que tratavam, em geral,
de situações delicadas no interior do grupo familiar. Tratavam do relato de conflitos,
impressões pessoais sobre um ou outro acontecimento ou de algum parente, em específico.
Essa questão foi percebida por mim como conquista de uma relação de confiança e, por vezes,
denotava uma forte relação de força e de poder dentro do grupo familiar confabulados a mim
como uma sinalização sobre uma não aproximação ao parente referido.
2.4 Revendo posições, definindo novos caminhos?
Já com quase todo o trabalho de campo realizado em meados de 2007, o passo
seguinte foi iniciar o processo de síntese dos dados e elaboração do texto previsto para a
qualificação da tese. Inicialmente, a síntese levou-me a classificar as festas sob a perspectiva
das diferentes etnias, tendo em vista que a maioria dos eventos etnografados tinham sido
realizados em Festas de Família de imigrantes de descendência européia ou, ainda, muitas das
famílias que acompanhei estavam realizando, em alguma medida, eventos que buscavam
construir laços de consolidação e perpetuação da família como bem simbólico. No entanto,
havia casos em que essa premissa apresentou-se inconsistente.
Em uma das reuniões de orientação, recebi a sugestão de refletir os eventos a partir da
teoria da motivação ou da sociologia fenomenológica de Alfred Schutz, centrada na
intersubjetividade que se constrói em um presente vivido. Ou seja, por meio da tipificação que
delimitou características genéricas e homogêneas das motivações dos sujeitos, o evento passa
a ser percebido como um objeto intencional, isto é, como uma atividade constituída por atos
imaginados, percebidos, volitivos, os quais estão na consciência (noesis) e nos diversos
52
modos de ser intencionalmente dos sujeitos que dele participam. Nesse sentido, buscamos nas
múltiplas significações (noema) que constituem de fato o evento a ação do indivíduo em
função das motivações dirigidas a ele, reconhecendo que as razões para as suas ações estão
enraizadas em experiências do passado, em sua biografia.
As Festas de Família, enquanto um evento que carrega em si a interpretação do
mundo, se constituem tipicamente. Ou seja, emerge da experiência cotidiana e é aprovada por
todos que se reconhecem membros de um grupo familiar, pois parte de um elemento da
herança sociocultural transmitida aos seus membros ao longo de gerações. O sistema de
tipificação das festas funciona como um código de orientação para cada indivíduo e
“constitui, assim, um universo de discurso entre eles” (Schutz, 1979, p. 119).
Com base em uma releitura das entrevistas realizadas, e tendo como referência de
análise o sistema de tipificação, observei as diferentes intencionalidades sobre a realização de
uma Festa ou Encontro de Família. Ou seja, a tipificação das festas encontra-se ancorada em
um código de orientação para os indivíduos que a planejam e têm a finalidade de serem
aceitos pelos outros indivíduos com base em um código de interpretação que vise conquistar
uma forma de sociabilidade, configurando uma rede familiar de comunicação ampla e intensa.
Segundo Schutz, o mundo da vida cotidiana não é um mundo privado, mas um mundo
intersubjetivo compartilhado com semelhantes, vivenciado e interpretado pelo sujeito e por
outros. É um mundo comum a todos nós, de onde se originam relacionamentos de
compreensão mútua que formam “ambientes comuns de comunicação” (Schutz, 1979, p. 161).
No interior desse ambiente comum, os indivíduos, que participam como consórcios numa
comunidade social, têm seus ambientes subjetivos particulares, que resultam de suas próprias
experiências que os conformam em biografias distintas. No entanto, motivados por um
fenômeno comum, podem vivenciar os pensamentos e os atos do outro no presente vívido.
Esse presente comum a todos é o campo puro do “Nós”, a participação da simultaneidade
vívida em que o “outro eu” exibe a mesma estrutura que as de outros.
Com base no exposto, observo que as motivações que levam os idealizadores das
Festas a proporem o projeto de sua realização estão sendo pensadas a partir de três lógicas de
iniciativas e implicam, necessariamente, um contexto significativo àqueles que estão
envolvidos nesse projeto. São elas:
a) a festa que resulta da iniciativa de reestruturação da árvore genealógica; muitos
parentes não se conheciam ou desconheciam a existência de laços familiares e de
parentesco com determinadas linhagens. Denominarei este formato de Festa de
Família “como modismo em tempos de globalização”;
53
b) a festa motivada em reunir ocasionalmente familiares que se dispersaram em
locais diversos. Essas festas, em geral, ocorrem em alguma cidade interiorana e
reúne os parentes que partiram em função das atividades de trabalho e
oportunidade de emprego ou estudo residindo em capitais, cidades de forte
desempenho financeiro ou centros universitários. Denominarei esta de Festa no
Interior;
c) a festa em homenagem ao(s) ancestral(is) vivo(s) ou morto(s), em geral
considerado guardião da memória familiar. Esse evento também pode coincidir
com um aniversário do(a) homenageado(a), de uma boda de ouro, de esmeralda,
de diamante ou de platina. Denominarei esta de Festa Homenagem.
Isso posto, compreendo que a Festa é que construirá a experiência do Nós, uma vez
que a participação na mesma pressupõe a “reciprocidade de perspectiva”
17
, inicialmente. Não
obstante, a reflexão sobre as diferentes motivações que levam os indivíduos a participarem do
evento está circunscrita no reconhecimento das diferentes experiências subjetivas, das
circunstâncias biográficas únicas que estarão em evidência nas experiências compartilhadas
no evento em um tempo e um espaço comuns e vividas em uma situação face a face. Esse
instante coloca os indivíduos em confronto com um mundo maior, o mundo dos
contemporâneos, recheado de experiências diretas (vividas no momento) que transitam para
as experiências indiretas (vividas pelos contemporâneos de forma geral). As ações de um
estão orientadas para as ações do Outro e tem como motivação a experiência comum do
mundo do Nós, no qual o mundo intersubjetivo pode ser constituído.
Esse momento de “relacionamento do Nós”, segundo Schutz, é vivenciado dentro de
uma corrente de consciência comum; no caso das festas, refiro-me especificamente às lógicas
de iniciativa das quais elas se projetam, e é por meio dos processos interativos que serão
constituídas as descobertas das motivações singulares dos participantes.
Portanto, as lógicas de iniciativa que fazem do evento festivo uma realidade a ser
compartilhada têm o seu ponto de partida em um passado comum, em uma experiência vivida
por predecessores comuns. O conhecimento sobre o mundo dos predecessores é pautado na
oralidade ou em uma base documental e assume diferentes dimensões para os
contemporâneos, isto é, pode ser mais ou menos concreta ou mais ou menos atualizada. É,
desse modo, uma experiência indireta que assume uma função de influência ou de
17
Schutz adota a expressão para indicar uma construção do pensamento do senso comum que presume que o
setor do mundo tido por um como pressuposto, também é tido como pressuposto ao seu semelhante e,
imediatamente ao Nós – a todo mundo cujo sistema de relevâncias seja substancialmente congruente.
54
determinação da consciência por “quadros sociais” (Halbwachs, 1990) que tornam o grupo
familiar possível. É em um tempo de “crises” – a modernidade tardia – que as Festas de
Família enquanto acontecimentos de rememoração visam, sobretudo, ao devir.
Ao construir seu pensamento sobre o tempo fenomenológico e o tempo cósmico,
Ricoeur adota a perspectiva de Alfred Schutz no subcapítulo intitulado “A seqüência das
gerações: contemporâneos, predecessores e sucessores” da obra Tempo e narrativa – Tomo
III, que diz:
A sociologia fenomenológica de Schutz é, em ampla medida, uma constituição
genética do anonimato, instituído a partir da intersubjetividade instituinte: do nós,
diretamente experimentado, ao anonimato que escapa amplamente à nossa
vigilância. Ora, a ampliação progressiva da esfera das relações interpessoais diretas
para as relações anônimas toca todas as relações temporais entre passado, presente e
futuro. Com efeito, a relação direta do eu ao tu e ao nós é, desde o começo,
temporalmente estruturada: somos orientados, como agentes e pacientes da ação,
para o passado rememorado, para o presente vivido e para o futuro antecipado da
conduta do outro. Aplicada à esfera temporal, a gênese de sentido do anonimato vai,
a partir daí, consistir em derivar da tríade presente, passado, futuro, característica da
relação interpessoal direta, a tríade do reino dos contemporâneos, do reino dos
predecessores e do reino dos sucessores. É o anonimato desse triplo reino que
fornece a mediação por nós procurada entre o tempo privado e o tempo público
(Ricoeur, 1997, p. 191).
A partir da interpretação das narrativas, busco desvendar os diferentes significados
acionados pelos grupos familiares compreendidos na festa enquanto um ritual contemporâneo,
como um espaço de representação para as transformações sociais e culturais operadas no
âmbito das sociedades urbano-industriais.
No período de elaboração do projeto para a seleção do doutorado, foram realizadas
seis entrevistas semi-estruturadas com sujeitos envolvidos na organização das Festas ou
Encontros de Família, ou aqueles envolvidos com a reordenação genealógica. Essas
entrevistas estão sendo consideradas nesta tese, tendo em vista que, após esse período,
busquei novos grupos familiares – sem perder de vista os que eu já tinha contato.
2.5 A força das imagens na compreensão dos tempos familiares
Esta pesquisa tem feito o uso de recursos audiovisuais. Inserida no campo de debate
do uso da imagem na Antropologia, tive como motivação etnografar fotograficamente os
eventos festivos compreendidos em contextos que apresentam inúmeros simbolismos visuais.
As imagens produzidas pelos familiares ou as que compõem o acervo da memória familiar
foram observadas pelo pesquisador como mensagem etnográfica uma vez que, ao captar os
55
sinais visuais de uma cultura, esses sinais passam a agir como facilitadores para a aquisição
de novas interpretações, valorizadas pela reflexão conjunta (pesquisador e pesquisado) das
informações obtidas através desses sinais. O texto visual provoca outras possibilidades
interpretativas pela sua capacidade de reproduzir e sugerir sentimentos, valores e crenças,
sendo, dessa forma, um auxílio importante na tarefa de compreender os significados e valores
que ordenam e dão sentido ao sistema social em um contexto específico.
2.6 A construção da rede: solidariedades e tecnologias
As comemorações familiares ritualizadas em uma perspectiva festa-espetáculo
(Segalen, 2002, p. 92) mostram-se como mais uma estratégia de recomposição das formas
simbólicas. Mesmo com uma origem européia comum, ao acionar categorias adscritivas,
traçam motivos bastante diferenciados que levam a recontextualizar o pertencimento a um
grupo familiar.
Os contatos têm sido feitos:
a) a partir de indicações de pessoas da minha rede de relações;
b) por meio de uma coluna de um jornal impresso diário da cidade de Porto
Alegre/RS. Com freqüência, os jornais cotidianos trazem informações sobre os
encontros familiares. O Jornal Zero Hora mantém uma coluna intitulada
“Almanaque Gaúcho”, elaborada pelo jornalista Olyr Zavaschi, que traz fatos
históricos, pequenas curiosidades, piadas e uma “subcoluna” chamada “Túnel do
Tempo”, na qual são anunciadas as Festas de Família ou fatos históricos
significativos para a cidade. Outros jornais do interior também costumam divulgar
essas chamadas. O Jornal Jorev (Luterano) possui um item exclusivo com
anúncios comunitários informando as chamadas para as festas de famílias ou para
as festas referentes a uma comemoração familiar em torno do motivo de bodas
(ouro, diamante, platina, etc.);
c) através da internet. A busca no site Google foi a partir da expressão “família
portuguesa” e, imediatamente, encontrei o anúncio de uma página que tratava das
Festas da Família Só já realizadas. No próprio site
18
havia o contato por meio de
depoimentos deixados por aqueles que visitavam a página. No dia seguinte, obtive
18
www.familiaso.com.br.
56
resposta ao breve recado deixado, no qual eu explicitava o motivo de ter entrado
na página citada.
2.7 As dificuldades entre as datas e os locais dos eventos
Ainda que este seja, hoje, um evento bastante difundido na região sul e sudeste –
segundo informações colhidas nos depoimentos de alguns membros de famílias que vêm de
outras regiões, nas quais não há notícias sobre esse tipo de evento –, o espaço para a minha
participação tem alguns impedimentos importantes: em primeiro lugar, a época de realização
dos eventos mostra-se dentro de períodos comuns e, portanto, há uma convergência de datas
escolhidas, em geral, próximas a um feriado para poder contar com a presença de parentes que
vêm de lugares distantes. Elas ocorrem, principalmente, nos meses de setembro, outubro e
novembro, com algumas raras exceções.
Em segundo lugar, a sua realização se dá em lugares distantes e com dificuldade de
acomodação. No primeiro caso, há uma grande coincidência de datas entre as festas e, no caso
seguinte, o amplo deslocamento cria a necessidade de dormir na localidade onde, em muitas
das situações, as escassas hospedagens já se encontram reservadas para os membros das
famílias.
Os primeiros contatos foram sendo feitos conforme obtinha a informação de membros
envolvidos diretamente com a realização do evento. Cabe ressaltar que ora o contato inicia
por membros da família, sendo eles organizadores da festa ou guardiões da memória e/ou
responsáveis pela genealogia familiar. Com base nessas diferentes formas de inserção no
universo familiar, faço a opção de descrever a trajetória de pesquisa a partir das datas dos
contatos iniciais.
57
Capítulo 3
A Alta Modernidade
19
e o indivíduo no mundo globalizado
A modernidade é um tema controverso. Há muito que se dizer sobre ela e muitos são
os autores que desenvolveram e desenvolvem estudos sobre tal tema. De uma forma mais
geral, todos compartilham de esta ser uma época de intensas mudanças e que carece de uma
observação mais acurada pelas diferentes áreas do conhecimento. De forma mais explícita,
seja na noção de modernidade reflexiva
20
, na noção de pós-modernidade
21
ou, ainda, na noção
de supermodernidade
22
, há a congruência de percepção sobre um período que emerge uma
nova sociedade e que compartilho da ênfase sobre a idéia de “desencaixe” proposta por
Giddens (1991). Ou seja, as alterações sobre as concepções de tempo e espaço estão
diretamente vinculadas à descontinuidade entre as referências protetoras das ordens
tradicionais e as instituições sociais modernas, que provocam o deslocamento das relações
sociais de contextos locais e de interação (pré-modernidade) para a reestruturação e
reorganização das relações sociais em grandes distâncias tempo-espaciais (modernidade).
Nesse sentido, a alteração na vida social se dá por meio de mecanismos de desencaixe
representados por fichas simbólicas e sistemas peritos que, em conjunto, forma o que o autor
chama de sistemas abstratos. O primeiro trata de meios de intercâmbio que circulam entre
indivíduos ou grupos que com eles lidam, sem levar em consideração as características
próprias da conjuntura em que estão inseridos. O exemplo do dinheiro traz com pertinência
19
Giddens adota essa expressão para caracterizar o mundo moderno tardio como aquele que oferece novos
parâmetros de risco derivados do caráter globalizado dos sistemas sociais da modernidade. Ou seja, vive-se um
momento específico em que “a influência de acontecimentos distantes sobre eventos próximos e sobre as
intimidades do eu se torna cada vez mais comum” (Giddens, 2002, p. 12), cujo predomínio da ciência, da
tecnologia e da especialização atua diretamente sobre a “segregação da experiência”. Esta, por sua vez, é o
resultado da raridade e da efemeridade, para muitas pessoas, entre o contato direto com fatos e fenômenos que
ligam a vida individual a questões mais amplas de moralidade e finitude.
20
Giddens, Beck e Lash, ainda que apontem essa noção com algumas diferenças significativas, têm nessa
premissa a radicalização da modernidade, que se configura em uma formação de uma outra modernidade, a qual
exige o enfrentamento racional dos indivíduos sobre as próprias condições reais de suas vidas e de suas relações
com seus semelhantes (Beck, 1997).
21
Bauman, ao tratar sobre o mal-estar da pós-modernidade, afirma que a modernidade combateu ferrenhamente
a tradição sob a expectativa de coletivizar o destino humano em um plano mais alto que substituísse a velha
ordem remanescente, e os representantes máximos dessa luta eram os revolucionários. Por outro lado, a pós-
modernidade, afirma o autor, vive em constante estado de pressão para se despojar de toda a interferência
coletiva no destino individual, para desregulamentar e privatizar. Aponta os indivíduos que desrespeitam as leis
como os mais entusiastas da pós-modernidade, “aprendizes vorazes e devotos crentes da revelação pós-moderna,
ávidos por levar receitas de vida sugeridas por aquela lição até a sua conclusão fatal” (Bauman, 1998, p. 26).
22
Augé problematiza o campo de atuação do antropólogo e desenvolve essa noção de supermodernidade como a
contemporaneidade vivenciada a partir da “superabundância factual”, em que a necessidade diária de dar sentido
ao presente e não ao passado é problematizada pelo excesso de tempo e a dificuldade de pensá-lo, interpretado
como uma crise de sentido. De igual modo, o espaço também é problematizado com a proximidade que os meios
de comunicação trouxeram por meio de uma imagem manipulada dos espaços mundiais, mas, no entanto,
reconhecida, “totalidades parcialmente fictícias, porém, efetivas” (Augé, 2007, p. 37).
58
como um meio de distanciamento entre tempo-espaço, tendo em vista as transações em que
atua traz a possibilidade de realização entre indivíduos amplamente separados tanto no tempo
quanto no espaço; sendo, então, “fundamental para o desencaixe da atividade econômica
moderna” (Giddens, 1991, p. 33). Por sua vez, o segundo – os sistemas peritos ou
especializados – trata daqueles com os quais interagimos cotidianamente sem deter um
conhecimento aprofundado sobre o seu funcionamento, e que confiamos na técnica e perícia
daqueles que por eles são responsáveis (sistema bancário, informática, os recursos que
envolvem viagens de avião, etc.). Nesse caso, o desencaixe está posto pela remoção das
relações sociais das imediações do contexto, que cria áreas de segurança relativa às práticas
cotidianas, uma vez que a confiança nos sistemas peritos ou “sistemas de excelência técnica
ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em
que vivemos hoje” (p. 35) se funda na suposição de competência técnica em constante
processo de revisão, de uma ciência posta sob a dúvida de ser ultrapassada por novas
descobertas.
Por fim, as características da modernidade e suas fontes de dinamismo (separação
tempo-espaço, desencaixe e ordenação e reordenação reflexiva) trazem às experiências
cotidianas as sensações de insegurança, incerteza, ansiedade e risco e; por sua vez, a
modernidade, nas condições da globalização, traz a amplitude tanto às oportunidades quanto
às incertezas de forma abrangente, envolvendo questões de identidade, percepção do “eu” e
do “outro”, impelindo os indivíduos a constantes mudanças e adaptações na vida cotidiana.
Considerando-se que a globalização e a tradição se mantêm conexas, tendo em vista os
sistemas abstratos e a ação desincorporadora que deles resulta, segundo Giddens (1997), essa
conexão está sobre os modos distintos de uma e outra lidar com o tempo e o espaço. Diz o
autor que
enquanto a tradição controla o espaço mediante seu controle do tempo, com a
globalização o que acontece é outra coisa. A globalização é, essencialmente, a “ação
à distância”; a ausência predomina sobre a presença, não na sedimentação do tempo,
mas graças à reestruturação do espaço (Giddens, 1997, p. 118).
De modo semelhante, a análise da sociedade de risco erguida por Beck aproxima-se
muito ao exposto anteriormente. Isto é, os indivíduos submetidos a essas incertezas ou riscos
são os que estiveram, inicialmente, em processo de desincorporação para, então, reincorporar
novos modos de vida nos quais produzem, representam e acomodam suas próprias biografias.
Ou seja,
59
a individualização significa a desintegração das certezas da sociedade industrial,
assim como a compulsão para encontrar e inventar novas certezas para si e para os
outros que não a possuem. Mas também significa novas interdependências, até
mesmo globais. A individualização e a globalização são, na verdade, dois lados do
mesmo processo de modernização reflexiva (Beck, 1997, p. 25-6).
Esse processo não é uma medida de escolha do indivíduo. Segundo Beck, é uma
compulsão que dissolve e multiplica as dúvidas sobre todos os aspectos da vida social,
afetiva, política. Esse indivíduo, sob pena e risco, é responsável exclusivo da escrita da sua
biografia, que se estrutura em constante luta consigo mesmo e com seu mundo. De modo
extremo, os indivíduos que tinham no projeto da modernidade o alcance da liberdade de poder
escolher o modo de vida com base em avaliações e cálculos sobre as inúmeras escolhas que
tinham a mão, não encontraram nessa perspectiva as certezas de que aquilo que conquistaram
permaneceria. As implicações desse panorama de incertezas da pós-modernidade promovem
aos indivíduos a ausência de um lugar que acomodem as suas emoções e que, ao invés disso,
os colocam em uma situação de constante construção e reconstrução de identidade. Segundo
Bauman, “eles sofrem de uma crônica falta de recursos
23
com os quais pudessem construir
uma identidade verdadeiramente sólida e duradoura, ancorá-la e suspender-lhe a deriva”
(Bauman, 1998, p. 38).
Deve-se considerar o fato de que esse cenário “de angústia da incerteza que devora as
reservas psíquicas do indivíduo pós-moderno” (Bauman, 1998, p. 241) não é vivenciado da
mesma forma entre os sujeitos: alguns são mais ou menos atingidos por esse traço e as
reações apresentam-se com diferentes sentidos. Essa diferença de sentido tem como pano de
fundo o repertório de “receitas” constituídas em experiências anteriores, vividas e observadas
ao longo do processo de socialização. Isto é, os indivíduos servem-se de ferramentas ou
técnicas apreendidas nas diferentes relações que têm com seus semelhantes e com os objetos
culturais para atuar no mundo social.
A partir de Simmel, por exemplo, o amor, a fome, o trabalho, a religiosidade, não são
sociais, mas fatores de “sociação”, na medida em que agregam os indivíduos a formas
específicas de interação. Nas palavras desse autor (1983, p. 166), a “sociação é a forma –
realizada de incontáveis maneiras diferentes – pela qual os indivíduos se agrupam em
unidades a partir de seus interesses”. Esses “materiais”, essas forças e interesses,
autonomizam-se dos próprios objetos que os criaram, através dos quais eram “utilizados” para
23
Os recursos referidos dizem respeito às redes de segurança socialmente tecidas e societariamente sustentadas,
tais como garantias sobre os meios de vida – emprego, posição social; bem como as redes de segurança, tecidas e
sustentadas pessoalmente, outrora oferecidas pela vizinhança ou pelos laços familiares.
60
determinados propósitos. Nesse sentido, considerando a sociabilidade enquanto uma forma
autônoma ou lúdica de sociação, Simmel (1983) assinala que:
Sociedade é estar com um outro, para um outro, com um outro que, através do
veículo dos impulsos ou dos propósitos, forma e desenvolve os conteúdos e os
interesses materiais ou individuais. As formas nas quais resulta esse processo
ganham vida própria. São liberadas de todos os laços com os conteúdos; existem por
si mesmas e pelo fascínio que difundem pela própria liberação destes laços. É isto
precisamente o fenômeno que chamamos de sociabilidade (Simmel, 1983, p. 168).
A teoria fenomenológica seguida por Alfred Schutz apóia-se nas tipificações que os
homens adotam para classificar o mundo social e nas receitas ou acervo de conhecimento
disponível para atuar na vida cotidiana. Ao lançar mão das receitas para agir em uma
determinada ação, não significa que eles irão sempre encontrar a fórmula de manejo, tendo,
desse modo, que criar e incorporar linhas alternativas de ação para solucionar as situações
problemáticas.
Sugiro, então, que o mundo social pós-moderno tem apresentado inúmeras situações
em que o repertório de receitas disponível (ou os “materiais”, como refere Simmel) não tem
sido suficiente para instrumentalizar esses sujeitos sobre as situações que lhes são
apresentadas. As receitas pressupõem atuar em situações com características genéricas e
homogêneas que se mantêm similares ao longo do tempo, sendo os espaços de criação dos
indivíduos – que promovem a dinâmica social – eram apontados à época como residuais, em
um pequeno número de situações. O que se observa no mundo atual é que as situações estão
submetidas a uma alternância de regras que as estruturam em um ritmo temporal intenso e
exige dos indivíduos um persistente “estado de alerta” e apoiar-se freqüentemente em sua
“inteligência prática” para atuar. Esses são os riscos constantes que os sujeitos estão
vivenciando, tendo em vista que nem sempre os processos criativos são alvos de sucesso.
Em relação ao universo que demarquei em minha pesquisa, este mostra com clareza as
tensões do momento atual, vividos paradoxalmente. Os cotidianos definidos pelas distâncias
tempo-espaciais apresentam-se diferenciados dentro das redes de parentesco. Nesse sentido,
há níveis diferenciados de desencaixe entre os membros de uma rede de parentesco, de modo
que o reflexo dessa diferença é observável nas atividades mais corriqueiras da vida cotidiana
de cada grupo familiar envolvido.
As famílias pesquisadas que habitam em grandes centros urbanos como Porto Alegre,
tendem a viver de forma mais tensa as determinações da vida moderna, envolvidas
diretamente em redes mais complexas em suas dinâmicas, enquanto que as famílias
61
interioranas ainda recorrem aos conhecimentos disponíveis de uma forma mais
“conservadora”, mesmo que da mesma forma impactadas pela globalização em suas lógicas
de consumo, acesso à mídia, circulação em redes amplas, etc. Essa questão é abordada por
Gilberto Velho (1995), quando trata do estilo de vida urbano contemporâneo e diz:
[...] as crenças e valores tradicionais não desaparecem necessariamente diante da
expansão das ideologias individualistas modernizantes. O fato da sociedade ser, por
natureza, multidimensional e heterogênea, produz alternativas e cria novos
domínios. A não-lineraridade e multidimensionalidade dos processos socioculturais
é maximizada nos centros urbanos cuja principal característica é a geração de estilos
de vida e visões de mundo diferenciados que, no limite, levam à experiência da
fragmentação (Velho, 1995, p. 10).
De modo geral, as instituições familiares trazem, também, visibilidade a essa
modernidade que está disponível nas ações cotidianas pelas práticas do consumo e formas de
projetos de vida e dinâmicas de distinção social, mas apresentam-se de forma parcial nas
experiências cognitivas sobre o cotidiano. Ou seja, a construção do Mundo da Vida proposto
por Schutz traduz “uma tradição que agrega fragmentos do moderno sem agregar um modo
moderno de ser consciência do todo e consciência, por isso, moderna”, como nos aponta
Martins (2008, p. 44). Esse efeito não diz respeito exclusivamente sobre a instituição familiar;
no entanto, é nos referenciais tradicionais sem a adoção do conservadorismo que há a
possibilidade de buscar os incrementos necessários à manutenção de narrativas biográficas
coerentes e seguras sobre as auto-identidades, a auto-estima e a valorização da organização
das relações sociais como estímulo à criatividade.
A busca por ações mais tradicionais inclui rever ‘as suas origens’ e entende-se como
tais a busca de um espaço capaz de formular normas de vinculação. Desse modo, rever esse
contexto tem como finalidade pensar na proposta que as Festas de Família trazem – uma
forma criativa dos indivíduos de reordenar ou reinventar a tradição sob a possibilidade de
rever a si mesmo a partir de uma identidade compartilhada e os seus sentimentos pessoais.
62
3.1 A família hoje: entre a permanência e as alterações
Com base no exposto, proponho pensar a família
24
em uma nova conformação no
mundo contemporâneo, em que acomodam as diversas formas familiares em suas inúmeras
transformações que a atualidade exige e que denota a complexidade das inter-relações do
sistema familiar. Nessa direção, Martine Segalen, ao tratar das mutações das estruturas
familiares na Europa, acena para a reincidência de características comuns na organização
familiar. São elas: “um grupo doméstico do tipo geralmente nuclear, inserido em uma rede de
parentesco bilateral cujas funções indicam flexibilidade” (1999, p. 24). A flexibilidade
referida diz respeito desde o aumento da esperança de vida, portanto, a presença mais longa
das gerações mais idosas, a partilha de bens que se estrutura ao longo da maturidade dos
filhos, como em situação de matrimônio há o auxílio dos pais para estes darem “início” à vida
e constituir uma família nuclear, etc. Enfim, a autora afirma que os estudos apontam para uma
crise do casal (número restrito de casamentos formalizados, um aumento significativo de
divórcios, filhos fora de uma relação estável), diferentemente da família que se expressa em
torno de uma união entre as gerações de forma sólida. Cita que as coabitações juvenis, os
divórcios, os nascimentos fora do casamento não são percebidos mais como desvio, tendo em
vista a integração desses formatos nos processos das relações familiares. Adiante reitera essa
questão trazendo que, apesar do distanciamento físico entre as gerações, “os meios modernos
de comunicação permitem a existência de ligações intensas” (1999, p. 32). Nessa abordagem
em que a autora privilegia os estudos nas sociedades européias, estende-se às sociedades
complexas de modo geral, tendo em vista que as experiências na atualidade são próximas em
muitas dimensões da vida cotidiana frente ao projeto sócio-econômico promovido nos
“tempos de globalização”. Sem dúvida, as particularidades são recorrentes, e para observá-las
requer rever a historicidade dos grupos de forma mais acurada, o que nos leva a concluir sobre
o cuidado necessário para assumir o limite de um conceito em uma estrutura submetida à
permanente transformação.
Não obstante, observa-se a família como um espaço de tensão em um momento
histórico em que os indivíduos tendem a autonomamente dispor de sua trajetória de forma
24
A antropologia, em diferentes gerações de estudiosos, adota a noção naturalizada da família em que o foco de
análise se detém nas funções que esta assumia no meio social (Malinowski), como também há a percepção
universalizada das relações de parentesco (Lévi-Strauss) e o sistema de parentesco e o casamento como um
conjunto de usos sociais interligados que se baseavam no reconhecimento de certas relações biológicas para fins
sociais (Radcliffe-Brown).
63
mais individualizada. Nesse sentido, Martine Segalen traz estudos importantes sobre o tema e
afirma sobre o lugar da família no atual período histórico:
A modernização das sociedades não foi feita contra a família, mas sim com ela. Ora
grupo de residência, ora rede, a família é um ponto de apoio do indivíduo que tem
que se deslocar, entrar na cidade, penetrar nos novos mercados do emprego, tal
como para os membros da burguesia e para as primeiras empresas capitalistas. Do
mesmo modo que a análise da história da família demonstrou que as hipóteses de um
evolucionismo linear não são adequadas, o estudo das transformações familiares
ligadas à modernidade põe em evidência a diversidade de respostas da instituição
face às novas condições econômicas e sociais (Segalen, 1990, p. 140-1).
A aproximação dos estudos de Laburthe-Tolra & Warnier com a perspectiva de
Segalen constrói, com maior intensidade, os argumentos sobre a imprecisão de um conceito
homogêneo de família, uma vez que há uma transformação constante sobre sua organização
em oposição ao sistema de parentesco que permanece em uma situação de maior estabilidade.
Os autores compreendem a família, ainda que não conceituada de forma unívoca, esta remete
à idéia de um grupo de parentes co-residentes, um grupo doméstico em que o parentesco pode
resultar de consangüinidade, aliança ou adoção. Para a família, portanto,
a finalidade precípua de sua existência é a manutenção econômica, a identificação
individual e coletiva e a criação dos filhos. Os grupos de descendência e residência
formados pelo parentesco mantêm uma solidariedade multifuncional, determinando
casamentos, regulação dos conflitos, herança, cultos, valores, etc. (Laburthe-Tolra;
Warnier, 1993, p. 105).
No entanto, a reflexão sobre o “valor”-família nas camadas da população brasileira, os
estudos de Duarte (1994) são fundamentais. Ele compreende esse valor seguindo a teoria da
hierarquia de Louis Dumont como atuando com intensidade no sistema de disposições de
valores de uma população como a que ele etnografa no âmbito de classes trabalhadoras no Rio
de Janeiro. Como em um jogo dialético, o valor-família ou qualquer outro valor ordenado nas
representações sociais do grupo pode encompassar o sistema de valores e de motivações em
determinado contexto vivido por grupos e classes sociais, configurando formas de
sociabilidade múltiplas e diversas (Simmel, 1983), assumindo significados distintos conforme
as dinâmicas em jogo e o campo de possibilidades para pensarmos em termos bourdianos na
estratificação da sociedade brasileira. Observa-se, portanto, a importância de refletir sobre a
noção de habitus enquanto um princípio gerador de práticas que deriva da interiorização de
normas, valores e princípios sociais que orientam as ações dos sujeitos adequadas à realidade
objetiva estruturada na sociedade. Isto é, a possibilidade de realizar essas ações está
64
submetida a um sistema de classificação ou um conjunto de ‘esquemas generativos’ que
orientam as escolhas para uma ação posterior. Essa internalização ocorre de forma subjetiva,
mas está orientada pelas condições objetivas da estrutura social. Dessa forma, o habitus
apresenta-se, ao mesmo tempo, como social e individual e, portanto, não é um conceito
estático
25
.
No Brasil, além do estudo de Luiz Fernando Dias Duarte sobre as singularidades e
subculturas em jogo como o valor-família, outros estudos etnográficos são de relevância para
a consolidação da linha de pesquisa de família na antropologia brasileira como os
desenvolvidos por Claudia Fonseca (2004). Articulando família, cultura e honra em grupos
populares, Claudia Fonseca coloca em evidência as formas criativas e complexas de condução
da vida dos habitantes de duas vilas na cidade de Porto Alegre, diante dos limites impostos
pela estratificação social. A reflexão sobre o tema suscita a revisão sobre o que se divulga
como modernidade (incluindo a própria academia, os agentes sociais e as políticas públicas) e
a sua “promessa” abrangente de progresso e oportunidades estendidos a todos os indivíduos,
tendo como pano de fundo as noções de “cidadania” e “sociedade plural”. Segundo a autora, a
atenção sobre as análises socioeconômicas que os estudos com camadas populares teimam em
priorizar, deixam de lado aspectos fundamentais sobre os sistemas simbólicos que
descortinam as formas criativas de enfrentamento às adversidades, a complexidade das
relações e o reconhecimento dos sujeitos como agentes de modos de ser e viver um cotidiano
em um contexto marcado pelo infortúnio da pobreza.
No caso de nosso estudo, a predominância é de famílias de camadas médias e altas, tal
como inaugurado nos estudos de Gilberto Velho nos anos 1970. No caso de nossa etnografia,
de modo geral o tema de pertença a uma trajetória de origem, quando não étnica, reforça o
vínculo entre o sentido de família à ‘solidariedade de linhagem’ e a ‘corporatividade’ em que
estão circunscritas. Soma-se a isso tudo que da família se herda: status, distinção social, bens
materiais, sobrenome, etc. Esse modelo aparenta o das formas tradicionais, tendo em vista a
subordinação à identidade incorporada que visa não somente a reprodução econômica, mas,
sobretudo, a reprodução simbólica de diferenciação das camadas médias em ascensão. O
sentido das camadas médias, conforme nos ensina Gilberto Velho, está inserido em uma
perspectiva da modernidade:
25
Bourdieu compreende as atualizações do habitus por meio das práticas dos agentes como “produto do
encontro de duas histórias, a da produção da posição ocupada e a da produção das disposições de seus
ocupantes” (Bourdieu, 2002, p. 289).
65
Em uma sociedade complexa moderna, os mapas de orientação para a vida social
são particularmente ambíguos, tortuosos e contraditórios. A construção de
identidade e a elaboração de projetos individuais são feitas dentro de um contexto
em que diferentes ‘mundos’ ou esferas da vida social se interpenetram, se misturam
e, muitas vezes, entram em conflito (Velho, 1997, p. 33).
Com base no exposto, a complexidade situa-se, em grande medida, na existência e
percepção de diferentes visões de mundo e estilos de vida que, por sua vez, são significativos
à aderência na demarcação de fronteiras e elaboração de identidades familiares. Ainda que se
atribua a característica de uma identidade socialmente dada (e não adquirida) e englobante, a
identidade familiar – tanto quanto às que se referem à nação, à religiosidade, à linhagem, à
etnicidade – situa-se vinculada a dois modelos polares: o da tradição e o da modernidade; e,
por vezes, modificada ao longo das trajetórias pessoais com a adesão dos indivíduos a novas
formas de sociabilidade e estilos de vida. Trata-se, não obstante, de tensões – que variam em
grau – diante da sobreposição de valores que caracterizam a vida na sociedade moderna.
Nessa perspectiva, o núcleo familiar responde ao processo individualizante
(fragmentação do indivíduo), sendo essa “família nuclear [a que] possa corresponder a uma
espécie de indivíduo (indiviso) coletivo” (Duarte, 1994, p. 32). Já as camadas populares têm o
sentido de família construída no seu cotidiano, nas atividades relacionais praticadas entre seus
membros e vivenciadas como “grupo doméstico” em que há uma dimensão genérica do
parentesco em consonância com a dimensão operacional do grupo doméstico. Segundo
Duarte, há uma forte semelhança ao sentido da família camponesa. Nessa direção, os estudos
realizados por Ellen Woortmann (1998, 1994), desenvolvidos com colonos de origem alemã,
descendentes de imigrantes que constituem pequenos núcleos (e hoje cidades de porte médio e
grande) no interior do Rio Grande do Sul no início do século XIX, acenam para a concepção
sobre família “em seu sentido mais amplo de uma descendência, como sendo uma árvore”
(Woortmann, 1988, p. 24). A idéia de “árvore”, como diz a autora, é referida simbolicamente
por meio das raízes, tronco, ramos e frutos, com ênfase ao tronco, que denota a força do viés
patrilinear e, por sua vez, definidora das alianças matrimoniais desejáveis ou não, avaliadas
sob a condição das práticas sociais no interior de um contexto étnico.
Importa, portanto, pensar a família como uma instituição flexível, dotada de múltiplos
formatos, que mantém em seu interior funções explícitas de educação aos filhos, de divisão
sexual das tarefas, de exercício da sexualidade, de reprodução social. Cabe, então, a partir
desse momento, refletir sobre a redescoberta de seu papel ao agregar as redes de parentesco,
ao minimizar a dispersão de seus membros, ao responder aos sujeitos à procura minuciosa e
tantas vezes quimérica das suas raízes ancestrais.
66
3.2 As redes de parentesco: ênfase à “religação”
As críticas que David Schneider faz às formas como a Antropologia tem analisado o
parentesco, ao longo da sua história, são contundentes sobre a insistência em manter
determinados princípios como universais. Ao discorrer sobre os diferentes axiomas que
compõem as muitas abordagens epistemológicas dentro das escolas e autores, Schneider
conclui que se deve tomar o parentesco como uma questão empírica e não como fato
universal, tendo em vista, também, que não se pode assumir que a rede genealógica tem o
mesmo valor/significado em todas as culturas (Schneider, 1984, p. 200). Enfim, a abordagem
é caracterizada pelo autor como uma relação biologizante fundada na reprodução sexual, e
distante das diferentes formações parentais na atualidade que comportam adoções, filiações de
enteados e filhos gerados por meio das modernas técnicas reprodutivas.
Ao longo da pesquisa de campo e os inúmeros genealogistas das famílias que
formaram a maior parte dos dados que sustentaram este estudo, não há como não reconhecer
que a visão e a abordagem da maioria dos autores trabalham com as noções de
consangüinidade. Ainda que muito fortemente estejam agregados os “parentes por afinidade”,
estes passam a ser vistos como os possíveis agentes de produção de parentes consangüíneos.
Essa mesma premissa é observada na conferência proferida na 16ª reunião nacional da
ANPOCS, Caxambu, outubro de 1992
26
.
É evidente que a hipótese "extensionista" combina com os sistemas europeus de
parentesco – sistemas cognáticos, descritivos e centrados no ego. Nós partimos do
"pai" para chegar ao "pai do pai", que é chamado "avô", etc., e é esse mesmo
procedimento que sugerimos aos antropólogos quando estes se dedicam a pesquisas
de campo sobre os vínculos de parentesco. Nos sistemas europeus, o casamento
transforma "não-parentes" em "parentes por aliança", que na geração seguinte
transformam-se em "consangüíneos" (Godelier, 1992).
Na obra de Martine Segalen, organizada com outros autores, A História da Família – o
ocidente: industrialização e urbanização, há a afirmação de que a instituição familiar, ainda
com uma variedade significativa das suas formas, mantém-se e que, em parte, se deve ao fato
de apoiar-se em um conjunto de características perenes e significativas para os seus membros,
26
Maurice Godelier traz uma revisão sobre a teoria do parentesco no texto O ocidente, espelho partido: uma
avaliação parcial da antropologia social, acompanhada de algumas perspectivas, em que apresenta algumas
divergências às noções de Schneider. O texto está disponível em www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/
rbcs_00_21/rbcs21_01.htm, pesquisado em 11.11.2008.
67
uma vez que atua como “referência dominante e o [seu] peso normativo, ao nível das imagens
mentais e simbólicas” (Segalen, 1999, p. 126).
Não obstante, é necessário trazer ao texto que as famílias acompanhadas ao longo da
pesquisa de campo são, em sua maioria, descendentes de imigrantes europeus e que, a sua
“territorialização” no Brasil e, em especial no Rio Grande do Sul, colocou-os circunscritos em
áreas mais afastadas de outros centros já povoados. Essa condição de isolamento foi profícua
à perpetuação dos costumes dos seus valores morais e da língua materna. Desse modo, o
modelo de parentesco e as relações matrimoniais mantiveram-se por três ou quatro gerações
em uma perspectiva endogâmica e muito próxima ao modelo europeu.
Portanto, inscrita em uma rede de parentesco e em um espaço limitado que por muito
tempo perpetuou a sua identidade, a família aciona diferentes rituais por meio dos quais toma
consciência de si mesma. Ainda que os membros mais jovens tenham deixado essas
localidades em busca de novas oportunidades e aderido a estilos de vida com base em
modelos urbanos, a família é reconhecidamente a principal fonte socializadora de valores
étnicos, mapeando símbolos emblemáticos de pertencimento. Sem dúvida, ao refletir sobre
novos estilos de vida adotados pelos descendentes, refiro-me à adesão de novos vínculos
sociais por meio de matrimônios, em que esses passaram a estabelecer novos vínculos ao
parentesco, cuja particularidade é a ampliação para além das fronteiras étnicas. Há, portanto,
uma complexidade intrínseca às estratégias matrimoniais que têm como projeto outros
princípios como o desejo, o amor
27
, em geral, em consonância com a preservação ou o avanço
sobre um determinado estatuto econômico e político que coloca o indivíduo em um
determinado lugar na escala social na sociedade mais ampla. Cabe, então, observar que essas
gerações inseridas em um novo ritmo e com autonomia sobre o seu próprio desenvolvimento
colocam-se em posição de construtores de novos contornos sociais que passam a ser
negociados nas formas de troca intergeracionais. A alteração de signos de identidade atualiza
a rede de pertencimento e uma comunidade de comunicação, no caso, a familiar. Com vistas a
27
Giddens aborda o amor nas relações de casamento atuais como um sentimento central. Diz, então: “O
casamento se torna mais e mais uma relação iniciada pela satisfação emocional que deriva do contato próximo
do outro e, enquanto essa satisfação persistir, ele se mantém” (Giddens, 2002, p. 87).
Outra obra importante para uma reflexão sobre o amor é a de Bauman no livro Amor-líquido: a fragilidade dos
laços humanos. O trecho que segue traduz a forma que o amor adere em tempos pós-modernos: “A afinidade
nasce da escolha e nunca se corta esse cordão umbilical, e a menos que a escolha seja reafirmada diariamente e
novas ações continuem a ser empreendidas para confirmá-la, a afinidade vai definhando, murchando e
deteriorando-se até se desintegrar. A intenção de manter a afinidade viva e saudável prevê uma luta diária e uma
vigilância sem descanso. Para nós, os habitantes deste líquido mundo moderno que detesta tudo o que é sólido e
durável, tudo que não se ajusta ao uso instantâneo nem permite que se ponha fim ao esforço, tal perspectiva
supera toda a capacidade e vontade de negociação” (Bauman, 2004, p. 46).
68
isso, esta tese visa as Festas de Família como um dos rituais praticados com essa
intencionalidade.
3.3 O ritual festivo: instaurar ou restaurar?
Parti das seguintes questões para investigar esse tema: quais eram os motivos de
adotar essa manifestação em torno da família e do parentesco? O que as festas significam ou
significarão para as diferentes gerações que dela participam? Como os membros acionam a
rede de parentesco para realizá-la?
Cabe, inicialmente, desenvolver uma reflexão sobre a concepção de festa enquanto um
ritual. As festas familiares eram expressas até bem pouco tempo em rituais volitivos
encarregados de assinalar a “passagem” de um estado de representações para outro (Van
Gennep, 1909), por exemplo, os casamentos, os atos fúnebres, etc. O século XX (maior
longevidade dos indivíduos e a baixa mortalidade infantil) conta com novos costumes que
tangenciam as relações familiares festivas e que estão na origem do desenvolvimento dos
rituais que comemoram os acontecimentos que marcam a vida da família: bodas de prata e
ouro, que recriam a aliança que esteve na origem do grupo; festas de aniversário das crianças,
que recordam seu nascimento; missas e cultos religiosos de aniversário dos parentes falecidos,
que homenageiam a sua memória ao longo dos anos. Em um tempo mais próximo, assistimos
ao surgimento de festas familiares cíclicas que promovem reuniões na Páscoa, no Natal, nas
férias, aglutinando os parentes dispersos, oferecendo, então, a oportunidade de afirmar as
solidariedades e a realidade dos laços de parentesco.
[Essas] reuniões familiares, vulgares ou solenes, concorrem para (re)vivificar e
(re)criar o grupo.Com efeito, fornecem a todos a matéria para rever, ou para
apreender, os laços que os unem uns aos outros. Sabe-se quem está ausente, indício
de desavença ou de desaparecimento, mas através dos presentes o grupo exprime a
sua unidade. Além disso, essas cerimônias comemorativas ou festivas visam
instaurar uma continuidade, uma duração. Através delas, o grupo reforma-se
constantemente, há sempre quem ocupe as principais posições familiares, tomando
os vivos o lugar dos mortos (Segalen; Zonabend, 1999, p. 136).
Esse evento é analisado e, portanto, compreendido como um rito pela sua capacidade
polissêmica e de ordenar-se diante de transformações sociais, portanto, portadora de uma das
principais características do rito: a plasticidade.
O ritual faz sentido, visto que ordena a desordem, atribui sentido ao acidental e ao
incompreensível, confere aos atores sociais os meios para dominar o mal, o tempo e
69
as relações sociais. Sua essência é misturar o tempo individual e o tempo coletivo.
Definidos em suas propriedades morfológicas e através de sua eficácia social, os
ritos também se caracterizam por ações simbólicas manifestadas por emblemas
sensíveis, materiais e corporais (Segalen, 2002, p. 31-2).
O rito, enquanto uma linguagem eficaz na medida em que atua sobre a realidade social
por meio de um conjunto de condutas de caráter repetitivo e com uma forte carga simbólica,
tem no seu interior “um número expressivo de operações, gestos, palavras e objetos, que
exista a crença numa espécie de transcendência” (Segalen, 2002, p. 33). Nessa mesma
direção, Mariza Peirano traz na sua análise sobre rito alguns itens importantes na definição
operativa de ritual que são: a perspectiva etnográfica apreendida não só pelo pesquisador em
campo, mas apoiada na percepção do grupo observado; os eventos devem conter certo grau de
convencionalidade e de ações que se repitam em consonância de sentidos; os rituais buscam,
de forma criativa e eficaz, transmitir valores e conhecimentos ou, ainda, resolver conflitos e
reproduzir relações sociais; e, por fim, todo o ritual tem expressões comunicativas implícitas
que anunciam estilos, opções, preferências.
Ao retomar a construção histórica do ritual pela antropologia, que avança desde os
estudos de Durkheim
28
, Mauss
29
, Vann Gennep
30
, as inovações metodológicas,
posteriormente reconhecidas de Gregory Bateson, Gluckman, que é o precursor ao conceber o
ritual das relações sociais, Victor Turner, que estende a posição de Van Gennep sobre os ritos
de passagem para além do status e posição social, acrescentando os estados de ser, que são de
criação cultural, e os estados mentais, que são os sentimentais e os afetos. A perspectiva
polissêmica é cunhada por ela ao referir os vários significados (em ação) dos símbolos rituais.
E é justamente sobre esse contexto que há a conjugação de perspectivas entre pesquisador e
pesquisado no encontro etnográfico. Na voz de três organizadores de Festas Familiares
28
“[...] o que exprimem as tradições, cuja lembrança ela perpetua, é a maneira pela qual a sociedade concebe o
homem e o mundo; trata-se de uma moral e de uma cosmologia, ao mesmo tempo que de uma história. O rito,
portanto, só serve e só pode servir para manter a vitalidade dessas crenças, para impedir que elas se apaguem das
memórias, ou seja, em suma, para revivificar os elementos mais essenciais da consciência coletiva. Através dele,
o grupo reanima periodicamente o sentimento que tem de si mesmo e de sua unidade; ao mesmo tempo, os
indivíduos são revigorados em sua natureza de seres sociais. As gloriosas lembranças que fazem reviver diante
de seus olhos e das quais eles se sentem solidários dão-lhes uma impressão de força e de confiança: as pessoas
ficam mais seguras em sua fé quando vêem a que passado longínquo ela remonta e os grandes feitos que
inspirou. É esse caráter da cerimônia que a torna instrutiva. Toda ela tende a agir sobre as consciências, e
somente sobre elas” (Durkheim, 1996, p. 409).
29
Segundo Peirano, tanto Durkheim como Mauss vão conceber os rituais criadores de um corpo de idéias e
valores que, sendo socialmente partilhados, assumem a conotação religiosa, mas não sob uma prática voltada aos
deuses e ao sobrenatural e, sim, à sociedade (Peirano, 2003, p. 18-9).
30
Seguidor de Durkheim, analisou os detalhadamente as partes constitutivas dos rituais e a similaridade entre os
ritos individuais e os dos grupos. Sua obra de maior referência é Os ritos de passagem (1909) em que “os ritos
eram definidos como momentos relativos à mudança e à transição (de pessoas e grupos sociais) para novas
etapas da vida e de status” (Peirano, 2003, p. 22).
70
entrevistados, trago esta dimensão do valor ritual, que exige a projeção das fases da festa, os
itens, os momentos sagrados e profanos e o esforço para manter a agregação e o valor família
extensa sempre ameaçada pela rusga cotidiana da organização no conflito individual:
[...] Já estamos no 10º Encontro da Família Bitencourt. Não temos a genealogia, se
parte do casal (avós), os filhos e os descendentes para fazer a confraternização. Ela
inicia com uma missa, depois da missa tem uma passeata na cidade com fogos de
artifício, faixas, depois tem churrasco, depois tem jogos, tem jogos de criança no
sábado à tarde, brincadeira com ovos, corrida de saco, gincanas, depois tem o
baile. No outro dia tem jogos de manhã pra homens. O baile vai até mais tarde,
depois no domingo tem outra refeição um pouco mais leve e aí já tem a dispersão.
Ela dura em torno de 36 horas. Já a Festa dos Rocha vai ser mais curta, pra dar
saudades... e pra não dar tempo de desgaste, de dar conflito... Então, o que é que
precisamos na festa? A festa precisa de um momento de espiritualização, que é
importantíssimo, tu te doa, faz uma reflexão, tu resgata o pai, a mãe, a tua etnia, tua
história... depois tem um momento de diálogo, de integração e depois é que é o
momento da festa, de bodas, de extravasar, de beber, de brincar(Paulo Bitencourt
Rocha – organizador da Festa da Família Rocha).
Reviver. O bom polonês é muito religioso e católico e, assim, muito convicto nessa
questão, então, a primeira coisa que se celebra sempre é o aspecto religioso, é uma
missa solene. Depois começa a festa: muita conversa, chimarrão e depois o almoço.
À tarde tem um lanche antes de o pessoal ir embora. É tudo muito simples, pois a
maioria vive de forma simples, com poucos recursos. Eles tiveram que deixar a zona
rural, foram para as cidades e vivem alguns de “bico”, pequenos empregos. A
escolaridade é baixa nos descendentes de poloneses. A festa tem que ser de acordo
com a possibilidade financeira de cada família (Miguel Gayeski – organizador da
árvore genealógica e de um dos sete Encontros da Família Gayeski).
Na véspera vamos à cinagoga e o rabino do Centro Israelita vai dizer umas
palavrinhas e citar o evento do Cabalat Shabat (sexta-feira). Nós não somos
religiosos, mas não pode faltar esse momento. No dia seguinte é a Festa da Família
Scliar: vamos ao Clube Campestre e, na entrada, haverá a colocação dos crachás,
os aperitivos e, por volta das 13h, haverá o almoço. O Mauro Keiserman vai ser o
mestre de cerimônia – ele foi o autor da idéia e ele é muito simpático e falante –,
então ele vai explicar o porquê do Encontro, dar boas-vindas, pedir que cada ramo
se levante, vamos homenagear os primos mais velhos e aí vai ter o almoço. Entre o
prato principal e a sobremesa, o Moacir Scliar vai fazer uma fala sobre a história
da família e quem mais quiser falar. Depois terá a sobremesa e aí a festa continua
naturalmente (Lúbia Scliar Zilberknop – organizadora do 1º Encontro da Família
Scliar).
De modo geral, as Festas de Família mantêm um protocolo regular que inicia com uma
manifestação religiosa, o que responde às tradições religiosas da maioria da rede familiar, em
geral vinculada à tradição étnica. As demais etapas ocorrem em torno de comensalidades e
festejos que acentuam a comemoração do Encontro Familiar.
71
3.4 A tradição revisitada de tempos em tempos
As novas abordagens sociais, que marcam os estudos sobre o declínio das relações
face a face e o surgimento de uma nova subjetividade acenam para a destradicionalização, em
que os indivíduos adotam condutas mais autônomas, livres das influências do passado, uma
vez que têm à disposição uma grande possibilidade de escolha entre caminhos alternativos,
atravessados por meios de comunicação e tecnologias, que se traduzem em nova percepção
espaço-temporal
31
. No entanto, na consolidação da era global ou globalização – como a época
atual tem sido definida –, percebe-se no mesmo processo de destradicionalização pela
liberdade de recriar e reinventar “formas sociais” (Simmel, 1983) o fenômeno de valorização
da memória social pela forma de acesso às informações sobre as histórias coletivas e de redes
sociais como démarches de processos de democratização política do mundo ocidental
moderno, pela concretização da facilidade de resgate documental e dos testemunhos que as
tecnologias permitiram no século passado e no início deste século, e pela emergência de
paradigmas reflexivos e hermenêuticos que colocaram em alto relevo o sujeito cognitivo, o
conhecimento de si e a fenomenologia da memória (Ricoeur, 2007), em que a própria
visualidade (Durand, 1998), ou seja, ver-se (fotos e vídeos) e ser visto (festas documentadas)
são instrumentos que norteiam os jogos de viver ludicamente o social (inspirada em Simmel,
1983 e Eckert e Rocha, 2005). É neste âmbito que se observa a reordenação de espaços
tradicionais ou, como diria Eric Hobsbawn (1984), “reinventam-se tradições” no bojo do ideal
moderno de circulação de idéias e narrativas (Bakthin, 1992).
Essa qualificação do mundo moderno ocidental se expressa em diferentes situações,
como é o caso das Festas ou Encontro de Família. O evento festivo tem, portanto, o papel de
mediador entre os tempos que envolvem os participantes. Ao publicizar o tempo privado, o
tempo dos predecessores que participam na formação das biografias, encontra-se na dimensão
espaço-temporal desse evento a redução fenomenológica do mundo vivido, com toda a sua
densidade histórica. Esse passado passa a ser redesenhado de acordo com interesses e
motivações do presente, ou seja, a memória se constrói a partir dos interesses no presente e é a
partir deste que o passado vivido é reordenado
32
.
31
A noção de destradicionalização ou ruptura com a tradição propõe a liberdade dos sujeitos que se tornam
livres das amarras do passado para agirem no mundo. Ver em Beck (1998), Beck, Giddens & Lash (1997),
Giddens (2003) e Thompson (2001)
32
Sobre reordenação do tempo vivido na memória coletiva, recorrer a Bérgson (1990), Halbwachs (2004),
Bachelard (1984), Durand (1984), Benjamin (1993), Ricoeur (1994), Hobsbawn (1984). No PPGAS – UFRGS,
este tema é projeto de pesquisa no BIEV e Navisual, coordenados por Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da
Rocha. Ver, por exemplo, Eckert e Rocha (2005).
72
Portanto, as transformações sociais e políticas da contemporaneidade não denotam a
eliminação da tradição, antes ela é recriada em múltiplas formas de arranjos sociais e culturais
que agenciam a transmissão de conjunto de valores, sentimentos e práticas entre gerações e
orientam pensamentos, valores e atitudes. Entende-se, então, que a transmissão do valor-
tradição (Dumont apud Duarte, 1986), faz parte do sistema de disposições que perpassam
identidades de grupos locais, que reelaboram cotidianamente no contexto histórico-social a
que está sujeito o grupo familiar, e no contexto político-econômico da sociedade abrangente
que se configura em um processo de modernização.
Este peso da transmissão de referentes identitários configurando sistemas culturais,
Clifford Geertz trará no seu trabalho sobre a noção de Pessoa em Bali, tendo por base o
trabalho de Alfred Schutz, no qual o autor propõe a “desagregação da noção amortecedora de
‘companheiros’ e, ‘predecessores’, ‘contemporâneos’, ‘consórcios’ e ‘sucessores’” (1989, p.
230) que enfatizam as relações entre as concepções de identidade pessoal, as de ordem
temporal e as do estilo comportamental. No caso em análise, essas concepções trazem luz ao
conjunto de relações implicadas no evento festivo. Ao pensar os consócios como aqueles que
compartilham a biografia de um e de outro, ou aqueles que ‘envelhecem juntos’, os
contemporâneos como aqueles que vivem o mesmo tempo, os mesmos períodos históricos e,
portanto, são portadores de um conjunto de pressupostos que regulam um comportamento
socialmente aprovado e adotados por indivíduos de um mesmo período da história. No
entanto, as suas relações sociais mostram-se tênues entre si, ocasionais. Por sua vez, os
predecessores e os sucessores não são indivíduos em interação. Os predecessores já viveram,
e suas ações executadas no passado podem ter influência sobre a vida daqueles que os
precedem, seus sucessores. Esses, os sucessores, são os indivíduos do futuro, aqueles que
poderão ou não ser sugestionados pelos atos de seus predecessores. Essas relações não podem
ser vistas como expressões manifestas de igual modo nas diferentes sociedades, como também
no interior de cada uma dessas sociedades, uma vez que são formuladas culturalmente em
acordo com os padrões e experiências sociais específicos.
As festas assumem essa prerrogativa quando trazem, ao longo do ritual, aspectos
muito particulares da experiência familiar. Estrategicamente são acionados elementos que
dizem respeito a um largo número de participantes, evidenciando a busca de uma interação e,
simultaneamente, a transformação no seu entorno. Isto é, estão nos elementos que atuam
significativamente aos membros da família e que compõem cotidianamente as negociações
que realizam para a construção da realidade do Mundo da Vida. É esse encontro de
consciências que estrutura a experiência intersubjetiva, tendo em vista a reciprocidade de
73
perspectivas, a origem social do conhecimento e a distribuição desse conhecimento na rede de
parentesco. As festas familiares promovem a “reatualização” dos sentidos comuns que os
sujeitos encontraram de forma mais fragmentada, em “cacos” diria Walter Benjamin (1994 e
1996), e frente às suspensões que o mundo atual demanda. Elas possibilitam a compreensão
intersubjetiva e garantem, desse modo, a comunicação e a interação entre os membros da
família. Trazer fatos comuns ao centro das atenções dos participantes da festa é buscar
significados e interpretações muito próximas ao grupo familiar, uma corrente de consciência
comum, em sincronia, que permite elaborar uma compreensão racional, persuasiva e operativa
das circunstâncias que o evento propõe. Os fenômenos ou “informações” que dão
oportunidade às relações intersubjetivas foram elencados como recorrentes à maioria dos
eventos perscrutados: a expressão da religiosidade “oficial”, a árvore genealógica exposta e
interativa, os pronunciamentos memoriais de parentes notáveis e importantes ao grupo, a
seleção de alguns alimentos servidos no evento, o conjunto de fotos e objetos que informam
sobre a história familiar. Esses dispositivos superam as diversidades individuais por meio da
congruência de pontos de vista e, para as gerações que não vivenciaram esse conjunto de
significados comuns, possibilitam a apreensão desses conhecimentos pressupondo o mundo
do ponto de vista de um Nós.
Primordialmente ser um evento festivo, extraordinário a um cotidiano vivenciado
diferentemente entre os atores, é o que move de forma mais efetiva a participação dos grupos
da família e o que recria os marcos interpretativos em meio aos quais eles organizam sua
experiência. Também as festas familiares seguem as características das festas de calendário
analisadas por Agnes Villadary, uma vez que ela tem justamente esta capacidade de se situar
na contemporaneidade como sendo instituição que corresponde tanto a regramentos quanto
absorve as espontaneidades inatendidas, capacidade de reunir grupos e pessoas que estão
separadas ou afastadas no cotidiano por razões diversas como obrigações de trabalho, por
enraizamentos espaciais dos mais diversos e distantes (Villadary, 1968, p. 12)
33
.
Características estas que sempre nos fazem revisitar o pai fundador dos estudos dos ritos
sociais e para quem a festa [rito], ao promover sentidos comuns, reafirma as crenças de um
grupo e as regras que tornam possível o sujeito reconhecer-se a si e a sua vida em sociedade,
reforçando laços sociais. Ou seja, o grupo reanima "periodicamente o sentimento que tem de
33
Nós veremos mais adiante que a festa decorre ao mesmo tempo da instituição mais regulamentada e da
espontaneidade mais inesperada. Como fenômeno social, ela possui regras, leis, uma lógica própria, que é fácil
de reencontrar na maioria das cerimônias e em várias sociedades ao longo da história. Em toda parte, as festas
provocam reuniões; elas unem os grupos e pessoas cotidianamente separadas ou distanciadas por obrigações e
trabalho, por espaço e tempo (Villadary, 1968, p. 12).
74
si mesmo e de sua unidade. Ao mesmo tempo, os indivíduos são revigorados em sua natureza
de seres sociais” (Durkheim, 1996, p. 409).
Tendo, enfim, como princípio a realização das festas como um elemento agregador e
produtor de uma existência do Nós, considero importante reconhecer as duas dimensões
primordiais para se pensar as Festas de Família: o tempo que ela reproduz e o espaço que ela
constrói para estabelecer o sentido coletivo a que se propõe. Trata-se, sobretudo, de renovar,
de tempos em tempos, a capacidade de renovação das relações familiares por meio das trocas,
da participação e da interação que os eventos promovem.
Nesse sentido, há o depoimento em e-mail de um tio que escreve ao sobrinho que,
após a perda familiar do pai e limitação física da mãe por acidente de carro, inicia uma
peregrinação anual realizando uma viagem de São Paulo a Pelotas para, no primeiro dia do
ano, junto com sua família, motivar o encontro da rede familiar de Pelotas (linhagem paterna).
O depoimento traz o que Benjamin (1994 e 1996) chama de memória afetiva, e compreende-
se nesse gesto um esforço de relacionar a memória familiar a uma memória afetiva.
Bom dia, Cleber!
Espero que tu e a Jô já estejam com saudades e planejando para o final deste ano
uma nova vinda. Foi muito bom nos reencontrarmos, e acima de tudo ajudando a
manter acesa a chama do espírito de família. Todas as famílias, por mais bem
estruturadas que sejam, em alguns momentos mostram sinais de fraqueza, e de certa
forma adoecem. Começam a se desgastarem com as dificuldades, divergências,
rejeições a novas inclusões, com as diferenças... Enfim, são inúmeras as
fragilidades a que ficamos expostos e que a família, quer queiramos ou não, acaba
absorvendo as conseqüências, e se não tivermos força e perseverança em reagirmos
de forma positiva, ela se dissolve e se destrói sem percebermos, e a reconstrução às
vezes fica quase que impossível. Por isso que valorizo demais a presença de vocês,
pois sempre trazem esperança, e o fato de tu rodares vários quilômetros para estar
com a gente, faz-nos perceber o quanto tu valorizou e valoriza a convivência em
família que tivemos, sobretudo naquela infância pobre, mas recheada de coisas
boas, com a felicidade sendo uma coisa possível e constante de se sentir a cada dia,
seja nas goteiras que faziam melodias ao caírem nas panelas em dias de chuvas,
seja nas tábuas soltas parecendo trampolins... Em cada coisa simples e às vezes
grotesca que faziam parte de nosso cotidiano, a felicidade era absoluta, pois a
própria ignorância nos protegia de nos sentirmos ridículos, e nos fazia felizes. Tudo
isso nos fez pessoas fortes e ao mesmo tempo sensíveis, pois vencer passou a ser um
desafio, mas sem descuidarmos da simplicidade, que é o caminho mais seguro para
nos sentirmos bem, e nos deu a certeza de que a família é a base de tudo, e devemos
cuidá-la como nossa saúde, fazendo exames periódicos para que ela nunca adoeça
de forma fatal.
Por tudo isso, em nome de todos de nossa família, devo te dizer que foi muito
prazeroso, e por demais importante a presença de vocês, sobretudo porque a Jô
assinou embaixo, dando seguimento espontâneo a uma coisa bonita de dimensões
imensuráveis. Com isso criamos nesta data uma tradição que, se possível, não
deverá ser quebrada. Este encontro será lembrado e esperado por todos, a cada
final de ano, como sendo a água que regará e dará vida às nossas famílias.
Abraços e beijos a todos.
75
A pertinência dessa mensagem está na conexão entre o papel da memória
afetiva/familiar ao processo de reencaixe enquanto um contraponto às relações sociais e às
trocas de informação deslocadas de contextos espaço-temporais específicos. Retoma-se
Giddens (1991), que avança sobre essa questão apontando para a ambivalência da
modernidade que “des-loca”, gerando a ansiedade existencial, porém também recria a
localidade, provocando sentimentos de segurança ontológica. Nesse caso, o advento da mídia
eletrônica e as alternativas atuais de transporte – para citar apenas os aspectos que se
relacionam aos citados na mensagem –, assim como acentuam o deslocamento “na medida em
que enfatiza a presença tão instantaneamente e a tanta distância” (Giddens, 1991, p. 142),
também reencaixa os indivíduos em uma nova experiência que almeja a fixidez combinada
entre a ausência e a presença.
3.5 O tempo de festejar
A dimensão temporal é marcada por uma cronologia e calendários predominantes na
cultura ocidental em que nela distribuímos e realizamos os projetos de nossa existência. Nessa
dimensão, incluem-se temporalidades relativas aos fenômenos reiterados, que se repetem ao
longo do tempo de modo cíclico – as comemorações de aniversário, de Natal, etc. – aos
fenômenos que não se repetem (morte e nascimento) e aos fenômenos que assumem a forma
extraordinária que marcam rupturas, que propõem a alternância, a transformação. Na
biografia de cada sujeito, a experiência da convivência familiar é reiteradamente vinculada às
festas familiares de calendário e não raro referências de ordenação da memória familiar nas
interações sociais. Como acentua Ellen Woortmann:
O tempo das festas promove aprendizagens específicas e são reconhecidas desde a
infância. O sentido festivo traz experiências positivas, pautadas pela ordem do
prazer, do extraordinário quando é colocada no contraponto ao cotidiano. É um
tempo que apreende o múltiplo – quando amplia as relações num número sem fim de
participantes – e apreende o complexo com a sua função social de incorporação, de
comunhão, de produção de uma coletividade, de (re)invenção de uma tradição
compartilhada (Woortmann, 1994, p. 4).
O traço evidente da festa é o de ser um ato coletivo e bastante complexo, uma vez que
nela estão envolvidos muitos componentes da vida social e, pela sua intensa diversidade, é
uma prática que busca reordenar, simbolicamente, a coletividade.
A referência ao tempo das festas é um fator importante no conjunto de elementos que
as estruturam. As Festas de Família estão marcadas por tempos diferentes, tendo em vista que
76
os membros vivem cotidianamente ritmos singulares que encerram estilos de vida interioranos
e citadinos. A busca por um tempo confortável à participação de todos às festas, o tempo
cíclico nos quais elas ocorrem são negociados e resultam da ação recíproca de possibilidades
individuais. Ou seja, as famílias, em geral, organizam-se em comissões que trabalharão para a
realização do próximo Encontro. Essas comissões são definidas nas “assembléias” que
ocorrem ao longo do evento, bem como a data que será realizada a próxima Festa. Na
entrevista realizada com José Só de Castro, organizador do Encontro da Primeira Festa da
Família Só, esta lógica de formalização do evento, se evidencia:
O 2º Encontro, realizado em 5 de maio de 2007, no Galpão Crioulo do Parque da
Harmonia, em Porto Alegre, com 80 participantes, foi produto de uma decisão da
Assembléia da família, realizada durante o 1º Encontro, onde foram eleitos os
membros de uma nova Comissão Organizadora. Na Assembléia, foi decidido que as
Festas seriam anuais e que nos anos pares seriam realizados num hotel, durante um
fim de semana, para que os participantes tenham tempo para conversarem e se
conhecerem melhor. [...] Na Assembléia ficou decidido também que os Encontros
serão realizados sempre o mais próximo possível do dia 6 de maio, que foi a data
em que os patriarcas da família casaram, o que deu origem à família Só (José
Antônio Só de Castro – organizador da 1ª Festa da Família Só e genealogista).
Cabe atentar para a eleição dessa comissão, uma vez que ao captar um fragmento da
entrevista, pode parecer uma decisão arbitrária, restrita à participação de poucos. No entanto,
as comissões são compostas, em geral, de parentes que representam cada um dos troncos
familiares. E esses membros, conhecedores das atividades daqueles que representam, são os
negociadores da freqüência dos encontros. Nesse sentido, o depoimento da organizadora da
festa da Família Valer:
A reunião da comissão optou por realizar a 2ª Festa da Família Valer de dois em
dois anos por questão de vários compromissos, e a comissão entendeu que para
conseguir organizar de forma melhor e trazer mais gente de outras ramificações
achou, por bem, realizar o 2º Encontro em 2007, daqui a dois anos (Noeli Valer –
organizadora da 1ª Festa da Família Valer).
Vimos nessa manifestação o comprometimento de disponibilidade de tempo de alguns
organizadores e da preocupação em reunir o maior número possível de participantes no
evento.
As Festas da Família ocorrem de dois em dois anos, acontecem em locais de acesso
mais facilitado a todos que residem no local dos nossos antepassados ou próximos a
ele. No ano de 2008, ocorrerá o 6º Encontro na cidade de Florianópolis, porque lá
concentra o maior número de familiares. Participam parentes de Curitiba, Cambe,
Maringá, Pato Branco, Cascavel, Porto Alegre, Canoas, Nova Prata, Erechim,
Santo Ângelo, Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Florianópolis, Campos Novos,
77
Videira, São José, Joaçaba – que é a cidade em que o vovô Carlos José e a vovó
Emma viveram muitos anos de suas vidas (Marinês Calliari Freiberger –
organizadora da 3ª Festa da Família Calliari).
Observa-se a importância ao local de referência da família. Reviver o tempo no espaço
significativo para a rede de parentes que descendem de um casal fundador promove a
aproximação com maior intensidade. Nesse mesmo enunciado, reconhece-se a intensa
mobilidade dos membros que se deslocaram para outras cidades e estados como resultado de
novas possibilidades de ascensão social, ora pela busca de melhoria de instrução formal
(curso universitário), ora pela necessidade de uma atividade profissional melhor remunerada.
Desse modo, pode-se afirmar sobre o tempo das festas como um conjunto de tempos
sociais entrecruzados, nos quais comportam tempos lineares (calendário), coletivos (tempo
dos antepassados) e cíclicos (sob o compromisso de fazer acontecer sem um final definitivo).
A realização das festas apoiada em uma programação prévia e divulgada aos participantes
com antecedência prepara o grupo para as etapas que comporão o ritual festivo, bem como
sinaliza os espaços atribuídos às diferentes gerações. Percebe-se a atenção especial às
gerações iniciais e finais da rede de parentesco presentes na Festa quando a programação
prevê o pronunciamento dos membros mais idosos ou há um cardápio e/ou um espaço lúdico
dedicado às crianças.
O espaço de interação narra o tempo da família, e o tempo familiar é narrado no
espaço da Festa. Nele são dispostos indícios, rastros que contam a trajetória familiar, ora em
imagens fotográficas, ora na exibição de um vídeo gravado em uma ocasião importante ou
elaborado para a ocasião em questão, ora pela árvore genealógica disposta na entrada do local
de celebração de modo a que todos contribuam com mais informações ou realizem as
correções necessárias. As narrativas de parentes de diversas gerações ou ainda de parentes por
afinidade são momentos especiais no evento. O momento solene é composto por depoimentos
que trazem antigas lembranças de experiências vividas por um conjunto de parentes presentes,
menção aos antepassados já falecidos, expressões diversas de parentes afins sobre como é
sentir-se pertencer a uma rede em que a solidariedade e o afeto se incluem e a constituem.
3.6 O lugar de celebração: um espaço de significação afetiva
O espaço físico é um aspecto importante para a realização dos rituais que compõem a
Festa, tendo em vista que qualquer ritual que ordena um tempo se realiza obviamente em um
78
espaço que, para apreender a realidade pela dramatização dos papéis que cada um exercitará,
dependerá, também, da manipulação do espaço.
Partindo da noção proposta por Martine Segalen e Françoise Zonabend (1999) de que
o espaço no âmbito familiar é um local de memória e um espaço de identidade familiar, o
momento atual marca, por vezes, as mobilizações entre os membros que se dispersam em
busca de novas oportunidades ou, ainda, pelos divórcios e recasamentos em que co-habitam
filhos de pais ou mães diferentes. Essas são situações que implicam inúmeras mudanças de
casa, no entanto, as famílias mantêm um lote de recordação – objetos, álbuns de fotografias,
papéis de família – que ligam seus membros às suas origens e à sua memória. As fotografias,
em geral, ocupam um lugar privilegiado sobre as narrativas da história familiar e são
evidenciadas em porta-retratos, suspensas em paredes ou mesmo restritas a um álbum de
família e têm, por função, o fortalecimento da memória do grupo. Em especial, aquelas que
retratam as solenidades ou as festividades são trocadas e distribuídas entre os membros da
parentela e contribuem significativamente para a integração e a manutenção da memória
familiar, “pelo fato de permitir perenizar o grupo familiar e de ter vindo inscrever-se na
solenização destes ritos de passagem que assinalam a vida do grupo” (Segalen; Zonabend,
1999, p. 127-8).
Uma das dimensões simbólicas recorrentes na organização da festa e escolha do
“lugar” do evento é a força de significados que o local escolhido pode compor para a
vinculação da memória familiar a um “território mito” (Maffesoli, 2006) e com eficácia para
expressar o conceito de “unidade familiar”. Assim, em todas as entrevistas, há de alguma
maneira ou outras versões que atribuem diferentes sentidos ao quesito “lugar”:
A festa ocorrerá em Taquari, que é o nosso lugar de origem. Lá é o berço da minha
avó e do meu avô. Fica mais no interior, em Bom Retiro do Sul, em um clube que a
família freqüenta. Tem uma igreja ao lado e um salão. Primeiro vai ter a missa e
depois a festa será no salão. [...] Uma grande parte permanece morando no campo,
são arrozeiros. A família é tradicional naquela região (Paulo Rocha – organizador
da Festa da Família Rocha).
Em sua maioria, as famílias pesquisadas têm a sua origem no interior. Realizar a festa
nas localidades de origem é reordenar a memória compartilhada de duas ou mais gerações e
(re)construir às gerações posteriores a possibilidade de ampliar a sua compreensão sobre “as
estruturas espaço-temporais através das quais a memória [de seus antecessores] configura-se
como construção de um ato de duração” (Eckert; Rocha, 2005, p. 154). Estar no local “de
origem” que sustenta esse valor de “território-mito” e local fundador do enraizamento é, em
79
sua dimensão simbólica, o lugar-memória (Le Goff, 2003) que dá início a uma história
parental. Reconhecido, então, como mais um elemento de aprendizagem e de reordenação
dessa história que se dispersa pela mobilidade de seus agentes, o lugar torna-se emblemático
na composição dos rastros a serem configurados em uma reciprocidade de percepções sobre
uma identidade familiar a ser dimensionada pelo evento festivo.
Por fim, tendo em vista que em meio a grandes transformações sociais, resultado do
processo de globalização, a busca de contextos de ação mais tradicionais não está restrita ao
evento em questão, como indica Leonor Arfuch (2008). Segundo a autora, o mundo na
contemporaneidade povoou-se de ritos do não-esquecimento, da rememoração, envolvendo
grandes comemorações, reinscrição valorativa e crítica expressas em narrativas fílmicas, de
acontecimentos do passado, de projetos de museificação, no resgate de cotidianidades, etc.
80
Capítulo 4
Memórias em jogo no tempo das Festas de Família
No capítulo anterior, foram apontadas as novas noções de temporalidade e
espacialidade como aspectos que caracterizam a sociedade moderno-contemporânea. Os
estudos mais recentes sobre memória têm mostrado deslocamentos conceituais significativos,
relacionados a um novo sentido de tempo passado que deixa de ser lembrado objetivamente
como passado, descolado do presente, para ser a sua presença no presente e um projeto de
devir.
O estudo das memórias familiares em Festas de Família tem como sustentáculo a
noção de memória coletiva que é vivida, interpretada e reordenada pelos membros que
participam nos eventos nos papéis de organizadores dos mesmos ou como organizadores da
genealogia familiar, ou, ainda, enquanto participantes das festas. A partir dessa premissa,
buscaram-se as relações dos jogos da memória, tendo como fios condutores as noções de
“memória transgeracional” em Halbwachs (1990) e “memória compartilhada” em Ricoeur
(2000), acionadas nas formas narrativas construídas em torno do evento Festa e dos tempos
ordenados da memória familiar. Esta perspectiva narrativa é dimensionada no esforço de uma
“etnografia da duração” (Eckert e Rocha, 2001).
4.1 A memória coletiva e transgeracional
Maurice Halbwachs traz em sua obra Les cadres sociaux de la mémoire (1925) a
afirmação segundo a qual o indivíduo que recorda, tem a sustentação de sua lembrança nos
quadros sociais que organizam e dinamizam a memória coletiva, ou seja, é no contexto social
que se vivencia e se apreende as categorias sociais, tais como as representações sociais do
tempo e do espaço, as classificações de objetos e da realidade exterior, os sentidos atribuídos
às práticas cotidianas, as relações que mantém com a memória dos demais membros de
mesmo ambiente social. Nesse sentido, rememora-se por meio dos ‘quadros sociais da
memória’ ou noções comuns que se encontram dentro de nós, como também nos demais de
um mesmo grupo social; e “somente assim podemos compreender que uma lembrança possa
ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída” (Halbwachs, 2004, p. 39). Nos estudos
posteriores, o autor mantém a premissa que a força e a duração da memória coletiva estão
justamente na sustentação de um grupo social. Por outro lado, traz o reconhecimento de que é
o indivíduo que recorda, enquanto membro de um grupo, e “cada memória individual é um
81
ponto de vista sobre a memória coletiva” (2004, p. 55), suscetível a transformações de acordo
com o lugar que o indivíduo ocupa no grupo que também, por sua vez, pode alterar segundo
as relações que esse indivíduo mantém com o grupo.
Os estudos geracionais desenvolvidos por Lins de Barros (1987), apoiados na teoria
halbwachsiana, são elucidativos sobre a importância do grupo familiar como sede de
recordações dos indivíduos e o espaço em que essas recordações podem ser avivadas (Lins de
Barros, 1987, p. 74). Recordações essas que para Halbwachs estão alojadas no inconsciente,
mas acionado pela força da interação onde cada um sabe como trabalhar a memória, pois “as
marcas do caminho já estão presentes nos indivíduos” (Barros, 1987, p. 76).
Não obstante, para Halbwachs, como bem mostra Paul Ricoeur (2000), a
familiarização com a memória vivida é sobretudo uma experiência intrageracional, ou seja,
uma experiência vivida transmitida de geração para geração
34
. Essa familiarização, ou um
sentimento de pertença, segundo o autor, consiste em um percurso iniciático pelos círculos
concêntricos que são o meio familiar, as camaradagens, as amizades, as relações sociais de
parentesco e a descoberta do passado histórico pela interpretação da memória dos ancestrais.
Portanto, os acontecimentos aos quais as lembranças aludem sejam individuais e tenham sido
vivenciados por sujeitos isoladamente, essas lembranças permanecem coletivas porque são
compartilhadas e reproduzidas em uma comunidade afetiva.
O reino dos contemporâneos serve de eixo: ele exprime “a simultaneidade ou a quase
simultaneidade da consciência de si do outro com a minha”; em seu aspecto vivenciado, ele é
marcado pelo fenômeno de “envelhecer junto”, que põe em sinergia duas durações em
desdobramento. Um fluxo temporal acompanha o outro, enquanto eles duram juntos.
4.2 A memória compartilhada
A experiência do mundo compartilhada repousa numa comunidade tanto de tempo
quanto de espaço. A originalidade dessa fenomenologia da memória compartilhada reside
principalmente na superposição dos graus de personalização e, inversamente, de anonimato
entre os pólos de um “nós” autêntico e do “se” (partícula apassivadora), do “eles outros”. Os
34
A noção de gerações proposta por Karl Mannheim (1928) é significativa em vista do avanço que o autor traz
sob a posição comum em considerar as gerações como os indivíduos nascidos em um mesmo tempo cronológico
com a possibilidade de presenciarem os mesmos acontecimentos ou vivenciarem experiências semelhantes. Para
ele, acima de tudo, são indivíduos capazes de processarem esses acontecimentos ou experiências de forma
semelhante. Ou seja, os diferentes grupos etários vivenciam tempos interiores (Dilthey) diferentes em um mesmo
período cronológico e a identificação geracional implica em formas semelhantes de ordenação e estratificação de
acontecimentos e experiências vivenciadas (Sousa, 2006).
82
mundos dos predecessores e dos sucessores estendem duas direções do passado e do futuro,
da memória e da expectativa, esses traços notáveis do viver juntos decifrados primeiro no
fenômeno da contemporaneidade (Ricoeur, 2007, p. 140).
Com base nas entrevistas desenvolvidas e nas etnografias das festas, observou-se a
intensidade das experiências vivenciadas pelas diferentes gerações, ora nos relatos das férias
que reuniam os familiares em uma mesma localidade e vivenciam experiências entre as
diferentes gerações, ora na organização de festas de “primos” que ocupam uma posição
geracional específica em um dado momento sócio-histórico familiar, ora na transmissão de
bens simbólicos ao mostrar um tacho herdado da avó junto com a receita do doce que nele era
feito. Ou ainda, quando parentes por afinidade assumem a organização de homenagens ou
relatam publicamente o prazer de pertencer a uma família “por escolha”.
Sendo assim, trata-se de dar conta das trocas sociais em que essa memória é vivida no
círculo familiar, mas igualmente relacionada a círculos mais amplos. Ou seja, o estudo da
narrativa dá conta tanto das relações entre os próximos, aqueles do convívio familiar,
parental, ou de amigos, mas também entre redes mais amplas, grupos sociais outros de
referência como os movimentos de uma geração (feminismo, luta de classes, etc.), os meios
de comunicação de massa (televisão, radio, etc.), as políticas econômicas de instituições
regionais, nacionais e internacionais, por exemplo. Dessa forma, pode-se falar de uma
“memória compartilhada” baseada nas relações que alimentam os sentimentos de
pertencimento (grupo de amigos, grupo de igreja, grupo político, grupo de vizinhança, etc.),
em grupos considerados distantes e diferenciados, mas compartilhados em suas mudanças na
conjuntura histórica. Nesse sentido, diz Marc Augé, “a relação ao tempo se coloca sempre
como singular e plural” (Augé, 1998, p. 81) ou, como pondera George Balandier, “deve-se
relacionar as representações sociais às transformações estruturais globais, muitas da quais de
caráter revolucionário, como o feminismo, a chamada revolução cultural dos anos 60, etc.”
(Balandier, 1983, p. 107). Pois não é só a memória de um indivíduo que está em jogo, mas a
memória “de um” é também a memória “de outro”, nos ensina Ricoeur (2000), portanto, de
um “nós”.
Nesse sentido, as memórias compartilhadas percorrem tempos que situam as
trajetórias familiares e são responsáveis pela transmissão constante dos bens culturais
acumulados em um movimento claro do caráter dinâmico e interativo das gerações. A
sucessão de gerações é responsável, então, pela revisão continuada sobre o que deve
permanecer em detrimento daquilo que deixou de ser significativo ou necessário. Por sua vez,
observa-se a potencialidade das gerações nascidas em uma mesma época histórica, cujas
83
experiências familiares vivenciadas em conjunto denotam a identificação sobre as formas de
significar os acontecimentos de forma semelhante.
4.3 As memórias (intra e trans)geracional e compartilhada nas Festas
As Festas de Família tiveram como a motivação amplamente anunciada em vários
grupos familiares perscrutados a preocupação em transmitir aos jovens sentimentos de
pertença, uma identidade familiar e o relacionamento mais próximo e a convivência com
membros da rede de parentesco. Trago dois exemplos entre muitos que surgirão ao longo da
tese: “o objetivo é a união, passar as tradições e manter um intercâmbio que facilite a adesão
dos mais jovens” (Dalva Brust); ou ainda: então quem sabe a gente reúne pra juventude se
conhecer, pra juventude não se perder, saber as raízes, saber quem foi quem não foi” (Lúbia
Scliar Zilberknop). Nessa direção, Lins de Barros (1987) destaca o papel e a importância das
gerações mais velhas em relação às mais novas:
A transmissão de bens simbólicos às gerações seguintes situa a família como o lugar
dessa passagem, fazendo de cada descendente o alvo e ao mesmo tempo o veículo da
preservação dos valores familiares. Em torno dessa idéia de transmissão de valores,
está presente a noção de um tempo que se repete, de um tempo cíclico. Para essas
pessoas, preocupadas em marcar seu lugar social e sua identidade pela inserção na
grande família, o tempo do ciclo dessa grande família é a referência temporal
(Barros, 1989, p. 35).
As gerações mais velhas, principalmente a geração dos avós, assumem grande parte da
tarefa de transmissão dos valores familiares – ora na forma narrativa, ora na forma de rastros.
Essa atividade não é passível de conflitos e resistências, tendo em vista que as dificuldades
existentes estão relacionadas às orientações ou visões de mundo distintas de cada geração, de
modo que a superação dessa tensão implica em uma interação
35
e troca de papéis em que cada
um alterna-se na condição de aprendiz e de mestre. Portanto, a “aquisição” dos bens culturais
historicamente acumulados nos grupos familiares tem na geração dos avós a “conexão” dos
valores familiares, despertando nas gerações mais novas esse conhecimento, possibilitando as
reinterpretações e estabelecendo concretamente os vínculos de participação em uma prática
coletiva por meio de “forças de cooperação, afeição, ajuda mútua e convergências de
interesses” (Simmel, 1983, p. 126-7).
35
Próximo à perspectiva simmeliana (1983) de interação (sociação), isto é, a complexa interação existente entre
distintos fatores constitutivos de gerações, reconhecendo a particularidade de tratar-se de um fator de
transmutações e reordenações históricas, ao se constituir numa parte aderente à sociedade.
84
As narrativas das trajetórias de vida, dos vínculos familiares, das relações internas dos
grupos de pertencimento e suas práticas sociais afetivas, as categorias sociais estruturadas são
aspectos que levam à compreensão da moldura social (Halbwachs) e do quadro de referência,
que se relacionam às memórias evocadas.
Por sua vez, compreende-se a geração de avós como guardiã da memória, seguindo o
termo adaptado por Lins de Barros (1987) ao idoso, conceituado por Halbwachs (1925)
36
como “guardião das tradições”. Não obstante, pensar a tradição requer definir que a
reatualização da mesma é o que “autoriza” a sua permanência. Encontra-se na noção de
“duração no tempo”, segundo Eckert e Rocha (2001), as lembranças e reminiscências de um
tempo vivido que são reexperienciadas na medida em que integram um tema afetivo por meio
da intenção em um presente. Trata-se de memória, de acordo com a teoria de Gaston
Bachelard (1996).
Portanto, os relatos que se estabelecem entre as gerações de avós e netos trazem
sentido ao tempo familiar, quando o tempo narrado inscreve como duração os fatos passados
que são apreendidos sob as prerrogativas do tempo presente. Os avós, enquanto narradores do
fluxo do tempo familiar, adaptam-se a novas características ao “narrador” em Walter
Benjamin (1987):
O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a
relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes.
Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as
histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece
enquanto ouve a história (Benjamin, 1987, p. 200-1).
A idéia de Benjamin sobre a morte do narrador traz a dramaticidade que a
modernidade promoveria diante da falta de agência do homem sobre os processos de perda de
sentidos decorrentes da individualização a que está submetido. A ruptura de vínculos sociais,
a falta de controle do indivíduo sobre o seu destino, a redução da vida ao imediatismo do
presente surgem como ameaças à continuidade que se apóia na memória, uma vez que é ela
que permite a percepção de pertencimento a um mundo que engloba e constitui os indivíduos.
No entanto, os narradores ressurgem em outros formatos diferentes daquele que Benjamin nos
36
“Nas tribos primitivas, os velhos são guardiães das tradições, não só porque eles as receberam mais cedo que
os outros, mas também porque só eles dispõem do lazer necessário para fixar seus pormenores ao longo das
conversações com os outros velhos, e para ensiná-los aos jovens a partir da iniciação. Em nossas sociedades,
também estimamos um velho porque, tendo vivido muito tempo, ele tem muita experiência e está carregado de
lembranças. Como, então, os homens idosos não se interessariam apaixonadamente por esse passado, tesouro
comum de que se constituíram depositários, e não se esforçariam por preencher, em plena consciência, a função
que lhes confere o único prestígio que possam pretender daí em diante?” (Halbwachs apud Bosi, 1995, p. 63).
85
fala. As narrativas são dadas através dos objetos, dos gestos de outros, de imagens, de rastros
orientados por narradores. Nos grupos familiares, há indivíduos que “narram” as tradições que
constituem a trajetória familiar, compartilhando a experiência e dando sentido ao
pertencimento comum. Por sua vez, o espaço festivo é repleto de rastros e indícios que
comunicam uma identidade e reforçam um pertencimento. A composição que estrutura a
mensagem é estrategicamente distribuída ao longo do ritual.
Nessa direção, obtemos a memória eminentemente narrativa, observada enquanto
expressões verbais e não-verbais, que articula o acontecimento de sua enunciação, cujas
temporalidades disjuntas abstrai esse acontecimento no tempo, e abre espaço à
interabilidade
37
da citação, à possibilidade de diferenças quando recitadas em outros
contextos. Esse caráter de “ajuste” no tempo da sua enunciação traz a força performativa da
memória, enquanto possuidora da capacidade de instaurar uma realidade como momento
único, situado em um contexto específico e em relação àquele que escuta.
Outro fator relevante sobre as memórias a serem compartilhadas, observado nas festas,
trata de o que enunciar sobre a história familiar. A seletividade dos fatos, ou seja, a escolha de
alguns em detrimento a outros a serem narrados, atendem a uma expectativa de “elogio à
família”, com o intuito de estabelecê-la como valor exemplar que orientará seus membros
para o futuro, sendo, desse modo, atribuído uma dimensão pragmática à memória. Trata-se,
também, de colocar a dimensão de herança do valor-família, de modo que a memória
transforma-se em projeto, quando seus membros são colocados em uma situação de dívida, de
devedores daquilo que são aos que os precederam e de responsáveis em mantê-la nas gerações
futuras, como atesta a fala de Noeli, organizadora da Festa da Família Valer:
[...] nesse momento se estamos aqui é porque antes de nós existiu alguém, e alguém
que também teve esse sobrenome que nós temos, alguém que tem essa origem que
nós temos. Então é necessário para a nossa história, para a história da nossa
família, para os que vierem depois de nós, conservar, mantermos vivo dentro de nós
a nossa origem, a nossa história, que sintamos orgulho, que a gente possa se sentir
orgulhosos de ser e pertencer à família Valer; essa família Valer tem uma história
em Nova Bréscia, que tem uma história por todo esse Estado, por todos os recantos,
que tem uma história da origem italiana aqui no Brasil (Noeli Valer).
Retomo Ricoeur (2007) para refletir em que medida a memória compartilhada
ressurge nos indivíduos enquanto memória individual. Discorre o autor que “é a partir de uma
análise sutil da experiência individual de pertencer a um grupo, e na base do ensino recebido
37
Um texto é lançado no tempo e no espaço a partir de uma cena originária que não se repetirá mais, a não ser
em diferença para o outro. A noção de iterabilidade proposta por Jacques Derrida (1990) pode ser lida como a
exploração da lógica que liga a repetição à alteridade.
86
dos outros, que a memória individual toma posse de si mesma” (Ricoeur, 2007, p. 130). O
testemunho proferido por alguém para ser apreendido por outro (lembranças compartilhadas
que atestam que pertencemos a um grupo, que nunca estamos só), mas que, no entanto, os
acontecimentos testemunhados já estão em nós como lembranças compartilhadas, assume a
oportunidade de nos recolocarmos em pensamento no interior do grupo familiar. Ou seja, “do
papel do testemunho dos outros na recordação da lembrança passamos assim, gradativamente,
aos papéis das lembranças que temos enquanto membros de um grupo” (2007, p. 131). Essa
situação, por sua vez, exige de nós o deslocamento de ponto de vista, do qual somos capazes
pelo reconhecimento da lembrança que, nessa ação prática (e não intuitiva) ou num “presente
de iniciativa”, é memória.
87
PARTE II
Capítulo 1
As Festas de Família como “modismo em tempos de globalização”
A iniciativa sobre a realização das Festas de Família como “modismo em tempos de
globalização” ou a “Festa Grande”, na voz de muitos entrevistados, é, primordialmente, a
reestruturação da genealogia em busca de uma origem, de laços de parentesco e de familiares
ainda desconhecidos e dispersos pelo mundo. Grande parte dos membros das famílias que têm
essa iniciativa busca refazer as linhagens que compõem a rede de parentesco de modo a
encontrar os parentes mais remotos e, se possível, reivindicar a cidadania européia como parte
do projeto de vida e alargamento de mercado de trabalho para seus descendentes. As festas
nessa tipificação são espetaculares, grandiosas e adotam meios tecnológicos atuais para a
reordenação do parentesco, para comunicação e divulgação da família e da Festa. Os meios
atuais referem-se desde o uso da comunicação mais tradicional – radiofônica e jornalística –
até o uso das tecnologias multimídia e interativas.
A busca pelas linhagens
38
transcende as fronteiras nacionais e, em alguns casos, há o
deslocamento de parentes que vêm de diferentes lugares do mundo. A intenção é cooptar o
maior número de participantes possível. É importante ressaltar que as festas nessa modalidade
são dispendiosas aos participantes e, com isso, compreende-se que são famílias que contam
com confortáveis recursos materiais. Isso não indica que essa condição se estenda a todos os
grupos ou linhagens. Desse modo, a busca por uma forma ou local para a realização da Festa
contempla essa questão.
Narrar a trajetória dos antepassados é um momento épico do evento. Ele denota um
trabalho minucioso e, quanto maior for a quantidade de informações que são trazidas ao
conhecimento do público, maior é o prestígio atribuído àqueles que se responsabilizaram pela
reordenação do parentesco. O meu interlocutor Castro, organizador da Festa da Família Só,
traz um instigante depoimento desvendando as motivações para o início da organização de um
encontro familiar:
38
Recorro à análise adotada por Duarte (1994: 34) sobre a reordenação da linhagem familiar como um fator
relevante à realização da Festa nessa tipologia. Ele atribui às elites a preocupação com essa ordem, como uma
forma de manter seu patrimônio – hoje muito mais direcionado ao ‘nome de família’, que efetivamente um
patrimônio material.
88
A idéia de se reunir a família, apesar de acalentada durante muitos anos por vários
familiares da geração anterior, nunca ocorreu. O 1º Encontro, realizado no Hotel
Dal’Onder, em Bento Gonçalves, de 5 a 7 de maio de 2006, com 104 participantes,
foi produto de um contato meu com uma prima, Maria José, via internet. Ela estava
com um filho morando no exterior e estava pesquisando a possibilidade de obter a
cidadania portuguesa. Como os seus pais não tinham as informações necessárias,
sua mãe sugeriu que ela entrasse em contato comigo, pois ela sabia que eu havia
dado continuidade à pesquisa genealógica da família, iniciada pela minha mãe.
Depois de passar-lhe as informações que eu tinha, sugeri à Maria José
promovermos um Encontro da Família e ela topou. Ficamos uns dois meses
trocando mensagens para ajustarmos o foco. Depois de termos certeza de que
nenhum de nós estava querendo auferir vantagens com o evento e que nosso
objetivo era pura e simplesmente oportunizar o encontro de familiares que há
muitos anos não se viam, fizemos uma primeira reunião para nos conhecermos, pois
não nos víamos desde crianças. Depois desse primeiro encontro, convidamos
representantes de outros ramos para integrarem a Comissão Organizadora. A
Comissão foi que planejou e operacionalizou todo o Encontro (José Antônio Só de
Castro – genealogista e organizador da Festa da Família Só).
A cidadania européia é desejada, de modo geral, para atender uma demanda das
gerações mais jovens. Claramente percebida como um movimento específico no interior do
fluxo migratório que respondia, inicialmente, a uma maior integração entre as culturas dos
países membros da EU (União Eurepéia) para reforçar a base da coesão política européia, a
aquisição da cidadania européia por brasileiros descendentes de imigrantes que partiram nos
séculos XIX e XX de países europeus foi rapidamente almejada pelos jovens como uma
oportunidade de ascensão, de estudo, de novas experiências e bons empregos em países com
moedas fortes. Houve um grande incentivo do governo italiano
39
a descendentes sul-
39
O governo italiano, por meio da Associação Italiana, instituiu os Circolos – “departamentos” junto às
associações italianas – para divulgar e encaminhar solicitações de dupla cidadania. Houve uma verdadeira
corrida pela oportunidade, percebida, inicialmente, como a grande e possível chance de ascender socialmente,
conforme o chamamento de um site da internet: “Quais as vantagens de ter a Cidadania Italiana”. Diz ele:
“Se você vem acompanhando os noticiários, já faz idéia do que passam os brasileiros que residem no exterior.
Viver ilegalmente fora do Brasil, ou ainda com vistos de estudante e turista, não é tarefa fácil, deixando o
cidadão brasileiro sujeito às práticas abusivas das autoridades públicas, principalmente, dos países da América
do Norte e da Europa. Não são poucos os casos de deportação de estrangeiros em todo o mundo, o que impõe ao
imigrante ilegal humilhações e condições precárias de sobrevivência nesses países. A nossa preocupação é com
você que está ilegal, ou que está pensando em se tornar um, em qualquer lugar do mundo, sem saber que tem
direito a Cidadania européia herdada de seus antepassados. Portanto, antes de sair do Brasil com visto de
estudante ou mesmo pretendendo entrar ilegalmente em algum país, pesquise se você tem direito a Cidadania
Italiana, evitando grandes problemas e danos irreparáveis.O direito à Cidadania Italiana abre novos horizontes a
todos aqueles que têm a oportunidade de exercê-lo, deixando para trás todas essas dificuldades e temores.
Basicamente, não há diferença entre a Cidadania reconhecida ao descendente e aquela dos que nasceram na
Itália. Os direitos derivados da Cidadania obtida não diferem em nada daqueles de que são titulares os italianos
natos. De fato, os direitos a saúde, educação, os benefícios sociais e previdenciários a que tem direito os
cidadãos italianos são iguais, independentemente da origem da sua Cidadania.Ainda, como a Itália pertence à
Comunidade Européia, o cidadão italiano não tem restrições para a locomoção, moradia, trabalho, estudos e
negócios entre os países Europeus. Alem disso, o cidadão não sofre restrição quanto à sua permanência em
outros países que não sejam europeus, como os Estados Unidos e o Canadá, por exemplo.Não se pode negar que
o reconhecimento da Cidadania Italiana traz benefícios, facilidades e vantagens. Mas para isso, você deve
concentrar suas energias na pesquisa de suas raízes, juntando todos os dados necessários à verificação,
reconhecimento e, consequentemente, usufruto de seus direitos” (http://cidadaoeuropeu.com.br – 14.11.2008).
89
americanos e a busca pela dupla cidadania estendeu-se a outras etnias, porém, com inúmeras
restrições. Esse fenômeno será contemplado adiante.
No entanto, importa chamar a atenção que esse fenômeno implica a noção de projeto
que se estende às famílias como mais um dispositivo na sua trajetória de manutenção do
prestígio na escala social. O projeto tem desdobramentos no indivíduo, mas que se apresenta
como resultante de um “campo de possibilidades circunscrito histórica e culturalmente”
(Velho, 1997, p. 69). Percebido como estratégia, o projeto de dupla cidadania atende ao
desejo de retomar ou dar continuidade à ascensão social e atribuição positiva à manutenção do
status familiar. Retomo Duarte (1994) sobre o espírito corporativista que traça o perfil das
famílias das camadas altas da sociedade. Essa abordagem é fortemente reconhecida quando há
a distinção da linhagem por meio de um valor atribuído e revelado como constituinte daqueles
que carregam o nome de família ‘tal’.
[...] A família tinha um traço em comum: eram muito cultos. Uma cultura que não
resultava de estudos no colégio ou na universidade – apenas um dos irmãos tinha
diploma superior –, mas de uma tradição que vinha de longe, característica de um
grupo humano que tinha um livro, a Bíblia, o seu grande denominador comum [...]
(Moacyr Scliar – ZH, 26.03.2006, p. 6).
[...] a crônica do Moacyr, onde ele fala que a família gostava muito de cultura, eu
não gosto muito de dizer que o pessoal era culto parece que a gente está querendo
se exibir. Eu sou muito avessa a esse tipo de coisa, mas realmente para eles era
muito importante, ter um livro era muito importante, fazer parte de um grupo teatral
era muito importante, assistir a um concerto... meu pai gostava muito de ópera,
tinha muito ouvido pra música sabe? (Lúbia Scliar Zilberknop – organizadora do 1º
Encontro da Família Scliar).
O nome de família, nas Festas sugeridas, traz o sentido de reordenação de linhagem
como “tanto algo a ser herdado, transmitido quanto a algo construído, adquirido” (Abreu
Filho, 1981, p. 141). Essa categoria nome de família é analisada pelo autor como resultante
das conexões de sentido de sangue, raça e moral no interior das relações sociais. Está no
sangue, enquanto um “vetor de diversas possibilidades” aliadas a qualidades morais, e está no
nome, enquanto “uma cristalização social dessas possibilidades que devem ser
permanentemente atualizadas”. Por sua vez, a raça refere-se, “além de aspectos físicos, é uma
disposição de vida, uma energia vital. [...] É um componente do sangue que assegura essa
disposição de vida e que não se confunde com as qualidades morais – também transmitidas
pelo sangue – que qualificam essa disposição” (1981, p. 140-2).
Dentro dessa expectativa, pode-se acenar à continuidade dos laços familiares e à
reativação das disposições à vida que se apresentam “diluídas” frente às novas demandas
90
cotidianas. Os encontros familiares aconteciam em situações muito pontuais e que havia um
envolvimento com outras relações exteriores às fronteiras do parentesco. Os casamentos e os
velórios eram situações recorrentes na fala dos entrevistados que promoviam o encontro; no
entanto, distanciavam-se da idéia de um espaço íntimo e exclusivo para celebrar com os seus.
Nós, em novembro de 2004, a gente foi a um casamento em Curitiba, da filha da
Vera... da neta do Tio Manuel. E aí, como a Vera também ficou muito sozinha
porque morreu o pai, morreu a mãe, as duas irmãs, então ela é a única
remanescente daquele ramo. Claro, tem a família da mãe dela lá que é grande, mas
a gente resolveu, assim, fazer uma festa. Foi um grupo grande daqui pra dar uma
força lá e foi muito legal. Aí na festa o Mauro Keiserman, que é filho do Naum, esse
que é médico como o Mauro também é médico reumatologista, aí ele disse assim:
“Gente, por que a gente não se reúne e não faz um encontro da família? A minha
preocupação é que os meus filhos não conheçam as pessoas, eles se dão às vezes
com filho do fulano que é amigo deles, que tem um apelido lá não sei qual, mas
ninguém sabe que ele é primo terceiro ou não sei o que... então, quem sabe a gente
reúne pra juventude se conhecer? Pra juventude não se perder, até saber as raízes,
saber quem foi, quem não foi?” (Lúbia Scliar Zilberknop – organizadora do 1º
Encontro da Família Scliar).
A idéia de continuidade das relações familiares permeia as motivações à realização
dos eventos. Essa premissa apreende não apenas o aspecto da afetividade, mas também – e
muito fortemente – a sua funcionalidade nas estratégias sociais. A ampliação das relações
entre parentes também responde ao projeto de manutenção ou de ascensão sociais, tendo em
vista que esta indica a possibilidade de reciprocidades, de novas respostas a necessidades
ditadas pelas novas condições de existência na contemporaneidade.
O interesse era sempre buscar essa genealogia, as origens. Essa origem sempre me
interessou, afinal de contas sempre indaguei: por que o meu bisavô veio pra cá?
Que houve lá? Como era a situação da Alemanha naquela época, a Confederação
Germânica naquela época? O que me interessou foi a raiz, buscar as raízes, isso me
levou até lá muito tempo depois... e senti tanto [não ter ido antes]... tive bolsa de
estudos na Europa em cinqüenta e seis, cinqüenta e oito, depois sessenta e seis
sessenta e oito. Fiquei em Paris, bem pertinho. Tive contatos com famílias na
Alemanha, conheci um irmão alemão... morou nessa casa [mostra a foto da casa],
até hoje mantenho correspondência. Por e-mail é mais fácil. Bem, e não sabia onde
buscar, onde o meu bisavô viveu... não tinha a mínima noção... não interessava,
estávamos aqui, mas quem tem família: são os filhos, são os netos... olham pra
frente, do presente e pra frente... e eu aconselhei indagar pra trás (Irmão Justo –
genealogista da Família Flach).
Os estudos desenvolvidos por Lins de Barros acenam para a velhice como um período
que não os impede de construir projetos de vida (2003). Esses projetos são construídos no
presente, claramente vinculados à trajetória e à biografia dos sujeitos. No caso específico do
Irmão Justo, contando na época com “setenta e quatorze anos” – como costuma brincar ao
referir-se à sua idade –, o projeto buscava dar conta da reordenação do seu parentesco, tendo
91
como referência os motivos que trouxeram seu avô da atual Alemanha para o Brasil. Esse
projeto vai além da ordenação da sua genealogia. Ele busca, de igual modo, manter os
vínculos afetivos que cedo, aos oito anos de idade, teve que se restringir em vista de seu
ingresso na escola com regime de internato e à “carreira” de irmão lassalista
40
.
O viver longe da família? Nos primeiros dias (sobretudo, nas primeiras noites) dava
um aperto no coração. Chorei bastante... Amenizou rapidamente, pois me
‘enturmei’ bem com os colegas, os estudos, jogos, passeios...
Conviver esporadicamente com a sua família desde quando criança e ter aderido a uma
trajetória vinculada ao celibato; Irmão Justo encontra na produção da genealogia as raízes e os
vínculos que sua biografia restringiu. Observa-se, portanto, a reconstrução do tempo passado
como uma possibilidade do sujeito situar-se na rede familiar, permitindo-lhe identificar-se no
tempo e no espaço. A história familiar traz a oportunidade de se saber quem se é e de onde se
vem. É o sentido de estabilidade, de pertencimento que funcionam como um sistema de
identificação.
O tempo histórico é pensado a partir de um herói fundador, aquele que chega nessas
terras e enfrenta todo um conjunto de condições adversas, desde uma natureza hostil ao atraso
que ele terá que alterar. Vários membros da “nova burguesia” recentemente urbanizada
organizam grandes festas familiares, para as quais são convidadas centenas de parentes
dispersos pelo país, e mesmo de fora dele. As festas homenageiam um “patriarca”, o herói
civilizador já referido, imigrado da Alemanha [e de outros lugares da Europa]. A primeira
delas se realiza sempre que possível na casa ancestral localizada numa colônia. As seguintes
podem se realizar em outras localidades em que se encontram representantes (sempre bem
sucedidos) da árvore (Woortman, 1994, p. 4 – grifo meu).
O lugar da primeira festa também é significativo, e compreendo que a dimensão
temporal e espacial é uma estratégia eficaz na rememoração e no aprendizado que as festas
intencionam. Comemorar na região de origem traz as referências espaciais pontualmente
localizadas, nas quais a memória circula. O espaço assume a condição de sentido, porque ele
traduz um tempo nele vivido e, por sua vez, os arranjos entre tempo e espaço favorecem a
(re)construção de uma memória no presente que visa à duração na memória coletiva.
40
Para a dissertação de Mestrado (PPGAS/UFRGS-2002) “A cidade narrada na memória de velhos habitantes de
Teutônia (RS): um estudo etnográfico da memória compartilhada sobre as experiências transmitidas na relação
entre avós e netos”, convivi intensamente com uma comunidade de descendência alemã no vale do Taquari, em
que o projeto familiar das antigas famílias de agricultores, até meados do século XX, definia o futuro dos filhos
distribuindo-os entre as atividades de agricultores – reafirmando a tradição familiar na profissão – e a carreira
religiosa, enquanto um valor constitutivo da identidade social.
92
A primeira festa foi em Horizontina. Um dos três irmãos que vieram da Alemanha
ficou em Horizontina, outro em Candelária e o outro em Ijuí. Os que moram lá são
daquele tronco, e cada membro de um tronco ficou de contatar os seus parentes. Eu
fiquei com os de Candelária. Em 1995 foi em Ijuí, depois em Candelária e assim por
diante. Em Candelária já ocorreram duas, em Santa Rosa também... Inicia com o
café da manhã, depois um grupo vai ao cemitério onde estão enterrados os
antepassados, depois há uma breve reflexão feita pelo Pastor Eckert e inicia o
almoço (Ivo Mundstock – organizadores da Festa e genealogista).
As Festas na modalidade em questão reconhecem o lugar de origem, no entanto, em
sua maioria, adotam hotéis ou clubes da região. A essa conduta são atribuídas diferentes
justificativas: a de poder permanecer mais tempo juntos e poder conhecer uns aos outros mais
profundamente; a de que há um serviço já especializado nas redes de hotéis, que facilitam na
organização do evento; a de que muitos parentes moram distantes da região e ficariam
hospedados no hotel, então aproveitam esse espaço para unir as duas situações. Enfim,
independentemente das justificativas, o fato é a adoção das estratégias de consumo de um
mercado que se adapta às necessidades da vida cotidiana, ou ainda, essas facilidades
promoverem a reunião das famílias. Não se trata de colocar preponderância a um a outro
fenômeno, mas chamar a atenção sobre a atualização das formas expressivas de um espaço –
o familiar – até bem pouco pensado como pura “tradição”.
1.1 A Festa da Família Brust
O conhecimento que tenho sobre a comemoração da Família Brust vem das
informações que obtive através da Vó Selma e de Dalva, a organizadora do evento. As duas
relataram em situação de entrevista pessoal e por telefone e e-mail, respectivamente. As duas
personagens são significativas e importantes no contexto da Festa: a primeira por ser o
membro mais longevo da família e a segunda pela sua posição de liderança e iniciativa em
organizar e reordenar a família Brust a partir de informações obtidas em sua atividade
profissional.
1.1.1 Histórias da Vó Selma e do Vô Idílio: a experiência de ser uma parenta afim
A família Brust tem na figura da Vó Selma o início de toda a minha trajetória de
investigação, desde a minha inserção no mestrado do PPGAS/UFRGS. A pesquisa
desenvolvida no mestrado foi em Teutônia e tinha como eixo a reflexão sobre a memória
compartilhada sobre as experiências transmitidas na relação entre avós e netos. O
93
encantamento com os estudos sobre memória familiar parte dos relatos de Vó Selma, os quais
unem os netos em uma experiência comum: as histórias contadas por ela em diferentes
contextos e que trazem sentimentos de pertencimento compartilhados entre seus descendentes.
Os encontros de domingo na casa de Vó Selma eram repletos de casos contados por ela e
reincidentes na fala dos filhos e netos. O almoço era a justificativa para os encontros. Nele
não faltavam manifestações de uma origem germânica que se expressavam por vezes na
“massa frita” que era elaborada pela Vó, por vezes nas expressões em alemão usadas nos
tratamentos entre os parentes.
A pesquisa desenvolvida na cidade de origem de Selma Brust
41
trouxe grandes
surpresas ao ouvir histórias da família Brust, até então pouco conhecidas por mim. Ao ouvir
histórias sobre o Vô Idílio, o sentimento experienciado foi o de resgatar histórias não mais
conservadas dentro das relações familiares. Em uma situação análoga àquela em que me
propus a trabalhar ouvindo o que os avós contavam a seus netos, em Teutônia encontrei
momentos de ouvir histórias que remetiam à trajetória familiar de meu marido e, por conta
disso, a sensação foi a de ser alvo da minha própria investigação: teci e fiei enquanto ouvia
histórias sobre o “meu” avô. Momentos únicos, singulares, nesse período. Nessa, entre outras
situações, a minha posição passava a ser a de depositária da memória familiar. As histórias
ouvidas sobre o Vô Idílio foram incorporadas à minha própria experiência, paradoxalmente:
em vez de estar ali para descobrir sobre a realidade social daquela comunidade, a comunidade
passou a desvelar a “minha” realidade familiar, o que me levou a um sentimento de pura
interação. Trata-se da reflexividade, uma conquista no avanço das relações entre pesquisador
e pesquisado, que expressa a reciprocidade em uma clara situação dialógica.
Essa, entre tantas outras experiências vividas naquele período, mostrou de forma clara
o quanto as famílias estavam em busca de uma forma de se adequar frente a um mundo cujas
transformações não permitiam mais manter a união aos moldes que estruturaram a existência
daquela comunidade e orientaram “as maneiras de ser, pensar e agir” daqueles grupos. Ouvia-
se já falar em Festas de Família, mas entre as tantas famílias que convivi, nada foi dito sobre
essa questão. A transmissão de valores, as conformações sobre uma unidade familiar estavam
expressas por meio de rastros, pequenas situações que muito narravam às gerações mais novas
e que, mesmo sutis, traduziam uma coesão afetiva produzida nas relações entre avós e netos.
41
Brust é o sobrenome da família de origem. Vó Selma é neta de um imigrante oriundo da região do Hunsrück,
que foi um dos pioneiros a ocupar as terras da antiga Picada Brust, hoje denominada Linha Germano, no
município de Teutônia.
94
1.1.2 A Festa em Nova Friburgo (RJ) e a ligação com os Brust do Sul
Em janeiro de 2002 foi realizada a primeira Festa da Família Brust em Nova Friburgo,
Rio de Janeiro. Esse encontro foi muito festejado pelos parentes do Rio Grande do Sul.
Alguns afirmavam saber que por lá existiam parentes; outros acreditavam que isso não
passava de uma “lenda”.
A Festa foi organizada por Dalva Brust, moradora da cidade onde ocorreu o evento.
Estive em contato com ela por meio eletrônico ou telefone. Dalva está ligada
profissionalmente a uma entidade que trata, especificamente, da presença de teuto-brasileiros
na região. Sua trajetória profissional levou-a a buscar seus parentes por todo o Brasil e, com o
contato em mãos, passou a comunicar-se para divulgar a Festa que aconteceria na data citada.
Dalva relata por e-mail:
Meu nome é Dalva Brust. Sou psicóloga e sexóloga, tenho 30 anos de profissão,
exerço com o mesmo prazer de quando comecei a trabalhar. Sou também instrutora
do Senai e consultora em RH. Sou presidente do Centro Cultural Teuto
Friburguense – entidade que representa a Colônia Alemã em Nova Friburgo – e
vice-presidente da ASCOFRI, associação das 10 Colônias que formaram o berço
cultural de nossa cidade.
O contato de Dalva no Rio Grande do Sul foi através de um parente que mora em Ijuí.
O contato inicial com esse parente, Augusto Brust, foi feito pelo telefone e a seguir por e-mail
e carta. Ele, por sua vez, encarregou-se de levar a notícia aos membros de outras cidades, mas
principalmente aos que moram em Teutônia/RS. No sul é o local onde os imigrantes da
família estabeleceram-se inicialmente e, de lá, as gerações seguintes partiram para construir
novas trajetórias
42
. Esse contato de Dalva surpreendeu a todos e, a partir daí, a família buscou
organizar uma “comissão” para ir a Nova Friburgo/RJ participar do evento. O tempo escasso
para a mobilização desfez a intenção e parte para o Rio apenas Vó Selma, com a tarefa de
representar o “tronco” do sul.
Dois anos depois da Festa, e já encaminhando o projeto de doutorado – que teve início
em novembro de 2004 –, busquei o contato com Dalva, e este se deu através de um
telefonema. Em uma das várias entrevistas realizadas, conta Dalva que a primeira Festa da
Família Brust foi idealizada por ela e um primo, Edimar, que mora no distrito de Lumiar,
ligado à Nova Friburgo. A organização dos eventos é distribuída entre cinco primos que
42
As gerações seguintes foram responsáveis pela formação de pequenas colônias ou Colônias- Filhas, resultado
do processo chamado de “examameamento” ou “enxamagem” cunhado por Roche (1996) – em uma curiosa
analogia com a expressão utilizada para a divisão dos enxames de abelhas.
95
moram na região, nas cidades de Lumiar, São Pedro da Serra e Nova Friburgo. A
comunicação com os parentes é feita ora por cartas, ora por e-mails ou telefone. Já foram
organizados quatro encontros e no último, em 2006, ficou acertado que passariam a acontecer
de dois em dois anos para que contassem regularmente com os parentes do Sul.
Ao ser questionada sobre os motivos que a levaram a mobilizar a família para a
realização da Festa, Dalva é enfática:
As intenções de realizar a Festa da família Brust foram inicialmente de reflexões
sobre o futuro familiar. A preocupação estava em manter a união, passar as
tradições alemãs e manter um intercâmbio que facilite a adesão dos mais jovens.
Não mantemos vínculos religiosos nem políticos, de modo que a liberdade de
expressão é total. A solidariedade e compromisso com a família são a base de toda
confiança.
Com relação à genealogia, Dalva mantém junto com o primo Edimar a atualização da
mesma, e foram os dois os responsáveis pela sua organização.
A genealogia fica a cargo meu e de Edimar, e mantemos o tradicional método de
numeração que permite a identificação da árvore genealógica em qualquer
geração. Fizemos o mapa da família em geral e, a seguir, da família restrita a
determinado “tronco”. Não existe restrição a um tronco: vemos a família como um
todo. Registramos os novos casamentos e adoções normalmente.
Dalva trabalha em uma associação vinculada às tradições teuto-brasileiras e mantém
pesquisas sobre a imigração alemã no Brasil. Sua atividade profissional a coloca
constantemente em contato com todo o tipo de assunto que envolva expressões da cultura
teuto-brasileira. Ela comenta que organizou, anteriormente, um grande número de encontros
de família e que, em um determinado momento, percebeu que era a hora de fazer o mesmo
para a sua própria origem.
Minha origem materna é alemã, a origem paterna é alemã e portuguesa. As famílias
alemãs vieram de Baden Wurtemberg e Hessen. Estamos na 4ª e 5ª geração,
dependendo da família. A base de estabelecimento de dois dos irmãos que aqui
chegaram foram os Distritos de Lumiar, São Pedro da Serra e Amparo, em Nova
Friburgo. A atividade a que se dedicaram e ainda perpetuou por duas ou três
gerações foi a agricultura.
Eu nasci e moro atualmente em Nova Friburgo. Morei por nove anos no Rio, até os
25 anos, mas sempre estudei e trabalhei em várias cidades.
Tendo acertado com alguns primos a realização do evento, entrou em contato com um
grande número de parentes, incluindo os do Sul. Chegou a esses parentes através de relatos de
antigas gerações que anunciavam que um dos irmãos que veio para o Brasil deslocou-se para
96
o Sul. Tentou contatos anteriores quando, a trabalho, esteve em São Leopoldo por mais de
uma vez. No entanto, só foi conseguir o endereço de Augusto Brust quando já finalizava as
tarefas de organização da 1ª Festa.
Vó Selma, hoje com 97 anos, viajou ao Rio em 2002 e lá encontrou com uma neta que
mora em Niterói. As duas foram para Nova Friburgo, onde seria realizada a 1ª Festa da
Família Brust. Já havia reserva em um hotel e uma condução que estava disponível aos
parentes que ficaram hospedados.
Dalva relatou-me que Vó Selma foi uma das participantes mais festejadas, pois era a
mais idosa. Já Vó Selma, quando entrevista por mim sobre o evento, pouco relatou e se
limitou a dizer que ficou surpresa com o “bando de Brust” que lá encontrou. Ela e a neta
foram os únicos parentes do sul a participarem. Havia outros estados representados, o que
denota a mobilidade geográfica que marca a complexidade sobre a unidade familiar nos
tempos atuais e as novas condições de organização moderna da vida cotidiana que promove
uma nova configuração de valores.
Dalva relata o surgimento da idéia de reunir os parentes. A ela e a um primo cabe
também a tarefa de ordenação da rede de parentesco. Comenta, na última entrevista, em 2006:
Eu e alguns primos já tínhamos esse desejo há muito tempo. O objetivo é a união,
passar as tradições e manter um intercâmbio que facilite a adesão dos mais jovens.
Não mantemos vínculos religiosos nem políticos, de modo que a liberdade de
expressão é total. Já organizamos quatro encontros e recebemos primos de vários
Estados do Brasil.
Vó Selma ressente-se de não mais participar do evento. Naquela ocasião, trouxe para
todos os netos e bisnetos camisetas com o brasão da família e aguarda o envio, até hoje, das
fotos que tirou na ocasião. Suas lembranças são poucas, diz que era muita gente e que havia
sido homenageada por ser o membro mais idoso. Houve uma sessão de dança típica alemã e
alguns pronunciamentos de parentes. A neta que lhe acompanhou ressalta que havia um forte
espírito de união e confraternização entre todos os presentes. Vó Selma não obteve mais
notícias depois de seu retorno a Porto Alegre e tentou persuadir a sua neta, que mora no Rio, a
manter os vínculos, mas não teve sucesso.
97
1.1.3 Reflexões...
Observa-se a relação entre a motivação para organizar a festa e as tarefas profissionais
relatadas por Dalva. Ao falar de sua área de atuação, Dalva relaciona aquilo que a Festa da
Família buscou transmitir e o projeto que o Centro Cultural Teuto Friburguense desenvolve:
Lembranças de fatos e casos que envolvem a família geral ou a família restrita a
determinado “tronco”. Não existe restrição a um tronco, vemos a família como um
todo. Lumiar e São Pedro continuam sendo redutos dos alemães e são freqüentados
pela geração mais nova, mantendo a culinária e o tradicional forró, que tem aqui
muita influência do “Xote” e da “Polka” trazida pelos alemães. O idioma está
sendo um projeto de o CCTF recuperar, porque desde a proibição em 1950 que ele
foi se perdendo a cada geração. Mas vamos mudar esse destino.
Com isso, reordenar a família tem um sentido de rever a tradição que marcou a
trajetória da imigração teuto-brasileira. A tradição ligada à memória coletiva envolve o ritual
que, “ao contrário do costume, tem uma força de união que combina conteúdo moral e
emocional” (Giddens, 1997, p. 81). Isto é, a reconstrução de um passado tendo como base o
presente é parcialmente individual, mas é primordialmente coletiva. A reconstituição de
acontecimentos passados confere continuidade à experiência sem, no entanto, desconhecer
que essa é uma tarefa interpretativa de identificação dos laços que ligam o presente ao
passado.
Outro aspecto importante de trazer à reflexão é a valorização do idoso como “prova
física” desse passado, como mais um elemento dos critérios de verdade que atribuem eficácia
ao ritual. O ritual ou a Festa visa aprovar o seu conteúdo normativo ou moral de vinculação
entre os membros da família. Nessa mesma direção, o ritual não alcançaria eficácia se não
absorvesse formas atuais no seu interior. Isso não significa uma estratégia de cooptação, mas
a existência clara dos modelos contemporâneos de consumo em consonância com formas
tradicionais de existência no passado. A venda de camisetas com o brasão
43
da família
atualiza o passado, cria uma ponte que coloca ambos – passado e presente – em contato e,
simultaneamente, dá concretude a uma identidade familiar. A camiseta era composta do
brasão e, logo abaixo, o enunciado: “Família Brust”.
Contudo, ao ter a avó solicitado que a neta desse continuidade à relação com os
“novos parentes” e esta, por sua vez, não ter aceitado atuar como elo entre os troncos, remete
43
Esse aspecto será aprofundado mais adiante. No entanto, chamo a atenção para a sua função simbólica que traz
impacto ao grupo. Vista como uma relíquia assume um significado exemplar de um passado nobre, denotando
uma família de alto prestígio.
98
à ausência da construção de laços sobre a experiência da festa. Essa questão passa a ser
percebida como resultante da noção de projeto individual que nele está subjugado um tipo de
avaliação que se define dentro da biografia do sujeito. Isto é, a recusa de manter as relações
com os parentes “de lá” traduz as diferenças e as descontinuidades procedentes das restrições
da sociabilidade e estreitamento das redes de relações sociais em que as interações afetivas é
que, objetivamente, são significativas no universo do parentesco. Para a neta, os parentes
estão no Sul. O objetivo de ter participado da festa em Nova Friburgo foi o de acompanhar a
avó, sendo que esta, por sua vez, reconheceu no evento um conjunto de ações significativas e
relativas às experiências vividas no seu passado. Esse fato se traduz no componente privado
que há no acervo de conhecimento de cada ator social, segundo Schutz.
1.2 A Festa da Família Flach
1.2.1 O encontro com o genealogista
O Irmão Henrique Justo foi o primeiro entrevistado, e tive conhecimento do seu
envolvimento com as Festas de Família por acaso, ao encontrá-lo no setor de cópias do Centro
Universitário La Salle – Unilasalle, onde atuo como professora e onde Irmão Justo, por sua
vez, é membro da congregação mantenedora, residindo nas instalações da instituição. Na
ocasião fazia a cópia de um dos livros da sua árvore genealógica e me chamou a atenção
quando o ouvi solicitar o serviço. Imediatamente perguntei-lhe se poderia entrevistá-lo,
relatando sobre o projeto de pesquisa que desenvolveria para a seleção do doutorado no
PPGAS/UFRGS. Após a confirmação, marcamos uma data e horário em que ele estaria
disponível.
O encontro ocorreu no dia seguinte, dia 7 de agosto de 2004, na sala de trabalho de
Irmão Justo. A sala é interessantíssima. Nela há muitos armários abarrotados de livros, muitos
deles de autoria do próprio Irmão. No centro há uma mesa grande com seis cadeiras em volta.
Há uma escrivaninha com um computador e uma pequena sala com poltronas e mesa auxiliar.
Irmão Henrique Justo é o seu nome religioso. Seu nome original é José Arvedo Flach. Ele está
atualmente com 87 anos e mantém suas atividades laborais como psicólogo e,
esporadicamente, dá aula como convidado para as turmas de graduação e pós-graduação no
Unilasalle. Seguidamente participa de bancas de mestrado ou doutorado pelo país. Seus
estudos na área da educação e psicologia são referências internacionais e precursores da área
da psicologia no Brasil. Ele estudou na Europa nos anos de 1950 e 1960, em Barcelona e
99
Paris, respectivamente. Nos anos 70, estudou e atuou como professor em uma universidade
em San Diego (EUA). Basicamente, seu vínculo como professor e pesquisador no Brasil era
com a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde trabalhou por mais de 40
anos. O traçado de sua trajetória traz um tom poético, fruto, sem dúvida, de sua condição
intelectual:
Os Flach do Brasil procedem de Gornhausen, margem direita do médio Rio Mosela,
então Confederação Germânica. Tive a felicidade de redescobrir o berço dos
antepassados: Mathias Flach, chegado ao RS em 1848, indo residir em Alto Feliz,
onde está sepultado. Dois manos dele vieram em 1856: Wilhelm, que morou e
faleceu em São José do Hortêncio, e Johann, meu bisavô que, desde os 26 anos,
viveu em Piedade, que fica em Bom Princípio, perto de São Vedelino. Os três juntos
tiveram 296 netos.
Os filhos dos imigrantes se estabeleceram nas cercanias dos pais. Vários da
geração seguinte ‘saltaram’ para a serra: Cerro Largo, Boa Vista do Buricá... e
Oeste de Santa Catarina: Itapiranga, São Miguel do Oeste... Mais tarde, outros
avançaram para o Oeste do Paraná. Nos anos recentes, alguns se aventuraram para
o interior de São Paulo, Mato Grosso... E, mais recentemente ainda, houve quem
voltasse ao velho continente: Inglaterra, Alemanha, Áustria e Portugal. Quanto a
mim, pessoalmente, optei por ser religioso-educador na Congregação de São João
Batista de La Salle, onde me sinto muito bem realizado – muito além dos meus
sonhos de infância e adolescência. Nunca podia sonhar nos meus verdes anos que,
um dia, me tornaria professor universitário (a convite!), escritor, bolsista para a
Europa dos meus antepassados! Padre não quis ser, embora fosse muito assíduo
aos ofícios da Igreja.
Em casa, família numerosa, fomos melhorando: aos meus 5 anos, papai comprou
uma serraria e marcenaria, casa grande estilo enxaimel, cozinha separada, do
mesmo estilo. Mamãe, com empregado, trabalhava na roça, tendo gado leiteiro,
criação de galinhas e porcos. O único luxo foi a chegada da luz elétrica em 1930,
contava 8 aninhos. Um deslumbre!!! A alimentação era natural, abundante e sadia:
cuca caseira e um tipo de ‘refri’ somente nas grandes festas. Bombons, de vez em
quando. O moço que assumiu a marcenaria, morando conosco, comprou um
carrinho Ford importado. De vez em quando fazíamos visitas indo nesse transporte
maravilhoso. Todos tivemos quatro anos de primário sólido, com boa catequese. Os
três mais velhos, somos filhos homens. Sou o terceiro. Os dois primeiros paravam
na casa do avô paterno em Boa Vista, para ali prestar pequenos serviços e,
sobretudo, a fim de freqüentar a escola dirigida por um ‘tio torto’ – marido de uma
das manas de papai. Era professor, regente do coral, tocava violino e era sacristão.
Quando fui para o seminário, nos primeiros dias, sobretudo nas primeiras noites,
dava um aperto no coração. Chorei bastante... Amenizou rapidamente, pois me
‘enturmei’ bem com os colegas, os estudos, os jogos, passeios... a religiosidade da
família é responsável pelos mais de 170 religiosos(as), padres e 2 bispos. Muitos
candidatos, no tempo dos estudos, decidiram ou foram aconselhados a tomar outro
rumo [diferente da origem voltada à agricultura], o que elevou o nível das regiões
para onde retornaram com boa formação intelectual e humana em geral.
Sua tarefa de organizador da genealogia da família Flach iniciou cedo, quando esteve
em Paris, mais precisamente. Naquela ocasião, Irmão Justo andou pelas proximidades do
lugar de onde saíram seu bisavô e seus dois irmãos, mas poucas eram as suas referências e
tempo para tentar desvendar outras informações. De posse da cópia do passaporte do seu
bisavô, enviado por um parente seu que mora em Florianópolis – também religioso –, em
100
1989, em uma nova ida à Europa, ao final desse mesmo ano, Irmão Justo foi até a cidadezinha
de seus antepassados: Gornhausen. Lá esteve com os ‘parentes’ da Alemanha, fez muitas
fotografias e filmagens. A partir desse fato, que amplamente anunciado na família, outros
membros fizeram essa mesma trajetória e o contato com o ramo que permaneceu na
Alemanha tornou-se freqüente.
Embora hoje as famílias estejam, na média, microscópicas em comparação às de
antigamente, o número de novos membros continua em expansão, aumentando
continuamente o número de ‘galhos’ e, conseqüentemente, de ‘frutas’, embora os
‘galhinhos’ somente tenham um, dois ou três. Os pioneiros ‘plantaram’ 296 ‘
ramos’. Agora são milhares... Sinto-me feliz por haver descoberto para mim e aos
demais Flach o berço da família e levantado tantos nomes; de haver-lhes fornecido
fotos da vilazinha dos avoengos pioneiros, de parentes de lá – alguns enviaram
mensagens ‘ao vivo’ através do vídeo. Meu horizonte e de todos os parentes que já
tiveram acesso a tudo isso se ampliou enormemente. Os Flach de lá, igualmente,
têm agora outra imagem da grande família a que pertencemos. Vários Flach daqui
já visitaram a bendita região: um industrial de Novo Hamburgo, por exemplo, foi
no ano passado; outro jovem Flach, de Camboriu, se encontra, no momento, a
caminho de Gornhausen, além do bispo ‘Jacinto Flach’, que se encontra ‘ancorado’
na Espanha, pois lá encontrou trabalho transitório (sem ou com pouco ‘money’,
viajar se torna dramático!).
Em uma ocasião, Irmão Justo levou à sala dos professores uma prima sua que estava
em visita para apresentar-me. Sua gentileza e solidariedade são enormes e emocionam. Na
ocasião da festa da sua família, que se realizou em dezembro de 2005, não pude comparecer
em virtude de um acidente sofrido que me imobilizou. Esse fato, que muito me entristeceu,
sensibilizou Irmão Justo e fez com que compartilhasse comigo cada avanço na genealogia,
cada parente que o visitava, cada novidade relacionada à sua família. Em 2007, seria realizado
o 7º Encontro da família Flach, mas o falecimento de uma prima sua provocou o adiamento
para o final de 2008.
A solidariedade de Irmão Justo tem diversas formas de expressão: emprestou-me o
vídeo que organizou com vários acontecimentos que vão desde as imagens da Família Flach
do Brasil, como também a da Alemanha; as festas filmadas por ele e o parente Irmão Albano
Constâncio, que ocorreram nos anos de 1992, 1994, 1998 e 2005; selecionou em sua
biblioteca inúmeros livros sobre genealogia de famílias alemãs e italianas e sobre família; fez
cópias de cartas, músicas cantadas nas festas, músicas de sua infância, recortes de jornais, etc.
Sem contar, as diversas entrevistas concedidas, materiais digitados e diálogos informais sobre
sua família, sobre suas pesquisas genealógicas.
Em um semestre, encontrei uma aluna inscrita em uma turma de Sociologia no
Unilasalle cujo sobrenome era Flach. Perguntei-lhe se conhecia Irmão Justo e se participou,
101
em alguma ocasião, de uma Festa da Família Flach. As duas respostas negativas me levaram a
indagar se nunca havia tido conhecimento das festas. Ela contou que sim, sabia que ocorriam
as festas, mas que sua família pouco saía da região rural do Município de Paverama – Vale do
Taquari/RS – e que, por isso, não participava desses eventos. Perguntei-lhe se poderia colocá-
la em contato com Irmão Justo e assim que o encontrei falei-lhe sobre a aluna. Irmão Justo
ficou exultante com a possibilidade de ter a sua árvore estendida e poder conhecer a aluna, sua
parenta.
Em um dos muitos encontros que tivemos, ao perguntar a Irmão Justo sobre a
genealogia, responde:
Por enquanto, além de iniciador do levantamento, sou o principal coletor de nomes.
Já faz em torno de 10 anos que venho pesquisando. Uma Flach, aposentada, se
encarregou do 1º tronco: o do Mathias Flach. Dei para ela tudo que já possuía
sobre ele. A coleta é feita por contato direto, em visitas, pelo correio ou
computador. Já consegui cerca de 80 e-mails. É, porém, um número relativamente
pequeno que, de fato, se interessa por esse trabalho, inclusive possuidores de
diploma superior... Agradecem o envio gratuito da colheita realizada... e
emudecem. As mulheres são mais colaboradoras e melhores conhecedoras das
famílias: nomes, datas, etc. O que é comunicado aparece: falecimentos – mesmo os
da infância, separações, adoções, filhos de mães solteiras, endereços, profissão,
telefones, e-mails... Embora as famílias sejam agora microscópicas em comparação
às de antigamente, o número de novos membros continua em expansão, aumentando
continuamente o número de galhos e, conseqüentemente, de frutos, embora os
‘galhinhos’ somente tenham um, dois, três. Os pioneiros plantaram 296 ramos.
Agora são milhares... Sinto-me feliz por haver descoberto para mim, para os demais
Flach e aparentados o berço da família e levantado tantos nomes; de haver-lhes
fornecido fotos da vilazinha dos avoengos pioneiros, de parentes de lá. Alguns
enviaram mensagens ‘ao vivo’ através de vídeo. Meu horizonte e de todos os
parentes que já tiveram acesso a tudo isso se ampliou enormemente. Os Flach de lá,
igualmente, têm agora outra imagem da grande família a que pertencemos.
Esse trecho é significativo para pensar sobre alguns aspectos relevantes: a tarefa de
genealogista é árdua e requer um tempo disponível. Essa tarefa empreendida por alguns dos
entrevistados é vista como um ‘jogo’ de encaixe de peças, de revelação de armadilhas, de
garimpo de informações.
Estudando a vida doméstica dos antepassados, sentimo-nos aos poucos nos
contemplar: é outro meio de procurar-se o “tempo perdido” (referência a Marcel Proust),
outro meio de nos sentirmos nos outros, nos que viveram antes de nós; e cuja vida se
antecipou à nossa. É um passado que se estuda tocando em nervos; um passado que emenda
com a vida de cada um; uma aventura de sensibilidade e não apenas um esforço de pesquisa
pelos arquivos (Freyre, 2001, p. 56).
A disponibilidade de tempo, ao citar uma prima aposentada, é uma característica forte,
e alguns atribuem a não continuidade da montagem da árvore genealógica à falta desse
102
recurso. Observa-se, de modo geral, que a ocupação desse aspecto fica ao encargo de
aposentados, ou melhor, são eles que tomam essa iniciativa de construção dos vínculos de
parentesco. No enunciado de Irmão Justo, é atribuído às mulheres o maior conhecimento dos
nomes e da distribuição familiar. Essa questão remete ao papel feminino dentro do campo
familiar e será vista mais adiante de forma mais detalhada. No entanto, resumidamente, essa
questão é percebida nos estudos de Salem (1980) sobre os papéis familiares sexualmente
diferenciados como tipificações culturais socialmente construídas e em consonância com o
tempo e o espaço social em que estão inseridas.
Outro aspecto relevante no que Irmão Justo anuncia é a redução do número de filhos
que se observa nos núcleos familiares na atualidade, bem como as alterações que esses
núcleos apresentam: casais separados, filhos adotivos, famílias que se estruturam com um
único genitor, novas formas de fecundação definidas pelas decisões individuais, etc. Essas
questões implicam indubitavelmente a novas imagens da família e contribuem para a
formação e difusão de novos valores e comportamentos na vida social mais ampla.
Em meio à busca de suas raízes, Irmão Justo também traz o alargamento dos
horizontes dele e de seus parentes ao encontrar o berço da família e compreender
reflexivamente a história familiar. Da mesma forma, esse alargamento de horizontes pode ser
visto como uma objetivação de fazer parte de uma história que se expressa em um recíproco
pertencer e que se constitui por meio de processos de vinculação de sangue e de terra.
1.2.2 Os primórdios da Festa
Irmão Justo mostra-se entusiasmado quando lhe pergunto sobre as Festas da Família
Flach. Conta que tudo começou com primos, dono e administrador do Salão Flach, de Piedade
no RS, vendo os livros xerocados de milhares e milhares de nomes levantaram a idéia de uma
Festa da Família Flach – Encontro Flach. Foi, então, formada uma comissão, repartindo entre
os membros as diferentes tarefas: divulgação – “da qual me encarrego”, diz Irmão Justo, da
missa, do salão (almoço, confraternização, dança). Desde o 2º Encontro, é cantado o Hino dos
Flach: “modesta letra minha, adaptada à melodia de canção alemã. Na última Festa, um
coral somente integrado por Flach entoou o hino no fim da Missa”, complementa. A
divulgação é feita através de rádios: Pio Flach, de Cerro Largo, é dono de estação de rádio FM
e MW; da rádio de Nova Petrópolis, na qual trabalha um parente; e outras rádios do interior,
também de Santa Catarina e Paraná; isso sem contar os convites por correio. “Sempre houve
103
representantes vindos de longe, inclusive do Mato Grosso e de Misiones, na Argentina”,
Irmão Justo faz questão de ressaltar.
A festa, segundo seu relato, segue um padrão de atividades estruturado desde o 1°
Encontro:
Ela segue um certo ritual: depois tem uma certa variante de cantos, o resto almoço,
depois dança com muita conversa, é claro. Logo há a missa especial para a família,
a igreja cheia para o encontro. Na última teve cinco padres no altar; vários padres,
como Dom Jacinto, bispo e o Padre Augusto, de Cascavel, arcebispo. Então, uma
série de padres que não puderam vir por causa dos seus compromissos aos
domingos, mas cinco estiveram lá. No congraçamento, eles ensaiaram, se teve a
idéia de juntar só a família e ensaiar e cantar. Eram as famílias que moram
próximas, em Poço das Antas. Calculamos nesse Encontro umas 800 pessoas.
Serviram o almoço: salada, assaram o churrasco, já tinham reservado um
caminhão frigorífico com carne. Depois tem mais cantos e danças.
A religiosidade assume um valor estruturante na família Flach: “A religiosidade da
família é responsável pelos mais de 170 religiosos e religiosas: freiras, padres e bispos (2)”.
As Missas que dão início às Festas de Família são celebradas pelos parentes religiosos e os
altos níveis conquistados por parentes na hierarquia da Igreja Católica mostram-se como
fatores de distinção social. Essa conexão, evidenciada no trabalho de campo, pode ser
analisada a partir de Duarte (2006):
O privilégio cristão da aquisição do status religioso tem diversas implicações
relevantes. A primeira é a de que a congregação religiosa se apresenta
freqüentemente como uma alternativa à família, na verdade uma hiper-família,
dotada de um senso de comunhão e reverência capaz de reproduzir uma redobrada
intensidade. A outra é a de que as seitas (no sentido weberiano) cristãs dependem,
tanto quanto qualquer outra ordem organizacional humana, da reprodução de seus
membros e não podem fazê-lo a não ser através de uma relação com as famílias
(onde continuam sendo produzidas as pessoas passíveis de se tornarem fiéis)
(Duarte, 2006, p. 9).
No texto, o autor analisa as experiências da vida familiar no momento atual,
relacionando-as à característica de uma crucialidade e uma intensidade próximas de uma
‘religiosidade’. Ou seja, as duas dimensões (familiar e religiosa) encontram-se relacionadas
entre si, por vezes, de forma não explícita, mas que, no entanto, expressam-se em inúmeros
elementos que atuam diferentemente e em concordância com os contextos familiares. Desse
modo, a família Flach possui membros ligados a congregações católicas situados em uma
geração específica, e essa premissa traz à tona um tempo histórico em que as duas instituições
– família e Igreja – eram, uma para a outra, alternativas de status social e de continuidade. Por
outro lado, as gerações mais novas aderiram, por meio de suas trajetórias individuais, a estilos
104
de vida diferenciados, mais individualizados e distanciados da Igreja, o que não significa
afirmar que essas gerações não compartilhem sentimentos oriundos de uma dimensão sagrada
da vida familiar: a comunhão
44
, a reverência
45
e a intensidade
46
(Duarte, 2006).
A forma de relatar sua família e suas memórias, denota a importância e a sensibilidade
que o assunto provoca no Irmão Justo. Conversamos com freqüência sobre a sua família. Os
materiais que ele fez questão de emprestar – livros, vídeo, cartas da família, recortes de jornal
– revelam o quanto tem concentrado o seu tempo na reordenação da memória familiar, das
“raízes que o formaram”, como costuma referir.
Um fato curioso que Irmão Justo relata é a atividade pensada para atrair os jovens às
festas:
É, realmente nessas festas participam mais os adultos, adultos de idade, adultos
jovens; a juventude é que participa menos. É uma preocupação nossa como atrair a
juventude, por exemplo, a escolher uma rainha; e agora vamos fazer uma
experiência de formar um comitê de avaliação, de avaliadores. Mas isso cria um
certo mal-estar, então se optou de sempre convidar quem quiser participar duma
rifa, quem quer ser rainha, quem quer ser princesa... e fica melhor dessa maneira,
porque não há uma competição. Essa tem sido uma forma de atrair a juventude, de
atrair a gente nova, mas as pessoas de mais idade têm mais interesse, porque aí já
têm a história pra contar, mas ao passo que a juventude vive mais o momento atual
e para o futuro.
Essa é uma questão delicada e reincidente nas falas de várias famílias: o envolvimento
dos mais jovens. Não há nenhuma “estratégia” formal para o alcance do envolvimento da
geração mais nova. No entanto, percebe-se a preocupação em buscar atividades que os
atraiam. Volto a citar Duarte (2006) para analisar essa situação quando trata dos sentimentos
que envolvem a adesão a uma “congregação”, a uma rede “ideal, privada, íntima, de afetos, de
memória”, e a necessidade de suscitar o sentimento de comunhão pessoal que seja vivenciado
com autenticidade, provido de estímulo à intensidade.
Nos estudos desenvolvidos por Agnès Villadary em sua obra Fête et vie quotidienne
(1968) ao tratar sobre as atuais festas de família na França, tendo em vista que a sua análise
debruça-se sobre a percepção dos jovens sobre as mesmas e que não traz a especificidade de
um encontro familiar aos moldes do que essa tese propõe, há uma analogia sobre a
ambigüidade dessa percepção nas festas. Segundo a autora, os jovens reconhecem a
44
Refere-se às características de Gemeinschaft de Tönnies, ou às relações comunitárias (gemeinschft) em que o
autor entendia toda vida social de conjunto, íntima, interior e exclusiva e que, segundo Duarte lembram a
“onipresença da categoria ‘comunidade’na linguagem religiosa do Ocidente e o sentido de communitas (Turner).
45
Por sua vez, a reverência é o sentimento que expressa o respeito à família.
46
“Intensidade diferencial com que são experimentadas as dimensões sagradas da vida social” (Duarte, 2006:6),
ou seja, a intensidade é vivencial, afetiva, sentimental e se expressa na corporalidade dos indivíduos.
105
necessidade de haver os encontros familiares, mas, por outro lado, não se sentem obrigados a
neles comparecerem. As Festas de Família por mim perscrutadas mostraram esse “dilema” na
concepção dos jovens. Inicialmente, não raro, há relutância dos jovens, sobretudo
adolescentes, de se engajarem em projetos de reencontros familiares. No entanto, a
possibilidade de reencontrar algum primo de relações mais próximas é uma forte motivação e,
em alguns casos, acrescentam a agradável surpresa de conhecerem novos parentes de sua
própria geração.
O dilema em cada um dos jovens apresenta dimensões diversas, tendo em vista a
valorização das relações familiares, em especial na infância, período significativo no qual o
indivíduo interioriza padrões de conduta e morais e identifica-se dentro de um dado grupo
social. Sendo, pois, uma identidade a ser adquirida e construída em um processo de interação
com outros, requer do indivíduo se deparar com a intensidade do sentido a ser apreendido em
um eficaz processo de reciprocidade e reflexão.
1.3 A busca da Família Von Wurmb: e o ramo do Brasil?
O caso da Família Von Wurmb foi peculiar e importante para pensar os fluxos
transnacionais familiares. Em maio de 2007, uma aluna do curso de História, Gisélia, comenta
ter recebido uma correspondência da Alemanha, de um familiar de seu ex-marido. Era uma
carta em que o parente apresentava-se e afirmava que o contato tinha partido de um
documento de um antepassado que ele encontrara sobre parentes que imigraram para o Brasil.
Ele atribui o contato ter sido movido por curiosidade, como traz a carta transcrita:
Prezada Sra. Von Wurmb,
Meu nome é Ingo Von Wurmb. Eu moro com minha esposa e nosso filho de 14 anos
na Alemanha, nos arredores de Munique, e trabalho como engenheiro na firma
automobilística BMW.
Num antigo documento de família, deparei-me com endereços de membros de nossa
família que emigraram para aí no Brasil. Isso me deixou bastante curioso e decidi
procurar na internet e na lista telefônica brasileira por descendentes da família Von
Wurmb. Dessa forma, encontrei o nome de vocês.
Como vocês devem saber, nossa nobre família é originária de Thuerigen, uma
cidade no centro da Alemanha. A família Von Wurmb foi pela primeira vez
mencionada em 1173. A residência familiar foi, desde 1944
47
e até 1945, o castelo
de Grossfurra, em Thueringen.
Em 1887, nossos ancestrais fundaram a “Associação da Família Von Wurmb”, que
aglomera quase todos os descendentes de nossa família. Ao todo somos cerca de 60
membros. Nós nos reunimos cada 2 anos e o próximo encontro acontecerá em
outubro de 2005, em Weimar/Thueringen.
47
No site traz a data de 1444.
106
Ficaremos imensamente felizes se o contato com descendentes da família Von
Wurmb no Brasil for reavivado! Vocês podem escrever em alemão, inglês ou
português.
Aguardo ansioso por uma resposta de vocês.
Atenciosamente e com os melhores cumprimentos,
Ingo v. Wurmb (assina)
PS: Informações adicionais vocês podem obter na internet em www.vonwurmb.de.
A família Von Wurmb aqui no Brasil, segundo Gisélia, não deu importância alguma
ao fato. Junto à carta havia uma cópia da capa de um livro da genealogia, duas imagens do
castelo citado e uma foto dos integrantes da família na Alemanha.
Esse fato traduz um interesse que não se restringe à busca da ancestralidade em uma
via apenas. Não só a família que imigra para o Brasil tem atualmente essa prática e projeto. O
estranhamento que esse fenômeno traz é, primeiramente, pelo seu aspecto singular de um
fluxo contrário ao que se observou até então; e, em seqüência, historicamente o Estado
brasileiro, enquanto o poder político organizado no interior da sociedade civil e que se
estrutura com vistas ao além-mar como um lugar idealizado e “merecedor” de todas as nossas
riquezas e indiferente às nossas necessidades é, por conseguinte, desejável em todas as suas
dimensões. Há, no imaginário coletivo, a consolidação dessa premissa e, diante dos relatos
apreendidos ao longo da pesquisa, esse fenômeno difere fortemente dos movimentos de busca
dos descendentes dos imigrantes italianos, por exemplo. Em algumas citações, a busca pelos
ancestrais poderia ser facilitada pelos parentes que permaneceram na Europa; no entanto, os
contatos apresentam-se indesejados por eles – ora pela possibilidade de reivindicação de
herança, ora pela preocupação de um movimento migratório contrário ao do século XIX.
Busquei o contato por e-mail, por meio do endereço que encontrei no site da família.
Obtive respostas a algumas questões, mas todas com muita reserva. No último contato, O Sr.
Ingo mostrou-se desiludido pela falta de notícias desse ‘tronco brasileiro’ e enviou a árvore
genealógica dos parentes aqui no Brasil, conforme pesquisa realizada pela internet e algumas
informações colhidas dos parentes argentinos. Escreve com entusiasmo sobre os parentes que
migraram para a Argentina e os que migraram aos Estados Unidos, tendo em vista o retorno
que obteve ao encontrá-los.
A origem aristocrática dos Von Wurmb e a história de suas perdas em conseqüência da
mudança para o regime comunista fez com que parte da família se deslocasse para a
Alemanha Ocidental. No entanto, ao retornar o regime democrático, os parentes reúnem-se
novamente e buscam reconstruir a história da linhagem familiar. Cita em uma das mensagens
que
107
[...]Our family is an aristocratic family in Germany. ("von" or "Freiherr / Freifrau",
"Graf / Gräfin" in a German last name = Aristocratic family). All the old
aristocratic families in Europe have family histories, family meetings and family
trees. 120 years ago our family association was founded. More information about
our family and our tradition you will find in the internet www.vonwurmb.de In the
protected area there are some reports about the family meeting sand what we do.
Our family came from East Germany Thuringia (Thüringen). From 1945 to 1990
this was the communist part of Germany (GDR). After 1945 we lost the castles,
manor houses and other property. A lot of the members had to left East Germany
(refugees) because they were no Communists. Nearly all members of the family lived
after 1945 in West Germany. In the last years we hold our family meetings in East
Germany, which is now one country again with West Germany. Our members who
lived before 1945 in East Germany are now more than 75 years old and it is the last
chance to hear their eye-witness accounts about their former living (Ingo Von
Wurmb – em 16/07/2007)
48
.
Esse trecho de uma correspondência recebida traz aspectos importantes e que acenam,
de forma análoga, para os estudos de Saint Martin (2002) sobre as famílias aristocráticas
francesas. A crença, mais ou menos forte e partilhada, na existência de uma diferença que
separaria os “nobres” dos demais grupos – e refere-se ao sentimento de que participam de
uma trajetória histórica de longa duração – poderia ser o princípio que assegura a coesão, se
não do conjunto, ao menos de uma fração importante dele (Saint Martin, 1993). A produção
dessa crença não seria, aliás, possível sem a ação de um conjunto de instituições ou de
mecanismos que contribuem, a títulos diversos e segundo diferentes modalidades, para a
conformação das disposições. O sobrenome, com destaque para a freqüente presença da
partícula “de” (“Von”, no caso de nomes da nobreza germânica), e também o título (duque,
marquês, conde, visconde ou barão), ainda que este não seja mais reconhecido e que
oficialmente não tenha valor, designam de modo particularmente explícito os descendentes
das famílias da nobreza como diferentes dos demais. Muitos outros sinais ou marcas,
materiais ou imateriais, entre eles os castelos, os numerosos retratos de família e os relatos em
geral legendários da história familiar, fornecem aos descendentes da nobreza a ocasião de se
pensarem e se apresentarem como grupo ou categoria à parte. O interesse das famílias da
aristocracia por sua própria história e pela história de modo mais amplo foi sempre muito
48
[...] Nossa família é uma família aristocrática da Alemanha ("von" ou "Freiherr/Freifrau", "Graf/Grafin" em
um sobrenome alemão = família aristocrática). Todas as antigas famílias aristocráticas européias têm histórias
familiares, encontros familiares e árvores genealógicas. Há 120 anos, nossa associação familiar foi fundada.
Mais informações sobre nossa família e nossa tradição você poderá encontrar no site www.vonwurmb.de. Na
área protegida do site há alguns relatórios sobre os encontros familiares e o que fazemos. Nossa família veio da
Thuringia na Alemanha Oriental (Thurringen). De 1945 a 1990, esta era a parte comunista da Alemanha (RDA).
Após 1945 nós perdemos os castelos, propriedades rurais e outros bens. Muitos dos membros tiveram de partir
da Alemanha Oriental (refugiados), pois não eram comunistas. Quase todos os membros da família moraram,
após 1945, na Alemanha Ocidental. Nos últimos anos, nós realizamos nossos encontros familiares na Alemanha
Oriental, que é agora novamente um só país com a Alemanha Ocidental. Nossos membros, que viveram antes de
1945 na Alemanha Oriental, têm agora mais de 75 anos de idade e é a última chance de ouvir seu próprio
testemunho sobre sua vida passada.
108
acentuado; elas possuem, mais ainda que as famílias da burguesia, obras escritas a seu
respeito por seus próprios membros, arquivos de família, escritos diversos e documentos
genealógicos (Martin, 2002, p. 135).
O que se observa de semelhante entre os enunciados da carta e as informações trazidas
por Martin sobre a nobreza francesa são os recursos simbólicos acionados para que ocorra
credibilidade sobre a origem aristocrática. Observa-se que na ausência de propriedade sobre
os bens dos antigos familiares, recriam-se espaços de referência para a definição de fronteiras
e a reordenação das linhagens e das famílias em um trabalho contínuo para gerir e preservar o
capital social, as suas representações e gostos. Reaver os descendentes dos parentes que
migraram para outras terras é mais que compartilhar os recursos simbólicos comuns; o que se
pode deduzir é a tentativa de estabelecer uma forma de coesão por meio de novos
relacionamentos e, possivelmente, de trocas de toda sorte entre eles, em vista que, na
seqüência, o Sr. Ingo se despede revelando que, um dia, virá ao Brasil para conhecer os
parentes e eles, quem sabe, um dia participarão das Festas da Família Von Wurmb.
1.4 A Festa da Famiglia Calliari
A adoção da palavra famiglia é referência ao modo usado pelos organizadores nos
cartazes e convites para a festa. Esse componente reporta à origem italiana da família Calliari
e seu uso expressa o demarcador étnico, um sinal diacrítico que explicita fronteiras. Nas
observações da obra barthiana, é uma ‘categoria adscritiva nativa’ que regula e orienta a
interação social fora e dentro do grupo e, nesse caso, é ativada em um contexto festivo como
mais um elemento de identificação familiar.
1.4.1 O contato da famiglia por meio da mídia
No dia 15 de setembro de 2006, na coluna Túnel do Tempo - “Almanaque Gaúcho”,
do jornal Zero Hora, há a história da Família Calliari e o anúncio da Festa de Família que se
realizaria nos dias 12, 13 e 14 de outubro. Na coluna, não constava a possibilidade de contatar
algum membro, no entanto, constava que a matéria havia sido desenvolvida com o auxílio de
Dorval Antônio Calliari, o senhor à direita na foto, junto com seus irmãos, e membro da
família que reside em Porto Alegre.
Busquei na lista telefônica e entrei em contato direto com Dorval. Em uma breve
conversa, coloquei os motivos de meu interesse e ele solicita, então, que eu envie o projeto de
109
estudo para que possa consultar os outros membros que compartilham com ele a tarefa de
organizar a 5ª Festa da Família Calliari, a realizar-se em Bento Gonçalves, no Hotel
Dal’Onder. Alguns dias depois, recebo a resposta positiva à minha solicitação. Junto, Dorval
encaminha a programação e solicita que, se for o caso de hospedar-me no Hotel no qual
ocorreria o evento – previsto para dois dias –, eu deveria encaminhar a reserva imediatamente.
Nesse momento já havia o contato com as Famílias Finamor, Fortes e Jornada, cuja festa
estava prevista para o dia 13 de setembro. Mantivemos a comunicação por meio eletrônico
sobre eventuais atualizações na programação do evento. A receptividade à minha participação
foi grande, e antes de Dorval se dirigir a Bento Gonçalves, local previsto para o encontro,
firmamos o compromisso com os demais detalhes que ainda faltavam para encontrá-lo no dia
12.
Chegado o dia, saí de Porto Alegre, em direção à Bento Gonçalves, cedo da manhã.
Resolvi ir de carro e não depender de passagem e de horário disponível para retornar a Porto
Alegre, ao entardecer. O dia estava lindo! A viagem foi tranqüila e rápida, considerando-se o
fato de estar sozinha. Ao longo do caminho, fui organizando as possíveis práticas que teria
diante de uma programação que me foi enviada por Dorval pelo correio eletrônico.
A programação contava uma missa em uma igreja próxima ao hotel, marcada para as
10h da manhã. Chegaria a tempo, poderia certamente observar as pessoas entrarem na Igreja,
como se organizariam no espaço, quem sentaria com quem, mas, principalmente, conheceria
Dorval, com quem até então tinha tido contato apenas por e-mail ou telefone.
Chegando ao local combinado, surpreendi-me com a beleza da Igreja na qual seria
realizada a Missa comemorativa. Possuidora de uma arquitetura moderna, ela ficava no centro
de um enorme terreno e tinha em um dos lados uma imensa escadaria. Cheguei com bastante
antecedência. Sentei no fim da igreja, aguardando a chegada de Dorval e passei a observar o
ambiente. O interior da Igreja estava muito claro. As formas arredondadas davam uma
impressão de aproximação, e todas as paredes revestidas com imensos vitrais permitiam que a
luz do sol penetrasse e seus raios coloridos assumissem tonalidades diversas, embelezando
ainda mais o lugar.
Pouco a pouco foram chegando pessoas que usavam uma camisa estilo pólo com as
inscrições da Família Calliari. Chegaram muitos jovens, crianças, casais com filhos pequenos.
Em um dado momento, notei que estava sendo alvo de alguns olhares que interrogavam a
minha presença, afinal, a Missa seria rezada para a família. Às 10h da manhã a cerimônia teve
início, sem que eu tivesse encontrado Dorval.
110
No banco próximo ao altar, sentaram-se os membros mais idosos que chegaram,
alguns com o auxílio de parentes em virtude da dificuldade para caminhar. A cerimônia foi
realizada com a presença de muitas pessoas e a celebração contou com a participação de
alguns membros que, notadamente, tinham sido orientados para participar. Percebia-se ser
essa cerimônia voltada exclusivamente para o evento também pelas pessoas que vestiam a
blusa branca – esse detalhe trazia um belo contraste com as cores dos raios que transpunham
os vitrais. Havia a participação de mais de um padre na celebração, e depois soube que um
dos padres pertencia à família.
Em vários momentos foram mencionados os nomes de alguns membros e esses
recebiam aplausos. Via-se a importância de reverenciar os idosos, que “representavam a
história da família”, conforme palavras do padre em sua preleção. No momento da oferenda
aproximaram-se do altar parentes com objetos e cartazes que carregavam sentidos
compartilhados e compreensíveis na rede de parentesco de modo geral. Os mais idosos
tiveram em toda a cerimônia lugares de destaque. Ao final, a família dirigiu-se a eles. Estar
ali, próximos a eles, era também um lugar de prestígio.
Após a cerimônia encontrei o Sr. Dorval, apresentei-me e ele solicitou que eu
aguardasse a realização da foto oficial, que seria feita na escadaria da entrada da Igreja e, a
seguir, acompanhasse as pessoas que se dirigiriam para o hotel onde a maioria estava
hospedada.
O enquadramento da fotografia foi feito a partir das gerações e grupos de famílias
nucleares. Os idosos sentaram-se em cadeiras cedidas pela Igreja em um lugar estratégico aos
demais. A seguir, os filhos dos idosos, os netos e os bisnetos, sucessivamente. Posaram os
quase 100 participantes do evento, todos vestidos com a camisa da família.
Após a fotografia, feita por um fotógrafo da cidade que foi contatado para acompanhar
o evento, os membros dirigiram-se a pé para o Hotel que ficava próximo à Igreja. A Família
Calliari, ao sair da Igreja após a missa comemorativa, retornou ao hotel a pé. A rua foi
ocupada pela família e aquele pedaço de Bento Gonçalves foi apropriado pela uniformidade
da cor que caracterizava os membros que formavam o conjunto familiar.
Chegando ao local, um hotel tradicional da cidade de Bento Gonçalves, as pessoas
permaneceram no saguão, reunidas em grupos pequenos. Tratavam-se, sem dúvida, dos
adultos. As crianças partiram em conjunto para explorar os diversos locais de entretenimento
disponíveis. Nesse momento, Dorval aproveitou para apresentar alguns parentes que foram
responsáveis pelos encontros anteriores. Tive, também, a oportunidade de conversar com o
“Tio” Milo, um senhor de cabelos brancos, sempre rodeado por pessoas que riam muito de
111
seus relatos. Ao ser apresentada a ele, também fui alvo de comentários jocosos,
imediatamente reparados pelos parentes, solicitando que compreendesse a característica
humorística que acompanhava Tio Milo por toda a vida.
Esse momento foi significativo para confirmar a importância dos membros mais
velhos e o quanto eram reconhecidos como os guardiões da memória familiar. Ele era
provocado constantemente a relatar casos, elucidar dúvidas sobre a ascendência, recontar suas
proezas de “homem avarento”... Posso afirmar que ele e uma irmã sua eram os destaques do
evento.
Após algum tempo, todos foram convidados a dirigirem-se ao andar superior para
participar do almoço. No salão encontravam-se só familiares e, quando questionei o Sr.
Dorval sobre os outros hóspedes, onde almoçariam, este informou que o hotel estava ocupado
basicamente pela família Calliari e, tendo em vista o tamanho do hotel, não havia mais
dúvida: eram muitos os parentes que se deslocaram de outras cidades.
O almoço estava disposto em um bufê e as mesas comportavam de quatro a seis
pessoas. A alegria dominava o ambiente, uns brincavam com os outros e os idosos
continuavam sendo requisitados pelas atenções. O cardápio trazia alimentos especiais para as
crianças – bife, batata frita, arroz e feijão. Esse aspecto denota a importância atribuída aos
mais jovens, tanto quanto a que era devotada aos mais velhos.
Após a refeição, que foi acompanhada de sobremesa e cafezinho, Dorval levou-me a
uma sala onde, no dia anterior, havia sido aberto o Encontro da Família oficialmente. A sala
ampla, repleta de cadeiras e balões com as cores da Itália distribuídos pela parede, tinha
alguns painéis com mensagens e fotografias que marcavam a trajetória familiar. Em um
cabide encontravam-se bolsas penduradas com os dizeres “5º Encontro da ‘Famiglia’ Calliari
– Bento Gonçalves/2006”, que foram entregues aos participantes. Nelas continham a
camiseta, folderes sobre a cidade, uma caneta com o nome da família. Ele presenteou-me com
uma bolsa.
O ambiente que deu início à comemoração do ‘5º Encontro da Famiglia Calliari’ foi
detalhadamente preparado para receber os parentes de modo que todos se reconhecessem
oriundos de um lugar comum. A disposição de cartazes comemorando a vinda de parentes, o
quadro com a genealogia com espaços para que fossem completados com os nomes dos
parentes mais recentes, as imagens fotográficas dos parentes mais remotos, os balões e os
presentes contidos na bolsa ofertada não são meros objetos de adorno. São símbolos da
família e narram parte de um passado, os laços de descendência e que transcrevem uma
história neles contida. São bens simbólicos que compõem o ritual de introdução na vida
112
familiar em um momento específico do processo de socialização, imprimindo a marca de um
universo mais amplo e que se traduz na experiência do Nós.
Logo após, fui ao hall de entrada conversar com Marinês e Jorge, organizadores de
eventos passados.
1.4.2 Jorge: o arqueólogo moderno
A família Calliari tem no “primo Jorge” o arqueólogo que constrói metodicamente a
rede de parentesco. Jorge mora em Florianópolis e não traz um motivo explícito para a sua
pesquisa da ancestralidade. Relata que a distância dos primos e dos tios o levou a sugerir um
Encontro da Família Calliari, o primeiro, que ocorreu em 1998 em Florianópolis com a
presença de 80% da família, segundo sua informação. A família está dispersa entre os Estados
do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul e Jorge diz que a distância, as datas propostas
– sempre em feriados, pois a festa ocorre em algum hotel em que os membros ficam
hospedados – e a situação econômico-financeira são impedimentos definidos pelas comissões
organizadoras para a ausência de uma parte.
Jorge anda com a árvore genealógica armazenada em seu notebook, uma vez que as
Festas trazem novidades sobre a ascendência. Diz que o trabalho é exaustivo, mas interessante
e envolvente.
Eu faço porque eu gosto. Descobri um programa de computador onde só coloco os
dados e ele organiza e direciona as informações. É um programa gratuito, muito
interessante. Iniciei a montagem da rede [de parentesco] por causa da minha mãe,
que disse que as informações iam se perder com o crescimento da família. Pensei
nos meus filhos: como não vão saber dos avós, dos tios, dos primos? Têm que saber
de onde vieram!
Todas as informações são encaminhadas “ao pessoal de Florianópolis”, diz Marinês,
prima de Jorge que mora em Joaçaba (SC).
Enviamos dados sempre atualizados de casamentos, nascimentos, falecimentos e
todos os fatos ocorridos entre um encontro e outro. Edita-se um folhetim, que
chamamos de ‘Informativo Nono Bepi’, em homenagem ao nosso bisavô, e o
entregamos aos participantes durante os encontros.
Jorge mostrou a árvore genealógica organizada por ele com o auxílio de um software
gratuito
49
. Nesse momento, aproximam-se dois adolescentes e sentam conosco. Jorge
49
www.genopro.com.
113
apresenta o filho e um sobrinho. Conversei longamente com os dois sobre os significados
desses encontros, a importância de mantê-los, etc.
Eu gosto das Festas da nossa família. A gente encontra os primos que moram longe
e é muito bom parar em hotel... tem muita coisa para fazer (Thiago Calliari – 14
anos).
Por mim eu vinha todos os anos... A gente depois se encontra no msn e no verão nós
vamos a Florianópolis e aí ficamos juntos de novo. Cada vez é melhor... Cada
encontro a gente vê como é bom encontrar os primos... e o tio [referindo-se ao ‘Tio
Milo’] (Antônio – 13 anos).
O interesse dos meninos pelo computador e pela árvore genealógica que estava na tela
denota o envolvimento com a informática e a curiosidade sobre os seus lugares na genealogia.
Os meninos apontam seus avós, seus pais, buscam outros primos... enfim, pode-se observar a
multiplicidade de significados ‘legíveis’ traduzidos em uma simetria entre o mundo interior
dos meninos e o mundo social externo da Festa.
Em meio à conversa com os meninos e Jorge, este aponta para uma questão importante
– e percebida como um ‘recado’ aos garotos –mencionando o custo para cada um dos
membros e que não foi possível, para muitos, comparecerem em virtude dos altos valores que
comportaram o período previsto no hotel. Alguns parentes que moravam próximos vinham de
suas residências e passavam o dia com os que estavam no hotel. Outros vieram apenas para a
abertura e para o jantar que ocorreria à noite. Ele mesmo se disse preocupado com o montante
dos custos, ainda que tenha feito uma reserva desde que havia sido anunciada a programação
com quase um ano de antecedência. Marinês também concorda com esse aspecto, mas
compreende que sempre a intenção é de que as pessoas não esqueçam desse momento, “vivam
aquilo como um sonho”.
Nesse aspecto, importa retornar ao tema de que os recursos materiais são diferenciados
entre seus membros. Os parentes ainda vinculados a atividades primárias (agricultura e
criação de animais) dispõem de recursos mais restritos e deslocar-se diariamente ao hotel
ainda é uma alternativa possível e interessante. Cabe, portanto, esclarecer que o evento não
ocorre de forma idêntica a todos. Nele há a evidência de sistemas amplos de significados e
valores que se estendem muito além dessa situação imediata. No entanto, a união e os
esforços empreendidos para participar do encontro com os parentes são percebidos como a
volição em manter os laços familiares cujas diferenças do ‘mundo de fora’, de um cotidiano
vivenciado com recursos mais escassos, não implicam compartilhar com os seus do ‘mundo
de dentro’, de domínio privado, de domínio afetivo.
114
1.4.3 Marinês: uma das fontes de memórias
Marinês (61 anos) é a guardiã da memória familiar. Fez o magistério e atuou como
professora por 13 anos. Diz que esse foi um tempo especial em sua vida. Sempre esteve
envolvida com o comércio da família – ótica e jóias –, desde adolescente. No entanto, foi com
o falecimento de seus pais que ela assume, junto com o marido, o controle como sócia-
proprietária. Ela tem quatro filhos, sendo que os dois mais novos trabalham com ela nas óticas
(matriz e filial). Ela é apontada pelos primos como a guardiã da memória (Halbwachs) da
família de descendência. As fotografias e as lembranças são guardadas por ela com muito zelo
e tem, do mesmo modo, muito orgulho por essa atividade. Tem muito prazer em conversar
sobre a família; no entanto, meu contato com ela ficou restrito à festa e fomos interrompidas
por muitas vezes.
Percebe-se o assédio sistemático dos parentes, sendo a sua pessoa sempre a referência
às informações, aos novos encaminhamentos, às futuras atividades previstas na festa. Ela diz
que mesmo não estando na comissão de organização, acabava sendo solicitada e adorava que
isso ocorresse.
Essa função que Marinês assume de referência na rede familiar foi amplamente
analisada por Segalen (1991)
50
e por Duarte (2006)
51
. Em especial, chamo a atenção a
Micaela di Leonardo, que traz em um artigo desenvolvido a partir de uma pesquisa com
mulheres ítalo-americanas e as suas relações com o parentesco e a vida econômica, no qual a
autora encontra o envolvimento destas mulheres com três tipos de trabalho: o trabalho
doméstico e cuidado dos filhos, o trabalho no mercado de trabalho e o trabalho de parentesco:
By kin work I refer to the conception, maintenance, and ritual celebration of cross-
household kin ties, including visits, letters, telephone calls, presents, and cards to
kin; the organization of holiday gatherings; the creation and maintenance of quasi-
kin relations; decisions to neglect or to intensify particular ties; the mental work of
reflection about all these activities; and the creation and communication of altering
images of family and kin vis-A-vis the images of others, both folk and mass media.
Kin work is a key element that has been missing in the synthesis of the "household
labor" and "domestic network erspectives. In our emphasis on individual women's
responsibilities within households and on the job, we reflect the common picture of
households as nuclear units, tied perhaps to the larger social and economic system,
but not to each other. We miss the point of telephone and soft drink advertising, of
50
A autora assinala o papel das mulheres como agentes da sociabilidade familiar que envolve as relações
cotidianas ou as celebrações, cujos pivôs são as crianças. As tarefas de competência da mulher se estendem
desde a manutenção dos jovens até a sua inserção no mercado de trabalho, de reunir os familiares para
aniversários, nascimentos, mudanças, bodas, como também inserir os parentes idosos no contexto familiar.
51
“Tanto em relação à família quanto à religião, é o gênero feminino que se apresenta como socialmente
responsável. [...] Também aqui prefiro enfatizar o critério de associação da mulher ao plano de uma
relacionalidade fundamental, tanto societária quanto cosmológica” (Duarte, 2006, p. 11).
115
women's magazines' holiday issues, of commentators' confused nostalgia for the
mythical American extended family: it is kinship contact across households, as
much as women's work within them, that fulfills our cultural expectation of
satisfying family life (Leonardo, 1987, p. 442-3)
5253
.
Ao ser questionada sobre o que leva a família a realizar os Encontros ou Festas da
Família, Marinês diz, com muito entusiasmo:
A Família Calliari (Carlos e Emma, que são os patriarcas) é e sempre foi muito
alegre, unida, brincalhona, com muitas “estórias”, verdadeiras aprontadas para
contar, motivo de reencontro com os tios, primos, gerações mais novas para que
não se perca este jeito gostoso de viver e ver a vida com muita alegria e disposição.
Percebe-se que mesmo sem a presença dos avós, tios e alguns primos já falecidos, a
turma sente a necessidade de encontrar-se para recordar bons e belos momentos.
Vovó Emma faleceu com 89 anos e vovô Carlos José com 100 anos. Viveram
apaixonados um pelo outro. Quando de minhas visitas, encontrava-os no quarto,
bem juntinhos, rezando e conversando. Por tudo o que já expus, sentimentos, aliás,
compartilhados por todos os membros da grande família, é que se sentiu a
necessidade de encontrar-se e reviver estes momentos tão marcantes no seio da
comunidade familiar, mesmo que de dois em dois anos.
O trabalho de “parentesco” de Marinês se estende também às gerações anteriores, na
festa percebida a sua atenção aos tios presentes. Observa-se a solidariedade entre as gerações
em um quadro de trocas mais amplo. Ao tipificar a família Calliari como alegre, brincalhona
há uma classificação moral pelo viés da consangüinidade que permite pensar a sua
transmissão e perpetuação “de forma que um indivíduo tem sempre algo de outro, nunca é
uma individualidade autônoma” (Abreu Filho, 1981, p. 137). Observa-se nesse detalhe a
categoria sangue operar a articulação entre o individual e a totalidade – os Calliari.
A visita da neta e a valorização da identificação com a linhagem em um plano
afetivo tornam explícita a vitalidade das redes de parentesco concomitante à
divulgação de crise das famílias e dos casamentos formalizados, que dizem respeito,
na verdade, à crise do modelo familiar dominante. O amor romântico no sentido
52
Por trabalho de parentesco, me refiro à concepção, manutenção e celebração ritual de laços de parentesco entre
diferentes lares de um grupo familiar, incluindo visitas, correspondência, ligações telefônicas, presentes e cartões
para os parentes; a organização de encontros durante feriados; a criação e manutenção de relações quase
familiares (de parentesco); decisões para negligenciar ou intensificar laços particulares; o trabalho mental de
reflexão sobre todas essas atividades; e a criação e a comunicação de imagens diferenciadas da família e parentes
vis-à-vis as imagens dos outros, tanto na mídia popular quanto na mídia de massa. Trabalho de parentesco é um
elemento chave que tem faltado na síntese do "trabalho familiar" e da "rede de perspectivas domésticas". Em
nossa ênfase na responsabilidade individual da mulher tanto no lar quanto no trabalho, nós refletimos o retrato
comum dos lares, como unidades nucleares, vinculadas talvez ao sistema econômico e social mais amplo, mas
não entre si. Nós evitamos o ponto dos anúncios de telefone e refrigerantes, das edições de revistas femininas
direcionadas a férias , da nostalgia de comentaristas confusos acerca da mitológica família americana ampliada:
são os relacionamentos de parentesco entre lares do grupo familiar, tanto quanto o trabalho da mulher no âmbito
deles que preenchem nossa expectativa cultural de satisfazer a vida familiar (Leonardo, 1987, p. 442-3).
Tradução livre.
53
É importante mencionar os trabalhos que compreendem o universo familiar brasileiro de Moreira Leite (2001),
Lins de Barros (1987), Salem (1980), Fonseca (2004).
116
idealizado é colocado nas entrelinhas por Marinês e denota significativamente a
associação da mulher ao “sagrado e aos valores do coração [...]. Trata-se de um
mosaico conceitual (o modelo ‘mediterrâneo’) no qual os valores do coração estão
associados à casa, à família e à mulher, sendo ela sua guardiã privilegiada”
(Dauster, 1984, p. 103).
1.4.4 Tio Milo: entre memórias e risadas
Os fenômenos contados por ele são interessantes, às vezes engraçados, outras vezes
amargos. A família Calliari relata inúmeros casos que envolvem esse personagem quase
‘mítico’ observado a partir do assédio dos jovens, principalmente. Um deles foi contado pelo
próprio “Tio Milo” (87 anos), como é chamado carinhosamente por todas as gerações, sob o
olhar atento da platéia que percorre os corredores do hotel, seguindo em cortejo atrás do Tio
Milo, à espera de um novo caso. Ele não casou e os sobrinhos dizem que nem poderia casar,
pois não podia “ver um rabo de saia”. Imediatamente, o Sr. Milo volta-se para mim e
pergunta, jocosamente: “Ainda há tempo... senhora ou senhorita?”. As gargalhadas dos
sobrinhos ecoaram no salão em que estávamos e pude perceber que, onde quer que estivesse o
“Tio Milo”, haveria sempre uma legião de sobrinhos e sobrinhos-netos no entorno. Sua
alegria e senso de humor são contagiantes. Ao indagar qual era a profissão de seu pai, que
havia vindo da Itália assim como a mãe, ainda crianças no final do século XX, o Sr. Milo
conta com orgulho não só as profissões que seu pai exerceu. Aproveita a oportunidade para
reforçar as qualidades de um homem que tinha destaque na totalidade do grupo familiar:
Alfaiate, músico, maestro e gerente de banco. [...] O velho sabia música, ensinava
música, e dizia muitas línguas, era muito inteligente.
Os filhos seguiram os caminhos do pai. Dos seus onze filhos homens e uma mulher,
uns seguiram na rede da alfaiataria, outros seguiram profissões burocráticas vinculadas ao
mercado financeiro. Todos estiveram envolvidos com a música, seja desenvolvendo estudos
de algum instrumento, seja na composição e autoria de músicas que obtiveram algum sucesso
na cidade que moravam. Naquele instante, Tio Milo, o Sr. Atílio (seu irmão) e Jorge
(sobrinho) comentam sobre as suas profissão e a de seus pais:
– Meu pai, quando quebrou o Banco Pelotense que ele era gerente, perdeu 125
contos de réis, era maior depositário do banco, fazia poupança, 125 contos de réis.
Aí depois, por causa da revolução de 30, que o governo encrencou, pagaram depois
de 40 anos, depois de 40 anos não valia mais nada. A Revolução de 30, a revolução
de 30 que tirou o dinheiro, o governo do Rio Grande do Sul fez empréstimo e aí
depois não pode mais pagar, aí distribuiu em ações no valor de 500 mil réis cada
ação e pagavam o juro de seis em seis meses –, [diz Tio Milo].
117
– Ela perguntou qual a profissão que os filhos herdaram! –, [repete alto para que os
tios ouçam].
– Meu pai era alfaiate –, [diz Jorge, o sobrinho].
– E eu moço comecei no alfaiate pra poder jogar futebol. Aprendi a profissão
porque meu pai não queria que eu jogasse futebol, eu fui com meu irmão em
Erechim aprender um pouco a trabalhar, pra jogar futebol, aí quando sai de lá eu
virei músico e bancário... Eu fui bancário e sou aposentado como cartorário da
justiça, sou titular de cartório, crime, júri,... Eu perdi uma vista e quase perdi outra,
me aposentei por invalidez em cima dos processos, 400 processos criminais em
andamento –, [diz Tio Milo].
A transmissão familiar das profissões denota uma continuidade vista por Bourdieu
(2005) como uma ‘herança cultural’ que determinava a manutenção das linhagens em
categorias socioprofissionais. Sem dúvida, trata-se das gerações mais antigas, uma vez que as
gerações mais novas fazem uso dos diplomas universitários em uma clara mobilização na
escala social.
Em um outro momento, conversando com Marinês, também sobrinha de Tio Milo e
Tio Atílio, ela traz uma exceção à herança cultural: seu pai, então filho do casal Carlos José
Calliari e Emma, ao casar com sua esposa (mãe de Marinês), mudou-se para Joaçaba, em
Santa Catarina, e fundou um estabelecimento comercial – Joalheria e Ótica Calliari –,
trabalhando, então, como ourives e ótico.
Nossa família era formada de pelo meu pai e minha mãe, Ernesto José e Olga
Calliari, eu e meus irmãos Gilberto e Carlos. Ela foi sendo forjada com muito
empenho, dedicação, trabalho, formação e educação em todo o tempo de
encaminhamento de nossas vidas. Participávamos nas decisões das atividades
comerciais, pois sempre tivemos comércio. Quando criança, passei por algumas
dificuldades financeiras, pois meus irmãos mais velhos estudavam em Curitiba e
para mantê-los as despesas eram grandes. Meus pais eram pessoas maravilhosas,
muito católicas, honestas e sociais. Seus ensinamentos deixaram marcas profundas,
principalmente pelo testemunho. Não houve diferenças na educação entre nós
irmãos, e... bem, o que podemos constatar é que nem sempre o resultado é o mesmo.
A diferença está na personalidade, no caráter de cada um. As pessoas com quem
mais convivemos foram as nossas famílias paterna e materna; avós, tios, primos,
pais, esposo, filhos, netos e um número grande de bons e ótimos amigos.
Procuramos passar aos filhos, hoje, e também aos netos tudo o que recebemos dos
nossos antepassados, dentro da visão dos dias de hoje, com suas tendências e
mudanças, sem menosprezar a estrutura necessária: escala de valores, ética,
religião, conceitos morais, etc.
Esse trecho traduz um fato importante sobre a ausência de homogeneidade entre os
membros familiares e, conseqüentemente, as famílias também se apresentam diversas pela
incapacidade e pela desigual propensão a conformar-se àquilo que foi definido como modelo.
Isto é, nem sempre há a mesma inclinação a aceitar a visão comum que resulta em,
eventualmente, a sobreposição dos pontos de vista individuais. No entanto, a filha, diante do
falecimento dos pais, assume a rede comercial, deixando sua profissão de professora de lado.
118
Novamente observa-se a questão de gênero, quando é Marinês a abrir mão de seu projeto
profissional que tanto lhe satisfazia para dar continuidade aos negócios fundados por seu pai.
Exerci o Magistério por 13 anos, com as atividades de professora, secretária e
diretora. A educação é o processo através do qual a pessoa adquire conhecimentos,
técnicas, hábitos, valores e atitudes; ela deve ajudar a pessoa a se tornar membro
útil da sociedade. Os 13 anos de magistério foi um tempo importantíssimo para
minha vida. Conviver com crianças, adolescentes e jovens, juntamente com seus
familiares, deixaram-me marcas profundas e a certeza de que através de uma boa
educação se constrói um grande país. No comércio estou há 32 anos de atividades
iniciadas muito cedo, ainda no tempo de adolescente, ao lado dos pais,
interseccionados pelos 13 anos de magistério. Quando se deu meu retorno
definitivo, exerci as funções de gerente, compradora, vendedora. Desde 1990, com o
falecimento de meus pais, ao lado de Celso, meu esposo, assumi o estabelecimento
comercial da família, como sócia-proprietária. Temos quatro filhos, sendo que os
dois mais novos trabalham conosco: Eduardo, como técnico em ótica e
administrador de empresas, na matriz, em Joaçaba; Karina, como optômetra,
gerencia a Filial de Videira.
Essa continuidade se estende aos seus filhos. E retomo a perspectiva de Pierre
Bourdieu sobre a ‘herança cultural’:
[...] a tendência da família a se perpetuar no indivíduo, a perpetuar sua existência
assegurando sua integração, é inseparável da tendência de perpetuar a integridade de
seu patrimônio, sempre ameaçado pela dilapidação ou pela dispersão (Bourdieu,
1996, p. 132).
De igual modo, o enunciado de Marinês se insere em um contexto e em uma trajetória
cujos projetos individuais estão associados à esfera familiar. A perpetuação dos negócios da
família estende-se pelas gerações sugerindo um tempo que se repete, cíclico, de uma força da
família como o espaço referencial fundamental.
1.5 A Festa da Família Pretto
A minha relação com a família Pretto é muito próxima. Uma das minhas filhas casou-
se com um membro da família e o contato e a participação em uma festa se deve a essa
aproximação.
É interessante pensar essa família uma vez que realiza dois encontros
sistematicamente. Um dos encontros é o Grande Encontro, como chama o Sr. Ângelo Pretto.
O outro encontro é o Pequeno Encontro, onde participam os parentes bem próximos “da
minha família e das famílias de meus irmãos”. As classificações que envolvem os grupos
119
familiares também são relatadas nos estudos de Segalen que trazem diferentes formas de
expressão alhures. Diz, então:
[...] Na Baixa Bretanha de hoje, distingue-se entre parentes próximos, tud ker tost
(literalmente, as “pessoas parentes próximas”), os que são “um pouco parentes”,
designados pelo termo cousined, e, finalmente, uma terceira categoria de parentes,
os “absolutamente nada parentes”, sendo entre estes os que preferencialmente se
estabelecem os casamentos (Segalen, 2006, p. 162).
Não participei de nenhum encontro promovido pela família extensa. Na verdade, a
importância para os membros ligados ao ‘tronco’ do meu genro está no acontecimento do
chamado evento ‘pequeno’, tendo em vista que este tem um motivo singular: dois irmãos se
casaram com duas irmãs: o Sr. Ângelo Pretto casou-se com Dona Ida Berté, que é irmã de
Dona Letícia Berté, que por sua vez se casou com o irmão de seu Ângelo, o Sr. Hermínio
Pretto, já falecido. Os filhos dos dois casais sempre tiveram uma convivência muito intensa e
hoje, os filhos dos filhos mantêm, também, uma forte ligação que tem origem nos eventos que
ocorrem sempre em Lajeado, onde mora a Dona Letícia. Esses eventos não têm uma data
específica, fica por conta da família em Lajeado organizar.
A festa grande da família ocorre de dois em dois anos, em diferentes municípios da
região de colonização italiana. A genealogia da família Pretto fica por conta de um parente
que é padre. Essa característica religiosa marca profundamente a vida da família Pretto e, em
especial, a do Sr. Ângelo e Dona Ida – “herança forte de sua mãe” – relata, então. O casal
freqüenta regularmente a igreja do Colégio Anchieta, próxima de onde residem e exigem,
dentro do possível, que os filhos e netos realizem os rituais religiosos fundamentais previstos
pelo catolicismo: batismo, 1ª comunhão, casamento religioso, etc. Essa premissa, inclusive,
foi geradora de conflitos que marcam a relação dele com seu neto mais velho que, na ocasião
da 1ª comunhão, recusou-se a realizá-la.
A árvore genealógica a que tive acesso é a parcial, a que contempla o “grupo pequeno”
familiar. Elaborada de forma artesanal, ela inicia com os antepassados que viviam na Itália:
Antônio e Mathea Pretto, trazendo, a seguir, o filho que vem com sua família da Itália,
Francesco e Luigia Pretto. A organização da árvore desse ramo específico fica por conta de
uma das filhas de Dona Letícia, Maria Helena. Conta ela que a relação estreita que tem com
os tios, primos e filhos dos primos está fortemente ligada ao fato das irmãs terem casado com
os irmãos: além desses laços sangüíneos muito fortes e assim justificados pelos primos, as
duas irmãs sempre foram muito unidas e essa convivência proporciona um conjunto de
sentidos muito semelhantes sobre as experiências vividas em comum: “Não vejo meus primos
120
como primos, apenas. Para mim são meus irmãos, nos criamos juntos, sempre uns na casa
dos outros”.
A trajetória de vida da família Pretto, especialmente a do Sr. Ângelo, é de muito
sucesso. Ele conta com orgulho que iniciou com uma carroça em que transportava “de tudo
um pouco”, passando posteriormente a realizar essa atividade com o auxílio de um caminhão.
“Andando para tudo que é lado”, novas oportunidades foram surgindo na vida do Sr. Ângelo
e, com uma forte intuição, foi adquirindo bens, até comprar um pequeno moinho na cidade de
Progresso (RS). Dedicou-se ao empreendimento e hoje é dono da maior rede de moinhos no
Estado. Sua empresa conta com a participação de muitos dos nove filhos que tem e com um
dos netos. Essa escalada ascendente de mobilidade social é relatada como fruto de muitas
privações e que os filhos, faz questão de fixar, os estudos que desenvolveram o auxiliaram a
ampliar o patrimônio. Verifica-se, desse modo, que a família Pretto é fortemente integrada,
não apenas pela afinidade do habitus, mas também pela solidariedade dos interesses, isto é,
pelos capitais simbólico e econômico.
A trajetória geográfica da família de Ângelo Pretto é ampla. O casal iniciou a sua vida,
após o casamento, no interior do Estado, na região de colonização italiana. Moraram em
Lajeado, Progresso, Dois Lajeados para, então, virem para a capital. O relato sobre a vida fora
do ambiente familiar referencia apenas ao Sr. Ângelo. Dona Ida cuidou dos nove filhos e
ocupava-se das lidas da casa. Mulher dedicada às suas convicções religiosas e ao consumo
comedido, pautado pelo mínimo de gasto e à poupança dos recursos, Dona Ida agrega até hoje
os filhos, suas famílias nucleares e os netos, que já estão no início do processo de formação
das próprias famílias, com os almoços nos sábados. Se o tempo está bonito, será feito um
churrasco no sítio de Seu Ângelo e Dona Ida. Se o tempo não está propício, o almoço será na
casa do casal em Porto Alegre. As reuniões sistemáticas assumem um tom de comemoração,
envolvendo as três gerações que se divertem entre partidas de tênis, futebol e conversas
informais. Ainda que todos os parentes encontrem-se vinculados direta ou indiretamente com
os negócios da família, os assuntos a eles relacionados não são tratados naquele espaço. Em
alguns fins de semana, há a presença de amigos que têm laços estreitos com o grupo em
virtude de compadrios e de envolvimento mais amplo que abrange atividades profissionais.
Essas relações estão marcadas pela escolha, mas que, no entanto, tem subsumida uma
reciprocidade que estabelece uma rede de troca de favores e auxílios mútuos.
121
1.5.1 O Pequeno Encontro: a intensidade da convivência
O convite ocorre de forma inesperada e aceito imediatamente seguir com alguns
parentes a Lajeado, onde será o “Pequeno Encontro”, carinhosamente chamado por Dona Ida
Berté Pretto. O encontro se restringe a três gerações – avós, filhos e netos –, unindo as
famílias Pretto e Berté. Esse é um acaso extremamente curioso, pois o Sr. Ângelo Domingos e
Dona Ida saíram da região de colonização italiana, onde moravam desde pequenos, há muito
tempo, “no tempo em que os filhos eram ainda pequenos” – como relata Dona Ida. No
entanto, os primos mantêm entre si laços muito estreitos, facilitados pelas possibilidades de
comunicação atuais: telefone e correio eletrônico.
Ambas as famílias têm um traçado de sucesso financeiro. Falam que souberam
aproveitar as oportunidades e souberam poupar muito durante toda a vida. Esse aspecto é
deflagrado quando Dona Ida serve a sobremesa após o almoço. Era uma torta feita por sua
irmã, Letícia, e a espessura das fatias que Dona Ida corta é motivo de brincadeiras dos filhos e
netos pela sua ‘transparência’.
Estamos em setembro de 2006 e o frio continuava a soprar. Saímos em direção à
Lajeado às 10h da manhã. Fui no carro com Bernardo, Manuela, Jaime e Isabel –
respectivamente, genro, filha, pai e a sua segunda esposa. Apesar de o dia estar lindo, o frio
que insistia em soprar, restos de um inverno que teimava em permanecer, a viagem foi
agradável, com uma música suave acompanhando todo o trajeto e muita brincadeira que
Jaime fazia em torno do filho.
Durante o caminho, Jaime e Bernardo trouxeram algumas lembranças de encontros
anteriores, relatos interessantes que traduzem muito claramente a importância de reunir-se
com os parentes, seja nas grandes Festas, seja nas Festas restritas ao tronco dos avós, que são
comuns a todos os primos da geração do Jaime.
Sempre estivemos juntos. Meu pai nos colocava no caminhão e íamos visitar os tios.
Nossa infância sempre foi junto. Nossas férias passávamos lá em Lajeado ou eles
vinham para cá. Do meu lado são nove irmãos, do lado dos meus primos são seis.
Era muita criança, mas os mais velhos cuidavam dos menores, cada um fazia
alguma coisa.
As relações familiares são construídas e reconstruídas cotidianamente, não apenas em
virtude do trabalho que muitos dos nove filhos e o neto realizam estar vinculado à empresa do
Sr. Ângelo. Afora esse aspecto, como foi dito anteriormente, todos os sábados há o almoço na
casa ou no sítio de Dona Ida e Seu Ângelo, no qual os nove filhos e suas famílias
122
comparecem. Bernardo afirma que não se sente obrigado a comparecer, mas que “estar com
os avós, os primos e os tios é sempre muito bom”. Os vínculos familiares compreendem os
espaços de sociabilidade e de funcionalidade que marcam relações de afeto e profissionais.
Imaginei que o Pequeno Encontro seria compartilhado intimamente sem o conjunto de
detalhes observáveis nos grandes eventos. Para minha surpresa, ao chegarmos no restaurante
da sede do Banco do Brasil em Lajeado, este tinha em um recanto uma decoração com a
genealogia da pequena família e com fotos dos antepassados mais diretos: pais do Sr. Ângelo
e de Dona Ida, lembranças de falecimento, foto de primos e tios. O salão de pequenas
proporções tinha diversas mesas espalhadas e, na hora do almoço, sentaram-se organizados
em pequenos grupos. A família de Seu Ângelo uniu as mesas e todos ficaram próximos.
Participaram outros primos que também fizeram parte da infância dos filhos de Dona Ida. A
conversa corria entre pequenos grupos em tom alto e repleto de boas gargalhadas. Conversei
com a prima Maria Luisa, que ficou encarregada de organizar essa Festa. Ela fala que, na
verdade, é um primo padre que é responsável pela genealogia e por recolher as histórias da
família. Comentei que gostaria de entrar em contato com ele, mas ela falou que ele estava em
Roma desenvolvendo estudos, e que por isso não estava na Festa. O almoço foi anunciado.
Imediatamente todos se acomodaram e o Sr. Ângelo iniciou uma oração de agradecimento e
louvor. Toda a família colocou-se de mãos dadas e acompanhou a oração concentrada. O
vínculo com a religião católica se estende a todos e a oração antes do almoço é uma prática
sistemática para a geração do casal. Já os filhos e netos do Sr. Ângelo não praticam os rituais
religiosos. No entanto, os momentos de encontro com os parentes ‘efetivos’ (Bott, 1976) são
sempre marcados com uma oração de agradecimento pela união, saúde e harmonia de todos os
familiares e amigos presentes. Todos acompanham com atenção e a figura do ‘avô’ que dirige
esse momento solene é revestida de uma força moral – sem deixar de reconhecer os pontos de
vista político e econômico contidos na figura do Sr. Ângelo – que congrega os familiares em
torno da religiosidade, sendo que esta imprime sentido à trajetória de ascensão social
conforme a direção expressa nos agradecimentos a Deus. A vivência religiosa é mostrada
como marca de uma identidade a ser seguida por todos os parentes, e àqueles que não
compartilham dessa dimensão, observou-se a autoridade do avô sobrepondo-se a esse aspecto
contrastivo.
A seguir, todos se serviram e o almoço transcorreu alegre e barulhento. De sobremesa
havia uma torta famosa na família, elaborada pela irmã de Dona Ida. Quando Dona Ida
posicionou-se para servir, os filhos e sobrinhos iniciaram a brincadeira, pois dizem que as
fatias que Dona ida corta são “transparentes” de tão finas, e que ainda faz cara feia quando
123
alguém pede repetição. A fama de sovina corre pela família. Dona Ida ri das brincadeiras, mas
continua a cortar a torta em fatias finas, apesar de todo o protesto.
Nesse meio tempo, observei a grande proximidade das novas gerações com os mais
velhos. As crianças passaram rodeando os avós, os netos mais velhos cuidavam das crianças
menores, os primos conversavam e jogavam bola. Há, na realidade, uma intensa relação intra
e intergeracional explícita. Nesse ambiente, foi possível observar que a mesma preocupação
que os avós têm na manutenção da união familiar também já se configura o membro que aos
poucos deverá substituí-los. É uma filha do Sr. Ângelo e Dona Ida. Ela esteve atenta durante a
festa para que todos estivessem integrados, os que se afastavam ela ia ao alcance para que
retornassem, passou brincando e cuidando de um e de outro. Após a confraternização e perto
da tarde cair, os grupos foram se despedindo pouco a pouco. “Como de costume”, diz Ivete, a
tia que parece ser a futura parenta que agregará a família, “vamos passar na casa da tia
Letícia, pois ela fez o doce que o pai [Seu Ângelo] gosta”.
Esse foi mais um momento de proximidade que marca a vida familiar. Dona Letícia
havia feito um doce com creme de baunilha para oferecer ao cunhado. Em um instante a mesa
estava posta e várias iguarias produzidas por ela surgiram. O espaço social alimentar surge,
então, como mais uma fonte de coesão do grupo familiar. Esse grand finale é um lugar de
tradição já estabelecido e comenta a Dona Ida que o Sr. Ângelo já sai de Porto Alegre
anunciando que comerá o doce no final da tarde.
O retorno foi rápido e tranqüilo, como foi a Pequena Festa, que se traduziu em
perceber que os elementos que são estratégicos para a revivificação e manutenção dos laços
afetivos que unem a parentela Pretto é o convívio (comunicação) sistemático que produziu um
conjunto de experiências vivenciadas em conjunto no passado, a religiosidade, a presença de
alguém que esteja preocupado em promover a interação e, por fim, a cultura alimentar que
tem o papel, também, de lugar de resistência identitária. Ou seja, são questões que surgiram
como sinalizadores importantes na construção de idéias-valores comuns e serão mais apuradas
mais adiante.
1.6 A Família Mundstock
O contato com a Família Mundstock foi feito através da minha orientadora, a Profª.
Drª. Cornelia Eckert. Ela pertence à família Mundstock por conta da linhagem materna, e
124
nesse caso é interessante trazer os estudos de Abreu Filho (1981)
54
sobre o nome de família e
a posição do gênero feminino nesse contexto. A indicação para a entrevista sobre as Festas da
Família Mundstock recorre a um primo envolvido com a genealogia e com a organização de
dois eventos. De igual modo, a Profª. Cornelia emprestou-me o vídeo da 1ª Festa, que ocorreu
em Horizontina, em outubro de 1992. Observei-o como um recurso etnográfico.
O primo Ivo Mundstock mora em Candelária, berço de seus antepassados. Trabalha
em uma casa de comércio de sua propriedade, que fica ao lado de sua residência. Mora com a
esposa e os dois filhos que estudam e trabalham em outras atividades. Ao lado moram os
sogros, que convivem intensamente, como uma extensão da sua casa.
O deslocamento a Candelária ocorreu em um feriado na cidade e nosso encontro foi
marcado por telefone com um tempo razoável de antecedência. O fato de ser um feriado na
cidade fez com que pudesse ter contato com todos e os depoimentos foram ricos para a
compreensão das diferentes gerações sobre o evento e o parentesco nele incluído. Cheguei em
torno das 9 horas da manhã e acompanhada de uma amiga que se ofereceu a me acompanhar,
tendo em vista seu conhecimento sobre a região por razões profissionais. Olívia, esposa de
Ivo, havia indicado com precisão a localização da sua casa e esse ‘mapeamento’ feito por
telefone foi decisivo para encontrá-la, uma vez que a cidade é cortada pela estrada de acesso e
as ruas seguem essa mesma ruptura anunciada pelos moradores como o ‘lado direito e o lado
esquerdo’ da cidade.
Nossa chegada foi percebida e o casal já estava na frente da casa para nos recepcionar.
Ao encontrá-los de imediato percebi a semelhança da cor dos olhos entre Ivo e Cornelia.
Comentei o fato e Ivo complementa que “esse é um traço forte da família”. Ao conhecer seus
filhos, posteriormente, não havia como não reconhecer as palavras de Ivo sobre o tema.
Sentamos na sala e iniciamos a entrevista, compartilhando o chimarrão. Tanto Ivo
quanto Olívia foram precisos nos relatos sobre os temas genealogia e Festa da Família. Olívia
envolveu-se muito com a organização de duas festas que ocorreram em Candelária e fala
sobre as demandas das Festas de forma muito prática que denota a experiência que conquistou
nessa tarefa.
Ivo inicia a entrevista contando a origem da família:
Assim, pra entender melhor, veio o imigrante com quatro filhos. Um diz que faleceu,
e aí, dos três filhos, dois ficaram aqui em Candelária e um foi pra Ijuí. ‘É’ esses
Mundstock que tem ali na serra, Santa Rosa,... Enfim, são desse que foi pra Ijuí.
54
O autor trata do caráter patrilinear de transmissão do nome, demarcando os dois grupos: o do pai e o da mãe.
Este caráter se impõe integralmente em duas gerações, no caso de filhas mulheres.
125
Então se chegou à conclusão que todos os Mundstock são parentes. A mesma
família. Até agora, pelo menos é assim... Com o tempo, os parentes foram indo
morar em outros lugares, em Horizontina também e naquelas bandas todas. Daí
eles resolveram de fazer uma festa da família e contataram, contata com um,
contata com outro, e lá tem o Martin que é uma pessoa que tinha bastante relações,
na época ele era da SLC: Schneider, fabricante de tratores e ceifadeiras, e então,
ele tinha bastante contato. Mas aí, também primos meus de Porto Alegre me
ligaram pedindo para que eu abraçasse aqui, fizesse o convite da região. Montamos
assim um livro com endereços atualizados pra daí poder convocar. Eu peguei o
pessoal daqui que eu conhecia e quem eu não conhecia eu tentava descobrir...
Para Ivo, a história da família tem início na chegada dos imigrantes aqui no Brasil
Esse não é um fato isolado, presente apenas na fala de Ivo. Os estudos desenvolvidos por
Giralda Seyferth acenam para esse aspecto, que tem amplas proporções sobre a estrutura
familiar nos descendentes de imigrantes alemães:
Os imigrantes, simbolicamente, romperam os laços com o território alemão no ato
da renúncia da cidadania de origem, assumindo a ‘colônia’ como uma nova pátria.
Para aqueles que se fixaram, não existiu a expectativa do retorno, e mesmo a
contagem dos ascendentes nas genealogias de parentesco se encerra no casal de
pioneiros. [...] Apenas alguns colonos remediados e empresários bem-sucedidos
procuram estender suas genealogias até a Alemanha, na maior parte dos casos sem
qualquer resultado (Seyferth, 1994, p. 15).
Não obstante, esse movimento em tempos passados promoveu a endogamia étnica
como resultado da formulação ideológica de uma comunidade étnica teuto-brasileira que se
estrutura mediante o contato com a sociedade brasileira mais ampla, tornando visíveis as
diferenças sociais e culturais associadas à colonização e à conservação de costumes e
tradições trazidas da Alemanha. Entretanto, paulatinamente, os processos de urbanização e
industrialização, aliados à mobilidade dos descendentes que partem do meio rural para as
cidades em busca de novas oportunidades ligadas, principalmente, ao avanço da escolarização
e a um mercado de trabalho, preservam ainda algumas características de diferenciação
inclusivas, tais como o estilo de vida, as festas anuais no interior que concentram um grande
número de turistas, a manutenção da língua alemã em boa parte dos descendentes.
Outro aspecto importante que chama a atenção é sobre a seguinte observação: “Esse é
um traço forte da família”. Sobre essa questão, os estudos de Abreu Filho (1982) são precisos
sobre as categorias definidoras do parentesco e estas estarem associadas ao sangue, à raça e ao
nome de família. Esse caso remete, especificamente, à idéia de sangue vista como uma
substância transmissora de qualidades físicas e morais, formadora do corpo e do caráter. Essa
noção de sangue, “enquanto categoria de pensamento atua como operador de relações de
identidades, de relações diferenciadoras e de relações hierarquizadoras. O sangue dá conta de
126
identidades familiares, de tipificações individuais e da demarcação e diferenciação de
famílias” (Abreu Filho, 1982, p. 99).
Ivo é o genealogista ‘artesanal’ da família. A classificação que atribuo a ele é
motivada pela imensa árvore transcrita em folhas de cartolina e que são dispostas nas Festas
para serem completadas pelos que dela participam. Ele relata que foi um outro parente que era
historiador que iniciou as pesquisas da árvore genealógica. Adônis Mundstock era professor
na Escola Júlio de Castilhos (Julinho) em Porto Alegre e faleceu precocemente. Suas
pesquisas, entretanto, estavam bem avançadas, com boa arqueologia das linhagens na Europa,
ultrapassando os ramos do casal pioneiro, chegando aos parentes anteriores, que nasceram e
viveram na antiga Confederação Germânica. Com o falecimento desse parente, o filho, primo
de Ivo, assumiu a continuação dessa tarefa.
Ficou com o Mauro Mundstock, só que o Mauro é..., não sei, ele não dá muito
acesso às coisas que o falecido Adônis saiu e fez pesquisa... até começou a escrever
um livro e, pelo que sei, esse livro está semi-acabado, não sei a quantas está,
porque aquilo o Mauro guarda em sete chaves, eu não sei o porquê. Inclusive houve
manifestações de pessoas de mais poder na família em participar, em ajudar pra
que isso possa ir adiante, mas...
A gigantesca árvore foi exposta nos dois encontros maiores da família. Depois do
falecimento do pesquisador guardião da memória, a continuidade da pesquisa torna-se mais
rarefeita. O empreendimento na árvore genealógica assume uma proporção de conflito, tendo
em vista que Ivo considera uma atividade a ser compartilhada entre todos os membros da
família, uma vez que diz respeito ao conjunto. No entanto, para esse impasse ele buscou uma
alternativa interessante e aprovada por muitos que integram a rede de parentesco e que chamo
aqui de genealogista artesanal. O fato de que o seu preenchimento conta com a participação
daqueles que se dispõem a colaborar, a árvore ‘artesanal’ passa a ser pública e de autoria
múltipla, como mais um espaço de compartilhamento e conhecimento a ser difundido.
Observa-se também que há uma hierarquia instituída ao referir-se a “pessoas de mais poder
na família”. Questionado sobre essa questão, Ivo traduz como pessoas que “circulam mais
entre os troncos”, atribuindo o poder àqueles que mantêm uma maior sociabilidade no
interior da rede de parentesco. Esse fenômeno pode ser pensado, de igual modo, àqueles que
em suas trajetórias projetaram o nome da família e passam a ser referência no círculo familiar.
Eu sei que daí Adonis veio, eu me lembro também que uma imagem dele, de um
senhor lá na casa dos meus pais. Eu era pequeno ainda na época, ele deixou [a
árvore genealógica] na minha tia e eu fui lá buscar e aí eu comecei e fazer. Eu
mesmo peguei uma cartolina e transcrevi na cartolina a árvore, aquilo que eu tinha,
127
aí em cada reunião as pessoas iam colocando aqueles que faltavam. Claro que
muita gente se perdeu no tempo, principalmente a ramificação de mulheres que já
não participavam mais da árvore, da família, do nome Mundstock, então aquilo ali
ia se perdendo, mas tem muita gente que consta ainda.
Observa-se novamente a lógica patrilinear da transmissão do nome de família e as
implicações que esse fator traz na recomposição da rede de parentesco. Essas implicações
referem-se à ordenação formalizada da genealogia, no entanto, assim como “aquilo ali ia se
perdendo”, também se perdiam as mulheres ao longo do tempo e, também, essas mulheres
perdiam as referências da sua família de origem.
As Festas da Família Mundstock avançam os limites do país. Já compareceram os
parentes da Alemanha, receberam notícias de parentes nos Estados Unidos incluindo,
também, aqueles parentes que migraram para outros estados brasileiros e que se deslocam
para participar dos eventos. O encontro com os Mundstock na Alemanha é relatado de forma
interessante:
O Pastor Eckert, em uma vez que ele esteve na Alemanha, ele foi a Munique, não sei
se foi na Igreja... eles também são da nossa igreja, sinodais, quer dizer, nós aqui
somos sinodais, lá são evangélicos... e, de repente se encontraram, não sei como...
Sei que o pastor convidou esses Mundstock pra virem a participar e foi justamente
naquela época que tinha o Encontro em Ijuí e eles realmente vieram: veio o casal e
uma filha. E esse senhor que veio nasceu na mesma região, nasceu e se criou na
mesma região de onde saíram os meus antepassados, os antepassados Mundstock
do Brasil. Só que de lá eles tiveram que sair na Segunda Guerra, eles foram
expulsos e hoje pertence à Polônia. Ele era jovem ainda, todos os alemães foram
expulsos da Polônia, tanto é que ele teve que chegar durante a guerra mesmo até a
Munique... Como também tem Mundstock nos Estados Unidos, tem Mundstock
também em outras partes da Europa. Veio um amigo meu que esteve nos Estados
Unidos a serviço da empresa dele... e ele, provavelmente, acha-se assim que ele
tenha pago alguma coisa com cartão e caiu na mão de um Mundstock e aí esse
Mundstock também mandou um livro, editado só em inglês, pra ele aqui no Brasil,
com endereço, pegou o endereço, tudo, e mandou um livro editado. É esse aí.
Cabe ressaltar que o Pastor Eckert foi casado com Dona Herta Mundstock Eckert,
falecida em 1998. O fato de ser um parente afim não o coloca fora da rede parental, ao
contrário: segundo Ivo, é um membro que é referência à família Mundstock. Nos encontros
festivos aos quais compareceu, ficaram por sua conta as preleções religiosas. De igual modo,
foi ele a figura responsável pelo contato com os parentes na Alemanha, denotando nessa ação
a sua preocupação em ampliar as fronteiras do grupo familiar.
A organização da festa requer o investimento em um tempo para a preparação. Os
primeiros encontros os contatos foram feitos por carta e anúncio no jornal evangélico. Hoje já
há o recurso do computador, mas, segundo Ivo, com uma abrangência restrita. A preocupação
maior é, na verdade, o aviso aos parentes – “não pode esquecer de ninguém” – e, para isso,
128
foram escalados dois ou três parentes de cada localidade que se responsabilizaram de avisar
sobre o evento na sua região. Desde a primeira Festa, os organizadores contam com uma lista
de presença contendo endereço e telefone. Essa lista é passada aos próximos responsáveis
para que agilizem os contatos. O convite enviado conta com a solicitação de confirmação de
presença, tendo em vista a contratação de um bufê e o salão que abrigará a festa. Ivo relata
que inicialmente havia uma grande preocupação em “ocupar o tempo da festa”, trazendo
algum número de dança ou canto-coral. No entanto, esses momentos não fizeram o sucesso
esperado, pois – afirma Ivo – “o pessoal quer mesmo é conversar, matar a saudade”. Quanto
às despesas, o cálculo é feito por participante e cobrado no dia da festa. No entanto, os
organizadores já contavam com despesas anteriores que eram distribuídas entre os
organizadores e, eventualmente, com mais algum parente que se dispunha a antecipar um
valor. O relato sobre a organização é bastante econômico, porém, os encontros entre os
organizadores são contados com detalhes:
Então a gente marcava, assim, um domingo, e aí eles vinham aqui. Não podia faltar
o churrasco!. O bom é que a cada festa também vai se vendo o que pode melhorar,
o que fazer, o que oferecer de almoço, de café da tarde, o início da festa...
Compreende-se, portanto, que a Festa é a etapa final de consolidação e manutenção de
laços sociais mais estáveis, de formas diversas de solidariedade e de um quadro de situações
vivenciadas em família. Olívia, por sua vez, relata as situações criadas para o reconhecimento
da importância dos Encontros da Família Mundstock que vão desde as faixas que anunciavam
o Encontro, a confecção dos crachás que os participantes recebem na entrada distribuídos
conforme o tronco de pertencimento, a breve meditação feita pelo Pastor Eckert, o almoço, o
café da tarde e a visita aos túmulos dos pioneiros daquela região. Outro aspecto importante
erguido por Olívia é o cuidado dispensado às crianças e a preocupação em que vivessem a
experiência do sentimento em família:
As crianças, por exemplo, existe esse sentimento da família, o reencontro, a vontade
de rever, conhecer aqueles que nunca viram. Mas as crianças estão desenvolvendo
esse sentimento de conhecer novos primos, de conhecer, de entender um pouco a
idéia. Posso também falar dos nossos aqui... eles curtiam muito isso. Pena que
agora está meio parado... mas todo mundo levava os filhos e é uma festa pra todos.
A descontinuidade das Festas se deve ao fato da falta de mobilização dos parentes que
residem em Porto Alegre. Não há, efetivamente, uma acusação a essa questão; há, sim, um
grande pesar pela suspensão temporária, na visão de Ivo:
129
Está tudo bem, mas eu acho que é porque Porto Alegre não tem comunidade, eles
não fazem festa de igreja, essas coisas que possam reunir esse povo aí junto. As
comunidades, não têm. Eu sempre digo assim, é uma integração que tu estás
fazendo porque essas comunidades não existem só para os membros, elas são pra
integração com a comunidade em geral, pra toda a sociedade, porque, afinal,
quando eles precisam, eles procuram só os membros? Não, eles procuram toda a
sociedade, querem uma ajuda de toda a sociedade, não só de um grupo. A festa de
igreja é a mesma situação... a festa de igreja, se for só pelo pessoal da comunidade
da igreja que pertence àquela congregação, pode fechar porque não sai festa. Tem
que chamar toda a sociedade pra daí sair uma festa e daí, então, sempre fica
(aberto). Meu ponto de vista é esse. É, isso aí, e nas comunidades, na maioria das
vezes, se chama as pessoas da própria comunidade, envolve junto também.
Essa é uma questão que importa chamar a atenção sobre essa tensão que há entre o
viver na metrópole e o viver nas cidades do interior. Essa colocação não é pensada sobre
simples oposições, mas como estilos de vida diferenciados por conta das interações sociais
nas quais na vida no interior, a pessoa continua no centro das relações, diferentemente da vida
nas metrópoles, em que o indivíduo se encontra em meio a uma trama de relações transitórias
vivenciando as formas de reciprocidade na rede de parentesco de forma bem mais descontínua
e fragmentada, ao contrário de um cotidiano com um ritmo mais acomodado que fortalece a
visão de mundo familística e religiosa que ainda povoa o imaginário dos habitantes
interioranos. Segundo as possíveis responsáveis pela organização do evento que deveria
ocorrer em Porto Alegre, as irmãs Clarissa e Cornelia Eckert, o que ocorreu foi a total falta de
disponibilidade de tempo. Os organizadores deveriam ser, além das duas irmãs, um professor
de Agronomia da UFRGS e um dono de restaurante. Em 1995, a presença dos familiares
Mundstock da Alemanha foi motivo de reunião no restaurante do primo Mundstock em Porto
Alegre, na Avenida Assis Brasil. No processo de escolher o responsável de organizar o
próximo evento, houve um troca-troca de informações, endereços, telefones, mas todos
deixaram “o assunto morrer”, como explica Cornelia. Ainda existe o sentimento entre as
irmãs de compromisso de organização não realizado, mas argumentam que isso só seria
possível no tempo da aposentadoria.
Esta dimensão traz no âmbito da análise o que Georg Simmel define por vida na
cidade quanto aponta características do fenômeno urbano em suas formas conflitivas de estilo
de vida. A estética descontínua das relações ganhando sobre formas de sociabilidade
tradicionais. Esse movimento que ele define pelo conceito de objetivação da formas subjetivas
transformando as formas em “conteúdo” pelo predomínio das de determinações abstratas (o
dinheiro, a burocracia, o Estado, a divisão social do trabalho, etc) sobre a cultura subjetiva. A
complexa atividade social do trabalho, o tempo subsumido ao trabalho entre outras dinâmicas
130
urbanas e a diversidade das redes de relações com uma pluralidade de motivações se
acentuam em detrimento da vida comunitária tradicional.
O fato de o evento ter como finalidade promover referências simbólicas que estejam
em consonância e dêem conta das relações ambivalentes entre o tradicional e o moderno, a
vida no interior e a vida na metrópole, o global e o local, vividas no interior dos grupos
familiares é que, a partir disso, se estabeleça a conjugação de representações, bem como a de
novos significados e valores, a de novas práticas e experiências familiares criadas por esse
evento festivo. Mas a continuidade da festa em seu formato cíclico pode ser facilmente
rompida no descompromisso dos organizadores eleitos tomados em seus próprios
compromissos. O que aponta para uma característica bastante contemporânea do evento Festa
de Família, a vulnerabilidade de sua continuidade, menos pela contestação ou indiferença aos
seus objetivos, mais por incapacidade de projetar um excesso de tempo na disputa com o
tempo do trabalho de profissões desempenhadas nas grandes metrópoles. Como explicou
Cornelia Eckert em relato sobre o tema: “não é fácil organizar um evento que pode chegar a
1.000 pessoas. Isso demanda muita dedicação e gastos imprevisíveis”.
A solução encontrada por parte dos familiares foi recorrer a encontros menores,
envolvendo redes de parentes de uma localidade ou de uma região mais circunscrita. A rede
de Santa Rosa organizou uma atividade neste sentido em 2006 e uma rede de primos que
veraneiam nas praias do Estado já realizaram dois encontros em Capão da Canoa, RS. A
iniciativa de reunir as primas em Santa Rosa parte de Flávia, que traz esse empreendimento
motivado pela idéia “de manter o carinho pela família”. Esse encontro é realizado todos os
anos e reafirma os laços daquelas “que possuem muita intimidade, pois cresceram juntas”.
Os encontros são realizados cada vez na casa de uma das primas e, segundo Flávia, é uma
oportunidade de acompanhar o cotidiano dos membros da família que estão próximos e
relembrar fatos que marcaram as experiências vivenciadas conjuntamente no passado.
Os encontros dos primos realizados em Capão da Canoa tiveram nas irmãs Rosane e
Mara as promotoras e organizadoras da 1ª edição, realizada em fevereiro de 2008, e da 2ª, em
janeiro de 2009. O recente encontro, em 17 de janeiro, foi organizado por Cornelia, que
acolheu os primos na casa de seu pai – o Pastor Eckert –, com a colaboração das irmãs. Fui
convidada a participar e trago o encontro etnográfico após a descrição do 1º Encontro, que
segue abaixo.
131
1.6.1 A Festa em imagens
O título atribuído ao vídeo que utilizei como material etnográfico e que foi cedido pela
Profª. Cornelia é 1° Encontro da Família Mundstock – 25 de outubro de 1992. O encontro
ocorreu em Horizontina
55
, cidade em que fixou residência um dos três filhos do casal de
alemães que imigrou para o Brasil.
A filmagem foi feita por um dos participantes da festa – ocorrida no Clube da
AABB/Horizontina
56
–, e o enquadramento da câmera VHS visou ser abrangente sobre os
fatos que aconteceram por ocasião do evento. Esta inicia com a apreensão da chegada dos
convidados à Festa acompanhados, ao fundo, de músicas alemãs. Eram recebidos pelos
organizadores com abraços e servidos de chimarrão. Imediatamente eram encaminhados ao
livro de presença e à colocação dos crachás de identificação, onde constavam o nome do
convidado, a inscrição “filho de...” e a cidade de origem. A decoração do salão foi
cuidadosamente pensada. Na recepção havia cartazes de boas-vindas, flores nas mesas e os
copos foram decorados com guardanapos com a inscrição “1º Encontro da Família Mundstock
– Horizontina”. Entre as paredes e os espaços das mesas, foram distribuídos fotografias de
antigas gerações, objetos antigos como moedores e lampiões de ferro. As mesas eram grandes
– os grupos familiares buscaram sentarem juntos – e foram distribuídas de forma aproximada.
Após estarem todos os convidados acomodados, em um pequeno palco são feitos os
agradecimentos à comissão organizadora, que foi, então, convocada a subir ao local e
recebida com muitos aplausos. Os agradecimentos seguintes são aos familiares que atenderam
à carta-convite, comparecendo com as gerações mais novas e que era em nome delas que a
Festa acontecia. São anunciados os objetivos da Festa:
Rever velhas amizades; oportunizar que cada um conheça os mais jovens da família
e aqueles que encontraram e um ou em uma Mundstock a sua cara-metade;
recordar a trajetória da família, restabelecendo e preservando a sua história – um
valor que nós temos como muito importante no mundo atual e valioso para os
nossos herdeiros; resgatar uma breve recordação da nossa geração hoje, aqui, que
foram os encontros tão freqüentes na casa do Vô Fritz – o Vô Frederico Guilherme
Mundstock.
55
Município situado na Região das Missões, ao noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Horizontina integra a
Região do Alto Uruguai e é conhecido como o “berço das colheitadeiras automotivas”. Sua colonização foi feita
por imigrantes alemães, italianos e poloneses.
56
Associação Atlética do Banco do Brasil.
132
A seguir é apresentado o neto do genealogista oficial – Mauro, o filho do Adonis – que
dará continuidade ao trabalho iniciado em 1964. Mauro, então, relata algumas peculiaridades
relacionadas à genealogia:
A árvore teve início em 1964. As cartas dirigidas à Alemanha Ocidental retornaram
com respostas; já as dirigidas à Alemanha Oriental retornaram sem respostas e
violadas. Os Mundstock têm um brasão, como relatam os parentes que se fixaram
nos Estados Unidos e na Austrália.
Outro membro toma a palavra e mostra o passaporte do imigrante que chegou aqui em
1854.
Karl Mundstock nasceu em 1811 e, casado com Christine, teve quatro filhos.
Vieram para o Brasil na escuna “Netuno” e fixaram-se em Candelária. Conta-se
que um veio a falecer e os outros três irmãos casaram-se com três irmãs e dois
foram morar em Ijuí e em Santo Ângelo.
A reconstituição dos troncos que dão origem à família no Brasil é feita solenemente e
o locutor ressalta a presença de um membro da família que comporta cinco gerações. Há
também a homenagem a um casal que naquele dia completava 45 anos de casados.
O próximo momento traz a preleção de um jovem pastor luterano que não faz parte da
família, mas que se sentiu parente diante dessa iniciativa louvável dos Mundstock de “trazer
a memória histórica enquanto um valor fundamental de vida”. Ele conta um caso de um
parente seu alemão que veio para o Brasil com a idéia de saber sobre antigos parentes e
ninguém soube informá-lo sobre os antepassados. Ele complementa essa questão, atribuindo
ao mundo de hoje viver em um ritmo acelerado e que isso promove o individualismo. No
entanto, a genealogia é um valor fundamental ao povo de Deus. Afirma que a família bíblica é
diferente da família de hoje. A primeira abrigava três, quatro gerações em uma mesma casa e
‘família e casa’ era a mesma coisa, uma comunidade de gerações que unia os parentes em
uma linha interminável no tempo. A família de hoje é uma família menor, reduzida, nuclear.
A seguir pede licença para ler um trecho de uma poesia de Luiz Borges que fala sobre o viver
a vida sem tanta limitação, deixando de lado momentos bons como os que vivemos com os
familiares. Conclui, afirmando: “Vale a pena viver a vida com gratuidade e com mais
intensidade. A vida está feita de momento, não percam o agora. E agora é a reunião em
família”.
O almoço servido foi um bufê organizado pelo ecônomo do clube, seguido de um bufê
de doces variados. Posteriormente foram anunciados os agradecimentos às mulheres da
133
família que elaboraram as iguarias. A seguir os organizadores retornam ao palco e solicitam
que “a cabeça” de cada casal ou núcleo familiar levante para receber a lembrança de
acolhimento. Levantaram-se apenas os homens. Encerraram esse momento com o seguinte
anúncio:
Um dos fatores mais importantes que a família traz é a continuidade. E um dos
compromissos que assumimos é que, também, os encontros tivessem continuidade.
Houve a confirmação de continuidade no ano seguinte pelo parente Ivo Mundstock
em Candelária. O livro de registro passa agora às mãos do próximo grupo que
organizará o 2º Encontro da Família Mundstock que será no último domingo do
mês de outubro em Candelária.
Ivo Mundstock toma a palavra, trazendo o significado de a festa ocorrer em
Candelária, sendo este o local de onde que saíram as origens de todos que estavam ali.
Agradecia a confiança recebida do grupo de Horizontina e solicitava o auxílio para organizar
o próximo encontro, tendo em vista a experiência desse grupo. Esperava que o sucesso fosse
igual ao que hoje todos estavam assistindo.
No momento seguinte, todos são convocados para participar da fotografia oficial do
Encontro. Os idosos ocuparam o lugar central e as crianças foram colocadas à frente. Ao
dispersarem-se, agrupam-se para degustar cucas acompanhadas de cuias de chimarrão. Os
grupos se distribuíram e é possível perceber certa classificação de gênero.
A gravação é interrompida e volta a exibir uma apresentação de dois músicos que
tocavam canções alemãs em um clarinete e um trompete. Os ritmos eram variados e, de fato,
como Ivo comentou na entrevista, as pessoas não pareciam envolvidas com o show. O
momento era de sociabilidade, troca de conversas e interações. Por fim, há um parente que
empunha uma gaita-ponto e toca músicas alemãs, acompanhadas pelo canto tímido de alguns
membros próximos. O vídeo é encerrado com as imagens das flores e ornamentos que
enfeitavam o cenário festivo.
1.6.1.1 Reflexões sobre as imagens editadas ou sobre o que foi significativo...
A escolha por trazer a etnografia do vídeo sem interromper para as análises
necessárias é a tentativa de trazer a Festa em sua total estrutura. Sendo assim, a reflexão
repousará gradativamente sobre os pontos considerados significativos para a problematização
necessária. O primeiro aspecto a ser considerado é que a festa ocorreu em 1992, há 16 anos.
134
Essa indicação é necessária, tendo em vista a possibilidade de deslocamentos e mudanças que
trazem versões mais contemporâneas às reflexões que serão enfatizadas.
A decoração da Festa traz inúmeros indicadores de um pertencimento simbolicamente
representado nos objetos em exposição, nos guardanapos de referência à família, nas
fotografias dos antepassados colocadas em lugares de destaque. A geração mais jovem tem
esses bens simbólicos como representativos em um processo de socialização e apreensão de
uma identidade familiar.
Consideram-se como naturais as diferentes fases da vida e dotadas de significados
distintos mesmo dentro de um mesmo contexto social. A complexidade sobre essas diferenças
está inserida nos níveis de desenvolvimento de sentidos e práticas próprias para cada etapa do
curso da vida e, nessa direção, a ênfase atribuída às gerações mais novas é exatamente o
desejo que haja a apreensão dos significados e dos valores sobre as experiências em família
ainda não vivenciadas por esses grupos.
Tendo em vista a individualização na sociedade moderno-contemporânea, na qual as
experiências são vivenciadas de forma singular, reordenar a família por meio de um evento
festivo, criando um espaço para as emoções, é possibilitar experiências compartilhadas em
planos afetivos. Outra questão é trazer à tona a história da família, principalmente os
primórdios da sua estruturação com a vinda dos imigrantes e dos filhos desse casal fundador,
mais especificamente como expressão das mudanças históricas e culturais reconhecidas nos
objetos antigos expostos, nas imagens fotográficas dos antepassados distribuídas no salão.
Por outro lado, observa-se a conservação de determinados papéis sociais, como as
relações de gênero, por exemplo. Ao solicitar a apresentação da “cabeça” de cada casal ou
núcleo familiar, só houve a manifestação masculina. De igual modo, às mulheres couberam os
agradecimentos aos doces por elas elaborados. Esse fator surge reincidente a outras famílias
perscrutadas, nas quais as mulheres foram enquadradas na hierarquia familiar em uma posição
subordinada aos modelos femininos de valores tradicionais. No entanto, essas mulheres
encontram-se inseridas no mercado de trabalho e dotadas de alguma autonomia sobre sua
trajetória individual, conforme foi observado na entrevista com Ivo e Olívia.
A coexistência de valores tradicionais e modernos não está restrita apenas às relações
cotidianas e conflitivas entre as gerações. Ela é vivenciada internamente nas experiências de
vida pautadas por uma visão de mundo que alterna valores modernos e valores tradicionais. A
Festa não foge a essa conformação, uma vez que amplia a relação entre os parentes adotando
formas modernas de comunicação, o reconhecimento da ausência de tempo para cultivar as
relações de parentesco, a redução do número de filhos nas famílias nucleares, o
135
individualismo e, por outro lado, expressam formas tradicionais sobre os papéis sociais entre
os membros, próprios de um modelo ‘patriarcal’, cuja definição de divisão sexual de papéis
observa-se enraizada às condições do passado.
1.6.2 O 2º Encontro de Primos: memórias das experiências vivenciadas entre
contemporâneos
O convite para participar do encontro com os primos veio no meio da semana que
precederia a festa. Recebi o telefonema de Cornelia e combinamos, entre ligações e e-mails,
que eu iria com ela a Capão da Canoa na manhã do dia 17 de janeiro. Saímos de Porto Alegre
em torno das 8h da manhã, prevendo menos trânsito na estrada que liga a capital ao litoral,
tendo em vista que esse é um período de intenso movimento em virtude do deslocamento dos
moradores das cidades para aproveitar as férias de verão. Chegamos à casa da família Eckert
por volta das 10h, tendo como parte da bagagem de Cornelia, artigos para enfeitar o local,
filmadora para registrar a festa e tortas doces para comemorar a presença cara dos primos e
suas famílias.
A organização do espaço para o encontro foi realizada rapidamente com o auxílio dos
parentes próximos que já se encontravam na casa: irmã, cunhado, sobrinho, etc. Foram
pendurados alguns balões na fachada, estendido um toldo para proteger o local do almoço,
distribuídas cadeiras para a acomodação dos convidados, etc. Logo inicia a chegada dos
parentes que vinham a pé – aqueles que veraneiam em Capão – ou de carro – aqueles que se
deslocaram de outras praias do litoral. A chegada de cada um dos parentes era muito
comemorada e a combinação de que cada família traria um prato para o almoço, provocou um
desfile de iguarias caprichosamente elaboradas que revelavam a importância atribuída àquele
momento especial.
O ambiente descontraído misturava a relação de intimidade entre os primos e a
informalidade da sociabilidade própria dos períodos de veraneio. A alegria era contagiante e
as conversas se concentravam entre notícias de parentes que não puderam comparecer,
lembranças de fatos vivenciados em conjunto, atualizações sobre as atividades desenvolvidas
de um ou outro primo presente. Estavam presentes primos em primeiro, segundo e terceiro
grau, misturados a tios, tias, madrinhas e seus decendentes, residentes em Santa Rosa,
Tuparendi, Ivoti, Porto Alegre, Xangrilá, Jundiaí, Cachoeira do Sul e Torres. A residência fixa
de algumas famílias nucleares Mundstock no litoral norte do Rio Grande do Sul e o costume
de veranear de outros núcleos nessas praias os aproxima no período de verão e facilita a
136
oportunidade de reunião de parentes em Capão da Canoa ou Xangrilá, onde cinco famílias
nucleares Mundstock possuem propriedade.
O encontro entre primos traduz a motivação pelo encontro familiar, tendo em vista as
experiências vivenciadas em um período histórico comum, ou, segundo Alfred Schutz (1979),
em um mundo da vida, que é o mundo social que se apresenta pré-estruturado para o
indivíduo, considerando os esforços individuais de compreensão e interpretação sobre os
múltiplos fenômenos desenvolvidos pelo “grupo interno” cultural. Por outro lado, os filhos
dos primos passam a vivenciar “as muitas receitas de comportamento prático” do campo
social familiar e acomodar o seu modo de orientação conforme os significados que cada um
subjetivamente construirá com vistas à definição de seu próprio papel e lugar nesse subgrupo
a que pertence.
A geração mais idosa, a dos pais dos primos, por sua vez, estava representada pelo
Pastor Eckert com 87 anos (pai de Cornelia, Clarissa e Cordula – era casado com Herta
Mundstock, já falecida) e pela “tia” Olívia Bauken Mundstock, com 81 anos (mãe de Mara e
Rosane e avó de Joana de 20 anos, filha de Rosane). Pequenos grupos foram sendo
acomodados conforme os interesses imediatos: o Pastor Eckert, apontado por diferentes
interlocutores como o membro guardião da memória familiar, autor de três livros sobre
histórias de comunidades luteranas e cotidiano de suas redes de parentesco e relações, foi
cercado pelos primos e as histórias percorriam desde os ascendentes imigrantes, as trajetórias
dos ‘troncos’ pelo território rio-grandense, os parentes que permanecem na Alemanha e
lembranças de fatos que envolveram as duas gerações: festas, viagens, férias compartilhadas,
etc. Algumas primas afastaram-se desse grupo e passaram a conversar sobre parentes que não
puderam comparecer, as festas de família que já ocorreram, o encontro de primos realizado no
ano anterior. Nesse momento, aproveito para entrevistar ‘tia’ Flávia (Santa Rosa), Rosane
(Jundiaí, SP) e Mara (Santa Rosa), organizadoras de encontros de primos em Santa Rosa e em
Capão da Canoa.
A motivação sobre a organização desses encontros parte de um mesmo significado:
reunir a geração que viveu intensamente os períodos da infância e adolescência. No caso de
Mara Mundstock (56 anos) e Rosane Mundstock Pizarro (49 anos), há o acento dessa
premissa pelos casamentos dos avós e tios entre irmãos e irmãs de famílias de mesma origem
étnica: irmãs da família Bauken que casam com irmãos Mundstock e vice-versa. As
brincadeiras em torno dessa mistura de famílias é motivo de muitos gracejos e risadas pela
confusão que a sobreposição de redes de parentesco provoca, sobretudo pela repetição da
profissão de dentista em três gerações, nessa fusão de Baukens e Mundstock residentes no
137
noroeste do Estado, com treze dentistas. O caso atualmente é relatado como peculiar,
denotando a transformação desse costume. Outros primos presentes já se casaram com
pessoas de outras pertenças étnicas e misceginações, como relata Eduardo Eckert Nunes da
Silva (12 anos). Bastante animado com a festa, o jovem me explica que é neto da vó
Mundstock já falecida, mas tem no nome o Eckert da mãe (Cordula Eckert, 57 anos) e o
Nunes da Silva do pai (Paulo Roberto Nunes da Silva, 62 anos). Também se refere a outras
festas da família quando um tio de descendência portuguesa apresenta pratos típicos de
origem portuguesa ou espanhola:
Eu participo das festas porque é legal conhecer as pessoas distantes que eu não
conhecia, ou conheci quando ainda era ‘toquinho’. É legal ouvir as histórias,
conhecer a comida, como a ‘paella’
57
do tio Abílio, que é gigante.
As histórias contadas, por sua vez, giram em torno de memórias sobre fatos
importantes à família e, em geral, emblemáticos na consolidação da memória familiar, como o
relatado por ‘Tia’ Flávia Mundstock Emmel (64 anos) e depois divulgado a todos por Rosane.
A curiosidade sobre o fato mostra ser de muitos parentes e denota a atividade comercial se
constituir em uma referência à identidade familiar no município de Tuparendi
58
e redondezas.
Em cima da porta da casa de comércio que era de propriedade de três irmãos
Mundstock, havia uma placa nela inscrita: “O sol nasce para todos”, que foi
colocada pelo pai da ‘tia’ Flávia, a fim de amenizar as relações tensas com outra
loja concorrente.
O encontro familiar, nesse caso, também atua como fonte de informação de fatos que
trazem o pertencimento ao grupo familiar. Da mesma forma, relata o primo Egon Mundstock
(65 anos, dentista em Ivoti) sobre a lápide dos antepassados no momento de oração que
precedeu o almoço:
Quero agradecer a Deus pelos nossos antepassados terem vindo da Alemanha e
terem dado origem a essa linda família que somos hoje. Tive a oportunidade de
estar na Linha do Rio em Candelária e ver o túmulo deles, depois de saber pelo
57
A paella (em castelhano e catalão) é um prato à base de arroz, típico da gastronomia espanhola e que tem as
suas raizes na comunidade de Valência - daí que em Portugal seja comummente conhecido como Arroz à
Valenciana. Surgiu na Espanha, nos séculos XV e XVI, na região de Valência, mais especificamente na região
de Albufera, região de grandes arrozais e de grande produção de verduras frescas. Originalmente um prato
popular, foi criada pelos camponeses que partiam para o campo com a paellera ou paella, arroz, azeite e sal e
agregavam ingredientes da caça, legumes da estação e as sobras que possuíam
(http://en.wikipedia.org/wiki/Paella - consulta realizada em 02.02.2009).
58
Município situado a noroeste do estado, a 500 quilômetros da capital e a 30 quilômetros da fronteira com a
Argentina.
138
Adônis Mundstock, antes de falecer. Quero agradecer a Deus por terem vindo para
o Brasil e devemos a eles a nossa origem e a vida que temos hoje aqui...
– ... nessa terra abençoada [completa uma prima].
Após muita conversa, o almoço foi anunciado. Todos se dirigiram a uma área coberta
com várias mesas colocadas em círculo e em um canto da área havia uma mesa onde estavam
distribuídos os diversos pratos elaborados por cada família que participava do encontro.
Assim que todos estavam reunidos, em pé, foi feita uma oração pelo Pastor Eckert e entoada
uma canção acompanhada por todos os familiares.
O cardápio contava com pratos típicos da família como o Falscher Haase – Coelho
Falso –, espécie de bolo de carne assado. Foi recomendado que eu o provasse e confirmado,
então, como muito especial, pelo sabor e pela sua apresentação. Sentei junto a algumas primas
que relembraram o período da adolescência em que os mais velhos fugiam dos mais novos
para frequentar bares e boates na praia de Tramandaí, em virtude de interesses já
diferenciados. O assunto percorreu vários períodos da trajetória das famílias, incluindo os
deslocamentos pelas cidades do interior, intercalados por uma estadia no exterior. Nesse
momento, Rosane, que mora em Jundiaí, São Paulo, comenta a sua motivação para festejar
com os primos aproveitando a presença de muitos que estão em veraneio:
A família é a única coisa que se tem. O primeiro encontro com os primos foi
organizado por mim no ano passado. Eu sempre fui muito família e esse negócio de
família é forte e, como moro sozinha [referindo-se à presença apenas de sua família
nuclear] em outro estado, sinto muita falta da família e dos amigos. Nesse espaço as
diferenças não existem, o que importa é a família.
Após o encerramento do almoço e das tortas servidas como sobremesa, segue um
momento para comemorar o aniversário da prima Marlene, casada com Plínio Mundstock, e
entoar, além do tradicional Parabéns a você, um trecho que mantém a mesma melodia com
uma letra especial cantada por todos e regida pelo Pastor Eckert:
Com Deus ao seu lado, em todo o devir, que a vida te seja um eterno sorrir. Tenha
tudo de bom que a vida contém, tenha muita saúde e amigos também.
A seguir tem início mais um momento de desconcentração com o “sorteio” de brindes
a cada um dos participantes. A idéia partiu de Cornelia, que dirigiu com muita alegria a
distribuição de lembranças que havia providenciado com antecedência, contemplando a cada
um dos presentes que podiam escolher, entre muitas opções, aquela que mais lhe dissesse
respeito. O momento foi alvo de muitas risadas e descontração, e seguiu com conversas
139
animadas entre os grupos que foram se aproximando. O tempo transcorreu e adiante se iniciou
a partida dos parentes que veraneavam em outras praias como Torres, Xangrilá e Cidreira.
Observar o filme da 1ª Festa dos Mundstock em 1992 e estar presente ao encontro dos
primos em um intervalo de 17 anos entre os dois eventos traz deslocamentos e alterações
significativas sobre alguns elementos da festa erguidos para reflexão no momento anterior.
Inicialmente é importante considerar que se trata de festas diferenciadas: a 1ª marca a rede de
parentesco em que participam muitos membros, cujo desconhecimento da extensão da rede de
parentesco e, sobretudo, de novos membros por casamentos, é a tônica. Conhecer o parente
desconhecido é a lógica da reunião em que é lançada a árvore genealógica pesquisada por um
Mundstock historiador. Essa condição leva a um comportamento mais regrado e formal entre
os participantes, que seguem a programação da grande festa organizada com muita
antecedência para a dinâmica do Encontro: culto, almoço comemorativo, apresentações
culturais, etc.
59
Já o encontro entre primos Mundstock, criado em Capão da Canoa, em 2008,
ocorre entre grupos de famílias que vivenciaram juntos experiências concretas ao longo da
vida e detêm um relacionamento afetivo significativo que se constitui sobre bases fortes de
intimidade. Trata-se de uma festa que limita a festa a uma rede de primos de primeiro grau e
seus familiares (casamento de descendência) e que, ocasionalmente, estão veraneando no
mesmo litoral durante as férias.
O local do 1º foi decorado com objetos e imagens que evocavam signos de
pertencimento à rede de parentesco e homenageiam a trajetória da linhagem Mundstock em
sua saga imigratória e de enraizamento no sul do Brasil, sendo que o encontro entre os primos
e seus núcleos o fator pertencimento a uma rede consangüínea e de alianças está explícita e se
traduz nas inúmeras lembranças de experiências compartilhadas por três gerações que são
relatadas entre os participantes.
As relações hierarquizadas observadas nas imagens do grande encontro familiar na 1ª
Festa não são observadas nas festas de rede de parentesco familiares. A grande festa exige
uma antecipação e equipe de organização, coleta das inscrições e pagamento dos gastos
empreendidos na organização. As festas menores são mais informais, onde cada núcleo “traz
um prato e uma bebida” e, nessa forma de mutirão, o encontro é marcado apenas pela
comensalidade coletiva. A entrevistada Flávia Mundstock conta que também costuma
59
O primeiro encontro dos Mundstock (Horizontina/RS – 1992) foi descrito conforme o filme analisado no
primeiro item. O segundo encontro Mundstock ocorreu em Candelária/RS (1994) e foi relatado com detalhes por
Olívia e Ivo, os organizadores da festa. O encontro de primos ocorrido em Capão da Canoa/RS (janeiro de 2009)
foi etnografado por mim.
140
organizar encontros de primos residentes próximos a Santa Rosa, que atinge municípios de
Três de Maio, Ijuí, Santo Ângelo, Tuparendi, Guarani das Missões e outros arredores. Nessa
ocasião, os primos de Porto Alegre não participam, por exemplo. A lógica do encontro menor
é a mesma relatada nesta etnografia. Segundo Flávia, não se trata de encontros anuais e
dependem da disponibilidade dela ou de algum outro dos primos de sua geração organizar o
encontro menor.
Tanto na festa da família extensa analisada quanto nesse encontro menor de primos
observado, há elementos comuns que destaco como a forte presença da religiosidade e a
reverência aos antepassados. No caso da religiosidade, a tendência é que a festa maior realize
um culto, dada a predominância de luteranos (IECLB) entre os organizadores das festas, mas,
conforme relatam nas conversas durante o encontro, há muitos católicos, sobretudo entre os
Bauken, casados com Mundstock, há primos que seguem outras religiões e os que não são
religiosos, mas todos se deixam envolver pela programação do Encontro. Outro ponto
comum, seja qual for a extensão da comemoração, é a reverência aos antepassados. Todos
buscam reconhecer as gerações fundadoras ou os pais fundadores da linhagem e, como narra
Rosane Mundstock, a intensão é comemorar a família. Para Rosane, a maior dificuldade hoje
é de as pessoas se encontrarem, principalmente aquelas que moram em grandes centros
urbanos. Irmãos que moram na mesma cidade não se visitam, relata a organizadora desse
evento. Tendo ela própria um forte apego ao seu núcleo familiar, diz que retorna em todos
veraneios para ver sua família, rever parentes e viu, nesta idéia de uma festa entre primos, a
oportunidade de juntar a rede de parentesco presente no litoral e que, nessa ocasião, acaba
inclusive por reunir irmãos que “não encontram tempo para se visitar”. Nesses encontros, há a
motivação de reencontrar-se para fazer face às inúmeras dificuldades próprias do mundo
moderno-contemporâneo.
1.7 A Festa da Família Só
O contato com a família Só foi bastante curioso. Encontrei o site da família na
internet. O site foi criado para conter alguns referenciais familiares como imagens
fotográficas, notícias, histórico, etc. A sua criação decorreu do 1º Encontro da Família Só, em
2006, e o organizador do site é José Antônio Só de Castro. Ele é também um dos
idealizadores da Festa e o genealogista oficial da família. Entrei em contato com ele pelo
endereço eletrônico que constava na página da internet, solicitando a possibilidade de incluir a
sua família na pesquisa que estava desenvolvendo. Recebi a resposta afirmativa e, a partir
141
dali, nossos contatos foram sobre o que, precisamente, ele poderia colaborar e mais algumas
trocas de informações pertinentes. Ao saber que se tratava de uma tese sobre Memórias e
Festas de Família, sugeriu que a sua tia fosse entrevistada, tendo em vista a sua condição de
longeva e a longa convivência com a família Só. Dona Edith Conceição Costa Só apresenta-se
de forma curiosa:
Eu sou Edith Conceição Costa Só, eu sou uma pessoa diferente de todas as pessoas,
porque eu casei há 64 anos com um homem Só... e fiquei Só pro resto da vida! Sou
nora de Arlinda de Freitas Só e de Luiz Afonso da Silva Só... meu marido Osvaldo
de Freitas Só...
A entrevista foi realizada na casa de Dona Edith com a presença de seu sobrinho, José
Antônio, e sua filha, Maria José, no dia 15 de setembro de 2007. Dona Edith perdeu seu
marido em janeiro deste ano e mudou-se para o apartamento ao lado do de sua filha fazia
apenas um mês. O apartamento é bem decorado, mas visivelmente adaptado para uma pessoa
de idade. Dona Edith estava, então, com 87 anos e caminhava com o auxílio de uma bengala.
Há apoios por qualquer lugar que ela transite dentro de casa. As paredes ostentam quadros
grandes de fotografias que relatam um pouco da trajetória de Dona Edith.
Dona Edith é uma parenta por aliança e é ela que relata as memórias da família de seu
marido. Como mostra Lins da Barros em suas etnografias junto a idosos no Rio de Janeiro,
“falar de família é um assunto da esfera feminina” (1987, p. 14). Tendo em vista que o mundo
doméstico é um lugar de construção social da identidade feminina, ainda que as
transformações e os questionamentos sobre o papel da mulher foram pauta a partir dos anos
60, o comportamento de Dona Edith é produto de uma geração em que a casa, aliada a outras
atividades, é preponderante na expressão do feminino. Inserida em uma ideologia familiar das
camadas altas, a trajetória, segundo narra, resulta de valores afirmados na formação de uma
aliança matrimonial fundada no amor e, posteriormente, dedicada à educação dos filhos.
Maria José, sua filha, nascida na década de 40, trabalhou desde cedo como arquiteta em um
órgão público; ainda está em atividade e assume os cuidados com a mãe, ao trazê-la para
morar ao lado, e com os filhos, quando busca informações com parentes sobre uma possível
cidadania portuguesa para atender aos projetos do filho caçula de estudar na Europa.
A noção de kin work que Leonardo traz sobre sua pesquisa desenvolvida entre
mulheres ítalo-americanas é elucidativa para a atuação de Maria José. A autora reconhece as
mulheres envolvidas com três tipos de atividades: o trabalho doméstico e o cuidado com as
crianças – no caso de Maria José, ela conta com o auxílio de uma empregada doméstica, mas
142
mantém sob sua responsabilidade a organização de toda a estrutura que envolve a sua casa e a
de sua mãe. Por sua vez, os filhos já são adultos, no entanto, residem com os pais e contam
com os amparos que a unidade familiar dispõe –, o trabalho no mercado de trabalho e o kin
work. A concepção dessa dimensão do trabalho, em geral, feminino, diz respeito ao ritual de
manutenção e celebração da vida familiar, incluindo os contatos, as visitas, os cartões de
felicitações, os telefonemas, os convites, organização de encontros nas férias e nos feriados e,
sobretudo, à criação e manutenção das relações das redes dos ‘quase’ parentes, dos amigos
íntimos e, em particular, as decisões sobre negligenciar ou intensificar os laços. Kin work é,
enfim, todo o trabalho que demanda a atenção e ação sobre essas atividades, contribuindo
significativamente para a manutenção, comunicação e construção da imagem da família à rede
mais ampla do parentesco. No entanto, essa dimensão – que tece as relações de parentesco –
não é reconhecida como ‘trabalho do lar’.
1.7.1 Memórias compartilhadas: um encontro entre duas gerações
As histórias do avô Álvaro Só, sendo ele referido por Dona Edith como “Tio Casado”,
avô de José Antônio, incluem uma que conta que ele tinha a habilidade de ver o sexo dos
bebês das mulheres grávidas. Todos os anúncios feitos por ele sobre gravidez em mulheres da
família foram acertados. Dona Edith conta um caso muito engraçado:
Todas as senhoras da família que ficavam grávidas perguntavam ao Tio Casado o
que estavam esperando:
– Tio Casado, o que estou esperando?
– Um homem... uma mulher, fosse como fosse...
Uma vez minha sogra ficou grávida de gêmeos e ele disse:
– Se tem mulher no meio, sei que tem, mas não sei como é que é...
O caso do Tio José, que andava a cavalo em Porto Alegre – naquele tempo era
hábito – foi muito engraçado... Quatro filhas! Ele comprou um petiço para o 1º
filho, que seria homem se dependesse apenas do seu desejo, e andar com ele pela
cidade.
– Tio Casado, o que a Luisa está esperando?
– Uma menina...
Em uma segunda gravidez...
– Tio Casado, o que a Luisa está esperando?
– Outra menina...
Na terceira, Tio José perguntou e Tio Casado confirmou que era menina...
Tio José então diz:
– Solta o petiço que é ele que está dando azar...
Quando eu fiquei grávida, Osvaldo perguntou ao Tio Casado o que eu estava
esperando... Ele respondeu:
– Tu não tens idéia de comprar um petiço?
143
Dona Edith conta sobre sua participação na Liga Feminina de Combate ao Câncer
60
e
o quanto trabalhou para angariar fundos para a construção do Hospital Santa Rita, que hoje
está agregado ao Complexo Hospitalar Santa Casa em Porto Alegre. Os bailes que organizava
no Clube Leopoldina Juvenil, localizado em uma zona nobre da capital e mantém o seu
quadro de sócios composto pelas camadas médias altas da sociedade, eram muito famosos e
neles eram rifados objetos inusitados. A trajetória familiar a coloca, então, como agente
responsável em organizar a vida cotidiana no interior da sua casa – distribuindo as tarefas
domésticas entre os empregados, no cuidado dos filhos e do marido – e de ativar as relações
de aliança do parentesco e de amizades, um conjunto vinculado ao plano afetivo. Por sua vez,
seu marido, funcionário público, era o provedor econômico da família, assumindo no seio
desta um papel mais instrumental.
As lembranças do passado são evocadas pelos entrevistados sempre em relação ao
presente, como diz Dona Edith (87 anos):
Naquele tempo, no tempo do meu velho, a vida era mais generosa: tínhamos tempo
para viver a família com mais intensidade. Agora, são poucos os momentos, porém,
eles são importantes e nos mostram que ainda temos uma família.
A vida da Dona Edith é marcada essencialmente pelas suas relações familiares. Suas
lembranças repousam em uma infância cuja figura paterna marca um período de felicidade
que promove um tempo complementar na figura de seu marido. É interessante que, ao
expressar o tempo familiar presente e a reordenação familiar que se estrutura em um Encontro
de Família, relata que o que a deixa mais feliz é que seu marido esteve presente no 1º
Encontro e que, merecidamente, recebeu uma placa por ser o membro mais antigo da família.
São os vínculos entre passado e presente que são tecidos, buscando referências objetivas para
que durem no tempo.
A entrevista em que referi Dona Edith foi realizada com a presença de sua filha (Maria
José) e um sobrinho (José Antônio), hoje muito próximo. A relação entre eles foi muito
intensa na infância do sobrinho e da filha, tendo se distanciado por um longo tempo após o
falecimento do avô de ambos. Essa lacuna traz relatos díspares e que não encontram conexão
60
Localizada no Hospital Santa Rita – unidade oncológica da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre –, a
Liga Feminina de Combate ao Câncer do Rio Grande do Sul mantém, hoje, 70 ligas regionais com sedes
espalhadas por todo o Estado. Há 50 anos, um grupo de senhoras da sociedade, sensibilizadas com a precária
assistência da saúde pública, particularmente em relação aos portadores de câncer carentes, teve a idéia de
melhorar a assistência médica e social a esses pacientes. A atitude se ampliou, tornando-se um trabalho bem
organizado, com o apoio de crescente número de voluntárias.
144
de sentido até quando se reencontram para organizar a 1ª Festa da Família. O sobrinho conta
desse tempo lacunar sobre a sua atuação profissional na empresa que sua mãe – irmã do
marido de Dona Edith – herdou do avô. O relato torna-se peculiar por ter uma forte ligação
com o passado de sucesso que marca o prestígio do sobrenome familiar e a falência da
empresa – “um golpe que atinge a todos” – estimula-o a pensar a sua origem.
Uma outra coisa também que foi marcante pra mim foi referente à divisão do
patrimônio da família. Coube pro meu ramo o Estaleiro Só, que sempre foi muito
emblemático na família. Então a minha ligação mais direta com o estaleiro sempre
me uniu muito à família.
Nesse sentido, as lembranças do tempo de afastamento assumem aspectos de gênero
significativos: para Dona Edith, as rememorações remontam à vida no âmbito privado, dos
seus laços afetivos em torno de sua família nuclear, enquanto José Antônio traz o tempo
ordenado pela atividade profissional, mas que se estende para as relações familiares
valorizadas na empresa que sustentava o sobrenome comum. Maria José preocupou-se em
relatar o reencontro após tantos anos:
Eu tenho esse apego à família. Eu quis fazer essa história [a Festa] para dizer a
importância dos valores de ter família, isso é muito forte. Eu tive uma família, tenho
uma família e, então, acho que ultrapassa e que vai para a grande família e é um
sentimento muito forte que eu tenho comigo, quando estou no meio da família eu me
sinto diferente. Faz uma festa, traz amigos... é uma coisa. Quando eu sei que tem
sangue, parece que o sangue borbulha nas veias, não sei explicar, mas acontece. Os
nossos encontros eu saio assim, como tudo o que eu vivi com a nossa família: as
festas de Natal e Ano Novo. Antes, cada um fazia na sua casa, cada um na sua.
Agora, aniversários e casamentos todo mundo era chamado, eram festas grandiosas
mais de família, os amigos eram poucos; essas festas reuniam mais a família. E isso
tu anota. É uma coisa diferente a nossa família. Eu sinto assim quando eu falo com
os amigos e o que me levou a ter isso, essa coisa da família.
A crítica empreendia do Abreu Filho (1981) sobre os estudos do parentesco na
contemporaneidade se reduzir, às vezes de forma sutil, ao estudo da família, vai ao encontro
dos muitos depoimentos colhidos no trabalho de campo. Sempre apontado como um lugar de
emoção e sentimentos, em consonância com a construção social da família (Ariès, 1981), o
parentesco é visto e percebido como uma extensão da mesma, ora relacionando-o ao aspecto
patrimonial (nome de família e bens), ora confinando-o à idéia de ‘sangue’. Em meio a um
sistema de representações que sofreu por um longo período a influência de uma ordem prática
da nuclearização da família, essa articulação entre representação (que confere sentido) e
prática (os sentidos, em certa medida, materializados) não é aderente às gerações mais novas.
No entanto, observa-se a Festa de Família como uma alternativa que visa uma renovação dos
145
laços de parentesco vinculados aos projetos individuais, de modo a articular-se com as
conformações dos sujeitos na ordem social contemporânea. Por sua vez, a categoria ‘sangue’
anunciada por Maria José, compartilha o sentido que Abreu Filho traz – a noção de indivíduo
englobada pela noção de sangue –, enquanto um valor que permite reconhecer-se uma ‘Só’
(um produto familiar), quanto ser reconhecida como tal na sociedade da cidade portoalegrense
(famílias hierarquicamente definidas no contexto da cidade).
José Antônio Só de Castro conta de suas lembranças sobre a família:
Os contatos eram mais intensos com os primos da família da minha mãe. A família
de minha mãe marca a minha infância quando nos reuníamos na casa de meu avô e
visitávamos seus irmãos e irmãs: era um acontecimento as visitas às casas de
minhas tias. O Estaleiro Só sempre me uniu muito à família, coube ao meu ramo na
partilha da herança (minha mãe) e ele é muito emblemático para a família, e a
minha ligação direta com o Estaleiro sempre me uniu muito com a família.
Há duas questões importantes a serem abordadas. A primeira refere-se à aproximação
da família da mãe. Os primos José Antônio e Maria José relataram a maior aproximação com
a família da mãe e do pai, respectivamente. A família do pai que Maria José refere é o grupo
de siblings. Conseqüentemente, compreende-se o tempo lacunar e afastamento, tendo em vista
que o pai de Maria José era primo da mãe de José Antônio. Essa situação é recorrente em
outros entrevistados que relataram conviver mais com os familiares da linha materna. Essas
aproximações decorrem ora do auxílio com os cuidados dos filhos das novas unidades
formadas, ora do afastamento dos homens da família de origem para constituir, com
autonomia, uma família conjugal
61
. A perspectiva com que Lins de Barros (1981) analisa as
relações entre mãe e filha justifica essa aproximação, ou reforço dos laços de
consangüinidade, a partir de um processo cooperativo e uma aliança que se funda na
solidariedade e na compreensão sobre os novos papéis a serem desempenhados pela filha na
construção de um ‘lar’, na atividade profissional e o tempo escasso para atender os filhos
62
.
61
Ver Abreu Filho (1981).
62
Lins de Barros (1987).
146
A outra questão é o patrimônio herdado, e José Antônio, ao citar o Estaleiro Só como
emblemático, traduz a corporatividade da linhagem que se expressa sobre o bem Estaleiro
63
que reporta publicamente o prestígio, enquanto capital simbólico, que acomoda a rede de
parentesco aos vínculos econômicos, como um valor de auto-representação na hierarquia
social. O Estaleiro Só permanece ainda como pauta de discussão entre os habitantes da
cidade. Enquanto ao longo do século XX até o fechamento das suas atividades foi referência
de empreendimentos no setor da indústria naval, proporcionando visibilidade internacional à
cidade de Porto Alegre, nos últimos tempos a discussão sobre o terreno, que foi vendido a
empresas do setor imobiliário, provoca a mobilização de setores da sociedade sobre os
projetos que envolviam a utilização do terreno e as suas implicações no cenário arquitetônico
e do meio ambiente da cidade.
A trajetória familiar de José Antônio apresenta-se consonante à dinâmica da
concepção de indivíduo em relação aos seus grupos de pertencimento e aos novos formatos e
arranjos familiares na atualidade. François de Singly vai usar o termo “família moderna 2”,
tendo em vista a transformação do modelo moderno anterior, que compreende o espaço de
tempo entre o início do século XX até os anos 60, caracterizou-se por compor-se centrada no
amor e na afeição, no qual os adultos colocavam-se a serviço do grupo e, principalmente, da
criança. Segundo a autora, essa família une-se e permanece junta enquanto houver amor e
divergirá em um sentido apenas: o maior peso atribuído ao indivíduo, ou seja, “o elemento
central não é mais o grupo reunido, são os membros que a compõem. A família se transforma
em um espaço privado a serviço dos indivíduos” (Singly, 2000, p. 15). É importante chamar a
atenção para os estudos da autora estarem centrados na sociedade francesa, mas que entre
63
Ele [O Estaleiro Só] foi fundado na metade do século XIX, em 1850, época em que Porto Alegre não poderia
ser considerada mais do que uma aldeia, por Antonio Henriques da Fonseca, João Ribeiro Henriques e José
Manuel da Silva Só. Tratava-se, no entanto, da primeira ferraria e fundição que se tem notícia na capital,
estabelecida na esquina da Rua Uruguai com a Praça Montevidéo, no coração de Porto Alegre. Em 1900, depois
de várias alterações societárias, passou a se chamar Só e Filhos e, posteriormente, Só e Cia., mudando, também,
diversas vezes de endereço. Produziram ferros, sinos para igrejas, tachos de cobre e, durante a guerra do
Paraguai, forneceram bocais, estribos e cornetas para o exército em operação. Neste período, parece ter se
desenhado a vocação da empresa, que também passou a fazer reparos na frota naval da Marinha Brasileira. Nas
últimas décadas, estabeleceu-se finalmente como sociedade anônima, adotando o nome de Estaleiro Só S.A.
Depois de já constituído como um estaleiro, produziu mais de 170 embarcações, cerca de 30 modelos de navios,
entre eles ferry-boats, navios-tanque, baleeiras, rebocadores, iates e pesqueiros. Seu apogeu ocorreu durante a
década de 70, do século XX. Neste peodo, chegou a contabilizar cerca de 3 mil funcionários.Os anos 80, no
entanto, foram implacáveis com o setor naval no Brasil, que sofreu um forte declínio, principalmente devido à
falta de financiamentos. O Estaleiro Só iniciou, então, um processo de diversificação de suas atividades, abrindo
uma divisão de metal-mecânica, destinada à fabricação e pré-montagem de caldeiraria pesada, semi-pesada e
leve. Esta iniciativa, que chegou a dar uma sobrevida ao empreendimento, não foi suficiente para mantê-lo ativo
nos anos que se seguiram. http://www.crea-rs.org.br/jornal/74/geral_06.htm.
147
outros tantos autores essa condição responde a uma situação mais ampla, aos países
ocidentais
64
.
Eu sou administrador de empresa, casei... estou no segundo casamento; do primeiro
casamento eu tenho dois filhos, o Gabriel e o Cláudio: um é cirurgião dentista o
outro é advogado; do segundo casamento eu não tenho filhos, mas ela trouxe os
filhos do primeiro casamento e incluindo os meus e os delas são cinco. Esse
segundo casamento já tem 24 anos. E o meu filho mais velho, o Cláudio, que é
advogado, me deu três netos, duas gêmeas, a Martina e a Camila, que estão com
três anos, e o Miguel, que fez cinco.
Não obstante, o cuidado com os filhos se estende aos períodos mais avançados em que
os mesmos encontram-se casados. Os laços familiares estendem-se às gerações mais novas,
como o cuidado do neto quando um dos filhos se viu em dificuldade com o nascimento de
filhos gêmeos. A presença junto ao neto reporta àquilo que José Antônio guarda na lembrança
sobre a presença afetiva e a importância do avô na sua infância.
Cuido dos meus três netos todas as segundas pela manhã e tenho que usar o
babador, porque eu babo. Iniciei essa tarefa quando as gêmeas nasceram e eu
passei a cuidar do Miguel para minimizar a atrapalhação – começou para quebrar
um galho e só penso em parar quando Miguel entrar no quartel...
A visão retrospectiva de sua vida orienta a sua conduta frente aos netos. A convivência
de José Antônio com o avô materno foi intensa e as lembranças mais remotas – em torno de
três anos de idade – são relacionadas à companhia de seu avô, brincando de carrinho e que a
manta que cobria suas pernas – ele havia sofrido um derrame cerebral que o havia deixado
paralítico – servia de rampa. “O cobertor era cor de café com leite”.
Por seu turno, a análise da narrativa, segue a noção de memória compartilhada apoiada
na perspectiva de Paul Ricoeur (1994), cuja intriga narrada revela os novos sentidos
produzidos a partir da tensão entre o mundo da obra e o mundo do “produtor” (de sentido). A
reconfiguração do texto narrado é o cuidado que José Antônio dispensa a seu neto e, portanto,
propõe a criação de novos universos como fruto da possibilidade de desconstrução, de
fragmentos de vida transformados em fala e no papel de avô que teve como modelo a
experiência que remonta a seus três anos de idade.
Ricoeur problematiza esse fenômeno de transmissão de gerações mais antigas às
gerações mais novas, assim como da memória transgeracional. Segundo esse autor,
64
Ver, por exemplo, a obra de Segalen (1999), Velho (1997), Sorj & Goldenberg (2001).
148
Trata-se de uma experiência forte, que contribui a alargar o círculo dos próximos
abrindo-o em direção a um passado, que, em pertencendo aos nossos ascendentes
ainda em vida, nos coloca em comunicação com as experiências de uma outra
geração que não é a nossa... A noção de geração aqui é chave e oferece este duplo
sentido, o de contemporaneidade de uma mesma geração, à qual pertence o conjunto
de seres de diferentes idades, e de seqüência de gerações, no sentido de substituição
de uma geração por uma outra... conhecemos bem este triplo reino de predecessores,
de contemporâneos e de sucessores (Ricoeur, 2000, p. 514).
Sugere-se que a relação transgeracional é fonte de comunicação recíproca de
experiências e de recomposição da memória vivenciada coletivamente, dinamizando formas
de sociabilidade e espaços de interação. José Antônio reproduz de forma atualizada a
experiência com o seu avô.
A gente sempre teve uma vida junto, unido com a família. A família da minha mãe é
de Pelotas, na verdade é de São José do Norte, depois ficaram em Pelotas. Então a
gente fazia viajem para Pelotas... uma ou duas vez por ano a gente ia. E mais a
gente conviveu com a família do meu pai. Eram sete irmãos, quatro homens e mais
três irmãs. Então, as três irmãs nunca casaram e moravam juntas. Quando se
dividiu a família e que dividiram as propriedades, a minha avó que já era viúva,
comprou uma casa na Santa Teresinha e foi morar com os filhos. Uns já tinham
casado – dois homens – o pai ainda era solteiro, era rapaz. O meu pai, que era
jovem, pegou a parte dele da herança e comprou uma ‘barata’ com dezenove anos.
Eram duas [baratas], ele vendeu uma, tinha que ter dinheiro e era, sim,
representação, distinção. E assim o pai sempre foi uma pessoa maravilhosa,
querido e como era o mais moço, todo mundo o paparicava. E nós também éramos
os sobrinhos mais moços. O pai e a mãe estavam sempre passeando, quando eu me
conheci por gente o pai tinha um jipe, ele nos botava dentro do jipe e circulava por
Porto Alegre inteiro.
As lembranças de Maria José situam a família em uma escala social expressa pelo
gosto do pai voltado a “baratas”. O estilo de vida
65
dessa rede converge com práticas de
consumo de distinção social. Em seqüência, as lembranças de um espaço íntimo das
experiências vivenciadas em família indicam códigos de posição social de prestígio, o que,
também, inscrevem um tempo familiar e uma ordem na estrutura social comum.
1.7.2 A genealogia Só: a continuidade da sua construção
Em outro momento, em contato com José Antônio Só de Castro, que é o responsável
pela construção da genealogia da família Só, me é contado que o interesse em construir a
árvore genealógica veio em virtude da venda do Estaleiro Só, quando esse entra em falência.
A empresa familiar, iniciada por seu bisavô, reunia em torno de si a representação do prestígio
65
Considera-se o conceito de estilo de vida, conforme Bourdieu: “um conjunto unitário de preferências
distintivas que exprimem a mesma intenção expressiva” (2007, p. 164).
149
e do destaque que esta havia conquistado não só nas fronteiras nacionais, e que a família havia
mantido com dedicação. Na ocasião, José Antônio decidiu organizar sua ascendência, sua
origem, como uma forma dela permanecer, de modo a não desaparecer como o ocorrido com
a empresa.
Lá pelas tantas, não lembro exatamente quando, perguntávamos à minha mãe, eu e
meu irmão: “Fulano é nosso parente?”. E a minha mãe localizava na família, aí
uma certa altura a minha mãe diz: “Olha, eu vou botar tudo por escrito porque
amanhã ou depois eu morro e vocês não vão saber quem é quem. Aí ela começou a
perfilar todos os parentes. A Edith ajudou muito a minha mãe. Ela montou a árvore
genealógica da família ao molde dela, comprou umas cartolinas grandes e
recortava nos papeizinhos o nome do fulano, casado com a fulana e aí os filhos
embaixo. Eu sempre tive por hábito sábado almoçar lá na casa dos meus pais, na
casa da minha mãe e nós conversávamos e ela fazia questão de mostrar e eu ouvia,
mas pensava: “Só a minha mãe para perder tempo com essas coisas...”. Ela montou
a árvore e enrolou aquela cartolina toda, montou a da família dela e a do meu pai
também. Aí enrolou aquelas cartolinas e ficava lá num canto da sala, lá, guardado.
Aí o meu filho mais velho ia casar e eu pensei: “Eu vou pegar as informações da
mãe, vou colocar tudo no computador e vou passar pra ele. – Olha, aqui estão tuas
raízes”. Eu comecei a fazer, pedi para mãe as cartolinas e comecei a digitar no
computador. Mais tarde eu soube que tinha um software de computador específico
para árvore genealógica. Comprei esse software e comecei a passar. Só que a
minha mãe nas cartolinas colocava só o nome da pessoa, mas não colocava ano de
nascimento, falecimento, casamento, todas as informações. Ela me deu algumas
datas e faltava a data de falecimento do meu bisavô, que ela não lembrava. Ela
disse: “Eu vou contigo no cemitério”. Fomos no cemitério, mas ela não localizou a
sepultura dele, tinham mudado. Fui na secretaria do cemitério São Miguel e Almas
e não localizei, fui no arquivo público para ver inventários e não localizei...
Localizei um inventário do pai dele, meu trisavô, e da minha trisavó e alguns irmãos
dele. Ampliei bastante aquela base de dados inicial da minha mãe.
Anteriormente houve a referência sobre a ‘cadeira’ que o avô de José Antônio, o Tio
Casado, sentava. Dona Edith, ao trazer as lembranças que marcaram as mulheres grávidas da
família diante da capacidade de Tio Casado intuir sobre o sexo dos bebês, o faz enquadrando
o cenário, o espaço e o lugar que abriga a posição do referido personagem. José Antônio
reconhece a referência ou o investimento afetivo que ela comporta e anuncia que essa cadeira
está com seu filho mais velho. A transmissão de objetos significativos marca a genealogia, a
história familiar e a manutenção da memória que encontra ‘na cadeira’ formas de resistir no
tempo. Enfim, os objetos, os álbuns de fotografia, os móveis partilhados e transmitidos
possuem uma história passível de recitação enquanto locais de memória, de espaços de
identidade familiar. A permanência dos mesmos ao longo das gerações e durante cada geração
atesta ou testemunha a perenidade da família, sobretudo pela capacidade de “memorização
tangível da genealogia através desses objetos, desses móveis, dos quais se conhece a origem, a
história e o devir” (Segalen; Zonabend, 1999, 127).
150
A tarefa de reordenar a genealogia fez com que José Antônio Só de Castro buscasse os
tios ainda vivos e, assim, chegou até a Sra. Edith Conceição Costa Só e o Sr. Osvaldo de
Freitas Só, que há muito não via. O contato com os tios para indagar sobre a ascendência
levou-o ao contato com sua prima Maria José, filha de Dona Edith, que acontece a partir dessa
atividade. Eles se comunicam a partir da iniciativa dele, que busca informações sobre o
parentesco, e ela, com o intuito do filho conquistar a dupla cidadania, uma vez que ele já
havia colhido muitos dados que o ajudaram a estender a composição da árvore familiar. Em
meio a essas considerações, surge a proposta de um Encontro da família que há muito vem
sendo pensada pelos aparentes mais velhos. Então, a Festa é organizada pelos dois, a filha de
Maria José, Mariana, e outros primos interessados. Observa-se, nesse caso, o envolvimento
direto de uma geração jovem que tem na sua participação a intenção explícita de agradar o
avô – já com mais de 90 anos – com quem mantinha, até o seu falecimento, uma relação de
afeto estreita em que os relatos e histórias da família eram motivo para intenso convívio.
Questionando sobre a genealogia, pergunto a José Antônio:
– A árvore genealógica está exposta no site da família?
– Não está. Achamos que um trabalho tão intenso não poderia ir para o site. Ele
merece um lugar de honra... Quem estiver interessado pede ao José Antônio [diz
Maria José].
– Na festa, havia uma árvore e os parentes preenchiam seus espaços, seguindo a
lógica adotada pela minha mãe, a de colar os papeizinhos. A idéia foi de Mariana e
foi muito interessante, fez com que a árvore oficial fosse ampliada com as novas
informações [diz José Antônio].
Após os relatos sobre a rede de parentesco, José Antônio remonta às lembranças da
Festa e Maria José relembra o encontro com os primos que não via desde a sua infância:
O pai e a mãe fizeram 60 anos de casados e comemoraram com uma festa.
Convidaram o José Antônio e o Sérgio para irem à festa de bodas do casamento. Os
pais deles já tinham falecido. Mamãe convidou os dois, mas eu não os reconheci e
nem conversamos naquele dia. Meu filho queria ir para o exterior e perguntei a ele
sobre nossos antepassados. Ele mandou por e-mail já no dia seguinte. Em uma
dessas trocas de e-mail, ele pergunta se eu toparia organizar um encontro da
família...
Um fato interessante a chamar a atenção é a nomeação adotada por José Antônio no
site da família e que também é de sua responsabilidade. Não há a árvore genealógica
disponibilizada aos que visitam a página, mas há um link reservado em que, provavelmente,
esteja ali alocada. No site há um calendário para os aniversariantes distribuídos ao longo dos
151
meses, e nele há a seguinte classificação: ‘puro sangue’, que atende ao princípio de
consangüinidade e ‘agregado’, aos que atendem ao princípio de aliança ou matrimônio.
O site já apresenta o convite para a próxima Festa que ocorrerá em Porto Alegre, no
dia 30 de maio de 2009.
1.7.3 A Festa: o encontro de motivações
Observa-se que as festas que reúnem a família atuam como força de perpetuação e
reprodução do grupo. É, na verdade, mais um dos ritos de convívio e sociabilidade que
fortalecem a unidade do grupo familiar. Evidentemente, em outras proporções, a Festa de
Família estende-se à rede de parentesco. Retomo a entrevista com José Antônio quando ele
declara que aos sábados sempre almoçava na casa dos pais. Pode-se pensar como um hábito
que possibilitou estabelecer uma ligação com outro tempo, ou melhor, uma sobreposição de
tempos: o tempo da casa em que viveu a sua infância, o tempo da casa em que visita os pais
em outra condição, acompanhado da sua família nuclear e o tempo da casa dos avôs, em que
os seus filhos viveram aos sábados: “dobrar-se perante esses hábitos de vida ‘em família’ e,
pois, ligar-se a um tempo fora do tempo e, por seu intermédio, ficar ligado às gerações
passadas e futuras” (Segalen; Zonabend, 1999, p. 128).
A 1ª Festa da Família Só aconteceu em Bento Gonçalves (RS), no Dall’Onder Grande
Hotel, de 5 a 7 de maio de 2006.
– Por várias vezes os mais velhos pensaram em fazer um Encontro da Família, mas
não sei por que nunca aconteceu... [José Antônio]
– Entre nós, as primas, dizíamos ‘– que bom se a gente fizesse uma reunião da
Família Só!’. Existia essa conversa. A minha filha ela sempre quis fazer o encontro
da família, também por causa do avô, porque lá em casa eles são muito
apaixonados pelo meu pai. Ela queria fazer porque achava, também, que o meu pai
ia gostar. Aí o meu filho mais moço queria por que queria ir, viajar. Então, tendo
uma cidadania portuguesa, ou seja lá o que for, fica mais fácil. Comecei a catar
pelo lado do meu marido, não chegava lá... pelo lado dos meus avós maternos,
também não chegava. E eu pensei ‘quem sabe os Só?’. Eu não tinha nada de
referência pelo lado Só, mas eu sabia que o José Antonio e a mãe dele faziam a
árvore. Perguntei à mãe o número do telefone. Liguei pra ele, mas fui pegar o
álbum e ela me mostrou de quem se tratava, pela fotografia, para saber com quem
eu estava falando. Pedi a ele e ele me mandou. No fim não deu, não chegamos lá,
porque a cidadania portuguesa o pai do meu pai tinha que ser português para,
assim, meu pai ser e passar para os outros. Numa dessas, ele pergunta:’ – quem
sabe nós organizamos uma Festa da Família?’.
A realização da Festa decorre, então, de uma confluência de intenções. Já solicitado
em outros tempos entre outros familiares, a referência à genealogia em busca de uma
152
possibilidade de incrementar a trajetória do filho através da experiência de viver no exterior e
da filha de agradar ao avô, os primos Maria José e José Antônio vão à busca de colaboradores
para a realização do evento. O que definiu a participação dos parentes foi um dos ramos do
imigrante português que chegou aqui no início do século XIX, casou-se e teve nove filhos. O
ramo dos primos é do filho José Manoel da Silva Só e José Antônio relata:
O primeiro encontro foi só com descendentes do nosso bisavô comum que é José
Manuel da Silva Só, que é um dos filhos do Manuel da Silva Só. Para o segundo
encontro, eu consegui localizar descendentes de outro ramo e um dos
representantes desse segundo ramo estava presente neste segundo encontro.
A genealogia da família Só privilegiou o ramo de descendentes daquele que dá início
ao Estaleiro Só. Observa-se que na partilha dos bens entre os herdeiros uma parcela que dá
continuidade ao patrimônio (estaleiro) e outra parcela que vende o patrimônio (a rede de
transporte de carroções) e traça outros caminhos. Essa é uma questão interessante para pensar
os arranjos familiares com relação à partilha dos bens e o quanto esse aspecto significa
privilegiar as ações dos sujeitos na construção de suas trajetórias de vida. A área econômica
adota as expressões ‘sucessores’ para os que darão continuidade ao patrimônio e ‘herdeiros’
àqueles que traçarão outros destinos aos bens herdados. A família de José Antônio sempre
esteve envolvida com o estaleiro e conta que desde muito cedo trabalhou na empresa,
inicialmente, ocupando cargos muitos simples na organização. Por outro lado, na família de
Maria José, a avó vai destinar o que herdou à compra da casa e os filhos farão usos diversos
sobre o valor distribuído entre eles. No entanto, o que cabe refletir é sobre a memória
genealógica da Família Só que se restringiu a um ramo que tem, no ascendente proprietário do
Estaleiro, a referência familiar.
Do mesmo modo, em cada um dos lados [materno e paterno], certos ramos serão
recordados e outros esquecidos. No caso do ramo cuja memória se conserva, o mais
bem conhecido, o interlocutor mencionará todos os seus parentes e dará pormenores
sobre as suas origens e o que lhes sucedeu; o outro ramo que decidiu esquecer
apresenta lacunas sistemáticas e falta-lhe informação. Na realidade, cada um utiliza
esta genealogia a seu bel-prazer e manipula a sua identidade. A importância da
memória genealógica está ligada ao valor atribuído a um ou outro ramo de origem e
cada um, nas suas filiações, suprime e opera cortes sociologicamente significativos
(Segalen; Zonabens, 1999, p. 132).
A 1ª Festa manteve, em certa medida, as diferentes etapas que vinham sendo
observadas nas festas anteriores. A religiosidade abre a cerimônia sem ser, no entanto, sob a
forma clássica de celebração.
153
A gente começou com uma benção. O padre chamou todos da comissão
organizadora. No início a gente ficou naquele negócio: vai pra igreja, vem da
igreja... então, se decidiu por uma benção ali, com um padre bem light. Foi uma
pessoa maravilhosa [o padre], melhor não podia ter sido, o nome dele é Roberto
Carlos. Ele falou sobre a família, que é uma família católica, fez a benção. Tinha
uma peça do Estaleiro, dos primórdios, do irmão dele [de José Antônio] que é um
pilão e o padre usou como um acessório: colocou a água, benzeu a água e ficou
muito legal.
O ritual da bênção conta com um objeto, o pilão, que representa simbolicamente a
perpetuação da família ao longo das gerações e como testemunho às gerações presentes. A
alocução do padre retoma a característica da família permeada pelos valores religiosos. Dona
Edith reitera a emoção que o momento trouxe a todos, assim como a filha, Maria José.
O momento seguinte foi o de organização de uma comissão para a realização de outra
Festa. Em um espaço democrático, que José Antônio chamou de assembléia, definiram uma
nova composição de parentes, com exceção de Mariana – filha de Maria José –, que
permaneceria para apoiar com sua experiência. O novo grupo ficou, então, encarregado de
organizar a Festa no ano seguinte, previsto para maio. A seguir, foram para o almoço e a
confraternização em uma varanda ao ar livre. Nesse momento, a esposa de José Antônio, que
é psicóloga, e Mariana fizeram uma atividade de integração com música e dança. No próximo
momento foram a um salão especialmente preparado para a Festa e lá José Antônio relata a
genealogia, traz fotografias dos antepassados e alguns objetos, como a máquina fotográfica de
seu avô – que era o fotógrafo da família. Cada núcleo familiar faz uma breve avaliação sobre
a família de origem e sobre a proposta da Festa.
José Antonio fez uma apresentação de mais ou menos uma hora... Ele tinha umas
coisas muito engraçadas que ele descobriu e que ficaram de herança. Ele também
contou das férias que eram em Tramandaí e o que eles compravam pra levar pra
Tramandaí. Todos estavam muito envolvidos. Depois que terminou, nós tivemos os
jogos. O meu pai jogou bocha, tinha um grupo que jogava tênis, tu te inscrevias no
que tu querias fazer... se faziam pequenos torneios e depois os campeões foram
homenageados com direito a medalha pra todo mundo. Depois dos jogos estavam
todos liberados para irem se arrumar para o jantar, que foi em um restaurante
próximo ao hotel. Fomos todos juntos pela calçada e os gaúchos puxando, iam fazer
uma apresentação lá no jantar. Na janta se deu a placa para o mais velho, que era
o pai, e ao mais moço, que era a neta de um primo.
O conjunto de atividades busca reordenar a rede de parentesco em experiências
vivenciadas em grupo, em memórias relatadas e que dizem respeito a um habitus e, portanto,
inteligível a todos e, principalmente, como uma expressão educativa às gerações mais novas
dessa concepção comum do mundo social que se traduz nas práticas e na percepção dessas
práticas experimentadas entre a família. A vitalidade da rede de parentesco, pouco a pouco,
154
vai constituindo saberes e práticas a partir de membros que se tornaram referentes com base
nas suas trajetórias de vida; e as famílias inscritas nessa rede tomam consciência de si mesmas
por meio dos rituais que as agregam e, oportunamente, perpetuam uma identidade comum.
Conta José Antônio que ao faltar um mês para a realização do 2º Encontro, Mariana e
José Antônio, com a falta de decisões sobre o evento, assumem a liderança e organizam um
almoço na Churrascaria Galpão Crioulo, em Porto Alegre. Essa medida foi bastante apoiada,
tendo em vista a falta de tempo e recursos, em alguns casos, para hospedarem-se em um hotel.
Ficou, então, definido que um ano seria em um almoço em Porto Alegre e no ano seguinte
seria um fim de semana em um hotel. A 3ª Festa da Família Só aconteceu em abril de 2008 no
Hotel Samuara, em Caxias do Sul. A 4ª será na sede campestre do SESC, na capital.
155
Capítulo 2
As Festas no Interior
Esse capítulo visa refletir, com base nas investigações realizadas, como as famílias se
articulam frente aos fluxos migratórios internos que resultam em um processo de
desenraizamento e de inserção em um universo individualizado pelos ritmos acelerados, cujas
referências de uma vida em comunidade vivenciadas no interior dão lugar a atomização das
relações efêmeras da vida na cidade. Essa condição emerge da posição observada sobre a
aparência de adesão a uma modernidade, mas que, no entanto, apresenta-se em
comportamentos tradicionalmente marcados quando há o retorno à cidade de origem.
Cabe chamar a atenção para as migrações do interior para as cidades estarem
localizadas na geração nascida entre as décadas de 1930 e 1950 das famílias perscrutadas.
Esse fenômeno marca as orientações econômicas do país que privilegia a industrialização
66
,
desenvolvida nos centros urbanos, em detrimento à agricultura, provocando uma demanda de
qualificação como, também, de mão-de-obra para ocupar os postos de trabalho oferecidos por
esse setor. A vinda para a cidade tem um único caráter que é o de ascensão social percebido
pela possibilidade de desenvolver os estudos e alcançar um emprego que lhe garanta sonhar a
conquistar com um futuro melhor.
Desse modo, como já foi apontado no início desta tese, as famílias aqui possuem, em
grande parte, características interioranas ao carregarem consigo um tempo histórico que
permanece em consonância a formas culturais desenraizadas de um contexto urbano
conquistado. Essa composição heterogênea é apreendida pelos que permaneceram no interior,
muitas vezes, através dos filhos que partem em busca de novas possibilidades, mas mantêm
fortemente as características de uma vida ritmada pela sociabilidade “de interior”, onde se
colocam de forma mais intensa as relações intergeracionais, as relações familiares, de
vizinhança, de bairro, relações religiosas e associativas, e onde pessoas e redes se cruzam
conformando um território de pertencimento e de identidade no cotidiano, em que uma
memória coletiva é tecida.
A reordenação da ancestralidade, a compreensão das várias transformações sobre o
parentesco, a identificação dos elementos (símbolos, conceitos, imagens e estereótipos)
66
“Paralelamente ao crescimento global, ocorreu também acelerado processo de urbanização, sobretudo na
segunda metade do século XX. [...] A atração exercida pelas cidades decorreu, sobretudo, da oferta de empregos
gerados pela expansão da indústria, do comércio e das atividades em geral; da maior facilidade de acesso à
educação, à saúde e aos diversos serviços, e de outras perspectivas reais ou imaginárias aos olhos da população.
Até 1980, a tendência predominante era a migração para as grandes cidades – as capitais dos estados” (Brum,
2002, p. 447-8).
156
selecionados pelos atores sociais, que se mobilizam pelo resgate e reafirmação de valores
familiares e a relação transgeracional que envolve o evento, são indicadores determinantes
para a reflexão que estrutura esse capítulo.
Nessa direção, o trabalho de campo mostrou a importância de reordenar as diferentes
trajetórias familiares e as representações que os diferentes grupos atribuem às alterações no
sistema de parentesco clássico. Estas demandas provenientes do processo de modernização,
cuja reincidência dos relatos sobre a importância de conhecer a vida de genearcas e as
realizações das sucessivas gerações de descendentes, são justificadas como necessárias para
compreender a vida e as realizações atuais da família e para sonhar sobre suas perspectivas
futuras.
Recompor a tessitura familiar é um trabalho de memória constante e envolve o grupo
de forma densa e contínua. Reconhecidos os movimentos da memória articulados pelos atores
entrevistados, traz à tona um passado reordenado pelas experiências vividas até o presente,
como também uma consciência espaço-temporal que vincula um processo contínuo de
aprendizado.
O retorno ao interior, por ocasião das festas, é significativo, tendo em vista o espaço
simbólico que estrutura o enraizamento que a vida na cidade não promove. É o território de
pertencimento que abriga as redes de reciprocidade e de sociabilidade permeadas pela
identificação de um grupo que se definiu, também, historicamente. A sua permanência na
cidade foi amenizada pelas alianças matrimoniais contraídas ora com pessoas de suas antigas
relações no interior, ora com pessoas que passaram a fazer parte da sua vida no processo de
adaptação à cidade. De igual modo, os relatos apontam às perspectivas de retorno esporádico,
aguardado com ansiedade e que ocorria nos períodos de férias e de festas familiares como o
Natal, por exemplo.
2.1 A Festa da Família Saltiel
2.1.1 Eduardo: o organizador
Conheci Eduardo no curso Monsieur Roche, onde juntos fazíamos aulas de francês,
em agosto de 2006. Eduardo era, no período, estudante de mestrado em Filosofia na UFRGS
67
e tinha a intenção de viajar para a França para completar seus estudos de mestrado, o que se
67
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
157
concretizou em final de 2007. Foi curiosa a forma como soube que seria realizada a festa de
sua família. Em uma aula, foi questionado aos alunos o que estavam fazendo de importante
naquele período. Falei a todos sobre a minha pesquisa e Eduardo relatou que, justamente
naquele período, estava envolvido com a produção de um vídeo para a festa da sua família – a
família Von Saltiel –, que ocorreria em um pequeno município próximo ao litoral do Estado.
Imediatamente perguntei se poderia incluí-la na minha pesquisa e ele afirmou que sim, mas
chamando minha atenção de que a festa era simples e o local era afastado da cidade.
Combinamos minha participação através de e-mail e telefone. Não havia feito nenhuma
entrevista com algum membro da família e isso, de algum modo, me deixava apreensiva: eu
iria para a festa sem os dados mínimos sobre a composição familiar, descendência, etc.
Às 9h da manhã do dia 12 de novembro de 2006, saí de casa. Marquei de encontrar a
mãe de Eduardo, Norma, às 10h no bairro Mont Serrat, onde mora a família Saltiel, na rua
Carlos Trein Filho. Ele não poderia comparecer, uma vez que tinha uma prova nacional
realizada para avaliar estudantes que concluem a graduação.
Iria de carona com Norma. Cheguei à frente do edifício, cuja imponência era
condizente com o bairro nobre de Porto Alegre. Fui à portaria e me identifiquei. Logo me foi
solicitado que passasse ao elevador que estariam me aguardando. Ao chegar ao andar
indicado e abrir a porta do elevador, encontrei Norma.
No carro foi também o namorado de sua filha. Assim, partimos para o município de
Caraá, antigo distrito de Santo Antônio da Patrulha, onde foi realizada a Festa,
especificamente no Camping Praia João Fernandes.
2.1.2 Norma: relatos de viagem
É uma jovem senhora, muito bonita e, como havia imaginado, elegantemente vestida.
Foi muito simpática e acolhedora. Convidou-me a entrar, pois aguardaríamos o namorado da
filha Débora, que nos levaria ao local. O apartamento é muito bonito, finamente decorado. O
ambiente estava à meia luz, percebia-se que estava preparada para sair assim que Rafael
chegasse.
Sentamos na sala, Norma ofereceu-me um cafezinho ou um chá. Agradeci e aceitei um
copo de água. Ela, então, passa a contar os motivos pelos quais não havia ido com os filhos e
o marido. Estava estudando para um concurso para lecionar na Escola de Saúde Pública. Ela é
enfermeira e busca uma maior regularidade em seus horários como professora nessa
instituição. Diz que estava estudando muito e que aproveitou parte da manhã para revisar
158
alguns pontos e que retornaríamos cedo para continuar a atividade. O marido e os filhos
saíram de casa às 6h da manhã e retornariam à noite. Aproveitou a possibilidade de não dirigir
até lá, uma vez que Rafael iria mais tarde e retornaria cedo.
Relata o entusiasmo dos filhos que participavam da organização da festa. Não
imaginava que eles se envolvessem com tanto empenho e diz que estiveram trabalhando com
intensidade na produção de um vídeo com relatos dos membros que eram referência na
família. Confessa que Eduardo gostou de filmar, pois as histórias que estava colhendo eram
interessantíssimas, tendo em vista que pouco sabia sobre seus antepassados.
Os parentes moram em Caraá, e os deslocamentos até lá foram muitos, sempre
acompanhados do pai – o que descende da família Von Saltiel. A filha estava envolvida,
também, com algumas brincadeiras que preparou para a festa. Ela recolheu muitos materiais
recicláveis, andava em volta com materiais de escritório para que os participantes pudessem
realizar as “tarefas” que ela proporia após o almoço. Nesse momento toca o telefone celular
de Norma. Era Rafael, que já nos esperava na frente do prédio. Descemos e o encontramos lá.
Fomos apresentados, nos acomodamos no carro e iniciamos a viagem para Caraá.
O dia estava lindo! Havia promessa de altas temperaturas, mas Norma tranqüiliza o
“genro”, afirmando que o local ficava à beira do Rio dos Sinos (nascente) e que a mata que
havia no entorno do local da festa deixava o lugar bem mais agradável. Ela chamou a minha
atenção sobre a ausência de um casaco e sugeriu retornarmos para emprestar-me algum.
Registrei a sua gentileza, mas não haveria necessidade dela preocupar-se e lembrei-a de que
também corríamos o risco de atraso, caso ainda voltássemos a sua casa.
A viagem inicia com pequenos comentários sobre o tempo, sobre a cidade e o assunto
dirige-se ao trabalho de Rafael, que está vinculado à família dele. Ele atua no setor de
marketing da empresa e conversam sobre a sua última ida a São Paulo. A seguir Norma conta
um pouco sobre a família Von Saltiel e a sua origem humilde. Conta que seu marido Laor
nasceu nessa localidade e tinha muitos irmãos. A atividade que os pais e os filhos
desenvolviam era ligada à agricultura e à criação de animais para a própria subsistência. Em
um determinado momento, Laor, um dos filhos mais velhos do “casal fundador”, decidiu ir
para Porto Alegre buscar novas possibilidades de emprego. Chegando à capital, vai trabalhar
em uma empresa em uma atividade simples. Retoma seus estudos, faz supletivo e ingressa na
faculdade de Contabilidade. Ao concluir, faz um concurso público para contador e inicia uma
nova etapa em sua vida. Conta Norma que a família de Laor é muito unida. Apesar da
educação rígida, os pais e os irmãos sempre tiveram muito carinho e respeito entre eles. Laor,
em uma condição melhor, passa a ajudar seus irmãos que também estudam e formam-se em
159
cursos diversos. O pai era um homem forte, que tinha muita sensibilidade para a música. Ele
era um cidadão muito bem quisto na pequena comunidade e desenvolveu uma carreira política
aliada às atividades que sempre praticou. Norma afirma que a atribuição atual à localidade
como sendo uma cidade que preserva o ambiente natural tem origem na atuação de seu sogro
como político.
Em um dado momento, Norma conta o susto e a preocupação que tem com a saúde de
Laor. Estavam ele e Norma no apartamento da praia, em Capão da Canoa, no mês de
fevereiro, deitados, lendo, quando Laor sofre uma isquemia. Ela estava sozinha, os filhos
tinham saído para se divertirem. Ela recorre aos vizinhos e o marido foi encaminhado ao
hospital e, posteriormente, a Porto Alegre. Esse fato deixou seqüelas em Laor e o obriga a
tomar uma medicação específica que o deixa mais lento. Desde então, a família tem estado em
alerta e o poupa de algumas atividades que exigem maior esforço. Essa preocupação se
reverte em uma atenção e carinho especiais dos filhos e, afirma Norma, que a organização
dessa festa havia sido assumida por eles para agradar ao pai e envolvê-lo com uma
participação de “observador”, uma vez que essa seria de responsabilidade dele junto a outros
membros. Relata que essa experiência dolorosa mostrou efetivamente o quanto seus filhos são
queridos, unidos e têm uma relação muito afetiva com os pais. Relata que muitas atividades
foram assumidas por eles e por ela, pois Laor tinha um temperamento de decisão e realização
independente, assumia todas as tarefas de organização econômica da família, desde ir ao
supermercado providenciar os produtos que faltavam que também ficavam sobre seu controle.
Conta que os filhos, depois de crescidos – Eduardo está com 22 anos e ainda estuda, e
Débora tem 25 anos, já está formada em Fisioterapia e trabalha em uma clínica em Canoas –,
deixaram de participar das visitas freqüentes que o casal fazia a Caraá. Ela considerava
natural, pois os interesses também se direcionavam a programas alternativos que faziam com
os grupos de amigos. Desde que o pai teve esse problema de saúde, eles estavam mais
próximos e acompanhavam o pai freqüentemente em visitas a tios e primos que moram na
cidade. Relata que apesar do problema de Laor, ela via o fato da proximidade dos filhos com
muita alegria. Muitos dos hábitos deles foram alterados para estarem mais próximos ao pai; e,
com eles, os namorados da filha e do filho também se aproximaram mais.
Em outro momento, relata o lugar. Afirma que conheceu Laor em Porto Alegre e,
quando foi conhecer a sua família em Caraá, ficou maravilhada com as belezas naturais da
região. Ela, ao conhecer o lugar, passou a compreender melhor o marido, que sempre
demonstrou cuidado com a preservação da natureza e mostrava uma sensibilidade intensa
pelas coisas simples, naturais. Diz que no período de emancipação do município da cidade de
160
Santo Antônio da Patrulha, a família Von Saltiel esteve envolvida em virtude da tradição
política iniciada pelo pai de Laor na localidade. Muitos parentes já participaram e participam
ativamente dos órgãos da administração pública.
Norma pouco falou sobre a mãe de Laor. Contou rapidamente que era nascida no local
e que casou com Laor muito nova. Era exigente com os filhos e todos tinham tarefas
domésticas a cumprir, principalmente os mais velhos.
2.1.3 A cidade contexto
Ao aproximarmo-nos de Santo Antônio da Patrulha, Norma interrompeu a conversa
para prestar atenção no desvio que deveria ser feito na estrada para se ter acesso à Caraá.
Nesse momento, passei a apreciar a paisagem e a me encantar com o que via. A temperatura
havia subido muito. O calor prometia uma tarde insuportável, principalmente a Rafael, que já
havia demonstrado preocupação com a questão. As placas indicavam o caminho a pegar até
certo trecho. Chegamos ao centro de Caraá. É uma cidade simpática, florida, com casas
coloridas e canteiros vistosos. Passamos por um museu antropológico que fica na rua
principal. Fiquei curiosa de saber o porquê da presença do mesmo em uma cidade tão
pequena... Norma não soube responder à minha curiosidade. A cidade lembra um vilarejo de
colonização açoriana: as casas são de fachada pequena, junto à calçada. Não penetramos no
interior da cidade, ficando restritos à rua principal. O movimento de transeuntes ou carros
circulando quase não havia. Era perto do meio-dia e o que vi foi uma cidadezinha cuja
população encontrava-se ausente em um passeio público bem cuidado e de uma limpeza
extrema.
Chegamos a uma estrada de chão. Norma, nesse momento, pede que Rafael pare. Ela
precisava consultar alguém sobre o trajeto. Vimos em um pátio um senhor a mexer em um
jardim que nos informou sobre a direção a tomar. Norma justifica que há muito não vai ao
camping na praia João Fernandes e que estava tudo muito mudado. A paisagem estava
bastante “carregada de novas casas”, afirma. Seguimos por uma estradinha estreita,
densamente arborizada. Em um ponto vimos uma placa que dizia: “Caraá, a cidade ecológica
do litoral do Rio Grande”. Andamos ainda alguns quilômetros, até encontrarmos um lugar
com muitos carros estacionados dentro de uma propriedade cercada e com grandes portões.
Um cartaz anunciava a chegada ao camping. Estacionamos e nos dirigimos a uma área
coberta. No caminho, os filhos e Laor vieram em nossa direção. Alguns parentes vieram
cumprimentar Norma e ali já iniciaram as apresentações aos membros da família.
161
2.1.4 O espaço da festa: a natureza como cenário
A área onde já estava ocorrendo a festa era aberta, com um telhado rústico e corria
uma brisa agradável. Assim que entramos, vi uma bancada com vários souvenires para serem
comercializados: camisetas escritas “Saltiel”. Eram brancas ou pretas, e as letras eram de
cores variadas. Vendiam, também, balas de mel, mel e pães. Ali nos inscrevemos para o
almoço. Norma não permitiu que eu pagasse a minha parte. Passamos, então, a outra parte da
festa. Os membros da família estavam conversando em pé, distribuídos em pequenos grupos.
Havia grupos de mulheres e crianças sentados às mesas. Alguns bebiam chimarrão; outros,
cerveja. A conversa corria animada.
Esse espaço era amplo, aberto nas laterais. As mesas eram enormes, próprias para
churrasco, e estavam distribuídas lado a lado. No centro havia uma mesa grande com saladas
de diferentes tipos. Bem à frente da entrada desse espaço, havia uma televisão voltada para o
público, na qual rodava a filmagem que Eduardo havia feito para o evento. Ela iniciava com a
apresentação da família Von Saltiel e, logo a seguir, membros idosos e jovens traziam
mensagens de boas-vindas e externavam a importância daquele momento para todos. Em um
espaço, reconheci os personagens que se dedicavam à política na região, denotando a
importância dessa atividade no seio da família.
2.1.5 Entrando na rede
Nesse ínterim, alguns parentes aproximaram-se para conversar. Já sabiam da minha
presença e mostravam-se curiosos sobre o que eu estava pesquisando. Relatei brevemente
minha intenção e a conversa direcionava-se para elogios e apreço que todos nutriam por Laor.
Pouco falaram sobre os antepassados. Muito mais anunciada era a importância de reafirmarem
os laços que os unia, apesar das distâncias e das intensas atividades de alguns membros.
Nesse meio tempo, aproximou-se Luciano Von Saltiel, que havia sido secretário da saúde no
município. Direciona o assunto para a sua atividade como político, afirmando a tradição da
família nessa tarefa. Juntou-se a nós um parente que era vereador na câmara municipal de
Caraá. Norma e Laor aproximaram-se e a conversa se desenvolve em torno das benfeitorias
por eles realizadas na localidade.
Após algum tempo, pedi a Norma que me apresentasse uma senhora – a mais idosa.
Ela era tia de Laor. Ao iniciar a conversa com ela, falei-lhe que gostaria que ela contasse
sobre sua família, sobre os encontros. Nesse meio tempo, chega a sua filha e diz que ela já não
162
lembra de quase nada e que em outro momento ela mesma me contaria o que eu quisesse
saber. Esse fato me deixou intrigada, pois senti certa resistência da filha, confirmada pela
senhora, que silencia.
O vídeo trazia a sua imagem relatando fatos sobre o passado familiar e, ainda, que
tivesse algum esquecimento sobre esse ou aquele fato, minha surpresa foi pela forma hostil
como a filha nos interrompeu. Decidi, então, que mais tarde tentaria conversar com a filha.
Quem sabe havia algum motivo maior que eu não tinha conhecimento? Mas o que pensei
inicialmente se confirma quando me aproximo dela após as atividades terem encerrado e ela
diz que naquele momento não falaria, pois era um momento de estar com a família.
Anunciaram, então, que o churrasco seria servido. Pediram às pessoas que se
servissem na mesa central e que o churrasco seria servido diretamente nas mesas. A mesa de
saladas tinha sido completada com pratos de massa e de carne suína assada.
2.1.6 A performance da consagração
Sentei-me com Norma, Laor e seus primos. Nesse momento, foi possível perceber as
relações jocosas entre os participantes da mesa. O assunto girava em torno dos casamentos, da
vida de cada um e lembranças do tempo de adolescência e namoros vivenciados na pequena
cidade.
Um dos motivos de brincadeira foi o casamento de um primo que regulava em idade
com os que estavam à mesa e que havia casado com uma jovem que regulava com os filhos
destes. O próprio primo trouxe o assunto e mostrava o desejo de ser o alvo das brincadeiras. A
jovem sentada ao seu lado parecia não estar muito confortável com a direção que tomava a
brincadeira. Em um momento, ao terminar a refeição, ela retirou-se e foi sentar-se à mesa ao
lado com outras mulheres da família. O marido não deu importância ao fato e a brincadeira
ainda estendeu-se por um longo tempo.
O tempo da adolescência também estava restrito a comentários sobre namoros e festas
que os primos participavam juntos. A descontração fez Laor rir e participar bastante. Norma
comenta que sempre que eles se encontram, acabam falando desse tempo, o tempo em que os
compromissos eram poucos e muito podiam se divertir. Falaram de pescarias que realizavam
à beira do Rio dos Sinos, próximo ao local da festa. A justificativa da pescaria servia aos pais,
mas na realidade a farra girava em torno das cervejadas e das peladas que ocupavam quase
todo o tempo.
163
O assunto estava restrito ao público masculino. As mulheres não participaram quase
naquele momento, envolviam-se com o cuidado aos filhos e algumas conversas dirigiam-se ao
cotidiano das crianças.
O churrasco foi servido com fartura, e os homens prometiam acabar com a carne até o
final da festa. Após o churrasco, as pessoas dirigiram-se ao bar do camping, onde era possível
comprar sorvete, cuja fama pela sua elaboração artesanal era o comentário na mesa que
compartilhava com integrantes da família. Norma trouxe para mim. Realmente havia sentido
todos os elogios dispensados à iguaria.
2.1.7 O passeio
A seguir, Norma me convida para ir à beira do rio, que ficava muito próximo ao local
da festa. Lá havia muitos núcleos familiares sentados em cadeiras de praia levadas por eles
próprios. Ali é a nascente do Rio dos Sinos. A água é cristalina e o fundo coberto de pedras.
Na margem oposta, a mata é densa e traz muita sombra à água. Algumas crianças brincavam
acompanhadas de seus pais ou mães. As crianças mais velhas banhavam-se até onde a roupa
permitia. A brisa que soprava era um convite à permanência naquele espaço. Pensei em ser
aquela a oportunidade de me aproximar de alguns grupos, mas logo fomos interrompidos pelo
chamado que todos se aproximassem para uma atividade.
Todos se aproximaram, com raras exceções, o que me fez pensar se ali não teria
pessoas que não estavam relacionadas ao evento. Norma me disse que alguns membros
levaram amigos para o passeio. Ela acreditava que os que não se aproximaram fossem eles.
2.1.8 Os jogos de interação
Voltando ao local do almoço, as mesas já estavam livres dos pratos, copos e garrafas.
Em cinco grandes mesas, havia material reciclável com outros instrumentos como canetas,
cola, papéis, tintas, fitas, durex, etc. Ao microfone estava Débora, irmã de Eduardo. Ela
anunciou a atividade, que consistia na elaboração de algo que representasse o encontro que
estavam realizando. Teriam 1 hora para elaborar o que quisessem, sob a condição de misturar-
se, não se restringindo aos seus núcleos.
A proposta envolvia cinco grandes grupos. A grande maioria de participantes era de
mulheres. Poucos homens participaram, outros jogavam bocha, outros estavam reunidos a
contarem casos que provocavam muitas gargalhadas.
164
Eu fiquei observando como os grupos se organizaram. Via-se claramente que uns se
aproximavam de outros tendo como critério, também, os materiais à disposição. Uns diziam:
gosto de usar tinta”, “aqui tem canetas”, “essas caixas podemos usar para fazer uma casa”,
etc.
Após alguns minutos de indecisão, aos poucos os grupos foram iniciando o trabalho a
partir da combinação sobre o que fazer. Nesse momento, muitos colocavam o que entendiam
sobre os encontros: rever os parentes, aproveitar o momento para conhecer os filhos desse ou
daquele, fazer algo diferente com os parentes que pouco vêem, voltar ao camping que há
muito não iam,...
A seguir, iniciavam o trabalho, combinando como representariam aqueles sentimentos
que haviam sido colocados. O barulho de conversa entre os participantes era intenso. Norma
não participou, ficou assessorando os grupos para a eventual falta de materiais. Alguns grupos
não queriam que houvesse observador, para que as idéias não fossem reproduzidas. Eu senti
que o recado se estendia a mim também. Procurei acompanhar, então, a elaboração de dois
grupos que estavam sentados lado a lado. Em um deles havia um senhor que comandava a
elaboração. Suas sugestões foram sempre bem aceitas e cumpridas à regra. Em muitos
instantes ele saía em busca de material e estava muito preocupado com o tempo que se
esgotava rapidamente. Foi o participante que mais chamou a minha atenção pelo empenho em
representar de melhor forma, de maneira mais fiel o que o grupo havia proposto.
As mulheres dividiam-se na atenção aos filhos pequenos e à elaboração do trabalho.
Algumas iam pegar materiais nas redondezas, outras iam pedir aos grupos vizinhos. A
brincadeira sobre o empréstimo era grande. Isso significava que o trabalho do outro seria
melhor, então se justificava a resistência em emprestar. Uma alega que a brincadeira não teria
graça, uma vez que uma das participantes era a artista de Caraá. A senhora mais idosa foi
colocada em frente ao vídeo para apreciar as falas dos parentes e a sua própria participação.
Sua locomoção era comprometida e ali ela ficou um tempo que lhe permitiu ver mais de uma
vez a exposição do dvd.
Por fim, Débora retoma o microfone e anuncia a hora da exposição e explicação dos
trabalhos. O pessoal apressa para as últimas finalizações e todos vão sendo colocados em
cima da mesa que anteriormente acomodou os pratos de salada no almoço. Quando todos
estavam prontos, foi colocada uma cadeira e um dos membros nela subia para explicar o que
havia sido elaborado. Os demais componentes permaneciam ao lado do trabalho, mostrando
cada item exposto pelo locutor.
165
Muitas foram as representações: união alegria, a família como um lugar de amor, de
perseverança, de amizade. No entanto, o que me chamou atenção foi o senhor mencionado
acima. Ao assumir o microfone, ele começa a recitar um poema, que era uma canção que seu
pai cantava para ele. Todos começaram a cantar e ele, emocionado, ficou em silêncio
aguardando o término e se restabelecer para continuar a sua fala. Ele expõe com muita
emoção o quanto ele se sentia orgulhoso de ter nascido um Saltiel. Acreditava que esse
encontro levaria seus filhos e netos a entender a importância de se ter uma família e,
principalmente, poder contar aos seus filhos posteriormente que essa família rompia as
dificuldades da distância, da falta de recursos, até da saúde para estar junto aos seus. Esse era,
para ele, um dos momentos mais felizes da sua vida. Ele estava entre os que ele amava, o que
era a tradução do que ele entendia como primordial para viver. “A família”, dizia ele, “é o
lugar de paz, de fraternidade e de amor. Nela não há problema que não possa ser resolvido,
pois ela tem no seu interior o que falta ao mundo: respeito”.
As manifestações foram muitas em torno dos antepassados, das histórias que os unia,
da cidade que acolheu os antigos. Ao final, todos aplaudiram, confraternizaram e agradeceram
aos que organizaram. Deram ênfase à participação de Débora e Eduardo, que moravam em
Porto Alegre e tinham dispensado tempo e viagens para esse evento.
Logo a seguir, Norma convidou-me para voltar a Porto Alegre com ela e Rafael. Ela
tinha que estudar, e Laor e os filhos voltariam bem mais tarde. Despedimo-nos de alguns
parentes que estavam próximos e voltamos a Porto Alegre comentando a festa. Norma ficou
admirada com as atividades propostas Por Eduardo e Débora. Haviam feito algo muito
diferente do que havia sido apresentado nos anos anteriores. Esse era o terceiro encontro da
família, não havia tantos participantes como nos anos anteriores, quando chegaram a reunir-se
200 familiares. Essa festa comportou no máximo 100 participantes, mas ela viu o sucesso nas
manifestações dos parentes.
A festa sempre foi restrita aos Von Saltiel – pai de Laor e mais dois irmãos – que vão
morar em Caraá. Lá fixaram residência e constituíram família a partir de casamento com
parceiras do local. Pode-se entender, então, o número reduzido de parentes e o privilégio ao
lugar de origem das famílias que lá se formaram.
A festa não comportou todos os elementos rituais que habitualmente acontecem. Não
houve nenhuma manifestação religiosa, ainda que alguns expositores de trabalho tenham
mencionado o agradecimento a Deus pelo encontro. Não há uma definição de vínculos com
essa ou aquela religião. Segundo relatos informais de Eduardo, seu avô era um judeu
convertido à religião católica para, na época, poder se casar com sua avó.
166
O retorno foi quase todo feito em silêncio. Estávamos cansados pelas atividades e pelo
calor que a viagem nos fazia suportar. Chegamos a Porto Alegre perto das 18h. Rafael nos
deixou no prédio de Norma e ali me despedi agradecendo a atenção e a oportunidade de
participar de um espaço tão íntimo da vida deles.
2.1.9 Reflexões...
Laor é um homem simples; sua família de origem mantém hábitos simples expressos
nas formas de pensar e de agir. Sua trajetória de vida alterou significativamente a sua posição
na escala social e, sem dúvida, criou a oportunidade de o mesmo acontecer na trajetória de
seus irmãos com a ajuda substancial que trouxe a eles em tempos passados. Essa questão pode
ser analisada a partir do conceito de habitus, de Bourdieu (1996).
A trajetória social de Laor compreende claramente as características mantidas de
homem simples, bem como as alterações de ascensão social conforme as disposições
possíveis de atualização do habitus. A noção de homem simples que aqui adoto é configurada
pela forma que Laor se apresenta em muitos aspectos da vida cotidiana. A sua infância
vivenciada entre a família em um pequeno distrito dependente de uma cidade interiorana é
reconhecidamente atualizada na sua forma de estar entre os seus, da sua família de origem, na
sua forma de estar na sua família nuclear. Isto é, o filho mais velho de um grupo domiciliar
que tem o ritmo da vida marcado pela produção da terra, “apesar da educação rígida, os pais
e os irmãos sempre tiveram muito carinho e respeito entre eles”, Laor parte para a capital em
busca de uma condição melhor não só para si, pois ele estende aos irmãos a possibilidade de
ascenderem também, enviando dinheiro e acolhendo um irmão em sua casa para que
desenvolvesse os estudos. Hoje, Laor é um homem bem sucedido; tem uma condição
financeira que o coloca em uma outra posição na escala social, fruto, certamente, do seu
propósito de mudar a sua vida e a dos seus irmãos. Sua expressão e sociabilidade observadas
ao longo da festa eram de uma intimidade notável com os irmãos, com o local, com as formas
simples de tratamento entre os parentes e afins, como se sempre estivesse estado ali,
enraizado.
Assim como Laor apresentou-se simples, a rede de parentesco, de modo geral,
expressou-se da mesma forma. Não observei algum tipo de hierarquia entre membros da sua
geração, a não ser um primo que ocupava na ocasião um cargo político na Prefeitura de Santo
Antônio da Patrulha. A sua tentativa de mostrar-se distintamente voltou-se a mim apenas. Seu
comportamento acabou diluindo-se na falta de apoio ou incentivo dos parentes sobre o
167
“discurso” que tentou engendrar sobre seus feitos como Secretário da Saúde do município
citado. Não obstante, a forma simples de Laor agir contrasta esteticamente da forma
sofisticada dos gestos de sua esposa. Esse contraste não gera conflito, tendo em vista a
natureza da sua forma de expressão. Norma é uma mulher sofisticada e muito qualificada
intelectualmente. Tanto a sua aparência elegante quanto a sua forma de agir mostram-se
diferenciados e elogiados por algumas parentas que se aproximavam ou com quem Norma
buscava para conversar. Em um dado momento, uma das mulheres chama a atenção da filha
sobre os “modos à mesa”
68
e diz: “Olha bem para a tia Norma, assim é que deve ser...”.
Virou-se para mim e, rindo, completa: “A Norma é admirada por todos aqui. Esse aspecto
remete à reflexão sobre os papéis de gênero entre o casal. Norma contou que Laor e seus
irmãos participavam ativamente das tarefas domésticas orientados pela mãe e que, em sua
casa, sempre foi ele a administrá-la. Norma, com a profissão de enfermeira, nunca teve um
horário muito propício às lides do lar e Laor, ocupando cargos administrativos no setor
público, esteve mais disponível para atender às necessidades da casa e dos filhos. Um casal
moderno, diria Tânia Salem, lembrando seus estudos sobre o estilo de vida nas famílias de
camadas médias no Rio de Janeiro contemporâneo (Salem, 1980, p. 114-5).
A atenção que os filhos dão a Laor é um outro aspecto que se destaca nesse cenário de
festa. Ocupados com a organização, não deixaram de estarem próximos do pai. Essa atenção,
segundo Norma, sempre existiu, mas após o problema de saúde que acometeu Laor, eles
ficaram mais próximos ainda. Esse aspecto traz o sentimento de perda que sentiram naquele
período. A proximidade da morte altera a percepção sobre a própria vida, como sugere Louis-
Vicent Thomas
69
.
Nesse sentido, o perigo de perder o pai provoca nos filhos a necessidade de cuidá-lo,
de mimá-lo com uma atenção contínua e preocupada. Débora e Eduardo se dedicam a isso e
envolver-se com a organização da festa é uma resposta a essa atenção cuidadosa de fazer o
pai feliz sempre que estiver ao alcance dos dois”, segundo Débora.
Uma situação inusitada que presenciei foi a reação da prima de Laor diante da minha
aproximação à sua mãe. Esse foi um fator de estranhamento diante dos tratamentos dados aos
idosos nas festas observadas. De forma geral, os idosos têm um lugar de destaque no grupo
68
Ver Philippe Áries (1981) e Norbert Elias (1994).
ARIÈS, P. História Social e da Família. 2. ed. RJ: Zahar, 1981.
ELIAS, N. O Processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v 1.
69
Diante da morte do outro, que ele capta com maior ou menor clareza segundo sua idade, a criança experimenta
um sentimento de entrega e culpabilidade. A impressão da entrega leva consigo um vazio emocional e o
desespero de sentir-se perdido e ter de ficar só: a criança começa logo a se inquietar por saber que ela e outras
pessoas têm de morrer, e compensa esse sentimento com fantasias de união com o familiar falecido,
especialmente no “além(Thomas, 1993, p. 3).
168
familiar. À sua figura se atribui simbolicamente o passado do grupo, a experiência longa de
viver entre a família e um ‘lugar de memória’ que guarda a trajetória familiar em uma
perspectiva diacrônica de uma realidade permeada por mudanças significativas para além do
campo familiar. Ainda que tenha tido um lugar de destaque no vídeo elaborado para a festa
com alguns depoimentos seus e, na própria festa, ter sido carinhosamente reverenciada em
depoimentos outros de parentes que se pronunciaram, havia um zelo extremo e um controle
absoluto sobre as interações dessa senhora por parte de uma filha. Observei que a família não
interferia nessa posição adotada; no entanto, havia a clara reserva de aproximação dos
mesmos. Essa questão me fez pensar sobre os limites de intervenção de membros de uma
família extensa no comportamento do núcleo familiar, uma vez que houve tolerância por parte
dos festeiros da atitude autoritária da filha, mesmo que limitando as homenagens possíveis
para a matriarca no evento público. Também não é negligenciável o papel do vídeo nestas
iniciativas de membros da família de elaborarem um documentário sobre a memória familiar.
Justamente essa senhora teve no vídeo um depoimento exemplar de guardiã da memória e sua
narrativa, dessa forma, circulará na memória transmitida. Essa sorte da entrevista bem
sucedida foi possível em outro momento mais privado e, graças à habilidade do estudante de
negociar com a filha, este momento testemunhal.
Percebe-se nesse comportamento uma visão sobre o envelhecimento como um período
da vida cujas referências dirigem-se ao surgimento de doenças crônicas e ao aumento de
gastos em função dos problemas de saúde, ao declínio funcional que leva gradativamente à
incapacidade progressiva de exercício das atividades do dia-a-dia e, conseqüentemente, à
dependência de outras pessoas, ao retraimento da rede social em virtude da falta de autonomia
e da morte de parentes e amigos contemporâneos, à perda de papéis sociais e ao progressivo
isolamento (Debert, 1999). Essa visão negativa não é novidade para nosso momento histórico
herdeiro de concepções desvalorizantes da imagem do velho no modelo cultural ocidental,
voltado ao mundo da produção capitalista. Contradições próprias ao mundo moderno no seio
de transformações culturais acentuadas sobre a imagem do idoso como apontam alguns
estudos interdisciplinares. Novas abordagens metodológicas de investigação trouxeram à tona
uma perspectiva de transformação cultural nas representações culturais sobre o
envelhecimento. Na voz dos próprios atores e, com base nesses estudos, podemos analisar, no
âmbito dos encontros familiares, rastros da perspectiva crítica que se consolida por novas
políticas voltadas ao envelhecimento convergentes, “a adoção de uma abordagem holística do
envelhecimento” e que favorecem “a emergência de um consenso sobre a necessidade de
“quebrar preconceitos” (Veras, 1997), “rever estereótipos” (Debert, 1999), “abandonar
169
pressupostos” (Sant’Anna, 1997) ou, mais precisamente ainda, “desconstruir a velhice”
(Guedes, 1999)”.
Dessa forma, com essas novas narrativas sobre direitos humanos e o direito dos
idosos, a atenção que a filha dava à mãe e tia de Laor apresentou-se aos atuais padrões
“politicamente corretos” como simbolicamente violenta ao excluí-la das interações familiares.
A afirmação sobre o esquecimento não era condizente com a entrevista exibida no vídeo e,
mais ainda, o controle sobre as aproximações e o isolamento que essa situação provocava era
respeitosamente tolerado pelos familiares, que logo se distanciavam frente às intervenções da
filha. Em face do gesto autoritário da filha, não há como não concluir por uma violência
familiar que destoou no projeto do Evento Familiar, mas que, por limitações da profundidade
do exercício etnográfico, e evitando ampliar essa temática neste estudo, não pude aprofundar.
Retomo a expressão usada por um dos membros que apresenta o trabalho do seu
grupo, que traz a representação da família como um lugar de paz, de fraternidade e de amor e
que “nela não há problema que não possa ser resolvido, pois ela tem no seu interior o que
falta ao mundo: respeito”.
Esse enunciado incorre sobre um aspecto importante a ressaltar: o valor atribuído à
família como um lugar de acomodação das emoções e, também, um lugar de conflitos a serem
superados pela existência de respeito. Esse sentido atribuído traduz, em parte, o dilema
moderno de definir a família:
Acontece que, apesar dessa indefinição
70
, as relações familiares, de uma forma ou de
outra, parecem continuar ocupando um lugar de destaque na maneira em que a
maioria de nós vemos e vivemos o mundo. Falar de família é evocar um conjunto de
valores que dote os indivíduos de uma identidade e a vida de um sentido (Fonseca,
2007, p. 10).
O valor-afeto, no sentido dado por Luis Fernando Dias Duarte (seguindo Louis
Dumont) encompassa aqui o sistema de sentidos argumentados como projetos dos encontros
familiares e propulsores de noções modernas de felicidade e paz, presentes nos projetos de
vida das famílias entrevistadas.
Esse afeto, por conseguinte, tem na percepção anunciada a noção de escolha individual
e reconhecida respeitosamente pela rede de parentesco. Esse fato me faz trazer a figura da
70
A autora refere-se ao conceito da família em Stacey: “A família pós-moderna não é um novo modelo de vida
familiar equivalente ao de família moderna, não é o novo estágio de uma progressão ordenada da história da
família, mas sim o estágio nesta história onde a crença, numa progressão lógica de estágios, se desmancha.
Rompendo com a teleologia das narrativas modernizante que retratam uma história evolucionária da família, e
incorporando tanto elementos experimentais como nostálgicos, “a” família pós-moderna avança e recua para
dentro de um futuro incerto” Stacey (1992, p. 94) (Fonseca apud Stacey, 2007, p. 10).
170
Norma novamente, enquanto a narradora da família Von Saltiel. O princípio de aliança que
norteia a sua relação com a rede de parentesco dos Saltiel apresentou-se como uma relação
harmônica, tendo em vista estilos de vida tão diferenciados diante da sofisticação e da
intelectualidade que ela porta em relação à vida simples que vivem os parentes no interior. As
relações observadas mostram-se imperativas sobre o reconhecimento da ajuda recebida pelo
casal. Ainda quando recém casados, acolheram em sua casa dois irmãos de Laor
temporariamente, até que eles encontrassem alternativas viáveis financeiramente para o
sustento na capital. Em um dado momento, um dos irmãos cuidava da filha Débora quando
Laor e Norma estavam envolvidos com o trabalho e plantões simultaneamente. Esse auxílio
mútuo trouxe um estreitamento nas relações familiares, e o reconhecimento da solidariedade é
perceptível diante do tratamento entre os irmãos, Laor e Norma. Esses valores são
amplamente analisados nos estudos de Larissa Lomnitz sobre redes sociais em cidades de
grande porte no Chile e no México. De modo geral, a autora parte da situação de insegurança
econômica e instabilidade dos sistemas políticos, que dificultam a reprodução das classes
médias latino-americanas e estas, para permanecerem, adotam como estratégia de
sobrevivência a manutenção e o uso das redes sociais ou “capital social”, que compreendem
as redes familiares, de amigos e conhecidos que contam, por sua vez, com as suas próprias
redes. A base dos intercâmbios no interior das redes sociais é “la reciprocidad, como uma
forma de intercambio que tiene lugar dentro de um espacio de sociabilidad y cercania social
(o ‘confianza’)” (Lomnitz, 2008, p. 3). Podemos, aqui, relacionar a experiência de auxílio aos
irmãos, conduzida por Laor e Norma, à importância da rede familiar como alternativa ao
deslocamento, manutenção e na conquista de emprego, para a conquista de um nível de vida
apropriado.
2.2 A Festa da Família Weber
O contato com os alunos de diferentes cursos do Unilasalle, inegavelmente,
favoreceram minha pesquisa. Comentando sobre as festas que tinha participado, um aluno
comentou que sua sogra andava “às voltas” com a organização da Festa da Família Weber,
sobrenome da sua família materna. Perguntei-lhe quando aconteceria e se haveria a
possibilidade de ele colocar-me em contato com sua sogra. No dia seguinte, recebi o retorno
de Daniel, passando os dados para contato com Gladis Kulpa, mãe da esposa de Daniel.
171
2.2.1 Conhecendo Gladis
Comuniquei-me com ela por e-mail e marcamos uma entrevista para uma terça-feira à
tarde, no dia 1º de outubro de 2007, em Canoas, onde reside com sua família, próximo ao
lugar onde sua mãe morava. Cheguei ao bairro de Gladis junto ao ponto de referência
sugerido por ela. O bairro é residencial de camadas altas na cidade de Canoas.
Gladis é uma senhora jovem e simpática. Conto a ela sobre a minha pesquisa e meu
interesse em refletir as memórias familiares. Ela se apresenta e inicia o percurso sobre sua
origem familiar.
Gladis Maria Kaufman Kulpa – a família Weber é a família da mãe – relata sobre a
forma como a idéia de festejar a família foi se contornando aos poucos. É um processo que
desde o início teve a participação de grande parte do grupo familiar. Foram várias as ocasiões
em que um ou outro membro sugeriu o encontro. Gladis teve a iniciativa e, a partir daí, já
foram feitos oito encontros. O próximo estava marcado para o início do mês de abril de 2008
e não ocorreu em vistas ao falecimento de sua mãe.
Gladis tem 53 anos, é filha de Leopoldo Kaufmann e Célia Weber Kaufman,
atualmente ambos falecidos (na ocasião em que a conheci, ela estava envolvida com a
mudança da mãe para uma casa perto da sua para que pudesse cuidá-la mais intensamente). A
mãe de Gladis foi acometida do mal de Alzheimer
71
e era acompanhada pelos cuidados de
enfermeiras que se revezavam em turnos. O contato com a família da mãe foi intenso, como
também do pai. No entanto, diz que tem uma maior ligação com a família Weber
72
. Seus pais
viveram grande parte de suas vidas em Pato do Sobrado, sendo hoje um pequeno município
situado entre Rio Pardo e Venâncio Aires/RS. Após o casamento, seus pais foram morar em
Santa Cruz, lá estabeleceram a residência e tiveram seus seis filhos. O pai foi trabalhar como
motorista no DAER e a mãe costurava e cuidava dos filhos. Dona Célia, mãe de Gladis,
ajudava no orçamento costurando para fora, pois “o pai viajava muito e ela ficava muito
tempo só conosco”.
A mãe e os filhos passavam as férias em Pato do Sobrado, onde moravam as famílias
da mãe, os Weber, e a do pai, os Kaufman. Gladis conta que tinha casa de parentes de um lado
ou de outro da única rua que formava o distrito naquele período. Ao contar a sua infância, diz:
71
A Doença de Alzheimer é uma doença do cérebro, degenerativa, isto é, que produz atrofia, progressiva, com
início mais freqüente após os 65 anos, que produz a perda das habilidades de pensar, raciocinar, memorizar, que
afeta as áreas da linguagem e produz alterações no comportamento (http://www.alzheimermed.com.br/).
72
Ver Abreu Filho (1981).
172
A vida no interior era muito simples. Quando criança, nós todos – irmãos e primos
– colhíamos frutas silvestres, brincávamos nos pomares, na rua. Um tio tinha uma
marcenaria e esse cheiro de madeira ainda tenho guardado como algo muito bom.
Agora o estabelecimento fechou, pois ele faleceu, mas quando passo por ali, sinto
ainda o cheiro e lembro do que fazíamos lá... Eram coisas muito criativas, eram
casinhas, eram móveis... O meu tio Ernani teve nove filhos e éramos primos muito
unidos. Meus tios tiveram sete filhos... A minha mãe tinha seis filhos. A casa do tio
Ernani era uma casa fantástica, absolutamente organizada. Eles tinham uma forma
de viver que era fantástica, era extremamente organizada. Eles, os tios, não
brigavam, era uma família harmoniosa e ele assoviava do outro lado da rua, onde
ficava a marcenaria; quando ouvia qualquer voz mais alta, ele assoviava e serenava
tudo. Nós brincávamos assim... Nós íamos na igreja, é uma família muito católica. A
família da minha mãe ajudou a construí-la. A cúpula foi doada pela família do meu
pai, outros doavam o fim de semana para trabalhar na construção da igreja.
As memórias da infância trazem a vida no interior em que os valores constitutivos
eram a religiosidade, o convívio com a natureza, a harmonia entre as pessoas. Esses valores
foram apreendidos a partir de acontecimentos vivenciados por Gladis em meio a seu grupo
familiar. As lembranças estão centradas na pequena cidade em que passava as férias com sua
mãe, pai e seus irmãos, na casa dos avôs. Repleta de experiências compartilhadas com os
primos e irmãos, as memórias desse tempo foram mantidas e rememoradas no passar dos anos
através dos odores, dos ruídos e do olhar sobre os critérios de organização espacial, como os
da casa absolutamente organizada dos tios. O sentimento de pertencimento ou de identidade,
que tem referência nas relações familiares, é expresso nas memórias do lugar onde foram
tecidos os laços afetivos que unem a comunidade familiar.
Gladis faz o curso de graduação em Gastronomia da Unisinos, em São Leopoldo/RS.
Esse encantamento pela confecção de alimentos vem de sua avó Matilde, que fazia doces para
fora. Durante a entrevista, conta que realizou um trabalho que relacionava a sua trajetória
pessoal à trajetória familiar. O trabalho traz fotos e um texto interessante que Gladis faz
questão de ler um pequeno trecho:
A família vivia em uma casa de madeira muito aconchegante. Ele carpinteiro e ela
doceira, Filipe Weber e Matilde Alfa, com cinco filhos: Ornélio, Ernani, Célia, Ciro
e Nelson. Nessa casa de seis cômodos, uma varanda, um pequeno galpão para
ferramenta e uma horta, muito bem organizada. Nela tinha até moranguinhos
pequenos e azedos, mas eu ficava muito contente quando vovô me trazia em uma
cumbuca branca, cheia de moranguinhos recém colhidos e lavados que eu só
conseguia comer lá, não existia para vender. Nessa vida simples, sempre havia
livros que não ficavam parados em prateleiras, eram sempre trocados entre os
amigos do vovô. Eram romances em alemão que, quando vovô ficou viúvo, trocava
livros e fazia sessões de leitura em sua casa com vizinhas que moravam próximas
“sempre de porta aberta, para que o pensassem mal deles”... Aqui tem uma
receitinha da minha avó Matilde.
173
A habilidade e o gosto pela culinária foram heranças conquistadas na convivência com
a avó. Gladis gosta de fazer iguarias e decorar a mesa para os eventos da família. Mostra uma
foto linda com uma mesa coberta de frutas, pratos enfeitados, etc. Aprendeu a cozinhar
basicamente com sua avó e com sua mãe. Com o tempo, no tempo do casamento, aprendeu
alguns pratos com sua sogra, aprendeu a cozinhar peixes com pescadores em Santa Catarina...
Enfim, Gladis reúne um conhecimento a partir de várias vivências nos diferentes tempos de
sua vida, em um processo contínuo que teve início na sua infância, nas férias que passava
junto à casa dos avôs. Suas memórias trazem pequenas ordens morais apreendidas no
comportamento de seu avô, por exemplo, ao relatar o cuidado com a condição de viúvo e a
amizade que nutria com as vizinhas que iam à sua casa para participar das sessões de leitura.
O memorial que desenvolveu para uma disciplina da universidade, Gladis conta que
buscou material dos anos 60 e 70 para contextualizar a sua infância em um âmbito político e
social mais amplo. Nada encontrou a não ser as notícias da “chegada ao homem na Lua”, o
que trouxe uma nova reflexão sobre esse período histórico. Ela conta que teve uma infância
bastante segura. A sua casa, em Santa Cruz, ficava muito próxima do quartel da cidade, e os
vizinhos eram, em sua maioria, militares. A mãe costurava para eles. Então, quando o Brizola
foi governador, seu pai ficou sem os provimentos por oito meses e, para um “chefe de
família”, esse fato era algo muito dramático. Então, os militares pegavam o rancho no quartel
e abasteciam a sua família com mantimentos que faltavam. Dona Célia tinha uma horta e
árvores frutíferas e trocava esses produtos por mantimentos industrializados. No final, os
militares davam a eles o trabalho e a segurança de nada faltar, além da segurança para
circularem por tudo.
Nós não tínhamos nem a informação sobre o que se vivia nas grandes cidades. Nós
éramos pequenos e nossos pais estavam sempre envolvidos com o trabalho. A
repressão não nos atingia efetivamente. Não tinha o peso que hoje reconheço que
existiu...
Esse trecho é significativo para uma reflexão histórica sobre os diferentes sentidos
com que um acontecimento é apreendido nas diferentes esferas sociais. Enquanto nas cidades
mais urbanizadas a repressão era combalida e reprovada por muitos, a vida na cidadezinha de
Gladis era acomodada e as dificuldades amenizadas pela presença do “algoz” dos grandes
centros urbanos. A essa questão, a perspectiva weberiana é providencial quando se tem ações
significativas quando reciprocamente orientadas pelas ações do outro (Weber, 1999). Outro
aspecto importante narrado por Gladis é que a sua mãe guardou, durante a vida inteira, os
174
livros e o caderno nos quais ela foi alfabetizada, ainda criança na cidadezinha de origem. No
entanto, quando adoeceu, uma faxineira colocou-os fora, pois achou que eram coisas velhas.
Esse é um dado significativo dos valores que são perpetuados na concretude e manutenção
dos objetos. Os cadernos guardados durante uma vida longa traduz o valor da escolaridade, do
conhecimento reconhecido socialmente como legítimo. Para a geração da mãe de Gladis que
viveu em um pequeno vilarejo antes da sua união conjugal, ser alfabetizada era um forte fator
de distinção e decorrente dos projetos de seu pai (avô de Gladis) que, pelo fato de promover
sessões de leitura para a vizinhança, revelava o caráter de cultivo ao letramento. É com
tristeza que Gladis afirma: “Eu havia trazido na mudança por respeito às coisas dela. Era
muito importante para ela”. Indiferentemente ao grau de compreensão sobre a realidade em
decorrência da doença que a mãe de Gladis portava, a filha não teve dúvida sobre a
manutenção dos velhos cadernos de sua mãe em “respeito” à importância que tinham para ela,
ou nos termos de Maurice Halbwachs, guardiões da memória familiar. Mais que isso, há uma
visível compreensão sobre essa etapa da vida, sobre o envelhecimento (saudável ou não).
Tendo em vista esse ser um período de perdas – por morte de parentes próximos, de amigos,
de conhecidos ou pela redução de papéis sociais, pela diminuição da capacidade física, etc. –,
há objetos que conseguimos manter porque nos são tão caros quanto aquilo que perdemos. O
respeito que Gladis refere aproxima-se à noção de dom em Marcel Mauss (2003), expressa na
reciprocidade da dádiva ‘materna’ – o cuidado como mãe, o amor, o carinho e a dedicação de
muitos anos, as férias na cidadezinha de origem, etc.
O trabalho acadêmico trazia inúmeras imagens fotográficas que Gladis utilizou para
associá-las ao seu relato. As imagens facilitaram sua narrativa de reconstituir o passado em
torno das lembranças. As fotos mostradas são exclusivamente da família: ora em uma viagem
ao Maranhão para visitar o tio, que Gladis fez com a sua irmã e a sua mãe antes desta ter a sua
saúde comprometida, ora das Festas de Família já realizadas, ora em companhia de tios na
terra de sua mãe.
Aqui é a família do meu pai e de minha mãe. Aqui é a cúpula toda de madeira que
Vô Filipe fez. E a Vó Matilde não conseguia ver os filhos e o marido lá em cima
[construindo a cúpula], então pedia para alguém levar o lanche para eles. Esse
trabalho que eu fiz para uma cadeira do curso, eu pensei que não fosse entregar
nunca, pois eu só chorava ao ver essas fotos, reunir as lembranças...
Além das imagens, Gladis trouxe dois objetos muito significativos e, de certa forma,
que trazem a definição sobre os saberes que busca aprimorar nesse período da vida.
175
Os objetos de minha vó ficaram com uma tia. Um dia, quando fui visitá-la, ela me
disse: “abra o porta-malas do teu carro e bota o tacho lá. Ele é teu”. Eu fiquei tão
feliz, tão feliz! Uma das minhas primas queria o tacho para plantar flor!!! O tacho
de minha vó!!! Gladis mostra o tacho com muito orgulho e uma jarra antiga que
guarda com carinho. Diz que lembra da Vó fazendo doces no tacho.
Retomo a importância dos objetos herdados, valorizados pela história que encerram e
que possibilitam a recitação, de afirmação de uma identidade reconhecida pela ordem afetiva.
De igual modo, em meio a nossa conversa, é servido um chá com um pão-de-ló coberto com
um doce de laranjinhas. Elogiei o sabor especial que a cobertura dava ao pão-de-ló e Gladis
conta que é uma das receitinhas que aprendeu com sua Vó Matilde e que só ficou “no ponto”
depois que ganhou o tacho. Por vezes, ela atualiza o uso do tacho, usando-o tanto para fazer
os doces quanto para armazenar bebidas no gelo nos churrascos que o marido faz. A receita
herdada da avó só adquire “valor” – o ponto – porque é feita no tacho que a avó fazia.
Carregados de simbolismo, a receita e o tacho remetem Gladis a uma origem, a uma história e
à perenidade da família. O valor-objeto aqui, decorre da memória afetiva que porta, diria
Walter Benjamin (1976), e na eficácia simbólica de transmitir a experiência, um objeto com
“aura” para referir aos estudos benjaminianos.
A concorrência para herdar o tacho entre Gladis e a prima é interessante de se pensar:
a prima gostaria de herdar o tacho e a ele dar um destino de vaso, talvez disposto em algum
lugar nobre da casa. Gladis queria o tacho para fazer doces, com a crença de que eles só
seriam saborosos como os da avó se fossem elaborados no tacho antigo. Por outro lado, o
tacho recebe, eventualmente, outra função, que é a de fazer às vezes de balde de gelo,
compondo um ambiente como uma peça decorativa – em parte, com a mesma intenção da
prima. Gladis venceu a concorrência e a tia, em um gesto discreto para “amenizar” o conflito,
passa o tacho ao poder da sobrinha, agora guardiã do objeto com a aura da experiência
familiar.
2.2.2 A festa colaborativa dos Weber
Gladis foi a incentivadora à realização da primeira Festa da Família Weber. Ao longo
da entrevista, e ciente de que eu pesquisava “Festas de Família”, Gladis traz o tema que foi
pauta de muitas conversas entre os parentes que encontrava em Pato Sobrado, em momentos
que só aconteciam em virtude de algum aniversário especial ou falecimento de alguém
próximo. Diante da constatação de que deveria haver um momento exclusivo à família e à
176
sociabilidade entre os parentes, ela, alguns primos e uma tia concordaram sobre a realização
de um encontro. A iniciativa efetiva de organizá-la ocorreu pouco tempo depois.
A festa tem o objetivo de resgatar o que se viveu na infância, como vivemos aquele
período e não deixar se perder o que se viveu com tanta felicidade. É, na verdade,
para não se perder a nossa história e poder contar o que se viveu na infância. Os
filhos dos primos já são grandes amigos em virtude dos encontros. Em visita aos
familiares, coloquei a minha vontade de organizar a festa. Eles gostaram da idéia e
juntos organizamos. As festas ocorreram em Pato do Sobrado, em Canoas e em São
Leopoldo (um tio da minha mãe). A festa é uma oportunidade de narrar a história
que vivemos juntos. Eles, os filhos, sempre têm assuntos comuns, interesse em saber
sobre a infância dos pais. O pouco tempo para visitas fez com que nos
encontrássemos uma vez por ano. Participam até os parentes do Maranhão – um
irmão de minha mãe mais novo foi morar lá e quando podem eles vêm participar. O
pouco tempo para visitas fez com que se sugerisse um dia especial do ano para isso.
A festa perdeu um pouco a seqüência, pois uma delas seria em São Leopoldo quando
um filho de seu tio, aos 15 anos, foi vítima fatal de um assalto em que quiseram tirar a sua
bicicleta. No ano que o pai de Gladis faleceu, também não realizaram o encontro. Essa seria a
10ª festa, mas essas interrupções trágicas fazem com que realizem no próximo ano a 8ª Festa.
Conta Gladis:
Iniciamos a festa com uma mesa de café e sucos, cucas, bolos e pães. Depois tem
uma atividade de integração, o almoço e uma gincana. Organizamos várias
brincadeiras que entravam os adultos e as crianças: corrida do saco, corridinha
que se corre em círculo...
Este ano a programação é um pouco diferente, pois temos um campo de futebol na
empresa Pavioli [que é da família de Gládis]. Meus filhos são Kalinca, casada com
Daniel, tem o Carlo, que é músico violinista e tem 30 anos, e a Katiesca, que tem 24
anos e trabalha também na empresa. O marido de Gladis, Ricardo (60 anos), é
descendente de polonês – de sobrenome Kulpa. Pavioli é a massa de pastel com
ravióli. O pai dele tinha uma pastelaria e depois foi se desenvolvendo. Depois ele
desenvolveu a massa fresca de macarrão industrializada. Ele foi pioneiro no RS.
O pessoal de São Leopoldo gosta muito de futebol e são ‘fera’, vamos fazer um time
desde os pais, filhos, netos, etc... O time que ganhar vai jogar com o time de Pato
Sobrado, que deverá estar chegando de ônibus... Quem não joga torce, pode tomar
chimarrão... Eles adoram cantar, tocar gaitinha de boca... A família de Sobrado, do
irmão mais velho da minha mãe, eles são mais musicais, os de São Leopoldo são
mais do esporte. O Encontro deve fazer com que todos manifestem o que gostam.
Ah! Nós dançamos nos encontros, tradicionalmente a dança da Polonaise
73
, e quem
‘puxa’ a dança é a minha tia de 90 anos.
A festa tem como princípio cada uma das famílias participantes trazer uma cuca, um
pão, um bolo para o café da tarde. Essa é a contribuição de cada família. O número de pessoas
73
Oberek, uma dança rústica dançada pelos operários rurais poloneses. Assim como a polonaise alemã, a
oberek tem compasso ternário, mas a oberek é viva, enquanto a polonaise é moderada, como o minueto. A
polonaise era uma dança de burgueses, que os plebeus não sabiam dançar” (http://www.mimo.art.br).
177
é reduzido, pois é uma família que concentra o parentesco a partir da cidadezinha de origem:
Pato Sobrado.
Ao questionar sobre a organização familiar, Gládis mostra uma árvore genealógica que
foi construída por um parente religioso, Irmão Inácio Gabriel, que já faleceu. Ela diz que deve
passar a completá-la. O formato traz os troncos numerados no mesmo modelo que Irmão Justo
adotou. Mostra fotos, documentos. Gladis lembra que o contato com o genealogista atual, o
Irmão lassalista Martin Weber, foi em um período difícil, pois cuidava de seu pai que tinha
sofrido um derrame, a mãe que havia tido uma isquemia e a irmã que tinha Síndrome de
Down. Como se pode observar, Gladis assumiu o cuidado da sua família de origem.
Transferi-los para uma casa próxima a sua, em Canoas, foi uma decisão importante e
facilitada pela sua condição financeira. Acomodados nesse espaço e a casa reformada para
atender às necessidades dos enfermos, Gladis passa a contar com enfermeiras e auxiliares de
serviços gerais para atender as necessidades dos seus. No momento da entrevista, só estava
viva ainda a sua mãe, que não muito tempo depois veio a falecer.
A trajetória de Gladis mostra o adiamento de seus projetos pessoais conforme as
atribuições mais prementes em cada etapa da sua vida: o cuidado dos três filhos pequenos e, a
seguir, os cuidados com os pais e irmã. A chegada do neto também exigiu uma colaboração
de Gladis à filha que estava em fase de finalização do curso superior. Quando soube que
abriria na Unisinos o curso de Gastronomia, Gladis decidiu matricular-se, pois só havia a mãe
sob os seus cuidados. Entusiasma-se ao falar do curso que faz e tem planos de fazer, no
futuro, a graduação em nutrição, como forma de complementar o conhecimento. Em resumo,
Gladis esteve – em diferentes períodos da sua vida – envolvida com a arte de nutrir: nutrir o
corpo, nutrir a permanência dos seus. Os seus projetos pessoais não estão afastados de suas
experiências vivenciadas desde a infância e resultam da memorização dos gestos, dos sentidos
que guardaram a lembrança dos sabores, dos odores e das cores que foram sendo armazenadas
cotidianamente ao formato das mulheres da sua linhagem.
Os estudos sobre o cotidiano desenvolvido na França, em um bairro de Lyon, mais
especificamente, tem na arte de cozinhar um elemento de destaque. Reconhecida, em geral,
como um tipo de prática que tem um papel central na vida cotidiana entre as pessoas e que
independe de suas situações sociais e as relações que mantêm seja com a ‘cultura erudita’ ou
seja, com a indústria cultural de massa. Segundo o autor, os hábitos alimentares caracterizam-
se por situarem-se em um domínio em que a tradição e a inovação importam de igual modo,
bem como sobre eles o passado e o presente atuam em concomitância para atender tanto às
necessidades imediatas como promover a alegria e convir às circunstâncias. As atividades
178
culinárias envolvem a ritualização, empreendem um investimento afetivo, exigem
inteligência, imaginação e memória e situam-se, em grau de relevância, tanto quanto as
atividades tradicionalmente tidas como mais elevadas como a música ou a arte de tecer. Elas
“são para grande parte das mulheres de todas as idades um lugar de felicidade, de prazer e de
invenção” (Giard et al., 1997, p. 212).
O autor não se importa em trabalhar com mais profundidade as questões de gênero que
o tema propõe, tendo em vista que, cotidianamente, o espaço da cozinha é feminino na
geração que foi abordada (entre 40 e 50 anos). No entanto, com brevidade, traz a presença
masculina ocupando esse espaço esporadicamente, em ocasiões especiais como um jantar
festivo que reúne amigos, bem como “nos casos raros em que [a prática culinária] é elevada à
excelência, ao extremo requinte – mas que isso já é questão de grands chefs, que são homens,
é claro” (idem, 1997, p. 219).
Outro aspecto a ser contemplado é a religiosidade. Acima, Gladis comenta sobre a
família muito religiosa, a doação da cúpula à igreja de Pato Sobrado feita pelo avô e tios e,
por fim, o genealogista da família que era um irmão lassalista. As referências sobre esse
aspecto se encerram nesses enunciados. Na Festa da Família, não há um momento especial ou
uma cerimônia religiosa que reafirme esse valor da trajetória familiar. Essa observação denota
o encontro entre os parentes como um espaço que privilegiou o lazer – jogos, música e dança,
brincadeiras entre adultos e crianças –, e a religiosidade como um cultivo mais restrito, entre
os núcleos familiares.
2.3 A Festa da Família Finamor, Fortes e Jornada
Um caso bastante peculiar foi ter deparado com uma Festa de Família que abrange três
famílias distintas: as famílias Finamor, Jornada e Fortes. No jornal ZH do dia 18 de setembro
de 2006, há uma nota sobre o 20º Encontro das Famílias a ser realizado em um clube na
cidade Santiago
74
, que é o local de origem das três famílias.
2.3.1 As alianças familiares
Chamam a atenção os fatos de ser uma festa “conjunta” e que anunciava o transporte
em um ônibus especial para “os interessados”, que sairia de Porto Alegre no dia 11, com
74
O município de Santiago/RS localiza-se na macrorregião sul do estado. A atividade econômica predominante é
o comércio varejista, seguida da produção primária – agricultura e pecuária.
179
retorno no dia 15 de outubro. Na nota constava um número de telefone disponibilizado para
informações. Entrei em contato com o Sr. Elviro Finamor, coloquei os motivos pelos quais
havia entrado em contato e questionei sobre a possibilidade de participar da festa e entrevistar
alguns membros da família. “Claro, seria muito interessante, mas é necessário que eu consulte
a ‘comenda’”, respondeu-me. Fiquei, então, de aguardar a resposta mediante a consulta que o
Sr. Elviro faria à tal comenda. Trocamos os telefones para futuro contato. Alguns dias depois,
recebi um telefonema solicitando que comparecesse a uma reunião da comenda, que se
realizaria na casa de um parente, no bairro Cidade Baixa em Porto Alegre. Confirmei minha
presença e compareci no dia agendado.
A comenda é um grupo de amigos-parentes. Explico. As famílias Fortes, Finamor e
Jornada têm origens diferentes: as famílias Finamor e Fortes descendem de imigrantes
italianos e a família Jornada de um imigrante francês que se dirige inicialmente a Portugal e
de lá vem para o Brasil. Os três imigrantes vão ser instalados, em tempos diferentes, em locais
próximos da cidade atualmente denominada Santiago. Lá criaram “raízes” e, segundo um
folheto comemorativo entregue aos participantes da festa, as “três famílias se irmanaram,
fundindo suas culturas e suas crenças, entrelaçando seus destinos e construindo a mesma
história”. Essas famílias, que se unem pelo casamento, têm descendentes comuns e organizam
as festas, tendo como início a definição de dois grupos ou comendas, como são chamados,
que terão a tarefa de organizar o encontro seguinte. Uma das comendas é composta de
descendentes que migraram de Santiago e moram na capital ou Grande Porto Alegre. O outro
grupo é formado por descendentes residentes em Santiago, local onde hoje são realizadas as
festas. Apenas a primeira aconteceu em Porto Alegre, mas a dificuldade de deslocamento e
alojamento para a maior parte das famílias que moram em Santiago fez com que o local
ficasse definitivamente na cidade de origem.
O encontro com a comenda foi marcado para ser na casa de Dona Julietinha, uma
senhora idosa (82 anos), descendente das três famílias. Às 20h, conforme o combinado,
cheguei à rua Alberto Torres. Já estavam todos reunidos. A ampla sala estava organizada com
cadeiras e sofás dispostos em círculo para que todos sentassem e participassem diretamente.
Havia em torno de seis casais, duas mulheres – mãe e filha – mais a Dona Julietinha. Após
todos estarem acomodados e as apresentações serem feitas, falei sobre o estudo que estava
desenvolvendo, a importância de participar da Festa, quais as famílias que já estava
acompanhando e o interesse em seguir junto com a família para Santiago.
Alguns participantes trouxeram algumas dúvidas importantes: como o resultado dessa
pesquisa seria divulgado? A pesquisa se deteria apenas na participação em festas ou iria além
180
do evento? Como seria a minha presença na festa? Com as questões colocadas e estas, então,
tendo sido respondidas, Dona Julietinha convida para que se passassem todos à mesa, na qual
estavam doces e salgados distribuídos harmoniosamente. Entre as delícias expostas estavam
merengues lindos, que foram apresentados pelo Sr. Brasil Fortes como sendo uma
especialidade das mulheres da família Fortes e que passava de geração a geração.
O Sr. Brasil, que deve ter em torno de 70 anos, mostra-se um líder no grupo, e a
reverência de todos a ele denotava a sua importância e prestígio. Em muitas situações em que
a demanda era uma tomada de decisão, o grupo imediatamente dirigia o olhar a ele. Quando
nos colocamos em torno da mesa, o Sr. Brasil aproximou-se e chamou a atenção sobre a
minha origem familiar. Segue o diálogo em torno da família da esposa que, tem um
antepassado de destaque na história política do Estado. Esse aspecto é significativo na
construção de uma concepção comum no interior do grupo. Ou seja, a importância do nome
traduz o lugar social de uma linhagem; e, diante desse fato, justificam-se os casamentos que
se realizam entre as três famílias. Contudo, a ausência de uma genealogia formalizada traz o
imediato estranhamento.
Não há a menção nem a exposição das genealogias. Quando questionados sobre esse
aspecto, diz Castorina Finamor Jornada de Medeiros, historiadora e descendente, moradora de
São Leopoldo, encarregada de reordenar a história das três famílias:
A árvore da família Finamor é a que tem mais dados, mas as outras não... é difícil
obter informações quando não saem de seu próprio país, como é o caso do Jornada
e, também, não conseguimos ainda obter informações mais precisas sobre Marçal
Rodrigues Fortes, o descendente mais antigo que temos notícia. Então, decidimos (a
comenda) que não exibiríamos as árvores. É importante sabermos de nossos
antepassados, claro, mas nossas famílias vão se unir pelo casamento em várias
gerações. É isso que queremos cultivar nos encontros anuais.
Na expressão acima, há dois aspectos importantes que engendram um pensamento
particular e que dão sentido aos encontros das famílias: o da memória genealógica e a
reprodução do prestígio social das linhagens familiares através das uniões matrimoniais
endogâmicas. A memória genealógica reordena a vida familiar, e os limites das suas
lembranças que organizam a rede de parentesco atuam como forma de subsistência dos traços
que bastam para explicar a permanência e a continuidade do seu próprio tempo. As famílias
em questão não mostram preocupação no tempo histórico-familiar. Sua organização centra-se
na valorização da identificação que se constrói nos laços matrimoniais que marcam o
desenvolvimento da comunidade santiaguense” – como expressa Castorina.
181
Os recantos de São Francisco de Assis e Santiago representaram ‘um novo mundo,
um paraíso perdido’ para essas três famílias que se irmanaram, fundindo suas
culturas e crenças, compartilhando do mesmo churrasco e do mesmo chimarrão,
entrelaçando seus destinos e fazendo a mesma história.
Alguns aspectos da narrativa acima devem ser aprofundados, pois se relacionam a
questões pertinentes previstas nesta tese. Um deles é a respeito dos ‘merengues’ elaborados
pela Dona Julietinha, cuja receita passa pelas mulheres da família de geração a geração. As
práticas sociais visam reconhecer uma identidade social, significam simbolicamente um
domínio em que a tradição é a referência que, no entanto, não exclui a inovação. Assim pode-
se pensar sobre a receita de um doce que passa de geração a geração como mais um símbolo
das durações da vida. A escolha sobre o que servir no encontro familiar e, no caso, servir os
merengues, visa marcar as fronteiras do grupo e reforçar a coesão entre seus membros. Nesse
sentido, segundo Maciel, “a comida envolve emoção, trabalha com a memória e com
sentimentos. As expressões ‘comida da mãe’, ou ‘comida caseira’ ilustram bem esse caso,
evocando infância, aconchego, segurança, ausência de sofisticação ou de exotismo”. Ao
comentar sobre a receita que passa pelas mulheres de várias gerações, Dona Julietinha refere-
se ao “truque” herdado que faz a diferença sobre os merengues que habitualmente
encontramos disponíveis no mercado. Ao provar os merengues, percebo a diferença de sabor e
textura. A autora da iguaria comenta o toque familiar que guarda em segredo e constata-se a
especificidade do produto “que implica na forma pela qual é feita, que marca a comida com
lembranças pessoais” (Maciel, 2001, p. 151).
Outra questão importante a ser erguida é sobre o questionamento quanto à minha
origem familiar e a posição que, de repente, sou colocada como “objeto” de pesquisa. O
impacto foi imediato e, rapidamente, respondi sobre a minha origem e os questionamentos
subseqüentes, que giravam em torno dos meus antepassados. Essa é uma questão
metodológica importante quando estamos em diálogo com o ‘outro’. Estar em um grupo
social muito próximo implica em tornar constante o ato de auto-reflexão
75
para não incorrer
no erro de interpretar o que está sendo observado a partir das limitações da minha origem. No
entanto, dificilmente se é questionado tão diretamente. O que estava em jogo ao perguntar
sobre a minha origem era a possibilidade de ampliar a compreensão sobre a escolha de
pesquisar as memórias familiares dos outros – e, em seqüência, imagino que o Sr. Brasil tenha
feito uma provocação: e as tuas, quem pesquisará?
75
Ver Velho (1997).
182
Por fim, a Festa das Famílias promove, há 20 anos, a atualização das alianças que os
três grupos realizam a várias gerações. Não obter informações sobre os antepassados mais
remotos não surge como um fator negativo, tendo em vista que a importância está em
possibilitar a manutenção dos casamentos entre as famílias nas próximas gerações. Consta,
em um pequeno histórico que circula entre os familiares, o seguinte trecho e canção:
[...] Que as três famílias, unidas entre si, e capazes de acolher novas famílias,
ampliando suas raízes numa verdadeira simbiose étnica e genética, continuem coesas
através dos tempos.
2.3.2 A carreata de abertura da Festa
A viagem a Santiago durou 7 horas. Na rodoviária, o Sr. Elviro Finamor,
acompanhado de dois parentes, me aguardava para seguir junto em uma carreata que
tradicionalmente ocorre na tarde anterior à festa. Esta envolve toda a rede de parentes, e,
nessa ocasião, contavam com a presença de um sobrinho e seu grupo de amigos motoqueiros
que vieram especialmente para o desfile e para a festa. À frente, seguiam em torno de 20
motocicletas, a seguir vinha o ônibus fretado que levou os familiares que moravam em Porto
Alegre e, por fim, os carros dos parentes que moravam em Santiago. O ônibus ostentava uma
grande faixa que dizia: “20ª Festa das Famílias Finamor, Fortes e Jornada”. A princípio, eu
Pela brisa da emoção
Ramires Monteiro (casado com Zara Jornada)
Caminhar é estar vivo
Altivo a desafiar
Os raios da alvorada
Que cortam a madrugada
Unindo gerações
Pelo sangue - aurora encarnada -
Vertente dos corações!
Refletindo
Desprezamos a asa negra da dor
Na “JORNADA”
Somos “FORTES”
Tendo um só “FIM ... AMOR”!
Hoje o passado é presente
Um sentimento latente
Na pele arrepiada
Pela brisa da emoção
Pela lágrima teimosa
Pela criança mimosa
Esperança que repousa
Nos caminhos desenhados
Na palma de nossas mãos.
Nossas famílias são ilhas
Interligando o tempo
Rodeadas pelo respeito
Acariciando momentos
O futuro é um sol maduro
O céu um pomar suspenso
Pra colher felicidade
Plantemos a amizade
Neste fértil solo imenso.
183
retornaria com a família, no dia seguinte, a Porto Alegre. A carreata percorreu a avenida de
início ao fim, com muitas buzinas ensurdecedoras tocando para anunciar a comemoração. O
cortejo era festejado apenas pelos familiares e a cidade parecia indiferente ao ritmo
diferenciado do seu cotidiano.
2.3.3 E a ética do informante?
O evento começava de forma inusitada. A carreata não se estendeu muito e fui levada,
então, ao hotel em que ficaria durante aquela noite. No caminho resolvi confirmar o meu
retorno com eles no ônibus fretado, mais para não deixar dúvida sobre o que havíamos
combinado por telefone. Para minha surpresa, o Sr. Elviro fala que não poderia retornar com
eles, pois o ônibus estava lotado desde Porto Alegre e o motorista não podia transportar
passageiro sem assento definido. Confesso que fiquei bastante decepcionada, tanto pela
oportunidade perdida de etnografar os familiares no retorno, quanto pela falta de aviso sobre
essa questão por parte do Seu Elviro – afinal, deixei de permanecer na Festa da Família
Calliari em Bento Gonçalves, acreditando que a viagem de volta seria um momento ímpar da
etnografia. Por outro lado, se eu não perguntasse, também não poderia retornar no domingo,
pois as passagens já estavam esgotadas, segundo a informação da rodoviária. A alternativa
possível era retornar no ônibus que partia à meia-noite daquele dia. Comprometeria a
etnografia da festa, mas eu não tinha outra possibilidade. O subtítulo busca provocar a
reflexão sobre a ‘outra’ via da dupla mão e que, sem dúvida, coloca em xeque as duas vias.
A formação do antropólogo é refinada, constantemente, pelo ato reflexivo sobre o
estranhamento que os encontros etnográficos nos proporcionam. O propósito é a revelação
dos sentidos que identificamos na pesquisa e esse fenômeno, objetivamente circunscrito sobre
técnicas e métodos, atua concomitantemente com a intersubjetividade que é construída no
interior das relações que estabelecemos com os nossos ‘informantes’. É um campo onde
buscamos manter atentamente os limites entre a racionalidade e as emoções suscitadas no
encontro pesquisador/informante.
O estudo centrado no envelhecimento promoveu, até então, a construção altamente
afetiva com aqueles que foram alvo das indagações que lhes foram feitas sobre as suas formas
de atuar e representar o mundo. Na mesma medida, havia a reflexão pelo lado “de lá”, como
disse uma vez uma informante/amiga. O pesquisador também é alvo de interpretações –
inicialmente, com base na expectativa do que ele quer apreender na sua pesquisa e, a seguir, a
confiança estabelecida é resultado de avaliações anteriores sobre a pessoa/pesquisador. Esse,
184
então, passa a ser o estágio mais profícuo, verdadeiramente dialógico, no qual se constrói um
espaço para interpretações, nem sempre convergente, mas acima de tudo engendradas em uma
ambiência afetiva.
Ao optar pela pesquisa em e sobre famílias, há uma alteração significativa nos
encontros interculturais. Quando Duarte trata em seu texto sobre a “sacralidade das
representações sobre o sangue herdado, assim como aquela que caracteriza os ideais de
liberdade e autonomia, compõem essa religiosidade de que se tinge a instituição familiar em
nossa cultura” (Duarte, 2006, p. 3). Isto é, a família atua como força simbólica tão
estruturante e englobante quanto a de qualquer religião. Essa dimensão sagrada da vida em
família acena para a dificuldade de penetração nesse espaço íntimo e privado, uma vez que,
acima de valores e tensões, há a constante busca por experiências afirmativas (as Festas, por
exemplo) que promovam a sua unidade em torno de uma ‘identidade’ e de um sentimento de
pertença; e a sua reprodução em relação à manutenção ou à ascensão na escala social.
Os encontros que tive com as famílias Jornada, Finamor e Fortes mostraram a
dificuldade de avançar sobre os sentidos que estavam sendo atribuídos às motivações em
realizar os Encontros das Famílias. O encontro com a ‘comenda’ divulga o sentido de unidade
entre os três sobrenomes e a propensão à continuidade nas gerações seguintes, em outras
ocasiões havia implícito o desejo de marcar as suas fronteiras na cidade de origem. O fato é
que não houve nenhum momento possível de um encontro individual ou em pequeno grupo.
Todas as solicitações de entrevista, com Dona Julietinha, por exemplo, não foram possíveis,
uma vez que os encontros deveriam ter a presença da ‘comenda’. De igual modo, busquei o
Sr. Brasil – que denota certa ‘liderança’ sobre o grupo – e também não foi possível encontrá-
lo; nem tive retorno sobre as solicitações. O que deduzo desse fato é que os sentidos não são
excludentes, ao contrário, encontram-se reforçados em suas justificativas.
Essa pequena introdução busca trazer uma reflexão sobre a dificuldade em estabelecer
processos interativos e a reciprocidade necessária para o encontro etnográfico. No entanto,
elas estabelecem situações que exigem uma análise sobre o papel do pesquisador em campo e
os impasses que dele podem surgir. Cabe, portanto, os seguintes questionamentos: por que a
resistência à entrevista individual? Por que foi aceita a participação na pesquisa se os espaços
para tal foram altamente limitados?
185
2.3.4 A 20ª Festa das Famílias Finamor, Fortes e Jornada
Fiquei surpresa com a festa. Era um baile em que se marcava socialmente a presença
das famílias Finamor, Fortes e Jornada na cidade de Santiago. Iniciava com a apresentação
das comendas: a de Santiago e a de Porto Alegre. Esse era um momento solene, havia muitos
aplausos para cada um dos participantes (em torno de oito casais para cada comenda). Cada
casal manifestou a sua alegria em participar da comenda e imediatamente convidava a
comparecer no palco o casal que ele havia escolhido para substituí-lo. Feito todo o cerimonial
de posse das comendas, o Sr. Elviro registra a presença de uma pesquisadora que havia
entrado em contato com ele em virtude do anúncio da Festa de Família que ele havia
conseguido publicar no “jornal de maior circulação no Estado”. Esse pequeno discurso soou a
mim e a outros que compartilhavam a mesma mesa como um discurso que buscava a distinção
e o prestígio pessoal no seio familiar. O fato de não ter avisado antecipadamente sobre a
mudança dos planos me pareceu um comportamento estratégico de garantir a presença de uma
pesquisadora e, ao anunciá-la, comentaria a sua autoria sobre a divulgação da festa de forma
espetacular. Enfim, coberta de indignação sobre esse conjunto de situações, minha atitude
naquele momento deveria ser a de aproveitar – e bem – a possibilidade de observar como se
estruturava a memória de três famílias que se uniram ao longo do tempo.
Estava sentada em uma mesa junto ao Sr. Elviro e sua esposa, ao sogro e sogra de um
sobrinho e o filho do Sr. Elviro. A festa foi realizada em um clube localizado próximo ao
hotel em que eu estava “hospedada”. Os familiares chegavam aos poucos e circulavam entre
os parentes para cumprimentos e recomendações. Poderia ser dito que a festa comportava
diferentes classes sociais, desde casais que se destacavam pelo belo traje e elegância, até
aquele que se apresentavam de forma simples e pouco circulavam pelo salão. O tom
interiorano das formas de sociabilidade é interessantíssimo. O casal que estava na mesa – os
pais da esposa de um sobrinho – foi literalmente alvejado pelas brincadeiras do genro, que
dizia haver sido enganado:
– O produto que adquiri já está fora do prazo de validade – referindo-se à esposa.
Fui enganado pelo sogro e este não quer receber a devolução...
[O sogro, sem perder a graça, retruca:]
– Eu sei que quem tem prazo esgotado és tu. Minha filha foi muito bem educada, ela
vai te dar um bom tratamento e te deixar em forma...
Assim os dois seguiram divertindo a mesa entre piadas e risadas, onde a questão de
gênero foi colocada de forma depreciativa, quando a esposa é referida como um produto
186
adquirido e a filha defendida como um produto de qualidade. A escolha foi feita apenas pelo
homem e à mulher cabia “fazer valer-se” como um produto à altura da escolha. O ato de
brincar – entre genro e sogro – tem a função de construir condições de momento lúdico em
uma ocasião de intensa formalidade. Este é um tipo de sociabilidade que implica certa
hierarquia nas relações de aliança; foi denominada de “parentesco de gracejos”, termo
cunhado por Lowie, segundo Mauss (2001, p. 459) e Radcliffe-Brown vai chamar de
“relações jocosas”
76
.
A reação da filha foi a de rir com a brincadeira, como se “aquela” já fosse antiga. Na
seqüência os homens trocam elogios e o marido se dirige à esposa carinhosamente. Desfeita
estava, sem dúvida, a formalidade que reservava ao comportamento da mesa, em geral.
Foi colocada, no centro do salão, uma ampla mesa com um bufê de alimentos variados
e finamente decorados. Soube que era produzido por uma parenta que tem a empresa de
fornecimento de bufês e alimentos para festas. Um dos organizadores convoca um dos lados
do salão para ir servir-se e, posteriormente, o outro lado passaria a servir-se.
2.3.5 Uma festa diferenciada
A Festa não trouxe nenhum aspecto do ritual que tenho observado nas outras Festas ou
Encontros de Família. O que a diferenciava de um baile em clube ou mesmo de bailes que são
organizados tradicionalmente por comendas é a presença dos organizadores membros das três
famílias. Nesse sentido, o Encontro de Família Finamor, Fortes e Jornada traz um sentido
mais público do que íntimo. Os momentos rituais se restringem à carreata pela cidade e ao
baile que compreende um grande número de parentes, entre os quais há um lugar de destaque
às comendas. O movimento de voltar à cidade natal, que anuncia espetacularmente o retorno
dos que migraram e o encontro com os que permaneceram, marca distintivamente as três
famílias no lugar de origem. O que estava em jogo era um conjunto de ‘ocasiões’ que
colocavam publicamente as estratégias políticas de pertencimento e não propriamente a
fortificação familiar em torno de valores e sentidos comuns pautados por uma origem
compartilhada.
Retirei-me da Festa às 23h30min. Peguei um táxi que me levou ao hotel para eu pegar
a minha mochila, pagar a conta e ir para a rodoviária. Nos dias e semanas seguintes, busquei
76
“[...] uma peculiar combinação de amizade e antagonismo. O comportamento é tal que em qualquer outro
contexto social ele expressaria e geraria hostilidade; mas tal atitude não é a sério e não deve ser levada a sério.
Há uma pretensão de hostilidade e uma real amizade. Posto de outro modo, é uma relação de desrespeito
consentido” (Radcliffe-Brown, 1959, p. 91).
187
agendar possíveis entrevistas e, por meio delas, estabelecer o diálogo em uma tentativa de
entendimento desse universo cultural. Não obtive nenhum sucesso, como descrevi acima.
2.3.6 Revendo a ética do informante
Retomo essa questão de forma a esclarecer o que apreendi dessa situação. A questão
diz respeito, no meu ponto de vista, a incompletude do processo dialógico que pressupõe a
reciprocidade, o compartilhamento de imagens entre os agentes – pesquisador e informante –
em interação. A minha expectativa sobre esse evento era, justamente, compreender as alianças
entre as famílias e de que forma elas se estruturavam frente às diversidades de um mundo
individualizado. Para tanto, abri mão de permanecer na Festa da Família Calliari, enfrentando
horas de viagem em condições bastante precárias e, somado a isso, houve um
empreendimento financeiro significativo entre contas de hotel e transporte. Esses fatos
resultaram em uma grande frustração. Tinha convicção de que este seria um evento
importante na composição desta tese. Não posso afirmar que não foi, tendo em vista que ele
trouxe a experiência de que nem sempre há afinidade de sentimentos e desejos comuns de
inserir-se no universo do outro. Efetivamente é uma via de mão dupla em que as trocas são
pautadas pela eqüidade necessária para se configurar o diálogo. Eu me senti ultrajada pelas
desconsiderações ao que já se havia negociado anteriormente e ter tido a sensação de ter
ocupado o papel de mais uma peça no jogo estratégico de distinção promovido pelo conjunto
de disposições já explicitadas. A ‘tensão estabelecida’, imagino eu, que deva ser a mesma a
sensação de um informante relegado ao esquecimento diante da generosidade com que se
dispôs a contribuir com um pesquisador, acolhendo as suas demandas aos foros mais íntimos,
dispensando um tempo da sua vida – por vezes longo – e, ao final desse processo de efetivo
encontro intercultural, de uma relação que ultrapassa e muito a objetividade científica e
adentra no mundo das emoções e da confiabilidade, deixa de ser ‘necessário’ e cai no absoluto
‘abandono’.
2.4 A Família Gayeski
O encontro com Miguel Gayeski (66 anos), descendente de poloneses, foi muito
peculiar. Entrei em contato com o site da Braspol
77
– “Representação Central da Comunidade
77
www.braspol.com.br.
188
Brasileiro Polonesa” –, buscando obter informações sobre famílias polonesas que realizassem
Festas de Família, ainda quando tinha em mente a realização das festas a partir de uma
classificação por etnias. Contava poder etnografar o próximo Encontro da Família Gayeski;
no entanto, Miguel aposentou-se e trocou de cidade e perdi as referências que me levavam até
ele, porém, a entrevista que tivemos foi interessante e importante para pensar alguns pontos
significativos.
2.4.1 O colega Miguel
O retorno da mensagem enviada foi rápido e indicava dois telefones para contato: um
de Porto Alegre e outro de Canoas. Ao contatar Porto Alegre, o Sr. Marcos Gayeski indicou
um parente seu, pois estava com viagem marcada e envolvido com os últimos preparativos.
Ao entrar em contato com o telefone de Canoas, após algumas tentativas de combinar um
lugar para a entrevista, falei ao Sr. Miguel que estava em Canoas em dias determinados e que
lecionava em uma universidade no centro da cidade. Enfim, descobrimos que éramos colegas.
O Professor Miguel era, na ocasião (agosto de 2004), professor e pesquisador do curso de
Filosofia e, atualmente, encontra-se aposentado (desde 2006). Marcamos a entrevista na
própria universidade por sugestão de Miguel.
A entrevista abordou vários aspectos que orientam a produção de uma Festa de
Família. Especificamente, traz as dificuldades que encontra para organizar a Festa, fato que
ele atribui a características dos primeiros imigrantes poloneses, em relação aos outros
imigrantes europeus que permaneceram por algumas gerações concentrados nos locais em que
os pioneiros foram assentados. A dispersão da família polonesa pelo território brasileiro, de
modo geral, é uma das maiores dificuldades. A cada festa – a família já realizou oito festas –,
há novos integrantes de um ou de outro ramo até então desconhecido. A conversa de Miguel
inicia justificando a posição dos descendentes poloneses em relação a outras imigrações como
italianos e alemães. São apontadas inúmeras desvantagens, entre elas a ausência de estudo, as
terras concedidas aos pioneiros que eram rochosas e localizadas em peraus
78
com difícil
acesso e mínimos espaços para a agricultura. O núcleo populacional mais próximo ao distrito
Vista Alegre, sua terra de origem, abrigava italianos que já estavam ocupando o lugar quando
os poloneses ali chegaram. Segundo Gayeski, as dificuldades para subsistir fizeram com que
rapidamente perdessem suas referências culturais: idioma, costumes, hábitos alimentares, etc.
78
Segundo o Novo Dicionário Aurélio, no RS, perau indica um declive áspero que dá para um rio ou arroio
(Ferreira, 1975, p. 1066).
189
A solução encontrada foi trabalhar em outras terras, como empregados. O envolvimento com
outras culturas, como a italiana, foi pouco a pouco se misturando e substituindo o ethos
polonês. Conta, inclusive, que sabia falar o vêneto
79
, em virtude do contato com os
descendentes de italianos, mas não falava nenhuma palavra em polonês. Cabe ressaltar que
Miguel é a quinta geração da sua família no Brasil.
Com doze anos Miguel foi para o Seminário dos Josefinos, em Caxias do Sul, sendo
essa a primeira vez em que “saí fora dos limites do distrito, nem sabia para onde estava
indo”.
As Festas da Família Gayeski surgem através de três irmãos, primos de Miguel. Até a
data da entrevista, realizada em 2004, a família já havia realizado sete festas. As festas, em
sua opinião, não têm outro sentido senão “o de manter e resgatar os valores da família, a
religiosidade, as relações com as gerações mais novas que estão dispersas e pouco sabem
sobre as suas origens”. Na sua fala, observa-se o empenho rigoroso em resgatar a origem e
recuperar a imagem que os descendentes de poloneses têm sobre si. Miguel e um primo –
Marcos – auxiliaram na organização da Braspol no Rio Grande do Sul. Entre uma das
justificativas para a existência da instituição está a reordenação da memória polonesa, da qual
muitas fontes historiográficas não foram produzidas ou foram perdidas pela falta de
importância atribuída ao colono polonês.
Trata com entusiasmo a reordenação do parentesco que, até então, havia sido
localizado em quatro troncos: o de Vista Alegre, o de Casca, o de Caxias e o de Porto Alegre.
Refere à dispersão dos parentes – primos-irmãos de seu avô – em vista das difíceis condições
de sobreviver no campo e reforça que as Festas de Família promoveram o encontro desses
parentes que se estabeleceram em Bento Gonçalves. Relata que a maioria não se conhecia
entre si. Foi a oportunidade de resgatar o tempo e diminuir a distância. O contato se dá, em
geral, no período da Festa.
A sua ida para o seminário era a alternativa possível para desenvolver os estudos. Um
tempo após o seu ordenamento, desistiu da carreira eclesiástica e passou a atuar como
professor. Casou-se, tem uma filha que mora em Florianópolis e é formada em Enfermagem.
No retorno às aulas, em 2005, perdi o contato com Miguel, uma vez que ele e sua esposa
foram morar em Florianópolis após a aposentadoria (2005), para ficarem perto de sua única
filha que lá desenvolve um curso de pós-graduação em Enfermagem.
79
Vêneto é comumente chamado no RS o dialeto italiano que tem origem na região de mesmo nome, de onde
muitos imigrantes saíram ao virem morar no Brasil.
190
A Família Gayeski possui um site com o histórico familiar, informações sobre a
BRASPOL, algumas informações sobre as Festas da Família e genealogia. Um fato
interessante é que Miguel liga a reordenação da família ao desenvolvimento do capital
cultural que ela conquistou nos últimos tempos. A escolarização e o desenvolvimento de
parentes com o curso universitário foram decisivos para a busca de parentes e recompor os
valores familiares, a religiosidade. Conta que a religião é outro valor importante na família e
que, de seu ‘lado’, são muito católicos. Porém, já pensam em organizar um culto ecumênico
no próximo encontro de modo a atender a todos os credos que o grande grupo assumiu. Os
grupos domésticos que permaneceram vinculados à agricultura no interior foram contatados
por carta e, dependendo do local onde a festa será realizada, eles comparecerão.
Miguel não fala claramente nas diferenças sociais que há entre as unidades familiares;
no entanto, deduz-se que esse é um fato e que acarreta certa tensão sobre a participação ou
não de alguns membros. Ainda que haja o esforço de tornar mais acessível os custos do
evento, há núcleos não comparecem pela despesa alta que terão que arcar com os
deslocamentos em acordo com os padrões financeiros. Em contrapartida, os parentes que
moram na capital e teriam condições de comparecer, não o fazem.
Eles assimilaram totalmente a vida da metrópole, eles se urbanizaram totalmente.
Então eles até vão para passear... Às vezes, algum mais assim, sensibilizado pelas
coisas do interior, ainda vem, senão eles não saem, ficam ali e, quando chegam as
férias, organizam as férias em função da família. Vão especialmente para a praia e
mais que tudo praia aqui é janeiro, fevereiro... é o mês das férias e não dão atenção
a outros pedidos. Eles estão individualizados, cada um vive a sua vidinha da cidade.
O que está presente na argumentação de Miguel, justificando a ausência daqueles que
teriam condições financeiras de comparecer, é o descaso, o desinteresse pela família e o que
ela significa na compreensão dele. Compara os parentes do interior e o esforço que os
mesmos fazem para comparecer:
Para aqueles lá de fora, de Vista Alegre de Casca, Santo Antonio do Palma, para
eles é uma chance muito especial sair daquele local, passear; eles lotam um ônibus,
aí vêm conversando, tomando chimarrão, de vez em quando param... e é uma festa
pra eles todo o dia. Exatamente isso, coisa que os da cidade não valorizam tanto.
Então, nós decidimos nos preparativos desse próximo encontro, o oitavo, de que
vamos dar todo o apoio e vamos fazer sempre nas regiões mais interioranas, porque
esse é o povo que valorizou efetivamente.
O que está em pauta é a visão dicotômica entre o ser do interior e o tornar-se citadino.
A origem, aos olhos do Miguel, é a mesma. No entanto, as reações que ele profere assumem
191
outras direções ao se viver na cidade. Portanto, está na concepção de família a tensão que
Miguel descreve. Ou seja, a imagem que Miguel atribui à família e à rede de parentesco é a de
um modelo hegemônico, o de indiferenciação sobre as suas formas de ver e atuar no “Mundo
da Vida”, como nos diz Schutz. É uma referência próxima à de “família universal” divulgada
amplamente pelas religiões. Essa visão se estende, no seu entendimento, à rede de parentesco
reconhecida por ele como uma origem pautada pela consangüinidade e o recorte étnico
percebido como frágil frente aos outros grupos de convívio quando os ancestrais aqui
aportaram.
2.5 Festa da Família Valer
O 1º Encontro da Família Valer foi onde fiz a 1ª etnografia que dá início às pesquisas
nas festas. Soube da Festa da Família Valer através de uma colega Fernanda Nummer. Seu
contato era o Sr. Geraldo, um taxista particular que atende clientes fixos, sem ter vínculo com
algum ponto de táxi na cidade de Lajeado. Entrei em contato com o Sr. Geraldo – já o
conhecia, pois em uma ocasião havia ido a Lajeado e sido transportada por ele, que atende
sistematicamente minha amiga Fernanda e a sua família. Ao saber da festa, telefonei e ele,
prontamente, prontificou-se a mediar a minha presença no evento. Tudo foi confirmado.
Passamos, então, a tratar da minha ida: seria para Lajeado ou direto à Nova Bréscia?
2.5.1 Seu Geraldo
No dia 25 de setembro de 2005, saí da rodoviária de Porto Alegre às 7h em direção a
Lajeado, onde encontraria o Sr. Geraldo que estava esperando para levar-me à Nova Bréscia,
onde ocorreria a Festa de Família. Na rodoviária estava o Sr. Geraldo e sua esposa; então
seguimos em seu carro para o local da festa. O Sr. Geraldo dirige um táxi próprio em Lajeado.
Na primeira vez que o vi, estava vestido informalmente. No entanto, no dia do encontro,
trajava terno e gravata, já acenando indícios do grau de importância que o evento repercutiu
no núcleo de Seu Geraldo. Sua esposa também se vestia elegantemente. Partimos, então, os
três em direção à Nova Bréscia.
192
2.5.2 Relatos de viagem
Ao longo do trajeto, Seu Geraldo foi contando a sua vida e a sua trajetória, fortemente
marcada pela profissão de motorista de caminhão. As suas viagens foram por todo o país,
carregando grãos e máquinas. Em algumas vezes, era acompanhado pela sua esposa e,
posteriormente, por seu filho que hoje é motorista do táxi da família durante a noite.
Seu Geraldo insiste na preocupação que tinha com seu filho quando esse dirigia o
caminhão e estava sujeito a todo o tipo de violência em função do valor da carga que
carregava. Conta com alívio a decisão do filho em permanecer na cidade como motorista de
táxi, dividindo o mesmo carro consigo. Relata que a vida de caminhoneiro é muito
estressante, não só pelo cuidado e atenção que a direção de um caminhão requer nas estradas
em que, na sua maioria, estão em péssimo estado, mas também pela violência dos assaltos às
cargas que já no seu tempo ocorriam. Conta que trabalhou “muito duro”, com poucas horas de
sono por dia e sempre muito preocupado com a família que permanecia na cidade de Lajeado.
Sua esposa é auxiliar de enfermagem – hoje aposentada – e, quando tinha férias, o
acompanhava nas viagens, depois que os filhos ficaram crescidos. As viagens do casal
permanecem e contam que a última que fizeram foi em direção ao Rio de Janeiro, parando em
todas as praias ao longo do litoral. Planejam ir ao interior de Goiás, ao Pantanal e a Brasília,
assim que puderem.
Outro aspecto marcante na vida familiar de seu Geraldo é com relação ao neto, que
está com leucemia. Ele já havia sofrido um transplante de medula, mas o retorno da leucemia
estava deixando a família muito aflita com a falta de perspectiva. O neto é filho da sua única
filha mulher e a proximidade é muito grande, pois sempre ele e a esposa ajudaram a cuidar do
neto quando esse era pequeno, uma vez que a filha trabalha intensamente na escola em que
leciona. Os outros filhos são casados, também. Há um que é motorista, como foi citado acima,
e o outro é administrador de empresas e trabalha em uma grande empresa em Lajeado.
Durante a viagem, os assuntos variaram entre aspectos profissionais de Seu Geraldo e a vida
familiar relatada por Dona Bermela.
Com relação à festa, seu Geraldo comenta ter ficado muito feliz com a sua realização
da Festa. Atribuía o mérito da mesma à obstinação de uma prima, moradora de Nova Bréscia,
responsável pela organização do evento. Comenta que há a facilidade dela comunicar-se com
os parentes, pois trabalha na Prefeitura da cidade e está sempre em contato com muitos que
circulam pelo departamento no qual atua. Através deles é que os contatos com os parentes de
outras cidades foram feitos. De certa forma, a família Valer encontra-se com freqüência, pois
193
à medida que entramos na Festa, o Seu Geraldo apresentava-me a todos os que conosco
cruzavam.
2.5.3 Bem-vindos: a cidade também festeja
A chegada a Nova Bréscia foi registrada com uma grande faixa anunciando a Festa da
Família. Todo o caminho era traçado pelo correr de bandeiras nas cores verde, vermelho e
branco – cores da Itália – cravadas nos canteiros que marcavam a separação das pistas de uma
avenida que levava ao Salão Paroquial, onde seria a comemoração. Por todo o caminho,
encontravam-se setas que indicavam o 1º Encontro da Família Valer. Percebia-se o orgulho na
expressão de Seu Geraldo quando o observei pelo espelho retrovisor.
Talvez esta seja a ocasião mais apropriada para relacionar o impacto dos eventos sobre
a cidade, sobretudo no caso de cidades de pequeno porte como neste caso. Pelo menos, nessa
oportunidade, de fato é visível a forte decoração da cidade em função da festa, o que sugere
uma cidade que hospeda e prestigia o evento. Em Nova Bréscia, há faixas e cartazes
distribuídos por todo o trajeto, desde a entrada da cidade, que recebeu uma faixa imensa
anunciando as boas-vindas dos familiares Valer; elas alteram a paisagem e anunciam a todos
os habitantes o evento. Ao longo do caminho, novas faixas e placas puderam ser observadas.
No entanto o que mais chamou a atenção foram as bandeirolas nas cores vermelho, verde e
branco (as cores da Itália) no correr da avenida principal circundando os canteiros centrais.
Em cada bandeirola, com o formato de flâmulas medievais, havia o nome Valer. Os
preparativos haviam previsto detalhes que iam, gradativamente, conclamando a toda a rede de
parentesco.
Chegamos ao local. O salão tinha na entrada outra grande faixa anunciando a festa e
dando as boas vindas aos participantes. A frente do salão estava tomada por pequenos grupos
de pessoas que demonstravam muita alegria e surpresa em encontrar os parentes, alguns há
muito distantes e ausentes do convívio familiar.
Já nesse momento, Seu Geraldo, ainda procurando uma vaga para estacionar, ia
olhando de longe e reconhecendo alguns primos ou tios. Via-se claramente a sua euforia. Ele
havia combinado de encontrar-se com seus filhos no local. Certamente eles haviam reservado
um lugar para que pudessem sentar reunidos.
A chegada de Seu Geraldo foi muito festejada com abraços e fortes apertos de mão.
Via-se a alegria de todos. Nesse sentido, esse é um comportamento que indica um quadro
social de intimidade familiar que atua como força de perpetuação e reprodução do grupo.
194
Mais um entre tantos os ritos de convívio e de sociabilidade que se expressam em abraços e
apertos de mão e que fortalecem a unidade familiar, diferindo dos comportamentos
distanciados e formalizados pelo estranhamento.
2.5.4 O espaço da Festa: um topos familiar
Entramos no salão e lá havia um local onde as pessoas pagavam seu “ingresso” e
recebiam crachás com o nome e o tronco familiar. Recebi um crachá com a indicação de
convidada e o nome de Seu Geraldo como referência.
O salão era amplo e estava distribuído com filas de mesas arrumadas para o almoço; à
frente da entrada estava o bar, no qual se comercializava bebidas: cervejas, refrigerantes e
água. À direita da entrada, havia um palco decorado com as bandeiras do Brasil e da Itália.
Nele via-se o arranjo de instrumentos que indicava a possibilidade de uma atração artística.
Logo ao lado, havia uma mesa controlada por duas pessoas que comercializavam souvenires
com o nome da família: cuias de chimarrão, canetas, chaveiros. Na frente da porta de entrada,
estava uma comissão encarregada de distribuir os crachás e de cobrar o almoço dos
participantes. Atrás da mesa estendida para essa finalidade, havia a árvore genealógica
pendurada na parede, com uma caneta disponível para que as pessoas fossem preenchendo a
sua origem. A família Valer reproduziu a sua genealogia de uma forma simples. Não havia
alguém responsável pela ordenação da rede de parentesco, mas a informação compartilhada era
a dos antecedentes que vêm para o Brasil e seus filhos que estruturam os troncos e ascendentes.
Havia, na parede da entrada do salão, um grande cartaz de papel e as pessoas iam preenchendo
seus nomes e de parentes próximos. Percebia-se não haver a pretensão de ali se estruturar a
genealogia. Era, sim, uma etapa importante que estruturava o ritual e, tendo essa função, aquele
formato cumpria a “exigência necessária”. Inscrever-se na relação de parentes organizados a
partir do casal fundador é incluir-se em um lugar definido, é reconhecer-se pertencendo a uma
estrutura que se fixa no tempo. Cada parente que chegava dirigia-se ao painel e tecia a rede que
marca os ciclos familiares.
Em um dado momento há o questionamento sobre os parentes que ficaram na Itália por
um membro da família que, postado diante dos quadros/cartazes em que estavam dispostos os
troncos da genealogia, teve sua curiosidade aguçada frente à ausência da origem tão anunciada.
Próximo a ele cita, informalmente, um participante da Festa Família Valer: “há muito medo
que esses troncos do Brasil peçam parte da herança dos parentes que ficaram lá...”.
Compreende-se, de modo geral, que o parentesco anterior ao imigrante pioneiro não era
195
questionado até bem pouco tempo atrás que, junto a outros fatores, resulta dos reflexos de um
mundo globalizado que passam a atuar sobre os limites ‘políticos’ desse parentesco. Essa
questão surge de formas diferenciadas nas redes de parentesco ao longo da pesquisa e será
adiante pormenorizada.
Para finalizar o relato sobre o espaço da Festa, cabe observar a disponibilidade de uma
breve refeição disponível aos convidados. Logo adiante, junto à mesma parede, havia uma
mesa posta para que as pessoas se servissem de suco, café, pães, cucas, bolo, frios. A
alimentação, ainda que em tempos de urbanização, industrialização e profissionalização das
mulheres, é reconhecida como fonte de prazer, ato de sociabilidade e comunicação. A
informalidade dos alimentos dispostos à mesa permitia que os convidados se servissem sem
interromper a conversa e os deslocamentos.
2.5.5 O rito sagrado e a expectativa de unicidade
Após a celebração dos reencontros e do relato de alguns fatos breves, todos se
dirigiram à Paróquia, onde haveria uma missa que marcaria a bênção da reunião da família
Valer. A cerimônia contou com a participação de membros da família, ora na liturgia, ora nas
oferendas. No momento das oferendas, alguns familiares entravam pelo corredor central
portando objetos: terra em uma panela de ferro, ferramentas, a Bíblia e a imagem de Jesus
crucificado. Esse conjunto denotava valores específicos a serem destacados e compartilhados
pelos Valer. Esse momento, em especial, trouxe a história familiar e a trajetória dos
antecedentes que imigraram para o Brasil: membros da família levavam imagens do Sr.
Diácomo, sendo este o membro fundador “de uma história de luta e sucesso”, como foi
narrada por familiares. A recomposição histórica da família contempla desde onde se
estabeleceu o casal, como foi o início e a adaptação ao novo lugar, às dificuldades e a vitória
sobre as adversidades. Para cada etapa, casais de descendentes traziam objetos que
simbolizavam o período, relacionando-o aos valores cultivados desde então. Finaliza o
momento das oferendas com o descendente mais novo: um bebê no colo dos pais, evocando
um continuum na figura da família que anuncia a perpetuação por meio a descendência dos
pioneiros. Após a cerimônia, a família Valer colocou-se na frente da igreja para a foto oficial
da família. Junto aos participantes havia cartazes com escritos que congregavam os membros
da família.
Retomo a religiosidade e a relação forte que cruza com as práticas familiares.
Certamente o universo em questão é multifacetado tanto na situação de classe quanto de
196
gênero e no sistema de crenças. No entanto, parte-se de uma origem de tradição católica e
aderida pelo conjunto de parentes como mais uma expressão de pertencimento. O ritual
compreendeu a exposição de um conjunto de elementos simbólicos ou “formulações tangíveis
de noções, abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações concretas
de idéias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças” (Geertz, 1989, p. 105), que
comunicavam o pertencimento à terra – lugar que deu início à rede de parentesco –, às
imagens do casal fundador – ‘heróis pioneiros’ que colonizaram a região enfrentando todo o
tipo de adversidade –, a família composta dos pais e de um bebê – representando o modelo a
ser cultivado pelas futuras alianças matrimoniais em uma perspectiva de continuidade. Dou
destaque à Bíblia entre esses elementos: junto aos elementos anteriores, legitima a comunhão
entre os parentes e a religiosidade e reafirma os valores que o evento busca reordenar
atribuindo auto-imagens à identidade familiar.
2.5.6 A parte lúdica e o esforço de integração
A seguir todos retornaram ao Salão Paroquial, novamente colocaram-se dispostos para
uma fotografia na frente do salão que estava decorado com faixas anunciando a Festa da
Família Valer. Ao entrar no salão, todos se acomodaram nos lugares e a Sra. Noeli,
organizadora do evento, deu início com o Hino Nacional e depois o Hino da Itália, seguido
dos agradecimentos pelas colaborações e pelo comparecimento. Chamou a atenção para que
os familiares completassem seus ramos na árvore genealógica, que estava colocada na parede
de entrada e dividida entre os filhos do casal imigrante vindo da Itália. Passou a anunciar e
solicitar que levantassem os parentes para a apresentação de cada ramo da família;
homenageou os membros mais idosos e convidou a todos para rezarem pela refeição que
fariam a seguir. Um dos trechos dizia:
[...] Todos que agregamos aos Valer nesse momento, nós temos uma história, nós
temos a história da nossa origem, nós temos a história da origem italiana naquele
Valer que veio da Itália... o Diácomo. Ele criou uma história, uma ligação entre o
Brasil e a Itália. Nós poderíamos ter nascido lá e nascemos aqui, assim como somos
brasileiros, somos também um pouco italianos. Esse também é um momento de
civilidade, então eu gostaria de pedir a compreensão de todos vocês para que nesse
momento nós possamos, olhando para a bandeira brasileira, que nós pudéssemos
ouvir o hino nacional brasileiro e posteriormente o hino da Itália.
Fiquei surpresa com o fato de ver quase todos os participantes cantarem o hino
brasileiro e, após longo momento de palmas, cantarem o hino italiano. Nesse fato pode-se
197
reconhecer o incentivo que as comunidades ítalo-brasileiras, enquanto uma categoria
simbólica que traz a referência de uma descendência italiana, estão recebendo para a
conformação de categorias adscritivas que unam os grupos em torno de uma identidade étnica
comum. A entoação dos hinos denota um sentimento de uma nacionalidade compartilhada –
tanto em seu aspecto político quanto ideológico. A condição de ítalo-brasileiros é a
confluência de um pertencimento a uma nação (brasileira) e um pertencimento étnico
(evocação a uma origem).
Sentei-me junto à família de Seu Geraldo. Compareceram dois de seus três filhos, cada
qual com as suas famílias. Um deles estava viajando. O netinho de Seu Geraldo – o que estava
doente – compareceu com a mãe. Ele esteve alegre e brincando o tempo todo na companhia
dos primos. Volta e meia Seu Geraldo ia até o lugar que eles estavam sentados para acariciar
um e outro neto. A relação de afeto e intimidade percebida entre o avô e seus netos é
reconhecida em outros núcleos familiares e identificada com a noção de Lins de Barros, cuja
“experiência desse modelo [de família extensa, no qual as três gerações se inter-relacionam
como um conjunto] é vivida através de uma expectativa generalizada da participação dos avós
na vida de seus filhos e netos” (Lins de Barros, 1987, p. 137).
As noções de festa e ritual tornam-se conceitos-chave para a análise da Festa de
Família como o de comensalidade, já referido anteriormente. A seleção de alimentos a serem
servidos diz respeito aos costumes e hábitos familiares
80
. No entanto, o cardápio difere do
apelo sistemático à identificação com a origem italiana que se percebeu até então. Confere,
então, à absorção de hábitos e valores próprios de uma cultura local, assim como a sociedade
regional absorveu hábitos culturais italianos. Essa adesão à culinária regional foi observada
logo à chegada, pela presença do chimarrão. O almoço contou com o churrasco
81
como prato
principal – regado à salada de radite, elaborada ao modelo italiano (com toucinho frito) – e
pão. O cardápio atendeu ao padrão de consumo que se estende a todos e conclui-se, então, que
“os modelos alimentares aparecem como resultado de uma longa série de interações entre o
social e o biológico, como a agregação complexa de conhecimentos empíricos” (Poulain,
2004, p. 269).
Quase ao final do almoço, Noeli retoma os agradecimentos: à presença do Prefeito de
Nova Bréscia e ao jornalista do jornal da cidade, recomendando a todos que “adquiram a
assinatura para que possam saber as notícias de parentes, de pessoas ligadas à família, dos
80
“Além de sua dimensão biológica, a alimentação humana é um ato social e cultural onde a escolha e a
consumação do alimento colocam em jogo um conjunto de fatores de ordem ecológica, histórica, cultural, social
e econômica ligado a uma rede de representações, simbolismos e rituais” (Maciel, 1995, p. 7).
81
Ver Maciel, 1995 p. 34-48.
198
maridos”. Essa nota remete à sua inserção na vida política da cidade e atua profissionalmente
em um cargo público municipal. Há uma dimensão de gênero paradoxal, uma vez que Noeli
seguidamente está nas páginas do jornal local.
Logo a seguir, um dos organizadores toma a palavra:
Meus caros, hoje se está realizando um grandioso acontecimento, um acontecimento
de vida, de existência, a história de uma saga levada com têmpora através dos
tempos. Somos a semente brotada, plantada em terra fértil, a mais linda das terras,
esse é o nosso chão. Daremos frutos por conseqüência, muitas serão as sementes, e
quando Deus permitir que nos encontremos mais vezes, veremos também que não só
o solo era fértil, mas depois tanto a semente, a semeadura realizadas, hoje se festeja
o presente com a alma bifurcada em dois horizontes remotos, o de ontem, como se
dirigíssemos nossos olhares ao início da caminhada, e também acima de nossos
olhos pra que enxerguemos o porvir, o amanhã, onde logo estaremos com as graças
de Deus, ontem hoje, amanhã se fazem constantes na história de uma família, de
uma família como a nossa, que teve a sorte de ter sido agregada a outros
sobrenomes distintos, a da maior e mais qualificações da nossa genética, não irei
citar nenhuma delas porque elas no meu coração e no nosso coração são Valer,
como também tem, somos um tanto delas, nos desígnios são os mesmos e mesmos
são os sentimentos. Por fim um agradecimento especial a todos que compartilharam
da nossa congregação, a todos que trabalharam para a realização desse sonho, que
nada mais é do que uma homenagem aos nossos antepassados e uma grande lição
de afeto aos que estão ainda por escrever sua página na nossa história. Hoje
festejamos, oramos, comemos, bebemos e dançamos, que assim seja na vida de cada
um, um pouco de cada momento glorioso que se está levar daqui, porque isso
representa a vida, união, e isso é família. Obrigado meu Deus, obrigado a todos,
obrigado, Noeli.
A fala apresenta-se repleta de signos importantes que denotam o habitus (Bourdieu)
em que essa comunidade familiar encontra-se inserida. Observa-se a idéia de saga que remete
aos imigrantes de origem em torno da bravura com que foram imbuídos na domesticação de
uma natureza hostil. Outros aspectos que devem ser ressaltados são os da religiosidade e o da
relação com a terra e o meio rural. Esses sinais diacríticos denotam outra forma de ver o
mundo, outra forma de relacionar-se com outros mundos possíveis.
Noeli retoma a palavra e reitera o que buscou comunicar ao dar início à Festa:
É gratificante estar aqui todos juntos, mas eu acho que vale a pena o sacrifício, um
pouquinho de dedicação de cada um de nós para relembrar e fazer a nossa história.
Como disse e volto a dizer, como é que nós contaríamos a nossa história no futuro
se nós não conhecemos o nosso passado, se nós não sabemos da onde viemos, quem
somos, a quem pertencemos? O meu desejo nesses encontros da família, no
encontro da família Valer é para que cada um de nós aqui possa refletir a
importância desse momento, ou que diria os nossos pais se estivessem aqui, os
nossos avós... É isso que cada um pensasse nesse momento: se estamos aqui é
porque antes de nós existirmos, houve alguém, e alguém que também teve esse
sobrenome que nós temos, alguém que tem essa origem que nós temos. Então é
necessário para a nossa história, para a história da nossa família, para os que
vierem depois de nós, nós podermos conservar, nós mantermos vivo dentro de nós a
nossa origem, a nossa história, em nenhum momento devemos ter vergonha de ser
199
quem somos, muito pelo contrário, que sintamos orgulho, que a gente possa se
sentir orgulhosos de sermos e pertencermos a família Valer, essa família Valer tem
uma história em Nova Bréscia, que tem uma história por todo esse Estado, por
todos os recantos, que tem uma história da origem italiana aqui no Brasil.
Acima de tudo o que se observa é a constância à evocação a um passado constitutivo
do presente, do encontro entre os parentes. Cabe salientar que, ao pensar o tempo
82
, se
constrói a memória enquanto ‘obra’, segundo Bachelard (1994). Trata-se de um tempo
pensado (formado por instantes) em detrimento ao tempo vivido (descontínuo, dialético e
lacunar) que se constrói na evocação. O ato de rememoração realizado à rede de parentesco
no espaço da festa reelabora e reconstrói os acontecimentos e a rede ‘em si’.
Pronuncia-se outro parente por afinidade. O microfone lhe é entregue e diz:
Boa tarde, eu acho que muita gente da família Valer já me conhece. Eu fui, sou
Lena, vou ser sempre a cunhada do Armando... eu sou irmã da tia Lu, quer dizer, eu
sou Valer por “tempo de casa”, porque eu digo sempre, eu passei muito mais tempo
com o Armando do que muitos de vocês que são parentes de sangue. Parentes de
sangue nós não podemos escolher, família nós não escolhemos, agora aqueles que
não são família, que nós queremos guardar em nosso coração, nós podemos
escolher, com certeza. E é por causa disse que eu digo: eu sou Valer.. .também sim
por causa da ligação muito forte que eu tinha com o Armando e por todos aqueles
que me conhecem e que me acolheram e que eu sei que tem muito carinho.
Independente da Cila (sic) ou não, eu quero deixar aqui meu muito obrigado e dar
parabéns para todo mundo e eu tenho certeza que estou falando do nome de todos
aqueles que são os agregados da família Valer. Muito obrigada.
A expressão dos sentimentos dessa participante é importante para pensar que a família
estende-se para além das relações de consangüinidade. Esse aspecto, já desenvolvido
anteriormente, traz a diferenciação sobre as considerações que devemos ter sobre as diferentes
manifestações sobre o conceito de família, tendo em vista as representações observadas nas
relações etnográficas
83
. O início da reflexão acena para um conceito que não pode ser
fechado; sobre ele pesam inúmeras formas de expressão e de afinidade que devem ser
referidas. Não obstante, as famílias contemporâneas ocidentais estão sendo formadas pelas
gerações em que os sujeitos atendem à imposição do surgimento do “indivíduo original”,
como aquele que tem a sua verdadeira natureza respeitada. Isto é,
Acreditar que se esconde, no fundo de si mesmo, uma identidade pessoal, um
“verdadeiro eu” – esses mitos da interioridade – se constituiu de forma lenta no
82
“[...] o pensamento, a reflexão, a vontade clara, o caráter teimoso, conferem duração a um ato efêmero,
aprendendo a adicionar-lhe atos secundários adequados. Captamos, assim, a duração em seu caráter de conduta,
em seu caráter de obra” (Bachelard, 1994, p. 44).
83
Sobre as rupturas com modelos hegemônicos de família, ver Fonseca (2004, 2007), Segalen (1995, 1999), Lins
de Barros (1981) e Duarte (1994).
200
Ocidente até tornar-se uma evidência normativa para cada um de nós, à qual se
juntou um outro imperativo, o de ser autônomo (Singly, 2000, p. 14).
Essa condição não é fruto de um exercício pessoal; ela é apreendida e confirmada nos
processos socializadores, nos quais a família assume a função de agenciadora da consolidação
em permanência do “eu” dos seus membros. Portanto, a conquista dessa autonomia implica a
presença de pessoas que ocupam um papel de relevo, de intensa interação, com as quais o
indivíduo mantém relações emocionais mais intensas e concebe seus comportamentos como
modelo a ser seguido. George Herbert Mead chama essas pessoas de outros significativos,
segundo Berger (1985, p. 175). Os outros significativos, em geral, são os familiares (pai, mãe,
irmãos, avós, etc.) e aqueles indivíduos que compartilham de um espaço mais íntimo (babá,
amigos, padrinhos). São, portanto, impostos. Por sua vez, esses sujeitos estão inseridos em
uma estrutura social objetiva que comporta a compreensão sobre uma realidade objetiva a ser
mediada por eles – em acordo com a localização dos mesmos na estrutura social e as
idiossincrasias individuais – ao indivíduo ‘socializante’, em processo de iniciação no mundo
social.
Parentes de sangue nós não podemos escolher, família nós não escolhemos.
Não obstante, a família adaptou-se a essa nova demanda individualista do mundo
social contemporâneo sem, contudo, abdicar das relações que constrói na esfera privada com
base em “uma lógica de grupo, centrada no amor e na afeição” (Singly, 2000, p. 15). A
imposição da lógica do amor, que se intensifica nas últimas décadas, implica a permanência
da conjugalidade condicionada ao amor entre os cônjuges e a possibilidade de conservação
das identidades pessoais dirigida à idéia de ser “livre junto”. Por sua vez, a intensa
individualização que marca as relações familiares não significa a dissolução da solidariedade
familiar e os laços afetivos entre seus membros. Ao contrário, a escolha voluntária é resultado
da conquista de liberdade e privatização da existência promovida, inicialmente, no núcleo
familiar. Os ideais do amor romântico tenderam à fragmentação em virtude dos processos de
emancipação e autonomia – principalmente feminino –, dando espaço ao amor confluente que
é “um amor ativo, contingente, e por isso entra em choque com as categorias ‘para sempre’ e
‘único’ da idéia do amor romântico” (Giddens, 1993, p. 72). Essa noção reflete a ambigüidade
que persiste na noção de família: de um lado, o determinismo biológico da consangüinidade,
por isso não se escolhe e cai no conformismo e pressupõe uma identidade substantiva, e de
outro lado, tornar-se parente pelos laços matrimoniais, por afinidade – que pressupõe uma
201
identidade relacional – e, nessa situação, há a possibilidade de escolha em manter as relações
com os parentes afins, diante da fluidez da autonomia emocional e ela se estende ‘para
sempre’ ou, também, pode vir a ser indesejada.
A construção de uma identidade familiar mostra a importância do papel do narrador
identificado nos três personagens acima – no espaço da Festa – ou nos parentes mais idosos
no interior dos núcleos familiares. Esse aspecto é preciso em Walter Benjamin (1987) quando
afirma a existência de um narrador como aquele que incorpora as coisas narradas à
experiência de seus ouvintes.
A seguir, Noeli anunciou a apresentação de um grupo ítalo-brasileiro, tipicamente
vestido – uma mistura de italiano com a pilcha gaúcha –, que cantou músicas que marcam a
imigração italiana no Brasil. O cantor do grupo também fez uma breve preleção, desejando a
todos um alegre encontro e desejava que, daquele que era o primeiro, viessem muitos outros.
Ao término da apresentação, as pessoas passaram a circular em busca de novos
encontros. Essa foi uma ação muito ligada ao grupo masculino. As mulheres ficaram reunidas
com os familiares femininos mais próximos: filhos, irmãs, mães, sobrinhos, tias. Os homens
conversavam de pé, em geral com um copo de cerveja na mão, enquanto as mulheres
permaneceram sentadas tomando chimarrão, na maioria dos grupos. Fiquei próxima ao grupo
da esposa do Sr. Geraldo. A conversa girava em torno dos netos, de comentários sobre uma ou
outra que não estava presente. Em alguns momentos, havia um profundo silêncio provocado
pela ausência do que falar. Os grupos masculinos riam muito e mostravam desenvoltura e uma
forte sociabilidade. Não quis me aproximar muito dos grupos dos homens. Poderia não ser
bem recebida a minha atitude. Tentei observá-los com atenção em uma tentativa de leitura
sobre as expressões e gestos que o momento suscitava e que tanto os fazia rir e compartilhar.
2.5.7 A ‘negociação’ sobre os conflitos
Outro aspecto surpreendente foi a presença de um menino de uns oito anos, mulato,
que estava na companhia de um rapaz relativamente moço. Dona Bermela viu que os
observava e me conta que a mãe do menino é negra. Ela não a conhecia pessoalmente, mas
sabia que ela não participava de festas de aniversário da família, mas que o pai, que é Valer,
não deixava de levar o filho em todas as reuniões. Ele casou contra a vontade dos pais... “sabe
como é, quando inventam de casar não perguntam a ninguém...”. Não foi deixada nenhuma
dúvida sobre a resistência da família ao casamento do rapaz. Penso que o preconceito racial
tenha sido um dos fatores que afastou a moça do convívio com os parentes por afinidade. No
202
entanto, a presença do pai acompanhado do filho, presos pelos laços de sangue, os colocava
legitimamente no interior do grupo de parentesco. O menino não se afastou do lado do pai e
este, por sua vez, pouco se relacionou com os grupos à sua volta.
A ausência da mãe e o ‘quase’ isolamento do pai e do filho refletem o conflito que
comporta o parentesco por afinidade, quando este não atende aos critérios valorativos de
pertencimento atribuídos aos descendentes. Um dos critérios é o de alianças endogâmicas,
tendo em vista a noção de sangue e raça entre os descendentes de italianos possui a
capacidade de transmissão e orientação de condutas de vida e gosto. Maria Catarina Zanini
traz essa relação em seus estudos sobre a italianidade no sul do Brasil e o forte peso simbólico
atribuído às idéias de que o ‘sangue puxaria’ e de pertencimento a ‘uma raça comum’. A
autora afirma que “numa visão mais naturalista das hierarquias sociais, alguns se sentem
superiores enquanto raça. O sangue, portanto, é um valor que lhes possibilita se sentirem mais
valorizados socialmente” (Zanini, 2006, p. 234-5).
Nos estudos de Abreu Filho (1982), os laços matrimoniais são avaliados com base nas
ordens morais, econômicas, raciais e religiosas. Ao tratar sobre a raça, cita em nota de rodapé
a posição de Thales de Azevedo: “o branco que se casa com escura ‘desce’ de classificação,
porque, de acordo com um refrão muito conhecido, ‘quando uma moça se casa, sua família
ganha um filho’: este passa para o mundo de cor que origina sua esposa” (Abreu Filho, 1982,
p. 111). Temos, portanto, uma dupla afirmação sobre a noção de raça que podem ambas
implicar na sobreposição de valor negativo sobre o casamento do parente de descendência
italiana – superior, em relação à raça – e, a esposa negra – inferior, em relação à raça –; e, por
fim, o ítalo-brasileiro passa a ser afim de outra família, condição que macula publicamente a
imagem de prestígio de sua raça de origem.
Após algum tempo, os núcleos familiares começaram a se retirar. A família de Seu
Geraldo foi uma das últimas a sair. Voltamos a Lajeado comentando a festa durante o trajeto.
Seu Geraldo estava eufórico com o reencontro de parentes que há muito não encontrava. Sua
esposa comentou sobre os filhos, noras e netos – significativo quando se observa os grupos
femininos pouco transitarem na festa. Seu Geraldo levou-me até a rodoviária. Despedimo-nos.
2.5.8 Notas de campo
De modo semelhante, há o relato do Sr. Geraldo Valer e de sua esposa. As lembranças
de um tempo passado indicam para ele o tempo do trabalho que realizava longe da família.
Suas referências são os perigos pelos quais passou ao dirigir um caminhão e as dificuldades
203
características de sua profissão de caminhoneiro. Sua esposa lembra-se dos filhos pequenos,
do retorno do marido ao lar após longos períodos de ausência e as viagens que realizavam
juntos. Hoje suas preocupações estão centradas na saúde de um dos netos que está com
leucemia. É uma preocupação que o Sr. Geraldo também externa, mas a iniciativa de falar
sobre o fato parte de sua esposa de forma muito emocionada.
As lembranças do casal estão estreitamente ligadas às experiências vivenciadas após
os laços matrimoniais e junto aos seus filhos. Não trazem lembranças da família mais ampla,
dos pais ou dos avôs, a conversa que corre informalmente ao longo do trajeto que nos levou à
Lajeado. Bermela conta que foi em uma festa – “naquele tempo as festas eram todas de
santos” – que conheceu o Seu Geraldo. Moradores de picadas relativamente distantes para a
época, foram apresentados por um parente e ali já começaram a flertar. As festas iniciavam
com a missa e depois todos iam todos ao salão de baile. “E assim a gente namorou”, finaliza
visivelmente envergonhada de tratar de um assunto tão pessoal.
2.6 A Família Rocha
A possibilidade de etnografar a Festa da Família Rocha partiu de um convite de um
aluno. Ele portava o anúncio do evento, comentou com um colega e, casualmente, escutei.
Contei a ele sobre a minha pesquisa e ele, então, sugeriu que incluísse o evento da sua família.
No dia seguinte passou-me o contato do organizador da festa, um primo em segundo grau,
Paulo Rocha.
2.6.1 Paulo Ricardo Bittencourt Rocha, o organizador da festa e apaziguador de
conflitos?
A entrevista antecedia o dia da Festa. Nosso encontro foi no local de trabalho de
Paulo, durante seu almoço. Paulo é filho natural de um casal que, na adolescência, namorou e
se separou, sendo que sua mãe estava grávida. Foi registrado pelo pai, mas o casal não se
reconciliou. A mãe de Paulo manteve a amizade com a família Rocha e, quando Paulo nasceu,
um irmão de seu pai foi convidado a ser o padrinho. Esse foi o vínculo maior que manteve
Paulo associado à família Rocha, uma convivência afetiva com seu padrinho.
A mãe de Paulo casou-se alguns anos depois e seu padrasto foi um bom pai. Desse
casamento, Paulo tem duas irmãs. Há aproximadamente 10 anos atrás, ele procurou o pai e
204
passaram a ter certa convivência. Seu pai casou-se e teve três filhos. Contudo, Paulo refere-se
sempre ao padrinho ao falar sobre a família Rocha.
Quando questionado sobre os vínculos familiares, Paulo imediatamente fala sobre a
família Bittencourt. Conta que viveu até os oito anos na casa dos avós com sua mãe e tios em
Taquari, local de origem das duas famílias. Quando sua mãe casou, foram morar em uma casa
próxima e a convivência com os avós manteve-se intensa. Fala com carinho na avó “bastante
religiosa” e no avô “bastante independente”:
Era um pouco tradicional da época a mulher ser mais caseira; cuidava mais do lar
e o avô mais ambicioso, então era um cara que saía mais de casa, saía alguns
períodos, então era mais aventureiro. O velho era mais aventureiro e a velha era
mais... mais centrada e mais líder da casa, acho que dá pra dizer isso. E ela tinha
uma característica bastante religiosa e eu não sei se isso dá pra centralizar só no
aspecto religioso, mas agia de modo mais fraterno, mais de uma irmã, mais
acolhedora, mais receptiva a confidências com a turma. Então ela tinha um carinho
muito grande, ela teve treze filhos, então ela teve um carinho muito grande dos
filhos com ela, com ela e com os dois.
A relação íntima com os avós marca a trajetória de Paulo e de seus vínculos familiares.
O modelo de casal que a geração dos avós apresenta é compreendido como um modelo da
época em uma cidade do interior. Ele pouco fala sobre a sua vida junto ao padrasto, a mãe e as
irmãs e conta que, quando os avós faleceram, houve a dispersão dos treze filhos, que somente
se encontravam em velórios, e que foi em uma dessas ocasiões – na morte de um tio
emprestado
84
– que surge a idéia de fazer um encontro da família Rocha. Com o apoio de dois
primos, iniciaram as Festas da Família Bittencourt anualmente. Já realizaram doze encontros
até então, sempre ocorrendo em Taquari, no “berço de meus avôs”, diz Paulo. Não são
resgatadas memórias do passado, nem há uma preocupação na reordenação grafada do
parentesco.
Não se tem genealogia. Se parte desse casal [os avós], os filhos e os descendentes
para fazer a confraternização. Ela inicia com uma missa, depois tem uma passeata
na cidade com fogos de artifício, faixas, depois tem churrasco, tem jogos, tem baile
e, no outro dia, tem jogos de novo, tem jogos de criança no sábado à tarde,
brincadeira com ovos, corrida de saco, gincanas. E domingo tem jogos de manhã
para os homens. O baile vai até mais tarde, depois no domingo tem outra refeição
um pouco mais leve e aí já tem a dispersão do domingo. A festa dos Bittencourt ela
dura em torno de dois dias sempre, 36 horas.
84
A nomeação do parentesco varia entre as culturas. Os parentes por afinidade recebem termos que demarcam o
afastamento dos parentes consangüíneos. As expressões definem que ‘não fazem parte da família’, são
‘encaixes’, são ‘os agregados’. “Estas expressões e estas formas de designação indicam bem o estatuto e o lugar
particulares destes indivíduos aparentados” (Segalen; Zonabend, 1999, p. 129-30).
205
Sobre a Festa da Família Rocha, Paulo conta que a idéia vem de um parente que teve
um problema cardíaco sério e, em uma visita ao parente no hospital, este pergunta:
– Paulo, quando é que nós vamos fazer a nossa festa, dos Rocha?
– Vamos fazer a hora que tu quiseres.
– Vamos fazer o seguinte, vou fazer uma promessa: eu dou dar a carne, se eu estiver
vivo, e tu organizas.
– Fechado.
– Vamos fazer ano que vem, ele disse.
– Não, não, não, tu estás querendo ir muito rápido.
Claro que, o que eu estava vendo, a leitura que eu fiz e eu nunca falei pra ninguém,
é que como ele estava mal, imaginei: ‘se tu faz ano que vem, eu participo, e daqui a
pouco eu vou embora, morro. Quanto mais eu prorrogar essa festa, mais eu vivo,
porque eu tenho uma promessa a cumprir’.
A dimensão simbólica do projeto sugerido pelo parente doente aproxima-se à noção da
dádiva em Mauss (2003) em que se compreende esta como não livre, nem realmente
desinteressada. A atenção que recebeu da família será retribuída, caso ele sobreviva, e a
retribuição será sob a forma materializada (a carne do churrasco), porém, simbólica, uma
contraprestação, ao buscar o reforço (confraternização) aos laços de aliança.
Outro aspecto interessante é a permanência desse parente frente à promessa realizada.
Adia-se a morte para cumprir o que se prometeu. Simbolicamente, se negocia o medo da
morte, negada por excelência, em conformação ao modelo vigente. Contudo, surpreende a
complexidade e a riqueza dos meios concebidos pelo imaginário para organizar a luta contra a
morte. O parente articula a negociação e Paulo confirma avançando sobre a proposta – “eu
prometo a carne” e “eu adio a festa para cumprires a promessa”. Esse conjunto articulado são
imagens representativas que buscam sua “eficácia simbólica” (Lévi-Strauss, 1996) a um valor
à troca que permita prolongar a presença.
Paulo dá início a sua parte na negociação. Investiga superficialmente a história
familiar e chega ao ponto de partida: o ‘casal fundador’: José e Isaura Rocha – bisavôs da
geração de Paulo. Eles tiveram oito filhos, que Paulo organiza-os em ‘ramos’. Desses ramos,
Paulo convocou um casal de cada e montou a comissão organizadora. A primeira reunião foi
de apresentações – muitos não se conheciam. Em meio a essa história, Paulo traça o perfil da
família:
Os Rocha têm esse perfil de oscilação de humor e eu acho que eles oscilam de
humor porque eles não convivem, concorrem. Na comissão, eles não vêem coisa boa
na idéia do outro, eles competem. A gente sempre dar um tempo, valorizar, “tem
uma idéia interessante, porque a gente não faz assim? A tua idéia também é a boa,
quem sabe a gente une as duas?”. Diante disso, o que eu pensei? Vou fazer uma
206
festa curta, pra dar saudade, pra testar, não dar tempo para o desgaste, não dar
tempo para os conflitos.
Retomamos aqui a questão da herança cultural e a noção de que sobre uma base
biológica, a partir de uma explicação genética entre parentes e consangüíneos lineares, se tem
uma visão naturalizada de uma forma de comportamento familiar. Essa observação é
interessante, pois em um outro momento Paulo trará o perfil dos Bittencourt em uma análise
comparativa:
Os Rocha são muito contadores de história; os Rocha são mais orgulhosos de ser
Rocha e falam mais desse orgulho. Os Bittencourt são orgulhosos também, mas não
falam muito. O Rocha é mais papudo. Ele, além de ser orgulhoso, ele tem que falar
que ele é bom nisso ou naquilo. Esses dias nós estávamos num encontro e
começamos a discutir algumas características da família e ai deu: orgulhoso, o
outro, trabalhador, mas a característica que apareceu forte foi honestidade. A
honestidade foi a que mais apareceu como virtude e o que mais apareceu como
defeito foi raivoso ou mal-humorado. Brigão, brigão também apareceu, ‘reinão’,
como eles falaram.
É interessante pensar como Paulo se situa frente a essas duas situações. Compreendi,
em nossa conversa, que foi estratégico fazer com que a comissão organizadora pensasse sobre
a forma de a família Rocha atuar no mundo social. Esse exercício de reflexão fez com que
todos concordassem que o importante na Festa era evitar os confrontos e tem, então, a sua
sugestão atendida:
Vai haver uma missa às seis e trinta da tarde. A partir das quatro da tarde, tem uma
mateada. A confraternização é de uma hora e meia, antes da missa. A missa começa
às seis e trinta, com o abraço da paz em família. O padre de Taquari conhece já a
gente, então, os padres de Taquari que rezam a nossa [Bittencourt] missa
estimulam. E ali em Taquari é uma característica abraçar dentro da igreja, eles
cantam no inicio da missa e pedem pra gente olhar para dentro da igreja, todos,
quem está dentro da igreja, cumprimentar os que estão do lado, então gera toda
uma aproximação... Então vai ter essa sessão de fotos, eu vou contar um pouquinho
a história, porque eu sei pouco. O meu foco, como eu te disse, o meu perfil é muito
mais de integrador do que da história genealógica. É mais a confraternização. Esse
resgate, tanto nos Bittencourt como nos Rocha, é possível fazer. Com os Rocha tem
que consolidar mais o encontro, eles começarem a trazer dados históricos... Eles
têm muito mais uma demanda reprimida que é a confraternização. Entre eles têm
umas rusgas lá, umas brigas. Eu não dou valor a isso, nunca dei, à fofoca, essas
coisas..., mas tem umas rusgas quando os tios adoeceram, aí uns cuidaram mais e
os outros se esbaldaram e deixaram para o outro e aí aquele não ficou bem. Tem
uns que não se dão mesmo, de não conversar, não conversam há anos.
Os problemas cotidianos da vida familiar têm referência na visão naturalizada que
Paulo e os parentes classificam o ‘temperamento’ da família Rocha. Por sua vez, Paulo toma
para si a missão de amenizar os impulsos desse temperamento familiar que levam ao conflito,
207
valorizando a confraternização. Para tanto, em sua perspectiva, o ritual litúrgico tem o caráter
prescritivo para esse fim, sendo o abraço da paz em família uma possibilidade de diluir as
animosidades que resultaram das fofocas e das ausências ao auxílio de parentes próximos.
Três são as questões colocadas no trecho acima: a hereditariedade do temperamento, já
abordada anteriormente, a religiosidade como agente de contensão dos impulsos dessa
característica naturalizada e, por fim, o conflito estabelecido pela ausência do comportamento
esperado de solidariedade familiar. A idéia da mediação religiosa como agente apaziguador
do valor moral auto-atribuído “reinão” reflete, segundo Schutz, uma ordem, cuja
essência dessa ordem como tal nos é desconhecida. Ela se revela apenas em imagens
por meio de apreensão analógica. Mas as imagens, uma vez constituídas, são
tomadas como pressupostos, e assim as transcendências às quais se referem. [...] Isso
acontece porque encontramos no nosso próprio ambiente sócio-cultural sistemas
socialmente aprovados que oferecem respostas à nossa inquietação diante de
transcendências desconhecidas. Desenvolvem-se dispositivos para a apreensão dos
fenômenos inquietantes que transcendem o mundo da vida diária, de certo modo
análogos aos fenômenos familiares dentro dele. Isso se faz através da criação de
referências de apresentação de uma ordem superior, que serão chamadas de mbolos
(Schutz, 1979, p. 243).
Por sua vez, a interpretação do símbolo é feita por meio de outros símbolos e a
compreensão sobre o mesmo não se restringe ao modo racional e, sim, em “vivenciá-lo
existencialmente, na intenção simbólica, como única referência a alguma coisa transcendente,
a qual desaparece num ponto limite” (Schutz apud Jaspers, 1979, p. 244).
Compreende-se a crença de Paulo no poder transcendental do abraço da paz como
uma experiência subjetivamente significativa compilada no curso de sua vida,
conscientemente apreendida e cognitivamente construída no envolvimento direto com outras
pessoas, nas relações do Nós.
No que tange à ordem do conflito expressada por Paulo, o que se percebe é o declínio
absoluto ou parcialmente revelado sobre o senso de dever, a camaradagem, o sentimento de
solidariedade e subordinação de alguns familiares sobre os cuidados de um tio que esteve
doente. Esses valores deveriam regular o comportamento dos membros do grupo interno
dispostos adequadamente em proporções semelhantes a cada um deles. No entanto, o conflito
se estabelece quando há deslocamentos dentro do sistema de relevância predominante. Isto é,
o grupo social familiar é formado por uma rede de processos interativos, de papéis
estruturalmente definidos, posições e status interligados. Os papéis a serem desempenhados
pelos seus membros no interior do grupo familiar já trazem no seu bojo um conjunto
específico de expectativas sobre o que se espera que as pessoas incumbidas desse papel
208
cumpram. As falhas sobre o seu cumprimento são compreendidas como faltas graves de
traição aos laços de solidariedade enquanto um valor preponderante ao universo de parentes,
como uma ação de renúncia que passa a ser alvo de intensas acusações e, em caso extremo, de
ruptura nas relações familiares.
Não obstante, Paulo fala na família Rocha dotada de uma característica jocosa no
tratamento entre seus membros:
Os Rocha são muito contadores de histórias; eles gostam muito de anedota, tem um
grande arsenal de anedotas e eles aumentam as coisas. Eu tenho um pouco dessa
característica. Os Rocha contam e riem deles mesmos, só que outro não pode gozar
deles, aí eles partem para a briga...
Voltamos às relações jocosas de Radcliffe-Brown (1959), que enfatiza a sua
importância, ao lado das relações de evitação, para estabelecer de forma relativamente estável
uma combinação de relações de associação e dissociação entre membros de um mesmo ou de
grupos distintos que, entretanto, mantêm relações sociais fundamentais entre si – relações de
aliança – em uma dada estrutura social. Ele distingue relações de “amizade” e relações de
“solidariedade”, estabelecidas por parentesco ou pertencimento a uma linhagem ou clã. Nesse
sentido, a aceitação das brincadeiras e narração de causos ampliando a sua proporção se restringe
ao grupo interior e complementa ser terminantemente proibido àqueles que se encontram fora do
círculo familiar. Por outro lado, as relações jocosas podem assumir proporções agressivas, mas
que, no entanto, são consentidas, pois também mexem com as emoções, tornam-se expressões de
prazer em estar junto com os seus e de participar em uma situação na qual a agressão perde a
força negativa e se deixa sobrepor pelo prazer de estar junto e poder brincar.
Tem muita história, tem uns palavrões... eles contam anedotas assim: tem um tio
que eles chamam de tio Xexê. Esse andava sempre de bombacha e chinelo de dedo e
a vida toda nunca ninguém o viu sem bombacha e de sapato, sempre de chinelo de
dedo e de bombacha. Ele passou um tempo no hospital e, o Flávio que me contou
essa história, alguns parentes se revezaram para cuidar dele. O Flávio, que é
sobrinho, cuidou dele e ele ganhou alta num dia e veio pra Taquari, no rincão São
José, onde ele morava. O Flávio procurou-o e ele não estava, estava num bar, no
outro dia da alta. E ele estava tomando cerveja. Ele [Flávio] disse assim: “que é
isso tio Xexê, estás tomando cerveja?”. “Ela está quente, rapaz, está quente, mas
essa está quente, rapaz”, como quem diz ‘quente pode, o que não pode é gelada’. E
continuou tomando.
Paulo diz que tem “um pouco dessa característica”. Essa manifestação mostra o quanto
ele busca aspectos de identificação com a família do pai. Sua referência é a linhagem materna;
209
no entanto, a crença no valor da consangüinidade como relevante
85
demonstrada em suas
ações de aderir imediatamente à iniciativa de reunir a rede de parentes sugerida pelo tio em
um momento de fragilidade e risco de morte, em liderar a organização do evento, em
amenizar as tensões entre os membros da família, pode denotar, além do valor aos laços
consangüíneos, uma alternativa de lazer junto aos parentes e reafirmar o pertencimento à
referida rede.
Finalizamos nossa conversa e pergunto a Paulo o que ele pensa sobre a realização da
Festa, ao que ele responde:
O processo de tu participares, de tu seres comendador, como chamam, seres da
linha de produção, também dá uma experiência. O pessoal quando chegou lá,
chegou com uma idéia completamente diferente. Eles passaram duas reuniões
brigando, porque eles não queriam que fosse assim. Hoje eles já defendem, hoje eles
já começaram a aprender. Então, é um processo educacional de aspectos
econômicos, de orçamento, de olhar um para o outro. Por exemplo, uns chegaram
dizendo: “ah não, os Rocha estão bem de vida, eles têm que dar de graça.” “Mas os
Rocha têm que dar de graça, eles têm plantação de arroz!”. Mas os Rocha são
todos. Uns chegaram a dizer assim: “não, não, eu não boto a minha mão em nada,
eu contrato um bufê, eu vou aproveitar a festa”.
A concepção de processo de aprendizagem sobre as ações práticas e, principalmente,
as ações simbólicas sobre olhar um para o outro é significativa quando reporta ao possível
reforço aos laços de afeto e de solidariedade, às redes de ajuda mútua, à capacidade de
aprender com a diferença, etc. Cabe chamar a atenção sobre o esforço em buscar a
identificação de interesses particulares com os interesses coletivos da família de forma que a
escolha dos membros que participaram da comissão de organização deveria ter como critério
os membros mais inclinados a aceitar a visão comum e que fossem capazes de contribuir com
seus pontos de vista.
Essa tarefa Paulo tomou para si, a de articular com o temperamento de ‘competição’
que há entre os membros da família Rocha. Ele confessa que não é uma tarefa fácil; requer
revisar constantemente as formas de abordagens de modo a contemplar a visão da maioria.
Chama atenção à posição de Paulo no interior da rede de parentesco – um filho que
não convive com o pai – membro consangüíneo dos Rocha –, que foi abstraído de um núcleo
familiar em um contexto histórico (anos 60) e geográfico (cidadezinha do interior) que
valorizava o modelo tradicional: pai, mãe e filhos. A mãe manteve-se solteira, construindo
posteriormente uma família a que Paulo aderiu, mas tendo sempre a referência afetiva à sua
avó. Ao falar sobre si, imediatamente, relata o tempo que viveu ao lado dela e de seu avô.
85
Ver Fonseca (2007), Lins de Barros (1987) e Segalen (1995).
210
Contudo, Paulo busca o relacionamento com o pai em um determinado momento da sua
trajetória, retoma o convívio com os parentes na cidade do interior e envolve-se diretamente
na organização da Festa que idealiza, por meio dela, ser possível amenizar os temperamentos
que promovem conflitos e afastamentos entre os parentes e levar a família à perenidade.
A crença nos rituais católicos, a pose da família unida para a fotografia, os
depoimentos dos parentes mais antigos, o baile, etc., faz com que Paulo acredite que seja
possível promover outro comportamento entre os seus. Diz ele: “Desarma. Depois, tem a foto
oficial que dá muita emoção. Eles não sabem a emoção que dá...”.
Finalizamos nossa conversa com ele contando:
São muito orgulhosos, mas eles vão perder um pouco disso. Já tem até o
comentário: “Aí, será que não vai dar briga?”. Já estão preocupados. Tem um
primo que está lá na comissão que nós convidamos, porque ele é um que é bem
brigão e participa da comissão, mas na parte da segurança. A Kátia, a esposa de
um primo, pegou e disse: “Olha, tchê, tem uns que estão preocupados com briga,
tem uns que estão falando que os Rocha são ‘brigão’ e pode dar briga na festa”... E
ele responde: “O quê? Mas se brigar na festa eu quebro tudo a pau, se alguém
‘esculhembar’ a festa, eu quebro eles todos!”.
211
Capítulo 3
As Festas homenagem
As Festas homenagem visam reverenciar um personagem da família tendo em vista a
ocasião de suas bodas, ou ainda a um parente já falecido e que é referência para a rede de
parentesco, considerado o guardião da memória familiar. A homenagem está centrada na
trajetória social e a relação desse indivíduo com a rede de parentesco, e pode coincidir com o
seu aniversário ou com datas significativas à reunião da rede de parentesco.
As festas que seguem têm a sua motivação centrada em membros da família que
deram sentido de pertencimento a um grupo, a uma história coletiva que irrompe a existência
de uma unidade familiar que compartilha um passado comum por meio da figura fundamental
desse membro que agrega seus descendentes no presente. A biografia dos ‘fundadores’ inicia
o relato dos entrevistados. Nesse sentido, a perspectiva de Pierre Bourdieu (1996) ao
problematizar a elaboração de uma biografia afirma a necessidade de conceber o relato
biográfico como a escrita de uma vida enquanto uma “ilusão retórica”. Observa-se que a
seleção de fatos sobre o “membro-referência” da família busca a construção de um relato que
vise a coerência “de uma seqüência de acontecimentos com significado e direção” (Bourdieu,
1996b, p. 185) e, portanto, não compreende a totalidade.
Não obstante, o relatar a história ou fragmentos da vida do antepassado e a
recomposição da sua trajetória está diretamente ligado à composição do grupo familiar e passa
a ser a referência da reconstrução do passado, “objeto” das recordações dos sujeitos e espaço
em que essas lembranças adquirem vida.
3.1 A Festa da Família Scliar
No dia 26 de março de 2006, Moacyr Scliar anuncia em sua coluna no Caderno Donna
do Jornal Zero Hora, sob o título Os Scliar do Bom Fim, a realização de uma Festa de Família
que aconteceria no sábado seguinte. Escrevi um e-mail para o autor com cópia a meu irmão,
que o conhece a longa data – são companheiros de futebol na ACM
86
. Recebi a resposta no
mesmo dia e ele, então, indicava o contato com sua prima Lúbia ou sua irmã Marili. Escrevi
86
“A ACM (Associação Cristã de Moços) Porto Alegre é reconhecida de utilidade pública Federal, Estadual e
Municipal, e tem como objetivo promover o aperfeiçoamento espiritual, moral e social de seus sócios, usuários e
beneficiários. São quase 50 atividades físicas, 2 ginásios, piscina semi-olímpica, 3 escolas, 5 cursos técnicos,
aconselhamento sócio-pedagógico, creche, turno integral, oficinas de aprendizagem, cursos de informática e
projetos especiais de desenvolvimento social entre outros”. Trecho extraído da página institucional:
http://www.acm-rs.com.br em 15/10/2007.
212
para as duas e obtive a resposta imediata de Lúbia, que ficou, então, de contatar a comissão
organizadora para a possibilidade de eu poder estar na Festa ou não. No mesmo dia foi
resolvido que eu participaria. Aproveitei a disponibilidade e marquei uma entrevista com ela
para um dia na mesma semana.
3.1.1 Lúbia, organizadora da Festa
O encontro foi em sua casa. Ao chegar ao prédio, fui recebida pelo porteiro que já
havia recebido instruções sobre a minha visita. Lúbia aguardava na porta e, após as
apresentações, anunciou que nossa conversa poderia se estender até um determinado horário,
pois tinha compromissos aguardando-a. Sua forma objetiva e prática definem o tom e o ritmo
de toda a entrevista. Lúbia (67 anos) inicia sua fala sobre a sua família, iniciando pela Vó
Ana. Refere-se a ela como a “matriarca” e que a festa é uma forma de homenageá-la, pois
sempre trouxe em torno de si a união da família como um momento de eterna comemoração.
A minha avó, Anna Scliar, que morreu em 1957, com 87 anos, era a matriarca. É
ela que a gente vai homenagear agora. Enquanto ela vivia, ela conseguia reunir os
parentes. Todo mundo se convidava, todo mundo festejava, nem que fosse com um
sanduichinho, qualquer coisa, mas as datas não passavam em branco. E os irmãos
do meu pai, que eram os filhos de Vó Anna, eram muito unidos, inclusive um que foi
morar foi morar em Curitiba logo que casou; adorava Porto Alegre era ligadíssimo
à família e vinha. Acontece que depois que a minha avó faleceu e aí os filhos dos
filhos, quer dizer, os netos, já estavam casados, e outros casaram e as famílias
aumentaram cada um com seus netos e bisnetos, a coisa pulverizou. A minha avó
teve nove filhos, quer dizer, ela teve doze filhos, mas três faleceram pequenos; a
gente nem sabe, enfim, se eram meninos ou meninas, isso a gente não tem notícia. O
meu avô eu não conheci, o meu pai perdeu o pai dele quando tinha 11 anos. O pai
dele morreu ainda na Rússia, me parece que morreu lá por volta de 1910. Aí a
minha avó, muito corajosa para a época, eu acho, uma mulher sozinha que tinha
nove filhos vivos, sendo três casados, recém casados, com seis filhos pequenos,
sendo que o menor tinha só quatro anos, que é esse que depois foi morar em
Curitiba, sem profissão, sem dinheiro, sem conhecer a língua, sem um homem
chefão dentro de casa, pegou a malinha dela com as crianças, com os jovens, e veio
tentar a vida no Brasil. Isso ocorreu por causa das perseguições que havia naquela
época – não era coisa de nazismo, não. Era o que chamavam de ‘os pogroms’
87
: os
Cossacos vinham para as aldeias da Rússia, que naquela época pertenciam à
Rússia, mas era a Bessarábia e que hoje é a República da Moldávia e eles
moravam, me parece, não muito longe da capital da Moldávia, que hoje que é
Chisinău, mas era uma aldeola, era uma coisa. Bom, então havia muita
87
Em 13 de março de 1881 um grupo de jovens revolucionários, em nada relacionados com as comunidades
judia, assassinou o Czar Alexandre II, um ato que provocou confusão política em larga escala. Foi divulgado o
boato de que judeus assassinaram o Czar e uma onda anti-semitista barbárico varreu o Império Russo, sua
população na época já bastante hostil aos judeus. Pogroms – linchamento e depredação de propriedades da
população judia generalizados – afloraram no campo e nas cidades russas. Tais programas sucederam-se de
maneira rotineira por toda a década, precipitando a fuga de inúmeras famílias judias, a maioria para a América.
Consulta a http://www.santoinacio-rio.com.br/csh.pdf em 20.10.2007.
213
perseguição, vinham os Cossacos, eles queimavam as casas, violentavam as
mulheres, eles faziam horrores, então para fugir desse tipo de coisa... Por isso que
houve a imigração em grande massa pros EUA, América do Sul, enfim, países da
Europa também. Aí ela veio, com a cara e a coragem. Eles iriam lá pra colônia de
Quatro Irmãos, mas quando eles chegaram na estação, eu acho que de trem, talvez
porque eles vieram pelo rio né: o navio deixava lá na Ilha das Flores lá no rio, aí
pegavam uma, naquela época não tinha estrada, eu acho que era de trem que vinha,
eu não sei. Aí quando chegaram na estação, eles viram um cartaz escrito em iídiche.
Iídiche é a língua dos judeus da Europa Oriental, então dizendo que “não fosse, que
não estava valendo à pena, que estavam passando muito trabalho, que o pessoal
não estava conseguindo colher a plantação direito” enfim, aqueles problemas
todos, e que quem não tinha experiência com plantações, não fossem. Então eles
não foram e ficaram em Porto Alegre. Ela com os filhos, uns dizem 1914 outros
dizem 1912, então não posso precisar bem, mas te dou certeza que foi antes da
Primeira Guerra. Aí ela se estabeleceu na Voluntários da Pátria, esquina com a
Comendador Coruja. Moraram ali e ali ela vendia roupa usada, lavava, passava,
vendia e conseguiu formar o último filho engenheiro. Então, assim, o meu pai não
freqüentou escola aqui, ele freqüentou lá na Europa uma escola religiosa pra
aprender. A minha avó era religiosa, os filhos já não. A família Scliar é uma família
que sempre foi de esquerda. É, a parte religiosa não. Até, agora esta geração está
voltando um pouco... Tem muita gente que já vai ao Cabala de Shabat na sexta-feira
na Sinagoga, mas aquela geração... Por exemplo, o pai do pintor Carlos Scliar, que
era o tio Henrique, tio Henrique era famoso, irmão do meu pai, um pouco mais
velho. Anarquista, cada vez que acontecia não sei o que, ele ia pra Bueno Aires,
sonhador, quixotesco e completamente ateu. Eu nunca me esqueço do tio Henrique
quando uma vez ele disse pra mim, quando o meu filho mais velho nasceu, que hoje
está com 45 anos, e a gente faz a circuncisão que é o batizado judeu. E aí ele chega
pra mim, ele era muito engraçado, ele era irônico, ele era de contar anedota e ele
chega pra mim assim: “Deus não fez o homem a sua semelhança? Deus não é
perfeito? Então como é que vocês vão tirar um pedaço de uma coisa que é
perfeito?”. E ele era assim. Então ela se estabeleceu ali, os filhos todos tinham que
trabalhar, evidente. Trabalhavam sei lá em que, mas trabalhavam, tinham que
ajudar. Depois os filhos se casaram, suas filhas, as três mais velhas, já vieram
casadas da Europa com seus maridos, uma com duas crianças e a outra com uma
criança. A mais velha com duas crianças, a segunda com um menino que faleceu
não faz muito, que era médico, e a outra com uma menina que também faleceu faz
um ano e pouco, que era professora.
Apontando o que Moacyr Scliar trouxe em sua coluna: a forte característica da família
era o seu interesse e destaque em torno da cultura. A erudição anunciada no artigo é reforçada
por Lúbia quando mostra quadros de sua sala pintados por Carlos Scliar, um notável artista
plástico com prêmios internacionais. Segue contando sobre outros parentes, inclusive ela
própria, autora de livros acadêmicos editados no período em que era professora do curso de
Letras da PUCRS.
O pessoal, não sei se tu leste? Tu leste a crônica do Moacyr
88
, onde ele fala que a
família gostava muito de cultura? Eu não gosto muito de dizer que o pessoal era
culto, parece que a gente está querendo se exibir. Eu sou muito avessa a esse tipo de
coisa, mas realmente para eles era muito importante ter um livro, era muito
importante fazer parte de um grupo teatral, era muito importante assistir a um
concerto, meu pai gostava muito de ópera, tinha muito ouvido pra música sabe?
Então eles podiam não ter o pão dentro de casa... O meu pai contava que em
88
Ver Anexo A.
214
adolescente ele chegou a ir ao espetáculo no Teatro Apollo, onde hoje é o edifício
Santa Tecla. Ali tinha o Cine Teatro Apollo que eu ainda conheci quando era
pequeninha, mas era o teatro; o meu pai disse que foi descalço, mas não deixou de
ir. Então essa coisa da cultura eles preservaram muito, isso passou para outra
geração, tanto é que do Tio Henrique... tem o Carlos Scliar, dispensa qualquer
comentário, até os quadros dele tem alguma coisa aí, bom, depois te mostro...
Depois tinha assim, Marco, o outro filho não foi artista. Mas o outro foi Salomão
Scliar, que era muito doidão, mas que era muito genial para cinema, para foto, foi
repórter da Cruzeiro, da Manchete, fez cobertura na Europa da coroação da
Rainha Juliana, mas ele não gostava de ter patrão ele era muito... malucão... Hoje
já faleceu e ele fez um filme, ‘Vento Norte’. Eu, na época, não gostei daquela coisa
preto e branco, muito crua, mas hoje é considerado um clássico do cinema gaúcho.
Bom isso é o Tio Henrique, do segundo casamento dele tem, porque a mulher dele
morreu relativamente moça, com 42 anos, de câncer. Ele casou com uma pessoa
muito mais nova e aí tem a Rusi (filha do Tio Henrique) que também pinta muito
bem, também vou te mostrar os quadros dela. Ela não é famosa porque é mais
retraída, mas ela tem bastante dom, então me parece que aquele ramo ali é artes
plásticas. Bom, aí depois do meu pai, eu estou falando dos filhos homens, depois
fizemos o resto, depois do Tio Henrique vem meu pai. O meu pai adorava música,
tinha um ouvido maravilhoso, o meu pai tinha uma memória! Ele ouvia uma ária e
dizia assim: ‘isso aqui é uma ária do terceiro ato, da ópera tal, da ária tal, que eu
ouvi no ano tal, com a cantora tal’. Era assim, isso uma coisa que não dá para
explicar, isso era dom. Então ele não teve oportunidade, ele sempre disse pra mim
que o sonho da vida dele era, talvez, ser maestro.
Lúbia, em entrevista, e Moacyr, na coluna do jornal ZH (em anexo), discorrem sobre o
vínculo da família Scliar com a cultura. Há efetivamente esse vínculo dos interlocutores
citados e outros tantos parentes que têm uma trajetória fortemente ligada à produção cultural.
Acima, Lúbia traz os familiares, homens e mulheres, ligados às áreas da saúde, das artes, das
letras, todos de prestígio e renome, por vezes, internacional. Essa característica familiar
apontada e reconhecida tem congruência com os estudos sobre famílias judaicas
desenvolvidas no artigo Um desejo de transcendência: modelo hebraico e práticas judaicas
da família, de Alvarez-Pereyre & Heymann
89
. Os autores tratam sobre a constituição da
família judaica, tendo como origem a história da família de Abraão e a força desta dimensão
na vida dos sujeitos, que serve de modelo a pensamentos e comportamentos. Entre tantas
outras expressões de uma tradição que se estrutura no Tamulde
90
, os autores escrevem que
sobre o lugar ocupado pela educação, enquanto um dos deveres que cabem aos pais, de forma
a colocar aos filhos a inscrição dos fundamentos da família e da sua função no seio de uma
história universal.
Nos primeiros anos, a educação dos filhos é incumbência materna, que lhes ensina os
fundamentos da moral, e seguidamente ao pai, para quem a transmissão da tradição constitui
um dos deveres fundamentais. Ao pai, em verdade, caberia transmitir os fundamentos da
89
Segalen, M. et al. História da Família. In: ______. O ocidente: industrialização e urbanização. Lisboa:
Terramar, 1999. p. 147-181.
90
Livro das Leis, dos costumes e da tradição judaicas transmitido, em geral, oralmente.
215
tradição aos filhos e às filhas. No entanto, aos filhos varões havia o dever do ensinamento do
Tora
91
. Nessa direção, a ausência do pai falecido limitou a presença da religiosidade no
interior do grupo familiar. No entanto, a valorização à educação foi mantida por Vó Anna e os
filhos foram se destacando pela alta escolarização e dedicação às vocações (habilidades)
artísticas que detinham. Por seu turno, recorro a Bourdieu (1997, 2002, 2005) para pensar
sobre o capital cultural familiar e como este se estabelece no campo de produção erudita. Ou
seja, a existência dessa prerrogativa – que Lúbia chama de dom – mantém estreitas relações
com duas instâncias qualificadas, tais como os eficazes sistemas de ensino que fornecerão as
condições de percepção e apreciação dos bens simbólicos e, a instância que fornece as
disposições para a aquisição de códigos, como o de fazer parte de uma família cultivada,
portanto adquirido por herança. Agrega-se a esses fatores uma condição histórica na formação
da família judaica contar com um modelo ideológico que garante a integração de fatores
religiosos, econômicos, psicológicos e sociais que, por sua vez, favorece certo equilíbrio entre
as ações individuais e coletivas.
3.1.2 A idéia de festejar
Lúbia narra que a idéia teve sua origem em uma festa de casamento de uma das netas
de Tio Manoel, um dos filhos de Vó Anna, quando um primo, Mauro Keiserman, sugere o
Encontro. Lúbia repete a fala com ênfase:
Aí ele disse assim: ‘Gente porque que a gente não se reúne e não faz um encontro
da família? A minha preocupação é que os meus filhos não conheçam as pessoas,
eles se dão às vezes com filho do fulano que é amigo deles que tem um apelido lá
não sei qual, mas ninguém sabe que ele é primo terceiro ou não sei o que... Então
quem sabe a gente reúne pra juventude se conhecer, pra juventude não se perder,
até saber as raízes, saber quem foi, quem não foi’. Aí ele disse isso tudo. Aí, quando
a Amália, a tia do Mauro, tinha falecido – que foi antes ainda do casamento, ela
faleceu em setembro de 2004 e nós fomos ao casamento em novembro de 2004 –, no
enterro da Amália, o filho dela, o Irineu, me chamou ali na frente do caixão e diz:
‘Lúbia, tu vai ser agora a matriarca da família’. Bem assim! Olha a
responsabilidade, vê se eu tenho cara de matriarca? A idéia era que eu coordenasse
o Encontro com a ajuda de todos. Aí montei uma equipe. Nossa comunicação era
por e-mail, tentando achar uma data boa para todos.
Essa organização começa pela difícil tarefa de encontrar uma data que satisfaça a
todos. Percebe-se que esse fator foi, de alguma forma, uma situação de conflito quando há a
seguinte afirmação:
91
Instrumento litúrgico, usado dentro do judaísmo rabínico, composto dos cinco primeiros livros do Tanakh.
216
Aí eu disse, quer saber de uma coisa... Olhei a folhinha... Eu digo olha, dia primeiro
de abril pode ser o dia dos bobos, faz de conta que não é. Cai num sábado, não
coincide com a semana santa, pode estragar o feriadão das pessoas, eu achei vai
dar tempo ainda de eu me preparar para a viagem. Viajo na quarta, mas na
segunda e terça eu posso arrumar as coisas, porque eu vou ter ainda quatro
hóspedes aqui: a minha irmã, a minha sobrinha, o meu sobrinho com a mulher, a
mulher do outro sobrinho e o filho deles. Bom, aí nós marcamos para o dia
primeiro, o pessoal achou a data... enfim, como foi a recepção da idéia? Uns
acharam uma maravilha, outros acharam um... sabe? Tem gente que, depende do
grau de pertencer, que a pessoa tem a um grupo, eu acho que se tu te sente
pertencente... Se tu acha que não tem nada a ver com isso, eu não me sinto Scliar.
Então, é muito livre, as pessoas vêm ou não vêm.
Lúbia traz esse “desconforto” para imediatamente contar que, em contrapartida, há
situações que se reconhece claramente os que desejam “pertencer”. O que está em jogo na
sutil acusação sobre aqueles que não aderiram à data prevista é a ação que está por trás dessa
recusa: a ausência de “reciprocidade de perspectivas” incompreensível, em primeira mão, que
as interpretações sobre um mesmo objeto (pertencer à família) que é percebido por Lúbia
como um pressuposto que inclui a “todo o mundo cujo sistema de relevâncias seja
substancialmente (ou suficientemente) congruente com o seu e o meu” (Schutz, 1979, p. 180),
não seja, sobretudo, um motivo soberano para todos.
Mas o pessoal de fora recebeu muito bem essa idéia, e eu não esperava que os
herdeiros, que os descendentes do Tio Henrique, que são pessoas que eu conheci
pequenininhos e que hoje estão no Rio – eu os conheci pequenininhos, eu era
pequena e eles eram pequenos; hoje eles estão avós, eu nunca mais vi –, e eles vêm
todos! Vai ter do Rio de Janeiro mais de trinta pessoas. Do pintor Carlos Scliar
que, no caso nunca casou, mas ele perfilhou o Chico. O Chico é casado. O Chico
era secretário do Carlos, era a mão direita do Carlos. O Carlos pintava, mas ele
não vendia, não era de marcar ‘vernissage’ e o Chico fazia toda essa parte. Daí ele
foi uma pessoa muito fiel e Carlos não teve dúvida: ele perfilhou, depois com o
testamento, o Chico... e eles [Chico e filhos] assinam Scliar e eles vêm. Essa é uma
adoção depois de adulto, é uma coisa assim muito... porque o Moacyr Scliar adotou
o filho dele, o Beto é adotado, mas o Beto nasceu e já adotaram... agora o Chico
não, o Chico era casado, o Chico já tinha filhos. Aí o Carlito, eu chamava de
Carlito, perfilhou como filho e chamava ‘o meu filho Francisco Medeiros Scliar’,
porque ele era Medeiros. Então eles vêem, vão parar na casa da irmã do Carlito. É
uma coisa que a gente sabe, que a gente se dá... é bem legal. De São Paulo vem
outro filho do Naum, de Curitiba, São Paulo... Ah! Do Rio vem mais gente: vem a
filha do Naum, a Nara. Sabe quem é a Nara? A Nara já fez até novela, a Nara foi
casada com o José de Abreu, o que fez o papel do gaúcho... agora, na minissérie
92
.
Bom, foi casada com ele, teve três filhos com ele, há muito tempo se separaram. A
Nara conseguiu uma brecha porque ela estava trabalhando em uma peça, não sei
qual, mas ela conseguiu uma brecha e vai chegar no dia aqui por volta das 11h da
manhã, vai direto pra festa. Então assim, sabe, é bem bacana.
92
“Amazônia - De Galvez a Chico Mendes” – Créditos: Emissora: Rede Globo. Minissérie de Glória Perez
Direção: Pedro Vasconcelos, Marcelo Travesso, Carlo Milani, Roberto Carminati e Emílio di Biasi. Direção
geral: Marcos Schechtman.
217
A rede de parentesco compreende a adoção de dois casos e é percebida e reconhecida
sob as peculiaridades de cada um deles. As adoções estão contempladas na árvore genealógica
que foi montada pela equipe, principalmente por Marili, prima de Lúbia. Ela está em meio
magnético (dvd) e traz a “matriarca” e seus filhos que dão início aos diferentes troncos da
família Scliar. Ao longo da entrevista, os familiares vão sendo citados e apresentados, em sua
maioria por fotos.
A adoção no caso do membro adulto, que já havia construído o seu núcleo familiar,
traz o tom de estranhamento; no entanto essa questão não é levada adiante, mesmo frente a
algumas provocações que fiz. O que está em jogo – a adoção, propriamente dita – é o
reconhecimento social de uma relação de pai e filho, construída em uma sustentação de
lealdade, confiança e afeto. Por sua vez, percebe-se que os arranjos parentais vão além desses
traços já referidos. Há a implicação no quadro da herança e da sucessão, direitos, deveres e
obrigações que engendram a perfilhação. No que tange à rede de parentesco, a filiação é
definida pelo pertencimento – sendo consangüínea ou por adoção – fundado na descendência
e no nome comum. A idéia de ‘adoção’ também passa por outros arranjos familiares como,
por exemplo, nos casos de reorganização de laços conjugais após os divórcios. Um indivíduo
pode compartilhar de dois pais e duas mães, dois grupos de irmãos – um germano e outro
semigermano. Constroem, então, novos tipos de relação e, com elas, as negociações sobre o
uso de uma terminologia apropriada: madrasta? Fulana? Mãe?
3.1.3 Os últimos preparativos
Como já foi tratado no capítulo anterior, a Festa de Família é dotada de etapas bem
definidas e é um ritual que visa comemorar os acontecimentos que marcam ou marcaram a
vida em família. Lúbia relata os preparativos da festa propriamente ditos:
Eu não sei se a programação vai sair bem como a gente está planejando, em
princípio é assim: 11h é o começo, o pessoal que vai parar em hotel, quem não tem
carona nem nada a gente tratou de arrumar uma condução, um ônibus que vai
levar. Então assim: vão ganhar os crachás, vão se rever se abraçar, se apresentar...
O crachá é assim, cada ramo tem uma cor, então parece que o do meu pai vai ser
azul, a outra é amarela, a outra é laranja, a outra é vermelha, cada ramo é uma
cor. Em cima está o teu nome, por exemplo, teu nome é Maria Cristina, teu nome
está escrito em letra grande, embaixo em letra bem menor seria o nome da avó, não
da Avó Anna, do filho – os da filha da Avó Anna, que é o avô, ou bisavô ou pai
daquele ali. Então no meu caso o crachá vai ser assim: Lúbia, embaixo Isaac Scliar.
Do meu filho vai ser Celso embaixo Isaac Scliar, que é o que importa, não é meu
nome, que ele é filho da Lúbia, não importa. Depois, aperitivos, depois do meio dia,
lá pela uma hora. Nisso o Mauro Keiserman vai ser o mestre de cerimônia, pois ele
foi o autor da idéia e ele é muito simpático, muito falante. Então ele vai explicar o
218
porquê do encontro, dar boas-vindas, eu acho que ele vai pedir pra cada ramo se
levantar e, se tiver tempo, a gente vai homenagear a prima mais velha e o primo
mais velho do vivos, que seriam a Vera e o Naum. Vai ter essa brincadeira toda. E
aí o pessoal almoça. A festa vai ser no clube Campestre e entre o prato principal e a
sobremesa, o Moacyr Scliar vai fazer uma fala sobre a história da família e quem
quiser fazer um ‘ping-pong’ com ele, porque a minha irmã tem muita coisa pra
contar, lembra mais... Vai haver essa coisa, essa oportunidade das pessoas falarem.
Aí se come a sobremesa e depois vai ter um audiovisual com as fotos, começando
com as fotos antigas e até algumas fotos dos filhos, tataranetos da Avó Anna. Fotos
de alguns netos, bisnetos, os tataranetos. Isso é um documento que daqui a 20/30
anos eles vão estar homens. Esse audiovisual está sendo feito pela Camila, moça
profissional que entende de cinema: Camila Poltagerusk, ela trabalha na TGB, nele
aparecem os dizeres . Isso foi eu quem bolei, a casa que a Avó morou, na esquina da
Voluntários, depois as fotos dela, as fotos dos filhos em moço, cada filho com seus
descendentes e depois no final a gente colocou uma gratidão, uma homenagem à
matriarca, toda ela musicada com música iídiche. Esse audiovisual não é comprido,
porque elas disseram que mais que 15 minutos ninguém agüenta, e é isso que vai
durar. Vai ter pôster também eu posso te mostrar, estão aqui comigo, fotos
ampliadas, vai ter recreacionista para cuidar de umas 17 crianças entre 3 a 4 anos,
e é um clube que tem piscina, também é perigoso. Que mais que eu posso te dizer,
bom umas florzinhas, uma decoraçãozinha, nada de coisa muito assim... e depois
vai ter DJ que vai botar músicas variadas, com ênfase também em músicas judaicas.
Se quiserem dançar também e tem um CD que nós vamos levar. Eu fiz o xerox da
letra que foi feita quando o Carlos Scliar morreu. Ele tinha casa em Cabo Frio e a
escola de samba de lá fez o samba enredo em homenagem a ele. Esse samba enredo
se chama ‘Scliando a passarela’. A gente vai colocar e pedir pro pessoal cantar,
quer dizer, em tese, seria uma coisa meio assim. Na véspera, na sexta-feira, nós
resolvemos pedir para o rabino do Centro Israelita que é na Henrique Dias citar o
evento no Cabala Shabat. A maioria não vai, a gente não é religiosa, mas eu acho
que vai ter assim umas 10 ou 15 pessoas, e ele vai chamar o mais velho ou o mais
novo eu não sei quem ele vai chamar lá na frente, ele vai dizer umas palavrinhas.
A homenagem à Vó Anna, a matriarca, cumpre uma dupla função: assegura a sua
memória ao longo das gerações e recria a aliança que esteve na origem do grupo. Essa é uma
situação que revela a importância do grupo familiar enquanto agente singular para a
reconstrução do passado. Essa referência “advém do fato de ser, ao mesmo tempo, o objeto
das recordações dos indivíduos e o espaço em que essas recordações podem ser avivadas”
(Lins de Barros, 1989, p. 33).
Lúbia mostrou-se muito afável e denota o tempo toda a sua habilidade em relatar sobre
algo que se diz encantada: a história da sua família que inicia em Anna, a matriarca que vem
da Rússia com seus nove filhos, logo após o falecimento de seu marido. Em meio à conversa,
surge o álbum de fotos, os cartazes com pequenas histórias e objetos que trazem luz à
memória da narradora. Lúbia domina o ritmo da entrevista, articulando sua fala entre
memórias de tempos passados e novos cenários ocupados pelos membros da família no
presente. Essa forma de organizar a entrevista traz a intensa mudança de status e mobilidade
social conquistada por todos os ascendentes de Anna. Após um tempo não controlado por
mim, menos ainda por Lúbia, a chegada do seu marido, Moisés, marca o limite e, mantendo
219
seu estilo prático, encerra nossa conversa de forma gentil e disponibilizando-se a contar
outros fatos quando voltasse de viagem – partiria logo após a festa e deveria retornar dentro
de seis meses. Conta, para finalizar nosso encontro, que essa prática de viajar anualmente vem
sendo realizada pelo casal desde que se aposentou como professora da PUCRS. As viagens
são, em geral, à Europa e ao Oriente Médio. Em algumas situações especiais, quando envolve
viajar com amigos, vão aos Estados Unidos.
3.1.4 A Festa e a forte adesão
O Clube Campestre é dirigido pela comunidade judaica de Porto Alegre. É localizado
às margens do rio Guaíba em uma área bastante arborizada. Minha chegada ao local coincidiu
com a chegada de um grupo da família. Eles estavam vestindo camisetas nas quais estava
estampado o retrato de um senhor idoso, filho de Dona Anna e, portanto, um membro que dá
origem a um dos troncos da árvore genealógica.
Segui o grupo em direção ao salão onde ocorreria a cerimônia. Muitos familiares já
confraternizavam em uma área aberta, distribuídos nas mesas e cadeiras ou em pé, junto a
pequenos grupos. Lúbia já vinha em minha direção. Cumprimentou-me a já prendeu na lapela
do meu casaco o crachá azul com o meu nome. O código das cores diferenciava os membros
de cada tronco. O azul era para os convidados e que não pertenciam à família. Depois
compreendi que esse critério para os visitantes tinha sentido, eu não era a única a não
pertencer à família. Estava presente a equipe de filmagem que acompanhava Moacyr Scliar
registrando situações e vivências importantes para o escritor, com vistas à homenagem dos
seus 70 anos a ser comemorado em 2007. Para minha surpresa, encontro Hamilton – marido
de Luciana Job –, colega da turma de doutorado. Conversamos um pouco e me afastei para
que pudesse dedicar-me à observação. Logo depois, Lúbia me apresenta uma senhora
uruguaia e seu esposo, comentando que ela estava escrevendo a história da família Scliar, que
ela seria uma ótima fonte
93
, uma vez que já havia feito muitas entrevistas. Ficamos
conversando e sentamos na mesma mesa para o almoço.
Ainda na área de entrada, os pequenos grupos formados conversavam, abraçavam-se,
riam às gargalhadas com uma ou outra observação bastante discreta. O aperitivo era servido
por garçons e o clima era de pura confraternização. A ausência de formalidade dava à festa
um ar precisamente familiar, apesar de todo o requinte do lugar e da organização. As crianças
93
Inúmeras tentativas foram feitas para a realização de entrevista com a historiadora. No entanto, foram sempre
refutadas ou canceladas quando estavam próximas às datas combinadas.
220
corriam pelo amplo espaço, muito arborizado e florido, sob o olhar atento de duas ou três
recreacionistas devidamente trajadas com abrigos esportivos bordados com a referência à
atividade que exerciam. O trajar dos participantes era também esportivo e revelava a condição
de pertencimento a uma classe social favorecida. Lúbia e Marili faziam as honras de anfitriãs.
A alegria transparecia nas expressões de todos e o dia magnífico coloria o congraçamento
entre os parentes e convidados.
Os grupos mantinham tanto idosos quanto jovens. As relações amistosas transpunham
as gerações e a atenção carinhosa às crianças registra a importância que essa etapa do curso da
vida tem para a família judaica. Algum tempo depois, Lúbia convida a todos a passarem para
o salão principal. Entramos em um hall amplo espelhado. Ao lado havia os banheiros
masculino e feminino e ao ultrapassar uma enorme porta de vidro, ingressava-se em um salão
sustentado por largas colunas. Nele havia uma mesa com petiscos, os mesmos servidos pelos
garçons, e algumas garrafas de bebidas para que os convidados pudessem se servir.
Ultrapassado o grande salão, entramos em um salão menor, mas não menos requintado. Nele
havia um equipamento de projeção, uma grande tela branca sob um estrado com forração
azul. No restante do local havia mesas distribuídas, finamente decoradas. Lúbia dirigiu os
convidados não familiares a uma mesa perto de uma janela. Era uma mesa de poucos lugares,
coerente com o intuito de festejar intimamente. De certa forma, essa aproximação entre “os
outros” não permitiu que eu tivesse a liberdade esperada para observar, criar situações de
interação. Em vários momentos em que havia a exposição de alguns membros – ora buscando
trazer um panorama da origem na Europa, ora contando fatos da matriarca Anna, ora
homenageando esse ou aquele membro presente ou não – houve a “interferência sutil” de
Nybia, a historiadora, e o marido, que compartilhavam a mesa. Suas intervenções em tom
baixo eram correções à fala do expositor.
Resolvi assistir em pé as inúmeras manifestações, que tiveram o início com
agradecimentos e a lembrança sobre a noite anterior. Na sexta-feira anterior, havia ocorrido
uma cerimônia, na Sinagoga, de bênção à família Scliar. Lúbia, em entrevista, fez questão de
frisar que a família não era muito afeita à participação nas celebrações religiosas, mas que
aquele momento era indispensável esse ato – situação marcadamente ritualística nos
Encontros de Família. As manifestações seguiram e muitos dos participantes da festa que
tinham vindo de outros estados do Brasil – Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco –
fizeram questão de registrar o momento com muitas fotos e aplausos.
221
3.1.5 Os contornos da distinção
Após esse momento, houve um destaque especial às celebridades da família: Moacyr
Scliar, que manifestou sua alegria e agradecimento ao empenho de sua irmã Marili e de sua
prima Lúbia em organizar esse evento que unia todos os Scliar espalhados pelo Brasil. Outro
membro já falecido, Carlos Scliar, famoso artista plástico que residia em Cabo Frio, foi
lembrado na figura de seu filho adotivo, Chico, presente com dois de seus filhos. Os membros
mais idosos foram homenageados, os mais jovens manifestaram-se agradecendo a iniciativa e
solicitando que dali para frente os próximos encontros se transformassem em uma tradição;
alguns membros vindos de fora também se manifestaram.
Bom dia a todos. Atendendo aqui a pedidos insistentes da minha mãe... Bom, em
nome da família Scliar do Rio de Janeiro, eu queria parabenizar quem teve a
iniciativa, realmente fantástica! E, como alguém disse aqui no início, acho que foi o
Mauro, o fato é que a gente está sempre em busca da nossa identidade e enfim, de
repente, você dá num evento que você percebe. Poxa! Quanta gente com as feições
parecidas com as minhas! Eu comentava com meu tio, com o Cláudio ali fora, ‘acho
que é meu pai que está chegando agora’. E ele dizia: ‘acho que teu pai já chegou
umas quatro vezes, toda hora que eu olho é alguém parecido com ele’. Então nós
temos de fato algumas coisas em comum, eu vou me arriscar aqui: talvez um certo
ar intelectual que todos nós tenhamos, que nós sejamos confundidos assim com as
celebridades... [mostra Moacyr e Mauro]. E enfim, evidentemente, sempre que nós
nos inscrevemos em alguma coisa, você diz seu nome. Meu nome é Fabio Scliar.
‘Fábio o quê?’. Quase sempre eu tenho que soletrar o meu nome... Ah! Tem mais
uma coisa, eu acho que essa vai valer pra todos, pelo menos pra mim está valendo
hoje. Todo mundo que entra no meu Gabinete me pergunta e me fala do Carlos, que
é meu tio-avô, e fala do Moacyr, que até a presente data, eu tinha que dizer: ‘de fato
é primo, mas eu não o conheço pessoalmente, admiro muito...’ Mas, não vou mais
falar isso, agora eu o conheço pessoalmente. Então é isso gente, é externar a
alegria de estar junto aqui e essa coisa meio estranha de estar com tanta gente que
a gente tem identidade. E eu espero que seja o início da construção, enfim, de uma
família com vínculo mais forte e que a gente crie uma verdadeira integração (Fábio,
32 anos).
A busca por sinais identitários expressada por Fábio vai ao encontro dos ensinamentos
de Schutz (1979) quando recomenda sobre a atenção a ser dada sobre “o jogo entre os
esforços do indivíduo para compreender o mundo social à sua volta e a pré-estruturação
cognitiva própria desse mundo” (Schutz, 1979, p. 17). Um sobrenome comum, traços
fisionômicos aproximados, uma característica de intelectualidade reconhecida como familiar,
uma matriarca que dá a todos uma origem e o desejo de perpetuar esses signos formam um
conjunto de ‘relevância volitiva’ cuja importância só adquire sentido pela simultaneidade
vivida do Nós.
222
A ‘busca pela identidade’ é um fator importante a ser pensado em relação à estrutura
de parentesco. Ao nascer, à criança lhe atribuem um nome que a identifica como sujeito-
indivíduo (o Fábio), como sujeito- social (Scliar) e, com o passar do tempo, se vai adquirindo
outras identidades (advogado Fábio Scliar). Tanto as identidades atribuídas quanto as
identidades adquiridas só são assimiladas nos processos de interação com os outros e,
posteriormente, confirmadas pelos outros. Ou seja, a identidade resulta do intercurso da
identificação com a auto-identificação (Berger; Luckmann, 1996).
O reconhecimento de ambos, Mauro e Fábio, de que se “está sempre em busca da
nossa identidade”, indica que os sujeitos mantêm sistematicamente a reflexão sobre si em
relação ao mundo exterior, em relação aos outros que confirmam ou não o que se buscou
construir/reconstruir como coerente e satisfatório sobre o sentido de identidade de si. Essa
construção/reconstrução estrutura a trajetória individual na qual o desenvolvimento desta
parte de um passado em direção a um futuro antecipado, projetivo. Por sua vez, está na
reflexão do passado o enfrentamento dos riscos que aderimos a partir das rupturas que
realizamos com os padrões de comportamento, tendo em vista a captação de novas
possibilidades em direção ao futuro. Não obstante, o passado não foi vivido – no caso do
Fábio – enquanto experiência compartilhada, um fenômeno que Giddens (2002) chama de
“segregação da experiência”
94
. O passado foi referido, relatado pela geração anterior
95
– e
que, nesse caso, é reapropriado para refletir sobre a experiência de vivenciar outros ambientes
no interior do “quadro de referências da segurança ontológica”, ambientes calculáveis de ação
que ofereçam significados morais e afetivos, como o lugar do parentesco.
3.1.6 Um momento que revela as relações
O que se via era um ambiente muito descontraído e de emoção compartilhada. Um
aspecto importante a ser destacado é a atenção que todos dispensavam aos idosos e às
crianças. As mulheres eram muito procuradas para determinações sobre várias demandas.
Essa questão remete à concepção dos papéis sociais familiares reconhecidos historicamente
nas famílias judaicas, em que os idosos seriam, então, os detentores da sabedoria tradicional e
94
“O termo “segregação da experiência” refere-se aqui a processos de ocultação que separam as rotinas da vida
ordinária dos seguintes fenômenos: loucura; criminalidade; doença e morte; sexualidade; e natureza” (Guiddens,
A. 2002:145).
95
Christopher Lasch ao discorrer sobre a cultura do narcisismo aborda o enfraquecimento do “sentido de
continuidade histórica, o senso de pertencermos a uma sucessão de gerações que se originaram no passado e que
se prolongarão no futuro” (Lasch, 1983:25). Ver Sennet (1988).
223
as mulheres seriam as “organizadoras” da esfera doméstica e da moral a ser transmitida às
gerações seguintes.
O almoço foi servido logo a seguir. Tratava-se de um bufê com uma variedade enorme
de pratos. As crianças, em mesas especiais, recebiam os pratos servidos com bife, arroz,
batata-frita e salada. Durante o almoço, as recreacionistas também cuidavam das crianças,
inclusive servindo-as de bebidas ou comidas que não tinham sido disponibilizadas a elas. A
sobremesa seguia o mesmo critério de bufê, exceto os sorvetes caseiros servidos pelos
garçons na grande mesa de doces.
A alimentação é outro aspecto significativo quando há a preocupação com os modos
de prover comida às crianças – aspecto também observado na Festa da Família Calliari, no
capítulo anterior –, cujo cardápio é especialmente elaborado de forma a atender os gostos de
todas, dentro de uma organização social e culturalmente definida: bife, batata-frita, arroz e
feijão. Outra preocupação com o bem-estar das crianças e de seus pais foi a contratação das
recreacionistas, que estavam atentas às possíveis investidas em direção a situações de perigo.
Sabe-se que o processo de socialização passa sob as rotinas de cuidado como parte elementar
das circunstâncias de confiança na vida das crianças.
3.1.7 Interações: a construção da “familiaridade”
Após o almoço e a sobremesa, houve uma sessão de fotos e a tradicional foto da
família. E, posteriormente, a música inicia e são várias as danças judaicas realizadas pelas
mulheres. Esse momento foi muito especial, pois se observava a interação entre três gerações:
as mulheres idosas, as suas filhas que, por sua vez, ensinavam as danças às suas filhas. Os
homens juntaram-se para conversar e algumas crianças aproveitaram o amplo espaço de lazer
que o clube comportava. Entre os jovens adultos, ouvia-se a combinação de estender a festa
em outros locais de lazer.
O dia já estava se despedindo e os grupos começaram a retirar-se. A festa obteve pleno
sucesso, as danças judaicas acompanhadas por todas as mulheres mostraram-se “universais”
pelos passos e ritmos idênticos que não denunciavam terem sido aprendidas em diferentes
estados brasileiros. Momento único em que a tradição de uma origem étnica é observada sem
as formalidades dos discursos sobre a origem judaica comum.
Nesse sentido, a tradição tem um caráter normativo que se estrutura nos vínculos a ela.
A referência normativa é moral e expressa preceitos que ligam o presente ao passado. Adota-
se, aqui, a noção de tradição a partir de Paul Ricoeur quando denomina “situações de
224
tradição” como tradicionalidade. Ou seja, é a distância temporal que nos separa do passado
enquanto um intervalo de transmissão geradora de sentido: “Antes de ser um depósito inerte, a
tradição é uma operação que só se compreende dialeticamente no intercâmbio entre o passado
interpretado o presente interpretante” (Ricoeur, 1997, p. 379).
O ambiente de descontração e festivo que o evento apresentou trouxe a solicitação de
manter a festa continuadamente. Ao longo das manifestações, essa questão foi recorrente e já
estruturada. Um dos parentes sugere que se definisse um patrono para atuar como referência
na rede de parentesco e, em tomo de brincadeira, aponta Moacyr Scliar como forte candidato,
pois, diz ele: “como és um imortal, não teríamos que reeleger outro em outra ocasião”. Ficou
estabelecido que a próxima festa será no Rio de Janeiro no ano seguinte. Lúbia e Marili
ficaram encarregadas de organizar os parentes do sul, motivando aqueles que não
compareceram – vale lembrar que os ausentes justificaram a falta com o fato de não estarem
em Porto Alegre.
O deslocamento dos parentes de muitos lugares do Brasil e a adesão positiva através
da confirmação por todos do desejo de continuidade do evento remete à idéia de que há uma
nova busca da intimidade ao nível das relações pessoais. Significa, de igual modo, que as
motivações inerentes à realização da Festa da Família atenderam às expectativas iniciais. Sem
dúvida, isso não indica de forma determinante a aderência ao grupo, tendo em vista que o
momento propiciou a satisfação emocional, mas que, no entanto, isso venha a alterar o cultivo
do distanciamento que os ritmos da vida cotidiana imprimiram em cada um dos indivíduos
separadamente.
3.2 A Família Vasconcellos
A Vasconcellândia
Tudo começou quando... Quando mesmo? A origem certa da família perde-se em
causos antigos e já quase folclóricos que envolvem os Nunes, os Rodrigues, os
Barths... e, claro, os primeiros Vasconcellos de que se tem notícia. Isso com
exceção, é claro, dos portugas que por algum motivo chegaram ao Brasil
ostentando um brasão que perdura até hoje.
Na verdade, nossa história começa lá pelos idos de mil oitocentos e antigamente,
com a união matrimonial de Innocêncio José Rodrigues e Maria Antônia Rodrigues.
Desse matrimônio, resultaram cinco filhas: Candinha, Pequena, Florísia, Deolinda
e Júlia, nessa ordem. Conta a lenda que a caçula detestava serviço doméstico e
cozinhava muito terrivelmente. Tinha sido criada sobre o lombo de um cavalo,
lidando e fazendo “serviço de homem” junto com o pai. Nisso, sim, ela se saía
muito bem e disso gostava muito.
Estando já todas as filhas crescidas e Innocêncio um tanto idoso, fez ele a seguinte
recomendação: “Casem-se, minhas filhas. Estou velho e tenho medo de que quando
225
morrer fique apenas vocês cinco e a mãe de vocês. Seis mulheres e nenhum homem
dentro de casa!!!”
Mesmo tendo horror ao serviço doméstico, por algum motivo foi Júlia a primeira a
se casar com Cantil Vicente Rodrigues, mudando seu nome para Júlia Nunes
Rodrigues. Casou-se ela com dezenove anos, o que talvez já fosse um pouco tarde
para a época. Desse casamento nasceram Alverinda e Maria Francisca. Pouco
depois morre Cantil e Júlia volta para a casa paterna com as filhas. Sendo
Innocêncio já falecido, já não seriam seis mulheres em casa, mas oito! Tempos
depois, Júlia torna a se casar, desta vez com Alísio Buff, também viúvo e pai de
Emília e Manoel. Foi então que nasceram Nilda, Cilda, Selvina, Maria Conceição,
José Silvino, Ilma e Maria Nair.
Bem, passemos agora à época em que Maria Francisca já era moça casadoira, pois
aí é que começa a outra parte deste causo comprido. Parte esta que começa lá por
mil oitocentos e antigamente, com a união matrimonial de Lilian Barth e João
Inácio Vasconcellos, união essa que gerou muitos filhos: João, Ezequiel, Diva, Deli,
Dila e Júlio Inácio, que se multiplicou em netos, bisnetos, tataranetos a perder de
vista. Um desses filhos, Júlio Inácio Vasconcellos, de 10/07/1921, casou-se em mil
novecentos e alguma coisa com Maria Francisca Rodrigues, de 17/01/1927. É aí
que retomamos o fio da meada e que começa a nossa salada de frutas: ela,
descendente de portugueses e índios; ele, de origem portuguesa por parte de pai e
alemã por parte de mãe.
Conta-se que Júlio adoeceu quando ainda solteiro, o que o fez desistir do casamento
em um primeiro momento, mas ela, já sabendo da situação na época, assim mesmo
o aceitou como esposo. Fato esse que ela negaria anos mais tarde, afirmando que
nada sabia a respeito. Negativa essa talvez causada pelos anos de sofrimento que se
seguiriam.
Na mesma cidade onde moravam, Tapes, nasceram quase todos os filhos (na ordem,
Gecilda, Nereu, Adão, Judith e Joana). Conta-se que lá há tantos Vasconcellos que
“se alguém chutar uma moita, saltam vários de trás”, conforme uma garçonete do
local viria a observar ironicamente, como resposta a um “eu sou Vasconcellos” que
teria ouvido.
Quanto à família tapense (tapada?) mais especificamente, a caçula era ainda bem
pequena quando resolveram deixar Tapes, “em busca de melhores condições de
vida”, conforme os netos de Júlio e Maria Francisca estudariam anos mais tarde
nos livros de história e geografia do primeiro grau, nos capítulos sobre o êxodo
rural, talvez sem perceber que liam a história de seus pais e avós.
Porém, estes livros jamais contariam causos como o do porco que fugiu no meio da
longa viagem de ônibus para Porto Alegre, enquanto os Vasconcellos e
Vasconcellinhos (hoje Vasconcellões) cuspiam o pó e os tijolos da estrada em
direção “à cidade grande”. Esses causos, já folclóricos e difundidos entre os
familiares, são contados em meio a risadas e brincadeiras que disfarçam a
lembrança de tempos em que um porquinho fujão constituía grande parte das posses
da família, que também incluíam galinhas, patos e outros bens não apenas
perecíveis, mas também comestíveis, como convém a um Vasconcellos autêntico e
legítimo.
Em Porto Alegre e Canoas, as várias casas em que moraram deixaram, cada uma, a
sua lembrança, a sua marca: em uma, havia os campos onde os meninos recolhiam
esterco para revender a ajudar nas contas da casa; na outra, era preciso segurar as
paredes da casinha de madeira em dias de vendaval.
Os anos passaram, os Vasconcellos se criaram, se casaram com enxertos de origens
as mais variadas (aquela história da salada, lembra?), se multiplicaram, dando
origem a um povo conversador, contador de causos e, principalmente, brincalhão e
prá lá de barulhento.
Dedicado àqueles que se foram, àqueles que estão vindo, àqueles que ainda virão
um dia: todos a mesma família, o mesmo povo, farinha do mesmo saco. Parentes de
sangue, irmãos de coração.
Boas Festas!
226
O registro escrito foi feito para a Festa de Natal do ano de 2000, para o 5° Encontro da
Família Vasconcellos. A organização da Família Vasconcellos se estrutura a partir do casal
que parte do interior, da cidade de Tapes
96
mais precisamente, com os seus filhos, na década
de 60. A Festa Homenagem diz respeito à Vó Maria Francisca, falecida em 1995. O registro
da história familiar compreende os membros mais remotos que havia ficado na memória cujas
lembranças passaram de geração a geração por meio da tradição de contar. A história foi
registrada por uma das filhas da Vó França, como é carinhosamente referida pelos parentes. O
conteúdo do texto mostra o que é importante registrar e lembrar da história familiar. A
preocupação com os dados apresentados cronologicamente, não exigem datas exatas, idades
precisas, investidas a documentos e outras fontes para trazer confiabilidade das informações
que compõem o texto acima. São memórias tecidas na intimidade familiar, distantes do rigor
da historiografia, nem presenciadas pelos narradores, senão apreendidas oralmente. São
acontecimentos que se sucedem dotados de sentidos internalizados pela densidade da
experiência vivida pelos antepassados.
Não obstante, os sentidos atribuídos aos acontecimentos podem sofrer alterações de
acordo com os interlocutores ou do movimento da fala (Weber, 1995). A reinterpretação do
passado familiar mostra-se consoante à concepção desse grupo social inserido num espaço de
tempo. A construção da memória é, desse modo, os acontecimentos vivenciados pelo grupo
ou pela coletividade ao longo das gerações, cujo sentido será acionado com o intuito de
desenvolver o sentimento de pertencimento em um determinado contexto.
3.2.1 Os preparativos da Festa da Família Vasconcellos
Em sala de aula, ao ser questionado por uma aluna sobre o que eu pensava em
pesquisar, caso fosse aprovada na seleção de doutorado, falei a ela que seria Festa ou
Encontro de Família. Imediatamente outra aluna se manifesta e diz que a sua família realizava
Festas e que estavam organizando uma para o mês de dezembro. Era outubro de 2004 e a
família se reuniria no final de semana para comemorar o batizado de uma sobrinha-neta e
aproveitariam a presença de todos para organizar o Encontro ou “Natal da Vasconcellândia”,
como chamavam os eventos. Já estavam preparando o 10° Encontro.
A história das Festas da Família de Judith – minha aluna e estudante de Filosofia – são
bastante peculiares. Explico. A família considerada por todos os membros tem a sua origem
96
O Município de Tapes faz parte da região centro-sul, situando-se a sudoeste da capital do Estado.
227
marcada na vida de seus pais e, a partir desses laços de parentesco, é que é atribuído o sentido
ao grupo familiar. Os pais de Judith romperam com a tradição campeira familiar. Nascidos e
criados em Tapes, lá se casaram e foi onde nasceram os cinco filhos. Deixaram o interior e
rumaram à cidade em busca de um futuro melhor, fato histórico clássico de êxodo rural que
mobiliza o nosso país na década de 1950.
Logo aqui chegados, o pai, o Sr. Júlio Ignácio Vasconcellos, vem a falecer e Dona
Maria Francisca percorre com os filhos vários bairros de Porto Alegre até chegar a Canoas. Lá
estabeleceram residência definitivamente. A ausência do pai e as dificuldades enfrentadas
pela mãe trouxeram a todos um forte sentido de união e a superação das dificuldades
coletivamente organizada. A morte da mãe, muitos anos depois, reforçou os laços de
pertencimento ao núcleo familiar. Um sentimento em torno do valor-família que se aproxima
do que Marcel Mauss (1979) define como a expressão obrigatória de sentimentos e o estatuto
de ação simbólica do luto, uma vez que manifesta a elaboração de significado da perda com
efeitos importantes nas interações sociais, familiares, no caso proposto. Esse momento dotado
de significados subjetivos relevantes desencadeia o cuidado em reter no tempo a memória do
grupo familiar.
As lembranças conduzidas pelo grupo reconstroem o passado com o auxílio das
informações tomadas no presente e elaboradas em outras circunstâncias e condições de vida
em que hoje se encontram os seus membros. Essa reconstrução elabora significativamente a
história do modelo familiar que teve na presença de Dona Maria Francisca e nos caminhos
que percorreu com os filhos em busca de uma vida melhor as referências necessárias para
estabelecer a identidade atual da família.
Os casamentos passam pela aprovação de todos e todos os fenômenos significativos –
sejam de tristeza ou de alegria – são compartilhados com uma comemoração ou com um
mutirão que conta com a participação geral.
As Festas de Família ocorrem com a presença dos filhos e descendentes do casal
fundador. A família extensa traz a incorporação desse ethos e se colocam orgulhosamente
como membros efetivos da família: “sem a consangüinidade, mas com o amor”, como diz
Judith, ao longo da entrevista. A cada encontro que ocorre anualmente no dia de Natal, há
reuniões para a preparação, que são organizadas pelas filhas do Sr. Júlio e de Dona Maria
Francisca, junto com as filhas e netas. Observa-se o núcleo feminino tendo concretamente a
preocupação de manter a tradição de comemorar a família e de preservar e manter no presente
228
a memória de seus pais e a história familiar. As diferenciações de gênero
97
se expressam em
uma delimitação de domínios como forma de classificação ordenadora do grupo familiar e
que constitui a identidade “Vasconcellândia”. A descontinuidade entre as ações que
engendram o contexto familiar tem na categoria gênero um vetor interpretativo importante na
elaboração da unidade familiar: à participação das mulheres observam-se as narrativas que
envolvem os aspectos familiares ligados a questões mais afetivas, às histórias de casamentos e
lutas vinculadas ao amor entre os cônjuges e ao amor aos filhos; por outro lado – e percebido
pelo viés da complementaridade pelos entrevistados –, aos homens dirigem-se os aspectos
mais econômicos (análises mais vinculadas à busca de soluções de sobrevivência) e políticos,
quando tratam da distribuição de encargos entre os familiares com vistas à mobilidade social.
3.2.2 Encontro com a família
O encontro foi realizado no salão de festas do condomínio onde mora a sobrinha de
Judith, mãe do bebê que foi batizado pela manhã. Após o batismo na igreja católica próxima à
casa, todos foram comemorar com um churrasco. A reunião de organização da festa seria no
início da tarde, horário em que cheguei.
O salão conta com três ambientes distintos: um local que tem a churrasqueira, outro
que tem sofá e poltronas e outro que tem uma ampla mesa. A família ainda estava sentada à
mesa e Judith, ao me receber na entrada do salão, faz as apresentações iniciando pelos irmãos,
sobrinhos e sobrinhos-netos. A classificação da ordem de apresentação foi a partir de um
critério geracional. A cada parente, Judith apresentava o “enxerto” correspondente. Ou seja, o
uso da palavra enxerto é corrente na família para nomear os parentes por afinidade. Entre os
participantes, havia o namorado de uma sobrinha que foi apresentado como “pré-enxerto”,
para total constrangimento da menina que, possivelmente, estava no início de seu
relacionamento.
A minha chegada fez com que a família deixasse a mesa. Na verdade, as mulheres
levantaram-se para dar início à reunião de organização da festa, para a qual eu havia sido
convidada a participar. Fomos à sala ao lado e todas se acomodaram. A irmã mais velha de
Judith, Gecilda, é que abre as discussões de forma muito objetiva. A geração mais nova traz
muitas idéias para a Festa de Natal, que é a Festa de maior importância para o grupo. Dizem
97
Enfatizando que o conceito de gênero tem como origem a noção de cultura, e a dimensão que o fato erguido
no texto acima compreende é o caráter relacional das categorias de gênero. Ver Heilborn (1993), Strathern
(1988), Héritier (1998).
229
que todos os momentos são compartilhados – como o batizado, por exemplo. No entanto, o
Natal é a Festa da Família que passou a acontecer após o falecimento da Vó França. Ela
ocorre no dia 25 de dezembro e inicia pela manhã. Naquele dia abriram as discussões sobre a
programação, o que iria ser elaborado para a 10ª Festa e a distribuição de tarefas entre os
participantes. As decisões iniciaram pela elaboração de um mural que contaria a história de
cada uma das festas já realizadas. O segundo passo foi pensar a gincana, “que não pode
faltar”, como afirma uma sobrinha. As tarefas para a gincana são variadas e envolvem desde
brincadeiras, como a montagem de peças de teatro em que os parentes serão representados,
até a entrega de presentes e um pequeno lanche às crianças de uma vila próxima à casa da
irmã Gecilda, lugar onde as festas são realizadas desde o seu início. Judith foi a encarregada
de anotar as decisões e passar a todos via e-mail.
3.2.3 A auto-imagem da Vasconcellândia
Conceito de Família
Família: é difícil achar uma definição. A única conclusão cabível é esta: família é
um grupo de pessoas que se ajudam, que compartilham – tanto a dor quanto a
alegria – e que, principalmente, se amam. Para ser parte de uma família, não é
necessário ter o mesmo sangue: basta estar disposto a amar e a se deixar ser
amado.
Uma família unida às vezes pode ser nossa única força para enfrentar os desafios
que o destino nos impõe. Na nossa, descobrimos uma forma de cultivar essa força: a
chamada Vasconcellândia.
A Festa da Família é sempre uma delícia e para alguns é o único modo de manter
contato. É um momento para matarmos a saudade de quem amamos.
A organização da festa já é em si uma festa à parte. Passamos por volta de dois
meses nos encontrando, combinando, tomando providências, botando as fofocas em
dia e rindo bastante.
Foi tudo preparado com muito carinho, sempre com o objetivo de nos unirmos cada
vez mais. Fazer com que este dia especial do ano seja divertido e emocionante.
Esperamos que essa festa, símbolo da nossa família, dure enquanto os Vasconcellos
viverem.
O texto acima foi elaborado coletivamente, como relata Judith quando o passou às
minhas mãos. Trata-se de um texto que foi lido em uma das festas e feito pelas mulheres da
família. Observa-se no conteúdo que ele traz a associação tradicionalmente estabelecida sobre
a mulher enquanto veiculadora dos “valores do coração” em correspondência à casa, à
família, às atitudes filantrópicas. A elas cabem a expressão dos sentimentos que circulam
sobre as disposições apontadas. Retomo Mauss (1979) quando analisa as expressões
sentimentais enquanto fenômenos psicológicos ou fisiológicos, mas também sociais e
230
“constituem-se como linguagem e, enquanto manifestações coletivas, têm a força da
obrigatoriedade” (Dauster, 1986, p. 104).
Não obstante, a auto-representação elaborada apresenta-se ambígua entre um modelo
tradicional familiar
98
e um modelo moderno de família. Ou seja, as mulheres dividem os
cuidados com os filhos, estão no mercado de trabalho atuando, em alguns casos, em cargos
diretivos e, por sua vez, os filhos adolescentes assumem-se enquanto indivíduos ao
recusarem-se a participar de algumas atividades previstas para a festa e têm a sua vontade
reconhecida como legítima. Contudo, observa-se certo “engessamento” nas relações
familiares sobre o controle do ingresso dos “enxertos”. Acionada como brincadeira ao exigir
que “primeiro tem que ser aprovado pelos Vasconcellos”, é atendida pelos membros jovens a
apresentação formal aos parentes nas ocasiões em que se reúnem.
3.2.4 O espírito de Natal
A Família Vasconcellos não se caracteriza com vínculo a esta ou aquela religião.
Apresenta-se como dotada do espírito cristão, ainda que os novos membros passem pelo ritual
católico do batismo. O fato da Festa de Família realizar-se no Natal também é um dado
significativo de suas crenças. Em uma das Festas, houve a encenação do nascimento de Jesus
pelas crianças, que receberam o seguinte título e texto:
Significado do Natal
Num certo dia um anjo visitou Maria
(conta até cinco)
E lhe avisou que ela seria mamãe.
(conta até cinco)
Ela perguntou: – Mãe de quem?
E o anjo respondeu:–- De Jesus, o filho de Deus.
(conta até cinco)
Maria contou a José que seria papai.
(conta até cinco)
Passado algum tempo, eles se instalaram numa estrebaria para esperar o
nascimento de Jesus.
(conta até cinco)
Lá encontraram alguns animais como:
(conta até cinco)
Vaca, burro e ovelha, além de uma manjedoura onde colocaram o bebê.
(conta até cinco)
Na noite de 25 de dezembro de 2000 anos atrás
98
O modelo da família hierárquica contemplada nos estudos de Figueira (1986) é vista como austera nas
diferenças de gênero, entre os pais e os filhos, endossa uma identidade posicional e um forte apelo moral sobre o
que é certo ou errado. Por outro lado, o autor caracteriza a modernização da família.
231
(conta até cinco)
Apareceu uma linda estrela que anunciou o nascimento de Jesus.
(conta até cinco)
Então Ele nasceu!
(conta até cinco)
Maria e José ficaram felizes e emocionados.
Vieram de longe três reis magos com presentes para o menino.
(conta até cinco)
O script da peça teatral reitera a correlação das dimensões religiosa e familiar. Essa
ligação tem explicações na história da humanidade e, em parte já foi apontado anteriormente.
Cabe relembrar que as religiões apoiavam-se nas autoridades da comunidade e dos sistemas
de parentesco relevante para a sustentação de relações de confiança em contextos tradicionais
– autoridades que “eram fontes de ‘doutrinas vinculantes’, assim como formas de
comportamento dotadas de forte compulsão normativa” (Giddens, 2002, p. 180). Nos tempos
atuais, essas formas tradicionais continuam a existir, porém não mais como autoridades
exclusivas; seus espaços são compartilhados com outras tantas ‘autoridades’ que concorrem
entre si na cooptação dos indivíduos inseridos no projeto individualizante da modernidade.
3.2.5 A benevolência como valor-família
No encontro de organização que participei, uma das atividades recorrentes nas Festas
era a de levar à comunidade carente lembranças de Natal e um lanche. Judith em outras
ocasiões reiterou esse perfil de caridade e atenção àqueles que nada tinham para comemorar o
Natal, herança atribuída à Vó França, que sempre repartiu o pouco que tinha. São duas as
implicações que registra a concepção que Judith traz: a transmissão de bens simbólicos de
uma geração a outra e uma realidade de carências vivenciadas em tempos anteriores que
valoriza as redes de ajuda mútua.
As histórias contadas sobre a avó que sempre ajudou os vizinhos e amigos da família
marcaram moralmente as gerações seguintes. São lembranças coletivas de um estilo de vida
vinculado às camadas populares e à vida interiorana, onde o sentido de comunidade é
reconhecido como um valor “encompassador” (Dumont apud Duarte, 1986).
Cabe ressaltar a importância, para esta análise, dos estudos de Myriam Lins de Barros
sobre a relação geracional estruturada a partir do conceito de representação coletiva que
discute a relação entre o indivíduo e sociedade. A análise que a autora faz desse conceito parte
de duas vertentes teóricas: a noção de socialização em Marcel Mauss e a fenomenologia de
Alfred Schutz. Para o primeiro, “é através da socialização que são transmitidos aos indivíduos
232
os hábitos e as práticas instituídas juntamente com seus significados sociais” (Barros, 1987, p.
18). Ou seja, é a natureza social das representações coletivas que diferencia as representações
individuais, apesar de essas representações coletivas efetivarem-se nas ações e reações das
consciências individuais de um determinado grupo. Para Alfred Schutz, apesar de o
conhecimento do mundo se originar, em sua maior parte, do social, os indivíduos possuem um
espaço de escolha e, portanto, a possibilidade de projetar seus futuros a partir de suas
experiências de vida.
Ao longo do encontro, algumas das participantes chamavam a atenção sobre a
importância também da responsabilidade social que permeava a entrega de presentes e
lanches. O envolvimento com essa atividade foi unânime quando tinham que tomar a decisão
sobre incluí-la ou não no rol de tarefas que estavam selecionando para realizar no evento.
3.2.6 O Instituto Vó França: a versão moderna da memória
Certo dia encontrei Judith nos corredores do Unilasalle
99
e paramos para conversar. A
novidade era que haveria a inauguração do “Instituto Vó França”, uma OSCIP
100
. O relato
sobre o empreendimento foi rápido, mas a intenção era fazer o convite a participar da
comemoração que a família faria em decorrência da aprovação da entidade pelo poder
público. Não poderia comparecer, pois estaria trabalhando na noite prevista para a celebração.
Judith, então, mandou-me pelo correio eletrônico a minuta contendo as informações sobre o
Instituto.
INSTITUTO VÓ FRANÇA
O instituto Vó França é uma entidade sem fins lucrativos, credo religioso ou
definição partidária. É uma organização da sociedade civil de interesse público
regendo-se pelo seu estatuto e pela Lei 9.790, que regulamenta as OSCIP’s. Temos
por objetivo propiciar um local de acolhimento para as famílias, oportunizando o
fortalecimento, a proteção, a segurança e a socialização de seus membros.
Buscamos desenvolvimento da igualdade de oportunidades entre as pessoas, tendo
seu foco principal o apoio às famílias carentes. As ações do Instituto Vó França,
têm como princípio a manutenção da criança junto aos seus familiares através do
auxílio e orientação aos pais, atendimentos na área da saúde e da educação e a
preparação da família para o enfrentamento à pobreza. Queremos criar
oportunidades para a construção de uma corrente de solidariedade em nossa
comunidade com objetivos específicos de busca de solução para os problemas de
miséria na nossa cidade. Nossa meta a curto, médio e longo prazo é o atendimento
99
Centro Universitário La Salle – Canoas/RS.
100
OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – é uma qualificação decorrente da lei 9.790
de 23/03/99.As OSCIP’s são entidades privadas atuando em áreas típicas do setor público, e o interesse social
que despertam merece ser, eventualmente, financiado, pelo Estado ou pela iniciativa privada, para que suportem
iniciativas sem retorno econômico.
233
a crianças, jovens e adultos, através de programas de assistência social, atividades
culturais e esportivas que tenham como princípio a valorização da vida, o bem
comum, a cidadania e o resgate da auto-estima. Nossa filosofia é de esperança, de
confiança no ser humano como possibilidade de bem e liberdade, de valorização da
vida como bem supremo e de atitudes de bem querer. Buscamos uma nova relação
entre as pessoas e momentos de capacitação para a reflexão e para as mais
diferentes leituras e posicionamentos tomados diante dos fatos, que sirva para todos
de instrumentalização para a crítica e a ampliação do universo experiencial e visão
de mundo. Queremos com nossas atitudes e dedicação ser referência, no município,
de solidariedade, ações morais e bons serviços à comunidade; estaremos, com
certeza, à frente de empreendimentos que cultuem a paz, a preservação da natureza
e a erradicação da fome. Nossa força está referenciada na história de luta de uma
mulher que rompeu com todas as adversidades e dificuldades de sobrevivência de
sua família, soube interpretar as exigências do futuro e, mesmo sem formação, foi
mestra em repassar valores éticos e morais aos seus descendentes. Teve em nossas
vidas a tarefa de ir à frente abrindo os caminhos, tirando as pedras e os espinhos
para que nós pudéssemos passar; foi uma arquiteta de vidas e por isso é eterna
entre nós. Nossa Homenagem à Maria Francisca Vasconcellos, a Vó França.
Canoas, 26.05.2008
As experiências vivenciadas por Vó França e os seus filhos sob os códigos
universalizantes do bem comum e, portanto, do pertencimento a uma comunidade que
engloba os parentes, os amigos, os vizinhos, o bairro, são atualizadas pela memória no
presente e aderem às novas práticas de atuar em uma sociedade que privilegia a
particularização da experiência. A geração dos filhos de Vó França adota a forma de praticar
o auxílio a quem precisava, até o ano anterior, que ficava restrita ao dia de Natal,
evidentemente, na sua versão pública. Por sua vez, essa geração acompanhada de seus filhos,
passa a adotar uma nova forma de manter o cuidado com aqueles que se encontram em
situação de ‘necessidade’: a OSCIP Vó França, ampliando a repercussão das formas de
reciprocidade da rede familiar, agora no formato de uma ONG.
A institucionalização dessa herança cultural responde à concepção individualista de
pessoa, traduzida no valor da cidadania, que se realiza no plano da constituição nacional. A
existência social dos indivíduos é regulada pelo Estado e que se traduz nos documentos de
identidade, das definições das etapas do nosso curso de vida – período de escolarização,
ingresso no mercado de trabalho, limite etário para a aposentadoria. A emancipação dos
indivíduos em relação aos imperativos da tradição e da religião direciona-os aos imperativos
das regulamentações promovidas pelo Estado. A formação do Instituto Vó França é
elucidativa para a reflexão sobre essa transição. Ou seja, agir no mundo a partir da visão que
se tem dele e que, no caso, é a de doação pessoal ao auxílio mútuo que antes estava
naturalmente nas práticas cotidianas da Dona Maria Francisca e na comunidade que ela estava
inserida, passa à geração seguinte que define, racionalmente, o auxílio em uma data precisa e,
já na geração dos netos, a conduta beneficente passa a atender às exigências reguladoras do
234
Estado. Essas alterações não foram realizadas espontaneamente e, sim, circunscritas em uma
realidade sócio-política que particulariza as ações e promove o confinamento das mesmas ao
âmbito privado. A persistência das ações benevolentes da família Vasconcellos pode ser
apreendida como uma “identidade-valor” nos termos de Duarte, que “se confundiria com a
própria idéia da ‘cultura’ como ‘sistema simlico’ e da ‘sociedade’ como atualização de uma
ordem principal abstrata” (Duarte, 1986, p. 130).
3.3 A Festa da Família França
Maria Caminha de Castilhos França é minha mãe. Por conta de seus 90 anos,
completados em dezembro de 2007, os filhos passaram a pensar um encontro em que tanto a
família quanto os amigos pudessem homenageá-la. A idéia teve início na comemoração dos
89 anos, quando em conversa com dois irmãos meus, ficamos acordados em fazer uma festa
101
que reunisse todas as pessoas que tiveram sentido e compartilharam de momentos
significativos da trajetória de nossa mãe. Isso se deve ao fato de que as festas de aniversário
dela sempre foram divididas em grupos, pois o espaço de sua casa não comportava reunir os
diferentes núcleos que estruturam a sua trajetória.
3.3.1 Trajetória e contexto social
Ela nasceu em Livramento, em 18 de dezembro de 1917, filha de um comerciante
pecuarista e de uma professora. Viveu sua infância ao lado de seus pais, seus cinco irmãos e
na presença constante de sua avó paterna que, seguidamente, passava uma temporada na casa
do filho ou levava os netos para passarem um período em sua casa, que se situava na
campanha
102
. É importante chamar a atenção para a intensa relação que manteve com sua avó,
uma vez que ao ter os seus filhos, adotou as histórias que vivenciou, compartilhou e ouviu de
sua avó para educá-los. Ou seja, suas referências de apreensão do mundo social, suas
orientações de reciprocidade, suas disposições éticas, entre outros fatores, estão centrados nas
experiências intergeracionais em que a figura da avó imprime sentidos diversos a partir de
uma forte relação afetiva. Trata-se, portanto, da obtenção de uma visão diacrônica sobre a
101
Nós, os filhos, costumamos relacionar o aniversário de nossa mãe aos kerbs que são as festas de origem alemã
e que duram três dias, em média, uma vez que, para reunir todos os amigos e parentes, eram organizadas três a
quatro comemorações em que os convidados pertencessem à mesma rede: amigos da igreja, ex-colegas de
magistério, vizinhos e familiares.
102
No extremo sudoeste do Rio Grande do Sul, desenvolve-se a Campanha Gaúcha, parte brasileira da vasta
planície platina (o Pampa). Sua vegetação predominante (gramínea) favorece a criação de gado bovino e ovino.
235
realidade apreendida a partir da coexistência de valores diferenciados observáveis em cada
uma das gerações que constituem o grupo doméstico. As passagens e depoimentos relatados
pela avó representam uma possibilidade de pensar um caminho de mudanças sociais em um
campo social mais amplo, “bem como sobre a mudança e a permanência de determinados
valores familiares” (Barros, 1987, p. 11).
O fato de sua mãe lecionar em um cômodo da casa em que viviam
103
fez com que
minha mãe convivesse com a prática de ensino, aprendesse a ler aos quatro anos apenas,
observando as diligências da mãe aos seus alunos e, como a sua irmã Cora, seguisse a
profissão da mãe. Não posso desconsiderar que nesse período: poucas eram as possibilidades
profissionais ao público feminino e, entre uma das poucas alternativas, o exercício do
magistério era o mais procurado (ou único).
Aos 17 anos, foi estudar em uma escola em São Leopoldo em regime de internato.
Permaneceu lá por um ano, porém, o tempo suficiente para conquistar novas amizades que,
freqüentemente, acionam a sua memória, e formar-se como professora. Criada em um
ambiente intensamente religioso, acompanhava sua mãe nas diferentes atividades dirigidas a
senhoras na paróquia local. Tempos mais tarde participará como membro do Grupo de
Orações do Sagrado Coração de Maria, uma formação leiga vinculada à igreja da cidade, e é
convidada a dirigir um programa na rádio local direcionado a um público católico. Dotada de
uma personalidade expansiva, é uma pessoa muito comunicativa e alegre, cuja característica
levou-a a desenvolver as atividades citadas agregadas à atuação como professora que exerceu
como voluntária por três anos, lecionando a um público adulto no turno da noite em uma
escola da cidade. Esse conjunto tornou-a conhecida pelos seus méritos, tendo em vista que a
essa época, na cidade do interior, as pessoas eram caracterizadas hierarquicamente pela
família de origem e seu lugar nos estratos sociais.
Essa popularidade a inseria em diferentes grupos na cidade. Conta, por exemplo, que
muitos anos depois, já morando em Porto Alegre, encontrou um ex-aluno seu. Admirou-se ao
ver o quanto seu aluno estava envelhecido e, por conta disso, tomou consciência de que ela,
então, estava mais envelhecida ainda – uma típica situação de ‘jogo de espelhos’ ou ato
reflexivo. O ex-aluno trouxe à conversa lembranças sobre o tempo que conviveram e pergunta
se minha mãe ainda cantava... Surpresa, responde que não sabia a que ele se referia. Ele,
então, responde que se lembrava da abertura do seu programa de rádio que iniciava com
103
Conta minha mãe que pela ausência de escolas distribuídas em diferentes pontos da cidade havia a
possibilidade de professoras, ligadas à rede pública, disponibilizarem uma peça de sua casa para lecionar, que
chamavam de “aula isolada”. Nessa mesma sala estudavam alunos de idades e estágios escolares diferentes,
orientados por uma única professora, no caso, Naura, a minha avó materna.
236
música “Ave Maria” e que minha mãe a interpretava brilhantemente. Ela, muito entristecida
pelo encanto a ser desfeito, informou-o de que infelizmente não possuía aquele ‘dom’, era a
reprodução de um disco da prestigiosa cantora Martha Eggert.
Após três anos de conclusão do Ensino Normal, atuar no Magistério e ter realizado o
trabalho voluntário, fez o concurso ao magistério público e foi designada ao estágio
probatório em Trombudos, 7° distrito da cidade de Santa Cruz do Sul, em 1939. Nesse
período, desenvolve-se a política de nacionalização em que as comunidades descendentes de
imigrantes alemães foram obrigadas a usar e adotar no sistema de ensino o idioma nacional.
Minha mãe é a primeira professora brasileira que chega a essa comunidade em que
pouquíssimas pessoas falavam o português. Inicialmente conta que foi um período difícil, pois
além de não falar o dialeto hunsrück, ela simbolizava a presença das sanções que o Estado
impetrava à comunidade. Com o tempo passou a entender e a falar um pouco do dialeto,
contando com os alunos iniciados por ela no português que faziam as vezes de intérpretes, e o
seu espírito afável conquistou pouco a pouco a comunidade. Morou por três anos no local,
indo para casa em algumas ocasiões especiais por conta ora do falecimento de seu pai, ora
pela passagem de alguma data importante para a sua família, como o Natal e a Páscoa.
Ao término do estágio voltou para a cidade de origem e permaneceu por alguns anos
lecionando em uma escola pública da cidade. Por volta de 1950, decide fazer a Faculdade de
Educação em Porto Alegre. Muda-se para a capital e vai morar em um pensionato de freiras,
onde desenvolve grandes amizades que a acompanharam por muitos anos. Reencontra o
namorado que conheceu em Livramento, quando este viveu por um período por motivos de
trabalho e casa-se em 1954. Seu marido (meu pai), Ulysses de Castilhos França, era bancário
como seu pai e irmão. Em uma concepção atual – e trago como referência um artigo de
Fonseca (2007), que vai refletir sobre a noção de família desestruturada –, afirmo que meu pai
era oriundo de um modelo de família desestruturada, tendo em vista o afastamento de sua mãe
do meio familiar por problemas psíquicos, dois irmãos serem acometidos do mesmo mal, o
afastamento de outro irmão que ingressa na marinha e constrói a sua vida em outro estado e,
por fim, o pai que passa a viver de forma independente e distante dos problemas familiares –
sem, com isso, deixar de conviver com o filho e sua família.
Logo após o casamento, minha mãe lecionou no Abrigo de Menores (atual FASE), até
ser designada para uma escola perto de sua casa. Ao longo de seis anos, tem quatro filhos e,
logo após o nascimento do último filho, meu pai vem a falecer em um curto espaço de tempo,
após o falecimento de minha avó materna. Foram duas perdas afetivas grandes e que
definiram o rumo a dar à sua trajetória.
237
Por conta desses fatos, seus irmãos sugeriram que ela retornasse a Livramento
fixando-se na cidade, onde poderia ser “assistida” por eles na educação dos filhos.
Seguidamente reafirma ter tomado a decisão correta de educar sozinha os filhos, “de contar
com o auxílio do pediatra para as questões de saúde e que os atendia desde o nascimento e
com o auxílio de Deus para a formação do caráter”. E é nesse quesito que as memórias que
resistiram ao tempo ‘em e por’ que compartilhou experiências com “Vovó Manoella”
transformam-se no veículo adotado para educar seus filhos: as histórias contadas sobre ela e
vivenciadas pela minha mãe levavam sempre a uma lição moral, a uma posição adequada a
servir de modelo. Eram as mais variadas histórias, desde lições de etiqueta até a importância
da autonomia sobre os caminhos a serem adotados no percurso da vida e “que, depois de
assumidos, deveriam ser sustentados até o fim...”.
Alguns anos após a viuvez, minha mãe assumiu o cargo de diretora do Grupo Escolar
Roque Callage e, sendo assim, os filhos menores iniciaram precocemente a vida escolar,
acompanhados de perto pelos irmãos mais velhos e por ela própria que deixava claro que lá
“era o espaço do trabalho dela e nosso, como estudantes: nenhum poderia atrapalhar o
trabalho alheio e cuidaríamos um do outro à distância”. Também foi com a viuvez que pôde
retornar aos compromissos da igreja, parcialmente interrompidos pelas atribuições da
maternidade e dos cuidados com a saúde de meu pai. Os filhos já mais crescidos
acompanhavam nos compromissos religiosos obrigatórios: missa aos domingos, curso de
Primeira Comunhão, etc.
Em 1968, sua irmã, minha tia Cora, veio de Livramento para morar conosco em Porto
Alegre. Ela também era professora e pianista, e foi transferida para a escola que minha mãe
dirigia. Morou em nossa casa e a tínhamos como uma segunda mãe e uma companheira muito
querida da irmã. Alguns anos depois, minha mãe se aposentou e passou por um acontecimento
dramático: o filho caçula contraiu meningite do tipo viral
104
, aos doze anos, em 1972. Em
Porto Alegre havia um surto da doença não divulgada à população para que a “ordem”
controlada pelo governo militar não corresse risco de se desestabilizar. Em conseqüência
disso, o diagnóstico tardio trouxe graves seqüelas que comprometeram a autonomia do meu
irmão, mudando os ritmos rotineiros e criando adaptações no espaço doméstico para o seu
bem-estar. Contudo, minha mãe apegou-se ainda mais à sua fé e encontrou na família e nos
104
É uma inflamação das membranas que recobrem e protegem o sistema nervoso central - as meninges. A
meningite pode ser de origem viral, adquirida depois de alguma gripe ou outra doença causada por vírus, ou de
origem bacteriana, normalmente mais branda.
238
amigos o auxílio sobre as decisões a serem tomadas para enfrentar os diversos tratamentos
que poderiam amenizar as conseqüências que ali estavam. A vida continuou.
Em concomitância a esses acontecimentos e, certamente reforçada por eles, minha
mãe sempre contou com as amizades construídas na infância e que também adotaram a capital
para morar; contou com as amigas do pensionato – em alguns casos firmaram-se relações de
“quase parentes”, eram comadres; com as colegas de trabalho, que costumavam fazer
refeições na nossa casa e que compartilhávamos de inúmeros veraneios nos períodos de férias
escolares; e, é claro, com a turma da igreja – “irmãs de fé”, como carinhosamente se tratam
entre elas.
3.3.2 Os preparativos da Festa
Retomar a trajetória significa não apenas situá-la no contexto social; significa, de igual
modo, reordenar as suas perdas compensadas por um número muito maior de conquistas, de
vitórias sobre os inesperados que a vida lhe apresentou. E foi o que deu sentido à homenagem
que todos lhe fizeram por ocasião da festa dos seus noventa anos: todos os grupos que foram
compostos ao longo desse tempo participaram conjuntamente e cada um deles procurou
homenageá-la de algum modo.
A festa, como foi dito inicialmente, foi pensada por ocasião do seu aniversário
anterior. Esse havia sido mais um ano difícil de ser enfrentado, pois a sua irmã havia falecido
no ano anterior e a sua perda abalou muito a todos, principalmente minha mãe, que tinha nela
uma companheira constante. Esse fato triste transformou-se em mais um motivo para
comemorar, marcar simbolicamente a ruptura com o luto e projetar um futuro mais ameno,
sem o peso da dor pela ausência da irmã. Os filhos tomaram para si a tarefa de pensar a
homenagem. No entanto, a festa foi organizada basicamente pelo filho mais velho e por sua
esposa, uma vez que nessa ocasião eu escrevia a qualificação da tese e meu outro irmão estava
morando em Paris por conta de seu trabalho. As medidas que foram tomadas foram calculadas
em conjunto através de contatos telefônicos e meios eletrônicos. Os créditos finais ficam, sem
dúvida, por conta da Bia, nora de minha mãe e parente por afinidade.
O passo inicial foi fazer a lista de convidados, contemplando inclusive amigos com
quem há tempos não havia contato. Com o intuito de confirmar os endereços para o envio dos
convites, fomos entrando em contato com os nomes que constavam na lista. Para surpresa da
minha mãe, muitos dos listados já não estavam mais vivos. Esse foi um momento delicado,
pois a confirmação da ausência de tantos contemporâneos traz à tona a proximidade do final
239
da vida e, por conta disso, em alguns momentos ela quis desistir da comemoração. No
entanto, afirmando constantemente que a festa seria uma forma simbólica de consagrar a
nossa mãe como alguém a quem devíamos eternos agradecimentos, conseguimos convencê-la
da importância de festejar a sua vida, os seus filhos, os seus parentes, os seus grupos de
amigos.
Passamos ao estágio seguinte e contamos com a dedicação e disponibilidade de tempo
de meu irmão e sua família. Foram selecionados os locais possíveis, acertadas as datas,
confecção de convites e o envio dos mesmos, as iguarias a serem servidas, decoração do local,
bolo decorado e velas a serem apagadas, o traje da homenageada, acomodação para os netos,
filho e família que vêm de fora, enfim, inúmeros detalhes que demandaram seis meses de
preparativos.
3.3.3 A Festa e a comunhão das redes de pertencimento
É o dia 15 de dezembro de 2007, a festa no salão do Hotel Holiday Inn deverá ter
início às 16h – pedido de minha mãe para que as amigas não saíssem à noite de lá pelos riscos
de assalto e dificuldade de andar no escuro. Marcamos de estar todos – filhos, genro, noras,
netos e bisnetos – às 15h30min. Já havia sido combinado o “protocolo” da festa: a recepção
dos convidados, o recebimento dos presentes, a acomodação de todos distribuídos conforme
os “grupos de pertencimento”, o pronunciamento dos filhos, inicialmente. Ao longo da festa,
outros convidados fizeram questão de se manifestarem, tais como o vigário da Igreja Santa
Terezinha – o Frei Canísio, algumas amigas, etc. Logo a seguir, os convidados seriam
servidos do chá, sucos e iguarias para, então, se cantar o “Parabéns” junto à entrada do bolo
com as velas acesas.
Estávamos todos no horário previsto; logo começaram a chegar os convidados e a
festa teve início. Com alguns amigos, não tínhamos contato há alguns anos, ou por terem
mudado de endereço ou de cidade; revê-los foi, de fato, emocionante. Outros tantos amigos
chegaram auxiliados por bengalas, cadeiras de roda, acompanhantes... fatores decorrentes da
idade avançada. Os bisnetos tomaram conta do espaço correndo e brincando, os filhos cheios
de orgulho acompanhavam a mãe na recepção dos amigos. Os netos ora cuidavam dos seus
filhos, ora colocavam em dia o papo com os primos que tinha ficado para trás por conta da
distância que moram atualmente.
Assim como nós não víamos alguns há muito tempo, eles também puderam
reencontrar os amigos que a vida tratou de distanciar. Todos os convidados presentes já
240
estavam acomodados com seus pares e o burburinho das conversas no salão ecoava longe.
Eram muitas as novidades a serem relatadas, muito os assuntos não tratados na correria do
dia-a-dia; eram longos os períodos que não puderam se encontrar. Na “turma” do Roque
(escola que minha mãe dirigiu), havia lacunas de até 30 anos entre alguns membros. A festa
estava, então, cumprindo os seus múltiplos papéis: a revitalização dos laços afetivos, afirmar
as solidariedades e revificar as redes de pertencimento.
O salão onde ocorreu a festa encontrava-se lotado. Era o momento de seguir o
“protocolo”, rapidamente organizado pelos filhos momentos antes dos convidados chegarem.
Na pauta estava a fala dos filhos, ficando à vontade quanto ao tempo e quanto ao conteúdo a
ser discorrido. Inicia Jairo, o filho mais velho, que minha mãe, em diversos momentos,
apresentava como “meu cacique”. Nunca questionei o uso do termo; sempre o compreendi
como referência à primogenitura. No entanto, ao escrevê-lo em um texto que se dirige à
antropologia, soou-me no mínimo curioso...
3.3.4 Os discursos de homenagem e revisitando as identidades plurais
O “cacique”, então, inicia sua fala desculpando-se pela emoção e que faria um esforço
para concluir o que havia preparado. Retira do bolso da calça um papel diversas vezes
dobrado. Abre-o e deixa transparecer o quanto esse momento era diferente do seu cotidiano
que comportou sempre um número significativo de conferências, palestras ou apresentações,
seja por conta de sua profissão ou por conta do cargo de presidente de uma instituição
internacional que ocupou por vários anos. Suas mãos trêmulas denotam o compromisso de
traduzir na sua homenagem o tamanho e a importância que a nossa mãe representa nas nossas
vidas. Mesmo em um texto pequeno, foram inúmeras as vezes que teve que interromper, pois
a voz embargada não conseguia se fazer ouvir. Diz ele:
90 ANOS!!!
Queremos agradecer muito e do fundo do coração a presença de todos. Agradecer,
especialmente, a Deus a graça que nos concede de comemorarmos e
homenagearmos os 90 anos da mãe. E a alegria e felicidade de compartilharmos
com todos vocês este momento.
Mãe, foste sempre a nossa referência, modelo e exemplo a ser seguido. Tua força,
fé, alegria e dedicação nos forjaram e ensinaram-nos, assim como fizeste, a superar
as dificuldades e agradecer a Deus as tantas graças recebidas. Muito obrigado por
seres essa mãe maravilhosa e, como diz o Fernando, formidável!!
Além da mãe, tem a Dona Maria, a Xodó, a Maria Caminha, a Mariazinha, a Tia
Maria, a Vó Maria, a Bisa... Enfim, a professora, a colega, a vizinha, a sogra, a
Filha de Maria... Mas, principalmente, a companheira, a amiga, uma pessoa
241
solidária e sempre disposta a ajudar. Que sempre por onde passa contagia a todos
com essa sua maneira positiva de enfrentar a vida e vivê-la.
Queremos lembrar, também, aquelas pessoas queridas que já não estão mais
conosco, mas continuam vivas na nossa lembrança e no nosso coração e que muito
representaram para nós e para a mãe. Só para lembrar alguns: Tio Arão, Tia Ione,
a querida Dadá e, especialmente, a Tia Corinha, a grande companheira, irmã e
amiga.
Mãe: te amamos muito!!! E já fica o convite a todos para 2017!!! Feliz Natal e um
2008 de muita paz, amor e saúde a todos!!
Ao concluir, recebe o abraço de nossa mãe, sempre tão carinhoso e protetor. Na
seqüência, é a vez do segundo filho, Paulo Roberto ou Beto, como é chamado na família e
entre os amigos “portoalegrenses”. Possuidor de uma capacidade expressiva muito grande,
Beto fala com naturalidade, e de uma forma muito didática traz fatos que ocorreram na nossa
infância. Sua fala marcou mais do que a trajetória de nossa mãe; ele traz prioritariamente a
forma particular de ela agir no mundo, seja conosco, seus filhos, seja com seus amigos, seja
com a fé que, sem sombra de dúvida, estrutura a sua e a nossa existência. O texto foi escrito
por tópicos que orientam a sua fala. Trago os textos como foram estruturados e não
transcritos.
Festa da Mãe – Beto
1) Agradecimento: Agradecer em meu nome e dos meus irmãos e famílias: da Titina
e do Fernando, do Serginho, da Ivana, dos nossos filhos e sobrinhos, netos e em
nome da mãe e de todos os amigos que estão aqui; ao Jairo e Bia pela organização
da festa. Eles arrumaram tempo no pouco tempo que têm para organizar esta linda
festa. Muito obrigada!
2) Colocar-se no lugar do outro:
Mãezinha, o Jairo já falou das tuas muitas qualidades e eu não vou repeti-las.
Queria apenas referir-me a uma importante e particularmente forte na tua
personalidade: trata-se da capacidade de colocar-se na pele, no lugar do outro.
Façam um exercício mental rápido: quem de vocês não sofreu, não foi vítima de
uma pequena grosseria, de um mal-entendido nos últimos dias? Qual é a nossa
reação natural? É nos fecharmos, é vermos o “outro”, quem supostamente cometeu
o erro, como culpado. Pois a Dona Maria tem o dom de nascer-lhe naturalmente o
pensamento que nós rapidamente descartamos: colocar-se na pele dele, pensar
porque ele disse aquilo. Tem uma razão: um dia cansativo? Uma palavra mal
dosada da nossa parte? Alguma dor física ou de alma? Esse é o primeiro e grande
passo para prevenir e resolver conflitos. Ali, se soubessem que a Dona Maria mora
aqui, israelenses e palestinos talvez começassem a se entender; xiitas e sumitas
talvez não brigassem tanto; americanos e cubanos provavelmente organizariam
vários jogos de beisebol de confraternização. O que para nós parece ser um
exercício difícil, de tentar chegar a esse estágio, para a Dona Maria é natural, é
como um sorriso de bom dia no amanhecer, é como um abraço à pessoa mais
querida. Essa conduta revela uma profunda fé no ser humano.
3) Filhos: Por isso, meus filhos, eu aproveito agora para dizer-lhes: aprendam com
a avó de vocês. Sejam sempre virtuosos e tenham no coração o que sobra nela:
compaixão e fé.
242
4) Mãezinha, nós nos acostumamos a te chamar assim. Não é apenas carinho e
intimidade. É, na verdade, a forma mais gráfica que nós encontramos para te dizer
que estás inteira nos nossos corações.
5) Átolo: Quando eu era pequeno, talvez um pouquinho maior que o Lorenzo, eu
acompanhava a mãe à noite. Ela via um programa na TV Tupi e aproveitava cada
intervalo para lavar roupa, cozinhar, passar. Eu tinha a incumbência de avisá-la
quando o programa começasse. E eu, quando apareciam as máscaras de teatro na
TV, corria e dizia: “Mãe, vai começar o segundo ‘átolo’, o terceiro ‘atolo’... pois
mãezinha, obrigada por todos esses ‘átolos’ maravilhosos das nossas vidas que tu
nos proporcionaste. E nós queremos mais, muitos mais ‘átolos’ contigo. Que Deus
te abençoe muito. Te amo!
Restou a mim e ao meu irmão Sergio manifestar o quanto a amávamos e a
admirávamos. O que ela merecia ouvir já havia sido dito.
No momento seguinte, manifestou-se o Frei Avelino, na época o vigário da Igreja
Santa Terezinha. Suas palavras retomam o que já havia sido enunciado anteriormente:
A Maria Caminha, como a chamamos na [Igreja] Santa Terezinha, sempre foi um
exemplo de fé. Há muito tempo trabalha pela igreja, participando de várias
associações. A manifestação de seus filhos mostra a mulher forte, que soube
enfrentar a vida com firmeza e determinação apoiada na sua crença em Deus, como
a Virgem Maria...
Para surpresa de todos, um grupo de amigas contratou um saxofonista que entra com
um buquê de rosas, entrega-o e toca a música para minha mãe. A escolha foi uma música de
Roberto Carlos: Como é grande o meu amor por você. A homenagem emocionou a todos pela
lembrança das amigas e, sobretudo, a interpretação muito bem realizada.
A festa transcorreu com o serviço de copa, onde o pedido de que fosse organizado um
chá, farto de tortas e quitutes – pois, como sempre, comenta ao pensar as quantidades de
alimento: “antes sobrar do que faltar, como dizia a Vovó Manoella” – foi atendido com
esmero na seleção do que seria servido. Após esse momento, os filhos, os netos e o bisneto
trazem o bolo com velas e todos cantam em coro o tradicional “Parabéns a você”. A seguir,
houve a sessão de fotos, na qual minha mãe e, esporadicamente, um ou outro filho, um ou
outro neto, a acompanhavam de mesa em mesa para o registro do encontro.
Aos poucos os convidados foram retirando-se e permaneceram os familiares. Nesse
momento a intimidade, a alegria do sucesso da festa e estimulada pelos discursos dos filhos,
minha mãe retoma inúmeras lembranças de tempos vividos em família. Os netos queriam
saber mais, os filhos contavam suas versões e, em alguns momentos, eram corrigidos por ela:
“Não, meu filho, esse fato aconteceu em Livramento”, ou, ainda, “Estás enganada, minha
filha, isso aconteceu foi com o Jairo e não com o Beto...”.
243
Reconheci nesse instante que aquele era o momento em que a festa assumia a função
de reafirmação dos laços de parentesco, a importância das interações geracionais e a
expressão da unidade do grupo disperso apenas no espaço físico.
3.3.5 Reflexões...
Sigo as prerrogativas de Gilberto Velho (1997) em seu capítulo Observando o
familiar, tão conhecido e adotado pelos antropólogos brasileiros que trabalham com as
sociedades complexas. O familiar, no caso, é a expressão literal daquilo que busco apreender
“enquanto objetividade relativa, mais ou menos ideológica e sempre interpretativa” (Velho,
1997, p. 129). Acrescento, também, o artigo sobre a pesquisa desenvolvida pelas médicas
antropólogas Gomes & Menezes (2008)
105
, na qual as autoras desempenham simultaneamente
os papéis de familiares e de pesquisadoras e tratam o tema apoiadas na noção de reflexividade
das identidades, tendo em vista que estas resultam das interações sociais e culturais
construídas nas múltiplas situações da vida social e que são constantemente negociadas como,
no caso, com os limites entre o público e o privado, a objetividade e a subjetividade, a razão e
a emoção.
Desse modo, privilegiei trazer a descrição etnográfica e seguir com as reflexões na
tentativa de uma interpretação possível de um fenômeno no interior do meu universo familiar.
De certa maneira, traçar a trajetória da minha mãe é pensar em mim mesma. No entanto,
entendo que nela há situações que podem ser vistas a partir de uma perspectiva teórica, e é o
que busco traçar nesse momento.
Em um determinado momento, trouxe as memórias de Vovó Manoella e a convivência
intensa que minha mãe e seus irmãos tiveram com ela ao longo da infância e da adolescência.
Passavam as temporadas de férias escolares na fazenda da avó e esta, por sua vez, visitava os
netos com freqüência e permanecia por alguns dias com eles na casa em que moravam na
cidade. Eram ambientes muito diferentes, mas que continham um mesmo valor: locais de vida
e de memória, espaços de identidade familiar relatados com precisão através das lembranças
de minha mãe.
Nessa direção, a dialética da duração bachelardiana nos jogos da memória e na
etnografia da duração, indicada por Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha, afirma
105
GOMES, E. & MENEZES, R. Etnografias possíveis: “estar” ou “ser” de dentro. [on-line] in: PORTOUBE
– Revista do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo. Ano X, vol.2, n°3. Ed. NAU/USP.
Disponível via WWW no URL http://www.n-a-u.org/pontourbe03/Gomes&Menezesb.html#12. Capturado em
04/10/2008.
244
que a geração mais velha, ao restaurar as suas experiências, estará traduzindo seu passado
individual e suas referências coletivas de um tempo passado em uma perspectiva de um tempo
presente, de um tempo do momento narrado. Ou seja, ao narrarem suas experiências, a sua
vida, os mais idosos buscam “a lembrança dos acontecimentos que os criaram nos instantes
decisivos dos seus passados” (Bachelard, 1988, p. 39) e, ao contá-las aos seus descendentes,
constroem o espaço-tempo em que “o passado é revivido a partir de um encadeamento afetivo
necessariamente presente” (Eckert; Rocha, 2001, p. 32-5).
Nesse sentido, ao contar as suas experiências, o indivíduo ordena as decisões que as
constituíram, reconhecendo suas ações sábias para nelas buscar os princípios de continuidade.
Adota-se aqui a referência que faz Bachelard (1988) a uma temporalidade descontínua,
enquanto duração, baseada na afetividade do sujeito significando suas experiências.
Não obstante, pensar a tradição requer definir que a reatualização da mesma é o que
“autoriza” a sua permanência. Encontra-se na noção de “duração no tempo”, segundo Eckert e
Rocha (2001), as lembranças e reminiscências de um tempo vivido que são re-experienciadas
na medida em que integram um tema afetivo por meio da intenção em um presente.
Os ‘casos’ contados sobre a ‘vovó’ eram modelos de comportamento em diferentes
dimensões do cotidiano. Eles pouco eram repetidos, pois compreendíamos os relatos
imbuídos de sábia autoridade. Eles circulavam entre situações simples até aspectos mais
complexos da nossa vida doméstica. Todos eles iniciavam do mesmo modo: “como dizia a
vovó Manoella, quem quer dar não pergunta” – para ocasiões em que se recebiam
convidados, não se deveria perguntar se aceitavam algo, um chá ou um doce. O correto era
primeiro servir e evitar o constrangimento do convidado parecer indelicado em aceitar. Outro
era: “A mentira é muito feia e perigosa”. Como contava vovó Manoella, havia um menino
muito mentiroso na fazenda do papai. Um dia foram banhar-se na sanga e ele passou a afogar-
se. Como todos sabiam que ele era mentiroso, acharam que não era verdade o que viam.
Os mesmos casos contados aos filhos minha mãe relata aos netos, com o mesmo tom
professoral, ou seja, “a ação socializadora e educativa não terminou para esses indivíduos”
(Barros, 1987, p. 52). Considera-se importante o fato de que muitos dos netos ficaram aos
cuidados de minha mãe e sua irmã em uma situação de prestação de serviço. Esse convívio e
experiências do cuidado dos netos pela avó estabeleceram fortes vínculos de amizade,
cumplicidade e afeto. A casa dela é referência também para os amigos dos netos que, em
diversas situações, eram companheiros de refeições ou lanches da tarde. A conduta dos netos
– em aparecerem para almoçar ou lanchar e ainda levar um amigo – expressa uma relação
sólida de confiança e intimidade que se estende nas relações sociais mais amplas, nem sempre
245
aceitas nas suas casas pelos pais que repreendem esse comportamento: “se vais convidar um
amigo para almoçar, tens que avisar com antecedência”.
Minha avó materna, suas duas filhas e eu aderimos à profissão de professoras. Um dos
meus irmãos também seria professor se não tivesse optado pela carreira diplomática. As
experiências da vida cotidiana modificaram-se profundamente e herdar a profissão como um
bem simbólico não significa reproduzi-la, mas situá-la dentro de um contexto cultural e
histórico específico. Esse aspecto envolve imediatamente as atividades cotidianas serem ou
não abertas à escolha e, mais além, a escolha ser obrigatória. A geração da minha avó
materna, do final do século XIX e início do século XX, a profissão de professora era um fator
de distinção social em que estava em jogo ter ou não o conjunto de disposições (capital
cultural) fundamentais do estilo de vida, uma “espécie de bem de família que sempre
conhecemos e do qual nos sentimos o herdeiro legítimo” (Bourdieu, 1994, p. 97). Essas
disposições permanecem em grande medida na vida dos seus filhos, uma vez que os valores
nelas contidos são moldados por condições concretas de vida que os geram e que por eles são
definidas num estilo. De fato, as experiências vivenciadas na infância e os estados de
consciência que ali se desenrolam encontraram, na seqüência do tempo, apoio para a sua
conservação. Isto é, no caso de minha mãe, desde cedo assistiu às aulas da sua mãe, que eram
ministradas em sua casa, e com isso aprendeu a ler precocemente, ou ainda, no meu caso e de
meu irmão, desde cedo compartilhando o espaço de trabalho com minha mãe anunciado como
um lugar seguro em que “um cuidaria do outro à distância”. No entanto, essas disposições
sofrem alterações a partir de novos grupos sociais que vão sendo agregados à vida cotidiana e,
sobre as lembranças do passado, novos sentidos vão alterando seus contornos e a seleção
sobre o que lembrar. Certamente essas relações que mantemos com nossos contemporâneos –
que viveram grande parte dos mesmos acontecimentos – trarão vestígios que, diante da sua
evidência, novas reflexões serão operadas: “é assim que a memória se enriquece de bens
alheios que, desde que se tenham enraizado e encontrado seu lugar, não se distinguem mais
das outras lembranças” (Halbwachs, 2004, p. 82).
No cerne das profundas transformações da vida social nos últimos tempos, e a intensa
valorização do indivíduo promove a centralização das formas de agir e ser nos processos de
escolha e de inteira responsabilidade individual sobre elas - “que, depois de assumidos,
deveriam ser sustentados até o fim”. Esse fenômeno não está afastado dos contornos
tradicionais que se herda no interior do grupo familiar. No entanto, possibilita a ruptura com o
modelo em algumas situações significativas, próprias à dinâmica social. Nesse sentido, a
dimensão religiosa traz uma forte conformação à vida da minha família nas diferentes
246
gerações. Esse aspecto da tradição sempre foi a base para a sedimentação da confiança para a
continuidade da identidade e um dispositivo de orientação de outras relações de confiança –
“essa conduta revela uma profunda fé no ser humano”. A vivência religiosa construiu um
território simbólico de estabilidade e segurança amenizando, por um lado, as adaptações às
dificuldades que surgiam ao longo da trajetória familiar: as perdas, a doença; e, por outro
lado, dotando de “força e coragem” capaz de responder à necessidade e a problemas
concretos da nossa existência de maneira satisfatória. Seguindo a direção proposta por Geertz
sobre a atuação do antropólogo, a importância da religião está na capacidade de servir tanto
para um indivíduo como para um grupo; por um lado como fonte de concepções gerais
(modelo da atitude) e, por outro, como disposições ‘mentais’ enraizadas (modelo para a
atitude). “A partir dessas funções culturais fluem, por sua vez, as suas funções social e
psicológica” (Geertz, 1989, p. 140).
O modelo da atitude, portanto, pode ser visto como de compreensão sobre o que está
posto e não há como mudá-lo, trazendo ao enfrentamento dos desafios da existência uma
maior estabilidade emocional, quando encontramos no grupo familiar os laços de
solidariedade e afeto; por outro lado, o modelo para a atitude é de alçar-se positivamente
sobre o que pode ser transformado ou conquistado nos mais variados aspectos da nossa
existência, tendo como princípio um projeto partilhado de vida em que a crença ou a fé é um
dos vetores significativos das ações mais triviais às mais complexas da vida social.
As oportunidades de encontro com todos os parentes e amigos são cada vez mais raras.
No entanto, nos momentos em que essa possibilidade se concretiza apresentam-se ricos para
reafirmar os vínculos que se constituíram ao longo de uma convivência que atingiu a todos de
forma profunda. São momentos que favorecem as rememorações dos fatos positivos que se
compartilharam.
Um dos aspectos que interessa refletir é a origem familiar paterna. A família
desestruturada que citei inicialmente requer que seja feita uma observação sobre a figura de
meu avô. Sua família nuclear era palco de intensos conflitos diante da ausência da mãe – e
como foi conduzido o tratamento à sua doença – e a atuação distante que o pai impetrava aos
filhos. No entanto, com o falecimento do meu pai, meu avô passou a conviver conosco e a sua
presença sempre foi muito valorizada por nós e pela minha mãe. Por exemplo, na escola,
perto da comemoração do dia dos pais, não ter um pai era mais problemático entre os colegas
e entre as professoras do que para nós. Nosso avô era a figura paterna afetiva e cuidadosa que
simbolicamente estruturamos. Podemos dizer que, como pai, o Vô Agenor não merecia
muitos elogios, porém, como avô, foi uma figura importante na nossa infância. As lembranças
247
que mantemos denotam uma relação de afeto e um cuidado preocupado em projetar um futuro
seguro para os netos. Em certa medida, também tínhamos uma família desestruturada diante
do modelo hegemônico; no entanto, no nosso entendimento infantil, não tínhamos o pai, mas
tínhamos o Vô Agenor. Ele nos fez felizes com o papel que não soube conduzir como pai e
acredito que se sentia redimido com o papel de avô.
A viuvez precoce abriu outra possibilidade ao rumo da vida familiar. Os irmãos de
minha mãe sugeriram seu retorno com os filhos à sua cidade de origem. Decidiu permanecer e
ser inteiramente responsável pela educação dos filhos, tendo sido esse o maior motivo para
não retornar: as possíveis intervenções sobre o que lhe era mais caro. Sua decisão foi
reprovada pelos irmãos e há uma implicação sobre as relações de gênero que sempre foram
palco de conflito entre os irmãos. Meu pai faleceu em 1960, em um período que as mulheres
iniciavam uma trajetória de igualdade e de participação em âmbitos sociais mais amplos. A
sua resistência em atender a sugestão de seus irmãos não foi vista com simpatia, uma vez que
ia de encontro à visão própria da época histórica e fundamentalmente da cultura gaúcha
pampeana. De certo modo, os laços que os unia até então e que era alimentado pela presença
da mãe ainda viva foram sendo gradativamente afrouxados e hoje há pouca ou nenhuma
comunicação com o parentesco materno. Anos depois, a sua irmã veio morar conosco e
acompanhou esse desligamento gradual e, por ocasião de sua enfermidade que a levou à
morte, a ausência do irmão foi vista como a concretude da ruptura. Dentro dessa estrutura de
conflitos familiares, deve-se considerar a distribuição dos bens por ocasião da morte da minha
avó materna e, por conta disso, surgem acusações não reveladas, mas ressentidas pela
violação à memória da mãe e do pai que sempre viveram sobre a égide da ética.
Em contrapartida, minha mãe permanece em Porto Alegre com seus quatro filhos
pequenos, com as idades que variavam entre 1 e 5 anos. A sua atividade como professora era
fundamental para complementar o orçamento doméstico e nesse momento contou com uma
rede de ajuda entre os amigos e colegas de trabalho. A solução foi levar os filhos para a
escola, decisão que contou com a concessão da diretora, na época, uma vez que a idade para
ingresso era de quatro anos no Jardim de Infância. O filho menor ficava aos cuidados de uma
babá, supervisionada “de longe” pelos vizinhos.
Por ocasião da lista de convidados para a sua festa, minha mãe pensa em todos os
amigos que formaram essa rede que alguns, com o tempo, haviam perdido o contato. Nesse
momento, soubemos do falecimento de alguns e minha mãe pensou em desistir da
homenagem. Não obstante, a festa proporcionou o encontro de outros tantos amigos que
estavam distantes, mas em contato sistemático pelo telefone ou por troca de cartões. É
248
interessante no relato de um dos filhos a relação de “nomes” que a minha mãe recebeu nos
diferentes grupos que participa e seus correspondentes papéis sociais: “mãe, Dona Maria,
Xodó, Maria Caminha, a Mariazinha, a Tia Maria, a Vó Maria, a Bisa”. Ao grupo familiar se
restringe as expressões Mãe / Mãezinha, Vó Maria, Bisa, Tia Maria; ao grupo de vizinhança,
Dona Maria; ao grupo da igreja, mais especificamente dos padres, Maria Caminha; às irmãs
“de fé”, Mariazinha e às comadres, Maria e Xodó. O apelido Xodó é um caso curioso.
Quando morou no pensionato em Porto Alegre, fez muitas amizades, mas em especial a de
Daria Del Pino Alves, a Dadá. A amizade provocou apelidos entre as duas: Xodó, a minha
mãe, e Paquita, a Dadá. O apelido da minha mãe estendeu-se pela rede de parentesco de Dadá
e, até hoje, mesmo com a morte de Dadá, a família mantém o apelido. Quando nasceu o Beto,
seu segundo filho, homenageou a amiga convidando-a para batizá-lo. Na concepção católica
que define a escolha de padrinhos e madrinhas é que, no caso dos pais faltarem, serão esses
que assumirão a criação dos afilhados. Evidentemente que esta é hoje uma posição mais
simbólica do que prática, mas entregar um filho para alguém batizá-lo é estabelecer um
vínculo sagrado às relações entre as pessoas envolvidas, assumindo uma posição, às vezes,
bem mais sólida que os laços familiares. Segundo Cândido, ao estudar as transformações dos
meios de vida, das formas de organização social e da cultura do “mundo rústico” paulista traz
as relações de compadresco (afinidade espiritual dos compadres) e de compadrio (as relações
efetivas) que se estabelece pelo batismo de filhos entre as famílias da localidade. De forma
análoga, o sentido religioso impetrado às relações é percebido comum a outras esferas, como
na alocução de um dos meus irmãos: ele dirige-se aos filhos apontando as qualidades da mãe
e a coloca como modelo a ser seguido: de virtuosidade, de sentimentos de compaixão e fé.
É o olhar afetivo do filho, não há dúvida sobre isso, mas também a imagem que ela
construiu pelas suas realizações nos diferentes espaços sociais de que participa. Essa é uma
questão corroborada na fala do Frei Avelino, vigário da igreja que ela participa como membro
da Liturgia e como Filha de Maria. Corrobora, de igual modo, a homenagem das “irmãs de
fé”
106
ao homenageá-la com a música Como é grande o meu amor por você. Contudo, a forma
mais contundente de expressão de carinho e admiração foi a presença de todos os convidados,
tendo alguns se deslocado de outras cidades e estado e outros com imensa dificuldade de
deslocamento devido a comprometimentos de saúde ou idade.
106
Essa expressão recorrente na Igreja Católica traz a relação simbólica desta com a instituição familiar, que
antes foi acenado pela noção de “autoridade” proposta por Giddens (2002) e Duarte (2006), quando trata da
sacralização da família.
249
Beto encerra a sua fala com a lembrança da infância em uma situação que ele
vivenciara exclusivamente com nossa mãe. Ele a acompanhava até o horário em que ela
terminasse as tarefas domésticas para, então, dormir e preparar-se para poder enfrentar a
jornada de trabalho no dia seguinte. Lembrar aquele fato específico é querer dirigir-se à
pessoa e não ao núcleo familiar. É colocar pública uma intimidade e cumplicidade que se
constrói em uma relação de reciprocidade, de dom e contra-dom resultante de um grande
amor e gratidão.
As lembranças de infância da minha mãe, nas quais a Vovó Manoella era a
personagem central, orientaram a nossa educação como pequenos rastros a estruturar os
valores determinantes em um sistema de disposições sociais. As lembranças de seu filho, nas
quais a sua mãe é a personagem central na transmissão de um valor, um comportamento,
orientam seus netos.
A lembrança é, em larga medida, uma reconstrução do passado com a ajuda dos
dados emprestados do presente e, além disso, preparada por outras reconstruções
feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se
(Halbwachs, 2004, p. 75-6).
250
PARTE III
Capítulo 1
O valor moderno da reconstrução da memória
familiar
251
“Comunidade” é uma dessas palavras que transmitem uma sensação boa: é bom
“pertencer a uma comunidade”, “estar em comunidade”. Associamos a ela imagens
de um lugar aconchegante, onde podemos nos refugiar das ameaças que nos
espreitam “lá fora”, e de um mundo no qual gostaríamos de viver, mas que,
infelizmente, não existe. Em outras palavras, “comunidade” é hoje um novo nome
para o paraíso perdido – mas um paraíso que nós ainda procuramos, e que
esperamos encontrar (Bauman, 2003, p. 7).
As implicações do desaparecimento da comunidade trazem proporções diferenciadas
sobre as estruturas em que os indivíduos assentam a sua condição de sujeito no mundo.
Segundo Bauman, a noção de comunidade implica o “entendimento compartilhado
107
do tipo
‘natural’ e ‘tácito’” (Bauman, 2003, p. 17), e a manutenção desse entendimento dependia da
comunicação estar reduzida às suas próprias fronteiras. A ruptura das mesmas às
comunicações externas (acessibilidade a transporte, ingresso de pessoas com novas
informações, etc.) tornou a comunidade vulnerável e submetida ao afrouxamento de seus
laços diante de novos posicionamentos e entendimentos disponíveis pela exteriorização e,
portanto, geradora de conflitos, embaçando a distinção entre “nós e eles”. Essa ausência de
referência comum aos seus membros faz surgir a noção de identidade, que passa a ser
apregoada pelos indivíduos como forma de substituir a comunidade desfeita (Bauman, 2003,
p. 20).
Em outras palavras, as redes de interação governadas pelo hábito e severas rotinas que
serviam de sustentáculo às comunidades são substituídas pelos desencaixes e
desenraizamentos, frutos dos deslocamentos para as cidades que marcam o século XIX com a
chamada revolução industrial e o capitalismo moderno
108
. A ausência do entendimento
comum vivenciado comunitariamente em ritmos regulados pela natureza e pela tradição foi
substituída, então, por outra rotina “artificialmente projetada e coercitivamente imposta e
monitorada” (Bauman, 2003, p. 36), que promovia, em outro tipo de “engajamento”, a
interdependência entre as partes opostas nesse processo: governados e governantes. As
conseqüências desses movimentos sócio-históricos revertem em um conjunto de
representações socialmente definidas (ideologia) que valoriza o indivíduo como ser moral
(Dumont, 1985) dotado de autonomia e independência, resultante da negligência ou
subordinação à totalidade social. Os indivíduos passam a assumir diferentes papéis sociais
que os transpõem a múltiplas identidades em uma vida social estruturada em “um vaivém
107
“Tal entendimento não é uma linha de chegada, mas o ponto de partida de toda a união. É um sentimento
recíproco e vinculante; e é graças a esse entendimento, e somente a esse entendimento, que na comunidade as
pessoas ‘permanecem essencialmente unidas a despeito de todos os fatores que as separam’” (Bauman, p. 2003,
p. 14-5).
108
Segundo Alexis Tocqueville, a comunidade local já se encontrava em derrocada “antes do início da nova
ordem” (apud Bauman, 2003, p. 34).
252
constante entre os mecanismos de atração e repulsa” (Maffesoli, 2001, p. 78). A insegurança e
a ausência de referenciais situam os indivíduos em uma posição solitária sobre as incertezas e
obscurantismo diante do futuro, que os coloca em posição de busca em direção a uma “nova”
comunidade, com expectativas de um compartilhamento duradouro.
As identidades passam a ser, então, construídas, tendo como sustentação as esferas
sociais cuja estrutura representativa era percebida como coletiva e segura contra as incertezas
individualmente enfrentadas como a família, a vizinhança, etc. No entanto, a busca por essa
identidade é ambígua na medida em que os indivíduos querem vivenciá-la sem perder de vista
a liberdade e a autonomia que o processo de individualização promoveu. Por sua vez, a
comunidade pressupõe proteção e segurança e, ao retomar um mundo familiar, a sua
manutenção e proteção exigem erigir fronteiras bem definidas às possíveis investidas de
outros, de estranhos.
1.1 Festas de Família: a reinvenção de uma identidade?
A realização das Festas de Família busca a reconstrução de um espaço seguro de
relações de afeto e confiança, como muitos relatos explicitaram. Na tipologia orientada pela
teoria fenomenológica de Schutz, foram erguidas três modalidades nas festas perscrutadas,
tendo como base as intenções de seus agenciadores: as festas como modismo em tempos de
globalização, as festas no interior e as festas homenagem. Os relatos e os dados colhidos no
trabalho de campo acenaram para a fluidez nas fronteiras dessa tipificação. As festas não são
restritas exclusivamente a uma modalidade. Ou seja, a Festa da Família Brust foi apresentada
a partir do tipo “modismos em tempo de globalização”, no entanto, as festas homenagem
ocorrem anualmente na data de aniversário de Vó Selma, sempre organizadas por seus netos.
A Família Pretto participa das festas do tipo “modismo”, porém, realiza duas a três vezes no
ano festas na cidade do interior, de onde se originam os avós Ângelo e Ida. A Festa da Família
Scliar, que classifiquei como Festa Homenagem, poderia ser classificada como festa do tipo
“modismo” também. Enfim, o que importa trazer à luz é a função metodológica adotada a
partir da análise intencional, mas que essa não se encerra em si mesma e isso indica que o
objeto “festa” é construído pelos diferentes momentos que definem os modos como seus
agentes agem intencionalmente sobre ele.
As festas percebidas como ritos acionam crenças de pertencimento a partir de
memórias e trajetórias familiares, porém, as questionam e as modificam em um tempo
presente. Ou seja, as festas do tipo “modismo”, por exemplo, trarão como referência o casal
253
fundador de uma rede de parentesco e seus antecedentes e ramificações que se estenderam
pelo mundo. Esses antecessores foram os imigrantes que chegaram ao Brasil nos séculos XIX
e XX e deram origem ao ramo da família que aqui se estruturou. As memórias acionadas são
semelhantes ao que Ricoeur (2007) classifica como “memórias instrumentalizadas”, que
contêm a racionalidade segundo um fim (Weber), oposta a uma racionalidade segundo um
valor. Ou seja, uma “razão estratégica” oposta a uma “razão comunicacional”. Isto é,
O cerne do problema é a mobilização da memória a serviço da busca, da demanda,
da reivindicação de identidade. Entre as derivações que dele resultam, conhecemos
alguns sintomas inquietantes: excesso de memória, em tal região do mundo, portanto
abuso de memória; insuficiência de memória, em outra, portanto, abuso de
esquecimento. Pois bem, é na problemática da identidade que se deve buscar a causa
da fragilidade da memória assim manipulada (Ricoeur, 2007, p. 94).
O sentido que essa categoria traz à realidade das festas é que, em sua larga dimensão,
na qual grande parte dos indivíduos está unida apenas em torno de um sobrenome comum ou
liga-se por meio de uma mesma origem étnica. Inspirada em Paul Ricoeur, poderia sugerir
que, nesse caso, as memórias sobre a trajetória do antecessor e de seus sucessores não obtêm
ressonância, uma vez que evocam parte da linhagem, mais especificamente, dizem respeito a
uma parcela dos membros presentes.
Olha, nós chegamos lá e a festa era voltada para o imigrante que ficou no Rio. Foi
bacana de ver as fotos de antigos, da árvore deles, mas... quem gostou mesmo foi a
[Selma]. Ela até foi homenageada como a Brust mais idosa! (Elenise, a neta que
acompanhou Vó Selma à Festa da Família Brust em Nova Friburgo em 2002).
Contudo, o conjunto de emblemas sensíveis que estruturam as festas e organizam o
seu espaço físico com materiais e objetos – como a árvore genealógica, fotografias dos
antepassados e de festas ocorridas anteriormente – e outras ações simbólicas – como a
homenagem aos membros mais idosos, o relato da origem familiar – que visam à recriação do
grupo e a revivificação dos laços que unem uns aos outros, têm ressonância àqueles que são
envolvidos por ações mais pessoalizadas. Nessa situação que a neta de Vó Selma manifesta,
pode-se pensar a fragilidade da identidade de parentesco em um caráter puramente presumido,
pretenso. Para ela, a referência está nos parentes ou descendentes do imigrante que veio para o
sul, e sua presença nas festas de aniversário da avó ou nas férias que se reúnem em
Florianópolis são situações em que a identidade assume valor, tem efetivamente uma razão
comunicacional.
254
O que está em questão, por sua vez, é que a tradição reinventada atua em ambientes
pós-tradicionais. É importante dar ênfase à alteração sobre essa “contradição” entre o caráter
normativo da tradição, incorporado nos indivíduos tradicionais, e é associado à noção de
culpa pela transgressão à norma; enquanto os indivíduos pós-tradicionais vivem sob a
prescrição do caráter “reflexivo do eu”, que compreende escolhas organizadas em uma
espécie de planejamento de vida (que inclui constantemente o risco) associada, então, à noção
de vergonha “que corrói diretamente a sensação de segurança tanto no eu como nos meios
sociais circundantes” (Giddens, 2002, p. 143). Há esse deslocamento entre as duas
concepções sem, contudo, eliminar completamente desse cenário atual a culpa na medida em
que ainda persistem alguns envolvimentos morais.
Um dos exemplos claros que podemos trazer é a reinvenção da nobreza, reivindicada
pela família Von Wurmb, da Alemanha, como fator de distinção social e constitutivo de uma
identidade alicerçada na ancestralidade nobre
109
.
Dear Mrs França,
thank you for your interests. Sorry for the delay of my answer and my bad English.
We have a family association of our family in Germany. On our family meeting 4
years ago we decided to make a homepage of our family. I had a little bit
experience in programming HTML. So I said, that I will make this page in the
WWW. You will find the homepage: www.vonwurmb.de For the password protected
area: Username: XXX Password: XXX. But please be careful with these
information and the adresses in the protected area! Normally it is only for family
members. But I think, it is important for your research and your understanding.
Some essays are in English and in Brazil. Please inform, if you use something for
your doctoral thesis.
We have a family history with 4 volumes (1500 pages) from the year 1173 up to
now. For the internet we cannot publish 1500 pages. This was the reason I have to
read the family history and after this I was able to write a shorter essay for the
internet.
Reading our family history I found some information about our branch in Brazil.
Kurt Feodor von Wurmb (see powerpoint) migrated to Brazil in 1900. Until
1950 our family was in touch with our relatives in Brazil. But their closest relatives
in Germany died and had no children. So the contact was sleeping since 1950. I
found some adresses in Brazil and wrote some letters (addendum), for example to
Giselia Padilha v.W.
I think, there is no contact between the 3 branches of Kurt Feodor's sons today.
I got many emails and I am in touch with someone in Brazil (see powerpoint). They
are happy about the contact with our family in Germany. I hope some of them will
visit us and I also will come to Brazil in the next years. […]
110
There are a lot of gaps in our Brazilian family tree. Do you know some more "von
Wurmb family members" in Brazil? Could you please write me their email adresses.
If you need further information or you have more questions, do not hesitate to send
me an email.
109
A aristocracia alemã tem o poder político e econômico destituído no período da Unificação (1871) e os bens
perdidos pela aliança da Alemanha Oriental com a URSS em 1949.
110
Trecho inserido no Capítulo 1 da Parte II.
255
My best wishes for you and your family
111
Ingo von Wurmb
Essa correspondência foi enviada em 15.07.2007, após o contato que fiz por meio
eletrônico. O Sr. Ingo respondeu-me, buscando maiores informações sobre os seus parentes
que descendem de um imigrante chegado ao Brasil em 1900. Assim como na carta que dirigiu
à família Wurmb, em Canoas, acompanhada de fotografias da família e do castelo que a ela
pertenceu, apresentou-se como descendente de uma família aristocrática.
Os estudos sobre famílias das camadas altas da sociedade francesa (alta burguesia)
112
impetrados por Michel Piçon e Monique Piçon-Charlot apresentam um quadro importante a
ser pensado pela semelhança de figuras que, certamente, diferem hoje mais pelas implicações
dos acontecimentos que a modernidade tardia promoveu nas suas trajetórias do que o caráter
de classe dominante que ambas detiveram e, em certa medida, detêm.
O individualismo não tem lugar nesse meio e o indivíduo é, antes de tudo, o
representante de uma família e de uma linhagem. A rigor, é possível construir um
nome, mas o sobrenome é uma herança, o que implica muitos encargos para o
111
Prezada Sra. França,
Obrigado por seu interesse. Desculpe pela demora da minha resposta e meu inglês ruim.
Temos uma associação familiar da nossa família na Alemanha. Na reunião de nossa família, há 4 anos,
decidimos fazer uma página na Internet da nossa família. Eu tinha um pouco de experiência em programação
HTML. Então eu disse que faria essa página na WWW. Você vai encontrar a página no seguinte endereço:
www.vonwurmb.de. Para a área protegida o nome do usuário: XXX senha: XXX. Mas tenha cuidado com essas
informações e os endereços na área protegida! Normalmente, é apenas para membros da família. Mas eu acho
que é importante para a sua pesquisa e sua compreensão. Alguns textos são em inglês e em português. Por favor,
informe se usar algo para a sua tese de doutorado.
Nós temos uma história familiar com 4 volumes (1500 páginas), a partir do ano 1173 até agora. Na Internet, não
podemos publicar 1500 páginas. Este foi o motivo pelo qual eu tive de ler a história familiar, e depois disso eu
me senti capaz de escrever um curto ensaio para a Internet.
Pela leitura da nossa história familiar, eu encontrei algumas informações sobre nosso ramo familiar no Brasil.
Kurt Feodor von Wurmb (ver powerpoint) migrou para o Brasil em 1900. Até 1950 nossa família estava em
contato com nossos parentes no Brasil. Mas os seus parentes mais próximos na Alemanha morreram e não
tinham filhos. Portanto, o contato foi interrompido desde 1950. Eu encontrei alguns endereços no Brasil e escrevi
algumas cartas (addendum), por exemplo, para Giselia Padilha v. W. Eu acho que não existe hoje qualquer
contato entre os 3 ramos de descendentes de filhos de Kurt Feodor.
Recebi muitos e-mails e estou em contato com alguém no Brasil (ver powerpoint). Eles estão satisfeitos com o
contato com a nossa família na Alemanha. Espero que alguns deles nos visitem e eu também possa ir ao Brasil
nos próximos anos.
[...]
Há uma série de lacunas na árvore genealógica da nossa família brasileira. Você conhece mais algum "membro
da família von Wurmb" no Brasil? Poderia enviar-me os seus endereços eletrônicos?
Se você precisar de mais informações ou tiver mais perguntas, não hesite em enviar-me um e-mail.
Meus melhores votos para você e sua família. (Tradução livre)
112
A chamada “alta burguesia” na França compreende a antiga nobreza e a camada da burguesia que mantém um
alto capital econômico. Cabe chamar a atenção para o que Norbert Elias traz ao comparar as cortes francesa e
alemã, onde nessa última “as barreiras sociais eram mais altas, menos numerosos os contatos sociais e mais
consideráveis as diferenças em maneiras, durante muito tempo as discrepâncias e tensões entre as classes não
tenham tido expressão política, ao passo que na França, onde eram mais baixas as barreiras de classe e
incomparavelmente mais íntimos os contatos sociais entre elas, a atividade política da burguesia tenha se
desenvolvido mais cedo e chegado a uma precoce solução política a tensão entre elas” (Elias, 1994, p. 53).
256
beneficiário. [...] A importância da família nesse sistema é primordial. Ela
condiciona as modalidades da transmissão e, portanto, da reprodução. [...] Embora,
atualmente, o caráter formal do título de nobreza tenha desaparecido, a cooptação
que envolve os novos ricos – após passarem por seus exames junto a nobres já
experientes – continua existindo. A perenidade da classe pressupõe essa renovação,
sem a qual seu poder se enfraqueceria. A nobreza representa uma elite consciente de
si própria e preocupada em associar-se a forças vivas, necessárias à sua reprodução
(Pinçon; Pinçon-Charlot, 2001)
113
.
Considerando as devidas proporções diferenciais diante das trajetórias históricas, as
estruturas simbólicas conformadoras de um ethos de nobreza se constituíram em um tempo
muito remoto e, por conta disso, o que mostra nas comunicações trocadas com o Sr. Ingo, é
que o intuito maior é reordenar a linhagem que se dispersou diante dos golpes deferidos sobre
a condição de nobre em diferentes momentos da história da nação alemã. O paradoxo está no
fato de que, ao mesmo tempo em que se observa a desagregação dos sentimentos de classe na
sociedade, de modo geral, descendentes da antiga nobreza continuam altamente conscientes
de seus interesses e preocupados com sua coesão. No entanto, a família que descende do
imigrante Von Wurmb aqui no Brasil não buscou o contato, tampouco se interessou em
buscar aprofundar o próprio conhecimento sobre o passado, sobre a origem familiar. Relata
Gisélia, casada com um Wurmb (aqui não mantiveram o Von, como ocorreu com a família
Saltiel):
Ninguém se interessou. O pai do meu marido que já faleceu, talvez ele se
interessasse por isso. Meu marido... nem tomou conhecimento. Também, é tanta
coisa para pensar e parente que a gente não consegue visitar...
A observação de Gisélia traduz um estilo de vida muito diferente ao que o Sr. Ingo
detém como valor. Os processos migratórios que decorrem de situações dramáticas
(observável pela data da imigração e a data da Unificação da Alemanha que destitui a
aristocracia do poder) definem-se como rupturas com o território de origem, com o prenúncio
de um novo estilo sem o peso do trauma
114
e sem, no entanto, anular o ideal de pertencimento
ao povo alemão. A falta de interesse decorre também da ausência de qualquer informação
anterior que suscitasse a existência de parentes na Alemanha. Gisélia conta que a relação de
parentesco da família do marido é a da rede materna e confessa que nunca havia ouvido falar
na existência de outros parentes além dos limites do Brasil.
113
Michelle Piçon e Monique Piçon-Charlot in http://diplo.uol.com.br/2001-09,a49, consultado em setembro de
2008.
114
Sobre essa questão ver Woortman (1995) e Syferth (1994).
257
1.2 As Festas e a identidade religiosa
O intuito é dar continuidade às reflexões já iniciadas e o peso da religiosidade na
estrutura familiar. Nas Festas, em sua maioria, um dos momentos solenes que liga a
comemoração ao encontro familiar é a expressão religiosa percebida como um reforço
simbólico à sua unidade.
A Família Só sempre se caracterizou como uma família católica. O 1º Encontro
iniciou com um culto ecumênico feito por um padre de Bento Gonçalves e foi muito
bem aceito por todos. No 2º não teve, mas no 3º certamente vamos repeti-lo (José
Antônio Só de Castro – genealogista da Família Só).
As religiões universais
estabelecem um conjunto de crenças “cuja compreensão do
mundo propõem uma ética na qual o indivíduo escolheria, com maior ou menor grau de
autoconsciência, o caminho da sua salvação” (Ortiz, 2001, p. 59). Entre as festas que
compõem parte do universo pesquisado, todas as manifestações religiosas são de origem
universal: o catolicismo, o luteranismo e o judaísmo. Todas as famílias, da mesma forma,
mantêm os vínculos religiosos não mais sob o domínio do rigor dos rituais, mas como uma
“ética de ação no mundo”, seguindo a abordagem de Durkheim (1996). Esse sentido é
constitutivo da formação das famílias enquanto um valor aglutinador que imprime uma
“consciência coletiva”, que envolve e transcende o grupo.
As diferentes manifestações dos familiares abordam a presença de Deus e a Ele
creditam suas trajetórias. Não obstante, essa referência busca dar conta da pluralidade e
diversidade religiosa – ou a ausência dela – que hoje predomina na vida social. O elemento
religioso é aglutinador ao grupo familiar, mas não necessariamente atinge os indivíduos nas
suas singularidades, tendo em vista que crer ou não e crer em quem é, atualmente, uma
decisão pessoal.
Meus caros. Hoje se está realizando um grandioso acontecimento, um
acontecimento de vida, de existência, a história de uma saga levada com têmpora
através dos tempos. Somos a semente brotada, plantada em terra fértil, a mais linda
das terras, esse é o nosso chão. Daremos frutos por conseqüência, muitas serão as
sementes, e quando Deus permitir que nos encontremos mais vezes, nós veremos
também que não só o solo era fértil, mas depois tanto a semente, a semeadura
realizadas, hoje se festeja o presente com a alma bifurcada em dois horizontes
remotos, o de ontem, como se dirigíssemos nossos olhares ao início da caminhada, e
também acima de nossos olhos pra que enxerguemos o porvir, o amanhã, onde logo
estaremos com as graças de Deus (João Armando – organizador da Festa da Família
Valer).
258
Observa-se que João Armando, ao narrar a família, traz a saga da imigração, a
metáfora da terra fértil para referir os descendentes e os ascendentes, portanto, uma idéia de
terra prometida conquistada pelo trabalho em que a Família pode acomodar um passado
memorial e a projetar o futuro e, por fim, a imagem de Deus que “orientou e permitiu” que
ocorresse dessa forma. Esse conjunto remonta a uma realidade social familiar reconstruída
pela memória e fundada no encadeamento entre o reino dos contemporâneos, dos
predecessores e dos sucessores (Schutz, 1979), com o qual Paul Ricoeur adota para construir a
noção de memória compartilhada.
Os enunciados dos familiares que se manifestam nas Festas apresentam a característica
comum de alternar entre as memórias do passado fundador do grupo, do presente que é
compartilhado com seus contemporâneos na vivência da festa, propriamente dita, e na
experiência cotidiana comum – no trabalho, na cidade, na família nuclear, no lazer, etc. – e
uma projeção ao futuro em uma proposta de união e continuidade da família com a proposta
de realização de outras festas.
Cabe chamar a atenção sobre o lugar da religiosidade nas asserções, cuja atribuição
como um valor aglutinador é, primordialmente, uma fonte de moralidade que se estende às
futuras gerações (Durkheim, 1996). As festas apresentam-se fortes recursos para a adesão e
pertencimento religiosos, pois implicam a reprodução transgeracional na proposta de
consolidação do ethos familiar. Desse modo, observa-se, portanto, a negociação à aquisição
das disposições religiosas em relação à noção de projeto familiar elaborado dentro de um
campo de possibilidades. Ou seja, “os projetos são elaborados e construídos em função de
experiências sócio-culturais, de um código, de vivências e interações interpretadas” (Velho,
1997, p. 26). A sua formulação está vinculada a um campo de possibilidades definido
histórica e culturalmente. O projeto que as festas apresentam sobre essa questão específica
contempla a noção de permeabilidade às diversas opções religiosas, ainda que determinados
rituais (católicos, judaicos e testemunhos de fé luteranos) sejam privilegiados e justificados
como as religiões de origem familiar. As referências ao sucesso das trajetórias familiares, à
superação de dificuldades nas diferentes gerações, às graças recebidas ao longo das vidas
pessoais (incluindo a de ter nascido nessa ou naquela família) apresentam-se ensejadas pela
responsabilidade atribuída a Deus. Portanto, percebido como uma autoridade moral que
mantém e ordena positivamente a família, também é em seu nome que se divulga um código
ético-moral que define os padrões de conduta sobre o que é certo, próprio, adequado.
259
1.3 Projetos individuais e projetos familiares: um cenário de conflitos?
O tema Festa de Família sempre levou aos entrevistados a imagem de que o diálogo
estaria restrito a essa particularidade em um sistema complexo que envolve a vida familiar,
como de fato era colocado por mim ao marcar uma entrevista. Por vezes não houve uma
sinalização sequer à questão de conflito, tema habilmente evitado. Em outras situações, o
entrevistado, ao narrar a trajetória familiar, fazia menções aos conflitos, mas que esses já
haviam sido solucionados e pouco estendiam o relato sobre os mesmos. Algumas situações
foram percebidas empiricamente – ainda que já solucionados, os conflitos eram públicos.
Na Festa da Família Valer, um caso chamou a minha atenção. Já o citei anteriormente,
mas retomo para pensar sobre a perspectiva das soluções que são adotadas antecipadamente
para que a festas não sejam palco de constrangimentos ou desavenças. Trata-se da presença de
um rapaz com um menino mulato e o distanciamento que mantinham do restante da família.
Foram poucas as vezes que os vi interagir com outros parentes. Essa situação pode ser
analisada a partir da idéia de projeto individual em contradição ao projeto familiar, conforme
já assinalei ao nos referirmos ao tema da sociedade moderna com Gilberto Velho e Tânia
Salem.
Ao retornar com o casal que acompanhei, questionei o fato e Bermela contou-me sobre
o casamento do parente com uma moça: “boa, mas ela é negra”. A questão está centrada na
noção de projeto: o projeto individual e um projeto social mais amplo, porém, que engloba o
familiar, tendo em vista seu caráter político que dá sentido aos sentimentos individuais de
pertencimento a uma italianidade que luta para assegurar as suas fronteiras em defesa de uma
identidade étnica. A questão das fronteiras já foi discutida anteriormente e será retomada mais
à frente. No entanto, o que está por trás de um projeto individual não coincidir com o projeto
mais amplo é a região de conflito que é estabelecida. A observação do isolamento a que foram
submetidos também retrata a forte expressão simbólica que está por trás de sentimentos “de
traição”, e a presença dos dois parentes consangüíneos mostrava a força impositiva que a
dinâmica social detém em um mundo de sujeitos-indivíduos e, com ela, a possibilidade de
transformação. Em termos de Bourdieu, o campo de possibilidades não foi seguido por esse
indivíduo que quebra as regras de reprodução da distinção social (Bourdieu, 2007), colocando
na ordem da análise o tema da discriminação racial presente na modernidade nos processos de
redes sociais. A presença na Festa expõe a fragilidade dos discursos que dimensionam
generosamente as categorias adscritivas de italianidade e que implicam na valorização dos
casamentos endogâmicos. A solução para o conflito – a ausência da esposa e mãe dos
260
personagens – imaginada como encerrada, trazer a público o que havia como intenção
reprimir.
A outra situação em que o projeto individual não atende às expectativas do projeto
familiar, no caso, ocorre de forma mais privada. Em entrevista com a família Só, ao
questionar a motivação à realização da festa, foi exposta a busca inicial de Maria José pela
genealogia da família, elaborada por José Antônio, com o intuito de buscar a cidadania
portuguesa – passaporte europeu – para o filho, que iria morar um período em Portugal. Em
algum momento ao falar sobre os netos, Dona Edith, mãe de Maria José, refere-se a um deles
com um tom compreensivo sobre as dificuldades que ele estava passando. O assunto foi
interrompido por Maria José, mas a senhora deu continuidade, restringindo os detalhes que
poderiam ser colocados se não houvesse a interrupção. Conta Dona Edith que o neto, desde a
adolescência, passou a apresentar um comportamento mais “rebelde” – “adolescente, sabe
como é...” –, não quis mais estudar e pouco participa das atividades familiares. Os pais
sugerem que ele vá ao exterior, daí a motivação pela busca da genealogia e a possibilidade de
um passaporte que autorize uma maior permanência e segurança ao filho.
A ruptura com o projeto familiar
115
e a instauração do conflito que se estende ao estilo
de vida próprio das camadas médias altas e que fornece material para a constante reelaboração
dos projetos e identidades promoveram ajustamentos ao projeto inicial em busca de uma
solução. Dona Edith, ao mostrar-se afetada por essa questão, denota a pertinência ao que Lins
de Barros (1987) trata sobre a intermediação dos avós nas relações entre pais e filhos. No
caso, não é relacionada a uma ação propriamente dita, mas um sentimento de solidariedade ao
neto e estendendo-se na justificativa como inerente à condição da fase que se encontra no
curso da vida. O desvio foi anunciado como sendo o de abandono dos estudos, e a proporção
que essa “infração” toma no seio familiar não é clara, mas compreende-se séria dentro de uma
expectativa de classe que corresponde um modelo familiar elitista “que se subordina
regularmente à preeminência da dimensão de ‘corporatividade’, de ‘solidariedade de
linhagem’” (Duarte, 1994, p. 34). Observa-se, no entanto, a co-existência de dois códigos que
se evidenciam nos relatos familiares: aquele que reconhece como legítimo o valor atribuído ao
indivíduo e a sua possibilidade de escolhas e, por outro lado, o valor atribuído à família como
princípio social balizador. No caso, em específico, a tensão entre a lógica do grupo e a do
indivíduo levou a uma solução de um possível deslocamento do filho para a Europa.
115
Apóia-se à perspectiva de ruptura como um desvio das regras impetradas pelos valores familiares em
consonância ao lugar que ocupam na escala social. Ver Salem (1980).
261
O que se deve observar, seguindo a reflexão sobre as Festas de forma geral, é que os
dois casos que trazem tensões ao grupo familiar foram solucionados pela lógica da “evitação”
informada sob a dimensão da opção autodirecionada, como um valor de “escolha” atribuído
ao indivíduo.
262
Capítulo 2
A Família, a nação, a cultura e o pertencimento
263
A reflexão empreendida sobre “famílias” a partir da realização de Festas de Família,
ao longo do percurso percorrido entre a elaboração do projeto doutoral, o trabalho de campo e
a escrita desta tese, trouxe à tona temas transversais significativos para a compreensão do que
se pode pensar como projeto de reordenação dos vínculos de parentesco.
Este momento histórico que dá lugar para sentimentos de liberdade e expressão, de
intensa informação, de criação, de experiências em diferentes dimensões na vida social,
também dá lugar a solidões, perdas, relações efêmeras. Nesse sentido, observa-se um forte
apelo ao retorno no tempo sem, contudo, deixar de reconhecer que as mudanças nas formas de
estar e viver o mundo e que compreendem conquistas e enganos, segundo os dados colhidos
em campo. As mudanças são construídas pelos atores sociais, por meio de suas ações hábeis e
compreensíveis. A realização das Festas de Família seria, portanto, uma ação voltada à
intelecção, ao esforço sobre a importância de recriar a coletividade como base referencial às
gerações futuras.
Os conceitos de família são variados e manifestam a existência de compreensões
múltiplas, narradas singularmente, por meio de processos reflexivos apoiados nas
experiências vivenciadas e compreendidas subjetivamente através do “estoque de
conhecimentos à mão” (Schutz, 1979).
A família é a célula-mãe da sociedade. Devemos e temos a obrigação de bem
conduzi-la, de preservá-la. Esta é uma das razões destes nossos encontros. Neles
sentimos e damos testemunho da vida familiar. Havendo muito amor, respeito,
justiça e a imprescindível presença de Deus em nossos lares, nada precisamos
temer. É no seio de famílias bem constituídas que nascem nossos grandes líderes,
governantes, cientistas, cidadãos e cidadãs responsáveis e éticos, santos e santas de
Deus. A vida familiar centra-se no lar onde seus membros partilham suas vidas e
atividades. As mudanças que experimentamos no modelo familiar ocorrem face o
avanço científico e comportamental social. Exemplos: os modernos métodos de
controle da natalidade que possibilitam aos casais programar o tamanho da prole e
quando tê-la; a mulher cada vez mais trabalhando fora do lar e distante do filho; o
desquite, o divórcio e as uniões sem compromissos firmados com o futuro de si
próprios e da prole (Marines Calliari – organizadora da Festa da Família Calliari –
62 anos).
Eu, marido e quatro filhos fomos criados com muito diálogo e responsabilidade.
Com meus filhos o mesmo critério de dialogar e cobrar responsabilidade pessoal e
social. Pelo convívio responsável, sempre tivemos muita liberdade. Meus filhos de
23 e 18 anos vivem independentes desde os 15 anos, em cidade vizinha, Niterói, e
todos têm compromisso com trabalhos sociais, principalmente a caçula que vive em
NF comigo e tem 17 anos. Ela é a professora de um projeto em que trabalhamos as
danças típicas alemãs com adolescentes da escola pública, e tem tido muito sucesso.
A minha filha mais velha é especial, PC, com Id.M. de 3 anos, mas tem 28 anos de
idade (Dalva Brust – organizadora da Festa da Família Brust – 51 anos).
264
As duas concepções não se furtam de acionar elementos da modernidade importantes
na vida familiar. Contudo, as concepções estão pautadas nos códigos individualista e
relacional, articulados com ênfase a um ou a outro código em determinados aspectos. No caso
inicial, por exemplo, fundada em um “código relacional hierárquico, como uma das matrizes
da sociabilidade brasileira, que se condensa no imaginário do ‘familial’ e do ‘mundo da casa’”
(Machado, 2001, p. 6)
116
, traz ao final as mudanças dos arranjos familiares na
contemporaneidade, a referência aos processos contraceptivos e aos novos papéis sociais
femininos. Não obstante, no conceito impetrado por Marinês, a noção de família articula-se
sobre os eixos da religiosidade e de reprodução social acenando, portanto, como de fato
constrói o seu cotidiano. O segundo caso, por sua vez, de forma objetiva, Dalva traz o sentido
de família atribuindo preeminência à autonomia dos filhos, comprometida com os valores
familiares, e os projetos pessoais vinculados aos projetos familiares. Observa-se, portanto, a
articulação entre os dois códigos acima citados.
Sobre a inexistência de um pensamento unívoco sobre a família, já foi abordado em
situações anteriores, mas o fato de as famílias reivindicarem a sua reordenação é o que, de
fato, busca-se refletir a partir dos dados etnográficos. Reencontrar os “seus” é buscar o
reencontro consigo mesmo. O uso recorrente de que a motivação é “encontrar as raízes”
manifesta a relação de a família contemporânea ser construída com a individualização e dela
compartilhar a instabilidade. Nessa direção, as Festas de Família poderiam ser percebidas
como um vetor de reordenação de rede de pertencimento, do fortalecimento das identidades
familiares e de (re)criação dos vínculos afetivos entre os indivíduos pelo valor-família; e,
nesse mesmo processo, o de reafirmação do sentido de família enquanto um lugar que possa
abrigar as identidades fortalecidas por e com ela. A identidade familiar nas festas perscrutadas
está fortemente relacionada à genealogia, à descendência comum a um casal ou a um único
ascendente.
2.1 A reconstrução do parentesco
A genealogia é, com efeito, um discurso sobre o tempo.
Qualquer pessoa se encontra inscrita numa rede genealógica
116
MACHADO, Lia Zanotta. Famílias e individualismo: tendências contemporâneas no Brasil. In Série
Antropológica, n. 291. Brasília: UnB, Depto. de Antropologia, 2001.
265
organizada espacial e temporalmente, onde se misturam o passado e o
presente, onde se esboça o futuro (Zonabend, 1991, p. 185)
117
.
As famílias, de modo geral, recorrem à árvore genealógica como mais uma dinâmica
relacional que sensibiliza e promove momentos profícuos de interação. A sua elaboração
requer informações e contatos mais sistemáticos com a rede de parentesco, sem falar no
tempo que demanda a coleta de dados e a sua organização. Em algumas festas, recebe um
lugar destacado no ambiente e pode ser interativa, quando nela é disponibilizada a
possibilidade de preenchimento pelos parentes. O interesse em reconstituir a rede de
parentesco não é exclusivo dos membros longevos, como poderia ser deduzido pelas longas
vivências com a rede de parentesco ou pelo fato de eles terem um número maior de
informações adquirido por relatos. Entretanto, houve a constatação do interesse e a iniciativa
partirem de membros mais jovens. Na família Mundstock, é um jovem historiador residente
em Porto Alegre que resolve reconstruir a árvore genealógica; na família Scliar e na família
Ceccagno
118
, são dois jovens que assumiram para si essa tarefa. Os jovens, sem exceção,
adotam programas de computador específicos
119
para a elaboração da genealogia. Há outros
que adotam, também, como há quem elabore artesanalmente e um entrevistado usa a máquina
de escrever.
As tecnologias de comunicação – telefone, Internet, correio, etc. – apresentam-se
como fortes aliadas no árduo trabalho para compor as genealogias, pensado por meio de uma
analogia à tarefa de arqueólogos: a reconstrução das redes de parentesco com base em rastros,
indícios. Mais para frente, haverá a referência às tecnologias questão de modo mais
aprofundado.
Por enquanto, além de iniciador do levantamento, sou o principal coletor de nomes.
Já faz em torno de 10 anos que venho pesquisando. Uma Flach, aposentada, se
encarregou do 1º tronco: o do Mathias Flach. Dei para ela tudo que já possuía
sobre ele. A coleta é feita por contato direto, em visitas, pelo correio ou
computador. Já consegui cerca de 80 e-mails. É, porém, um número relativamente
pequeno quem, de fato, se interessa por esse trabalho, inclusive possuidores de
diploma superior... Agradecem o envio gratuito da colheita realizada... e
emudecem. As mulheres são mais colaboradoras e melhores conhecedoras das
famílias: nomes, datas, etc. O que é comunicado aparece: falecimentos, mesmo os
117
ZONABEND, Françoise. A memória familiar- do individual ao colectivo. In Sociologia: Problemas e
Práticas, n. 9, 1991. p. 179-90.
118
A família Ceccagno foi contatada quando estava em uma pesquisa exploratória para a elaboração do projeto
doutoral. Ricardo Ceccagno, um jovem na época com 22 anos, era o genealogista da família, e os relatos sobre a
composição dos dados é riquíssima, por isso citado apenas neste momento. Não consegui encontrá-lo mais e,
portanto, não consta como uma das festas no universo pesquisado.
119
Family Tree – Printery e MyHeritage Family Tree Builder.
266
da infância separações, adoções, filhos de mães solteiras, endereços, profissão,
telefones, e-mails... Embora as famílias sejam agora microscópicas em comparação
às de antigamente, o número de novos membros continua em expansão, aumentando
continuamente o número de galhos e, conseqüentemente, de frutos, embora os
‘galhinhos’ somente tenham um, dois, três. Os pioneiros plantaram 296 ramos.
Agora são milhares... Sinto-me feliz por haver descoberto para mim, para os demais
Flach e aparentados o berço da família e levantado tantos nomes; de haver-lhes
fornecido fotos da vilazinha dos avoengos pioneiros, de parentes de lá. Alguns
enviaram mensagens ‘ao vivo’ através de vídeo. Meu horizonte e de todos os
parentes que já tiveram acesso a tudo isso se ampliou enormemente. Os Flach de lá,
igualmente, têm agora outra imagem da grande família a que pertencemos (Irmão
Justo – genealogista da Família Flach – 86 anos).
O tempo genealógico é o tempo da longa duração que marca as estruturas como
sustentáculos e obstáculos sociais: regularidades, permanências, resistências, como teoriza
Braudel (1978)
120
. Ainda que se considere que os fatos se concretizam na ação dos indivíduos,
eles só os realizam em acordo com as condições históricas e sociais existentes. Irmão Justo
justifica a sua busca pelos antepassados como uma tentativa de entender as motivações que os
levaram a agir: “por que meu bisavô veio para o Brasil?”; “Como era a vida dos
antepassados na Alemanha?”; “Encontrar a casa que meu bisavô viveu me deu muita
alegria...”; “Sinto-me feliz por haver descoberto para mim, para os demais Flach e
aparentados o berço da família e levantado tantos nomes; de haver-lhes fornecido fotos da
vilazinha dos avoengos pioneiros, de parentes de lá”.
A tarefa realizada por Irmão Justo é bem peculiar. Ele elabora a árvore genealógica
pelos troncos dos três antepassados imigrantes separadamente, imprime e os encaderna para,
então, entregar àqueles que se interessam. Ao retornar com os novos dados, acrescenta-os aos
já existentes e entrega a outros membros daquele mesmo tronco. Refere-se às mulheres como
as maiores colaboradoras, detentoras de mais informações e que se disponibilizam a
pesquisar, lembrando a noção de kin work impetrada por Di Leonardo (1987) em uma
perspectiva de desconstrução da dicotomia “auto-interesse” e “altruísmo” inserida em uma
discussão “política e econômica”. Outra questão importante é o encurtamento das famílias ao
longo do tempo, a qual pode ser traduzida na análise de Segalen (1986):
En même temps que se développent ces interrogations nécessarairement introduites
par les chamgements matrimoniaux, l’obsession biologique de notre société en vient
à poser la question de la pérpétuation lamiliale en des termes également neufs. Les
nouvelles techniques de contraception (années soixante-diz) puis de procréation
(années quatre-vingt) ont bouleversé le donné biologique universel connu jusqu’ici :
dissociation entre sexualité et procreation, multiplication potentielle des géniteurs-
120
BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais: a longa duração. In: ______. Escritos sobre a história.
São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 41-77.
267
parents, possible bouleversement dans l’ordre des naissances et dans l’ordre des
générations (Segalen in Segalen; Zonabend, 1986, p. 12)
121
.
Ou seja, a produção da genealogia enquanto um “discurso sobre o tempo”, como
pondera George Balandier, pode ser relacionada ao mapeamento às representações sociais que
se configuram diante das transformações estruturais globais, muitas da quais de caráter
revolucionário como o feminismo, a chamada revolução cultural dos anos 60, etc. (Balandier,
1983, p. 107). Ou, ainda, como diz Marc Augé, “a relação ao tempo se coloca sempre como
singular e plural” (Augé, 1998, p. 81), pois não é só a memória de um indivíduo que está em
jogo, mas a memória “de um” é também a memória “de outro”, nos ensina Ricoeur (2000),
portanto de um “nós”:
Cada um de nós tem um nome que não deu a si mesmo, que recebeu de outro: em
nossa cultura, um patronímico que me situa numa linha de filiação, um nome que me
distingue na fratria. Essa palavra de outrem, depositada sobre uma vida inteira, ao
preço das dificuldades e dos conflitos que se conhecem, confere um apoio da
linguagem, um aspecto decididamente auto-referencial, a todas as operações de
apropriação pessoal que gravitam em torno do núcleo mnemônico (Ricoeur, 2007, p.
139).
A reordenação do parentesco situa os indivíduos em um lugar “Nós”, uma vez que cria
vínculos sociais por meio das relações de interação e da formação das identidades edificadas
em uma base irrefutável, uma ligação com os próximos que traduz tanto as relações de
filiação e de conjugalidade quanto as relações sociais que se estruturam em outras bases de
pertencimento. É expressão de memória compartilhada quando “ao envelhecer junto” implica
acontecimentos substanciais de nascer e morrer, sendo que “o primeiro escapa à memória, o
segundo barra os projetos” e, dentro do sistema de parentesco, a morte pode ser lamentada e o
nascimento pode ser celebrado pelos anteriores (Ricoeur, 2007).
O que espero dos meus próximos é que aprovem o que atesto: que posso falar, agir,
narrar, imputar a mim mesmo a responsabilidade de minhas ações. [...] Por minha
parte, incluo entre meus próximos os que desaprovam as minhas ações, mas não
minha existência (Ricoeur, 2007, p. 142).
121
Ao mesmo tempo em que se estabelecem essas questões, introduzidas pelas mudanças matrimoniais, se
coloca a questão da perpetuação familiar em novos termos. As novas técnicas contraceptivas introduzidas nos
anos 70 promoveram a dissociação entre sexualidade e procriação, a multiplicação potencial dos genitores e
possíveis alterações na ordem de nascimentos e na ordem de sucessão de gerações. A reprodução assistida abala
fortemente o parentesco patriarcal. As inovações biotecnológicas abalam a construção de nossa maneira de
vermos a nós mesmos. As respostas a essas questões conduzirão à mudanças radicais na esfera do parentesco
(Tradução livre).
268
A doação do nome que designa o indivíduo e designa a ele mesmo situa uma
expectativa de aprovação pelos próximos pela minha existência e cuja existência é aprovada
na reciprocidade e na igualdade de estima.
É interessante refletir sobre as mudanças de direção que os projetos erigidos podem
sofrer à medida que há o aprofundamento sobre os mesmos.
Minha prima começou a busca. Ela queria obter o passaporte italiano e precisava
do registro de nascimento de nosso trisavô que nasceu na Itália. Ela conseguiu
alguma coisa, mas depois tudo trancou. A partir do que ela havia conquistado, o
próximo passo que tomei foi ir ao Arquivo Histórico do RS, depois busquei na
Internet a lista telefônica de uma cidade dentro da região que sabíamos que meu
trisavô havia nascido e cheguei a Universidade di Bologna, onde tinha uma
professora de chinês com o meu sobrenome. Ela remeteu meus dados a um homem
italiano que pesquisava a genealogia da nossa família. Esse senhor consegue os
documentos que precisávamos, mas aí muda o foco do meu interesse... saímos em
busca das tentativas de reunir as duas árvores genealógicas: a da Itália e a do
Brasil (Ricardo Ceccagno – genealogista da família Ceccagno – 25 anos).
O caso de Ricardo é interessante, pois inicia com uma demanda da prima que almejava
o passaporte italiano e apela para Ricardo auxiliá-la na tarefa de encontrar parentes na Itália
que pudessem intermediar o envio dos documentos necessários para dar início ao processo de
requisição de dupla cidadania. Tendo o domínio técnico sobre a informática, Ricardo iniciou
uma busca e, à medida que foi colhendo os dados e aproximando-se do objetivo, decidiu ir
mais adiante na coleta, buscando os parentes mais remotos. Ele não nega o desejo de
conquistar a dupla cidadania, mas ressalta que reordenar o parentesco o fez buscar dados em
vários lugares, incluindo e valorizando o diálogo com parentes idosos no sucesso das
complementações e a coleta de imagens fotográficas que narram a história familiar. No
entanto, a busca da dupla cidadania é um aspecto importante a ser visto, uma vez que essa
ordem global traz a dimensão da modernidade ao lado dos recursos de comunicação e a sua
inferência sobre a rede de parentesco e a ancestralidade. É uma posição ambígua quando, por
um lado dispersa os grupos e, por outro lado, os une através da “redução” dos espaços que foi
conquistada pelas novas tecnologias das redes de comunicações.
2.2 Mudança de rumo: do sangue ao afeto?
Nas famílias que essa tese se valeu para analisar, observa-se o deslocamento sobre os
valores que preponderam à rede de parentesco. No caso da construção da genealogia, os laços
de sangue e ascendência comum são altamente valorizados e orbitam em torno do “nome de
família” – incluindo o destaque ao homem que perpetua o nome ao longo das gerações. No
269
entanto, as práticas sociais denotam um rumo diferenciado à concepção de parentesco, de
pertencimento a uma rede. Nas festas perscrutadas, o parentesco por afinidade apresentou-se
valorizado pelos parentes:
Ontem, hoje, amanhã se fazem constantes na história de uma família, de uma
família como a nossa, que teve a sorte de ter sido agregada a outros sobrenomes
distintos, a da maior e mais qualificações da nossa genética, não irei citar nenhuma
delas porque elas no meu coração e no nosso coração são Valer, como também tem,
somos um tanto delas, nos desígnios são os mesmos e mesmos são os sentimentos.
Por fim, um agradecimento especial a todos que compartilharam da nossa
congregação, a todos que trabalharam para a realização deste sonho, que nada
mais é do que uma homenagem aos nossos antepassados e uma grande lição de
afeto aos que estão ainda por escrever sua página na nossa história (João Armando
Valer – organizador da Festa da Família Valer – 46 anos).
De igual modo, houve a manifestação de um parente afim, observando que estava em
vantagem por estar ali por escolha:
Boa tarde, eu acho que muita gente da família Valer já me conhece. Eu fui, sou
Lena, vou ser sempre a cunhada do Armando... eu sou irmã da tia Lu, quer dizer, eu
sou Valer por “tempo de casa”, porque eu digo sempre, eu passei muito mais tempo
com o Armando do que muitos de vocês que são parentes de sangue. Parentes de
sangue nós não podemos escolher, família nós não escolhemos, agora aqueles que
não são família, que nós queremos guardar em nosso coração, nós podemos
escolher, com certeza. E é por causa disso que eu digo: eu sou Valer... também, sim,
por causa da ligação muito forte que eu tinha com o Armando e por todos aqueles
que me conhecem e que me acolheram e que eu sei que tem muito carinho.
Independente da Cila (sic) ou não, eu quero deixar aqui meu muito obrigado e dar
parabéns para todo mundo e eu tenho certeza que estou falando do nome de todos
aqueles que são os agregados da família Valer. Muito obrigada (Lena – cunhada de
Armando Valer – 30 anos?).
Na Família Rocha, por exemplo, o membro da família que seria homenageado era a
esposa de um consangüíneo, como relata Paulo:
Dos oito filhos, todos foram casados, então seriam dezesseis, os Rocha e as Rocha,
descendentes diretos. Os oito já morreram, e dos genros e noras, só uma nora é
viva, só a Tia Olga que é viva. Então eu devo convidá-la no sábado pra fazer uma
abertura oficial do encontro. Eu até já falei com os filhos dela para não avisarem,
só avisar no sábado [dia da festa], porque senão ela conta para todo mundo que ela
vai fazer a abertura da cerimônia. É uma surpresa para o grupo, às vezes estás
sabendo e nem a tua esposa sabe. É o caso do outro casal que é filho dela (Paulo
Rocha – organizador da Festa da Família Rocha – 44 anos).
Ainda trago a homenagem que a minha família festejou e que foi inteiramente
organizada pela minha cunhada, Beatriz. A sua relação com a minha mãe é muito forte e de
afeto mútuo. Porém, cabe fazer uma observação sobre a relação da minha mãe com os
270
parentes afins, especificamente, os que casaram com seus filhos: duas noras e um genro.
Trata-se de uma ênfase que eventualmente é feita sobre os netos. Quando a ela é relatada
alguma ação dos netos que denote virtude, ela imediatamente comenta: “puxou ao fulano” –
evidentemente, trata-se de seus filhos ou de sua filha. Quando o relato trata de algo
repreensível, uma característica não elogiosa, ela comenta sem nenhum constrangimento:
“Ah! Puxou ao cicrano” – tratando-se de suas noras ou genro. Essa situação é sempre motivo
de risos e brincadeiras, porém; ela não deixa de registrar que, ao tratar dos filhos, a relação é
notoriamente hierárquica.
Portanto, na esfera da família e do parentesco, as relações de aliança e afetivas são
atualmente mais valorizadas tendo em vista que estas se estabelecem sobre parâmetros não
definitivos, com observância às transformações ocorridas na vida privada. Deve-se chamar a
atenção que atualmente não se prevê o parente por afinidade exclusivamente àqueles
alicerçados ao casamento, nem aos casais que se estruturam sem as formalidades
institucionais. A rede de amigos, as comadres, os vizinhos confirmam iguais vínculos de
lealdade, solidariedade e afeto e relacionam-se, em muitos casos, em uma recíproca afetiva
mais intensa que com os consangüíneos.
2.3 A força da identidade étnica
As Festas de Família apresentaram a etnicidade como uma característica importante
acionada pelo culto à ancestralidade. As relações familiares constroem as suas identidades
sociais tendo nos valores “etnia”, “memória”, “família” e “religião”, entre outros, o sistema de
valores (“ideo-logia” para Dumont, 1983)
122
no jogo narrativo de pensar-se como grupo de
identidade (Soares, 1981).
Tendo por base que “os grupos étnicos são categorias adscritivas e de identificação
que são utilizadas pelos próprios atores e têm, portanto, a característica de organizar a
interação entre os indivíduos (Barth, 1998, p. 196), a construção dessas categorias – que vão
ao encontro do culto à ancestralidade, à adoção de estilos de vida e de consumo, à
aprendizagem em cursos de língua e culturas italianas, por exemplo – assume uma força
simbólica significativa. A “invenção” do evento Festa de Família é relatado por alguns como
uma forma de resistir, de lutar contra o esquecimento, contra a possibilidade de não se ter
122
Para Dumont, a sociedade ocidental moderna é a única que dissocia fatos e valores e, nessa sociedade, se constata
um paradoxo: no plano de sua “ideo-logia”, a Parte (indivíduo erigido em valor axial) engloba o Todo (a sociedade
como totalidade), fundando o que Dumont denomina ideologia anti-sociológica.
271
mais o lugar onde se reconheçam na origem comum, uma vez que as experiências interativas
foram sistematicamente diminuindo diante das mudanças de moradia, de deslocamentos a
cidades maiores e que ofereciam oportunidades de estudo e de trabalho. A relação entre as
gerações é revelador das referências identitárias a partir das quais os sujeitos pesquisados
concebem sentido às suas trajetórias e ao sentimento de pertencimento étnico.
As diferenças entre os grupos étnicos que descendem de imigrantes europeus são
significativas pela intensidade das características persistem em que cada uma, bem como os
diferentes usos que fazem dessa descendência. Com base nesse aspecto, é de importância
ímpar compreender as condições sociohistóricas em que ocorreram as imigrações e os lugares
ocupados por elas na sociedade rio-grandense. Em vista disso, à medida que cada personagem
for adotado, constará em nota de rodapé um breve histórico da imigração, situando o leitor
sobre dados que forem analisados, às vezes, muito próprios da etnia referida.
Por meio das narrativas que seguem, busca-se dar conta da problemática da
transmissão de valores, ethos e visão de mundo construídos na relação geracional, mais
especificamente através da narrativa dos familiares que, ao transmitirem suas memórias e
reminiscências, socializam seus filhos e netos na tradição de seu ethos de pertencimento,
fortemente enraizado em uma trajetória de descendência imigrante, bem como ressituam esses
valores no contexto do tempo presente, reordenando-os nas novas condições socioculturais
produzidas pela imigração para o Rio Grande do Sul.
Eu fui professora de alemão por muito tempo e, fora isso, eu dava cursinhos, e a
Cristine [filha] sempre me acompanhou. O Daniel [filho] esteve comigo mesmo
nessa escola evangélica alemã. Mas, quando eles eram pequenos, nós também só
falávamos alemão. Quando a Cristine nasceu, ele [Daniel] falava alemão com a
irmã e, com os amigos, em português. Então ele gravou muito mais o alemão do que
a Cristine... Em 2000, ele foi pra Alemanha, porque até 2000 nós já tínhamos
recebido amigos aqui. Na verdade, em 99 eu fui bolsista e daí eu fiz amizades e eu
gosto muito de escrever carta e respondo... Então eu mantive essas amizades que
eu fiz lá. E as pessoas começaram a vir, e aí vieram ‘esses’ Mundstock e veio minha
professora. E o Daniel ficava só escutando (Olívia Mundstock – organizadora de
uma das Festas da Família Mundstock)
123
.
123
A história da imigração alemã no Brasil, de forma bastante resumida, em específico na então Província do
Rio Grande de São Pedro, teve seu início a partir de 1824, com a criação da Colônia Alemã de São Leopoldo.
A “Alemanha” no século XIX vivia um período histórico crítico, de grande instabilidade política em virtude das
guerras pela unificação. A população era excessiva e a carência de terras agrícolas a levava à condição de semi-
serva dos grandes proprietários, bem como ao enorme índice de desemprego, conseqüente do processo de
industrialização em detrimento à tradição agrícola, atividade que dominava a região de onde saíram os primeiros
imigrantes. Com isso, a propaganda da América baseada na abundância de gêneros alimentícios e em terra
própria era razão para arriscar a sorte e investir os escassos recursos em uma passagem para o continente
americano.
Os núcleos brasileiros de colonização eram determinados, inicialmente, pelo governo imperial. As primeiras
levas de colonos oriundos do território do Hunsrück, região das montanhas entre o Reno e o Mosela, foram
estabelecidas no Vale do Rio dos Sinos, mais precisamente, na Real Feitoria do Linho-Cânhamo –
272
À compreensão desse aspecto, deve-se considerar que a identidade é um produto do
meio, com base nas discussões de Bourdieu (1989, p. 112-7). Refletindo a construção da
regionalização, o autor considera que os critérios étnicos como língua, dialeto ou sotaque são
objetos de “representações mentais” da prática social de indivíduos de uma dada região
comum, configuradas por bandeiras, emblemas, entre outras significações coletivas,
contribuindo, assim, para a consolidação da identidade social.
O discurso regionalista é performativo, que tem em vista impor como legítima uma
nova definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim
delimitada [...] O ato de categorização, quando consegue fazer-se reconhecer ou
quando é exercido por uma autoridade reconhecida, exerce poder por si: as
categorias “étnicas” ou “regionais”, como as de parentesco, instituem uma realidade
usando do poder de revelação e de construção exercido pela objetivação no discurso
(Bourdieu, 1989, p. 117).
Não obstante, a manutenção das características como o dialeto ou a língua estão
implicados também na interação com outras culturas. Em um determinado momento, a língua
alemã foi fortemente rejeitada, respondendo ao processo de nacionalização por volta da
década de 40. Vista como estigma (Goffman, 1988), reflete no abandono pelas gerações mais
novas.
Mas o alemão se perdeu um pouquinho porque era feio falar alemão, era grosso. O
cara que falava alemão [na picada]
124
não era considerado grosso, mas eu me
lembro que quando a gente também veio do interior, e quando eu vim para o ginásio
aqui, eu nunca tive vergonha de falar alemão. Eu falava alemão de propósito para
uma prima minha na sala de aula. Eu tinha uma colega que ficava braba, braba,
braba, mas a gente falava alemão. Então eu sempre tive esse gosto pela língua.
Nunca, nunca, me envergonhei de saber alemão (Ivo Mundstock – organizador e
genealogista).
estabelecimento do Governo e propriedade agrícola que abrigava em uma casa-grande, de pedra, o centro das
atividades, a moradia do feitor e senzalas, onde moravam os escravos – espaços desativados em março de 1824 –
passaria a ser o início de uma colônia com imigrantes alemães, denominada, então, de Colônia de São Leopoldo.
À medida que chegavam os imigrantes e multiplicavam-se os membros das famílias, ficou ao encargo do
governo provincial a fixação de novas levas e de novas famílias descendentes dos primeiros imigrantes. Essas
foram distribuídas em áreas mais afastadas. Em outro período posterior, o terceiro, a iniciativa privada passou a
gerenciar o movimento imigratório, criando novos núcleos de colonização.
Esses três momentos – que tinham em comum o projeto econômico e sociocultural das autoridades brasileiras,
que consistia no povoamento rápido e denso do sul do Brasil – foram decisivos na transformação da paisagem
dos Vales do Sinos, do Caí, do Taquari, do Pardo e do Jacuí. Em meados do século XIX o Vale do Rio dos Sinos
apresentava-se bastante populoso; as terras disponíveis já estavam nas mãos dos imigrantes alemães e seus
descendentes nascidos no Brasil. À proporção que novos imigrantes chegavam, ou mesmo os descendentes
passavam a constituir família e necessitavam de terras próprias para desenvolver, empresas colonizadoras de
capital privado encarregavam-se de comercializar terras devolutas.
124
“O termo Picada, ou Linha, designa uma vizinhança rural, com sua igreja, escola, casa comercial.
Originalmente, era uma picada aberta na mata, ao longo da qual se dispunham os lotes de cada colono. A picada
tornou-se o padrão tradicional de organização espacial e social dos colonos. Hoje, os invasores de terras no
Paraná, descendentes de colonos, procuram replicar esse mesmo padrão nas terras invadidas (Woortmann, 1994,
p. 21 apud Viana, 1992).
273
A identidade étnica está ancorada na idéia de descendência comum em que “os atores
a utilizam para categorizar a si próprios e a outros, no propósito de uma interação” (Barth,
1998, p. 213).
É um pouquinho de dedicação de cada um de nós para relembrar e fazer a nossa
história, como disse e volto a dizer, como é que nós contaríamos a nossa história no
futuro se nós não conhecemos o nosso passado? Se nós não sabemos da onde
viemos, quem somos, a quem pertencemos? O meu desejo nesses Encontros da
Família, na Festa da Família Valer, é para que cada um de nós aqui possamos
refletir a importância desse momento, ou que diriam os nossos pais se estivessem
aqui, os nossos avós? Isso... eu gostaria que cada um pensasse, nesse momento se
estamos aqui é porque antes de nós existirmos, alguém, e alguém que também teve
esse sobrenome que nós temos, alguém que tem essa origem que nós temos... Então
é necessário para a nossa história, para a história da nossa família, para os que
vierem depois de nós, nós podermos conservar, nós mantermos vivo dentro de nós a
nossa origem, a nossa história, em nenhum momento duvidarmos quem somos,
muito pelo contrário, que sintamos orgulho, que a gente possa se sentir orgulhosos
de sermos e pertencermos a família Valer. Essa família Valer tem uma história em
Nova Bréscia, que tem uma história por todo esse Estado, por todos os recantos,
que tem uma história da origem italiana aqui no Brasil (Noeli – organizadora da
Festa da Família Valer – 53 anos)
125
.
125
Os imigrantes italianos chegaram ao Brasil por volta de 1875 cujo processo migratório é fruto de processos
mais amplos e concomitantes: o nacional e o internacional. Com origem em um projeto do capitalismo europeu
de expansão, as metas do governo brasileiro, no que diz respeito às levas que vêm para o sul, visavam à
ocupação de áreas com baixa densidade e uma efetiva delimitação de fronteiras, mas que, no seu interior, inclui
objetivos implícitos tais como o branqueamento e recatolização dos estados meridionais brasileiros (PEREIRA
apud ZANINI, 2006, p. 11).
O quadro abaixo, retirado de um site especializado em processos de aquisição de dupla cidadania, mostra uma
perspectiva sobre a imigração italiana no RS. Os quadros na página seguinte buscam sistematizar como se
posicionaram geograficamente os italianos imigrantes e as datas de entrada das levas de imigração:
A presença dos imigrantes italianos e de parte de seus descendentes passa por momentos históricos significativos
na afirmação de sua condição étnica. Ao aqui chegarem, se depararam com uma conjunção significativa de
etnias, cujas diferenças denotavam a existência de outros mundos possíveis ignorados por aqueles que deixaram
um único mundo visto, até então, como absoluto. Outro aspecto relevante é que não se pode afirmar a existência
de um modelo de etnicidade italiana, uma vez que a vinda dos imigrantes – expulsos pela miséria e atraídos pelo
sonho da terra (Maestri, 1998, p. 5) – abarcava diferentes regiões da Itália recentemente unificada. Isso remete à
compreensão de que o processo de unificação dos pequenos estados sob o domínio de potências estrangeiras
resultaria no Estado-nação italiano e que a formação de um único povo seria desenvolvida em um lento processo.
No sul do Brasil, essa diferença é reconhecida por meio dos dialetos, de alguns costumes e hábitos específicos e
pela origem anunciada: italiano da Lombardi, do Vêneto e do Tirol. Esse aspecto implica em uma identidade
étnica marcada pela origem reconhecida com supremacia pela memória de seus descendentes, seguida das
relações de consangüinidade e parentesco. Ou seja, os descendentes reconhecem-se e são reconhecidos com uma
origem distinta do restante da sociedade brasileira pluralista e reivindicam tal condição. Do mesmo modo,
trazem dentro desse grupo mais amplo diferenças pontuais que os colocam em grupos mais reduzidos, cujas
fronteiras são expressas em organizações sociais diferenciadas, bem como em dialetos e hábitos distintos.
Não obstante, a presença dos ítalo-brasileiros é marcada por experiências singulares que Zanini aponta os “eixos
narrativos pelos quais a identidade étnica era invocada: a travessia, a colonização, o período do Estado Novo e os
últimos anos, quando se introduziu uma nova discursividade positivada acerca da italianidade” (Zanini, 2006, p.
3 – ABA Goiânia).
Com o intuito de retomar as motivações dos ítalo-brasileiros para a realização das Festas de Família, vale rever
que as comemorações sobre um século de colonização italiana no Rio Grande do Sul trazem à tona, aos
descendentes que estavam em situação de favorecimento nas escalas social e econômica, o desejo de visibilidade
às suas origens distintivas no âmbito da sociedade nacional. Nessa direção foi feita uma série de investimentos
pelos descendentes, bem como de instituições italianas, que contribuíram significativamente para a revivificação
e valorização da cultura italiana. Esse movimento trouxe a positivação do imigrante italiano de modo, inclusive,
a atribuir-lhe exclusivamente o desenvolvimento e crescimento do Estado do Rio Grande do Sul.
274
As fronteiras erguidas em torno da auto-atribuição de uma identidade italiana
mostram-se centradas ora na origem ancestral e descendência que lhe atribuem um nome e
sobre ele pesa a obrigatoriedade de zelar moral e socialmente, ora em uma história construída
no interior da sociedade mais ampla que cria o vínculo entre o individual e o coletivo, entre o
indivíduo e a sociedade.
2.4 A nação: como se (re)constrói o pertencimento?
O projeto da modernidade contempla múltiplas seqüências e o tempo perde o sentido
da linearidade e do anonimato. Seus diversos focos organizam-se subjetivamente, onde os
indivíduos constroem suas relações sociais e suas narrativas do presente. As noções de
liberdade e autonomia são essenciais para estabelecer vínculos, articulações. Refletir sobre a
reflexividade em um “espírito” de cooperação com o peso da responsabilidade de sentir-se
pertencer é um atrativo à liberdade e à alegria. Compreende-se, e muito tem sido analisado
sobre esse momento histórico como um período em que os vínculos se diluíram e que é
ilusório pensar que poderiam ser reconstruídos
126
. No entanto, as Festas de Família, por
exemplo, podem ser vistas como uma estratégia dos sujeitos conquistarem “velhos” vínculos
sob uma configuração atualizada nos ideais de liberdade e autonomia. Ou seja, a busca pela
ancestralidade ocorre por algumas motivações bastante definidas, ainda que secundárias.
Essas motivações engendram uma classificação não muito explícita, mas que configura uma
forma mais ou menos comum de ação em grupos familiares oriundos dessa ou daquela etnia.
As motivações nas famílias de origem italiana, além dos objetivos de culto aos antepassados e
a reordenação dos laços de parentesco, estão muito marcadas pela conquista da dupla
cidadania
127
. Essa reivindicação passa a ser recorrente em um momento em que convergem
inúmeros fatores: a comemoração dos 100 anos da imigração italiana na década de 70 do
Desde os primeiros tempos da colônia, as festas eram promovidas como um espaço onde se desenvolviam
sociabilidades, agregação e congregação inter e intra comunidades; nelas firmavam-se alianças financeiras, de
matrimônio, religiosas, etc. As comunidades italianas de forte religiosidade católica tinham nos festejos
paroquiais, dos santos padroeiros, uma tradição comum, que permitia reafirmar as relações entre pares de
trabalho, entre familiares, entre amigos e acomodar os problemas cotidianos na reafirmação dos laços de
solidariedade que esses momentos defendiam.
126
Bauman, 2003; Baudrillard, 2008.
127
A conquista da dupla cidadania se traduz na conquista da nacionalidade italiana, que é regulada
fundamentalmente pela Lei nº 91, de 15 de fevereiro de 1992, não sendo, todavia, enunciada de forma direta em
nenhum trecho da Constituição Italiana. O princípio básico da nacionalidade italiana é o jus sanguinis, ou seja, é
cidadão italiano o indivíduo filho de pai italiano ou mãe italiana. Não há limite de geração, mas sim requisitos
que acabam limitando o acesso ao reconhecimento formal da cidadania para uma parte significativa dos
descendentes de italianos (Informação retirada do endereço eletrônico http://www.dupla.cidadania.nom.br/
cidadania_brasil.htm#_note-0 em 16.09.2007).
275
século XX e a recuperação de ressentimentos criados pela desvalorização sofrida no período
da campanha nacionalizadora promovida pelo Estado Novo quando o Brasil lutara contra o
eixo formado pela Itália, Alemanha e Japão na II Guerra Mundial. Do mesmo modo, há a
influência da consolidação da união européia ao final da década de 80 do século XX e os
incentivos do governo italiano na promoção da visibilização e valorização da cultura italiana
com a criação de cursos de língua italiana subsidiados, bem como o auxílio à criação de
centros de pesquisas genealógicas. Um fator preponderante sobre a demanda citada é a
flexibilidade da legislação italiana
128
que concede a dupla cidadania, que se mostra
semelhante à polonesa e diferenciada da legislação na Espanha
129
. Algumas vantagens na
busca desse dispositivo apresentam-se na possibilidade de trabalhar em qualquer um dos
países da União Européia – no caso da cidadania italiana, a abrangência é muito maior, uma
vez que um bisneto de italianos poderia trabalhar legalmente na Espanha, enquanto um
bisneto de espanhóis não poderia. E o outro fator significativo é a ausência da obrigatoriedade
de vistos de entrada nos Estados Unidos em passaportes da União Européia.
As facilidades que decorrem provocou a procura de brasileiros pelo documento
italiano, “principalmente no Brasil e na Argentina, que exibem as duas maiores comunidades
de oriundi”, segundo o site http://www.dupla.cidadania.nom.br. O site traz a informação de
que dos 760.000 processos de cidadania em análise na Itália, 500.000 são de brasileiros.
Nessa direção, há inúmeros sites que oferecem seus serviços para reordenar o parentesco, para
buscar a história das linhagens (sobrenomes) e para desenvolver os procedimentos para a
conquista da dupla cidadania. No caso da descendência italiana especificamente, observa-se
que a conjunção de fatores na década de 1990, tais como a aproximação e os investimentos do
Governo Italiano junto às comunidades ítalo-brasileiras e a legislação italiana que autoriza a
dupla cidadania em uma proporção maior de descendentes, traz novos sentidos ao
pertencimento étnico (italianitá). É nesse período que marca o boom das celebrações dos
descendentes italianos no Brasil.
128
Em linhas gerais, filhos, netos e bisnetos do italiano têm direito à dupla cidadania italiana, agora também para
tataranetos, desde que se descenda de um cidadão italiano nascido na Itália. A emenda constitucional de revisão
nº 3, de 7 de junho de 1994, em seu art. 12, parágrafo 4º, inciso II da Constituição da República de 1988 diz que,
todo brasileiro que, por critério do jus sanguinus (ou jure sanguinis) for considerado também italiano, poderá ser
simultaneamente brasileiro e italiano. Em princípio, todo descendente tem direito à cidadania italiana, porém,
quando passa para a linha materna, tem que ser analisado com mais cuidado. Somente os filhos de italianas
(linha materna) terão direito à cidadania italiana se nascidos após 1º de janeiro de 1948. (Fonte:
http://www.europabr.com.br/cidadania.htm).
129
A cidadania espanhola pode ser conquistada por netos de espanhóis, desde que morem por, ao menos, um ano
na Espanha.
276
As diferentes legislações que regulam os processos de solicitação da dupla cidadania
entre os países que tiveram envolvimento com a imigração para o Brasil requerem
procedimentos muito específicos. Retomando, chama atenção a flexibilidade do acesso ao
passaporte europeu aos descendentes dos imigrantes italianos em relação às outras etnias.
O projeto de obtenção da dupla cidadania atende a uma perspectiva mais pragmática
voltada para os descendentes jovens que, em um contexto das sociedades contemporâneas
transnacionalizadas, almejam oportunidades diferenciadas no mercado de trabalho. Deve-se
considerar o fato de que esse não é um projeto unilateral, de descendentes apenas. O interesse
do governo italiano em obter mão-de-obra qualificada e atender a uma demanda de interesses
políticos tem movimentado um mercado fértil de empresas e instituições especializadas nesse
tipo de prestação de serviço. Por outro lado, os deslocamentos de jovens com qualificação ou
que se dirigem para adquirir a qualificação ao chegarem à Itália são absorvidos em um
mercado de subempregos, em serviços que o italiano não mais quer exercer. Essa é uma
realidade recorrente em toda a Europa. No entanto, a relação que se estabelece entre as
comunidades de descendentes italianos espalhados por diferentes países e o governo italiano é
a de recuperação de dívida com os antepassados que, em situação de miséria, são convidados
a deslocarem-se da terra natal como forma de solução para os problemas nacionais e
individuais. O que se percebe, no entanto, é a reprodução – em uma lógica reversa – da
conquista de uma cidadania “segregada”, de não-pertencimento. Não há dívida a ser saldada,
há o interesse de obter mão-de-obra qualificada para serviços subalternos e mais um número
expressivo de eleitores espalhados pelo mundo.
A reportagem abaixo
130
traz um dos compromissos assumidos pelos ítalo-brasileiros
ao conquistar a dupla cidadania. O pertencimento é politicamente reivindicado para eleições,
como anuncia o apelo do embaixador da Itália no Brasil, divulgado no dia 09.04.2008 pela
referida revista.
130
INSIEME - a revista italiana daqui é uma publicação mensal bilíngüe de difusão e promoção da cultura
italiana e ítalo-brasileira.Circula em todo o Brasil e no exterior desde 1994, exclusivamente por assinatura.
277
ELEIÇÕES POLÍTICAS DE 2008 -
CONVOCAÇÃO PARA A ELEIÇÃO
Queridos compatriotas,
Nos dias 13 e 14 de abril de 2008 serão realizadas
na Itália as votações para a eleição da Câmara dos
Deputados e do Senado da República. Trata-se de
um importante acontecimento, onde mais uma vez
os protagonistas são os italianos residentes no
exterior. Os eleitores italianos no Brasil elegerão,
no âmbito da repartição América do Sul da
circunscrição no exterior, dois senadores e três
deputados.
A rede diplomático-consular no Brasil está
trabalhando ativamente para que todos aqueles que
têm direito possam exercitar o seu voto. É o meu
grande desejo que a afluência dos compatriotas no
Brasil às urnas seja a mais alta possível. É de
fundamental importância, portanto, que todos
aqueles que receberam as cédulas eleitorais,
exerçam o seu direito de voto, restituindo no
menor tempo possível as cédulas votadas aos
Consulados.
A participação não é somente um direito, mas
também um dever cívico. Participar das eleições
significa contribuir para decidir sobre o futuro da
comunidade italiana, da nossa comunidade, no
Brasil.
Convido a todos os eleitores italianos no Brasil a
votarem, restituindo ao Consulado O MAIS
RÁPIDO POSSÍVEL as cédulas eleitorais votadas,
de forma que cheguem ao Consulado de
competência até no máximo às 16h do dia 10 de
abril de 2008.
Michele Valensise – Embaixador da Itália no
Brasil.
ELEZIONI POLITICHE 2008 - APPELLO
PER IL VOTO
Cari connazionali,
il 13-14 aprile 2008 in Italia si svolgeranno le
votazioni per l’elezione della Camera dei Deputati
e del Senato della Repubblica. Si tratta di un
importante appuntamento, che ancora una volta
vede protagonisti gli italiani residenti all ' estero.
Gli elettori italiani in Brasile eleggeranno,
nell´ambito della ripartizione Sud America della
Circoscrizione Estero, due Senatori e tre Deputati.
La rete diplomatico-consolare in Brasile sta
lavorando alacremente affinché tutti coloro che ne
hanno diritto possano esercitare il voto. E´ mio
vivo auspicio che l´affluenza alle urne dei
connazionali in Brasile sia la più alta possibile. E’
di fondamentale importanza quindi che tutti coloro
che hanno ricevuto le schede elettorali esercitino il
loro diritto al voto, restituendo nel più breve tempo
possibile le schede votate ai Consolati. La
partecipazione al voto è non solo un diritto, ma
anche un dovere civico. Partecipare al voto
significa contribuire a decidere sul futuro della
comunità italiana, della nostra comunità, in
Brasile.
Esorto vivamente tutti gli elettori italiani in Brasile
a votare, restituendo AL PIÚ PRESTO al
Consolato le schede elettorali votate, in modo che
arrivino al Consolato entro le ore 16.00 di giovedì
10 aprile 2008.
Michele Valensise – Ambasciatore d’Italia in
Brasile.
Em todas as famílias de origem italiana perscrutadas, havia casos de processo de dupla
cidadania em andamento ou processos já finalizados. Esse é uma nova configuração
impetrada ao pertencimento. Possuir a dupla cidadania agrega um novo valor expresso na
comprovação da italianidade, o de vínculo judico do indivíduo com um Estado nacional, em
conformidade com reivindicado pela ancestralidade que se mantém como prioritário e
condicionante à conquista da dupla cidadania.
2.5 A dinâmica dos processos culturais
O estudo desenvolvido com as Festas de Família demonstra que os processos de
mudanças sociais e culturais mais amplos, de dimensões globais, ainda estão em processo de
adaptação ou apresentam-se completamente aderidos nos grupos investigados. As diferenças
278
são múltiplas e evidenciadas no interior de cada grupo de parentesco, como entre os grupos de
modo geral.
As festas de família de descendentes de imigrantes alemães e italianos, por exemplo,
trazem fortemente essas contradições. As famílias Mundstock, Flach, Saltiel, Weber, entre
outras, carregam ainda o forte espírito comunitário e de rede de solidariedade ampla que
ultrapassa os limites da estrutura familiar.
Eu acho que sempre trancará [a festa não consegue sair do projeto] em Porto Alegre
porque lá não tem comunidade; eles não fazem festa de igreja, essas coisas que
possam reunir esse povo todo junto. As comunidades provocam uma integração que
tu estás fazendo o que às vezes não é para ti, porque essas comunidades não existem
só para os membros, é para a integração com a comunidade em geral, para toda a
sociedade... Afinal, quando eles precisam, eles procuram só os membros? Não, eles
procuram toda a sociedade, querem uma ajuda de toda a sociedade, não só de um
grupo. A festa de igreja é outra, a festa de igreja se for só para o pessoal da
comunidade em si, da igreja que pertence aquela congregação, pode fechar porque
não sai festa, tem que chamar toda a sociedade para daí sair uma festa. É isso, um
ajuda o outro e sempre fica aberto a todo mundo (Ivo Mundstock – organizador e
genealogista – anos?).
Ivo e Olívia Mundstock vivem em Candelária e o relato diz respeito à vida em
comunidade que marca a vida na cidade. Para ele, viver em comunidade é manter a
solidariedade e o compromisso de união decorrente de um conjunto de idéias e de atitudes,
como resultado de uma disposição dos sujeitos dedicada a formas típicas do comportamento
coletivo. Em Porto Alegre [não sairia a festa] porque lá não tem comunidade. Os projetos
englobam a comunidade, mesmo que a festa esteja restrita ao grupo de parentesco e
convidados por afinidade. Por seu turno, Ivo e Olívia conquistaram vínculos internacionais
dentro da própria comunidade, participando de cursos no exterior, mantendo relações por
cartas e meio eletrônico com familiares na Alemanha, amigos de outras partes do mundo que
vêm visitá-los. Percebe-se, na verdade, um alargamento “ao mundo”, sem perder de vista a
comunidade em que estão inseridos e comprometidos a compartilhar.
Outro fenômeno importante é o que trata sobre as mulheres organizadoras do evento.
Todas mantêm ou mantiveram cargos diretivos nas suas trajetórias profissionais, como o caso
de Noeli Valer, Dalva Brust e acrescento Marlene Guterres
131
. A disposição pessoal, agregada
à atividade profissional foi significativa para tomarem à frente do projeto de reunir os
parentes em um evento festivo. Todas estão inseridas em um cenário de famílias com fortes
131
Marlene Guterres foi referida por Floriano Guterres ainda na pesquisa exploratória para a elaboração do
projeto de doutoramento. A família Guterres não mais participou da pesquisa, tendo em vista problemas de saúde
que o Dr. Floriano passou e que o impediu de seguir o curso da pesquisa. No entanto, sua participação inicial foi
importante e significativa, e a retomarei mais adiante.
279
características de hierarquização dos papéis de gênero. No entanto, foram objetivas e
determinadas e, por conta disso, amplamente elogiadas pela realização. O caso de Noeli é
emblemático. Ela é funcionária da Prefeitura de Nova Bréscia e fortemente envolvida com a
vida política da cidade. Sua figura pública também é um traço perceptível em seus
pronunciamentos:
Eu quero registrar a presença aqui do excelentíssimo senhor prefeito municipal, que
nos honra com a presença dele aqui, prestigiando a família Valer, recebendo-a aqui
em Nova Bréscia no dia de hoje. Nós contamos também aqui e queremos agradecer
o grupo que animou os cantos na Igreja hoje durante a missa. Eu quero também
lembrar aqui e agradecer, já por antecipação ao coral, ao grupo de cantores: ao
Grupo Sempre Contente, que fará uma animação durante a tarde com músicas
italianas. Quero registrar a presença da nossa jornalista aqui da cidade, do Jornal
Nova Bréscia, a quem desejar uma assinatura, também, posso fazer o contato...
porque é interessante esse Jornal Nova Bréscia. Podem chegar a cada Valer,
também os que estão fora daqui, quem quiser pode também fazer o contato com a
nossa jornalista para fazer a assinatura desse jornal. Agradecemos a compreensão
de vocês... fiquemos à vontade e a festa continua... (Noeli Valer – 53 anos).
Sou psicóloga e sexóloga, tenho 30 anos de profissão, exerço com o mesmo prazer
de quando comecei a trabalhar. Sou também instrutora do Senai e consultora em
RH. Sou presidente do Centro Cultural Teuto Friburguense, entidade que
representa a Colônia Alemã em NF e vice-presidente da ASCOFRI, associação das
10 Colônias que formaram e berço cultural de nossa cidade. Uso minhas
habilidades profissionais e o espaço do CCTF para desenvolver trabalhos sócio-
culturais (Dalva Brust – 51 anos).
O núcleo de Encruzilhada é mulher, é a pessoa que fez o contato e essa aí é que é a
líder. A Marlene, ela trabalha lá em Santa Cruz, mas ela exerce cargo de confiança,
ela está aposentada. É cidade pequena, é uma maravilha, eu não conhecia
Encruzilhada, eu cheguei lá, paramos em comércio para almoçar e já conversei
com uma menina da caixa que é ecônoma de lá, e ela olhou pra mim e disse: ‘o
senhor não é daqui’. ‘Não sou daqui, mas tenho muito parente que eu vim
conhecer’. Ela disse: ‘como é o nome deles?’. Respondi. A menina disse: ‘olha,
Marlene foi colega da minha mãe que está aposentada como ela!’ (Floriano
Guterres – 76 anos).
A reflexão sobre a situação pontuada nos dados etnográficos remete ao pensamento de
Alfred Schutz (1979) quando analisa os fatores determinantes da conduta e os meios através
dos quais os indivíduos orientam as suas vidas. A participação do indivíduo em sua
comunidade decorre do sentido subjetivo que este atribui ao seu lugar e papel na comunidade
e no interior dos vários grupos a que pertence. Sua orientação para a prática é resultado da sua
“situação biográfica” determinada pela vivência do indivíduo, e este alcança a determinadas
ações, tendo em mente seus próprios propósitos e avaliação correspondentes, enraizados no
seu passado, na história singular de sua vida.
Ainda sobre as dinâmicas dos processos culturais, retomo a família Vasconcellos e a
Instituição Vó França. A reflexão que se busca realizar sobre esse fato é conduzida a partir do
280
conceito de “memória enquadrada” impetrado por Michael Pollak. O autor adota esse
conceito para pensar o material fornecido pela história como um trabalho de reinterpretação
do passado, que está “em jogo na memória é o sentido da identidade individual e do grupo”
(Pollak, 1989, p. 10). O autor refere-se a grandes eventos como memórias de guerras,
instituições políticas, etc., frutos de uma produção de discursos organizados que guardam e
solidificam a memória em um trabalho de enquadramento. A relação que faço é a de refletir
sobre a dimensão do confinamento a que a vida social é gerida sob normas e regras
impetradas pelo Estado, como Lins de Barros colocou sobre a “institucionalização” das
diferentes fases sobre o curso da vida, quando temos idades definidas para a escolarização,
aposentadoria, maioridade, etc. Minha reflexão sobre o Instituto França é percebê-lo como a
“institucionalização” da memória, uma vez que as ações ou os sentimentos de realidade que
os Vasconcellos herdam da Vó Francisca e que são resultantes de uma reconstrução do
passado só podem ser realizados sob o olhar vigilante do Estado, portanto, do
“enquadramento” da memória familiar sob a sujeição institucional.
281
Capítulo 3
A reconstrução das trajetórias familiares e as
formas de adoção de recursos tecnológicos
282
A memória também está em via de desaparição. Haveria uma espécie de buraco
negro da memória que não seria substituído, mas que substituiria até mesmo as
memórias artificiais, a dos computadores, dos museus, etc. Nós estamos, então,
invadidos pela memória, a comemoração, a rememoração, etc., mas mesmo nesses
casos, a comemoração representa antes a desaparição da memória: não há mais
memória real, viva. Nós estamos na era da comemoração, que é uma maneira de
esquecer as coisas. Nesse ato, trata-se de revezar os acontecimentos em uma espécie
de amnésia. [...] A transmissão da memória familiar, por exemplo, faz-se com
grandes dificuldades; ela está cada vez mais fraca e muito ameaçada (Baudrillard in
Casalegno, 2006, p. 124-5).
A posição de Jean Baudrillard acena para um futuro trágico à vida social quando
afirma que a memória está em via de desaparição. O que tem sido observado, no entanto, são
formas sociais mais complexas e o uso de suportes tecnológicos, entre outras estratégias, que
reinventam e redefinem os contornos sociais que têm se mostrado imprecisos.
A experiência etnográfica desenvolvida nesta tese sugere que, justamente pela
imprecisão das fronteiras nas quais se situam os grupos sociais, novos procedimentos ou
táticas são impetrados para construir novos espaços de comunicação e compartilhamento de
sentidos. Nessa direção, as Festas de Família são percebidas como estratégias para a
reordenação de laços sociais, tendo como pano de fundo uma identidade familiar ordenada
pelo afeto e compartilhada como um dos poucos locais em que se tem referências de
pertencimento – sem deixar de reconhecer que, para alguns indivíduos, as referências
restringem-se ao sobrenome comum.
O papel das redes de comunicação é fundamental para recompor o parentesco e
conquistar o fio que dará início à tecedura de novas formas de sociabilidade entrelaçadas por
forças afetivas.
3.1 Os atores sociais que assumem o papel de guardiões da memória familiar
Pensar nas tecnologias de comunicação em relação às Festas de Família requer
compreender quais os usos que os indivíduos estão dando a esses recursos. Uma das
atividades anteriores à Festa de Família é a necessidade de reconstrução das genealogias com
a finalidade de distinguir as relações existentes entre as pessoas e os grupos a que elas
pertencem. Essa atividade, por si só, exige a constituição de uma rede de parentes que
contribuam para a circularidade das informações sobre os indivíduos que se encontram unidos
entre si por um complexo interligado de laços ramificados, num processo análogo a uma
“arqueologia” na busca de pistas, como aponta Ginzburg (2005, p. 57) desse complexo.
283
As genealogias de parentesco têm como ponto de partida as famílias elementares, de
onde se originam as relações primárias de parentesco. Uma questão importante citada pelos
entrevistados foi o árduo trabalho para compor as genealogias, uma vez que a reconstrução
das redes de parentesco remonta tempos em que o registro dos movimentos/existência dos
grupos tinha como base apenas rastros e indícios. Essa busca tem seu início a partir de
algumas premissas – ora na busca da conquista de um passaporte europeu, como no caso de
Ricardo Cecagno, ora na tentativa de reordenar um passado comum, de uma identidade
compartilhada, como o propósito do Dr. Guterres, ora na semelhança fisionômica, como se
observou no fragmento de uma comunicação feita na Festa da Família Scliar por um
integrante jovem vindo do Rio de Janeiro.
Nesse sentido, a identidade, ao ser vivenciada no mundo, em diálogo com outros,
implica a descoberta do indivíduo sobre o seu lugar no mundo, e a sua objetivação se dá por
meio da participação na cultura, no caso, de uma coletividade – a familiar. As experiências
observadas nos espaços das Festas ou nos espaços domésticos, em especial as que tratam de
lembranças e recordações, são ‘revivenciadas’ no tempo presente, embuídas da afetividade,
respondendo à intenção de ‘durar’ no tempo. Com base nessa premissa, a tese volta-se para
uma etnografia da memória, da ordenação familiar e das Festas de Família, percebidas como
ritual.
Em uma das entrevistas, Irmão Justo também acena as motivações de reordenação de
sua rede de parentesco:
Busco as raízes. Resgatar essas origens é entender um pouco sobre a gente. A
questão era: de onde veio meu bisavô? Por que ele veio para cá?
Irmão Justo é professor universitário aposentado e membro da congregação lassalista
com sede em Canoas/RS. Veio jovem para Porto Alegre, de uma pequena cidade de
colonização alemã no Vale do Taquari/RS. Dedicou-se ao estudo de Psicologia Social e foi
contemplado, entre os anos 60 e 70, com uma bolsa de estudos em Paris. Aproveitou a
ocasião e teve, em duas situações, contato com a família na Alemanha. Ele mantém a
comunicação até os dias de hoje via e-mail, cartas ou telefone.
Por sua vez, Ricardo Ceccagno é um jovem que, à época que o entrevistei, cursava o
mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciências Biológicas na UFRGS. O papel de
guardião da memória difere dos moldes propostos acima, enquanto uma atividade assumida
pelos membros mais idosos da família. Ricardo recebeu essa “tarefa” por ter muita habilidade
no manejo da rede virtual e poder manter o contato com os parentes distantes de troncos que
284
permaneceram na Europa. Enfatiza que aceitou a tarefa, inicialmente, com o intuito de
contribuir com uma prima para a aquisição do passaporte europeu, mas que na continuidade
da busca envolveu-se emocionalmente com a reordenação genealógica, querendo desvendar
as origens e tradições familiares. Seu contato com parentes na Itália lhe trouxe novos
sentimentos que ainda não havia experimentado: “há uma outra forma de ser Cecagno”, diz
ele. Esse novo “modelo” despertou-lhe a obrigatoriedade de saber mais sobre seus
antepassados a partir do contato mais próximo com aqueles que lá permaneceram. Sua família
não fez nenhuma Festa de Família, porém, na ocasião em que um casal de parentes veio da
Itália, reuniram os parentes que vivem próximos e todos festejaram a presença dos “novos”
em uma reunião na casa de seu avô. Até então, não havia sido desvendado o grau de
parentesco com esses italianos que Ricardo resolveu chamar de “tio e tia” e, na concepção de
Ricardo, isso não era tão importante assim. O que estava em jogo, na verdade, era conhecer a
história dos que lá ficaram e eles conhecerem a história dos que para cá vieram, bem como
cruzar as informações entre as duas árvores genealógicas e conhecer com mais profundidade
as suas origens.
A árvore dele está bem mais completa que a minha... acho que ele começou isso há
bastante tempo, não faço idéia de quanto... Por enquanto ainda não cruzaram as
informações, mas tem que cruzar em algum momento. Eu estou no nível do meu
tataravô, que nasceu e morreu na Itália, mas a gente não conseguiu dados dele
ainda, dados anteriores a mil oitocentos e cinqüenta já começam a ficar bem mais
difícil... A gente não sabe, por exemplo, a cidade que nasceu, cidade que casou,
começa a ficar bem mais difícil mesmo. E a Itália é ... daí não sei como é que vai
ficar essa questão, eu estou pensando, sei lá, quando eu terminar o meu mestrado ir
passar um tempo lá, quem sabe eu tenha mais tempo para ir atrás, porque esse meu
parente, também ele claro, ele deve ter outras coisas pra fazer, não sei, não sei
quanto tempo ele dedica do tempo dele pra isso.
Já o Dr. Guterres foi consultado sobre sua rede de parentesco por uma prima que
estava dedicando-se na sua reconstituição. Por ocasião, ficou encarregado de buscar
informações em algumas fontes em Porto Alegre. A trajetória de Dr. Guterres é curiosa. Veio
jovem de Piratini/RS, onde nasceu, acompanhado de sua mãe e irmãos logo após o
falecimento de seu pai – em 1947. Aqui se estabeleceram e Dr. Guterres retornou a uma
cidade do interior, Passo Fundo, em virtude da transferência proposta pelo banco em que
trabalhava. Lá cursou a faculdade de Direito, voltou à capital acompanhado de sua família e
hoje está aposentado. Tem o registro de grande parte do material sobre a genealogia familiar
em documentos datilografados, reportando às filhas a composição da árvore, uma vez que elas
dominam a tecnologia da informática e do uso da rede virtual. Dr. Guterres mostra sua
285
máquina de escrever com orgulho e atribui a ela parte da responsabilidade de sua ascensão
social ao desenvolver habilidade na ação de datilografar.
A família Calliari tem no “primo Jorge” o arqueólogo da Família Calliari. Jorge
Calliari mora em Florianópolis e não traz um motivo explícito para a sua pesquisa da
ancestralidade. Relata que a distância dos primos e dos tios o levou a sugerir um Encontro da
Família Calliari, o primeiro, que ocorre em 1998, em Florianópolis, com a presença de 80%
da família, segundo sua informação. Jorge anda com a árvore genealógica armazenada em seu
notebook, uma vez que as Festas trazem novidades sobre a ascendência. Diz que o trabalho é
exaustivo, mas interessante e envolvente.
Eu faço porque eu gosto. Descobri um programa de computador onde só coloco os
dados e ele organiza e direciona as informações. É um programa gratuito, muito
interessante. Iniciei a montagem da rede [de parentesco] por causa da minha mãe,
que disse que as informações iam se perder com o crescimento da família. Pensei
nos meus filhos: como não vão saber dos avós, dos tios, dos primos? Têm que saber
de onde vieram!
Todas as informações são encaminhadas “ao pessoal de Florianópolis”, diz Marinês,
prima de Jorge que mora em Joaçaba (SC).
Enviamos dados sempre atualizados de casamentos, nascimentos, falecimentos e
todos os fatos ocorridos entre um encontro e outro. Edita-se um folhetim, que
chamamos de ‘Informativo Nono Bepi’, em homenagem ao nosso bisavô, e o
entregamos aos participantes durante os encontros.
Jorge mostrou a árvore genealógica, organizada por ele, com o auxílio de um software
gratuito, cujo endereço de acesso é www.genopro.com.
José Antônio Só de Castro é o responsável pela construção da genealogia da família
Só. Contou-me que o interesse em construir a árvore genealógica veio em virtude da venda do
Estaleiro Só, quando entra em falência. A empresa familiar, iniciada por seu bisavô, reunia
em torno de si a representação do prestígio e do destaque que esta havia conquistado não só
nas fronteiras nacionais, e que a família havia mantido com dedicação. Na ocasião, José
Antônio decidiu organizar sua ascendência, sua origem, como uma forma de esta permanecer,
de modo a não desaparecer como o ocorrido com a empresa. Reordena o parentesco a partir
das cartolinas com a genealogia elaborada de forma artesanal, que ficavam enroladas em um
canto da sala e que, volta e meia, sua mãe preenchia com mais um parente noticiado. José
Antônio usa um software para compor o parentesco. Além da genealogia, ele também é o
286
moderador de uma página da família na internet. O site traz inúmeras informações e é referido
por muitos parentes, atuando um lugar simbólico da Família Só.
Com base na questão dos usos dos meios de comunicação atuais, Leslie Sklair (1991)
propõe que a dificuldade de se estudar as sociedades, por mais simples que possam parecer,
reside no fato de que elas estão envoltas em uma rede complexa de relações sociais que não
permite generalizações sobre pessoas, comunidades e estruturas onde repousam suas ações. A
tecnologia, enquanto linguagem universal, mas experimentada em grande medida de maneira
individual, inibe o contato social-grupal e até o interpessoal. Nesse sentido, podemos
reconhecer nos relatos anteriores o contato virtual, que adquire diferentes contornos
geracionais. Há a atribuição de papéis em torno do domínio das redes da informática, bem
como a conquista desses papéis por aqueles que estão envolvidos nas trocas de informações
mediadas pelos filhos.
Um dos aspectos importantes é a recomposição da trajetória desses sujeitos e que,
como diz Gilberto Velho (1997, p. 68), esta está diretamente relacionada à construção de
identidade que envolve, além das diferentes gerações, a interação com outros parentes das
suas redes e, na continuidade, outras tradições. Ou seja, a família em um universo
determinado comporta muitos significados que constituem um todo mais ou menos
sistemático, harmonioso ou não. Ao trazer aspectos significativos da trajetória desses atores
sociais, se tem em mente um projeto comum de reconstituir suas ancestralidades que têm
relação direta com a formação desses sujeitos a partir de uma vida social que comporta
cotidianamente estilos de vida mais ou menos tradicionais. O processo de individualização
que a sociedade da metrópole incentiva e valoriza destitui alguns desses indivíduos de
inúmeros valores antes compartilhados em sua cidade de origem. E inserir-se em categorias
mais amplas como a dos sobrenomes familiares expressos nas Festas da Família é um desejo
comum de totalidade social. As motivações geracionais diferenciadas são propostas não
apenas como a diferenciação de interesses. Pode ser vista, de igual modo, como parte de um
processo de dinâmica social, onde temos a tradição, que se moderniza nos membros idosos
por meio do uso de tecnologias de vanguarda, e a modernização, que aciona a tradição em seu
interior, no jovem guardião que deixa de lado seu projeto de cidadania européia e dedica parte
de suas atividades cotidianas no “garimpo” de outros tantos parentes e a reconstituição da
história familiar.
Cabe, portanto, pensar as motivações desses sujeitos estarem inseridas em um projeto
mais amplo que “constrói-se através de uma idéia mais ou menos elaborada de biografia, de
uma história de vida” (Velho, 1997, p. 69).
287
3.2 As interações tecnológicas
A rede virtual – ou a internet – possibilitou novos modos de interação social, cuja
comunicação se processa em outras dimensões do tempo e do espaço trazendo, por sua vez, de
imediato, o sentido de passageiro, efêmero e superficial. No entanto, sua utilização pode ser
definida sob múltiplas formas no ato de comunicar-se. Nesse sentido, Pierre Lévy (1999)
propõe uma clara diferenciação entre os meios de comunicação, chamando de clássicos
aqueles que se estabelecem entre “um-todos”, de forma a promover a não-atividade dos
receptores dentro de um contexto absolutamente imposto, como o rádio, a televisão, os
jornais; os meios de comunicação recíproca como o telefone, que promove a
intersubjetividade que se revela nos processos de interação na comunicação sem, contudo,
estabelecer um contexto e uma visão mais abrangente da rede; e, por fim, o ciberespaço, que
produz um relacionamento “qualitativamente diferenciado”, no qual os indivíduos
compartilham centros de interesses em um ambiente de sentido ou de saberes comuns.
Segundo Ricardo, o uso da rede é basicamente a comunicação com a Itália na troca de
informações, na troca de fotos. Ele comunica-se com os tios e primos esporadicamente e
recebe as gravações dos irmãos do avô com depoimentos sobre a vida deles. Eles moram no
interior e, quando Ricardo vai à cidade de origem, traz esse material e fotos, digitaliza e envia
ao tio no exterior. Com o restante da família, ele usa o telefone para comunicar-se. Ele,
enquanto usuário da rede, diferencia-se na adoção de um software específico para a
construção da genealogia, o qual permite não só a organização gráfica, como também a busca
pela ancestralidade na rede. O encontro ou não que refere ao dado proposto – sobrenome ou
localidade – é rapidamente comunicado. Esse software pode ser adquirido ou pode ser
utilizado gratuitamente por 15 dias. Nesse período, podem-se solicitar buscas por ancestrais e
compor a árvore que é realizada de forma ágil e eficiente.
Para compor a árvore genealógica usei o software “Family Tree Maker”. Minhas
informações mais remotas constam de 1850, do tataravô, que viveu na Itália.
O uso atribuído à rede internet pousado sobre a ação dos indivíduos entrevistados é
percebidamente uma forma mais ágil ou mais econômica de que o uso do correio
convencional ou do telefone.
288
Nessa mesma direção, Irmão Justo tem no uso da internet uma parcela muito pequena
da parentela. Sua comunicação não reside entre os jovens parentes e, entre os mais idosos,
poucos são os que têm a propriedade desse recurso.
Uso a rede [virtual] e outros meios de comunicação. Uso três meios fundamentais: a
entrevista direta com membros ou famílias e, se possível, acompanham documentos
e fotografias. Outro meio é a correspondência com famílias ou regiões que não têm
computador. Essa comunicação só ocorre com as pessoas que se interessam pelo
assunto, que tenham a compreensão do valor que isso tem para a família. O outro
meio, então, é a rede, o computador para a troca de informações. Ah! O telefone
também é um recurso muito importante nessa pesquisa.
É importante registrar que, ao iniciar uma pesquisa exploratória para a elaboração do
projeto de candidatura ao doutorado, encontrei na internet algumas informações sobre
empresas especializadas, sites de famílias já bem estruturados, além de softwares gratuitos e
pagos para a pesquisa e montagem de genealogia. No entanto, passados por volta de quatro
anos, a incidência é enorme e a variedade de serviços ultrapassa a expectativa e a
possibilidade imaginada. Não só buscam nomes e informações, como podem também contatar
parentes no exterior, organizar Festas de Família, produzem produtos personalizados para
serem comercializados ou distribuídos como souvenires da Festa.
Entre alguns sites, recolhi alguns fragmentos de enunciados que me pareceram
interessantes e significativos:
Não é órfão aquele que perdeu pai e mãe, mas é órfão aquele que não adquire amor e
conhecimento, pelo coração e pelo espírito, de seu passado e do seu presente.
Promover o entrosamento entre os membros da família, manter vivas as tradições
familiares e pesquisar a genealogia.
Fomentar o estudo da Genealogia, visando cultivar a memória e a cultura de nossos
antepassados.
É muito importante saber de onde viemos para conhecer nossas origens. Pode
parecer exagerado, porém, muitas de nossas perguntas íntimas poderiam ser
respondidas somente conhecendo o passado, a história de nossa família, seus
costumes, seus comportamentos sociais, a educação que receberam de seus pais e
avós, e que hoje nós, mesmo inconscientemente, transmitimos a nossos filhos”.
289
Ulf Hannerz (1996) afirma que os indivíduos estão habituados a considerar as culturas
a partir de estruturas distintas no significado e na forma significativa, geralmente vinculadas a
territórios e a indivíduos vivendo em culturas específicas. Dessa forma, está subentendido que
a cultura circula principalmente no relacionamento face a face, de modo que as pessoas pouco
se deslocam. Nessa premissa, o local é delineado como tipo ideal. Não obstante, como
fenômenos coletivos, as culturas estão vinculadas a interações e relações sociais que não
necessariamente estão confinadas a limites territoriais e, nesse sentido, o autor defende que as
relações menos sociais estão confinadas a tais limites. As culturas estão relacionadas por
redes amplas em termos de espaço, transnacionais e até mesmo globais.
"Na união dos povos está a certeza da preservação de
nossa história"
Como fazer sua pesquisa genealógica. A consciência de família e de tradição é a raiz da
cidadania e da auto-estima. O conhecimento da origem da família, sua ligação a uma
tradição, a uma cultura, a uma religião, é o campo da Genealogia. Esse conhecimento é
parte fundamental da estrutura de identidade do Eu e requisito fundamental também para a
autenticidade e maturidade da personalidade de cada um. O propósito destas páginas é
estimular o interesse das pessoas pela pesquisa genealógica.
290
Já fui três vezes à cidade que constava a saída deles no passaporte. Encontrei a
casa que meu bisavô nasceu e lá ainda moram familiares. Comunico-me pela rede
com eles. É uma vilazinha. Trouxe muitas fotografias e, da última vez que estive lá,
fiz um vídeo com meu mano. Agora pretendo passar o vídeo VHS para DVD, que é
mais seguro (Irmão Justo).
Marshall McLuhan (1957) traz como discussão principal a questão da transformação
cultural em decorrência das novas tecnologias na comunicação, de uma passagem da cultura
escrita, mais precisamente, da cultura do livro, para uma cultura da mídia, ou áudio-visual. O
autor assinala os passos dessa mudança, destacando a influência do jornal, rádio, TV,
fotografia e cinema. Segundo o autor, as inovações tecnológicas em que a comunicação é
operada pelo jornal rádio, TV, fotografia e filmes, fazem parte de um processo que leva a uma
ruptura nos padrões culturais e, sobretudo, na forma de aprendizado. Este processo é
comparável ao que o livro significou em termos de ruptura em relação à tradição oral.
Destaca, ainda, que houvesse uma mudança da oralidade para escrita, antes da humanidade
viver quatro séculos na cultura do livro. Nesta mudança, no que se refere à escrita, desde o
papiro na antiguidade até os impressos, o livro se caracteriza por possibilitar uma
uniformização e maior divulgação da escrita. Atualmente, se estaria mudando da cultura da
escrita para o que o autor chama de “cultura da mídia”. A ênfase na questão tecnológica e
suas implicações nas transformações culturais fazem referência à questão das mudanças na
cultura material que causam mudanças no modelo de uma cultura. A tecnologia moderna leva
a uma total transformação do homem e seu meio. Conclui afirmando que não se trata de se
opor a esse processo, que é inevitável, mas trata de inspecionar e fazer uma defesa dos valores
humanos.
As experiências vividas por Irmão Justo na composição da genealogia e na
mobilização da rede de parentes para a realização das Festas de Família são muito variadas e
diversas. É interessante acenar que se junta a isso a tarefa de buscar um possível substituto
para a posição de guardião da memória da família Flach. Não se diz cansado ou entediado
com as atividades que isso envolve, mas atribui aos seus 86 anos a necessidade de preparar
alguém para substituí-lo, dando ênfase que essa é uma atribuição contínua, uma vez que há
sempre alguém a agregar ou a definir como falecido, e imprescindível, pois “a história deve
ser revelada para permanecer”. Irmão Justo relata:
Quando troco informações pelo computador, pergunto inicialmente se ele se
interessa por algum dos três troncos dos pioneiros que aqui chegaram e se ele teria
novas informações a contribuir. Pergunto se ele tem espaço no computador – é em
torno de 500 páginas –, envio tudo ou parte do que tenho, o tronco que lhe
interessa, e peço a colaboração para o preenchimento das lacunas ou erros, se
houver.
291
Imprimo em livro (espiral) cada tronco e deixo em uma região e eles passam de
família em família para preencherem. Esse material retorna e eu complemento no
computador. A idéia é editar a história e a genealogia da família para que não se
perca no tempo.
As Festas da família Flach acontecem em Piedade (RS), no “Salão Flach Bom de
Baile”, que é dirigido por um cunhado do meu primo, que é o dono. As festas são
divulgadas por ele, que trabalha com comunicação, no rádio da região. Ao
deparar-se com o material que eu tinha, entusiasmou-se e sugeriu um Encontro da
Família Flach. Estamos preparando o 8º. No anterior, compareceram em torno de
1.200 pessoas da família. Teve gente da Argentina, de outros estados do Brasil, do
interior do RS. Nesse próximo contaremos com a presença de parentes da
Alemanha, possivelmente.
Na Alemanha, no povoado de origem, há um jornalzinho que publicou um artigo
meu que fala sobre a história do meu bisavô e dos Flach no Brasil. O Pedro é
colaborador desse jornal e é possível que venha para o Brasil na próxima festa. No
ano que vem faz 150 anos que meu bisavô veio e acontecerá a 8ª Festa. O
importante é manter o contato sistemático para que o pessoal se envolva.
A dificuldade de locomoção antigamente não propiciava muita convivência com os
parentes. Mas, em compensação, desenvolviam as histórias orais, conhecíamos
todos os parentes através das histórias contadas.
Por outro lado, Marshall Sahlins reconhece que a “cultura” assumiu uma variedade de
novas configurações e que, a partir dessa premissa, a antropologia deveria aproveitar para se
renovar por meio da descoberta de padrões inéditos de cultura humana, de outra diversidade
cultural. Agregando a isso, compreende-se a busca por ações mais tradicionais nos indivíduos
não refletidas sob uma perspectiva conservadora, de puro desejo de voltar às origens, mas sim
de perceber essas ações tradicionais envelopadas em uma expectativa de expansão e
manutenção de acesso às inovações tecnológicas e de outros benefícios materiais do sistema
mundial. Ou melhor, “englobar a ordem global em suas próprias ordens cosmológicas”
(Sahlins, 1997).
Sob essa ordem estrutural, é assim que se faz hoje a história cultural: em um
intercâmbio dialético do global com o local, e nesse cruzamento, em um espaço social
determinado, os fluxos globais transformam-se de acordo com os sistemas culturais
específicos. Reconhece-se, portanto, a existência clara de uma cultura melhor definida pela
organização da diversidade do que pela imposição da uniformidade.
Para ilustrar essa questão apontada, a rede virtual tem uma parcela muito significativa
na mediação da experiência humana, atuando especificamente nas transformações espaço-
temporais, bem como na reprodutibilidade que provoca a alteração de uma lógica seqüencial
através de justaposições de histórias que, em geral, não dizem respeito às vivências cotidianas
de comunidades locais. Como exemplo,
292
O orkut é uma comunidade virtual afiliada ao Google, criada em 22 de Janeiro de
2004 com o objetivo de ajudar seus membros a criar novas amizades e manter
relacionamentos. Seu nome é originado no projetista chefe, Orkut Büyükkokten,
engenheiro do Google. Tais sistemas, como esse adotado pelo projetista, também
são chamados de rede social. Cada usuário do orkut possui uma conta e um perfil.
Apenas pode criar uma conta aquele que é convidado por um usuário. No perfil
estão algumas características pessoais, como descrições físicas, listas de livros e
músicas, um texto de apresentação, etc. Além disso, cada usuário pode colocar como
seus "amigos" outros usuários. Neste aspecto, o orkut é um grande banco de dados
sobre quem é amigo de quem, ou seja, sobre a rede de amizades
[http://pt.wikipedia.org/wiki/Orkut].
Nessa página de relacionamentos, encontra-se inúmeras comunidades de famílias. Eu
ingressei na comunidade da Família França e, para minha surpresa, recebi muitas mensagens
buscando informações sobre as minhas origens, com a justificativa de estarem fazendo a
genealogia da Família. Informam que não há conexão alguma com parentes no Rio Grande do
Sul e, por esse motivo, gostariam de obter informações sobre o ascendente mais antigo. Enviei
a informação até onde minha família tinha conhecimento, mas não obtive nenhuma
confirmação de vínculos com algum dos interlocutores.
Enfim, observa-se o predomínio da tecnologização relacionada a uma nova
organização mundial da cultura humana e de novos modos de produção histórica. Nesse
sentido, a sociedade pós-tradicional ou a sociedade global apresenta em inúmeros aspectos da
vida cotidiana o acionamento sistemático de contextos tradicionais. Tem-se observado, entre
tantas outras contradições, o avanço rápido da dissolução das comunidades locais e, por
conseguinte, estabelecem-se incertezas socialmente criadas propagadas entre os indivíduos,
fragilizando suas relações mais elementares. Desse modo, a problemática do agenciamento
das relações entre o tradicional e moderno, o passado e o presente, não pode ser analisada
enquanto meras contradições, mas enquanto relações articuladas na dinâmica social. A
tradição, compreendida enquanto “um conjunto de orientações valorativas consagradas pelo
passado” (Oliven, 1992), pode ser real ou inventada, nos diz Hobsbawm (1984). Para o autor,
as tradições inventadas, quando invocadas, “são sintomas importantes”, “indicadores de
problemas”, “são indícios” (1984, p. 20).
Nessa ordem, portanto, as Festas de Família, enquanto um acontecimento que já
bastante divulgado e expandido pelo mundo (França, EUA, Alemanha, etc.), chamam a
atenção ao fato de que, nas festas perscrutadas, as suas edições com intervalos de 1 a 2 anos
tenham, em geral, crescido no número de participantes. Desse modo, não há como não
reconhecer a importância e a dimensão dos espaços conquistados pelas tecnologias das redes
de comunicação, a partir de um evento visto como expressão de ações mais tradicionais
acionadas estrategicamente pelos sujeitos sociais. Nesse sentido, observa-se a importância
293
atribuída ao domínio desse recurso quando os indivíduos possuidores das habilidades
específicas têm como papel nesse contexto o de guardiões da memória familiar.
Em outra perspectiva, pode-se perceber o uso de ambientes virtuais adotados de fato
pelos seus usuários. No âmbito familiar, as comunicações entre parentes de localidades mais
próximas são realizadas por outros meios de comunicação, em geral, pela ausência desse
recurso ou do manejo necessário. Em contrapartida, os parentes que moram no exterior
comunicam-se virtualmente e aproximam-se efetivamente, como define Baudrillard (2008),
num movimento em que a esfera doméstica, dentro de um espaço privado, substitui sua cena
pelas significações transmitidas pela comunicação, tornando-se esfera pública, cena pública.
3.3 O “Projeto Imigrantes”
132
Tomei conhecimento do “Projeto Imigrantes” por meio de minha orientadora. Trata-se
do site www.projetoimigrantes.com.br, estruturado em menus com informações, tais como a
listagem de imigrantes, histórico de nomes e sobrenomes, brasões de família, etc. A empresa
especializou-se ao longo de sua existência, ampliando sua atuação também na área de
produção de eventos, como os “Encontros de Família” e o encaminhamento e orientações
sobre a dupla cidadania.
Investigando a página, fiquei surpreendida com o tempo de atuação e o número de
consultas já realizadas. O idealizador da empresa, Ivam Sandini, constando a sua referência
no portal, pude contatá-lo e marcar uma entrevista, que contou com a participação da sua
132
Histórico
O Projeto Imigrantes surgiu há mais de 25 anos, a partir da iniciativa do empresário Ivam Sandini de pesquisar
seus próprios antepassados. Inicialmente, formou-se um banco de dados com mais de 100.000 nomes de
imigrantes, entrados pelo Rio Grande do Sul, para consulta de amigos e interessados.
Com o passar dos anos, as pesquisas continuaram, abrangendo outros estados e épocas. Neste momento, o
Projeto Imigrantes teve uma grande expansão, ajudando pessoas do Brasil todo a resgatar suas raízes e conhecer
melhor seu passado.
Em 1995, uma parceria firmada com um sólido grupo americano de pesquisas viabilizou ao Projeto Imigrantes
materiais importantíssimos na área de Heráldica e Onomástica. Essas pesquisas estão firmadas em mais de 70
anos de pesquisas e presentes em 22 países.
Atualmente o Banco de Dados do Projeto Imigrantes conta com mais de 2,8 milhões de nomes de imigrantes,
vindos desde 1737, pelos portos do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo. Na área de Heráldica e Onomástica,
possui mais de 300.000 brasões e 800.000 históricos de sobrenomes disponíveis para pesquisa. É importante
ressaltar que esses números vêm sendo ampliados a cada dia, através do trabalho de seus pesquisadores.
Missão
Fornecer informações de cunho científico, que auxiliem as pessoas a resgatar suas origens e conhecer melhor seu
passado.
Valores
Seriedade, idoneidade, transparência, atendimento qualificado.
http://www.projetoimigrantes.com.br/int.php?dest=quem – consultado em 17/10/2008.
294
esposa Susana, que é a atual responsável pelo “Projeto Imigrantes”, tendo em vista que Ivam
tem outras atividades comerciais.
Ivam explicou que obtém os dados comprando-os dos arquivos de São Paulo –
Memorial do Imigrante
133
– e do Arquivo Histórico do Rio de Janeiro, situados nos locais por
onde ingressavam os imigrantes vindos da Europa. O trabalho, inicialmente (há 28 anos),
apresentou-se desanimador, como relata Ivam, tendo em vista a desordem do acervo de
registros, espalhado por vários departamentos de setores vinculados à imigração e às inúmeras
alterações nas políticas nacionais que regulamentavam essa prática no passado. Outro fator
ocorrido mais adiante, já com uma parceria em São Paulo para a obtenção de arquivos, foi a
necessidade de contratar professores especializados para decifrarem as caligrafias bastante
precárias em vista da falta de escolaridade dos escrivães na época. Com vistas a isso, a busca
pelas listagens de nomes percorre várias formas de escrita, como relata Suzana sobre o caso
seguinte:
Uma cliente, uma mulher de São Paulo, ela se chama Madalena Busso. O marido e
o filho estavam, estão em Portugal, trabalhando, e buscavam a dupla cidadania. Ela
procurou advogado, no total, no frigir dos ovos, chegou a 26 mil reais, pagando
advogado, pesquisando documentos, documentos na Itália, Portugal e não achava,
não achava, não achava, não achava nada sobre o imigrante. Aí ela achou uma
possibilidade num site de Portugal. Ela ligou pra Portugal e o consulado indicou o
nosso site. Ela nos ligou e pediu pela listagem de Busso, com dois esses. Olhando
assim, Busso, eu disse pra ela ‘Busso tem várias formas de escrever, tem Busso com
dois esses, Buso com um s só, Buzzo com dois zês e Buzo com um z só, pode ter erro
de ortografia. No Buso com um s só estava o imigrante dela, todas as informações,
a região... A mulher começou a chorar, imagina, ela estava desesperada porque o
marido fazendo doutorado e o filho estudando lá, faltava uns dois meses pra
terminar o prazo de permanência!
Ivam discorre com detalhes o seu envolvimento com essa tarefa e informa sobre o
crescente número de busca pelo documento de ingresso do imigrante no Brasil. Esse
movimento de busca não se restringe aos descendentes que vivem no Brasil, há uma
incessante busca daqueles que já migraram a outros países e necessitam regularizar sua
permanência. Esse é um dado preponderante sobre os processos migratórios que se ampliaram
no mundo moderno contemporâneo afetado por influências globalizantes, rompendo as
fronteiras nacionais diferentemente dos movimentos das décadas de 1940 a 1960, que
caracterizaram as migrações de cidades do interior em direção às capitais ou cidades de
grande porte, como mostram os casos observados nas práticas de grande parte dos familiares
entrevistados. Esse fenômeno é ilustrado com um caso bem peculiar, como conta Suzana:
133
Os documentos originais passaram à guarda do Governo Estadual de São Paulo em 2005 e estão alocados no
Memorial do Imigrante, no bairro da Mooca, situado no patrimônio histórico “Hospedaria do Imigrante”.
295
Ah, é assim... uma moça saiu de Porto Alegre e achou trabalho na Tunísia. De lá
ela me ligou:
– Vocês são do Projeto Imigrantes? Eu queria saber sobre o Projeto Imigrantes que
estava na listagem.
Aí tu não vais acreditar, ela falou:
– De onde é que vocês são? Tenho o prefixo 51.
– Somos de Canoas.
– Eu não acredito, eu viajei de Porto Alegre pra Tunísia, cheguei na Tunísia, o
consulado me indicou vocês aí em Canoas! Eu estava do lado, a dois quilômetros da
minha casa!
Contando com muitas parcerias internacionais, hoje os documentos emitidos pelo
Projeto Imigrantes estão sendo aceitos por muitos países, segundo Ivam:
Esse caso foi na Tunísia. Hoje mais de oitenta e seis países nos indicam, qualquer
consulado no mundo. Perguntamos aos consulados: ‘o que vocês querem?’. ‘Nós
queremos o documento original da entrada’. Então, vamos colocar embaixo de cada
nome da listagem, colocar o livro, a página e número que o imigrante foi registrado
quando chegou ao Brasil. O objetivo inicial era esse documento oficial, só que hoje
o nosso documento é aceito não só como registro, mas aceito como oficial.
As listagens de imigrantes, em muitos casos, ultrapassam as informações que as
famílias detêm sobre seus ascendentes. Retomo aqui o caso da família Brust, na qual o ramo
do Rio Grande do Sul foi ‘descoberto’, por acaso, em uma visita a trabalho que Dalva Brust
faz a São Leopoldo e alguém lhe fala sobre os Brust do Vale do Taquari/RS. Sobre isso, Ivam
enfatiza:
A busca, às vezes, causa surpresas... A família acha que tem dois ou três irmãos
imigrantes e a listagem mostra o ingresso de cinco irmãos, sendo que alguns se
deslocaram para outros Estados. No final, a linhagem é bem mais ampla do que a
família tinha conhecimento.
O processo de busca é bastante criterioso e, mesmo com as microfilmagens já
transpostas a um banco de dados, requer o cruzamento de informações e decifração de
caligrafia. O PI (Projeto Imigrantes), como será referido daqui para frente, também presta
outros serviços como organização de Festas de Família, encaminhamento de processos de
dupla cidadania e produção de materiais com a inscrição dos nomes ou brasões para presentes,
brindes, etc.
No portal, há vários itens anunciando a possibilidade de ter em registro, dados
importantes para a adesão de consumidores interessados no temas: listagem de imigrantes,
histórico de nomes e sobrenomes, brasões de família, orientações para a dupla cidadania, etc.
Ivam acrescenta que houve períodos de perda de registros, como o do período na primeira
guerra mundial, em que imigrantes temerosos de possíveis convocações para que fossem lutar
296
na Itália colocaram fogo nos cartórios de Bento Gonçalves, Caxias do Sul e Garibaldi, para
não serem identificados. Outra fonte de registros é a da distribuição de terras: eram três lotes
para um imigrante e um para um brasileiro. Os imigrantes compravam os lotes dos brasileiros
para formar suas colônias e evitar o contato entre as culturas. Essa distribuição e compra de
terras eram registradas nos cartórios locais e esse é um dos documentos que pode entrar no
processo de dupla cidadania.
O trabalho da empresa, que atua há 28 anos, é realizado em interconexão a bancos de
dados de muitos países e há uma troca sistemática por informações. As parcerias firmadas
trouxeram um forte impulso à empresa e a procura tem ampliado significativamente nos
últimos anos. Segundo Ivam,
É um serviço pro país todo, para o mundo, para o Brasil... e hoje, por isso, o
reconhecimento. É um trabalho muito, muito bonito e gratificante. A maioria das
pessoas retorna contando: ‘ó, a minha avó ficou emocionada, começou a chorar,
encontrou a família.’ Eles [os clientes] começam a contar sobre as suas famílias,
quando vêem que aquela pessoa é o que eles estão procurando e que, às vezes, têm
muitos nomes iguais, muito repetidos naquela época, muito Giuseppe, muitos
Pietros, muitas Marias, Luigi... e hoje tem pessoas que procuram e retornam: ‘não
achei nenhum José na listagem’. Não é José, é Giuseppe, então, são detalhezinhos
que passam... e aí ligam, agradecendo.
Desde sua inauguração até os dias atuais, a alteração facilitada pelas tecnologias de
informação e comunicação é significativa e apresenta a transversalidade das motivações para
a busca da ancestralidade familiar:
Hoje, com o sistema que a gente tem, para qualquer lugar do mundo nós mandamos
no mesmo dia, por e-mail. Antigamente era mandado por correio, até começar a dar
grandes volumes, era um absurdo de caro, do que se cobrava pela transferência de
informações. Às vezes estava empacotado, tudo impresso e levava um dia todo
imprimindo. Então chegavam os Silva... imprimia, imprimia, imprimia. Imagina,
sabe quantas pessoas tem com o sobrenome Garcia hoje? Até uns dias atrás tinha
sete mil e trezentas! Imagina, não tem como.
O percentual maior de busca é de brasileiros já morando lá e estudando, eu diria
que estudando vem em primeiro lugar e querem fazer a dupla cidadania européia
porque com isso poderão se deslocar pra qualquer país do mercado comum
europeu, sem problema nenhum. Interessante, não é em termos comerciais, claro,
também é, mas o primeiro vem em função do estudante de pós-graduação... Em
segundo, quando aqui no Brasil são os Encontros de Famílias que contam com 500,
1.000 pessoas. Eu já fui a alguns, como convidado. É interessante... vejo o Encontro
de Família como fundamental também, sem dúvida, e aí é que eu sinto que está
havendo uma melhoria no relacionamento das pessoas.
O PI atua no mercado de forma ampla, e Suzana enfatiza as diferentes estratégias para
a ampliação do ‘negócio’. Mostra-me os produtos que disponibiliza para os Encontros de
297
Família, personalizando-os com a impressão do sobrenome e, às vezes, com os brasões. Essa
diversidade de atividades denota a dimensão que os eventos festivos tomaram e as
características específicas adotadas pelas famílias, tendo em vista a disponibilidade financeira
com que contam para organizá-la. Suzana comenta sobre as Festas de Família mais restritas
que reúnem os parentes mais “diretos” na Páscoa ou no aniversário de alguém e que, para
essas ocasiões, tem sido freqüente a solicitação de produtos de maior custo, como roupões,
toalhas de banho, jogo de xícaras com o brasão e o nome da família para serem distribuídos
ou presenteados aos parentes. No site há a disponibilidade de inúmeros produtos,
constantemente renovados, em consonância à lógica da sociedade de consumo, em que
consumir seria, nesse contexto, um “investimento afetivo”, e não um simples gasto monetário;
os bens, por sua vez, seriam “acessórios rituais”, dando sentido ao "fluxo simbólico" da vida
social, seguindo o que sugere Canclini (1999).
3.4 O papel do jornal no evento festivo
Vários jornais do Estado anunciam Festas de Família. Ainda atendendo a um número
expressivo de leitores, esse veículo de informação assume o papel importante junto às redes
familiares com serviços de divulgação e é um forte aliado à cooptação de parentes que moram
na mesma cidade, mas não mantêm vínculos mais estreitos com os familiares.
A coluna “Túnel do Tempo” do Jornal Zero Hora, de Porto Alegre, sob a
responsabilidade do jornalista Olyr Zavaschi, foi muito importante para a ampliação da rede
de famílias perscrutadas. Semanalmente, são divulgadas Festas ou Histórias de Famílias na
coluna citada no jornal de maior circulação do Estado e, por conta disso, entrevistei o
responsável pela coluna.
A coluna nasceu em vinte de setembro de 1999 para dar uma vazão a uma
necessidade que os leitores demonstraram durante muitos anos em relação à
história da cidade, da história do país, da história das famílias. Então, desde o
início, se deu destaque a informações sobre famílias, as mais diversas.
Normalmente quem manda mais informações são de famílias oriundas de
descendentes de italianos ou alemães, mais do que portugueses. Os portugueses,
que são mais antigos, não têm essa necessidade de se fazer presente, porque... uma
imigração mais recente tenha ajudado a formar, a definir essa constatação. Em
função disso, a gente tem dado espaço a festas de família, memória de família ou
algum fato importante de uma família: cem anos, enfim, da chegada no Brasil, cento
e cinqüenta anos do embarque na Itália. Ter dado essa oportunidade para as
famílias e a resposta foi o seguinte: o interessante é que isso acaba interessando
não só às famílias diretamente envolvidas com aquele sobrenome ou que teve algum
parentesco com aquele sobrenome; mas toda a comunidade, enfim, daquela etnia,
298
daquelas cidades envolvidas. Acabou sendo interessante porque é um negócio que a
gente não faz, não procura, não faz questão de, é uma procura espontânea.
Observa-se acima o interesse da população pelos fatos históricos que dêem conta de
um espaço reflexivo da memória: a cidade, o país, a família. Esses espaços são ‘lugares’ de
memória
134
e, ao ser de interesse de um número significativo para a população que ocupa o
espaço de circulação do jornal, reitera a importância de pensar sobre a reivindicação em
relação à memória desses lugares. Seguindo Ricoeur (2007), a cidade apreende em um mesmo
espaço épocas diferenciadas e propicia uma visão histórica dos gostos e das formas culturais
que se vê e se lê, simultaneamente, “na medida em que oferece um espaço de deslocamento,
de aproximação e de distanciamento” (Ricoeur, 2007, p. 159).
E aí provavelmente a origem tenha sido... enfim, a partir do momento em que, eu
interpreto, pode ser uma interpretação completamente furada, mas eu interpreto
sendo o seguinte: consolidadas as imigrações italianas e alemãs, houve uma
preocupação com o passado, com a origem, com o não se perder essa vinculação
histórica com os primeiros que chegaram aqui e sobre muitos casais se perdeu a
referência. A dificuldade que muitas pessoas têm, até eles vêm recorrer a mim como
se eu tivesse condições de fazer. Sabe, por exemplo, em que navio chegaram os
primeiros imigrantes daquela família? Ou então, onde é que pode conseguir a
certidão de nascimento pra conseguir a cidadania? É algo muito interessante.
A relação com a identidade étnica é muito forte e mostra a força da identidade étnica
quando são ameaçadas pela ausência de fronteiras que defendiam a comunidade (Bauman,
2003). Retoma-se o tema “origem”, porém, sob a ameaça de perder as referências que situam
os indivíduos nos diferentes grupos de pertencimento. No entanto, o esvanecer do
pertencimento tem mostrado a busca incessante em reavê-lo novamente sob uma nova
roupagem, adequada às transformações já operadas nos indivíduos frente à fluidez com que se
estruturam as relações.
E tem muita gente que utiliza, se utiliza da coluna também pra convocar as pessoas
pra essas festas familiares.
Por fim, observa-se que os eventos marcados pela busca da reordenação da
ancestralidade e a compreensão das várias transformações sobre o parentesco na vida do
mundo moderno não está reduzido a espaços tão locais como se remete simbolicamente às
ações mais tradicionais. A existência de empresas que se especializaram na divulgação, na
organização desses eventos, programas turísticos voltados para atender a uma determinada
134
Le Goff (2003), Nora (1993) e Yates (2007).
299
demanda e softwares em diversos idiomas e formatações estão ocupando espaços
significativos do mercado mundial que, visto sob esse prisma, obtém-se a segurança de
afirmar que é um evento de expressão globalizada.
300
Capítulo 4
A cidade, o consumo e o filme crítico
301
Os ritmos da cidade alternam-se sob o ritmo em que seus habitantes a vivenciam. Nela
vamos encontrar o ritmo do idoso, o da criança, o do motoboy, o da dança... O tempo da
metrópole é diferente do tempo da cidadela. Assim percebi o tempo familiar: com diferentes
ritmos que abriga a rede de parentesco, com diferentes ritmos que movem as famílias e que
movem os seus membros. Conforme sugere Edgar Morin:
O ambiente não é só um co-presente; ele é também um co-organizador [...] Assim se
impõe a idéia-chave: o ambiente é constitutivo em relação à permanência de todos
os seres que se alimentam nele; ele sempre coopera com sua organização. Esses
seres e sua organização são, portanto, ecodependentes de forma permanente (Morin
in Casalegno, 2006, p. 20).
Para entender as diferenças que existem nas obras que estruturam o mundo, deve-se
pensar em que ritmo os indivíduos atuam, em que cidades eles transitam e vivem seu
cotidiano.
A dominação tradicional era exercida pela constante vigilância sobre os indivíduos
quando o projeto de construção do Estado-nação prescindia a ruptura destes com as lealdades
existentes entre as comunidades de vizinhança, de corporações. Esse movimento proveria,
então, o ideal de ‘cidadão’ que estaria inserido em “uma totalidade abstrata e distante da
nação e das leis da terra” (Bauman, 2003, p. 114). Esse período foi caracterizado como de
“engajamento”, que se configura nas relações entre governantes e governados e que antecede
o que vivemos na contemporaneidade – o “desengajamento”. Por sua vez, o
“desengajamento” é o processo que se estrutura nas relações de produtores e consumidores,
no qual o valor do “desejo em busca de satisfação” é o motor que atua na sustentação dessas
relações. A vigilância sobre a ação dos indivíduos desloca-se para os próprios indivíduos que,
reflexivamente, se automonitoram. Essa é famigerada sociedade de consumo, em que o que se
tem é a substituição das normas estabelecidas anteriormente entre governantes e governados
pela variedade e pelo excesso – promotores da insegurança que afeta a todos, “imersos que
estamos num mundo fluido e imprevisível de desregulamentação, flexibilidade,
competitividade e incertezas” (Bauman, 2003, p. 129) – em que a ansiedade causada deverá
ser resolvida individualmente como resultado de falhas pessoais ou da habilidade pessoal de
contornar as contradições que se almeja escapar.
A importância de retomar o tema sobre as profundas alterações que se observou nas
formas de atuar frente às intimidades da vida pessoal e aos envolvimentos sociais mais
amplos é a sua necessidade introdutória para pensar a cidade e os indivíduos que nela
302
habitam. Dadas as considerações, deve-se pontuar que essas características não são idênticas
em todos os indivíduos.
Ao acompanhar os grupos familiares e suas trajetórias em diferentes municípios do
estado, observou-se que ainda há aqueles que dispõem em suas narrativas sobre os valores de
pertença familiar e da identificação com seu grupo de interesses. Nesse ínterim, referem-se ao
sentimento de enraizamento e de lealdade às suas comunidades, tendo em vista a presença de
lógicas do grupo para a continuidade de tradições locais. Nesse sentido, a apreensão do
mundo se dá sob as formas ritmadas dos sujeitos perscrutados, em que os habitantes de Pato
Sobrado a apreendem diferentemente aos habitantes de Canoas; os de Poço das Antas aos de
Encruzilhada; os de Taquari aos de Porto Alegre; os de Porto Alegre aos de Santiago; e assim
por diante.
Ouvi, por parte dos “festeiros interioranos”, algumas acusações sobre os parentes de
Porto Alegre que não se comprometiam com a organização das Festas, como ouvi também
que os do interior não investiam para hospedar-se no hotel onde aconteceria a Festa da
Família. O que está em pauta não são as acusações, mas as diferentes formas de perceber e
viver o mundo que, na rede de parentesco, evidenciam a co-existência de múltiplos contextos
que marcam a heterogeneidade entre as pessoas e os locais que abrigam estilos de vida
diversos. O sentido das acusações dá conta das mudanças que têm início na reorganização dos
espaços, nas transformações econômicas e políticas, das quais as cidades são os cenários que
acolhem e suscitam as contradições advindas dessas mudanças nas formas de construir a
realidade social. Trata-se, portanto, de viver o momento sócio-histórico sob temporalidades
diferenciadas, sob ritmos desiguais do desenvolvimento econômico e social, das contradições
nas formas de ver e atuar no mundo.
A realização das Festas, o encontro com a rede de parentesco, no qual um grande
número de membros nem sequer sabia da existência de alguns dos membros presentes no
evento, é circunstancial para a reflexão sobre as incongruências da vida moderno-
contemporânea brasileira, dos desencontros de tempos sociais e das desigualdades que neles
se expressam e da extensão expressiva da rede de parentesco, limitando as possibilidades de
relações face a face. Falar sobre a cidade é falar dessas contradições, uma vez que esta se
constitui com a regularidade necessária para compreender os comportamentos e interesses
daqueles que a habitam. Ou seja, os movimentos que formam a cidade são tecidos em
concomitância à organização dos seres sociais que nela habitam. Ou ainda, “o espaço não é
reflexo da sociedade, é sua expressão” (Castells, 1999, p. 434).
303
Nessa direção, a cidade é construída pelos sujeitos que se constroem ao mesmo tempo
e, portanto, são marcados por ela, assim como deixam nela as suas marcas. Esse movimento é
que identifica os sujeitos a esse espaço físico e vivido, e essa identificação será renovada
constantemente para que perdure no tempo.
Portanto, as diferenças tornam-se significativas quando se trata de familiares que
habitam espaços urbanos distintos. Aqueles que se deslocaram para a capital em busca de
oportunidades, mas que viveram nas cidades interioranas por muito tempo das suas vidas,
relacionam-se com os dois espaços em vista das experiências vivenciadas em diferentes
períodos da sua trajetória pessoal. A sua relação ao espaço de origem não permanece intacta e
é obliterada pela sua relação com o espaço que passou a habitar. Os ritmos de cada uma das
cidades se sobrepõem e os sentidos apreendidos em cada localidade, ainda que descontínuas,
são constitutivas desses sujeitos que se revelam ora nas formas simples de expressar-se, de
relacionar-se com os filhos, de manter os resíduos do tempo em alguns hábitos cotidianos da
vida pacata e segura da sua cidade de origem, ora acatando as formas modernas de ausência
de tempo, a racionalidade, a adesão aos meios de informação e comunicação, as hesitações da
modernidade.
Por outro lado, os familiares que permaneceram nas suas cidades de origem mantêm as
experiências de viver o dia-a-dia com a sensação tranqüilizadora da certeza e a segurança
sobre os acontecimentos futuros, estar entre próximos nas formas de pensar e agir no mundo,
em lugar de compartilhamento do bem-estar comum sem, no entanto, deixarem de estar
conectados às modernas tecnologias comunicacionais, assistirem a outras formas possíveis de
dar sentido às práticas sociais, etc. Os dilemas desses diferentes modos de se reconhecer em (e
de) um ou outro espaço urbano é, no primeiro caso, a viver a sensação constante do risco
(Beck) e do desencaixe (Giddens); porém, no segundo caso, é ter em conta a rede de
obrigações comunitárias, a vigilância próxima dos comportamentos definidos pela redução do
espaço físico e pela larga dimensão do espaço vivido.
Segundo Anthony Giddens, as condições sociais modernas são marcadas tanto pelos
processos da globalização quanto pela procura de contextos de ação mais tradicionais:
[...] A conexão [entre globalização e contextos de ação tradicionais] são as
conseqüências desincorporadoras resultantes dos sistemas abstratos. Nesse caso, as
influências causais são complexas e estão ligadas ao caráter multidimensional da
modernidade. [...] Tradição diz respeito à organização de tempo e, portanto, também
de espaço: é o que ocorre também com a globalização, exceto pelo fato de que uma
corre em sentido contrário à outra. Enquanto a tradição controla o espaço mediante
seu controle do tempo, com a globalização o que acontece é outra coisa. A
globalização é, essencialmente, a “ação à distância”; a ausência predomina sobre a
304
presença, não na sedimentação do tempo, mas graças à reestruturação do espaço
(Giddens, 1997, p. 118).
A busca por ações mais tradicionais inclui rever “as suas origens”, e entende-se como
origens a busca de um espaço de memória capaz de formular normas de vinculação. Portanto,
rever esse contexto tem como finalidade pensar na proposta que as Festas de Família trazem
uma forma criativa dos indivíduos reordenarem a tradição sob a possibilidade de rever-se a
partir de uma identidade compartilhada e dos seus sentimentos pessoais. Essa questão é
abordada por Gilberto Velho (1995), quando trata do estilo de vida urbano contemporâneo:
[...] as crenças e valores tradicionais não desaparecem necessariamente diante da
expansão das ideologias individualistas modernizantes. O fato da sociedade ser, por
natureza, multidimensional e heterogênea, produz alternativas e cria novos
domínios. A não-lineraridade e multidimensionalidade dos processos socioculturais
é maximizada nos centros urbanos, cuja principal característica é a geração de estilos
de vida e visões de mundo diferenciados que, no limite, levam à experiência da
fragmentação (Velho, 1995, p. 10).
Com base no exposto, re(inventar) a tradição familiar na produção de Festas é a
tentativa criativa do indivíduo de reencontrar-se pertencendo a uma “comunidade” tecida de
compromissos afetivos de longo prazo, na qual poderá acomodar com segurança os erros ou
acertos de suas ações, obter a proteção necessária para lidar com as incertezas da vida
cotidiana.
4.1 A reivindicação da territorialidade como traço identitário
A partir desse levantamento, é emblemática uma situação para pensar a cidade como
uma reivindicação de identidade que se situa na territorialidade. Trata-se das famílias
Finamor, Fortes e Jornada, e o retorno anual à cidade de Santiago para revivificar o
sentimento de pertença ao lugar de origem que deixaram em busca de oportunidades melhores
para ascender socialmente – ou, quem sabe? Sobreviver. Muitos membros das famílias
participaram dessas correntes migratórias e ressentem-se das alterações do estilo de vida
interiorano que deixaram com o deslocamento e o que aderiram ao viver na capital. Por vezes,
o desconforto de viver nos centros urbanos de maior porte, mais “invadidos” pelo processo de
globalização, e a incapacidade de não aderir a novas concepções, adequadas às novas
demandas de um mundo de contradições bastante visíveis, provoca a sensação de
“desenraizamento” (Todorov, 1999), a de ser um “estrangeiro” (Simmel, 1983). A decisão de
realizar a Festa das Famílias Forte, Finamor e Jornada foi a forma encontrada de acomodar a
305
ausência de referências de pertencimento diante das diferenças e confrontos de visões de
mundo que se tornam motivadores de formas mais individualizadas de (sobre)viver ao ritmo
da capital.
Portanto, voltar à cidadezinha de origem anualmente e, de forma alardeada, mostrar
que está ali denota a reivindicação territorial à identidade que tece, simultaneamente, uma
memória íntima (do sujeito-corpo que retorna) e uma memória compartilhada (do espaço-
ambiente que abriga pessoas próximas). Ou seja, “nessas lembranças tipos, o espaço corporal
é de imediato vinculado ao espaço do ambiente, fragmento da terra habitável, com suas trilhas
mais ou menos praticáveis, seus obstáculos variadamente transponíveis” (Ricoeur, 2007, p.
157), enquanto a cidade se expressa nos relacionamentos dos que retornam a esse espaço
aberto tanto à comemoração como à percepção.
A realização das Festas de Família há mais de 20 anos e a forma como foram
estruturadas – a locação de um ônibus coberto com faixas que anunciam a presença das
famílias, mais que as festas; a carreata pelas ruas do centro da cidade, acompanhada de
buzinas, abanos e gritos – mostra as táticas de sentir-se pertencer. O evento é o espaço
“construído” para abrigar a verdadeira motivação: a de fixação a Santiago, a de poder
vivenciar interações significativas, de reconhecer-se nas lembranças dos lugares que, junto
com e na cidade, deram sentido às experiências vividas a cada um dos familiares que
retornam.
Por sua vez, a Festa da Família Saltiel é organizada pelos filhos de Laor, a princípio,
para dar ao pai a alegria de reunir a família no lugar em que ele nasceu e de onde saiu jovem
em direção à capital. Laor, acometido de um mal súbito de muita gravidade, externou em
algum momento a vontade de estar com os seus na cidadezinha de Caráa, onde nasceu e criou-
se envolvido pela vida simples e ligada à natureza. Os filhos, sensibilizados pelo acontecido,
organizaram o evento e reuniram os familiares em um lugar da cidade no qual Laor, seus
irmãos e primos viveram inúmeras aventuras na juventude. A escolha do lugar específico da
festa denota a apreensão afetiva do espaço revelada como lembrança de um tempo passado,
um espaço “subjetivado” que nele se criou o “Nós” (Schutz, 1979), “memória tecida por
nossos afetos e por nossas expectativas diante do devir” (Foucault in Deleuze, 1985, p. 46).
O espaço delimitado e descrito em um contexto da subjetividade apresenta-se
diversificado e conjuga as interações e percepções que conferem arranjos específicos de sua
apreensão pelos grupos sociais. No caso da família Mundstock, um dos aspectos da dimensão
simbólica atribuída ao espaço da cidade na qual foi realizada uma edição do evento festivo
leva, em um dado momento, os parentes a dirigirem-se ao cemitério no qual estava situado o
306
jazigo do antepassado pioneiro da família Mundstock no Brasil. Essa mesma consideração foi
observada na família Flach, na família Brust e contemplada nos estudos de Ellen Woortmann
(1994) sobre as árvores genealógicas dos colonos descendentes de imigrantes alemães e as
representações simbólicas implicadas nas suas formas de organização. As sepulturas velam
pela continuidade de uma memória familiar: nessa condição de espaço sagrado estão “as
raízes” do grupo que permanece em seus descendentes.
Por fim, observa-se que o espaço social local (urbanizado densamente ou as pequenas
cidades) é uma parte importante, constitutiva das experiências e memórias familiares.
Carregado de sentido compartilhado, age como referente para os discursos evocadores de cada
uma das famílias erigidas, para a identidade social e para as recordações dos indivíduos, como
estabeleceu Halbwachs:
[...] o lugar recebeu a marca do grupo, e este a do lugar [...]. Cada aspecto, cada
detalhe desse lugar em si mesmo tem um sentido que é inteligível apenas para os
membros do grupo, porque todas as partes do espaço que ele ocupou correspondem
a outro tanto de aspectos diferentes da estrutura da vida da sua sociedade, ao menos
naquilo que havia nela de mais estável (Halbwachs, 2004, p. 139).
4.2 A sociedade de consumo
Um dos estudos de referência internacional sobre consumo na área da antropologia foi
realizado por Mary Douglas na obra O Mundo dos Bens (2004). A autora reconhece a
importância crucial desse fenômeno na cultura contemporânea, argumentando que o mesmo
possui relevância tanto prática quanto ideológica no mundo moderno-contemporâneo.
Enquanto uma prática cotidiana da vida social, a observação sobre o consumo se deve ater,
sobre outros aspectos, ao espaço de significação que essa prática assume na construção das
identidades, na regulação das relações sociais e no mapeamento do sistema de interação entre
os indivíduos.
Nessa direção, a noção do consumo como uma prática social e com raízes antigas na
história da humanidade, segundo Everardo Rocha, é
[...] uma realidade simbólica de significados tão densos que merece uma reflexão
livre do viés aplicado que impera no mundo dos negócios. O estudo sistemático do
consumo permitiria desvendar um dos mais importantes códigos através do qual a
cultura contemporânea elabora a experiência da diferença, constrói um sistema de
classificações sociais e interpreta as relações entre as coisas e as pessoas (Rocha,
2002, p. 5).
307
O consumo denota uma prática voltada a objetos que, de modo geral, são vistos como
alvo de desejo e valorizados pelo conforto ou respeito que atribuem ao consumidor. Em certa
medida, o consumo que, distanciado do seu caráter de um bem a ser adquirido pela
necessidade, ou seja, diante da instabilidade do desejo, a insaciabilidade das necessidades e a
‘busca da felicidade’ – para citar a invocação repetitiva da área de marketing –, suscita a visão
do consumo como algo reprovável, pernicioso. No entanto, a teoria das compras,
desenvolvida por Daniel Miller (2002) em uma obra de mesmo nome, traz as diferentes
formas que os consumidores atribuem significado à mercadoria em acordo com a capacidade
de cada objeto objetificar valores pessoais e sociais. Ou seja, a compreensão sobre os
processos de escolha e a sua relação com a habilidade do consumidor em lidar com a
ambivalência dos relacionamentos sociais. A citação à obra diz respeito, primordialmente, à
análise que o autor traz sobre as compras de abastecimento dos lares (pesquisa realizada em
um bairro de Londres) e que são percebidas como uma expressão do amor, em vistas ao
fortalecimento dos laços de parentesco. A escolha dos produtos passa pelos desejos e pelas
preferências dos membros das famílias, se traduz em escolhas minuciosas pela qualidade do
produto que o autor chamará de “mercadorias edificantes”.
Nesse sentido, as Festas de Família denotam a preocupação análoga ao que a obra
acima sugere: a preocupação com os relacionamentos “a longo prazo” que expressam o
cuidado em agradar os familiares – atendendo aos gostos particulares – e economizar ao
comprar mercadorias – atendendo aos signos de restrição, da modéstia e do comedimento.
Para o autor, “o propósito do comprar não é tanto comprar as coisas que as pessoas querem,
mas lutar para continuar se relacionando com os sujeitos que querem essas coisas” (2002, p.
162).
4.3 O consumo da e na festa
A observação que fiz inicialmente sobre as diferenças de concepção do mundo situa-se
em diferentes frações da vida social. No entanto, o consumo é compartilhado pelos diferentes
estilos de vida, salvaguardadas as proporções desiguais e adequadas às disponibilidades de
recursos materiais particulares, considerando viver em um país de imensas desigualdades
sociais.
O consumo está intimamente identificado com as preferências individuais e torna-se
fundamental para a continuidade do sistema capitalista. A liberdade de escolha individual, que
atende à lógica de um mercado, resulta de um forte apelo publicitário subentendido na noção
308
de “estilo de vida”. Esta, por sua vez, fica evidenciada sobre as formas de celebrar a família,
quando a escolha do tipo de comemoração é debatida entre os organizadores. Com relação às
Festas do tipo “modismos em tempo de globalização”, trago como exemplo as duas festas que
foram realizadas em hotéis ao longo de um final de semana. Os hotéis disponibilizaram os
locais necessários para as etapas que compreendem o ritual, tendo em vista que já mantêm
certa regularidade na recepção de festas de família. Observa-se, portanto, a intermediação de
empresas que se especializaram na produção desse tipo de evento na composição da
genealogia, personalização de lembranças com brasões e o nome da família, etc., inseridas em
um contexto de demanda por esse tipo de consumo que, segundo Bauman:
[...] a oferta fornece entidades destinadas a se tornarem mercadorias – mas é a
procura que as converte nisso. Além disso, o processo de “mercadorização” é
simultaneamente o ato do nascimento do consumidor: mercadorias potenciais e
compradores potenciais realizam-se juntos (Bauman, 1998, p. 172).
As festas no interior mantêm um padrão menos “globalizado”, mais arraigado aos
padrões culturais da cidade do interior. No entanto, observou-se que algumas das festas
apresentaram locais reservados à venda de pequenos souvenires com as inscrições da família:
canetas, cuias de chimarrão, camisetas, calendários, imãs de geladeira, artefatos de escritório,
etc. Alguns objetos portavam o nome da família, outros o brasão. No entanto, o que mais era
consumido era a filmagem da festa adquirida “para guardar de lembrança”. Portanto, os traços
mais tradicionais e próximos ao comunitarismo que apresenta a rede de parentesco se
ressemantizam acolhendo novas possibilidades fornecidas pela sociedade de consumo e
denota a clara evidência de conexão entre os padrões culturais da globalização e os padrões
tradicionais.
Além dos bens de consumo disponíveis e aqueles que formaram os espaços festivos
que já foram tratados acima, cabe chamar a atenção sobre o consumo de alimentos na
condição de pratos típicos que a festa propõe. Alguns eventos, com exceção das festas
ocorridas nos hotéis, adotaram a praticidade como regra, contratando bufês para atender a
refeição compartilhada pelos familiares; outros eventos contaram com a colaboração das
famílias que levaram as sobremesas, cucas, pães, etc. Em outras ainda, as festas “pequenas”
em que se reúnem os grupos familiares mais próximos – organizados como “Encontro de
Primos”, no caso os Mundstock e os Pretto –, cada grupo encarregou-se de levar um prato
para compor a refeição. Pode-se observar, nessas ocasiões, a preocupação em elaborar pratos
que fizeram parte da infância que compartilharam, ou a sobremesa que um tio gosta muito, ou
309
a preocupação com a alimentação das crianças, acomodando-as em um espaço especial e
lembrando daquilo que mais gostam. Retomo Miller (2002) sobre o consumo como
“expressão do amor” que busca reforçar os laços sobre as relações mais duradouras.
4.4 O filme Festa de Família
O filme cinematográfico Festa de Família
135
foi profícuo para a reflexão sobre os
valores familiares expressos em um determinado estilo de vida. A história narra o modo de
vida de uma numerosa família dinamarquesa no final do século XX. O drama e o caos que se
estabelece no evento é a manifestação da vida contemporânea que vivencia a fragilidade das
relações no seu interior, tendo em vista que em meio a grandes transformações sociais,
resultado do processo de uma modernidade tardia e da globalização, percebe-se a busca de
contextos de ação mais tradicionais. As cenas que compõem o filme trazem uma contundente
crítica aos valores familiares, cujo drama se estabelece em torno das relações autoritárias dos
pais e a insurgência dos filhos já adultos.
Festa de Família parece ter sido feito em VHS caseiro, típico das filmagens nos
eventos perscrutados e que, posteriormente, tornam-se produtos disponíveis para o consumo
da rede de parentesco. Por sua vez, a adoção de um roteiro sobre o tema Festa de Família,
percebido como um espaço que retém traços de tradição em alternância com traços modernos,
está implicado na proposta crítica do movimento Dogma 95
136.
4.4.1 Um roteiro crítico
135
Informações Técnicas:
Título no Brasil: Festa de Família
Título Original: Dogme 1 – Festen
País de Origem: Dinamarca
Gênero: Drama
Tempo de Duração:106 minutos
Ano de Lançamento: 1998
Site Oficial: http://www.festen-lefilm.com
Estúdio/Distrib: Danmarks Radio / SVT Drama
Direção: Thomas Vinterberg
136
O filme é o primeiro filme do movimento Dogma 95, criado por diretores dinamarqueses e que prega um
cinema mais simples, sem artifícios: câmera no ombro, som direto, imagem sem iluminação artificial e sem
crédito do diretor. Adota uma maneira radical do uso das técnicas cinematográficas, utilizando-se de uma série
de regras. Observa-se, como resultado, a ênfase à interpretação dos atores e ao roteiro muito bem estruturado.
Com o uso desses recursos, as sensações são extrapoladas e jogadas ao espectador de uma maneira muito
eficiente pela realidade das cenas.
310
A temática gira em torno de uma crítica ácida à família e às relações humanas. A
narrativa aborda relações polêmicas e fontes constantes de denúncia na sociedade como o
abuso sexual do pai com filhos, o suicídio, o aborto, o racismo e a violência doméstica. Esse
conjunto de ações costura a trama de forma coesa.
Em linhas gerais, a festa é uma homenagem aos 60 anos do patriarca de uma família
dinamarquesa, Sr. Helge, proprietário de um hotel. O núcleo familiar é composto pelos pais e
quatro filhos: os dois mais velhos, Christian e Linda, eram gêmeos, sendo que Linda suicida-
se em um dos quartos do hotel alguns meses antes; há Heléne, que convida o namorado negro
para a comemoração e Michael, que comparece com a esposa e três filhos pequenos. O início
do filme já traz a problematização das relações de dominação e violência entre esposa e
marido, o conflito de gerações quando um dos filhos do Sr. Helge não constava como
convidado para o encontro; a recepção discriminatória ao namorado negro; e, por fim, há um
conjunto de acusações sobre violências físicas e simbólicas que caracterizaram a vida em
família.
A cerimônia acontece a partir de atos formalizados que compõe o ritual da festa, sendo
que a maior parte do filme se passa durante o almoço, no qual a família vai mostrando suas
características, seus limites e defeitos.
4.4.2 A imagem da família
O filme é dramático sobre a forma de tratar o tema. O modelo hierárquico sobre os
papéis familiares, a aparência de família “bem-estruturada” e o comportamento esperado dos
membros desse grupo familiar – que conta com grande prestígio na sociedade local – trazem a
fragilidade da aparência construída e que vai sendo desmantelada pouco a pouco a partir dos
dramas individuais que resultaram das relações pautadas pelos interesses contidos nos
projetos pessoais, primordialmente.
Por sua vez, os encontros de família podem ser percebidos enquanto uma das formas
ou estratégias contemporâneas dos indivíduos que buscam uma nova ordem que contemple as
mudanças e reformulações da vida cotidiana agregadas à permanência de determinados
padrões sociais e culturais. Tendo em vista que, em meio a grandes transformações sociais,
resultado do processo de globalização, observa-se a busca de contextos de ação mais
tradicionais. Inicialmente, tinha-se a concepção de que as relações do tipo globais – relações
impessoais, individualismo, declínio do parentesco extensivo, secularização – encontravam-se
distantes das preocupações da vida cotidiana e pouca atenção foi dada à conexão destes com
311
os modos que operam nos aspectos mais íntimos das vidas dos sujeitos como o afeto à
família, as camaradagens da relação com amigos e vizinhança, lugares de acomodação ao
sentimento de pertença.
As cenas do filme acenam precisamente para essa situação, podendo ser observada
com intensidade nas relações geracionais. Enquanto o pai, o Sr. Helge, apresenta-se como um
virtuoso pai, renomado profissional e adepto à doutrina da maçonaria, os filhos mostram-se
irreverentes diante das expectativas e projetos que os pais neles depositaram. Essa
descontinuidade nos processos socioculturais familiares denota a diferenciação da vida social
que tem como características a não-linearidade e a grande autonomia de mundos e domínios
específicos. Agregado a isso, a aparente família bem estruturada, bonita, bem vestida; o pai
deliberando e exigindo rigorosamente um comportamento formalizado dos filhos na sua festa
de 60 anos, apresenta um modelo em uma dimensão maior, exterior, que dá conta da
exposição da família à sociedade. É, na verdade, o estereótipo da família, onde há filhos
bonitos e realizados, pais orgulhosos do cumprimento do dever. Já numa dimensão interna,
mais íntima, as relações fogem drasticamente aos padrões do que está socialmente
estabelecido: crise do casal, a intolerância à diferença étnica e de classe social, os desajustes
emocionais que acometem os indivíduos. Enfim, o filme se constrói nessa luta entre o maior e
o menor, o aparente e o vivido; o exterior, o que os outros vêem e o interior, o que cada um
pensa e vive na família, nas suas experiências concretas.
Em Festa de Família, o diretor Vintenberg parece fustigar a velha e tradicional família
patriarcal, rigidamente estruturada. E ele traz, no entorno do drama narrado, a dificuldade de
lidar emocionalmente com as tensões vividas em família.
4.4.3 A Festa vista como ritual
Semelhante às festas perscrutadas, o filme traz “etapas” bem marcadas no evento. Há
também o papel de um chefe de cerimonial, encarregado de estabelecer esses “tempos”
ritualísticos. Ou seja, o rito é um conjunto de atos formalizados, expressivos e portadores de
uma dimensão simbólica que tem o sentido estabelecido a partir da ordenação que propõe à
desordem. Tem na sua essência a mistura do tempo individual e o tempo coletivo, e as suas
ações simbólicas são manifestadas por emblemas sensíveis, materiais ou corporais.
Ao se perceber a festa com tempos e ações bem definidos, teatralizados, observa-se a
força emocional que agrega os participantes. A ruptura desses tempos, ou a troca do “texto”
que o ritual propõe, também assume uma dimensão muito além do que seria se a situação em
312
que ocorresse não estivesse inserida num processo ritualístico. Ou seja, segundo Segalen, um
determinado número de critérios
[...] é preciso que sejam repetidos, coletivos, comportem uma forma qualquer de
injunção, e que o mediador do ritual assuma a forma de alguma coisa consumida em
comum, bebida ou comida (Segalen, 2002, p. 110).
A dimensão que emerge do texto proposto leva a uma reflexão sobre as instituições
sociais mais próximas aos indivíduos enquanto responsáveis pela construção das formas de
compreender e sentir a vida, pelo desenvolvimento da “segurança ontológica”, como refere
Giddens (1991).
4.5 A cidade, a família e o consumo
No filme comentado, ainda que a trama trate de uma família de camadas altas em um
país europeu, o que está em jogo é uma transição imperativa na ética da vida social na sua
totalidade.
A cidade moderno-contemporânea teve seus espaços de interação reduzidos pelos
processos de individualização, e o sentimento da dúvida constante que traduz as relações
sociais estar pautada nos riscos individuais e desencaixe. Por sua vez, a família encontra-se
inserida nesse processo e apresenta-se nuclearizada, afastada da rede de parentesco como
conseqüência do desenvolvimento das instituições modernas, da inserção da mulher no
mercado de trabalho e a demanda intensa de sujeitos que se constroem sob a égide da
sociedade de consumo. O relacionamento do casal lida, portanto, com todos os aspectos da
realidade e, como nos indivíduos, submetida às contradições e vulnerabilidade do mundo
contemporâneo. No entanto, a família nuclear, sob a lógica da liberdade de escolha, tem a seu
“dispor” contornos legais e socialmente legítimos de dissolver-se e gerar novos contornos e
laços de parentesco associados à estrutura de famílias recombinadas.
A ordem do consumo que está ligada ao declínio das formas tradicionais reflete
imediatamente na noção atual da família prioritariamente como uma unidade de consumo,
nem sempre sob a característica do hedonismo, segundo Miller (2002). O processo de
nuclearização das relações familiares é fortemente reconhecido em algumas esferas da vida
social e em outras os laços se estendem para além do grupo doméstico, com base em uma
larga rede de ajuda mútua e solidariedade. Essas dimensões dizem respeito à inserção social
313
que hoje tem no consumo um dos parâmetros que definem o lugar dos indivíduos na
sociedade de modo geral.
314
Capítulo 5
Os rastros: família e parentesco ou rede de
sociabilidade entre memória e esquecimento?
315
Ao longo do percurso desta tese, foi sendo construída a preeminência de dar conta das
relações de trocas sociais em que a memória individual e a memória coletiva são estabelecidas
em uma memória vivida em círculos mais amplos, cujas narrativas devem ser interpretadas
sob a idéia de narrativa construída sobre a problematização do tempo: pré-figuração,
configuração e reconfiguração, referindo-se à noção de memória compartilhada proposta por
Paul Ricoeur (1994).
A memória compartilhada entre as famílias são tecidas em diferentes momentos: na
reordenação do parentesco, ao refletir a importância do mesmo a cada membro perscrutado,
ao imaginar uma Festa para comemorar a ancestralidade, ao contatar parentes para organizá-
la, ao realizar o grande encontro e recriar um lugar de memória compartilhada – a Festa da
Família. Essa trajetória vai sendo erigida lentamente por meio de rastros. E, na sua edificação
são conformados pela transmissão, uma vez que são perpetuados nos pequenos grupos do
contexto familiar e inseridos na ordem maior, que é a do parentesco. Os rastros visam a
similitude, pequenos signos que são reconhecidos nos encontros intersubjetivos, e a sua
perpetuação e inserção revertem na experiência do Nós. Esse é o sentido, a “tese geral da
reciprocidade de perspectivas” (Shutz), que potencializa o conhecimento de todos
objetivamente e de forma anônima, desligada e independente das definições de situação de
cada um e das circunstâncias de cada biografia.
A memória compartilhada é uma memória alimentada no sentido longitudinal (dos
próximos, dos parentes), atravessada pelas inúmeras transversalidades (do trabalho, do grupo
da igreja, do curso de idioma), todas elas também com seus percursos longitudinais, o que
Ricoeur chama de vertente simbólica:
[...] Essa representação de uma humanidade imortal [...] é o sintoma mesmo de um
funcionamento simbólico mais profundo, em virtude do qual visamos a um Outro
mais do que humano, cuja carência preenchemos com a figura dos ancestrais, ícone
do imemorial, e com a dos sucessores, ícone da esperança. É nesse funcionamento
simbólico que a noção de rastro vai esclarecer (Ricoeur, 1997, p. 195).
O rastro se situa no reconhecimento, na “persistência da impressão originária”
(Ricoeur, 2007, p. 436), como diz Ricoeur ao propor uma visão fenomenológica à noção de
rastro. O rastro também é um dos instrumentos pelos quais a narrativa histórica reconfigura o
tempo, indicando uma passagem, não necessariamente uma presença. Ele significa sem fazer
aparecer, deixa uma marca no presente em consonância com o acontecimento passado. É um
conector de tempos, é um tempo híbrido. Contudo,
316
Todos os rastros estão no presente. Nenhum deles exprime ausência, muito menos
anterioridade. Então, é preciso dotar o rastro de uma dimensão semiótica, com um
valor de signo, e considerar o rastro como um efeito-signo, signo da ação do sinete
sobre a impressão. [...] Para pensar o rastro, é preciso pensá-lo, simultaneamente,
como efeito presente e signo de sua causa ausente. Ora, no rastro material não
alteridade, não há ausência. Nele, tudo é positividade e presença (Ricoeur, 2007, p.
434).
As Festas de Família são preenchidas de rastros materiais que são dispostos
estrategicamente no ambiente de forma que sejam observados e que sobre eles os parentes se
debrucem reflexivamente. Os rastros materiais são estratégicos para alimentar a memória
compartilhada e é pauta constante nas reuniões de organização.
5.1 As festas e os rastros
Os rastros materiais buscam no passado a sua base comunicativa. Esse passado, por
sua vez, está inscrito da tradição, que tem no seu interior o caráter normativo que dá
oportunidade ao caráter de vinculação. Trata-se de conjuntos de fotografias que trazem
imagens dos antepassados, eventos importantes como casamento, bodas, morte, passeios,
festas de Natal, etc. A genealogia também promove a vinculação pela presença simbólica a
um conjunto imenso, na maioria das vezes de consangüíneos e afins que carregam um mesmo
nome, uma mesma marca. Por sua vez, a genealogia situa os sujeitos em uma duração, uma
história que atravessa gerações, fatos históricos, mudança de costumes e percepção sobre o
mundo. A visualização da árvore genealógica traz concretamente essa reflexão sobre si, sobre
os antepassados e imaginar o futuro.
Eu recebi uma carta de um parente meu que é professor de matemática, Anchieta,
Santa Catarina, que disse: ‘está provocando um reboliço de alegria e satisfação, é
um reboliço histórico este vídeo, isso aqui atrai mais do que só falar, só pelos
nomes. Também noto quando a turma vê o próprio nome na relação que eu já tenho
de 17 mil nomes, eles ficam todos entusiasmados, ‘ah! eu estou aqui’ e que
corresponde o nome de nascimento, eles se interessam muito, é uma coisa mais
concreta e depois também o visual é concreto. E mostra vivos, falecidos... Outro
sucesso foi um vídeo que fiz da minha parentela, ficou com 1h50min. Sou amador,
somos todos amadores. Então, mostra a Alemanha, mostra gente de lá, da nossa a
turma aqui. Fica toda a turma entusiasma (Irmão Justo – 86 anos).
Por conta de uma classificação de “rastro material”, Irmão Justo, ao contar sobre a
visualização da árvore genealógica, reforça o caráter da busca por si e pelos seus, da surpresa
sobre a sua dimensão e a observação sobre a passagem do tempo. Ele cita também o vídeo
317
que ele e outro irmão elaboraram e o sucesso entre os parentes. O vídeo é emocionante, pois
sobre ele foram feitos recortes e colagens que poderiam ser analisados sob a ótica da
ordenação de fatos e fenômenos que Irmão Justo privilegiou. Ao fundo, em um determinado
momento, se ouve o canto de vozes trêmulas de uma música em alemão. Irmão justo conta
que seus pais sempre gostaram de cantar e ele, em uma ocasião, gravou um dos cantos sem
que eles soubessem e mostrou a todos. Guardou a fita e hoje a tornou pública, trazendo no
vídeo o canto suave dos pais. Essas memórias contadas para mim são também relatadas aos
parentes “mais interessados”, como costuma dizer. Nessa direção, que a reprodução do
passado e a transformação no presente reinventam o cotidiano, recriam pontos de referência
coletivos em um tempo reordenado que busca a continuidade.
As festas são também preenchidas de rastros que não estão na estrutura material, estão
nas narrativas. No entanto, o feito é também o de narrar o pertencimento, a vinculação.
Observa-se, no trecho abaixo, a proposta de elegerem uma matriarca – aos moldes de Vó
Anna – como aquela que agrega, que mantém correntes os vínculos. A sugestão do patrono
fica por conta, acredito, da piada, a reverência ao parente famoso e que contribuiu para a
divulgação do nome da família de forma positiva: como diz Irmão Justo sobre a
responsabilidade que as pessoas têm ao portarem um nome e agirem positivamente: ele fez a
parte dele. Retomando, diz Irineu Scliar:
Toda a família que se presa tem que ter uma matriarca e um patrono. A família
Scliar hoje não tem uma matriarca e eu quero aqui propor a eleição, a consenso,
então eu proponho o seguinte: que se crie uma comunidade, um site, sei lá... e
dentro desse, nós vamos eleger a nossa matriarca. Penso também que toda a família
que se presa tem que ter um patrono. Eu não conheço uma família grande e bonita
que nem a nossa que não tenha um patrono, e eu aqui vou fazer uma sugestão, eu
vou sugerir que seja nosso patrono o Moacyr, por uma razão muito simples: por ser
um imortal e nós não vamos precisar eleger outro. Então essa é a sugestão que eu
quero dar pra vocês. Quero também dizer que, numa determinada ocasião, uma
pessoa da família a quem eu prezo muito, me disse o seguinte: “Se a carroçinha do
São Pedro passasse numa festa da família Scliar, levava a metade”. Eu vou dizer,
levavam uns poucos, mas eu ficaria ofendidíssimo se não fosse levado junto. Um
beijo para vocês todos.
Irineu narra uma característica corrente entre os familiares: o comportamento
irreverente. Essa justificativa me foi dada pela historiadora que está elaborando um livro
sobre a história da família Scliar. Por sua vez, esse fato narrado configura um “modelo de ser
Scliar” que contém em si a possibilidade de reconhecimento no círculo dos contemporâneos e
adesão dos sucessores.
318
As experiências do cotidiano apresentam-se bastante direcionadas ao Eu e à identidade
social. No entanto, a Festa envolve a intersubjetividade que se expressa nas ações com
sentidos direcionados ao grupo, ao coletivo. Quando Irineu propõe a eleição da matriarca em
um site criado provavelmente para a família, estamos tratando das situações completamente
desconexas na sua temporalidade. A noção de matriarca está em acordo ao habitus do grupo
judeu e tem um caráter público, relaciona-se fortemente com a noção de mãe na formação do
grupo doméstico que atua no âmbito privado. Em outra medida, a piada sobre a “loucura” dos
Scliar é um traço identitário que estabelece o pertencimento ao grupo.
Então o José Antonio contou tudo que ele tem de levantamento, ele foi apresentando
e ia contando, foi maravilhoso! Essa apresentação tinha fotos, algumas pessoas
levaram utensílios tipo o pilão, máquina fotográfica que se usava naquela época e o
meu pai é que era o fotógrafo da família. Tem dois quadros dos bisavós pintados a
óleo, ele levou pra lá, então tudo estava montado lá, muito bonito. Era genial ver as
pessoas, paravam do lado dos quadros e tiravam fotografias com os quadros, eram
crianças, jovens, velhos, muito legal! José Antonio fez uma apresentação de mais ou
menos uma hora e nela tinham umas coisas muito engraçadas que ele descobriu de
herança... Ele também contou das férias em Tramandaí e o que eles compravam pra
levar pra Tramandaí. A família inteira dava risada... todo mundo veraneava em
Tramandaí naquela época! (Maria José – organizadora da Família Só).
Os rastros foram apresentados no suporte midiático: projeção de fotos; no suporte
material: o pilão e a máquina fotográfica; e as lembranças da infância/adolescência
vivenciados em família no período das férias. Essas mensagens registram experiências
comuns e engendram uma proximidade e uma cumplicidade na reinvenção e renovação do
tempo que agora vivem e que hoje é porvir.
A apresentação de alguns rastros fragmentos de memória, que permaneceram nas
lembranças individuais e que “renascem” àqueles que já haviam esquecido, tem por fim
exemplificar a noção de rastro que é presente no ambiente festivo. Outras tantas memórias
compartilhadas foram trazidas ao longo desta tese e reconhecidas como elementos
convergentes em uma realidade familiar que abriga muitas diferenças e causam efeitos
significativos para a sensação de pertencer. As experiências a serem apreendidas requerem,
inicialmente, o reconhecimento. Ou seja, que sejam articuladas objetiva e subjetivamente. “De
muitos modos, conhecer é reconhecer. O reconhecimento pode apoiar-se num suporte
material, numa apresentação figurada, retrato, foto, pois a representação induz a identificação
com a coisa retratada em sua ausência” (Ricoeur, 2007, p. 438).
Como foi dito, a noção de rastro não se reduz nem ao rastro documentário, nem ao
rastro cortical; ambos consistem em marcas “exteriores”, embora em sentidos
diferentes: o da instituição social para o arquivo, o da organização biológica para o
cérebro; resta o terceiro tipo de inscrição, o mais problemático, embora o mais
319
significativo para a seqüência de nossa investigação; ele consiste na persistência das
impressões primeiras enquanto passividades: um acontecimento nos marcou, tocou,
afetou e a marca afetiva permanece em nosso espírito (Ricoeur, 2007, p. 436).
Ricoeur, ao trazer os rastros mnemônicos que se estruturam em suportes afetivos que
se inscrevem subjetivamente a partir da existência/experiência no mundo, faz com que se
reconheça que umas tantas das Festas de Família abrigam formas e estilos de vida muito
diferentes. Contudo, essas diferenças oferecem a todos a possibilidade de redimensionamento
das expectativas que determinam ou definem as múltiplas visões de mundo que se agrupam
em “nome da família”. As Festas como modismo, por exemplo, acolhem parentes de outras
nacionalidades, às vezes sem chance de comunicação com grande parte da rede de parentesco.
No entanto, os depoimentos apontam como uma distensão de si ao pensar nesse outro que
veio de tão longe para estar entre os seus. As conexões ocorrem e a dificuldade da língua logo
fica para outro plano. O mais interessante é que elas não ficam restritas ao período de
permanência no país. A conexão transforma-se em uma rede recíproca de cartas, cartões,
visitas esporádicas e telefonemas, numa circulação transcultural.
No entanto, as experiências diferenciadas são reconhecidas pelos organizadores da
festa. Esse é um dos motivos de haver o rodízio entre os parentes na formação das comissões
responsáveis. Esses rodízios, em alguns casos, são também rodízios de local para a realização
das festas. Nesse sentido, cada localidade adaptará o evento dentro de um espaço que retém os
modos de vida dos parentes habitantes.
5.2 E o que é esquecer?
O esquecimento, para Ricoeur (2007), apresenta-se sob três leituras “dos fenômenos
mnemônicos”: a do esquecimento definitivo ou esquecimento por apagamento dos rastros; a
do esquecimento de reserva, que se subentende como o inesquecível ou ainda o esquecimento
reversível; e, por fim, o esquecimento manifesto, aquele que é exercido.
Em seqüência ao que acima foi exposto, em algumas festas observa-se que nem todas
as lembranças são compartilhadas entre os membros; o cruzamento entre as trajetórias, por
vezes, está reduzida ao nome comum. De fato, muitos parentes também não se conheciam,
não haviam vivenciado nem compartilhado experiências anteriores. As festas são organizadas
prevendo essa possibilidade e, para isso, buscam valorizar o que há de semelhante como, por
exemplo, um ancestral comum e a saga vivida pelos imigrantes, desde o percurso dramático
nos navios até o desbravamento de terras hostis. Essa seria uma forma de acionar o
320
reconhecimento, no sentido da memória, e o vínculo, no sentido simbólico. Para permanecer a
segunda, a primeira deve ser estabelecida. O vínculo prescinde do reconhecimento.
As festas reinventam uma tradição, mas também inventam uma tradição às gerações
mais novas. O reinventar está situado em reordenar os rastros, atualizando-os em uma
concepção estruturada nas mudanças do mundo das relações sociais. A seleção de rastros deve
prever o reconhecimento, de forma a direcionar o pertencimento.
Por seu turno, as crianças não conheceram nem viveram o mundo de forma diferente e,
com base nisso, as festas têm sido aprovadas entre elas e, pragmaticamente, um lugar de
interações que provavelmente não aconteceriam fora das mesmas. Em uma outra ocasião em
que reencontrar um primo, por exemplo, haverá o reconhecimento e o sentido de
pertencimento.
Teve [na festa] também o momento dos jogos, teve a hora do “conto” com a Laura,
uma sobrinha dele que se propôs a trabalhar com as crianças, reuniu as crianças,
tinham crianças pequenas também. Tinha aniversariante e no domingo a gente
comemorou; também tinha o logo da família, que foi o sobrinho dele que fez,
vermelho com amarelo, então se comprou balões vermelhos e amarelos (Maria José
- organizadora da Festa da Família Só).
Observa-se o envolvimento de muitos parentes jovens na organização e colaboração
para o sucesso da Festa. São eles que levarão às crianças, quem sabe, o reconhecimento que,
em outro encontro entre os parentes, estabeleça o vínculo. São, sem dúvida, projeções, mas
que se pode levar a cabo quando há o empenho de jovens em colaborar com a inscrição de
rastros afetivos na geração posterior – devem eles possuí-los, então?
5.3 As redes de sociabilidade: a construção de novos laços
O restauro do rastro nas descontinuidades da memória familiar só tem sentido para a
nova geração por inseri-los em dinâmicas atuais lógicas e emocionais. As Festas Familiares e
a inserção em uma rede de parentesco além fronteiras de pertencimento local são acionados
como novas formas de sociabilidade, no sentido de que os arranjos de parentesco e de
pertença ao nome familiar, são “jogados” sob estéticas do mundo contemporâneo (inspiro-me
em Simmel, Grandes cientistas sociais):
A turma toda, no meu modo de ver, estava preparada para receber os parentes.
Então era muito interessante, a gente passava por um e dizia: ‘tu és primo?’ E
imediatamente: ‘sim, eu sou Só’. Quer dizer que acontece aquela coisa gostosa...
(José Antônio Só – organizador e genealogista).
321
Depois pra mim foi... sabe que depois o que me emocionou foi um dia que eu fui no
aeroporto com a minha filha, depois daquele encontro e aí, daqui a pouco assim:
“prima! prima!” Eu olhei e era a Maria Helena e a filha dela. Eu não sabia que
existia mais aquilo, muito longe (Maria José – organizadora de Festa da Família Só).
Os dois depoimentos acima são próximos ao que outros tantos afirmam. Uma das
confirmações de sucesso para muitos é a realização “institucionalizada” de se reunir
regularmente. Há famílias que já realizaram oito, dez, vinte festas. Porém, cabe chamar a
atenção às “festas pequenas” (encontro de parentes próximos afetivamente) que, em sua
maioria, teve origem aos familiares reencontrarem-se na Festa de Família.
Esse movimento de comemorações envolvendo a rede de parentesco ocorre em
diferentes países. Na Suécia, por exemplo, David Gaunt (Gaunt in Segalen; Gullestad, 1995)
relata o sucesso das Festas de Família em que parentes erguem associações que criam
solidariedades fundamentadas sobre suas origens genealógicas e geográficas comuns. Lá
ocorre esse movimento desde os anos 50 e 60 em reação à imigração massiva dos habitantes
que viviam em comunidades agrícolas e deslocam-se para as cidades ou países próximos.
Martine Segalen (1999) também relata Festas de Família na França, contando com uma média
de 500 participantes.
As Festas também se espalham pelo Brasil e há um deslocamento muito intenso de
parentes que hoje vivem em outros estados. As redes de comunicação favorecem o encontro
dos parentes e a possibilidade de comunicação sistemática. Esses recursos globalizantes
apresentam-se privilegiadamente como uma forma de construção projetiva das
intersubjetividades nos tempos contemporâneos.
5.4 É medo de esquecer?
Acima se chamou a atenção para a reinvenção/invenção da Festa e compreende-se
que, quando é necessário reinventar ou inventar, é porque estava ameaçado de desaparecer.
As declarações dos familiares entrevistados trazem a falta de tempo para encontrar os
parentes, o retorno à terra de origem, entre outras tantas justificativas para a realização do
evento.
A motivação pode estar em diversas razões, nas quais não é negligenciável a criação
de vínculos mais estáveis e afetivos. Festejar a família tanto pode ser um cenário incipiente,
tanto pode ser cenário de diferenças e conflitos familiares, como pode igualmente ser cenário
de descobertas e novas solidariedades.
322
Contudo, para retomar a questão de classificação proposta por Ricoeur quanto às três
leituras sobre a noção de esquecimento – esquecimento por apagamento dos rastros,
esquecimento de reserva e o esquecimento manifesto –, observei com mais força as famílias
ligadas às cidades menores. O fato de ainda haver relações comunitárias significativas, a
preocupação em buscar na família pode ser a preocupação da fragilidade desses laços, nas
cidades maiores a falta de laços pode ser o motivo para tentar reaver algum local para sentir-
se pertencer.
Enfim, qualquer que seja a relação que se busca estabelecer ao propor ou participar de
uma Festa de Família, há por trás o medo de esquecer e de ser esquecido – pelo esquecimento
de reserva que se tem depositado sobre os laços de solidariedade e afetivos. No mundo
globalizado, dos desencaixes guidensianos, a pertença ao tempo é uma busca incessante
também da sociedade moderno ocidental, e não é qualquer tempo – ou só tempo da intimidade
ou só tempo exterior das mídias e do Estado: é o tempo da memória compartilhada que a
etnografia das Festas de Famílias acaba por configurar na dimensão do cotidiano vivido.
323
PARTE IV
Conclusões
Família e parentesco. Tempos cruzados, ritmos alterados e memórias compartilhadas.
São complexas as relações entre os indivíduos, a rede de parentesco que formam uma
multi/pluri/unidade. É complexa a tarefa de interpretá-la reflexivamente. A etnografia é uma
construção sobre o Outro dentro dos limites possíveis de alcance do pesquisador e do quanto
o Outro permite ser alcançado. Os dados analisados interpretativamente mostram uma dentre
tantas outras possíveis visões, principalmente sobre o olhar que se lança sobre si próprio.
As Festas e as Famílias conformam um espaço variado e repleto de contradições, no
qual os atores sociais tecem vagarosamente um mundo de relações fundado em uma rede de
parentesco que se configura, inova e renova no trabalho de guardiões da memória, motivados
pela pesquisa da linhagem familiar. A festa é lugar de memória, de jogos de sociabilidade e de
arranjos afetivos.
As tentativas de reordenação da rede de parentesco e a identificação a um lugar social
seguro pela ordem afetiva que contém, pode parecer uma tarefa impossível, no entanto, a
persistência e o crescimento dos eventos têm mostrado a importância de reinterpretar, na
forma ritual, a saga familiar. Nos eventos as relações familiares e de redes de parentesco são
reforçadas em laços afetivos que buscam circular as narrativas de trajetórias e projetos de
continuidade, e nessa perspectiva de circular as narrativas, acomodar os jogos da memória
coletiva. Em cada Festa Familiar são tecidas as experiências do Nós, aquelas mesmas que
Walter Benjamin temia condenadas ao desaparecimento. Organizar uma Festa Familiar
promove uma rede de interesses de pessoas que tratam de pesquisar ou de reproduzir seu
conhecimento sobre a linhagem familiar, e como arqueólogos do saber, cavam os rastros para
revelar o material que pode fazer reverberar a memória familiar: fotografias, filmes, árvores
genealógicas, peças teatrais, relatos e testemunhos que qualificam o encontro de famílias. Os
encontros esporádicos cuidadosamente planejados têm sido reconhecidos por alguns
positivamente e direcionados objetivamente ao sentimento de pertencer.
O espaço e o tempo extracotidianos das Festas mostram o panorama das muitas
transversalidades que percorrem a rede de parentesco e as contradições próprias da
contemporaneidade. Algumas dessas contradições são vivenciadas em uma situação-limite,
como as desigualdades socioculturais e econômicas que incluem, mas também excluem
parentes. Ou ainda, quando as fronteiras étnicas delimitam o pertencimento. Ou ainda, o
personagem eleito como modelo a ser seguido e a religiosidade como expressão máxima e
324
única de uma moralidade. Por outro lado, as Festas também podem incluir os parentes por
afinidade, as diferentes formas de casais, os filhos adotivos, as famílias recasadas com o
conjunto de filhos, os filhos fora dos casamentos, etc.
As Festas de Família “como modismo em tempos de globalização” apresentam-se
acontecimentos que restauram reminiscência e lutam contra o esquecimento. Na rememoração
de indivíduos e do grupo familiar consangüíneo ou por afinidade, há esforço de arranjar a
memória, recuperando um “inventário” familiar – o sobrenome, vinculadas às manifestações
do mundo globalizado que privilegia as grandes comemorações, encontros monumentais que
compreendem pequenas multidões que pouco têm em comum. Por conta de sua inserção e
adesão aos recursos tecnológicos disponíveis, adotam formas de perpetuar a memória com a
criação de “lugares”, apêndices das memórias individuais, que ganham espaço global ao retê-
las em sites da família. Observa-se, portanto, a patrimonialização da memória familiar,
contendo alguns dos atributos necessários dessa relação: o de documentação e o de
informação.
Apesar de, no conjunto, mostrarem-se mais contingentes sobre o estreitamento de
laços familiares, é por meio deles que ressurgem os “encontros” nos quais participam os
indivíduos beneficiados pelas memórias compartilhadas, fundadas no valor-família, que
conferem a continuidade das relações. Nos encontros, a festa coloca em alto relevo a
identidade familiar, o nome que totaliza o grupo, o sobrenome é homenageado como tendo
força simbólica de continuidade da linhagem de parentesco e da vida familiar (reivindicação
da grande festa), como também sela os laços afetivos tecidos pelo tempo das experiências
vivenciadas em conjunto.
Os movimentos transnacionais também atuam nas Festas e passam a compor as
trajetórias familiares nas diferentes direções: a busca pela dupla cidadania que insere e
evidencia o componente político que também atua de forma decisiva nas relações familiares;
ou, em uma viagem de estudo ou turismo à Europa, torna possível encontrar os parentes,
também descendentes, daqueles que imigraram para o Brasil há quase dois séculos. Em um
movimento inverso, por outro lado, a recomposição da linhagem aristocrática da família Von
Wurmb, que motiva a procura de parentes que partiram do lugar de origem, a atual Alemanha.
Para sua surpresa e decepção, essa busca não é valorizada (talvez até reconhecida como irreal)
pelo parente no Brasil, tendo em vista este não se reconhecer membro de uma ‘linhagem
secular’, cuja genealogia remonta ao século XV e que a linhagem nobre ostentava um castelo
na Alemanha. O descaso resulta da contrastividade sobre o que lhe foi anunciado por carta –
uma possibilidade inimaginável para os padrões de camadas médias baixas no Brasil.
325
As Festas no Interior, por sua vez, estão alicerçadas nos itinerários das origens, seja da
cidade que deixaram pelos deslocamentos, seja na cidade que abrigou os “pais fundadores”
das famílias no Brasil. A reivindicação de um pertencimento ao lugar permite aos indivíduos
refazerem laços sociais, simbólicos e afetivos, e muito da força desse tipo de reivindicação
passa pela transversalidade do tema etnicidade. Ou seja, a conexão do tempo ao espaço
contribui para a rememoração do passado quando resgatam acontecimentos vividos da
memória coletiva, da rede de parentesco. Nesse sentido, as trajetórias familiares dos
antepassados, sendo gradativamente reordenadas por diferentes oradores ao longo das festas,
vão acenando traços identitários adormecidos pelo esquecimento de reserva, como classifica
Ricoeur (2007), enquanto um esquecimento que mantém a sobrevivência de imagens. De
igual modo, as memórias narradas pelos rastros afetivos vão sendo inscritas nos novos
parentes, anunciando as dinâmicas das relações de parentesco no trajeto humano.
As Festas Homenagem têm na biografia de um ou mais ascendentes a conformação de
uma identidade familiar. Reconhecidamente importantes na trajetória do grupo, os membros
homenageados assumem o legado de um comportamento a ser perseguido pelos seus
descendentes. As Festas Homenagem nem sempre estão restritas à rede de parentesco e, por
esse fator, pode-se pensar que a representação de “família” assume contornos mais amplos,
abrangendo a rede de amigos, antigos colegas de trabalho, a rede de vizinhança, etc. Nesse
caso, o que está implicitamente expresso é a participação desses grupos como redes de ajuda e
solidariedade perpetuadas na memória compartilhada como colaboradores a esse modelo
exemplar. Por sua vez, a adoção à institucionalização da memória familiar (OSCIP/ONG), sob
as regras das instituições modernas, é uma forma de garantir a perpetuação e legitimação
desse modelo homenageado.
Por fim, a busca pelos laços familiares e de parentesco demandam esforço de alguns e
o descaso de outros, como uma imagem refletida das relações “líquidas”, propostas por
Bauman (1998, 2001, 2008). Porém, a noção de projeto em Gilberto Velho (1994, 1997),
inspirado em Alfred Schutz (1979) foca sobre os esforços de articulação (ou negociação)
sobre um campo de possibilidades para ações intencionais de reconstrução de laços afetivos,
definidos sob os moldes da vida e dos sujeitos contemporâneos. As alterações sociais já
amplamente discorridas e, no seu interior, a “transformação da intimidade” (Giddens), trouxe
novos contornos à família e, por conseguinte – ainda que em escala menor –, à rede de
parentesco. Sua reordenação não pressupõe “voltar ao que era”, mas, primordialmente, dar a
cada um dos sujeitos a sensação de nela pertencer e permanecer nos moldes que hoje se
326
apresentam, como um conjunto que contém os diferentes estilos de vida, as diferentes visões
de mundo, as incertezas que cercam as circunstâncias das suas vidas.
A realização das Festas de Família, a sua continuidade, o aumento expressivo de
participantes e a organização de “encontros” de uma rede menor ou mais ampla denotam
estratégias de reencaixe dos sujeitos, fundados nos laços afetivos que têm no valor-família o
senso de sobrevivência ou segurança ontológica necessária ao enfrentamento do tempo futuro
no mundo que se apresenta indefinido e propenso à dispersão de sentidos.
327
BIBLIOGRAFIA
A FAMÍLIA Savage (The Savages). Direção e roteiro: Tamara Jenkis. EUA: 2007. 1 filme
(114min).
ABREU FILHO, Ovídio de. Dona Beija: análise de um mito. In: ______. Perspectivas
Antropológicas da Mulher 3. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
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345
APÊNDICE A – Personagens
346
APÊNDICE B – Fotos oficiais das famílias
347
ANEXO A – Coluna de Moacyr Scliar no Cardeno Donna do Jornal Zero Hora
(26.03.2006)
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