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PARADIGMAS DO URBANISMO:
A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER
VICENTE NASPOLINI
ORIENTADOR
PROF. DR. NELSON POPINI VAZ
FLORIANÓPOLIS
2009
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DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
URBANISMO, HISTÓRIA E ARQUITETURA DA CIDADE
PGAU-CIDADE
PARADIGMAS DO URBANISMO:
A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER
VICENTE NASPOLINI
Dissertação de mestrado submetida ao
programa de Pós-graduação em Urbanismo,
História e Arquitetura da Cidade, da
Universidade Federal de Santa Catarina,
como parte dos requisitos para a obtenção
do grau de mestre em Urbanismo, História e
Arquitetura da Cidade. Linha de pesquisa:
Configurações Regionais, Planejamento
Urbano e Meio-Ambiente.
ORIENTADOR
PROF. DR. NELSON POPINI VAZ
FLORIANÓPOLIS, ABRIL DE 2009
AGRADECIMENTOS
À CAPES, por ter financiado parte dos meus estudos;
À UFSC, por me propiciar chegar até aqui;
A todos os professores do PGAU-Cidade;
Aos professores Lino e Elson, por suas valiosas contribuições;
Ao professor Popini, por sua paciência e predisposição;
Aos meus clientes, por saberem esperar;
Aos meus amigos, por sua amizade;
À família Macari, pela ajuda inestimável;
À minha família, irmãos, pais e vó pelo suporte e pela torcida;
E, finalmente, à Anelise, por ter estado sempre comigo!
:)
Se houvesse uma única verdade
não seria possível pintar
cem telas com o mesmo tema
Pablo Picasso
RESUMO
Esta dissertação tem como tema as teorias sobre a cidade e o
urbanismo, focando mais especificamente na obra teórica do
sociólogo francês François Ascher. O urbanismo vem passando por
uma crise paradigmática desde os anos 60/70, após longo tempo de
hegemonia da corrente modernista. De lá para cá, tem-se assistido a
uma profusão de opiniões, debates e discursos com o objetivo de
darem conta de um devir da cidade que se torna cada vez mais
incerto e inquietante. Nos últimos anos, alguns temas têm
direcionado as reflexões urbanísticas: globalização cultural e
econômica, generalização das tecnologias da informação e
comunicação, governabilidade e gestão, dispersão urbana. O estudo
focou-se sobre o pensamento de Ascher como fio condutor para
abordar esses temas contemporâneos, ao mesmo tempo em que se
analisa a própria contribuição do francês. Apresentou-se, assim, suas
análises dos eventos históricos recentes, hipóteses de evolução,
conceitos elaborados, como “metápole”, as defesas por uma
governança urbana, gestão estratégica da cidade e pela adoção de
novos princípios de urbanismo.
Palavras-chaves: urbanismo, teoria, paradigmas, François Ascher
ABSTRACT
This dissertation has as its theme the theories about the city and
urbanism, focusing more specifically on the theoretical work of the
french sociologist François Ascher. The town planning has been going
through a paradigmatic crisis since the 60s/70s, after long time of
hegemony of the modernist current. Since then, there has been a
profusion of opinions, debates and speeches aimed at giving an
account of the city evolution that is becoming increasingly uncertain
and unsettling. In recent years, some themes have directed urban
reflections: cultural and economic globalization, spread of information
technologies and communication, governability, management and
urban sprawl. This study addressed and focused on the thought of
Ascher to make contact with these contemporary issues, at the same
time it analyzes the contribution itself of the french thinker. Presented,
therefore, its analysis of the recent historical events, development of
hypotheses, concepts developed, as metapolis”, the defenses of a
urban governance, city strategic management and the adoption of new
principles of urbanism.
Keywords: urbanism, theory, paradigms, François Ascher
SUMÁRIO
LISTA DE IMAGENS E TABELAS ............................................................ 17
INTRODUÇÃO ....................................................................................... 19
CAPÍTULO IURBANISMO E PARADIGMAS .................................... 23
CAPÍTULO IISOCIEDADE HIPERMODERNA ................................... 47
CAPÍTULO IIIMETÁPOLE: A NOVA FORMA URBANA ................... 65
CAPÍTULO IVGOVERNANÇA URBANA METAPOLITANA ............... 87
CAPÍTULO VNOVOS PRINCÍPIOS DO URBANISMO ...................... 99
CONCLUSÃO ........................................................................................ 113
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................... 119
LISTA DE IMAGENS E TABELAS
IMAGENS
Imagem 1: Proposta de Owen.
............................................................ 42
Imagem 2: Cerdà, projeto de expansão para Barcelona, 1858.
......... 42
Imagem 3: Hausmann, intervenções em Paris.
................................... 43
Imagem 4: Howard, detalhe de sua "Rurisville", 1898.
...................... 43
Imagem 5: Le Corbusier, Ville Contemporaine, 1922.
......................... 44
Imagem 6: Mapa psicogeográfico proposto pelos situacionistas.
.... 44
Imagem 7: Walking City, a cidade do futuro.
...................................... 45
Imagem 8: Las Vegas, um dos visuais da Strip.
................................... 45
Imagem 9: Cidades com mais de 1 milhão de habitantes.
.................. 82
Imagem 10: Grandes conurbações. Urbanização aparente.
.............. 82
Imagem 11: População urbana e rural do mundo, 1950-2030.
............ 84
Imagem 12: Contribuição do crescimento da população urbana e
rural ao crescimento total, 1950-2030.
.....................................84
Imagem 13: Modelo christalleriano.
.................................................... 85
Imagem 14: Modelo hub-and-spokes. (ASCHER, 1995)
....................... 85
TABELA
Tabela 1: Megacidades e suas populações, 2005 e 2015.
.................... 83
INTRODUÇÃO
presente trabalho constitui-se numa pesquisa
especificamente teórica. Isso quer dizer que ela se debruça
sobre a teoria do urbanismo, detém-se sobre a dimensão
ideológica, sobre os pressupostos que fundamentam e as lógicas que
sustentam o discurso e este, posteriormente, a prática urbanística.
Além disso, possui um caráter expositivo, evitando-se ao máximo a
interferência do autor na apresentação das ideias, além, obviamente,
daquelas inerentes a qualquer trabalho e às quais não se pode
escapar. A própria escolha do tema já representa uma tomada de
posição particular e pessoal.
O interesse pelo assunto surgiu após a constatação da
proliferação de visões e opiniões, tão distintas quanto numerosas,
acerca de variados temas concernentes às cidades e seu
desenvolvimento. Essa dissonância e falta de um paradigma comum
e aceito amplamente cresceu no pós-segunda guerra e vem se
estendendo até hoje. As novas proposições e teorias foram sendo
continuamente ultrapassadas pelas rápidas mudanças estruturais
ocorridas no mundo inteiro e que sempre se refletiram com grande
intensidade no território.
Particularmente nos últimos anos, entrou na pauta das
discussões a globalização econômica e cultural, as tecnologias
avançadas de comunicação e transporte, a preocupação ambiental e
a relação poder público/setor privado ou, de forma mais clara,
Estado/mercado. Tudo isso em conjunto levou os debates a um novo
patamar de questionamentos, interpretações e prospectivas sobre o
papel da cidade no contexto atual.
Devido ao curto tempo destinado à feitura deste trabalho,
O
20 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
insuficiente para se fazer uma pesquisa aprofundada sobre o
panorama teórico contemporâneo, decidiu-se restringi-lo à análise de
um único estudioso do urbanismo, o sociólogo francês François
Ascher, e através dele poder relacionar as principais questões que
animam e suscitam o debate atual.
Ascher foi escolhido dentre tantos outros teóricos por três
motivos básicos: a) sua reflexão atravessa vários campos
relacionados à realidade da cidade em geral e à condição do
urbanismo enquanto disciplina do conhecimento em particular; b)
por deixar clara sua intenção de formar um novo paradigma no
urbanismo e c) apesar de se embasar principalmente sobre o
contexto francês e europeu, pretender que esse paradigma tenha
caráter global, isto é, que suas problemáticas e seus conceitos se
reflitam, com variações ocasionais e locais, no mundo globalizado.
Assim, a presente dissertação tem como pano de fundo as
questões que estão no centro das pesquisas e das polêmicas acerca
do urbano. Entre os objetivos desta dissertação estão o de realizar
um exercício de análise e síntese de uma teoria do urbanismo, no
caso a de François Ascher, de forma a apreendê-la criticamente; e
aprofundar o conhecimento do meio acadêmico brasileiro no
pensamento de Ascher, que, na maioria das vezes, limita-se a citar
suas opiniões acerca da “dispersão urbana”, ou seja, de apenas um
ponto de um quadro teórico bem mais amplo.
Além disso, constituindo os principais objetivos deste
trabalho, tem como questões fulcrais a serem respondidas: qual o
contexto em que aparecem os discursos de Ascher? Quais são os
seus focos, seus temas privilegiados, suas problemáticas
fundamentais a serem considerados na abordagem da cidade
contemporânea? Quais os elementos que ajudam a construir sua
visão de mundo? A que resultados, prescrições e recomendações ele
chega? Enfim, qual o significado, implícito ou explícito, de seu
paradigma?
Deste modo, a pesquisa se deu basicamente através de revisão
bibliográfica. Primeiramente de obras do próprio Ascher,
essencialmente livros e artigos publicados a partir de 1990, os quais
foram considerados aqui neste trabalho como uma única obra, coesa
e homogênea e não textos fragmentados e dispostos
cronologicamente, expondo uma possível “evolução”. Isso porque
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 21
não há negações ou contradições no conteúdo das publicações
desse período, mas um contínuo alargamento e aprofundamento em
relação ao que já foi tratado anteriormente.
Revisou-se também a bibliografia necessária e suficiente para
tratar sobre temáticas atuais e históricas a fim de situar e
contextualizar o pensamento ascheriano. Assuntos como revolução
industrial, metropolização, evoluções econômicas, globalização e,
claro, urbanismo foram tratados de modo a dar a compreensão das
questões a que Ascher se refere.
O trabalho foi estruturado em cinco capítulos, cada um com
um eixo temático próprio, dispostos numa seqüência lógica de
dedução do mais geral ao mais particular, das transformações sócio-
econômicas do século XIX aos princípios do urbanismo de hoje
elaborados por Ascher.
No Capítulo IUrbanismo e paradigmasexpõe-se uma
correlação entre as grandes mudanças históricas decorrentes dos
avanços técnicos e científicos, seus efeitos no espaço urbano e rural
e as diversas respostas teóricas e práticas, vistos como expressões
de paradigmas concorrentes. Iniciando no século XIX com a
Revolução Industrial e o nascimento do urbanismo com pretensão
científica, passando pela ascensão do fordismo no século XX, o
modernismo, pós-modernismo até a inserção de Ascher nessa cadeia
de ideias.
O Capítulo IISociedade hipermodernatrata do cenário do
pós-segunda guerra, a ascensão, consolidação e declínio do Estado
keynesiano, a contraproposta neoliberal, a desregulamentação
econômica e o predomínio do setor financeiro, a generalização das
novas tecnologias de comunicação e informação. Para Ascher tudo
isso contribui à terceira revolução urbana moderna, baseada, segundo
ele, numa economia “cognitiva”, competitiva e incerta, e na
emergência de uma sociedade hipermoderna, individualizada,
racionalizada e diferenciada.
A cidade como objeto específico da reflexão contemporânea
está presente no Capítulo IIIMetápole: a nova forma urbana. Neste
capítulo são elencados alguns autores contemporâneos e suas
respectivas leituras da conjuntura urbana atual e futura. Dá-se
atenção maior à obra de Saskia Sassen, na qual Ascher se ancora
para descrever a situação da metrópole hoje e dela derivar a
22 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
conceituação da “metápole”.
A problemática política referente ao contexto da cidade
globalizada e individualizada é o tema do Capítulo IV Governança
urbana metapolitana. Nele é demonstrado a constatação de Ascher
do declínio do interesse comum, da cidadania e da governabilidade; a
progressiva dissolução da polarização direita/esquerda e a procura
por uma terceira via; as contribuições das ciências “não-lineares” e
da filosofia política na construção de um novo paradigma do Estado;
a instituição de um poder público que dê conta e atue em múltiplos
níveis, escalas e racionalidades, ou seja, a constituição de uma
governança urbana metapolitana.
O derradeiro Capítulo V Novos princípios do urbanismo
apresenta finalmente as considerações e proposições de Ascher ao
urbanismo, sintetizados em dez princípios ao fim do capítulo. Eles
expressam sua preocupação em suplantar o modo de pensar e agir
positivista e simplista característico do modernismo “corbusiano”
por uma abordagem mais condizente com a complexidade social e
espacial atual. Assim, enxerga na gestão estratégica, oriundo do
mundo corporativo, instrumentos e metodologias, um modus
operandi, para lidar com as incertezas e variáveis mutantes cada vez
mais freqüentes.
A Conclusão traz, por fim, um resumo do que foi tratado até
então, seguido de uma breve reflexão sobre a aplicabilidade do
pensamento de Ascher às tendências que se avizinham no vir-a-ser
da cidade contemporânea, deixando em aberto questionamentos
para futuras pesquisas.
C APÍTULO I
URBANISMO E PARADIGMAS
Urbanismo sempre esteve envolto em debates
questionadores de sua própria fundamentação enquanto
disciplina. A impressão que temos é que ele ainda está longe
de poder autodenominar-se ciência no sentido rigoroso da palavra,
ou seja, «conhecimento que inclua, em qualquer forma ou medida,
uma garantia da sua própria validade»
1
Além da dificuldade de delimitação de seu território de ação e
definição de seus elementos e instrumentos analíticos, sua estreita
relação com fenômenos sociais e políticos concretos o faz, algumas
vezes, distorcer seus objetivos; em outras, o faz afastar-se de uma
abordagem mais metódica e racional. Deste modo, a imparcialidade,
a neutralidade e a autonomia científicas” do urbanismo já se
encontrariam, ab initio, comprometidas.
. Atualmente, pode-se
considerá-lo, mais exatamente, como um campo técnico e
acadêmico de constituição disciplinar variada, pois diferem as fontes,
os valores, os métodos, os objetos, as técnicas, etc., dependendo da
comunidade científica em geral, ou do pesquisador em particular,
que o sistematize e lhe dê significado e coerência interna.
[...] a despeito de suas pretensões, o discurso do
urbanismo continua normativo e só em caráter
mediato compete a uma prática científica qualquer:
seu recurso lícito e justificado às ciências da natureza e
do “homem” se subordina a escolhas éticas e políticas,
a finalidades que não pertencem somente à ordem do
1
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.
157.
O
24 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
saber.
2
A carga ideológica nos debates e pesquisas urbanísticas
sempre foi ainda é e talvez nunca deixe de sê-lo muito
significativa, fazendo com que o urbanismo fique dependente de
discursos fundadores. Tais discursos constituem-se em corpos
teórico-práticos que se colocam como novas abordagens sobre o
fato urbano ao mesmo tempo em que estabelecem as diretrizes para
a ação futura.
Esses mesmos discursos, expressões de “ideologias
inconfessas e não-assumidas
3
Daí a necessidade de nos debruçarmos criticamente sobre a
atividade teórica do urbanismo, pois nela se apóiam as práticas
posteriores, sejam projetos, sejam políticas públicas. Isso não
significa julgar e condenar a priori todo e qualquer discurso devido às
questões levantadas acima, as quais deturpam suas pretensões
científicas. Antes disso, trata-se de torná-lo transparente, clarificar
seus propósitos e ordenar seus argumentos. Talvez assim,
conhecendo e compreendendo as filigranas do discurso, evita-se que
a prática resultante não amplifique, no espaço da cidade ou numa
região mais ampla, paralogismos, equívocos, posicionamentos que
trariam um alto custo econômico, social e político a médio ou longo
prazo à sociedade à qual se dirige. Como veremos, discurso e prática
sempre tiveram uma relação conflituosa e historicamente marcada
por teses e antíteses, defesas e refutações, deturpações e
manipulações.
, quando adquirem projeção entre
certo número de pesquisadores e profissionais, se tornam
verdadeiras doutrinas que conduzem estudos teóricos e aplicações
práticas ulteriores. Nesse momento, evidentemente, assume um
grau de importância elevado ao constatarmos que, sob o efeito
dessas aplicações teórico-práticas à grande escala urbana, estão
milhares, até milhões, de pessoas.
O urbanismo (enquanto campo de análise e proposições
sistemáticas) possui uma história recente, surgindo como disciplina
autônoma apenas no século XIX, datando deste mesmo período
2
CHOAY, Françoise. A Regra e o Modelo: Sobre a Teoria da Arquitetura e do Urbanismo.
São Paulo: Perspectiva, 1985, (Série Estudos), p. 2.
3
Ibidem, p. 2.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 25
também a própria invenção de seu nome. Mesmo assim, como era de
se esperar, tem sua evolução marcada por diversos conflitos entre
pensamentos, discursos, métodos e objetivos. Fundamentões
várias, lógicas diferentes, objetos enfocados e definidos de modos
díspares.
Essa evolução pode ser mais bem compreendida utilizando-se
os conceitos de “paradigma” e “revolução científica”, como exposta
por Thomas Kuhn em seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas
4
“Ciência normal” significa a pesquisa firmemente
baseada em uma ou mais realizações científicas
passadas. Essas realizações são reconhecidas durante
algum tempo por alguma comunidade científica
específica como proporcionando os fundamentos para
sua prática posterior.
.
Para Kuhn, a atividade científica divide-se em dois momentos
básicos: a “ciência normal” e a “ciência extraordinária”.
5
Essas realizações anteriores devem possuir duas
características essenciais: serem sem precedentes e suficientemente
abertas. Assim, definirão, às gerações posteriores, problemas e
todos a serem utilizados na pesquisa científica, conformando,
deste modo, um paradigma, partilhado por uma mesma comunidade
como exemplar de lei, teoria, aplicação e instrumentação.
Os paradigmas adquirem seu status porque são mais
bem sucedidos que seus competidores na resolução de
alguns problemas que o grupo de cientistas reconhece
como grave.
6
Aqui é necessário esclarecer o conceito de paradigma
formulado por Kuhn e utilizado neste trabalho. Num sentido mais
sociológico, um paradigma pode ser entendido como uma “matriz
disciplinar”: «“disciplinar” porque se refere a uma posse comum aos
praticantes de uma disciplina particular; “matriz” porque é composta
de elementos ordenados de várias espécies»
7
4
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções cientificas. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva,
1978.
. Os principais
5
Ibidem, p. 29
6
Ibid., p. 44
7
Ibid., p. 226
26 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
elementos formadores de uma matriz disciplinar seriam as
“generalizações simbólicas”, os compromissos coletivos com
crenças em modelos explicativos, os valores, e as soluções concretas
de problemas, transmitidos e apresentados nas instituições de
ensino, manuais ou periódicos científicos, que indicam como se deve
realizar o trabalho.
A partir do momento em que um paradigma é estabelecido, os
cientistas procuram articulá-lo e precisá-lo «em condições novas ou
mais rigorosas», em busca de um maior conhecimento e correlação
entre os fatos e as predições do paradigma. «Parece ser uma
tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites
preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo
paradigma». Consequentemente, a ciência normal se caracteriza pela
atividade de “limpeza” e resolução de quebra-cabeças, de uma
maneira altamente determinada, não necessariamente por leis, mas
pelo próprio paradigma. Não tem como objetivo a novidade, ou seja,
a descoberta de fenômenos até então desconhecidos, «na verdade,
aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma
frequentemente nem são vistos»
8
Já que o resultado da pesquisa pode geralmente ser
antecipado, o interesse e o problema a ser resolvido recaem sobre o
modo de obtê-lo. «Resolver um problema da pesquisa normal é
alcançar o antecipado de uma nova maneira»
.
9
A partir daí inicia-se um novo tipo de pesquisa: a ciência
extraordinária. Os princípios e os métodos «são submetidos a uma
discussão crítica de tipo filosófico, novos tipos de quebra-cabeças
são propostos até que um deles acabe conquistando a adesão de
pelo menos uma parte da comunidade que sofre a crise»
. A ciência normal
acaba por ser uma atividade cumulativa e altamente bem sucedida
na ampliação do conhecimento científico, até o momento em que
uma anomalia resiste às tentativas de redução e absorção no
paradigma, o qual entra em crise.
10
8
Ibid., p. 45
,
substituindo o paradigma por outro que torne o anômalo no
esperado. São características comuns a todas as descobertas
científicas a «consciência prévia da anomalia, a emergência gradual e
9
Ibid., p. 59
10
HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 27
simultânea de um reconhecimento tanto no plano conceitual como
no plano da observação e a conseqüente mudança das categorias e
procedimentos paradigmáticos»
11
Nos momentos de crise intensificam-se as buscas de novas
teorias que dêem conta das lacunas dos quebra-cabeças. Um
sintoma desse período é a proliferação de versões de uma teoria,
sobretudo nos primeiros estágios do desenvolvimento de um novo
paradigma, já que «mais de uma construção teórica pode ser
aplicada a um conjunto de dados determinado, qualquer que seja o
caso considerado»
.
12
No entanto, paradigmas diferentes geram mundos diferentes
e a discussão entre partidários de paradigmas concorrentes é uma
discussão entre surdos devido à incomensurabilidade e
descontinuidade da ruptura existente. Aceitar um paradigma implica
ao mesmo tempo negar outro, numa transição revolucionária.
. Outros sintomas dessa transição podem ser
testemunhados na disposição dos cientistas de tentar qualquer
coisa, a expressão de descontentamento explícito, o recurso à
Filosofia e ao debate sobre os fundamentos.
Esse “paradigma” kuhniano de interpretação da evolução
científica através de “revoluções” pode também, apesar de que com
reservas e precauções devido à heterogeneidade de suas naturezas
epistemológicas, ser aplicado à história das ciências “humanas”.
Enquanto que nas ciências da natureza um paradigma toma o lugar
do outro de modo inequívoco, nas ciências humanas, ou “sociais”, a
evolução é bem menos clara. Seja na Sociologia, Filosofia, Psicologia,
há geralmente a convivência entre diversos ramos paradigmáticos,
que se alternam na prevalência da comunidade científica, sem, no
entanto, tornarem-se hegemônicos.
O Urbanismo, por ser composto, além das ciências exatas e da
natureza, de ciências sociais (com as disciplinas éticas e estéticas
adquirindo grande relevância), também tem sua evolução marcada
por disputas entre paradigmas, sem, no entanto, algum deles
alcançar a posição de corpo teórico supremo e absoluto, fonte de
todas as pesquisas e práticas subseqüentes. Diferentes “vontades de
11
KUHN, op. cit., p. 89
12
Ibid., p. 98
28 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
verdade”
13
De fato, ao realizarmos um breve histórico do urbanismo,
constatamos a proliferação e alternância de visões distintas acerca
do que deveria ser o urbanismo ou como se deveria atuar na
construção da cidade. As “vontades de verdade” que se altercam
acabam por se cristalizar em discursos normativos e indutivos.
inerentes a cada uma das partes do debate chamam para
si a posse da razão.
No século XIX, grandes mudanças nas estruturas econômicas e
sociais, e por conseqüência no espaço da cidade, impeliram inúmeros
pensadores, cientistas e engenheiros a refletir sobre os caminhos
que as aglomerações deveriam seguir.
A ascensão da burguesia, impulsionada pelas revoluções na
indústria, trouxe consigo o pensamento iluminista, de caráter
historicista reflexivo, e a concepção positivista da ciência,
submetendo a natureza ao poder do homem. A ciência adquire papel
central na pesquisa e desenvolvimento de novos meios de extração,
produção e invenção. Tal contexto contribuiu ao rápido avanço
tecnológico, principalmente na área industrial, mas também na infra-
estrutura e construção, transportes e comunicação, agricultura e
comércio.
A demanda de mão-de-obra pelas indústrias, a crescente
mecanização do campo e o aumento dos padrões nutritivos
culminaram no êxodo da população em direção aos centros fabris.
Cidades multiplicaram o número de habitantes sem que os sistemas
de infra-estrutura acompanhassem tamanha evolução. Processo esse
que nada tinha de espontâneo.
A parte mais progressiva da cultura econômica e
política persuade os governos e a opinião pública a não
interferirem e, portanto, a não reconhecerem os
problemas derivados das transformações em curso no
território; desacredita e enfraquece os métodos
tradicionais de controle urbanístico, sem propor outros
métodos em alternativa, preconizando pelo contrário
nesta matéria uma absurda extensão do laissez-faire.
14
13
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 17ª ed. São Paulo: Loyola, 2008. (Série Leituras
Filosóficas)
14
BENEVOLO, Leonardo. As Origens da Urbanística Moderna.. 3ª ed. Lisboa: Presença,
1994.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 29
Apenas como ilustração da intensidade do processo de
concentração urbana ocorrida no século XIX, a população de
Manchester passou de 75.000 em 1801 para 600.000 em 1901; no
mesmo período Londres passou de 1 milhão para 6,5 milhões,
enquanto Paris de 500.000 para 3 milhões de habitantes
15
O enorme contingente de pessoas que chegou às cidades num
curto espaço de tempo as dotou de gigantescos bolsões de pobreza,
com construções precárias, sem esgoto, água, luz e ventilação
naturais, espaço. As condições eram propícias à propagação de
doenças e muitas epidemias eclodiram em várias cidades européias.
. Incapaz
de receber e acomodar o enorme contingente de pessoas, crescendo
em proporção geométrica, a cidade medieval finita e precária entrou
em colapso.
A constatação dos males da cidade industrial e o
protesto dos seus habitantes perfilam-se, pois, por
agora, num vazio ideológico que deixa a sociedade dos
primeiros decênios do século XIX momentaneamente
privada de instrumentos para corrigir esses males na
prática: insuficientes e desacreditados os antigos
instrumentos, ainda não caracterizados os novos.
Doravante trata-se de encher este vazio com uma série
de iniciativas individuais de propostas, de leis capazes
de saldar-se por uma nova e coerente experiência;
caracterizar uma a uma as feições da “coisa”, para
conseguir mudá-la.
16
A fim de reverter esse quadro de miséria e degradação
(consideradas “anomalias” do sistema), teorias e métodos surgiram:
de “fábricas modelos” a cidades utópicas, de “cidades industriais” a
“cidades jardins”, dependendo da filiação teórica, partidária ou
científica que lhes dava guarida. Mal surgiu e o Urbanismo já
adentrou numa fase “revolucionária”. Em termos genéricos,
deixando de lado diferenças pontuais individuais, as correntes
discursivas se resumiam, utilizando a classificação clássica de
Françoise Choay
17
15
FRAMPTON, Kenneth. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
, principalmente em progressistas e
16
BENEVOLO, op. cit., p. 48.
17
CHOAY, O Urbanismo: Utopias e Realidades, Uma Antologia. 5ª ed. São Pauo:
Perspectiva, 2003.
30 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
culturalistas”.
Os progressistas, majoritariamente socialistas e anarquistas,
eram racionais e otimistas, crentes no progresso da ciência e das
técnicas. Propunham a criação ex-nihilo de comunidades auto-
suficientes e endógenas baseadas em sistemas coletivistas e não na
propriedade privada. (Imagem 1, página 42) Robert Owen criou
Lanark, uma instituição pioneira do movimento cooperativo. Titus
Salt criou Saltaire, uma “cidade fabril paternalista”. A proposta mais
influente foi a do “novo mundo industrial” de Charles Fourier, os
“falanstérios”, comunidades agrícolas onde as pessoas se
relacionariam pelo «princípio fisiológico fourieriano da atração
passional”»
18
Outra corrente, a dos “culturalistas”, viam na História e na
Arqueologia, na época duas disciplinas científicas prestigiadas, as
suas bases conceituais. Pugin, Ruskin e Morris voltavam-se à
revalorização das estéticas do passado, às tradições, aos valores que
fundavam a cultura inglesa desde tempos remotos e que se
expressavam nas formas arquitetônicas e urbanas, essas últimas
ameaçadas pelo crescimento desordenado e sem critérios.
. Godin o aplicaria, não sem algumas modificações
conceituais e pragmáticas, em sua fábrica em Guise, chamando-o de
“familistério”.
Contudo [...] todos esses pensadores imaginam a
cidade do futuro em termos de modelo. Em todos os
casos, a cidade, ao invés de ser pensada como
processo ou problema, é sempre colocada como uma
coisa, um objeto reprodutível. É extraída da
temporalidade concreta e torna-se, no sentido
etimológico, utópica, quer dizer, de lugar nenhum.
19
Já Ildefonso Cerdà (
Imagem 2, página 42), mais ligado ao
academismo científico, focou-se nas necessidades de luz solar e
ventilação natural das habitações, na presença de áreas verdes, no
destino do lixo e principalmente na eficiência da circulação urbana.
Já havia percebido que as novas técnicas de comunicação e
transporte iriam causar grande impacto nas formas de urbanização.
Acabou por aplicar suas teorias no plano de extensão de Barcelona
18
FRAMPTON, op. cit. p. 15.
19
CHOAY, op. cit., 2003.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 31
(Eixample), de 1859, mas não foi capaz de gerar uma escola de
pensamento e deixar discípulos que continuassem suas pesquisas.
20
No entanto, apesar da miríade de discursos e proposições, o
que foi levado a cabo generalizadamente foram legislações
higienistas e intervenções do tipo “haussmaniano”. Na Inglaterra, as
reformas sanitárias buscaram obter o controle sobre as construções
e os aglomerados, esgoto, coleta de lixo, fornecimento de água,
limpeza das vias públicas, enterro dos mortos. Em Paris (
Imagem 3,
página 43), Haussmann rasgou grandes avenidas, abriu ruas, demoliu
cortiços, canalizou rios, com o discurso de viabilizar a despoluição
das águas, a construção de um sistema de esgoto mais adequado, a
criação de parques e cemitérios e criar escoamento para o
congestionado tráfego, sem esquecer, é claro, da facilitação de
controle social em tempos de revoltas e barricadas. Outras cidades
pelo mundo adotaram medidas semelhantes de intervenção urbana.
As realizações de Haussmann em Paris constituem o
protótipo daquilo que chamamos de urbanística
neoconservadora; esta transforma-se na praxe comum
de todas as cidades européias, sobretudo depois de
1870, mas já no tempo do Segundo Império é possível
relacionar uma série de iniciativas, na França e em
outras partes, orientadas da mesma maneira.
21
O século XX inicia apresentando a defasagem existente entre
as propostas urbanísticas e a constante evolução dos meios de
produção e modos de vida (a
Imagem 4, página 43, é um exemplo
dessa defasagem). As primeiras já surgiam obsoletas e ultrapassadas
pela “segunda” Revolução Industrial e seus avanços tecnológicos
nos campos da indústria química, siderúrgica (aço), elétrica
(lâmpada, dínamo) e petróleo.
Inovações capitais, que modificariam completa e
definitivamente a vida urbana, também surgiram ou começaram a se
generalizar nesta virada de século. O telefone por um lado e as novas
técnicas de armazenamento e refrigeração de alimentos de outro,
abriram novas possibilidades de manejo do tempo individual
cotidiano. A produção em massa contribuiu a reduzir o custo dos
20
Cf. idem, op. cit., 1985, p. 267.
21
BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. ed. São Paulo: Perspectiva,
1998.
32 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
bens de consumo além de representar uma reestruturação das
localizações das funções urbanas: a indústria agora passava a
constituir-se de imensas unidades fabris, distanciadas do centro e
rodeadas pelos bairros operários. Os transportes também foram
aprimorados. Aumento da malha ferroviária, navios a vapor, aviões,
motor a explosão, automóveis, tudo isso multiplicou o poder de
deslocamento e expandiu os limites das cidades. Os automóveis
dotavam a cidade de extensas periferias pobres e de baixa
densidade, “deslocando para a escala territorial todos os problemas
da organização urbana”
22
A cultura de vanguarda não somente ignora esses
novos problemas, como também não está apta a
fornecer uma alternativa coerente à praxe urbanística
tradicional para resolver os problemas usuais; as
experiências de Garnier, de Howard, de Soria, de
Berlage, são tentativas parciais e hesitantes [...] e que
resultam pateticamente desproporcionais em relação à
importância dos problemas que já nessa época se
delineiam.
. A “cidade industrial” transformava-se
numa rapidez e escala não acompanhada pelo urbanismo
contemporâneo.
23
A I Guerra Mundial acabou por agudizar os problemas
urbanos, principalmente o déficit habitacional. O Estado, que até
aqui atuou apenas como observador e financiador das obras, era,
neste momento, a única entidade capaz de reverter o quadro de
destruição e efetuar as tarefas de reconstrução necessárias. Assim, o
urbanismo adquiriu importância e passou a ser subvencionado pelo
poder público.
Mas agora o foco das discussões mudou. O urbanismo passou
a ser matéria de especialistas no assunto e despolitizado
24
22
Ibidem, p. 374.
. Os
paradigmas continuam cindidos numa dicotomia clara: progressismo
e culturalismo, mas, diferentemente do século XIX, numa quase total
hegemonia a favor do primeiro, autodenominado de “movimento
moderno”.
23
Ibidem, p. 374.
24
CHOAY, op. cit., 2003, p. 18.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 33
Como no pré-urbanismo progressista, encontra-se,
pois, na base do urbanismo progressista uma
concepção da era industrial como ruptura histórica
radical. Mas o interesse dos urbanistas deslocou-se das
estruturas econômicas e sociais para as estruturas
técnicas e estéticas. A grande cidade do século XX é
anacrônica porque não é a contemporânea verdadeira
nem do automóvel, nem das telas de Mondrian: eis o
escândalo histórico que eles vão denunciar e tentar
suprimir.
25
“O preconceito contra os processos mecânicos [...] é
substituído por uma apreciação mítica dos valores industriais”
26
. A
máquina, e tudo o que ela representava: racionalização, rapidez,
economia, pré-fabricação, se tornou o Leitmotiv das teorias
arquitetônicas e urbanísticas, voltadas para um novo homem, o
“homem multiplicado pelo motor”, na expressão de Marinetti
27
O período “extraordinário” do Urbanismo havia acabado,
iniciando uma nova fase de resolução de quebra-cabeças tendo
como fundamento o novo paradigma modernista. Os CIAMs, a partir
de 1928, divulgaram as novas doutrinas internacionalmente, tendo
como principal porta-voz Le Corbusier e sua síntese na Carta de
Atenas, de 1933, não sem lutas internas entre grupos de paradigmas
distintos pelo poder de administrar o congresso e
conseqüentemente determinar as pautas de discussões.
.
A hegemonia interna dos CIAM legitimou-se na disputa
interna entre dois grupos de liderança, o grupo alemão
e o francês. Além disso, a insistência em alguns temas
tidos como centrais nas discussões levantadas foram
essenciais para a legitimação dessa hegemonia. Esses
temas foram a habitação social e a cidade funcional.
Outro importante fator que levou à consolidação da
hegemonia foi a centralização da gestão interna dos
Congressos em um comitê formado por Walter
Gropius, Le Corbusier, Sigfried Giedion, José Luis Sert e
Cornelius van Eesteren. Eles determinavam o rumo das
25
Ibidem, p. 20.
26
BENEVOLO, op. cit., 1998, p. 374.
27
BANHAM, Reyner. Teoria e projeto na primeira era da máquina. 2ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 1979. (Coleção Debates)
34 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
discussões, fazendo enfraquecerem outros grupos que
levantassem temas incompatíveis com seus interesses
práticos. Finalmente, a historiografia também teve um
papel importante na consolidação da hegemonia do
Movimento Moderno em Arquitetura a partir dos
CIAM, muitas vezes identificando os congressos com o
próprio movimento.
28
O urbanismo tornou-se uma disciplina centralista, técnica e
teleológica. Com a tecnologia industrial, a padronização, a pré-
fabricação em série, aliadas aos estudos científicos sobre saúde e
higiene na habitação, poder-se-ia resolver não só o problema da
moradia, mas a cidade como um todo seria repensada, aplicando a
lógica reducionista industrial do funcionalismo ao espaço urbano.
Fruto da razão demiúrgica do urbanista-arquiteto-artista, a
cidade seguiria a estética pura da geometria ortogonal (Imagem 5,
página 44), da lógica matemática «o ponto de encontro do belo e
do verdadeiro»
29
Para nós, hoje, está claro que o objetivo do movimento
é a indicação de uma alternativa para a cidade
burguesa pós-liberal, não uma correção de seus
conflitos; portanto é inevitável uma solução de
continuidade entre a pesquisa moderna e a prática
corrente, embora enriquecida pelas contribuições das
vanguardas operantes antes de 1914.
. O espaço não mais compartimentado, limitado,
fragmentado, irracional, mas contínuo, homogêneo, aberto, livre e
arborizado, eficiente, setorizado pelas funções-tipo que
correspondiam às necessidades-tipo do homem-tipo: habitar,
trabalhar, circular e “cultivar o corpo e o espírito”.
30
O segundo pós-guerra trouxe novamente, mas desta vez em
maior escala do que no primeiro, os problemas das reconstruções e
das habitações. Mas o reerguimento e restabelecimento das
situações internas se deram num curto período graças à ajuda
financeira norte-americana e às novas técnicas de construção. O
desenho moderno da arquitetura e do urbanismo foi usado
28
BARONE, Ana Cláudia Castilho. Team 10: arquitetura como crítica. São Paulo:
Annablume: Fapesp, 2002, p. 25.
29
CHOAY, op. cit., 2003, p. 23.
30
BENEVOLO, op. cit., 1998, p. 486.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 35
amplamente nos planos de reconstrução de cidades em vários países
afetados pela guerra ao longo das décadas de 40 e 50.
Cidades arrasadas pela guerra foram reconstruídas
rapidamente e populações foram abrigadas em
condições muito melhores do que as do período entre-
guerras. Dadas as tecnologias disponíveis na época e a
evidente escassez de recursos, é difícil ver como tudo
isso poderia ter sido conseguido, exceto por uma
variante do que foi de fato feito. E, apesar de algumas
soluções terem se revelado mais bem-sucedidas [...] do
que outras [...], o esforço geral teve razoável êxito na
reconstituição do tecido urbano de modo a preservar o
pleno emprego, a melhorar os equipamentos sociais
materiais, contribuindo para metas de bem-estar social
e, de modo geral, facilitando a preservação de uma
ordem social capitalista bastante ameaçada em 1945.
31
No entanto, as bases para uma futura contestação do
movimento moderno já começavam a aparecer. O mal-estar na
civilização, com os resultados e aplicações da racionalidade, da
ciência, das tecnologias aplicadas à destruição e ao genocídio com
grande maestria na segunda grande guerra, alimentou o
florescimento de correntes filosóficas e científicas que não só
rejeitavam os legados das teorias totalizantes precedentes. Também
relativizavam a razão humana em relação ao contexto cultural em
que estava inserida, questionando a noção de verdade absoluta,
objetiva e positiva. Além disso, duvidavam da crença positivista de
que o progresso da humanidade era inevitável.
Dilacerada entre Auschwitz e Hiroshima, entre a
impossível lembrança da Shoah e o insuportável terror
do apocalipse nuclear, cortada ao meio pela guerra
fria, cética em relação à construção “comunitária” que
lhe propõem tecnocratas e políticos, a Europa dos
anos 50 deixou de acreditar no futuro.
32
As artes expressavam o pessimismo geral: a mesma
31
HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança
cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1993, p. 72.
32
DELACAMPAGNE, História da Filosofia no Século XX, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1997, p. 233.
36 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
incomunicabilidade, recusa da civilização, desespero, cólera fria no
cinema de Antonioni e Resnais, nos romances de Beckett, nos
aforismos de Cioran.
33
A modernidade entrou em crise. Os paradigmas se
multiplicaram e se sucederam um após o outro
Na pintura, o expressionismo abstrato de
Pollock e de Kooning rompe com qualquer tentativa de
representação transcendente à própria tela, nem busca a
inteligibilidade ou o belo, apenas o indeterminado, o indefinido.
34
A arquitetura e o urbanismo acompanharam a tendência de
crítica e procura por um novo sentido de atuação. A comunidade dos
profissionais e estudiosos da área empreendeu um período de
revisão do modernismo que talvez ainda não tenha conhecido seu
ponto final.
. A hermenêutica, a
fenomenologia, a lingüística, o estruturalismo, o pós-estruturalismo,
a desconstrução, o marxismo, o feminismo, todos procurando novos
caminhos e significações na complexa sociedade que emergia,
tentando juntar seus próprios quebra-cabeças.
As controvérsias iniciaram no interior do próprio CIAM, nos
anos 50, com as propostas de uma nova geração de arquitetos e
urbanistas de incorporação de novos temas a serem debatidos além
daqueles que sempre foram privilegiados pelos modernistas. Essa
nova geração, principalmente aqueles que faziam parte do grupo
Team 10
35
Arquitetos como Aldo van Eyck, Jaap Bakema e Georges
Candilis expressavam suas insatisfações com o funcionalismo estrito
da Carta de Atenas e a descrença no “poder das novas cidades em
criar as condições para a organização de uma nova sociedade”
, além de buscar uma maior abertura e pluralidade de
visões no CIAM, proclamavam a necessidade de mudança do foco da
atividade arquitetônica e urbanística.
36
33
Ibidem, p. 233.
.
Propunham uma concepção urbana mais complexa e flexível. Em
detrimento do rígido e abstrato macro zoneamento, múltiplas
escalas de intervenção, a começar pela casa, depois a rua, o bairro,
34
cf. NESBITT, Kate (Org.). Uma Nova Agenda para a Arquitetura: Antologia Teórica (1965-
1995). São Paulo: Cosac Naify, 2006. (Coleção Face Norte)
35
Faziam parte deste grupo os arquitetos holandeses Jacob Bakema e Aldo van Eyck, os
ingleses Alison e Peter Smithson, o francês Georges Candilis, o americano Shadrach
Woods e o italiano Giancarlo de Carlo.
36
BARONE, op. cit., p. 77.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 37
para então chegar à cidade.
A intenção fundamental dos jovens era questionar a
validade desses princípios universais a partir da noção
de que o homem se organiza em comunidades, que
desenvolve a necessidade de se diferenciar, se
identificar com o local onde habita, criar vínculos
sociais e apreender o espaço a partir de seus próprios
valores culturais. [...] No seu modo de ver, os valores
humanos não se traduziam em atributos e
necessidades genéricas para um tipo universal, mas
constituíam-se historicamente em função de
características locais e culturais.
37
Dois grupos ainda são dignos de nota no debate geral do
urbanismo no pós-guerra, não para o aprimorar, muito pelo
contrário, para questioná-lo e erodir suas bases: o grupo francês da
Internacional Situacionista (IS), nos anos 50, e o grupo inglês
Archigram, nos 60. Os situacionistas, liderados por Guy Debord
sem esquecer também a influência inicial exercida por Henry
Lefebvre rejeitavam a condução da cidade através do urbanismo e
planejamento em geral, os quais consideravam como instrumento
ideológico do capitalismo e até mesmo como crime contra o modo
de vida da população
38
Imagem 6
. Desejavam revolucionar a vida na cidade
através da apropriação de seus espaços e de situações que fugissem
do cotidiano ( , página 44). Já o Archigram, de caráter
menos político e já inserido na cultura pop dos anos 60, utilizou da
ironia e ficção para imaginar cidades futuras e altamente
tecnológicas, não mais fixas, estáticas, mas compostas de unidades
arqui-mecânicas interconectáveis, móveis, nômades (Imagem 7,
página 45), dotadas de todas as funções e equipamentos de uma
cidade normal, que pudessem estar em qualquer parte do mundo a
qualquer momento, criando assim um espaço urbano mutante para o
qual o planejamento não possuía mais nenhuma utilidade
39
Os anos 60 foi a década em que realmente o paradigma
.
37
Ibidem, p. 61.
38
Cf. JACQUES, Paola Berenstein. Breve Histórico da Internacional Situacionista IS (1).
Portal Vitruvius, São Paulo, abr. 2003, Arquitextos 035, Texto Especial 176.
39
Cf. SILVA, Marcos S. K. Redescobrindo a Arquitetura do Archigram. Portal Vitruvius, São
Paulo, mai. 2004, Arquitextos 048, Texto Especial 231.
38 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
modernista, tanto na arquitetura quanto no urbanismo, começou a
sofrer as suas mais sérias contraposições advindas de várias áreas do
conhecimento
40
Tendo acompanhado e absorvido os debates promovidos nas
disciplinas filosóficas e científicas nascidas no pós-guerra e vivido os
acontecimentos sociais fundamentais para a configuração da época,
como a revolta estudantil de maio de 68, a luta pelos direitos das
minorias, a contracultura, arquitetos e críticos pós-modernos
estabeleceram alguns temas recorrentes: a história, o significado, a
responsabilidade social, o corpo, o lugar “fenomenológico” e a
cidade como artefato cultural
, inaugurando uma era posteriormente chamada pós-
modernismo e que teria como símbolo a implosão, em 1972, do
conjunto habitacional Pruitt-Igoe, em St. Louis, nos Estados Unidos,
projeto baseado nos cânones do modernismo corbusiano, incluindo
as “ruas no ar”, corredores anônimos e peças sem privacidade.
41
O primeiro tema diz respeito à atitude em relação à
historicidade da disciplina. Enquanto os modernistas propunham
uma ruptura radical com a história, os pós-modernos admitiam o
retorno a ela, seja copiando-a ou apropriando-se dela. o tema do
significado invocava a semiologia para tratar da comunicação e do
simbolismo impregnado nas formas, um processo de leitura da
cidade como texto. As discussões sobre a responsabilidade social do
arquiteto se resumiam a quatro tipos de atitude: indiferente e
autônoma; resignada ao status quo; pacífica mas reformadora; crítica
radical. O problema do corpo questionava a perda da escala humana
nos projetos arquitetônicos e urbanos. O “lugar”, conceito recém-
nascido, retomava, de forma alegórica, a antiga crença romana do
genius loci (espírito do lugar) para relacionar o corpo, o local e sua
identidade.
. Geralmente mais voltados à
arquitetura dos edifícios do que ao urbanismo da cidade, ao fim e ao
cabo, acabaram por fazer parte de um único discurso.
Por fim, o debate teórico sobre a cidade girava em torno da
essência do espaço urbano enquanto artefato cultural. Alguns
nomes se sobressaíam em meio à multidão de opiniões. Robert
40
Cf. KOHLSDORF, Maria Elaine. Breve Histórico do Espaço Urbano Como Campo
Disciplinar. In: FARRET, Ricardo Libanez. (Org.) O Espaço da Cidade: Contribuição à
análise urbana. São Paulo: Projeto, 1985, p. 15-72.
41
Cf. NESBITT, op. cit., p. 45.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 39
Venturi utilizava da ironia para, ao mesmo tempo, criticar a
esterilidade moderna e elogiar o urbanismo populista americano
simbolizada pela Strip
42
Imagem 8 de Las Vegas ( , página 45). Colin
Rowe e Fred Koetter pregavam a continuidade da lógica precedente,
um contextualismo pluralista, inserindo o novo como colagem sobre
a estrutura espacial já consolidada. Rob e Leon Krier defendiam a
morfologia tradicional da cidade européia em desenhos de rigidez
tipológica. Aldo Rossi tinham um programa parecido com o dos Krier,
sendo, contudo, mais racional.
A partir dos anos 80, algumas questões se destacaram e se
tornaram o foco das reflexões. A economia mundial, modificada
pelos meios de produção e comunicação informatizados, caminhou
em direção a um capitalismo ultraliberal, acentuando e acelerando o
processo de globalização econômica. A reorganização geográfica em
escala planetária da indústria operou em dois sentidos inversos:
dispersão da produção industrial transcontinental e a concentração
dos recursos financeiros nas grandes cidades
43
. A
desregulamentação da economia e a retirada do Estado de certos
setores fizeram das grandes cidades os grandes palcos e agentes
dessa nova fase do capitalismo
44
Outra questão que ganhou proeminência foi o ambientalismo
e a chamada “sustentabilidade”. Já em 72, o think tank “Clube de
Roma” publicou o livro The Limits to Growth, no qual alertava sobre
a incapacidade de manter os crescimentos populacional e econômico
indefinidamente frente às limitadas reservas de recursos naturais.
Em 1987, o Relatório Brundtland (Our Common Future), da Comissão
Mundial sobre Meio-Ambiente e Desenvolvimento, da ONU, cunhou
o termo “desenvolvimento sustentável”, o qual serviu de base à
formulação da Agenda 21, documento de princípios de ação global,
nacional e local, aprovado na Eco-92.
. Os limites urbanos se estenderam
ainda mais através de subúrbios, conurbações, urbanizações de áreas
rurais, favelas.
Atualmente, devido às mudanças operadas nas últimas três
42
A Las Vegas Strip é uma porção de aproximadamente 6,4km da Las Vegas Boulevard
South e onde se concentram os maiores hotéis e cassinos da cidade.
43
Cf. SASSEN, Saskia. The Global City: New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton
University Press, 1991.
44
Essa nova fase do capitalismo recebe várias designações: pós-fordismo, pós-
industrialismo, capitalismo informacional, capitalismo tardio...
40 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
décadas, vemos as tentativas de estudiosos das questões urbanas
em apreender as complexas dinâmicas que afetam a cidade, definir
suas causas e efeitos, identificar as tendências. Autourbanismo,
telépolis, glocal, hiperiferia, ruburbia, sprawl, cidade patchwork,
multicidade, edge-city, pós-metrópole, macrometrópole, cidade
global, são todos conceitos construídos a fim de, supostamente,
melhor descrever os fenômenos recentes.
Em meio à abundância e prolificidade de termos e opiniões,
divisam-se, ultimamente, três amplas matrizes de diretrizes que, de
fato, não possuem limites precisos entre si e, volta e meia, são
acionadas em conjunto simultaneamente: a matriz do ambientalismo
e sustentabilidade
45
, que insere a cidade numa perspectiva ecológica
e numa lógica sistêmica do fluxo de matérias-primas, energia,
dejetos; a matriz da gestão estratégica, que assemelha a cidade às
empresas capitalistas enfatizando, principalmente, seu aspecto
econômico frente à globalização e à estruturação reticular da
produção; e a matriz do marketing urbano
46
Uma das vozes que tem contribuído à discussão sobre a
cidade e o urbanismo contemporâneos é a do sociólogo francês
François Ascher. Nascido em 1946, Ascher se formou em ciências
econômicas, especializando-se posteriormente em estudos
sociológicos e urbanos. Foi membro do Partido Comunista francês e
encarregado pela Comissão de Habitação do comitê central. Nos
anos oitenta, inicia a carreira acadêmica no Instituto de Urbanismo
da Universidade de Paris VIII. Desde 2000, preside o conselho
científico do Institut pour la Ville en Mouvement (Instituto pela Cidade
em Movimento), dedicado à reflexão sobre a mobilidade urbana e
formas de aprimorá-la.
, estreitamente ligada à
anterior, centrada na comunicação e publicidade, na consolidação de
uma imagem, nas políticas de efeito midiático, destinadas a atrair
investimentos.
Seu pensamento gira em torno da emergência da sociedade
“hipermoderna” e seu habitat correspondente, a cidade atual em sua
45
Cf. ACSELRAD, Henri. Discursos da Sustentabilidade Urbana. Revista Brasileira de
Estudos Urbanos e Regionais, Campinas, nº 1, p. 79-90, mai./nov. 1999.
46
Cf. SÁNCHEZ, Fernanda. Políticas Urbanas em Renovação: Uma Leitura Crítica dos
Modelos Emergentes. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Campinas, nº
1, p. 115-132, mai./nov. 1999.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 41
forma mais extrema: espraiada por vastas regiões, aglutinando
cidades vizinhas e as integrando em seu cotidiano, formando, no fim,
uma imensa aglomeração urbana de milhões de habitantes, para a
qual ele cunhou o termo “metápole”. Assim, se questiona que
práticas, que espaços, que políticas e formas de democracia são
criadas ou demandadas neste contexto hipermoderno. O livro mais
importante que lança os principais questionamentos e que
praticamente resume toda a sua fundamentação teórica é Metapolis
ou l’Avenir des Villes, publicado em 1995. Posteriormente escreverá
outros livros destinados a aprofundar e detalhar as suas teses seja no
campo do modo de vida, como em La Société Hypermoderne, no da
alimentação, como em Le Mangeur Hypermoderne, no do urbanismo,
como em Nouveaux principes de l'urbanisme e no da política como em
La société change, la politique aussi.
Pois, globalmente, o urbanismo parte do postulado
que é necessário e possível agir conjuntamente sobre
as cidades e sobre a sociedade. Nós entendemos [...] o
urbanismo de maneira bastante ampla, como o
conjunto das teorias e práticas de organização e
gestão dos espaços urbanos, da planificação urbana
aos serviços urbanos, passando pelo urbanismo
operacional, os estudos e a composição urbana.
Apresentando-se, então, ao mesmo tempo, como
conhecimento dos fenômenos urbanos, projeto de
cidade e técnicas de ação sobre o espaço, o urbanismo
é um pensamento e uma atitude essencialmente
reformadores.
47
Nos próximos capítulos, veremos como se insere o
pensamento do sociólogo francês François Ascher no debate
contemporâneo sobre a cidade e o urbanismo. Analisaremos mais
detidamente como constrói o ciclo de sua reflexão, que vai da análise
das transformações da sociedade e economia, passa pelo espaço que
lhe dá sustentação e chega à reflexão política voltada à redefinição
da democracia. Em que premissas se baseia, quais as linhas de
raciocínio que utiliza, quais os aspectos enfatizados, quais
problemáticas levantadas, quais questionamentos efetuados e a que
conclusões chega.
47
ASCHER, François. tapolis ou l’avenir des villes. Paris: Editions Odile Jacob, 1995, p.
204.
42 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
Imagem 1: Proposta de Owen.
Imagem 2: Cerdà, projeto de expansão para Barcelona, 1858.
Em preto, a cidade velha.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 43
Imagem 3: Hausmann, intervenções em Paris. As novas ruas em preto.
Imagem 4: Howard, detalhe de sua "Rurisville", 1898.
44 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
Imagem 5: Le Corbusier, Ville Contemporaine, 1922.
Imagem 6: Mapa psicogeográfico proposto pelos situacionistas.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 45
Imagem 7: Walking City, a cidade do futuro segundo Ron Herron, do grupo
Archigram.
Imagem 8: Las Vegas, um dos visuais da Strip.
C APÍTULO I I
SOCIEDADE HIPERMODERNA
rançois Ascher formula a hipótese de que estamos vivendo,
há algum tempo e continuando nesta virada do século XX ao
XXI, a terceira revolução urbana moderna, decorrente da
terceira fase da modernização da sociedade. As outras duas fases
foram a da Idade Moderna e a da Revolução Industrial.
A revolução da Idade Moderna (“Primeira ou Alta
modernidade) diz respeito às reconfigurações das principais
instituições e campos políticos, econômicos e filosóficos. A política
seculariza-se, cria-se o Estado-Nação, a religião perde espaço para a
filosofia e a ciência, que se desenvolve junto com o capitalismo
mercantil. A urbanização proveniente é moderna porque é projeto,
desígnio, ambição de controlar o futuro. A cidade, então, é
concebida racionalmente tanto para os indivíduos autônomos
quanto para a representação do Estado-Nação.
A segunda fase é a da Revolução Industrial (“Segunda
Modernidade” ou “Modernidade Média”) com a evolução técnica
atingindo o sistema de produção industrial e agrícola, logo em
seguida o crescimento demográfico e a expansão territorial. O
fordismo e taylorismo regem as atividades produtoras. O Estado se
torna do “Bem-Estar Social”, procurando dar suporte à sociedade de
massa. O urbanismo segue a tendência e concebe a cidade como um
sistema simplificado, mecânico e eficiente, baseado principalmente
no zoneamento monofuncional e na circulação hierárquica.
Segundo Ascher, esse segundo ciclo entrou em crise e vem
sendo questionado paulatinamente nos últimos trinta anos em
diversos campos do conhecimento humano. A seguir, neste capítulo,
F
48 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
veremos as questões centrais e as mutações advindas dessa crise nos
seus aspectos econômicos e sociais, e o entendimento do sociólogo
francês acerca dessa conjuntura.
Podemos datar em 1973 o marco da transição entre dois
grandes sistemas sócio-econômicos: o sistema fordista-keynesiano e
o “flexível-liberal”. Nos deteremos brevemente nos fatos
econômicos antecedentes e subsequentes a esta data, em suas
transformações e permanências, materiais e conceituais, por se
considerarem fundamentais na compreensão do discurso atual.
Segundo Harvey
1
O que havia de especial em Ford (e que, em última
análise, distingue o fordismo do taylorismo) era a sua
visão, seu reconhecimento explícito de que produção
de massa significava consumo de massa, um novo
sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova
política de controle e gerência do trabalho, uma nova
estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo
de sociedade democrática, racionalizada, modernista e
populista.
, o fordismo era um conjunto de antigas
atitudes e tendências revigoradas e aprimoradas por Henry Ford, tais
como a forma cooperativa de organização de negócios, o
detalhamento da divisão do trabalho, a separação entre gerência,
concepção, controle e execução, além da abordagem científica do
trabalho proposta por Taylor que prescrevia a rigorosa
decomposição e organização do processo produtivo.
2
Após a Segunda Guerra, o fordismo, que até então encontrava
muita resistência à sua implementação, conheceu o início de sua
generalização nas indústrias graças, por um lado, à aceitação das
massas trabalhadoras do regime rotinizado, pouco exigente e fora
de seu controle e, por outro, às reformulações das formas de
intervenção e regulamentação estatais, iniciadas uma década antes
devido à crise dos anos 30. Juntamente com a ascensão dos EUA
como potência financiadora, através do Plano Marshall, da
reconstrução dos países capitalistas europeus e do Japão,
gravemente afetados pela guerra, dá-se a adoção de medidas e
1
HARVEY, op. cit.
2
Ibidem, p. 121.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 49
estratégias keynesianas pelos Estados nacionais com o objetivo de
controlar a economia e evitar o retorno da crise da década anterior.
O Estado keynesiano cumpriu sua missão, pelos quase trinta
anos seguintes, de evitar crises cíclicas do capitalismo sob a
instituição de políticas fiscais e monetárias, investimentos públicos
em setores que propiciaram a expansão da produção e do consumo
de massa e a busca da realização do pleno emprego. Além das
medidas macro-econômicas, o Estado keynesiano adotava um
caráter redistributivo e socialmente compromissado, instituindo
direitos trabalhistas, seguridade social, assistência médica, educação,
habitação
3
. Desse modo, recebeu também a denominação de Estado
do Bem-Estar Social ou Estado-Providência (Welfare State)
4
O equilíbrio entre o trabalho organizado, o capital corporativo
e o Estado criou não só cenários estabilizados internamente como
estabeleceu um novo internacionalismo na base de mão-dupla do
consumo de massa dos produtos industrializados e no comércio de
matérias-primas baratas, durante um «longo período de expansão
pós-guerra que se manteve mais ou menos intacto até 1973»
.
5
Ao longo desse período, o capitalismo nos países
capitalistas avançados alcançou taxas fortes, mas
relativamente estáveis de crescimento econômico. Os
padrões de vida se elevaram, as tendências de crise
foram contidas, a democracia de massa, preservada e a
ameaça de guerras intercapitalistas, tornada remota. O
fordismo se aliou firmemente ao keynesianismo, e o
capitalismo se dedicou a um surto de expansões
internacionalistas de alcance mundial que atraiu para a
sua rede inúmeras nações descolonizadas.
.
6
Essa estabilidade e prosperidade se mantiveram fundamental-
mente graças ao poderio financeiro e militar dos EUA, que emergiu
da segunda guerra como a grande potência econômica, com alto
grau de industrialização e acúmulo de capitais, incluindo aí grande
parte das reservas mundiais de ouro. «A América agia como o
banqueiro do mundo em troca de uma abertura dos mercados de
3
Ibidem.
4
v. também BARUCO, G. C. da C. (2005), LEAL, S. M. R. (1990).
5
HARVEY, op. cit.
6
Ibidem, p. 125.
50 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
capital e de mercadorias ao poder das grandes corporações»
7
Mas, em meados dos anos 60, o sistema já apresentava sinais
de exaustão. A começar pela incapacidade norte-americana de
manter os acordos de Bretton Woods. Para financiar o déficit de sua
balança comercial, os EUA acabaram por emitir dólares no mercado,
que por sua vez gera uma onda inflacionária ao redor do mundo.
Além disso, os mercados internos estavam saturados, as empresas
apresentavam queda na produtividade e lucratividade, a competição
internacional se intensificava à medida que o fordismo se implantava
em mercados de trabalho novos e de custo reduzido.
.
As pressões por mudanças vinham de ambos os lados do
espectro político. A contracultura reclamava do consumo de massa
padronizado, da racionalidade burocrática tecnicista-científicista, da
aridez e funcionalismo urbanos. Os empresários criticavam
principalmente a rigidez do sistema, presentes nos investimentos de
larga escala e longo prazo, no mercado de trabalho, nos poderes dos
trabalhadores.
As revoltas de 1968 foram um marco cultural e político do
período pós-guerra, mas, economicamente, foi o ano de 1973 que
apareceu como um divisor de águas. Dois anos antes, Richard Nixon
já havia cancelado unilateralmente os acordos de Bretton Woods,
liberando as cotações monetárias frente ao dólar. Agora, em 73, o
mundo capitalista adentrava numa profunda recessão e
“estagflação” (estagnação econômica e inflação alta), aumento do
desemprego, crise dos mercados imobiliários, contexto complicado
ainda mais pelo uso do petróleo como arma política pela OPEP,
levando a um encarecimento da energia e, consequentemente, de
toda a cadeia produtiva.
A crise, que se estenderia até o início dos anos 80, impulsionou
revisões e reestruturações nos mecanismos financeiros, nas
regulamentações estatais, nos modelos organizacionais do trabalho,
sempre objetivando um maior liberalismo econômico e flexibilidade
de atuação.
A acumulação flexível [...] é marcada por um confronto
direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na
flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados
7
Ibidem, p. 131.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 51
de trabalho, dos produtos e padrões de consumo.
Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção
inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento
de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo,
taxas altamente intensificadas de inovação comercial,
tecnológica e organizacional.
8
Muitas indústrias adotaram o toyotismo como modelo de
produção, caracterizado pelo alto índice de automação, flexibilização
da produção, flexibilização da mão-de-obra e subcontratação,
controle de qualidade total e armazenamento just-in-time. Ao
mesmo tempo em que diminuiu os custos de produção e sintonizou
de maneira mais dinâmica as empresas às necessidades do mercado,
também contribuiu ao aumento do desemprego, à incerteza e à
efemeridade do trabalho, ao enfraquecimento das organizações
trabalhistas e da consciência de classe. Na verdade, isso corresponde
essencialmente aos países centrais, já que «onde a produção podia
ser padronizada, mostrou-se difícil parar o seu movimento de
aproveitar-se da força de trabalho mal remunerada do Terceiro
Mundo, criando ali o que Lipietz chama de ‘fordismo periférico’»
9
Na área econômica, ganha importância a corrente teórica do
neoliberalismo, profundamente contrária ao keynesianismo.
Teóricos, como Friedrich von Hayek, Ludvig von Mises e Milton
Friedman, defendiam, sob a alegação da defesa da liberdade pessoal,
a não intervenção estatal na economia, o livre mercado, ou seja, uma
reedição das doutrinas de Adam Smith sobre a mão invisível do
mercado como dispositivo ideal de mobilização dos instintos
egoístas do homem em benefício geral.
.
O neoliberalismo é, em primeiro lugar, uma teoria das
práticas político-econômicas que propõe que o bem-
estar humano pode ser mais bem aprimorado ao se
liberar as competências e liberdades empresariais
individuais no âmbito de um quadro institucional
caracterizado por fortes direitos de propriedade
privada, livres mercados e livre comércio. O papel do
Estado é criar e preservar um quadro institucional
apropriado a tais práticas. O Estado tem de garantir,
8
Ibidem, p. 140.
9
Ibidem, p. 146.
52 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
por exemplo, a qualidade e integridade do dinheiro.
Deve também instituir aquelas estruturas e funções
militares, de defesa, policial e legal requeridas para
garantir, pela força se for preciso, o adequado
funcionamento dos mercados. Além disso, se os
mercados não existem (em áreas tais como terra,
água, educação, saúde, seguridade social ou poluição
ambiental) então eles devem ser criados, pela ação
estatal se necessário.
10
Com a chegada ao poder de Margaret Thatcher, no Reino
Unido, em 1979, e de Ronald Reagan, nos EUA, em 1980, ambos,
partidários do neoliberalismo
11
As duas tendências em conjunto, de um lado a evolução do
fordismo em direção ao toyotismo, favorecendo e impulsionando as
inovações tecnológicas num ritmo cada vez mais veloz,
segmentando ainda mais os mercados, aumentando a proporção do
setor de serviços; de outro, a desregulamentação da economia,
derrubando barreiras protecionistas e estimulando os investimentos
financeiros ao redor do mundo sem esquecer do papel
representado pelas instituições internacionais FMI, OMC e Banco
Mundial, criaram uma nova etapa do capitalismo.
, intensificaram-se as medidas de
desregulamentação, corte de impostos, privatização e retirada do
Estado de vários setores econômicos e sociais, seguido por outros
países avançados nos anos 80 e pelos países em desenvolvimento
nos anos 90.
De fato, a comunhão entre a flexibilidade produtiva e a
desregulamentação, aliadas às novas infra-estruturas e tecnologias
de informação e comunicação (principalmente a microeletrônica, a
optoeletrônica e a Internet), integraram as economias nacionais
numa estrutura global de interdependência em rede cujos
«componentes centrais têm a capacidade institucional,
organizacional e tecnológica de trabalhar em unidade e em tempo
real, ou em tempo escolhido, em escala planetária»
12
10
HARVEY, David. A Brief History of Neoliberalism. Oxford: University Press, 2005, p. 2.
. Esse mercado
11
Conta-se que, numa das reuniões do Partido Conservador inglês, em fins dos anos 70,
Margaret Thatcher, então chefe do partido, interrompeu o orador e, despejando na mesa
o livro de Hayek, A Constituição da Liberdade, disse a todos: “isto é o que acreditamos”.
12
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 9ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006. (A era da
informação: economia, sociedade e cultura; v. 1), p. 142.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 53
global de dinheiro e crédito, de commodities, de ações atuais e
futuras, de especulação financeira e derivativos, tornou-se altamente
complexo e independente do controle público, «dando muito mais
autonomia ao sistema bancário e financeiro em comparação com o
financiamento corporativo, estatal e pessoal»
13
Por fim, é o desempenho do capital nos mercados
globalmente interdependentes que decide, em grande
parte, o destino das economias em geral. Esse
desempenho não depende inteiramente de normas
econômicas. Os mercados financeiros são mercados,
mas tão imperfeitos que só atendem parcialmente às
leis da oferta e da procura. Os movimentos nos
mercados financeiros são o resultado de uma
combinação complexa de leis de mercado, estratégias
empresariais, regulamentos de motivação política,
maquinações de bancos centrais, ideologia de
tecnocratas, psicologia de massa, manobras
especulativas e informações turbulentas de diversas
origens.
.
14
Nesse contexto de inúmeras variáveis, incerteza, mudanças
bruscas e complexidade, a aquisição e posse de informações e
conhecimentos tornaram-se crucial às empresas a fim de dar suporte
à produtividade e lucratividade bem como garantir posições
estratégicas na concorrência tanto local quanto regional e global,
visto que são as empresas e suas redes, e não mais os países, as
verdadeiras unidades de comércio
15
Enfim, Manuel Castells resume bem as características
econômicas deste novo período histórico:
.
Uma nova economia surgiu em escala global no último
quartel do século XX. Chamo-a de informacional, global
e em rede para identificar suas características
fundamentais e diferenciadas e enfatizar sua
interligação. É informacional porque a produtividade e
a competitividade de unidades ou agentes nessa
economia (sejam empresas, regiões ou nações)
dependem basicamente de sua capacidade de gerar,
13
HARVEY, op. cit., 1993, p. 155.
14
CASTELLS, op. cit., p. 147.
15
Ibidem, p. 156.
54 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
processar e aplicar de forma eficiente a informação
baseada em conhecimentos. É global porque as
principais atividades produtivas, o consumo e a
circulação, assim como seus componentes (capital,
trabalho, matéria-prima, administração, informação,
tecnologia e mercados) estão organizados em escala
global, diretamente ou mediante uma rede de
conexões entre agentes econômicos. É rede porque,
nas novas condições históricas, a produtividade é
gerada, e a concorrência é feita em uma rede global de
interação entre redes empresariais.
16
Ascher, ao analisar todo esse período histórico recente,
também enfatiza as evoluções e reconfigurações na economia como
essenciais na reestruturação social. Segundo ele, o sistema “fordo-
keynesiano” era limitado por suas próprias características
intrínsecas, ou seja, aquilo que havia sido suas principais ferramentas
de manejo econômico transformou-se, a partir de um determinado
momento, na camisa de força do sistema capitalista. A produção em
massa não acompanhou a crescente diferenciação e complexificação
da demanda, as “receitas keynesianas” tornaram-se
“antiprodutivas”, as intervenções estatais começaram a gerar
efeitos inversos aos desejados.
Paralelamente às pressões pela liberalização, prosseguiram as
pesquisas tecnológicas destinadas a facilitar a comunicação e
aumentar a flexibilidade do rígido sistema fordo-keynesiano. Ascher
fala que as técnicas surgem não de forma espontânea, mas devido a
um contexto que as engendre, que apresente desafios a serem
resolvidos. As técnicas estariam inextricavelmente ligadas às
sociedades que as geram, sendo as expressões de suas necessidades
momentâneas. Mas também acabam por modificar a mesma
sociedade que as criou, pois elas “não são inertes”. «As tecnologias
inscrevem-se primeiro em contextos que as selecionam e abrem-lhes
potencialidades de ação»
17
A ininterrupta modernização fez surgir uma “nova economia”:
de um lado, extensivamente calcadas nos novos meios
. Essa constatação tem uma importância
capital a todo o desenrolar do pensamento de Ascher.
16
Idem.
17
ASCHER, op. cit., p. 52.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 55
telecomunicacionais, principalmente a internet, daí o nome de net-
economia; de outro, seu aspecto essencialmente cognitivo, isto é, «as
indústrias e serviços em que predominam a produção, venda e
utilização de conhecimentos, informações e procedimentos»
18
A produção industrial depende cada vez mais das
lógicas e dos poderes da economia cognitiva, de sua
capacidade de conhecer os mercados, de utilizar os
conhecimentos técnicos e científicos, de inventar
respostas, de desenvolver capacidades de inovação, de
organizar processos, dirigir as reações frente aos
acontecimentos, de analisar custos, coordenar
atuações e controlar as comunicações em caso de
crise.
. Essa
característica cognitiva também alimenta o desenvolvimento das
tecnologias de informação e comunicação (TIC), criando um círculo
virtuoso de inovação.
19
Muitos autores falam em “pós-fordismo” ou “pós-
industrialismo” para designar este novo ciclo, enfatizando as
mudanças no modo e nas relações de produção. Para Ascher, esses
termos mascaram o fato de que a indústria fordista, e muitos de seus
paradigmas, ainda estão presentes neste novo ciclo, mas que, na
verdade, foram geograficamente relocalizadas. Apenas nos países
tecnologicamente avançados, tais conjecturas teriam algum sentido.
Contudo, o fim do “industrialismo” obviamente não significa o fim
do capitalismo. A concentração de capital e renda continua de forma
intensa. A tendência à monopolização dos mercados permanece.
O que Ascher nota é a sua transformação a um capitalismo
mais reflexivo. A demanda mais diversificada e mercados mais
incertos impeliram à utilização por parte das empresas de
racionalidades variadas, saindo da lógica “preço-custo” para a
“qualidade-diferenciação”, da massificação à diversificação, do
planejamento a longo prazo à gestão de curto prazo. A coleta de
informações conjunturais, a criação de cenários futuros de ação e a
retroalimentação do planejamento, conhecimento mais
especializado, a subcontratação e as joint-ventures são peças
fundamentais na gestão das empresas globalizadas.
18
ASCHER, François. Los nuevos principios del urbanismo. Madrid: Alianza, 2002, p. 46
19
ibidem, p. 44
56 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
O caráter estratégico da economia cognitiva se
confirma de certa forma pelo proceder, em certos
setores, das grandes empresas dos países
desenvolvidos que parecem deixar a produção
material a outros e ao resto do mundo e que se
concentram nas novas tecnologias atraindo capitais e
pessoal qualificado de todo o mundo para garantir seu
desenvolvimento.
20
A mecânica da globalização atinge todas as atividades
econômicas, integrando inclusive as pequenas e médias empresas.
Todos os “atores” acabam por estar integrados na rede da
concorrência internacional, direta ou indiretamente. O mercado de
trabalho se torna cada vez mais competitivo, exigindo uma maior
especialização da mão-de-obra, o que força os Estados a criarem e
atualizarem constantemente as instituições de ensino técnico e
superior a fim de capacitar pessoal e suprir as demandas das novas
empresas, em velocidade crescente de mutação ininterrupta. Mesmo
assim, a duração média do conhecimento especializado está
diminuindo e a maioria dos empregos oferecidos dos próximos dez
anos não existe hoje
21
Evidentemente, todas essas mudanças nas técnicas, nos
modos de produção e nas relações de trabalho têm os seus efeitos
culturais. Principalmente quando se trata da globalização. Para
Octavio Ianni, a globalização é um novo desafio epistemológico para
as ciências sociais, há muito tempo fundadas na reflexão do
paradigma clássico da sociedade nacional, e exige «novos conceitos,
outras categorias, diferentes interpretações»
. O desnível entre aqueles que têm acesso à
educação e os que não têm, portanto, cresce ainda mais, visto que os
últimos têm cada vez mais dificuldade em arranjar emprego e obter
renda.
22
20
Ibidem, p. 44
. Ascher partilha dessa
perspectiva. Para ele, a globalização faz parte de um macroprocesso
de sentido único: a modernização.
21
MORAES, Maria Cândida. O perfil do engenheiro dos novos tempos e as novas pautas
educacionais. In: LINSINGEN, Irlan von. Formação do engenheiro: desafios da atuação
docente, tendências curriculares e questões contemporâneas da educação tecnológica.
Florianópolis: UFSC, 1999.
22
IANNI, Octavio. Globalização: Novo Paradigma das Ciências Sociais. Revista Estudos
Avançados, v. 8, 21, p. 147-163, São Paulo, IEA-USP, 1994, p. 147.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 57
Segundo o sociólogo, a modernização da sociedade é
caracterizada por três “dinâmicas sócioantropológicas” que
interagem entre si: a individualização (representação do mundo a
partir do indivíduo e não mais do grupo), a racionalização
(substituição da tradição e repetição pela razão e escolha) e a
diferenciação social (diversificação das funções individuais e grupais
na sociedade).
O século XX viu essas três dinâmicas serem intensificadas por
diversos fatores. Um deles é a metropolização das cidades. A
metrópole não é apenas um território, mas também modos de vida e
modos de produção. Elas concentram cada vez mais as riquezas e o
poder político e econômico, tornando-as o destino de grande parcela
da população em busca de emprego e salários melhores. No entanto,
as vagas de trabalho não são suficientes para absorver toda essa
mão-de-obra. As metrópoles apresentam, assim, tendências
sóciossegregativas muito mais acentuadas que as cidades médias ou
pequenas.
Modificando um pouco as estruturações clássicas da
sociedade em classes ao enfatizar sua presença urbana, Ascher diz
que a sociedade contemporânea acaba se dividindo em três grandes
categorias: a classe estável, a instável e a marginalizada. A classe
estável é aquela que possui um trabalho durável, altos rendimentos,
controle da localização de sua moradia na cidade, alto poder de
escolha de suas práticas sociais e por isso é a classe mais
heterogênea, constitui um mercado chave para a economia
internacional.
Recentemente, e particularmente nos EUA, destacou-se o
surgimento de uma nova classe entre os ricos, uma espécie de
evolução dos yuppies: os bobos, ou “burgueses boêmios”. Os bobos
teriam o poder aquisitivo e auto-interesse dos tradicionais
burgueses, mas valores diversos, influenciados pelo idealismo liberal
da contracultura e questões éticas atuais como a fome, o
multiculturalismo, a poluição ambiental, etc. Assim, se recusam a
gastar com caviar, um Corvette ou um conjunto de mídia com TV
gigante, mas não vêem problemas em pagar caro por legumes
italianos importados, uma Range Rover que os permite andar off-
58 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
road ou uma cozinha de ultima geração
23
A classe instável, ou frágil, possui empregos mais sujeitos às
instabilidades econômicas e de remuneração baixa ou mediana. Seus
indivíduos são menos heterogêneos por possuírem menos poder de
escolha, e também por isso adotam atitudes “oportunistas” ou
“táticas” para adaptarem-se às situações. Geralmente moram
distante na periferia das grandes cidades, distantes de seus
empregos. De certa forma e por ter acesso crescente às TIC, é a
classe que mais sofre os efeitos das inovações tecnológicas pois, ao
mesmo tempo em que vê suas potencialidades comunicativas e de
deslocalização aumentarem, tem seus empregos dramaticamente
modificados, adicionados em carga horária ou, até mesmo, extintos
pela informatização e automação
.
24
Já a classe marginalizada é a dos indivíduos que possuem
empregos informais e precários, subempregos ou estão
desempregados, vivendo basicamente com a ajuda de subsídios
públicos. É uma classe bastante homogênea em suas práticas e
expressões, não participam das benesses das inovações
tecnológicas, seus laços sociais ainda se encontram estruturados nas
comunidades em que vivem. Por não terem condições financeiras
para adquirir veículos próprios, dependem fundamentalmente do
transporte público coletivo.
.
Em vista dessas disparidades entre as capacidades de
deslocamentos no espaço urbano, Ascher dá grande importância à
mobilidade dos indivíduos na metrópole. «A mobilidade está no
coração do processo de urbanização, é um princípio da
metropolização e não uma de suas conseqüências»
25
23
Cf. BROOKS, David. Bobos in Paradise: The New Upper Class and How They Got There.
New York: Simon & Schuster, 1999.
. Usa diversas
estatísticas das últimas duas décadas (como o número crescente de
deslocamentos diários por pessoa, inclusive de idosos e crianças; o
aumento da duração e distância desses deslocamentos; a evolução
dos motivos; a diminuição dos deslocamentos a pé e de bicicletas; o
crescimento do uso de automóvel nas pequenas cidades e zonas
rurais) para concluir que o desenvolvimento das TIC não tem como
24
Cf. RIFKIN, Jeremy. O Fim dos empregos: o declínio inevitável dos níveis dos empregos e
a redução da força global de trabalho. São Paulo: Makron Books, 2004.
25
ASCHER, op. cit., 1995, p. 133.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 59
corolário a perda de importância do espaço da cidade e a reclusão
dos indivíduos em suas casas, como aponta a criação de conceitos
tipo cocooning
26
Hoje, é precisamente a mobilidade das pessoas que
origina o desenvolvimento dessa nova tecnologia
móvel: o tempo passado nos transportes e,
particularmente, no carro é a primeira motivação. De
fato, pode-se considerar que o desenvolvimento do
celular favorece a mobilidade física e torna “tolerável”
o tempo de deslocamento metapolitano, fazendo do
transporte um “lugar” multifuncional. [...] As
telecomunicações participam, assim, nas
recomposições dos motivos e sistemas de
deslocamentos; tornando possíveis as trocas nas
metápoles entupidas e dilatadas, elas tendem a
favorecer a metropolização.
(encasulamento), mas, pelo contrário, as TIC vêm
suprir as necessidades de uma sociedade cada vez mais móvel.
27
A evolução da deslocalização do cidadão metropolitano já
possui uma longa história, desde os primeiros bondes e metrôs como
meios de transporte rápido, passando pelo refrigerador, fornos a gás
e a microondas como armazenamento e preparo da comida, até o
advento do rádio, do telefone, da televisão e do vídeo-cassete como
meios de informação à distância e independência da sincronia.
Agora, com os meios de transporte coletivo atuais ainda mais
rápidos, permite-se os indivíduos deslocarem-se por vastas regiões
em pouco tempo, alargando os espaços-tempo individuais e
fortalecendo sua autonomia em relação às escolhas e modo de vida.
A regra pessoal torna-se “onde quero, quando quero, como quero”.
Além das transformações da esfera pública, destaca também
as da esfera privada. As alterações nos modos de vida e sistemas de
valores se aceleram, a estrutura familiar se modifica, as gerações
diferenciam-se. A tradição e as crenças não tem mais a garantia de
sua transmissão e aceitação. Cada vez mais revistas e colocadas em
questão pela racionalização, elas sãos substituídas por uma atitude
reflexiva por parte do indivíduo ao determinar suas próprias ações, já
que as situações e eventos que ele enfrenta são cada vez mais
26
Cf. POPCORN, Faith. The Popcorn Report. Nova York: HarperBusines, 1992.
27
ASCHER, op. cit., 1995, pp. 59-60.
60 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
diferentes e cambiantes, muitas vezes desconhecidos pelas
tradições.
Há, portanto, a multiplicação das polaridades e centralidades,
e também a multiplicação de grupos de pertencimento. O indivíduo
não é mais o representante de um grupo homogêneo e fechado, ele
agora transita de um grupo a outro, de acordo com a sua vontade.
Ascher denomina esse fenômeno como “sociedade hipertexto”.
Hipertexto é o texto formado por palavras que fazem ligações a
outros textos, ou seja, a mesma palavra participa simultaneamente
de vários textos, mas com sentidos diferentes, tendo o sufixo hiper a
conotação de espaço com n dimenes. Do mesmo modo, os
indivíduos são as ligações entre diferentes universos sociais, cada
qual com seus modos e suas regras aos quais estariam vinculados
temporariamente, porém de maneira débil.
O multipertencimento simultâneo de cada indivíduo a
vários grupos sob referências diversas, variável, além
disso, ao longo dos ciclos de vida, dá assim uma
aparência caótica aos espaços dos modos de vida!
Cada personalidade joga sobre registros cada vez mais
variados que emprestam suas referências ora à família,
ora ao grupo sócioprofissional, ora à classe etária, ora
a uma origem geográfica, religiosa, ou a qualquer outra
afinidade particular.
28
Temos assim uma estruturação social em rede, ou “reticular”,
onde os indivíduos multigrupais interconectam seus grupos numa
malha densa, complexa, heterogênea e mutante. Essa interconexão
se apóia sobre os mais variados meios de comunicação, deixando
obsoletas as antigas estruturas areolares de relacionamentos que
operavam por difusão, limitadas, hierárquicas e estanques. Essa
interconexão e interdependência entre indivíduos fundam uma nova
solidariedade:
Depois da “solidariedade mecânica” da comunidade
rural e da “solidariedade orgânica” da cidade
industrial, surge um terceiro tipo de solidariedade, a
“solidariedade comutativa” que relaciona indivíduos e
organizações pertencentes a muitas redes conectadas
entre si.
29
28
Ibidem, p. 122.
29
Idem, op. cit., 2001, p. 41.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 61
Solidariedade, aqui, entendida como no sentido atribuído por
Durkheim, de quem Ascher evidentemente toma o conceito
emprestado: como o fato social de natureza moral, criada pela
divisão do trabalho social a qual teria por função garantir a coesão e
unidade do grupo em questão, ou seja, seria a condição de sua
existência
30
Já a solidariedade “comutativa”, de Ascher, surge de uma
sociedade (a contemporânea) onde a divisão do trabalho se
aprofunda ainda mais numa estrutura de interdependências em rede
mas de vínculos débeis, com indivíduos cada vez mais autônomos e
indiferentes a uma base social comum e coletiva, relacionando-se à
base de trocas (ou comutações) descompromissadas.
. Para Durkheim, a solidariedade mecânica corresponde
àquela sociedade baseada na semelhança entre seus membros, onde
crenças e sentimentos comuns são partilhados de modo impositivo
em relação à personalidade de cada um. A solidariedade orgânica,
por outro lado, diz respeito à sociedade na qual existe uma profunda
divisão do trabalho, fazendo com que os indivíduos dependam mais
um dos outros, mas simultaneamente abrindo espaço à
personalidade individual a fim de criar a diferenciação.
Não apenas a divisão de trabalho modifica as relações
interpessoais. Os meios de transporte cada vez mais rápidos e de
comunicação cada vez mais eficientes possibilitam a
multitemporalidade e ubiqüidade que debilitam progressivamente as
comunidades locais, já que o trabalho, família, vizinhança não são
mais os círculos para a maioria das práticas sociais. A natureza do
“local” se modifica.
O peso dos fatores de proximidade enfraquecem
também no que determina as relações amigáveis e
parentais, as práticas esportivas, a adesão a
associações diversas, a vida cultural, as condições
estão reunidas para que o vizinho possa se tornar um
“estrangeiro”.
31
O local, hoje em dia, se resume ao domicílio. Enquanto a
metápole se movimenta ao redor feito nômade, enquanto os pontos
30
DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
(Coleção Tópicos)
31
ASCHER, op. cit., 1995, p. 151.
62 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
de interesse, o trabalho, o estudo, o lazer, etc., mudam
incessantemente de lugar e se distanciam cada vez mais, o indivíduo
estabelece a sua própria residência como ponto fixo e por ela cria
suas estratégias de atuação na cidade. Entretanto, mesmo com a
importância da casa, o bairro perde gradativamente seu caráter de
território próprio da sociabilidade comunitária, de uma identidade
social. Os vizinhos não possuem mais os laços de semelhança, muitas
vezes nem se conhecem. A perda da sociabilidade local é um dos
pontos da reflexão ascheriana sobre a política e a governabilidade,
tratada mais detidamente no capítulo IV.
Ao contrário do que isso possa dar a entender, a vida social
não irá ser capturada pelo espaço virtual. O barateamento e a
banalização das telecomunicações e informática tem como
conseqüência o paradoxo de valorizar aquilo que não é
telecomunicável. Ascher constata essa afirmação tanto no mundo
dos negócios quanto na esfera cultural.
No mundo dos negócios, a posse e uso simplesmente das TIC
não mais se converte em vantagem concorrencial devido à sua
penetração em todos os ramos técnicos e produtivos. O fator de
distinção recai sobre o poder de deslocamento material, do contato
direto, ou seja, sobre a proximidade. A riqueza da relação face-a-face,
presente nos gestos, posições, encenações, códigos corporais, ainda
não foi substituída pela tecnologia e «permanecerá, portanto,
incontornável para bom número de trocas tanto profissionais quanto
pessoais»
32
Na cultura, a generalização das tecnologias audiovisuais fazem
com que a procura por eventos imediatos tais como esportes,
festivais, gastronomia aumente por suas emoções ou sensões mais
“reais” e “fenomenológicas”. Um fenômeno atual interessante que
poderíamos qualificar dentro do paradoxo da banalização
tecnológica e apenas para dar uma ilustração meio banal é o
retorno dos discos de vinil em detrimento dos CDs, sob a justificativa
de os primeiros possuírem um som mais “rico” e “quente”, de terem
dois lados e emitirem o ruído da agulha
.
33
Esses sentidos que escapam ainda à mediatização
.
32
Ibidem, p. 56.
33
BUSKIRK, Eliot Van. Vinyl May Be Final Nail in CD’s Coffin. [online] Wired. 29 out. 2007.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 63
telemática qualificam e valorizam os espaços que os
abrigam ou os produzem e que não são acessíveis
senão fisicamente. O valor do espaço, longe de
desaparecer na telecomunicação, se reconstitui,
portanto, em torno do que só a proximidade torna
possível de trocar, de comunicar. É a “vingança
espacial do laço social”. Assim, no domínio da vida
quotidiana, o paradoxo das telecomunicações é que
sua generalização transfere os valores sociais ao que é
inacessível.
34
A esfera pública e seus elementos, a cidadania e a
“citadinidade”, a criação do consenso e do compromisso, as
alternativas do Estado contemporâneo, da política, da governança
metapolitana serão tratados mais detalhadamente no terceiro
capítulo.
Abaixo, um esquema comparativo
35
, concebido pelo
sociólogo, entre as três revoluções urbanas modernas em diferentes
dimensões e que resume de certa forma o que foi tratado neste
capítulo:
Comunidade Sociedade
industrial
Sociedade
hipertexto
Vínculos sociais
Pouco numerosos,
curtos, sem
diversificar,
estáveis, fortes e
multifuncionais
Mais numerosos,
de vários tipos,
evolutivos, fortes,
em via de
especialização
Muito numerosos,
muito variados,
mediatizados e
diretos, frágeis,
especializados
Solidariedade Mecânica Orgânica Comutativa
Territórios sociais
(espaço das
relações sociais)
Autárquicos e
fechados, com
centralidade local
Integrados num
conjunto maior,
entreabertos, com
base nacional
Abertos, múltiplos,
cambiantes,
escalas variáveis
reais e virtuais
Morfologia sócio-
territorial
Alveolar Areolar Reticular
34
ASCHER, op. cit., 1995, p. 78.
35
ASCHER, op. cit., 2001, p. 53.
64 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
Paradigmas
dominantes
Crenças, tradição e
continuidade,
destino, força,
autoridade,
sabedoria
Razão universal,
funcionalidade,
simplificação e
especialização,
democracia
representativa
Complexidade,
incerteza,
autorregulação,
flexibilidade,
governança
Atuações Repetitivas e
rotineiras
Racionais Reflexivas
Regulações
principais
Costumes, chefe Estado e leis Sistemas estatais,
direito e
sociedades,
contratos, opinião
pública
Atividades
econôm.
dominantes
Agrícolas Industriais Cognitivas
Cultura Predominantemen
te local
Componentes
sócio-profissionais
Diversificada e
híbrida
(multipertencimen
to)
Tipo urbano
dominante
Cidade-mercado Cidades industriais
hierarquizadas
Sistema
metapolitano
Instituições Paróquias,
cantões, Estado-
nação
Comunas,
centralização,
Estado do bem-
estar, pactos,
alianças e tratados
Aglomerações,
países, regiões,
organizações
internacionais e
supranacionais,
ONGs
A conjunção de todas essas transformações econômicas e
sociais, aliadas ao aprimoramento dos transportes e das tecnologias
da informação e comunicação gerou um espaço urbano
completamente diferente. Ascher cunhou o termo “metápole” para
designar essas aglomerações conurbadas, extensas, descontínuas,
heterogêneas e multipolarizadas, uma nova fase do processo de
urbanização.
C APÍTULO III
METÁPOLE: A NOVA FORMA URBANA
s cidades, mais uma vez, se tornaram o foco das discussões
acerca dos rumos da condição humana no mundo.
Intrinsecamente aos processos econômicos e sociais,
políticos e científicos analisados no capítulo anterior, testemunhou-
se o nascimento e desenvolvimento de uma nova fase da evolução
urbana que talvez ainda seja muito cedo para antever o seu
desfecho, mas que já rendeu inúmeras teorias, hipóteses e previsões.
Enfim, paradigmas surgiram para tentar relacionar e integrar todos
os dados observados e fatores decisivos numa abordagem coerente.
Algumas dessas especulações tendem a ser pessimistas,
outras otimistas, outras ainda neutras ou apenas interrogativas, cada
qual enfatizando uma perspectiva diferente da questão. Mas, de uma
forma ou de outra, todas elas partem do princípio de uma total e
irreversível mutação das cidades advindas da matriz tecnológica da
comunicação e do deslocamento das pessoas, dos bens e da
informação.
Existem aqueles que enxergam essa matriz como dissolvedora
daquilo que comumente entendemos, genericamente, por cidade:
um grande «estabelecimento de habitações estreitamente
espaçadas»
1
1
WEBER, Max. Concepts and Categories of the City (1921). In: Meagher, Sharon. Philosophy
and the City. Albany: State University of New York Press, 2008, p. 102.
. Desde Marshall McLuhan e seu conceito de “aldeia
global”, muito se falou sobre o fim das cidades, a desvalorização do
espaço físico em favor dos espaços virtuais de interação interpessoal
ou o definhamento da sociabilidade urbana decorrentes do
desenvolvimento das tecnologias de comunicação e transportes. O
A
66 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
próprio Marshall, estudioso da comunicação, após analisar a
massificação da televisão e antes do advento da Internet, proferiu
sua sentença:
A cidade não existe há muito tempo, exceto como um
fantasma cultural para turistas. Qualquer lanchonete
de beira de estrada com seu aparelho de TV, seus
jornais e revistas, é tão cosmopolita quanto Nova York
ou Paris. [...] A metrópole é obsoleta.
2
Paul Virilio, mais pessimista que McLuhan, teme pela
“desurbanização pós-industrial” que estaria acarretando a
deterioração das cidades através das tecnologias de comunicação
instantâneas. O espaço cedendo ao regime de urgência do tempo; o
“onde” não interessa mais, o “quando”, em qual “horário”, dita o
ritmo da vida em torno do “centro do tempo”. Os limites objetivos,
as noções de “intramuros” e “extramuros” se dissipariam e
passariam a flutuar num «éter eletrônico desprovido de dimensões
espaciais».
A instantaneidade da ubiqüidade resulta na atopia de
uma interface única. Depois das distâncias de espaço e
de tempo, a distância-velocidade abole a noção de
dimensão física. A velocidade torna-se subitamente
uma grandeza primitiva aquém de toda medida, tanto
de tempo como de lugar. Esta desertificação equivale
de fato a um momento de inércia do meio. A antiga
aglomeração desaparece então na intensa aceleração
das telecomunicações para gerar um novo tipo de
concentração: a concentração de uma “domicilização”
[...].
3
Françoise Choay lamenta a transformação e desaparecimento
da cidade européia tradicional pela técnica e aponta a velocidade e
facilidades dos deslocamentos e comunicações, com seus efeitos de
dispersão suburbana e esvaziamento dos centros históricos, como
instauradores de um divórcio entre urbs e civitas. A “urbanização
2
McLUHAN, Marshall. The Alchemy of Social Change. New York: Something Else Press,
1967, apud MITCHELL, William J., E-topia: a vida urbana mas não como a conhecemos.
São Paulo: SENAC, 2002, p. 19.
3
VIRILIO, Paul. O Espaço Critico e as Perspectivas do Tempo Real. Rio de Janeiro: Ed. 34,
1993, p.13.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 67
universal” proclamaria a morte da cidade e o início do reino do
urbano.
O exame do léxico e de seus neologismos desvela a
hegemonia do urbano. Região urbana, comunidade
urbana, distrito urbano..., essas novas entidades dizem
suficientemente o apagamento da cidade e o
anacronismo de “município”, “vilarejo”, “cidade”:
tantos termos que, logo, se reportarão apenas à
história ou a nostalgias carregadas de sentidos.
4
Outros autores não chegaram ao extremo de apostar no
“desaparecimento” da cidade, mas destacaram aspectos cruciais
para o entendimento do estádio presente e tendências futuras. Alvin
Toffler
5
profetizou que a “terceira onda”, uma mudança estrutural e
profunda na civilização como um todo, traria consigo a mudança de
«milhões de empregos para fora das fábricas e escritórios», em
direção ao lar, ou ao que ele chamou de “cabana eletrônica”, uma
“estação de trabalho de baixo custo” repleta de dispositivos
eletrônicos. William Mitchell
6
chama de e-topia a total integração,
através dos cabos de fibra ótica, das cidades entre si e destas com o
espaço rural. Manuel Castells a designa “cidade informacional”, mas
não vê nela uma nova forma, mas um «processo caracterizado pelo
predomínio estrutural do espaço de fluxos»
7
, fluxos de capital, de
informação, de tecnologia, de imagens, sons e símbolos. Joel
Garreau
8
A cidade contemporânea, aquela que é constituída por
essas periferias, deveria gerar uma espécie de
manifesto, uma homenagem prematura a uma forma
de modernidade que, confrontada com as cidades do
passado, talvez parecesse desprovida de qualidades,
mas na qual um dia haveremos de reconhecer ao
festeja o urban sprawl do subúrbio norte-americano, a
cidade fora da cidade que ele convencionou chamar de edge-cities,
no que é seguido por Rem Koolhaas:
4
CHOAY, Françoise. O Reino do Urbano e a Morte da Cidade. Revista Projeto e História,
São Paulo: PUC-SP, nº18, p. 67-89, mai/1999.
5
TOFFLER, Alvin. The Third Way. New York: Bantam Books, 1981.
6
MITCHELL, op. cit.
7
CASTELLS, op. cit.
8
GARREAU, Joel. Edge City: Life on the New Frontier. New York: Anchor Books,
Doubleday, 1992.
68 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
mesmo tempo vantagens e desvantagens. Esqueçam
Paris e Amsterdã, olhem para Atlanta, logo e sem
preconceitos é tudo o que posso dizer.
9
Mas o trabalho mais esclarecedor e influente é o de Saskia
Sassen
10
O conceito de economia global entranhou-se
profundamente nos círculos da mídia e nos círculos
políticos do mundo inteiro. [...] Estão ausentes deste
modelo abstrato os processos, atividades e
infraestrutura material que são fundamentais para a
implementação da globalização. Fazer vista grossa à
dimensão espacial da globalização econômica e dar
ênfase excessiva às dimensões da informação só serviu
para distorcer o papel exercido pelas grandes cidades
na atual fase dessa mesma globalização.
. Além de fazer uma abordagem global da problemática,
alargando os horizontes epistêmicos para além da relação interna
urbe/tecnologia, toma a cidade como local fundamental para a
estruturação mundial atual. Para ela, a chave para se entender a
situação presente é analisar as mudanças ocorridas nas esfera
econômica nos últimos quarenta anos em geral, e da globalização em
particular, e porque as grandes cidades se tornaram seu principal
palco de atuação.
11
Além do que já foi dito no capítulo II, segundo Sassen, os anos
60 e 70 caracterizaram-se pela predominância, na atividade
financeira internacional, de grandes bancos transnacionais e suas
atividades bancárias tradicionais. O quadro regulatório obrigava os
bancos a criarem centros bancários offshore para onde afluíam
grande parte do capital excedente. Os EUA eram os grandes
investidores e origem dos empréstimos do mundo e a Europa e
América Latina os destinos da maior parte deles e dos investimentos
estrangeiros diretos.
Os anos 80 conheceram uma transformação fundamental na
dinâmica internacional com a desregulamentação dos mercados. A
9
KOOLHAAS, Rem. Por Uma Cidade Contemporânea. In: NESBIT, op. cit., p. 358-361.
10
Neste trabalho, foram usados como referência os livros: SASSEN, Saskia. The Global City:
New York, London, Tokyo. Princeton: Princeton University Press, 1991, e SASSEN, Saskia. A
Cidade na Economia Mundial. São Paulo: Studio Nobel, 1998. (Coleção Megalópolis).
11
SASSEN, op. cit., 1998.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 69
mobilidade do capital, facilitada pela abertura dos canais de
transação e pelas técnicas de acompanhamento e comunicação,
ocasionou o crescimento rápido dos investimentos estrangeiros
diretos, mas agora a fonte principal sendo o Japão e o destino
preferido o sudeste asiático. Além disso, os bancos não estavam mais
sozinhos na indústria financeira, novos personagens ganharam
importância como as seguradoras e as bolsas de valores. Muito do
capital depositado offshore é repatriado. A produção manufatureira
perdeu o status de motor do sistema em favor dos serviços e
finanças.
De fato, trata-se de um novo regime econômico. A produção
se dispersa globalmente e as corporações se adaptam através da
transnacionalização no domínio pelas fusões, aquisições, joint-
ventures. A interconexão e mediação se dão através dos mercados
financeiros. Mas os mercados financeiros são muito mais
“complexos, competitivos, inovadores e arriscados” do que o
sistema bancário, daí sua necessidade de uma vasta infraestrutura de
serviços altamente especializados. Essa necessidade induz à
concentração das empresas e instituições financeiras em alguns nós
da rede geográfica global, esses nós são as grandes cidades que
adquirem assim um novo papel estratégico nessa lógica dual de
dispersão e integração global.
Além de sua longa história como centros do comércio
e negócios internacional, estas cidades funcionam
agora em quatro novas maneiras: primeiro, como
pontos de comando altamente concentrados na
organização da economia mundial; segundo, como
locais chaves para finanças e firmas de serviços
especializados [...]; terceiro, como sítios de produção,
inclusive a produção de inovações, nestas principais
indústrias; e quarto, como mercados para os produtos
e inovações produzidas. Essas mudanças no
funcionamento das cidades tiveram um impacto
massivo sobre tanto a atividade econômica
internacional quanto a forma urbana: Cidades
concentram controle sobre vastos recursos, enquanto
indústrias de serviços especializados e de finanças
reestruturaram a ordem econômica e social. Assim, um
70 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
novo tipo de cidade surgiu. É a cidade global.
12
Deste modo, ao contrário dos discursos da não-cidade como
aqueles vistos acima, Sassen desvela a importância das cidades no
contexto atual. Elas «são os lugares para certos tipos de produção,
serviços, marketing e inovação»
13
Evidentemente, essa concentração de atividades e capital, de,
edifícios inteligentes e seguros, de trabalhadores white-collars, de
técnicos super-especializados, de empresários de alto poder
aquisitivo necessita de sua contraparte, ou seja, daqueles que
atendam o telefone, limpem os prédios, que guardem os carros, que
sirvam a comida, que cuidem das crianças e que dêem comida aos
cachorros e, além de tudo, consumam os produtos. Como diz Sassen,
assim como os altos circuitos do capital são vitais à economia,
também o são os baixos, mas que geralmente são ignorados nos
conceitos de globalização, economia da informação e telemática.
. São centros de finanças e de
gestão globais. Concentram em si todos os requisitos para
funcionamento do sistema: infra-estrutura, instituições de ensino
avançado, firmas de serviços ao produtor (producer services),
instituições bancárias, financeiras e mercantis.
Ao deixar de incluir essas atividades e trabalhadores,
ela ignora a variedade de contextos culturais em que
eles existem, uma diversidade tão presente nos
processos de globalização quanto a nova cultura
internacional das corporações. Ao enfocarmos o lugar
e a produção, podemos perceber que a globalização é
um processo que diz respeito à economia das
corporações e à nova cultura transnacional corporativa
e, ainda, por exemplo, às economias dos imigrantes e
às culturas do trabalho evidentes em nossas grandes
cidades.
A obra de Saskia Sassen pode explicar, afinal de contas, boa
parte das causas da tendência ao aumento da migração interna dos
países, de suas áreas rurais ou sem pujança econômica para as
grandes cidades, bem como da imigração de países pobres ou em
desenvolvimento para países centrais da economia global.
12
SASSEN, op. cit., 1991, p. 3-4.
13
Ibidem, p. 87.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 71
Consequentemente, com afluxo de novos residentes, o número de
metrópoles ao redor do globo aumenta (Imagem 9, página 82) e elas
mesmas não param de crescer e expandir seus limites, ocupando
cada vez mais áreas que antes eram destinadas à agricultura ou ainda
mantinham características naturais como banhados, mangues,
desertos, florestas, etc., seja com ocupações do tipo suburbanas de
baixa densidade destinadas às classes médias e altas, seja com
ocupações na forma de loteamentos para baixa renda, ou mesmo
assentamentos irregulares e precários.
Sassen diz que não há a persistência de velhas formas, mas a
ocorrência de novas formas urbanas respondendo a uma nova lógica
econômica. Tanto ela quanto Castells afirmam que essa nova forma
urbana se expressa nas grandes cidades, ou melhor, megacidades,
aglomerações urbanas com mais de dez milhões de habitantes
alastradas sobre um vasto território. Existiam apenas duas
megacidades em 1950; hoje há 20 delas, 15 localizadas nos países em
desenvolvimento (Tabela 1, página 80).
Consequentemente, a questão ambiental aparece com força
no debate e geralmente num tom apocalíptico. Fred Pearce ressalta
que, apesar das cidades ocuparem apenas 2% da superfície da Terra,
ela consome três quartos dos recursos gastos a cada ano
14
Tudo indica que a urbanização ainda seguirá a tendência de
aumento, principalmente nos países do leste asiático. Se em 1950 a
população urbana era de 29% do total, em 2007 chegou-se à
igualdade entre esta e a população rural (
. O
consumo de seus habitantes pressiona ainda mais a procura por terra
cultivável, água e madeira. Segundo Pearce, Londres necessita de 125
vezes sua própria área para prover os recursos que consome, e «se
as novas megacidades no mundo em desenvolvimento são
possibilitadas a crescerem da mesma maneira que as cidades fizeram
no ocidente, seus impactos ambientais serão catastróficos».
Imagem 11, página 84). A
previsão é de que no ano de 2030, 60% da população mundial, ou 4,9
bilhões de pessoas, estejam habitando em áreas urbanas
15
14
PEARCE, Fred. Eco-Cities Special: Ecopolis Now. New Scientist, London, 16 jun. 2006.
Seção Environment. Acesso em: 19 mar. 2009.
. A taxa de
crescimento da população urbana é maior nos países em
15
UNITED NATIONS. Department of Economic and Social Affairs. Population Division.
World Urbanization Prospects: The 2005 Revision. New York: United Nations, 2006.
72 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
desenvolvimento do que nos desenvolvidos (Imagem 12, imagem
84), resultando na projeção de que em 2030, os primeiros terão
quatro vezes mais população urbana que os segundos. Além disso, o
afluxo de migrantes dos países menos desenvolvidos aos mais
desenvolvidos tem crescido nos últimos vinte anos chegando a 115
milhões de pessoas em 2005
16
O crescimento dessas megacidades é de tal escala que
“megaconurbações” se formaram, transformando imensas regiões
em áreas urbanizadas, tecidos contínuos de ocupação humana,
apelidadas de “megalópolis”. Mas em cada lugar uma dinâmica
própria. Enquanto algumas dessas megalópoles pertencem aos
países desenvolvidos, como BosWash(de Boston a Washington,
nos EUA, com aproximadamente 55 milhões de habitantes) e
.
Taiheiyō beruto (ou Cinturão do Pacífico, formado por várias
metrópoles japonesas, entre elas Tóquio, Nagóia e Osaka, e
abrigando quase 83 milhões de pessoas); outras estão nos países em
desenvolvimento como a conurbação de cidades do delta do Rio das
Pérolas (Cantão, Hong Kong, Shenzhen, Macau..., na China,
chegando a 50 milhões) ou a grande São Paulo, Brasil, incluindo aí
Campinas e Jundiaí, alcançando uma população de quase 30 milhões
(Imagem 10, página 82).
Ascher concorda com Sassen acerca do papel das cidades no
contexto contemporâneo e os efeitos em retorno que isso provoca
em seu espaço e em suas dinâmicas. De fato, é como se o
pensamento do estudioso francês tivesse a obra de Sassen como
background e dela partisse para análises mais específicas do
processo, ou seja, como a nova lógica do sistema econômico se
expressa na escala urbana, do ponto de vista tanto das empresas,
quanto dos políticos, decisores e cidadãos.
As visões e prognósticos de dispersão urbana total e
desaparecimento da cidade, que fazem parte de debates antigos
sobre as conseqüências descentralizadoras dos meios de transporte
ou comunicação e reativadas a cada etapa evolutiva destes últimos,
também lhe parecem equivocadas. A tese de Ascher sustenta que,
apesar de as tecnologias novas trazerem consigo um afluxo de
conseqüências e efeitos de amplos alcances, elas «não geram uma
16
Idem. Department of Economic & Social Affairs. International Migration Report 2006: A
Global Assessment. New York: United Nations, 2007.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 73
dispersão generalizada dos homens e das atividades. Ao contrário,
elas acompanham e até mesmo suscitam novas aglomerações e
polarizações»
17
Como introduzido no capítulo anterior, Ascher identifica três
revoluções urbanas de caráter moderno: a primeira a da Idade
Moderna; a segunda a da Revolução Industrial; a terceira seria a que
vivemos hoje em dia, decorrente da revolução tecnológica,
informacional ou técnico-científica. A resposta urbana foi a mudança
de escala e forma, foi o prosseguimento e aprofundamento da
metropolização e da modernização, iniciando um novo ciclo: a da
cidade supermoderna, a metápole.
.
A metropolização contínua da cidade, ou seja, a concentração
cada vez maior das riquezas, atividades e pessoas em cidades com
milhões de habitantes, tem sido, algum tempo, influenciada e
incentivada pelo desenvolvimento das técnicas de transporte e
comunicação, bem como pela ligação cada vez mais forte das
cidades com a economia internacional.
As metrópoles são o palco da economia globalizada, os
grandes centros de decisões, onde se instalam as grandes empresas.
Além disso a organização atual em unidades menores, fluxos
estendidos e a comunicação avançada entre unidades e setores da
produção ou serviços traduzem-se através da externalização das
empresas, tornando a cidade uma extensão do processo produtivo e
reforça a importância do espaço físico. A economia se torna mais
urbana
18
Ascher destaca que o conceito de rede está na moda nas mais
diferentes ciências, inclusive nas ciências urbanas, utilizada como um
paradigma, pois ela evoca noções como complexidade,
interdependência e fluidez. No campo territorial, segundo ele, deve-
se ter em conta os diversos tipos de redes que existem ou atuam
espacialmente como as redes de comunicações, redes de empresas e
redes de cidades, como uma influencia a outra e qual o papel de cada
uma na conformação geral da rede urbana. Na cidade atual, a
. Consequentemente, também, a logística, seja do
abastecimento, da venda ou reversa, assume um lugar crítico para os
setores econômicos ao lidar com os transportes de bens e recursos a
distâncias constantemente estendidas.
17
ASCHER, op. cit., 1995, p. 37.
18
ASCHER, op. cit., 2002, p. 48.
74 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
importância está na facilidade em passar de uma rede à outra, ou
seja, a importância competitiva está nas interconexões.
As redes, sociais ou espaciais, de indivíduos ou de cidades,
também podem agir como mecanismos de seleção e obtenção de
vantagem na estrutura de interdependências. Pierre Bourdieu
explica, através do chamado “efeito clube”, que, para ingressar num
novo espaço, «o indivíduo deve satisfazer as condições que aquele
espaço tacitamente requer de seus ocupantes»
19
Desse modo, a lógica privada em geral e a logística em
particular, tanto da manufatura quanto dos serviços, contribuem de
maneira significativa à formação das redes intra e interurbanas,
favorecendo a polarização e concentração das funções avançadas de
controle e gestão em torno dos nós de interconexão, tais como
estações de transporte rápido
, do contrário corre
o risco de sentir-se “fora de lugar”. As condições exigidas podem ser
a posse de certo capital cultural, econômico ou social. O
pertencimento às redes hoje em dia, conclui Ascher, é fundamental
tanto para os indivíduos quanto para as empresas e cidades, por isso
a busca incessante pela formação de interconexões.
20
, aeroportos, teleportos
21
A velocidade é o fator essencial nas relações econômicas em
rede contemporâneas. As relações da grande metrópole com as
cidades satélites não são as mesmas que as mantidas nos outros
grandes ciclos históricos. Aquelas pequenas ou médias cidades que
desejam incluir-se no mercado internacional procuram ter a mais
, etc.;
enquanto as de manufatura e armazenamento, onde a natureza
repetitiva e normalizável não são influenciadas decisivamente pelas
novas tecnologias de comunicação, buscam terras mais baratas,
proximidade às redes de infra-estrutura de transporte e acesso à
mão-de-obra.
19
BOURDIEU, Pierre. Site Effects. In: BOURDIEU, Pierre et al. The Weight of the World:
Social Suffering in the Contemporary Society. Stanford: Stanford University Press, 1999, p.
128.
20
Na França, especificamente, existe o sistema TGV (Train à grande vitesse), centrado em
Paris, conecta cidades de um lado ao outro do país.
21
Teleporto, ou “porto de telecomunicações", é um «núcleo provedor de serviços
eficientes com custo-benefício de alta performance voltados para empresas que
demandam grande conectividade em banda larga, tanto local quanto a longa distância,
servidos por satélites, fibra ótica, ondas curtas e outras estruturas de rede». (Teleporto
Brasil, disponível em: <http:// www.teleportobrasil.com.br/ definicao.htm>)
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 75
direta conexão possível com a metrópole mais próxima.
Ascher atesta, baseado nestas estruturações polarizadas pelos
transportes rápidos, que os modelos abstratos tradicionais de
descrição das redes de cidades criados por economistas ou
geógrafos estariam obsoletos e que, hoje em dia, a cidades se
relacionariam e organizariam numa lógica de hub-and-spokes.
Um dos modelos tradicionais é a teoria das localidades centrais,
de Walter Christaller, também chamado modelo christalleriano
(Imagem 13, página 85). De acordo com Christaller
22
Já o sistema de organização por hub-and-spokes (centros e
raios) seria o mais indicado a descrever a hierarquia entre cidades
atualmente, depois da globalização e dos transportes rápidos
(
, todos os
núcleos de povoamento, grandes ou pequenos, urbanos ou rurais,
são considerados como localidades centrais dotadas de funções
centrais para os residentes de uma região complementar. Cada
localidade central possuiria uma alcance máximo e mínimo referente,
respectivamente, à área de deslocamento dos consumidores e à área
que possui o número mínimo de consumidores necessários para que
uma atividade comercial ou de serviços possa se instalar. Assim,
estabelece-se uma hierarquia sistemática e cumulativa entre as
localidades centrais com base na oferta de bens e serviços, sendo a
metrópole regional o núcleo mais importante do esquema por
oferecer o maior número de bens e serviços e por ter o maior alcance
espacial.
Imagem 14, página 85). O nome deriva da analogia com a roda de
uma bicicleta, a qual possui um centro ou cubo (hub) de onde partem
os raios (spokes). Foi utilizado com eficiência no sistema de
transporte aéreo americano após a desregulamentação do mesmo
pelo governo nos anos 70, substituindo o sistema ponto-a-ponto
anterior. Desde então, os maiores aeroportos do mundo se tornaram
os hubs do sistema aéreo para onde convergem os vôos de baixa
demanda que fazem conexão com linhas mais procuradas,
otimizando o uso das aeronaves e diminuindo custos. O modelo,
hoje, é amplamente utilizado nas mais variadas áreas, incluindo redes
de computadores, processos de trabalho e, logicamente, também
nos sistemas de transporte não-aéreos.
22
Cf. CORRÊA, Roberto Lobato . A rede urbana. São Paulo: Atica, 1989. 96p. (Principios ;
168), p. 21 et seq.
76 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
Ou seja, num contexto de intensas conurbações, de
tecnologias avançadas de comunicação e de integração econômica
global que muda e se inova constantemente, as armaduras rígidas
como a de Christaller já não possuem pertinência. As comunicações e
transportes, ao diminuírem o tempo e os custos das transações
mercantis, produtivas, educacionais, etc., e aumentarem o raio de
ação das cidades, rearranjam as hierarquias urbanas numa rede
muito mais complexa, regional e globalmente, na qual redes de
níveis e naturezas distintas se sobrepõem, se cruzam, integram locais
distantes ou diferenciam os mais próximos e o modelo de hub-and-
spokes traduz, segundo Ascher, as conexões atuais.
Mas o que Ascher destaca nesse modelo não é a questão da
redução dos custos de operação ou a quantidade de conexões
existentes numa cidade. É a própria existência da lógica de centros e
raios que lhe interessa. Segundo ele, esse sistema acaba por
polarizar o tecido urbano, principalmente das grandes metrópoles,
tornando-o descontínuo e heterogêneo devido ao “efeito túnel” que
ele carrega consigo. Os trens de alta velocidade, os metrôs, os aviões
criam o “efeito túnel” ao ligar grandes distâncias sem paradas
intermediárias, o que se encontra na travessia desaparece. Segundo
Herce Vallejo
23
Assim, “intraurbanamente” falando, as metrópoles se
desenvolvem numa dupla lógica de integração de regiões e cidades
vizinhas em seu funcionamento cotidiano e exclusão de localidades
que não se conectam ao sistema, concentração de atividades que
buscam acesso fácil aos nós de interconexão e alastramento da
ocupação de baixa densidade pelos loteamentos cada vez mais
distantes do core urbano.
, esse é um dos temas principais no debate da
globalização, trazendo a reflexão sobre as reais dimensões sociais e
territoriais das infraestruturas, pois tendem a criar periferias situadas
entre dois espaços centrais.
As zonas rurais, por sua vez, quando não atuam como uma
hinterlândia ou são relegadas como regiões atrasadas, aparecem
cada vez mais como espaços de serviços e turismo (“turismo rural”)
ou como territórios de expansão para o alto mercado imobiliário na
forma de grandes condomínios fechados, propagandeados como
23
HERCE VALLEJO, Manuel; FARRERONS, Joan Miró. El soporte infraestructural de la
ciudad. Barcelona: Edicions UPC, 2002. (Colección Arquitext nº29), p. 18.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 77
refúgios naturais do stress da cidade grande, destacando a
“natureza exuberante e a qualidade de vida
24
em empreendimentos
devidamente loteados e ajardinados, criando uma rurutopia,
“parques temáticos” da vida no campo “que conta com toda a
infraestrutura de chácara e sítio”
25
Ascher diz que a segregação sempre acompanhou o
desenvolvimento das cidades e que aquela imagem de mistura
funcional e social «revela antes uma mitologia comunitária
provinciana que referências históricas concretas»
. Talvez esteja-se criando aí a
última fronteira de autossegregação da classe rica.
26
Como Sassen demonstrou
. A concentração
das riquezas nas metrópoles não significou uma melhor distribuição
delas. Pelo contrário, a tendência à diferenciação social apenas se
acentuou desde os anos 80, às quais se seguem especializações
sociais e segregações dos espaços metropolitanos, mais acentuadas
do que nas outras cidades.
27
Enquanto a concentração de renda prosseguir, e essa é a
tendência na atual conjuntura, os grupos marginalizados só irão
aumentar. Ascher se pergunta se alcançarão resultados mais
consistentes além de simplesmente mitigar os graves sintomas da
exclusão. Ele diz que a situação é similar em muitos países, mas tem
em mente a situação francesa e, principalmente, os banlieues
(periferias) de Paris.
, enquanto aumentaram os
investimentos em construções comerciais e residenciais luxuosas,
agora uma maior desigualdade nos salários, um maior predomínio da
pobreza e mais gente desempregada. Os centros antigos ou novos,
se bem localizados, gentrificam-se. Aqueles que não tem o poder
aquisitivo suficiente, a classe “instável”, aceitam se estabelecer
longe de seus empregos. A classe marginalizada mora onde puder,
nos espaços interstícios ou em abrigos do governo.
A França é conhecida por seus programas assistenciais e
políticas sociais que remontam ao fim do século XIX, para sanar os
24
INCORP. VILLAGE DA MONTANHA. Condomínio Village da Montanha Rancho
Queimado: onde é natural viver bem. Folder propagandístico. [S. l.: s. n.], 2008?.
25
INCORP. FIORI EMPR. IMOB. Condomínio Jardim da Serra: Venha viver cercado de
verde. Folder propaganstico. [S. l.: s. n.], 2008?.
26
ASCHER, op. cit., 1995, p. 142.
27
Cf. SASSEN, op. cit., 1991.
78 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
efeitos da da Revolução Industrial
28
. Após a Segunda Guerra, o
Estado francês se torna eminentemente providencial, voltado à
Proteção Social para assegurar a coesão social, constituído de
políticas transversais de combate à pobreza e à exclusão além de
previdência, seguro-saúde, assistência social às famílias, à velhice,
aos imigrantes, e seguro-desemprego. Mesmo assim, existem
críticas
29
A política habitacional francesa
, hoje em dia, sobre como o Estado Providencial francês
tornou-se, com o passar dos anos, corporativista, criador de
desigualdades e concentrador de renda.
30
acompanhou lado a lado as
medidas de proteção social. Os debates também iniciaram no século
XIX e polarizavam-se entre Jules Siegfried, a favor da facilitação do
trabalhador ao acesso à propriedade, e Jean-Baptiste Godin, que
idealizou a habitação locativa social
31
. A experiência de Godin foi uma
exceção no panorama da habitação social francesa. Na primeira
metade do século XX, devido às guerras, a qualidade das construções
era muito baixa, chegando mesmo a “suprimir instalações sanitárias
por considerar um luxo para os operários”
32
A revitalização da construção civil se deu por dois motivos. O
primeiro foi, como já dito acima, a ajuda financeira do EUA aos países
aliados através do Plano Marshall. O segundo foi o programa federal,
aliado ao setor industrial, de recrutamento de mão-de-obra barata
nas colônias ultramarinas, principalmente do norte da África, para
suprir as necessidades da indústria e construção. «Além disso, o setor
industrial preferia os operários imigrantes por considerá-los mais
. A Segunda Guerra só
fez piorar o quadro, criando uma massa de inválidos ou doentes além
do déficit habitacional.
28
BUSTILLOS, Catarina Setúbal R. Políticas Sociais Públicas: O Estado-Providência Francês.
Revista do BNDES. Rio de Janeiro, v. 8, nº 15, p. 195-212, 2001.
29
Cf. EICHENBERG, Fernando. A França entre o velho e o novo. Mas que novo? TERRA
MAGAZINE. Seção Colunistas. Disponível em: <http:// terramagazine.terra.com.br /interna/
0,,OI2101144-EI6782,00-A+Franca+entre+o+velho+e+o+novo+Mas+que+novo.html>.
Acesso em: 17 mar. 2009.
30
ABIKO, A. K.; GÓES, L. F.; BARREIROS, M. A. F. Política Habitacional na França: Locação
Social e Villes Nouvelles. São Paulo: USP, Dep. de Eng.ª de Const. Civil, BT/PCC/122, 1994.
31
Seu “familistério” em Guise, depois denominado Palais Social de l’Avenir, edificado entre
1858 e 1877, tinha capacidade para 1.170 operários de sua indústria e contava com escolas,
teatro, comércio e lazer. Durou até 1968. Engels, em seu tempo, já o considerava a única
experiência socialista que deu certo.
32
ABIKO, op. cit., p. 4.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 79
passivos e menos inclinados a aderir a sindicatos»
33
Com o passar do tempo e a emergência de governos pró-
neoliberalismo, efetuando cortes de gastos e benefícios sociais, a
deterioração do ambiente construído e das condições de vida só se
agravaram, e esses bairros, enfim, viraram verdadeiros guetos. Foi
nesse contexto que eclodiram os distúrbios nos banlieues franceses
em 2005
. Todo esse afluxo
de imigrantes, muçulmanos e negros, foram alojados em conjuntos
habitacionais em bairros longínquos do centro, sem infraestrutura
adequada, opções de lazer ou emprego próximos, nem eram
servidos por transportes coletivos.
34
Ascher já mostrava pessimismo frente às políticas públicas
destinadas a essa parcela da população e do território. O “Estado
animador”, que apenas incentivaria a criação de dinâmicas
“endógenas”, para ele representa claramente a «incapacidade dos
poderes públicos a ter alguma eficácia sobre os mecanismos que
geram a marginalização social, econômica e espacial dessas
populações»
(e que repetiram-se em 2007). O estopim foi a morte
acidental de dois jovens descendentes de imigrantes africanos que
se escondiam da polícia. Logo depois eclodiria a revolta dos jovens
da periferia de Paris e se propagaria a outras periferias da França,
com automóveis incendiados e confrontos com a polícia. Os
distúrbios se prolongaram por três semanas e culminaram na
instauração do Estado de Emergência, uma lei de 1955 até então
utilizada apenas nas colônias francesas.
35
Não se corre o risco de ver estabelecer-se
progressivamente uma zona de “abandono” ou de
“desqualificação”, subvencionada e mais ou menos
“autogerida”, de tal maneira que a situação não seja
muito explosiva e não venha a perturbar o resto da
metrópole?
. Preocupado com a situação dos quartiers en crise,
questionou em seu livro Metapolis:
33
IRELAND, Douglas. Trinta anos de negligência incendiaram a França. Folha Online. São
Paulo, 15 nov. 2005. Especiais, 2005, Mundo, Violência na França, Artigo. Disponível em:
<http:// www1.folha.uol.com.br/ fsp/ mundo/ ft1511200502.htm>. Acesso em: 18 mar. 2009.
34
ONDA de violência na França levanta questões sobre política social. Folha Online. São
Paulo, 15 nov. 2005. Especiais, 2005, Mundo, Violência na França, Governo. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u89356.shtml>. Acesso em: 18 mar.
2009.
35
ASCHER, op. cit., 1995, p. 146.
80 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
Enfim, a cidade contemporânea cresce sem parar e concentra
mais e mais pessoas de origens, culturas e interesses diferentes. A
evolução do quadro é mais rápida que os mecanismos de ajuste e
organização, multiplicando-se as ocupações e fugindo do controle
das autoridades ou simplesmente com a anuência delas. Ascher
qualifica este desenvolvimento incansável de metropolização
metastática, uma nova forma urbana que ultrapassa os limites da
metrópole clássica, que se diferencia em termos de escala e de
vivência de todos as etapas anteriores da história urbana e que
coloca problemáticas novas. Para qualificá-la e diferenciá-la da
metrópole, criou o termo metápole. O uso do prefixo meta, que em
grego significa “depois”, “além de”, denota o surgimento de uma
outra forma urbana, diferente da metrópole, mas não
necessariamente melhor ou pior.
Uma metápole é o conjunto de espaços cujo todo ou
parte dos habitantes, das atividades econômicas ou
dos territórios estão integrados no funcionamento
quotidiano (ordinário) de uma metrópole. Uma
metápole constitui geralmente uma só zona de
emprego, de habitação e de atividades. Os espaços
que compõem uma metápole são profundamente
heterogêneos e necessariamente contíguos. Uma
metápole compreende ao menos algumas centenas de
milhares de habitantes.
36
Como agir num objeto com tal complexidade e tamanho? Após
realizar uma análise dos modelos e práticas utilizados nas fases
precedentes, Ascher conclui que elas não são mais suficientes ou
nem mesmo adaptadas à nova situação social, espacial e
epistemológica. Baseado nos avanços científicos ocorridos em
diferentes áreas do conhecimento, procura construir uma nova
metodologia capaz de dar conta dos desafios urbanos.
Primeiro deve-se assegurar a comunicação, a conversação e o
deslocamento dos bens informações e pessoas. Conceber uma
cidade onde a individualidade da escolha possa de fato efetuar-se. A
mobilidade deve se espelhar em escolhas individuais, mais do que
opções idênticas às massas. Os espaços devem ser dotados de
36
Ibidem, p. 34
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 81
elementos e qualidades sensoriais que vão além do simples olhar.
A gestão urbana deve adquirir um caráter mais estratégico,
aproveitando oportunidades, integrando-se no fazer a cidade mais
como um “ator” do que “instituição”, lidando com outros “atores”
públicos e privados, adquirindo de cada um os saberes que podem
vir a ser necessários no processo de planejamento. Não mais um
planejamento objetivando um produto final acabado, feito por
experts fechados em gabinetes, mas um processo onde o meio é
mais importante que o fim, o “modo” de planejar e executar é o mais
importante.
Esse tipo de atitudes interativas e flexíveis modifica
também as competências técnicas e profissionais
necessárias para a elaboração e a gestão dos planos
diretores [...]. Fazer, refazer ou implementar de
maneira criativa um plano diretor supõe notadamente
a compreensão das lógicas do urbanismo operacional e
de seus atores.
37
Para isso, são necessárias duas coisas: um “projeto de cidade”
e a criação de consenso. O projeto de cidade definiria um conjunto
de objetivos fixos a serem seguidos durante o processo de
planejamento e elaborados conjuntamente pelos diversos atores da
metápole. Evidentemente, conflitos surgirão e serão integrados num
consenso mediado pelos urbanistas. Assim, é fundamental o “agir
comunicacional” na mediação dos interesses públicos e privados. Os
dois próximos capítulos tratarão mais detalhadamente das medidas
políticas e urbanísticas mais condizentes nesta direção, segundo
formulado por Ascher.
37
Ibidem, p. 221
82 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
Imagem 9: Cidades com mais de 1 milhão de habitantes.
Imagem 10: Grandes conurbações. Urbanização aparente.
(Imagens baseadas na captura das luzes à noite, NASA, layer do GoogleEARTH®)
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 83
Tabela 1: Megacidades e suas populações, 2005 e 2015. (ONU, 2005)
84 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
Imagem 11: População urbana e rural do mundo, 1950-2030. (ONU, 2005)
Imagem 12: Contribuição do crescimento da população urbana e rural ao
crescimento total, 1950-2030. (ONU, 2005)
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 85
Imagem 13: Modelo christalleriano.
Imagem 14: Modelo hub-and-spokes. (ASCHER, 1995)
C APÍTULO I V
GOVERNANÇA URBANA METAPOLITANA
scher segue sua reflexão examinando as ressonâncias das
mutações sociais na esfera pública. Segundo ele, a política
vive, hoje em dia, uma crise. Crise ideológica, crise de
interesse popular, crise de legitimidade, crise de representação. «É a
política, entendida como o conjunto das instituições e dispositivos
que asseguram o funcionamento e a regulação da sociedade que não
está mais adaptada à sociedade contemporânea»
1
A rápida transformação da sociedade e a individualização
acentuada pelo processo de modernização fazem com que os grupos
sociais multipliquem-se e comutem entre si visões de mundo,
moralidades, gostos e opiniões. Mas agora são os indivíduos, e não
mais a massa da sociedade, que determinam o peso e a relação entre
os elementos que formam o seu caráter (ethos) e, por fim, a sua
personalidade. O eu tomou o lugar do nós. A consciência cada vez
maior da singularidade individual torna mais difícil a formação de
amplos grupos homogêneos.
.
A atomização da sociedade em indivíduos autônomos
hipermodernos, e por isso mesmo “ecléticos”, que ainda não
chegaram a formar uma solidariedade reflexiva, põe em questão os
procedimentos da democracia representativa. Num contexto de
incerteza e instabilidade, de questionamentos e revisionismos, de
fragmentação do interesse comum, parece que o cenário político
perdeu substância por trás dos discursos ideológicos. «De fato, os
programas dos partidos tendem a esvaziar-se de todo conteúdo
1
ASCHER, François. La société évolue, la politique aussi. Paris: Odile Jacob, 2007, p. 8.
A
88 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
preciso e a exaltar principalmente os méritos de seus líderes, e a
revestir as proposições categoriais e setoriais de grandes
princípios»
2
Até mesmo a dicotomia ideológica direita/esquerda estaria,
para Ascher, obsoleta pois percebe-se uma crescente fluidez entre
essas posições antagônicas do espectro político. Para o sociólogo
francês tendo em mente principalmente a Europa isso se deve
ao declínio do sovietismo, por um lado, e dos regimes reacionários,
por outro. Muitas posições sobre questões morais e governamentais,
que sempre estiverem quase que inequivocamente polarizadas, e.g.
direitos das mulheres e homossexuais, educação, segurança pública,
têm sido toleradas por ambos os lados. Até mesmo nos governos a
distinção se torna difusa
.
3
É interessante observar que o próprio Ascher faz parte desta
mutação política. Em 1975, enquanto membro do Partido Comunista
Francês, escrevia em seu livro O Urbanismo e a Política
.
4
Então desenvolver-se-á a consciência que só o
socialismo, isto é, a transformação radical das relações
sociais de produção, permitirá um desenvolvimento
sem entraves das forças produtivas, condição
necessária para que as necessidades sejam satisfeitas.
Em todas estas etapas, o Partido Comunista tem um
papel indispensável a desempenhar, porque é o
Partido da classe operária à volta da qual as outras
camadas e classes dominadas podem unir-se. Mas só a
classe operária, por se opor radicalmente ao
capitalismo, por estar na origem da produção, pode
, numa
linguagem marxista ortodoxa, que as «cidades do capitalismo»
estariam «doentes», «postas ao serviço da oligarquia monopolista» e
que apenas uma análise e uma práxis baseada em «conceitos
marxistas-leninistas», através de um «partido revolucionário de
vanguarda», poderiam lhes reservar um futuro próspero.
2
Ibidem, p. 84.
3
Um exemplo foi o mandato de Lionel Jospin como primeiro ministro da França, de 1997 a
2002. Membro do Partido Socialista francês (PS), Jospin efetuou, entre outras medidas, a
diminuição de impostos e privatizações.
4
ASCHER, François; GIARD, Jean. O Urbanismo e a Política. Lisboa: Estampa, 1976. Com a
colaboração de Jean-Louis Cohen. (Coleção Praxis, 33) Título original: Demain la Ville?
Urbanisme et Politique.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 89
apresentar, a partir de agora, as perspectivas históricas
suscetíveis de fazerem triunfar definitivamente a
união.
5
Atualmente, ou melhor, já há praticamente duas décadas,
tendo abandonado os quadros do Partido nos anos 80 e
diversificado o discurso para além da ortodoxia ideológica, Ascher
bebe na fonte da obra de Anthony Giddens e sua “terceira via”, na
tentativa de transcender a limitação das escolhas políticas e integrar
uma dimensão social à economia capitalista.
Giddens diz que a terceira via, ou “social-democracia”, tem por
objetivo geral «ajudar os cidadãos a abrir seu caminho através das
mais importantes revoluções de nosso tempo: globalização,
transformação na vida pessoal e nosso relacionamento com a
natureza»
6
Voltando à democracia representativa e sua crise, Ascher
pensa que aquela não está ultrapassada, mas que necessita de uma
atualização de seus princípios a fim de que possa estar melhor
adaptada à nova sociedade de indivíduos e seja capaz de gerar ou
r em evidência o interesse geral.
. Assim, buscando uma nova doutrina entre a esquerda
tradicional e a direita neoliberal, de um lado, os social-democratas
aprovariam a globalização sem protecionismos mas com reservas e
regulações ao livre-mercado; abandonariam o coletivismo em favor
de uma redefinição de direitos e obrigações entre o indivíduo e a
comunidade; estenderiam a noção de direitos e responsabilidades a
todos. De outro lado, defenderiam a democracia como fonte da
autoridade; proporiam valores cosmopolitas e buscariam uma
modernização mais cautelosa e “nuançada”.
Para renovar a política, é necessário fazer evoluir as
condições de seu funcionamento. É necessário,
portanto, tentar situar ao nível dos princípios de
governo e reformas estruturais que permitirão fazer
aparecer os desafios estratégicos e as escolhas
políticas. É necessário pensar a política em função da
sociedade e das margens de ação que ela deixa
entrever para que em seguida a filosofia política, a
5
Ibidem, p. 141.
6
GIDDENS, Anthony. A Terceira Via: Reflexões sobre o impasse político atual e o futuro da
social-democracia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 74.
90 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
ciência jurídica e é claro a política possam guiar as
escolhas.
7
A complexificação crescente, manifestada na multitude de
grupos e práticas sociais gera dois caminhos à metápole: o primeiro,
de uma urbanidade intensa, repleta de trocas sociais (civilização
“rica”); o segundo o da negação da alteridade, do retraimento da
sociabilidade a micro-grupos que apenas coexistem na base de
relações utilitárias mínimas (civilização “minimal”). O primeiro
caminho seria o da “civilidade”, ou seja, a «capacidade de observar
as ‘conveniências’, ‘boas maneiras em uso num grupo social’»
8
. O
segundo caminho levaria a uma metápole “fria” e “pulverizada” «na
qual uma individualização empurrada a seu limite extremo distende
as relações sociais, mina as instituições políticas, ou mesmo gera a
reconstituição de pequenas comunidades fechadas»
9
A escolha entre esses dois caminhos dependeria daquilo que
Ascher chamou de “citadinidade”, ou seja, a «consciência do
pertencimento a uma coletividade urbana e o exercício dos direitos e
deveres relacionados». Apesar de alguns autores preferirem usar o
termo “cidadania urbana”, ele quis diferenciar “citadinidade”
(citadinité) de “cidadania” (citoyenneté), pois o último conceito
evoca a condição do indivíduo em relação à nação e, portanto, na
escala supra-urbana e «tem como projetos transcender os
particularismos de todos os tipos, notadamente as especificidades
locais». «Citadinidade, civilidade e urbanidade aparecem assim como
as qualidades interdependentes à vida metapolitana».
.
Ascher avalia que a citadinidade e a cidadania estão em déficit
devido à exacerbação do individualismo e comunitarismo. O
individualismo pode ser exemplificado pela “síndrome NIMBY” (not
in my backyard, “não no meu jardim”) que é a recusa a
implementações de equipamentos coletivos próximos a suas casas,
mesmo sendo de grande utilidade à comunidade em geral. O
comunitarismo se manifesta na aglutinação de indivíduos a grupos
ideológicos, éticos, religiosos, ou mesmo de classe, gerando, por
exemplo, os condomínios fechados norte-americanos e brasileiros.
O individualismo do “nimbismo” e o comunitarismo
7
ASCHER, op. cit., 2007, p. 15.
8
Idem, op. cit., 1995, p. 155
9
Ibidem, p. 156
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 91
excludente põem em crise a noção de interesse geral (ou comum),
bem como a definição e possibilidade de arbitragem entre interesses
de escalas espaciais e temporais diferentes. A nação não é mais a
escala da qual procedem os interesses coletivos.
A crise da definição de interesse geral, que perturba
profundamente a nação e a cidadania, explica assim
por uma grande parte as dificuldades de fazer existir
um sentimento para legitimar ações de interesse
coletivo territorializado.
10
Desse modo, Ascher questiona se é possível que a metápole
constitua «uma base para fundar identidade e projetos territoriais,
legitimar um interesse geral metapolitano, ou mesmo constituir um
componente local da cidadania»
11
Aqui é necessário relacionar três elementos formadores do
pensamento do sociólogo: o primeiro seria o desenvolvimento de
novos paradigmas científicos advindos principalmente da teoria dos
jogos, da cibernética e da teoria da complexidade; o segundo é a
teoria da justiça de John Rawls e o terceiro a teoria do agir
comunicativo de Jürgen Habermas, cada qual participando numa
etapa da argumentação de Ascher.
, já que os habitantes dessas
grandes aglomerações vivem sob tensões dicotômicas como entre
individualismo e identidades coletivas ou entre os níveis local,
nacional e internacional. A única maneira, segundo ele, é modificar a
natureza das instituições e lhes dotar de uma racionalidade e lógica
múltiplas, dinâmicas e adaptáveis à crescente complexidade da
cidade contemporânea.
A teoria dos jogos é um ramo da matemática aplicada
dedicada ao estudo das escolhas e estratégias de partes oponentes
em situações complexas de tomadas de decisão, ou “jogos”
12
10
Ibidem, p. 169
.
Originalmente destinada à análise da competição econômica, a teoria
dos jogos passou a ser utilizada em outras áreas como biologia,
filosofia, psicologia, ciência política e sociologia devido à sua
capacidade de avaliar fenômenos sociais, integrando atitudes
humanas em seus modelos.
11
Ibidem, p. 175
12
Cf. DAVIS, Morton D. Game Theory: A Nontechnical Introduction. New York: Courier
Dover Publications, 1997.
92 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
A cibernética trata dos sistemas complexos deterministas ou
probabilistas, autorregulatórios e autorreprodutores, que evoluem e
aprendem, dependendo das informações que recebem, como os
interpretam e da comunicação entre seus componentes internos e
destes com os agentes externos
13
Já a teoria da complexidade, ou teoria do caos, é considerada
uma das três revoluções científicas do século XX, ao lado da
relatividade e da mecânica quântica
. Assim como a teoria dos jogos, a
cibernética extrapolou o ramo inicial de atuação, o das máquinas e
servomecanismos, e foi adotada num amplo espectro disciplinar,
desde a evolução das espécies até o estudo dos grupos sociais,
burocracia, instituições, mercados, tráfego de veículos, cérebro, etc.
14
Para Ascher, esses novos ramos do conhecimento
contribuíram para que a ciência passasse a ser vista de forma
diferente, menos linear, reducionista e determinista, mais intrigante,
transdisciplinar e holística. Contribuíram também à conscientização
de uma racionalidade limitada, à renovação das modelizações e
representações e à disseminação de noções importantes como
retroalimentação (feedback) e homeostase. «Todas esses
procedimentos se inscrevem numa dinâmica científica que abre à
razão novos campos, novas possibilidades, inclusive de se confrontar
à incerteza»
. Ela é, na verdade um modo
diferente de ver as irregularidades das coisas. Com seu advento,
passou-se a prestar mais atenção aos sistemas simples que dão
origem a comportamentos complexos e vice-versa, passou-se a
encontrar ordem e padrão em fenômenos desordenados e aleatórios
na aparência. A natureza altamente genérica da teoria da
complexidade possibilitou sua aplicação dos estudos das populações
de mariposas às aglomerações estelares, dos atratores estranhos à
formação de nuvens.
15
O segundo elemento é a teoria da justiça de John Rawls. Esta
pretende ser uma alternativa à concepção de justiça do utilitarismo
ao estabelecer a justiça como eqüidade, que opera pela igualdade de
. Indiretamente, essa conscientização da limitação da
racionalidade também recai sobre a esfera da ciência política,
exigindo a revisão das noções de poder, justiça e democracia.
13
Cf. EPSTEIN, Isaac. Cibernética. São Paulo: Ática, 1986. (Série Princípios, 62)
14
Cf. GLEICK, James. Caos: A Criação de uma Nova Ciência. Rio de Janeiro: Campus, 1990.
15
ASCHER, op. cit., 2007, p. 174.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 93
oportunidades e princípio da diferença, e que procura «generalizar e
elevar a uma ordem mais alta de abstração a teoria tradicional do
contrato social representada por Locke, Rousseau e Kant»
16
. O
contrato entre “partes racionais e mutuamente desinteressadas”
teria como princípios, na situação inicial, a igualdade na atribuição de
deveres e direitos básicos e a “desigualdade justa”, ou seja,
«desigualdades econômicas e sociais [...] são justas apenas se
resultam em benefícios compensatórios para cada um, e
particularmente para os membros menos favorecidos da
sociedade»
17
. Para Ascher, o princípio de desigualdade justa permite
transformar o mérito em princípio de igualdade ou justificação de
desigualdades. Mas se o mérito como justiça é viável no trabalho ou
na educação, não o é na saúde, por exemplo. Portanto, deve-se «agir
de maneira mais sutil hoje em matéria de justiça social»
18
O terceiro elemento está ligado ao anterior como perspectiva
metodológica. Trata-se da teoria do agir comunicativo, de Jürgen
Habermas, que procura restabelecer um espaço dialógico aos
indivíduos, destruído pelo “agir estratégico ou instrumental”,
hegemônico nas sociedades modernas. É no “mundo da vida”, ou
seja, no cotidiano prático e intersubjetivo, que os indivíduos se
reconhecem, ao mesmo tempo, como identidades únicas e
comunitárias
.
19
Desse modo, Ascher considera que «o primeiro desafio é
suscitar a consciência e a identificação das interdependências» para
posteriormente se avançar na construção do “interesse geral”,
necessária para viver em comunidade. O interesse geral, por sua vez,
para se efetivar na esfera pública necessita de um sistema adequado
de participação da população, ou seja, dar uma dimensão
participativa à democracia representativa.
. Através da universalização do diálogo e da livre
argumentação, afirma Habermas, chega-se a um patamar de
entendimento mútuo guiado por princípios éticos universais.
O poder público deve, por isso, ser reformado. Ao invés de
16
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997 (Coleção Ensino
Superior), p. XXII.
17
Ibidem, p. 16.
18
ASCHER, op. cit., 2007, p. 138.
19
Cf. FIEDLER, Regina C. do P. A Teoria da Ação Comunicativa de Habermas e uma Nova
Proposta de Desenvolvimento e Emancipação do Humano. Revista da Educação,
Guarulhos, UnG, v. I, nº 1, p. 93-100, 2006.
94 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
operar pela lógica de um programa “substancial”, seguindo uma lista
de decisões concretas elaboradas a priori, deveria utilizar de um
programa “procedural”, elaborando maneiras e critérios de decisão
à medida em que se apresentem as ocasiões. Ora, se as realidades
social, econômica e política ficam cada vez mais complexas, as
opções de métodos de atuação existentes se tornam ineficazes,
inadequadas e ultrapassadas. Daí a necessidade de uma
racionalidade procedural que acompanhe de perto as mutações,
otimize as respostas e as retroalimente com novas direções, caso
seja necessário.
No mesmo caminho seguiriam as relações entre o Estado e os
atores privados. Ao invés de se criar novas leis para cada nova
situação que apareça, sem abarcá-la completamente e enrijecendo as
engrenagens do sistema, as relações entre as partes assentar-se-iam
sobre um contrato ad hoc, estipulando de maneira mais precisa e,
por isso, mais flexível ao conjunto geral dos atores. As parcerias
público-privadas seriam, dessa forma, uma opção a mais na execução
das políticas.
A perda da aura positivista da ciência e a ética comunicacional
da democracia participativa demandam uma maior independência da
burocracia, da especialização, da hierarquia, dos experts. Mas para
que essa independência realmente tenha alguma profundidade,
Ascher sugere a criação e institucionalização de um “quarto poder”,
independente dos outros três, que teria por objetivo a organização
dos debates e a instrução dos interessados das questões levantadas.
Ele permitirá alargar e renovar o espaço público do
debate, e dar às argumentações e às deliberações os
instrumentos científicos que exige hoje a democracia
no contexto de uma sociedade hipermoderna. Ele
permitirá aos poderes públicos e aos cidadãos de
pensar e agir com pleno conhecimento dos fatos.
Enfim, ele contribuirá a criar confiança frente às
justificações das decisões públicas, o que só pode
reforçar a legitimidade da democracia representativa.
A lógica procedural, a diferenciação dos princípios de justiça e
a instituição de uma democracia participativa comportam o conceito
de “hiper-Estado”, ou seja, de um «Estado a n dimensões, capaz de
se organizar e de agir segundo lógicas e sob modalidades distintas de
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 95
acordo com as diferentes esferas»
20
. Ascher concorda com a filósofa
Nancy Fraser quando esta afirma que, atualmente, constatamos a
emergência de uma estrutura de soberania a múltiplos níveis e a
nação é apenas um desses níveis. Daí que o «desenvolvimento de
novos elementos estatais é possível simultaneamente em escalas
diferentes, infranacionais ou multinacionais»
21
Para dar conta das interlocuções entre as diversas escalas e
esferas de atuação, Ascher defende a constituição de uma
“governança urbana”, ou seja, uma renovação das relações entre as
autoridades locais e os cidadãos a fim de «reconstituir modalidades
territoriais concretas de gestão dos interesses coletivos que
articulem uma cidadania renovada e a citadinidade».
.
O futuro das metápoles depende antes da
possibilidade de suscitar uma verdadeira “governança
urbana”, isto é, um sistema de governo que articule e
associe instituições políticas, atores sociais e
organizações privadas, nos processos de elaboração e
implantação das escolhas coletivas capazes de
provocar uma adesão ativa dos cidadãos.
22
Governança é um termo extraído diretamente do mundo
empresarial, derivado de “governança corporativa”. A governança
corporativa surgiu da necessidade de resolver os “problemas de
agência” das empresas privadas, quando há conflitos de interesses
entre os proprietários (acionistas) e os que estão no controle da
gestão, ou também pode ser entre os acionistas (shareholders) e os
demais interessados (stakeholders).
23
Segundo Alain Bourdin, o conceito de governança «contribui
para organizar o debate sobre as novas formas da ação coletiva, e
Surgida nos anos 80 através da
mobilização de grandes investidores contra administrações
irregulares de corporações das quais tinham ações, a governança
corporativa teve sua importância acrescida nos anos 90 depois de
alguns escândalos financeiros que expuseram a necessidade de um
maior controle dos rumos da empresa por parte dos proprietários.
20
ASCHER, op. cit., 2007, p. 167.
21
Ibidem.
22
Idem, op. cit., 1995, p. 269.
23
Cf. BORGES, L. F. X.; SERRÃO, C. F. de B. Aspectos de Governança Corporativa Moderna
no Brasil. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 12, nº 24, p. 111-148, dez. 2008.
96 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
seu caráter flexível lhe permite justamente uma “ampla
varredura”»
24
. A governança substituiria o governo ao passar mais
autonomia e poder do Estado governamental às autoridades estatais
e aos componentes da sociedade civil. Abre espaço também à
formação de coalizões entre setores públicos e privados. «Construir a
coalizão é, pela interação, fazer evoluir as preferências dos atores
para se chegar a preferências partilhadas»
25
A transposição de termos de mercado para a política não
significa, dentro do pensamento ascheriano, a mercantilização do
Estado, mas sim, a compreensão de uma maior participação dos
diversos “atores” envolvidos nas decisões. «A noção de governança
remete precisamente a uma forma de governo muito mais complexa
e [...] que as ações públicas são necessariamente coproduzidas com
aqueles aos quais concernem»
.
26
. Abre, também, a perspectiva de
uma efetiva parceria público-privada “que introduz, na própria
concepção dos serviços públicos, as lógicas privadas”
27
Essa espécie de instituição metapolitana geriria numa escala
mais regional, englobando as zonas centrais, periferias, conurbações,
subúrbios tentando, assim, eliminar as defasagens existentes entre
as dinâmicas metapolitanas e os territórios institucionais.
.
Mesmo tendo os conceitos de descentralização e
complexidade sido utilizados por longo tempo para censurar o
Estado centralizador como pesado, lento e ineficiente, é necessário,
continua o sociólogo, reforçá-lo em seus próprios domínios de
competência, como o da planificação urbana e o da habitação social.
Mas se o Estado deve ser reforçado em alguns domínios, deve agir
de forma mais pragmática, buscando utilizar variadas ferramentas de
qualquer sistema para resolver os problemas ou aproveitar as
oportunidades.
Ou esses instrumentos cumprem sua missão e acabam
por se inserir no sistema de conjunto, o que é ótimo.
Ou eles não conseguem; certamente, correm o risco de
participar na inflação das leis e decretos; mas geram
24
BOURDIN, Alain. A Questão Local. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. (Coleção Espaços do
Desenvolvimento) p. 136.
25
Idem, p. 138.
26
ASCHER, op. cit., 2007, p. 8.
27
ASCHER, François. Les nouveaux compromis urbains: Lexique de la ville plurielle. Paris:
Editions de l'Aube, 2008, p. 106.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 97
então cedo ou tarde uma crise talvez necessária para
permitir evoluções mais globais e mais coerentes.
28
Mas a descentralização pode ser útil à governança urbana, ao
dotar as diversas esferas públicas, do local ao global, de
competências conjuntas, atuando mais horizontalmente, e ao
mesmo tempo assegurando a hierarquia com o princípio de
subsidiariedade, que define a atuação das esferas superiores apenas
quando da incapacidade da esfera inferior em resolver ou decidir
sobre determinado caso, ficando então a tomada de decisões
sempre mais próxima possível do cidadão. É no interior desse
sistema de governança, sob as mesmas lógicas e dinâmicas, que o
urbanismo ascheriano seria instituído e formalizado.
28
ASCHER, op. cit., 1995, p. 182
C APÍTULO V
NOVOS PRINCÍPIOS DO URBANISMO
scher não se limita a apontar, descrever, analisar e criticar os
fatos, delineados até aqui. Na verdade, toda a sua arquitetura
conceitual serve como embasamento das, e converge para,
suas propostas de ação ulteriores. É por isso que, a cada obra que
publica, retoma os mesmos argumentos iniciais acerca das recentes
mutações da conjuntura cultural-econômico-espacial conforme
expostos nos capítulos II e III como se fossem postulados dos
quais deduzirá os conselhos práticos. Cabe, então, recordar os
principais pontos do seu discurso antes de apresentar os seus
“novos princípios” para o urbanismo, pois estes decorrem
diretamente daqueles.
A começar pela sociedade “hipermoderna” que, sob o
impacto das novas tecnologias da informação e comunicação,
tornou-se mais fragmentada, individualizada e heterogênea. Os
indivíduos, multipertencentes, mais autônomos e menos conscientes
de sua interdependência com os outros, passam de um grupo a
outro, enfraquecendo a solidariedade e desfazendo a noção de
interesse geral.
Paralelamente, a economia tornou-se mais competitiva,
diversificada, rápida e abrangente. Baseada na obtenção, produção e
venda de conhecimentos, informação e procedimentos e no uso das
novas TIC, o capitalismo “cognitivo” adquire um caráter mais
estratégico, recorrendo menos ao planejamento a longo prazo e
mais a lógicas de gestão contínua de ajuste, produção enxuta e
acumulação flexível. Além disso, o setor financeiro da economia se
tornou mais importante que a própria manufatura, ampliando o
A
100 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
contexto de incerteza e risco.
Já a cidade, que sempre teve seu desenvolvimento fortemente
vinculado às técnicas de transporte, bens e pessoas, foi ao mesmo
tempo quadro delimitador das atividades e processos engendrados
pelas transformações recentes, e o próprio objeto transformado por
esses mesmos processos e atividades. Dentre eles, dois processos
umbilicalmente ligados influenciaram radicalmente a evolução
urbana nas últimas décadas. A continuação e o aprofundamento da
metropolização através dos transportes e telecomunicações
expandiu os limites das cidades a escalas nunca antes vistas, num
tecido descontínuo e multipolarizado, vivenciado de modo
fragmentado por seus habitantes, iniciando uma nova etapa histórica
à qual Ascher deu o nome de “metápole”. O outro processo foi o do
estabelecimento de redes de interdependências globais que
inseriram novas e fortes dinâmicas no espaço intraurbano e regional,
relocalizando os espaços produtivos, os centros financeiros, as zonas
de interesse, concentração, dispersão e segregação.
Para Ascher, tudo isso configura um cenário complexo onde é
«cada vez mais difícil programar o futuro, de pensar a cidade como
uma máquina e a vida urbana como a repetição de práticas
rotineiras»
1
É justamente numa crítica e rejeição da racionalidade urbana
modernista que o sociólogo francês funda a sua carta de princípios.
Segundo ele, não há mais contexto onde aplicar a doutrina
corbusiana de modo puro e inquestionável. Assim, não é mais
possível aplicar um programa de longo prazo junto com princípios de
. Por isso questiona se ainda é possível planejar e
controlar o desenvolvimento urbano a longo prazo. Ele tem em
mente como centro desse questionamento principalmente o
conjunto de ideias e práticas que denominou de “fordo-keynesio-
corbusiano”. O fordismo pela fabricação em série e em massa, a
repetição ad infinitum, a homogeneização e linearidade da lógica do
processo. O keynesianismo pela planificação da economia e
homogeneização das medidas de proteção social. O corbusianismo
pela racionalidade simplificadora e homogeneização do espaço
urbano em zonas monofuncionais.
1
ASCHER, François. La vie sociale et la variété des situations font qu’il est de plus en plus
difficile de programmer l’avenir, de penser la ville comme une machine. (entrevista)
Millénaire 3. Lyon: GrandLyon, n° 27, 2002, pp 65-66.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 101
organização espacial, reduzir a incerteza e controlar o futuro; utilizar
unicamente de regras simples, imperativas e estáveis, com conceitos
globais, funcionais e que ignoram as especificidades geográficas,
culturais e históricas locais; zonear rígida e detalhadamente; dar
preferência às soluções permanentes, coletivas e homogêneas;
limitar claramente a fronteira entre público e privado; contar com
interesse geral a priori; ter o poder público exclusivamente no trato
das questões urbanas, muito menos de forma centralizadora e
impositiva
2
Ascher parte da tese de que, numa cidade complexa como um
sistema aberto, instável e incerto, de racionalidades múltiplas e até
contraditórias, «é impossível para os responsáveis públicos
pretender uma dominação total dos fenômenos urbanos, mas que é
considerável “guiar” as transformações, “regular” os
funcionamentos»
.
3
Face a essa incerteza, o planejamento urbano não
pode mais ser linear e seqüencial, mecanicista e
balístico; ou seja, não pode mais pretender ser
previsional, programático, sistemático, imperativo. Ele
deve se construir sobre a base de uma racionalidade
limitada em universo incerto. Para orientar, enquadrar,
regular, gerir, o planejamento e mais genericamente o
urbanismo [...] devem implementar instrumentos que
admitam as flutuações, a criatividade, a incerteza, a
contradição, a ambigüidade, a imprecisão. O
urbanismo deve de alguma forma passar do
“planejamento estratégico” à “gestão estratégica”.
.
4
É nas empresas modernas que Ascher enxerga o modelo no
qual basear as novas práticas urbanísticas, afinal, segundo ele, tanto
as cidades quanto as empresas sofrem os efeitos dos mesmos
fatores econômicos, administram um grande número de serviços,
produção e trabalhadores e, atualmente, estão inseridas num
contexto de concorrência internacional. Por isso a adoção de termos
e conceitos (e, obviamente, de seus significados) advindos da
administração empresarial como governança (de governança
2
ASCHER, op. cit., 2002, p. 72 et seq.
3
Idem, op. cit., 1995, p. 211.
4
Ibidem, p. 212.
102 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
corporativa, conforme visto no capítulo anterior), projeto de cidade
(de projeto de empresa) e gestão estratégica.
A noção de gestão estratégica, no mundo empresarial, refere-
se, resumidamente, às «análises, decisões e ações que uma
organização exerce a fim de criar e manter vantagens competitiva
5
ao longo do tempo. Sua importância cresceu consideravelmente nos
últimos anos devido a três “forças motrizes” chaves: a globalização,
na qual os mercados operam num ritmo “24/7”; a tecnologia, que
impõe a constante inovação como fator de competitividade,
resumido no lema “inove ou morra”
6
A gestão estratégica possui, então, quatro atributos principais:
a) direcionamento às metas e objetivos organizacionais gerais, isto é,
os esforços devem se voltar à organização como um todo e não
apenas a uma simples área funcional; b) inclusão, na elaboração de
decisões, de múltiplos “interessados” (stakeholders), agentes, de
uma forma ou de outra, envolvidos no sucesso da organização,
incluindo proprietários, empregados, consumidores, fornecedores,
etc; c) a incorporação de perspectivas a curto e longo prazos, isso
significa que os gestores devem manter uma visão de futuro da
organização bem como foco nas necessidade operacionais
presentes; d) reconhecimento dos conflitos (trade-offs) entre
eficácia e eficiência.
; e o capital intelectual, que
transforma a posse de conhecimento em vantagem competitiva.
Tudo isso forçou os gestores a buscar obter uma visão mais
integradora da empresa, a delegar poderes em todos os níveis
administrativos e avaliar o modo como as áreas funcionais se
encaixam na tarefa de alcançar as metas e objetivos da organização.
Três processos altamente interdependentes são fundamentais
à gestão estratégica: análise ou “análise da estratégia”, quando são
delineados os objetivos gerais e estudado o ambiente interno e
externo; decisões ou “formulação de estratégia”, desenvolvida a
vários níveis e dedicada à definição de como competir e atingir
vantagens; e ações ou “implementação de estratégia para garantir
controles e projetos adequados às ações elaboradas.
5
Cf. DESS, G. G.; LUMPKIN, G. T.; TAYLOR, M. L. Strategic Management: Creating
Competitive Advantages. 2ª ed. New York: Irwin/McGraw-Hill, 2004.
6
«“Inove ou morra” é a primeira regra da competição industrial internacional.» Frase de
David de Pury (1943-2000), economista neoliberal suíço. Apud Ibidem, p. 22.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 103
Como a capacidade de análise do mundo dos negócios é
limitada, na maioria das vezes, esses três processos não ocorrem
sequencialmente, um após o outro, mas simultaneamente e
descontinuamente, podendo ser revistos a qualquer momento, de
acordo com as contingências. Acontecimentos inesperados internos
ou externos à empresa, restrições orçamentárias antecipadas ou
mudanças administrativas podem levar algumas partes da estratégia
traçada a não serem realizadas, mas por outro lado podem tornar-se
oportunidades para novas ações e estratégias. Em vista de tudo isso,
«raramente a estratégia planejada sobrevive em sua forma original»
7
Contudo, Ascher vê limites no paralelismo entre a gestão de
uma cidade e a de uma empresa e critica aqueles que levam a
comparação e aplicação das ferramentas empresarias na esfera
pública urbana a níveis elevados, incluindo a roupagem dada a
prefeitos e políticos como empreendedores ou gerentes. A cidade
não opera na lógica do lucro per se e possui especificidades que
exigem a manutenção de sua natureza pública e submetida às
políticas governamentais.
,
mas desenvolve-se e efetua-se como uma combinação de estratégias
deliberadas e emergentes.
Nos anos 70 e 80, a burocracia e o planejamento urbano
estatais estavam sob ataques e eram considerados obsoletos,
pesados e rígidos demais, limitando as iniciativas privadas e
emperrando os investimentos imobiliários. Com o retorno do
liberalismo, principalmente na Inglaterra com a eleição de Margaret
Thatcher, surgiu o conceito de “market lead city planning. O
planejamento estatal seguindo as dinâmicas do mercado, ou seja,
longe de abandonar toda e qualquer intervenção pública, age
acompanhando as exigências dos atores privados e do
desenvolvimento “espontâneo”, «encarregado de implementar as
condições que permitem a intervenção dos atores privados onde
desejam e de intervir apenas onde a lógica privada não pode resolver
sozinha um problema de planejamento ou infraestrutura»
8
7
Ibidem, p. 11.
. A ironia é
que, após um tempo de aplicação do laissez-faire por parte do
governo conservador inglês, ele foi combatido pelos próprios
8
ASCHER, François. Projet Public et Réalisations Privées: Le Renouveau de la Planification
des Villes. Les Annales de la Recherche Urbaine. Paris, nº 51, p. 5-15, jul. 1991.
104 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
agentes privados que reivindicavam maior controle legal a fim de
garantir seus investimentos
9
Apesar de Ascher concordar que essa abordagem de market
lead tenha trazido pontos positivos ao poder público como o
autoquestionamento e “fontes novas de eficiência”, afirma que ela
também «evidenciou a impossibilidade de aplicar sistematicamente
às grandes cidades européias uma abordagem liberal»
.
10
e as
disfunções ligadas ao boom imobiliário e à exclusão urbana
«trouxeram progressivamente à ordem do dia a necessidade de um
planejamento urbano mais voluntário»
11
, sem o qual as dinâmicas
sociais acabam por «espontaneamente produzir caos e injustiça»
12
Assim, voltando à gestão estratégica da metápole esboçada
por Ascher, o poder público abriria as portas do processo de
planejamento e gestão urbanos à participação dos diversos atores
interessados ou afetados pelas medidas, para, em conjunto,
definirem o “projeto de cidade”, ou seja, as metas e os objetivos
gerais a serem alcançados pela coletividade. Os trabalhos não seriam
mais fundamentados exclusivamente nos conhecimentos dos
experts dos órgãos governamentais, mas contariam com a
contribuição daqueles mesmos atores. Isso traria dois pontos
positivos, segundo Ascher: faria com que o projeto de cidade e as
diretrizes contidas nele adquirissem autonomia frente aos ciclos
eleitorais, geralmente caracterizados pela descontinuidade das
políticas públicas; e também favoreceria a emergência, explicitação e
consolidação dos interesses gerais daquela determinada
coletividade.
.
O urbanismo deve também tornar-se “incremental” e
“heurístico”, ou seja, aprender com as conseqüências das próprias
decisões e assim descobrir novos caminhos a tomar, num contínuo
processo de retroalimentação, pela coleta e avaliação de informações
à medida em que avança na implementação dos projetos. Portanto,
os objetivos a longo prazo e grande escala estão constantemente
sujeitos a revisões e redirecionamentos de curto prazo e pequena
escala. Trata-se aqui do princípio da autorregulação de sistemas
9
Idem, op. cit., 1995, p. 209.
10
Ibidem, p. 209.
11
Ibidem, p. 209.
12
ASCHER, op. cit., 2008.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 105
cibernéticos já mencionado no capítulo anterior aplicado ao
método urbanístico. Consiste-se, evidentemente, numa abordagem
metodológica bem diferente da prática tradicional de juntar o maior
número de informações possíveis sobre um determinado contexto
num dossiê e a partir dele elaborar planejamentos de grande escala a
longo prazo. É uma aproximação com a não-linearidade do fazer
arquitetônico.
Numa metápole altamente complexa e diversificada, o poder
público deve procurar operar sobre uma racionalidade múltipla, de
acordo com as variáveis do momento. Ascher chega a estipular seis
tipos principais de abordagens urbanísticas que poderiam ser
utilizadas separadas ou em conjunto, dependendo das necessidades
latentes e objetivos estabelecidos: a) a abordagem tipomorfológica e
o plano qualitativo, geralmente usada com o objetivo de adaptar
formalmente o novo ao antigo; b) infraestruturas e composição
urbana, voltadas mais às periferias em desenvolvimento; c)
enquadramento e estimulação, em situações sem necessidade de
grandes intervenções; d) “projetos diretores”, destinados a difundir
e consolidar as funções centrais das autoridades metapolitanas; e)
urbanismo paisagista, que teria a paisagem como princípio
ordenador do projeto ou plano de intervenção; e f) planejamento-
serviço, teria não apenas como função construir equipamentos e
instituir serviços públicos, mas também de geri-los e mantê-los
funcionando.
Tais “metodologias” ou “lógicas de ação”, mesmo atuando
em partes da cidade, não devem perder de vista as carências urbanas
globais. Segundo Ascher, as principais exigências às quais a gestão
urbana metapolitana deve responder incluem a mobilidade urbana, a
“qualidade de vida”, os “bairros em crise” e conservar seu território.
A mobilidade urbana talvez seja o mais importante dos fatores
a serem trabalhados pelos gestores, convertendo-se num tema
fundamental para as democracias atuais. Mobilidade na cidade
significa a facilitação e a diminuição das distâncias e tempos de
deslocamento através da generalização das estruturas de transporte
coletivo e individual e da instituição de serviços públicos ao redor dos
nós de interconexão. Trata-se, efetivamente, da acessibilidade
urbana e integração dos espaços metapolitanos e, por isso, na visão
ascheriana, de um “direito genérico” que possibilita o exercício de
106 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
todos os outros direitos. Para Ascher, a justiça social passa pela
mobilidade urbana irrestrita e abrangente, fazendo com que seja
«necessário passar de uma política do transporte social a uma
política social dos transportes».
13
Do mesmo modo, deve haver uma contínua preocupação e
políticas de revalorização, integração e “desenclavamento” dos
chamados, na França, “quartiers en crise”, aqueles bairros periféricos
onde são alocadas as populações de baixa renda, geralmente
imigrantes, e que, por ficarem longe das zonas centrais e serem mal
servidos por equipamentos e serviços urbanos e sociais, acabam por
entrarem num processo de degradação e “guetização” como
demonstrado no capítulo III.
O território metapolitano deve ser utilizado de modo a não
configurar fatores negativos à espacialidade urbana como o são, por
exemplo, os terrenos baldios ou as construções abandonadas devido
à desindustrialização mas, pelo contrário, devem ser requalificados e
inseridos numa lógica de desenvolvimento durável, se possível ainda,
mantidos como reservas fundiárias. Além desses, também os centros
das cidades devem passar por constante avaliação pois readquiriram
importância estratégica
14
Já as exigências de qualidade de vida” entram, para Ascher,
como medidas mais direcionadas à construção da imagem da cidade
para uso de marketing e atração de investimentos e empresas e sua
mão-de-obra qualificada, como a «oferta residencial abundante e
diversificada, equipamentos educativos, culturais, esportivos,
comerciais adaptados aos cânones funcionais e simbólicos desses
grupos»
.
15
É importante, afirma ele, que enfrentemos os desafios que os
novos espaços urbanos nos impõem, principalmente as zonas de
baixa densidade e fragmentadas, hoje em dia dominantes na
paisagem urbana. Estas geralmente se encontram no centro das
críticas dos urbanistas e estudiosos e tendem a ser negadas sob a
alegação da dificuldade de fornecimento dos serviços públicos e
.
13
Idem. op. cit., 2007, p. 160.
14
Cf. ASCHER, François. “Metropolização e transformação dos centros das cidades”. In:
ALMEIDA, Marco Antonio Ramos (ap.). Os centros das metrópoles: reflexões e propostas
para a cidade democrática do século XXI. São Paulo: Editora Terceiro Nome: Viva o Centro:
Imprensa Oficial do Estado, 2001. p. 59-68.
15
Idem, op. cit., 1995, p. 233.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 107
transporte coletivo, a perda da aura da cidade antiga, o consumo de
energia imposto pelas grandes distâncias. Mas esta é a cidade que se
apresenta hoje e permanecerá num futuro próximo e onde a
nostalgia de épocas passadas em nada ajudaria na resolução dos
problemas contemporâneos.
[...] uma volta ao passado reflete um princípio
reacionário que é indesejável em si mesmo, e é irreal
em termos das políticas que poderia implicar. É uma
ilusão crer que poderíamos retornar a um estilo de vida
de um povo ou de uma vida centrada regionalmente,
onde tudo o que fazemos sucede localmente. [...] A
divisão do trabalho não se reverterá e o emprego
utilizará espaços urbanos cada vez mais extensos. Não
há volta atrás na demanda por uma maior diversidade
cultural, e a cultura e o ócio seguirão gerando um
desenvolvimento a grande escala.
16
Assim, Ascher sintetiza a sua pesquisa e discurso normativo
em dez princípios para o urbanismo da cidade atual e futura. Com
eles tenta dar conta das novas características e fenômenos que
afetam a metápole e que colocam à mesa novos e complexos
desafios de desenho, controle, planejamento e gestão urbanos. Na
verdade, são mais que princípios, são teses refundadoras do pensar e
fazer urbanístico sobre novas bases, sob a influência dos paradigmas
filosóficos e científicos surgidos na segunda metade do século XX.
São atitudes de reflexão, crítica, revisão e ultrapassagem tanto dos
modelos racionalistas, funcionalistas, universais e rígidos quanto dos
irracionalistas, aleatórios, permissivos. Abaixo segue a lista do dez
princípios de seu neourbanismo
17
e seus respectivos significados,
listado na mesma ordem e com os mesmos títulos do seu livro Novos
Princípios do Urbanismo
18
1) «Elaborar e dirigir projetos num contexto incerto do
planejamento urbano à gestão estratégica urbana» : gestão mais
reflexiva e projetos de natureza variada, que integram a crescente
:
16
ASCHER, François. Ciudades con velocidad y movilidad múltiples: un desafío para los
arquitectos, urbanistas y políticos. ARQ (Santiago), Santiago, nº 60, 2005.
17
Assim denominado para se diferenciar do Novo Urbanismo norte-americano.
18
Cf. ASCHER, op. cit., 2002, p. 71-85.
108 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
dificuldade de reduzir a incerteza e o azar. O projeto, sendo parte do
núcleo desse urbanismo, mostra as possibilidades e limitações de
ação, é ao mesmo tempo analisador e ferramenta de negociação. A
gestão atua não-linearmente, de modo heurístico, interativo,
incremental e recorrente.
A gestão estratégica urbana não é, pois, um urbanismo
descafeinado, com ideias sem valor; é o contrário das
teses espontaneístas, dos postulados do caos criativo e
das ideologias simplistas do “mercado radical”. Pelo
contrário, trata de aproveitar de forma positiva todo
tipo de acontecimento e evolução relacionado com
seus objetivos estratégicos.
19
2) «Dar prioridade aos objetivos frente aos meios das
regras da exigência às regras do resultado» : estabelecimento de
normas qualitativas que facilitem e limitem ao mesmo tempo, que
estimulem o atores públicos e privados a encontrar as melhores
formas de cumprir os objetivos definidos a priori, daí a necessidade
aproveitar a criatividade e talentos diferentes existentes entre os
atores participantes.
Esta complexidade das normas se faz necessária pela
diversidade crescente de territórios e costumes
urbanos, pelo aumento da exigência de qualidade, pela
maior dificuldade de aplicar decisões igualitárias e a
necessidade de substituí-las por enfoques mais sutis,
menos estereotipados, baseados no princípio de
equidade.
20
3) «Integrar os novos modelos de resultado da
especialização espacial à complexidade da cidade de redes» : não
busca simplificar realidades complexas, mas as integrar pela
variedade, flexibilidade e capacidade de reação. Urbanisticamente,
isso traduz-se na diversidade funcional, multicentralidade,
polivalência dos sistemas urbanos até para responder às questões
ambientais de economia de recursos naturais e conservação do
patrimônio natural e cultural.
O avanço da ciência e da técnica nos diversos campos
19
Ibidem, p. 73.
20
Ibidem, p. 74.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 109
do urbanismo fará igualmente necessária a renovação
dos conhecimentos profissionais e dos dispositivos
pluridisciplinares permanentes (serviços técnicos
locais, gerências de urbanismo, organismos de
ordenação e gabinetes técnicos multidisciplinares).
21
4) «Adaptar as cidades às diferentes necessidades dos
equipamentos coletivos a equipamentos e serviços
individualizados» : instituição de equipamentos mais variados e
personalizados integrados em redes mais complexas apoiadas
largamente nas novas técnicas de informação e comunicação para
dar conta do processo de individualização e diversificação social.
5) «Conceber os lugares em função dos novos uso sociais
dos espaços simples aos espaços múltiplos» : a crescente atuação
conjunta entre instituições públicas e privadas e o uso das
tecnologias de comunicação transtorna os significados dos espaços e
seus estatutos jurídicos e práticos. O advento de espaços virtuais,
“ciberespaços” ou “quase-espaços” públicos permite variadas
práticas num mesmo lugar, logo o urbanismo deve levar em
consideração essas estruturas de socialização e conceber
hiperespaços que combinem o real e o virtual.
O fato de ter em conta os costumes sociais leva os
projetistas a incluir progressivamente a
responsabilidade de exploração e gestão dos espaços
e dos equipamentos urbanos. Isto conduz à
redefinição do exercício e os limites da profissão de
urbanista, posto que este deve incorporar as
exigências da gestão futura dos espaços que
contribuíram a criar.
22
6) «Atuar numa sociedade muito diferenciada do interesse
geral substancial ao interesse geral procedimental» : a crescente
dificuldade em se concretizar interesses coletivos amplos e estáveis
impõe aos decisores, políticos, urbanistas e outros agentes o desafio
de procurar construir (ação procedimental), sob diversas formas
participativas, o interesse geral que possui uma importância
substantiva objetiva mas que não se sustenta mais pelo simples
21
Ibidem, p. 76.
22
Ibidem, p. 78-79.
110 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
apelo às maiorias.
Estas gestões procedimentais modificam a natureza da
intervenção dos experts e profissionais e, em concreto,
do trabalho do urbanista. [...] Ademais, cada vez lhes
resulta mais difícil adaptar sua intervenção ao interesse
geral, e devem por seus conhecimentos ao serviço de
diversos grupos e atores, o que expõe de uma forma
nova as questões de ética e deontologia neste campo
profissional. O neourbanismo fomenta a negociação e
o compromisso frente à aplicação da regra da maioria,
o contrato frente à lei, a solução ad hoc frente à
norma.
23
7) «Readaptar a missão dos poderes públicos da
administração à regulação» : ir além das medidas repetitivas, tentar
resolver os problemas caso a caso, achar soluções adaptadas a cada
situação particular e, em conjunto, definir as regras do jogo no qual
atuarão os atores, não os opondo, mas conciliando-se a eles, em
sinergia e arbitrando em situações inextricáveis e entravadas.
O neourbanismo dá prioridade à regulação sobre a
administração. Os poderes público tentam garantir o
funcionamento “regular” dos sistemas de atores
urbanos; atuam para limitar os problemas de
funcionamento e as incoerências. Impulsionam a
gestão procedimental do interesse geral. Na medida
do possível fazem fazer em lugar de fazer, para
aproveitar os conhecimentos e a experiência dos
especialistas. Mas também controlam, avaliam,
corrigem, compensam e, em ocasiões, sancionam.
24
8) «Responder à variedade de gostos e demandas de uma
arquitetura funcional a um desenho urbano atrativo» : o
neourbanismo não nega as complexidades e variedades estilística e
histórica que porventura existam na cidade, pelo contrário, vê nelas
uma oportunidade de criar uma cidade “à la carte, de múltiplas
sensibilidades e estéticas, e procura utilizar-se das dinâmicas de
mercado como meio de preservação do patrimônio construído de
cidades antigas.
23
Ibidem, p. 80.
24
Ibidem, p. 81.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 111
O novo urbanismo aproveita as distintas arquitetura e
as formas urbanas para criar cidades diversificadas,
oferecer alternativas e fazer possíveis os câmbios a
escala metapolitana. De certo modo, confere uma
importância renovada à questão dos estilos
arquitetônicos separando-os das questões de
funcionalidade e morfologias urbanas. Mas também
inscreve estas opções estéticas quando afetam a
espaços públicos em procedimentos próprios do
debate democrático, modificando o marco de atuação
dos criadores e sua relação com o público e o
político.
25
9) «Promover uma nova qualidade urbana das funções
simples ao urbanismo multisensorial» : ter como objetivo a
construção de uma cidade com espaços públicos multifuncionais e
multisensoriais, aspectos visuais, sonoros, táteis e olfativos, como
resposta à complexidade e à variedade das práticas urbanas e à
necessidade de uma maior integração das pessoas portadoras de
deficiências sensoriais e motoras.
10) «Adaptar a democracia à terceira revolução urbana do
governo das cidades à governança metapolitana» : Em lugar de
governos centralizados, firmes e fortes que imponham regras e as
faz cumprir, o neourbanismo propõe um sistema onde estariam
reunidos instituições e representantes da sociedade civil para
elaborar e implementar as políticas públicas, apoiado em lógicas
“tecnoeconômicas” privadas e participação.
A governança urbana supões um enriquecimento da
democracia representativa por novos procedimentos
deliberativos e consultivos. Se faz necessária uma
relação mais direta com os cidadãos e ao mesmo
tempo formas democráticas de representação a escala
metapolitana, que é a escala a que devem tomar-se as
decisões urbanas estruturais e estratégicas. Esta
nivelação da democracia local é uno dos elementos
essenciais do futuro das cidades e das sociedades
ocidentais.
26
25
Ibidem, p. 82-83.
26
Ibidem, p, 84.
CONCLUSÃO
omo, numa sociedade extremamente diferenciada,
individualizada e completamente inserida na rede da
mercantilização e competição generalizada, manter o mínimo
de coesão necessária ao funcionamento da democracia, implementar
a governabilidade e levar a efeito medidas de amplo alcance? Como
administrar e integrar os diversos conflitos, visões de mundo, éticas
ou até mesmo paradigmas diferentes, e por vezes opostos, sem que
suas especificidades se percam ou sejam ignoradas? Como valorá-los
e arbitrar entre eles? Qual cidade resulta das respostas dadas e como
fazê-la?
É sob estas indagações tão amplas quanto cruciais que
François Ascher erige o seu discurso. Pretende com atualizar os
conceitos e métodos que circundam o urbanismo. Retorna aos
princípios para chegar a recomendações de longo alcance. Assim,
realiza um ciclo completo de reflexão, partindo da caracterização da
sociedade contemporânea, passando pelos conceitos em cena hoje,
cidadania, dispersão urbana, governança, gestão, para chegar
finalmente aos novos princípios do urbanismo para a sociedade que,
segundo ele, os demanda.
Como vimos, Ascher formula seu programa urbanístico a partir
de duas contribuições epistemológicas básicas: as ciências “não-
lineares” surgidas da metade do século XX em diante — basicamente
teoria dos jogos, da complexidade e cibernética e o know-how das
teorias científicas gerenciais de companhias privadas.
As ciências “não-lineares” forneceram a Ascher a
conceitualização necessária para que ele pudesse formar o seu
próprio paradigma e, deste modo, enfrentar a “crise” em que se
C
114 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
encontra o urbanismo e poder transcender os seus predecessores: o
urbanismo moderno com seu caráter positivista, linear e absoluto; e
as teorias pós-modernas que elogiavam o caos da cidade ou
regrediam ao passadismo. Igualmente faz uma crítica das políticas
massificantes do Estado keynesiano por um lado, e do laissez-faire
inconseqüente das correntes neoliberais radicais, por outro. Feita as
devidas críticas, passa então a montar o “quebra-cabeça” dos fatos
usando o próprio paradigma.
Já o paralelo entre gestão de cidade e gestão de empresa e a
transposição de ferramentas, conceitos e métodos organizacionais
corporativos como gestão estratégica, governança e projeto de
empresa utilizado por Ascher, conforme exposto nos capítulos
precedentes, não é invenção, nem exclusividade sua. Vem sendo
utilizado com freqüência nos últimos anos por diversos autores e
instituições como discurso de adaptação da cidade ao contexto
atual de globalização econômica e competição urbana
1
Mas se estes efetuam o «perfeito e imediato rebatimento,
para a cidade, do modelo de abertura e extroversão econômicas
propugnado pelo receituário neoliberal para o conjunto da economia
nacional»
.
2
É na adoção de uma mentalidade estratégica por parte dos
poderes públicos, órgãos governamentais e instituições de
planejamento urbano que Ascher acredita estar o caminho da
governabilidade e do controle do desenvolvimento urbano. Mas, ao
contrário do oximoro “planejamento estratégico” utilizado no
passado, onde eram definidos os fins e os meios de uma vez, entraria
, Ascher é mais moderado e enfatiza aspectos diferentes
da teoria administrativa empresarial. Se os primeiros dizem que a
cidade deve ser vendida como uma mercadoria e que ela deve se
submeter às lógicas do mercado, desenvolvendo sua produtividade e
competitividade, ao segundo interessa a capacidade das empresas
de ajustarem-se às contingências e utilizarem racionalidades
múltiplas a fim de alcançarem os objetivos previamente definidos, ou
seja, seu caráter estratégico.
1
Cf. VAINER, Carlos B. Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do
Planejamento Estratégico Urbano. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO,
Ermínia. A Cidade do Pensamento Único: Desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes,
2000, p. 75-103.
2
Ibidem, p. 80.
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 115
em ação agora a “gestão estratégica”, os fins constantemente
submetidos a avaliações e reflexões e os meios tateados e
formulados pragmaticamente ao longo do tempo.
Este processo estaria condizente com a complexidade e a
incerteza oferecidas tanto pela sociedade “hipertexto” quanto pelo
capitalismo “cognitivo” decorrentes de seus entrelaçamentos com
as novas tecnologias. A primeira seria complexa por se atomizar em
indivíduos multipertencentes a microgrupos instáveis e não
manifestar mais comportamentos uniformes, previsíveis e
duradouros. A segunda por apresentar dinâmicas aceleradas e
pulverizadas em redes locais, regionais, nacionais e globais difíceis de
prever.
Ao longo de sua narrativa analítica, constatamos que, na sua
tentativa de construir um mundo factível, sem cair na utopia ou “nas
ideias fora do lugar”, o estudioso francês acaba por admitir grande
parte do cenário contemporâneo como inelutáveis. “Não há volta”,
diz ele. Caberia a nós aprendermos com as situações e as
ordenarmos para que não sucumbam na anomia absoluta e se
tornem obstáculos ao bem viver. Ascher aceita e assume a economia
globalizada, a diferenciação social, a individualização, a dispersão
urbana cada vez mais pujantes. Segundo ele, são processos da
modernização que fazem parte há muito tempo do vir-a-ser da
sociedade humana e que se aprofundam cada vez mais. Lutar contra
é assumir uma atitude “reacionária” e “indesejável”. Cumpre
fornecermos os meios e incentivos propícios ao seu
desenvolvimento “reflexivo”.
A gestão urbana estratégica seria, então, o instrumento da
governança metapolitana para pensar e atuar na cidade, baseando-
se num compromisso previamente estipulado. Sua natureza
procedimental não significaria propriamente um market lead
planning, mas o mercado consistiria num fator a ser levado em
consideração, não de forma negativa, na organização dos espaços e
na elaboração das diretrizes. A governança metapolitana e a gestão
urbana envolveriam, assim, participação de atores externos à esfera
pública, trazendo consigo todas as contradições e interesses
inerentes. É aí que surgem as dificuldades ou, nas palavras de Ascher,
os “desafios”.
Para solucioná-los, Ascher adota dois princípios éticos para
116 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
embasar as ações coletivas: o princípio de “igualdade desigual” de
Rawls e o “agir comunicativo de Habermas. O primeiro como
justificação, numa sociedade eqüitativa em oportunidades, das
desigualdades materiais desde que com elas haja benefício à
sociedade em geral; e o segundo como meio de instigar e envolver
os diversos atores a encontrar racionalmente um apoio comum onde
pudessem solidificar um “interesse geral” suficientemente coeso e
abrangente, permitindo a formação de um “compromisso” ou
“contrato” e assim garantir todo o desenrolar de um processo
durável de construção da cidade.
Ora, apenas quando estes dois princípios estiverem
efetivamente sendo seguidos é que então se poderá falar em
governança e democracia participativa plenas. Mas para isso
teríamos que esperar, usando os termos de Rawls, pela
benevolência”, “desinteresse mútuo”, “objeção de consciência” de
todos os membros da sociedade, o que, evidentemente, está longe
de acontecer.
A tendência, mesmo a curto e médio prazos, é a agudização
dos conflitos, injustiças, segregações e desigualdades. O aumento da
importância do conhecimento na economia capitalista aliado à
mobilidade do capital só aprofunda a divisão social e a concentração
de renda. As metrópoles, como acontece desde o século XIX,
continuarão a ser o palco ostensivo desses fenômenos dissonantes e
desagregadores; do alto luxo contrastado à miséria absoluta; dos
condomínios fechados, arborizados e vigiados às favelas com esgoto
a céu aberto.
Além desses aspectos estruturais, outros fatores contribuirão
para a intensificação dos problemas urbanos, metropolitanos ou não,
principalmente decorrentes da migração forçada. As constantes
guerras e violações dos direitos humanos criam grandes levas de
refugiados, como acontece na África e Oriente Médio. As crises
econômicas fazem evaporar parte da riqueza e do poder aquisitivo
dos mais pobres, além de restringir a oferta de emprego nas cidades,
evidenciado recentemente em países tão diferentes quanto
Argentina e Japão. A contínua degradação ambiental e o
aquecimento global pelo efeito estufa, poluição e desmatamento,
causam a queda da produtividade das lavouras e até mesmo a
desertificação de terras antes agricultáveis, expulsando mais e mais
PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC 117
trabalhadores das zonas rurais em direção aos centros urbanos,
demonstrado pela intensificação da seca no sertão nordestino.
A percepção da migração de um grande contingente
populacional às metrópoles só faz agravar os sentimentos de
insegurança, intolerância e xenofobia de seus habitantes. A crise
econômica global originada em 2008 e o rescaldo da recessão deram
um exemplo disso ao fomentar a demanda por políticas
antimigratórias nos países desenvolvidos. Os fenômenos
demográficos, as crises econômicas em cadeia e os desastres
naturais são eventos que acontecem num ritmo acelerado. O fato é
que como os governos locais não são capazes, ou não sabem lidar,
ou são lentos demais para enfrentar tais fenômenos, a expectativa
de que as cenas dos distúrbios das periferias francesas se repitam
com maior freqüência em outras partes do mundo.
Ficou claro, na sua sistematização teórica, que Ascher tem em
mente as grandes cidades e a sociedade da Europa ocidental quando
fala em gestão urbana, projeto, mobilidade, governança. Com o seu
crescimento populacional em fase de estabilização, baixa carência de
infra-estrutura básica, educação e saúde de alto nível, problemas
sociais de escala e gravidade não elevados, serviços de transporte
coletivo eficientes, grande penetração dos novos meios de
telecomunicação, presença de empresas de alta tecnologia e
finanças atuando fortemente num cenário internacional, é
compreensível a ênfase no urbanismo enquanto gestão e
comunicação, focado no curto prazo, na agilidade, na flexibilidade,
nos contratos ad hoc.
De certa, é uma afirmação do abandono do papel heróico do
urbanista, da incapacidade do urbanismo em se antecipar às
transformações conjunturais. O urbanismo perde a sua antiga aura
demiúrgica e visionária e passa a esperar pela sociedade ou, no
máximo, a acompanhá-la pari passu. Menos ciência, menos técnica, o
urbanismo volta-se à política. Menos planejamento e prognósticos,
os urbanistas devem responder às vicissitudes através do projeto. Os
dados da realidade que fundamentariam o projeto interessam menos
que a opinião dos stakeholders que lhe dá a legitimação de sua
existência.
Apesar do não aprofundamento e detalhamento prático de
suas propostas, o sociólogo francês contribui ao debate geral sobre
118 PARADIGMAS DO URBANISMO: A CONTRIBUIÇÃO DE FRANÇOIS ASCHER VICENTE NASPOLINI PGAU-CIDADE/UFSC
o urbanismo adequado aos dias de hoje e de amanhã. As questões
que levanta são realmente de grande importância e suas respostas a
elas no mínimo devem ser levadas em conta, nem que seja para
contrapor-se a elas.
Contudo, após toda a análise efetuada neste trabalho, surgem
algumas questões que Ascher não respondeu e nem procurou
responder. Esse urbanismo gerencial, de projetos, de contratos, é
passível de ser aplicado em outros contextos que não o europeu
ocidental? Será viável a aplicação desse novo paradigma
independentemente das condições materiais, históricas, políticas ou
sociais de determinado local? As especificidades de cada cidade,
região, país impede a simples e pura transferência de lógicas,
métodos e valores de uma realidade a outra. Mas então, deve-se
começar do zero ou pode haver adaptações, e de que tipo? Todas
essas questões exigiriam um outro trabalho para tentar respondê-
las. Espero, com esta pesquisa, ter contribuído à discussão que
porventura se venha a realizar sobre o urbanismo mais adequado
se é que ele existe à realidade brasileira.
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