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que estes devem ser entendidos como sustentados por uma finalidade
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. Sendo
assim, conseguimos visualizar o processo: o autor cria e revisa, a editora revisa e,
talvez após algum “vai e vem”, publica o livro. Nesta ordem, o leitor já “chega”
quando tudo está pronto e ele nada tem a ver com as ações anteriores. Ele apenas
recebe passivamente tudo aquilo que já está acabado, sendo sua relação com o
autor abstrata e hipotética. Porém, o que Sartre (2004) tenta mostrar é que, na
produção literária, estes momentos não podem ser concebidos separadamente. Eles
fazem parte de uma interação dialética onde o autor e o leitor então em constante
diálogo.
A criação literária é produzida no mundo, sofre suas condições e as cria
simultaneamente, pois a intenção do autor existe, assim como a do leitor, e ambas
não devem ser ignoradas no entendimento desta produção. É nesse sentido que
Sartre afirma que toda literatura é engajada visto que ela propõe uma visão de
mundo que dá forma e sentido ao real. Ele descarta, portanto, a idéia de que a
literatura possa ser inocente, e se dirige à responsabilidade dos escritores vivos e
também a dos leitores, demarcando, deste modo, uma intenção por parte do autor
de estabelecer um “diálogo” como seu leitor. Se estivermos atentos em nossas
leituras cotidianas, podemos ver claramente alguns exemplos deste tipo de diálogo,
como este de Cervantes no início de Dom Quixote:
Desocupado leitor, não preciso de prestar aqui um juramento para
que creias que com toda minha vontade quisera que este livro, como
filho do entendimento, fosse o mias formoso, o mais galhardo e
discreto que se pudesse imaginar: porém não esteve na minha mão
contravir à ordem da natureza, na qual cada cousa gera outra que
lhe seja semelhante; que podia portanto o meu engenho, estéril e
mal cultivado, produzir neste mundo, senão a história de um filho
magro, seco e enrugado, caprichoso e cheio de pensamentos vários,
e nunca imaginados de outra alguma pessoa?[...] Acontece muitas
vezes ter um pai um filho feio e extremamente desengraçado, mas o
amor paterno lhe põe uma venda nos olhos para que não veja as
próprias deficiências; antes as julga como discrições e lindezas, e
está sempre a contá-las aos seus amigos, como agudezas e
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Sartre (2004) discorda noção kantiana de “finalidade sem fim” para designar a obra de arte, pois
para ele a obra não tem uma finalidade, ela é uma finalidade em si. Tudo que a compõe tem uma
relação significativa que revela as intenções do autor. Sartre nos dá o exemplo da diferença entre a
beleza da arte e a beleza natural. Quando vemos uma flor que expressa perfeição em suas formas
tendemos a procurar uma tendência finalista que una todas as suas propriedades, e temos uma
ilusão de um apelo a nossa liberdade. É somente na beleza natural que Sartre entende a “finalidade
sem fim”, pois, enquanto na natureza as coisas só se harmonizam por acaso, nos romances, por
exemplo, existe uma finalidade que harmoniza o todo “como uma força suave que nos acompanha e
sustenta, da primeira até a última página” (p.45).