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no centro do maior tumulto. É o inicio das alucinações
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, na qual lentamente, sucessivamente os
objetos ganham aparências estranhas, se deformam, se transformam. Ao que se seguem os
equívocos, os desprezos, as transposições de ideias que geram sensações como sons se revestindo
de cores e cores se enchendo de música, analogias que se revestem de uma vivacidade fora do
comum, e assim penetram, invadem, deprimem o espírito com seu caráter despótico.
Nesses estados, Baudelaire (1998) afirma que é comum ocorrer uma despersonalização e,
conseqüentemente, a objetividade desenvolve-se de modo tão anormal que a contemplação dos
objetos externos faz com que você esqueça a própria existência e confunda-se, em seguida, com
eles:
Seu olhar se fixa em uma árvore harmoniosa curvada pelo vento. (…) Primeiramente, você
empresta á árvore as suas paixões, seus desejos ou sua melancolia; os gemidos e as oscilações
tornam-se seus e, logo, você é a árvore. Da mesma forma, o pássaro que plana no fundo do céu
representa inicialmente o imortal anseio de planar acima das coisas humanas; mas eis que você é o
próprio pássaro. Eu o imagino sentado e fumando. Sua atenção repousara longamente sobre as
nuvens azuladas que exalam do seu cachimbo. A ideia de uma evaporação, lenta, sucessiva, eterna,
tomará conta de seu espírito, e você aplicará em seguida esta ideia aos seus próprios pensamentos,
à sua matéria pensante. Por um estranho equívoco, por uma espécie de transposição ou de
qüiproquó intelectual, você se sentira evaporando e atribuirá a seu cachimbo (no qual você vai se
sentir curvado e encolhido como o tabaco) a estranha faculdade de fumá-lo (Baudelaire, 1998, p.
37).
Este estado, que segundo Baudelaire (1998) os orientais chamam de “Kief”, já não se trata
mais de algo turbulento e tumultuoso, mas sim de um êxtase calmo e imóvel, uma resignação
gloriosa, onde há muito já não se é seu próprio mestre e, no entanto, não se sofre nenhum tipo de
aflição. A dor e a ideia do tempo desaparecem e, se às vezes ousam produzir-se, são rapidamente
transfiguradas pela fantástica sensação dominante. Toda essa experiência ocorre em um pequeno
espaço de tempo que, quando muito, ultrapassa o limite de um minuto sem, no entanto, se
prolongar demasiado. Passa-se então, com extremo esforço, um breve intervalo de lucidez antes
de ser novamente levado por outra corrente de ideias que transportará com seu turbilhão ainda
por outro minuto de nova eternidade. O homem assim embriagado vivencia uma desproporção do
tempo e do ser, que se alteram completamente pela intensidade de sensações e ideias. É como
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Segundo Baudelaire, não devemos entender o termo alucinação em seu sentido mais estrito, pois uma nuança
muito importante distingue a alucinação pura, tal como é utilizada na nomenclatura médica, da alucinação ou,
melhor, do desprezo dos sentidos no estado mental ocasionado pelo haxixe. No primeiro caso, a alucinação é súbita,
perfeita e fatal, não encontrando nem pretextos nem desculpas no mundo dos objetos externos. No segundo caso, a
alucinação é progressiva, quase involuntária, e não se torna perfeita, tornando-se madura apenas pela ação da
imaginação, isto é, ela tem um pretexto, uma raiz no meio ambiente e no tempo presente que dará início, através da
imaginação, a alucinação de formas naturais.