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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
CURSO DE MESTRADO
FERNANDA ALT FROES GARCIA
SARTRE E SEUS HERÓIS BASTARDOS:
A PRODUÇÃO DE SENTIDO NA LITERATURA COMO
ENGAJAMENTO NO TEMPO PRESENTE.
Rio de Janeiro
Junho de 2009
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1
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL
CURSO DE MESTRADO
FERNANDA ALT FROES GARCIA
SARTRE E SEUS HERÓIS BASTARDOS:
A PRODUÇÃO DE SENTIDO NA LITERATURA COMO
ENGAJAMENTO NO TEMPO PRESENTE.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro como
requisito parcial para obtenção do Título de
Mestre em Psicologia Social.
Orientador: Prof
a
. Dr
a
. Ariane P. Ewald
Rio de Janeiro
Junho de 2009
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2
Agradecimentos
A Ariane P. Ewald, minha orientadora, que, através do empenho e paixão pelo que
faz, me transmitiu a todo o momento uma vivacidade fundamental para a elaboração
deste trabalho, permitindo e estimulando sempre o caminho da libertação do pensar.
A Carolina Mendes Campos, amiga e companheira de estrada, cujas interlocuções
diárias, revisões e discussões, além de comporem essencialmente a produção deste
trabalho, tornaram sempre as angústias mais brandas e os momentos mais alegres.
A Raul Spitz, em especial, que acompanhou de perto esta trajetória, com muito
carinho, companheirismo, paciência e incentivo fundamentais em todos os
momentos.
Ao professor Luiz Damon S. Moutinho, pela sua amizade e generosidade intelectual,
que se traduz por sua constante disponibilidade e atenção.
A minha família, em especial à minha mãe Lilian Alt, pelo amor, grande apoio e
companheirismo que foram fundamentais na minha trajetória; à minha irmãzinha
Carol, pela paciência com a irmã que “vive estudando”; à minha avó Lili, pelo amor e
inspiração como professora; à minha tia Raquel Alt, por sempre acreditar e investir
em mim com muito carinho; e ao meu pai, Roberto Fróes Garcia, cuja vida breve
deixou muitas saudades.
Aos meus amigos, principalmente a Vanessa Hacon e Cristina Maria pelas
conversas acadêmicas, a Gilvane Bispo pelo carinho e apoio, e Frederico Heeren e
Marcelo Alt pela ajuda efetiva e disponibilidade.
Aos colegas da pós-graduação, funcionários e professores da UERJ, pelas dicas,
incentivo e ricas discussões.
Aos alunos da UFRJ, cujo entusiasmo me incentiva a continuar neste caminho.
A CAPES pelos auxílios concedidos, os quais ajudaram significativamente a
realização deste trabalho.
3
Goetz - Todos os filhos legítimos podem gozar da terra sem pagar. Não tu.
Não eu. Desde a minha infância, olho o mundo pelo buraco da fechadura: é
um belo ovinho muito cheio, onde cada um ocupa seu lugar que lhe foi
assinalado. Posso afirmar-te, porém, que nós não estamos lá dentro.
Ficamos de fora.
Sartre, O Diabo e o bom Deus.
Não é perseguindo a eternidade que nos tornamos eternos: não seremos
absolutos por termos refletido nas nossas obras alguns princípios
descarnados, suficientemente vazios e nulos para passarem dum século a
outro, mas porque combatemos apaixonadamente na nossa época, porque
a amamos com paixão e porque decidimos perecer juntamente com ela. Em
resumo, a nossa intenção é concorrer para produzir uma mudança na
sociedade que nos cerca.
Sartre, Apresentação de Les Temps Modernes.
4
RESUMO
O engajamento de Jean-Paul Sartre em seu tempo foi sem dúvida uma das maiores
expressões do papel do intelectual no século XX. O filósofo francês quebrou as
barreiras das disciplinas tradicionais e criticou as teorias clássicas em diversas áreas
do pensamento, dentre estas a psicologia, fazendo-se como um tipo “bastardo” de
intelectual, que se volta contra sua própria cultura. Seu grande objetivo, que
sustentava todo este pensamento crítico, era procurar meios menos engessados e
mecanizados para se pensar o modo de ser do homem e meios menos idealizados
ou utilitaristas para se pensar o papel da literatura na sociedade. Considerado o
escritor engajado por excelência, Sartre se estabeleceu como figura representante
da união entre literatura e política, que vinha sendo recosturada, após um longo
período de distância, desde a época do pré-guerra na Europa. Diante de um
pensador que permite tais diálogos e ultrapassamentos de fronteiras, este trabalho
teve como objetivo estabelecer conexões entre o campo da psicologia social e o
pensamento sartreano para refletir sobre a literatura como possibilidade de
questionamento do mundo em que vivemos. O ponto de partida foi uma
compreensão da proposta do engajamento literário de Sartre enquanto um
fenômeno situado, que deve ser entendido como pertencente à época do apogeu
existencialista no pós-guerra francês. Para isso, fez-se necessário discutir a tradição
francesa do papel do intelectual, do escritor e suas relações com a política na arena
pública, além de uma breve análise deste período que se caracterizava justamente
por suas “guerras” político-literárias. Porém, o engajamento de Sartre pôde ser
pensado para além de seu manifesto situado, isto é, procurei pensar no sentido do
engajamento sartreano, que se mostrou como uma forma de entender a literatura
através de uma relação autor e leitor que compartilham um mundo em comum.
Neste caminho, busquei pensar esta relação como um engajamento no tempo
presente, onde o cotidiano ressignificado pela narrativa literária pode ser
questionado por esta mesma ferramenta que, por isso mesmo, acaba por instigar
uma realidade estabelecida. A literatura de Sartre mostra-se representativa dessa
atividade questionadora por colocar em cena o que entendi como seus “heróis
bastardos”, invisíveis sociais que, por um distanciamento crítico da “comédia social”,
tornam-se os representantes das próprias contradições da sociedade em que
vivemos, e que nos apresentam pela denúncia das próprias situações em que se
encontram, um “espelho crítico” que nos remete a nossa própria situação social.
Palavras-chave: Literatura, engajamento, Sartre.
5
ABSTRACT
In his time, Jean-Paul Sartre's commitment was one of the greatest expressions of
an intellectual's role in the 20th century. The French philosopher broke down barriers
in traditional disciplines and critiqued classic theories in several different areas of
thought, including psychology, becoming a kind of intellectual “bastard child” who
turns against his own culture. The great goal underlying all this critical thinking was
the search for a less calcified and mechanized ways of thinking about mankind’s way
of being, and less idealized or utilitarian ways of thinking about literature’s role in
society. A writer considered committed by excellence, Sartre established himself as a
figure representing the union between literature and politics, an union which was
already being re-established after a long period of distance, since the pre-war days in
Europe. Before a thinker that allowed such dialogue and transgressions of traditional
boundaries, the objective of this work was to establish connections between the field
of social psychology and Sartrean thought, enabling one to examine literature as a
means of questioning the world in which we live. The starting point is an
understanding of Sartre’s literary commitment as a phenomenon situated in a specific
time and place, existing at the zenith of existentialism in post-war French thought. To
achieve this, it was necessary to discuss the traditional French roles of the
intellectual and the writer, and their relations to public politics, as well as a brief
analysis of this period, which was characterized specifically by its politic-literary
“wars”. However, Sartre’s commitment can be considered beyond its immediate
situation. I sought to consider the meaning of the Sartrean commitment as it revealed
itself, as a form of understanding literature through a relationship shared by author
and reader in a common world. Along this path I sought to consider this relationship
as a commitment in the present where every day life, given new meaning by literary
narrative, can be questioned by this selfsame tool, and so ends up shaking up an
established reality. Sartre’s literature becomes a representative of this questioning by
creating, what I understood, as his “bastard heroes”. Social invisibles, that due to a
critical distancing of the “social comedy”, become representative of our society’s
contradictions, and that become to us, because of the situation in which they find
themselves, a “critical mirror” that reveals to us our own social situation.
Keywords: Literature, commitment, Sartre.
6
SUMÁRIO
1 Introdução - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 08
1.1 Reflexões sobre uma trajetória metodológica. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 13
2 Percursos históricos do engajamento sartreano. - - - - - - - - - - - - - - - - - 18
2.1 A situação: o pós-guerra. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 19
2.2 A literatura engajada e as redefinições na distância entre literatura
e política. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 34
3 Sentidos do engajamento: em busca do tempo presente. - - - - - - - - - - - 46
3.1 Literatura e sociedade: “me dirijo ao leitor contemporâneo”- - - - - - - - - - - 47
3.2 O “vai e vem” dialético da criação literária como engajamento no tempo
cotidiano. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 53
3.3 A Literatura como contestação do tempo presente. - - - - - - - - - - - - - - - - 65
4 Literatura como expressão dos papéis sociais. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 72
4.1 O “personagem” Sartre: do escritor ao intelectual-bastardo. - - - - - - - - - - - 73
4.2 Heróis bastardos: reflexões sobre a convivência social. - - - - - - - - - - - - - - 83
4.3 Jean Genet bastardo e Outsider: um diálogo entre Sartre e
Howard Becker. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 89
4.4 Conseqüências éticas da liberdade na literatura sartreana.- - - - - - - - - - - - 98
Considerações finais. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 107
Referências Bibliográficas. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -111
7
1 Introdução.
A literatura
1
, enquanto objeto de estudo de fenômenos sociais, encontra-se
muitas vezes barrada na porta de entrada dos meios acadêmicos. Talvez pelo fato
de ser vista como algo à parte do estudo social, como uma forma de lazer que deva
ser utilizada nos momentos em que não queremos “pensar” ou quando desejamos
nos distrair das questões que estamos entrelaçados e envolvidos em nossa
existência. Isto se revela quando, relegada a segundo plano ou a um lugar
idealizado, lírico e inatingível, ou até mesmo “sacralizado”, construímos um certo tipo
de imagem ao seu redor que pode nos afastar mais do que aproximar. Deste modo,
a literatura é muitas vezes entendida como algo além da nossa realidade cotidiana,
sendo, por vezes, seu valor até mesmo medido por esta distância. Como colocado
pelo historiador Alessandro Portelli (1991), “a arte é medida pela distância de nossas
vidas” (p.282).
Porém, vemos que o estudo da obra literária pode ser muito bem-vindo em
círculos restritos ou, logicamente, nas disciplinas das Faculdades de Letras, mas
raramente a encontramos fora destes contornos. Além disso, mesmo nos ambientes
que afirmam a importância do estudo da literatura, encontramos muitas vezes a
predominância de uma visão técnica e pouco espaço para um estudo que possa
valorizar o sentido do texto. Tzvetan Todorov (2009), por exemplo, em seu livro A
literatura em perigo, critica a maneira pela qual a literatura é utilizada no sistema de
ensino francês, que prioriza os métodos de análise de uma obra de maneira a perder
1
O termo literatura é aqui utilizado no sentido de romances, novelas e contos. Creio ser importante
ressaltar este aspecto já que podemos falar de literatura quando nos referimos a textos acadêmicos,
por exemplo.
8
o sentido da própria obra. Geralmente aos alunos, em seus exames, são colocadas
questões predominantemente técnicas, como, qual a função de um elemento do livro
em relação à sua estrutura ou conjunto. Assim, estes alunos são pouco estimulados,
na visão de Todorov (2009), a pensar sobre o sentido desse elemento na obra ou
mesmo o sentido do livro com relação ao seu tempo. É por esta razão que A
literatura em perigo nos faz lembrar do leitor comum
2
, que é aquele cuja leitura
escapa a estes enquadres institucionais, pois ele não para melhor dominar um
método de ensino:
[...] mas para (nas obras) encontrar um sentido que lhe permita
compreender melhor o homem e o mundo, para nelas descobrir uma
beleza que enriqueça sua existência; (e) ao fazê-lo, ele compreende
melhor a si mesmo (TODOROV, 2009, p.33).
A partir destas reflexões, penso que existe uma relação interessante entre a
literatura e o estudo na área da psicologia social, especialmente por uma visão
fenomenológica, que ênfase justamente a produção de sentido idiossincrática e
particular, característica do modo de ser da realidade humana. Certamente não
entendo que a psicologia fenomenológica possa nos fornecer mais um método de
análise para ser aplicado à obra literária, mas sim que ela pode utilizar-se desta
última como rico instrumento de reflexão sobre este sentido estimado por Todorov
(2009) “que permite entender melhor (ou por uma via diferente) o homem e o
mundo”. Minha perspectiva neste trabalho não é utilizar a literatura como objeto de
análise técnica, mas sim como uma via diferenciada que faz parte da produção de
sentido de um mundo sob o qual colocamos em questão o sentido da nossa própria
existência.
Este último aspecto nos introduz ao pensamento de um dos autores cujas
reflexões freqüentemente giraram em torno da relação entre a literatura e a
sociedade: o filósofo Jean-Paul Sartre. Autêntico representante do espírito de seu
tempo, Sartre considerava a escrita literária uma forma de engajamento social e este
se caracterizava por uma relação de troca com seus leitores contemporâneos,
entendidos como aqueles que davam vida às suas produções literárias. O filósofo
sempre esteve próximo também à psicologia, mesmo que esta proximidade tenha se
2
Este é também valorizado por Virginia Woolf em seu livro intitulado justamente o leitor comum. Comento
sobre este livro no capítulo dois.
9
dado, principalmente, através de críticas às concepções vigentes nesta área.
Inspirado pela fenomenologia de Husserl, seus primeiros trabalhos se dirigiram para
os estudos dos atos de consciência (como emoção, imaginação, reflexão) tão caros
à psicologia, de uma forma inovadora. Ao longo de seus estudos e marcado pelos
eventos da guerra, Sartre caminhou cada vez mais para o terreno social e deste
modo desenvolveu temas que se aproximam do interesse do psicólogo social. Ele
mostrou-se interessado em compreender as complexidades das relações sociais e
as formas de alienação do homem, sem perder de vista sua concretude e suas
situações cotidianas o que, segundo Frederic Munné (1989), revela a filosofia social
contida em sua ontologia.
Deste modo, o presente trabalho surgiu a partir de meu interesse na literatura
enquanto expressão de idéias e de visões de mundo através de questionamentos
suscitados por Sartre
3
. em Sartre uma vertente filosófica e outra literária,
indissociável da primeira, que se revelam de natureza psicossocial e que, por isso,
permitem entender o homem em situação enquanto um produto-produtor do mundo
em que vive. Esta dialética envolve também a relação com os outros e faz com que
a complexidade das relações intersubjetivas seja um dos principais temas
sartreanos. Encontramos, portanto, apesar da contínua demarcação que se costuma
fazer sobre a ambigüidade presente na obra sartreana como um todo, uma
coerência em relação ao fazer filosófico-intelectual do autor, que faz uso da literatura
como instrumento privilegiado para a comunicação de idéias filosóficas e políticas.
Mas é preciso lembrar que a literatura não é o outro lado da moeda da filosofia de
Sartre e que ambas as expressões não se encontram apartadas, pois quando
separamos sua literatura da sua filosofia, seja para afirmar que a primeira é uma
ilustração prática da segunda ou simplesmente por defini-las como incomunicantes,
estamos desconsiderando uma identidade profunda entre ambas. Segundo o filósofo
Franklin Leopoldo e Silva (2004), se seguirmos uma linha de pensamento que
demarca uma incomunicabilidade entre as diferentes formas de expressão de sua
filosofia, estaremos erroneamente associando a filosofia sartreana ao campo da pura
abstração, o que se contrapõe à própria “essência” do pensar fenomenológico que
busca compreender o homem e o mundo a partir de sua facticidade. Deste modo,
3
Realizei, juntamente com Carolina Mendes Campos, grupos de estudos sobre uma leitura
psicológica dos textos literários de Sartre, os quais me mostraram como essa ponte poderia ser
frutífera.
10
não faz sentido procurar na via literária uma possibilidade de expressar uma
“concretude” de conceitos supostamente abstratos, mas sim uma representação de
vivências historicamente situadas que expressam a experiência humana singular. O
que ocorre então, de acordo com este mesmo autor, é uma vizinhança
comunicante, na qual ambas as expressões resguardam suas particularidades, mas
se acessam por uma espécie de “via interna” sem mediação exterior. Isso é possível,
segundo ele, devido à interligação abstrato-concreto/universal-particular presente na
obra sartreana como um todo. Justamente pelo fato de Sartre nos apresentar estas
duas vertentes, que se comunicam todo o tempo em sua obra, desejei trazer os
conceitos e idéias sartreanas para um campo de questionamento da psicologia
social, para que possamos entender esse homem situado em relação com outros
homens através da literatura.
Ao longo de meu trabalho na prática existencialista em psicologia clínica
passei a sentir uma constante necessidade de entender o meio social no qual aquele
que procura um atendimento individual está inserido. As questões que o atravessam
fazem parte de um contexto sócio-histórico que se mostra extremamente relevante
para a compreensão de um fato que se apresenta aparentemente como singular.
Desejava, porém, encontrar não um método de pesquisa, mas algo que pudesse
expressar o meio no qual vivemos, e, além disso, que pudesse nos levar sempre a
um questionamento de uma realidade estabelecida ao movimento. Ao mesmo
tempo, encontrava em Sartre um desejo comum de evitar uma visão “contemplativa”
das questões que nos cercam e tentar entender sempre o “abstrato concretamente”,
isto é, trazer o pensamento para a ação cotidiana. Aos poucos, como já havia
ressaltado esse autor, percebia que a literatura mostrava-se como fonte rica para
estabelecer essas pontes. A partir das perspectivas de uma psicologia social
fenomenológica realizada pela professora Ariane Ewald (2005), entendi que seria
possível construir esta pesquisa que une as perspectivas fenomenológicas de Sartre
ao campo da psicologia social.
Foi, portanto, por este percurso que surgiu o desejo e a possibilidade de
realizar este trabalho e foram também estas as principais motivações que orientaram
o caminho que irei resumir brevemente a seguir, mas antes cabe esclarecer alguns
aspectos. Ao trabalhar com Sartre e a literatura é inevitável que o tema do
engajamento se apresente de imediato, pois o filósofo foi uma das vozes mais
atuantes neste movimento. Porém, a discussão sobre a arte engajada é ampla e
11
poderia por si ser foco de uma pesquisa. Ela envolveria a exposição dos grandes
debates públicos e querelas extensas dos escritores engajados entre si, ou destes
contra os “não-engajados”. Envolveria também a utilização da arte pelas ideologias
políticas, visto que o seu poderoso papel sob a forma de dominação simbólica
sempre foi valorizado e utilizado pelos grandes sistemas. O que também poderia
abrir a possibilidade de entender como se deu, ou se de fato existiu, uma arte
engajada que não obedecesse a algum sistema, e aqui poderíamos até tentar
argumentar uma tentativa de Sartre nesse sentido. O próprio engajamento sartreano
poderia ser explorado de maneira muito mais extensa, por conta da grande
quantidade de idéias que o filósofo desenvolveu durante muitos anos em torno do
assunto, assim como a revisão de suas posições. Haveria também, por conta da
vizinhança comunicante entre sua filosofia e literatura, a possibilidade de fazer
uma leitura de sua obra literária em busca da correlação com sua proposta de
engajamento teórico. Porém, nenhum destes aspectos caracteriza estritamente meu
objetivo aqui, meu foco perpassa de fato algumas destas considerações, mas segue
um caminho diverso, intencionalmente, embora não linearmente traçado, que aponta
para um objetivo diferente. Este objetivo consiste em partir do engajamento de
Sartre, situando-o, para depois seguir uma das vias de sentido de seu
engajamento com o intuito de explorar o caráter questionador presente na
literatura, em específico a sartreana. Acredito que isto seja possível, visto que sua
postura questionadora de intelectual está presente em seus textos, no sentido de
problematizar os conflitos da existência que entende como liberdade em situação.
Minha intenção foi preparar inicialmente o terreno histórico do engajamento
sartreano para que depois pudesse, a partir dele, tomar um rumo próprio de
reflexões no sentido da relação de proximidade entre a literatura e o mundo.
Procurei fazer esta ponte através dos argumentos de Sartre que envolvem a relação
de proximidade e troca entre autor e leitor e, além disso, busquei entender a relação
da literatura como nossos próprios discursos cotidianos e como esta proximidade
pode nos levar, por uma via do sentido, a questionar a nossa própria realidade.
Tendo desenvolvido estes argumentos, busquei estabelecer por fim, uma espécie de
diálogo com os próprios personagens sartreanos no intuito de presentificar as
situações vividas por estes, dentre os quais ressalto o “personagem real” Jean
Genet, como forma de um intercâmbio dialético entre minhas reflexões teóricas e as
falas ou histórias destes personagens. Assim, procurei, por fim, estabelecer
12
conexões entre o tema da bastardia em Sartre com o tema dos Outsiders, estudado
principalmente pelo sociólogo Howard Becker, pois pude perceber em ambos
também uma crítica ao que entendo como os scripts sociais, onde os bastardos e
outsiders o aqueles que se encontram “fora de lugar”. Deste modo, acredito estes
diálogos nos colocam frente à uma experiência que entendo ser capaz de permitir
uma prática daquilo que entendi como uma via de sentido do engajamento de Sartre
que permite um real encontro questionador entre autor e leitor.
1.1 Reflexões sobre uma trajetória metodológica.
Com o intuito de expor a maneira pela qual esta pesquisa foi realizada,
organizei dois pontos básicos, seguidos de uma explicação mais detalhada sobre as
orientações metodológicas utilizadas. Estes consistem em:
a) Trata-se de um estudo de revisão e análise bibliográfica.
A revisão bibliográfica consiste nas etapas de levantamento de material, leituras,
seleção e, por fim, produção do texto. Este processo se deu inicialmente de forma
abrangente, isto é, tentei restringir pouco o tipo de material a ser escolhido pois
minha intenção era a de realizar uma pesquisa que pudesse transpor as fronteiras
das áreas de estudo. Desta forma, utilizei textos literários e acadêmicos de
diferentes áreas como filosofia, psicologia social, sociologia e história. O tema
central norteou a seleção do material e funcionou como um centro unificador em
torno do qual outros autores foram convidados a dialogar. Posso dizer que este
núcleo consistiu em três pilares básicos, presentes no objetivo estabelecido
anteriormente: Sartre, psicologia social e literatura.
b) Segui uma orientação metodológica inspirada nas reflexões sartreanas sobre
o tema, o que inclui: os pressupostos da fenomenologia, a noção de processo
dialético de Questão de método e as bases da “Psicanálise Existencial” propostas
em O Ser e o Nada.
13
Adotar pressupostos da fenomenologia como uma orientação para um estudo
significa, a meu ver, manter-se atento não somente a um método, mas
primordialmente a uma postura diante de um objeto de estudo. Deste modo, tive a
intenção de manter esta atitude presente a todo o momento na realização da
pesquisa e por isso creio que esta se define como estratégia metodológica, ou seja,
enquanto o caminho pelo qual o estudo foi traçado. Mas em que consiste a atitude
fenomenológica?
Sartre (2005e) explora, ao longo de O Ser e o Nada, a possibilidade
inaugurada pela fenomenologia de entender, por meio da idéia husserliana de
intencionalidade da consciência, a relação de unicidade entre o homem e o mundo,
que pressupõe que o sujeito ou a subjetividade não podem ser entendidos apartados
de sua facticidade. Diante desta visão, toda formulação teórica ou reflexão realizada
deve levar em conta esta relação, isto é, entender que o homem, ou qualquer objeto
de estudo, não pode ser compreendido fora de seu contexto.
Por conseguinte, para que esta contextualização pudesse ocorrer, busquei
dialogar sempre que possível com as outras áreas de estudos sociais, como a
história e a sociologia, a fim de realizar esta compreensão de uma forma mais
ampla. O meu objeto de estudo em si, a literatura, analisada através de uma ótica da
filosofia e da psicologia social, mostrou-se representativo deste intercâmbio de
áreas. Deste modo, compreende-se que a riqueza do estudo consiste na
comunicação entre as diferentes áreas, fato que possibilita uma nova perspectiva e
isto expressa o desejo de um estudo transdisciplinar
4
.
Ao seguir os passos da proposta fenomenológica, destaco outro aspecto,
desta vez ressaltado por Merleau-Ponty:
[...] (a fenomenologia) é uma filosofia transcendental que coloca em
suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural,
mas é também uma filosofia para a qual o mundo está sempre
“ali”, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo
esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o
mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico (MERLEAU-
PONTY, 1999, p.1).
4
Sobre a Transdisciplinaridade,ver: NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdiciplinaridade.
São Paulo: TRIOM 1999. O estudo transdisciplinar propõe a idéia de que a partir da confrontação das
disciplinas obtemos novos dados que as articulam entre si e que nos dão uma nova visão que as
atravessa e ultrapassa.
14
A atitude de colocar em suspenso, descrita pelo fenomenólogo, diz respeito a
uma tentativa de evitar a “atitude natural”, ou seja, todas aquelas concepções
cotidianas e banais que pressupõem, como resume Chauí (1988), “que as coisas
exteriores existem tais como se as vê; portanto, natural e espontaneamente” (p.12).
Segundo esta autora, quando se descobre que cada indivíduo possui uma posição
ou “tese do mundo” diferente dos demais, estas concepções tornam-se confusas e
problemáticas. Edmund Husserl, criador da fenomenologia, propõe então que
façamos uma redução fenomenológica (epoché) para suspender ou por “entre
parênteses” nossa “tese do mundo”, com o intuito de captar o fenômeno tal qual ele
se apresenta para a consciência. Esta atitude significou para mim, entender que
devia constantemente direcionar um olhar desabituado ao meu objeto de estudo,
estranhá-lo sempre que possível para captar mais uma vez as diferentes vicissitudes
que ele me apresentava e é neste sentido que identifico a postura fenomenológica
em direção a um objeto de estudo.
Falo, no entanto, de um objeto que se move e que está em constante
transformação - que questiona enquanto é questionado, que se transforma na
medida em que nos transformamos. Neste sentido, acredito que a relação que
ocorre na pesquisa é, como nas demais relações que envolvem a realidade humana,
dialética. Para Sartre, afirma Maheirie:
[...] o método deve ser necessariamente dialético, partindo das
contradições, negações e superações [...]. Deve, em outras palavras,
buscar o movimento de totalização histórica da singularidade na
interseção da totalização histórica mais geral (MAHEIRIE, 1994,
p.126).
Foi de acordo com estas noções que busquei entender o processo de estudo,
tentando permitir questionamentos que puderam produzir contradições, avanços e
recuos, e transformações para, a partir daí, gerar o corpo maior do trabalho. Entendo
que cada parte em si, como propõe Sartre (2005e), pode ser entendida como
reveladora da totalidade, sem jamais esgotá-la. Cada questionamento deve suscitar
múltiplos caminhos possíveis, o que o filósofo chamaria de um novo “campo de
15
possibilidades”
5
. No entanto, tive de manter constantemente em cena aquilo que
une toda essa multiplicidade de questionamentos, aquilo que os integra em uma
unidade significativa.
Por fim, Sartre (2005e) indicou, através de sua Psicanálise Existencial,
caminhos que me ajudaram a pensar este trabalho, que resumo da seguinte
maneira:
· que o posicionamento para o futuro é constitutivo da produção
presente, e que o objetivo apresentou-se como um centro unificador;
· que a pesquisa mostra-se reveladora por esta própria busca;
· que a unidade se dá, portanto, na projeção que visa o objetivo final,
na capacidade de projetar no futuro o que é desejado alcançar;
· que estes fatores permeiam todas as escolhas no presente: o
material selecionado, o conteúdo produzido, os conceitos
trabalhados, os autores e caminhos escolhidos , mas não os
determina;
· que entendo o movimento de ida ao futuro retorno ao presente como
representante do modo de ser temporal da consciência intencional, e
com isso queremos dizer que esta intencionalidade rege a unidade
significativa do projeto;
· que pelo fato da unidade significativa se dar pela projeção do
objetivo, ela é passível de movimento e transformações, ou seja,
permite o movimento dialético.
Todas estas argumentações tentam dar conta de demonstrar minha tentativa
de ter buscado ao máximo um constante movimento na maneira pela qual realizei a
pesquisa no intuito de manter em cada linha traçada a esperança de permanecer
acesa a chama do questionamento. Devido a estas características posso finalmente
argumentar que meu caminho metodológico se aproxima das idéias da metodologia
filosófica proposta por Folscheid e Wunenburger e que resume o sentimento restante
destas argumentações metodológicas:
5
O termo é de Sartre (1972c) que define campo dos possíveis como “o objetivo em direção ao qual o
agente supera sua situação objetiva” (p.79).
16
Tal é o objetivo de uma dissertação, que, através de questões,
acadêmicas ou inéditas, permite ao aprendiz de filósofo confrontar-se
com modos de raciocínio, hipóteses, escolhas, acompanhados de
suas premissas e conseqüências [...] Compreende-se assim por que
uma dissertação se enriquece ao apoiar suas hipóteses e seus
raciocínios numa cultura filosófica histórica, que sirva não de molde,
mas de matéria-prima a um pensamento vivo e organizado
(FOLSCHEID E WUNENBURGER, 1997, p.11).
17
2 Percursos históricos do engajamento sartreano.
O engajamento literário de Sartre fez parte de um movimento maior que veio
a tomar forma ao longo do tempo de acordo com uma rie de redefinições políticas
que colocavam em questão o papel do escritor na arena pública. Deste modo,
procurei primeiramente entender a situação histórica do período do pós-guerra na
França com o objetivo de situar historicamente o engajamento de Sartre, isto é,
compreender o contexto que nos oferece um sentido à sua proposta de engajamento
literário enquanto um fenômeno situado e coerente com sua época. Para isso,
apresento alguns de seus interlocutores, suas relações políticas, em especial com o
Partido Comunista Francês, e seus principais movimentos nos debates públicos.
Esta exposição indicou uma estreita relação dos escritores com o seu tempo que
não se restringia à experiência de Sartre, mas mostrava, na verdade, toda uma
cultura local engajada que se apoiava em movimentos ainda mais antigos.
Em seguida, procurei expor brevemente de que modo surgiu, a partir da
modernidade, a possibilidade de existir uma literatura engajada, enquanto
movimento mais amplo que teve como base as reformulações da relação da arte
com a política. Mostrou-se necessário também ressaltar que tais mudanças
permitiram o surgimento, neste percurso, do que usualmente é entendido como “arte
pura”, que é constantemente colocada em oposição à “arte engajada”, e que se
sustentava justamente no crescente distanciamento entre a literatura e os debates
sociais. Após este panorama busquei entender quais foram, a partir destes aspectos,
as críticas de Sartre à tradição literária que constituía o “céu povoado de estrelas”
dos escritores de sua geração, e de que maneira isto se apresentou no seu
“manifesto” engajado.
18
2.1 A situação: o pós-guerra.
O ano de 1945 marca o fim da Segunda Guerra Mundial com a retirada dos
alemães e a Libertação da França, sobretudo da área Ocupada, centralizada em
Paris. Uma das grandes memorialistas do período e companheira de Sartre, Simone
de Beauvoir (1995), conta em A força das coisas
6
a realidade de um país ainda
perdido e desorganizado, no qual faltava carvão, gás, eletricidade, comida e os
transportes mal funcionavam. Na euforia da Libertação, a imprensa, quieta e
censurada pela Ocupação Alemã, volta não somente a respirar, mas a bradar com
força total. Mais de 30 jornais são lançados em Paris em um mesmo ano, conforme
destaca Cohen-Solal (1986), cada qual contando com escritores, jornalistas e
intelectuais de peso que definem suas posições políticas
7
. Os jornais passam a dar
detalhes sobre os horrores da guerra e os massacres; através de fotos e textos
jornalísticos ficava-se sabendo das câmaras de gás e fornos crematórios nazistas:
“Esse passado brutalmente descoberto jogava-me de novo no horror; a alegria de
viver cedia à vergonha de sobreviver”, lamenta Beauvoir (1995, p.18).
É neste cenário que Sartre tem seu grande boom”, ou o que foi chamado por
alguns de uma espécie de “moda existencialista”, uma mistura de culto à
celebridades com busca por bodes expiatórios. O próprio termo existencialismo
8
,
atribuído à filosofia sartreana, foi criado à revelia de Sartre, como descreve Beauvoir:
Essa palavra (existencialista) estava doravante automaticamente
ligada às obras de Sartre e às minhas. Durante um colóquio
organizado no verão pelas edições du Cerf isto é, pelos
dominicanos - , Sartre recusara que Gabriel Marcel lhe aplicasse
esse rótulo : “Minha filosofia é uma filosofia da existência; o
existencialismo, eu não sei o que é”. Eu compartilhava de sua
contrariedade. Escrevera meus romances antes mesmo de conhecer
este termo, inspirando-me na minha experiência, e não num sistema.
Mas protestamos em vão. Acabamos por assumir o epíteto que todo
mundo usava para nos designar (BEAUVOIR, 1995, p.42).
6
Outro livro de Beauvoir que retrata com detalhes, embora em forma de romance, a experiência do
pós-guerra é Os Mandarins.
7
Winock (2000) destaca: a imprensa comunista L´Humanité; Front National e Ce Soir; socialista Le
Populair;, do MRP L’Aube e Figaro; e os que nasceram diretamente da Resistência: Défense de la
France (que virá a ser France-Soir) L’homme libre, Franc-Tireur, Liberation e Combat. (p.527).
8
Para uma discussão sobre o termo, ver: Ewald, A.P. Fenomenologia e Existencialismo: articulando
nexos, costurando sentidos. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v.2, p-148-162, 1
sem. de 2008. Disponível em: www.revispsi.uerj.br/v8n2/artigos/pdf/v8n2a02.pdf.
19
Após a adoção do termo e diante do que a própria Simone de Beauvoir (1995)
denominou de ofensiva existencialista
9
, a imprensa de Paris contra-ataca e os
dedica as capas dos jornais, exibindo Sartre como mentor do movimento. O caldo
cultural que permite tanta ascensão se baseia em certos ingredientes fundamentais,
como, por exemplo, uma crise dos valores tradicionais e a impossibilidade de não se
pensar na responsabilidade social de cada indivíduo que vive sua época “na carne”.
O próprio Sartre (2000) desenvolve estes temas no seu texto sobre a libertação de
Paris, no qual fala que um ano depois da retirada dos alemães o ar festivo ainda não
tinha deixado a cidade e as pessoas continuariam a comemorar todo ano a explosão
da liberdade e a quebra com a ordem estabelecida em busca da invenção de uma
nova ordem. Este clima de frenesi de uma liberdade reencontrada após anos de
Ocupação alemã, misturado à inquietude e pessimismo, devido também à aparição
da arma atômica e ao risco de novos enfrentamentos, encaixava perfeitamente com
as dimensões de liberdade, responsabilidade e angústia do pensamento sartreano
(DENIS, 2002). Além disso, na tentativa de compreender este “estrépito”, diz
Beauvoir (1995, p.43), Sartre denunciava em A nacionalização da literatura
10
que
havia um interesse nacional por parte da França em valorizar seus “produtos da
terra” como alta costura e a literatura, que se tornara uma potência de segunda
ordem.
Neste contexto, “a moda sartreana transforma-se no primeiro produto de
consumo da imprensa faminta”, resume Cohen-Solal (1986, p.336-337). Mas não
eram somente os existencialistas que incendiavam a imprensa; eles eram também o
foco principal. Nesse momento, todos os jornais produziam em ritmo frenético e
participavam das guerras político-literárias. Penso que um dos jornais que talvez
expresse mais significativamente este período e que também estava ligado à
posição política de Sartre e Beauvoir era Combat. Filho da resistência, criado a partir
das publicações do movimento Combate
11
, este era o jornal clandestino com maior
9
No mesmo ano, 1945, Simone publica O sangue dos outros e Sartre dois volumes da trilogia Os
caminhos da liberdade. Também neste mesmo ano nasce o primeiro número da revista Les Temps
Modernes, importante revista do período fundada e dirigida por Sartre. Ainda em 45, Sartre faz a
conferência O existencialismo é um humanismo e Simone estréia a peça As bocas inúteis.
(BEAUVOIR, 1995, p.42).
10
Este texto foi publicado também em 1945 e republicado em 1948 na coletânea de ensaios de
Sartre Situações II (CONTAT & RYBALKA, 1970).
11
O Combate foi um dos movimento mais organizados e conhecidos da Resistência durante a
Ocupação Alemã, seu objetivo, resume Lottman (1987), era continuar na política do pós-guerra com
o mesmo espírito e ideologia da luta pela libertação” (p.309).
20
tiragem durante a Ocupação e que, depois da Libertação de Paris, assumiu uma
política ainda regida pela ideologia da Resistência. Na esperança de preparar o
terreno de uma possível Revolução, o jornal estampava seus planos no subtítulo “da
Resistência à Revolução”, que exprimia o sentimento de muitos intelectuais de
esquerda (BEAUVOIR, 1995, p.12).
Combat foi também responsável pela divulgação de idéias e pensamentos de
uma nova geração de escritores que incluía, além de Sartre e Beauvoir, nomes
como o de Albert Camus, considerado por Michel Winock (2000), em O século dos
intelectuais, como uma das opiniões mais influentes do período
12
. O livro de Winock
oferece ao leitor um panorama sobre o culo XX, divido por ele em três períodos
históricos representados cada qual por um intelectual de peso, sendo o pós-guerra
representado por Sartre. Já Herbert Lottman (1987) com seu excelente livro, embora
pouco citado, A rive gauche, se dedicou somente ao período do pré e pós-guerra
(dos anos 30 aos 50) que, na sua visão, demarcam a ascensão e queda do
intelectual engajado, que tinha como seu local de trabalho os cafés públicos da
margem esquerda do Sena. O autor também ressalta a importância de Combat
como um jornal que mostrava a imagem de “uma jovem geração esquerdista,
impaciente com os mais velhos, cujos acordos e corrupções haviam enfraquecido a
França a véspera da Segunda Guerra Mundial” (p.309). Sartre e Simone de
Beauvoir, que ainda não tinham sua própria revista, encontravam-se em total
afinidade com a política deste jornal
13
, ele “exprimia nossas esperanças”, confessa
Beauvoir (1995), e isto significava para ela e Sartre que a França engajava-se no
caminho do socialismo, e pensavam que este país fora abalado “em profundidade
suficiente para poder realizar, sem novas convulsões, um remanejamento radical de
suas estruturas” (p.12).
Segue-se que neste clima da Libertação as principais forças políticas
francesas da Resistência permaneciam unidas para punir os colaboracionistas,
nome designado aqueles que colaboraram com o regime nazista. É neste momento
que ocorre então uma grande “lavagem de roupa suja” entre os escritores, que
aliavam “a pena à espada” para eleger os heróis resistentes e os traidores:
12
Segundo Winock (2000) Camus, que era diretor de Combat dividia com Mauriac do Figaro a
predominância da opinião na imprensa diária.
13
Sartre publica em Combat uma série de artigos intitulados Passeando pela Paris revoltada
(LOTTMAN, 1987). Foi também como correspondente deste jornal que ele viaja aos Estados Unidos
pela primeira vez em 1945 (COHEN-SOLAL, 1986).
21
Dos homens de espada aos de pena, o consenso é geral, nestes
meses em que uma hiperlucidez vingadora se impõe, em que a
moralidade se mede pela fita métrica dos meses de resistência, em
que o mundo inteiro afinal parece vacilar entre monstros e heróis.
(COHEN-SOLAL, 1986, p.326).
Em 9 de setembro de 1945, o jornal Les Lettres françaises publica sua
primeira edição na Paris libertada, intitulando-se orgulhosamente órgão do CNE
(Comitê Nacional dos Escritores)
14
. Este primeiro número traz o Manifesto dos
Escritores Franceses assinado por mais de cinqüenta escritores, dentre eles, Sartre,
Camus, Aragon e Malraux, que faziam um apelo por “justa punição” daqueles que
colaboraram com o regime nazista, chamados de “impostores” e “traidores”
(LOTTMAN, 1987, p.318). Inicia-se assim a fase de “caça aos colaboracionistas”
onde os principais militantes da Resistência fazem valer o que entendem por justiça.
Na pauta das grandes discussões, um único tema: quem colaborou? O que pode ser
considerado um ato colaboracionista? Qual a punição necessária? A ambigüidade
presente nestes debates maniqueístas é muito bem ressaltada por Lottman (1987),
que afirma, apesar disso, que os pronunciamentos do CNE, líder destes debates,
tinham, de fato, força de lei e que por conta destas depurações muitos “traidores”
chegaram a ser fuzilados. No Manifesto, os escritores concordavam que não poriam
seus escritos à disposição de editoras que publicassem colaboracionistas. Além
disso, eles prepararam sua “lista Otto
15
particular, uma espécie de “lista negra” de
escritores colaboracionistas
16
, apesar de não pedirem o banimento dos mesmos, e
ainda organizaram um Comitê de Expurgos de Editores e Livreiros, do qual Sartre
fazia parte junto com Vercors, Pierre Seghers, e representantes do governo e de
editoras com o objetivo de impor o rigor também às editoras. Dentre estas, a censura
que mais chamou a atenção foi o banimento de qualquer publicação sob o símbolo
da La Nouvelle Revue Française (NRF), antigo marco de prestígio nacional agora
manchado pela era colaboracionista onde ficara sob o comando de Drieu La
14
Criado por Jean Paulhan e Jacques Decour em 1941, o Comitê Nacional dos Escritores era
destinado a ser o órgão da resistência literária. Segundo Denis (2002) ele assegurará na Libertação a
“depuração” dos escritores e intelectuais.
15
Durante a Ocupação, a Associação dos Editores Franceses assinou um acordo com a
Propagandastaffel nazista, onde cada editora passaria a ser responsável por não publicar nada anti-
alemão, ou livros proibidos na Alemanha. Logo depois a Associação publicou uma lista de obras
proibidas que ficou conhecida como lista Otto” em homenagem a Otto Abetz, propagandista nazista
especializado em intercâmbio cultural franco-alemão (LOTTMAN, 1987, p.111; p.227).
16
Dentre estes destaco: Brasillach, Céline e Drieu La Rochelle.
22
Rochelle. Diante disso, podemos ver claramente o que Lottman (1987) entendeu
como uma rive gauche
17
cindida pelo apelo por “justa punição”, que se caracterizava
de um lado por aqueles que o apoiavam fervorosamente, como os principais
militantes do CNE, os comunistas e o grupo Combat, e por outro os partidários do
“esqueça e perdoe” representados principalmente por Mauriac e Paulhan. Com
relação a Sartre e Simone, conclui o autor, mantinham a posição de apoio a lista
negra do CNE, embora a achassem vã, mas concordavam que estes escritores não
mereciam lugar no “mundo a construir” ( p.323).
Toda esta dinâmica apresenta um pouco do clima das guerras “político-
literárias”, contexto que permite compreender a situação do engajamento de Sartre.
Considero necessário destacar então, que, a meu ver, o momento do pós-guerra
pode ser entendido em dois períodos distintos: o primeiro, parte da Libertação de
Paris e vai até 1947, e o segundo, parte deste ano em diante, onde as posições
políticas se reconfiguraram ou apenas ficaram mais explícitas. Relata Beauvoir
(1995) que na euforia da Libertação “a luta de classes ainda não estava nítida
Gaullistas, comunistas, católicos e marxistas confraternizavam” (p.16). Estas forças,
que viriam a manifestar posteriormente suas diferenças fundamentais,
compartilhavam neste momento de uma posição próxima, cada qual com o seu lugar
na formação da nova República
18
. Entretanto, Winock (2000) fala de duas vertentes
que ainda assim se destacaram neste período: o Partido Comunista e o “mundo
católico”. Embora estes representem “um contra o outro, o conflito secular das duas
Franças, a laica e a cristã” (p.535), este era o tempo em que estas linhas se
encontravam de alguma forma entrelaçadas, motivadas por certas “familiaridades”
além da Resistência, como, por exemplo, um interesse intelectual pelo marxismo,
uma visão de uma possível ruptura com o regime capitalista e burguês, e uma
preocupação com a pobreza e com os operários. Isto não significa, porém, um
posicionamento político único dos católicos, pois como afirma Winock (2000) “o
mundo católico não apresenta a mesma unidade da época do caso Dreyfus” (p.
547). Esta divisão, analisada em detalhes por Caio Liudvik (2007), ocorreu entre o
episcopado que compartilhara de uma doutrina colaboracionista em Vichy e um
17
Margem esquerda do rio Sena em Paris, famosa por sua efervescência cultural, literária e política.
18
No imediato pós-guerra a França passa a ter um Governo tripartidário, composto por comunistas
(PCF), gaullistas (MRP) e socialistas (SFIO - Seção Francesa da Internacional Operária) que durará
até 1947 com a saída de De Gaulle do governo (em 20 de janeiro de 1946) e depois dos comunistas
(em 5 de maio de 1947) (COHEN-SOLAL, 1986, p.385).
23
movimento proveniente da Resistência católica que viera fundar ao lado de De
Gaulle, também católico, o Movimento Republicano Popular (MRP). Havia também
um grupo de jovens católicos “abertos”, que partilhavam da causa do engajamento e
que eram representados por Emmanuel Mournier e sua importante revista Esprit
19
(WINOCK, 2000).
É interessante pensar que é principalmente para estes dois pólos, ou seja, o
PC e o “mundo católico”, que Sartre (1987) vem contra-argumentar em sua “defesa”
na conferência O existencialismo é um humanismo, realizada em outubro de 1945.
Na conferência, o filósofo diz que para os comunistas, sua filosofia motivava as
pessoas a permanecerem no imobilismo do desespero, o que levaria a uma filosofia
contemplativa e, portanto, burguesa. O acusavam de enfatizar o lado sórdido da vida
e de ressaltar em demasia a subjetividade e por isso “esquecer da solidariedade
humana” (p.3). os católicos o denunciavam por recusar a seriedade dos
empreendimentos humanos ao estabelecer a gratuidade dos atos ao negar Deus,
tornando impossível o julgamento frente aos atos de outrem. Aqui é possível
vislumbrar como Sartre desde o início se manteve na mira dos ataques das
instituições e personalidades mais poderosas, e como isto definiu o que ele entende
por “destino solitário” do intelectual e que podemos entender como sua própria
condição de “bastardo”. Quanto ao Partido Comunista, este é apenas o início de
uma longa relação de conflitos e aproximações com este poder que constitui um pólo
político poderoso e influente neste período e sem o qual não podemos entender os
movimentos e posições do engajamento de Sartre.
Em cinco anos o Partido Comunista Francês (PCF), anulado pela interdição
em 1939, ascendeu ao primeiro plano da esquerda francesa, acima inclusive do
Partido Socialista. Embora o Partido tenha entrado atrasado na Resistência por
conta do pacto germano-soviético de 1939, rompido por Hitler em 1941, seus
grandes representantes foram os heróis do movimento contra a Ocupação alemã. Ao
final do período de opressão e guerra, o PCF sai com prestígio e intitula-se o
“Partido dos Fuzilados”, devido ao grande número de resistentes comunistas
19
Segundo Lorenzon (2008), Mournier planejou o lançamento de Esprit em um congresso em 1932
com o objetivo de lutar contra uma civilização burguesa e individualista e ser representante da nova
geração que visa uma transformação social. Por este motivo, posteriormente, na época em que estou
retratando, também Esprit teve que se posicionar em relação ao PC. Diz Winock (2000): “muitos
colaboradores de Esprit vão gravitar, como tantos outros, em torno do Partido. Não que se filiem a
ele, mas o comunismo lança um desafio à civilização ocidental; representa uma solução de ruptura
com o regime capitalista e burguês” (p.533).
24
assassinados. Diz Winock (2000) que em 24 de outubro de 1945 a primeira página
de L’Humanité, jornal do próprio Partido, estampa o seguinte título: “O Partido
Comunista Primeiro Partido da França” (p.540). Além dos grandes resistentes
filiados, o PCF obteve numerosas adesões após a vitória de Stalingrado contra os
Nazistas, ressaltando a imagem de Stálin e seu prestígio. Tanta ascensão,
caracterizada principalmente por Winock (2000) como “um dos maiores fenômenos
da política francesa” (p.540), fez com que os intelectuais fossem cogitados e até
seduzidos a se filiarem, visto que eram bastante cortejados, pois significavam para o
Partido figuras de prestígio que funcionavam como pólo de influência social
20
. Na
maioria dos casos, a dinâmica era caracterizada por um jogo de interesse mútuo,
pois, também para o intelectual, o “mundo” comunista - comenta Lottman (1987) -
mostrava-se tão completo, com tantos jornais, revistas, congressos e eventos sociais
“que podia-se acreditar que era o mundo inteiro” (p.360). Deste modo, ressalta
Winock:
No fascínio que o comunismo exerce logo depois da guerra, a
impressão de poder que ele transmite pesa muito. Aderir ao
comunismo é, não somente entrar para uma organização francesa
cuja direção tem múltiplas ramificações, mas também uma opção de
pertencer a um conjunto geopolítico destinado a crescer, que tem
como der a URSS. O comunismo é o futuro. Filiavam-se a ele na
euforia da vitória ou apenas para garantir um lugar (WINOCK, 2000,
p.537).
Diante desta situação, Sartre também, obviamente, é intimado a se posicionar
em relação ao PCF, e neste caso, a questão para muitos era: por que não se filia?
Como parte da esquerda intelectual e membro do CNE
21
, assim como assíduo autor
de textos para seu veículo principal Les Lettres Françaises, a proximidade com os
militantes do PC era grande, visto que trabalhavam juntos em questões
fundamentais de sua época. Benoit Denis (2002) afirma o que, a meu ver, mostra-se
como ponto fundamental nesta discussão envolvendo o PCF. Este autor argumenta
que, desde o imediato pós-guerra, com a predominância política do PCF na política
20
Por conta da adesão de Picasso ao PC, L´Humanité publica com orgulho uma manchete de cinco
colunas: “Picasso, o maior pintor vivo, entra para o Partido da Resistência” (LOTTMAN, 1987,p.292).
A manchete corrobora com o argumento de que o PC buscava adesões através do prestígio público
de seus filiados.
21
O comitê não era oficialmente um órgão do Partido embora fosse composto principalmente por
militantes comunistas da Resistência
25
francesa, todo tipo de engajamento teve que se posicionar de alguma maneira em
relação a este partido. Por esta razão, a situação do intelectual de esquerda é
caracterizada por uma dificuldade fundamental entre manter uma
independência em relação ao Partido Comunista sem entrar numa oposição
frontal com ele, conclui Denis. É justamente nesse quadro que Sartre se
encontrava, na medida em que os movimentos políticos deste período aos poucos
se definiam, e ele tentava manter-se fora do PC ao mesmo tempo em que o apoiava.
Deste modo, Sartre se mostrava representativo do que John Gerassi (1990) definiu
como o destino solitário da missão do intelectual: “[esta] Sartre jamais cansou de
repetir, é criticar, opor-se, denunciar” (p.46). Papel que Beauvoir definia de modo
semelhante:
[...] suspeito entre os burgueses, apartado das massas, Sartre
condenava-se a não ter público, mas apenas leitores; essa solidão,
ele a assumia de bom grado, pois ela lisonjeava seu gosto pela
aventura. Nada mais desesperado do que essa experiência, nada
mais alegre
22
(BEAUVOIR, 1995, p.122).
Beauvoir (1995) relata ainda que, embora eles mantivessem relações
amistosas para com os resistentes comunistas, Sartre não queria se filiar ao Partido
por achar que, no plano político, os simpatizantes deviam representar fora do PC o
papel que a oposição assume no interior dos outros partidos no sentido de apoiar
criticando. Mas este posicionamento era difícil de ser sustentado, principalmente
depois que Sartre, com a abertura de Les Temps Modernes em outubro de 1945,
passa a fazer parte do terreno mais disputado e incendiário de todos: o da imprensa
intelectual. A revista logo se tornou uma das principais do período
23
. Como
ressaltado por Lottman (1987), “seu conselho editorial e seu índice pareciam reunir
tudo quanto era vital na Paris do pós-guerra” (p.337). Este grupo era composto por
nomes como, além de Sartre e Simone, Raymon Aron, Michel Leiris, Maurice
Merleau-Ponty, Albert Ollivier e Jean Paulhan
24
, que na época, segundo Beauvoir
(1995), não combinavam. Ela nos conta que Leiris sugeriu o nome Grabuge
22
Esta sensação “alegre” de aventura de Sartre parece mudar como a própria Simone (1995) nos
mostra no decorrer de suas observações, pois ele virá a descobrir a importância política de seu ser-
para-outrem.
23
No vácuo criado pela NRF, partilhavam o primeiro lugar entre as revistas literárias de esquerda:
Europe (mensário semi-oficial do CNE), Esprit e depois Les Temps Modernes (LOTTMAN, 1987).
24
Para Lottman (1987), o “herdeiro moral” da NRF.
26
(briga, tumulto) que não foi adotado “porque queríamos revolucionar, é verdade, mas
também construir” (p.21). O grupo desejava um nome que indicasse que estavam
engajados na atualidade e, logo, optaram por “Tempos Modernos” que fazia, diz
Simone, uma agradável referência ao filme de Charlie Chaplin.
Sartre inaugurou a revista com sua polêmica Apresentação, texto que definiu
pela primeira vez seu engajamento como escritor e que é considerado por todos
como um “autêntico manifesto”. Portanto, logo de início, Sartre entra no cenário das
disputas intelectuais escolhendo o estilo que sua biógrafa Annie Cohen-Solal (1986)
denominou de “Sartre-assassino”, que segue desfiando programas e definições a fim
de “mudar ao mesmo tempo a condição social do homem e a concepção que tem de
si mesmo; [e] dar à literatura o que nunca deveria ter deixado de ter, uma função
social” (p.338). Era de se esperar que a revista tão aguardada, com um texto
inaugural inquietante, tivesse uma grande repercussão, lembrando ainda que Sartre
encontrava-se no auge da ofensiva existencialista. A própria Simone de Beauvoir
(1995) comenta que a Apresentação provocou discussões apaixonadas que
perduraram por muito tempo, e que, para eles, este fato mostrou que a fala de Sartre
tinha o poder de, ao mesmo tempo, convencer e indignar. Na opinião de Simone, o
público estava ávido para reconhecer o mundo mudado, mas não estava preparado
para renunciar à aura de eternidade em torno da literatura: “A leitura devia
transportá-lo (o leitor) para esferas superiores onde reina soberana, a obra de arte.
[...] acharam um sacrilégio ele (Sartre) ter feito o céu descer à terra (p.45).
O escritor André Gide, por exemplo, foi um dos primeiros a se pronunciar em
tom irritado e irônico (COHEN-SOLAL, 1986), mas a reação principal partiu do PCF.
Após o lançamento da revista, Sartre fora convocado para uma reunião com Roger
Garaudy e Mougin que o acusaram de divulgar uma filosofia não-marxista que atraía
os jovens, afastando-os do PC. Fatos como este parecem sustentar a opinião de
Lottman (1987) de que Le Temps Modernes e Sartre tinham também o papel de
cobaias para a experiência de saber se era possível que intelectuais independentes
trabalhassem em harmonia com o Partido sem a ele se subordinar. Ao encontro
privado seguiu-se uma série de ataques públicos iniciados pelo próprio Garaudy que
ficara encarregado de combater além de Sartre, outros como Mauriac, Malraux e
Koestler (WINOCK, 2000). Em um artigo para Les Lettres Fraçaises denominado
Littérature de fossoyeurs (literatura de coveiros), Garaudy intitula Sartre de “falso
profeta” cuja filosofia é reacionária e doente. O filósofo torna-se também alvo do
27
Pravda
25
, que caracterizou o existencialismo como “uma mistura nausabunda e
pútrida” (LOTTMAN, 1987, p.339). Depois, mais um ataque, desta vez de Henri
Lefebvre que o chama de “máquina de guerra” (MÉSZÁROS, 1991, p.10) e ainda em
La Pensée foi publicado La sainte famille existencialiste de Mougin, que era,
segundo Beauvoir (1995), “outra magistral execução, no dizer dos entendidos do
PC” (p.122). Para ela, mesmo Garaudy, embora qualificando Sartre como “coveiro
da literatura”, conservava certa decência no insulto, mas Jean Kanapa, antigo aluno
de Sartre, em L’existencialisme n’est pas um humanisme
26
chamava-os de fascistas,
“inimigos dos homens” e Sartre de “animal perigoso
27
(p.122). Em 3 de junho de
1945, continua Beauvoir, La Croix, um jornal católico, denunciara no existencialismo
ateu “um perigo mais grave que o racionalismo do século XVIII e o positivismo do
século XIX” (p.46), e o Samedi-Soir apontou o existencialismo como uma filosofia
que só convinha a um povo doente, e que moral e fisicamente só gostava de sujeira.
Todas essas acusações alcançavam um segundo momento do pós-guerra
que se caracterizava por uma mudança no cenário político. No ano de 1947,
novamente os familiares movimentos de rachaduras ideológicas vêm à tona na Paris
repartida em pólos opostos. Se lembrarmos os distantes, mas ainda assim presentes
embates entre os dreyfusards e antidreyfusards
28
, depois entre resistentes e
colaboracionistas, podemos entender que em uma época na qual o próprio mundo
encontrava-se partido pela Guerra Fria, a situação de uma cidade com tal histórico
de divisões não seria diferente. De um lado URSS, de outro a América do Norte,
Leste/Oeste, Comunismo/Capitalismo, tempo que passa a demarcar uma separação
que virá dar origem a teoria dos dois blocos
29
, que inaugura uma época marcada
pela escolha, noção amplamente utilizada pelos existencialistas em geral. Winock
resume os principais fatores que contribuíram para o novo cenário:
25
Principal jornal russo deste período.
26
Fazendo referência a conferência de Sartre O existencialismo é um humanismo.
27
Segundo Winock (2000) Kanapa e Garaudy exerciam o papel de chefes da polícia intelectual a fim
de garantir que “as artes, a literatura, a ciência, todas as produções do espírito devem concorrer para
o triunfo do stalinismo” (p.548).
28
Uns partidários da defesa e outros da acusação de Albert Dreyfus, conforme veremos no terceiro
capítulo.
29
Formulada por teóricos que pressuponham a divisão política em blocos” na época da Guerra Fria.
Dentre estes, Winock (2000) ressalta Raymon Aron que lança em 1948 seu livro Le Grand Chisme
através do qual “profetiza” o futuro da Guerra fria que não resultaria em paz e tampouco em guerra.
28
Desunião da Resistência, fracasso da unificação operária,
renascimento das forças conservadoras (criação do RPF por De
Gaulle em abril de 1947), peso das circunstâncias, pressões
hereditárias e contexto internacional que, no final de 1947, resulta na
Guerra Fria: a sonhada Nova República cai na indefinição.
(WINOCK, 2000, p.555).
É também em 1947 que o PC concretizou de fato sua nova linha de atuação,
comumente adjetivada de dura, que teve como marco a criação do Cominform
(Departamento de Informação Comunista), versão atualizada do Comintern, órgão
que reforçava o controle da política fora da URSS. Era uma época, diz Lottman, que
“um intelectual da Rive Gauche já não podia ter a sua carteirinha do PCF e continuar
dizendo o que pensava” (1987, p.359), uma época marcada pela política de Andrei
Jdanov, general na Segunda Guerra e que era responsável pela coesão ideológica
do Partido. Foi então neste momento que, segundo Beauvoir (1995), o PCF,
enfraquecido após sair do Governo em 1947, voltou-se para o internacionalismo e
viu-se obrigado a aceitar a política de Stálin.
Concordo com Lottman (1987) quando afirma que “para entender as batalhas
intelectuais da Rive-Gauche no pós-guerra, é preciso levar em conta esta parte da
história do Partido Comunista” (p.358), pois era contra ou de acordo com ele que os
intelectuais se pronunciavam e acredito serem estes eram os fatores que marcavam
o tom e as paixões dos discursos de Sartre. Isto se deve justamente porque o
filósofo, neste terreno repartido, tentou concretizar a posição de uma “terceira via”
política, a qual vinha tentando manter desde o início
30
. Ao lado de Mournier, Camus,
Merleau-Ponty e Simone de Beauvoir, Sartre assina um “apelo” em Esprit contra a
política dos blocos, onde a França se tornaria novamente um “campo de batalhas”
resumindo-se a sua servidão ao poder externo
31
(LOTTMAN, 1987). Neste mesmo
momento, Sartre rebate a uma enxurrada de críticas que vinha recebendo dos
comunistas, quando decide abrir a discussão em torno do “Caso Nizan”, que reúne
para ele uma série de interesses: além do ataque aos comunistas, uma luta a favor
30
Vale lembrar aqui que esta posição pode ser vista como tipicamente sartreana, que mesmo em
seus escritos filosóficos iniciais ele recorre a fenomenologia como uma visão que o permitira
encontrar uma “terceira via” entre o idealismo e o materialismo.
31
Simone de Beauvoir (1995) relata que, em visita aos EUA, Sartre ouviu durante um almoço o diretor
das Public Relations da Ford mencionar uma próxima guerra contra a URSS: Mas vocês não têm
fornteira em comum: onde será a luta? - perguntou um jornalista do PC - “Na Europa – respondeu ele,
com naturalidade” (p.38).
29
do antigo amigo de adolescência acusado de um dos temas sartreanos favoritos a
traição.
Cohen-Solal (1986) conta que após a morte de Nizan, em 23 de maio de
1940, um ano depois de este pedir demissão do PC, surgiram uma série de calúnias
contra ele. Nizan, que fora durante 11 anos membro ativo do PC, passou então a ser
ignorado e associado a um “traidor”. Após pesquisar sobre o caso e recolher
informações com a mulher de Nizan em Nova Iorque, Sartre assume a chefia de um
grupo de intelectuais que publica no Le Figaro Littéraire um comunicado dirigido ao
PCF pedindo provas da traição de Nizan. Neste pronunciamento intitulado “O caso
Nizan” os defensores afirmavam que a acusação de traição por parte do PC tinha
como verdadeira razão a saída de Nizan na época do pacto germano-soviético. A
isto se seguiu a publicação completa da cronologia do caso em Les Temps
Modernes, estabelecendo assim “o rompimento entre os intelectuais independentes
e o PCF (que) estava consumado e terminaria por determinação de Sartre”
(LOTTMAN, 1987, p.340-341).
Outro ponto de tensão entre Sartre e os comunistas foi a estréia, em 1948, da
sua peça As Mãos Sujas, que a partir de então passou a ser usada como
instrumento de propaganda política contra o comunismo. Porém, Beauvoir (1995)
afirma que Sartre não pretendera escrever uma peça de propaganda política,
embora ela tenha assumido este contorno por colocar como protagonistas os
membros do PC. É claro que diante do contexto que estou retratando, o filósofo não
sairia imune a estas interpretações, pois encontrava-se cada vez mais envolvido
com a política e a peça fora escrita justamente na época que coincide com o
lançamento da LDR, uma liga política a qual aderiu e que o colocava novamente em
uma situação delicada com o Partido. Beauvoir (1995) não considerava a peça
“anticomunista”, mas estes se sentiram atacados ao mesmo tempo em que a
burguesia o “cobriu de flores”, para ela, isto ocorria por conta da identificação do
público com o personagem Hugo, que representava um jovem que fora encarregado
de um assassinato que remetia aos mandamentos do Cominform. Desde então, a
peça foi alvo de inúmeras entrevistas, tentativas de interpretações e proibições
32
.
Em 1949, Ília Ehrenburg, correspondente itinerante da URSS, denunciou As mãos
32
Contat&Rybalka relatam que em uma adaptação americana intitulada de Red Gloves a peça foi
totalmente modificada, onde inclusive um dos personagens faz um longo discurso sobre Abraham
Lincoln! (CONTAT&RYBALKA, 1970, p.180-181).
30
sujas em Les Lettres Françaises de “panfleto anticomunista e anti-soviético”
(LOTTMAN, 1987, p.364) e a peça chegou a ser proibida na URSS. Três anos
depois, tempo em que Sartre se encontrava próximo ao PC, a peça chegou a ser
proibida pelo próprio, que veio a esclarecer sua atitude dois anos mais tarde: “eu
não reprovo As Mãos Sujas, mas me arrependo do uso que dela fizeram. Minha
peça se tornou um campo de batalhas político, um instrumento de propaganda
política” (SARTRE apud CONTAT&RYBALKA, 1970, p.182, tradução minha)
33
.
Sartre voltou a permitir a representação da peça em 1962 e, em entrevista a
Paolo Caruso, tradutor italiano da Crítica da Razão Dialética, ele esclareceu o
verdadeiro significado da peça
34
, que não coincide com o destino do personagem
Hugo. Além disso, um outro mal entendido que Sartre procura desfazer diz respeito
a freqüente interpretação de que este personagem seria uma projeção dos conflitos
do próprio autor:
[...] tenho grande compreensão pela atitude de Hugo, mas vocês se
enganam ao pensar que me encarno nele. Eu me encarno em
Hoederer. Idealmente, claro: não pense que pretendo ser Hoederer.
[...] Hoederer é aquele que eu gostaria de ser se eu fosse um
revolucionário (SARTRE apud CONTAT&RYBALKA, 1970, p.183,
tradução minha)
35
.
Por fim, em retrospecto, Sartre fala de sua trilha ao lado dos comunistas,
intitulando-se como um “companheiro de estrada” crítico: “Eu cometi muitos erros,
mas eu creio que uma tensão entre a crítica e a disciplina seja a situação
característica do intelectual “companheiro de estrada” (SARTRE apud
CONTAT&RYBALKA, 1970, p.184, tradução minha)
36
. Esta opinião parece não ter
variado tanto ao longo dos anos, apesar de suas atitudes de “companheiro de
estrada” terem se mostrado bem distintas em alguns períodos. De qualquer modo,
em 1947, Sartre tentava manter a “impossível” terceira via e, neste sentido, não
estava sozinho. Uma das tentativas mais concretas de viabilizar esta posição política
33
No original: “Je ne désavoue pas Les Mains Sales, mais je regrette l’usage qui en a été fait. Ma
pièce est devenue un champ de bataille politique, un instrument de propagande politique”.
34
Contat&Rybalka afirmam que esta entrevista é essencial para uma boa compreensão da peça.
35
No original: “J’ai plus grande compréhension pour l’attitude de Hugo, mais vouz avez tort de penser
que je m’encarne en lui. Je m’encarne en Hoederer. Idéalemente, bien sür ; ne croyez pas que je
prétende être Hoederer [...] Hoederer est celui que je voudrais être si j’étais un révolutionnaire”.
36
No original : “J’ai commis beaucoup d’erreurs, mais je crois qu’une tension entre la critique et la
discipline est la situation caractéristique de l’intellectuel ‘conpagnon de route ‘”.
31
foi a criação em 1948 da Liga Democrática Revolucionária (LDR)
37
, logo depois do
fim do programa de rádio semanal intitulado “A tribuna de Temps Modernesque
sustentava, e por isso fora cancelado, esta posição (COHEN-SOLAL, 1986).
Procurado por Georges Altmann de Franc-Tireur¸ e por David Rousset, um ex-
deportado, autor de O universo concentracionista, Sartre aceita colaborar com a
formação da LDR (WINOCK, 2000). Diz Beauvoir (1995) que as motivações de
Sartre giravam em torno da esperança de poder agir em direção à construção de
uma Europa socialista independente dos blocos. Ele dizia que ao propor um
engajamento, e chega afirmar que Que é a Literatura? o levou a LDR, ele tinha um
papel a representar naquela sociedade marcada por um PCF alinhado com a URSS
e uma SFIO (vertente socialista) aburguesada. Por fim, desabafa Beauvoir (1995):
“lutar contra aquela direita, guardando ao mesmo tempo uma distância em relação
ao stalinismo, o era simples” (p.136). Embora o próprio Sartre tenha afirmado que
não se tratava de um partido, mas sim de uma Liga, Cohen-Solal (1986) vai dizer
que esta foi a primeira e última experiência partidária verdadeira de Sartre após
poucos meses de “Socialismo e Liberdade” na Resistência; e que esta experiência
“representa, durante um ano e meio, um autêntico mergulho do filósofo na arena
concreta da prática política atuante” (p.390-393).
Mas a LDR não sobreviveu por muito tempo, depois de um “nascimento
eufórico”, parecia que iria perdurar, mas afundou após uma briga entre Sartre e
Rousset. Os efeitos das ações da Liga, segundo Cohen-Solal (1986), apareceram
mais de vinte anos depois em maio de 68, mas no momento de sua existência esta
tentativa não pôde sobreviver ao dualismo imposto pela Guerra Fria. Winock (2000,
p.587) resume enfim: “O “neutralismo”, posição acima de tudo, moral, goza do apoio
da opinião pública [...] mas carece de articulação política, tanto é que a lógica da
guerra, ainda que fria, impõe o dualismo”.
Na hora de escolher, Sartre irá optar por manter-se ao lado dos comunistas,
posição que adota por volta de 1950. Francis Jeanson (1987) distingue quatro fases
nesta relação de Sartre com os comunistas, que nos ajuda a situar seu percurso de
“companheiro de estrada”:
37
Pode também ser encontrada em algumas referências por RDR : Rassemblement Démocratique
Révolutionnaire.
32
· A primeira fase, a qual está sendo retratada aqui, corresponde ao período de
1945 a 1950 e se caracteriza por uma crítica à ideologia e tática comunista.
Ela é expressa nos textos Materialismo e revolução; Colóquios sobre a
política e pela própria LDR.
· A segunda fase é de aproximação e relativa adesão às formas de luta
adotadas pelo PC, ela corresponde ao período de 1951 a 1956 e o texto em
que mais expressa esta adesão é Os comunistas e a paz.
· De 1956 a 1962 ocorre uma nova fase de afastamento e crítica. (por conta da
sublevação em Budapeste e repressão pelo exercito soviético e em 1962 o
fim da guerra da Argélia.) e...
· De 1962 em diante ocorre uma nova reaproximação, que para Jeanson se
caracteriza pelo fato de o PC (e boa parte da esquerda francesa) parecer
“menos decepcionante” do que antes na visão de Sartre.
Dado este mapeamento, podemos perceber claramente que também Jeanson
(1987) indica que o período do pós-guerra foi marcado por um diálogo crítico de
Sartre com o PC. Este foi o período ainda em que se deu início a uma série de
ataques às posições de Sartre constituindo assim, em torno de sua figura pública,
um fenômeno interessantemente analisado por grande parte de seus comentadores
e biógrafos: o de alvo predileto. John Gerassi, filho de seu amigo Fernando Gerassi,
e eleito por Sartre como seu “biografo oficial” escolhe o representativo título para sua
biografia: Jean-Paul Sartre: consciência odiada de seu século. Para Gerassi (1990),
“nenhum intelectual, nenhum escritor, ninguém é mais odiado pelos acadêmicos e
pelos jornalistas, pelos tecnocratas e pelos políticos dos dois lados do atlântico”
(p.39). Opinião que parece estar de acordo com István Mészáros (1991), que
analisou a obra de Sartre de forma crítica e meticulosa, quando afirma que “escritor
algum foi alvo de tantos ataques, de origens mais variadas e muito poderosas
38
(p.9-10). Desta forma, a celebridade nasceu junto ao ódio, em uma relação ambígua
entre um público que via e desejava obter do existencialismo uma “solução sonhada”
39
, uma doutrina capaz de falar de uma moral, de liberdade e do homem de ação
38
Além dos ataques citados nas páginas precedentes (e muitos outros não citados), Mèszáros
(2001) destaca: Em 1948 o Governo da URSS assume posição oficial contra Sartre e, no mesmo ano,
um decreto do Santo Ofício coloca no Index a totalidade de suas obras; em Outubro de 1960 ocorre
uma passeata de veteranos de guerra onde proclamam: “Fuzilem Sartre”; mais tarde dois atentados a
bomba contra seu apartamento, um em 19 de Julho de 1961 e outro 7 de janeiro de 1962.
39
O termo é de Beauvoir (1995, p.43).
33
para uma época que precisava reconstruir um mundo e seus valores e que, ao
mesmo tempo, não lhes dava exatamente o que pediam. Segundo Beauvoir (1995),
havia uma “notável coincidência” entre o que o público desejava e o que Sartre
podia lhes oferecer, pois eles sonhavam em tentar entender e assimilar estas novas
revelações da História sem, no entanto, ter que jogar fora suas antigas justificativas
burguesas; mas o que Sartre lhes oferecia em seus romances era uma imagem da
sociedade que eles queriam recusar. Diz Simone:
[...] foi por isso que o sucesso de Sartre foi tão ambíguo quanto
volumoso, inflado desta mesma ambigüidade. As pessoas se
lançaram avidamente sobre uma comida qual tinham fome;
quebraram os dentes e soltaram gritos cuja violência intrigava e
atraía. [...] a liberdade que lhes oferecia implicava em fatigantes
responsabilidades; voltava-se contra as instituições, os costumes,
destruía sua segurança. Convidava-os a usá-la para se aliar ao
proletariado: eles queriam entrar para a História, mas não por essa
porta. Categorizados, catalogados, os intelectuais comunistas os
incomodavam menos (BEAUVOIR, 1995, p.43).
Para Cohen-Solal (1986), as pessoas sabiam que este era um momento de
enterrar a tradição do pré-guerra, e Sartre trazia em sua moral e literatura elementos
representativos desta ruptura. É certo que Sartre nasce desta mesma tradição e é
contra ela mesma, que o constitui, que muitas vezes se revolta. Falarei sobre este
movimento de oposição a si mesmo em outro momento, pois é ainda necessário
explorar de que maneira este engajamento que é tão claro na época do pós-guerra
se baseia em um movimento cujas raízes atravessam outros períodos históricos que
vieram a deixar de herança esta mesma tradição.
2.2 A literatura engajada e as redefinições na distância entre literatura e
política.
Em seu livro Literatura e Engajamento: de Pascal a Sartre, Benoit Denis
(2002) realiza um amplo estudo sobre o tema do engajamento e afirma que devemos
ao século XX a expressão “literatura engajada” pelo corpo teórico e debate político
que neste se desenvolveu. Além disso, o autor considera Sartre a expressão
34
máxima deste movimento, o que parece estar em comum acordo com a referência
que Herbert Lottman (1987) faz ao termo écrivan engagé (escritor engajado), na qual
ele comenta que grande parte dos dicionários franceses atribuem a criação do termo
ao filósofo existencialista. No entanto, Denis (2002) faz questão de enfatizar - e
expõe uma série de argumentações neste sentido - que embora esta marca do
engajamento seja amplamente atribuída a Sartre, devemos entender que este termo
existia, até mesmo em sentidos bem próximos aos sartreanos. O próprio Lottman
(1987) indica que em 1933, Jean Guéhenno falava do engagement
40
dos
escritores e ele acredita que possa haver referências ainda mais antigas; ele aponta,
em seguida, Romain Rolland e Henri Barbusse como fundadores deste movimento.
O filósofo Alino Lorenzon (2008) também afirma que a palavra foi posta em
circulação nas reflexões e debates dos anos de 1930 e 40, mas atribui ao filósofo
russo Paul-Louis Landsberg a introdução do termo e a influência deste nas idéias do
personalismo, vertente sustentada pelo movimento católico da revista Esprit de
Emmanuel Mournier. Segundo o autor, Jean-Marie Domenach atribui a Rougemont e
Mournier o primeiro e amplo uso da palavra engajamento, e assim nos indica a
possível influência deste movimento no pensamento de Sartre. De fato, houve uma
influência “cristã” na posterior definição do engajamento deste filósofo, como nos
mostra Denis (2002), especialmente com relação às concepções do filósofo Gabriel
Marcel que vêm a esbarrar no personalismo de Mornier. De qualquer modo, antes
mesmo do aparecimento do termo engajamento, a literatura apresentava uma
história de ligação com a política - o que se torna explícito em alguns momentos
históricos que exigiam as censuras e proibições de livros que resultavam muitas
vezes nas clássicas fogueiras de obras proibidas
41
.
Diante de todas estas nuances, Denis (2002) irá fazer uma distinção entre os
termos literatura engajada e literatura de engajamento, que acredito ser muito
apropriada para diferenciar um movimento situado no século XX (de modo geral, a
partir do caso Dreyfus
42
), que teve seu auge no s-guerra com as formulações de
Sartre (literatura engajada); e a literatura de combate e controvérsia de forma geral.
Ele acrescenta que a literatura de engajamento, em muitos momentos, veio a
influenciar os escritores engajados, mas que, ao longo da história, esta literatura que
40
Coloco o termo no original para ressaltar seu aspecto de “movimento literário”.
41
Canfora (2003) cita, por exemplo, a destruição da biblioteca hebraica durante a revolta dos
Macabeus em 168 a.C. até a queima de livros feita pelos Nazistas em 10 de maio de 1933.
42
Falarei com mais detalhes sobre o caso Dreyfus no terceiro capítulo.
35
exercia seu alcance político, não era denominada ou problematizada como tal.
Concentrei-me aqui, no entanto, no fenômeno da literatura engajada, visando
compreender brevemente os fatores que a constituíram e vieram a tornar possível
um pensamento como o de Sartre. De início, vale dizer que o aparecimento da
literatura engajada se deve ao entrecruzamento de uma série de movimentos
históricos que pretendo percorrer brevemente, no intuito de situar o engajamento
sartreano em seu terreno histórico.
Um destes movimentos que se mostrou fundamental para a aparição do
escritor engajado foi o surgimento, como veremos com mais detalhes, do papel do
intelectual. Neste momento, porém, torna-se relevante ressaltar o quanto o
movimento de autonomia dos intelectuais teve sua função essencial neste processo.
O escritor, de modo geral, teve diferentes papéis e status social em épocas distintas,
mas, particularmente na modernidade, estas mudanças estavam majoritariamente
relacionadas à união ou diferenciação de sua imagem e função com a dos
intelectuais. Este é um dos três fatores apontados por Denis (2002) como
determinante no surgimento do que viria a ser a literatura engajada. De acordo com
o autor, o campo literário se manteve durante muito tempo atrelado à figura do
intelectual, que tendia a superpor às funções tradicionalmente atribuídas ao escritor
e à escritura. Porém, a partir do movimento de autonomização dos intelectuais nos
anos 20 e 30, o escritor, pela falta de lugar garantido no debate público, teve de se
reposicionar no terreno político e portanto iniciou um movimento em direção ao que
viria ser o engajamento:
Nessas condições, trata-se para o escritor de saber como a literatura,
com os seus meios específicos, pode reconquistar o terreno da
prédica sócio-política. Ela não o pode fazer senão através do
engajamento e a invenção do que Barthes ainda chamava “um tipo
bastardo”: o escritor-escrevente, classificação atrás da qual
reconheceu-se o escritor engajado, e do qual Sartre é, sem dúvida, a
encarnação maior (DENIS, 2002, p.21, grifo meu)
43
.
43
O próprio Sartre (1994) esclarece o significado das definições de escritor e escrevente para Barthes
em sua conferência de 1965: O primeiro “é o guardião da linguagem comum [...] e seu material é a
linguagem como não-significante ou como desinformação; é um artesão que produz um certo objeto
verbal através de um trabalho sobre a materialidade da palavra, tomando como meio as significações
e como fim o não-significante”, e o último “se serve da linguagem para transmitir informações” (p.59).
O escritor engajado seria então a junção destas características no tipo bastardo do escritor-
escrevente.
36
Outros dois fatores que Denis (2002) estabelece como marcantes para o
nascimento da literatura engajada são novamente um movimento de autonomização,
mas desta vez do campo literário em si; e a Revolução de Outubro de 1917.
Segundo o autor, com relação a este primeiro movimento, inaugura-se por volta de
1850 o período da modernidade literária, onde ocorre uma espécie de
“enclausuramento” dos escritores entre si. Eles passam a adotar uma série de
medidas que os distanciam do debate político e social e os enquadram em uma
espécie de “aristocracia” simbólica. Para Denis (2002), todas essas medidas tiveram
por efeito estabelecer um corte profundo entre a literatura e a sociedade em geral,
fazendo com que o escritor o se sentisse mais “em débito” ou necessariamente
“solidário” com os debates e lutas sociais. Este momento de autonomização da
literatura foi responsável, inclusive, pela aparição do termo “literatura”, que veio
substituir a denominação corrente até então, “belas letras”
44
. Adriana Facina (2004)
coloca que a partir de 1848, período caracterizado por uma onda de revoluções
conhecida por “primavera dos povos”, houve uma “redefinição de fronteiras” que
“impôs um questionamento das relações entre literatura e política e estimulou o
surgimento do escritor, entendido como alguém cuja principal função é a experiência
com a linguagem” (p.8). Isto também foi impulsionado, continua a autora, pelo
crescimento da imprensa jornalística e da publicação de livros no século XIX, o que
permitiu aos escritores o próprio sustento por meio deste trabalho, produzindo para
um público que comprava avidamente os folhetins que se destinavam a publicar
seus romances
45
. Definido este campo de autonomia literária, o escritor surge com
um novo papel e status social que o legitimará como “homem de letras”, ligado a um
uso próprio da forma que caracteriza sua preocupação muitas vezes restritamente
estética.
Tzvetan Todorov (2009) em A literatura em perigo nos oferece um breve
panorama do nascimento da estética moderna em meados do século XVIII,
ressaltando os pontos de transição do pensamento acerca do objeto estético, os
quais vieram a fundamentar o conhecido e atual distanciamento entre a literatura e o
mundo. Esta aparente “falta de ligaçãofoi provocada por uma série de mudanças
44
Este termo indica a suprema valorização do “belo”, conseqüência do nascimento da estética
moderna, conforme veremos adiante. Todorov (2009) indica que o termo “belas-letras” irá diferenciar
as artes das práticas não-artísticas (ou seja, existem “letras” que não são belas) ressaltando o belo
como sinônimo de arte.
45
Dentre estes, Facina (2004) destaca: Charles Dickens, Balzac e Alexandre Dumas.
37
cujo ponto de partida data ainda no período do Renascimento. Este foi o momento
em que se deu início à apreciação do belo como valor supremo da obra de arte,
onde se pedia à poesia que fosse bela, sendo a beleza definida como sinônimo da
verdade e medida por sua contribuição ao bem. Posteriormente, por volta do século
XVIII, a idéia do belo muda de perspectiva e passa a ser definida por aquilo que
basta a si mesmo, isto é, passa a ser, no plano funcional, aquilo que não possui fim
prático. A progressiva submissão das artes às exigências do “belo” estabeleceu uma
ruptura com a visão clássica que pressupunha que arte deveria “instruir e agradar” e
passou-se a valorizar o artista criador como um “Deus fabricante”, que encarnava o
espírito das luzes da autonomia do indivíduo livre. Por conseguinte, Todorov (2009)
coloca que “essa interpretação da idéia do belo, imposta a partir do século XVIII, é
em si mesma uma laicização da idéia de divindade” (p.48), isto é, na medida em que
ocorre um processo de secularização social, a arte passa a ocupar o lugar reservado
ao sagrado e ao divino. Em suma, Todorov (2009) afirma que a ausência da
finalidade externa da obra é compensada, de uma certa maneira, pela densidade
das finalidades internas e assim “graças à arte, o ser humano pode atingir o
absoluto” (p.48). Facina (2004) acrescenta que a concepção que valoriza o “artista
criador” pressupõe que a arte seja a expressão da individualidade e singularidade de
um indivíduo provido de talentos e habilidades sociais, entendido ainda hoje, na
sociedade contemporânea, como um “gênio”. Esta visão teve ainda a contribuição
dos valores da estética romântica, que não introduz uma ruptura notável na visão de
Todorov (2009), mas acrescenta um juízo de valor na comparação da arte com as
ciências, onde a primeira aparece como superior à segunda. Para Facina, a
concepção romântica
[...] a arte e a cultura como esferas à parte da atividade humana,
completamente autônomas e distanciadas da dimensão da produção
material da vida, e conseqüentemente, mais elevadas, nobres e
sujeitas a regras especiais de entendimento que, em geral, são vistas
como da ordem da sensibilidade, muito mais que da análise racional
(FACINA, 2004, p.26).
De volta aos primórdios do movimento que viria a culminar na estética
moderna, Todorov (2009) ressalta que houve também uma retomada do
pensamento platônico como uma contemplação desinteressada das idéias. Foi
38
também neste período que o próprio termo “estética” foi criado
46
e este, que significa
literalmente “ciência da percepção”, nos indica outro fator importante resultante
destas idéias que é a valorização do receptor, como aquele que aprecia e contempla
a beleza da arte. Assim resume o autor:
[...] os dois movimentos que transformam no século XVIII a
concepção de arte, isto é, a assimilação do criador a um deus
fabricante de microcosmo e a assimilação da obra a um objeto de
contemplação, ilustram a progressiva secularização do mundo na
Europa ao mesmo tempo em que contribuem para uma nova
sacralização da arte (TODOROV, 2009, p.52).
Podemos vislumbrar, portanto, embora de forma breve, o início de um
processo que veio a desembocar na concepção conhecida pela expressão “arte pela
arte”, que irá se contrapor, em muitas análises, à “literatura engajada”. Irei explorar
as implicações desta discussão um pouco mais adiante, porém, por ora é importante
frisar apenas que as mudanças ocorridas com o advento da modernidade
proporcionaram um terreno fértil não para que esta discussão seja possível (“arte
comprometida” versus “arte pura”) como para o próprio surgimento da noção de
engajamento. Aqui se inaugura também o sentido do debate em torno da “arte pela
arte”, como afirma Denis:
Assim, é pertinente se opor, como fazia Barthes, literatura engajada
e arte pura no contexto da modernidade: se pode haver uma
literatura engajada a partir de 1850 é porque, em contrapartida, se
instala, ao mesmo tempo, a tentação permanente da arte pela arte,
quer dizer, que se esboça para a literatura a possibilidade de existir
como dobra autônoma e independente da sociedade (DENIS, 2002,
p.27).
Por fim, o aparecimento da problemática do engajamento envolve ainda um
outro fator: a Revolução Russa de Outubro de 1917, como um acontecimento que
exerceu uma forte influência política no mundo literário intelectual do entre-guerras,
sobretudo na França. Na tentativa de compreender tal alcance, Denis (2002) destaca
alguns fatores como, por exemplo, um apego tipicamente francês à idéia de
Revolução, que remete a 1789, e que acarreta em enxergar outras revoluções como
uma espécie de prolongamento ou mesmo lembrança de um processo do que fora lá
46
Em 1750, num tratado de Alexander Baumgarten.
39
iniciado. Além disso, havia uma possível tentativa por parte dos franceses de
compensar satisfatoriamente a recém-travada Grande Guerra (1914 -1918), inédita
pela violência e duração, com a idéia de uma utopia revolucionária. Por este motivo,
os escritores se tornaram participantes ativos no debate político sobre a Revolução,
reconfigurando novamente o vínculo entre a literatura e o mundo social ainda no
entre-guerras.
Nasceram algumas características que estavam plenamente
desenvolvidas no pós-guerra. Dentre estas, vale destacar uma importância
crescente do diálogo ou participação dos escritores com o Partido Comunista, posto
que este se tornava, enquanto instância política, o representante de uma delegação
capaz de afirmar uma revolução também na literatura. Segundo Lottman (1987),
uma das marcas inovadoras dos escritores e artistas da década de trinta nos
assuntos políticos era a internacionalização de suas preocupações, como, por
exemplo, o grande envolvimento destes nos debates sobre a Guerra Civil
Espanhola. Eles passaram a se posicionar também mediante ao ascendente
movimento dos regimes fascista e nazista na Europa e, a partir de então, realizaram
congressos e discussões sobre o papel da literatura no mundo social. Vemos assim
que nos anos trinta existia uma forte efervescência política no campo literário, que
gerou um debate que seaprofundado no pós-guerra e vivido com naturalidade
pelos escritores da geração de Sartre
47
.
No campo da literatura, tal reconfiguração nas relações entre esta e a política
provoca dois movimentos que foram analisados por Denis (2002), sendo um destes
o engajamento. O primeiro se caracteriza pelo movimento de Vanguarda, que na
França fora amplamente exercido pelo surrealismo, que enxerga a si mesmo como
“naturalmente revolucionário” por subverter as formas anteriores e estabelecer uma
homologia entre inovação artística e revolução política. Na visão de Todorov (2009),
por exemplo, esta nova concepção provoca um esquecimento do mundo material
onde o mundo fenomenal, acessível aos olhos de todos, deixa de ser levado em
consideração. Como conseqüência, “a intersubjetividade, que repousa na existência
47
Nos anos trinta começa também a concentração cultural e política em Saint-Germain-Des-Prés
(substituindo Montparnasse). Este lugar passa a ser a “extensão da sala de visitas” dos intelectuais e
escritores, e manterá esta tradição viva nos tempos de Sartre. Herbert Lottman (1987, p.27-31)
escreve que a Rive Gauche (margem esquerda do rio Sena) tem uma história desta tradição cultural e
literária que provém da idade média, onde a cultura dos cafés se encontrava presente. O café
Procope, por exemplo, foi freqüentado, ao longo de anos, por Diderot, Rousseau, Danton, entre
outros autores da Encyclopédie. Nos anos do Romantismo por figuras como Balzac e Musset, etc, e
mais tarde por Zola, Cézanne, e outros.
40
de um mundo comum e de um sentido comum, lugar à pura manifestação do
indivíduo” (p.68-69).
Sartre (2004) irá também se posicionar em relação a estes “movimentos
literários” do culo XX em seu texto A situação do escritor em 1947
48
, no qual
analisa as diferenças de situação entre três gerações de escritores, sendo a última a
sua. Para o filósofo, os surrealistas são impulsionados pela Primeira Guerra a um
“retorno do espírito de negatividade
49
” que reata com as tradições do “escritor-
destruidor”; uma negatividade fora da história, que apenas conserva o mundo como
está. Este movimento pertence ao que Sartre chamou de segunda geração,
acompanhado por outro grupo de escritores que foram “lidos e esquecidos”, e que
trouxeram como ruptura o fato de não se verem, de acordo com a clássica visão
moderna, como “aristocratas”. À primeira geração, porém, Sartre atribui a
reconciliação entre a literatura e o público burguês. Composta por escritores que
começaram a escrever antes da guerra de 1914, esta fazia parte da elite francesa e
não tirava da literatura seu sustento próprio: “Gide e Mauriac possuem terras, Proust
vivia de rendas, Maurois vem de uma família de industriais; outros chegaram à
literatura através das profissões liberais” (SARTRE, 2004, p.130). Decorre disto que
estes autores, provenientes dos mesmos meios e escolas que os políticos e grandes
proprietários, continua Sartre, encontram uma espécie de “caminho traçado” em
estreita dependência com a moral burguesa. Em seguida, ele esclarece:
É certo que não servirá à ideologia utilitarista; será dela, se
necessário, um crítico severo, mas descobrirá nos delicados desvãos
da alma burguesa toda a gratuidade, toda a espiritualidade de que
necessita para exercer a sua arte com consciência tranqüila
(SARTRE, 2004, p.131-132).
Esta moral burguesa, que Sartre (2004) como de má-fé, tem sua
expressão máxima na frase que ele ouviu certa vez de um jovem: “é preciso fazer
como todo mundo e ser como ninguém” (p.134). Para o filósofo isto significa justificar
a si próprio e ao mesmo tempo seguir as ordens do meio, isto é, “vender o vinho de
48
Este texto é parte de Que é a literatura? Publicado pela primeira vez em Les Temps Modernes em
1947 (CONTAT&RYBALKA, 1970, p.160).
49
Segundo Sartre é esta a idéia, embora no âmbito puramente formal, que une os surrealistas aos
comunistas, pois os últimos visavam uma também uma negatividade desconstrutiva, embora
provisória e necessária para a tarefa de reorganização social (2004, p.143).
41
Bordeaux [...] casar-se com uma mulher que traga um bom dote” e “ser como
ninguém” ao elevar-se por meio de belos escritos. “Trata-se” continua, “de colocar a
vida entre parênteses e vivê-la minuciosamente, mas sem sujar as mãos; trata-se
sempre de provar que o homem vale mais do que a vida que leva [...]
50
” (p.135).
Todo este mapeamento fala, na verdade, de um passado que Sartre
considera o “céu povoado de estrelas” da situação do escritor de 1947, pois deste
horizonte os escritores da “terceira geração” herdaram o mito de que a literatura
deveria produzir temas eternos. Uma idéia da literatura, diz Sartre (2004), que
“pertence ao espírito objetivo da época, nós (os escritores da terceira geração) a
respiramos junto com o próprio ar do nosso tempo” (p.152); e o que esta idéia
propôs foi uma nova distância, “não entre o autor e seu público o que afinal,
estaria dentro da grande tradição literária do século XIX -, mas entre o mito literário e
a realidade histórica” (p.156). Portanto, sua situação de escritor, francês, burguês,
marcado pelo tempo urgente da iminência de uma nova guerra (inicio da guerra
fria)
51
tem também pairando sobre si, o mito contra o qual deseja se colocar. Isto se
torna evidente quando Sartre de início enfatiza que o escritor francês, o “mais
burguês do mundo”, tem o hábito da literatura desde a infância, e que desde então já
cultiva pelos escritores um amor que remete ao seu próprio futuro de possível
escritor:
[...] e pensávamos ingenuamente que nossos futuros escritos sairiam
de nossos espíritos no estado de acabamento em que
encontrávamos os escritos alheios, com chance de reconhecimento
coletivo e aquela pompa que vem da consagração secular; em suma,
como bens nacionais (SARTRE, 2004, p.127).
A fim de exemplificar estas expectativas, cito um pequeno trecho do livro de
Marcel Proust No caminho de Swann, primeiro volume da série Em busca do tempo
perdido, que demonstra como a leitura e os escritores habitavam em um sublime
patamar o mundo infantil do personagem principal. Durante uma boa parte do livro,
este personagem, que é também o narrador, lembra de sua paixão por Bergotte, seu
escritor preferido e admirado:
50
Creio ser importante dizer que Sartre (2004) justifica que não deseja, porém, fazer generalizações:
“Nos grandes autores, sem dúvida, há uma outra coisa. Em Gide, em Claudel, em Proust, encontra-se
uma experiência humana, mil caminhos. Mas a minha intenção não foi pintar o quadro de toda uma
época: o que tinha em mente era mostrar um clima e isolar um mito” (p.135).
51
Período em que escreve Que é a Literatura?
42
Infelizmente, sobre quase todas as coisas, eu ignorava sua opinião.
Não duvidava que fosse ela inteiramente diversa das minhas, pois
baixava de um mundo desconhecido ao qual procurava elevar-me;
persuadido de que meus pensamentos pareceriam puras inépcias
àquele espírito perfeito, fizera tábua rasa de todos eles, de modo
que, se acaso me sucedia de encontrar em um livro seu alguma idéia
que me ocorrera, meu coração se dilatava, como se um Deus, em
sua bondade, ma houvesse devolvido, declarando-a legítima e bela.
(PROUST, 2006, p.131).
O escritor francês é, portanto, marcado por essa divindade dos escritos, este
“ar de sacralidade” da obra, e é contra esta vertente que Sartre irá dirigir sua crítica
na sua proposta de engajamento. Para isso, ele utilizará um uso específico da
relação “obra com seu tempo”, ou do “escritor com sua situação”, mantendo-se
atento e vinculado ao tempo presente. Simone de Beauvoir (1995) diz que “embora
tivesse desejado os sufrágios da posteridade” (p.44), na Apresentação de Les
Temps Modernes, Sartre optou por escolher a sua época em vez de a eternidade e,
colocando o absoluto no efêmero, despojava a literatura de seu caráter sagrado. Ela
mesma irá dizer que nunca acreditou neste “mito do eterno”: “Para mim, Deus
morreu quando eu tinha 14 anos, e nada o substituiu: o absoluto existia em
negativo, como um horizonte perdido para sempre” (p.49); ela acrescenta ainda que
desejava ser lida enquanto viva e que quase não ligava para a posteridade
52
. Essa
posição será vista por outros como uma marca negativa desta geração de escritores,
como fica claro nesta declaração de André Gide:
É precisamente que os líderes da nova geração diferem de nós,
ao julgaram uma obra por sua eficácia imediata. Procuram também o
sucesso imediato, enquanto nós achávamos perfeitamente natural
continuarmos desconhecidos e ignorados até os 45 anos de idade.
Nosso objetivo era perdurar...
53
.(GIDE apud LOTTMAN, 1987,
p.331).
52
Embora Sartre tenha demonstrado posteriormente este desejo. Por exemplo, em conversa com
Gerassi em 1979, em um dos “raros momentos de lucidez” dos anos próximos de sua morte, ele
disse: “Tudo que eu quero do futuro, o quanto houver dele, é ser lido” (SARTRE apud GEARASSI,
1990, p.31).
53
É interessante trazer aqui as considerações de Todorov (2009) quanto à desvalorização de uma
“literatura de massa”. De acordo com o autor o século XX traz uma ruptura entre “produção popular” e
“literatura de elite” desconhecida até então: Tudo se passa como se a incompatibilidade entre as
duas fosse evidente por si só, a ponto de a acolhida favorável reservada a um livro por um grande
número de leitores tornar-se o sinal de seu fracasso no plano da arte [...]” (p.67).
43
O argumento de Sartre encontra-se realmente nesta direção temporal de
“falar aos seus contemporâneos”, o que mostra que a crítica de Gide é pertinente.
Sartre (2004) irá dizer, no entanto, que a partir do século XIX, devido ao divórcio
entre o temporal e o espiritual, há uma modificação na idéia de glória para o escritor.
Esta é marcada por uma espécie de “mecanismo de compensação” no qual o
escritor mantém seu desejo de exercer uma ação direta e universal no contexto de
uma coletividade integrada, mas contenta-se em “ser reconhecido fora de sua
época”: “Mas como essa ação não é possível no presente, projeta-se para um futuro
indefinido o mito compensador de uma reconciliação entre escritor e seu público”
(p.97). Para Denis (2002), os escritores engajados irão se desvincular do tempo
moderno, onde a obra literária é escrita para a posteridade e o ideal estético era
“eternizar o transitório”, como este autor aponta que Baudelaire havia definido.
Benoit Denis (2002) afirma assim que grande parte “do prestígio do qual a obra
literária goza na sociedade reside na capacidade que lhe atribuem de se destacar do
tempo humano” (p.42). Sartre irá então definir seu engajamento como uma tarefa
que exige o comprometimento do escritor com seu público atual, visando o “finito” ao
invés da imortalidade literária. Para Mészáros (1991) este engajamento atua como
um poderoso catalisador do presente, no sentido que este está vinculado ao
futuro imediato que, ao mesmo tempo modela e estrutura nossa vida presente.
Com relação à crítica ao aspecto temporal dos autores imortais, Sartre irá dizer:
Quanto ao presente, pois, o escritor recorre a um público de
especialistas; quanto ao passado, celebra um pacto como os
grandes mortos; quanto ao futuro, apela para o mito da glória.
Utilizou todos os recursos possíveis para poder desligar-se
simbolicamente da sua classe. Paira no ar, estranho ao seu século,
expatriado, maldito. (SARTRE, 2004, p.98).
É importante ressaltar que este caráter imediatista veio a dar forma ao
engajamento de Sartre e de todos os colaboradores de Les Temps Modernes. Denis
(2002) afirma que esta “preocupação com a contemporaneidade” do engajamento é
também um ponto interessante para entender a ligação dos escritores engajados
com e escrita jornalística, aquela que “se cola o mais estreitamente ao
acontecimento” (p.39), e isto se expressa até mesmo nos títulos da coletânea de
ensaios Situações de Sartre e Atuais de Albert Camus. Não somente, estes dois
escritores alcançaram o seu auge neste “tempo urgente” do pós-guerra que, como
44
vimos, caracterizava-se por uma situação de iminência de uma possível nova guerra
(entre URSS e EUA) que contaria com a recém-fabricada bomba atômica e seu
temeroso poder, além de uma esperança real de uma revolução socialista. Irá dizer
Sartre (2004): “Quando cada palavra pode custar uma vida é preciso economizar
palavras, não se deve perder tempo fazendo gemer os violinos: vai-se direto ao
ponto” (p.172).
45
3 Sentidos do engajamento: em busca do tempo presente.
O engajamento de Sartre pode ser entendido por diferentes vias de
compreensão, mas todas se mostram atreladas de alguma forma às discussões que
envolvem a complexidade das relações entre política e arte. Isto posto, penso que
devo esclarecer aqui que, em meio a estes múltiplos caminhos, procurei dar ênfase
à uma das argumentações de Sartre que, embora não fuja a este sentido maior, se
diferencia de outros discursos sobre o engajamento. A meu ver, este diferencial
reside em entender a literatura como um apelo à liberdade do leitor e de que forma
isto implica em uma relação com o nosso presente e cotidiano. Para chegar a
explorar este ponto, busquei primeiramente falar a respeito da relação da literatura
com a sociedade, tentando escapar a certos dualismos como as vertentes idealista e
materialista na literatura e a antítese “arte pura” versus “arte engajada”. Para mim,
isto se tornou um ponto de partida necessário para que eu me sentisse mais livre
para explorar a riqueza que Sartre apresenta, principalmente, em Que é a literatura?
sobre relação do autor com o leitor. Deste modo, tornou-se importante atentar para
argumento de Sartre de que é necessário pensar, para entender o processo de
criação literária, em para quem se escreve, ressaltando a finalidade como
característica da criação do autor. O filósofo traz à luz a relação do autor com o
leitor, marcada por esta intenção do autor, que ele define como uma relação
dialética, de troca e proximidade, visto que ambos compartilham um mesmo mundo,
e, pelo mesmo motivo, a literatura mostra-se próxima à experiência cotidiana. Neste
contexto, partindo dos argumentos de Sartre, procurei outros exemplos literários,
como o da narrativa do escritor norte-americano William Faulkner, que se mostraram
interessantes para entender esta relação. No caso de Faulkner, autor analisado pelo
46
próprio Sartre, procurei refletir sobre como os discursos literários que se
assemelham aos discursos cotidianos nos fazem questionar, por exemplo, a nossa
própria experiência de temporalidade. E nesta direção, segui tentando entender o
caráter questionador da literatura, enquanto via de resignificação de nosso mundo,
onde, dialogando com Herbert Marcuse, pude argumentar sobre o papel
revolucionário da arte, em especial, a literatura.
2.1. Literatura e sociedade: “me dirijo ao leitor contemporâneo”.
Alguns autores nos permitem fazer uma aproximação da discussão que
envolve a relação entre a literatura e a sociedade como, por exemplo, Antonio
Candido. Dentre suas argumentações, Candido (2000) nos faz pensar em questões
como “qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte” e qual o
inverso. Para este autor existem duas vias para esta investigação: podemos pensar
em que medida a arte é expressão da sociedade e em que medida ela é social.
Interessado nesta dinâmica, ele procurou identificar o campo de atuação da arte,
ressaltando que este é composto de “três elementos fundamentais da comunicação
artística”: o autor, a obra e o público. Estes três elementos orientam “como a
sociedade define a posição do artista, como a obra depende de recursos técnicos
para incorporar os valores propostos e como se configuram os públicos” (p.22). Isto
quer dizer que o que a arte mostra é algo que foi feito por alguém, de uma
determinada maneira e apresentado para um público onde o autor mostra-se
preocupado com o processo de construção da obra que envolve estes elementos
fundamentais. Também Adriana Facina (2004) demarca um papel constitutivo das
intrincadas relações que permeiam uma cultura na prática social. Ela coloca que a
obra literária é parte ativa de um processo histórico e representa o seu próprio tempo
assim como seus autores, que não podem ser entendidos separados de seu
contexto. Dentre as visões mais comuns do papel da arte no social, Facina (2004)
destaca uma vertente “idealista” ,que considera a arte apartada do mundo e
realizada por certos “gênios”, como uma produção elevada e distante de uma
realidade material; e uma vertente “materialista”, que considera o papel da arte
importante para refletir as superestruturas da sociedade estabelecendo-se,
47
portanto, em uma posição oposta à visão idealista. Sendo assim, estas reflexões
mostram-se importantes para tentarmos entender a relação da arte com o social por
uma visão que escape aos dualismos e reducionismos. Concordo com a afirmação
da autora de que a arte não é um espelho do social, ela é um processo ativo que ao
mesmo tempo em que expressa visões de mundo de um certo grupo social
historicamente situado, o que inclui seu autor,e exerce um papel transformador e
constitutivo da realidade. Somada essas considerações às questões levantadas por
Antonio Candido (2000), creio que seja possível afirmar que devemos manter uma
visão dinâmica da criação literária “que engloba a arte e a sociedade num vasto
sistema solidário de influências recíprocas” (CANDIDO, 2000, p.22).
De modo semelhante às perguntas feitas por Antonio Candido, Sartre (2004),
em seu texto Que é a literatura?, denomina três de seus capítulos da seguinte forma:
Que é escrever?, Por que escrever?, e Para quem se escreve? Preocupado em
repensar o papel social da literatura na sociedade, o filósofo questiona todo o
processo de criação que envolve uma visão dialética de constante relação entre
autor-obra-leitor. Creio que esta preocupação de Sartre mostra o sentido mais
profundo de seu engajamento, por não considerar a arte fora destas relações sociais
e toda a carga de historicidade que elas produzem. Além disso, ao frisar que se
dirige aos seus contemporâneos, Sartre coloca a dimensão temporal como uma
noção chave para seu engajamento. Este aspecto tornou-se fundamental para
minhas reflexões, e entendo que esta “temporalidade” apresenta dois aspectos
importantes. Por um lado, após considerar a situação histórica do engajamento
sartreano, entendo que a urgência do tempo presente de sua época nos faz
compreender o caráter imediatista e, por vezes radical, de sua proposta - Sartre se
dirigia aos homens de seu tempo para que em conjunto pudessem construir um novo
futuro. Isto na verdade nos revela o segundo aspecto, que penso ser a visão de
uma finalidade presente na criação literária, isto é, independentemente de como se
vive uma época, na carne ou à distância, quem escreve, escreve a partir de um
mundo e para alguém. É neste sentido que entendo que os argumentos de Sartre
expressam uma relação entre literatura e sociedade que mostram um sentido de
engajamento que significa compartilhar um mesmo tempo e um mesmo mundo
revelados por essa finalidade do escritor. Deste modo, é justamente por entender
esta experiência situada de Sartre, que pretendo ressaltar a relevância deste último
sentido do engajamento, sem que para isto necessite me ater a atitudes como
48
afirmar ou defender que este deve ser o objetivo de cada obra de arte. Mas, para
tentar escapar a isso, é relevante ressaltar que os debates constantemente traçados
em torno da obra de arte na sociedade envolvem as noções de valor e sentido do
objeto estético, que são, evidentemente, atreladas ao contexto sócio-cultural da
época que os discute. Deste modo, diante de uma situação de realidade imediata
crítica, como o período do pós-guerra, o papel da arte também é definido em torno
das exigências de uma necessidade urgente de mudança e assim a dimensão
estética não foge a esta perspectiva, o que resulta em reduzir o papel da arte às
exigências de uma determinada situação.
Considerações como estas levaram o filósofo Herbert Marcuse ([1986?]) em
seu texto de 1977, A Dimensão Estética, que apresenta as reflexões finais de sua
obra, a pensar sobre o que foi feito da arte para aqueles - especialmente os adeptos
da teoria marxista ortodoxa - que visavam carregar todo tipo de arte para a esfera da
práxis radical. O pensamento de Marcuse mostra-se interessante, pois parece que
ele não desejava sucumbir ao desespero de um “tempo urgente” e se permitiu olhar
atentamente para o entendimento que normalmente se faz do objeto estético,
atribuindo valor também a outros tipos de arte que, à primeira vista, seriam
consideradas como não-revolucionárias por certos partidários da mudança social.
Isto quer dizer que Marcuse ([1986?]) mostrava-se aberto a alcançar uma verdade
mesmo na chamada “arte pela arte”, que expressa, segundo ele, um modo
diferenciado, uma necessidade que pode ser considerada, em certos aspectos, até
mesmo revolucionária. Isto nos permite talvez ampliar o debate sobre a função social
da arte que se faz presente em nossa época já que novas expressões sociais
clamam por novas reflexões.
No entanto, o que freqüentemente acontece em torno deste tema é uma
discussão de “engajamento” versus “arte pela arte” que não resulta senão nas
mesmas posições do ponto de partida, pois, como resume muito bem Benoit Denis
(2002), caímos em um dualismo que reduz a história da literatura a uma oscilação
mecânica entre arte pura e arte social. Um olhar similar e bastante interessante nos
é dado por Adorno
54
(2003), que classifica a antítese “arte engajada” / “arte pura”
54
Estou utilizando algumas reflexões importantes de Adorno em Notas de literatura I com relação às
conseqüências destas antinomias “esterotipadas”, e é somente sobre estas reflexões do autor que
almejo me debruçar, visto que discorrer sobre suas incompatibilidades com Sartre com relação à
literatura iria por demais me desviar do objetivo deste estudo. É preciso lembrar também que o texto
de Adorno sobre “engajamento”, que não pertence a este volume publicado pela Editora 34, foi
49
como parte de uma trágica tendência ao estereótipo, “ao pensamento enrijecido em
fórmulas esquemáticas, que a indústria cultural produz por toda parte e que invadiu
muito tempo o âmbito da reflexão estética” (p.152). Assim, acredito não uma
necessidade de defender dos lados da discussão clássica, mas desejo retirar da
argumentação destes pensadores um diálogo acerca da função social da literatura,
já que a podemos entender como parte do conjunto social.
Com relação à arte engajada, Adorno (2003) faz uma crítica ao seu caráter de
manipulação psicológica - o que de fato esvazia a obra de seu sentido. Nesta visão,
o autor engajado, tão preocupado em transmitir suas idéias rapidamente ao seu
“consumidor”, visa somente o fim previamente estabelecido e corrompe os meios, o
que resulta em mais uma peça na maquinaria da alienação. na visão de Sartre, o
engajamento realmente propõe uma finalidade no que é produzido por um autor,
mas esta não assume um caráter de manipulação. O que Sartre ([ca. 1960])
evidencia é que aquele que escreve, o faz a partir de uma situação social e está
impregnado por ela, ele é um agente social no mundo e se dirige a um leitor
contemporâneo. A atitude de escrever e de criar uma realidade através de um
romance, por exemplo, é engajada a partir do momento em que o autor toma
consciência de sua responsabilidade enquanto um homem que pertence à sua
época e disso não pode se evadir. Como diz Sartre ([ca. 1960]) “O escritor está em
situação na sua época: cada palavra tem repercussões. E também cada silêncio”
(p.13, grifo do autor).
Para Adorno (2003), em sua análise sobre o poeta Valèry, o fato que chamou
sua atenção foi justamente a posição do discípulo de Mallarmé de se manter
atrelado às questões sociais de seu tempo. Isto não ocorreu de acordo com uma
noção típica de engajamento, mas sim pelo fato de que o poeta agiu de modo a não
se abster da história ou embriagar-se em ilusões sobre os processos que resultam
em alienação. Devido a isso, Adorno (2003) afirma que Valèry “exprime a
contradição entre o trabalho artístico enquanto tal e as condições sociais da
produção material contemporânea” (p.159). Não somente, havia em Valèry um
desejo de se dirigir ao “homem completo”, ou seja, um homem não dividido em
partes e faculdades mentais, em funções utilizáveis segundo o esquema da divisão
do trabalho, o que mostra uma percepção social da “coisificação” do homem.
publicado pela Tempo Brasileiro em 1973, cuja tradução não tornou fácil a compreensão desta
discussão feita por este autor.
50
Sartre coloca, do mesmo modo, que é necessário pensar no homem para o
qual se dirige, e este homem sartreano se assemelha ao de Valèry no ponto em que
o filósofo afirma que não entende o homem como simples soma de suas partes, ou
de forma mecânica. No pensamento sartreano, no entanto, este tema é essencial,
pois ele fundamenta suas argumentações filosóficas e literárias na sua concepção
da existência humana, que ele entende como liberdade. Por conseguinte, ele irá
refutar a idéia de uma natureza humana, buscando compreender a condição
humana que aparece em uma de suas descrições da seguinte maneira:
Para nós, não é uma natureza que os homens têm em comum, é
uma condição metafísica: e entendemos por isso o conjunto de
obrigações que os limitam a priori, a necessidade de nascer e
morrer, a de ser finito e de existir no mundo entre outros homens. Em
relação ao resto, constituem totalidades indecomponíveis, cujas
idéias, os humores, os actos são estruturas secundárias e
dependentes e cujo caráter essencial é o de estarem situados,
diferindo entre si como as suas situações diferem entre elas. A
unidade destes todos significantes é o sentido que manifestam. Quer
escreva ou trabalhe em série, quer escolha uma mulher ou uma
gravata, o homem manifesta sempre: manifesta o seu meio
profissional, a sua família, a sua classe e, finalmente, como está
situado em relação ao mundo inteiro, manifesta o mundo. (SARTRE,
[ca. 1960], p.21- 22, grifos do autor).
Quanto a esta condição metafísica, Sartre (2005e) a conceituou em seu
ensaio de ontologia fenomenológica O Ser e o Nada. Neste estudo clássico, ele
definiu a liberdade como modo de ser do homem, o qual chamou de ser Para-si, que
existe sempre em situação. As bases desta teorização se encontram na
fenomenologia de Husserl, que permite estabelecer uma indissociável relação entre
homem e mundo, através da noção de intencionalidade da consciência. Sartre
utiliza-se desta noção de consciência intencional que, entendida como puro
movimento em direção ao mundo, permitia libertar a consciência das visões
substancialistas da psicologia e também superar a dicotomia entre idealismo e
materialismo da filosofia tradicional. Isto significa que a fenomenologia permitia
acabar com a apologia do idealismo, no qual o mundo “perdia sua substancialidade
ao se reduzir ao sujeito conhecedor e, deste modo, tudo se resumiria a ser um
produto de suas próprias idéias, o que, nas palavras de Sartre (2005f), caracterizava
uma “filosofia alimentar” que reduzia a matéria à “interioridade gástrica” do Espírito.
E, por outro lado, a posição materialista, que, como o nome indica, postula a
51
primazia da matéria onde o sujeito do conhecimento desaparece por completo,
gerando a posição de que os objetos explicam-se por si, sem qualquer consciência
que os revele, como resume Maheirie (1994). No que diz respeito à psicologia,
Sartre compreendeu que a noção de intencionalidade o permitia questionar a
concepção clássica que a entendia uma espécie de caixa, um lugar, onde as
sensações e as imagens se agrupariam, tema que é enfatizado por Moutinho (1995).
Admirado pela idéia da consciência intencional, Sartre (2005f) concorda com
entusiasmo que “Husserl não cansa de afirmar que não se pode dissolver as coisas
na consciência” (p.55). Ao percebermos um objeto, ele está localizado, situado,
espaço-temporalmente no mundo e não como captá-lo para “dentro da
consciência”, pois não podemos entendê-la por uma perspectiva espacial, o que
impossibilita a noção de que algo possa estar dentro dela. Além disso, ao falarmos
da consciência, falamos de algo sem substância, translúcido. O objeto, por sua vez,
é opaco, o que significa que a consciência não pode nunca ser confundida com este
que eles não possuem a mesma natureza. Conclui Sartre (2005f) que Husserl
mostrou que a consciência é um eterno movimento para fora de si, para além de si,
ao que não é si mesmo, “e essa necessidade de existir como consciência de outra
coisa que não ela mesma, ele a chama de intencionalidade” (p.57). Desta forma, não
devemos compreender a consciência da mesma maneira que compreendemos o
ser-em-si
55
, ou seja, o modo de ser dos objetos. A consciência, autoconstituinte,
translúcida para si mesma, existe como para-si, como presença a si, revelando em
seu ser um nada, como esta “distância não-espacial” de si fundamental, que a
condena à liberdade. É claro que Sartre em O ser e o Nada desenvolve uma série de
raciocínios para chegar a estas formulações, nuances que não pretendo explorar
aqui, mas vale dizer, mesmo que de forma resumida, que o homem sartreano,
sempre consciente de si
56
, está jogado no mundo pela intencionalidade e
55
Sartre (2005e) define o ser em-si em O Ser e o Nada como um ser que é maciço, opaco, pura
positividade (no sentido de não implicar em seu ser nenhuma negação), é idêntico a si e se auto-
ignora: “O ser é em-si, significa que não remete a si, tal como consciência (de) si mesmo” (p.38). Uma
das maiores preocupações de Sartre neste livro parece ser fundamentar ontológicamente o modo de
ser da realidade humana como radicalmente distinto do reino material embora seja por meio deste
que o homem descobre a si mesmo.
56
Sartre faz uma importante distinção entre consciência e conhecimento. Quando afirma que o
homem é sempre consciente de si isto não significa que ele é conhecimento de si, relação que
acontece, para ele, somente na reflexão. Ele baseia sua teoria da consciência em um modo que é
anterior ao conhecimento, que ele chama de cogito pré-reflexivo. Isto significa que Sartre deseja
manter-se fiel ao princípio que “toda consciência é consciente de si” (caso contrário seria uma
52
preenchido deste mesmo mundo, é somente por e para este que realiza sua
condição de liberdade. Esta implica, pois, que a consciência é movimento em
direção a..., em um projetar-se rumo as suas possibilidades, um eterno transcender
aquilo que é em direção ao que ainda não é, o que nos liberta de tentar entender a
ação humana como efeito de forças causais, entendendo-a como um projetar-se
rumo a estas possibilidades. Assim, resume Luiz Damon Moutinho (1995b): “Todo
fato psíquico, todo vivido, tem finalidade, sentido. Não é o passado que determina o
presente, no sentido de causa e efeito, mas a consciência é no presente conforme o
futuro que ela visa” (p.57).
Portanto, o homem ao qual Sartre se dirige é este ser preenchido de mundo,
cujo modo de ser é transcender a própria facticidade em direção ao sentido. Quando
Sartre em Que é a Literatura? afirma que devemos nos dirigir à liberdade do leitor,
ele a tinha definido como fundamento do ser Para-si em O Ser e o Nada. Neste
sentido, ele sabe que seu leitor, enquanto movimento de transcender aquilo que lhe
é dado, dará ao seu texto o caminho que bem lhe entender, e este é o risco do
escritor e também o do leitor. Não aqui qualquer caráter de manipulação, pelo
contrário, Sartre apela justamente para a consciência nadificante de seu leitor, ou
seja, a criação de seu sentido próprio. A partir disso, creio que podemos
compreender de que modo Sartre entendeu seu engajamento através da relação
autor-leitor que aponta para uma interação dialética na criação do objeto literário.
2.2. O “vai e vem” dialético da criação literária como engajamento no tempo
cotidiano.
O texto literário, enquanto documento escrito, corre o risco de ser entendido
como algo estático, objetivo e a-histórico. O objeto literário implica uma aparência de
totalidade, que o autor deixou impresso em seu texto tudo aquilo que
(supostamente) desejava revelar e mesmo suas faltas e seus “silêncios” (também
supostamente) passaram por sua revisão e a de seus editores, o que nos mostra
consciência inconsciente) mesmo que de forma não-posicional, ou seja, mesmo quando não se
coloca como objeto de conhecimento.
53
que estes devem ser entendidos como sustentados por uma finalidade
57
. Sendo
assim, conseguimos visualizar o processo: o autor cria e revisa, a editora revisa e,
talvez após algum “vai e vem”, publica o livro. Nesta ordem, o leitor “chega”
quando tudo está pronto e ele nada tem a ver com as ações anteriores. Ele apenas
recebe passivamente tudo aquilo que está acabado, sendo sua relação com o
autor abstrata e hipotética. Porém, o que Sartre (2004) tenta mostrar é que, na
produção literária, estes momentos não podem ser concebidos separadamente. Eles
fazem parte de uma interação dialética onde o autor e o leitor então em constante
diálogo.
A criação literária é produzida no mundo, sofre suas condições e as cria
simultaneamente, pois a intenção do autor existe, assim como a do leitor, e ambas
não devem ser ignoradas no entendimento desta produção. É nesse sentido que
Sartre afirma que toda literatura é engajada visto que ela propõe uma visão de
mundo que forma e sentido ao real. Ele descarta, portanto, a idéia de que a
literatura possa ser inocente, e se dirige à responsabilidade dos escritores vivos e
também a dos leitores, demarcando, deste modo, uma intenção por parte do autor
de estabelecer um “diálogo” como seu leitor. Se estivermos atentos em nossas
leituras cotidianas, podemos ver claramente alguns exemplos deste tipo de diálogo,
como este de Cervantes no início de Dom Quixote:
Desocupado leitor, não preciso de prestar aqui um juramento para
que creias que com toda minha vontade quisera que este livro, como
filho do entendimento, fosse o mias formoso, o mais galhardo e
discreto que se pudesse imaginar: porém não esteve na minha mão
contravir à ordem da natureza, na qual cada cousa gera outra que
lhe seja semelhante; que podia portanto o meu engenho, estéril e
mal cultivado, produzir neste mundo, senão a história de um filho
magro, seco e enrugado, caprichoso e cheio de pensamentos vários,
e nunca imaginados de outra alguma pessoa?[...] Acontece muitas
vezes ter um pai um filho feio e extremamente desengraçado, mas o
amor paterno lhe põe uma venda nos olhos para que não veja as
próprias deficiências; antes as julga como discrições e lindezas, e
está sempre a contá-las aos seus amigos, como agudezas e
57
Sartre (2004) discorda noção kantiana de “finalidade sem fim” para designar a obra de arte, pois
para ele a obra não tem uma finalidade, ela é uma finalidade em si. Tudo que a compõe tem uma
relação significativa que revela as intenções do autor. Sartre nos o exemplo da diferença entre a
beleza da arte e a beleza natural. Quando vemos uma flor que expressa perfeição em suas formas
tendemos a procurar uma tendência finalista que una todas as suas propriedades, e temos uma
ilusão de um apelo a nossa liberdade. É somente na beleza natural que Sartre entende a finalidade
sem fim”, pois, enquanto na natureza as coisas se harmonizam por acaso, nos romances, por
exemplo, existe uma finalidade que harmoniza o todo como uma força suave que nos acompanha e
sustenta, da primeira até a última página” (p.45).
54
donaires. Porém eu, que, ainda que pareço pai, não sou contudo
padrasto de Dom Quixote, não quero deixar-me ir com a corrente do
uso, nem pedir-te, quase com as lágrimas nos olhos, como por
fazem muitos, que tu, leitor caríssimo, me perdoes ou desculpes as
faltas que encontrares e descobrires neste meu filho; e porque não é
seu parente nem seu amigo, e tens a tua alma no teu corpo, e a tua
liberdade de julgar muito à larga e a teu gosto, e estás em tua casa,
onde és senhor dela como el-rei das suas alcavalas, e sabes o que
comumente se diz ‘que debaixo do meu manto ao rei mato’
(CERVANTES,2007, p.9).
Na passagem acima, Miguel de Cervantes (2007) faz um apelo ao leitor que,
embora pareça desocupado, tem o poder de transformar Dom Quixote no que
pretender sua imaginação. Sendo assim, ele suplica um cuidado, visto que ele
mesmo admite que cada cousa gera outra que lhe seja semelhante e que é ele,
portanto, quem está nas mãos da liberdade do leitor, o qual em baixo do seu manto,
pode lhe oferecer um destino imprevisível. Este exemplo nos mostra que uma
relação autor-leitor que constitui o objeto literário, e evidencia que, justamente por
isso, a criação envolve uma intenção do autor que inclui o outro, e esta intenção está
presente em toda obra. Para Sartre (1994), é o Outro que dá a obra literária “um lado
de fora”, um caráter de objeto para o autor que, sozinho, não encontra nada além
dele mesmo: “[...] a operação de escrever implica o outro como seu correlativo
dialético, e esses dois atos conexos necessitam de dois agentes distintos [...]
existe arte para outrem” (p.37, grifo meu).
Esta relação constitutiva que se mostra no momento mesmo da criação do
autor envolve, do mesmo modo, uma relação com o futuro, onde o objeto criado será
lido, avaliado e sentido. O autor sabe que este futuro depende de seus movimentos,
pois as páginas permanecem em branco enquanto ele não executa a sua ação, um
movimento seu que é projeto, no sentido de que visa um fim e neste fim está o leitor.
Mas o leitor não está longe, ele se encontra presente no momento da criação
enquanto mundo, enquanto realidade concreta para a abstração criativa do escritor.
As palavras que nunca são lidas não significam nada além de pontos pretos no
papel, e o escritor sabe que precisa de um outro para animá-las e oferecê-las
sentido. Sendo assim, para Sartre (1994), o escritor não pode ser entendido
enquanto pura subjetividade e abstração, isolado de um mundo real que o
encontrará a posteriori. Ele sabe que pode tentar prever o efeito do que escreve
mas, sozinho, não poderá senti-lo. Deste modo, o leitor faz parte da criação, ele
55
sentido ao texto que está lendo pela maneira que lê, pelo que sente enquanto e
pelo que sente por aquilo que lê. O leitor perde assim qualquer característica
“passiva” e passa a fazer parte da criação do processo literário, fato que também foi
ressaltado por Virginia Woolf em O leitor comum (2007). Na visão desta escritora, o
leitor vivencia de maneiras distintas a sua leitura: “Mas sabemos que não podemos
nos simpatizar inteiramente nem nos anular por completo (na leitura); sempre um
demônio interior que sussurra, ‘Odeio, amo’, e não conseguimos silenciá-lo” (p.133).
E é justamente por compreender isto que não devemos então permitir que os
julgamentos e inquietações nos afastem demasiadamente de nossa leitura ou que
tampouco nos tornemos indulgentes para com a produção literária. Virginia Woolf
aponta ainda para uma responsabilidade do leitor, fato que nos chama a atenção
pela semelhança com a argumentação de Sartre (1994), pois ela acredita que os
padrões e julgamentos que erguemos pelo ar “se tornam parte da atmosfera que
escritores respiram enquanto trabalham” como “uma influência que se produz sobre
eles ainda que jamais encontre sua forma impressa” (p.135). Para Sartre (1994), no
momento da leitura, são precisamente estes sentimentos do leitor que dão vida a
história lida, eles são a própria condição de “existência” dos personagens:
[...] a espera de Raskolnikoff
58
é a minha espera, que eu empresto
a ele; sem essa impaciência do leitor não restariam senão signos
esmaecidos; seu ódio contra o juiz que o está interrogando é o meu
ódio, solicitado, captado pelos signos, e o próprio juiz não existiria
sem o ódio que sinto por ele através de Raskolnikoff, é esse ódio
que o anima, é a sua própria carne (SARTRE, 2004, p.38).
O objeto literário, na visão sartreana, implica, assim, em uma relação autor-
leitor que é constante e exige troca, fato que permite que a criação se realize por
esta mesma relação, que, como um “pião”, diz Sartre (2004), existe apenas em
movimento e “gira” enquanto a leitura o impulsiona. É à liberdade do leitor que o
autor se dirige quando escreve, ou seja, sua capacidade de transcender o texto e
ir além do que é dado ao produzir sentido. Da mesma maneira, o leitor deve
confiar no autor, visto que segue o caminho por ele dirigido e cria em conjunto com a
sua obra. Esta interação constitui uma relação de apelo mútuo, pois um se dirige ao
58
Personagem do romance Crime e Castigo de Dostoievski.
56
outro buscando uma atitude de generosidade
59
e confiança, por um “vai-e-vem”
dialético onde autor e leitor se exigem de forma crescente e recíproca. Vale ressaltar
que tal relação acontece no mundo onde ambos estão presentes, assim como o
objeto criado,e ele encontra-se, portanto, também situado, histórico e, por isso
mesmo, inacabado embora sua aparência de totalidade.
Nesta perspectiva, o mundo aparece como condição de todo o processo de
criação literária, e, sob o engajamento de Sartre, este mundo toma forma somente
no tempo presente. A criação literária, que tende a ser vista como uma produção à
parte da realidade, como uma entidade autônoma que trata de temas eternos, ou
somente alcançáveis por especialistas, toma neste contexto o viés da
dessacralização ao entendermos o processo de criação na relação autor-leitor. A
literatura mostra-se então em estreita relação com o cotidiano, com a vida de
pessoas comuns, como pensou Norman Denzin (1984) apontando Sartre, Heidegger
e o escritor norte-americano William Faulkner como exemplos de pensadores que
tiveram como foco o homem comum e suas histórias de vida. Denzin (1984) utiliza a
noção de temporalidade como um dos pontos chaves de sua análise e distingue,
baseando-se em Husserl, duas formas de conceber o tempo: o tempo mundano,
cortado, categorizado em blocos e segmentado, e o tempo fenomenológico, que é o
tempo entendido como fluxo contínuo. Este último é o tempo atrelado as nossas
experiências cotidianas, que ainda não possui um sentido até que possamos passar
por elas e encaixá-las na coerência do tempo mundano. Na opinião do autor, a
fenomenologia sugere assim uma preocupação com o cotidiano, ao colocar como
centro de sua investigação o tempo da vivência cotidiana e a importância da pessoa
comum
60
. Conclui Denzin (1984) que “as pessoas comuns universalizam, através de
suas vidas e de suas ações, a época histórica em que vivem” (p.30), e por isso é
interessante aceitar o desafio de estudar não “o cimento e a infra-estrutura das
sociedades de hoje, mas [...] pessoas vivas, que respiram e sentem” (p.32).
Penso que Sartre tinha de fato uma intenção de criar personagens cada vez
mais próximos ao homem comum, com os quais os leitores pudessem se imaginar e
se identificar por compartilharem com eles algumas situações. Mas creio que o
aspecto que mais chama a atenção em Faulkner, também apontado por Denzin
59
Sartre (1994) define generosidade como uma “uma afeição que tem a liberdade por origem e por
fim” (p.42). Ele parece ter se inspirado no escritor Jean Genet quando ele mesmo cita o que Genet
entende como uma “cortesia do autor para com o leitor” (p.41, grifo meu).
60
Este comentário é feito por Denzin (1984) com base no livro de Anatole Broyard Ordinary People.
57
(1984), não é tanto por personagens extremamente mundanos, mas sim por um
estilo narrativo que é de difícil compreensão, pois se sustenta em uma desordem
proposital, onde os fatos e acontecimentos se revelam por pedaços cortados e fora
da coerência temporal. Por esse motivo também, os romances deste escritor foram
objeto de análise de alguns críticos, dentre estes o próprio Sartre (2005f), que visou
justamente discutir o tema da temporalidade faulkneriana
61
.
Por um caminho distinto, mas em direção semelhante, o historiador
Alessandro Portelli (1991) se interessou pelo estilo de Faulkner com o objetivo de
entender as diferenças ou aproximações de seu texto com as narrativas orais,
próprias do cotidiano. Portelli desejava estabelecer uma aproximação da literatura
com o mundo através do estudo destes discursos e Faulkner mostrou-se
interessante por ser capaz de inverter as características dos discursos textuais e
orais, isto é, quando Faulkner coloca no texto características próprias do discurso
oral. Portelli, ao ministrar uma matéria sobre literatura na universidade de Roma,
utilizou então o texto de Faulkner para explorar com seus alunos a proximidade entre
os discursos literários e o cotidiano. Esta experiência mostrou-se representativa da
relação de distância que as pessoas tendem a ter com relação à arte, e o professor
pôde observar que eles tentavam entender os textos com certo afastamento, como
se estes fossem algo que existisse fora de suas realidades e como se a literatura se
constituísse por si só, criada por certos gênios escritores que existem “no ar” e que
nada têm a ver com a realidade concreta. O que Portelli desejava realmente era
instigar os alunos a pensar na literatura como experiência cotidiana, estabelecendo
pontes entre as narrativas literárias,e suas formas de discursos, com aqueles que
proferimos todos os dias, embora cada qual mantenha suas especificidades. No
entanto, Portelli (1991) teve dificuldades para demonstrar essa proximidade, pois
observou que mesmo quando eles conseguiam equiparar a literatura com suas
narrativas cotidianas, isto levava a uma depreciação da literatura, ao invés de uma
valorização de seus discursos, sendo assim, o critério de valor permanecia o
mesmo, o que o levou a concluir que “a arte é medida pela distancia de nossas
vidas” (p.282).
O texto escolhido por Portelli (1991) para trabalhar com seus alunos foi
Absalom, Absalom! de Faulkner. O que ele pretendia mostrar é que a desordem
61
Exploro este tópico mais adiante.
58
temporal que aparecia no romance de Faulkner é própria dos discursos orais, da
maneira pela qual contamos e ouvimos histórias. Os alunos puderam observar que a
fragmentação do discurso, que parece tão incomum em um texto escrito, está
presente nas falas em geral do dia-a dia, e que o lugar em que Faulkner nos coloca
enquanto leitores é na verdade o lugar que ocupamos em nossa própria vida ao
ouvir pedaços retalhados das histórias familiares. Diz Portelli:
A maior parte dos relatos pessoais ou familiares são contados em
pedaços e episódios, quando surge a ocasião; conhecemos mesmo
as vidas de nossos parentes mais próximos por fragmentos,
repetições, por ouvir dizer.[...] o avô ou avó que põe um neto em seu
colo para lhe contar a história de sua vida é uma ficção literária. A
história de vida como completa e coerente narrativa oral não existe
na natureza (PORTELLI, 2001, p.11).
O que Faulkner expressa é esta temporalidade do discurso oral no texto
escrito, e com isso mostra que enquanto no primeiro o tempo recordado é vivido com
facilidade, no texto escrito ele se torna extremamente estranho. Um dos exemplos
que Portelli (2001) nos é a utilização da repetição como recurso, que assume
diferentes funções na escrita e na fala. Em suas entrevistas de pesquisa, o
historiador pôde observar que a repetição era utilizada muitas vezes como um
instrumento de controle, onde o depoente visava frisar alguns aspectos que
presumia ser de grande importância e, ao mesmo tempo, conseguia estender seu
tempo de entrevista. no texto escrito, o narrador o precisaria restabelecer o
controle, pois ele o tem integralmente, assim como o leitor, que a qualquer momento
pode voltar e reler aquilo que não foi entendido. Além disso, a repetição no texto
escrito pode torná-lo redundante a ponto de prejudicar o interesse do leitor, o que
nos leva a pensar qual seria a intenção de usar este artifício, que foi amplamente
empregado por Faulkner. Para Portelli (2001), este é o recurso que o romancista
utiliza justamente para inverter o texto escrito com a fala, visto que pela repetição ele
mexe com o tempo, e o apresenta como um discurso oral. Alem disso, é interessante
atentar para o fato de que também Sartre (2005d), que se interessa pela
temporalidade do texto faulkneriano, utiliza em seus próprios textos recursos
temporais, como podemos observar, por exemplo, nos monólogos da sua
59
personagem Lulu do conto Intimidade
62
; no qual os pensamentos noturnos da
personagem se mostram intensos, fugidios, recortados:
Henri gemeu, mas não fez o menor movimento. Estava reduzido à
impotência. Lulu sorriu: a palavra “impotência” sempre a fazia sorrir.
No tempo em que ainda amava Henri, quando ele repousava assim
imóvel, ela se divertia imaginando-o pacientemente ensalsichado por
anoezinhos do gênero daqueles que tinha visto numa estampa
quando era pequena e lera a história de Gulliver. Sempre chamava
Henri de “Gulliver”, e ele gostava porque era um nome inglês, e Lulu
tinha então o jeito de uma pessoa instruída; teria preferido, porém,
que ela pronunciasse aquele nome com o sotaque certo. Como isso
me amolava; se desejava uma moça instruída, devia ter se casado
com a Jeanne Beder, que tem seios em forma de buzina, mas sabe
cinco línguas (SARTRE, 2005d, p.86-87, grifo meu).
Neste caso o autor intercala a fala do narrador, que nos localiza em relação
ao tempo mundano da personagem - no tempo em que ainda amava Henri - com o
tempo fenomenológico do fluxo de consciência de Lulu - como isso me amolava -
também sem anunciar as mudanças para o leitor. O que interessa para o
pesquisador Portelli é achar esta ligação entre a fala e a escrita quando, por
exemplo, a fala assume um discurso textual, ou quando o texto é apresentado pela
técnica da oralidade, e ainda, quando o mesmo aspecto (como a repetição) assume
diferentes funções em cada tipo de narrativa. Todas essas nuances são passíveis de
serem exploradas se levarmos em conta que estamos falando de uma relação, entre
os narradores orais ou literários e os “leitores”. Portelli (1997) entende que existe
uma “parcialidade” do narrador, visto que ele sempre está relatando “um lado” de
uma história que possui múltiplos pontos de vista. A perspectiva do narrador é
intencional e escapa à pretensão de neutralidade, como desejavam os “narradores
oniscientes” que não se implicavam nos eventos por eles relatados. No caso do
historiador que trabalha com narrativas orais, sua influência é marcante no tipo de
discurso feito pelo entrevistado, pois este se dirige a ele e sabe que sua fala se
tornará um material que será acessado por outras pessoas. Este conjunto de fatores
influencia no tipo de discurso a ser proferido pela pessoa e também aí Portelli (1997)
faz uma aproximação com a literatura, quando ele nos mostra que os estilos, os
gêneros, os vocabulários, as gírias, os dialetos, entre outros, são significativos e
passíveis de uma compreensão.
62
Intimidade faz parte do livro de contos O Muro de 1939.
60
Nos textos de Faulkner, a relação do leitor com o autor é marcada por uma
sensação de confusão, o leitor “entra” na história e tenta sozinho descobrir o que se
passa. Ele apenas escuta diálogos e repetições de falas, ele entreouve “atrás das
portas” para aos poucos construir suas ligações que possam fazer sentido. Portelli
(1991) sente que nos romances de Faulkner os personagens falam entre si, mas
ninguém fala ao leitor, assim o leitor imerge no mundo do texto como uma criança,
sem ser vista e sem merecer explicações. Além da técnica, o escritor americano
chama a atenção também por retratar o espírito de uma época - o contexto do sul
escravocrata dos Estados Unidos de antes da Guerra Civil. Sidney Finkelstein
(1969), em Existencialismo e alienação da literatura Norte-Americana, coloca que a
força que guia o pensamento faulkneriano caracteriza-se por um sentimento de
nacionalismo “sulista” que desejava manter-se no passado feudal e sofria uma
ameaça do Norte com o avanço do capitalismo e da abolição da escravatura. Devido
a isso, os romances expressam um misto de nostalgia de um passado glorioso que
talvez nunca tenha existido e a decadência desta mesma tradição. Os personagens
se vêem amarrados por este contexto, sofrem no presente e querem manter um
passado que conhecem por pedaços de histórias. Vejo que isto se mostra bem claro
em O Som e a Fúria, por exemplo, onde os personagens expressam a todo o
momento este contexto bem descrito por Finkelstein (1969). Além disso, neste
romance, o leitor se perde desde o início, e me parece que Faulkner ([19-]) tem
mesmo esta intenção se observarmos atentamente o uso que faz de um tempo
recortado, além da ordem dos blocos narrativos e os nomes repetidos dos
personagens. Em primeiro lugar o tempo retratado por Faulkner ([19-]), diz Sartre
(2005f), é a temporalidade propriamente dita, diferente da cronologia, que é o tempo
inventado pelo homem e seus relógios. No romance, o Sr. Compsom um relógio
ao filho Quentin e lhe diz:
Quentin, dou-te o mausoléu de toda esperança e de todo o desejo. É
mais que penosamente o uses para obter o reduto absurdum de toda
a experiência humana, e que descubras que as tuas necessidades
individuais não serão mais satisfeitas do que foram as suas ou as do
seu pai. Dou-te não para que se lembres do tempo, mas para que o
possas esquecer de vez em quando por momentos, e para evitar que
gastes o fôlego a tentar conquistá-lo. Porque as batalhas nunca se
ganham. Nem sequer são travadas. O campo de batalha revela
ao homem sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão
de filósofos e loucos (FAULKNER, [19-], p.69-70).
61
Mas Quentin não agüenta carregar o relógio e o quebra, ele lembra que o pai
lhe disse que “os relógios matam o tempo” e “só quando o relógio pára o tempo volta
a vida” (FAULKNER, [19-], p.76) . Sartre (2005f) indica que para chegarmos ao
tempo real é preciso abandonar o tempo cronológico e o ato de Quentin torna-se
representativo desta passagem. Assim, parece que Faulkner ([19-]) deseja empurrar
o seu leitor no tempo presente, que é o tempo do “idiota” Benjy, um dos
personagens principais, que “não sabe ler as horas”. O escritor parece querer, ou até
obrigar, que o leitor quebre também seu próprio relógio para que não abandone o
livro logo no primeiro bloco, ele nos apresenta um tempo ilógico, cortado, invadido
por trechos de passado e presente sem qualquer ordem. também em O Som e a
Fúria uma ausência de futuro, Sartre (2005f) entende os personagens impregnados
pelo passado e coloca que esse é o sentido do presente de tais personagens: “tudo
se passa nos bastidores: nada acontece, tudo aconteceu. E é isso que permite
compreender esta estranha formulação de um dos heróis: ‘Eu não sou, eu era’”
(p.95). Na visão sartreana o futuro é uma dimensão temporal inseparável do
presente e do passado, ele faz parte do modo de ser do homem e funciona como
motor de suas ações, o que leva Sartre a concluir que o leitor não conseguirá
enxergar a si mesmo nestas “criaturas privadas de possíveis”.
Outro aspecto que me chamou a atenção em Faulkner ([19-]) é a ordenação
dos blocos narrativos: o primeiro deles caracteriza-se pelas impressões de Benjy, o
“idiota” que apenas apreende impressões fragmentadas do mundo exterior; o
segundo é relatado por Quentin, filho mais velho do casal Compson, que vivencia
seu último dia antes de se suicidar. O segundo bloco mostra-se um pouco mais
compreensível que o primeiro, mas mesmo assim revela-se confuso, próximo a um
delírio. Os últimos blocos parecem obedecer a uma ordem crescente de clareza: o
relato do filho Jason e por último da escrava Dilsey, único bloco na terceira pessoa
onde aparece um narrador. Tal arrumação me levou a pensar na intenção do autor
de propor ao leitor um caminho mais duro e de difícil entendimento, onde, somente
no final, o leitor pudesse ter alguma sensação de coerência do romance. Podemos
observar, além disso, o jogo confuso de nomes dos personagens, pois Faulkner ([19-
]) “narra” sem diferenciar ao longo do texto a quem estaria se referindo: o filho Jason
tem o mesmo nome do pai, e a sobrinha Quentin tem o mesmo nome do tio, já Benjy
nasceu com o nome de Maury, mesmo nome do irmão de sua mãe, e teve o nome
62
trocado na esperança de que sua situação (de “idiota”) pudesse ser remediada.
Talvez menos confusos que os Aurelianos de Garcia Marques
63
, entendo que a
repetição dos nomes em Faulkner pode indicar uma caracterização de um apego ao
passado e a tradição (Quentin era III e Jason IV), sentimento desesperado de
tentativa de “retorno ao passado glorioso”. Os movimentos dos personagens de
Faulkner mostram-se assim reveladores de sua época e, segundo Denzin (1984),
por isso mesmo possuem um profundo significado sociológico, ao permitir uma
ligação entre os níveis micro e macro onde as estruturas mostram-se “reais” na vida
dos indivíduos que interagem.
Simone de Beauvoir (1995) diz que Sartre entendia que “o escritor não deve
prometer futuros felizes, mas, pintando o mundo tal como ele é
64
, suscitar a vontade
de mudá-lo” (p.109). O filósofo reconhece então que os movimentos destes
personagens em suas situações nos revelam algo de nosso próprio mundo. Por esta
via, o engajamento sartreano estaria ligado à possibilidade de uma tomada de
posição do escritor que pertence a este mundo, e mais ainda, deseja mudá-lo, como
resume Denis ( 2002). Com relação a isso, Sartre afirma:
Todos os escritos possuem um sentido, mesmo que este sentido
esteja muito afastado daquele que o autor tenha pensado em dar-
lhe. Para nós, com efeito, o escritor não é Vestal nem Ariel: está
“metido no caso”, faça o que fizer, marcado, comprometido, mesmo
no seu mais profundo afastamento (SARTRE, [ca. 1960], p.11).
Ao mesmo tempo, ele nos lembra que a todo o momento quem está na outra
ponta do processo literário o leitor - possui a imprevisibilidade da ação livre, o que
caracteriza justamente a esperança do autor de apelo a liberdade, e que, a meu ver,
não condiz com uma atitude de tendências manipulatórias. Vimos que o leitor tem
suas responsabilidades e suas atitudes influenciam na atmosfera da produção
literária e Sartre (2004) coloca que é justamente pela compreensão do papel ativo
do leitor na produção literária que se estabelece uma relação autor-leitor capaz
de exprimir a esperança de mudança de um mundo estabelecido.
63
Faço alusão ao livro Cem anos de solidão de Garcia Marques, cujos personagens de uma mesma
família têm os nomes repetidos ao longo dos cem anos relatados na história.
64
É importante ressaltar que Simone de Beauvoir não compartilhava uma visão dita realista que
acredita que o escritor deve mostrar a realidade tal como ela é, mas sim que, apesar da impressão
dada na frase, seu ponto de vista encontrava-se, acredito, mais próximo ao de Sartre onde cada um
vê a realidade a partir de sua situação.
63
Desta forma, se entendemos que o homem é livre para criar-se, podemos
entender a literatura como fonte rica deste processo de criação, uma fonte que não
sugere caminhos prontos, mas que suscita questionamentos transformadores. Por
esta razão, vemos que a História está repleta de tentativas de conter o poder da
literatura, como nos mostra Luciano Canfora (2003) em Livro e Liberdade. Nesta
obra, o autor destaca que o nexo entre livro e liberdade é rico e antigo, sublinhando
inclusive que estas palavras possuem a mesma identidade gráfica de origem latina
(líber). Ao longo da História, presenciamos inúmeras fogueiras de livros e listas de
livros proibidos como o Índex da Igreja Católica, o que nos evidencia a importância
dos livros. De acordo com este mesmo autor, a idéia de que os livros teriam algum
poder inerente é antiga e remete à sociedade arcaica, mas podemos ver suas
expressões até os tempos atuais. Dom Quixote, por exemplo, tornou-se a figura
representativa daquele que vive a literatura e vivenciou, em sua história, sua própria
fogueira de livros
65
e Cervantes nos mostra assim, pela própria literatura, seu poder
e alcance exagerado através das “loucuras” de seu personagem. Além deste
exemplo dado por Canfora (2003), vejo uma outra expressão literária deste tema no
romance utópico de Ray Bradbury (2007). O título faz uma referência à
incineração de livros que Fahrenheit 451 corresponde a temperatura em que o
papel entra em combustão. Bradbury retrata uma sociedade onde os livros são
proibidos, eles foram todos queimados e os que ainda restavam, mantidos em
segredo nas mãos de certos “resistentes”, tinham sempre este mesmo destino.
Assim o autor nos mostra, em diversas passagens, principalmente nos diálogos de
um “resistente” o porquê seria perigoso para a sociedade manter vivo o poder dos
livros.
Tudo isto me leva a pensar no poder da literatura enquanto questionadora de
um mundo em que vivemos. Acredito que desta maneira podemos pegar esta via de
sentido oferecida por Sartre para pensar o papel da literatura como contestação e
resignificação de um mundo social.
65
Canfora (2003) cita um trecho de um poema do exílio, de Bertold Brecht, no qual um autor que foi
“poupado” pela fogueira dos nazistas se revolta com tamanha ofensa de não ser queimado. Brecht
estaria demonstrando assim a idéia de que aqueles que são incinerados possuem um poder
transgressor.
64
3.3 A Literatura como contestação do tempo presente.
O processo de criação literária para Sartre envolve, como vimos, uma relação
do autor com o leitor. O que Sartre (1994) chamou de apelo para à liberdade
significa entender que essa relação envolve a criação de sentido que vida ao
objeto estético. Vimos também que estas noções estão embasadas na
intencionalidade da consciência, enquanto ato significativo de criação. A partir
disso, podemos entender que o movimento característico do modo de ser da
liberdade propõe uma libertação ao opor-se ao real, não no sentido de negá-lo, mas
de resignificá-lo. Isto se torna mais claro se conseguirmos enxergar este movimento
como um questionamento do mundo comum entre o autor e o leitor, isto é, que
ambos poderiam recolocar-se em sua situação, até mesmo em posição de oposição
e resistência ao que é dado de antemão, o que me remete ao convite
fenomenológico de sairmos de nossa tese natural do mundo onde as coisas “são do
jeito que são” e nos colocarmos na atitude filosófica de questionamento. Para Sartre,
este movimento parece tomar sempre uma via política, pois como ressalta Cristina
Mendonça (2006), pensar, para ele, significa pensar contra, e a literatura está
impregnada por esta negatividade que incomoda a realidade estabelecida. Nas
palavras de Sartre:
A liberdade não é, propriamente falando; ela se conquista numa
situação histórica; cada livro propõe uma libertação concreta a partir
de uma alienação particular. Existe em cada um, assim, um recurso
implícito a instituições, a costumes, a certas formas de opressão e
conflito, à sabedoria ou à loucura do dia, a paixões duráveis e
obstinações passageiras [...] enfim, aos costumes e valores
recebidos, a todo um mundo que o autor e o leitor têm em comum
[...] e é a partir dele que o leitor deve realizar a sua libertação
concreta; ele é a alienação, a situação, a história, é ele que deve
recuperar e assumir, é ele que deve mudar ou conservar, para mim e
para os outros. (SARTRE, 2004, p.57-58).
Esta afirmação de Sartre se assemelha a de Marcuse ([1986?]), pois, embora
tenham argumentado de forma distinta, ambos parecem associar à arte uma
65
possibilidade de resistência e libertação
66
. Nesta passagem, Sartre fala do contexto
que une o escritor e o leitor, um “mundo em comum” que poderia se encaixar na
concepção de “matéria prima” de Marcuse. Em A Dimensão Estética
67
, Marcuse
([1986?]) critica a visão “ortodoxa”
68
marxista e argumenta sobre o caráter
revolucionário da obra de arte enquanto contestadora da realidade estabelecida
69
.
Um dos pontos cruciais de sua argumentação é que a obra não se resume aos
interesses de determinadas classes sociais, mas possui um potencial político em sua
própria forma estética. Porém, não devemos compreender que ao dar à arte certa
autonomia da forma o autor estaria retirando-a do contexto social, mas sim,
desvencilhando-a de uma estrutura pré-codificada que delimita seus horizontes. A
estética marxista, para a qual este filósofo dirige sua crítica, pressupõe que a arte
esteja subordinada à macro-estrutura da sociedade de classes, o que significa ao
interesse da classe em ascensão (o proletariado, por exemplo). Por conseguinte,
toda forma de arte da classe dominante é necessariamente desvalorizada e
decadente, isto é, o interesse político determina o estético. Mas o autor afirma que a
obra de arte transcende estes limites e não necessita deles para tornar-se
revolucionária, pois seu aspecto contestador pode apresentar-se como inerente à
sua forma estética na medida em que esta remodela a realidade existente em sua
própria, e nova, fôrma. neste movimento uma atuação sobre a “matéria prima”
do real para a construção de um novo fenômeno, igualmente real, sob forma de
objeto estético, como diz Marcuse ([1986?]) “é esta historicidade do material
conceitual, lingüístico e imaginável que a tradição transmite aos artistas e com o qual
ou contra o qual têm de trabalhar” (p.29). Neste sentido, o movimento de “dar forma
estética” implica em afirmar certas características do real e negar outras
70
, mas aqui
a ação de negar aparece como condição de criação e não de alienação, o que se
aproxima do movimento nadificador da consciência, expressão da liberdade em
66
John Gerassi (1990) relata que Sartre nunca lera Marcuse embora este tenha lido e comentado sua
obra. Houve apenas um encontro real entre eles, por intermédio do próprio Gerassi, em Paris, no
famoso restaurante La Coupole.
67
Texto citado no início do capítulo.
68
Neste trabalho, Marcuse ([1986?]) define “ortodoxia” como “a interpretação da qualidade e verdade
de uma obra de arte em termos da totalidade das relações de produção existentes” (p.11).
69
É importante lembrar que ele concentra sua argumentação principalmente em torno da literatura
dos séculos XVIII e XIX.
70
Sartre (1994) irá falar algo bem semelhante em relação a esta intencionalidade” seletiva da forma:
“É uma opinião muitas vezes partilhada pelos críticos: por exemplo, quem diz que ‘Victor Hugo é uma
forma em busca de seu conteúdo’ esquece que a forma exige certos conteúdos e exclui outros”
(p.56).
66
Sartre. Para Marcuse ([1986?]), o traço revolucionário da arte encontra um caminho
similar, pois expressa, como em Sartre, um desejo de libertação por negação, ou
melhor, por uma acusação da realidade estabelecida.
Outra crítica deste filósofo se dirige à noção muitas vezes comum de
subjetividade - vista como uma idéia burguesa, nociva e passível de ser eliminada
por aqueles que visam um movimento e uma compreensão social. Estes, enquanto
se restringem a esta visão pejorativa, acabam por criar uma estrutura rígida que
compromete a criação, esmaga o “mundo da subjetividade” tudo o que poderia ser
entendido como singular e que escapa ao reino da matéria. Marcuse ([1986?]) não
se restringe a isto e o deseja eliminar a subjetividade, e sim libertá-la de sua
interioridade enclausurada, o que significa resguardar a sua existência e expressão.
Desta forma, ele visa encontrar a força da mudança na inteligência, nos desejos,
paixões, impulsos e objetivos dos indivíduos e é justamente nesta “subjetividade
rebelde” que o autor acha a fonte de crítica das petrificações das instituições
existentes.
Deste processo nasce um romance, um poema, entre outras produções
entendidas por Marcuse ([1986?]) como obras que têm na realidade (histórica,
pessoal e social) sua matéria prima. Por este motivo, o objeto estético pode ser
entendido como um fenômeno sócio-histórico que expressa suas significações em
uma outra linguagem. A via de compreensão para este outro tipo de significação
exige uma outra razão, outra sensibilidade, que desafia a racionalidade e a
sensibilidade incorporadas nas instituições dominantes. Na forma estética é possível
que haja a existência da ambigüidade e da contradição, há espaço para paradoxos e
confusões, enquanto que na produção racional-científica estes aspectos tendem a
ser descartados e vistos como um “erro” no produto. O filósofo Emmanuel Carneiro
Leão (1975) faz uma distinção interessante entre estes dois modos de pensar, que
indicam duas lógicas de pensamento diversas: a lógica do cálculo e a do sentido.
Ele coloca que esta última é muitas vezes sobrepujada pelo pensamento que
calcula, pois pensar o sentido requer uma parcela de angústia que a outra lógica
tenta ao máximo evitar, isto é, há uma fuga do pensar e uma valorização das
virtudes “tranqüilas” do cálculo. A obra de arte, por sua vez, expressa a lógica do
sentido, embora eu acredite que não podermos afirmar que ela encontra-se distante
do mundo do cálculo, que muitas das medidas exatas foram usadas como
unidade de valor de sua beleza. Mas, de fato ela possui a capacidade de apresentar
67
os silêncios, desejos e contradições da realidade humana de uma forma que esta
outra razão não alcançaria por estabelecer seus limites em seus próprios princípios.
Silêncios estes também ressaltados por Sartre (1994) como característicos da
linguagem comum, que é a que serve de material ao escritor. A língua comum é
aquela que possui a maior parte de desinformações, diferentemente da linguagem
técnica cujo objetivo da comunicação é o de transmitir a maior quantidade de
informações e a menor de desinformações; ela comunica o não-saber fundamental,
e chega a “propor o silêncio com palavras” (p.65). Na literatura, ao contrário da
linguagem técnica, “uma história pode valer mais do que mil palavras”, concorda
André Barata (2006, p.30). Isto significa dizer que não uma necessidade de
estabelecer uma relação prática ou funcional da palavra, mas permitir que a palavra
se exprima por si . Segundo este autor, esta própria expressão tem valor de
realidade, pois “não está pela realidade simplesmente como um representante na
ausência de um representado. Antes substitui o real na qualidade de ela mesma ser
realidade a ser representada” (p.30). A literatura pode nos fornecer, portanto, um
sentido por uma via não-funcional ou explicativa, mostrando-se portadora das
mensagens “negativas”, que nas palavras de Benoit Denis (2002), significa “a
capacidade de trabalhar o implícito e o não dito dos discursos, a fazer aparecer a
contradição que jaz no coração das representações instituídas pronta a subverter a
positividade da palavra socializada” (p.278). E, por fim, André Barata (2006) resume
que “o conhecimento da literatura, antes de todas as proposições conhecíveis
acerca dela, é conhecimento por contacto, experiencial” (p.30-31).
Entendo que esta via do sentido alcança o social de uma outra maneira, que
não privilegia a razão e que produz um certo tipo de pensar. Um pensamento que
escapa às concepções prévias e que permite criar, abrindo novos horizontes que
possibilitam questionar a própria existência. O sociólogo Zygmunt Bauman (2004),
por exemplo, chegou a afirmar que se lembra “de ganhar de Tolstoi, Balzac,
Dickens, Dostoievski, Kafka ou Thomas More muito mais insights sobre a substância
da experiência humana do que centenas de relatórios de pesquisa sociológica”
(p.318). Bauman diz também que estas idéias estão de acordo com a visão do
filósofo Richard Rorty cujo artigo sobre Harold Bloom mostrou-se interessante para
68
esta argumentação
71
. Em Redemption from Egotism: James and Proust as Spiritual
exercises, Rorty (2001) traça as principais idéias de Bloom em torno do valor da
literatura e o poder que esta tem por ser capaz de oferecer novas perspectivas às
pessoas. Segundo Rorty, Bloom afirma que através da literatura fazemos o uso da
imaginação e isso nos auxilia a reavaliar nosso modo de pensar e sentir. Deste
modo, teríamos, através das leituras, oportunidades para alcançar o que ele chama
de autonomia no sentido de libertação do pensamento, isto é, a capacidade de sair
dos lugares comuns, revisar nosso próprio passado e experiências e assim
transcender nossas histórias individuais. Diz Rorty:
Vendo por este ângulo, o que os romances fazem por nós é nos
mostrar como pessoas diferentes de nós pensam sobre si mesmas,
como elas conseguem colocar uma boa luz nas ações que nos
causam desgosto, como eles dão significado às suas vidas. O
problema de como eles vivem sua própria vida se torna um problema
de como balancear nossas necessidades contra as deles, e suas
descrições sobre si contra as nossas (RORTY, 2001, p.6, tradução
minha)
72
.
Esta definição de Rorty (2001) deixa clara a relação do leitor com o autor que,
longe de ser neutra, é transformadora. Também Todorov (2009) cita o artigo de
Rorty, e destaca que o filósofo aponta o fato de a literatura nos proporcionar um tipo
de experiência de “encontro com outros indivíduos” de uma forma peculiar, pois
mesmo tendo como base o ponto de vista do autor, sentimos que “quanto menos
essas personagens se parecem conosco, mais elas ampliam nossos horizontes”
(p.80-81). Podemos ver que estes autores também atribuem destaque ao leitor,
especialmente ao leitor comum como nos lembrou Virginia Woolf (2007), que
acredito ser aquele que talvez mais se aproxime ao contato “experiencial” definido
por Barata (2006). Mas o fato interessante é que esta relação não apresenta apenas
os prazeres da leitura, mas também os incômodos, as angústias de nos
encontrarmos contestados por alguns personagens. Além disso, a literatura, diz
71
Refiro-me a este artigo sem, no entanto, colocar em discussão as posições de Bloom que em
alguns aspectos parecem mostrar-se conflituosas, como, por exemplo, sua concepção sobre o
“gênio”.
72
No original: “Seen in this light, what novels do for us is to let us know how people quite unlike
ourselves think of themselves, how they contrive to put actions that appall us in a good light, how they
give their lives meaning. The problem of how to live our own lives then becomes a problem of how to
balance our needs against theirs, and their self-descriptions against ours”.
69
Todorov (2009), diferentemente dos discursos religiosos, morais ou políticos, não
formula um sistema de preceitos e que por essa razão “as verdades desagradáveis
[...] têm mais chances de ganhar voz e ser ouvidas numa obra literária do que numa
obra filosófica ou científica (p.80). Para Bauman, as particularidades da obra
literária residem justamente na sua aproximação com a experiência humana, e se
caracterizam por reproduzir a “não-determinação, a não-finalidade, a ambivalência
obstinada e insidiosa da experiência humana e a ambigüidade de seus significados”
(p.319). Além disso, Adorno (2003) complementa que o romance possui a
qualificação necessária para nomear o processo mecânico das relações humanas,
de maneira a denunciar a alienação e auto-alienações universais, o que funcionaria,
a meu ver, como um tipo especial de denúncia. Para este autor, neste caso, a
alienação seria um meio estético para o romance, “pois quanto mais se alienam uns
dos outros os homens, os indivíduos e as coletividades, tanto mais enigmáticos eles
se tornam uns para os outros” (p.58). Desta forma, o meio estético utilizado pelo
romance funciona como um “espelho crítico”
73
, ao denunciar a alienação e o abismo
entre os homens, e que reflete, na verdade, todo um desencantamento do mundo.
Podemos observar um exemplo disto na narrativa do personagem sartreano Antoine
Roquentin, protagonista do romance A Náusea, que nos aproxima de tal sentimento:
Na rua Tournebride não se pode ter pressa: as famílias caminham
lentamente. Às vezes se avança uma fileira, porque uma família
inteira entrou na loja de Foulon ou na de Piégois. Mas em outros
momentos é preciso parar e marcar passo, porque duas famílias,
pertencentes à coluna que sobe, outra à coluna que desce, se
encontraram e se agarram firmemente pelas mãos. Avanço a passos
curtos. Sobrelevo-me às duas colunas e vejo chapéus, um mar de
chapéus. A maioria deles é preta e rígida. De quando em quando um
voa na ponta de um braço, deixando aparecer o brilho suave de um
crânio; em seguida, após alguns instantes de um vôo desajeitado,
torna a pousar. (SARTRE, 2002a, p.72).
O olhar aparentemente neutro do personagem, na verdade, revela a ironia do
autor ao descrever um retrato desprovido de sua convencional significação para
denunciar a estranheza das relações sociais. Mais adiante no romance, as famílias
acima citadas trocam “bom dias” e “como vais” de forma mecânica como uma eterna
73
A expressão é de Franklin Leopoldo e Silva (2004): “A negatividade autêntica se expressa no
procedimento literário pelo qual é oferecido ao leitor um ‘espelho crítico’ diante do qual ele é levado a
negar a si mesmo e ao contexto de sua experiência histórica” (p.77).
70
repetição de um texto bem decorado. Sartre aponta assim seu estranhamento e
crítica ao que chama de espírito de seriedade, uma espécie de encenação coletiva,
ou ao seu gosto, um tipo de grande comédia. Além disso, por exemplos como estes,
percebemos que podemos alcançar algo além do que está no texto e este algo pode
nos impulsionar à reflexão, o que realizaria a tarefa ética na concepção sartreana da
literatura. Esta, segundo Franklin Leopoldo e Silva (2004), se caracteriza por
“construir a mediação necessária para que o homem tome consciência de sua
alienação” (p.256). Já para Marcuse ([1986?]) talvez pudéssemos usar este exemplo
para expressar o encontro com a verdade da arte, visto que através da linguagem e
de imagens torna-se “perceptível, visível, e audível o que não é dito ou ainda não
é percebido, dito e ouvido na vida diária” (p.78).
Deste modo, podemos entender que a arte mantém uma ligação diferenciada
com o terreno social, mas nem por isso precisa ocupar um lugar à parte da
sociedade. Muito pelo contrário, procurei entendê-la em sua proximidade com a vida
cotidiana e com as questões que entrelaçam as relações humanas. A partir das
questões levantadas aaqui, podemos ver, a seguir, de que maneira Sartre, que
ocupou em sua própria vida tantos papéis, como, o intelectual, o professor, o filósofo
e dramaturgo, propôs uma contestação do tempo presente, colocando em cena
temas psicossociológicos através do que chamei de seus “heróis bastardos”.
71
4 A Literatura como expressão dos papéis sociais.
Após o percurso traçado em torno da estreita relação da literatura com o
mundo e como esta relação implica, muitas vezes, em uma contestação de uma
realidade estabelecida, creio que seja possível partir para uma análise da própria
literatura de Sartre neste sentido. Por esta razão, desejei colocar em cena o que
chamei, inspirada nas análises do crítico de Sartre, Francis Jeanson, os “heróis
bastardos sartreanos, que aparecem em sua literatura e teatro. De forma diferente
aos heróis tradicionais, os bastardos trazem para o palco social temas que nos
remetem a pensar sobre as relações intersubjetivas e de que maneira estas revelam
certos scripts sociais, ou seja, uma espécie de arrumação “roteirizada” de papéis na
sociedade. Neste sentido, procurei primeiramente falar sobre o próprio Sartre como
uma espécie de “personagem”, que surge como figura pública em um momento em
que o importante papel de intelectual já se encontrava estabelecido como um “lugar”
aceito na atmosfera pensante da época. Assim, tentei expor brevemente o que
Sartre entendia por intelectual, e qual o papel que ele mesmo exercia e que me
levou a entendê-lo como um intelectual-bastardo. Em um segundo momento, utilizei
romances e peças do teatro sartreano, que foram produzidas durante o período que
retratei do pós-guerra, culminando na sua obra sobre o escritor Jean Genet,
entendido como um grande “personagem real” de Sartre, “bastardo” por excelência e
de certo modo um outsider, de acordo com as reflexões do sociólogo Howard
Becker. Busquei assim expor as concepções do que seria um outsider desviante
para Becker, autor que prioriza o estudo do efeito do rótulo público sob um indivíduo,
o que permitiu um diálogo com as reflexões do próprio Sartre a respeito das
transformações de Genet a partir do seu ser-visto por outrem. Por fim, colocou-se a
questão de como tais arrumações sociais levam em algum momento a um pensar
72
maniqueísta que nega a ambigüidade como modo de ser do homem e também as
implicações éticas que disto decorrem.
4.1 O “personagem” Sartre: do escritor ao intelectual-bastardo.
Quando Sartre apareceu como figura pública no cenário francês, ele tinha sob
seus pés todo um terreno que possuía uma história significativa com relação ao
surgimento do intelectual e do escritor engajado. Penso que, neste contexto,
podemos olhar para Sartre como uma espécie de “personagem” que reúne algumas
das características destes dois papéis sociais que não significam exatamente o
mesmo, apesar de sua estreita semelhança. A biógrafa Annie Cohen-Solal (1986)
descreve o papel que Sartre exercia em seu tempo como uma mistura rica das
imagens tradicionais dos homens de letras:
[...] o Sartre acusado de corromper a juventude não faz lembrar
Sócrates, seu precursor no papel “filósofo de todos”? E o Sartre dos
cafés, o boêmio messiânico, não lembra Diderot? E o do
engajamento político não fala, mesmo contra a vontade, de Hugo e
Zola? [...] o ingresso na lenda [...] continua , não sem certo humor,
pelas reminiscências simultâneas, misturando tudo quanto é século,
grandes antepassados, filósofos e escritores que, homens da pena e
da espada, lhe prepararam, de certo modo, o caminho (COHEN-
SOLAL, 1986, p.348).
Sartre é conhecido como um escritor engajado, e de fato se enquadra nesta
“função”, mas, além disso, mesmo que não complete o perfil que caracteriza a
definição do que é um intelectual, é também usualmente visto como tal. Isto se torna
evidente pelos movimentos do próprio Sartre que fazia deste tema, da definição do
que é um intelectual e seu papel na sociedade, uma questão recorrentemente
debatida em suas entrevistas, conferências e textos políticos. De início, convém
destacar então as diferenças entre o escritor engajado e o intelectual, figuras que de
maneira geral costumam aparecer entrelaçadas e até confundidas. Seguindo a
diferenciação feita por Benoit Denis (2002), o escritor engajado é aquele que pratica
o seu engajamento através da sua escrita literária, e ele se propõe a exercer
73
constantemente este papel: “suas tomadas de posição fazem parte integrante da
sua busca literária [...] ele a literatura como um meio direto de tomar parte no
debate político e social” (p.216). o intelectual é aquele que se utiliza de seu
prestígio social, alcançado por um trabalho literário sem compromisso com um
engajamento, para intervir em acontecimentos políticos. Nas palavras do próprio
Sartre (1994): “[...] tendo adquirido alguma notoriedade por trabalhos que dependem
da inteligência [...] (os intelectuais) abusam desta para sair de seu domínio e criticar
os poderes estabelecidos [...]” (p.15, grifo do autor). Deste modo, o intelectual atua
sob um caráter mais pontual e momentâneo, mantendo em maior ou menor escala
sua autonomia política em relação ao seu fazer literário (DENIS, 2002, p.216).
É com o caso Dreyfus, em 1898, que surge o intelectual como uma nova
categoria social. Em 1894 o capitão judeu Alfred Dreyfus, acusado de espionagem e
traição, foi exilado para a Guiana e condenado à prisão perpétua. A partir de então
ocorreu uma série de manifestações, inicialmente sustentadas por sua família e
amigos, pedindo uma revisão do processo, contestando as evidências superficiais
que teriam sido motivo de acusações e humilhações públicas para Dreyfus (DENIS,
2002, p.209; WINOCK, 2000, p.13). Segundo Denis (2002), é a partir deste momento
que um silêncio de cinqüenta anos
74
é rompido na literatura e uma nova forma de
sua ligação com a política é legitimada. Com o manifesto Jaccusede Émile Zola
no LAurore de Clemenceau, a opinião pública se divide em dois campos: os
dreyfusards, que saem vitoriosos, e os antidreyfusards, que se caracterizam por um
espírito de nacionalismo exacerbado e anti-semitismo tendo o exército como
expoente de prestígio e unidade nacional. Facina (2004) complementa dizendo que
desde esta época, os defensores da “velha França” expressão ligada à igreja, ao
exército e à alta burguesia passaram a fazer dos judeus um alvo constante, e
contra esta visão anti-semita e tudo que ela significava que os dreyfusards se
rebelaram.
Dentre as marcas sociais restantes do caso, além do surgimento do
intelectual, encontra-se também a afirmação dos universitários e professores como
parte do debate social, legitimando uma visão habitualmente francesa de considerar
74
Desde 1848, “data simbólica da ruptura entre o literário e o social” (DENIS, 2002, p.209), conforme
vimos no capítulo um.
74
os membros do professorado como parte da intelligentsia
75
. Eles conseguem, afirma
Denis (2002), um novo prestígio por terem servido como pano de fundo do processo
de reabilitação do acusado. Os professores de filosofia, principalmente, passaram a
ocupar um lugar de “mestres do pensamento” de uma nova geração que tinha
consciência de sua força e expressão social e mostrava-se defensora de valores
republicanos e democráticos. Desde o início, continua o autor, este papel do
professor como um mentor passara a ser criticado por escritores como Barrés em
Os Desenraizados e por Bourget em O discípulo, carecterizando uma espécie de
literatura de tese “anti-universitária”. Creio que é interessante pensar que, neste
cenário, é possível perceber que se formaram aos poucos certas marcas e
particularidades de atores sociais que vão se encontrar, diluir ou contradizer na
figura de Sartre. Vemos, portanto, no fim do século XIX, estas forças se destacarem
dando vida à imagens que podemos entender como “personagens” públicos: o
escritor, o intelectual, o jornalista, o professor, especialmente de filosofia.
“O caso Dreyfus torna-se o caso Zola”, resume Winock (2000, p.31). De fato,
o escritor Émile Zola, na época de seu intenso manifesto a favor de Dreyfus, já
gozava de prestígio no âmbito literário, chegando a tornar-se presidente da
Sociedade dos Homens de Letras (WINOCK, 2000, p.23). Utilizando-se disso como
valor para sua voz, Zola passa a acirrar cada vez mais suas acusações que
envolvem os maiores poderes institucionais da França da época. Nesse sentido,
profere contra a “imprensa imunda”, contra o exército, contra o “povo envenenado” e
os anti-semitas. Certas situações e características como uma marginalidade não
anulada pelo prestígio, e uma vida privada anticonformista, entre outras, que nos
lembra justamente ao “personagem” Sartre:
Odiado pelos bem-pensantes, visto pela crítica burguesa como um
autor obsceno (um “cano de esgoto”, uma “cloaca”) execrado pela
imprensa católica como anticlerical militante [...] a prosperidade de
Zola não anulou sua marginalidade. Continua um autor maldito. E um
personagem maldito (WINOCK, 2000, p.23).
aqui podemos vislumbrar a aproximação do intelectual com a figura do
bastardo, este personagem maldito atribuído a Zola e muitas vezes a Sartre. Além
75
Segundo estatísticas de 1936, ano da eleição do governo da Frente Popular, de 450 mil intelectuais
franceses, 186 mil eram professores nas escolas oficiais (LOTTMAN, 1987, p.42).
75
disso, ironicamente, é no jornal Les Temps que é publicada uma lista de protesto
76
dos chamados dreyfusards onde fica clara a “nova força” denominada pela imprensa
e difundida por Clemenceau como intelectuais. Em Literatura & Sociedade, Facina
(2004) coloca que o surgimento do termo está ligado ao substantivo intelligentsia,
criado na metade do século XIX na Rússia e destinado a categorizar socialmente as
“pessoas cultas”. A partir do Manifeste des intellectuels de Zola no caso Dreyfus a
palavra intelectual ganhou um duplo sentido: à referência ao cultivo e à instrução
une-se o engajamento nos debates públicos como elementos que definem essa
categoria social” (p.34). Para Sartre (1994), nesta época a palavra “intelectual”
surgiu e se popularizou com um sentido negativo, pela idéia daquele “que se mete
no que não é da sua conta”, afirmação que ele acreditava ainda em 1965 que
prevalecia na essência das censuras e críticas aos intelectuais. Na verdade, o
filósofo concorda com esta idéia, embora não com a entonação pejorativa, pois de
fato “os dreyfusards, ao afirmar a inocência do réu, punham-se fora de sua
competência” (p.15).
Portanto, o intelectual é sim alguém que se mete “no que não é da sua conta”,
e isto significa dizer que ele ultrapassa um lugar, ou um papel que lhe é socialmente
destinado e reconhecido. Mas este lugar não é de forma alguma legitimado ou
garantido por um poder estabelecido, por isso, dirá Sartre (1994) ele não tem
mandato de ninguém para exercer sua função, visto que ele não é fruto de uma
decisão social que afirma sua necessidade, como, por exemplo, os médicos e
professores. Sendo assim, Sartre (1994) o entende como um produto “monstruoso”
da sociedade: “ninguém o reivindica, ninguém o reconhece” (p.32). A sociedade, no
entanto, pode valorizá-los ou pensá-los como um “mal necessário” para enriquecer a
cultura e transmitir valores, isto é, exercer uma função conservadora que suprime na
verdade a característica contestadora do intelectual. Deste modo, o intelectual irá
trair estas expectativas por se tornar crítico e negativo, ao combater o poder
estabelecido
77
. Este monstro, ou poderíamos dizer bastardo, é aquele que aparece
como o produto que “expressa o despedaçamento das sociedades despedaçadas”
76
Dentre os signatários indicados por Winock (2000), além de Émile Zola, destaco: Anatole France,
Marcel Proust, Claude Monet e Émile Durkheim.
77
Sartre (1994) irá afirmar que esta é a postura intelectual. Aquele que falsamente contesta para se
colocar na verdade na posição de conservar a ideologia dominante é o que Sartre chamou de “falso
intelectual” e que Paul Nizan chamava de “cão de guarda”: “suscitado pela classe dominante para
defender a ideologia particularista com argumentos que se pretendem rigorosos quer dizer,
apresentando-se como produtos dos métodos exatos” (p.38).
76
(SARTRE, 1994, p.30), aquele que revela as contradições sociais fundamentais.
Mas de que forma este “monstro” é criado no meio social e por que esta é a imagem
que representa o que Sartre entende por intelectual? Estas questões são
amplamente desenvolvidas na série de três conferências denominadas Em defesa
dos intelectuais , que o filósofo deu no Japão em setembro e outubro de 1965, e que
comento de forma sucinta a seguir.
Ao longo do desenvolvimento das sociedades modernas, e com a
conseqüente divisão do trabalho, explica Sartre (1994), produziu-se, por conta do
aparecimento e expansão da burguesia, os “especialistas do saber prático”, que são
os cientistas, médicos, engenheiros, juristas, professores, entre outros. Eles
nasceram devido às demandas de uma burguesia empreendida na expansão do
capitalismo comercial, com o objetivo de proporcionar os meios para que esta
realizasse seus fins, isto é, eram os homens dos meios
78
. Nesta época, a burguesia
não contava com uma ideologia própria e, apesar de desde o início entrar em
conflito com a Igreja, acabou por adotar a ideologia do clérigo (o cristianismo),
dominante até então. Os especialistas do saber prático, por sua vez, ficaram
“encarregados” de dar à burguesia, que aentão não era uma classe ou uma elite,
uma ideologia – que virá a ser, segundo Sartre, o humanismo burguês
79
.
Nesse momento, a burguesia sente a necessidade de se afirmar
como classe a partir de uma concepção global do mundo, quer dizer,
de uma ideologia: tal é o sentido do que foi chamado de ‘crise do
pensamento na Europa ocidental’. Essa ideologia será construída
pelos especialistas do saber prático: homens da lei (Montesquieu),
homens de letras (Voltaire, Diderot, Rousseau), matemáticos
(D’Alembert), um intendente geral (Helvétius), médicos etc. Eles
tomam o lugar dos clérigos e se chamam filósofos, quer dizer,
‘amantes da Sabedoria’. A Sabedoria é a Razão. Além de seus
trabalhos especializados, trata-se de criar uma concepção racional
do Universo que englobe e justifique as ações e as reivindicações da
burguesia (SARTRE, 1994, p.19, grifo do autor).
78
Os fins são determinados pela classe dominante e realizados pela trabalhadora.
79
A burguesia só tinha interesse na dessacralização de todos os setores práticos, o que não permite
uma adaptação de seus interesses à ideologia crise define sua busca por uma própria. À tentativa
de adaptar a ideologia sagrada às necessidades da classe ascendente, “nascem ao mesmo tempo a
Reforma (o protestantismo é a ideologia do capitalismo comercial) e a Contra-Reforma (os jesuítas
disputam os burgueses com a Igreja Reformada: a noção de usura lugar, graças a eles, à do
crédito)” (SARTRE, 1994, p.19).
77
Estes filósofos construíram, portanto, uma ideologia destinada à classe em
ascensão, a qual passou a constituir e propagar pensamento moderno de forma
poderosa
80
. Acontece que na época a burguesia tomava-se por classe universal e,
decorrente disso, produzia princípios universalizantes. Os técnicos ou especialistas
do saber prático, através do método analítico, produziam um saber que, sob
postulados universais, carregavam consigo as “crenças inculcadas em sua mais
remota infância”, isto é, um saber que era destinado a “exprimir o espírito objetivo
desta classe (a burguesia)” (SARTRE, 1994, p.20-21). Sartre [ca. 1960] havia
colocado em cena esta crítica ao “espírito de análise” burguês em outros momentos,
como por exemplo, na Apresentação de Les Temps Modernes, 20 anos antes da
conferência sobre os intelectuais. No texto de 1945, ele coloca que a “razão
analítica” tem como princípio o atomismo, que reduz os compostos a conjuntos de
elementos simples. Disso resulta a idéia de uma natureza inalterável destes átomos
independentemente de suas combinações, e que, transpondo para a idéia de
homem: “o indivíduo, quer ele estivesse num trono ou mergulhado na miséria,
mantinha-se intransigentemente idêntico a si mesmo, porque se tinha dele uma
concepção baseada no modelo do átomo de oxigênio [...]” (SARTRE, [ca. 1960],
p.17). Deste modo, o atomismo social recusa os “organismos sociais” por aplicar à
sociedade o pensamento cientificista da época, e reafirmar uma ideologia que se
apóia na razão analítica:
Estes princípios presidiram a Declaração dos Direitos do Homem. Na
sociedade concebida pelo espírito de análise, o indivíduo, partícula
sólida e indecomponível, veículo da natureza humana, reside como
uma ervilha numa lata de ervilhas: é redondinho, fechado sobre si
mesmo, incomunicável. Todos os homens são iguais: isto quer dizer
que todos participam igualmente da essência de homem. Todos os
homens são irmãos: a fraternidade é uma ligação passiva entre
moléculas distintas [...].É uma relação puramente exterior e
puramente sentimental que mascara a simples justaposição dos
indivíduos na sociedade analítica. Todos os homens são livres: livres
de serem homens, evidentemente (SARTRE, [ca. 1960], p.17).
80
Sartre (1994, p.21) utiliza a noção de “intelectual orgânico” do marxista italiano Antonio Gramsci,
para denominar os filósofos, pois eles tinham como função exprimir o espírito objetivo de sua própria
classe, a burguesia. Facina (2004, p.41) define os intelectuais orgânicos de Gramsci como aqueles
que são criados por cada grupo e têm como função lhes oferecer homogeneidade e consciência da
própria função nos campos econômico, político e social.
78
Este desenvolvimento do “mito do universal” é que formará a base da
contradição constitutiva do intelectual, já que, é do campo dos especialistas do saber
prático que quase predominantemente ele surge. Ou seja, a contradição
característica do intelectual surge de sua origem, ou pertencimento à classe
burguesa que sua ideologia lhe foi “inculcada” seja por educação familiar ou (e)
também pelo sistema de ensino que é controlado pela classe dominante
81
. Em sua
prática, que visa à universalidade do saber, ele se depara com as exigências
particularistas da classe cujos fins ele deve proporcionar os meios, em outras
palavras, eles são produzidos com uma contradição que exige colocar o universal
a serviço do particular e que os dilacera por não poderem questionar este
particularismo sem questionar a si mesmos. A título de exemplo, Sartre (1994) cita a
prática de um médico que procura a cura do câncer. Este trabalho tem por meta o
útil e não se define por uma especificação ou limite, isto é, ele procura a cura
universal: “quando se sabe curar um homem [...] sabe-se curar todos” (p.28). Porém,
desde sua condição de médico até o fim que levará sua pesquisa, existe um sistema
de relações sócio-político-econômicas que explicitarão a particularidade dominante
imposta ao saber universal, ou seja, “em muitos casos, com a cumplicidade do
técnico do saber prático, as camadas sociais privilegiadas roubam a utilidade social
de suas descobertas e transformam em utilidade para a minoria em custa da
maioria” (p. 27). Assim, o técnico é obrigado a se deparar com as contradições
presentes na sociedade, e se diante desta ele contesta a própria ideologia que o
constitui, ele se torna, na visão de Sartre, um intelectual:
O intelectual aparece a partir do momento em que este exercício
mesmo de seu trabalho faz surgir uma contradição entre as leis
desse trabalho e as leis da estrutura capitalista [...]. Se o intelectual
não descobre constantemente sua contradição em si, não exerce seu
oficio de intelectual, é um marginal. Se ao contrario continua
exercendo-o, ele deve ser o testemunho de sua contradição que é a
mesma dos demais. Ele deve exercer seu oficio e comprometer-se
na manifestação das contradições da sociedade (SARTRE, 1967
tradução minha).
81
Sartre (1994) explica que as classes desfavorecidas não produzem intelectuais, e mesmo se
produzissem ele se tornaria de classe média por seu trabalho e salário. Assim, elas não produzem
representantes orgânicos da inteligência objetiva que é a delas.
79
Sartre define então que o intelectual deve combater sua classe, o que
significa combater a si mesmo. Através destes argumentos podemos compreender
ainda mais seus movimentos, e sua bastardia, ou monstruosidade, como ele próprio
define. O intelectual é um monstro, pois é um traidor: recusa sua classe sem poder
livrar-se dela, e até pelas classes trabalhadoras é visto como suspeito, estrangeiro.
Seu destino solitário consiste em ser inassimilável: “banido pelas classes
privilegiadas, suspeito às classes desfavorecidas (por causa da própria cultura que
põe à sua disposição) ele pode começar seu trabalho” (SARTRE, 1994, p.48). Neste
sentido o intelectual é, portanto, um bastardo.
O tema da bastardia na obra e na vida de Sartre foi sugerido e fundamentado
por Francis Jeanson (1987), seu companheiro de trabalho em Les Temps Modernes
e apontado por Cranston (1966) como crítico favorito do próprio Sartre. É fato que o
tema aparece na obra de Sartre, quando o próprio autor define a bastardia de
certos personagens, mas Jeanson, em sua profunda análise da obra literária
sartreana define a bastardia como tema central. O que primeiramente me chamou a
atenção foi o fato de que o Bastardo, tal como definido por Jeanson (1987), possui
estreita relação com o intelectual, e foi justamente por essa relação que o autor
entendeu o próprio Sartre como a expressão da figura do intelectual-bastardo: “Um e
outro, o intelectual e o bastardo, são, com efeito, obrigados a ver o que os outros
conseguem dissimular para si próprios” (p.53). A bastardia de Sartre seria não por
uma ilegitimidade real, mas por uma ilegitimidade vivida por conta de um eterno
conflito de suas contradições fundamentais. Sartre em entrevista a John Gerassi
82
diz que chamá-lo de bastardo é “besteira”, e acrescenta:
Você pode dizer que eu era órfão, mas a noção de bastardia inclui
violência, ódio, rebelião. Eu não sentia nada disso. Por mais que eu
me iludisse, em me sentia em paz, ou, pelo menos, à vontade.
Jeanson inventou essa noção para explicar como me tornei um
revolucionário (SARTRE apud GERASSI, 1990, p.62-63).
A isso o próprio Jeanson
83
responde que a contradição, ainda que silenciosa,
é violenta, e Gerassi (1990) parece concordar ao ressaltar que Sartre nasce e é
criado no campo do ódio entre opostos: “o francês contra o alemão, o católico contra
82
Em 29 de janeiro de 1971.
83
Quem indica a resposta de Jeanson é também John Gerassi (1990).
80
o protestante, o simplório do campo contra o intelectual citadino”
84
(p.63). Não
podemos deixar de lembrar aqui de uma das falas significativas de Goetz,
personagem da peça sartreana O Diabo e o bom Deus que fala de sua bastardia
pela duplicidade contraditória:
É verdade que os bastardos traem: que queres que eles façam além
disso? Quanto a mim, minha duplicidade é de nascença. Minha mãe
entregou-se a um malandro e eu sou feito de duas metades que não
se adaptam: uma tem horror à outra (SARTRE, 1975, p.61-62).
Para Jeanson (1987), o bastardo e o intelectual além de traidores são
também impostores, mesmo título, aliás, do capítulo de Gerassi (1990) sobre a
infância de Sartre. Gerassi se refere ao Sartre criança, que se farseava para agradar
a família, como um impostor, qualidade visível no relato do próprio Sartre em As
palavras:
Mas minto a mim mesmo; finjo estar em perigo a fim de aumentar a
minha glória: em instante algum as tentações foram vertiginosas; na
verdade, receio bastante o escândalo; se pretendo espantar, é por
minhas virtudes. Estas vitórias fáceis me persuadem de que possuo
boa índole; basta que eu me largue ao seu sabor para ser cumulado
de elogios (SARTRE, 2005b, p.22).
Na verdade, o impostor se liga também à figura do comediante, papéis que
para Jeanson (1987) não se distinguem, pois ambos “pregam uma peça” e fingem
por má-fé ser outra coisa, ou seja, representam. Eles se colocam deste modo, em
oposição ao mundo que lhes aparece como comédia e por isso demonstram a
impostura na medida em que sua atitude de voltar sempre à questão ou
“simplesmente o desequilíbrio e o próprio escândalo de sua situação fazem a
Comédia aparecer como a verdadeira essência da pretensa Realidade” (p.83). Este
movimento de opor-se e distanciar-se é assim caracterizado por um perpétuo
questionamento, ato que se tornará característico do intelectual. Isto significa
estabelecer uma constante oposição a si, um confronto com si mesmo, o que na
visão sartreana significa também um confronto contra aquilo que nos constitui
84
Órfão de pai, Sartre fora criado por sua mãe e seus avós na região que representa um conflito
histórico entre a França e a Alemanha, a Alsácia-Lorena. Também se encontrava entre o
protestantismo do avô e o catolicismo da avó. Sartre (2005b) descreve com detalhes os efeitos desta
criação em seu livro autobiográfico As palavras.
81
socialmente. Sartre (1994) explica: “[...] o intelectual deve lutar todo o tempo contra a
ideologia, que renasce, todo o tempo, ressuscitada perpetuamente sob formas
novas por sua situação original e por sua formação” (p.47). Ele expressa, como
vimos, em si mesmo as contradições existentes na sociedade, vivida, portanto, neste
confronto constitutivo de seu ser-situado.
Entretanto, podemos dizer que o Sartre criança de As palavras não se
encontrava ainda, mesmo aos seus olhos adultos, isto é, analisado por si mesmo
aos 60 anos em seu livro autobiográfico, definido por esta contradição fundamental.
Sartre (2005b) entende da seguinte maneira: “Se a gente só se define opondo-se, eu
era o indefinido em carne e osso; se o amor e o ódio são o verso e o reverso da
mesma medalha, eu não amava nada nem ninguém” (p.29). Seja como for, entendo
que de algum modo o Sartre intelectual-bastardo teve aos poucos de se rebelar
contra a própria condição, inicialmente vivida como falta de rebeldia. Sobre esta
falta, Sartre (2005b) atribuía grande parte do que sentia à morte prematura do pai,
que fez com que ele “não tivesse superego” ou tampouco qualquer agressividade:
“[...] minha mãe me pertencia, ninguém me contestava sua tranqüila posse; eu
ignorava a violência e o ódio [...] Contra quem, contra o que iria eu revoltar-me?”
(p.21). Foi o próprio Sartre, aliás, quem relatou a Jeanson (1987) que se considerava
o “falso bastardo”, referindo-se à sua infância na época em que a revivia por conta
de As palavras. O Sartre criança, impostor, que era aceito demasiadamente, sentia-
se não aceito. Assim, define Jeanson, os sentimentos com os quais o acolhiam e
pelos quais lhes testemunhavam que tinha seu lugar no mundo, transmitindo-lhe
essa aceitação, pareciam-lhe, desde muito cedo, um pouco forçados, excessivos, e
principalmente representados. Deste modo, torna-se interessante pensar que é
contra e a favor de toda esta representação que Sartre irá ao mesmo tempo criar
seu projeto de ser escritor e testemunhar uma acusação de si próprio. A favor, pois
criará seu projeto para representar para si a justificativa de uma vida representada:
“Escrever foi durante muito tempo pedir à Morte, à Religião sob uma máscara, que
arrancassem minha vida ao acaso” (SARTRE, 2005b, p.166). E contra, e ao mesmo
tempo paradoxalmente, na medida em que é através de sua própria escrita filosófica
e literária que ele colocou em cena as denúncias da má-fé e do espírito de seriedade
da comédia social.
Finalmente, a partir destas considerações sobre o “personagem” Sartre, creio
que podemos passar aos seus “personagens reais”, que de alguma forma estão
82
situados pelo percurso que brevemente percorremos sobre o autor. Se este cria em
seu mundo e a partir de sua situação, considero que esta compreensão pôde
também me situar com relação às noções que estão presentes na obra sartreana,
como, por exemplo, a traição, a bastardia, a impostura, a comédia e, claro, a
liberdade. Sigo agora com o objetivo de explorar de que forma literatura sartreana
mostra-se, a partir destes temas, representativa dos conflitos sociais.
4.2 Heróis Bastardos: reflexões sobre a convivência social.
Neste momento pretendo pensar sobre alguns questionamentos que
nasceram no cenário cotidiano, utilizando a literatura como possibilidade de
expressão de temas sociais, particularmente o problema da convivência social. Um
dos aspectos que ressalto é o fato de observar que a problematização destas
questões é comumente atravessada pela maneira maniqueísta de olhar o mundo,
que estabelece uma espécie de natureza humana, inserindo muitas vezes a noção
de “mal” no Outro, e fazendo com que sejam negadas as contradições inerentes à
existência. Deste modo, a literatura coloca em cena, para que possamos questionar,
uma espécie de arrumação social, que estabelece diferentes papéis, sendo alguma
parte destes reservados aqueles que entendemos como bastardos e também aos
Outsiders
85
. Esta última noção, famosa pelo estudo de Howard Becker, mostrou-se
rica para a minha discussão em torno dos conflitos da convivência social cotidiana,
visto que ele procura sair das visões explicativas para tentar compreender as noções
do que é considerado como “desviante”.
Sartre, por sua vez, procurou “discutir” seus temas nos romances e no teatro,
engajado em transformar a literatura em ato e desta forma atingir o social e modificar
seu meio. O filósofo buscava realmente um encontro com um público mais vasto
para pôr em questão temas comuns a todos, expressando suas reflexões através da
própria criação de situações vividas pelos personagens. Para Sartre (2005g), o
85
Vale lembrar aqui que estarei falando do bastardo como personagem central na obra de Sartre, tal
como Jeanson (1987) definiu, e que não necessariamente este estará ligado a Sartre conforme vimos
na parte anterior. Em outras palavras, procurei entender, somente naquela parte, Sartre como uma
espécie de “personagem”, a fim de nos situar em relação à situação subjetiva de nosso autor, mas
não pretendo com isso que todas as análises posteriores sobre o personagem bastardo possuam
ligação direta com sua figura, apesar de sua óbvia ligação enquanto criador destes personagens.
83
dramaturgo tem como tarefa principal escolher as situações que exprimem melhor
suas preocupações, e estas devem ser o que Karl Jaspers chamou de situações-
limite, onde o homem encontra-se “cercado de muros”, isto é, onde a liberdade
encontra-se presa em armadilhas. A situação-limite é aquela em que a morte
aparece dentre as alternativas do homem que se escolhe e, por isso, suas decisões,
profundamente humanas, colocam em jogo toda a sua totalidade de ser. Neste
momento, diz Sartre (2005g): “a liberdade se descobre em seu mais alto degrau,
porque aceita de se perder para poder se afirmar” (p. 20, tradução minha)
86
. Caio
Liudvik (2007), que se dedicou a estudar o teatro sartreano, diz que, para Sartre, as
situações-limite, como da Ocupação alemã, funcionam como um terreno propício
para que venha à tona tudo aquilo que a vida rotineira tende a mascarar: “nossa
finitude, nossa contingência e, nessa medida, toda a falta de um sentido último
apaziguador para a vida” (p.98), ou seja, “quando a água se agita, a lama sobe”,
como indica esta frase da peça O Diabo e o bom Deus (SARTRE, 1975, p.28). Este
sentido de desvelamento das angústias e “quebra” da comédia das contradições da
liberdade em sua situação é para Jeanson (1987) a razão para que o Bastardo seja
o personagem por excelência do teatro de Sartre, pois é aquele que se acha em
situação de lucidez por se encontrar marginalizado no mundo humano. Por esta
razão, Jeanson (1987) afirma que o “teatro da liberdade” sartreano é intrinsecamente
um teatro da má-fé, no sentido de que expressa uma situação própria da
ambigüidade, do sofrimento e da contradição “que definem a situação da nossa
existência entregue a si mesma” (p.106). Tudo se passa como se Sartre apelasse
para a liberdade do expectador com a mesma intenção que terá para com seu leitor,
a fim de que este tome consciência de sua própria existência situada. Em suma,
Sartre (2005g) conclui que “se é verdade que o homem é livre em uma dada
situação que ele mesmo se escolhe nessa e por essa situação, então é preciso
mostrar no teatro as situações simples e humanas e as liberdades que se escolhem
nestas situações” (p.20, tradução nossa)
87
. A situação é, portanto, aquilo que nos
cerca, na mais pura facticidade, e que nos propõe soluções ou impossibilidades para
que façamos nossas escolhas, ela é por fim, dirá Sartre (2005g), o “alimento do
86
No original: [...], la liberte se découvre à son plus haut degré puisqu’elle accepte de se perdre pour
pouvoir s’affirmer.
87
No original: « Mais s’il est vrai que l’homme est libre dans une situation donné et qu’il se choisit lui-
même dans et par cette situation, alors il faut montrer au théâtre des situations simples et humaines et
des libertés qui se choissent das ces situations ».
84
teatro”. E o teatro, continua o filósofo, possui a capacidade de colocar em cena o
fazer, o movimento, e o momento da escolha, da livre decisão que engaja uma moral
e toda uma vida. Assim, resume Liudvik:
Seu teatro, com efeito, toma a liberdade não como tema, mas
também como princípio por assim dizer estruturante, formal. A
dramaturgia sartriana, enquanto “teatro de situações” [...] se aparta
do “teatro de caráteres” no qual os personagens são “essências”
dadas de antemão, identidades unitárias, fechadas (LIUDVIK, 2007,
p.47).
A criação dos personagens, portanto, é feita a partir desta intenção, visando
atingir o público que com eles se identificam e buscam justificativas para própria
existência. Na obra sartreana, vemos com freqüência personagens que não
possuem qualidades nobres dos heróis tradicionais; eles fraquejam, se acovardam e
mentem a si mesmos. Além disso, também uma constante presença de “chefes”,
ou “homens de bem”, “Honestos”, “Justos”, que são criados pelo autor de forma
irônica e crítica para contrastar com os bastardos e traidores. Para Liudvik (2007), o
bastardo, anti-herói existencialista, tal como foi descrito por Jeanson, é a figura que
expressa o tema do ator social, isto é, ele aponta para a rede dos scripts sociais
através de seu distanciamento crítico. Este mesmo movimento, se seguirmos a linha
de pensamento de Jeanson (1987), é uma espécie de “traição”, por denunciar a
comédia do mundo do espírito de seriedade, e por isso o traidor é um bastardo,
como diz Goetz, um dos personagens de Sartre que mais representa estas noções:
Todos os filhos legítimos podem gozar da terra sem pagar. Não tu.
Não eu. Desde a minha infância, olho o mundo pelo buraco da
fechadura: é um belo ovinho muito cheio, onde cada um ocupa o
lugar que lhe foi assinalado. Posso afirmar, porém que nós não
estamos lá dentro. Ficamos de fora. (SARTRE, 1975, p.62).
Este “ficar de fora”, muitas vezes entendido como um distanciamento crítico,
também foi ressaltado por Colin Wilson (1985) em seu estudo sobre os Outsiders na
literatura moderna. O autor começa por dizer que “à primeira vista o Outsider é um
problema social. É um homem fora de lugar” (p.1) e por isso eles vivem uma
sensação de estranheza e de irrealidade com relação ao mundo. O herói de A
náusea, Antoine Roquetin, por exemplo, é para Wilson (1985) o personagem
85
sartreano que mais sintetiza as características do Outsider: “a irrealidade, a rejeição
das pessoas e dos padrões civilizados e, finalmente, a ‘tela de cinema’ da existência
nua, ‘sem saída para lugar nenhum’” (p.12). Se todos os homens tivessem a
consciência da verdade como Roquetin, segue o autor, seria o fim da vida, pois ele
possui uma espécie de lucidez que revela um mundo sem valores. Neste sentido
eles permanecem estrangeiros, fazendo alusão a outro famoso Outsider de Albert
Camus, aos acordos sociais que mantém conexão com os valores do mundo. Na
literatura de Sartre, estes “filhos ilegítimos”, não afiliados socialmente, são os que se
sentem “sobrando” no mundo. Hugo, personagem da peça As Mãos Sujas diz: “Eu
não fui feito para viver [...]. Sou demais porque não tenho meu lugar no mundo...”
(SARTRE, 1972a, p.139).
Podemos encontrar este tipo de expressão também em A Prostituta
Respeitosa, peça de 1946 que fala da discriminação racial nos Estados Unidos, nos
personagens da prostituta e do negro
88
. Na trama, ambos os personagens,
considerados invisíveis sociais, se vêem enredados em um mal entendido que
envolve um branco “importante” e mostram-se perdidos por não conseguirem achar
saídas para a situação na qual estão envolvidos. Baseando-se em uma história real
(CONTAT&RYBALKA, 1970), Sartre conta a história de Lizzie, a prostituta, que é a
única testemunha da cena onde dois negros foram timas do poder dos brancos,
um deles foi assassinado e o outro conseguiu fugir e é procurado como culpado do
crime. Ela sabe que o responsável pelo crime foi Tomáz, um dos brancos da cena, e
os conhecidos deste a convencem a falar ao juiz uma outra versão da história. Diz o
Senador à Lizzie:
Senador: Estou falando em nome da nação americana. [...] de que
serve esse negro que você protege? Ele nasceu ao léu, Deus sabe
onde. Eu o alimentei, e ele em troca, que faz por mim? Nada.
Absolutamente nada. Vagabundeia, espreguiça-se, canta, veste
roupas verdes e cor-de-rosa. Ele é meu filho e eu o amo tanto quanto
aos outros. Mas pergunto: leva ele uma vida de homem? Eu nem
sequer perceberei sua morte.
88
Convém lembrar que o ano de 1946 dava sinais da dicotomia política entre Estados Unidos e
URSS, que viria se impor na guerra fria, conforme vimos no primeiro capítulo. Por isso, por conta de A
prostituta respeitosa, Sartre fora acusado de antimericanismo por criticar a civilização americana
(CONTAT&RYBALKA, 1970, p.136). Como nesta época Sartre tentava manter-se independente dos
dois blocos, foi também criticado pelos comunistas, como relata Simone de Beauvoir (1995):
“lamentavam que Sartre não tivesse apresentado ao público, em lugar de um negro trêmulo de medo
e de respeito, um lutador de verdade” (p.108).
86
Lizzie: Como o senhor fala bem.
Senador: O outro, ao contrário, esse Tomáz, ele matou um negro, no
que fez mal. Porém, eu necessito dele. É um americano cem por
cento, pertence a uma de nossas famílias mais antigas, fez seus
estudos em Harvard, é oficial e eu preciso de oficiais. emprego a
dois mil operários na sua usina, dois mil desocupados se ele morrer,
ele é um líder, um baluarte contra o comunismo, o sindicalismo e os
judeus. Ele tem o dever de continuar vivendo e você de conservar-
lhe a vida. É tudo. Agora escolha. (SARTRE, 1966, p.56).
É interessante pensar como Lizzie fica fascinada pela fala do Senador,o que a
deixa confusa frente à consistência das suas decisões. O Senador reivindica que ela
escolha em prol daqueles que têm “o direito” de existir, enquanto que o negro não
leva uma vida que mereça ser mantida, e como não tem o seu lugar legitimado no
mundo terá uma morte que nem sequer será percebida. Para Jeanson (1987), a
dificuldade da escolha de Lizzie encontra-se no fato de que ela mesma acaba
convencida da visão daqueles que se colocam ao lado do Bem e do Direito. O negro
e ela passam a se ver com olhar deste outro e a acreditar que não tem direito algum
no mundo e que sua existência merece apenas ser tolerada. Sartre (1966) expressa
essa visão mais adiante na peça, onde o negro tem uma chance de atirar nos
brancos para não se render apenas, e ele não o faz porque respeita os brancos em
sua condição
89
.
Deste modo, Sartre traz para “palco” social “heróis bastardos” e traidores que
“sobram” no mundo, oferecendo-nos assim uma outra perspectiva, pois pela
literatura somos obrigados a entrar no mundo do outro, e, ao menos por um
momento, compreendê-lo. Quando imaginamos o outro enquanto subjetividade,
admitimos que assim como nós, ele é também uma consciência em movimento que
não se resume a um simples atributo, ou seja, vemos que aquele outro também tem
dúvidas, tristezas, planos e frustrações em seu projeto de existir. Pela via desta
compreensão estabelece-se uma relação de reciprocidade, diferentemente daquelas
que pressupõem uma visão de pura exterioridade, isto é, quando enxergamos o
outro como um objeto que pode ser usado, classificado, e até previsto. Sendo assim,
a literatura pode funcionar como um veículo importante para que possamos imaginar
o outro, pois, através dela, podemos ver uma mesma história pelo ângulo da
89
Esta cena é descrita mais adiante na p.93.
87
interioridade e da subjetividade. Sartre buscou utilizar este recurso, não através
de personagens fictícios, mas também com pessoas reais como o escritor Jean
Genet.
A história deste escritor foi intensamente analisada por Sartre (2002b) em
Saint Genet: comediante e mártir, e representou uma crítica aos condicionamentos
sociais da época, assim como as influências destes na vida de uma pessoa.
Segundo Cohen-Solal (1986), Genet é o personagem mais sartreano de todos os
personagens sartreanos, pois ele “conheceu todas as maldições sociais: o
abastardamento, a indigência, a delinqüência, o aprisionamento, o
homossexualismo” (p.412), e a partir disso, assumindo tudo até o fim, se reinventou.
Conclui Cohen-Solal que para os leitores de Saint Genet houve um encontro:
[...] entre dois indivíduos nascidos nos pólos opostos da sociedade
francesa, dois indivíduos inversamente determinados desde o berço.
E o normalista, carregando o peso de suas leituras, de suas
referências culturais, de suas armas teóricas sofisticadas, se debruça
guloso sobre o bastardo, sobre o presidiário, o vagabundo, o
homossexual. Descrevendo Genet enquanto fala de si mesmo, como
intelectual, como entomologista. (COHEN-SOLAL, 1986, 412).
A obscura trajetória de Genet pode ser resumida assim: ele nasceu em Paris
em 1910, seu pai era desconhecido e foi abandonado pela mãe em um orfanato. Foi
adotado por uma família camponesa do interior da França, que o surpreendeu
roubando em várias ocasiões enviando-o a um reformatório. Após alguns anos nesta
instituição, escapou e incorporou-se à Legião Estrangeira, a qual desertou. Durante
toda a vida andou errante pela Europa, como vagabundo e ladrão e passou por
prisões de vários países. Sartre (2002b) coloca que, no momento em que foi pego
roubando, Genet se deu conta pela primeira vez do objeto que era frente ao olhar do
outro; um objeto desprezado por todos, e ele próprio passa a se confundir com esse
olhar tornando-se aquilo que faziam dele: “Sob esse olhar o menino volta a si. Ainda
não era ninguém; subitamente, torna-se Jean Genet” (p.29).
Segundo Sartre (2005e), o Outro faz parte de nosso modo de ser, como
aquele que me revela aquilo que sou para ele, daí sua importância. Certos aspectos
nossos podem ser apreendidos pela objetividade que somos para o outro e tais
aspectos são também constituintes de nosso modo de ser, como diz o filósofo: “o
outro não apenas revelou-me o que sou: constituiu-me em novo tipo de ser que deve
88
sustentar qualificações novas” (p.290). Além disso, preciso me diferenciar do outro,
por saber que ele não sou eu, para que possa me definir enquanto existente; o que
faz de mim a síntese desta intersubjetividade eu-outro que sinto constantemente a
cada instante em que o Outro me olha. Este momento é tão importante para a teoria
sartreana, que posso até arriscar dizer que é uma de suas chaves fundamentais,
pois nesta visão o olhar é um intermediário que remete de mim a mim mesmo. O
olhar do outro, para Sartre, nos transforma profundamente, pois somos arrancados
de vivência puramente subjetiva quando nos damos conta de que somos vistos, ele
nos constitui e nos apreende como uma coisa dada, como se possuíssemos um lado
de fora. A maneira pela qual apareço para o outro sempre me escapa e faz parte de
uma consciência que é para mim inacessível, e não posso ser indiferente a ela visto
que por ela sou situado objetivamente no mundo. Logo, sou também esse ser que
aparece para o outro, e assim vivo a experiência de ser objeto de seu olhar, que é
livre, pois o que sou para ele nunca pode ser, por mim, previsto. Decorrente disto
surge o inferno sartreano: a batalha de consciências que caracteriza o conflito das
relações humanas, onde efetuamos a rotulação de subjetividades, através de
olhares que, como o da medusa, transforma o outro em pedra. Esta profunda
transformação decorrente do fato de ser visto teve sua expressão máxima em
Genet, que passa a definir, pela experiência de seu ser visto, seu projeto existencial.
Isto nos remete àqueles que o olham e que delegam a Genet um lugar “de fora” dos
valores que por eles são compartilhados, logo um lugar de Outsider.
4.3 Jean Genet bastardo e Outsider: um diálogo entre Sartre e Howard Becker.
É neste momento que podemos dialogar com Howard Becker (1977), que
também ressaltou em seu clássico estudo sobre os Outsiders sociais, a importância
do efeito do rótulo público em um indivíduo
90
. Neste estudo, encontramos uma
90
Recentemente o estudo de Becker foi republicado mantendo o título em inglês Outsiders. A respeito
da opção pelos termos, reproduzo a nota da tradutora Maria Luiza Borges (2008): “A edição anterior
deste capítulo em português optou por traduzir outsiders por ‘marginais de desviantes’, assinalando
que ‘marginais’ significava, nesse contexto, alguém que está do lado de fora, para além das margens
de determinada fronteira ou limite social. Na presente edição, optou-se por manter o termo outsider
porque seu uso se tornou consagrado nas ciências sociais” (p.15). Deste modo, neste texto irei
utilizar amplamente o termo desviante visto que trabalhei com a primeira tradução do trabalho de
89
pesquisa consistente que demonstra que ser rotulado publicamente como desviante
constitui em um fator crucial para manter um padrão neste tipo de comportamento,
pois tal situação implica em conseqüências na identidade pública do indivíduo,
levando-o a mudanças em relação aos seus grupos sociais. O indivíduo rotulado
passa a um novo status social e isso modifica sua interação com o meio, ele passa
então a moldar-se pelo olhar dos outros, caracterizando uma espécie de profecia
auto-realizadora. Para este autor, é importante saber quem faz as regras e para
quem, no sentido de entender o que é considerado desviante, uma vez que um
desvio só poder ser definido como tal de acordo com uma relação, ou seja, ele
não é uma qualidade que exista no próprio comportamento, mas sim na
interação entre a pessoa que comete o ato e aqueles que respondem a ela.
Na visão de Sartre (2002b), este processo corresponde à objetivação da
subjetividade decorrente do “ser olhado pelo outro”, do Outro como absoluto, sendo
que, ao falarmos de uma criança, este Outro é ainda mais poderoso frente à ínfima
certeza que possa ter de si. Para Sartre, no caso de Genet, esta foi sua
metamorfose, no sentido kafkiano, quando a criança que era aos poucos se
transformou em um bicho horrível para os outros:
Genet fica sabendo o que ele é, objetivamente. É essa passagem
que vai determinar a sua vida inteira. [...] Genet é um ladrão: essa é
a sua verdade, a sua essência eterna. E, se ele é ladrão,
conseqüentemente, é preciso que ele o seja sempre, em todo lugar,
não quando rouba, mas também quando come, quando dorme,
quando beija sua mãe adotiva. Cada um dos seus gestos o trai,
revela à luz do dia sua natureza infecta; a qualquer momento, o
professor pode interromper o ditado, olhar Genet nos olhos e
exclamar com voz forte: “Este aqui é um ladrão” Em vão ele pensaria
merecer indulgência confessando as faltas, dominando a
perversidade dos seus instintos; todos os movimentos do seu
coração são igualmente culpados, porque todos expressam
igualmente a sua essência. (SARTRE, 2002b, p.30).
Howard Becker (1977) afirma que devemos relativizar a visão usualmente
adotada em relação aos desviantes. Para isso, ele realiza um questionamento dos
conceitos estanques, aqueles que o considerados imutáveis independentemente
de seu contexto social, como o conceito de desvio. Na fala de Sartre (2002b),
Becker. Porém, não desejo descartar o termo outsider, por achar que ele expressa significativamente
a idéia de que há aqueles que estão à margem, de fora.
90
podemos identificar que o filósofo coloca de forma irônica que uma essência eterna
de ladrão irá definir Genet para toda a vida, em todos os seus gestos, em todas as
manifestações do seu ser. Sartre questiona então, assim como Becker (1977), a
maneira essencialista de entender o desviante, pois o erro da sociedade em geral foi
o de considerar o desvio como uma característica inerente ao indivíduo que o
comete, e não levar em conta que essa rotulação envolve uma construção de
valores sócio-políticos.
O comportamento considerado desviante varia de acordo com os grupos
sociais e o julgamento destes frente às infrações, isto é, cada grupo constrói um
sistema de valores como referência para definir, por exemplo, o certo e o errado, o
normal e o patológico. Deste modo, se levarmos em conta as variações éticas
existentes nas relações entre os indivíduos, definir um desvio não se mostra como
tarefa simples. Com o intuito de demonstrar essa variação, Becker (1977) expõe de
que maneira as situações que envolvem a criação, a imposição e a transgressão das
regras, que são as que se contrapõem aos desvios, se dão na sociedade.
Primeiramente, o autor aponta que grupos diferentes costumam divergir na
criação de regras e até um mesmo grupo encontra dificuldades de chegar a um
consenso. Isto o leva à observação de que o que é considerado desviante varia de
um grupo para outro do mesmo modo que a forma de lidar com o indivíduo que
comete o desvio. Além disso, devemos considerar também que as pessoas
pertencem a mais de um grupo simultaneamente na sociedade e, às vezes, o fato de
um indivíduo obedecer às regras de um determinado grupo significa, ao mesmo
tempo, transgredir as de outro, o que demonstra uma confusão na aplicação de um
rótulo, pois ele é desviante em relação a um grupo e não a outro.
Grande parte da argumentação de Becker (1977) mostra uma preocupação
em não negligenciar o caráter variável do desvio, visto que no meio científico tende-
se a esquecer tal fator, levando a uma compreensão limitada do problema. Assim,
ele estabelece como primeira tarefa construir uma nova definição de desvio, e para
isso, ressalta as visões predominantes de sua época. A primeira delas é a
denominada “estatística”, onde tudo o que varia em relação à média é considerado
desviante. Para o autor, esta visão é simplista e o oferece grandes recursos,
assim como a visão médica, embora esta se mostre um pouco mais elaborada.
Nesta linha de pensamento de grande influência, o desvio é encarado como doença,
o que remete à intrincada questão de definir o que seria um organismo saudável.
91
Como foi ressaltado anteriormente, estas noções estão relacionadas a um sistema
de valores e referências específicas de um grupo, e claro, não podemos esquecer,
de uma época. Estas duas vertentes limitam as perspectivas, porque aceitam “o
julgamento leigo de alguma coisa como desviante e, pelo uso da analogia, localiza
sua fonte dentro do indivíduo, impedindo-nos de ver o próprio julgamento como uma
parte crucial do fenômeno” (BECKER, 1977, p.58).
O autor ressalta ainda que a visão médica foi também utilizada por alguns
sociólogos que tenderam a olhar a sociedade por uma perspectiva funcional. Nesta
visão, os desvios provêm dos aspectos que levam à desestabilização social em
oposição àqueles que manteriam a sua estabilidade, e seriam, portanto, funcionais.
Também aqui uma tendência de normatização social é revelada, pois devemos levar
em conta que as definições do que seria funcional ou disfuncional partem de um
grupo que as adéqua à sua visão particular e certamente as impõem a outros.
Uma última perspectiva apontada é mais relativista, onde o desvio é encarado
como um fracasso em obedecer às regras de um grupo, não suprimindo o caráter
relacional, e por isso se aproxima a de Becker. Porém, para ele esta perspectiva não
consegue ainda dar conta dos fatores ambíguos que envolvem as regras e os
desvios. Ele se propõe, por conseguinte, a avançar nesta tarefa com o objetivo de
explorar tais ambigüidades, entendendo que um desvio é criado pelas relações na
sociedade, e nesta perspectiva o rótulo público ganha o papel principal.
Assim, Becker (1977) irá definir o desvio como uma conseqüência das
respostas de outros ao ato de uma pessoa, e o desviante é aquele ao qual o
rótulo foi aplicado com sucesso. Em seu livro sobre Genet, Sartre (2002b) parece
concordar com a visão de Becker sobre o desvio, onde ele procura mostrar como
Genet se construiu moldado pelo olhar dos outros e, concomitantemente, como a
sociedade busca encontrar seus “bodes expiatórios”, procurando argumentar sobre
qual função social que esta atividade estaria preenchendo. Na mesma direção,
afirma Becker (1977): “encararei o desvio como produto de uma transação que
ocorre entre algum grupo social e alguém que é encarado por aquele grupo como
um infrator de regras” (p.60). Deste modo, podemos dizer que Sartre e Becker
convergem em suas análises ao apontar que as respostas dos outros frente a um
comportamento desviante é um ponto fundamental da questão.
No intuito de explicitar estas afirmações, tanto Becker quanto Sartre nos
oferecem exemplos que indicam essas variações com relação às respostas ao
92
desvio. Estas variam segundo a época, o grupo, e a situação, como o caso citado
por Becker (1977) do estudo de Malinowski nas ilhas Trobriand. Por uma breve
exposição deste trabalho, o sociólogo conclui que a opinião pública influencia na
necessidade punição do “culpado” por uma situação “desviante”. No exemplo de
Malinowski, um rapaz quebra a regra de exogamia que era proibida socialmente,
mas ele se auto-condenou (cometendo suicídio) após seu ato ser exposto
publicamente. Antes disso, as pessoas ao redor sabiam de seu ato, mas a punição
não era estritamente necessária antes de tornar-se explicitamente pública, o que nos
leva a observar que a imposição da regra variou realmente de acordo com as
respostas do grupo como um todo.
Sartre (DELLA VOLPE et al., 1982), por sua vez, observa que os mesmos
indivíduos que impõem uma regra podem violá-la e continuar assim mesmo a
concebê-la como uma regra fundamental. Ele descreve o resultado interessante de
uma pesquisa feita em um liceu para moças, onde elas deveriam responder à
pergunta: “Você mente?”. A metade delas respondeu que sim, e as outras variaram
entre freqüentemente ou algumas vezes, apenas 10% respondeu nunca. À outra
pergunta “Deve-se condenar a mentira?”, 95% responderam que sim. Diante deste
exemplo, Sartre observa o aspecto contraditório das respostas, pois os mesmo
indivíduos que impõem uma lei para si admitem sem reservas que podem violá-la;
mas eles preferem que a lei exista, o que, segundo o filósofo, deixa-os mais
tranqüilizados do que um mundo sem leis. Isto nos mostra que o fato de
prescrevermos uma regra não significa necessariamente que iremos agir de acordo
com ela; e que o mesmo indivíduo que transgride uma regra pode ao mesmo tempo
apoiar sua existência, o que nos leva a admitir as ambigüidades presentes na
imposição e na ação diante das regras.
O grau de exigência para a punição também varia de acordo com quem
comete as infrações. Segundo Becker (1977), as regras tendem a ser mais aplicadas
à algumas pessoas do que a outras, e isto pode variar de acordo com o gênero,
classe, idade, status social, etc. Isto determina, na maioria das vezes, a existência
de uma relação de poder entre aqueles que fazem as regras e aqueles que as
obedecem. Os indivíduos que são obrigados a seguir determinado conjunto de
normas não são necessariamente aqueles que as estabeleceram, e isto indica que
uma imposição de valores e condutas. Becker (1977) observa que normalmente
na sociedade ocorre a seguinte hierarquia na imposição de regras: os mais velhos
93
fazem para os jovens, os homens para as mulheres, os brancos para os negros,
entre outros. Podemos pensar nas conseqüências políticas de tal fato, onde certos
grupos têm que se submeter ao poder de outros e experimentar uma relação de
dominação. Este aspecto foi trabalhado por Sartre (1966) na peça citada A
prostituta respeitosa. É fácil notar que o tema que permeia toda a trama é uma
cultura americana hostil aos negros, na qual os brancos fazem as regras, como
observamos na cena que o negro refugiado encontra com Lizzie (a prostituta):
O Negro: Eu não fiz nada, madame, a senhora sabe.
Lizzie: Eles dizem que um negro sempre fez alguma coisa.
O Negro: Nunca fiz nada. Nunca. Nunca.
Lizzie (passa a mão na testa): não sei mais a quantas ando. (Um
tempo) De qualquer jeito, uma cidade inteira não pode estar
completamente errada. (Um tempo) Droga! não compreendo
mais coisa nenhuma.
O Negro: é assim mesmo, madama. Com os brancos é assim
mesmo.
Lizzie: Você também, você também se sente culpado?
O Negro: também, também.
Lizzie: E você não fez nada.
O Negro: Nada, nada.
Lizzie: Mas afinal, que será que eles fazem para terem sempre tudo
ao lado deles?
O Negro: São brancos (SARTRE, 1966, p.76-7).
Podemos identificar uma conexão entre este exemplo e a afirmação de
Becker (1977) de que “aqueles grupos cuja posição social lhes confere armas e
poder são mais capazes de impor suas regras” (p.67), e por isso parece que
devemos entender a definição de desvio sempre por uma ótica política. Neste
contexto, que leva em conta toda esta dimensão, e após tais considerações, o autor
se permite prosseguir e tenta diferenciar os tipos de desvios. O sociólogo começa
por tentar correlacionar o comportamento (desviante ou conformista) com a resposta
dos outros que os percebem como desviantes ou não. Desta forma, ele leva em
94
conta o ponto de vista daquele que comete o ato infrator e o ponto de vista social,
percebendo o momento em que eles convergem ou divergem. O indivíduo que se
falsamente acusado, por exemplo, diverge do ponto de vista social e identifica o erro
fora dele. Da mesma maneira, pode ocorrer um ato impróprio de um indivíduo que
não é notado ou considerado como uma violação de regras pelas pessoas ao
redor
91
.
Tudo isso leva o autor a um próximo passo que parece ser de grande
interesse seu, o de examinar como se origina e como se mantém o comportamento
desviante. Novamente, Becker (1977) começa com uma crítica ao modelo anterior e
mostra que quase toda pesquisa busca uma patologização da questão, além de
almejar “encontrar” as causas do comportamento não desejado. É feita uma análise
multivariada na qual se buscará o conjunto de fatores que operam simultaneamente
para que se possa predizer tais comportamentos. Como sugestão de uma possível
saída, o autor propõe um modelo seqüencial, onde são consideradas as mudanças
no comportamento e nas perspectivas de um indivíduo de acordo com uma
seqüência onde cada passo exige uma explicação que é apenas uma parte do
comportamento resultante. Para explicar este aspecto, ele aborda a concepção de
carreira transpondo para o caso do desvio. Qualquer carreira pode ser entendida
como uma série de movimentos que vão de uma posição a outra, feitos por um
indivíduo que age em relação a fatos objetivos de uma estrutura social e, por isso,
possui mudanças de motivações, desejos e perspectivas. No caso dos desviantes,
este movimento tem início na quebra de alguma regra, sendo este ato intencional ou
não. A não-intenção de cometer este primeiro ato, segundo o autor, é negligenciada
pelo julgamento público que costuma atribuir ao indivíduo uma vontade ou pré-
disposição para cometê-lo.
Finalmente, estas argumentações podem nos fazer pensar novamente na
vida de Jean Genet, onde seus primeiros atos marcaram profundamente o “inicio de
sua carreira” como ladrão. Os primeiros atos infratores de Genet ocorreram na
infância quando morava com sua família adotiva. Antes de ser surpreendido
roubando, seu ato era fruto de sua imaginação e servia, segundo Sartre (2002b),
como uma tentativa de preencher o vazio de seu ser, visto que nada possuía no
mundo. Seus atos eram gratuitos até o momento em que foi surpreendido e rotulado
91
Podemos pensar hoje, por exemplo, no grande número de carteiras de estudante falsas como uma
infração compartilhada.
95
de ladrão, o que o levou a ser julgado e abandonado por sua família adotiva.
Provavelmente esta família atribuiu a Genet o roubo como uma característica sua,
que “veio” com o seu nascimento obscuro, o que acredito estar de acordo com o
Becker expôs em suas críticas. Para este último, a visão social predominante
pressupõe que todos os atos desviantes como uma espécie de natureza, e assim o
julgamento de quem os comete é feito sem tréguas. Este aspecto, segundo Becker
(1977), provém da potencialidade que atribuímos àquele que quebrou uma regra,
por conceber que ele deve agir como desviante a todo o momento. Como diz o
autor: “a apreensão por um ato desviante expõe uma pessoa à probabilidade de que
ela seja encarada como desviante ou indesejável em outros aspectos” (p.80). Desta
forma, passa-se a definir o desviante como essencialmente mal, e assim diferenciá-
lo daqueles que não possuem esta característica. vimos, porém, que tais
diferenciações pressupõem uma relação de poder e de dominação e isto faz com
que seja importante pensar na utilidade social em apontar o mal no outro.
Becker (1977) contribui com esta análise ao dizer que a presença de impulsos
desviantes não se restringe às pessoas que os cometem, portanto esta não pode ser
fonte de explicações: “Pelo menos em fantasia, as pessoas são muito mais
desviantes do que parecem [...]” (p.74). Ele nos mostra assim que não nega a
ambigüidade, tão ressaltada pela teoria sartreana, de nosso modo de ser. Para
Becker (1977), aqueles que o levam adiante suas fantasias destrutivas possuem
uma espécie de compromisso com seu projeto pessoal, e de acordo com este, uma
ação desviante seria muito prejudicial a sua realização. Este compromisso acontece
quando um indivíduo adere a certas linhas de comportamento porque, se não o fizer,
muitas outras atividades além daquela em que está formalmente engajado serão
adversamente afetadas. Sendo assim, o sociólogo considera que o desenvolvimento
da carreira “normal” de um indivíduo se por uma série de compromissos que ele
se engaja progressivamente num crescente com as normas e instituições
convencionais. Este indivíduo reconsidera os comportamentos desviantes em função
de seu projeto e das conseqüências de seus atos desastrosos. A pessoa que
comete o desvio pode, neste contexto, não ter se comprometido a tal ponto com
certas convenções para ter algo muito valioso a perder, ou pode de alguma forma ter
evitado qualquer tipo de aliança neste sentido e se considerar mais livre a exercer
certos impulsos.
96
No entanto, os “homens de bem”
92
, caracterizados por Sartre, negam que
seriam capazes de possuir qualquer aspecto negativo e se identificam com a
plenitude da positividade. Ao contrário, Genet se identificou somente pelo mal;
aceitou e posteriormente escolheu viver esse mal que encarnaram nele. Quando
Becker (1977) afirma que o próprio indivíduo pode estigmatizar-se como desviante e
se punir por seu comportamento, acredito que Sartre (2002b) concordaria por dizer
que Genet instalou o olhar do outro em si mesmo, ou melhor, se tornou este olhar e
se condenou com mais dureza que seus próprios carrascos. Além disso, acrescenta
o filósofo, esta estigmatização interna impede que se estabeleça uma relação de
reciprocidade entre aqueles que estão “no mesmo barco”
93
, como quando alguém
que sofre preconceito reproduz com outros o próprio preconceito que vive. Becker
(1977), no entanto, fala de uma subcultura daqueles que se encontram em uma
mesma condição de marginais que seria reforçadora de sua “identidade desviante”.
Nesta “tribo” o desviante pode encontrar algum prazer em compartilhar de
justificativas e racionalizações em comum com os outros, e em alguns casos,
receber uma transmissão de conhecimentos dos mais experientes, fazendo com que
se aprimore na “arte” do desvio. Este seria um último passo, segundo o autor, na
carreira de um desviante, contribuindo fortemente para a perpetuação de seus atos.
A vida de Genet se caracterizou pelo desprezo social e seu movimento foi um
eterno retorno às instituições, reformatórios, prisões, lugares aos quais pertenceu
desde o nascimento. Porém, ao fazer poesia e tornar-se escritor, expressou que
mesmo diante de tais condições encontrou um meio de fazer-se liberdade, uma
solução, para Sartre (2002b), de “desesperado”. Em seu famoso estudo sobre o
pensamento de Sartre, Laing & Cooper (1972) exclamam que, através de Genet,
Sartre tenta mostrar que a realidade concreta da vida de um homem pode ser
entendida mediante uma consideração da dialética da liberdade atuante em
condições materiais. Isto quer dizer que a liberdade deve ser compreendida em
situação, e mais ainda, ao compreender este projeto em particular podemos
entender as ambigüidades pertencentes à condição de ser liberdade. Por isso,
compreender Genet significa aceitar a condição comum a todos: o “mal”, ou qualquer
92
Os chamados “homens de bem” na visão de Jeanson (1987), são aqueles que não assumem
ambigüidade em si mesmos, e precisam de um outro para projetar o aspecto negativo de sua falta de
determinação.
93
O filósofo diz que os homossexuais, por exemplo, não pensam em si quando estigmatizam outros
homossexuais de pederastas ou “veados” e assim permanecem isolados e sós.
97
outra característica, existe como uma possibilidade de ser para todos nós. Há,
portanto, para Sartre (2002b), uma função em eleger um “bode expiatório” na
tentativa de projetar essa negatividade, que ele entende como nossa falta de ser, em
algo, ou alguém. Assim, existe uma função de utilidade social de um rótulo, ou seja,
há um aspecto tranqüilizador em descobrir onde “o Mal” está, o que, segundo,
Jeanson (1987), por um efeito de contraste, nos “santifica” aos nossos próprios
olhos. Se tomarmos como exemplo o caso de Genet como o mal encarnado, ou seja,
a maldade em carne, vemos que ele foi visto como a representação de toda essa
projeção social e seus atos e comportamentos eram atribuídos como inerentes ao
seu caráter. Caso possamos compreender, ao invés de explicar, uma pessoa “má”,
isso nos levaria a admitir a possibilidade de também o ser, pois se assumo que sou
liberdade como ele, sou também ambíguo, portanto.
4.4 Conseqüências éticas da liberdade na literatura sartreana.
Minha discussão recai agora nas questões levantadas por Sartre
94
no que diz
respeito a um pensar ético baseado na aceitação da liberdade do homem ambíguo.
Isto se deve ao fato da moral sartreana se sustentar justamente na consciência vazia
e intencional, o que irá de fato complicar a sua teorização em torno do tema. Pois
sua ética nasce no inacabamento, na angústia da incompletude do Para-si, que faz
com que a moralidade surja no momento em que o homem faz algo de si; em um
movimento contínuo e dialético entre sujeito-objeto, homem-mundo, estabelecendo
uma relação de constituição de si mesmo no mundo. A negação da ambigüidade,
por conseguinte, pressupõe a negação da própria condição humana, pois o ser do
homem inclui positividade (ser pleno, concreto) e negação. Isto significa que ao
identificarmos no homem somente seu aspecto positivo, suprimimos o principal
diferencial do seu modo de ser – a sua falta de ser. O homem, enquanto ser-para-si,
é um ser que está constantemente em questão para si próprio e isto significa que
uma distância de si fundamental, diferentemente do ser em-si que existe em uma
total coincidência consigo mesmo.
94
Ver: REIMÃO,C. Terceira parte: Ética. In: Consciência, dialética e ética em Jean-Paul Sartre.
2005, p.369.
98
Simone de Beauvoir (2005) em Por uma moral da ambigüidade, argumenta
que as morais tradicionais, idealistas e materialistas, suprimiam a condição ambígua
do homem por valorizar ora a natureza ora o espírito. Mas Hegel salientava que a
condição do homem é justamente a inquietude do espírito, fato que a autora
expressa da seguinte maneira:
[...] a cada instante a verdade vem à luz: a verdade da vida e da
morte, de minha solidão e de minha ligação com o mundo, de minha
liberdade e de minha servidão, da insignificância e da soberana
importância de cada homem e de todos os homens [...]. Uma vez que
não logramos escapar à verdade, tentemos, pois olhá-la de frente.
Tentemos assumir nossa fundamental ambigüidade (BEAUVOIR,
2005, p.15).
O que é necessário, portanto, é assumir a ambigüidade, o que é equivalente à
aceitação da condição de liberdade. Na visão sartreana, a liberdade é esta
indeterminação que tem origem na falta de ser, no que o filósofo chama de Nada.
Desta forma, não é possível falar de uma essência prévia do existente, o que
descarta a idéia de natureza humana, mas sim de uma condição humana onde a
existência precede a essência. De acordo com Franklin Leopoldo e Silva (2007), na
tradição filosófica do conhecimento, buscava-se primeiramente conhecer a essência
de algum objeto, para depois entender a existência como o campo de manifestação
das qualidades que o definem. Para este autor, esta visão acarreta no determinismo
do ser, onde todas as suas manifestações se reduzem ao que ele essencialmente é.
Sendo assim, seria possível conhecer a essência de uma pessoa para identificar ou
até prever seus comportamentos, conforme o lema positivista de “ver para prever”.
Também Becker (1977), como vimos, expôs uma crítica a esta visão, aos mostrar
que uma busca constante de supostas causas dos comportamentos desviantes
inerentes à personalidade daqueles que os cometem, assim tais características
tornariam necessário ou inevitável que estes agissem desta determinada maneira. O
autor nos mostrou que a sociedade aceita os rótulos de desviantes como dado e
esquece que estes fazem parte de um grupo que faz o julgamento e que constrói as
regras. Para Sartre, tal exemplo se enquadra em uma tentativa de determinar o que
o ser é, como essência dada, suprimindo assim a sua falta de ser, a sua liberdade.
Frente a isso, Franklin Leopoldo e Silva ressalta:
99
É de extrema importância notar que indeterminação e ausência são
as vias de compreensão da existência, porque isso significa que a
realidade humana deve ser abordada muito mais na perspectiva da
negatividade do que pelas determinações afirmativas de seus
possíveis atributos. E uma razão para isso: visto que o ser
humano é processo de existir e não essência dada, ele se
caracteriza muito mais pela mudança do que pela permanência;
interessa compreender não o que o homem é (porque, precisamente
ele não é nada antes do processo existencial), mas o que ele se
torna no percurso da existência (LEOPOLDO E SILVA, 2007, p.56).
Diante de tais condições, o único dever de homem é buscar seu ser, mas não
é possível para ele, por conta desta indeterminação e ausência, tornar-se uma
identidade, isto é, idêntico a si mesmo, daí a dificuldade de seu projeto, de sua
“paixão inútil”. O homem age então para dar sentido a si e ao mundo e o valor nasce
justamente das escolhas realizadas na ação. Segue-se que a elaboração dos
personagens sartreanaos leva em conta essa concepção de liberdade, que
pressupõe que tudo aquilo que é apreendido pela consciência intencional seja
relativo à essa apreensão, e portanto, questionável. Isto não significa que a
existência do mundo esteja em dúvida como em Descartes, mas sim que o mundo
tal qual ele existe para a consciência está impregnado pelo sentido e pelo valor.
Desta forma, o valor surge na ação do para-si que se escolhe livremente, isto é, ele
surge concomitantemente com a ação mediada e constituída pela liberdade. Vários
autores (SILVA, 2004; CAMPBELL, 1949; BORNHEIM, 2000) apontam o valor como
um conceito chave da visão da ética sartreana; a possibilidade do surgimento do
valor na ação se deve a realização da liberdade e assim a uma criação do homem
por si mesmo, que revela um sentido ao manifestar-se em suas escolhas. O que
acontece é que a natureza intencional da criação ou simples adoção dos valores é
muitas vezes negada por má-fé, ou seja, caracteriza-se pelo fato de o homem
atribuir um caráter absoluto aos valores, pondo-se assim como inessencial frente à
estes a ponto de alienar-se em um sistema moral rígido que mantém para si.
Na criação literária de Sartre podemos identificar uma saída deste tipo na
personagem Lulu do conto Intimidade, quando, ao se ver obrigada a tomar decisões,
ela tira de si toda a responsabilidade de suas ações. Assim lamenta Lulu: “na
verdade eu não decidi nada [...] a coisa de decidiu por si mesma” (SARTRE, 2005d,
p.101) e ainda “Nunca, nunca fazemos o que desejamos, somos sempre induzidos” (
p.119).
100
De acordo com Sartre (2005e), o homem é o ser pelo qual o valor vem ao
mundo, aquele que, em seu movimento, revela e valora os objetos a sua volta
imprimindo-lhes um sentido que é expresso por suas escolhas. Deste modo, a
consciência constrói o sentido, redesenha o mundo com seus traços e cria um valor,
coloca-o posicionado em um mundo por meio de sua intenção para atingir um fim
que o revela. Esta eleição é por si só um ato que expressa justamente o que ele faz
de si frente às situações nas quais está enredado.
A visão comum da liberdade, porém, costuma estar associada a um ideal de
mundo sem barreiras e responsabilidades. Sartre (1972b) coloca em cena esta visão
ao dramatizar, no roteiro de filme Os dados estão lançados, uma suposta “vida após
a morte” aonde os mortos vagam pelo mundo dos vivos sem ter o poder de agir.
Diante disso, exclama um deles: “os mortos são livres”, mas os personagens
principais “recém-chegados” não conseguem se acostumar a apenas assistir o
mundo. O personagem Pedro, operário que planejou uma revolução e que depois de
morto que haverá um boicote ao levante, se angustia frente à “inutilidade de seus
esforços e por isso sofre pela primeira vez” (p.38). Ele exclama ao velho morto:
- é uma boa porcaria isto de estar morto!
- sim..., mas há, apesar de tudo, pequenas compensações.
- vê-se que não é uma pessoa exigente!
- Nenhumas responsabilidades. Nada de preocupações materiais.
Uma liberdade absoluta. Distrações a escolha (SARTRE, 1972b
p.55).
Esta liberdade sem compromissos é também expressa pelo personagem
Mathieu Delarue, da trilogia Os Caminhos da liberdade, que nos mostra logo de
início a inconsistência de sua tão preciosa e conservada liberdade, a qual se
revelava cada vez mais vazia e estéril. Ao longo do desenvolvimento da trama,
Sartre nos dá indícios de um sentido ético na elaboração deste personagem, pois no
confronto de Mathieu com sua própria condição de liberdade ele nos exemplifica a
idéia de que “a práxis libertadora ocorre no espaço da história e não no da
consciência”, como afirma Cassiano Reimão (2005, p.372). Mathieu sentia então que
precisava conservar sua liberdade e para isso não permitia amarrar-se a nada, no
101
entanto, aos poucos passa questionar sua atitude até que, em um momento de
lucidez reflexiva, ele exclama:
É assim que eles me vêem? [...] o homem que quer ser livre. Come,
bebe, como qualquer outro, é funcionário, não faz política,
L’OEuvre e Le Populaire e está em dificuldades financeiras. Mas
quer ser livre, como os outros desejam uma coleção de selos. A
liberdade é seu jardim secreto. Sua pequena conivência consigo
mesmo. Um sujeito preguiçoso e frio, algo quimérico, razoável no
fundo, que malandramente construiu para si próprio uma felicidade
medíocre e sólida, feita de inércia, e que ele justifica de quando em
vez mediante reflexões elevadas. Não é isso que sou?(SARTRE,
2005a, p.19).
Esta reflexão de Mathieu expressa a própria vida de Sartre que, após ser
empurrado pela guerra, transformou sua noção de liberdade visando um forte
comprometimento social. Uma liberdade que se quer livre deve se comprometer
com a ação e a liberdade “protegida” de Mathieu é uma liberdade alienada, em cima
do muro, onde qualquer comprometimento torna-se um perigo frente a sua
conservação. Assim, através das situações “vividas” por este personagem, Sartre
(2004) coloca em cena o tema da moral e transmite sua visão da literatura: engajada
e comprometida com o mundo que busca criar. A ação transformadora, que está
presente neste empreendimento moral, combate justamente a positividade da
atitude de “conservar” observada em Mathieu; uma ética da ação baseia-se
justamente no caráter nadificador da consciência, mas a “preservação” busca
suprimir este modo de ser. Diz Sartre (2002):
O homem, dizem, não inventa; descobre. Reduz-se o novo ao antigo.
Conservar, manter, restaurar, reformar, preservar essas são as
ações permitidas; todas pertencem à categoria da repetição. Tudo
está pleno, tudo está em seu lugar, tudo está em ordem, tudo
sempre existiu, o mundo é um museu e nós somos os conservadores
(SARTRE, 2002, p.35).
A inquietação e a instabilidade que nos colocam sempre em perigo quando
nos deparamos com nossa falta de ser podem nos tentar a permanecer no campo da
repetição, mas não como fugir da liberdade que estamos condenados; a ação,
portanto, deve reassumir seu caráter de transformação. Contreras (1995) comenta
que Sartre utiliza conceitos de Marx para fundamentar sua necessidade de
102
compromisso, por isso adota o termo práxis para diferenciar a ação que visa uma
transformação no mundo da pura prática que pode ser uma atividade repetitiva. A
ação transformadora, expressão da liberdade, caracteriza-se por uma revolução
permanente, uma totalização-em-curso que busca se totalizar sem nunca de fato
conseguir. Para construir, precisa-se em parte destruir, nadificar aquilo que é em
nome daquilo que não é, ou seja, inventar e criar. O homem cria a si mesmo na
medida em que age, nada existe a priori, ou potencialmente, o homem é o que
manifesta: “Por que atribuir a Racine a possibilidade de escrever uma outra tragédia
se, justamente, ele não o fez?” (SARTRE, 1987, p.13). Mas a liberdade não é
reconhecida sem angústia, pois como podemos entender nesta importante
observação de Franklin Leopoldo e Silva (2004): “a experiência da liberdade
absoluta é a experiência da fragilidade absoluta” (p.143); percebemos que somos
nós o fundamento de nossa escolha ao mesmo tempo em que o que somos não é
nada senão um constante e desejado vir-a-ser. Este projeto nos remete a um
empreendimento ético, pois a atividade transformadora do homem faz com que surja
a realização da moral “onde o homem alcança sua própria essência utilizando a
história como instrumento” (REIMÃO, 2005, p.371), estabelecendo-se portanto como
produto-produtor do mundo. A angústia se justamente em perceber que toda a
lógica, a moral, os costumes, os valores, têm sua origem nessas criaturas incertas
que somos, expostos à uma liberdade absurda, desamparados e injustificados,
sentimos que o mundo não é dado e está por fazer
95
.
Diante dessa constatação, o homem pode aceitar sua condição, o que seria
uma atitude autêntica na ótica de Sartre, saber que deve procurar ser sem nunca se
encontrar, ou melhor, sem conseguir tornar-se idêntico a si mesmo suprimindo sua
falta de ser fundamental. O que Sartre (2005e) caracterizou como “paixão inútil” é a
condição humana de ser este projeto de ser Deus
96
, no sentido de desejar ter
concomitantemente todas as características da consciência e a permanência e
solidez dos objetos. O aspecto interessante em Mathieu é que ele escolhe apartar-se
do mundo em nome de sua liberdade, de modo que ele não exerce o seu poder de
ação e mantém uma liberdade idealista, de má-fé, pois mesmo a liberdade pode se
tornar um valor petrificado. Na medida em que o homem escolhe um sistema de
95
Simone de Beauvoir desenvolve este argumento ao discorrer sobre o momento em que o homem
“descobre sua subjetividade”, geralmente vivenciado na adolescência. (BEAUVOIR, 2005, p. 38).
96
“A realidade humana é puro empenho para fazer-se Deus” (SARTRE, 2005d, p.704).
103
valores rígido ele condiciona todas as suas ações a este, tornando-se exterior a si
mesmo, perde o caráter inventivo da ação e torna-se um simples repetidor do
passado. Por conseguinte, este movimento tem relação direta com o futuro e o
campo das possibilidades, pois o homem entendido enquanto projeto está sempre
em direção a si, projetando-se no futuro. Logo, quando a ação humana transforma a
norma em imperativo
97
ela resulta numa “prática-inerte”, mas quando as ações se
baseiam na liberdade, através do homem enquanto agente ético, elas assumem sua
relação incondicional com as possibilidades. Neste “percurso” reconhece-se o futuro
puro e imprevisível, não determinado pelo passado, mas um futuro por fazer - aqui a
ação reconhece seu caráter inventivo de criar o presente por conta futuro, o
presente passa a ser uma “unidade sintética de um campo de ação”
98
e o homem se
reconhece enquanto interioridade. Parece que Mathieu conseguiu dar-se conta
de seu projeto de má-fé e realizar-se enquanto liberdade quando viu seu futuro
prestes a ser arrancado pela aproximação dos alemães no fim da Guerra em Com a
morte na alma:
15 minutos! Pensou com raiva, daria tudo para agüentar 15 minutos!
[...] Aproximou-se do parapeito e pôs-se a atirar de pé. Era um
enorme revide: cada tiro vingava-o de um antigo escrúpulo. Um tiro
em Lola, que não ousei roubar, um tiro em Marcelle, que deveria ter
largado, um tiro em Odette, que não quis comer. Este para os livros
que não ousei escrever, este para as viagens que recusei [...]
Atirava, e as leis voavam para o ar, amarás o teu próximo como a ti
mesmo, pam! nesse safado, não matarás, pam! nesse hipócrita aí da
frente. Atirava no homem, na Virtude, no Mundo: a liberdade é o
Terror. [...] A Beleza deu um mergulho obsceno e Mathieu atirou de
novo. Atirou: era puro, todo-poderoso, livre (SARTRE, 2005c, p.246).
Como julgar o que apareceu como verdade a Mathieu? E se for justamente
no momento em que abandonou suas verdades que ele se inventou finalmente? O
homem constrói suas verdades e, segundo Sartre (1990), estas nascem e morrem
com ele, são, portanto, relativas à sua época e sua situação. As verdades não
devem nunca perder sua fonte na dúvida, o homem que busca a verdade é o próprio
homem que coloca a si em questão, e se ele já não o faz é porque ele escolheu para
si um “Eu” fixo que deve ser reforçado a todo o momento pelo mesmo sistema de
97
As normas são a base de toda a moral, quando a norma se transforma em um sistema de
possibilidades condicionadas , passam a ser imperativo. Ver: REIMÃO, 2005, Cap. IV.
98
Não é o conhecimento do futuro através do presente, mas do presente através do futuro. E
imediatamente, o presente assume a unidade sintética de um campo de ação” (SARTRE, 1982, p.38).
104
valores condicionado. Ele torna sua verdade uma verdade morta, como diz Sartre
(1990), um fato em si como “a terra gira” e isto se torna uma lei; ele perde as novas
significações que ocorrem a cada desvelamento do ser , ou seja, a cada momento
em que o Para-si arranca o ser de sua “noite” e o faz existir através da luz de sua
subjetividade. Ele identifica-se com o objeto a ponto de dissimular para si mesmo a
sua própria subjetividade - uma atitude que, segundo Beauvoir (2005), foi descrita
por Hegel como um “colocar-se como inessencial frente a um objeto essencial”
(p.43), e desta maneira a Coisa aparece como a Causa de si, diz Sartre (1990): “Mas
porque se articulou tanto tempo com o Eterno, o homem preferiu as verdades mortas
às verdades vivas e fez uma teoria da Verdade que é uma teoria da morte” (p.33).
Tudo isso pertence ao terreno da ética, visto que o homem é responsável pelo
que faz de si e do mundo. As questões colocadas para o homem que age no mundo
são as possíveis de seu tempo, e por isso, a época em que vive se torna a época
dele, o que o faz responsável por ela. Nos tempos de guerra isto se mostrava
evidente e necessário, como afirmou Sartre (2004): “a irreversibilidade do nosso
tempo pertencia a nós; era preciso salvar-nos ou perder-nos, às apalpadelas,
nesse tempo, irreversível”
(p.166)
99
. Deste modo, a consciência e a história se
interpenetrem através do sentido buscado pela ação humana, o que resulta em um
agir ético.
Sendo assim, tanto na reflexão filosófica como na expressão literária, Sartre
mantém a mesma postura em não aceitar uma análise à distância do mundo, ou
seja, refuta, como Marx, a pura contemplação filosófica e também a visão onisciente
da “literatura de sobrevôo” cujo papel é apenas narrar uma história feita (SILVA,
2004, p.22). A literatura na perspectiva de nosso autor deve mostrar o problema de
uma consciência que a cada momento se confronta com o mundo na sua relação
com outras consciências, com as coisas e consigo mesma. Devido a isso, Sartre
busca uma construção de personagens que possa despertar um eterno
questionamento em seus leitores, que permita o surgimento de incertezas,
expectativas e um “reposicionar-se” constante diante destes: “se mergulharmos o
leitor, sem mediação, numa consciência, se lhe recusarmos todos os meios de
sobrevoá-la, então será preciso impor-lhe, sem atalhos, o tempo dessa consciência”
(SARTRE, 2004, p.228).
99
Sartre se refere ao momento da Segunda Guerra Mundial.
105
A obra literária é a representação imaginária da realidade, representa o real
pela negação. O autor precisa inventar os homens que a compõe e permitir que
estes se inventem ao longo do texto, pois acredita que o leitor, que também é
liberdade, tem no mundo sua criação particular. Por isso Sartre (2004) denominou a
literatura como um apelo à liberdade do leitor - este ponto talvez expresse a ética
que permeia todo o trabalho de Sartre no que diz respeito a um apelo à liberdade, à
transformação. A intenção de sua filosofia e literatura é provocar a realidade humana
para que esta coloque a si própria em questão e se assuma enquanto consciência
de uma realidade histórica. Desta forma, estas se tornam um veículo de apelo à
desalienação coletiva e individual, ressaltando o poder da ação pela sua própria
expressão.
106
5 Considerações finais.
Inicialmente, este trabalho tinha como título “Sartre na janela: um olhar sobre
a literatura como resignificação do mundo”. Este título mudou, não somente porque
os contornos principais do trabalho se tornaram outros, mas também porque a
imagem de Sartre na janela transmite uma posição de distanciamento superior ao
mundo que está em baixo. Esta não era a minha intenção, mas novamente o
sentido, como sustenta a visão fenomenológica, se desprende de seu objeto e toma
seu rumo particular. Entretanto, penso que a idéia de “Sartre na janela” continua
pertinente se tomarmos como base a seguinte argumentação sobre seu texto
Veneza, da minha janela, que veio a inspirar este primeiro título.
Neste pequeno e pouco citado texto, Sartre (2005h) descreve, em tempo
presente, a cidade italiana que aparece para ele através da sua janela. Assim,
podemos entender desde o início que a cidade que é descrita no texto (e Sartre nos
a impressão de percorrer toda a cidade apesar de não sair da janela) é Veneza,
mas não é a mesma Veneza das outras janelas. Mesmo assim, o leitor que absorve
os detalhes do texto de Sartre certamente chegará a Veneza marcado pelas outras
margens que nunca alcança
100
, pelo céu retalhado nos movimentos da água, pela
água ela mesma que “inveja a rigidez cadavérica dos palácios que a bordejam”
(p.21), todas estas impressões que transformará sua experiência. Mas como Sartre
(2005h) evidencia, ainda assim nunca poderei saber como é Veneza para aquele
outro na rua, que da sua janela: “É um turista da Outra Veneza e nunca verei o
que ele vê” (p.13).
100
Faço alusão às descrições de Sartre sobre Veneza.
107
Percebemos aqui que devemos entender que um autor escreve de sua
própria janela, mas esta não se encontra apartada de um mundo e não significa o
mesmo que a conhecida torre de marfim dos filósofos contempladores. A
experiência do autor no texto é a experiência do mundo, no caso de Sartre (2005h),
a experiência de estranheza que sente ao observar aqueles com os quais não está
habituado de sua janela em Paris encontra sua “multidão natural”, em Veneza
“os Outros estão além-mares” (p.13). Este mundo é marcado pelo texto e a partir de
exemplos como este podemos pensar, sem escapar às experiências concretas e
cotidianas, esta intrincada relação. Sartre na janela nos mostra a Veneza que ele vê,
mas esta é uma experiência das suas vivências e paixões marcadas pelo seu
contexto e tempo, vejamos uma de suas descrições:
Tudo isso se deve ao canal. Se fosse um honesto braço de mar,
confessando francamente que tem por função separar os homens,
ou então um rio bravo e domado que leva os barcos a contragosto,
não haveria história, diríamos simplesmente que ali uma certa
cidade, diferente da nossa e, por isso mesmo, bem igual. Uma
cidade como todas as cidades. Mas esse Canal pretende reunir [...]
esse falso traço de união finge aproximar para melhor separar; ele
me passa a perna sem dificuldades e me faz acreditar que a
comunicação com meus semelhantes é impossível. (SARTRE,
2005h, p.14-15, grifo do autor).
Desta forma, podemos perceber que através da descrição de Sartre o canal
de Veneza ganha um sentido, neste caso o de separar os homens aparentemente
reunindo-os. O sentido, portanto, de acordo com a fenomenologia, não está no
canal, mas na relação deste com a consciência que o apreende. Assim, entendo que
a vivência do autor, que é demarcada ao longo do texto, diz respeito ao sentimento
de sentir-se próximo e ao mesmo tempo distante de outros homens e é através
desta experiência que ele doa sentido aquilo que observa. Por este ângulo, fica
claro, como diz Franklin Leopoldo e Silva (2004) que a realidade é sempre humana
visto que “qualquer aspecto da realidade somente se torna significativo quando
apreendido no âmbito da consciência e da história humanas” (p.15). Mas isto não
significa, como vimos, que a fenomenologia pressuponha que a realidade se reduza
ao sujeito que a conhece- o que nos levaria ao subjetivismo e ao idealismo - mas
sim que devemos compreender a relação de produção de sentido que demarca a
constante interligação do homem com o mundo. Penso na janela de Sartre como o
108
quadrado que delimita seu olhar, que o situa, de acordo com sua experiência
coletiva de uma época, a sua experiência subjetiva. Dentro destas demarcações, o
olhar mostra-se múltiplo, pode resignificar à vontade a cena que se passa ao seu
redor (embora não alcance as que se encontram fora de seu campo visual) pode
inclusive acrescentar cenas que não se passam ali, mas que pertencem à sua
imaginação.
Quando ressaltamos os limites de sua visão, dizemos que sua janela se
encontra em uma certa altura, a partir de uma construção determinada e que possui
uma arquitetura de uma época. Isto é, sua visão encontra-se marcada pela época e
o contexto na qual aquele que está inserido, ele fala de experiências que
transmitem por si a experiência da realidade humana, mas não pode falar da
cena tal qual aparece para o Outro, que permanece sempre inacessível, “além-
mares”. Talvez essa sensação do outro ou do real como inalcançáveis seja o sentido
mais profundo da janela, e é necessário, para alguém como Sartre, um esforço que
talvez o tenha tornado um bastardo, para sair de de cima. Disse ele em As
palavras: “Todo homem tem seu lugar natural; nem o orgulho nem o valor lhe fixam a
altitude: a infância é que decide. O meu é um sexto andar parisiense com vista para
os telhados” (SARTRE, 2005b, p.43).
Desejei então, ao longo deste trabalho, descer juntamente com Sartre, de sua
janela para o mundo que inclui “submundo” dos bastardos e dos outsiders. Creio que
“Sartre Roquetin”, personagem de A náusea que vivia nos tremores da irrealidade,
desejava se transformar em Mathieu Delarue, cujo sobrenome significativamente
aponta não para a janela, mas para o homem da rua. Aliás, vimos que Mathieu
expressou em seus conflitos, as transformações sartreanas com relação a sua
concepção de liberdade, em toda a sua dificuldade de se ver livre mesmo
comprometendo-se, no esforço de engajar-se no mundo. Novamente, Sartre nos
confessa em As Palavras:
Platônico por condição, eu ia do saber ao seu objeto; achava na idéia
mais realidade que na coisa, porque a idéia aparecia para mim
primeiro, e porque ela aparecia como coisa. Foi nos livros que
encontrei o universo: assimiliado, classificado, rotulado, pensado e
ainda temível; confundi a desordem de minhas experiências livrescas
com o curso aventuroso dos acontecimentos reais. Daí veio este
idealismo de que gastei trinta anos para me desfazer (SARTRE,
2005b, p.37).
109
Contra este idealismo e toda a sua carga de representação, Sartre opõe-se
ao espírito de seriedade das representações coletivas dos atores sociais. Isto
significou, opor-se a si mesmo, deixar de olhar “os telhados” para falar dos conflitos
das relações, que se tornam mais evidentes quando nos aproximamos das
contradições de nossa sociedade. Por este mesmo movimento, Sartre foi muitas
vezes acusado de fazer uma literatura que “cheira mal” que destaca o horror da
condição humana. A literatura é obrigada então a “sujar as mãos” e também a
aproximar-se do cotidiano, de um tempo presente, seja ou não através da noção
clássica do engajamento. Os personagens sartreanos são os heróis destas
transformações, eles nos apresentam a denúncia daquilo que consideramos, por
uma atitude natural, como um mundo estabelecido, tudo aquilo que representa para
Sartre uma prática inerte. Querendo ou não, os heróis bastardos, nos lançam no
terreno de uma ética do cotidiano, tentando escapar aos entraves moralistas dos
sistemas de valores, mas apontado para má-fé das ações que não resultam senão
na conservação de um mesmo mundo. Desta forma, estes personagens são
construídos através do sentido de reposicionar aquele que entra em contato com
eles, em seu próprio mundo, em sua própria situação.
110
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