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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
SIMONE XAVIER PONTES
NOMEAÇÃO E QUALIFICAÇÃO NA CONSTRUÇÃO
SEMIOLINGUÍSTICA DOS GUERRILHEIROS
PERSONAGENS EM OPERAÇÃO ARAGUAIA: OS ARQUIVOS
SECRETOS DA GUERRILHA
NITERÓI
2009
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SIMONE XAVIER PONTES
NOMEAÇÃO E QUALIFICAÇÃO NA CONSTRUÇÃO
SEMIOLINGUÍSTICA DOS GUERRILHEIROS PERSONAGENS
EM OPERAÇÃO ARAGUAIA: OS ARQUIVOS SECRETOS DA
GUERRILHA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do título de Doutor.
Área de concentração: Estudos Linguísticos.
Orientadora: Prof
a
. Dr
a
. Vanda Maria Cardozo de Menezes
NITERÓI
2009
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SIMONE XAVIER PONTES
NOMEAÇÃO E QUALIFICAÇÃO NA CONSTRUÇÃO SEMIOLINGUÍSTICA
DOS GUERRILHEIROS PERSONAGENS EM OPERAÇÃO ARAGUAIA: OS
ARQUIVOS SECRETOS DA GUERRILHA
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do título de Doutor.
Área de concentração: Estudos Linguísticos.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Vanda Maria Cardozo de Menezes Orientadora Universidade Federal Fluminense
________________________________________________________________________________
Prof. Dr. André Crim Valente Universidade do Estado do Rio de Janeiro
________________________________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Eliete Figueira Batista da Silveira Universidade Federal do Rio de Janeiro
________________________________________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Lygia Maria Gonçalves Trouche Universidade Federal Fluminense
________________________________________________________________________________________
Prof
a.
Dr
a
. Sigrid Castro Gavazzi Universidade Federal Fluminense
________________________________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Tânia Maria Bezerra Rodrigues Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(Suplente)
____________________________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Norimar Júdice Universidade Federal Fluminense
(Suplente)
Niterói
2009
AGRADECIMENTOS
A Deus, Criador do céu e da terra, o qual me concedeu, primeiramente, a vida e,
depois, sabedoria, discernimento e confiança a fim de que eu chegasse até aqui.
Aos meus pais Vanderlei e Rejane , pelo amor e pela paciência, dedicados a mim
em todos os momentos de minha vida, principalmente, nos últimos quatro anos.
Ao meu querido irmão Jorge amigo de todas as horas e colaborador técnico
inestimável.
À Prof
a
. Dr
a
. Vanda Maria Cardozo de Menezes que, no meio do caminho, assumiu,
com coragem e bondade extremas, este trabalho.
À Prof
a
. Dr
a
. Sigrid Castro Gavazzi, pela confiança em mim depositada, o meu
ponto de partida.
A todos os meus amigos Padres, Santos-Homens que, sempre, rezaram e torceram
por mim: Pe. João dos Santos Salles, Pe. William Bernardo da Silva, Pe. Antônio
Adno de Lucena, Pe. Alexander Prata de Oliveira.
A todos os meus Mestres, desde o Ensino Fundamental e Médio, passando pelos da
Graduação (na Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ), pela
Especialização (também, na UERJ), mais tarde, do Mestrado (já, na Universidade
Federal Fluminense UFF) e, agora, do Doutorado (também na UFF); enfim,
agradeço a todos eles, que sempre me incentivaram, contribuindo, de maneira
decisiva, tanto para a minha formação pessoal quanto para a acadêmica.
À Capes, pela concessão da bolsa de estudos que viabilizou a realização desta Tese.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense,
pela competência e seriedade de seus profissionais (corpo docente e administrativo).
"No início dos anos 70, com a imprensa sob censura, aconteceu na selva
amazônica um dos maiores confrontos das Forças Armadas brasileiras
contra um inimigo desde a II Guerra Mundial. Milhares de soldados,
comandados por generais experientes e oficiais determinados, levaram três
anos para dizimar um grupo de menos de uma centena de combatentes e
dirigentes do Partido Comunista do Brasil, o PC do B, que sonhava
começar ali uma revolução popular para derrubar a ditadura e
transformar o Brasil num país comunista. [...] A Guerrilha do Araguaia
começou a ser planejada no início dos anos 60, pela direção do PC do B, e
só acabou de fato mais de 10 anos depois, em 1976, quando as forças de
repressão invadiram uma casa no bairro da Lapa, em São Paulo, e
fuzilaram Ângelo Arroyo, o último comandante da guerrilha. Nas matas da
Amazônia, desde 1974, os remanescentes na luta estavam todos mortos."
(Luiz Fernando Emediato)
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 13
2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 19
2.1 ASPECTOS DISCURSIVO-TEXTUAIS 20
2.1.1 ESTUDO TIPOLÓGICO DE TEXTOS 20
2.1.2 A NARRATIVA 31
2.1.3 A NARRATIVA DE EXTRAÇÃO HISTÓRICA 33
2.1.4 OS ELEMENTOS DA NARRATIVA 36
2.2 ASPECTOS GRAMATICAIS 53
2.2.1 SUBSTANTIVO E ADJETIVO EM GRAMÁTICAS DE LÍNGUA
PORTUGUESA
53
2.2.2 OUTROS ESTUDOS 60
3. JORNALISMO, HISTÓRIA E LITERATURA: UMA INTER-
RELAÇÃO?
66
3.1 OS FATOS HISTÓRICO-POLÍTICOS 77
3.1.1 O QUE FOI A GUERRILHA DO ARAGUAIA ? 77
3.1.2 OPERAÇÃO ARAGUAIA: OS ARQUIVOS SECRETOS DA GUERRILHA
85
4. METODOLOGIA 87
5. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 88
5.1 UMA TEORIA DE ANÁLISE DO DISCURSO
A SEMIOLINGUÍSTICA
90
5.1.1 O CONTRATO DE COMUNICAÇÃO 90
5.1.2 O ATO DE SEMIOTIZAÇÃO DO MUNDO 99
5.2 A CONSTRUÇÃO DA REFERÊNCIA 100
5.2.1 O CONCEITO DE TEXTO 100
5.2.2 UMA PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO PARA AS EXPRESSÕES
NOMINAIS REFERENCIAIS
105
5.3 A CLASSIFICAÇÃO SEMÂNTICO-
DISCURSIVA DOS ADJETIVOS
109
5.4 A CONCEPÇÃO DE ETHOS 117
6. A CONSTRUÇÃO SEMIOLINGUÍSTICA DOS GUERRILHEIROS-
PERSONAGENS
129
6.1 A DETERMINAÇÃO DE LÚCIO PETIT 131
6.2 A CORAGEM DE DINA 134
6.3 A VALENTIA DO GUERRILHEIRO FLÁVIO 137
6.4 A LIDERANÇA DO DR. JUCA 141
6.5 PEDRO ALBUQUERQUE NETO, O TRAIDOR 145
6.6 OSVALDÃO, O GIGANTE NEGRO 151
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS 155
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 158
ANEXOS 164
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
QUADRO 1: Proposta de Charaudeau (2008) para uma tipologia textual. 28
QUADRO 2: Classificação de textos segundo Travaglia (2001a). 29
QUADRO 3: Elementos basilares da narrativa. 32
QUADRO 4: Os Circuitos Externo e Interno de comunicação. 93
QUADRO 5: Os Circuitos Externo e Interno de comunicação em Operação
Araguaia.
94
QUADRO 6
: Os objetos comunicativos e suas respectivas competências.
98
QUADRO 7: Classificação semântico-discursiva dos adjetivos segundo Kerbrat-
Orecchioni (1980).
114
QUADRO 8: As expressões nominais relativas a Lúcio Petit. 133
QUADRO 8.1: Os adjetivos relacionados ao personagem Lúcio Petit. 134
QUADRO 8.2: A tipificação do ethos de Lúcio Petit. 134
QUADRO 9: As expressões nominais relacionadas à personagem Dina. 136
QUADRO 9.1: Os adjetivos articulados à Dina. 137
QUADRO 9.2: O ethos de Dina. 137
QUADRO 10: As expressões nominais articuladas ao guerrilheiro Flávio. 140
QUADRO 10.1: As adjetivações relacionadas ao personagem Flávio. 140
QUADRO 10.2: O ethos do guerrilheiro Flávio. 141
QUADRO 11: As expressões nominais relacionadas ao personagem Dr. Juca. 144
QUADRO 11.1: As adjetivações relativas a Dr. Juca. 144
QUADRO 11.2: A classificação do ethos de Dr. Juca. 145
QUADRO 12: As nominalizações relativas a Pedro Albuquerque. 149
QUADRO 12.1: As adjetivações referentes a Pedro Albuquerque. 150
QUADRO 12.2: O ethos do guerrilheiro Pedro Albuquerque. 150
QUADRO 13: As nominalizações relacionadas a Osvaldão. 153
QUADRO 13.1: A classificação dos adjetivos articulados a Osvaldão. 153
QUADRO 13.2: A tipificação do ethos de Osvaldão. 154
RESUMO
Esta tese investiga as atividades de nomeação (representadas pelas
expressões nominais correferenciais diretas e as não-correferenciais do tipo
indiretas) e as atividades de qualificação (especialmente, por meio de adjetivos
avaliativos e subjetivos) realizadas pelos sujeitos comunicante/enunciador na
narrativa de extração histórica, chamada Operação Araguaia: os arquivos secretos
da guerrilha. Para isso, destacamos os seguintes pressupostos teóricos que norteiam
o nosso trabalho: a teoria Semiolinguística de Patrick Charaudeau (1996), o
conceito de Referenciação adotado por Koch (2004), a classificação semântico-
discursiva dos adjetivos proposta por Kerbrat-Orecchioni (1980) e o conceito de
Ethos apresentado por Maingueneau (2005). Assim, com base numa análise
semiolinguística, concluímos que as expressões nominais correferenciais diretas e as
não-correferenciais do tipo indiretas e os adjetivos, eminentemente de valor
semântico-discursivo afetivo/subjetivo, caracterizam os guerrilheiros-personagens,
de uma forma singular, em Operação Araguaia, pois remetem a esses guerrilheiros
(seres do mundo) caracteres especiais, transformando-os, na narrativa, em
personagens (seres do discurso).
PALAVRAS-CHAVE: Semiolinguística Nomeação Qualificação Ethos
Subjetividade.
ABSTRACT
This thesis investigates the nomeation activities (represented for nominals
correferentials directs expressions and the no-correferentials of type indirects and
the qualification activities (specially, by valuects adjectives and subjects) realized
by communicant/enunciative subjects in the narrative of extration historic, called
Araguaia Operation: the secrets files of warfare. For this, we point the theoricals
suports that frame our research: the Semiolinguistic theory of Patrick Charaudeau
(1996), the concept of Referencetion adopted by Koch (2004), the classification
semantic-discoursive the adjectives proposed by Kerbrat-Orecchioni (1980) and the
concept of Ethos presented by Maingueneau (2005). Thus, the results point to the
fact that nominals correferentials directs expressions and the no-correferentials of
type indirects and the adjectives, that presents a value semantic-discoursive
emotional/subject, characterize the warriors-characters, in the singular way, in
Araguaia Operation, because give for these warriors (humans of world) a specials
characteristics, becaming them, in the narrative, characters (humans of discours).
KEY-WORDS: Semiolinguistic Nomeation Qualification Ethos - Subjectivity
1. INTRODUÇÃO
Durante vinte e cinco anos, os fatos ocorridos (entre 1966 e 1974), na região
do Araguaia, também chamada de Bico do Papagaio
1
, envolvendo militares e
guerrilheiros combatentes do PC do B, foram ocultos pelos setores da Inteligência
do governo e pelas Forças Armadas. No entanto, em abril de 2005, após três anos de
pesquisas e investigações, Taís Morais
2
e Eumano Silva
3
, cotejando as informações
publicadas a respeito do conflito com as entrevistas realizadas com os militares e os
civis sobreviventes, narram-nos toda a guerra na narrativa de extração histórica,
intitulada Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha.
4
Assim, em razão da importância deste evento no cenário histórico-político
brasileiro e, por conseguinte, da necessidade de observação deste conflito, de forma
mais acurada, escolhemos a obra Operação Araguaia
5
para realizar um estudo
1
O mapa desta região do Araguaia, conhecida por Bico do Papagaio, encontra-se na seção
ANEXOS (p.165).
2
Jornalista por formação e filha de um ex-oficial do Exército brasileiro, Taís Morais iniciou as suas
investigações acerca do conflito na região do Araguaia sete anos antes do lançamento da narrativa
de extração histórica em estudo. Para isto, catalogou fotos (tiradas na época do conflito por
soldados do Exército) e teve acesso a arquivos (como relatórios de operações e manobras, informes,
telegramas, comunicados, depoimentos de guerrilheiros e documentos apreendidos do PC do B).
3
Parceiro na escritura desta narrativa, Eumano Silva, também jornalista, recebeu o prêmio Esso
Regional 2003, no Correio Braziliense, por reportagens produzidas a respeito da mesma guerrilha.
4
A Guerrilha do Araguaia foi o mais importante movimento de luta armada contra a ditadura
militar. Esta guerrilha iniciou-se, ainda em 1966, quando os primeiros combatentes chegaram à
região do Araguaia (no Sudeste do Pará), e terminou com a morte dos últimos integrantes Ângelo
Arroyo e Pedro Pomar no bairro da Lapa (SP), em dezembro de 1976.
5
Nesta tese, utilizaremos a expressão Operação Araguaia como referência à obra sob análise.
reflexivo acerca da estrutura textual responsável pela construção da referida
narrativa de extração histórica. Nosso trabalho pretende analisar como são
apresentados, do ponto de vista linguístico-discursivo, os guerrilheiros-personagens
no gênero textual em discussão, sempre considerando os modos de organização do
discurso, segundo Charaudeau (2008), que predominam nesse gênero e organizam-
no: o narrativo, o descritivo, o argumentativo e o enunciativo.
Nosso trabalho deter-se-á no modo descritivo
6
de organização do discurso,
em específico, nas operações de nomeação e de qualificação, observando a) de que
maneira estas operações aparecerão, ao longo da narrativa através das expressões
nominais anafóricas correferenciais diretas e as não-correferenciais do tipo
indiretas e por meio de adjetivos e locuções adjetivas de valor semântico-discursivo
subjetivo e b) como essas nomeações e qualificações irão configurar a imagem/ a
persona dos guerrilheiros envolvidos na trama, ou seja, sua transformação de
pessoas comuns, situadas em um espaço-temporal, em personagens ou objetos do
discurso.
Nessa perspectiva, esta tese possui os seguintes objetivos que, agora,
apontamos. Em primeiro lugar, nosso trabalho pretende analisar a forma como tais
nomeações e qualificações, sendo estas intencionalmente de caráter subjetivo,
concedem à narrativa de extração histórica em discussão considerada, a princípio,
jornalística (pelo fato de relatar fatos reais/situações do cotidiano) um teor
literário, pessoal. Em outros termos, como as nomeações e qualificações
apresentam os acontecimentos ocorridos na vida política brasileira, em Operação
Araguaia, sob uma perspectiva mais expressiva (ou, ainda, ideológica).
O segundo objetivo de nosso trabalho é investigar, através das operações de
nomeação/qualificação, como pessoas que existiram em um dado momento político
de nosso país passam à condição de personagens em uma narrativa próxima do
estilo literário.
6
Como veremos, na subseção 2.1.1 ESTUDO TIPOLÓGICO DE TEXTOS, o predomínio de um
dos modos (em nosso caso, o descritivo) não exclui a presença dos outros, em um mesmo gênero de
texto. Verificaremos que os quatro modos organizacionais do discurso mostrar-se-ão
interdependentes.
O terceiro objetivo desta tese é estudar a forma pela qual as expressões
nominais anafóricas e os adjetivos (tipificados em avaliativos não-
axiológicos/axiológicos e adjetivos subjetivos) apresentam, predominantemente, as
características psicológicas de natureza positiva dos guerrilheiros-personagens.
Para o desenvolvimento de nossa tese, apresentamos quatro hipóteses
norteadoras. A primeira refere-se à narrativa de extração histórica propriamente
dita. Podemos definir a narrativa de extração histórica como um gênero de texto,
que lida, a priori, com fatos históricos, pois sua formação baseia-se no romance
histórico tradicional, cuja temática apresenta comprovação através de documentos
reais.
7
Desse modo, esperamos uma forte carga de objetividade. Contudo, vemos
que a narrativa de extração histórica diferencia-se do romance histórico tradicional
justamente por utilizar não só o fato histórico remoto (com comprovação
documental), mas também o acontecimento contemporâneo. Por isso, ao utilizar
um fato histórico contemporâneo como temática de seu texto
8
, levantamos a
hipótese de que a narrativa de extração histórica, de certa forma, leve os parceiros
envolvidos na transação comunicativa (seres do Fazer e do Dizer)
9
a opinar a
respeito da situação-problema retratada na narrativa. Daí, os seres do Dizer
buscarem a subjetividade , lançando mão de expressões nominais anafóricas
correferenciais diretas, de expressões anafóricas não-correferenciais do tipo
indiretas, de adjetivos e locuções adjetivas de caráter subjetivo, que possuem um
sentido discursivo ou opaco.
Nossa segunda hipótese sugere que, ao recorrer à tematização como uma
das formas de construção da cena discursiva, especificamente, às operações de
nomeação/qualificação
10
, a narrativa em análise não seja identificada como
7
São exemplos de documentos reais, em Operação Araguaia Regulamento das Forças
Guerrilheiras, Relatório Policial-Militar e Ofício Militar. Tais documentos estão, na seção
ANEXOS, respectivamente, nas páginas 166, 167 e 168.
8
Em nosso caso, o conflito histórico-político, ocorrido na região do Araguaia.
9
Veja-se p.93.
10
Estas operações aparecem, em Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha, através
dos adjetivos (que apresentam uma base nominal ou uma oriunda de verbo no particípio), locuções
adjetivas e alguns nomes substantivos adjetivados (através de Derivação Imprópria ou Conversão)
de caráter subjetivo, observados na narrativa.
meramente jornalística, mas sim, um texto que apresenta um novo viés diante dos
acontecimentos narrados (um olhar literário).
No que se refere à construção da cena discursiva, conforme Maingueneau
(2005), a terceira hipótese desta tese pressupõe que as expressões nominais e os
adjetivos transformem os guerrilheiros, considerados, até então, pessoas comuns
11
,
em personagens (objetos-do-discurso), aproximando a narrativa em discussão do
universo da Literatura.
E, finalmente, levantamos a hipótese de que as expressões nominais
anafóricas e os adjetivos (principalmente, os avaliativos não-axiológicos, os
avaliativos axiológicos e os subjetivos) de caráter positivo sejam marcantes nas
personagens classificadas como do tipo redondas (que, em Operação Araguaia,
possuem várias características positivas), importantes para a construção do ethos
das personagens.
Para alcançar os objetivos apontados, recorremos aos seguintes referenciais
teóricos: à teoria Semiolinguística de Análise do Discurso de Patrick Charaudeau
(1996); aos estudos de Referenciação desenvolvidos por Koch (2004); à
classificação semântico-discursiva dos adjetivos proposta por Kerbrat-Orecchioni
(1980) e ao conceito de Ethos apresentado por Maingueneau (2005).
Desse modo, na seção 2., intitulada REVISÃO BIBLIOGRÁFICA,
iniciamos com as tipologias observadas, hoje, para a classificação de textos nos
estudos de Língua Portuguesa e, a posteriori, os aspectos gramaticais das
expressões nominais, apresentando os critérios (morfológico, sintático e semântico-
discursivo), definidores de tais classes.
Em nosso trabalho, adotamos a tipologia textual utilizada por Charaudeau
(2008), classificando a narrativa de extração histórica da seguinte maneira: modos
de organização do discurso e gêneros textuais. Tal escolha justifica-se por
considerarmos que essa categorização lida com o texto em suas diferentes
manifestações sociais, o que nos permite associar a análise do gênero textual em
pauta ao estudo da Referenc iação e à concepção de Ethos.
11
Isto é, jovens estudantes universitários, secundaristas ou, ainda, jovens recém-formados, cuja
existência pode ser devidamente comprovada, através de arquivos/documentos históricos deixados.
Ainda nesta seção, tratamos dos elementos caracterizadores de uma narrativa
de extração histórica, de modo a distingui-la de outros gêneros textuais como, por
exemplo, o seu fundador o romance tradicional.
No que se refere ao modo narrativo de organização do discurso,
apresentamos um estudo dos cinco elementos essenciais à sua constituição, a saber:
o fato, as personagens , o ambiente, o tempo e o narrador.
Na seção 3, denominada JORNALISMO, HISTÓRIA E LITERATURA:
UMA INTER-RELAÇÃO ?, realizaremos, em primeiro lugar, algumas
considerações iniciais no que se refere ao Jornalismo, à História e à Literatura,
estabelecendo uma inter-relação entre esses campos científicos. Além disso,
estabelecemos, na subseção 3.1.1 (O QUE FOI A GUERRILHA DO
ARAGUAIA?), um breve estudo a respeito do movimento de guerrilha idealizado e,
mais tarde, desenvolvido pelo Partido Comunista do Brasil (PC do B), na região do
Araguaia, com vistas a: a) identificar as origens do PC do B e desse movimento de
guerrilha, b) situar este movimento de luta armada no contexto histórico da ditadura
militar (entre 1960 e 1976) e c) reconhecer não só as causas deste conflito, mas
também as suas consequências para a retomada da abertura política de nosso país.
Na seção 5. chamada FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA, estudamos dois
fatos relevantes à teoria Semiolinguística: o contrato de comunicação e o ato de
semiotização do mundo.
Ainda na seção 5., mais precisamente, na subseção 5.2.2, denominada UMA
PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO PARA AS EXPRESSÕES NOMINAIS
REFERENCIAIS, estudaremos tanto a distinção entre os conceitos de Referência e
Referenciação quanto os mecanismos desta, por meio de anáforas correferenciais
diretas e anáforas não-correferenciais do tipo indiretas, responsáveis pela
construção dos caracteres dos guerrilheiros-personagens a serem analisados.
Na subseção 5.3, intitulada A CLASSIFICAÇÃO SEMÂNTICO-
DISCURSIVA DOS ADJETIVOS, faremos uma análise a respeito de diferentes
classificações de natureza semântico-discursiva relativas ao adjetivo, tendo em vista
os estudos de Carneiro (1992), Kerbrat-Orecchioni (1980) e Neves (2000). Em
nossa análise, utilizamos a classificação defendida por Orecchioni que tipifica os
1
8
adjetivos em objetivos e subjetivos, sendo estes subdivididos em avaliativos não-
axiológicos, avaliativos axiológicos e afetivos.
Apresentamos, na subseção 5.4, intitulada A CONCEPÇÃO DE ETHOS, a
definição de Ethos, segundo os estudos aristotélicos, relacionando-a, portanto, com
a perspectiva defendida por Maingueneau (2005).
Assim, com base na articulação dos pressupostos teórico-metodológicos da
teoria Semiolinguística de Charaudeau (1996), com os estudos sobre Referenciação
(KOCH, 2004) e sobre os adjetivos (ORECCHIONI, 1980), nossa tese propõe uma
análise a respeito das operações de nomeação e qualificação, realizadas pelas
expressões nominais anafóricas (dos substantivos e os determinantes que o
acompanham adjetivo e locução adjetiva, por exemplo) e, ainda, realizadas pelos
adjetivos subjetivo-afetivos, em sua maioria, de caráter positivo, a fim de observar
de que maneira o uso destas expressões contribui para a progressão referencial desta
narrativa de extração histórica, ou seja, para a progressão temática do texto.
Pretendemos analisar, como acima declaramos, de que forma o emprego das
nomeações e qualificações contribui para a construção da personalidade dos jovens-
guerrilheiros, situando-os, a princípio, em um contexto histórico real/ do mundo
(ou a imagem que os narradores deles fazem, mesmo baseados em fatos, fotos,
relatos etc.) de modo a transformá-los em personagens, ou seja, em seres do
discurso.
2. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Pelo fato de o nosso trabalho analisar o funcionamento semântico-discursivo
das expressões nominais, na narrativa de extração histórica Operação Araguaia: os
arquivos secretos da guerrilha, apresentaremos, nas duas seções não só as
tipologias existentes, hoje, para a classificação de textos, como também os critérios
linguísticos utilizados (o morfológico, o sintático e o semântico-discursivo) a fim de
serem definidos os Substantivos e Adjetivos, tendo em vista os estudos tradicionais
de nossa língua.
Em 2.1 (ASPECTOS DISCURSIVO-TEXTUAIS), desenvolveremos as
tipologias textuais propostas por Charaudeau (2008), Travaglia (2001a.) e
Marcuschi (2002), no que diz respeito à nomenclatura empregada para a
classificação de textos. Na subseção 2.1.2 intitulada A NARRATIVA, trataremos,
de forma detalhada, dos cinco elementos indispensáveis à constituição de um texto
narrativo. Em 2.1.3 (A NARRATIVA DE EXTRAÇÃO HISTÓRICA), falaremos
tanto das características deste tipo de romance quanto do limite de intersecção entre
os campos da História e da Ficção, presentes no universo da Literatura.
Em 2.2 (ASPECTOS GRAMATICAIS), especificamente, na subseção
(SUBSTANTIVO E ADJETIVO EM GRAMÁTICAS DE LÍNGUA
PORTUGUESA), abordaremos os conceitos empregados por Bechara (1999) e
Cunha & Cintra (2001) para a definição das classes de palavras mencionadas. E, em
2.2.2 (OUTROS ESTUDOS), observaremos as diferentes propostas de classificação
para os Substantivos e Adjetivos, como a de Macambira (1997), Azeredo (2000) e
Monteiro (2002).
2.1 ASPECTOS DISCURSIVO-TEXTUAIS
2.1.1 ESTUDO TIPOLÓGICO DE TEXTOS
“O texto é a manifestação material (verbal e semiológica:
oral/gráfica, gestual, icônica etc.) da encenação de um ato de
comunicação, numa situação dada, para servir ao Projeto de
fala de um determinado locutor.” (CHARAUDEAU, 2008,
p.77)
Antes propriamente de serem estudados a narrativa e os seus elementos
basilares, desenvolveremos uma análise da(s) tipologia(s) textual(is) adotada(s)
atualmente. Para isso, destacaremos não só a perspectiva defendida por Charaudeau
(2008), como também as adotadas por Travaglia (2001a.) e por Marcuschi (2002).
Segundo Charaudeau (apud CARNEIRO & MONNERAT, 2002, p.01), a
compreensão da prática discursiva como uma atividade de quem recorre a
procedimentos para usar a língua a fim de cumprir as suas finalidades
comunicativas implica uma teoria dos gêneros, que desenvolva diferentes
estratégias para cada um dos quatro modos: o Enunciativo, o Descritivo, o
Narrativo e o Argumentativo.
Em relação ao modo de organização enunciativo, vemos, em um sentido
amplo, que o verbo enunciar corresponde à totalidade de um ato de linguagem e,
num sentido restrito, refere-se ao propósito referencial deste mesmo ato de
linguagem, ou ainda, ao ato de enunciação, que o engloba. Por isso, o modo de
organização enunciativo diz respeito aos seres da fala, internos à linguagem.
Contudo, não podemos confundir modo de organização enunciativo com a
situação de comunicação, pois o primeiro trata dos seres da fala (internos à
linguagem), enquanto o segundo está articulado aos seres sociais (externos à
linguagem).
De acordo com Pauliukonis (2001, p.04), o modo enunciativo corresponde
aos processos de modalização dos sujeitos comunicante/interpretante, isto é, a
maneira pela qual esse sujeito utiliza o material linguageiro, que pode ocorrer
através das modalidades oral ou escrita, em situações monolocutivas ou dialógicas,
ou ainda, nos diferentes tipos e gêneros textuais. Para Oliveira (2003, p.41), esse
modo tem por função gerir os outros três, função assim denominada,
metadiscursiva. Vemos, portanto, que o modo enunciativo está relacionado aos
procedimentos/estratégias utilizados a fim de organizar o discurso.
Assim, verificamos que o modo enunciativo aparece, em Operação
Araguaia, a partir de um fato histórico, isto é, um acontecimento marcante no
cenário político brasileiro: o conflito armado, na região do Araguaia, envolvendo as
forças guerrilheiras do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e as forças do
governo, durante o regime militar dos presidentes Emílio Garrastazu Médici (1969-
1974) e Ernesto Geisel (1974-1979).
Gerenciados pelo enunciativo, advêm os outros três: o narrativo, o
descritivo e o argumentativo.
Podemos dizer que narrar é construir uma sequência de fatos/experiências,
isto é, desenvolver ações situadas num tempo e espaço determinados, ações vividas
por protagonistas e antagonistas (CHARAUDEAU, 1992, p.658). Narrar representa,
ainda, uma manifestação que acompanha o homem desde a sua origem (GANCHO,
2002, p.06). As gravações em pedra, nos tempos da caverna, por exemplo, são
narrações. Os mitos histórias das origens (de um povo, de objetos, de lugares)
transmitidos pelos povos através das gerações são narrativas. A Bíblia livro que
condensa História, Filosofia e dogmas do povo cristão compreende muitas
narrativas: da origem do homem e da mulher, dos milagres de Jesus.
Modernamente, poderíamos citar um sem-número de narrativas, como: novela de
televisão, filme de cinema, peça de teatro, notícia de jornal, gibi, desenho animado...
Muitas são as possibilidades de narrar, oralmente ou por escrito, em prosa ou em
verso, usando imagens ou nã o.
Toda narrativa é construída por cinco elementos sem os quais não existe.
Podemos dizer que não há estória sem os fatos e que quem os vive são as
personagens, situadas em um determinado tempo e espaço. É necessária, ainda, a
presença do narrador, pois é ele que fundamentalmente caracteriza a narrativa.
Apresentamos, então, os elementos que estruturam uma narrativa: enredo,
personagens , tempo, espaço e narrador.
12
No que diz respeito às estratégias linguísticas que evidenciam o modo
narrativo de organização do discurso, destacamos: a natureza semântica dos
verbos (verbos que indicam a progressão das ações verbos intransitivos ou
transitivos) e o tempo verbal (verbos nos tempos pretéritos mais-que-perfeito,
perfeito e imperfeito, que indicam, respectivamente, um passado remoto/anterior a
outro fato passado, um passado pontual e uma marcação do estado de coisas no
passado). Para tematizar a fuga de uma guerrilheira da região do Araguaia
(codinome Regina) e, principalmente, retratar o estado de desespero/nervosismo em
que se encontrava a moça, o sujeito comunicante recorre a verbos e locuções verbais
nos tempos mencionados, evidenciando não só a presença do modo narrativo de
organização do discurso na tessitura de Operação Araguaia, como também ao
saber-fazer desse sujeito em termos de construção gramatical (competência
semiolinguística):
13
“[...] A viagem começou com Regina no lombo de um burrinho apelidado de
PT, abreviatura de Pica Torta. O animal tinha dois ferimentos no lombo
conhecidos como pisaduras provocados pelo uso incorreto e excessivo de
arreios. Lúcio, Dona Maria e Mário acompanhavam a pé. [...]
Quando chegaram à Transamazônica, Mário, Dona Maria e Regina pegaram
um ônibus. Lúcio tomou o caminho de volta para a Faveira. [...]
Enfim, chegara a hora tão sonhada por Regina. Pela primeira vez, desde a
viagem para o Araguaia, ficava sozinha e em condições de fugir. Esperou
alguns minutos, andou até o consultório do médico e avisou que deixaria o
hospital. O homem protestou, mas aceitou quando ela argumentou que
viajaria para a casa dos pais.
Regina pagou a conta com o dinheiro que havia guardado no oco da árvore,
andou até a rodoviária e tomou um ônibus para São paulo. No dia 19 de
dezembro, chegou à casa dos pais.” (MORAIS & SILVA, 2005, p. 46-47)
descrever consiste em olhar o mundo e os seres que nele se encontram
de forma a nomeá-los e, por conseguinte, qualificá-los. Desse modo, narrar
12
Na subseção 2.1.4, abordaremos estes elementos.
13
Os verbos, nos tempos referidos, aparecem em negrito.
envolve uma ação dinâmica, enquanto descrever refere-se a uma ação estática.
Como nos diz Charaudeau (2008, p.111-112):
“[...] contar consiste em expor o que é da ordem da experiência e do
desenvolvimento das ações no tempo, e cujos protagonistas são os seres
humanos, descrever consiste em ver o mundo com um ‘olhar parado’ que faz
existir os seres ao nomeá-los, localizá-los e atribuir-lhes qualidades que os
singularizam. Entretanto, descrever está estreitamente ligado a contar, pois
as ações só têm sentido em relação às identidades e às qualificações de seus
actantes. [...]
Assim sendo, o Descritivo não se contenta em servir o Narrativo, como se
diz frequentemente, mas dá sentido a este último.”
Dentre as estratégias linguísticas empregadas e que, dessa forma,
caracterizam o modo de organização descritivo, apontamos: a natureza semântica
dos verbos (verbos indicativos de estado, aparência, qualidade, condição, ou seja,
verbos de ligação), o tempo verbal (verbos que não indicam progressão de ação) e
o uso de classes gramaticais utilizadas para designação e qualificação dos seres
em geral (através de nomes substantivos e adjetivos). No entanto, o termo
descrição refere-se ao texto propriamente dito, acabado, ou a um fragmento/trecho
desse mesmo texto.
Vale destacarmos que o modo de organização descritivo possui três
componentes autônomos e, ao mesmo tempo, indissociáveis a saber: nomear,
localizar-situar e qualificar.
Para o autor supracitado (apud CARNEIRO & MONNERAT, 2002),
nomear resulta da operação de construção e estruturação da visão de mundo pelo
sujeito, que percebe os objetos através de suas diferenças e semelhanças, a fim de
classificá-los. Localizar-situar consiste num recorte objetivo do mundo, situando
os seres no espaço e tempo determinados. E qualificar é atestar o olhar do sujeito
falante sobre os seres do mundo a partir de sua subjetividade, construída através do
seu imaginário social e coletivo acerca do mundo.
Em relação à presença do modo descritivo, na narrativa de extração histórica
em pauta, observamos, no trecho a seguir, por exemplo, que o sujeito comunicante
lança mão de expressões nominais anafóricas (operação de nomeação) e de
adjetivos (operação de qualificação) a fim de configurar o cenário (o espaço físico
a região do Araguaia) em que se dão os fatos narrados:
14
“[...] O isolamento da tríplice divisa havia tempos despertava a atenção dos
órgãos de repressão. Os moradores viviam dispersos, em clareiras abertas na
selva nas quais plantavam roças ou nos poucos vilarejos. As terras férteis,
cheias de depressões e cortadas por igarapés, ofereciam boas condições
para a implantação de um movimento guerrilheiro.
A abundância de água e a mata fechada lembravam o Vietnã, inferno verde
em que os soldados norte-americanos tombavam sob as armadilhas dos
vietcongues. O Araguaia permitia a navegação de pequenas embarcações de
Xambioá para o sul, e do sítio da Viúva para o norte. Corredeiras e
cachoeiras desaconselhavam o tráfego entre os dois pontos.”
(M & S, p.22-23)
15
Além disso, ao construir o pensamento da personagem Nílton, militar do
Exército, o sujeito comunicante escolhe, intencionalmente, os adjetivos de caráter
subjetivo pejorativo/negativo (subversivo e terrorista) e relaciona-os aos
membros da guerrilha (operação de qualificação), ou seja, articula os vocábulos à
figura daqueles que, por discordarem do regime militar, representavam um perigo à
segurança nacional:
“[...] Meio anestesiado pela imponência do Araguaia, Nílton pensou na
família e nos dissabores que teria pela frente. Entrava em uma missão secreta
sem a mínima idéia de como e quando sairia. Temia os guerrilheiros, mas
sentia -se atraído pelo papel de espião. Se tudo desse certo, seria
recompensado com promoções e condecorações. Enchia-se de orgulho por
pertencer ao Exército. Aprendeu a morrer pela pátria. Quem discordava do
regime militar era subversivo. Quem pegava em armas contra a ditadura era
terrorista. Chegou a Xambioá disposto a dar a vida para livrar o Brasil do
comunismo internacional.” (M & S, p.27)
Vemos, ainda, no fragmento a seguir, que o sujeito comunicante emprega
determinadas expressões nominais anafóricas não-correferenciais do tipo indiretas
14
Neste trabalho, destacamos as expressões nominais com itálico e negrito, ao mesmo tempo. Já os
adjetivos serão identificados, apenas, por itálico.
15
Em nossa tese, empregamos esta referência (M & S, p....) para apresentarmos a citação de um
dado trecho de Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha.
os modos gentis do Dr. Juca e responsável tanto pela saúde dos militantes como
pela assistência à população e, em específico, o adjetivo avaliativo axiológico
gentis, articulando-os à figura do guerrilheiro João Carlos Haas Sobrinho,
conhecido por Dr. Juca (operação de nomeação). Percebemos que, ao utilizar as
expressões nominais mencionadas, este sujeito comunicante tem o propósito de
sinalizar para o leitor que, apesar do desejo de realizar uma luta armada no interior
do país, Dr. Juca e seus companheiros de guerrilha cumpriam, até certo ponto e à
sua maneira, obrigações que pertenciam, originalmente, ao aparelho de Estado ao
Governo, como: Saúde, Educação, Saneamento Básico etc.:
“João Carlos Haas Sobrinho e Dr. Juca são a mesma pessoa. Dois anos após
desembarcar em Pequim para treinar guerrilha, o médico gaúcho passa-se por
farmacêutico, enviado pelo PC do B para ajudar na implantação das bases
para a revolução. No Araguaia ficou responsável tanto pela saúde dos
militantes como pela assistência à população. Fez parte da comissão militar
instalada na selva amazônica.
No dia em que recebeu o recado sobre a doença de Pedro Onça, Juca atendeu
de pronto. Examinou o paciente, aplicou remédio e deu soro. O caboclo disse
que não tinha como pagar. Era difícil obter dinheiro na região. Juca
respondeu que não haveria problema, receberia quando fosse possível, ‘o
importante é a sua saúde’.
Os modos gentis do Dr. Juca e a gratidão do caboclo resultaram em estreita
amizade.” (M & S, p.40)
Observamos que o emprego de tais expressões anafóricas e do adjetivo
avaliativo destacado (de caráter subjetivo positivo) evidencia não só a presença do
modo descritivo de organização do discurso, mas sobretudo, revela-nos, de certa
forma, o posicionamento ideológico do sujeito comunicante/enunciador em relação
à temática discutida, conduzindo-nos à presença do modo argumentativo na
narrativa sob análise. Conforme nos diz Charaudeau (2008, p.111-112):
“[...] argumentar consiste em efetuar operações abstratas de ordem lógica,
destinadas a explicar ligações de causa e efeito entre fatos ou
acontecimentos, descrever consiste em identificar os seres do mundo
classificando-os, sem necessariamente estabelecer uma relação de
causalidade.
Entretanto, descrever e argumentar são atividades estreitamente ligadas, na
medida em que a primeira toma emprestado à segunda um certo número de
operações lógicas para classificar os seres (por exemplo, em sinônimos e
antônimos), e a segunda só pode exercer-se a respeito de seres que têm uma
certa identidade e qualificação.”
Assim, o modo de organização argumentativo apresenta-nos uma visão
dialética do mundo em que, partindo de um tema, o sujeito argumentador organiza
uma tese. Ela se constitui por uma asserção ou por um conjunto de asserções que
dizem algo sobre o mundo. Tal sujeito argumentador deve posicionar-se diante de
tal asserção, baseando-se em argumentos e justificativas (PAULIUKONIS, 2001,
p.05). Em nosso trabalho, o posicionamento ideológico do sujeito enunciador (que
denota o modo argumentativo de organização do discurso) será percebido, através
das operações de nomeação e de qualificação, ou seja, o emprego de expressões
nominais e de adjetivos, responsáveis não só pela construção da imagem dos
guerrilheiros/personagens no texto, mas principalmente pela defesa da tese
subjacente a este texto, que é a legitimidade do movimento de guerrilha contra o
regime político-ditatorial implantado no Brasil desde 1964.
Como vimos, os modos de organização do discurso são maneiras de
estruturar um texto. Corroborando Oliveira (2003, p.43), podemos dizer que:
a) dificilmente um texto apresenta apenas um desses modos (sempre há
certa dose de mistura);
b) o modo enunciativo sempre está presente num texto, mas não de forma
predominante e
c) ao se classificar um texto como descritivo, narrativo ou argumentativo,
significa dizer que esse modo de organização é predominante, mas não
exclusivo.
Com base nas considerações realizadas, verificaremos que a tessitura de
Operação Araguaia é constituída pela presença concomitante dos quatro modos
organizacionais do discurso, inclusive o enunciativo. Aliás, como vimos, é
justamente o modo enunciativo quem aciona/comanda a encenação dos outros
modos (narrativo, descritivo e argumentativo), na situação discursiva, visto
encontrar-se diretamente ligado às estratégias linguageiras utilizadas pelo sujeito
comunicante/enunciador, na construção da cena comunicativa. Podemos dizer que
este modo representa o ato de enunciação (a situação comunicativa propriamente
dita).
Tais modos de organização possuem uma função de base e um princípio de
organização (CHARAUDEAU, 2008, p.74). Para o autor (ibidem, p.77), como as
finalidades das Situações de comunicação e dos Projetos de fala são compiláveis, os
Textos que lhes correspondem apresentam constantes, permitindo, portanto,
classificá-los em Gêneros Textuais. [Grifos do autor]
Observamos, portanto, que os gêneros textuais poderão coincidir tanto com
um determinado modo de organização do discurso quanto resultar da combinação de
vários modos. Por exemplo, o gênero científico (variável conforme a disciplina e o
suporte que o veicula) organiza-se, essencialmente, segundo o modo
argumentativo, embora possa apresentar trechos descritivos e narrativos. No gênero
publicitário, notamos a combinação desses modos de organização, privilegiando-
se, contudo, o descritivo e o narrativo, em publicidades/cartazes de rua e de revistas
populares; e o modo argumentativo quando se trata de publicidades encontradas em
revistas técnicas. Percebemos, também, o mesmo fato na Imprensa, de uma forma
geral, onde são encontrados textos que tendem aos modos descritivo e narrativo
(relatos, reportagens, faits divers
16
) e outros que tendem para o modo
argumentativo (comentários e análises).
16
Faits Divers: são pequenas notícias diárias; relato de fatos do quotidiano que possuem um caráter
insólito. Cf. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI. 3.ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Relacionando a classificação de Charaudeau (ibidem, p.77-79) com o estudo
desenvolvido, em nosso trabalho, propomos o quadro abaixo:
Quadro 1: Proposta de Charaudeau (2008) para uma tipologia textual.
GÊNEROS
MODOS DE
ORGANIZAÇÃO
DOMINANTES
OUTROS MODOS
DE ORGANIZAÇÃO
Relatos
Narrativa de Extração
Histórica
Narrativo e Descritivo
Enunciativo
Argumentativo
Segundo Travaglia (2001a., p.01), a tipologização em todos os planos e
níveis de linguagem é um dos elementos que faz da linguística uma ciência. No
que diz respeito aos estudos para o estabelecimento de tipologias de discurso e/ou
texto, identificamos uma diversidade de abordagens (literária, linguística,
antropológica, psicológica, pedagógica), teorias, parâmetros e critérios que
estabelecem as mais diferentes tipologias com os mais diversos fins. De tudo isso
tem nascido um “mal estar classificatório”, que podemos dizer, advém basicamente:
a) da inexistência de uma teoria geral que organize todo este furor
tipológico e
b) do encontro das diferentes abordagens e consequentes metalinguagens
que, muitas vezes, utilizam-se dos mesmos termos para referir conceitos
tipológicos diversos.
Dessa forma, Travaglia (ibidem) aponta-nos três elementos tipológicos: tipo,
gênero e subtipo.
O tipo de texto é identificado e caracterizado por instaurar um modo de
interação, uma maneira de interlocução, segundo perspectivas que podem variar,
constituindo critérios para o estabelecimento de tipologias diferentes.
O gênero de texto caracteriza-se por exercer funções sociais específicas que,
embora sejam pressentidas e vivenciadas, quase sempre não são de fácil
explicitação.
17
O subtipo de texto é definido e caracterizado por aspectos formais de
estrutura, da superfície lingüística e por aspectos de conteúdo.
Um tipo pode ter subtipos e gêneros. Os gêneros de um tipo podem ser de
um ou outro subtipo do tipo, conforme o caso. Os gêneros também podem ter
subtipos. O tipo narração, por exemplo, apresenta dois subtipos: história e não-
história (ibidem, p.04).
Articulando esses tópicos ao nosso trabalho, apresentamos o seguinte
esquema:
Quadro 2: Classificação de textos segundo Travaglia (2001a).
TIPO
SUBTIPO DO TIPO
GÊNERO
Narração
História/Ficção
Narrativa de
Extração Histórica
Marcuschi (2002), por sua vez, propõe-nos uma classificação que distingue
apenas tipo e gênero textuais.
17
Segundo o autor, este é um ponto que necessita de maior desenvolvimento em sua pesquisa.
O tipo textual designa uma espécie de construção teórica bem definida pela
natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos
verbais e relações lógicas). Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia
dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição,
descrição e injunção.
O gênero textual é definido como uma noção propositalmente vaga, a fim de
se referir aos textos materializados que encontramos em nossa vida diária e que
apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos,
propriedades funcionais, estilo e composição característicos. Se os tipos textuais são
apenas meia dúzia, os gêneros são inúmeros. Alguns exemplos de gêneros textuais
seriam: telefonema, sermão, carta comercial, carta pessoal, romance, bilhete,
reportagem jornalística, aula expositiva, reunião de condomínio, notícia
jornalística, horóscopo, receita culinária, bula de remédio, lista de compras,
cardápio de restaurante, instruções de uso, outdoor, inquérito policial, resenha,
edital de concurso, bate-papo por computador, aulas virtuais e assim por diante.
Podemos dizer que os gêneros textuais estão fundados em critérios externos
(sócio-comunicativos e discursivos), enquanto os tipos textuais estão baseados em
critérios internos (linguísticos e formais).
Assim, um maior conhecimento das tipologias textuais é importante tanto
para a produção como para a compreensão/interpretação dos textos, tendo em vista
que todos eles se manifestam sempre num, ou noutro gênero textual. Em certo
sentido, é essa a idéia básica que se acha no centro dos PCNs (Parâmetros
Curriculares Nacionais), quando sugerem que o trabalho com o texto deve ser feito
na base dos gêneros, sejam eles orais ou escritos.
Confrontando as informações obtidas nos dois últimos autores, podemos
incluir a narrativa de extração histórica como sendo um texto do tipo narrativo, de
subtipo história/ficção. Já Marcuschi (op.cit.) tipifica a narrativa de extração
histórica (gênero textual) como apenas um texto do tipo narrativo.
No entanto, vale destacar que a classificação a ser seguida em nosso trabalho
é a de Charaudeau (2008), por utilizar as categorias da própria língua, a fim de
ordená-las em função de um determinado projeto de fala no ato comunicativo,
agrupando-as, dessa maneira, nos seguintes modos de organização do discurso o
Enunciativo, o Descritivo, o Narrativo e o Argumentativo.
2.1.2 A NARRATIVA
“Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro
lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos
entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa
para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa
pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou
escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela
mistura ordenada de todas essas substâncias; está presente
no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopéia,
na história, na tragédia, nas histórias em quadrinhos, no fait
divers, na conversação. Além disso, sob essas formas quase
infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em
todos os lugares, em todas as sociedades... internacional,
trans-histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a
vida.”
(BARTHES, 1974, p.19-20)
Conforme Gancho (2006, p.06), contar histórias é uma atividade praticada
por pessoas comuns: pais, filhos, professores, amigos, namorados, avós... Enfim,
qualquer um pode contar-escrever ou ouvir-ler toda espécie de narrativa: histórias
de fadas, casos, piadas, mentiras, romances, contos, novelas... Os meios de
transmissão das histórias também são diversos: conversa, rádio, televisão, jornal,
desenho, internet...
Toda narrativa apresenta elementos fundamentais, que respondem às
seguintes questões:
Quadro 3: Elementos basilares da narrativa.
Dentre as narrativas escritas em prosa, Mattoso Câmara Jr. (1996, p.244)
Dentre as narrativas escritas em prosa, Garcia (1996, p.244) destaca: o
romance, a novela, o conto e a crônica, os quais possuem uma técnica especial. O
autor (ibidem) aponta-nos, ainda, outras, como: a anedota, o incidente, a biografia, a
autobiografia, o perfil), cujas características apresentam menor complexidade.
18
18
A seguir, no trabalho em voga, estabeleceremos algumas considerações acerca do gênero textual
Narrativa de Extração Histórica.
QUESTÕES ELEMENTOS DA NARRATIVA
O quê aconteceu?,
Como ocorreram as ações?,
ENREDO
Por quê aconteceu o fato? e
Por isso (o resultado das ações).
Quem viveu os fatos? PERSONAGENS
Onde ocorreram as situações? ESPAÇO
Quando se deram os fatos? TEMPO
Quem narrou as ações? NARRADOR
2.1.3 AS NARRATIVAS DE EXTRAÇÃO HISTÓRICA
Como muito bem expõe Trouche (2005, p.25), o século XIX é,
indubitavelmente, um período pródigo na publicação de narrativas de extração
histórica
19
. A voga romântica traz consigo a forma literária que, na Europa,
veiculou o interesse renovado pelo passado, canonicamente chamado romance
histórico:
“[...] O romance histórico nasceu em princípios do século XIX,
aproximadamente na época da queda de Napoleão. (O Waverley, de Walter
Scott foi publicado em 1814). É claro que há romances de tema histórico já
nos séculos XVII e XVIII, e quem assim o deseje pode considerar como
‘precursores’ do romance histórico as elaborações da história antiga e dos
mitos da idade média, e remontar-se ainda à China ou à Índia. Mas nesse
percurso não encontrará nada que pudesse aclarar algo importante sobre o
fenômeno do romance histórico. Os chamados romances históricos do século
XVII (Scudéry, Calprenède, etc.) são históricos apenas por sua temática
puramente externa [...]” (LUKÁCS, 1971, p.15)
Concordando com o autor (ibidem), a opção, em nosso trabalho, pelo
composto narrativas de extração histórica é justificada por três fatores analisados,
respectivamente.
Em primeiro lugar, pelo fato de, antes mesmo do século XIX (época do
surgimento do romance histórico tradicional), já serem observadas narrativas que
utilizam o fato histórico como matéria-prima literária. Em relação ao sistema
literário hispano-americano, especificamente, Trouche (op.cit., p.43) sinaliza-nos
que as crônicas historiográficas dos séculos XVI e XVII e os autores Domingo
Faustino Sarmiento e Ricardo Palma (ambos do século XIX), mesmo afastados do
19
O composto narrativas de extração histórica foi utilizado pelo Prof. Dr. André Trouche (ibid.,
p.20), em sua tese de doutoramento, a fim de designar o conjunto de obras componentes do corpus
estudado. O objetivo de seu trabalho era analisar a relação entre a história e a ficção em narrativas
oriundas de quatro momentos, considerados pelo autor, decisivos na transformação desse sistema
literário em modelo recorrente na Literatura Hispano-Americana, que foram: 1) Comentários Reales
de Garcilaso de la Vega (1972) século XVII, momento de fundação do processo literário hispano-
americano; 2) Recuerdos de Provincia de Domingo Faustino Sarmiento (1966) século XIX,
período de formação das nacionalidades hispano-americanas; 3) La muerte de Artemio Cruz de
Carlos Fuentes (1979) século XX, período de afirmação emergencial da narrativa hispano-
modelo de romance histórico tradicional, já tomavam a memória, a história e o
legendário oral como signos contíguos não-excludentes. No caso da Literatura
Brasileira, podemos citar: a crônica jornalística, isto é, a Carta de Pero Vaz de
Caminha ao rei D.Manuel de Portugal (século XVI)
20
e o romance Os Sertões de
Euclides da Cunha (em1902 século XX)
21
.
Em segundo lugar, por ser um termo de caráter mais abrangente, pois abarca
os outros gêneros que, também, lidam com a matéria histórica, tais como o
romance histórico tradicional (LUKÁCS,1971), o novo romance histórico
(MENTON,1994) e as chamadas metaficções historiográficas (HUTCHEON,
1991).
Por fim, pelo fato de ser o diálogo entre o discurso literário e o discurso
histórico o aspecto de maior relevância em tais narrativas, e não as denominações
em si mesmas.
Conforme Trouche (2005, p.32), desde as primeiras manifestações literárias
e os primeiros estudos teóricos sobre a poética, no âmbito do campo intelectual do
Ocidente, existe a preocupação em investigar as relações envolvendo a história e a
ficção. Uma observação, mesmo superficial, da epopeia homérica (900 a.C.)
indicar-nos-á, claramente, que, já nos textos considerados fundadores de toda a
literatura ocidental, mito e história entrecruzam-se na organização da narrativa.
Ao contrário, no campo da especulação teórica, podemos dizer que, embora
Aristóteles (384-322 a.C.), em sua Poética (1970), não tenha estabelecido,
propriamente, a distinção entre mito e história, percebemos esta distinção devido à
maneira como o filósofo delimitou a função do historiador e a do poeta, partindo
do conceito de verossimilhança: o primeiro o historiador responsável por
contar o que realmente aconteceu e o outro o poeta responsável por contar o que
poderia ter acontecido. Esse modo de delimitação aristotélica está relacionado à
concepção tradicional de categorização. Na abordagem clássica, cada categoria é
americana e 4) Yo el Supremo de Augusto Roa Bastos (1979) século XX (a partir dos anos 70),
período de superação das utopias modernistas.
20
Essa narrativa apresenta-nos informações históricas a respeito das belezas naturais, das gentes;
enfim, dos costumes observados na terra recém-descoberta.
21
O romance em questão retrata o conflito armado na cidade de Canudos (interior de Pernambuco),
liderado por Antônio Conselheiro a fim de libertar a região do controle republicano.
definida em termos de um conjunto de traços necessários e suficientes. Não há
qualquer possibilidade de alguns membros serem considerados mais bem definidos
que outros. É questão de ser ou não ser membro da categoria. Nesse sentido, todos
os membros têm o mesmo status. As categorias são bem delimitadas, não havendo
casos de fronteira. (MENEZES, 2004, p.145)
De acordo com Trouche (2005, p.32-33), da Grécia Clássica a nossos dias, o
diálogo entre a história e a ficção vem-se constituindo em matéria privilegiada para
extenso número de teóricos que, com maior ou menor fôlego, elaboraram reflexões
e especulações teóricas. Dentre as reflexões concernentes ao diálogo entre o
discurso literário e o ficcional, adotamos, em nosso trabalho, assim como Trouche
(ibidem), a relativização dos limites rígidos entre a história e a literatura.
Desse modo, destacaremos os fatores que mais contribuíram para a
construção desta tendência.
No que diz respeito à história (ibidem, p.33), o primeiro fator foi a
relativização do conceito de verdade histórica. O segundo foi a sedimentação da
consciência de que a narrativa histórica é uma construção cultural, plena de
subjetividade, dependente de uma avaliação quanto às fontes e documentos e
submetida às convenções da semiose narrativa. O terceiro foi a abrangência da
noção de fato histórico, incorporando, também, os elementos do cotidiano e as
experiências dos indivíduos comuns os pertencentes aos grupos sociais não
dominantes.
Em relação à literatura (ibidem, p.33-34), podemos apontar três outros
fatores pertinentes à construção da tendência de relativização dos limites entre a
história e ficção. O primeiro é o sempre renovado interesse pelo passado histórico,
apesar das modificações dos procedimentos retóricos e das transformações das
concepções poéticas. O segundo é a permanência da questão da referencialidade,
desde as primeiras manifestações literárias, ocupando o centro das discussões
teóricas, que envolvem críticos e criadores. E, não menos importante, o terceiro
fator foi o contínuo movimento de autoquestionamento, sempre presente no
processo literário, fato que conduz a uma grande abertura na concepção de discurso
e de narrativa ficcional, ultrapassando quaisquer fronteiras rígidas a fim de
estabelecer limites ao processo literário.
Contudo, retomando as reflexões desenvolvidas por Lúkacs (1971) acerca
do romance histórico, Bastos (1994), em ensaio inédito, apresenta-nos outros
fundamentos a respeito desse romance:
“[...] O romance histórico estava fadado a certo hibridismo: como ‘romance’,
era ficção, isto é, a matéria narrada era resultado da invenção do escritor, que
delegava a um narrador, quase sempre em terceira pessoa, a responsabilidade
pela mímese do real humano. Como ‘histórico’, escapava aos limites da
ficcionalidade e se pretendia documento, pois nele o leitor reencontraria
elementos verídicos (datas, nomes de personalidades político-guerreiras,
eventos, lugares, etc.) tomados de empréstimo à história. O romance histórico
herdava da epopéia uma das dimensões da matéria épica, a história, e
substituía o mito (e seu corolário, o maravilhoso) pelo ficcional [...].”
(BASTOS, 1994, p.02)
Percebemos, então, que o fato narrado no romance histórico deve ser,
obrigatoriamente, histórico, ou seja, deve apresentar uma comprovação
documental, passível de reconhecimento por seus leitores, assim como os demais
elementos estruturantes da narrativa os personagens, o ambiente, o tempo e o
narrador que, marcado pelo espaço histórico, desenvolve o enredo.
2.1.4 OS ELEMENTOS DA NARRATIVA
"Entendo que para contar é necessário primeiramente
construir um mundo, o mais mobiliado possível, até os
últimos pormenores. Constrói-se um rio, duas margens, e na
margem esquerda coloca-se um pescador, e se esse pescador
possui um temperamento agressivo e uma folha penal pouco
limpa, pronto: pode-se começar a escrever, traduzindo em
palavras o que não pode deixar de acontecer."
(Pós-escrito a O nome da rosa, de Umberto Eco.)
Contar e ouvir histórias mais ou menos reais
22
são atividades humanas
antiquíssimas. Conforme se destacou anteriormente, desde os relatos orais, em
épocas remotas, até os relatos audiovisuais do cinema e da televisão, passando pelos
livros, criar, recriar, inventar e narrar histórias, ouvi-las e lê-las colaboram para o
desenvolvimento do ser humano, de forma geral. Tanto na linguagem oral quanto na
escrita ou visual, o texto narrativo cria ou recria personagens que se situam num
tempo e num espaço, envolvidos por um enredo. O enredo, também chamado
trama ou intriga, é contado ao ouvinte ou leitor através do narrador.
Em síntese, segundo os estudiosos da narrativa, vemos que este gênero
textual apresenta cinco pilares de sustentação:
a) um enredo, ou seja, fatos ou situações que mantêm para o leitor a
seguinte pergunta: o que vai acontecer?;
b) personagens, que vivenciam os acontecimentos narrados;
c) um espaço onde acontecem os fatos;
d) um tempo que determina o ritmo e a sequência dos fatos e
e) um narrador que conta os fatos e o seu desenvolvimento.
A seguir, trataremos, de forma mais detida, de cada um destes elementos.
Para demonstrar os elementos da narrativa, utilizaremos trechos da narrativa de
extração histórica em estudo.
q ENREDO
Quando se pensa na palavra enredo, somos remetidos para o campo lexical
do ato de tecer ou, ainda, enredar. Segundo Houaiss (2004, p.284),
“1. Prender(-se) em rede; 2. Tecer como rede; entreter (e. a palha); 3. Fig.
Enganar, iludir; 4. Armar intrigas (para); intrigar, indispor (e. os vizinhos)
[...]”
Assim, o enredo é a própria ação da narrativa, isto é, ele constitui a sucessão
dos fatos, das vivências, enfim; de todas as situações que constroem a trama do
22
Com base em estudos sobre Referência (MONDADA & DUBOIS, 2003), estamos considerando a
realidade criada no discurso. É nesse sentido que Umberto Eco fala da necessidade de “construir um
mundo, o mais mobiliado possível, até os últimos pormenores”.
texto. Na verdade, o enredo representa o esqueleto da narrativa o que dá
sustentação à estória ou seja, é o desenrolar dos acontecimentos. Para Câmara Jr.
(1996, p.242),
"O enredo (intriga, trama, história ou estória, urdidura, fábula) é aquela
categoria da narrativa constituída pelo conjunto dos fatos que se encadeiam,
dos incidentes ou episódios em que as personagens se envolvem, num
determinado tempo e num determinado ambiente, motivadas por conflitos de
interesse ou de paixões. É, em si mesmo, um artifício artesanal, estruturado
por um nexo de causa e efeito entre as peripécias que se enovelam e
caminham para um desfecho. Enredo é, em suma, o que acontece, é a
narrativa mesma."
Em geral, o enredo está centrado num conflito, isto é, o elemento de tensão
que organiza os acontecimentos, fazendo-os avançar. A apresentação desse conflito
permite a divisão do enredo em: introdução ou apresentação, complicação ou
desenvolvimento, clímax e conclusão (também chamada desfecho ou desenlace).
Introdução ou Apresentação - é o começo da história, em que os fatos
iniciais, as personagens, o espaço e o tempo são apresentados. A
narrativa em estudo inicia-se com a chegada de cinco homens, liderados
por Nílton, agente secreto do Centro de Informações do Exército (CIE), a
fim de investigar a atuação de uma força subversiva ao governo militar,
instalada na região do Araguaia (em 1972, esta região compunha a
tríplice divisa entre os estados de Goiás, Pará e Maranhão):
"Xambioá, Goiás, março de 1972
A Veraneio vermelha atravessou a principal rua do vilarejo goiano e parou de
frente para o rio. Saltaram cinco homens suados e sujos de lama. As águas
turvas do Araguaia desciam calmas para o norte e desapareciam no horizonte
cinzento. Nilton levantou a cabeça para contemplar a paisagem e sentiu um
arrepio na espinha. A mata fechada ergueu-se na outra margem, no Pará,
como muralha verde. O forasteiro imaginou inimigos armados, embrenhados
naquela imensidão de folhas, troncos, cipós e espinhos." (M & S, p.19)
Complicação ou Desenvolvimento - é o momento em que o
conflito se desenvolve. Em Operação Araguaia..., são citadas as
diversas operações realizadas pelas tropas militares, com o objetivo
de perseguir, sufocar; enfim, banir a força de guerrilha, que atuava
na selva amazônica. Dentre as operações, destacamos: as
Operações Peixe I, II, III e IV (ocorridas no período de março a
setembro de 1972)
23
e as Operações Sucuri (entre abril e setembro
de 1973)
24
e Marajoara (de outubro de 1973 a dezembro de 1976):
"[...] O planejamento da Operação Peixe I foi assinado pelo tenente-coronel
Raul Augusto Borges, chefe da Segunda Seção da 8
a
RM, a mando do
general Darcy Jardim de Mattos.[...]
A operação teria duas fases. Na primeira, os investigadores sairiam para
confirmar a presença de guerrilheiros no sul do Pará. Na segunda, seria feito
'o isolamento, cerco e redução do inimigo'. Essa etapa estava sujeita a novas
orientações. O documento observa que os inimigos mostram-se ativos.
Exploram as condições precárias de vida do povo e as divergências entre
empresas e colonos. Os agentes secretos de Belém ficam autorizados a
efetuar prisões. Em caso de captura pelo inimigo, devem desfazer-se do
armamento." (M & S, p.61)
"[...] MISSÃO
- Realizar operação de informações, de maior amplitude, a fim de
aprisionar quatro elementos-chave para o levantamento das atividades
dos paulistas na área: Eduardo Brito, Irene, Raimundo Preto e Joca.
- Ficar em condições de, em seguida às prisões dos quatro elementos,
realizar uma operação de maior envergadura, de cerco ao provável campo
de treinamento, para capturar os elementos nele existentes.
O general Darcy Jardim e o tenente-coronel Raul Augusto Borges montaram
a Operação Peixe II ainda sem ter certeza sobre as atividades desenvolvidas
pelos paulistas na área. No documento Confirmação de Ordens Verbais, os
dois militares expõem as hipóteses de que sejam subversivos, contrabandistas
ou hippies." (M & S, p.66)
"CAPÍTULO 18
Operação Peixe III: chefe guerrilheiro escapa por um triz
HIPÓTESE
23
Nos meses de setembro e outubro de 1972, ocorreu a saída estratégica dos militares da região do
Araguaia A Grande Manobra devido às primeiras derrotas sofridas, sendo acompanhada no
período subsequente ao mencionado de novembro de 1972 a setembro de 1973 por uma espécie
de trégua entre as duas forças. Na realidade, esta trégua existiu apenas na mente dos guerrilheiros,
fazendo-os descuidar-se no cuidado com as armas, na busca pela ampliação de sua rede de contato
dentro e fora da área de conflito e na procura/envio de novos combatentes para a guerrilha. Em
contrapartida, as forças do governo militar aproveitaram esse momento de trégua aparente, para
construir e implementar uma rede de informação sigilosa no Araguaia, com o objetivo de mapear
não só todas as atividades exercidas pelos guerrilheiros, como também apontar as pessoas que lhes
davam algum tipo de apoio. Tal rede de apoio foi denominada Operação Sucuri.
24
Vale mencionar que a Operação Sucuri não representou uma situação de enfrentamento
propriamente dita entre as forças do governo e as de guerrilha. Na verdade, esta operação foi um
plano minucioso de espionagem, através da infiltração de militares e civis na região de conflito, a
fim de identificar os guerrilheiros e seus possíveis colaboradores.
- Existência de elementos suspeitos ou subversivos na Região do 'Alvo', com
um total aproximado de 11 homens.
MISSÃO
- Incursionar para Oeste, na altura do km 72 da Transamazônica, numa
profundidade de aproximadamente 24 km, até a região do 'Alvo'.
EXECUÇÃO
- O pelotão 'PESAG', por meio de ações rápidas, violentas se necessário, e de
surpresa, deverá aproximar-se, cercar e neutralizar e/ou destruir o 'Alvo'.
A tropa avança sobre o acampamento guerrilheiro no dia 12 de abril. O 'Alvo'
fica no lugar conhecido como Chega com Jeito. Os militares encontram
apenas fogo aceso e sobras de comida nas panelas. Os paulistas fugiram duas
horas antes. Sem procurar muito, os homens do Exército encontram livros
considerados subversivos e anotações em um quadro. Vasculham a área em
busca de outras pistas." (M & S, p.77)
"[...] Um grupo de comandantes militares mantém encontro sigiloso no
quartel da 1
a
Zona Aérea, na tarde de 3 de maio de 1972. As três Forças estão
presentes. Da Aeronáutica, o coronel Rodopiano, o coronel Assis, o tenente-
coronel Pinho e o capitão Sirotenu. O comandante Seidel, do IV Distrito
Naval, representa a Marinha. O Exército enviou o tenente-coronel Borges. Da
Polícia Militar do Pará participa o coronel Douglas.
O encontro serve para a montagem da Operação Peixe IV. As ações
anteriores avançaram, mas haviam fracassado no essencial, avaliam os
oficiais. Faltaram informações suficientes para os comandantes saberem o
número e o paradeiro dos inimigos. Os guerrilheiros continuavam sem
identificação." (M & S, p.147)
"[...] O tenente-coronel Carlos Sérgio Torres e o major Gilberto Airton
Zenkner, do CIE
25
, concluíram em abril de 1973 o Plano de Informações
Sucuri n
o
1. O documento de 16 páginas traçou um modelo de espionagem
sem precedentes na história da repressão no Brasil. Os autores copiaram, em
grande parte, a estratégia de aproximação dos moradores usada pelos
comunistas.
A missão de informação ganhou o nome de Operação Sucuri. O plano do CIE
consistia na infiltração de militares e civis em toda a área. Disfarçados de
pessoas comuns, atuariam nas cidades, nos vilarejos e na zona rural. O
INCRA
26
, a Campanha de Erradicação da Malária (CEM) e o Departamento
Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) ajudariam com as instalações
disponíveis na região e com o pessoal treinado para o trabalho sigiloso."
(M & S, p. 403)
"[...] As informações da Operação Sucuri municiaram a fase repressiva
concebida para exterminar a Guerrilha do Araguaia. Os agentes secretos
25
Centro de Informações do Exército.
26
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
identificaram a rede de apoio aos inimigos. Muitos colaboradores dos
comunistas se transformaram em mateiros controlados pelos militares.
A Operação Marajoara começou no dia 7 de outubro de 1973. Planejada pela
8
a
RM
27
, com colaboração do CIE, dividiu-se em duas etapas. Na primeira,
as patrulhas prenderam e neutralizaram a rede de apoio aos guerrilheiros. Na
segunda, vasculharam as áreas de depósito e homizio." (M & S, p.449)
Clímax - é o momento crucial da estória, ou seja, quando o conflito
atinge o seu ponto máximo. Isto se dá, na narrativa de extração histórica
em discussão, com a chamada Operação Marajoara, marcada não só
pela perseguição dos militares, mas também pelo implacável extermínio
de todos os envolvidos na guerrilha do Araguaia:
"[...] Quando o Exército iniciou a Operação Marajoara, o PC do B tinha 56
guerrilheiros no Araguaia: o Destacamento A contava com 22 combatentes, o
B com 12, o C com 14 e a Comissão Militar com 8.
O armamento continuava insuficiente, segundo o Relatório Arroyo. Oito
fuzis em condições de uso e um no conserto; cinco rifles 44, uma
metralhadora fabricada na mata e uma INA; oito espingardas 20; 22
revólveres 38 e um 32, no A. No B, um fuzil, uma submetralhadora Royal,
três rifles 44, duas espingardas 16 de dois canos, uma espingarda 16, uma
carabina 32-20, duas espingardas 20, uma carabina 22, 12 revólveres 38. No
C, dois fuzis, sete rifles 44, cinco espingardas 20 e 14 revólveres 38.
Mais de dez armas longas dependiam de reparo e cada revólver 38 dispunha,
em média, de 40 balas. Não havia cartuchos suficientes para as espingardas
20 nem munição calibre 22. A maioria dos combatentes tinha pouca roupa e
não havia mais calçados. Alguns usavam chinelos feitos de restos de pneus e
muitos andavam descalços. Faltavam bússolas, isqueiros, facas, pilhas,
querosene e plásticos para proteger suprimentos e combatentes. A guerrilha
dispunha de Cr$ 400,00 para sustentar a luta contra o governo Médici. Era o
equivalente ao soldo de um dia para os cabos e soldados que os combatiam."
(M & S, p.450-451)
"[...] Nas primeiras ações, os integrantes da Operação Marajoara perceberam
os comunistas mais treinados e estruturados. Aproveitaram a trégua para
organizar áreas de homizio e estocar alimentos, remédios e munições.
Conheceram mais a mata, aperfeiçoaram técnicas de navegação e ganharam
mais apoio da população. Mesmo assim, os guerrilheiros foram pegos
desprevenidos.
Em três dias, a maior parte dos colaboradores dos comunistas se encontrava
'neutralizada'. Em pouco tempo começaram a chegar a Joaquim informações
sobre as ações dos militares. O Exército queimou casa e prendeu quase todos
os homens válidos da área. Deixou nas roças apenas mulheres e crianças.
27
Região Militar.
Dezenas de comerciantes foram para a cadeia. Alguns moradores ficaram
loucos de tanto apanhar. Guiadas por bons mateiros, as forças repressivas
ocuparam fazendas, castanhais, roças, estradas e grotas. Ao fim de uma
semana, os esquerdistas perderam quatro combatentes. A Comissão Militar
marcou uma reunião para 20 de outubro de 1973." (M & S, p.452)
Conclusão, Desfecho ou Desenlace - é a solução do conflito, que
se pode dar de forma feliz, trágica, esperada, surpreendente ou
cômica.
Na narrativa em discussão, o desfecho ocorreu de forma trágica, com a
morte dos dois últimos dirigentes do movimento guerrilheiro - Ângelo Arroyo
(codinomes Joaquim/Jota) e Pedro Pomar (o Mário) - executados a tiros numa casa
de um bairro da Lapa (cidade de São Paulo), em 16 de dezembro de 1976:
"[...] O barulho de porta arrombada e vidros quebrados assustou a gaúcha
Mara. A dedicada militante não teve tempo para nada. Viu, na mesma hora, o
corpo de Jota projetar-se para cima sob o impacto de uma saraivada de balas.
Sentado na sala, Mário levantou-se e andou às pressas na direção do quarto.
Antes de chegar à metade do caminho, caiu, atingido por tiros nos braços, nas
pernas e no peito.
Mara reconheceu estampidos de revólveres, rajadas de metralhadoras e o
estrondo de uma granada. Os agentes entraram e prenderam a única
sobrevivente da casa 767.
Pouco tempo depois, o advogado de presos políticos Luiz Eduardo
Greenhalgh chegou à rua Pio XI. Viu os corpos de Ângelo Arroyo e Pedro
Pomar estirados no chão. A cena traduziu com perfeição a trágica história do
PC do B no Araguaia. Lado a lado, tombaram as duas posições divergentes
sobre a guerrilha.
As execuções do dia 16 de dezembro de 1976 ficaram conhecidas como
'Chacina da Lapa'." (M & S, p.533)
q AS PERSONAGENS
Chamamos personagens os seres que participam do desenrolar dos
acontecimentos, isto é, são aqueles que vivenciam o enredo. Ao tratar da relação
entre personagens e enredo, o crítico literário Antônio Cândido (1987, p.53-54)
afirma que
"Geralmente, da leitura de um romance fica a impressão duma série de fatos,
organizados em enredo, e de personagens que vivem esses fatos. É uma
impressão praticamente indissolúvel: quando pensamos no enredo, pensamos
simultaneamente nas personagens; quando pensamos nestas, pensamos
simultaneamente na vida em que se enredam, na linha do seu destino -
traçada conforme uma certa duração temporal, referida a determinadas
condições de ambiente. O enredo existe através das personagens; as
personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem, ligados, os
intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e
valores que o animam."
Considerando, a princípio, a sua caracterização, adotamos, em nossa tese, a
classificação de Forster (1937) que tipifica as personagens em: flat plana, sem
profundidade psicológica e round redonda, complexa, multidimensional.
Segundo Forster (1937, p.93), as personagens planas são construídas em
torno de uma única ideia ou qualidade: quando nelas existe mais de um fator,
atinge-se o início da curva que leva à personagem redonda. Ainda de acordo com o
autor (ibidem, p.93), a personagem plana é acentuadamente estática: uma vez
caracterizada, ela reincide (por vezes, com efeitos cômicos) nos mesmos gestos e
comportamentos, enuncia discursos, que pouco variam, repete tiques verbais, de um
modo geral, suscetíveis de serem entendidos como marcas manifestativas. Por isso,
a personagem plana é facilmente reconhecida e lembrada, revelando certa
capacidade de identificar-se com os tipos ou as caricaturas.
Em relação aos tipos, Brait (2006, p.41) define-os como as personagens que
alcançam o auge da peculiaridade sem atingir a deformação. Dentre os vários tipos
existentes, na Literatura Brasileira, a autora (ibidem) destaca o personagem
Conselheiro Acácio, do romance O primo Basílio. Já as caricaturas são as
personagens cuja qualidade ou defeito são levados ao extremo, conduzindo a uma
distorção intencional. Tal distorção, em geral, está a serviço da sátira, como vemos
nas novelas de tevê e nos programas humorísticos.
Retornando, agora, à dicotomia personagens planas e personagens
redondas Forster (ibidem) define as redondas como revestidas da complexidade
suficiente para construir uma personagem bem vincada. Esta personagem é
submetida a uma caracterização relativamente elaborada e não-definitiva. Assim, a
condição de imprevisibilidade própria dessa personagem, a revelação gradual de
seus traumas, vacilações e obsessões constituem os elementos determinantes de sua
caracterização ou de seus caracteres. Antônio Cândido (1987, p.113) acrescenta-
nos, ainda, que
"[...] as personagens planas não evoluem (por dentro), mas que se repetem, ao
passo que as redondas somente nos dão idéia de sua identidade profunda
quando, fechado o romance, verificamos que, através de tantas modificações,
apenas deram expressão à multiforme personalidade que possuem: sua
identidade não se manifesta por meio de uma só faceta, mas quando fossem
conhecidas todas as suas mutações possíveis.”
As personagens são, ainda, classificadas, em função de seu papel na história
como: protagonistas, antagonistas ou personagens secundárias.
As protagonistas, também chamadas personagens principais, são aquelas
que estão no primeiro plano na história, ou seja, apresentam um envolvimento vital
na trama. As antagonistas, embora estejam também no primeiro plano da estória,
opõem-se às protagonistas, sendo representadas pela figura do vilão. E, finalmente,
as personagens secundárias que, apesar de não terem o mesmo destaque
dispensado às personagens principais, colaboram no desenvolvimento do enredo.
São também chamadas figurantes.
Desse modo, em relação ao papel desempenhado pelas personagens na
narrativa, podemos dizer que ela apresenta tanto protagonistas representados pela
figura dos guerrilheiros (em sua maioria, jovens estudantes universitários e
secundaristas), quanto os antagonistas ou vilões representados, na narrativa, pelos
militares das Forças Armadas, policiais e membros do governo federal enfim, por
todos aqueles que defendiam os interesses do regime ditatorial.
Pelo fato de a nossa tese enfocar os protagonistas os guerrilheiros ,
classificaremos estas personagens, quanto à sua caracterização, em sua maioria,
como redondas, visto que apresentam várias características, ao longo de Operação
Araguaia. Na verdade, tais personagens possuem uma complexidade de caracteres,
complexidade justificada, talvez, pelos seguintes fatores: o momento histórico-
político conturbado, a situação de conflito vivida por eles, o espaço físico em que se
localizava a guerrilha (espaço de muitos recursos naturais, mas de difícil acesso aos
meios de comunicação) e a perseguição quase implacável das forças governistas.
É importante destacarmos que a construção semiolinguística dos
guerrilheiros-personagens, através das expressões correferenciais anafóricas diretas,
as expressões nominais não-correferenciais do tipo indiretas e de adjetivos objetivos
e subjetivo-afetivos, é o objeto principal de nossa tese.
Dentre as personagens observadas em Operação Araguaia: os arquivos
secretos da guerrilha, destacamos, na citação a seguir, as referências feitas à
estudante de Enfermagem Criméia Schmidt de Almeida, de 23 anos, filha de um
ferroviário que pertenceu ao PC do B. Criméia, mais conhecida por Alice, foi a
primeira mulher a se engajar em um dos destacamentos da guerrilha (M & S, p.74).
No entanto, o relacionamento amoroso entre Alice e o guerrilheiro José Carlos (na
verdade, André Grabois, filho de Maurício Grabois
28
) impediu-a de continuar no
movimento, visto que a enfermeira engravidara:
"A primeira a chegar, contam os moradores, foi Dona Maria, senhora de
idade. Em seguida, a enfermeira Alice, loura.” (M & S, p.62)
“Quando Joca caiu doente, foi substituído em muitas tarefas por Criméia
Alice Schmidt de Almeida, 23 anos, codinome Alice.” (M & S, p.73)
“[...] O líder comunista afirmou que o engajamento de outras mulheres
dependeria do desempenho dela.
‘Por que você cobra isso das mulheres?’, reage a jovem. ‘Se o primeiro
homem a chegar aqui não desse certo não haveria guerrilha?’”
“[...] Assim como outros guerrilheiros, falava pouco para não revelar a total
falta de conhecimento da vida rural. Escutava, calada, as experiências
contadas pela população. [...]
‘Você parece louca’, exclamou o militante. [...]
‘Não adiantava nada trazer, de todo jeito iria acabar’, respondeu a novata.”
(M & S, p.74)
Falaremos, agora, a respeito de outro elemento da narrativa o espaço.
q ESPAÇO
28
Maurício Grabois era o comandante militar da guerrilha.
O espaço, também denominado ambiente, é o cenário por onde circulam
personagens e onde se desenrola o enredo. Tal espaço ou cenário pode ser
representado pelo conjunto de elementos que compõem, por exemplo, um quarto,
uma sala, uma rua, um bar, uma montanha, uma floresta, uma escola, uma cidade,
um sertão etc., sendo classificado de espaço físico. Em algumas obras de nossa
literatura, a caracterização do espaço físico é fundamental para o desenvolvimento
da trama, tornando-se caracterizador de uma personagem. Podemos citar: o
Nordeste Brasileiro, em grande parte do romance modernista; o colégio interno, em
O Ateneu, de Raul Pompéia e O cortiço, de Aluísio Azevedo. Além do espaço
físico, há, também, o espaço psicológico, referente ao nosso espaço interior, ao
universo das nossas experiências subjetivas. Tal espaço, que representa os nossos
sonhos, desejos, sentimentos e emoções, é predominante em narrativas intimistas.
A narrativa de extração histórica em estudo apresenta como cenário principal
um ambiente físico: a região do Bico do Papagaio - ponto-limítrofe entre os estados
do Pará e Tocantins - região banhada pelo rio Araguaia:
"[...] O Araguaia passa por Xambioá depois de serpentear mais de dois mil
quilômetros desde a cabeceira, na divisa de Goiás e Mato Grosso. Ele brota
na Serra dos Caiapós, no paralelo 18
o
, altitude de 850 metros. Desce por
canais de pedras e encostas, despenca na cachoeira de Couto Magalhães e se
espalha pelas planícies abaixo das cidades de Aragarças, em Goiás, e Barra
do Garças, no Mato Grosso.
[...] Bem no centro da fronteira do antigo estado de Goiás com Mato Grosso
(atualmente fronteira sul do Tocantins com Mato Grosso), o Araguaia bifurca
e forma a Ilha do Bananal, maior ilha de água doce do mundo, uma área de
20 mil quilômetros quadrados." (M & S, p.21)
q O TEMPO
Podemos dizer que o tempo é um dos aspectos mais importantes - se não o
mais importante - da prosa de ficção, pois é para ele que convergem todos os
elementos de uma narrativa ficcional (ou não), desde o enredo até a linguagem
utilizada no texto. Para Moisés (1977, p.101),
"[...] criando o tempo, o homem nutre a sensação de superar a brevidade da
existência e a de identificar-se, demiurgicamente, com o tempo cósmico, que
permanece para sempre, indiferente à finitude da vida humana; gerando o
tempo, o ficcionista alimenta a ilusão de imobilizá-lo ou de transcendê-lo."
Além disso, o narrador pode se posicionar de diferentes maneiras em
relação ao tempo dos acontecimentos:
a) pode narrar os fatos no momento em que eles estão ocorrendo;
b) pode narrar um fato já transcorrido e
c) pode narrar um fato, entremeando-o ao presente e ao passado, através da
técnica de flash-back.
Essas possibilidades de posicionamento do narrador comprovam o caráter
dinâmico e instável da construção discursiva da narrativa.
Assim, podem ser observados dois tipos de tempo, nas narrativas em geral,
que são: o cronológico e o psicológico.
O tempo cronológico, também chamado histórico, é o chamado tempo da
natureza, aquele que corresponde à marcação das horas, minutos e segundos, no
relógio, de acordo com o tempo físico ou natural, disposto em dias, semanas, meses,
anos, estações, ciclos lunares etc.. O tempo cronológico é considerado, ainda, tempo
linear, horizontal, levando-nos a pensar que os fatos ocorrem numa linha reta,
conforme um antes e um depois rigorosamente materializados. Ao contrário do
cronológico, o tempo psicológico ou metafísico caracteriza-se por desobedecer ao
calendário e fluir dentro das personagens, como se o tempo fosse um eterno
presente, sem começo, meio ou fim. Pelo fato de ocorrer no interior das
personagens, o tempo psicológico desenvolve-se em espirais ou em círculos,
estando submetido apenas aos fluxos emocionais (angústias, ansiedades e
lembranças) das próprias personagens.
Como a História relata, os fatos que cerceiam a Guerrilha do Araguaia
correspondem a um dos períodos históricos mais negros do cenário político de
nosso país a Ditadura Militar instaurada com o Golpe de Estado em 31 de março
de 1964 , mais precisamente, durante os governos dos generais Emílio Garrastazu
Médici (1970-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979), responsáveis pelo momento de
maior repressão política imposta pelo governo federal a todos os que, de alguma
forma, viessem a perturbar a ordem e a segurança nacionais. Este momento de
intensa perseguição político-ideológica, até então, nunca visto no Brasil foi também
denominado por políticos de esquerda, jornalistas e intelectuais da época como os
Anos de chumbo:
"[...] O regime instalado com o golpe de 31 de março de 1964 se mantinha
graças ao sucesso da economia e à repressão contra os adversários. O País
crescia à média de 11% ao ano; a taxa de desemprego era de
aproximadamente 3,5%. A propaganda oficial exaltava o 'milagre'
29
no clima
de Pra Frente Brasil, marcha de Miguel Gustavo que animou a torcida
quando a seleção conquistou o tricampeonato na Copa do Mundo de 1970, no
México.
O Ato Institucional n
o
5 - o AI-5 -, baixado por Costa e Silva em 13 de
dezembro de 1968, aumentou os poderes do presidente da República e
reduziu liberdades individuais e coletivas. Permitiu a cassação de mandatos
políticos, a suspensão dos direitos civis e a censura. Agentes da repressão
prendiam, torturavam e matavam inimigos do governo militar.
Alguns segmentos da esquerda enveredaram pelo caminho da luta armada
para enfrentar a ditadura. Preparativos para a tomada violenta do poder
antecediam o golpe militar de 1964 e ganhavam força à medida que os
generais endureciam o regime. As experiências vitoriosas na Rússia (1917),
na China (1949) e em Cuba (1959) estimulavam iniciativas revolucionárias
na América Latina.
Muitas pessoas saíram do Brasil, exiladas ou fugidas. Uns tantos foram
presos ou mortos. Os serviços secretos percorriam até países vizinhos na caça
aos subversivos." (M & S, p.20)
q O NARRADOR
O narrador é o dono da voz, isto é, a voz que conta o desenrolar dos
acontecimentos. Dependendo da posição assumida pelo narrador, da sua perspectiva
ou, ainda, de seu modo de narrar os fatos, a narrativa pode ser feita em primeira ou
29
Também chamado Milagre Econômico, ou seja, o desenvolvimento vertiginoso da economia
brasileira em 1972 e 1973. Entretanto, tal milagre econômico não se estendeu ao campo social, pois
houve uma tendência à concentração de renda, exigência de mão-de-obra mais especializada e
redução do salário mínimo, ocasionando, ao final do regime militar (em 1985), o aumento não só da
dívida externa brasileira, mas principalmente das desigualdades sociais entre as classes da
população.
em terceira pessoa do singular. Assim, o ângulo de visão do narrador o ponto de
vista constitui o foco narrativo.
Na narrativa em primeira pessoa, o narrador conta uma história da qual
participa de alguma forma, sendo narrador e personagem, ao mesmo tempo. Nesta
narrativa, ele pode ter uma participação secundária nos fatos, destacando-se o seu
papel de narrador ou ter importância fundamental na trama, tornando-se a
personagem principal. Eis, então, o chamado narrador-personagem.
Já, nas narrativas em terceira pessoa, o narrador conta os fatos como
alguém que os observa, conduzindo-nos, assim, a dois tipos de narrador, a saber: o
narrador-observador e o narrador-onisciente. O narrador-observador transmite
ao leitor apenas os acontecimentos que aparentemente consegue ver, nada mais sabe
além daquilo que pode observar. O narrador-onisciente, além de observar os fatos,
demonstra conhecer os sentimentos e pensamentos mais profundos das personagens,
confundindo-se, muitas vezes, a sua voz com os pensamentos das próprias
personagens.
Em Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha, verificamos uma
narrativa em 3
a
pessoa, mais precisamente, a construção de um narrador-onisciente
que, além de narrar a estória, parece conhecer todas as atitudes e sentimentos das
personagens, agindo, em diversos momentos, como se fosse uma das próprias
personagens:
"Passaram por Araguatins e tentavam cruzar o Araguaia de balsa quando
pegaram Eduardo. Os agentes o acharam muito nervoso ao ser abordado. O
saco de viagem continha livros “comunistas”, um par de coturnos pretos, uma
bússola, um calção, corda em rolo e roupas sujas, segundo os relatos militares
do dia 15 de abril.
Rioko e Elza assistiram quietas à prisão de Eduardo. Seguiram viagem de
ônibus e chegaram a Marabá no fim da tarde. Dormiram no mesmo quarto de
um hotel. No dia seguinte, Elza instruiu Rioko a tomar sozinha um ônibus-
leito para Belém.” (M & S, p.107)
Além disso, no texto narrativo, existem várias vozes o discurso do
narrador e o discurso das personagens que se entrecruzam e é justamente esta
alternância o fator responsável pela construção da produtividade em tal texto.
Segundo Garcia (1996, p.129), ao transmitir pensamento expresso por
personagem real ou imaginária, o narrador pode servir-se do discurso direto ou do
indireto e, às vezes, de uma contaminação de ambos o chamado discurso indireto
livre ou misto ou semi-indireto.
O discurso direto é o registro fiel da fala da personagem. Ou seja, a
personagem fala diretamente, sem a interferência do narrador, que apenas a introduz
na narrativa. Para Lopes & Reis (1988, p.275)
“no discurso direto, que se encontra quer nos diálogos quer nos monólogos, a
personagem assume o estatuto de sujeito da enunciação: a sua voz
autonomiza-se, esbatendo-se concomitantemente a presença do narrador.”
As principais características do discurso direto são o emprego dos verbos
dicendi ou sentiendi (também denominados verbos de elocução ou verbos de dizer),
responsáveis por indicar o locutor que está com a palavra. São eles: dizer, falar,
afirmar, declarar, indagar, perguntar, interrogar, retrucar, responder,
replicar, reclamar, negar, objetar, gritar, lamentar, murmurar, explodir,
suspirar, solicitar, aconselhar, mandar. Outros elementos presentes, no discurso
direto, são os indicadores grafêmicos, sobretudo, os dois pontos e o travessão e, em
certas narrativas, as aspas e as vírgulas. Ainda, neste discurso, conforme os autores
supracitados (ibidem, p.275),
“[...] evidenciam-se as marcas de enunciação experiencial ou discursiva a
primeira pessoa, expressões adverbiais dêiticas, localização temporal dos
eventos em razão do agora da fala da personagem.”
Em alguns trechos de Operação Araguaia, verificamos o discurso das
personagens o discurso direto através não só dos verbos dicendi e sentiendi
destacados, como também das aspas utilizadas:
Uma conversa entre Sônia, Mário e Dona Maria mudou o destino da doente.
Os três discutiam em voz baixa, mas houve um momento em que a ex-
estudante de Medicina subiu o tom para protestar:
Se a Regina não sair daqui, eu não me responsabilizo pela vida de nossa
companheira, afirmou Sônia.(M & S, p.46)
[...] Um telefonema de Elza Monerat em um dos primeiros meses de 1972
aumentou os receios. Marcaram encontro e caminharam por uma rua.
Você precisa voltar para o Araguaia, comunicou a velha comunista, em
tom formal.
Eu não vou, respondeu Lúcia Regina.
Não é uma coisa que você decide. É o partido. Vou levar sua posição e a
gente entra em contato, reagiu a dirigente comunista. (M & S, p.55-56)
Nos primeiros dias, Alice aborreceu Zé Carlos de tanto filar cigarros. Os
dois se desentenderam ainda no barco, no dia em que ela chegou.
Você parece louca, exclamou o militante. Veio da civilização, não trouxe
cigarros e agora fica fumando os meus.
Não adiantava nada trazer, de todo jeito iria acabar, respondeu a novata.
É, mas agora vou ter de dividir os meus, concluiu o guerrilheiro.
(M & S, p.74)
Mário senta em um tronco para conversar com o garoto. [...] Para não
despertar suspeitas, escreve o preço do café em um papel, como se fosse a
conta para pagar depois.
Quando eles chegarem, não estaremos mais aqui. Vamos deixar umas coisas
e uns animais. Pode falar para o seu pai ficar com eles, diz o dirigente
comunista.(M & S, p.80)
O discurso indireto é o registro indireto da fala da personagem por meio do
narrador, isto é, o narrador é o intermediário entre o instante da fala da personagem
e o leitor, de modo que a linguagem utilizada nesse discurso é a do narrador
(GANCHO, 2006, p.40):
Meses depois de abandonar a Faveira, Regina enchia-se de gratidão por
Sônia. Sem a intervenção da amiga, pensava, poderia ter morrido. Jamais
esqueceria os pedidos de perdão feitos pela ex-estudante de Medicina
enquanto tentava realizar a curetagem. Gostou de Sônia desde quando a
conheceu. Branca, cabelos escuros, lábios grossos e olhos grandes, compunha
um tipo bem brasileiro. Muito meiga, chamava de ‘amado’ um namorado
deixado no Rio. (M & S, p.70-71)
Há, ainda, como dissemos, uma terceira forma de representar, na narrativa, o
discurso ou o pensamento das personagens discurso semi-indireto, também
denominado discurso indireto livre . Tal discurso caracteriza-se por ser híbrido,
visto que a voz da personagem funde-se à do narrador, como se ambos falassem em
uníssono, emergindo daí uma voz dual. De acordo com Lopes & Reis (ibidem,
p.277),
“[...] A terceira pessoa e os tempos da narração coexistem lado a lado com os
dêiticos, as interrogações diretas, os traços interjetivos e expressivos, a
ausência de recção [...]. Este tipo de discurso permite representar os
pensamentos da personagem sem que o narrador abdique do seu estatuto de
mediador. É, pois, um processo suscetível de incorporar no fluxo narrativo o
‘realismo subjetivo’ que reger a representação do mundo interior das
personagens.”
Desse modo, ao proporcionar uma confluência de vozes, o discurso indireto
livre determina, de certa forma, a atitude do narrador em relação às personagens,
atitude que pode ser de distanciamento irônico ou satírico ou, ainda, de acentuada
empatia:
“O militante do PC do B conta a versão de que tem negócio de arroz com
alguns moradores dos Caianos. Nervoso, diz que nada sabe sobre guerrilha.
Não convence. Acaba preso e amarrado pelo grupo do sargento. O delegado
quer levar o prisioneiro de volta à casa dos ‘terroristas’. A pé e puxado por
um cavaleiro, Geraldo pensa em como agir. Tem de resistir calado pelo
menos um dia para não entregar o local no qual se juntaria ao destacamento
comandado por Osvaldão.” (M & S, p.125)
E é justamente este discurso que constroi a tessitura textual de Operação
Araguaia, pois, percebemos, ao longo da estória, a presença de um narrador que
parece saber de todas as situações vividas pelos guerrilheiros, ou seja, parece
conhecer todos os seus pensamentos e dramas pessoais. Tal narrador é denominado
onisciente.
2.2 ASPECTOS GRAMATICAIS
2.2.1 SUBSTANTIVOS E ADJETIVOS EM GRAMÁTICAS DE LÍNGUA
PORTUGUESA
Ao trabalharmos com as expressões nominais sob a perspectiva discursiva e
textual, consideramos importante observar os aspectos gramaticais dessas
construções. É necessário, a priori, delimitarmos os conceitos de classe e de função.
Segundo Câmara (2002, p.71-72), a palavra classe faz uma referência à
divisão dos vocábulos de uma língua na base dos seguintes princípios diretores: a
natureza da significação (critério semântico); a forma do vocábulo quanto à
possibilidade de flexão e quanto ao seu tipo (critério formal ou morfológico) e a
função observada na frase (critério funcional), que explica o nome das partes do
discurso também chamadas de classes de vocábulos. Para o autor (ibidem, p.72), o
vocábulo função diz respeito à aplicação, na língua, de uma forma, tendo em vista o
seu valor gramatical.
Já Perini (1995, p.122) define classe como uma propriedade atribuída a um
elemento fora de um contexto de comunicação e função como um princípio da
organização da oração, que determina a função de um constituinte e formula a sua
relação com os demais constituintes da unidade de que ambos fazem parte. Ainda de
acordo com Perini (1998, p.213-214), classes são associações paradigmáticas de
elementos, enquanto funções são associações morfossintáticas ou semânticas. Nos
contextos discursivos, “[...] João Carlos Haas Sobrinho, médico gaúcho, o havia
impressionado desde o momento em que se conheceram em uma praça de São
Paulo.”, “[...] O médico gaúcho montou uma clínica em Porto Franco, cidade à
beira do rio Tocantins, na divisa com Goiás e morou mais de um ano ali.” e “[...]
Depois de 20 dias, Neuza sarou e ficou para sempre grata ao médico gaúcho.”, a
expressão nominal correferencial anafórica direta médico gaúcho funciona,
respectivamente, na oração de que faz parte, como aposto, sujeito e complemento
nominal.
30
Portanto, quando dizemos que a expressão nominal médico gaúcho (tendo
como núcleo um substantivo) pode se apresentar como aposto, sujeito ou
complemento nominal, estamo-nos referindo a traços paradigmáticos (classes de
vocábulos), que relacionam membros de classes cuja associação não aparece na
30
Tais contextos encontram-se em Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha. Elas
estão localizadas, respectivamente, nos parágrafos 3
o
, 5
o
e 2
o
, nas páginas 39, 43 e 119.
oração, ou seja, ocorre fora de um contexto, ao passo que denominações do tipo
funciona como aposto, sujeito e complemento nominal referem-se a traços
sintagmáticos (funções), cuja existência se encontra diretamente ligada a contextos
comunicativos específicos.
Em seguida, estudaremos como o substantivo e o adjetivo são classificados
por algumas gramáticas de nossa língua.
De acordo com Bechara (1999, p.112), o substantivo é a classe de lexema
que se caracteriza por significar o que convencionalmente é chamado de objetos
substantivos, isto é, em primeiro lugar, substâncias (homem, casa, livro) e, em
segundo lugar, quaisquer outros objetos mentalmente apreendidos como
substâncias, quais sejam qualidades (bondade, brancura), estados (saúde, doença),
processos (chegada, entrega, aceitação).
Para o autor (2001, p.76), a estrutura interna ou constitucional do substantivo
(isto é, sua morfologia) consiste, no português, em geral, na combinação de um
signo lexical expresso pelo radical, com signos morfológicos expressos por sufixos,
desinências e alternâncias, todos destituídos de existência própria fora dessa
combinação. Entre esses elementos que, na flexão, combinam-se ao substantivo,
estão as marcas de gênero e de número.
Quanto à função sintática, vemos que o substantivo exerce a função de
sujeito (ou seu núcleo) da oração e, no domínio da constituição do predicado, as
funções de Objeto Direto e Indireto, Complemento Relativo
31
, Predicativo do
Sujeito, Predicativo do Objeto Direto, Complemento Nominal, Agente da Passiva,
Adjunto Adnominal e Adjunto Adverbial, e ainda, Aposto e Vocativo. Em geral, na
função de Sujeito, de Predicativo, de Aposto e de Objeto Direto dispensa o
substantivo o emprego de qualquer outro elemento; nas outras, acompanha-se de
preposição: gosta de Clarice (Objeto Indireto), escreveu à Isabel (Objeto Indireto),
homem de coragem (Adjunto Adnominal), dançou com prazer (Adjunto Adverbial).
Vemos exemplos de tais funções do substantivo nas expressões nominais
referenciais em destaque a seguir:
31
Para o Prof. Bechara (1999), o objeto indireto corresponde, apenas ao dativo latino, que assinala o
beneficiário da ação expressa pelo verbo. Os outros casos de complementos verbais são
considerados complemento relativo. A NGB, no entanto, não faz tal distinção.
a) Sujeito:
“[...] O velho Cid se emociona ao ouvir o hino entoado na mata pelos
camaradas armados e pula pelo terreiro da casa feito uma criança.”
(M & S, p.100, 7º parágrafo)
“Um dos mais preparados, para Regina, era um militante tratado por Zezinho,
responsável pela oficina de armas. O sujeito demonstrava intimidade com a
natureza e tinha condições de sobreviver sozinho na mata.”
(M & S, p.73, 1º parágrafo)
b) Objeto Direto:
“[...] As moças cantam Parabéns pra Você, abraçam e beijam o companheiro
do Rio Grande do Norte. Glênio completa 22 anos naquele dia, mas a data
quase lhe passou despercebida.” (M & S, p.135)
“O tempo de convivência com os moradores transformou o estudante em um
autêntico caboclo. Jorge era nordestino, pele queimada de sol, dentes
estragados pelas condições precárias de vida, mas possuía bom humor
admirável, disposição para trabalhar e muito conhecimento da mata.”
(M & S, p.186, 3º parágrafo)
c) Objeto Indireto:
“O relacionamento com Lúcio, engenheiro formado no interior de Minas
Gerais, também piorou. [...] As mudanças abalaram o amor da jovem paulista.
Tinha conhecido Lúcio durante as férias em uma praia do litoral de São Paulo
e se apaixonou pelo rapaz brilhante, dinâmico e apreciador de poesia.”
(M & S, p.45, 3
o
parágrafo)
d) Complemento Relativo:
“Instrutor de combate na selva, Osvaldão desfruta de liderança inconteste
entre os companheiros. Gosta de falar, cozinhar e ajudar os amigos.”
(M & S, p.99, 7
o
parágrafo)
“Na verdade, tratava-se do italiano Líbero Giancarlo Castiglia, único
estrangeiro enviado pelo PC do B ao Araguaia, comandante do Destacamento
A e transferido para a Comissão Militar quatro meses antes do início da
guerrilha.” (M & S, p.176, 1
o
parágrafo)
e) Predicativo do Sujeito:
“Os agentes de Belém suspeitam de que se trate de um militante da ALN com
experiência em atuação política em uma área ao norte, à beira do rio, muito
próxima aos campos de treinamento montados pelo PC do B no Araguaia.
Nome desse suspeito: João Alberto Capiberibe, que três décadas mais tarde, se
tornaria senador da República.” (M & S, p.62-63, 4
o
parágrafo)
“Dina aprendeu a fazer partos e ganhou o respeito dos moradores pela
quantidade de mulheres e crianças que salvou. [...] De temperamento forte,
levou o discreto marido a ser conhecido como ‘Antônio da Dina’.
(M & S, p.114, 3
o
parágrafo)
f) Predicativo do Objeto Direto:
“Um militante de codinome Antônio aguardava os quatro. Os militares o
identificaram como José Antônio Botelho.” (M & S, p.184, 2º parágrafo)
g) Complemento Nominal:
1968. Eduardo José Monteiro Teixeira passa no vestibular de Direito da
Universidade Federal da Bahia. O clima de agitação estudantil contamina o
rapaz cheio de idealismo.” (M & S, p.88-89, 6
o
parágrafo)
“[...] Certo de defender uma ideologia justa e crente na vitória contra a
ditadura, Flávio se jogou de corpo e alma na nova vida.”
(M & S, p.99, 2
o
parágrafo)
h) Agente da Passiva:
“No dia da chegada, uma equipe é designada para reconhecer os locais às
margens do Araguaia apontados pelo prisioneiro no depoimento. Pedro não
colabora.” (M & S, p.92, 1
o
parágrafo)
“Quando Joca caiu doente, foi substituído em muitas tarefas por Criméia
Alice Schmidt de Almeida, 23 anos, codinome Alice. Ela estava no Araguaia
desde 1969.” (M & S, p.73, 6
o
parágrafo)
i) Adjunto Adnominal:
“[...] Ao chegar, encontram o comandante do destacamento, um negro
enorme. Com chapéu de couro na cabeça e uma Parabellum na mão direita, o
chefe guerrilheiro parece ainda mais alto.” (M & S, p.98, 3º parágrafo)
j) Adjunto Adverbial:
“Depois da fuga de Anápolis, Lúcia Regina tinha medo de ser punida pelo PC
do B ou presa pela polícia.[...] Um telefonema de Elza Monerat em um dos
primeiros meses de 1972 aumentou os receios.
’Você precisa voltar para o Araguaia’, comunicou a velha comunista, em tom
formal.” (M & S, p.55, 9
o
e 10
o
parágrafos)
“Eduardo José Monteiro Teixeira foi preso quando entrava no Pará junto com
a militante Rioko Kayano. Eram conduzidos por Elza Monerat. Os três
viajavam de ônibus desde Anápolis, interior de Goiás, mas fingiam não se
conhecer.” (M & S, p.106, 11
o
parágrafo)
k) Aposto:
“João Amazonas de Souza Pedroso, secretário-geral do PC do B, integrava o
Birô Político montado para comandar a implantação da guerrilha.” (M & S,
p.48, 3
o
parágrafo)
“Naquele dia 12, os agentes de Belém estiveram bem perto de Maurício
Grabois, o Mário, comandante militar da guerrilha.” (M & S, p.79, 6
o
parágrafo)
l) Vocativo:
“[...] Vê o cabo ser atingido por um disparo. Ficam todos em silêncio por
alguns minutos. Rosa, então, chama pelo velho amigo, entre gemidos:
Nélio, Nélio, estou ferido, tá doendo... Não me abandona’.” (M & S, p.153,
3
o
parágrafo)
“No dia 2 de junho Pedro Onça volta a encontrar-se com Jorge, desta vez à
beira de um rio. Há outros guerrilheiros por perto.
Rapaz, o trem tá grosso’, comenta o camponês, referindo-se ao Exército.”
(M & S, p.186, 5
o
parágrafo)
Ainda em relação à função sintática, é importante destacarmos, com Cunha
& Cintra (2001, p.177), que toda palavra de outra classe, responsável por
desempenhar uma dessas funções sintáticas, equivalerá forçosamente a um
substantivo (pronome substantivo, numeral ou qualquer palavra substantiva).
Para Macedo (1991, p.99), o valor da língua que exprime o ser constitui a
classe nominal. Assim, qualquer expressão que seja empregada com valor de um
ser adquire o direito de entrar na classe nominal, o direito de ser um substantivo,
ainda que eventualmente (ex.: Seja o teu sim, sim e o teu não, não.).
O adjetivo (CUNHA,1996, p.201) é essencialmente um modificador do
substantivo. Empregamos também o adjetivo a fim de caracterizar os seres ou
objetos nomeados pelo substantivo, indicando-lhes uma qualidade ou defeito
(inteligência lúcida/homem perverso), o modo de ser (pessoa simples), o aspecto
ou aparência (céu azul) e o estado (laranjeiras floridas). Além disso, tal classe
estabelece com o substantivo determinadas relações semânticas que podem ser de
tempo (nota mensal = nota relativa ao mês), de matéria, de espaço, de finalidade,
de propriedade (movimento estudantil = movimento feito por estudantes), de
procedência (vinho português = vinho oriundo de Portugal).
Podemos dizer, ainda, que tal modificação junto ao substantivo também se
realiza através de uma expressão constituída por preposição e um substantivo, como
se vê em homem de coragem = homem corajoso, amor de mãe = amor materno.
Dessa forma, pelo fato de as expressões de coragem e de mãe serem equivalentes
tanto semântico quanto funcionalmente aos adjetivos corajoso e materno, elas são
classificadas como locuções adjetivas. Vale ressaltarmos, no entanto, que esta
equivalência, assinalada pelas gramáticas normativas de Língua Portuguesa, é
questionável. Isto porque, ao tomarmos, por exemplo, o enunciado Cláudia tem
por Maria um amor de mãe, notamos que a locução adjetiva de mãe irá produzir
uma espécie de comparação (Cláudia tem por Maria um amor tal qual o de uma
mãe ou tem um amor como se fosse a sua mãe); ao contrário do adjetivo materno
que, se empregado, conduzir-nos-á a uma característica própria do ser ao qual se
refere (Cláudia tem por Maria um grande amor materno = Cláudia é a mãe da
menina e, por isso, a ama).
Percebemos, com os exemplos utilizados, a falta de equivalência semântico-
discursiva entre as locuções adjetivas e os seus adjetivos, aparentemente
correspondentes, visto que aquelas indicam uma comparação, isto é, uma
característica que pode parecer com a apontada pelo adjetivo.
32
Quanto à função sintática, o adjetivo exerce as funções de Adjunto
Adnominal, de Predicativo do Sujeito, de Predicativo do Objeto Direto e de
Predicativo do Objeto Indireto.
Apresentamos, a seguir, as funções do adjetivo em Operação Araguaia:
a) Adjunto Adnominal:
“[...] Por último, apareceu José Carlos, homem alto , moreno, de bigode e
suíças. José Carlos andava curvado e
chegou doente.”
(M & S, p.62, 3
o
parágrafo)
“Na memória de Lúcia Regina, o comandante da Faveira, Zé Carlos, parecia
um pouco atrapalhado. Forte, meio desengonçado, usava óculos de lentes
grossas e cabelos curtos. Andava com os pés abertos e chutava a vegetação
por onde passava. Ganhou de D. Maria o apelido de Arranca-Toco.”
(M & S, p.72-73, 7
o
parágrafo)
b) Predicativo do Sujeito:
“Depois de um tempo chegaram mais dois casais. Ari e Áurea, Pedro e Ana.
Falavam pouco sobre quem eram e o que estavam fazendo ali. Pedro era
calado, discreto. Ana reclamava de tudo. [...]” (M & S, p.41, 3
o
parágrafo)
“A tranquilidade de Jorge impressiona Miguel. Sorridente e brincalhão, o
sujeito não demonstra apreensão alguma com os militares. Mostra-se
confiante e seguro. Os dois novatos, assustados, pouco falam. Procuram, antes
de tudo, entender a situação.” (M & S, p.127, 3
o
parágrafo)
c) Predicativo do Objeto Direto:
“Passaram por Araguatins e tentavam cruzar o Araguaia de balsa quando
pegaram Eduardo. Os agentes o acharam muito nervoso ao ser abordado.”
(M & S, p.102, 1
o
parágrafo)
32
Cf. PONTES, Simone Xavier. A classe dos nominais em perspectiva textual: articulação da
gramática ao discurso. Dissertação de Mestrado em Letras Instituto de Letras, Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2004. 168p. Neste trabalho, são apresentados outros exemplos que
comprovam a não-correspondência semântico-discursiva entre as locuções adjetivas e os adjetivos.
“’O companheiro precisa reconhecer que tem dificuldades de orientação’, diz
o comandante.
As palavras francas do líder deixam Glênio um pouco mais confortado.”
(M & S, p.136, 3
o
Parágrafo)
2.2.2 OUTROS ESTUDOS
Azeredo (2000) propõe-nos uma classificação para as palavras, tendo em
vista a sua função comunicativa.
O autor denomina função comunicativa a capacidade que possuem as
palavras de organizar nossa experiência conceitual do mundo em um conjunto finito
de modos de significar. (ibidem, p.74) Esses modos de significar dizem respeito
aos indivíduos, objetos e conceitos, às múltiplas características que os identificam
no discurso e aos processos, ações e estados a eles referidos. São eles: designação,
modificação, predicação, indicação, quantificação e condensação.
As duas funções básicas da linguagem são a de simbolizar o universo de
nossas experiências e a de comunicá-las através dos signos.
Podemos dizer que o procedimento mais utilizado para simbolizarmos
nossas experiências é o de dar nomes, ou melhor, designar.
Dessa forma, empregamos os substantivos para dar nomes: casa, céu, ar,
borboleta, penúria, maluquice, estrela, cascata, esquimó, rapidez, noite, arrebol,
sombra, curiosidade, vento, fantasma, dilúvio.
Percebemos, então, que os substantivos simbolizam, ainda, a nossa
experiência de mundo representado na linguagem como uma imensa coleção de
conceitos, ou seja, parcelas em que dividimos a totalidade de nosso conhecimento
sobre o mundo.
Vale destacarmos que, com exceção dos nomes próprios, os conceitos
expressos pelos substantivos são meras generalizações, não têm referência na
realidade ou em nossa imaginação. A referencialidade do substantivo depende de
outras palavras que o acompanham para significar traços que o caracterizam e
particularizam-no. Para indicar essas particularidades e características dos
conceitos/substantivos, são utilizadas palavras que modificam, isto é, expressam os
modos de existência dos conceitos. As gramáticas da tradição e a NGB denominam
tais palavras de adjetivos.
Assim, o adjetivo é a classe das palavras lexicais que modifica o conceito
designado pelo substantivo: cadeira confortável, árvore alta, dentes brancos,
incrível coincidência.
Destacamos outra função comunicativa, também simbolizadora, associada às
de nomear/modificar a expressão do raciocínio humano a predicação. Através
dessa função, o homem exercita e expressa o seu pensamento, isolando uma parcela
de sua experiência de mundo e lhe dando um nome (designação).
Na verdade, o homem pronuncia-se a respeito dessa parcela, estabelecendo
uma opinião/um juízo sobre ela: O céu é azul, A borboleta voa, O vento está frio, A
justiça consola as pessoas, A estrela brilha, Caminhar faz bem à saúde, Esquecer
alivia o coração.
Para constituir uma declaração sobre um conceito, utiliza-se o verbo. Esse
vocábulo apresenta outras funções na língua, sendo a de predicar a mais típica e
exclusiva.
Portanto, dizemos que os verbos simbolizam a nossa experiência de mundo
como representações dos modos de existência dos seres expressos como predicação.
Além dos verbos, os adjetivos também podem desempenhar o papel da
predicação, em frases exclamativas do tipo Muito inteligente, esse menino! em que
se observa o emprego do adjetivo pelo do verbo ser e, em frases declarativas, como
em Esse menino é muito inteligente.
Chamamos indicação a propriedade que determinadas palavras possuem de
referir-se a elementos do universo conceitual, cuja identificação só é conhecida com
a ajuda da situação discursiva ou do texto em que essas palavras se encontram. A
indicação é classificada em dêixis e anáfora.
A dêixis ocorre quando o referente da indicação pertence ao mundo
extratextual, como os referentes dos vocábulos aqui e meu. Já anáfora se dá quando
o referente da indicação se encontra no próprio texto, como em Lúcia veio à festa
porque eu a convidei. Nesse caso, o elemento a faz uma referência para trás,
chamando a atenção do leitor para um termo anteriormente mencionado, que é
Lúcia.
Segundo as gramáticas normativas e a NGB, a função comunicativa de
indicação é desempenhada pelos pronomes, em especial, os oblíquos átonos (o, a),
os possessivos (meu, tua, seu), os demonstrativos (este, essa, aquela) e pelos
advérbios (aqui, ali).
Podemos dizer que a capacidade humana de conhecer e identificar situações,
seres, objetos, ações e qualidades é exercida graças à língua que se fala.
(AZEREDO, 2000, p.77) Não se conhecem coisas isoladas, mas pertencentes a
conjuntos ou a classes; não se identificam seres e objetos isolados, mas
necessariamente integrados num contexto que lhes dá sentido e garante essa
identidade. A percepção envolve o ajuste entre nossa experiência do contato real
com o objeto e uma série de informações organizadas no nosso cérebro.
Dessa forma, ao se apreender a realidade, a pessoa estabelece comparações,
associações e apreende particularidades dos seres em geral, expressando essas
informações através de palavras modificadoras. Tal modo de significar a realidade
chama-se quantificação.
Notamos que a quantificação pode ser expressa tanto no domínio da
morfologia, por meio da desinência de plural s (criança/crianças), de prefixos
(superlegal) ou de sufixos (felicíssimo, casarão), quanto no domínio da sintaxe, por
meio de advérbios/locuções adverbiais de intensidade (muito largo, tão pobre,
beber em excesso), pronomes quantificadores (mais paciência, menos dinheiro),
numerais (um animal, dois animais), ou por duplicações (o telefone chamou,
chamou...).
A condensação é o procedimento simbolizador que consiste na substituição
da frase (menor unidade de comunicação do discurso) por palavras que sintetizam
conteúdos de uma oração, tais como: os advérbios sim e não, as interjeições e os
vocábulos cadê e eis.
Monteiro (2002) utiliza a distinção entre símbolo e sinal para diferenciar o
nome do pronome e, principalmente, justificar a classificação para o substantivo e
para o adjetivo.
Chamamos símbolo tudo aquilo que tenha propriedade de representar
alguma coisa, como a bandeira branca, a cruz e a balança, que representam a paz, o
cristianismo e a justiça, respectivamente. As palavras também substituem os objetos
e os valores, constituindo-se símbolos bastante utilizados pelo homem. (ibidem,
p.228)
Como visto em Azeredo (2000), percebemos que o substantivo (a
designação) e o adjetivo (a modificação) representam/nomeiam o mundo
psicossocial de forma a nomeá-lo/qualificá-lo. Assim, pelo fato de designarem a
realidade, por meio da linguagem, substantivo e adjetivo (a classe dos nomes)
constituem símbolos. No sintagma casa amarela, verificamos que os dois termos
são de natureza representativa. O primeiro termo refere-se à idéia, ao conceito que
se tem do objeto (designação), enquanto o segundo diz respeito à cor que lhe é
atribuída (caracterização/modificação). Contudo, vale mencionarmos que o
elemento casa, nesse sintagma, é apresentado como o termo principal,
determinado ou subordinante (substantivo) e o elemento amarela funciona como
termo determinante ou subordinado (adjetivo).
Assim, o sintagma em discussão (casa amarela) corrobora a idéia de que
substantivo e adjetivo são, na realidade, duas funções sintáticas desempenhadas pela
classe dos nomes. E, acima de tudo, as diferenças de uso decorrentes dessas funções
serão determinadas pelo contexto lingüístico-discursivo.
Ao contrário dos símbolos, o sinal não tem a propriedade de representar
conceitos/pensamentos. Sua função é a de indicar algum aspecto, ou ainda, chamar a
atenção para determinado símbolo ou objeto. Com efeito, os sinais apenas apontam
uma direção a seguir, sem estarem a rigor, traduzindo algum conceito.
De acordo com Azeredo (2000), indicação é a propriedade que
determinados vocábulos têm de se referir a elementos situados no mundo textual e
extratextual.
Notamos, portanto, que os pronomes remetem, ao mesmo tempo, a outros
signos identificados no próprio texto ou no contexto discursivo, constituindo sinais.
Desse modo, ao se acrescentar à expressão nominal casa amarela a palavra
esta, por exe mplo, verificaremos que essa palavra não irá remeter a conceito algum.
Nesse contexto, tal vocábulo apenas situa o objeto (casa) no espaço em relação ao
falante. Além disso, observamos que esta é um termo que determina/se subordina ao
elemento casa, funcionando como um adjetivo.
Segundo Perini (2000, p.43-44), há, em Língua Portuguesa, palavras como
João, xícara e alto-falante, que só podem ser nomes de pessoas/coisas; há, também,
vocábulos como paternal, genial e triangular, que só podem expressar qualidades e,
finalmente, palavras como maternal, amigo, magrelo, trabalhador, verde que
podem expressar, ao mesmo tempo, nomes de pessoas/coisas e de qualidades. Vale
lembrar que essas últimas apresentam-se em grande número na língua:
1. a. Uma palavra amiga (qualidade)
b. Um amigo fiel (pessoa)
2. a. Uma menina magrela (qualidade)
b. Essa magrela (pessoa)
3. a. Um homem trabalhador (qualidade)
b. Os trabalhadores (pessoa)
4. a. O carro verde (qualidade)
b. O verde está na moda (coisa).
Como apresentamos, os diferentes usos de substantivo e adjetivo produziram
diferenças de sentido.
Dessa maneira, não podemos trabalhar com os conceitos de classe e de
função de forma estanque, visto que justamente o contexto (o uso/o emprego do
vocábulo na oração) determina a sua classe. Ou seja, para definirmos a classe de
uma determinada palavra, é necessário utilizarmos, também, critérios funcionais.
Na verdade, substantivo e adjetivo não podem mais ser separados em duas
classes nitidamente diferentes, conforme prescrevem as gramáticas normativas e a
NGB, mas sim de uma única classe (a dos Nominais), que apresenta potencialidades
expressivas e variadas, quais sejam identificar seres e objetos (substantivo) e
caracterizar, especificar e especializar seres e objetos (adjetivos). (PERINI, 2000,
p.45)
3. JORNALISMO, HISTÓRIA E LITERATURA: UMA INTER-RELAÇÃO ?
"A ficção distingue-se da história e da biografia, por estas serem
narrativas de fatos reais. A ficção é produto da imaginação criadora,
embora, como toda arte, suas raízes mergulhem na experiência humana.
Mas o que distingue das outras formas de narrativa é que ela é uma
transfiguração ou transmutação da realidade, feita pelo espírito do artista,
este imprevisível e inesgotável laboratório. A ficção não pretende fornecer
um simples retrato da realidade, mas antes criar uma imagem da
realidade, uma reinterpretação, uma revisão. É o espetáculo da vida
através do olhar interpretativo do artista, a interpretação artística da
realidade."
(Afrânio Coutinho)
Pelo fato de o nosso trabalho focalizar a narrativa de extração histórica
Operação Araguaia os arquivos secretos da guerrilha, é importante
estabelecermos, em primeiro lugar, alguns comentários acerca da estreita relação
entre os campos do Jornalismo, da História e da Literatura que, a nosso ver,
representam os três pilares do gênero textual em discussão.
Afirmamos esta posição, pois, em Operação Araguaia, são-nos narrados
fatos/situações vivenciados por um grupo de militantes do PC do B, fatos que
podem ser comprovados, historicamente, através dos arquivos e documentos
anexos ao próprio livro como, por exemplo, os relatórios militares das operações
realizadas e os depoimentos dos militantes
33
, após as suas prisões ou as sessões de
tortura a que eram submetidos nas delegacias do país. Tal grupo de militantes do PC
do B instalou-se, na região do rio Araguaia (localizado no estado do Pará), ainda em
1969, para formar um movimento armado de guerrilha rural e, consequentemente,
tentar a derrubada do regime político-ditatorial existente em nosso país desde o
Golpe de Estado, ocorrido em 31 de março de 1964.
Desse modo, a sucessão de tais fatos confere ao texto em pauta um caráter
jornalístico, transformando-o, até certo ponto, numa espécie de documentário.
Em Linguagem Jornalística, Nilson Lage (1998, p.46) afirma-nos que a
informação é um acontecimento histórico, é parte de uma narrativa.
Tradicionalmente, o ato de contar histórias ou fatos restringe-se ao âmbito da
Literatura. Da mesma forma que este, o jornalista e o historiador também
selecionam fatos e situações ocorridos em um ambiente e tempo específicos a serem
narrados, tendo em vista as suas perspectivas sócio-históricas e ideológicas. Além
disso, percebemos que não só a Literatura, mas também a História e o Jornalismo
utilizam a palavra (a linguagem) como ferramenta indispensável, a partir da qual
desenvolvem o seu trabalho, com vistas a alcançar uma dada intenção:
a) no Jornalismo, por exemplo, a de transmitir uma notícia, para sensibilizar
o público leitor;
b) na História procura-se trazer à tona, ou melhor, recuperar, no presente,
fatos vivenciados em um passado próximo ou remoto e
c) na Literatura, a de reconstituir, ou ainda, reler o mundo as situações,
os eventos histórico-políticos , utilizando-se, para isso, de todas as
possibilidades que a linguagem/língua disponibiliza, de uma forma
singular, pessoal.
Como nos diz o autor supracitado (ibidem, p.34):
“[...] A morte do idioma nos meios audiovisuais é pura fantasia. Não só eles
falam como neles se escreve: um programa de televisão, antes de ir ao ar,
passa, numa produção competente, por diversas versões em sinopses, roteiros
e scripts. Todos os componentes cenários, enquadramentos de câmara,
deslocamentos de equipe, temas e estratégia das entrevistas, cabeças de
repórteres são textos que se transformam em produto .”
34
[Grifo nosso.]
Ou, segundo Beaugrande & Dressler (1981):
“[...] para que uma manifestação linguística constitua um texto, é necessário
que haja a intenção do emissor de apresentá-la e a dos receptores de aceitá-la
como tal.” (in KOCH & TRAVAGLIA, 1999, p.79)
Para discutirmos acerca das relações existentes entre Jornalismo, História e
Literatura, apresentamos os seus respectivos conceitos.
Houaiss (2001, p.1687) define Jornalismo como
33
Alguns destes documentos encontram-se na seção Anexos de nosso trabalho (nas páginas 166,
167 e 168).
34
O conceito de ideologia será abordado, posteriormente, nesta seção.
“1 Atividade profissional que visa coletar, investigar, analisar e transmitir
periodicamente ao grande público, ou a segmentos dele, informações da
atualidade, utilizando veículos de comunicação (jornal, revista, rádio,
televisão etc.) para difundi-las; 2 O conjunto dos jornais ou dos jornalistas;
imprensa (o jornalismo brasileiro) (o jornalismo em peso decidiu pela
greve); 3 Abordagem superficial de um tema, menos interessada em
esclarecê-lo do que em agradar o gosto e os interesses populares que estão na
moda (o teor das declarações do cientista tende mais para o jornalismo do
que para a ciência); 4 Profissão de jornalista.”
Para Dines (2006, p.15),
“[...] Jornalismo é periódico, como se fosse uma pulsação a cada hora, cada
dia, cada semana, cada mês. A grandeza do jornalismo, da imprensa, é não
ser individual. É um trabalho coletivo com um ritmo periódico e a noção de
ser um pequeno universo. Caso contrário, torna-se uma experiência pessoal,
que pode agradar, mas, com o tempo, cansa.”
No que diz respeito à linguagem empregada no Jornalismo, Lage (1998,
p.36-42) aponta-nos três restrições relacionadas aos aspectos seguintes, a saber:
1) Registros de linguagem No Jornalismo, a linguagem utilizada
constitui-se de palavras, expressões e regras combinatórias que são possíveis
no registro coloquial e aceitas no registro formal;
2) Processo de comunicação A comunicação jornalística é, por
definição, referencial, isto é, fala de algo do mundo, exterior ao locutor, ao
interlocutor e à própria comunicação em si; o que impõe quase,
obrigatoriamente, o uso da 3
a
pessoa gramatical e
3) Compromissos ideológicos As grandes e pequenas questões de
ideologia estão presentes na linguagem jornalística, porque não se faz
Jornalismo fora da sociedade e do tempo histórico.
É importante destacarmos que uma formação ideológica está presente não só
na linguagem jornalística, mas, na verdade, em qualquer atividade linguageira
verbal ou não-verbal , visto que se configura como um valioso instrumento
veiculador de ideias a serem materializadas, tendo em vista o uso de expressões
linguísticas. Como nos diz Travaglia (2001, p.23),
“[...] o que o indivíduo faz ao usar a língua não é tão-somente traduzir e
exteriorizar um pensamento, ou transmitir informações a outrem, mas sim
realizar ações, agir, atuar sobre o interlocutor (ouvinte/leitor). A linguagem é
pois um lugar de interação humana, de interação comunicativa pela produção
de efeitos de sentido entre interlocutores, em uma dada situação de
comunicação e em um contexto sócio-histórico e ideológico. Os usuários da
língua ou interlocutores interagem enquanto sujeitos que ocupam lugares
sociais e ‘falam’ e ‘ouvem’ desses lugares de acordo com formações
imaginárias (imagens) que a sociedade estabeleceu para tais lugares sociais”
Neste momento, é necessário apontarmos alguns conceitos de ideologia.
Fiorin (1998, p.32) define ideologia como uma visão de mundo, isto é, o
ponto de vista de uma classe social acerca da realidade, a maneira como uma classe
ordena, justifica e explica a ordem social.
Chauí (1994, p.25) acrescenta que
“[...] por um lado, a ideologia continua sendo aquela atividade filosófico-
científica que estuda a formação das ideias a partir da observação das
relações entre o corpo humano e o meio-ambiente, tomando como ponto de
partida as sensações; por outro lado, ideologia passa a significar também o
conjunto de ideias de uma época, tanto como opinião geral, quanto no sentido
de elaboração teórica dos pensamentos dessa época.”
Baccega (1995, p.34) argumenta, ainda, que ideologia representa um sistema
de valores, pleno de representações e de imagens, ou ainda, o modo de ver o mundo,
de ver a sociedade, o modo que o homem vê a si e aos outros.
Podemos dizer, então, que as escolhas lexicais, realizadas pelos sujeitos
envolvidos na transação comunicativa (locutor/interlocutor e escritor/leitor) estão
diretamente ligadas à intenção destes sujeitos (à sua finalidade discursiva) e ao
seu conhecimento de mundo (à sua formação ideológica). Como nos afirmam
Koch & Travaglia (2000, p.79):
“[...] o produtor de um texto tem, necessariamente, determinados objetivos ou
propósitos, que vão desde a simples intenção de estabelecer ou manter o
contato com receptor até a de levá-lo a partilhar suas opiniões ou a agir ou
comportar-se de determinada maneira. Assim, a intencionalidade refere-se
ao modo como os emissores usam textos para perseguir e realizar suas
intenções, produzindo, para tanto, textos adequados à obtenção dos efeitos
desejados.”
35
Pelo fato de a atividade discursiva ser determinada, também, por elementos
de natureza ideológica, vemos que não existem discursos absolutamente isentos.
O sujeito comunicante, em nosso caso, o jornalista, o historiador e o romancista
lançam mão de determinados componentes linguísticos, com vistas a ressignificar
ou, como nos diz Charaudeau (1995), semiotizar um fato real (no caso do
jornalista), um passado reconhecido (no do historiador) e uma determinada
realidade (para o romancista). Assim, verificamos que, ao ressignificar a realidade,
este sujeito comunicante, até certo ponto, tem o objetivo de transmitir através das
marcas linguísticas utilizadas em seu texto as suas crenças e as suas formações
sócio-históricas e ideológicas. Tais crenças refletem, em última instância, o pensar
do grupo social a que tal sujeito pertence ou o qual defende, ainda que
inconscientemente.
36
Portanto,
“A intencionalidade tem relação estreita com o que se tem chamado de
argumentatividade. Se aceitamos como verdade que não existem textos
neutros, que há sempre alguma intenção ou objetivo da parte de quem produz
um texto, e que este não é jamais uma ‘cópia’ do mundo real, pois o mundo é
recriado no texto através da mediação de nossas crenças, convicções,
perspectivas e propósitos, então somos obrigados a admitir que existe sempre
uma argumentatividade subjacente ao uso da linguagem.” (ibidem, p.98)
Ferreira (1986, p.901), a seu turno, expõe que História é
“1. [Do gr. historía, pelo lat. historia] S. f. 1. Narração metódica dos fatos
notáveis ocorridos na vida dos povos, em particular, e na vida da
humanidade, em geral: a história do Brasil; a história universal. [...] 10.
Narração de fatos, acontecimentos ou particularidades relativas a um
determinado assunto: histórias do Rio antigo; Longa e curiosa é a
história daquele casarão.”
37
35
Grifo dos autores.
36
O nome sujeito comunicante faz parte da terminologia empregada por Patrick Charaudeau, em
sua Teoria Semiolinguística de Análise do Discurso, um dos suportes teórico-metodológicos de
nosso trabalho.
37
Destacamos os segmentos comuns a este e ao próximo autor, no que interessa ao nosso trabalho.
Houaiss (2001, p.1543), por sua vez, define História como:
“[...] 10. Sequência de ações, de acontecimentos reais ou imaginários;
enredo, trama (a história do filme envolve o telespectador). 11. Narração
de eventos fictícios ou não; narrativa, estória (adora contar histórias
para os filhos).”
Em relação à Literatura, podemos dizer que estabelecer um conceito que a
defina, de maneira exata/objetiva, sempre representou uma questão polêmica, tanto
para os escritores, quanto para os leitores em geral, visto que se formulam
definições para um questionamento em aberto. Inicialmente, apresentamos alguns
conceitos para o termo Literatura e, em seguida, realizamos um breve estudo
histórico sobre a evolução semântica deste termo.
Desse modo, Ferreira (1986, p.1040) afirma-nos que Literatura é a
“[Do lat. litteratura.] S. f. 1. Arte de compor ou escrever trabalhos
artísticos em prosa ou verso.[...] 7. Qualquer dos usos estéticos da
linguagem: literatura oral. 8. Fam. Irrealidade , ficção: Sonhador, tudo
quanto diz é literatura. Literatura de ficção. O romance, a novela e o conto.
[Tb. se diz apenas ficção. Sin.: ficcionismo.]”
Para Houaiss (2001, p.1771), Literatura é
“S. f. 1. Ensino das primeiras letras. 2. Uso estético da linguagem escrita;
arte literária (teoria da literatura) (tendência da literatura). 3. Conjunto de
obras literárias de reconhecido valor estético, pertencentes a um país,
época, gênero etc. (literatura brasileira) (literatura medieval) (literatura
romanesca). 4. Conjunto das obras científicas, filosóficas etc., sobre um
determinado assunto, matéria ou questão; bibliografia (literatura marxista)
(literatura farmacêutica). 5. Ofício, trabalho do profissional de letras (a
literatura nem sempre foi tão bem remunerada). 6. Conjunto de escritores,
poetas etc. que atuam no mundo das letras, numa determinada sociedade;
tertúlia (as presenças de nossa literatura em congressos internacionais). [...]
Literatura de ficção Lit. m.q. Ficção (‘prosa literária’); ETIM lat.
litteratura,aearte de escrever, escritura; alfabeto; gramática;
conhecimentos literários, literatura; instrução, saber, ciência; obras
literárias’, de littera,ae letra, caráter de escritura’[...]"
Conforme Silva (1992, p.02),
“[...] O lexema completo litteratura, derivado do radical littera letra,
caráter alfabético , significa saber relativo à arte de escrever e ler,
gramática, instrução, erudição. Em autores cristãos como Tertuliano,
Cassiano e São Jerônimo, litteratura designa um corpus de textos seculares e
pagãos, contrapondo-se à scriptura, lexema que designa um corpus de textos
sagrados.”
Até a primeira metade do século XVIII, nas diversas línguas europeias, o
termo Literatura designa o saber e a ciência, em geral. Para isso, quando se
pretendem nomear a arte e o corpus textual que, hoje, entendemos por Literatura,
são utilizados vocábulos como poesia, eloquência, verso e prosa.
Contudo, na segunda metade do século XVIII, o conteúdo semântico do
lexema Literatura apresenta uma profunda evolução, devido às transformações
culturais, ocorridas neste período histórico no continente europeu. Assim, o
conhecimento representado pela Literatura, que se refere a objetos caracterizados
pela beleza como a poesia, a eloquência, a história bem escrita recebe a
denominação de belle littérature, desconsiderando outros textos como a simples
crítica, a polimatia e a cronologia visto que não só estes textos, mas também seus
autores carecem de beleza. A partir desse momento, além da expressão belle
littérature (que nos remete a uma Literatura baseada em valores estéticos), o
próprio termo passa a significar uma atividade relacionada às letras, ou ainda, à arte
da expressão através da linguagem verbal. Por isso, obras pertencentes à Pintura, à
Arquitetura e à Música já não pertencem à Literatura. Como nos afirma Diderot (in
SILVA, 1992, p.06), Literatura é uma arte e é também o conjunto das manifestações
dessa arte, isto é, o conjunto de textos que se singulariza pela presença de determinados
valores estéticos.
As modificações semânticas do termo Literatura prosseguiram, ainda, nos
séculos XIX e XX. Eis alguns dos valores semânticos adquiridos pelo termo nos
períodos mencionados:
Conjunto da produção literária de uma época Literatura do século
XVIII, por exemplo;
Conjunto de obras que se destacam quer pela sua origem, quer pela sua
temática ou intenção Literatura feminina, Literatura de evasão;
Bibliografia existente a respeito de um determinado assunto a
Literatura sobre o Barroco;
Retórica, expressão artificial;
História da Literatura;
Manual de História da Literatura e
Conhecimento sistematizado, científico do fenômeno literário,
significado este de caráter universitário daí, Literatura Comparada,
Literatura Geral etc..
A partir dos conceitos de Literatura apresentados, percebemos uma
dificuldade recorrente a fim de se estabelecer uma definição referencial para um
tema controvertido. Esta dificuldade é explicada, pelo fato de a Literatura (assim
como o Jornalismo e a História) ser fruto da criação humana que, por sua vez,
reflete os anseios, as crenças, enfim, o pensamento ideológico dos indivíduos,
situados em um contexto histórico específico. Por isso, o conceito de Literatura está
diretamente ligado ao momento histórico vivido e, para definir Literatura, é
necessário contextualizá-la, visto que um texto considerado literário hoje pode não o
ser amanhã.
No estudo dos textos literário e jornalístico, em específico, pensávamos, a
priori, num confronto entre esses dois tipos textuais. Hoje, são muitas as
semelhanças e relações entre eles, principalmente, no que diz respeito ao aspecto
estético que, durante algum tempo, caracterizou apenas o texto literário. O
jornalismo literário, também chamado na tradição americana literatura de não-
ficção, ensaio, jornalismo de autor ou novo jornalismo produziu, em nosso
país, dois grandes clássicos, sendo o primeiro a Carta de Pero Vaz de Caminha ao
Rei D.Manuel de Portugal (que relatava as primeiras impressões daquele a respeito
da terra recém-descoberta, o Brasil) e o segundo, as reportagens de Euclides da
Cunha sobre a revolta liderada por Antônio Conselheiro, no arraial baiano de
Canudos, reportagens estas publicadas, originalmente, no jornal O Estado de São
Paulo e que, a posteriori, transformaram-se no romance Os Sertões, lançado em
1902.
Assim, observamos, atualmente, uma mudança da linguagem utilizada no
texto jornalístico, fato que pode ser explicado, talvez, pelo desejo de tornar-se mais
atraente aos leitores e pela influência de certos autores-ficcionais. Daí, o emprego
de figuras de estilo (metáforas, metonímias e hipérboles), de vocábulos em sentido
conotativo, ou seja, a exploração, cada vez maior, do aspecto polissêmico das
palavras. Notamos, também, uma modificação da linguagem do texto literário,
caracterizando-se pela concisão e simplicidade necessárias à conquista de um leitor
absorvido pelo trabalho e escravizado pelo tempo. Portanto, o status de literatura
para o texto jornalístico já não mais se limita aos textos consagrados como
literários, impressos nos jornais, tais como crônicas e contos. Tal status pode estar
presente em quaisquer gêneros textuais relacionados ao Jornalismo (entrevista,
reportagem, notícia, por exemplo), desde que o jornalista utilize a matéria-prima a
palavra, como dissemos, a linguagem , visando à estética. É necessário,
portanto, avaliar o texto não pelo seu veículo de impressão o corpo como nos
diz Olinto (1955, p.07), mas pelo texto materializado em si o espírito , ou
melhor, pela sua qualidade textual, tendo em vista a linguagem por meio da qual se
manifeste a função poética, ou seja, o valor estético da linguagem:
“A Veraneio vermelha atravessou a principal rua do vilarejo goiano e parou
de frente para o rio. Saltaram cinco homens suados e sujos de lama. As águas
turvas do Araguaia desciam calmas para o norte e desapareciam no
horizonte cinzento. Nílton levantou a cabeça para contemplar a paisagem e
sentiu um arrepio na espinha. A mata fechada ergueu-se na outra margem,
no Pará, como muralha verde. O forasteiro imaginou inimigos armados,
embrenhados naquela imensidão de folhas, troncos, cipós e espinhos.”
(M & S, p.19)
Como vemos, na citação, os jornalistas imbuídos na situação discursiva por
um narrador onisciente utilizam nomeações (substantivos e adjetivos) e figuras de
linguagem (neste caso, a comparação), para construir/configurar o cenário/a região
de conflito, sob um olhar pessoal/subjetivo e, com isso, relatar-nos, de forma quase
cinematográfica, a chegada das primeiras tropas militares do Exército ao município
de Xambioá, em março de 1972. Ou seja, ao narrar-nos este acontecimento, os
jornalistas assim o fazem, a partir de suas experiências de vida, construídas, em sua
maioria, por valores éticos, morais, religiosos, sociais etc., considerando-se o fato
mencionado não uma cópia fidedigna da realidade , mas, sim, uma mediação/uma
aproximação entre o texto e o mundo real. Segundo Koch & Travaglia (2000,
p.70):
“[...] Ao construir um texto, o produtor recria o mundo de acordo com seus
objetivos, propósitos, interesses, convicções, crenças etc.. O mundo criado
pelo texto não é, portanto, uma cópia fiel do mundo real, mas o mundo tal
como é visto pelo produtor a partir de determinada perspectiva, de acordo
com determinadas intenções. É por isso que, quando várias pessoas
descrevem um mesmo objeto, as descrições nunca vão ser exatamente iguais;
quando diversas testemunhas relatam um fato, os depoimentos vão divergir
uns dos outros. Os referentes textuais não são idênticos aos do mundo real,
mas são reconstruídos no interior do texto. O receptor, por sua vez, interpreta
o texto de acordo com a sua ótica, os seus propósitos, as suas convicções
sempre uma mediação entre o mundo real e o mundo textual.”
38
Desse modo, ao reconstruírem o mundo textual sob um olhar
subjetivo/pessoal sob as suas perspectivas ideológicas, tanto historiadores, quanto
jornalistas e escritores criam/constroem, em seus discursos, um efeito de
verossimilhança/parecença, aproximando o real do textual/ficcional. Segundo as
palavras de Charaudeau (2001, p.52),
"há um sujeito que cria seu texto a partir de dados extraídos de sua cultura, de
suas convicções e de seu ethos
39
, enfim, do universo discursivo que lhe é
próprio, a ele, sujeito-individual único. Mas, essas convicções vão encontrar
eco no sujeito coletivo e social, cujos gestos e palavras são determinados por
uma ideologia de vida ou, se preferirem, por contratos sociais dominantes.
Nem completamente livre, nem completamente submisso, eis como vemos tal
sujeito, evoluindo num mundo dominado pelas práticas e trocas linguageiras.
[Grifo do autor.]
Contudo, este efeito de verossimilhança ou de verdade estratégia
utilizada por jornalistas, historiadores e escritores possui com os dois primeiros
mencionados uma relação de obrigatoriedade, ao contrário dos últimos, cuja relação
se dá de maneira flexível. Como nos diz Tatit (in FIORIN, 2005, p.205),
38
Grifo dos autores.
39
Falaremos, mais detidamente, a respeito do ethos, na subseção 5.4.
“Para fazer com que o enunciatário creia em seu texto, o enunciador parte de
um simulacro de tudo o que poderia constituir a instância do seu actante
complementar: suas crenças, seus conhecimentos, seus afetos e seus valores.
Tal simulacro, embora não passe de uma construção imaginária (um conjunto
de hipóteses sobre o mundo do outro), baseia-se em consensos culturais, em
acordos e decisões sobre o que deve ser considerado verdadeiro e confiável
num determinado universo de discurso da comunidade. Do mesmo modo, o
enunciatário faz um simulacro da visão de mundo e das intenções do
enunciador para realizar o seu fazer interpretativo. A partir disso, as
comunicações visam, antes de mais nada, a firmar um contrato fiduciário
(estribado na confiança), que é a principal garantia para o estabelecimento de
um contrato veridictório (aquele pelo qual as coisas ditas parecem
verdadeiras).”
40
[Grifos do autor.]
Percebemos que tal compromisso com a verdade ou com a verossimilhança
por parte dos jornalistas, historiadores e escritores está na intenção ou não de fazer
ficção (PENA, 2006, p.114). Podemos dizer que, em Operação Araguaia, os
produtores do texto, que são jornalistas, ao escolherem, a nosso ver,
intencionalmente, determinadas expressões nominais referenciais e adjetivos de
conteúdo semântico positivo, para configurar a imagem desses guerrilheiros,
constroem, nesta narrativa, uma nova versão para os fatos ocorridos, ou seja, uma
nova realidade.
3.1 OS FATOS HISTÓRICO-POLÍTICOS
3.1.1 O QUE FOI A GUERRILHA DO ARAGUAIA ?
41
40
Os termos enunciador, enunciatário e contratos fiduciário/veridictório são próprios de uma outra
corrente da Linguística Moderna, denominada Semiótica.
41
Determinados detalhes sobre as causas e a implantação do corpo da Guerrilha no Araguaia foram
aprofundadas na própria obra sob o crivo de muitas destas informações utilizadas por nós para
compor este capítulo.
O primeiro presidente do regime militar, o marechal Castelo Branco,
entregara o cargo em 15 de março de 1967 para o também marechal Arthur da Costa
e Silva, que deixara o poder em agosto de 1969 por motivo de doença. O substituto
direto de Costa e Silva o vice-presidente Pedro Aleixo cuja intenção era reabrir
o Congresso Nacional e eliminar os Atos Institucionais, foi impedido de assumir a
presidência pelos ministros militares: o almirante Augusto Rademaker, o brigadeiro
Márcio de Souza Mello e o general Lyra Tavares, que formaram uma Junta Militar.
Em 30 de outubro de 1969, duzentos e quarenta oficiais-generais indicaram o
general Emílio Garrastazu Médici, ex-chefe do Serviço Nacional de Informação
(SNI), para assumir a presidência da República. Após um recesso de dez meses e
com noventa e três deputados cassados, o Congresso foi reaberto, para oficializar a
escolha deste terceiro presidente do período militar.
O regime político instalado no país com o golpe militar em 31 de março de
1964 mantinha-se no poder em virtude de um aparente sucesso da economia e de
uma repressão intensa contra os adversários. O crescimento econômico do país
atingia a média de 11% ao ano e a taxa de desemprego era de 3,5%. Esses
indicadores econômicos foram utilizados pelo governo militar, especialmente, o de
Médici, para configurar o denominado Milagre Econômico, momento este de rápido
e estrondoso crescimento da economia do país.
Em contrapartida, o governo Médici caracterizou-se, também, por uma
extremada repressão, pelo cerceamento de informação e pela censura àqueles que
dele discordaram, atitudes legitimadas a partir do Ato Institucional n
o
5 o
chamado AI-5 em 13 de dezembro de 1968, decretado pelo então presidente
Arthur da Costa e Silva.
Assim, o AI-5 aumentou os poderes do Presidente da República e reduziu as
liberdades de pensamento e de expressão sob as perspectivas individual e coletiva.
Além disso, com esse Ato Institucional, cassaram-se mandatos políticos,
permitindo-se a suspensão dos direitos civis e, principalmente, a censura. Aliás, a
repressão e a censura tornaram-se a única justificativa do governo militar para todos
os atos de violência cometidos que, aparentemente, tinham o objetivo de restaurar e
manter a segurança nacional.
Desse modo, alguns setores da esquerda brasileira optaram pela luta armada,
considerando-a o único caminho possível, para enfrentar a ditadura militar.
Entretanto, as idéias comunistas desenvolvidas no século XIX por Karl Marx
e Friedrich Engels impulsionaram reviravoltas sociais que entraram para a História
como a Revolução Russa (1917), a Revolução Chinesa (1949) e a Revolução
Cubana (1959). Essas experiências vitoriosas estimularam iniciativas
revolucionárias em nosso país, representadas por grupos como a Aliança
Libertadora Nacional (ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o MR-8,
o VAR-Palmares e o Partido Comunista do Brasil (PC do B), surgido com a divisão
do antigo PCB e o único que, efetivamente, instaurou uma guerrilha no Brasil.
Uma das causas que provocaram a divisão do antigo Partido Comunista do
Brasil, sigla PCB, foram as divergências ideológicas entre os dois grupos,
divergências estas surgidas a partir do XX Congresso do Partido Comunista da
União Soviética (PCUS), ocorrido em 1956. Nessa ocasião, o dirigente soviético
Nikita Kruschev denunciou os crimes cometidos por Joseph Stalin, então líder da
U.R.S.S (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), no período de 1927 a 1953
(data de seu falecimento). Além disso, Kruschev estabeleceu novos rumos para a
política soviética, abandonando a doutrina da luta armada e defendendo a transição
pacífica via eleitoral principalmente , a fim de chegar ao socialismo.
No Brasil, a cúpula do Partido Comunista encabeçada por Luiz Carlos
Prestes, Giocondo Dias e Astrojildo Pereira , seguindo a nova orientação soviética,
resolveu abrandar as formas de agir, decisão tomada no V Congresso, em 1960. Já o
grupo liderado por João Amazonas e Maurício Grabois alinhou-se às idéias de
Stalin e manteve a defesa da violência revolucionária, com vistas à imposição de um
governo popular e revolucionário.
Em 1962, é formalizada a divisão do partido. Excluído por Luiz Carlos
Prestes, o segmento de João Amazonas reorganiza-se com o nome de Partido
Comunista do Brasil, utilizando uma nova sigla: PC do B. Prestes mantém o
controle sobre a antiga, PCB, mas com um novo nome Partido Comunista
Brasileiro.
Desse modo, a formação de quadros do núcleo guerrilheiro do PC do B
iniciou-se, ainda em 1964 (no governo de João Goulart), com o envio do primeiro
de um total de três grupos de militantes para treinamento na Academia Militar de
Pequim.
A área escolhida para a implantação de uma guerrilha rural foi a região
chamada Bico do Papagaio, atualmente, ao norte dos estados do Pará e do de
Tocantins. Mais precisamente, essa região limita-se ao sul pelo paralelo que passa
pelo município de Araguanã; pelo rio Araguaia a oeste e pelo rio Tocantins a norte e
leste. A denominação Bico do Papagaio explica-se pelo fato de o rio Araguaia, a
duzentos e vinte quilômetros da aldeia de Xambioá, realizar uma curva à esquerda e
desembocar no rio Tocantins, formando um vértice pontiagudo e torto, que nos
lembra uma ave de perfil, como aparece no mapa.
42
No início da década de 1970, este pedaço do território nacional, forrado por
uma bela floresta equatorial, abrigava migrantes saídos de todos os cantos do país.
Junto com esses migrantes, chegaram, também, os conflitos internos do Brasil
Grande , tais como o analfabetismo, as péssimas condições médico-sanitárias, a má
distribuição das terras produtivas e, por conseguinte, os conflitos de terras. Essas
deficiências foram decisivas para a escolha do local, como vemos a seguir:
“[...] Conflitos entre grileiros, posseiros e garimpeiros geravam violência em
uma terra com pouca presença do Estado. Um Inquérito Policial Militar
(IPM) confirmou a imagem ruim das autoridades locais. ‘A figura do
governo ainda é a de uma organização a temer, por cobrar impostos, prender
e tomar terras dos posseiros’, concluiu o tenente-coronel Ary Pereira de
Carvalho, encarregado do inquérito.
As riquezas se concentravam nas mãos de poucos comerciantes e
fazendeiros. A extração do mogno começava a atrair a cobiça dos
madeireiros. A miséria crescia com a chegada descontrolada de migrantes,
grande parte nordestinos fugidos das secas. A construção da Transamazônica
atraía excluídos e aventureiros.” (M & S, p.25)
Assim, desde 1966, o PC do B passou a enviar e, principalmente, infiltrar
militantes para a região do Araguaia, com o objetivo de conquistar a simpatia dos
moradores locais, utilizando-se de alguma assistência social e de noções de
42
Este mapa encontra-se na seção denominada ANEXOS (página 165).
organização comunitária. Os militantes, infiltrados, passaram a familiarizar-se com
o terreno hostil e apurar o adestramento militar não só com a prática de tiro,
sobrevivência, orientação e deslocamento em área de selva, como também por
técnicas de incursões armadas, fustigamentos e emboscadas.
Os primeiros militantes a chegar à região eram, ao mesmo tempo,
importantes membros do PC do B e pessoas já capacitadas pelo treinamento militar
realizado na China. Dentre eles, citamos: Osvaldo Orlando da Costa (codinome
Osvaldão), Maurício Grabois (Mário), Líbero Giancarlo Castiglia (Joca), João
Carlos Haas Sobrinho (codinome Dr. Juca), Nélson Piauhy Dourado, Elza de Lima
Monerat (conhecida por D. Maria), João Amazonas de Souza Pedroso (codinome
Cid) e Ângelo Arroyo (Joaquim), estes últimos considerados desertores, visto que
abandonaram o conflito em diferentes fases.
As forças guerrilheiras do Araguaia (ou FOGUERA, como ficaram
conhecidas) representaram, portanto, um movimento por meio do qual o PC do B
pretendia realizar uma luta armada, no Brasil, inspirada na experiência da China.
Vemos que a tomada do poder, em 1949, no referido país, originou-se a partir de
rebeliões camponesas ao longo de séculos. Da mesma forma, o PC do B planejava
abrir uma frente revolucionária no interior do país, incorporar as massas da área
rural, criar um exército regular, envolver os trabalhadores urbanos e deflagrar uma
guerra prolongada. Desse modo, o partido considerava que existiam, no Brasil,
condições reais e objetivas para uma transformação radical, a saber: as mazelas do
capitalismo em um país semi-industrializado, os conflitos gerados pelas
desigualdades sociais e os abusos cometidos pela ditadura militar. Para o PC do B,
todos esses fatores justificavam as suas propostas de uso da violência (a luta
armada) contra o regime militar:
“[...] No início da ditadura, a inflação chegava a 80% ao ano. O crescimento
do Produto Nacional Bruto (PNB) estava em 1,6% ao ano. O governo adotou
uma política recessiva e monetarista. Os objetivos eram: sanear a economia e
baixar a inflação para 10% ao ano, criar condições para que o PNB crescesse
6% ao ano, equilibrar o balanço de pagamentos e diminuir as desigualdades
regionais.
A economia deu um salto em 1970. Investimentos ampliaram a capacidade
produtiva e o ‘milagre’ deu-se em 1972 e 1973. Então, o crescimento
começou a declinar. No fim da década, a inflação chegou a 94,7% ao ano. O
‘milagre’ revelou fraqueza no campo social. Houve tendência à concentração
de renda e o rápido crescimento beneficiou mais a mão-de-obra
especializada. O salário mínimo baixou, e Médici chegou a afirmar em 1971:
‘O país vai bem e o povo vai mal’.
Em 1972, dos 3.950 municípios, apenas 2.638 possuíam abastecimento de
água. Os cinco anos de governo Geisel foram os mais complexos e
polêmicos. Mesmo com o choque do petróleo em 1974, a economia cresceu à
média de 6,7% ao ano. Quando o governo militar acabou, em 1985, deixou
de herança uma dívida de US$ 102 bilhões, contra apenas US$ 3,3 bilhões
em 1964.” (M & S, p.24)
Assim, a Comissão Executiva do partido composta por elementos do
Comitê Central e responsável pela comunicação da guerrilha com o mundo exterior
estruturou uma Comissão Militar, cuja função era estabelecer a estratégia de
atuação e o treinamento militar dos três destacamentos subordinados a essa tal
comissão. Eram nomeados os destacamentos, a saber: o A, que atuava na região da
Transamazônica; o B, com atuação no Vale da Gameleira e o C, que atuava a
sudoeste da Serra das Andorinhas. Cerca de setenta integrantes compuseram o
efetivo das forças guerrilheiras até o final das operações.
Até março de 1972, a guerrilha permanecera isolada do restante do país,
sobrevivendo por seus meios próprios e pelo que conseguia na selva. Aliás, a caça e
a pesca representavam as únicas fontes de alimentos disponíveis.
No entanto, ainda em 1969, os órgãos de inteligência do governo,
especificamente, os das Forças Armadas, já possuíam informações acerca de
atividades ilegais do PC do B, na região do Bico do Papagaio.
A presença do PC do B na região do Araguaia fora confirmada, finalmente,
em 17 de março de 1972, com a prisão do militante Pedro Albuquerque Neto, no
Ceará. Ele e sua mulher, Tereza Cristina Albuquerque, deixaram a guerrilha, pelo
fato de que ela engravidara e lhe fora determinado (pela Comissão Militar) realizar
um aborto. Como não acataram a ordem da Comissão, decidiram abandonar o
movimento.
Com a prisão de Pedro Albuquerque, as Forças Armadas passaram a realizar
várias operações na região, assim chamadas: Peixe I, Peixe II, Peixe III e Peixe IV,
ocorridas de março e outubro de 1972 e as operações Sucuri e Marajoara, entre abril
de 1973 e dezembro de 1976.
8
2
Ainda durante a Operação Peixe I, equipes das Forças Armadas,
especializadas em inteligência, efetuaram as primeiras prisões, nesta ordem:
Eduardo José Monteiro, próximo à cidade de Araguatins, quando tentava
incorporar-se ao movimento, em 14 de abril; Rioko Kayano, em um hotel de
Marabá, abandonada por Elza Monerat que, por sua vez, fugira na iminência da
prisão de ambas, em 15 de abril e, finalmente, uma das mais importantes, a de José
Genuíno Neto, em 18 de abril.
43
Após as primeiras operações, as autoridades do governo imaginaram que a
expressiva presença militar e a demonstração de sua força estimulassem o PC do B
a abandonar a região. No entanto, a saída das tropas militares a trégua ocorrida
entre novembro de 1972 e setembro de 1973 foi interpretada pela Comissão
Militar da guerrilha como sinal de fraqueza ou, até mesmo, de impotência,
favorecendo não só a continuidade da guerrilha, como também a propaganda
veiculada por uma rádio comunista, denominada Tirana, de Albânia.
Permaneceram, apenas, tropas da Polícia Militar de Goiás, conhecidas,
historicamente, pela prática de arbitrariedades e por um estreito alinhamento aos
senhores de terras, o que motivou, ainda mais, a disposição dos militantes para o
trabalho com a comunidade.
Com a permanência desse cenário, o governo convenceu-se do fracasso na
tentativa de resolver o problema sem confronto. Desse modo, o Exército planejou e
conduziu uma nova operação de inteligência a Operação Sucuri , realizada por
agentes infiltrados na área, que conheciam a rotina e as características do local. A
Operação Sucuri, também denominada pelo Exército como Plano de Informação
Sucuri n
o
. 1, iniciou-se, ainda em abril de 1973, durante o período de trégua entre as
forças militares e os guerrilheiros. Logo, as forças militares não respeitaram, de
modo algum, esta trégua.
43
Ex-Presidente Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT) do atual governo do Presidente Luís
Inácio Lula da Silva (2002-2006/2006-2010), José Genuíno foi afastado do cargo, devido ao seu
envolvimento com um grande esquema de corrupção existente e, já provado, através de CPIs
(Comissões Parlamentares de Inquéritos), ocorrido durante o governo do atual Presidente (no ano de
2005). Tal esquema de corrupção, que envolvera deputados federais e membros do Poder
Executivo, foi denominado Mensalão.
Em contrapartida, o PC do B, por acreditar nela, esqueceu-se de sua
segurança e, além disso, superestimou a sua própria presença na área e desprezou a
capacidade da inteligência e da força militar. A Comissão Militar das forças
guerrilheiras demonstrou, ainda, excessiva confiança na vitória do movimento e
total descuido na transmissão de informações entre as bases e os militantes,
desconsiderando sinais relevantes sobre atividades de agentes militares na região,
como nos aponta Morais & Silva (2005, p.401-402):
“No primeiro aniversário dos combatentes, os comunistas querem guerra. O
comando guerrilheiro divulga um Manifesto à População no dia 12 de abril
de 1973. Um ano antes, o pelotão Pesag atacou a base do Destacamento A
em Chega com Jeito. O texto exorta ainda mais uma vez a população do
Araguaia a enfrentar as Forças Armadas:
A hora é de decisão. Ou se combate corajosamente pela liberdade ou se
permanece sob a mais negra tirania. Escolha o caminho da luta. Entre para
as Forças Armadas Guerrilheiras do Araguaia, empunhe o fuzil, seja um
combatente do povo.
A convocação se dirige a lavradores, peões, castanheiros e moradores de São
Domingos, Brejo Grande, Itamirim, Palestina, Santa Cruz, Santa Isabel, São
Geraldo, Araguanã, Itaipavas, Marabá, São João do Araguaia, Araguatins e
Xambioá. Há 12 meses, afirma o documento, os guerrilheiros combatem com
firmeza os soldados do governos e toda a corja de bate-paus da ditadura.
O manifesto avalia que a valentia dos combatentes derrotou duas campanhas
das Forças Armadas. O sangue dos generosos e destemidos companheiros
mortos não correu em vão. Tombaram em prol da emancipação da pátria.
Combatiam, por uma causa justa, uma ditadura. Defendiam os interesses do
povo contra a espoliação das grandes empresas estrangeiras. Representavam
as verdadeiras aspirações das massas de milhões de pobres e oprimidos.”
Com os dados colhidos pela Operação Sucuri, o Exército foi suprido de farto
material acerca dos militantes (quem eram ?, de onde vieram ?, que atividade
desempenhavam antes ?), de seus contatos e sua rede de apoio (como chegavam ao
Araguaia ?, quem os encaminhava ?), da organização da guerrilha (quais e quantos
guerrilheiros compunham cada destacamento ?) e o poder de combate do
movimento (que tipo de armamento eles utilizavam e as suas técnicas de defesa na
selva).
A partir do conhecimento das informações acima, o Exército, acompanhado
pelas Polícias Militares de Goiás e do Pará, estabelecera um bloqueio das estradas e
caminhos de saída, retirando das forças guerrilheiras o apoio do mundo exterior e,
principalmente, o contato com o partido. De imediato, os militantes perderam a sua
rede de apoio, através da prisão de aproximadamente cento e sessenta colaboradores
ou suspeitos de colaboração, levados com seus familiares para acampamentos sob a
tutela da autoridade militar.
Ao mesmo tempo, o Exército colocara em ação uma tropa de combate,
constituída por profissionais especializados em operações de selva, que recebera o
apoio dos agentes utilizados nas atividades de inteligência da Operação Sucuri. Vale
destacar que os militares infiltrados usava m trajes descaracterizados, equipamento
não-convencional e não apresentavam qualquer sinal de postos ou graduações, ao
contrário, tinham apelidos. Com este preparo (e a referida imagem que adotaram),
conseguiram certo conforto, segurança e operacionalidade dentro de seu grupo. O
armamento utilizado era próprio para unidades de selva, fato que propiciava
considerável poder de fogo e de combate a favor das tropas do governo. No
planejamento da operação, considerava-se, também, uma ação por tempo
indeterminado, revezando um efetivo total entre três grupos de duzentos e cinquenta
homens. Tal ação proporcionara a recuperação no moral e no estado físico dos
militares, o que de fato aconteceu.
44
Iludidas com as operações realizadas pelo Exército até setembro de 1973, as
forças guerrilheiras do Araguaia foram surpreendidas pela determinação com que as
tropas do governo lhes combatiam e, firmemente, adentravam a selva sob as difíceis
condições impostas pelo período chuvoso. Além disso, a falta de apoio interno e
externo e a penúria dos meios de sobrevivência também limitavam o ânimo, a
mobilidade e a capacidade de reação dos guerrilheiros:
“[...] Quando o Exército iniciou a Operação Marajoara, o PC do B tinha 56
guerrilheiros no Araguaia: o Destacamento A contava com 22 combatentes, o
B com 12, o C com 14 e a Comissão Militar com 8.
O armamento continuava insuficiente, segundo o Relatório Arroyo. Oito
fuzis em condições de uso e um no conserto; cinco rifles 44, uma
metralhadora fabricada na mata e uma INA; oito espingardas 20; 22
revólveres 38 e um 32, no A. No B, um fuzil, uma submetralhadora Royal,
44
Antes havia certo descontentamento, pelo fato de os militares não conseguirem debelar alguns
trinta ou setenta guerrilheiros.
três rifles 44, duas espingardas 16 de dois canos, uma espingarda 16, uma
carabina 32-20, duas espingardas 20, uma carabina, uma carabina 22, 12
revólveres 38. No C, dois fuzis, sete rifles 44, cinco espingardas 20 e 14
revólveres 38.
Mais de dez armas longas dependiam de reparo e cada revólver 38 dispunha,
em média, de 40 balas. Não havia cartuchos suficientes para as espingardas
20 nem munição calibre 22. A maioria dos combatentes tinha pouca roupa e
não havia mais calçados. Alguns usavam chinelos feitos de restos de pneus e
muitos andavam descalços. Faltavam bússolas, isqueiros, facas, pilhas,
querosene e plásticos para proteger suprimentos e combatentes. A guerrilha
dispunha de Cr$ 400,00 para sustentar a luta contra o governo Médici. Era o
equivalente ao soldo de um dia para os cabos e soldados que os combatiam.
Apesar da precariedade, Joaquim considerava o moral dos companheiros
bastante elevado. Mas o relatório da Operação Marajoara não deixava
dúvidas sobre a decadência da guerrilha.” (M & S, p.450-451)
45
Desse modo, em tais circunstâncias, as suas baixas naturalmente foram
pesadas. Encerrou-se, portanto, a tentativa do PC do B de desencadear um
movimento de guerrilha em nosso país.
3.1.2 OPERAÇÃO ARAGUAIA: OS ARQUIVOS SECRETOS DA GUERRILHA
Lançada em 2005 pelos jornalistas Eumano Silva e Taís Morais, a narrativa
Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha apresenta-nos, pela primeira
vez com farta documentação, um fato histórico dramático e, ainda, desconhecido
por grande parte da população de nosso país: a guerrilha rural na região do rio
Araguaia (norte do Brasil). Tal movimento de luta armada foi realizado por jovens
estudantes universitários e secundaris tas, pertencentes à classe média que, liderados
pelo Partido Comunista do Brasil (o PC do B partido de esquerda, na época do
regime militar), tentaram levantar a população contra este governo (o da ditadura
militar), por sua vez, obstinado a impedir o avanço das idéias comunistas no país,
ideias então amplamente difundidas pela União Soviética, China e Albânia.
4. METODOLOGIA
45
A Operação Marajoara iniciou-se em outubro de 1973, culminando com a execução dos dois
últimos dirigentes do PC do B Ângelo Arroyo e Pedro Pomar , ocorrida no bairro da Lapa, em
O corpus a ser analisado, nesse trabalho, é constituído por expressões
nominais usadas na categorização de personagens que compõem a narrativa de
extração histórica Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha. Esta
narrativa constitui-se de oito partes, assim denominadas, respectivamente:
q I - ANTECEDENTES (Até março de 1972),
q II - A PERSEGUIÇÃO (De março a setembro de 1972);
q III - A GRANDE MANOBRA (Setembro e outubro de 1972);
q IV - A TRÉGUA (De novembro de 1972 a setembro de 1973);
q V - O EXTERMÍNIO (De outubro de 1973 a dezembro de 1976);
q VI - O PÓS-76, DA DERRUBADA DO PC do B NA LAPA;
q VII - EPÍLOGO e
q VIII - ANEXOS.
Utilizaremos, então, a narrativa propriamente dita , que abrange as partes
I a V, desconsiderando os arquivos, fotos, depoimentos e cartas de alguns
guerrilheiros, situados nas seções VI a VIII.
No desenvolvimento da construção das personagens a caracterização
semântico-discursiva selecionamos as figuras de Lúcio Petit, Dina, Flávio, Dr.
Juca, Pedro Albuquerque e Osvaldão. Nossa escolha justifica-se pelo fato de eles
possuírem os atributos necessários que, ao nosso olhar, compõem o perfil de um
personagem, que são: coragem na luta, determinação, entrega incondicional aos seus
ideais, a ponto de pagarem um preço altíssimo por tudo isto: as suas próprias vidas.
16 de dezembro de 1976.
5. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Nesta seção, apresentamos os pressupostos teórico-metodológicos que
servirão de base para o desenvolvimento das questões propostas.
Sendo um de nossos objetivos investigar a atividade discursiva que se
constroi, nesta narrativa de extração histórica, é fundamental subsidiarmos nossa
análise em uma teoria que assuma o ato de linguagem como a articulação entre o
material linguageiro (contexto linguístico propriamente dito) e o material social
(contexto extralinguístico), ou seja, uma articulação entre língua e sociedade. Essa
articulação não deve, porém, ser concebida de modo objetivo, numa relação direta
entre língua e mundo.
Assim, dentre as diferentes perspectivas teóricas observadas, no âmbito da
Linguística Moderna, optamos pelos fundamentos da Teoria Semiolinguística de
Análise do Discurso de Patrick Charaudeau e, ainda, associamos a concepção de
Referenciação apresentada pela Linguística Textual (MONDADA & DUBOIS,
2003; KOCH, 2002; MARCUSCHI, 2004).
A Teoria Semiolinguística concebe o ato de linguagem como uma mise en
scène - uma encenação comunicativa -, na qual os sujeitos sócio-discursivos,
envolvidos por uma relação contratual (também chamado contrato de
comunicação), estabelecem escolhas lexicais oriundas da própria língua, com vistas
a produzir determinado efeito de sentido, no evento comunicativo e, principalmente,
alcançar uma dada intenção. Conforme Charaudeau (2001a., p.51),
"Comunicar, então, na teoria Semiolinguística, é proceder a uma encenação
ou, como nos diz Charaudeau, a uma mise en scène. Assim como o diretor de
uma peça teatral usa os espaços cênicos, a decoração, a luz, os efeitos
sonoros, os atores, um determinado texto, a fim de que se produzam efeitos
de sentido; assim o locutor, querendo comunicar-se, seja pela fala ou pela
escrita, utilizará os componentes do dispositivo de comunicação, tendo em
vista os efeitos de sentido que visa a provocar em seu interlocutor."
Por isso, combinando as unidades linguísticas (nos eixos paradigmático e
sintagmático), escolhidas, intencionalmente, pelos sujeitos envolvidos na atividade
comunicativa, através de uma relação contratual, com os nossos saberes pessoal e
social (conhecimentos de mundo e compartilhado, fatores geradores de coerência), a
Teoria Semiolinguística estabelece o que se denomina o ato de semiotização do
mundo, ou seja, a transposição do sentido de língua para o sentido de discurso.
Percebemos, então, que, neste ato de semiotização do mundo, a base da Teoria
Semiolinguística, outras ciências como a Psicologia, a Sociologia, a História e a
Antropologia são envolvidas.
A abordagem da Referenciação
46
, adotada pela Linguística Textual,
apresenta a concepção de que os sujeitos constroem, através de práticas discursivas
e cognitivas social e culturalmente situadas versões públicas do mundo
(MONDADA & DUBOIS, 2003, p.17), confirmando a imagem de encenação, feita
por Charaudeu (2001a., p.51).
Mostraremos, aqui, que a idéia de ato de semiotização do mundo
(CHARAUDEU 2001a) e de Referenciação (MONDADA & DUBOIS, 2003)
advém de uma mesma concepção de linguagem como atividade sociocognitiva e
cultural.
As propostas teóricas apresentadas constituem, no entanto, um desafio para a
análise do discurso. Menezes (2008, p.303-305) assim apresenta o problema:
Incorporar motivações cognitivas e pragmáticas ao estudo das construções
linguísticas, porém, quer se focalize o léxico ou a gramática, não é tarefa
fácil, pois requer que se lide com a subjetividade e a instabilidade do
discurso. Reflexões sobre as dicotomias objetividade versus subjetividade e
estabilidade versus instabilidade, que nos vêm sendo tradicionalmente
impostas, parecem ser imprescindíveis ao estudo da língua em uso. Trata-se,
pois, da necessidade de se abandonar uma visão dicotômica e estabilizante e
46
As abordagens atuais preferem o termo referenciação ao termo referência, para indicar que se
leva em conta não somente um sujeito do ponto de vista físico, mas ainda um sujeito sócio-
cognitivo mediante uma relação indireta entre os discursos e o mundo.
de se começar a pensar os fenômenos em termos de relatividade e de
concomitância.
Em relação à tessitura da narrativa, em estudo, adotamos, neste trabalho, a
proposta de Patrick Charaudeau (apud CARNEIRO & MONNERAT, 2002) que
estabelece a distinção entre os modos de organização do discurso e os gêneros
textuais.
Para abordarmos a construção do ethos dos guerrilheiros-personagens,
utilizaremos, no caso das expressões nominais, a classificação apresentada por Koch
(2004), com base nos estudos de Referenciação, em específico, os mecanismos de
Referenciação através das anáforas correferenciais diretas e as não-correferenciais
do tipo indiretas. No caso dos adjetivos, adotamos a classificação de Kerbrat-
Orecchioni (1980), que diferencia os adjetivos em objetivos, avaliativos não-
axiológicos, avaliativos axiológicos e subjetivos.
5.1 A TEORIA SEMIOLINGUÍSTICA
5.1.1 O CONTRATO DE COMUNICAÇÃO
Podemos dizer que a base da Teoria Semiolinguística, proposta por
Charaudeau (apud MACHADO, 2001b., p.50), está na ação comunicativa, isto é, na
produção de um ato de linguagem, através de uma encenação sócio-discursiva (ou,
segundo o autor, de uma mise en scène), realizada por sujeitos (a princípio, seres
sociais) que, ao mesmo tempo, se situam num espaço sócio-histórico e ideológico -
o mundo real (portador de saberes, convicções e ideologias) e se interagem a partir
de um contrato de comunicação pré-estabelecido - o mundo virtual (também
chamado discursivo).
Além disso, vemos que um ato de linguagem é organizado ao redor de dois
espaços - o de limitações (também chamado espaço externo ) e o de estratégias
(denominado espaço interno), estruturando, desse modo, tal ato de linguagem em
três níveis que se inter-relacionam: situacional, discursivo e semiolinguístico
47
.
O nível situacional, que corresponde à competência situacional do sujeito,
constitui o espaço de limitações (ou espaço interno). Observamos, neste espaço, os
elementos mínimos à validação do ato de linguagem, elementos estes que não são
necessariamente expressos, tais como: a identidade dos sujeitos envolvidos, a
finalidade do ato de linguagem, o domínio do saber e as circunstâncias
materiais.
A identidade dos sujeitos inseridos na transação comunicativa determina a
pergunta quem fala com quem ?, tendo em vista o status ou papel social que estes
sujeitos representam no mundo real e, em seguida, no contexto discursivo.
A finalidade do ato de linguagem consiste em responder à pergunta para
que dizer ou fazer?, em termos de objetivo comunicativo ou projeto de fala,
assim denominados: factitivo, informativo, persuasivo e sedutor.
48
O domínio do saber diz respeito ao conhecimento de mundo veiculado no
intercâmbio linguageiro, conhecimento que deve ser compartilhado pelos sujeitos,
respondendo, portanto, à indagação a propósito de quê ?
Enfim, as circunstâncias materiais determinam as diversas situações de uso
da língua, diferenciando-se em interlocutivas ou orais e em monolocutivas ou
escritas.
Nas situações interlocutivas, um dos parceiros toma para si o direito à
palavra, encontrando-se exposto a quaisquer intervenções ou reações por parte de
seu interlocutor. Percebemos, em tal situação, uma verdadeira luta pelo direito à fala
e aos temas tratados.
Da mesma forma que nas situações interlocutivas, também nas
monolocutivas, o sujeito comunicante inicia o espaço de locução, tomando para si o
direito à palavra. No entanto, o sujeito interpretante - ausente fisicamente - é
solicitado a participar da cena discursiva. Desse modo, pelo fato de o sujeito
comunicante não interagir, imediatamente, sua luta pelo direito à palavra perde o
47
Anteriormente, utilizava-se o termo comunicacional como referência a semiolinguístico (apud
CHARAUDEAU, 1996, p.35).
48
Falaremos a posteriori acerca destes objetivos comunicativos.
sentido e a interação discursiva ocorre através da simulação das reações e
intervenções supostamente realizadas pelo interlocutor.
O nível discursivo, que corresponde à competência discursiva do sujeito,
constitui o espaço de estratégias, também denominado espaço interno. Neste nível,
observamos as possíveis escolhas léxico-gramaticais efetuadas pelos sujeitos sócio-
discursivos, durante a encenação comunicativa, tendo em vista não só a sua
identidade, como também a sua intenção ou, conforme Charaudeau (1996), o seu
projeto de fala.
Há, ainda, o nível semiolinguístico que, fazendo parte também do espaço de
estratégias (ou espaço interno), corresponde à competência semiolinguística do
sujeito falante. Neste espaço, são determinadas a maneira de dizer e de escrever, em
função dos dados da situação (a identidade dos sujeitos envolvidos na transação
comunicativa, a finalidade do ato de linguagem, o conhecimento de mundo
veiculado pelos sujeitos e a situação de uso linguístico), ou seja, em virtude da
competência situacional do falante: o como dizer?
Verificamos, assim, um saber-fazer articulado à estrutura do texto, à
construção gramatical e à escolha do léxico.
Tal estrutura de um ato de linguagem determina, portanto, a existência de
dois tipos de sujeitos de linguagem, que se apresentam em um duplo espaço de
significação: um externo e outro interno.
Segundo Charaudeau (1996), no espaço externo, encontramos os parceiros,
também chamados interlocutores que, representando seres sócio-históricos e
ideológicos, dotados de intencionalidade (seres do mundo do Fazer), são os
verdadeiros responsáveis pela produção do ato de linguagem (o sujeito
comunicante ou EUc) e pela interpretação deste ato (o sujeito interpretante ou
TUi).
Já no espaço interno, atuam os protagonistas, denominados ainda
intralocutores, seres discursivos (ou seres do mundo do Dizer), que constituem
projeções estrategicamente elaboradas pelo sujeito comunicante em relação a si
mesmo e ao sujeito interpretante. Trata-se do sujeito enunciador (EUe) e do sujeito-
destinatário idealizado (TUd). Assim, como nos afirma Charaudeau (apud
MACHADO, 2001b., p.52),
"[...] há um sujeito que cria seu texto a partir de dados extraídos de sua
cultura, de suas convicções e de seu ethos, enfim, do universo discursivo que
lhe é próprio, a ele, sujeito-individual único. Mas essas convicções vão
encontrar eco no sujeito coletivo e social, cujos gestos e palavras são
determinados por uma ideologia de vida ou, se preferirem, por contratos
sociais dominantes. Nem completamente livre, nem completamente
submisso, eis como vemos tal sujeito, evoluindo num mundo dominado pelas
práticas e trocas linguageiras." [Grifos do autor.]
Observemos, através do quadro abaixo, os sujeitos mencionados:
Quadro 4: Os Circuitos Externo e Interno de comunicação.
Fazer-Situacional
Com base no quadro apresentado, podemos dizer, ainda, que o sujeito
enunciador (EUe) é a imagem ou, conforme Goffman
49
(1967), a face que o sujeito
comunicante deseja transmitir de si próprio no ato comunicativo. Essa imagem
pode-se assemelhar (ou não) ao reflexo do ser que a construiu, cabendo ao sujeito
49
Interaction Ritual: essaies on face-to-face behavior. Nova York: Garden City, 1967. Este é um
dos mais importantes trabalhos do autor, em que ele desenvolve a teoria das 'faces' (positiva e
negativa) e discute as estratégias de 'preservação da face'.
Circuito Externo - Fazer
EUc TUi
- Interlocutor, -
Interlocutor,
- Responsável pela - Responsável pela
produção. interpretação.
Intencionalidade
Relação Contratual
Circuito Interno
-
Dizer
EUe -------------------------TUd
- Os intralocutores,
- seres discursivos,
- são projeções.
interpretante aceitá-la ou recusá-la. Tal fato poderá desencadear uma modificação
na intencionalidade prévia dos parceiros envolvidos na transação discursiva.
Ao mesmo tempo, percebemos que o sujeito destinatário também
idealizado pelo sujeito comunicante (EUc) constitui a representação de um
interlocutor, em nosso caso, de um leitor ideal, visto que a narrativa sob análise se
configura como uma situação discursiva monológica, isto é, ato de linguagem no
qual os parceiros envolvidos estão fisicamente falando in absentia.
50
Como veremos a posteriori, tal classificação situação comunicativa
monológica pertence ao nível do situacional de estruturação de um ato de
linguagem, correspondendo à capacidade, denominada por Charaudeau (2001a.),
competência situacional do sujeito comunicante.
Em nosso estudo, os jornalistas-escritores integram a encenação discursiva, a
partir das circunstâncias materiais em que se desenvolve o próprio ato
comunicativo.
Relacionando estas considerações acerca dos sujeitos envolvidos na
transação comunicativa com a proposta de nosso trabalho, estabelecemos o seguinte
esquema:
Quadro 5: Os Circuitos Externo e Interno de comunicação em Operação
Araguaia.
50
São considerados situação de comunicação monológica: os textos escritos (cartas, editoriais,
crônicas, contos...), impressos (publicidades, desenhos...) e a comunicação veiculada na tele visão e
internet (com exceção, nesta última, das salas de bate-papo).
Circuito Externo - Fazer
EUc TUi
- Os jornalistas Taís - Leitor Real.
Morais e Eumano Silva.
Relação Contratual
Ci
rcuito Interno
-
Dizer
EUe -----------------------TUd
Narrador Leitor
Onisciente Virtual
Assim, para produzir um ato de linguagem ou, segundo Charaudeau (apud
MACHADO, 2001b.), semiotizar o mundo, os sujeitos comunicantes
(representados, situacionalmente, pelos jornalistas Taís Morais e Eumano Silva)
51
empregam, na encenação discursiva, recursos linguageiros, tendo em vista as
operações de nomeação (com o uso de expressões nominais) e as operações de
qualificação (com o uso de adjetivos e locuções adjetivas, presentes em tais
expressões nominais). Estas operações são realizadas no espaço da tematização.
52
No entanto, antes de o sujeito comunicante iniciar o processo de construção
do ato de linguagem, é necessário que tanto o sujeito mencionado quanto o sujeito
interpretante (o leitor real) reconheçam-se como parceiros envolvidos e
indispensáveis a qualquer situação discursiva e, especialmente, aceitem-se como
tais, possuindo cada um o direito à palavra. Este direito à palavra leva-nos a pensar
e a admitir que, numa dada situação comunicativa, o sujeito falante - comunicante
ou interpretante - tem sempre algo a dizer, ou seja, a sua fala
53
é carregada de uma
intencionalidade. Portanto, cada um dos sujeitos envolvidos no ato de linguagem
deve ser reconhecido pelo outro como produtor-interpretador, isto é, digno de dizer
e ser ouvido - com direito à palavra ou, como nos afirma Charaudeau (1996, p.25),
ele não é um sujeito falante sem o outro - nada de locutor sem interlocutor, nada de
EU sem TU.
Assim, destacamos as três condições que fundamentam o direito à fala, na
Teoria Semiolinguística: a primeira refere-se ao Saber, a segunda ao Poder e a
última ao Saber fazer do sujeito falante.
O Saber diz respeito ao conhecimento de mundo partilhado entre os sujeitos
da comunicação. Podemos dizer que este conhecimento é construído não só a partir
das experiências vividas por eles, como também pelas crenças e verdades sobre o
mundo, segundo um grau (mais ou menos forte) de verossimilhança. Desse modo,
os parceiros envolvidos na encenação discursiva em estudo compartilham um saber
51
Este sujeito é dotado de um projeto de fala: a princípio, retrata os fatos que envolveram a
Guerrilha do Araguaia e, principalmente, transformar os jovens-guerrilheiros em objetos-do-
discurso.
52
Enfocaremos, de forma mais detalhada, como se dá o ato de semiotização do mundo.
53
Adotamos o vocábulo fala, aqui, como sinônimo de texto e de discurso.
específico: a Guerrilha do Araguaia (motivações político-ideológicas, cenário,
momento histórico), seus participantes (militares e guerrilheiros) e desfecho.
Em relação ao Poder, observamos que os indivíduos não são, enquanto
atores sociais, seres únicos e simples. Tendo em vista as inúmeras situações
comunicativas de que fazem parte, eles são levados a assumir comportamentos
diversos e, consequentemente, a desempenhar papéis sociais diferentes uns dos
outros que, em troca, dão-lhes status específicos (pai, mãe, médico, professor...).
Com base, então, nos papéis sócio-profissionais de Taís Morais (filha de um ex-
oficial do Exército, jornalista e pesquisadora) e Eumano Silva (atualmente,
jornalista do Correio Braziliense), autores da obra analisada, é conferido a eles o
poder de investigação/pesquisa e catalogação de fotos, arquivos, documentos,
enfim, de informações referentes às situações vividas pela guerrilha do Araguaia,
possibilitando-os construir uma encenação linguageiro-discursiva que retrate, de
forma detalhada e inédita, tal movimento de guerrilha.
A partir disso, podemos afirmar que as duas primeiras condições - o Saber e
o Poder - garantem legitimidade à fala/ao discurso destes jornalistas (que se
transfiguram em um narrador-onisciente na situação comunicativa), ou seja,
fundamentam o direito à palavra do sujeito falante. Vemos que a legitimidade é pré-
determinada, é inegociável, isto é, é constituinte do sujeito, pois está diretamente
ligada às posições que ele ocupa nas diversas práticas sociais.
Vale ressaltar que, embora as condições do Saber e do Poder sejam
pertinentes ao reconhecimento da legitimidade do direito à palavra, tais condições
mostram-se, ainda, insuficientes. Mas, há a necessidade de reconhecer-se uma
terceira condição - o Saber-fazer.
Essa última condição consiste na articulação dos domínios do Saber e do
Poder pelos sujeitos sociais, revestidos de sujeitos discursivos na transação
comunicativa, o que concede credibilidade ao ato de linguagem por eles realizado.
Na verdade, tal Saber-fazer significa, justamente, a competência desses sujeitos em
articular os espaços externo (que corresponde ao reconhecimento do Saber e do
Poder) e interno (que corresponde ao material linguístico propriamente dito), na
encenação discursiva, reconhecendo, de fato, o direito à palavra e a importância do
projeto de fala de tais sujeitos. Recordemos que, em nosso trabalho, estamos
interessados na articulação desses espaços nas operações de nomeação e de
qualificação.
Para o autor, o projeto de fala do sujeito comunicante diz respeito às suas
intenções comunicativas - sejam conscientes ou não. Além disso, pelo fato de a
intencionalidade do sujeito comunicante estar vinculada a uma situação discursiva
específica, podemos dizer que o projeto de fala é o resultado de um movimento
contínuo entre os espaços externo e interno da encenação comunicativa. Como nos
afirma Charaudeau (1996, p.29-30),
"É na aptidão em saber ligar esses dois espaços e seus componentes que
pode ser julgado o Saber-fazer do sujeito e que pode ser reconhecida sua
competência enquanto sujeito tendo um projeto de fala." [Grifos do autor.]
Charaudeau acrescenta-nos, ainda, que este projeto de fala deve pautar-se em
determinados objetivos comunicativos, a saber: factitivo, informativo, persuasivo
e sedutor.
O objetivo factitivo consiste em fazer-fazer ou fazer-dizer qualquer coisa
um ao outro - ordenando ou sugerindo - num sentido que seja favorável ao sujeito
falante. O objetivo informativo corresponde a uma finalidade de transmissão de
saber, isto é, a um fazer-saber algo, que é desconhecido, ao outro. O objetivo
persuasivo consiste para o sujeito falante em fazer-crer alguma coisa ao
interlocutor/leitor, ou seja, fazê-los aderir às verdades e crenças defendidas por este
sujeito falante. E, finalmente, o objetivo sedutor corresponde ao propósito de
controlar o outro pelo viés do agrado, levando-o a produzir comportamentos
discursivos resultantes da emotividade e do imaginário, ou seja, o objetivo sedutor
significa fazer-prazer ao outro.
Para demonstrarmos os objetivos comunicativos fundamentais a um projeto
de fala e as competências às quais estes objetivos conduzem, propomos o quadro
seguinte:
Quadro 6: Os objetos comunicativos e suas respectivas competências.
Assim, no contrato em estudo - a narrativa Operação Araguaia: os arquivos
secretos da guerrilha - o projeto de fala apresenta dois objetivos comunicativos:
informar e persuadir. Para retratar este importante movimento de guerrilha, o
sujeito comunicante utiliza elementos e informações, oriundos de arquivos secreto-
oficiais das Forças Armadas, arquivos aos quais, até maio de 2005
54
, nenhum livro
didático ou outro veículo de comunicação de nosso país teve acesso, justificando o
objetivo informativo. Além disso, notamos que o sujeito comunicante emprega
nomeações e qualificações
55
, representadas, em especial, por expressões nominais e
adjetivos, a fim de promover uma espécie de identificação ideológica entre leitor e
texto, ou seja, fazer o leitor crer ou, ainda, acreditar nas verdades veiculadas por
tal contrato.
54
Ano da publicação da obra em estudo.
55
Exemplificamos tais nomeações e qualificações na subseção seguinte.
PROJETO DE FALA
Objetivos Comunicativos Competências
Factitivo Fazer saber ou Fazer dizer
Informativo Transmissão de saber
Persuasivo Fazer crer
Sedutor Fazer prazer
5.1.2 O ATO DE SEMIOTIZAÇÃO DO MUNDO
Como vimos, para produzir um ato de linguagem, isto é, para semiotizar o
mundo, o sujeito comunicante (representado, situacionalmente, pelos autores da
narrativa de extração histórica em discussão Taís Morais & Eumano Silva )
transfigura-se, na situação discursiva, em um sujeito enunciador (representado,
discursivamente, por um Narrador em 3
a
pessoa, também chamado, Narrador
Onisciente), dispondo de dois espaços de organização do sentido o da tematização
e o da relação.
56
No espaço da tematização, o sujeito comunicante entrega-se a vários tipos de
estratégias linguísticas, para abordar os modos de existência dos seres do mundo
(operação de identificação [nomear/designar: substantivos]), de suas
propriedades/características (operação de qualificação [adjetivos]), de suas
mudanças de estado (operação de representação dos fatos e das ações [verbos e
advérbios]) e de sua razão de ser e de fazer (operação de explicação [operadores
lógicos]). (CHARAUDEAU, 1995, p.11)
Assim, vemos, no trecho a seguir, que o sujeito comunicante lança mão, no
espaço da tematização, especificamente, das operações de identificação/nomeação e
de qualificação/caracterização, a fim de, a princípio, construir a cena discursiva, isto
é, configurar o espaço físico (também denominado ambiente - a região do
Araguaia), em que se passam os acontecimentos narrados antes e durante a
guerrilha, entre 1972 e 1976:
"[...] O isolamento da tríplice divisa havia tempos despertava a atenção dos
órgãos de repressão. Os moradores viviam dispersos, em clareiras abertas na
selva nas quais plantavam roças ou nos poucos vilarejos. As terras férteis,
cheias de depressões e cortadas por igarapés, ofereciam boas condições para
a implantação de um movimento guerrilheiro.
A abundância de água e a mata fechada lembravam o Vietnã, inferno verde
em que soldados norte-americanos tombavam sob as armadilhas dos
vietcongues. O Araguaia permitia a navegação de pequenas embarcações de
Xambioá para o sul, e do Sítio da Viúva para o Norte. Corredeiras e
56
Enfocamos, em nosso trabalho, o espaço da tematização, a fim de se construir o sentido
discursivo dos personagens que compõem a narrativa. Os critérios de relação, por outro lado,
referem-se ao inter-relacionamento entre as partes do texto, o que foge ao âmbito desta tese.
100
cachoeiras desaconselhavam o tráfego entre os dois pontos. Os afluentes
pouco serviam para navegação na estiagem, mas na estação chuvosa barcos
de até 12 toneladas podiam deslizar pelas águas." (M & S, p.22-23)
Em outros termos: pela tematização, verificamos que as pessoas
(personas
57
) vão adquirindo, paulatinamente, as roupagens que, em seu conjunto,
constituirão os personagens envolvidos na narrativa.
5.2 A CONSTRUÇÃO DA REFERÊNCIA
5.2.1 O CONCEITO DE TEXTO
Antes de tratarmos propriamente das expressões nominais, pertinentes, nesta
narrativa, tanto à construção da imagem dos guerrilheiros-personagens quanto à
progressão dos acontecimentos, apresentamos o conceito de texto que constitui a
base para a concepção cognitiva e discursiva de referência, tal como se apresenta na
Linguística Textual, segundo a proposta de Fávero & Koch (2002, p.25):
“Trata-se, pois, de uma unidade de sentido, de um contínuo comunicativo
contextual que se caracteriza por um conjunto de relações responsáveis pela
tessitura do texto os critérios ou padrões de textualidade, entre os quais
merecem destaque especial a coesão e a coerência.”
Baseando-nos, desse modo, na expressão tessitura do texto, podemos dizer
que os elementos de coesão e de coerência representam os fios, as teias, que tecem,
entrelaçam este tecido, que é o texto.
Conforme Beaugrande & Dressler (1981), há sete critérios que garantem a
textualidade: dois deles (a coesão e a coerência internos, centrados no texto) e
cinco (situacionalidade, intencionalidade, aceitabilidade, informatividade e
intertextualidade externos, centrados no falante/escritor).
57
Houaiss (2001, p.2196) apresenta-nos as seguintes acepções para o vocábulo persona: 1. PSIC na
teoria de Carl.G. Jung, personalidade que o indivíduo apresenta aos outros como real, mas que, na
verdade, é uma variante às vezes muito diferente da verdadeira, 2. Personagem literário em que o
autor se encarna, 3. Imagem com que uma pessoa se apresenta em público.
101
Koch & Travaglia (2006, p.47) apontam-nos duas grandes modalidades de
coesão a remissiva ou referencial e a sequencial.
Ainda segundo Koch & Travaglia (ibidem, p.48), na coesão referencial,
vemos dois ou mais elementos da superfície textual que remetem a (ou permitem
recuperar) um mesmo referente, ao qual são acrescidos outros traços.
Percebemos que o conceito de coesão estava restrito, até então, à mera
remissão ou referência de elementos anteriores (anáfora) ou posteriores (catáfora).
Assim, a coesão referencial ocorria através de elementos de natureza
gramatical e lexical, especialmente, por dois mecanismos básicos:
q substituição: quando um elemento do texto é retomado por uma pro-
forma, isto é, por um pronome, um artigo, por um numeral, um
verbo, por um advérbio, por uma elipse e
q reiteração: ocorre quando o elemento é recuperado, no texto, por
meio de repetições de um mesmo item lexical ou de parte do item,
por sinônimos, por hiperônimos/hipônimos, por nomes de caráter
genérico, por expressões nominais definidas, por nominalizações.
Já a coesão sequencial faz-se, tendo em vista os procedimentos de
recorrência e de progressão.
58
De acordo com este conceito, tais elementos representavam elos sintáticos,
por meio dos quais retomavam, no caso das anáforas, os elementos referenciais
estáveis, isto é, sem mudança de sentido.
Vejamos o trecho:
“Pequim, janeiro de 1966
Uma rajada de vento frio soprou do lado de fora do avião. Do alto da escada
as primeiras imagens do Oriente pareciam um sonho para Michéas.”
(M & S, p.28)
“A firmeza dos apertos de mão das autoridades no aeroporto fez Michéas
sentir-se um verdadeiro chefe de Estado, orgulhoso por merecer a confiança
58
Não abordamos, de forma detalhada, a coesão sequencial, pois ela não é o foco de nosso trabalho.
102
do partido. Ativista desde a juventude, entrou para a clandestinidade por
fazer parte das listas de procurados. Usou vários codinomes. Em Goiânia, era
Michel. Chegou à China como Mário, mas ganhou o apelido de Zé Minhoca
em uma partida de futebol. Virou Zezinho.” (M & S, p.29)
Neste trecho, o Eu-enunciador utiliza as seguintes expressões nominais
anafóricas correferenciais diretas, por substituição (Michéas > Michel > Mário >
Zezinho > o apelido de Zé Minhoca) e por descrições nominais (um verdadeiro
chefe de estado e ativista desde a juventude), a fim de construir o ethos da
coragem e o da liderança, responsáveis pela composição do guerrilheiro-
personagem Michéas. Na verdade, observamos que as anáforas por substituição, até
certo ponto, descaracterizam o HOMEM Michéas, para inseri-lo, na trama, agora,
como um combatente da guerrilha. Já as anáforas por descrições nominais
representam o desejo do personagem de envolver-se na vida política de seu país.
Verificamos, dessa forma, uma instabilidade referencial do referente
Michéas, a partir da análise dos elementos referenciais anafóricos acima, devido à
necessidade de interpretação sintático-semântica desses elementos em relação ao
referente. Pois, recorremos não só à coesão e à coerência, mas também ao contexto
(tanto o sócio-histórico e o ideológico, quanto o discursivo propriamente dito) para
estabelecermos a relação de sentido entre esses elementos anafóricos e o referente.
Notamos, portanto, que a coesão e a coerência não dependem,
exclusivamente, dos elementos textuais, visto que também se sustentam, semântico
e cognitivamente, no contexto discursivo. Como nos afirmam Mondada & Dubois
(2003, p.17):
“Os sujeitos constroem, através de práticas discursivas e cognitivas social e
culturalmente situadas, versões públicas do mundo.
[...] As categorias e os objetos do discurso pelos quais os sujeitos
compreendem o mundo não são nem preexistentes, nem dados, mas se
elaboram no curso de suas atividades, transformando-se a partir dos
contextos. Neste caso, as categorias e objetos de discurso são marcados por
uma instabilidade constitutiva, observável através de operações cognitivas
ancoradas nas práticas, nas atividades verbais e não-verbais, nas negociações
dentro da interação.”
103
Com base na instabilidade constitutiva do referente Michéas, percebemos a
diferença entre o que se entendia como referência e o que se entende, hoje, como
Referenciação, no campo da Linguística Textual. Para os estudos da Referenciação
(terminologia, atualmente, adotada), um referente, ao ser retomado por outro termo,
quase sempre apresenta mudança semântico-discursiva. Ou seja, passa pelo
processo de recategorização. Assim, pelo fato de ser instável e modificar-se na
progressão referencial, o referente recebe uma denominação distinta objeto-de -
discurso.
Chamamos o objeto-de-discurso a expressão, isto é, o produto negociado e
renegociado, entre os participantes da situação discursiva, de acordo com o seu
conhecimento partilhado de mundo. É importante destacarmos que, durante tal
negociação, os sujeitos acrescentam, retiram, modificam qualquer elemento
pertinente ao objeto-de-discurso, pois, não existe o comprometimento com a
manutenção do sentido original do referente. Daí, a instabilidade do referente, a
mudança dos conceitos de anáfora, de coesão e coerência que, agora, não se
encontram, apenas na superfície do texto, mas estão, também, centrados nos
usuários. Segundo Koch (2006, p.46-47), dentro de uma abordagem sociocognitiva
e interacionista, a coerência passará a ser vista como uma construção situada nos
interlocutores.
Mas essa instabilidade não é necessariamente constante, pois há também
processos de estabilização. Diremos, então, que o referente pode ser estável, menos
instável e instável, conforme a estratégia de Referenciação utilizada, na tessitura do
texto. O ato de nomeação é em si um ato de estabilização do referente. Mas, no caso
do emprego de expressões nominais anafóricas, para configurar a imagem dos
guerrilheiros, em geral, dar-se-á uma instabilização, ao transformá-los em
personagens.
Ainda de acordo com Koch (2003, p.83), podemos dizer que a Referenciação
possui três princípios relevantes, na construção de um modelo textual:
“1. Ativação pelo qual um referente, até então não mencionado, é
introduzido, preenchendo um nódulo (‘endereço’ cognitivo, uma locação),
na rede conceptual do modelo de um mundo textual: a expressão linguística
104
que o ‘representa’ permanece em foco na memória de curto termo, de tal
forma que o referente fica saliente no modelo,
2. Reativação um nódulo já introduzido é novamente ativado na memória
de curto termo, por meio de uma forma referencial, de modo que o referente
textual permanece saliente (o nódulo continua em foco) e
3. De-ativação ativação de um novo nódulo, deslocando-se a atenção para
outro referente e desativando-se, assim, o referente que estava em foco
anteriormente. Embora fora de foco, este continua a ter um endereço
cognitivo (locação) no modelo textual, podendo a qualquer momento ser
novamente ativado. Seu estatuto no modelo textual é de inferível.”
Notamos que o princípio de ativar referentes está articulado ao ato de referir.
Já o princípio de reativar um dado referente realiza-se, através das atividades de
remeter e retomar. Partindo desses princípios, apresentamos a distinção proposta por
Koch (ibidem, p.84), no que tange aos atos de referir, remeter e retomar:
“Sucintamente: referir é uma atividade de designação realizável por meio da
língua sem implicar uma relação especular língua-mundo; remeter é uma
atividade de processamento indicial na co-textualidade; retomar é uma
atividade de continuidade de um núcleo referencial, seja numa relação de
identidade ou não. Ressalte-se, mais uma vez, que a continuidade referencial
não implica referentes sempre estáveis nem identidade entre referentes.
Na atividade específica envolvida pela remissão, deve-se ter em conta algum
tipo de relação (de ordem semântica, cognitiva, associativa, pragmática ou de
outro tipo). A noção de remeter diz respeito a um movimento textual em que
se dão relações não necessariamente correferenciais. Assim, o fato de
progredir mediante a atividade de remeter não envolve uma retomada, já que
retomar é uma atividade particular de remissão que subentende continuidade
referencial, implicando algum tipo de relação direta, seja de identidade
material (caso da correferenciação), seja de não-identidade material (caso da
associação).”
Desse modo, verificamos que a progressão referencial é responsável pela
progressão textual. A progressão referencial, por sua vez, é produzida pela
Referenciação. Tal Referenciação ocorre, na narrativa, tendo em vista as atividades
de ativação, reativação e de-ativação de referentes. Já a reativação de elementos
textuais é realizada através de remissões e retomadas, atividades que podem ser
feitas pelas anáforas.
105
5.2.2 UMA PROPOSTA DE CLASSIFICAÇÃO PARA AS EXPRESSÕES
NOMINAIS
Conforme Koch (2004, p.244), as formas nominais anafóricas são grupos
nominais com função de remissão a elementos presentes no co-texto ou detectáveis
a partir dele. Desse modo, a anáfora pode dar-se com ou sem a retomada dos
referentes anteriormente expressos. Percebemos que, na antiga concepção de
referência, as anáforas dependiam, exclusivamente, dos elementos a serem
reconhecidos na tessitura do texto. Entretanto, nos estudos da Referenciação, as
anáforas estão articuladas, também, ao contexto e, podem ser classificadas em:
correferenciais diretas e não-correferenciais do tipo indiretas.
As anáforas diretas retomam um referente, a partir de uma correferência
entre a expressão nominal anafórica e seu antecedente textual. Estas anáforas
ocorrem por meio dos seguintes mecanismos linguístico-discursivos:
§ a repetição (total ou parcial) do antecedente,
§ sinônimos ou quase-sinônimos,
§ hiperônimos,
§ nomes genéricos e
§ descrições nominais.
No mecanismo da repetição, o núcleo da expressão nominal repete, na
íntegra ou parcialmente, o antecedente que está sendo retomado, como vemos nos
exemplos relacionados a João Carlos Haas Sobrinho, o Dr. Juca:
“A caminho da capital chinesa, Michéas fez um novo amigo. João Carlos
Haas Sobrinho, médico gaúcho, o havia impressionado desde o momento em
que se conheceram em uma praça de São Paulo. [...]
Também foi o único a saber, desde o início, que o destino final do grupo era
a Academia Militar de Pequim. O médico gaúcho preparava-se para
combater no Araguaia.” (Ex. de Repetição total) (M & S, p.39)
“João Carlos Haas Sobrinho e Dr. Juca são a mesma pessoa. [...]
Os modos gentis do Dr. Juca e a gratidão do caboclo resultaram em estreita
amizade.” (Ex. de Repetição total) (M & S, p.40)
106
“Em outra ocasião, o Dr. Juca apareceu para uma visita e encontrou Neuza
com leishmaniose no pé.” (M & S, p.92)
“Quando o casal Pedro-Tereza fugiu, o médico Juca morava em
Cachimbeiro, junto com José Francisco, Jorge e Domingos, identificado no
documento como o estudante cearense Dower Moraes Cavalcante.” (Exs. de
Repetição parcial) (M & S, p.119)
Outra forma de retomada é o emprego de expressões sinônimas ou quase-
sinônimas. Contudo, vale dizermos que a escolha lexical deste sinônimo está
condicionada não só ao gênero textual ou variedade linguística utilizada, mas
principalmente, à intenção discursiva dos sujeitos comunicante/enunciador,
envolvidos na produção textual. Apresentamos, então, os exemplos relativos aos
guerrilheiros Maurício Grabois (o Tio Mário) e Elza de Lima Monerat (conhecida,
na guerrilha, como D. Maria), guerrilheiros remanescentes do antigo Partido
Comunista do Brasil (sigla PCB), que defendia o uso da força para tomar o poder:
59
“A primeira a chegar, contam os moradores, foi Dona Maria, senhora de
idade.” (M & S, p.62)
“O barco aproxima-se da margem esquerda, encosta em um lugar
denominado Paveira. Dele desembarcam três pessoas: um homem de seus 50
e poucos anos, Mário; uma mulher, também idosa, Dona Maria; e um jovem
de feições modestas e olhos brilhantes, Joca.” (M & S, p.72)
Koch (2004, p.247-248) aponta-nos, ainda, a anáfora realizada por
hiperônimos e hipônimos (indivíduo-espécie/espécie-gênero) como uma estratégia
de referenciação bastante comum. Segundo a autora (ibidem), na retomada por
hiperônimo, percebemos um ‘menor grau’ de recategorização (ou seja, uma pequena
mudança de sentido), pois, a carga semântica de tal hiperônimo, ao ser utilizado,
ajusta-se à do antecedente. Em seguida, observemos os hiperônimos referentes a Dr.
Juca:
“O posseiro Pedro Onça visita o amigo Antônio da Helena quando chega um
estranho. Alto, magro, aparenta menos de 30 anos e se apresenta como Dr.
59
É importante lembrarmos que a divisão do antigo Partido Comunista do Brasil dá-se, em 1962,
por divergências ideológicas internas. Aliada ao discurso de Joseph Stalin, a facção liderada por
João Amazonas de Souza Pedroso (que, assume, no Araguaia, o codinome Tio Cid) é reorganizada
com o nome de Partido Comunista do Brasil, adotando, neste momento, a sigla PC do B.
107
Juca. Chegou há menos de um mês e abriu uma farmácia perto dali, rio
acima.
‘Vendemos remédios e ainda tratamos algumas doencinhas’, diz o sujeito,
branco e de óculos.’ [...]
O jeito do tal Dr. Juca também agrada Pedro Onça. Mostra-se educado e
atencioso. Parece mesmo entender de doenças. Caso precise, vai procurar o
sujeito.” (M & S, p.30)
Outro tipo de anáfora referencial direta é a que ocorre por meio de nomes
genéricos, tais como: coisa, pessoa, negócio, criatura, indivíduo. Da mesma forma
que nas expressões sinônimas ou quase-sinônimas, a seleção lexical de um nome
genérico pode estar, também, ligada à variedade linguística dos falantes, nesse caso,
os dialetos regional ou social. Baseando-nos em Koch (2004, p.250), o emprego de
“trem” (= coisa) pertence ao falar mineiro; o de “cara” (= pessoa) representa uma
gíria ou ao estilo coloquial, enquanto o emprego de “companheiro”, “camarada” (=
pessoa) remete-nos, provavelmente, a um valor semântico-discusivo de caráter
político. Vejamos, nos trechos abaixo, alguns nomes genéricos relativos aos
personagens Regina (mulher de Lúcio Petit) e Glênio Fernandes de Sá:
“‘Se a Regina não sair daqui, eu não me responsabilizo pela vida de nossa
companheira’, afirmou Sônia.” (M & S, p.46)
“Pouco depois de chegar ao acampamento, Glênio tem uma surpresa.
-se cercado pelas guerrilheiras Maria Dina, Suely, Tuca, Walquíria
e Lia. As moças cantam Parabéns pra Você, abraçam e beijam o
companheiro do Rio Grande do Norte. Glênio completa 22 anos e a
data quase lhe passou despercebida. [...]
O companheiro precisa reconhecer que tem dificuldades de
orientação’, diz o comandante.
As palavras francas do líder deixam Glênio um pouco mais
confortado.” (M & S, p.135-136)
Finalmente, mas não menos importante, temos a retomada por descrições
nominais. Este tipo de anáfora referencial consiste no uso de uma expressão,
formada por um nome, acompanhado, normalmente, de determinantes ou
modificadores (adjetivos, locuções adjetivas, artigos, numerais, pronomes
adjetivos), a fim de caracterizar o referente/o objeto-de-discurso, tendo em vista o
projeto comunicativo do produtor do texto. São exemplos de descrições nominais as
108
expressões responsáveis pela configuração do perfil discursivo dos guerrilheiros
Sônia e João Bispo Ferreira Borges, o Joca:
“[...] Gostou de Sônia desde quando a conheceu. Branca, cabelos escuros,
lábios grossos e olhos grandes, compunha um tipo bem brasileiro.”
(M & S, p.70-71)
“O barco aproxima-se da margem esquerda, encosta em um lugar
denominado Paveira. Dele desembarcam três pessoas: um homem de seus 50
e poucos anos, Mário; uma mulher, também idosa, Dona Maria; e um jovem
de feições modestas e olhos brilhantes, Joca.” (M & S, p.72)
Percebemos que, nos dois primeiros mecanismos (repetição total ou parcial
do antecedente e o uso de sinônimos ou quase-sinônimos), a retomada acontece sem
ou quase sem a recategorização do referente (isto é, sem mudança semântico-
discursiva), ao contrário dos três últimos (hiperônimos, nomes genéricos e
descrições nominais), nos quais se verifica uma recategorização do antecedente.
Em confronto com as anáforas correferenciais diretas, aqui apresentados,
dizemos que as anáforas não-correferenciais do tipo indiretas apresentam um novo
objeto-de-discurso, construído, em virtude da relação entre os elementos do próprio
contexto linguístico e, principalmente, do contexto sócio-histórico e ideológico,
passível de ser estabelecida por associações ou inferências a partir de um elemento
no texto que lhe serve como âncora. As anáforas do tipo indiretas ocorrem,
portanto, sem uma correferência e podem, ainda, ser denominadas associativas.
Eis alguns exemplos de anáforas não-correferenciais do tipo indiretas que nos
mostram a preocupação do guerrilheiro Juca em assistir à população, no que se
refere ao tratamento de doenças e à doação de remédios a fim de, na realidade,
conquistar o apoio da população local (muitíssimo carente) e ser utilizada, também,
como militantes da guerrilha, em um futuro combate contra as forças militares do
governo. Observe como o referente Dr. Juca, representado pelo substantivo
farmacêutico, é progressivamente modificado:
“João Carlos Haas Sobrinho e Dr. Juca são a mesma pessoa. Dois anos após
desembarcar em Pequim para treinar guerrilha, o médico gaúcho passa-se por
farmacêutico, enviado pelo PC do B para ajudar na implantação das bases
109
para a revolução. No Araguaia, ficou responsável tanto pela saúde dos
militantes como pela assistência à população. [...]
Mas o dono da farmácia manteve em segredo a verdadeira profissão, a
militância e os planos de implantação da guerrilha. O PC do B preparava o
movimento armado sem conhecimento da população.” (M & S, p.40)
Na seção 6 de nosso trabalho (intitulada A CONSTRUÇÃO
SEMIOLINGUÍSTICA DOS GUERRILHEIROS-PERSONAGENS), destacaremos
outros exemplos de expressões nominais correferenciais anafóricas do tipo diretas e
as não-correferenciais do tipo indiretas, importantes para a transformação dos
guerrilheiros em objetos-do-discurso.
5.3 A CLASSIFICAÇÃO SEMÂNTICO-DISCURSIVA DOS ADJETIVOS
Como dissemos, o foco de nosso estudo encontra-se nas nomeações e
qualificações, ou seja, no comportamento semântico-discursivo das expressões
nominais anafóricas e dos adjetivos, em Operação Araguaia: os arquivos secretos
da guerrilha.
Nesta subseção, apresentaremos algumas propostas de classificação
semântico-discursiva dos adjetivos da autoria de determinados linguistas, analisando
estes vocábulos através da dicotomia objetividade x subjetividade.
1. Carneiro et al. (1992, p.31) articulam uma classificação, de base
semântica (objetivos ou subjetivos), a outra, de base textual, distribuindo assim os
adjetivos:
a) Qualificações decorrentes da opinião do sujeito enunciador (como em
dia maravilhoso):
"[...] Antônio da Dina olhou com atenção para Miguel. Sem pronunciar uma
palavra, esfregou as mãos e, olhando nos olhos do companheiro, assentiu
com a cabeça. Tinha expressão dura, compenetrada. Mesmo calado, deixava
clara a descrença no sucesso do movimento. Mas, fiel ao partido, nada dizia
para não baixar o moral dos companheiros. Com aquele gesto silencioso,
ganhou ainda mais respeito do novato.
110
A realidade na mata fez Miguel mudar de opinião em relação aos dirigentes
do PC do B. Antes de ir para o Araguaia, havia formado a imagem de
homens infalíveis e de revolucionários de grande conhecimento. Quando se
encontrou com João Amazonas, avistou sobre a mesa um exemplar de
Geopolítica do Brasil, do general Golbery do Couto e Silva.
O jovem militante se impressionou com o interesse do velho comunista pela
obra de Golbery. Amazonas demonstrava ser líder preocupado com as
questões nacionais e atualizado em relação ao pensamento da época. Naquele
momento, no Araguaia, Miguel sentia-se desamparado e sem direção a
seguir." (M & S, p.169)
b) Informações resultantes do conhecimento desse enunciador (como em
relógio francês):
"[...] A resistência contra os militares, pelo documento, parece consequência
da organização espontânea dos moradores da região. Nenhuma palavra sobre
o treinamento realizado e patrocinado durante seis anos no Bico do Papagaio
pelo PC do B. Eles se autodenominam revolucionários.
As forças guerrilheiras conclamam o povo a resistir à odiosa ditadura
militar. Rejeitam o rótulo de marginais, contrabandistas e assaltantes de
banco, alardeado pela repressão. Apontam como inimigos os grandes
magnatas, os grileiros e os gringos norte-americanos, ocupantes de vastas
extensões de terras no Norte e no Nordeste. [...]
O texto não estabelece distinção entre militantes do PC do B em treinamento
de guerrilha e moradores alheios ao movimento. Muitos habitantes
perseguidos pelo Exército fugiram para as matas do Pará, Goiás e Maranhão.
Formaram destacamentos armados para combater os soldados da ditadura."
(M & S, p.170-171)
c) Caracterizações produzidos, ao mesmo tempo, a partir do
conhecimento do enunciador e dos dados observados no próprio objeto
(como em relógio azul):
"[...] Considerava Lúcio um homem honesto, puro, vibrante e idealista.
Muito inteligente, o mais velho dos irmãos Petit gostava de ler e escrever
poesias. Regina se lembrava de um verso:
'Se caio preso, quem me trará você através das grades?' [Grifo dos autores.]
(M & S, p.55)
Com base na classificação dos adjetivos em objetivos ou subjetivos, dizemos
que os do tipo qualificações apresentam um conteúdo subjetivo e necessitam, por
isso, de uma maior explicitação, fazendo o texto progredir. Esses adjetivos são
111
chamados subjetivos. Já os adjetivos dos outros dois tipos possuem um conteúdo
semântico fechado em si mesmo e, dessa forma, não geram progressão no texto. Daí
serem denominados objetivos.
2. Kerbrat-Orecchioni (1980) classifica os adjetivos, primeiramente, em
objetivos e subjetivos. Os subjetivos, por sua vez, distinguem-se em avaliativos e
afetivos. Os avaliativos são ainda tipificados em não-axiológicos e axiológicos.
Os adjetivos avaliativos não-axiológicos são construídos, a partir de uma
avaliação qualitativa ou quantitativa do objeto denotado pelo substantivo que
esses adjetivos determinam. Além disso, o emprego de tais adjetivos está
diretamente ligado a uma dupla norma: uma, interna, referente ao objeto ao qual se
atribui a qualidade e outra, específica do falante, em virtude do que ele considera ser
subjetivo. Vejamos, então:
"Pouca gente sabe, mas Nélio e Rosa se conhecem desde antes de entrar para
o Exército. A mãe do cabo, Olindina, e a irmã, Matilde, frequentavam a casa
dos avós do tenente. Anos depois, os dois se encontrariam no quartel e iriam
juntos para a floresta perseguir comunistas. Agora estão ali conversando
quando, de repente, Rosa olha na direção da trilha e se espanta.
'Olha ali', diz ao chefe da missão.
Nélio volta-se para o rumo apontado pelo amigo e vê dois homens. Um,
negro, alto e forte; o outro, jovem, magro e branco." (M & S, p.152)
Embora esses adjetivos não expressem, propriamente, um juízo de valor ou
um compromisso afetivo do sujeito, notamos que seu emprego está relacionado às
idéias de qualificação/quantificação que cada falante possui. Daí, quando dizemos,
por exemplo, Esta casa é grande , percebemos que o uso do adjetivo está articulado
não só ao tamanho em si do objeto denotado, mas também à noção de grandeza que
o sujeito traz consigo. Observemos o fragmento:
"Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, comanda o destacamento. Mineiro
de Passa Quatro, nascido em 27 de abril de 1938, é um dos mais populares
militantes do PC do B no Araguaia. Vive na área desde 1966. Fez o CPOR -
Centro Preparatório de Oficiais da Reserva. Estudou Geologia na antiga
Tchecoslováquia. Muito forte, tem quase dois metros de altura e calça 48."
(M & S, p.99)
112
No trecho acima, o sujeito comunicante/enunciador utiliza, inicialmente, o
nome adjetivo forte que, intensificado pelo advérbio muito, constroi a imagem de
fortaleza, em torno do guerrilheiro Osvaldão. Vale destacar que o próprio nome do
guerrilheiro Osvaldo, ao ser empregado com o acréscimo do sufixo -ão (que indica
aumento de tamanho, grandeza), já nos aponta uma pessoa de elevada estatura, de
porte físico robusto, um indivíduo com enorme força física. Ainda nesse trecho,
vemos que o uso do adjetivo numeral determinativo dois (articulado ao nome
substantivo metros e intensificado, por sua vez, pelo advérbio quase) e do numeral
substantivado 48 (que acompanha o verbo transitivo direto calça) não se dá de
forma gratuita. Pois, ao lançar mão desses vocábulos, o sujeito
comunicante/enunciador deseja enfatizar as características físicas/os dotes atléticos
de Osvaldão, com a intenção de super-estimar o guerrilheiro, transformando-o em
uma espécie de Super-Man da guerrilha:
"Instrutor de combate na selva, Osvaldão desfruta de liderança inconteste
entre os companheiros. Gosta de falar, cozinhar e ajudar os amigos. Viveu
muito tempo na mata, trabalhou em garimpos e fazendas. Foi mariscador,
tropeiro, garimpeiro, roceiro e pescador. A figura do gigante negro e
prestativo fez fama no Araguaia." (M & S, p.100)
Da mesma forma que os avaliativos não-axiológicos, os avaliativos
axiológicos também têm o seu emprego dependente de uma dupla norma: a
primeira, relativa à classe do objeto ao qual se denota uma qualidade e a segunda,
que diz respeito ao sistema de valores moral, ético, estético seguido pelo falante,
como notamos a seguir:
"[...] O comunicado acusa os militares de atacar de surpresa antigos
moradores da região, de prender, espancar, destruir depósitos e incendiar
casas. Culpa a ditadura militar pela repressão abusiva em todo o País contra
camponeses, operários, estudantes, democratas e patriotas. As pessoas
agredidas, todas conhecidas, eram pessoas corretas, dedicadas ao trabalho e
amigas dos pobres. Diante do arbítrio, os perseguidos se armaram para
enfrentar o Exército, segundo o comunicado." (M & S, p.171)
"[...] Paulo mal consegue disfarçar a angústia. Treinado na China, mas
estreante em luta real, o economista gaúcho é o único comandante com
113
responsabilidade de ter no destacamento quatro recém-chegados e sem
experiência na selva. [...]
Com menos de 1,70m, forte e atarracado, procura manter a liderança sobre
os combatentes. Corajoso, costuma ouvir os mais experientes antes de tomar
decisões e gosta de demonstrar espírito combativo." (M & S, p.193)
"Muitos camponeses conheciam o Dr. Juca. O espírito de liderança do
médico causava profunda impressão em Flávio, o jovem que em 1968 foi
fotografado pela revista Manchete quando queimava uma viatura da polícia
durante os protestos pela morte do estudante Edson Luís, no Rio. Dr. Juca,
modesto e discreto, aos poucos dava lições de coragem e audácia.
Demonstrava conhecimento militar. Firmou-se como gigante no comando."
(M & S, p.223)
Já os adjetivos afetivos apontam-nos, ao mesmo tempo, uma propriedade do
objeto determinado e a reação emocional do sujeito diante desse objeto, o que
implica, de certa forma, um compromisso afetivo/emocional de tal sujeito frente ao
objeto em questão:
"Joaquina Ferreira da Silva, dona de casa de 48 anos, entrou na delegacia da
cidade e reconheceu Juca, embrulhado em um plástico preto. Confirmou com
os próprios olhos o que já se dizia pelas ruas. Lamentou o fim trágico do
médico, lembrado para sempre como homem bondoso e prestativo. Mais
tarde, Joaquina presenciou o enterro de Juca no cemitério de Xambioá."
(M & S, p.308)
"O pesar dos companheiros está registrado em um comunicado sem data
divulgado pelo comando das forças guerrilheiras. Definida como heróica e
devotada lutadora da causa do povo, a líder estudantil teve a honra e a
coragem reconhecidas pelos companheiros. Em homenagem ao exemplo da
jovem guerrilheira, o Destacamento A recebeu o nome de Helenira Resende."
(M & S, p.317)
"No primeiro aniversário dos combatentes, os comunistas querem guerra. O
comando guerrilheiro divulga um Manifesto à População no dia 12 de abril
de 1973.[...]
'A hora é de decisão. Ou se combate corajosamente pela liberdade ou se
permanece sob a mais negra tirania. Escolha o caminho da luta. Entre para
as Forças Guerrilheiras do Araguaia, empunhe o fuzil, seja um combatente do
povo.' [...]
O manifesto avalia que a valentia dos combatentes derrotou duas campanhas
das Forças Armadas. O sangue dos generosos e destemidos companheiros
mortos não ocorreu em vão." (M & S, p.401)
114
Para ilustramos melhor a classificação apresentada pelos autores
mencionados, vejamos o seguinte quadro:
Quadro 7: Classificação semântico-discursiva dos adjetivos segundo
Kerbrat-Orechioni (1980).
3. É Neves (2000, p.184-186) quem nos propõe uma classificação para os
adjetivos, dividindo-os em dois grupos, a saber:
a) Qualificadores referentes ao substantivo, determinando uma
propriedade deste que não é essencial em sua definição. Assim, esses
adjetivos expressam uma característica, em certa medida, subjetiva e
vaga:
"José Carlos, Joca, Beto e Luiz rejeitam os rótulos de marginais,
contrabandistas, assassinos e assaltantes de banco alardeados pelos
inimigos. Também recusam a classificação de 'terroristas', mas ressalvam
que reconhecem como patriotas e democratas os jovens que apelaram para o
método do terror na luta contra o regime militar. Referem-se aos ativistas da
guerrilha urbana." (M & S, p.227)
ADJETIVOS Objetivos
Subjetivos Avaliativos Não-axiológicos
Axiológicos
Afetivos
115
b) Classificadores são os que incluem o substantivo em uma categoria
qualquer, apresentando um caráter denominativo (por exemplo: sistema
filosófico, indústria alimentícia ):
"Muitos combatentes do Araguaia, explica a carta, têm curso superior ou
cursaram universidade; outros são secundaristas. Operários e camponeses
esclarecidos engrossam as fileiras dos revoltosos. Juntos, empunham armas
para dirigir a resistência contra a ditadura. Prometem lutar por um governo
verdadeiramente popular, autenticamente democrático e livre da tutela dos
monopólios internacionais, principalmente norte-americanos."
(M & S, p.227)
Por sua vez, os adjetivos qualificadores são refinados, ainda, em relação à
sua subjetividade e à semântica que expressam.
No que diz respeito à sua subjetividade , os adjetivos qualificadores
distinguem-se em:
a) Graduáveis são os que aparecem antecedidos por advérbios
marcadores do grau de superioridade (mais, muito). Enquadram-se,
também, os adjetivos formados por sufixos que indicam abundância de
qualidade, tais como, -oso, -udo e -ucha:
"No depoimento, Regilena da Silva Carvalho falou sobre os integrantes do
Destacamento C. Disse que Paulo era meio mole para dar ordens. Não tinha
voz de comando e se mostrava mais político do que militar. O vice-
comandante, Vítor, Lena avaliou como muito ativo, agitador, enérgico e
respeitado. Jaime brigava muito e vivia 'de saco cheio'. Achava-se
prejudicado pela mulher, que pensava o contrário." (M & S, p.255)
"No início de setembro, o general calcula em 57 o número de guerrilheiros
vivos. No Destacamento C, o mais atingido pela repressão, restam 13
integrantes. No A, os 23 permanecem ativos; e, no B, restam 21 combatentes.
Existe ainda a Comissão Militar." (M & S, p.261)
b) Intensificáveis são os adjetivos acompanhados por advérbios
(extremamente, escandalosamente, deliciosamente) e prefixos (-super, -
hiper), que imprimem a tais adjetivos um valor semântico de intensidade.
116
Quanto à semântica, os adjetivos qualificadores assumem os respectivos
sentidos:
a) De modalização epistêmica
60
- expressam expressam conhecimento ou
opinião do sujeito, denotando certeza/asseveração (evidente, óbvio,
certo) ou, ainda, eventualidade
61
(possível, impossível, provável):
"Certo de defender uma ideologia justa e crente na vitória contra a ditadura,
Flávio se jogou de corpo e alma na nova vida. Aos poucos, a selva deixou de
ser a barreira impenetrável, densa e misteriosa dos primeiros dias.
Transformou-se em uma amiga avarandada e frondosa, abundante em água e
alimentos." (M & S, p.99)
b) De avaliação deôntica
62
- denotam consideração de necessidade e
obrigatoriedade
63
,
c) De avaliação psicológica os adjetivos exprimem propriedades
definidoras do substantivo, tal como se relacionam com o sujeito em
direção ao enunciador (1
a
pessoa) ou ao objeto (3
a
pessoa);
d) De avaliação de propriedades intensionais
64
- apresentam propriedades
que descrevem o substantivo, relacionadas às noções de qualidade e
quantidade. No que se refere à qualidade, classificam-se os adjetivos em
eufóricos, disfóricos ou neutros. Já, em relação à quantidade, os
adjetivos são denominados, a princípio, neutros e
60
Adj. 1. Relativo a epistema ou episteme (conhecimento ou saber como um tipo de experiência);
puramente intelectual ou cognitivo, 2. Subjetivo, 3. Cognitivo. Cf. Houaiss (2001, p.1180).
61
Para esta classificação, não encontramos exemplos de adjetivos, na narrativa de extração histórica
em estudo.
62
Referente à deontologia que, por sua vez, representa o conjunto de deveres profissionais de
qualquer categoria profissional minuciados em códigos específicos.
63
Não há exemplos de adjetivos relacionados a esta classificação, visto que eles são utilizados,
intencionalmente, a fim de construir a imagem heróica dos personagens-guerrilheiros.
64
Relativo à intensidade.
117
e) De autenticação - qualificam o substantivo como legítimo em seu uso.
Sendo assim, os adjetivos são denominados epilinguísticos.
65
Após a apresentação e o cotejo dessas propostas, adotamos, em nosso
trabalho, a tipificação desenvolvida por Kerbrat-Orecchioni (1980), visto que
trabalha com esta classe de palavra, respeitando o seu contexto aplicado e por não se
mostrar tão minuciosa como a de Neves. Esta última, embora, talvez, seja mais
completa, apresenta maior grau de complexidade e teorização, gerando dificuldades,
por exemplo, para o professor em sua aplicação em atividade docente.
5.4 A CONCEPÇÃO DE ETHOS
Para falarmos a respeito do ethos, apresentaremos uma digressão à Retórica
de Aristóteles, que considera o ethos a mais importante das três provas
desenvolvidas pelo discurso: logos, ethos e pathos.
Podemos dizer que o logos refere-se à argumentação/ao discurso
propriamente ditos, isto é, representa o lugar em que se constroi o ethos. Esse lugar
é evidenciado, por exemplo, através das escolhas léxico-gramaticais efetuadas pelo
sujeito comunicante/enunciador, em uma dada situação discursiva.
Aristóteles (1964), em sua Retórica, aponta-nos dois sentidos diferentes,
com vistas a definir o termo ethos, a saber:
um, de sentido moral e fundado na ideia de honestidade (em grego
epieíkeia), que nos remete a atitudes e virtudes, tais como benevolência
ou equidade e
outro, de sentido neutro ou objetivo (do grego héxis), relativo a hábitos,
modos e costumes ou características.
65
São os que suspendem o desenvolvimento do assunto para tratar dos próprios recursos da língua.
Cf. Travaglia (2001, p.34).
118
Já o pathos representa todas as paixões e afetos despertados nos
ouvintes/leitores (em situações comunicativas dialógicas ou monológicas).
Aristóteles (ibidem) apresenta-nos, ainda, três condições básicas, a fim de o
orador/o enunciador inspirar confiança ou, como nos diz Charaudeau (1996), dar
credibilidade à sua fala/ao seu discurso, que são: a) se seus argumentos e
conselhos são sábios e razoáveis, b) se argumentam honesta e sinceramente e c)
se são solidários e amáveis com seus ouvintes.
Percebemos que, ao estabelecer essa tripartição para os meios do discurso
(em logos, ethos e pathos) e considerando a honestidade na fala do orador (como
elemento importante que contribui para a persuasão do auditório), Aristóteles
(ibidem) distancia-se dos demais retóricos de sua época. Para esses retóricos, o
ethos não representava um fator relevante à persuasão, visto que dedicavam seus
estudos a questões relacionadas aos afetos ou caracteres dos ouvintes/leitores, ou
seja, a questões externas à arte retórica propriamente ditas, relegando a segundo
plano, na visão de Aristóteles, o verdadeiro corpo da persuasão - os argumentos.
[Grifos do autor.]
66
O autor defende a tese de que não só os argumentos (o logos),
mas também o ethos e o pathos só pertencem à arte retórica, caso sejam produzidos
em um determinado ato discursivo. Para ele, é preciso que a credibilidade do
orador 'seja o efeito de seu discurso'.
Conforme Amossy (2005, p.09), todo ato de tomar a palavra implica a
construção de uma imagem
67
de si. Isto é, em qualquer atividade linguageira, o
sujeito falante irá transmitir ao interlocutor seu ethos, que poderá corresponder às
suas qualidades/características reais ou não. Na verdade, será o seu estilo de
escrever, representado, no discurso, pela sua maneira de estruturar as orações (por
períodos simples, coordenados ou subordinados, por exemplo), pelas suas escolhas
vocabulares, pelo seu conhecimento enciclopédico e por suas ideologias implícitas,
que irão construir a imagem desse sujeito ou dizer como ele é. Além de seu estilo
de escrever, destacamos outras condições, neste caso, de natureza extralinguística
66
Op.cit..
67
Neste trabalho, adotaremos ethos e imagem como sinônimos.
119
ou situacional (cf. Charaudeau 1996) que, também, se mostram pertinentes à
credibilidade do discurso do enunciador:
a) os papéis sociais, representados pelos sujeitos enunciador/destinatário,
na situação discursiva - quem são estes sujeitos ?,
b) o conhecimento linguístico de que eles dispõem;
c) os saberes, isto é, o conhecimento de mundo compartilhado por eles e
d) as intenções ou os objetivos comunicativos do locutor/escritor, na
produção do ato de linguagem e os do ouvinte/leitor, na construção do
sentido discursivo (na interpretação) do texto produzido.
Assim como Aristóteles, Maingueneau (apud AMOSSY, 2005, p.31), que é a
opção teórica deste trabalho, também defende a visão de um ethos não-dito
explicitamente, mas mostrado:
"O que o orador pretende ser, ele o dá entender e mostra: não diz que é
simples ou honesto, mostra-o por sua maneira de se exprimir. O ethos está,
dessa maneira, vinculado ao exercício da palavra, ao papel que corresponde a
seu discurso, e não ao indivíduo 'real', (apreendido) independente de seu
desempenho oratório: é portanto o sujeito da enunciação uma vez que
enuncia que está em jogo aqui." [Grifo nosso.]
Além disso, Maingueneau (2005, p.86) desenvolve a noção de ethos,
articulando-a à de cena da enunciação que, por sua vez, se subdivide em cena
englobante, cena genérica e cenografia.
A cena englobante diz respeito ao tipo de discurso, concedendo-lhe um
caráter pragmático. Daí, temos os discursos literário, religioso, filosófico,
jornalístico etc..
A cena genérica corresponde a um gênero ou a uma 'instituição discursiva',
como: carta, editorial, poema, crônica jornalística, bula de remédio, conto...
68
No que tange à cenografia, podemos dizer que ela se desenvolve no próprio
discurso, sendo percebida pelo ouvinte/leitor, através das estratégias linguístico-
120
gramaticais utilizadas pelo enunciador. Como nos diz Maingueneau (2005, p.99), é
a maneira de se exprimir do orador, representada no discurso pelas marcas textuais
escolhidas, que nos irão refletir o ethos desse orador. Um político, por exemplo,
pode falar ao povo, a partir de diversos lugares sociais, tais como: um homem do
povo, condoído com os mesmos problemas enfrentados pela população ("Eu
também, quando entro num avião, entrego minha sorte a Deus"
69
), um homem
experiente ou um jovem idealista. Há, portanto, de um lado, gêneros textuais cuja
cenografia é mais restrita (as listas telefônicas, as bulas de remédios...) e, de outro,
existem gêneros textuais (como os outdoors, os panfletos políticos, os discursos
proferidos na televisão ou em palanque) que, por apresentarem a intenção de
convencer/persuadir o ouvinte/leitor, lançam mão de uma cenografia variada.
Partindo, então, do conceito de ethos, defendido por Maingueneau (ibidem),
vemos que, em Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha, a cena
englobante corresponde ao discurso jornalístico-literário e a cena genérica é a
narrativa de extração histórica em estudo.
Desse modo, para construir a cenografia discursiva, os jornalistas Eumano
Silva e Taís Morais (sujeitos comunicantes) dão voz, no texto, a um narrador-
onisciente (sujeito enunciador) que, ora nos dá a impressão de fazer parte da
guerrilha (como um dos jovens estudantes/guerrilheiros envolvidos no movimento
armado), ora nos transmite a idéia de um militar infiltrado, uma espécie de agente
secreto, representado, possivelmente, na situação discursiva, pela personagem
Nílton.
70
Percebemos que o enunciador utiliza, especificamente, na construção do
ethos dos guerrilheiros/personagens, nomeações, com o emprego de expressões
nominais referenciais e adjetivos substantivados que nos irão apontar os caracteres
físicos e psicológicos, compondo o perfil das personas envolvidas nesta trama
68
Para cena genérica (denominada gênero discursivo por Maingueneau), utilizaremos a
terminologia gênero textual.
69
Frase dita pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva, em razão do medo por que passa a
população, nos vários aeroportos do Brasil, desde o trágico acidente aéreo ocorrido com o AIR-
BUS da TAM, em 17/07/2007.
121
jornalística. Verificaremos, ainda, qualificações, representadas, em sua maioria, por
adjetivos (de base nominal ou de base participial).
Com o emprego de tais nomeações e qualificações, destacamos, dentre os
ethos que emergem de Operação Araguaia, o ethos da valentia/da coragem, de
importância decisiva na cena discursiva, a fim de, até certo ponto, des-humanizar
estes jovens estudantes universitários e secundaristas brasileiros (oriundos da classe
média urbana), transformando-os em seres do discurso/ em personagens.
Subsequentes a este ethos, apontamos o ethos da força física, o ethos da
crença/da fé e o ethos da determinação que, assim como o ethos da valentia/da
coragem, revelam características positivas dos jovens guerrilheiros. Destacamos,
ainda, que, através dos ethos mencionados, o leitor, em geral, tomará conhecimento
dos fatos ocorridos, sob a ótica daqueles os quais, por defenderem a liberdade de
escolha e de pensamento em seu país, sofreram graves consequências: grande parte
pagou com a própria vida, a ponto de, mesmo hoje, em 2007, não ter recebido
sepultamento digno.
Vejamos assim:
q O ethos da valentia/da coragem
"[...] Muitos camponeses conheciam o Dr. Juca. O espírito de liderança do
médico causava profunda impressão em Flávio, o jovem que em 1968 foi
fotografado pela revista Manchete quando queimava uma viatura da polícia
durante os protestos pela morte do estudante Edson Luís, no Rio. Dr. Juca,
modesto e discreto, aos poucos dava lições de coragem e audácia.
Demonstrava conhecimento militar. Firmou-se como gigante no
comando.[...]
Ao sair da casa de uma família de camponeses, subindo a Grota Vermelha, a
50 metros da estrada, os guerrilheiros avistam um teco-teco sobre a floresta.
Contornam uma capoeira para não serem vistos. Ficam quietos, bem
escondidos pelas copas das árvores.
'Será que esse aviãozinho pensa que nos assusta?'
A pergunta de Flávio, em tom de brincadeira, quebra o silêncio. E espoca um
estardalhaço de metralhadoras. Um barulho infernal. Os guerrilheiros caíram
em uma emboscada. Deitados no chão, veem que balas cortam galhos, ramas
e talos de côco. Lascas de madeira e folha voam para todo lado.
70
Nílton era agente secreto do Centro de Informações do Exército, o CIE, enviado a Xambioá
(Goiás), em março de 1972, junto com mais quatro homens, a fim de investigar a atuação de forças
subversivas ao governo militar, na região de Goiás, Maranhão e Pará.
122
No meio do tiroteio, Juca tenta falar com os companheiros. O som da
artilharia abafa sua voz. Grita duas vezes, ninguém dá sinal de vida. Balas
varrem a mata. Consegue se fazer ouvir na terceira tentativa, em curto
intervalo de fogo.
'Flávio, Flávio! Está ferido?'
'Não, estou bem.'
'Rasteje até aqui.'
Na confusão, a alça da mochila de Flávio quebrou. O mineiro pensou em
deixar a carga para trás. Teria mais facilidade para chegar até Juca. Pensou
melhor e consertou o apetrecho. Lembrou-se do ensinamento:
'A mochila é a casa do guerrilheiro.'
O grupo se reuniu sob a chuva de balas. Jovens, inexperientes em combates,
pareciam veteranos acostumados a rajadas de metralhadora. Calmos,
seguiram a orientação do comandante.
'Vamos tentar sair; peguem a noroeste', determina Juca.
Flávio segue na frente, como guia. Tira o rumo pela bússola, anda abaixado
no chão e conduz os companheiros por 500 metros de cipoal. Só quando
param percebem um ferimento feio na perna do comandante. O médico
gaúcho escondeu de todos que, durante o combate, levou dois tiros."
(M & S, p.223-224)
Houaiss (2001, p.1697) apresenta-nos a juventude como o período da vida
do ser humano compreendido entre a infância e o desenvolvimento pleno de seu
organismo ou, ainda, como a mocidade. De acordo com o senso comum, a
juventude fase da vida humana, situada, hoje, de uma forma geral, dos 18 aos 30
anos de idade foi sempre considerada o momento da explosão, de conflitos
ideológicos, enfim, a fase da rebeldia/da contestação que ocorre, inicialmente,
contra determinados valores defendidos na família e, mais tarde, contra imposições
existentes na própria sociedade. E esta rebeldia da juventude, em nosso caso a da
juventude brasileira, ficou evidenciada, particularmente, durante os governos
militares-ditatoriais, instaurados, em 31 de março de 1964, data do Golpe contra o
governo do então Presidente João Goulart. A partir de tal data, vemos operários,
membros de partidos de esquerda e da Igreja Católica
71
, intelectuais (do cinema
72
,
da música
73
e da literatura
74
), professores universitários e, em sua maioria, jovens
71
Destacamos, pela militância política, D. Paulo Evaristo Arns (ex-Arcepisbo de São Paulo), Frei
Betto e Frei Tito.
72
Com Glauber Rocha.
73
Um emblemático movimento cultural de contestação política, iniciado no fim da década de 60,
ficou conhecido como Tropicália. Dele fizeram parte importantes compositores da MPB, como
Caetano Veloso, Gilberto Gil (hoje, Ministro da Cultura do então Governo Lula), Tom Zé...
12
3
estudantes recém-chegados às universidades de nosso país e estudantes
secundaristas, estando os últimos envolvidos em quaisquer movimentos políticos e,
a posteriori, em movimentos de luta armada (a Guerrilha do Araguaia, por
exemplo) que, de alguma maneira, pudessem reagir contra o sistema político em
vigor.
Um outro dado a ser acrescentado, em relação à juventude, é que, neste
momento da vida, segundo o senso comum, o jovem, por ser contestador, na
verdade, por acreditar na mudança do mundo, através de suas ideias e ações, sente-
se capaz de transformar tudo ao seu redor, fato que, talvez, justifique, como vemos
no trecho acima, o destemor, a audácia e impetuosidade dos jovens na narrativa.
Mais valente, todavia, reaparece o Dr. Juca que, embora fosse considerado
modesto e discreto (adjetivos axiológicos) por seus companheiros de guerrilha, com
seu espírito de liderança e sua valentia, conquista a confiabilidade entre os
guerrilheiros e, por conseguinte, legitima a sua importância não só para o grupo do
qual fazia parte e liderava (composto também pelos guerrilheiros Flávio, Gil,
Aparício e Ferreira), mas também para o movimento revolucionário. Essas
características são corroboradas, como vemos no trecho citado, em um momento de
inesperado ataque das forças consideradas inimigas, especificamente, por três
atitudes/ações:
1
a
) quando, após um intenso tiroteio e tentar falar com seus companheiros,
Dr. Juca grita duas vezes, ninguém dá sinal de vida,
2
a
) ao perguntar se Flávio estava ferido, pede que este venha até ele,
mediante a seguinte ordem - 'Rasteje até aqui '. e
3
a
) com outras duas ordens ('Vamos tentar sair; peguem a noroeste'), como
nos sinaliza o enunciador, através do verbo determina, na oração determina ele.
Apesar de grande parte da guerrilha ser composta por jovens,
cronologicamente falando (na faixa etária de mais ou menos 18 aos 30 anos),
74
Na Literatura, temos o jornal O Pasquim que, com irreverência e capacidade de seus escritores e
cartunistas, soube, em diversos momentos, escapar dos olhares da forte censura imposta na época.
Dentre esses escritores e cartunistas, identificamos: Henfil, Ziraldo...
124
considerados inexperientes em combate (inexperientes = adjetivo axiológico),
notamos que as atitudes audaciosas, combativas, como as vividas pela personagem
em discussão, conduzem-nos a um novo olhar sobre essas pessoas, um olhar que os
compara/os coloca em posição de igualdade junto a (Por que não?!) outras
personalidades da História Nacional (por exemplo, Antônio Conselheiro, líder da
Revolta de Canudos) herói que, tal qual os guerrilheiros, também deu a sua vida em
prol da libertação do povo brasileiro. Essa comparação pode ser explicada, porque
os guerrilheiros sofrem todos os ataques típicos de uma guerra (rajada de
metralhadora, chuva de balas), mas conseguem sair desta situação (O grupo se
reuniu sob a chuva de balas.), mantendo-se calmos (adjetivo de caráter afetivo) e,
ainda, seguindo a orientação do comandante Juca ('Vamos tentar sair; peguem a
noroeste'). Segundo o enunciador, atuam como veteranos (adjetivo axiológico, que
denota larga experiência de alguém, no exercício de determinada atividade).
q O ethos da força física
"A base do Destacamento B fica perto do rio Gameleira, região do povoado
de Santa Cruz, Pará. Os guerrilheiros moram em três casas de madeira,
cobertas com folhas de babaçu. Plantam milho, arroz, banana e outras frutas.
Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, comanda o destacamento. Mineiro de
Passa Quatro, nascido em 27 de abril de 1938, é um dos mais populares
militantes do PC do B no Araguaia. Vive na área desde 1966. Fez o CPOR -
Centro Preparatório de Oficiais da Reserva. Estudou Geologia na
Tchecoslováquia. Morou no Rio e foi campeão carioca de boxe pelo
Botafogo. Muito forte, tem quase dois metros de altura e calça 48." (M & S,
p.99)
Além da impetuosidade/coragem presentes em Dr. Juca, apontamos,
também, a força física, como um dos traços significativos, para a construção da
imagem deste personagem. Em relação à guerrilha, destacamos o combatente
Osvaldão que, a começar por seu nome (no qual é acrescido o sufixo -ão, indicador
de grandeza), já nos leva a pensar em um homem, cujo corpo é bem desenvolvido.
Vemos que os dotes físicos de Osvaldão são atestados, em Operação Araguaia,
através da expressão correferencial anafórica direta dois metros de altura (por uma
descrição nominal): "Muito forte, tem quase dois metros de altura e calça 48".
125
Percebemos, no entanto, que a personagem não possui, exatamente, dois metros de
altura. Na verdade, é o nome advérbio quase que, articulado ao adjetivo
determinativo dois, irá produzir, no leitor, um espanto/uma admiração pelo
exuberante condicionamento físico do guerrilheiro. Os dotes físico-atléticos de
Osvaldão são, ainda, ratificados, tendo em vista o uso do numeral substantivado 48,
ligado ao verbo transitivo direto calça.
Em virtude de sua dotação física, capaz de suportar todo o tipo de trabalho,
especialmente aqueles considerados mais pesados, Osvaldão passa a simbolizar, ao
mesmo tempo, a força e a versatilidade dentro da guerrilha, ao desempenhar
inúmeras tarefas na floresta, conquistando a admiração de seus companheiros de
luta, e, desse modo, transformando-se em um gigante negro (expressão nominal
correferencial anafórica direta formada por descrição nominal). Portanto, são
relacionados à sua figura os seguintes substantivos, em função sintática de
Predicativos do Sujeito, que estabelecem uma referência por anáforas do tipo
indiretas: mariscador, tropeiro, garimpeiro, roceiro e pescador.
Com os atributos mencionados (a força física e a versatilidade no trabalho),
o guerrilheiro Osvaldão vai adquirindo, ao longo da trama, status de
personagem/objeto-do-discurso, a ponto de ser considerado pelas Forças Armadas
um grande problema. Vale ressaltar que, nesta expressão nominal anafórica do tipo
indireta, mais precisamente, o adjetivo avaliativo não-axiológico grande já não se
refere apenas ao porte atlético de boxeador da personagem, ou seja, não diz respeito
ao seu tamanho exatamente, mas sim, ao perigo que o guerrilheiro representava
para as forças militares, visto que exercia um forte poder de liderança junto aos
demais combatentes, em razão de seu tamanho, de sua simpatia e, não nos
esquecendo, de seu conhecimento a respeito de táticas militares (Osvaldão fez parte
do CPOR Centro Preparatório de Oficiais da Reserva). Assim, o adjetivo grande
que, a princípio, apresenta no sintagma um sentido axiológico (denotando
grandeza), assume, em vista das outras características da personagem, um sentido
subjetivo de caráter afetivo. São, ainda, articuladas à figura de Osvaldão, as
expressões anafóricas não-correferenciais do tipo indiretas inimigo traiçoeiro e
126
sanguinário e ameaça permanente, especialmente, os adjetivos subjetivo-afetivos
traiçoeiro, sanguinário e permanente:
"Mais de três meses depois de se embrenhar na floresta junto com os
companheiros de partido, Osvaldão se transforma em grande problema para
as Forças Armadas. Depois da morte do cabo Rosa, aumenta a fama do
guerrilheiro negro, que chama a atenção pelo tamanho, pela simpatia, pela
liderança junto aos moradores e pelos conhecimentos militares. Ele começa
a virar lenda entre os colonos do Araguaia. Nas tropas, provoca medo.
Representa o inimigo traiçoeiro e sanguinário, com poderes para surgir a
qualquer momento do meio das árvores. Uma ameaça permanente."
(M & S, p.225)
Observemos, agora, o ethos da crença/ da fé.
q O ethos da crença/da fé
"[...] A firmeza dos apertos de mão das autoridades no aeroporto fez
Michéas sentir-se um verdadeiro chefe de Estado, orgulhoso por merecer a
confiança do partido. Ativista desde a juventude, entrou para a
clandestinidade por fazer parte das listas de procurados. Usou vários
codinomes. Em Goiânia, era Michel. Chegou à China como Mário, mas
ganhou o apelido de Zé Minhoca em uma partida de futebol. Virou Zezinho.
[...]
Ao chegar a Pequim mais de 22 anos depois, o patriota Michéas teve a
impressão de realizar o desejo de criança. Em nome da liberdade, fazia parte
de um grupo disposto a pegar em armas para enfrentar a ditadura militar.
Queria voltar ao Brasil para ajudar a implantar uma guerra popular, como na
China de Mao Tsé-Tung. [...]
O militante sentiu nos ombros o peso da responsabilidade. Lutaria por uma
revolução comunista, mesmo com risco de morrer em combate ou ser preso."
(M & S, p.29)
Neste trecho, o enunciador deixa pistas/marcas linguísticas, através da
expressão anafórica direta orgulhoso por merecer a confiança do partido (formada por
descrição nominal), em especial, pelos adjetivos avaliativos axiológicos orgulhoso e
deslumbrado, a fim de construir para os leitores a imagem de uma pessoa
apaixonada por um país a China que, naquele momento histórico mundial (década
de 60), significava, para a juventude politizada (a qual compunha o PC do B), um
modelo de nação a ser seguido por outros países, em especial, pelo Brasil.
Observamos, ainda, que a emoção vivida pela personagem, inicialmente chamada de
127
Michéas, é ratificada, através da expressão anafórica direta verdadeiro de Estado
(por descrição nominal), em que o substantivo Estado aparece grafado com a sua
inicial em maiúscula, fato que indica um grande respeito e amor àquele país.
Percebemos que esta emoção é comparada à de uma criança (por exemplo, quando
ganha de seus pais um presente muito esperado), tendo em vista o emprego da
expressão correferencial anafórica indireta em destaque: "[...] o patriota Michéas
teve a impressão de realizar o desejo de criança." Destacamos, ainda, as expressões
nominais correferenciais anafóricas diretas o patriota Michéas (formada por
repetição parcial do antecedente Michéas), o militante (por expressão sinônima) e
ativista desde a juventude (por meio de descrição nominal), expressões que
configuram o perfil de alguém, verdadeiramente, apaixonado e envolvido pela causa
política de seu país, a ponto de, como o enunciador sinaliza a nós, morrer em
combate ou ser preso.
q O ethos da obstinação
"A família cresceu unida para enfrentar as dificuldades da falta de José
Bernardino. O circunspecto Lúcio, o mais velho, destacava-se nos estudos e
estimulava os irmãos a também obterem bom rendimento escolar.
Adolescente, trabalhou em uma beneficiadora de feijão para colaborar com as
despesas da casa.
Lúcio e Jaime pescavam lambaris e pegavam rãs para complementar a
mistura das refeições. Com a ajuda de um tio, Lúcio mudou para Itajubá,
onde cursou o científico e entrou para a escola de Engenharia. Tornou-se
líder estudantil.” (M & S, p.142)
Dentre os guerrilheiros-personagens observados, nesta narrativa de extração
histórica, destacamos Lúcio Petit. Oriundo de uma família humilde, Lúcio
75
(cujos
irmãos Jaime e Maria Lúcia também faziam parte da guerrilha) ainda adolescente, já
se dedicava ao trabalho, a fim de ajudar a mãe com as despesas da casa, devido à
morte prematura de seu pai. Em virtude não só disso, mas principalmente, pelo fato
de ser o filho mais velho de Dona Julieta, Lúcio toma para si a responsabilidade
75
Falaremos, com maior profundidade, acerca das características responsáveis pela construção da
imagem de Lúcio Petit, na seção 6., que se intitula A CONSTRUÇÃO SEMIOLINGUÍSTICA DOS
GUERRILHEIROS-PERSONAGENS.
128
acerca da criação de seus irmãos, visto que, apesar das dificuldades apontadas,
incentivava seus irmãos a, assim como ele, obterem bons resultados nos estudos.
Para construir a imagem do guerrilheiro-personagem Lúcio, que se
caracterizava como uma pessoa séria, convicta de suas decisões, enfim, como
alguém com senso de responsabilidade extremado, o sujeito enunciador emprega a
expressão nominal O circunspecto Lúcio, especificamente, o adjetivo avaliativo
axiológico circunspecto (de circunspecção que, por sua vez, indica seriedade,
reserva, discrição...). Podemos dizer que a ideia de seriedade/responsabilidade é
corroborada, na narrativa, com o emprego da expressão nominal anafórica direta o
mais velho (que se dá por descrição nominal): “O circunspecto Lúcio, o mais velho,
destacava-se nos estudos e estimulava os irmãos a também obterem um bom
rendimento escolar.”(M & S, p.142) Normalmente, o filho mais velho, o
primogênito, passa a ser considerado uma referência para os outros irmãos. No caso
de Lúcio Petit, isso se tornou mais forte, devido à morte precoce de seu pai,
obrigando o futuro guerrilheiro a assumir determinadas responsabilidades que não
eram próprias para a sua idade.
Ao lado dessa seriedade/responsabilidade extremadas, havia, também, um
Lúcio que, ao olhar de sua companheira Regina, mostrava-se um homem puro,
gostava de ler e escrever poesias:
“[...] Tinha conhecido Lúcio durante as férias em uma praia do litoral de São
Paulo e se apaixonou pelo rapaz brilhante, dinâmico e apreciador de
poesia.” (M & S, p.45)
“Considerava Lúcio um homem honesto, puro, vibrante e idealista. Muito
inteligente, o mais velho dos irmãos Petit gostava de ler e escrever poesias.
Regina se lembrava de um verso:
‘Se caio preso, quem me trará você através das grades?” (M & S, p.55)
Dessa forma, para configurar este outro Lúcio (sensível, apreciador de
poesia), que se contrapõe ao primeiro (O circunspecto Lúcio), o sujeito enunciador
utiliza as expressões correferenciais anafóricas diretas rapaz brilhante, apreciador
de poesia e um homem honesto (construídas por descrições nominais) e os
adjetivos avaliativos axiológicos dinâmico, puro, idealista e inteligente e o adjetivo
subjetivo-afetivo vibrante, todos de calor semântico-discursivo positivo.
129
6. A CONSTRUÇÃO SEMIOLINGUÍSTICA DOS GUERRILHEIROS-
PERSONAGENS
Nesta seção, realizamos uma análise semiolinguística das expressões
nominais utilizadas, no processo de Referenciação, responsável pela configuração
imagética dos guerrilheiros-personagens Lúcio Petit, Dina, Flávio, Dr. Juca, Pedro
Albuquerque e Osvaldão em Operação Araguaia: os arquivos secretos da
guerrilha.
Observamos, então, na narrativa de extração histórica em estudo, dois
sujeitos comunicantes os jornalistas Eumano Silva e Taís Morais que,
transfigurados, nesta cena enunciativa, em um sujeito enunciador representado por
um Narrador-Onisciente (talvez um militar infiltrado entre os guerrilheiros),
tematizam o conflito armado, ocorrido na região do Araguaia, entre 1972 e 1976.
Podemos dizer que a tematização ocorre por meio de recursos vários. Em nossa
análise, utilizamos as operações de nomeação (através das expressões
correferenciais anafóricas diretas e expressões não-correferenciais do tipo indiretas)
e as operações de qualificação.
76
Conforme Charaudeau (1996), são três as condições que fundamentam um
ato de linguagem - o Saber, o Poder e o Saber Fazer. As duas primeiras condições
garantem a legitimidade ao discurso realizado pelos sujeitos
comunicantes/enunciador e a última o Saber Fazer que representa não só a
articulação das duas primeiras, mas principalmente um elemento sine qua non para
a construção da credibilidade do discurso desses sujeitos.
76
Para discorrermos, especificamente, acerca das operações de qualificação, utilizamos a
classificação semântico-discursiva de Kerbrat-Orecchioni (1980).
130
Com base, ao mesmo tempo, no domínio de um saber específico que
possuem os parceiros envolvidos na situação discursiva (as motivações político-
ideológicas acerca da guerrilha do Araguaia) e nos papéis sócio-profissionais
desempenhados por estes parceiros (ambos são jornalistas e pesquisadores e, Taís
Morais, em especial, é filha de um ex-oficial do Exército o poder), eles lançam
mão do material linguístico (nesse caso, as nomeações e as qualificações
77
- o saber
fazer), com vistas a:
a) reproduzir/narrar para o leitor um dado acontecimento (quer tenha algum
conhecimento científico dos fatos narrados, quer nunca tenha ouvido
falar sobre a guerrilha) determinado acontecimento objetivo
informativo e
b) apresentar ao leitor os estudantes envolvidos no conflito, transformando-
os em personagens (objetos-de-discurso), ao ressaltar, de forma positiva,
suas características físicas e psicológicas, até então consideradas comuns
- objetivo persuasivo.
Percebemos, então, que os objetivos informativo (intenção incipiente, nesse
ato de linguagem) e o persuasivo, aliados às condições de saber, poder e,
principalmente, de saber fazer, irão nortear a construção discursiva dos sujeitos
comunicantes, no sentido de obter credibilidade. Diremos, nos termos da teoria da
Referenciação, que os objetos-de -discurso devem parecer ser objetos-da -
realidade.
Vemos que o uso maciço de determinadas expressões nominais, em sua
maioria, de valor semântico-discursivo positivo (a serem analisadas em seguida),
conferem às atitudes das pessoas retratadas, na narrativa, um caráter todo especial.
Isto pode fazer o leitor abandonar, em certa medida, o lado humano de tais pessoas,
considerando-as, agora, personagens.
77
Nas operações de qualificações, observamos os adjetivos de base nominal, participial e as
locuções adjetivas.
131
Analisamos nomeações e qualificações realizadas pelos sujeitos
comunicantes, transfigurados em um enunciador, para construir, na cena discursiva,
o ethos da determinação, o ethos da coragem, o da liderança, o ethos da força
física, ethos da crença/da fé e o da traição, enfim; os ethos que configuram os
guerrilheiros Lúcio Petit, Dina, Flávio, Dr. Juca, Pedro Albuquerque e Osvaldão.
6.1 A DETERMINAÇÃO DE LÚCIO PETIT
Lúcio Petit encarna sobremaneira o ethos da determinação.
A expressão nominal destacada no fragmento, a seguir, promove a ativação
de um referente que pode ser associado a um valor de “seriedade”:
O circunspecto Lúcio, o mais velho, destacava-se nos estudos e
estimulava os irmãos a também obterem bom rendimento escolar.”
(M & S, p.142)
Durante as férias em uma praia do litoral de São Paulo, Lúcio Petit conheceu
Regina, na verdade, Lúcia Regina de Souza Martins, formada em Obstetrícia pela
Universidade de São Paulo. No início do relacionamento, Regina apaixonou-se por
um Lúcio que, aos olhos dela, parecia um homem encantador, tendo em vista as
expressões nominais correferenciais anafóricas diretas (realizadas por descrições
nominais), relacionadas ao personagem: rapaz brilhante, dinâmico e apreciador de
poesia, em específico, com os adjetivos subjetivo-afetivos brilhante e dinâmico:
“[...] Tinha conhecido Lúcio durante as férias [...] e se apaixonou pelo rapaz
brilhante, dinâmico e apreciador de poesia.” (M & S, p.45). Observamos que,
apesar da circunspecção/sisudez caracterizadas na personalidade de Lúcio (facetas
que, talvez, se justifiquem em virtude de sua origem social humilde e pelo
falecimento prematuro de seu pai), percebemos, ainda assim, certa sensibilidade na
alma desta personagem, com o emprego da expressão nominal apreciador de
poesia, que denota alguém com sentimentos/uma pessoa emotiva.
No entanto, quando Lúcio (com sua companheira) chega à guerrilha, em
1970, já não é mais o rapaz brilhante, dinâmico e apreciador de poesia, ou, ainda,
o engenheiro promissor, dando lugar, novamente, à sua seriedade/circunspecção,
132
devotadas, a partir deste momento, aos ideais defendidos pelo partido; enfim, aos
ideais da guerrilha. A recategoriação do referente pode ser comprovada, no texto,
através da expressão nominal anafórica direta sisudo e dogmático militante
(formada por descrições nominais) e do adjetivo subjetivo-afetivo insensível que,
em função de Predicativo do Sujeito, articula-se ao sintagma nominal o
companheiro:
“[...] O relacionamento com Lúcio, engenheiro formado no interior de Minas
Gerais, também piorou. O companheiro passava dias fora de casa para
cumprir as tarefas do partido e mostrava-se insensível às reclamações. No
meio de tanta gente, havia pouco espaço para a vida amorosa do casal. As
mudanças abalaram o amor da jovem paulista. [...]
No Araguaia, o engenheiro promissor transforma-se em um sisudo e
dogmático militante do PC do B. Regina pouco sabe do partido e mudou
para o Araguaia com a intenção de realizar trabalho social ao lado do
companheiro. Imaginava uma cidade pequena, com um mínimo de estrutura,
mas agora se depara com a mata fechada e isolada no mundo.” (M & S, p.45)
Com base, então, nas expressões nominais, nos adjetivos axiológicos e nos
subjetivo-afetivos utilizados, na construção da imagem do guerrilheiro, notamos que
a sua personalidade é marcada, até certo ponto, por uma dubiedade , pois, ora Lúcio
Petit se mostrava severo/insensível, ora demonstrava sensibilidade/emoção em suas
atitudes. Ainda assim, vemos que a seriedade é uma característica dominante na
persona de Lúcio Petit, classificando-o, na narrativa, como uma personagem do
tipo plana.
A seguir, apresentamos quadros resumitivos com as expressões nominais
que ocorrem, por correferência direta, e as expressões nominais que se dão, por
referência indireta ou associação, expressões responsáveis, predominantemente,
pela caracterização psicológica do personagem Lúcio Petit. Em seguida,
observamos os adjetivos, classificando-os em objetivos, avaliativos não-
axiológicos, avaliativos axiológicos e subjetivo-afetivos (KERBRAT-
ORECCHIONI, 1980), articulados a este personagem. E, finalmente, verificamos o
133
ethos e o tipo de personagem plana ou redonda responsáve is por elevar tal
guerrilheiro à categoria de personagem.
78
QUADRO 8: As expressões nominais relativas a Lúcio Petit.
PERSONAGEM
EXPRESSÕES
NOMINAIS
DIRETAS
EXPRESSÕES
NOMINAIS
INDIRETAS
Lúcio Petit da Silva
Circunspecto Lúcio
Rapaz brilhante,
dinâmico;
Apreciador de
poesia;
Engenheiro
promissor;
Sisudo e dogmático
militante
78
Apresentamos estes quadros resumitivos, ao final da análise de cada uma das personagens
selecionadas.
134
QUADRO 8.1: Os adjetivos relacionados ao personagem Lúcio Petit.
PERSONAGEM
ADJ.OBJ.
ADJ. AVAL.
NÃO-
AXIOLÓGICOS
ADJ. AVAL.
AXIOLÓGICOS
ADJ. SUBJETIVO-
AFETIVOS
Lúcio Petit da
Silva
Brilhante,
Dinâmico;
Sensível
QUADRO 8.2: A tipificação do ethos de Lúcio Petit.
PERSONAGEM
ETHOS
TIPO DE
PERSONAGEM
Lúcio Petit da Silva
Da determinação
Plana
6.2 A CORAGEM DE DINA
Dinalva Oliveira, chamada por seus companheiros de Dina, ao lado de
Osvaldão, é caracterizada como o braço forte/corajoso da guerrilha. Nascida no
vilarejo de Argoim, que se localiza no município de Castro Alves (interior baiano),
Dina mudou-se para a cidade de Salvador, a fim de cursar a carreira de Geologia. E
é, na faculdade, que Dina conhece o seu futuro marido, Antônio Carlos Monteiro
135
Teixeira, também estudante de Geologia. Ainda na universidade, Dina e Antônio
demonstram simpatia às causas do movimento estudantil, tornando-se ativistas a
este movimento. Após formarem-se, os dois seguem para o Rio de Janeiro e, mais
tarde, para o Araguaia.
No exemplo seguinte, podemos perceber como os sujeitos comunicantes
reúnem a referência à origem humilde de Dina (construída discursivamente, através
do adjetivo objetivo-informativo sertaneja) e à sua formação acadêmica (por meio
da expressão nominal anafórica direta a geóloga baiana, formada por descrição
nominal), contribuindo, de forma decisiva, não só para a boa adaptação da militante
à vida na mata, mas principalmente para o seu desempenho e o de todos os
guerrilheiros, durante as tarefas ocorridas na selva:
“[...] Sertaneja, Dina tinha experiência de roça, sabia sobreviver no mato.
A formação acadêmica facilitava o reconhecimento de lugares pelas cores
das rochas, pela inclinação do terreno, pelo tipo de solo e vegetação. Dina e
Antônio fizeram um mapa de toda a área, usado pelos três destacamentos. O
refúgio, diziam, estava na região do Xingu, melhor lugar para os
guerrilheiros se protegerem caso houvesse necessidade de retirada diante de
ataques militares. [...]
A geóloga baiana virou referência de combatente para outras militantes
enviadas ao Araguaia pelo PC do B.” (M & S, p.114)
Percebemos que, além de sua experiência de roça e de seus conhecimentos
técnicos, Dina, também, impressionava os demais companheiros de guerrilha com a
sua força física:
“[...] A força física de Dina impressionava. Certa vez, a militante Lúcia, a
baianinha, viu Dina chegar com um saco de arroz nas costas cerca de 60
quilos.” (M & S, p.114)
Essa força física da guerrilheira Dina chama a atenção do leitor, porque, até
meados da década de 60, a mulher era educada pela família apenas para o
casamento e a criação de seus filhos; enfim, para as tarefas do lar, jamais,
relacionando à figura feminina um trabalho pesado, como o realizado por Dina,
supostamente, adequado, em nossa cultura, à figura do homem. A escolha da
136
expressão nominal força física, para referir uma personagem feminina, provoca
certo impacto.
Assim, destacamos a capacidade de adaptação à vida na mata, o preparo
científico e as suas habilidades físicas, características que se mostram constantes, ao
longo da narrativa, considerando a construção semiolinguística da personagem,
como do tipo redonda. Para enfatizar os caracteres da guerrilheira-personagem, já
apontados (a sua formação acadêmica e a sua força física) e, desse modo, construir
os ethos da força física e da coragem (que compõem a personagem Dina),
encontramos no discurso do narrador tanto as expressões nominais não-
correferenciais indiretas temperamento forte e fama de valente, destemida quanto
os adjetivos avaliativos axiológicos dedicada e trabalhadora (na função de
Predicativos do Sujeito elíptico/do substantivo Dina):
“Dina despertou a atenção dos militares. Tinha fama de valente, destemida.
Dizia-se que acertava tiro em limão jogado no ar. Baiana, nasceu em
Argolim, vilarejo do município de Castro Alves, entre Feira de Santana e
Itaberaba. Dedicada e trabalhadora, mudou para Salvador e estudou
Geologia. [...]
[...] De temperamento forte, levou o discreto marido a ser conhecido como
‘Antônio da Dina’. Tornou-se uma das poucas guerrilheiras sem dificuldades
de adaptação ao trabalho na selva.” (M & S, p.114)
Apresentamos, agora, os quadros resumitivos correspondentes à personagem Dina.
QUADRO 9: As expressões nominais relacionadas à personagem Dina.
PERSONAGEM
EXPRESSÕES
NOMINAIS
DIRETAS
EXPRESSÕES
NOMINAIS
INDIRETAS
Dinalva Oliveira da
Silva
A geóloga baiana;
A formação acadêmica;
A força física de Dina;
Temperamento forte;
Fama de valente,
destemida
137
QUADRO 9.1: Os adjetivos articulados à Dina.
PERSONAGEM
ADJ.OBJ.
ADJ. AVAL.
NÃO-
AXIOLÓGICOS
ADJ. AVAL.
AXIOLÓGICOS
ADJ.
SUBJETIVO-
AFETIVOS
Dinalva Oliveira
da Silva
Dedicada;
Trabalhadora
QUADRO 9.2: O ethos de Dina.
PERSONAGEM
ETHOS
TIPO DE
PERSONAGEM
Dinalva Oliveira da Silva
Da força física
Da coragem
Redonda
6.3 A VALENTIA DO GUERRILHEIRO FLÁVIO
Ciro Flávio Salazar de Oliveira, conhecido por todos da guerrilha como
Flávio, nasceu em Araguari, em Minas Gerais e estudou Arquitetura, na
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Já em 1968, estava ligado a questões
político-partidárias, pois foi fotografado pela revista Manchete, ao queimar uma
138
viatura da polícia, durante manifestações pela morte do estudante Edson Luís de
Lima Souto.
79
A publicação desta foto obrigou Flávio a refugiar-se. Ainda assim,
foi preso por distribuir panfletos contra a ditadura militar. Por isso, o guerrilheiro
passou a viver de forma clandestina, dirigindo-se para o Araguaia, em 1970.
Na construção semiolinguística da personagem que se apresenta como
guerrilheiro Flávio, identificamos o ethos da valentia/da coragem e o da
crença/fé.
Na guerrilha, o militante, em função de seu desejo por uma nação justa e
igualitária, dedica-se a atividades, até então inconcebíveis para a sua vida, como
veremos a seguir:
“Em dois anos de Araguaia, Flávio aprendeu a se deslocar na selva.
Conhece a Serra das Andorinhas, os rios, as grotas e as trilhas. Consegue
cruzar trechos de 20 quilômetros sem se perder. Enquanto caminha, pensa
no quanto mudou de vida.” (M & S, p.98)
Para tematizar o guerrilheiro-personagem em discussão, o sujeito enunciador
utiliza, também, os verbos e as locuções verbais destacados, responsáveis pela
representação das ações, em um dado espaço físico-temporal (a região do Araguaia,
entre os anos de 1970 e 1972, antes da chegada dos militares à região). Essas ações
mostram para o leitor todo o sacrifício por que passou Flávio, durante os dois
primeiros anos em que viveu no Araguaia, a fim de não só se tornar um autêntico
membro da guerrilha, mas principalmente lutar com coragem, ou seja, defender os
seus ideais, colocando, até mesmo, a sua própria vida em risco.
80
Além disso, observamos que o enunciador emprega, também, as expressões
adjetivas certo de defender uma ideologia justa e crente na vitória contra a
ditadura com o objetivo comunicativo de enfatizar os caracteres de coragem, de
79
O estudante do Instituto Cooperativo de Ensino, localizado no Rio de Janeiro, foi assassinado por
um policial militar, em uma invasão da Polícia Militar ao galpão, no qual se discutia, em
assembleia, a demora do governo estadual, na construção do restaurante universitário.
80
Embora não sejam os verbos e as locuções verbais objeto de estudo de nosso trabalho, pensamos
ser oportuno destacá-los, visto que, ao demonstrar as peripécias por que passou Flávio nos
primeiros contatos com a mata, reforçam para os leitores o ethos de valentia/ de coragem, ethos que
compõe este guerrilheiro.
139
determinação e de amor inconteste à pátria, os quais compõem o ethos da
personagem:
Certo de defender uma ideologia justa e crente na vitória contra a
ditadura, Flávio se jogou de corpo e alma na nova vida. Aos poucos, a selva
deixou de ser a barreira impenetrável, densa e misteriosa dos primeiros dias.
Transformou-se em uma amiga avarandada e frondosa, abundante em água
e alimentos.” (M & S, p.99)
Tais caracteres são, ainda, ratificados, na narrativa, através do sintagma
verbal se jogou de corpo e alma, que nos remete a uma entrega apaixonada a
determinada pessoa ou, no caso da personagem, à defesa de uma postura ideológica.
Flávio, então, passa a encarar, aos poucos, as armadilhas da selva, de
maneira diferente: a princípio, o narrador emprega a expressão nominal anafórica
direta barreira impenetrável, densa e misteriosa (formada por descrição nominal),
expressão que apresenta adjetivos de caráter semântico-discursivo negativo (pois
denotam uma visão inicial do personagem em relação à mata) e, mais tarde, utiliza a
expressão nominal amiga avarandada, frondosa e abundante (formada por
descrições nominais) da qual fazem parte adjetivos subjetivo-afetivos de natureza
positiva (visto que, a partir deste momento, Flávio já possui o domínio do lugar).
Podemos dizer, ainda, que as expressões correferenciais anafóricas diretas
em destaque ganham pertinência, no contexto discursivo em estudo, pois
evidenciam-nos a relação de companheirismo entre Flávio e a selva, contribuindo,
indiretamente, para a caracterização deste personagem a ser classificado como do
tipo redonda.
A seguir, apresentamos os quadros relacionados ao personagem Flávio.
140
QUADRO 10: As expressões nominais articuladas ao guerrilheiro Flávio.
PERSONAGEM
EXPRESSÕES
NOMINAIS
DIRETAS
EXPRESSÕES
NOMINAIS
INDIRETAS
Ciro Flávio Salazar
de Oliveira
Certo de defender uma
ideologia justa;
Crente na vitória contra
a ditadura;
Barreira impenetrável,
densa e misteriosa;
Amiga avarandada,
frondosa e abundante
QUADRO 10.1: As adjetivações relacionadas ao personagem Flávio.
PERSONAGEM
ADJ.OBJ.
ADJ. AVAL.
NÃO-
AXIOLÓGICOS
ADJ. AVAL.
AXIOLÓGICOS
ADJ.
SUBJETIVO-
AFETIVOS
Ciro Flávio
Salazar de
Oliveira
Certo de
defender
uma
ideologia
justa;
Crente na
vitória
contra a
ditadura
141
QUADRO 10.2: O ethos do guerrilheiro Flávio.
PERSONAGEM
ETHOS
TIPO DE
PERSONAGEM
Ciro Flávio Salazar de
Oliveira
Da valentia
Da coragem
Da crença
Da fé
Redonda
6.4 A LIDERANÇA DO DR. JUCA
João Carlos Haas Sobrinho, nascido em São Leopoldo (RS), formou-se
dico pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mais conhecido por Dr.
Juca, o médico gaúcho chegou ao Araguaia, após dois anos de treinamento, junto
com outros catorze guerrilheiros, dentre eles, Michéas (também chamado
Zezinho).
81
No início dos anos de 1970, João Carlos foi enviado pelo PC do B ao
Araguaia, a princípio, com a missão de cuidar da saúde da população, concedendo-
lhe assistência médica adequada.
Na verdade, a missão do médico gaúcho, na guerrilha, era realizar um
trabalho social junto aos moradores, a fim de construir as bases de implantação de
uma guerrilha rural.
Desse modo, ao desembarcar na região dos Caianos (no sudeste do Pará), o
médico gaúcho, caracterizado, na narrativa, pelas expressões nominais
correferenciais diretas o sujeito, branco, de óculos (realizadas por nomes genéricos
81
Este treinamento foi realizado, na China, entre 1966 e 1970, em preparação à guerrilha no Brasil.
142
e por descrições nominais) e pelos adjetivos axiológicos (alto, magro) abre uma
farmácia, apresentando-se já como Dr. Juca aos posseiros Pedro Onça e Antônio da
Helena:
O posseiro Pedro Onça visita o amigo Antônio da Helena quando chega um
estranho. Alto, magro, aparenta menos de 30 anos e se apresenta como Dr.
Juca. Chegou há menos de um mês e abriu uma farmácia perto dali, rio
acima.
‘Vendemos remédios e ainda tratamos algumas doencinhas’, diz o sujeito,
branco e de óculos. ‘Tem alguns companheiros que moram comigo e
também podem ajudar em caso de necessidade’, acrescenta com simpatia e
sem cerimônia.” (M & S, p.30)
Para conquistar a confiança e a credibilidade dos moradores, João Carlos
dedica-se, completamente, ao tratamento de doenças tropicais que, na época, tanto
afligiam a população mais carente daquela região, tais como a malária e a
leishmaniose:
“Falante e brincalhão, Pedro Onça tornou-se popular. Um dia, quando
voltava para casa, sentiu os efeitos da malária e caiu doente enquanto estava
na casa de Antônio da Helena. O corpo pegava fogo. Lembrou-se de quando
ficou de cama na casa da irmã e teve medo de morrer. Havia poucas
alternativas de ajuda.
Pedro Onça mandou chamar o Dr. Juca.” (M & S, p.32)
“[...] No dia em que recebeu o recado sobre a doença de Pedro Onça, Juca
atendeu de pronto. Examinou o paciente, aplicou remédio e deu soro. A
melhora foi rápida. O caboclo caçador disse que não tinha como pagar. Era
difícil obter dinheiro na região. Juca respondeu que não havia problema,
receberia quando fosse possível, ‘o importante é a sua saúde’.” (M & S, p.40)
Observamos que, além da formação acadêmica e da sua competência no
trabalho com essas doenças (tendo em vista o uso das expressões nominais por
referência indireta) educação refinada, várias línguas e os modos gentis do Dr.
Juca o médico gaúcho possui uma delicadeza natural no lidar/ no relacionamento
com as pessoas do lugar, ratificada, na história, através da expressão nominal
realizada pela repetição parcial do referente (Dr. Juca) o jeito do tal Dr. Juca e
143
dos adjetivos subjetivo-afetivos educado, atencioso, gentil e prestativo (de caráter
positivo), em função de predicativos do sujeito:
O jeito do tal Dr. Juca também agrada Pedro Onça. Mostra-se educado e
atencioso. Parece mesmo entender de doenças. Caso precise, vai procurar o
sujeito.” (M & S, p.30)
“[...] Algum tempo depois, João revelou que pertencia ao PC do B. Gentil e
prestativo, demonstrava educação refinada e falava várias línguas. Fazia
contatos com a rede de apoio fora do Brasil e resolvia problemas de
passagem e hospedagem. Também foi o único a saber, desde o início, que o
destino final do grupo era a Academia Militar de Pequim. O médico gaúcho
preparava-se para combater no Araguaia.” (M & S, p.39)
Os modos gentis do Dr. Juca e a gratidão do caboclo resultaram em estreita
amizade.” (M & S, p.40)
Vemos que a referência à dedicação aos posseiros (no que diz respeito à
saúde destes) e aos modos gentis do médico transformam o personagem
(inicialmente, caracterizado, de maneira impessoal, através das expressões nominais
anafóricas diretas um estranho, o sujeito, branco, de óculos) num personagem
especial para a população, isto é, numa espécie de porta-voz não só das
necessidades do povo do Araguaia, mas principalmente das ideias revolucionárias
defendidas pelo partido, a tal ponto de ser identificado, na narrativa, pela expressão
nominal o médico Juca (que, sem o título de doutor, denota mais proximidade):
“A casa de Pedro e Tereza fica em Cigana. Outro militante, Vítor, vive com
eles. Quando o casal Pedro-Tereza fugiu, o médico Juca morava em
Cachimbeiro, junto com Zé Francisco, Jorge e Domingos, identificado no
documento como o estudante cearense Dower Moraes Cavalcanti.” (M & S,
p.92)
Assim, tais caracteres compõem os ethos da liderança e da bondade (que
configuram o guerrilheiro-personagem João Carlos Haas Sobrinho) e apresentam
uma constância, no decorrer dos fatos narrados, o que nos leva a classificar esta
personagem como do tipo redonda.
Seguem os quadros relacionados ao personagem João Carlos Haas Sobrinho.
144
QUADRO 11: As expressões nominais relacionadas ao personagem Dr.
Juca.
PERSONAGEM
EXPRESSÕES
NOMINAIS
DIRETAS
EXPRESSÕES
NOMINAIS
INDIRETAS
João Carlos Haas
Sobrinho
Um estranho,
O sujeito,
branco, de
óculos;
O médico Juca
Educação refinada
;
várias línguas,
Os modos gentis do
Dr. Juca;
O jeito do tal Dr.
Juca
QUADRO 11.1: As adjetivações relativas a Dr. Juca.
PERSONAGEM
ADJ.OBJ.
ADJ. AVAL.
NÃO-
AXIOLÓGICOS
ADJ. AVAL.
AXIOLÓGICOS
ADJ. SUBJETIVO-
AFETIVOS
João Carlos
Haas Sobrinho
Alto,
Magro
Educado,
Atencioso;
Gentil;
Prestativo
145
QUADRO 11.2: A classificação do ethos de Dr. Juca.
PERSONAGEM
ETHOS
TIPO DE
PERSONAGEM
João Carlos Haas
Sobrinho
Da liderança
Da bondade
Redonda
6.5 PEDRO ALBUQUERQUE NETO, O TRAIDOR
Filho de comunistas, Pedro Albuquerque Neto participou, ativamente, da
militância política de nosso país, estando entre os mais de mil presos do Congresso
da União Nacional dos Estudantes (UNE), realizado em Ibiúna, interior de São
Paulo, em fins dos anos 60. Devido à perseguição sofrida, passou a viver de forma
clandestina, antes de viajar para o sudeste do Pará.
Desse modo, Pedro Albuquerque e sua esposa Tereza Cristina (codinome
Ana) deixam São Paulo, em direção ao Araguaia, sem saberem, verdadeiramente, o
destino final desta viagem. No início de 1971, o militante Pedro e sua esposa Tereza
chegam à região de Cigana. Somente no primeiro de trabalho na mata, Pedro
Albuquerque e Tereza são informados acerca do lugar e das motivações de estarem
ali, deixando-a revoltada, como vemos, através dos adjetivos subjetivo-afetivos de
valor semântico-discursivo negativo (inconformada e irada):
“[...] Ana mostra-se in conformada assim que bota os pés na floresta.
‘Eu não sabia que vinha para uma guerrilha, eu vou sair daqui”, diz a Pedro,
‘aqui eu não fico’”. [...]
“Na roça, ao olhar para Ana, Pedro via seu desespero. Irada, ela batia o facão
no chão e repetia, para ela mesma, em voz baixa: ‘Não fico, não fico, não
fico!” (M & S, p.44)
146
Para construir seu plano de fuga, Tereza dispõe-se, apenas, a participar dos
treinamentos militares e outras atividades que exigem um contato bastante intenso
com a floresta.
Percebemos que a insatisfação de Ana atinge seu grau máximo, quando ela
engravida. Principalmente, ao saber que a orientação do partido, nesses casos, é o
aborto.
Mesmo atuando na militância política há dez anos, Pedro opta por ficar junto
de sua esposa e os dois resolvem abandonar a guerrilha, levando consigo poucas
coisas, dentre elas, um rádio e o par de alianças. A atitude do militante já nos
configura o ethos da traição, identificado, na narrativa (através das expressões
correferenciais anafóricas, realizadas por descrições nominais militante
disciplinado, marido apaixonado, dividido entre a lealdade ao partido e a revolta
da mulher, em específico, do adjetivo subjetivo-afetivo dividido), que sinalizam a
instabilidade em que se encontram os pensamentos do gue rrilheiro:
Militante disciplinado, mas também marido apaixonado, Pedro se vê
dividido entre a lealdade ao partido e a revolta da mulher.” (M & S, p.44)
Viajam, então, para o Piauí, onde recebem a ajuda de um casal de amigos.
Mais tarde, Ana e Pedro seguem para o Ceará. Ana fica, com sua família, no Recife.
Em junho de 1971, Pedro Albuquerque chega a Fortaleza, vivendo na
clandestinidade, até fevereiro do ano seguinte. No entanto, ao procurar o
Departamento de Ordem Política e Social (o DOPS), com o objetivo de retirar sua
carteira de identidade e voltar à faculdade de Direito (na Universidade Federal do
Ceará), Pedro é detido por tal órgão do governo, em 17 de março de 1972. Além
disso, é importante destacarmos que a prisão de Pedro Albuquerque ocorre, mais ou
menos, um mês antes de a equipe de militares, liderada pelo Tenente Nílton,
desembarcar em Xambioá, com a missão de investigar uma possível atuação de
subversivos no local. Portanto, a presença dos militares, no Araguaia, representa um
fator determinante, no sentido de constituir o ethos da traição a partir do ethos da
indecisão (= falta de firmeza ideológica) vinculado, fortemente, à imagem do
147
guerrilheiro Pedro Albuquerque, não só no momento histórico-político em
discussão, mas também até os nossos dias.
Nesse processo de categorização e de recategorização da personagem Pedro
Albuquerque, verificamos, ao longo desta narrativa de extração histórica, certas
expressões nominais correferenciais diretas (realizadas por meio da repetição total
do antecedente pelo prisioneiro e do uso de nomes genéricos coisas
desconexas), determinados adjetivos objetivos (torturado, humilhado) e os
adjetivos subjetivo-afetivos (desorientado, nervoso), que transformam Pedro
Albuquerque (a priori, considerado o principal delator da guerrilha) numa espécie
de vítima, após ser submetido às primeiras sessões de tortura. Isso se explica,
talvez, pelo fato de ser o primeiro guerrilheiro detido pelos órgãos de inteligência do
governo:
“Na Polícia Federal, foi torturado e humilhado. [...]
O prisioneiro negou pertencer ao PC do B, mesmo desmentido durante
acareação com José Sales Oliveira, outro militante preso.” (M & S, p.53)
“No dia da chegada, uma equipe é designada para reconhecer os locais às
margens do Araguaia apontados pelo prisioneiro no depoimento. Pedro não
colabora. Mostra-se desorientado e nervoso. Diz coisas desconexas.”
(M & S, p.92)
Acrescentamos ao fato mencionado a gravidez de Tereza, argumento
muitíssimo utilizado pelos militares, durante as torturas sofridas por Pedro, com
vistas a obterem todas as informações possíveis e chegarem, com êxito, aos
guerrilheiros. Tal argumento colaborou, sobremaneira, para a defesa de uma
imagem vitimizante de Pedro Albuquerque, percebida, na narrativa, por meio das
expressões nominais referenciais diretas (que ocorrem por repetição parcial do
antecedente o comportamento alucinado de Pedro e por descrições nominais
um desesperado, olhos vidrados, fixos em coisas que não existem na realidade,
amarrado em estacas, pendurado no teto), das expressões anafóricas
correferenciais indiretas (nos delírios de torturado, sinais de loucura, confusão
mental, como cachorro, momentos de terror, pressão psicológica, um animal, um
burro), especialmente, dos adjetivos objetivos (fixos, vidrados, amarrado, nu,
148
pendurado) e dos seguintes adjetivos subjetivo-afetivos (paranóico, desequilibrado,
lúcido):
“Nos delírios de torturado, Pedro vê um garoto entrar na cela com uma caixa
de gilete na mão. Na realidade, não sabe como conseguiu as lâminas. [...]
Levado ao hospital, recupera-se. Mas passa a mostrar-se paranóico. Fica
cinco dias sem ir ao banheiro, com medo de ser obrigado a beber a urina. [...]
Os delírios aumentam. Pedro acaba amarrado na cama depois de gritar
‘bando de fascistas’ como um desesperado. As agressões físicas deixaram
Pedro desequilibrado. Mesmo quando está lúcido, mostra sinais de loucura.
Aproveita-se da confusão mental para despistar os agentes. Obrigado a
reconhecer os locais nos quais treinou guerrilha, caminha pelas trilhas sem
virar-se para os lados, com olhos vidrados, fixos em coisas que não existem
na realidade. [...]
O comportamento alucinado de Pedro confunde os militares, mas não o
salva de torturas e humilhações. [...] Tem de comer como cachorro, o prato
no chão, sem ajuda das mãos.
Em outro ponto da mata, viveu momentos de terror no chão de um buraco.
Deitado, amarrado em estacas, debateu-se com ratos e cutias durante noites
escuras. [...]
Certo dia Pedro ouve gritos femininos na cela ao lado. Parecem urros de dor
em sessão de tortura. Um militar diz a Pedro que se trata de Tereza.
‘Bando de covardes, batendo em uma mulher!’, reage.
Não é Tereza, é pressão psicológica. [...] Na delegacia, deixam Pedro nu e
pendurado no teto. Fora da realidade, entregue aos torturadores, sente-se um
animal, um burro.” (M & S, p.96-97)
A partir das nomeações e qualificações utilizadas, percebemos uma
instabilidade em seus pensamentos militante disciplinado, marido apaixonado,
dividido entre a lealdade ao partido e a revolta da mulher (M & S, p.44). Tal
instabilidade faz o personagem abandonar a guerrilha, o que, de certa forma,
compõe os ethos da traição e da negação e, mais tarde, transforma-o em vítima
dos excessos da ditadura (que configura o ethos do sofrimento). Baseando-nos
nesses caracteres, classificamos o personagem, em voga, como do tipo plana.
Verificamos, agora, os quadros referentes ao personagem Pedro
Albuquerque.
149
QUADRO 12: As nominalizações relativas a Pedro Albuquerque.
PERSONAGEM
EXPRESSÕES NOMINAIS
DIRETAS
EXPRESSÕES
NOMINAIS INDIRETAS
Pedro Albuquerque
Neto
Militante disciplinado,
Marido apaixonado;
Dividido entre a
lealdade ao partido e
revolta da mulher;
Pelo prisioneiro;
Um desesperado;
Olhos vidrados, fixos
em coisas que não
existem na realidade;
Amarrado em estacas,
pendurado no teto
Nos delírios de
torturado,
Sinais de loucura;
Coisas desconexas;
O comportamento
alucinado de Pedro;
Confusão mental;
Como cachorro;
Momentos de terror;
Pressão psicológica;
Um animal;
Um burro
150
QUADRO 12.1: As adjetivações referentes a Pedro Albuquerque.
PERSONAGEM
ADJ. OBJ.
ADJ. AVAL.
NÃO-
AXIOLÓGICOS
ADJ. AVAL.
AXIOLÓGICOS
ADJ.
SUBJETIVO-
AFETIVOS
Pedro
Albuquerque
Neto
Torturado;
Humilhado
Fixos,
Vidrados,
Amarrado;
Nu,
Pendurado
Dividido;
Desorientado
Nervoso
Paranóico,
Desequilibra
do ;
Lúcido
QUADRO 12.2: O ethos do guerrilheiro Pedro Albuquerque.
PERSONAGEM
ETHOS
TIPO DE
PERSONAGEM
Pedro Albuquerque Neto
Da traição
Da negação
Do sofrimento
Plana
1
51
6.6 OSVALDÃO, O GIGANTE NEGRO
Mineiro de Passa-Quatro, nascido em 27 de abril de 1938, Osvaldo Orlando
da Costa, o Osvaldão, é considerado, ao lado de Dina e de Dr. Juca, um dos mais
populares militantes do PC do B, no Araguaia.
Com quase dois metros de altura, negro, muito forte e bom de papo, o
militante chamou a atenção dos moradores locais, desde a sua chegada ao sudeste
do Pará, em 1966.
Já na adolescência, Osvaldão destacou-se nas atividades realizadas: no curso
industrial básico de cerâmica, em São Paulo; formou-se técnico de máquinas e
motores, no Rio de Janeiro; no clube do Botafogo, também no Rio de Janeiro, como
lutador de boxe, tornando-se campeão carioca, neste esporte. Serviu, ainda, no
CPOR (Curso Preparatório de Oficiais da Reserva), passando à reserva como
Oficial do Exército. Mais tarde, estudou Engenharia de Minas na antiga
Tchecoslováquia.
No trecho seguinte, observamos a expressão nominal anafórica direta um
negro enorme (que representa uma descrição nominal) e os adjetivos avaliativos
não-axiológicos negro, alto e forte, responsáveis pela construção semiolinguística
do personagem:
“Ao chegar, encontram o comandante do destacamento, um negro enorme.”
(M & S, p.98)
“Nélio volta-se para o rumo apontado pelo amigo e vê dois homens. Um,
negro, alto e forte; outro, jovem, magro e branco.” (M & S, p.152)
Percebemos que a expressão nominal correferencial acima e tais adjetivos
destacam para nós, leitores, os dotes físicos de Osvaldo Orlando da Costa na
narrativa. Mais precisamente, o adjetivo avaliativo não-axiológico enorme (presente
na expressão nominal um negro enorme) apresenta uma carga semântico-discursiva
bastante forte, pois remete-nos à noção de altura/ tamanho do guerrilheiro-
personagem, poderíamos dizer, quase a um grau máximo. Além disso, vemos que o
guerrilheiro não é referido, por exemplo, como um homem grande, mas sim, com o
152
emprego da expressão nominal anafórica um negro enorme. Daí, talvez, ao
substantivo Osvaldo ser acrescido o sufixo aumentativo ão (que indica grandeza),
chamando-o, portanto, Osvaldão.
No retorno ao Brasil, Osvaldão aceita a proposta do PC do B de mudar-se
para o Sudeste do Pará e preparar a guerrilha. Sempre generoso e prestativo, fez
muitos amigos entre os guerrilheiros e os moradores do Araguaia. Quando se iniciou
a guerrilha, Osvaldão morava região da Gameleira. Dava especial atenção ao
treinamento militar realizado com os guerrilheiros e, por isso, mostrava-se crítico no
que se referia ao despreparo destes.
Desse modo, as expressões nominais anafóricas diretas a figura do gigante
negro e prestativo, instrutor de combate na selva, as palavras francas do líder
(formadas por descrições nominais) e a expressão adjetiva um dos mais populares
militantes do PC do B no Araguaia indicam-nos, em Operação Araguaia..., traços
correspondentes, talvez, da personalidade do guerrilheiro Osvaldão. Observemos o
trecho que se segue:
Instrutor de combate na selva, Osvaldão desfruta de liderança inconteste
entre os companheiros.” (M & S, p.99)
“[...] A figura do gigante negro e prestativo fez fama no Araguaia.” (M & S,
p.100)
“[...] Osvaldão o procura e diz que, naquele momento, todos devem tomar
muito cuidado.
‘O companheiro precisa reconhecer que tem dificuldades de orientação’, diz
o comandante.
As palavras francas do líder deixam Glênio um pouco mais confortado.”
(M & S, p.136)
E, finalmente, apresentamos os quadros referentes ao guerrilheiro Osvaldão.
153
QUADRO 13: As nominalizações relacionadas a Osvaldão.
PERSONAGEM
EXPRESSÕES
NOMINAIS
DIRETAS
EXPRESSÕES
NOM INAIS
INDIRETAS
Osvaldo Orlando da
Costa
Um negro enorme,
Instrutor de
combate na selva
A figura do
gigante negro e
prestativo,
As palavras
francas do líder;
Um dos mais
populares
militantes do PC
do B
QUADRO 13.1: A classificação dos adjetivos articulados a Osvaldão.
PERSONAGEM
ADJ.OBJ.
ADJ. AVAL.
NÃO-
AXIOLÓGICOS
ADJ. AVAL.
AXIOLÓGICOS
ADJ.
SUBJETIVO-
AFETIVOS
Negro;
Alto;
Forte
154
QUADRO 13.2: A tipificação do ethos de Osvaldão.
PERSONAGEM
ETHOS
TIPO DE
PERSONAGEM
Osvaldo Orlando da
Costa
Da força física
Da liderança
Redonda
155
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, analisamos como as operações de nomeação e de
qualificação, evidenciadas, em Operação Araguaia: os arquivos secretos da
guerrilha, por meio de expressões nominais correferenciais diretas e não-
correferenciais/indiretas e adjetivos, ou seja, através de elementos linguísticos que,
na narrativa de extração histórica em estudo, apresentam um valor semântico-
discursivo pessoal/subjetivo, transformam os militantes do PC do B (em sua
maioria, estudantes secundaristas e universitários oriundos das regiões Nordeste, Sul
e Sudeste de nosso país) em personagens de uma obra considerada, agora, menos
histórico-jornalística e mais literária.
Para isto, buscamos subsídios que estruturem a nossa análise nos seguintes
pressupostos teóricos: na teoria Semiolinguística de Charaudeau (1996), no conceito
de Referenciação e na classificação das expressões anafóricas correferenciais diretas
e das anafóricas indiretas adotados por Koch (2004); na tipificação dos adjetivos no
que diz respeito à carga de subjetividade por eles apresentada (KERBRAT-
ORECCHIONI, 1980) e na concepção de ethos defendida por Maingueneau (2005).
Desse modo, verificamos que a escolha da narrativa de extração histórica
Operação Araguaia , enquanto gênero textual, atende à classificação tipológica de
textos defendida por Charaudeau (2008), visto que explora, com riqueza de
elementos linguístico-discursivos, os quatro modos de organização do discurso: o
narrativo, o descritivo, o argumentativo e o enunciativo. Segundo Oliveira
(2003, p.41), o modo enunciativo tem a função de gerir os outros três, função assim
denominada, metadiscursiva. Vemos, portanto, que o modo enunciativo está
relacionado aos procedimentos/estratégias utilizados a fim de organizar o discurso.
156
Ainda assim, caso pensássemos numa escala de maior ou menor
predominância de um determinado modo organizacional do discurso,
identificamos, em Operação Araguaia, o narrativo e o descritivo que, a nosso ver,
conduzem, por sua vez, ao argumentativo. Concordamos com Charaudeau (2008,
p.111-112), quando diz que Do ponto de vista do sujeito falante, Descrever corresponde
a uma atividade de linguagem que, embora se oponha às duas outras atividades, - Contar e
Argumentar combina-se a elas.
Percebemos, então, a presença do modo narrativo através de verbos e de
locuções verbais, que reproduzem todos os passos da guerrilha na região do
Araguaia entre 1966 e 1974. Tal modo evidencia-se, na narrativa, principalmente, a
partir da segunda metade da PARTE II (A PERSEGUIÇÃO De março a
setembro de 1972), parte em que pensamos existir uma preocupação maior dos
sujeitos comunicante/enunciador em contar-nos as situações/peripécias vividas
pelos militantes.
Já o modo descritivo, que é o objeto de estudo de nossa tese, aparece, nesta
narrativa de extração histórica, tendo em vista o espaço da tematização, onde
observamos o emprego de nomeações e de qualificações, responsáveis pela
construção semiolinguística dos guerrilheiros-personagens. É necessário
destacarmos que essas nomeações e qualificações aparecem, com certo predomínio,
na primeira parte da obra (ANTECEDENTES Até março de 1972) e na segunda
parte (A PERSEGUIÇÃO De março a setembro de 1972).
No que diz respeito às nomeações utilizadas, verificamos o emprego de
expressões nominais correferenciais diretas e não-correferenciais, também
chamadas indiretas, formadas pelas categorias da língua utilizadas, tradicionalmente
utilizadas, para dar nome aos seres do mundo, classificando-os, que são: os
substantivos, os adjetivos e a locuções adjetivas. Acima de tudo, percebemos
escolhas lexicais cuidadosas, poderíamos dizer, escolhas carregadas de
intencionalidade, por parte dos sujeitos envolvidos na transação comunicativa (em
primeiro lugar, os Seres do Fazer, representados pelos autores Taís Morais e
Eumano Silva, transfigurados, no ato discursivo, em um Narrador-Onisciente), ao
relacionarem determinadas expressões nominais aos guerrilheiros-personagens em
157
discussão. Para retratar o personagem Dr. Juca, por exemplo, vemos que o sujeito
enunciador disponibiliza expressões nominais anafóricas (por referência direta ou
indireta), predominantemente, de conteúdo semântico positivo, defendendo uma
tese subjacente à narrativa em si a de que os guerrilheiros (denominados pelas
forças do governo como comunistas, pessoas perigosas, que deveriam ser banidas da
sociedade brasileira) eram pessoas honrosas, benfeitoras, preocupadas com as
necessidades e carências de nossa população.
Desse modo, em relação aos guerrilheiros-personagens estudados em nossa
tese (Lúcio Petit, Dinalva Oliveira da Silva, Ciro Flávio Salazar de Oliveira, João
Carlos Haas Sobrinho, Pedro Albuquerque Neto e Osvaldo Orlando da Costa),
verificamos, a partir das nomeações (ou seja, das expressões nominais diretas e
indiretas) e dos adjetivos (especialmente, os avaliativos não-axiológicos,
axiológicos e os adjetivos subjetivo-afetivos utilizados) de caráter semântico
positivo a composição de caracteres importantes à formação dos ethos de tais
guerrilheiros: o ethos da determinação, o ethos da força física/da coragem, o da
valentia/da coragem, o ethos da crença/da fé, o da liderança, o ethos da traição/da
negação, o do sofrimento e os ethos da força física e da coragem. Tais nomeações e
qualificações, intencionalmente escolhidas, transformam, em Operação Araguaia,
os guerrilheiros mencionados (jovens estudantes universitários e secundaristas que,
em fins dos anos de 1960, defendiam os ideais do PC do B), em sujeitos do
discurso, concedendo à obra Operação Araguaia (classificada, a priori, como
jornalística) um caráter literário.
158
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