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ELKE OTTELSE
AS TRAMAS DOS TAPECEIROS NARRADORES:
TÉCNICA E CRIAÇÃO
FLORIANÓPOLIS - SC
2009
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA UDESC
CENTRO DE ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
ELKE OTTELSE
AS TRAMAS DOS TAPECEIROS NARRADORES:
TÉCNICA E CRIAÇÃO
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de
Pós–Graduão em Artes Visuais, Linha de Pesquisa em
História, Teoria e Crítica da Arte; do Centro de Artes da
Universidade do Estado de Santa Catarina.
Orientadora: Profa. Dra. Sandra Makowiecky
FLORIAPOLIS - SC
2009
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ELKE OTTELSE
AS TRAMAS DOS TAPECEIROS NARRADORES:
TÉCNICA E CRIAÇÃO
Esta dissertação de mestrado em História, Teoria e Crítica da Arte, foi considerada
_______________ pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Centro de Artes da
Universidade do Estado de Santa Catarina.
BANCA EXAMINADORA
Orientador:
Profa. Dra. Sandra Makowiecky
UDESC-SC
Avaliador:
Profa. Dra. Rosângela Cherem
UDESC-SC
Avaliador Externo:
Prof. Dr. Rogério Medeiros
UFRJ-RJ
Avaliador Suplente:
Profa. Dra. Sandra Ramalho e Oliveira
UDESC-SC
Florianópolis, ___ de junho de 2009.
Aos meus pais Gerhardt e Inge Otte, que
incentivaram minhas habilidades manuais e ao meu
esposo, Sérgio Hülse que entende e incentiva minha
pesquisa. Aos meus filhos Eduardo e Augusto que
participaram nos bastidores.
AGRADECIMENTOS
Ao meu pai por me ensinar a necessidade de lutar e persistir naquilo que acreditamos.
À Universidade do Estado de Santa Catarina, por me propiciar a oportunidade de
pesquisar esse tema tão relevante e pouco explorado no Brasil.
Aos membros da Banca Examinadora, Profa. Dra. Sandra Makowiecky, Profa.
Dra. Rosângela Cherem e Prof. Dr. Rogério Medeiros por aceitarem o convite e, apesar do
pouco contato com o conteúdo, serem incanveis em trazer tantas e tão ricas colaborações.
Ao meu esposo Sérgio Hülse por entender e partilhar nosso tempo com leituras e
escrituras, servindo, acredito eu, como estímulo no nosso relacionamento.
Aos meus filhos Eduardo e Augusto Hülse por colaborarem em diversas situações
quando as habilidades manuais no tear não foram suficientes para dominar o novo
instrumento de trabalho, qual seja o computador.
À amiga Profa. Dra. Ana Maria Cambruzzi por compartilhar comigo desde as
incertezas do pré-projeto de pesquisa até a reta final.
Aos colegas tapeceiros Henrique Schucman, Jean Pierre Larochette, Mary Lane,
Sonia Moeller e Clara Fernandes por colaborarem sempre que precisei de apoio
bibliogfico.
The life so short, the crafts so long to learn.
Hipocrates
HÜLSE, Elke O. As Tramas dos Tapeceiros Narradores: Técnica e Criação. 2009. 143 f.
Dissertação (Mestrado em Artes Visuais, Linha de Pesquisa em História, Teoria e Crítica da
Arte) Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV) do Centro de Artes
(CEART) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Florianópolis, S.C.
RESUMO
A tapeçaria é uma das mais antigas linguagens artísticas que ao longo dos séculos vem se
manifestando em regiões distintas do mundo. Este trabalho tem por objetivo observar
anacronicamente a série de tapeçarias da Idade Média, denominadas A Dama e o Unicórnio e
exemplares de tapeçarias contemporâneas, partindo ambas de um cartão e usando materiais e
cores compatíveis com sua época de execução. Num segundo momento pretende analisar a
figura do narrador, enunciado por Walter Benjamin, fazendo um paralelo com o tapeceiro
quando esse repassa o conhecimento técnico aos jovens tapeceiros. Esse processo se repete ao
longo dos culos e adapta-se às realidades das diversas regiões onde é executado.
Observando muitos exemplares de imagens de tapeçarias contemporâneas é possível perceber
um dlogo com a pintura. Tanto o trompe l’oeil como a retícula são características que se
manifestam nas duas linguagens. Talvez na Idade Média a pintura estivesse a serviço da
tapeçaria, mas ao longo dos tempos esse processo se modificou e hoje a tapeçaria busca sua
identidade. A primeira hipótese decorrente dessa suposta mudança ocorrida ao longo dos
culos é a anacronia que Georges Didi-Huberman descreve em várias outras manifestações
artísticas. A segunda hipótese é de que os recursos técnicos usados na Idade Média ainda hoje
o o referencial para o tapeceiro contemporâneo. Talvez o simulacro seja a melhor definição
na busca pela identidade da tapeçaria contemporânea. A terceira hipótese mostra que a
tapeçaria exige um tempo exaustivo de aprendizagem, outro de criação do cartão e da
execução da obra. Talvez as pequenas tapeçarias ou mini-têxteis sejam a solução encontrada
na atualidade tanto no fator tempo como custo final da obra. A pesquisa é teórica, mas se
completa através da análise das imagens que possibilita uma aproximação maior com o
processo. Trata-se de uma pesquisa básica e as referências teórico-metodológicas
fundamentam-se na realidade do tapeceiro brasileiro que tem acesso aos conteúdos via
internet, livros e revistas importadas, mas existem carências de trocas vivenciais. Apresentar
essa pesquisa talvez renove e instigue o tapeceiro local.
PALAVRAS-CHAVE: Tapeçaria; Tapeceiro; Trama; Narrador.
ABSTRACT
Tapestry is one of the oldest artistic languages that survived through time and is revealing in
the world’s distinct regions. This work aims to watch anachronically the Middle Ages
tapestries’ series denominated The Lady and the Unicorn and examples of contemporary
tapestries, both starting from a card and using materials and colors compatible to its time of
execution. In a second moment it intends to analyze the narrator’s figure, enunciated by
Walter Benjamin, doing a parallel with the tapestry weaver when this passes along the
technical knowledge to young tapestry weavers. This process repeats itself through time and
is adapted to the realities of the many regions where it is done. Watching many examples of
contemporary tapestries’ images it is possible to perceive a dialogue with the painting. Such
the trompe l’oeil as the reticule are features that appear in both languages. Maybe in the
Middle Age painting was at service of the tapestry, but through time this process has changed
and today tapestry searches its own identity. The first hypothesis due to this supposed change
occurred in the centuries is the anachrony which Georges Didi-Huberman describes in many
other artistic manifestations. The second hypothesis is that the technical resources used in the
Middle Age still are the reference to the contemporary tapestry weaver. Perhaps semblance is
the best definition in the search for the contemporary tapestry’s identity. The third hypothesis
shows that the tapestry demands an exhaustive learning time, other of card creation and work
execution. Maybe the small tapestries or mini-textiles are the solution found nowadays such
in factor time as the work’s final costs. The research is theoretical, but is only completed
through analysis of images which allow a bigger approximation to the process. This is a basic
research and the theoretical-methodological references are structured in the Brazilian tapestry
weaver’s reality that has access to this content via Internet, books and imported magazines;
however there are lacks of living changes. To present this research maybe renews and
instigates the local tapestry weaver.
KEYWORDS: Tapestry; Tapestry weaver; Weft; Narrator.
LISTA DE FIGURAS
Fig.1 – Castelo de Boussac................................................................
..............................
23
Fig. 2 – O Tato (1480/1490)................................................................
............................
30
Fig. 3 – O Paladar (1480/1490) ................................................................
......................
31
Fig. 4 – O Olfato (1480/1490)................................................................
.........................
33
Fig. 5 – A Audição (1480/1490) ................................................................
......................
34
Fig.6 – A Visão (1480/1490) ................................................................
...........................
36
Fig.7 – A Mon Seul Désir (1480/1490)................................................................
37
Fig.8 – Archie Brennan, Princesa Di encontra-se com Moça Medieval
.........................
44
Fig.9 – Detalhe da tapeçaria no 5 de A Caça ao Unicórnio................................
..............
44
Fig.10 – Don Burns, Detail ................................................................
............................
45
Fig.11 – Detalhe da tapeçaria no 2 de A Caça ao Unicórnio................................
45
Fig.12 – Melinda Piesse, Reflection................................................................
................
46
Fig.13 – Detalhe da Visão, de A Dama e o Unicórnio................................
......................
46
Fig.14 – Lynn B. Mayne, Mille Fleurs Misery. ................................
..............................
47
Fig.15 – Detalhe do Paladar, de A Dama e o Unicórnio.................................
.................
47
Fig.16 – Sonia Moller, My Blue Unicorn................................................................
........
48
Fig.17 – Detalhe do Tato, de A Dama e o Unicórnio ................................
.......................
48
Fig.18 – Subdivisões do urdimento. ................................................................
................
58
Fig.19 – Cinco exercícios de degradê. ................................................................
.............
59
Fig.20 – Degradê em figuras geométricas planas.................................
............................
61
Fig.21 – Figuras geométricas em Smyrna. ................................................................
.......
62
Fig.22 – Exercícios de interpenetrações................................................................
...........
63
Fig.23 – Cartão final do primeiro Caderno de Aluno em execução ................................
..
64
Fig.24 – Ernesto Aroztegui, Jorge Luis Borges ................................
.............................
71
Fig.25 – Ernesto Aroztegui, Golda Meir................................................................
........
71
Fig.26 – Ernesto Aroztegui, Mahatma Ghandi ................................
..............................
72
Fig.27 – Ernesto Aroztegui, Albert Einstein ................................................................
..
73
Fig.28 – Henrique Schucman, Cidadíndio................................................................
.....
76
Fig.29 – Henrique Schucman, Mirada Indígena................................
............................
76
Fig.30 – Henrique Schucman, Interferência................................................................
..
76
Fig.31 – Henrique Schucman, Meninas da Guerra................................
........................
77
Fig.32 – Henrique Schucman, detalhe de Meninas da Guerra................................
.......
79
Fig. 33 – Henrique Schucman, Ernesto Aroztegui........................................................ 80
Fig. 34 – Jean Pierre Larochette, Spirals…………………………………………..... 82
Fig. 35 – Yael Lurie, cartão de Árvore da Vida com Salamandra e Phoenix................ 83
Fig. 36 – Jean Pierre Larochette, Árvore da Vida com Salamandra e Phoenix.......... 84
Fig. 37 – Jean Pierre Larochette, detalhe de Árvore da Vida com Salamandra e
Phoenix.............................................................................................................. 86
Fig. 38 – zsa Polgár, O Guarda Chuva..................................................................... 92
Fig.39 – Rózsa Polgár, Amassado................................................................................. 93
Fig.40 – Christine Laffer, Cloth of Construction……………………………………. 95
Fig.41 – Joan Baxter, Migdale Kilt………………………………………………….. 96
Fig.42 – Monique Lehman, Heartsong of American Hero Mattie Stepanek………… 98
Fig.43 – Shelley Socolofsky, Well of Surrender……………………………………… 99
Fig.44 – Shelley Socolofsky, Soliloquy......................................................................... 101
Fig.45 – Marc Chagall, detalhe de Die Harlekinfamilie…………………………….. 106
Fig.46 – Pablo Picasso, Guernica................................................................................. 109
Fig.47 – Joan Miro, Tapeçaria New York, Port Authority………………................... 111
Fig.48 – Archie Brennan, Female Head…………………………………………….. 116
Fig.49 – Archie Brennan, Standing Male Nude…………………………………... 117
Fig.50 – Archie Brennan, Drawing Series-Grid…………………………………….. 118
Fig.51 – Archie Brennan, Disassembled Nude……………………………………..... 119
Fig.52 – Archie Brennan, Desconstruct-Reconstruct…………………………….….. 120
Fig.53 – Jane Kidd, Possession: Imprint-Impact#1………………………………….. 122
Fig.54 – Jane Kidd, Possession: Imprint-Impact#2………………………………….. 122
Fig.55 – Sarah Swett, Half-Passed………………………………………………….. 124
Fig.56 – Coptic Tapestry (século V e VI d.C.).............................................................. 128
Fig.57 – Detalhe do Tato, de A Dama e o Unicórnio..................................................... 129
Fig.58 – Detalhe do Tato,de A Dama e o Unicórnio...................................................... 129
Fig.59 – Detalhe do Paladar, de A Dama e o Unicórnio............................................... 130
Fig.60 – Detalhe do Paladar, de A Dama e o Unicórnio............................................... 130
Fig.61 – Detalhe do Olfato, de A Dama e o Unicórnio.................................................. 130
Fig.62 – Detalhe do Olfato, de A Dama e o Unicórnio.................................................. 130
Fig.63 – Detalhe da Audição, de A Dama e o Unicórnio............................................... 131
Fig.64 – Detalhe da Audição, de A Dama e o Unicórnio............................................... 131
Fig.65 – Detalhe da Visão, de A Dama e o Unicórnio................................................... 132
Fig.66 – Detalhe da Visão, de A Dama e o Unicórnio................................................... 132
Fig.67 – Detalhe de A Mon Seul Désir, de A Dama e o Unicórnio................................ 133
Fig.68 – Detalhe de A Mon Seul Désir, de A Dama e o Unicórnio................................. 133
Fig.69 – Archie Brennan, Defining Tapestry............................................................... 134
Fig.70 – Archie Brennan, Drawing Series – K Torso Nude-Rear............................... 135
Fig.71 – Archie Brennan, Rules, Rules......................................................................... 135
Fig.72 – Jean Pierre Larochette, Show and Tell…………………………………...... 136
Fig.73 – Henrique Schucman, Mei-Wong It is a Bird………………………………… 137
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................................15
CAPÍTULO I: A Dama e o Unicórnio e a tapeçaria na atualidade...................................21
1.1 O Resgate Histórico...............................................................................................22
1.2 A Tapeçaria: O Tato...............................................................................................29
1.3 A Tapeçaria: O Paladar.........................................................................................30
1.4 A Tapeçaria: O Olfato....................................................................................... 32
1.5 A Tapeçaria: A Audição .................................................................................... 34
1.6 A Tapeçaria: A Visão ........................................................................................ 35
1.7 A Tapeçaria: Meu Único Desejo........................................................................ 37
1.8 A Tapeçaria A Dama e o Unicórnio na Atualidade............................................ 38
CAPÍTULO II: Tapeçaria Contemporânea.................................................................... 40
2.1 Taparia Contemporânea e o Simulacro........................................................... 41
2.2 O Narrador e o Mestre Tapeceiro ...................................................................... 49
2.3 A Tapeçaria como Exercício Perceptivo............................................................ 55
2.4 Os Cadernos de Aluno....................................................................................... 55
CAPÍTULO III: Tapeceiros Contemporâneos............................................................... 67
3.1 Luiz Ernesto Aroztegui, sua hisria e obra ....................................................... 68
3.2 Henrique Schucman, sua história e obra............................................................ 75
3.3 Jean Pierre Larochette, sua história e obra......................................................... 81
CAPÍTULO IV: Tapeçaria x Pintura ............................................................................. 88
4.1 O Trompe l’oeil na Tapeçaria............................................................................. 89
4.2 Artistas Plásticos do Século XX e suas Tapeçarias.............................................102
4.3 A Retícula na Tapeçaria.......................................................................................113
4.4 O Mini-Têxtil Anacrônico...................................................................................126
CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................138
REFERÊNCIAS...............................................................................................................140
15
INTRODUÇÃO
Ao trabalhar com tapeçarias, percebe-se uma forma de linguagem e expressão que
promove uma relação com o outro e com quem executa o trabalho. Os diversos
materiais, como linhas de algodão, lã e seda, os sintéticos e outros recursos não
convencionais, quando tramados produzem texturas que remetem ao passado e, às
vezes, levam ao futuro. Observando-se na história da tapeçaria uma obra da Idade
Média Ocidental e paralelamente tapeçarias contemporâneas, encontram-se muitas
semelhanças e algumas diferenças no desenho desenvolvido. Observando os recursos
têxteis hoje utilizados, pode-se considerar que a tapeçaria mudou ao longo dos séculos?
O leque de cores hoje disponível, e os materiais de texturas diversas podem ser um
diferencial no trabalho do tapeceiro contemporâneo? Como este poderá tirar proveito de
todas as possibilidades a favor da tapeçaria? O que atrai o espectador da atualidade para
próximo da tapeçaria não é apenas o efeito visual das composições, mas também o tátil.
Entende-se que o caminho para a realizão do processo criativo passa pelo
conhecimento técnico, fazendo do tapeceiro o sujeito criador. Apresentar essa proposta,
enquanto pesquisa é falar de uma trama de vida que cria e, enquanto cria, faz uso da
técnica no tear. Pergunta-se: de que forma o conhecimento técnico, assim como a
pesquisa histórica, pode contribuir para o processo criador do tapeceiro?
A tapeçaria em tear de auto-liço
1
é conhecida desde antes de Cristo. Assim como na
hisria das Artes Plásticas, a tapeçaria também teve momentos de glórias e crises.
Conhecer esta história se faz necessário para melhor entender-se o assunto aqui
proposto, qual seja, técnica e criatividade na tapeçaria.
Voltando [...] na história da tapeçaria, em mais de 3000 anos, vamos ver que somente
nos últimos 450 anos tem existido o papel do pintor como desenhista da tapeçaria
2
(tradução da autora). Isto proporcionalmente é um período curto, mas desde o século
XVI a clientela desta atividade tem selecionado artistas normalmente de renome, mas
sem experiência ou habilidades e prática na tapeçaria para preparar desenhos que
1
Os liços, ou seja, os suportes que seguram os fios do urdume trabalham de forma independente.
2
[...] of the history of tapestry weaving over more than 3000 years will show that it is only during the last
450 that there has existed a role for the painter as a designer of tapestry (BRENNAN, 1980, p.33).
16
conseqüentemente eram tecidos. Até o início do século XX, na grande maioria, existia
um pintor que criava uma pintura e esta, por sua vez, era re-desenhada pelo cartunista
no tamanho real da tapeçaria em um suporte também denominado cartão. Esse
cartunista, por sua vez, tinha a liberdade de adaptar a pintura ao tamanho e às
necessidades para execução da mesma.
Somente no século XX Jean Lurçat, tapeceiro francês, sugeriu uma série de novas
regras para a moderna tapeçaria, onde um dos itens mais destacados foi a criação do
desenho pelo próprio tapeceiro. No Brasil, somente a partir da metade do século
passado surgiram os primeiros tapeceiros, influenciados pelo acontecido em outras
partes do mundo. No Rio Grande do Sul e Santa Catarina, talvez pela localização
geográfica próxima ao Uruguai e Argentina, a tapeçaria sempre aconteceu e continua
despertando novos tapeceiros, o que torna esse estudo ainda mais interessante.
Como uma tapeçaria, tecida a partir de um desenho, não será uma reprodução do
desenho? Responder esta pergunta é um dos desafios desta pesquisa em que se
compreende a arte da tapeçaria como algo que tem sua própria identidade, e não como
mera transposição da pintura ou desenho em tapeçaria. Esse estudo busca também
melhor entender, entre outras, a tapeçaria denominada “Meninas da Guerra”,
confeccionada pelo tapeceiro brasileiro Henrique Schucman; a tapeçaria “Árvore da
Vida com Salamandra e Phoenix”, criação de Yael Lurie e tecida pelo argentino,
radicado nos Estados Unidos, Jean Pierre Larochette, e o célebre conjunto de seis
tapeçarias da Idade Média, denominado “A Dama e o Unicórnio. Tentar responder as
diversas perguntas se faz necessário, e acredita-se que dialogar com diferentes autores
será um caminho para desenvolver o presente estudo. Provavelmente os filósofos e
historiadores Georges Didi-Huberman, Gilles Deleuze, Jean Baudrillard, Rosalind
Krauss, Maurice Merleau-Ponty e Walter Benjamin, entre outros, serão um suporte para
responder aos diversos questionamentos. Pretende-se, através deste estudo, oferecer um
material a mais para professores e alunos interessados na tapeçaria, acredita-se que será
de utilidade prática e oportunizará aos alunos tapeceiros comprovarem a necessidade do
conhecimento técnico para um melhor resultado criativo na tapeçaria. Ao trabalhar com
tapeçaria há 20 anos aproximadamente, criam-se laços que se justificam com a presente
pesquisa na pretensão de ampliar conhecimentos e divulgar a história da tapeçaria
também no meio universitário.
17
As hipóteses a seguir detalhadas são as diretrizes que se pretende explorar, sendo
primordial o conhecimento técnico e hisrico para o processo criador do tapeceiro. Ao
observar obras medievais e contemporâneas, usando os mesmos critérios de análise,
percebe-se que a tapeçaria também pode ser considerada anacrônica. O estudo dos
recursos técnicos utilizados em tapeçarias medievais ainda hoje é um referencial. A
fatura nos diversos momentos da história continua absorvendo muito tempo do
tapeceiro e provavelmente na Idade Média não existia a preocupação com a
preservação, devido ao fato de hoje existirem poucos exemplares deste período. Na
atualidade o tapeceiro busca materiais de boa procencia que não comprometam a
longevidade de suas taparias. O estudo prévio no uso das cores é de suma importância
na tapeçaria dos diversos períodos da história. A tapeçaria exige um tempo exaustivo de
aprendizagem e outro de criação e execução, que traz à tona preocupações atuais para
inserção no mercado de artes.
Objetivamente, pretende-se contemplar os aspectos acima mencionados através dos
seguintes procedimentos:
1. Observar através de uma visão anacnica a tapeçaria contemporânea e da Idade
Média, partindo ambas de um caro e seguindo ou usando recursos têxteis semelhantes;
2. Associar o narrador de Walter Benjamin ao tapeceiro que instruiu o jovem tapeceiro
nos ateliês da Idade Média, e ainda hoje está presente através dos cadernos de aluno do
tapeceiro Ernesto Aroztegui no Uruguai e sul do Brasil;
3. Apresentar os cadernos de aluno, criados pelo tapeceiro Ernesto Aroztegui, como um
exercício perceptível, segundo o capítulo O Entrelaçamento O Quiasma, do livro O
Visível e o Invisível de Maurice Merleau-Ponty.
4. Entender o simulacro na tapeçaria contemponea como um recurso possível e uma
opção do tapeceiro em aprender com a técnica e o cartão medieval;
18
5. Analisar a tradição da técnica para chegar à diferença e repetição nas tapeçarias A
Dama e o Unicórnio” (autor desconhecido); “As Meninas da Guerra” de Henrique
Schucman e “Árvore da Vida com Salamandra e Phoenix” de Jean Pierre Larochette.
6. Utilizar bibliografias dos teóricos, Maurice Merleau-Ponty, Walter Benjamin,
Georges Didi-Huberman, Gilles Deleuze, Ernst H. Gombrich, Rosalind Krauss, Jean
Baudrillard, Henry Focillon, entre outros, como base de apoio para responder às várias
perguntas expostas.
Este trabalho se insere na linha de pesquisa em Teoria e História das Artes Visuais. Será
baseado na análise de bibliografias referentes ao tema e análise de imagens de
tapeçarias. Para isto, efetuou-se um levantamento das tapeçarias em livros, fotografias e
sites específicos contribuindo e enriquecendo a pesquisa. Também se recorreu a
detalhes de tapeçarias, onde se visualiza os diversos recursos técnicos utilizados como
material de estudo e ainda como resgate histórico. Além dos teóricos citados, foram
consultados autores que trabalham com tapeçaria, vivenciam na prática toda esta
dinâmica e certamente podem enriquecer esta pesquisa.
Trata-se, portanto, de uma pesquisa qualitativa e bibliográfica; analisando diversas
tapeçarias de períodos distintos, buscar-se-ão indícios de anacronismo. Ao longo de
centenas de anos o tapeceiro ainda se nutre e aprende com o passado sempre presente.
A principal dificuldade foi a questão bibliográfica, ou seja, relacionar contdos
teóricos com a atividade prática da tapeçaria. Poucos trabalhos foram encontrados e
nenhum de procedência nacional, o que reforça a dificuldade de encontrar pares no
Brasil. Dentre os conteúdos selecionados especificamente sobre tapeçaria, foi necessário
pinçar os fragmentos que se mostravam relevantes para o estudo em questão, além de
inserir corretamente estas informações no contexto.
Inicialmente apresenta-se um resgate hisrico sobre as seis tapeçarias que comem a
rie A Dama e o Unicórnio, onde elas foram encontradas, quem as encomendou e o
possível percurso a chegar ao “Museu da Idade Média” de Cluny, em Paris.
Descrevendo-as individualmente é possível perceber detalhes inusitados e elementos
que se repetem nas seis cenas. Analisar essas tapeçarias na atualidade e principalmente
19
sem as ter visto pessoalmente é possível graças ao bom material bibliogfico que o
próprio museu disponibiliza. Hoje vivemos rodeados de telas, estas nos oferecem
informações, supostamente nos mantém atualizados e da mesma forma as tapeçarias
medievais também traduziam narrativas. Estaria então o artista a serviço do nobre que
detinha o poder de escolha das narrativas a serem apresentadas ao público?
Num segundo, momento traça-se um paralelo entre a tapeçaria medieval e a
contemporânea, exemplificando o quanto o tapeceiro da atualidade ainda aprende e
busca na tapeçaria medieval usando os recursos técnicos e o desenho. Existe uma
pergunta entre os tapeceiros da atualidade: se o seu trabalho é cópia ou simulacro de
anteriores.
Por outro lado, todo esse conhecimento só pode ser passado através do fazer manual em
que o mestre tapeceiro é o narrador de Walter Benjamin, e o aluno tapeceiro geralmente
é um jovem paciente e disposto a dedicar muitas horas de sua vida a essa atividade.
Analisar a tapeçaria como um exercício perceptivo faz sentido porque inicialmente o
tapeceiro desenvolve um cartão, depois seleciona o material a ser usado, observando sua
textura e o leque de cores necessário. O tipo de urdimento apropriado ao cartão e à
trama, usando os recursos técnicos mais adequados para contemplar esse mesmo cartão.
Provavelmente os cadernos de aluno propostos por Ernesto Aroztegui são um exemplo
de exercício perceptivo onde o jovem aprendiz a tapeceiro executa uma série de
exercícios propostos, e que posteriormente serão muito úteis ao desenvolver suas
próprias tapeçarias.
Num terceiro momento pretende-se apresentar três tapeceiros contemporâneos e sua
hisria, analisando sua obra, a técnica usada, a textura e cores dos materiais usados.
São eles: Jean Pierre Larochette, argentino, filho e neto de tapeceiros do atel de
Aubusson na França, Ernesto Aroztegui, sem precedentes familiares, curioso e
incansável na busca pelo conhecimento da técnica da tapeçaria e Henrique Schucman,
aluno de Ernesto Aroztegui e tapeceiro atuante no Brasil.
Num quarto momento, analisar-se-ão pequenas tapeçarias e mini-têxteis
contemporâneos e fragmentos medievais, traçando paralelos com o anacronismo que
Didi-Huberman analisa em outras manifestações artísticas e que também acontece na
20
tapeçaria. O mini-têxtil é uma característica da tapeçaria contemporânea desenvolvida
nos diversos continentes, mas ao observar o desenho detalhado das tapeçarias
medievais, estas também o serão composições de vários mini-têxteis?
O engano do olhar, ou trompe l`oeil, analisado por Jean Baudrillard e outros filósofos,
também pode ser visto na tapeçaria contemporânea. A retícula analisada por Rosalind
Krauss é usada por alguns tapeceiros contemponeos como recurso visual ou será que
esse recurso ajuda ao tapeceiro contemporâneo afastar-se da cópia da pintura?
Apresentar as tapeçarias confeccionadas a partir de pinturas de artistas consagrados do
culo XX mostra que as diversas manifestações artísticas na modernidade também
dialogam. Ou seria a tapeçaria um veículo de maior divulgão e mais lucrativo para
alguns artistas do século XX?
Cabe lembrar que esta diferenciação entre arte e técnica não existia na Antiguidade e na
Idade Média, e com o Renascimento é que esta distinção começa a surgir. Diferença
essa que separa a pintura e a escultura das demais artes mecânicas e passam a
denominá-las de belas-artes.
O aprofundamento da diferença nos tempos atuais terminou por
separar o mecânico ou, modernamente, o tecnológico, do liberal, ou,
também modernamente, do que não sendo sequer belo passou a ser
compreendido como artístico. [...] À especialização crescente da
esfera artística – de arte à arte mecânica, de arte mecânica à arte
liberal, de arte liberal à bela-arte e de bela-arte novamente à arte
correspondeu, ao mesmo tempo, uma abrangência cada vez maior de
seu conceito. A arte hoje, no fim das contas, voltou a ser, pelo menos
para muitas teorias da arte contemporânea, o que era no início: o
produto de qualquer atividade humana (TASSINARI, 2001, p. 134).
Por fim, ao abordar os temas acima relacionados, resultado de uma pesquisa
bibliogfica seguindo fragmentos e indícios, tentar-se-á reunir todos estes pensamentos
em uma trama que se espera consistente e bem urdida.
21
CAPÍTULO 1
A Dama e o Unicórnio e a tapeçaria na atualidade.
22
1.1 – O Resgate Histórico:
No castelo de Boussac (ver figura 1), na França, por volta de 1841 Prosper Mèrimée,
Inspetor de Monumentos Históricos, encontrou o conjunto de seis tapeçarias millefleurs
1
mais celebradas, copiadas e reproduzidas do Período Gótico na França, denominadas
posteriormente A Dama e o Unicórnio. Segundo Gombrich, os gregos diziam que se
maravilhar é o primeiro passo no caminho da sabedoria e que, quando deixamos de nos
maravilhar, estamos em perigo de deixar de saber (2006, p. 7). Será esse o sentimento que
contagia os tapeceiros contemporâneos ao conhecerem as seis tapeçarias da Idade Média,
denominadas A Dama e o Unicórnio? No período Gótico, assim como em períodos
posteriores até o início do século XX, as tapeçarias não tinham assinatura do tapeceiro nem
do pintor. Sabe-se que vários pintores renascentistas italianos pintaram quadros que
posteriormente foram desenhados em cartões e tecidos como tapeçarias. Na tapeçaria A
Dama e o Unicórnio
2
encontra-se na base da ilha um pequeno coelho, com a pata erguida
em seu focinho, que se repete nas seis tapeçarias em posições diversas e, segundo alguns
autores, poderia se considerar como sendo a assinatura do licier
3
responsável. O conjunto
provavelmente foi tecido em Flandres, atual lgica, pois as millefleurs eram
características utilizadas naquela região, ou seja, pequenos ramos de diversas flores
preenchendo o fundo da tapeçaria. Essas flores eram cultivadas nos jardins dos ateliês e
reproduzidas nos cartões da maneira mais fiel possível para comunicar ao espectador sua
importância e suas funções terapêuticas. Para isso, torna-se importante lembrar que [...]
quanto mais recuamos na história, mais importante parece o prinpio. O teste da imagem
1
cnica utilizada principalmente na região de Flandres, atual Bélgica, que reúne uma grande variedade de
flores com aromas que têm uma simbologia, algumas têm poderes medicinais e suas cores são agradáveis e
complementam a cena principal.
2
Série de seis tapeçarias onde cada uma aborda um tema específico.
3
Proprietário e responsável pelo espaço e que coordena o trabalho dos demais tapeceiros.
23
não é a semelhança com o natural, mas a sua eficácia dentro de um contexto de ação
(GOMBRICH, 2006, p. 94).
Figura 1
Castelo de Boussac
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. La Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
Na contemporaneidade, o filósofo francês Gilles Deleuze, tanto em Lógica do Sentido
como em Diferença e Repetição, apresenta a obra de arte como um campo onde acontecem
e incidem todas as possibilidades e probabilidades, um conjunto de singularidades, isto é, a
obra como acontecimento. A imagem contém ao mesmo tempo sinais e sintomas que
podem ser reconhecidos nas dobras do tempo. O acontecimento está, pois, na produção de
sentido, está no sujeito, está na sua eficácia dentro de um contexto de ação. A obra de arte
como acontecimento não conhece história; ultrapassa o tempo. Provavelmente da mesma
forma como o pintor, o tapeceiro não tece aquilo que vê, mas aquilo que aprendeu a tecer.
Se ao longo da história da tapeçaria existiram mudanças na produção técnica e no uso dela,
essas foram adotadas por grande parte dos tapeceiros. O acontecimento das tapeçarias
estaria então relacionado ao conhecimento profundo da técnica e a tradução adequada do
cartão?
24
Jean Le Viste, nobre que vivia na corte de Luís XI, encomendou as tapeçarias da série
denominada A Dama e o Unicórnio provavelmente para celebrar sua nomeação como
Presidente da Cour de Aides
4
por volta de 1489. As tapeçarias foram confeccionadas num
ateliê por uma equipe, durante um período aproximado de três anos. Por terem sido
encontradas em péssimo estado de conservação, o Inspetor que as encontrou ordenou que se
fizessem armações de madeira nas quais as peças foram afixadas e, ao invés de restaurá-las,
foi feita uma restauração nas paredes que as abrigavam. Os castelos medievais eram
sticos e frios, os cômodos enormes e em grande quantidade, portanto [...] é preciso
imaginar também as numerosas tapeçarias que cobriam a muralha ou permitiam
compartimentar o espaço interno (ARIES e DUBY, 2004, p. 405).
Posteriormente a escritora Amandine Aurore Lucile Dupin, baronesa Dudevant, sob o
pseudônimo de George Sand, descreveu as seis tapeçarias num longo artigo, ilustrado pelo
filho Maurice em L’Illustration. A escritora casou-se com o barão Dudevant em 1822 e
teve dois filhos, e em 1831 deixou o marido e foi viver em Paris onde começou a escrever
para o jornal Le Figaro. Em 1832 ela escreveu o primeiro romance, Indiana, que fez grande
sucesso sob o pseudônimo de George Sand. Nesse período envolveu-se amorosamente com
o inspetor Prosper Mérimée, quando provavelmente teve contato com as tapeçarias A Dama
e o Unicórnio no Castelo de Boussac. Seu relacionamento mais conhecido e duradouro foi
com o compositor e pianista Fréderic Chopin de 1838 a 1847. Em 1844 escreveu o romance
“Jeanne”, no qual parte da história desenrolava-se no castelo de Boussac, e a autora se
referiu às tapeçarias como essas curiosas tapeçarias enigmáticas (DELAHAYE, 2007, p.
8). Por volta de 1843, três dos seis painéis caíram e foram abandonados, tomados pela
umidade e por ratos no Castelo de Boussac. A comissão foi novamente alertada, os painéis
foram adquiridos pelo Estado e depois da Segunda Guerra Mundial foi construída,
especialmente para estas obras, uma sala oval no Museu do Cluny, hoje Museu da Idade
Média de Cluny, em Paris, onde elas ficam expostas. As seis tapeçarias foram restauradas
em 1847 no famoso atelde Aubusson. Depois, entre 1889 e 1894, as bases dos painéis,
que estavam completamente puídas pela umidade, foram novamente tramadas com
4
Corte soberana que julga questões concernentes aos fundos de ajuda do Estado (CHEVALIER, 2006, p. 13).
25
capricho, mas com fios de tingidura ruim. Posteriormente foram feitas restaurações,
limpezas, novas urdiduras, cerzimentos com agulhas e, em 1975, elas foram novamente
higienizadas, onde reapareceram muitas de suas cores originais.
Como a história de A Dama e o Unicórnio demonstra, as tapeçarias medievais eram
freqüentemente maltratadas e manuseadas incorretamente, comprometendo-as. As famílias
reais e os nobres em campanhas militares eram freqüentemente removidos e, junto com
seus pertences particulares, levavam as tapeçarias que serviam de adorno e aqueciam os
ambientes de seus proprietários, prova disso é o péssimo estado das tapeçarias medievais
sobreviventes. As pas maiores, [...] destinadas às paredes, às cabeceiras de cama e
mesmo às portas, são utilizadas com menos freqüência. são tiradas das arcas, onde
repousam em tempo normal, nos dias de festas, para delas se fazer um verdadeiro abuso
nas grandes ocasiões (ARIÈS e DUBY, 2004, p. 200). Conseqüentemente comprometia
consideravelmente sua manutenção.
A série de seis tapeçarias denominada A Dama e o Unicórnio, mostra uma dama, sua
criada, um unicórnio, onde cada painel provavelmente representa um dos cinco sentidos:
visão, audição, tato, olfato e paladar. O sexto painel, A Mon Seul Désir
5
, mostra a dama
recolocando um colar na caixa que é mantida aberta pela criada, e desde o passado até hoje
continua sendo objeto de muitas especulações. Cada painel, embora faça parte do conjunto,
é uma unidade com elementos particulares e seria fascinante saber quem foi o pintor dos
quadros, o desenhista dos cartões e o licier responvel pelo atelier. Os desenhos sempre
mudam ao serem ampliados pelo cartunista numa tela ou num cartão que os tecelões usam
como modelo para fazer a tapeçaria. É através desta janela que o espectador olha o mundo
imaginário do pintor, adaptado ao cartão pelo cartunista e finalmente tramado pelo
tapeceiro. [...] a arte opera com um estilo estruturado, governado pela técnica e pela
schemata da tradição, que a representação pôde tornar-se o instrumento que é, não da
informação, mas também da expreso (GOMBRICH, 2006, p. 320). Às vezes, uma coisa
muito bonita em pequena escala não ficava tão bem quando ampliada, e nos espos que
5
Meu Único Desejo é o que está escrito no alto da tenda de uma das seis tapeçarias, a maior de todas elas.
26
precisavam ser preenchidos, a verdure
6
, se acrescentavam personagens, árvores, animais e
flores. Na sua grande maioria, as tapeçarias eram tecidas pelo avesso e, para tanto, os
cartões tinham que ser desenhados como se vistos num espelho. Para a Idade Média, o
esquema é a imagem. [...] A marca do artista medieval é a linha firme, testemunho da sua
mestria no ofício escolhido (GOMBRICH, 2006, p. 148). Para isso tornava-se importante
representar através da imagem das figuras e no uso das cores toda a carga de informações
que o espectador poderia absorver. Como a grande maioria do público era analfabeta, as
imagens funcionavam como meio de comunicação entre o artista, sempre a mando da igreja
ou da nobreza, e este mesmo público.
O ritual de urdir o tear, que geralmente era horizontal, envolvia várias pessoas, devido à sua
grande largura devia ficar bem tencionado e para este fim usavam ou linho. Os fios de
urdume são mais grossos do que a trama e usamos uma mais grossa também. Acho que
esses fios são parecidos com as esposas, porque a função deles não aparece, só se vêem os
sulcos sob a trama colorida. Mas, se não fossem eles, não haveria tapeçaria
(CHEVALIER, 2006, p. 134). Neste período da história até o séc XVIII, a guilda
7
o
permitia mulheres tecendo, elas somente ajudavam a urdir os teares, separavam os fios,
preparavam as lançadeiras e ajudavam nos arremates. A escolha dos materiais para a trama
dependia do quanto o autor da encomenda poderia pagar, isto porque fios de prata, ouro e
seda aumentavam o custo da obra. O urdume era feito de com sete fios por centímetro,
ou mais onde a cnica restringe a liberdade de escolha do tapeceiro. Tecendo em paralelo
com bastante hachura para destacar os sombreados, tornava a tapeçaria mais resistente, o
trabalho era mais demorado e aumentava o custo final da obra. O licier determinava e
supervisionava o que cada tecelão deveria tecer, mas os rostos e outras partes importantes
ele mesmo tecia. As guildas da Idade Média surgiam sempre que um grupo profissional
sentia a sua existência econômica ameaçada pela afluência de competidores vindos de
fora. O objetivo da organização era excluir, ou pelo menos restringir, a competição.
(HAUSER, 1982, p.334).
6
Tudo aquilo que não fazia parte da cena principal era preenchido usando elementos da natureza, como
flores, frutas e animais com alguma relação temática.
7
Espécie de associação ou grêmio em que todos os ateliês participavam, seguiam suas normas e tinham
acesso aos trabalhos.
27
A sexta tapeçaria denominada de acordo com sua legenda A Mon Seul Désir, talvez
represente a renúncia aos prazeres proporcionados pelos cinco sentidos anteriormente
mencionados. A legenda poderia ser traduzida como O Meu Único Desejo ou ainda Meu
Objeto de Desejo e segundo o historiador Rainer Maria Rilke em La Dame à la Licorne, a
dama estaria pegando uma jóia que normalmente ficaria guardada no estojo de jóias. Existe
ainda uma outra versão para esta sexta tapeçaria, que poderia simbolizar o sexto sentido,
atribuído normalmente às mulheres. O mero símbolo ressalta como uma figura contra
um fundo neutro se torna parte da representação. É um efeito que se observa em qualquer
cartão em que haja letras de forma incorporadas (GOMBRICH, 2006, p. 193). Isso se
justifica na tapeçaria A Mon Seul Désir se forem observadas as diversas versões sobre a
origem especificamente dessa tapeçaria e as várias possibilidades de interpretações que
surgiram através dos tempos para o conjunto das seis tapeçarias. Uma recente versão de
Kristina E. Gourlay sugere que as tapeçarias representavam um romance entre a donzela e o
unicórnio, e que essas seriam um presente de casamento para Família Le Viste. Porém, em
todas as tapeçarias o unicórnio e o leão estão em posição de equilíbrio e têm como função
segurar os mastros das bandeiras com os brasões da família. Como se desconhece o pintor e
o tapeceiro responsável pela manufatura, surgem seguidamente novas especulações sobre
sua real significação. Porém, não se pode esquecer que o brasão realmente era da família Le
Viste, e a presença do leão e do unicórnio segurando o mastro verticalmente com a bandeira
e o brasão atrelado ao seu corpo reforçam o grau de importância dessa família na corte.
Outra versão, como sendo uma tapeçaria que remetia ao estilo Islâmico, é de que poderia
ter sido tecido para um dos filhos do Sultão Mohammed II, do culo XV, aprisionado em
Bourganeuf. A dama da tapeçaria seria sua amada e em A Mon Seul Désir estaria
escolhendo jóias para adornar seu colo e completar sua indumentária, mas por outro lado,
observando bem o movimento das mãos, essas sugerem que ela está depositando jóias na
caixa. Ao reunir essas versões tenta-se ver sua ação e [...] sem essa tendência que temos a
ver um movimento potencial sob a forma de antecipação, os artistas nunca teriam sido
capazes de criar a sugestão de velocidade em imagens estacionárias (GOMBRICH, 2006,
28
p. 191). Na realidade, a versão de que as tapeçarias teriam sido encomendadas pelo nobre
Jean Le Viste para comemorar sua posse como Presidente da Corte de Assistência entre
1480 e 1490 é indubitavelmente a mais provável.
O tema de A Dama e o Unicórnio é encontrado na arte medieval de várias formas, como
ilustrações em Iluminuras manuscritas inglesas, caixas de jóias em marfim na Alemanha,
gravuras pequenas na região da Holanda e grandes tapeçarias na França. The Hunting of the
Unicorn (A Caça ao Unicórnio), que está hoje no Metropolitan Museum em New York, é
formado por sete painéis e data do início de 1500. O tema universal da mulher e do animal
mitológico, a relação entre eles e o que a arte retrata como significado fundamental são
questões sempre abertas a novas indagações. Deixando de lado a função heráldica, onde o
unicórnio só mostra a força da família Le Viste, segurando o mastro da bandeira ele também
é o símbolo da virtude, da pureza e da castidade. Para alguns ele representa Cristo, para
outros o eterno amante. A dama, por outro lado, é serena e passiva, e às vezes sua
serenidade lembra a Virgem Maria. Em várias ilustrações a dama e o unicórnio juntos
representam alegorias da relação entre Cristo e sua Mãe Maria, ou ainda a Paixão de Cristo.
Por outro lado, a dama somente como virgem tem a força de domesticar o animal selvagem,
portanto ela é pura, passiva, parece frágil, mas é poderosa. O que aprendemos do estudo do
simbolismo, sustento eu, é precisamente que para as nossas mentes os limites dessas
definições são elásticos (GOMBRICH, 2006, p. 85).
O leão:
... ele é o rei dos animais, e como o unicórnio, pode representar Cristo.
Dizem que existe uma crença medieval em que os filhotes de lo nasciam
mortos e voltavam a viver três dias depois quando seus pais respiravam
sobre eles. Se esta alguma vez foi uma crença genuinamente popular,
poderia ter resultado... em uma metáfora da Ressurreão de Cristo
8
(LYALL, 2000, p. 61 - tradução da autora).
Os demais elementos que compõem a cena, como árvores frutíferas e flores, têm funções
em cada uma das tapeçarias. As flores e os aromas por elas exalados simbolizam o amor, a
29
amizade, a prosperidade, a saúde. Os coelhos simbolizam a fertilidade, os cães a fidelidade
e uma vez que uma interpretação ancora-se na imagem que temos à nossa frente, fica
muito mais difícil destacá-la. Uma vez decifradas, é difícil recobrar a impressão que
provocaram em s quando procurávamos ainda pela sua resolução (GOMBRICH, 2006,
p. 191).
1.2 – A Tapeçaria: O Tato (ver figura 2):
Em todas as seis tapeçarias a dama sempre aparece com o leão à sua direita e o unirnio à
sua esquerda. Nessa tapeçaria ela segura com a mão esquerda o chifre do unirnio e com a
outra mão o mastro da bandeira. Na cena os dois animais são menores e têm atrelado ao seu
corpo um escudo com o desenho que, segundo a arte heráldica, é da família Le Viste. As
árvores que compõem a cena principal estão dispostas simetricamente na base da ilha
central onde se encontra somente um coelho, além de várias espécies de flores.
As atenções concentram-se na dama, seu vestido lembra um tecido de veludo, ricamente
ornamentado com bordados de pedras preciosas e um cinto com um pendente em forma de
rosácea tendo no centro uma forma redonda que remete a um rubi. Uma coroa cravejada de
pedras preciosas enfeita seus cabelos soltos e que destacam a habilidade técnica utilizada na
execução da tapeçaria, o que igualmente aparece na leveza dos pelos do leão e do
unicórnio. A coleira de pedras preciosas no pescoço da dama complementa a sua
indumentária. Ao fundo, além das muitas espécies de flores, podem-se ver também animais,
entre eles, alguns exóticos (ver figuras 57 e 58).
8
He is the king of beasts, and like the unicorn, can represent Christ. It is said to have been believed in
medieval times that Lion cubs are Born dead but come to life three days later when their father breathes on
them. If this ever was a genuine piece of folk lore, it would have resulted... a metaphor for the Resurrection.
30
Figura 2
O Tato (1480/90)
e seda, A.3,69 a 3,73m; L. 3,52 a 3,58m; Museu da Idade Média de Cluny em Paris.
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. La Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
1.3 – A Tapeçaria: O Paladar (ver figura 3):
A cena aqui apresentada é ricamente ornamentada, nas laterais da ilha há dois conjuntos de
árvores e no fundo da ilha uma roseira separa a ilha central do restante da tapeçaria. O leão
31
e o unicórnio apoiados somente nas patas traseiras, em posição inclinada, formam com a
dama e a criada uma pirâmide. Tanto o leão como o unicórnio, cada qual sustenta a flâmula
e a bandeira da Família Le Viste, e nessa tapeçaria eles têm as expressões faciais bem
detalhadas.
Figura 3
O Paladar (1480/90)
e seda, A.3,74 a 3,77m; L. 4,58 a 4,66m; Museu da Idade Média de Cluny em Paris.
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. La Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
A dama segura com uma das mãos um periquito e na outra escolhe guloseimas oferecidas
pela criada. O vestido da dama, como o da criada, tem várias pregas, é de um brocado,
tecido ricamente ornamentado com desenhos de flores de romã, e na cintura tem um cinto
cravejado de granadas. Sobre a cauda do vestido da dama está um pequeno cachorrinho que
atentamente observa o movimento da dama. Esta tem no pescoço uma coleira de flores e
32
sobre os cabelos um lenço de tecido leve e transparente, preso à cabeça por uma coroa de
flores. Tanto na ilha central como no fundo da tapeçaria vêem-se vários animais e muitas
espécies de flores (ver figuras 59 e 60). Em várias tapeçarias da série, na parte inferior,
percebem-se as intervenções das restaurações feitas ao longo dos anos onde a umidade e a
ação dos roedores foi mais acentuada.
1.4 – A Tapeçaria: O Olfato (ver figura 4):
É uma dama absorta nela mesma, tem uma coroa em suas mãos onde trança flores. A criada
segura uma cesta onde a dama escolhe as flores que irá trançar. A composição se assemelha
à tapeçaria do Paladar, porém com menos ação. O leão, à direita da dama, segura a flâmula
e o unicórnio, à sua esquerda, sustenta a bandeira. Ao fundo da ilha central, sobre um
banquinho, está uma cesta cheia de flores e um macaco as cheirando. Os vestidos da dama e
da criada têm dobras e fendas onde aparecem os vestidos de baixo, também de tecidos
nobres. O cinto da dama lembra um cordão torcido que se repete no pescoço da criada. Na
barra superior do vestido da dama vêem-se bordados de pedras preciosas e pérolas, que se
repetem na banda sobre seus cabelos. O colar da dama ajusta-se harmoniosamente à sua
indumentária e em seus braços dois braceletes ornados de pedras preciosas e pérolas dão
acabamento ao seu vestido.
Nessa tapeçaria existem poucos animais compondo a cena, mas está igualmente repleta de
flores (ver figuras 61 e 62). A pequena variedade de cores existentes nesse período é
suprida pelo uso da técnica da hachura em detalhes, como, por exemplo, nas dobras do
vestido da dama onde apenas três tons de azul foram suficientes para mostrar o claro/escuro
das mesmas.
33
Figura 4
O Olfato (1480/90)
e seda, A. 3,67 a 3,68m; L. 3,18 a 3,22m; Museu da Idade dia de Cluny em Paris.
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. La Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
34
1.5 – A Tapeçaria: A Audição (ver figura 5):
Figura 5
A Audição (1480/90)
e seda, A. 3,68 a 3,69m; L.2,90m; Museu da Idade Média de Cluny em Paris.
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. La Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
35
A cena é silenciosa, mas a imagem mostra o provável som do instrumento tocado pela
dama. Um aparador separa a dama de sua criada e sobre esse um belo tapete com desenhos
simétricos e florais apóia o órgão do tipo positif
9
, que a dama toca, enquanto isso sua criada
segura os foles do órgão que, segundo José Saramago, o primeiro som é apenas o da
corrente de ar que nos foles do órgão se introduz (In: Poética dos cinco sentidos, 1979, p.
21). É uma cena harmoniosa e sugere um recolhimento, onde o leão e o unicórnio estão de
costas para a dama e suas bandeiras hasteadas balançam na altura da copa das árvores. O
tamanho do corpo do unicórnio deitado é desproporcional ao tamanho de sua cabeça e a
juba do leão é minuciosamente detalhada com o uso de várias tonalidades de marrom claro.
O vestido da dama é de um tecido ricamente ornamentado e seu colar tem grandes pedras
preciosas inseridas com pequenos pendentes florais. Na cabeça, uma banda bordada com
flores sustenta duas tranças que terminam num penacho. Na base superior das laterais do
órgão podem-se ver pequenas esculturas do leão e do unicórnio, e na ilha principal
encontram-se vários animais e várias espécies de flores que se repetem em todo o fundo da
tapeçaria (ver figuras 63 e 64).
[...] A trama cruzou-se com a urdidura: está nascida a tapeçaria. Todos os
remates foram concluídos, dados os nós, o tecelão partiu com o seu
salário. O órgão pode, enfim, tocar. Suba o seu primeiro som, levante-se,
alargue-se, expanda-se no espaço preencha ao menos um pouco deste
tempo esquivo. E, tendo-o dito, olhe para nós em silêncio (SARAMAGO,
1979, p.26. In: Poética dos Cinco Sentidos).
1.6 – A Tapeçaria: A Visão (ver figura 6):
A composição com a dama, o unicórnio e o leão forma novamente uma pirâmide, centrando
as atenções na cena principal e suas expressões faciais transmitem alegria. As árvores da
ilha principal são menores e o leão segura o mastro da bandeira da família Le Viste. A
dama sentada segura com a mão direita um pesado espelho e com a mão esquerda abraça o
unicórnio. Para ver sua imagem no espelho o unirnio apóia suas patas dianteiras sobre o
colo da dama, mas para não danificar seu vestido levanta-o e dobra-o apoiando sobre o
forro do mesmo, deixando aparecer o vestido de baixo.
9
Espécie de órgão portátil usado na Idade Média.
36
O colar da dama tem pendentes de pérolas num duplo cordão torcido e o arranjo de cabelo é
semelhante ao da tapeçaria da Visão, mas parte do cabelo que fica solto em suas costas é
minuciosamente tramado com tonalidades próximas umas das outras. O mesmo acontece na
juba e pêlo do leão e na crina do unirnio. A hachura é bastante explorada no vestido de
baixo da dama para mostrar o efeito de claro/escuro nas dobras do tecido. O espelho
suntuoso é ornado de pedras e folhas recortadas. Nessa cena acontece um jogo de olhares
onde a dama olha para o unicórnio e esse por sua vez observa sua imagem no espelho.
Figura 6
A Visão (1480/90)
e seda, A. 3,11a 3,12m; L. 3,30m; Museu da Idade Média de Cluny em Paris.
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. La Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007
37
1.7 – A Tapeçaria: Meu Único Desejo (ver figura 7):
Figura 7
A Mon Seul Désir (1480/90)
e seda, A. 3,76 a 3,77m; L. 4,63 a 4,73m; Museu da Idade dia de Cluny em Paris.
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. La Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
A Mon Seul Désir é a frase que se encontra no alto da tenda azul e que vem a dar o nome a
essa tapeçaria. Ela é a maior de todas dessa série e tem ao fundo da ilha principal uma tenda
que reproduz um tecido azul bem ornamentado, com chamas douradas e a inscrição que lhe
seu título, o que ao longo dos anos tem provocado várias versões sobre a cena. O leão e
o unirnio, além de segurarem os mastros, com a outra pata dianteira suspendem o tecido
da tenda, abrindo-a. Enquanto isso, a dama no centro da cena manuseia jóias que a criada
segura em uma caixa. A formação dos personagens principais novamente forma uma
38
pirâmide com bastante equilíbrio. Entre a dama e o leão es um banquinho e sobre este
uma almofada ricamente ornamentada e sobre esta, por sua vez, um pequeno cachorrinho
que também aparece na tapeçaria O Paladar. A dama nessa tapeçaria veste um belo vestido
vermelho com a barra inferior bordada em pérolas e pedras preciosas e tem dois braceletes
na parte superior dos braços. Seu penteado lembra o da tapeçaria da Visão e nessa cena ela
o usa colar no pescoço. A sua atitude com relação às jóias pode tanto ser de depositar
como de escolher, cabe ao espectador selecionar a ação que lhe convier. Nas laterais da ilha
principal têm dois conjuntos de árvores simetricamente posicionadas onde a tenda está
presa com duas cordas torcidas. As flores na ilha central são bem variadas e se repetem no
fundo de toda a cena, assim como alguns animais, principalmente coelhos (ver figuras 67 e
68). Ao observar detalhes da tapeçaria, percebem-se várias emendas posteriores, o que
significa nessa técnica que várias partes foram tramadas em separado e emendadas
posteriormente, acelerando assim a confecção do todo. Isso é um recurso bastante usado,
mas apesar de prejudicar a sustentação do todo, diminui custos.
1.8 – A Tapeçaria A Dama e o Unicórnio na Atualidade:
Ao observar e analisar detalhadamente essa série de tapeçarias sem, contudo, as ter visto
pessoalmente, percebe-se o quanto a fotografia tornou-se um instrumento de apoio e
referência para todo aquele que não tem acesso à obra original. Segundo Walter Benjamin,
a reprodutibilidade técnica, com a fotografia sendo um instrumento de aproximação do
indivíduo com a obra, facilita ao ampliar alguns detalhes ou acentuar aspectos do original.
Especificamente no caso da série A Dama e o Unicórnio, sendo tapeçarias muito grandes, o
observador deve manter certa distância da tapeçaria, a parte superior e outros detalhes, que
o são perceptíveis ao olhar humano, passam despercebidos. O aqui e agora do original
constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica
esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si
mesmo (BENJAMIN, 1996, p. 167). Na Idade Média, assim como em outros períodos da
hisria, a tapeçaria sempre foi executada em ateliês com vários tapeceiros atuando juntos,
onde os mais jovens aprendiam com os mais experientes através da observação e imitação.
39
Em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível [...] a imitação era praticada por
discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e finalmente por
terceiros meramente interessados pelo lucro (BENJAMIN, 1996, p. 166). Da mesma forma
na atualidade, quando tapeceiros de várias partes do mundo têm acesso às fotografias das
tapeçarias medievais, com detalhes muito nítidos em catálogos de museus, as mesmas
servem de instrumento de aprendizagem e estudo da técnica utilizada. Isso não significa
exatamente que o tapeceiro contemporâneo pretende copiar o desenho e a técnica utilizada,
mas sim se nutrir daquele conhecimento. Essa busca do tapeceiro contemporâneo pelo
conhecimento técnico da tapeçaria medieval contraria todas as evidências de que a arte feita
para durar, especificamente a tapeçaria, não tem espaço na atualidade. [...] vivemos em uma
sociedade de complexidades na qual, pela primeira vez, nos deparamos com um ciclo de
renovação do conhecimento mais curto que o ciclo da vida do indivíduo (HERNANDEZ,
2007, p. 35). É surpreendente que, mesmo contrariando todas as dinâmicas da atualidade,
no trabalho do tapeceiro exista um tempo exaustivo de aprendizagem e outro de criação e
execução da tapeçaria. Apesar da vulnerabilidade do material, e do longo processo entre a
criação e o trabalho final, o tapeceiro contemporâneo ainda se nutre do passado sempre
presente.
40
CAPÍTULO 2
Tapeçaria Contemporânea
41
2.1 – Tapeçaria Contemporânea e o Simulacro:
Desde a Idade Média toda tapeçaria é tramada a partir de um cartão que é desenhado por
sua vez a partir de uma pintura ou desenho, e tenta ser o mais fiel possível. Ao longo de
muitos séculos essa dinâmica era comum em todos os ateliês existentes no Ocidente.
Porém, no início do século XX, alguns tapeceiros franceses questionaram esse
procedimento e levantaram uma questão que até hoje é uma ingnita, ou seja, uma
tapeçaria, tecida a partir de um cartão, não será só uma reprodução do mesmo?
A tapeçaria, por mais de 500 anos, foi praticamente sempre tramada a partir de cartões que,
por sua vez, foram desenhados a partir de pinturas. Na Europa, em vários momentos da
hisria, os cartões eram reaproveitados, vendidos e re-adaptados para várias gerações de
tapeçarias. O cartão inicialmente era desenhado a partir de uma pintura de autoria de um
artista. Geralmente resultava daí uma grande tapeçaria, onde a primeira cópia era para um
nobre europeu. Esses cartões eram guardados e muitas outras tapeçarias menores eram
tramadas a partir desse cartão posteriormente, com pequenas alterações nas combinações de
cores e na composição da cena principal, como encomenda de prósperos burgueses.
Portanto, as tapeçarias foram confeccionadas por vários séculos como a cópia mais próxima
possível da pintura. Os recursos técnicos eram utilizados em favor desta cópia e houve a
necessidade de desenvolver tingiduras que se aproximassem das cores utilizadas nas
pinturas. Para copiar rigorosamente a riqueza de detalhes destas pinturas, o tapeceiro fazia
um urdume de até 16 fios por centímetro e a trama conseqüentemente também era muito
fina. São poucas as tapeçarias que foram, ou são, desenvolvidas sem a utilização de um
cartão.
Essa reflexão leva ao início, especificamente ao urdume. No tear inicia-se sempre com o
urdume e esse fazer apesar de metódico é um ritual que segue regras imprescindíveis para
42
um bom resultado da trama. O intervalo entre os fios do urdume, para o tapeceiro
experiente, pode ser facilmente resolvido, mas em todas as situações esse é o ponto
essencial para uma resolução adequada da trama. Pode ser considerado um simples
exercício técnico, mas envolve estabelecer um espo vazio do tamanho apropriado entre
os fios do urdume. O ponto crítico para a qualidade da tapeçaria é uma relação entre o
número de fios do urdume e sua espessura. Assim, o intervalo por si determina a
espessura da trama, tal qual o urdume faz. É preciso observar o espaço entre os fios, a
espessura desse fio, sua torção, porque tudo isso define o macio ou o duro da trama.
Existem algumas regras básicas nessa escolha, mas um compasso adequado e que mantém
um ritmo constante da trama é urdir com um espaçamento entre fios da espessura de um fio
e um quarto. Assim, existe a relação de espessura entre urdume e trama que proporciona
uma tapeçaria mais dura quando existem mais fios e mais macia quando existem menos fios
por centímetro no urdume. Essas regras são flexíveis e cabe ao tapeceiro ajustar seu urdume
às necessidades que seu cartão exige. Quando um urdume é de um fio mais fino,
conseqüentemente a trama também será mais fina, o que resulta num tecer mais lento,
demorado, como exemplificam as figuras abaixo. O urdume se justifica na tapeçaria
quando a trama atua sobre ele. O intervalo entre os fios do urdume pode provocar desvios
nas formas e a relação figura/fundo também é uma grande preocupação. Muitas vezes, o
fundo precisa ser tecido primeiro e é a forma do fundo que determina muito da real forma
do objeto, ou figura do primeiro plano. Para Deleuze, na tapeçaria como espaço estriado, as
formas organizam uma matéria, o estriado é o que entrecruza fixos e variáveis, ordena e
faz sucederem-se formas distintas, organiza as linhas melódicas horizontais e os planos
harmônicos verticais. E ainda no [...] espaço estriado, as linhas, os trajetos tem tendência
a ficar subordinados aos pontos: vai-se de um ponto a outro (DELEUZE, 2007, p. 184).
Portanto, quanto mais fios no urdume mais próximo a tapeçaria poderá seguir o cartão.
Algumas decisões acontecem no ato de tecer, mas o cartão representa praticamente toda
criação que é planejada antecipadamente.
Em vários depoimentos de tapeceiros da atualidade, tanto na Europa como nos Estados
Unidos, cada qual usa um método que melhor lhe convém, colorindo ou não
antecipadamente o cartão, embora a grande maioria assuma que realmente parte de um
43
cartão. Esse cartão, que inicialmente só era desenhado a partir de pinturas, atualmente parte
de outras manifestações visuais como fotografias, colagens, aquarelas e desenhos
computadorizados.
A partir do início do século XX, vários tapeceiros franceses iniciaram um movimento onde
o próprio tapeceiro deveria desenhar e tramar suas tapeçarias, mas não como mera cópia da
pintura, fotografia ou colagem, e sim utilizando a técnica da tapeçaria e os recursos têxteis
como mecanismo para que essas tapeçarias tivessem identidade própria. Trata-se de fazer e
valorizar a diferença. Nesse sentido, o eterno retorno é bem a conseqüência de uma
diferença originária, pura, sintética em si. Se a diferença é o em si, a repetição, no eterno
retorno, é o para si da diferença (DELEUZE, 2006, p. 183). A tapeçaria trabalha-se no
plano e não na linha. Existem alguns recursos técnicos, como as hachuras, as
interpenetrações mínimas, as mesclas, que além de serem necessários para a estrutura da
peça, também criam ilusão de profundidade, transparência e volume. É o efeito de trompe
l’oeil que justamente pode diferenciar a tapeçaria de seu cartão. O tapeceiro contemporâneo
busca então o simulacro. Segundo a teórica americana Rosalind Krauss (2002), o simulacro
se parece com a idéia de não semelhança.
Muitos tapeceiros contemporâneos utilizam fotografias como cartões, tirando proveito de
detalhes e principalmente explorando os efeitos de claro/escuro, profundidade e
transparência. Os efeitos de luz e sombra podem ser valorizados quando partem de uma
fotografia usada como cartão. Em algumas tapeçarias é visível que partiram de fotografias e
em outras, ao usar as técnicas têxteis valorizando a tapeçaria, esta conexão o é o clara.
O simulacro não é uma cópia degradada, ela encerra uma potência positiva que nega tanto
o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução (DELEUZE, 1998, p. 267).
Ao observar a tapeçaria de Archie Brennan, Princesa Di encontra-se com Moça Medieval
(ver figura 8), e o fragmento da tapeçaria nº5, The Mystic Hunt of the Unicorn (ver figura
9), do conjunto A Caça ao Unicórnio, percebe-se que o tapeceiro contemporâneo nutre-se
daquela imagem. A tapeçaria ocidental era e continua sendo tecida pelo avesso, onde os
tapeceiros só vêem uma pequena parte do que estão tecendo. Todas as emendas e os
44
arremates ficam no avesso e dificultam a visualização do trabalho em execução. Diferente
do tecido onde os arremates não devem aparecer e o tecelão trabalha vendo o tecido crescer
à sua frente; Deleuze considera o tecido como um espaço estriado que:
[...] pode ser infinito em comprimento, mas não na largura, definida pelo
quadro da urdidura, a necessidade de um vai e vem, implica um espaço
fechado. [...] um tal espaço parece apresentar necessariamente um avesso e
um direito; mesmo quando os fios da urdidura e os da trama têm
exatamente a mesma natureza, o mesmo mero e a mesma densidade
(DELEUZE, 2007, p. 181).
Figura 8 Figura 9
Archie Brennan, Princesa Di encontra-se com Detalhe da tapeçaria
Moça Medieval 107 x 90cm nº5 do conjunto Caça ao
Unicórnio
1
Vários tapeceiros da atualidade utilizam detalhes de tapeçarias medievais como exercícios
de aprimoramento da técnica. Essa prática o se limita à tapeçaria, mas artistas plásticos
de várias épocas já utilizaram imagens pré-existentes em seus trabalhos. Essa utilização de
imagens às vezes era camuflada e dificultava a identificação da apropriação, em outros
1
Fonte da imagem: CAVALLO, Adolfo Salvatore. The Unicorn Tapestries at the Metropolitan Museum of
Art. New York: The Metropolitan Museum, 2007.
45
casos estas imagens eram reelaboradas. Na contemporaneidade alguns artistas, usam as
imagens de outros artistas, tornando explícito seu uso, o que também pode ser denominado
de citação. Seria este o esplendor e a miséria do artista moderno? Segundo Rosalind
Krauss, usar e explorar obras pré-existentes é bem diferente da [...] cara garimpagem da
arte do passado para atender às leis do pastiche, pelas quais a moeda lingüística da
pureza volta a ser cunhada como a mina econômica da falsificação estética (KRAUSS,
2006, p. 40). Na tapeçaria, o importante é respeitar o cartão original, as cores, os materiais
utilizados e principalmente como a técnica era usada. Nesse caso, [...] a cópia não parece
verdadeiramente a alguma coisa senão na medida em que parece à Idéia da coisa
(DELEUZE, 1998, p. 262). Como exemplo, a obra Detail (ver figura 10), de Dom Burns, e
o detalhe da tapeçaria nº2, The Unicorn is Found (ver figura 11), do conjunto A Caça ao
Unicórnio.
Figura 10 Figura 11
Don Burns, Detail
2
Detalhe da taparia no 2, de
A Caça ao Unicórnio
3
2
Fonte da imagem: BITTNER,Carol, The Wenesday Group. Tapestry Topics, Califórnia, vol.30 nº1, p.11-12.
3
Fonte da imagem: BITTNER,Carol, The Wenesday Group. Tapestry Topics, Califórnia, vol.30 nº1, p.11-12.
46
Na tapeçaria contemporânea, devido às pequenas dimensões, o tapeceiro às vezes
desenvolve cartões que podem ser tecidos da parte inferior à superior, como exemplifica
Reflection (ver figura 12). Porém, tradicionalmente, o cartão é desenhado para ser tecido da
direita para a esquerda, proporcionando o equilíbrio entre o peso da trama na vertical e do
urdume na horizontal.
Figura 12 Figura 13
Melinda Piesse, Reflection
4
Detalhe de Visão, do conjunto de
A Dama e
O Unicórnio
5
Igualmente, Lynn Butler Mayne, em sua tapeçaria Mille Fleurs Misery (ver figuras 14 e
15), simula alguma cena das tapeçarias medievais. Segundo Deleuze, o simulacro tem um
modelo, [...] trata-se de um outro modelo, um modelo do Outro de onde decorre uma
dessemelhança interiorizada (DELEUZE, 1998, p. 263). Embora não se tenha
conhecimento de alguma cena medieval onde a Dama está chorando, a Dama da tapeçaria
do Paladar, visivelmente esboça um leve sorriso, talvez devido a algum pensamento
relacionado com o unicórnio. Essa dama é considerada a mais bonita da série de tapeçarias
4
Fonte da Imagem: Grand Ideas. A Small Format Tapestry Exposition. Grand Rapids, Kendall College of Art
and Design, 2006.
5
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elizabeth. La Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
47
A Dama e o Unicórnio. O que levou Lynn a tecer esta e outras cenas de mulheres com
lenços seria uma homenagem às pessoas que tecem e sofrem de rinite alérgica.
Provavelmente todas as informações sobre a série de A Dama e o Unicórnio tenham
influenciado Lynn Butler Mayne na sua escolha, ao usar uma combinação de cores
visivelmente diferente, com tingiduras químicas, onde as flores por ela tramadas também
são superficiais e artificiais.
Figura 14 Figura 15
Lynn B. Mayne, Mille Fleurs Misery
6
Detalhe de Paladar, do conjunto
23” X 22” – Lã, algodão, fio metálico A Dama e o Unicórnio
7
Nas seis tapeçarias de A Dama e o Unicórnio, as millefleurs foram desenhadas a partir das
flores reais e facilmente podem ser identificadas pelas suas cores, formas das folhas e
pétalas das flores. As millefleurs das tapeçarias medievais confeccionadas na região de
6
Fonte da Imagem: American Tapestry Alliance. American Tapestry Biennial Six. Grand Rapids, Urban
Institute of Contemporary Arts, 2006.
7
Fonte da Imagem: DELAHAYE, Elizabeth. La Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
48
Flandres, atual Bélgica, caracterizavam-se em representar as flores, folhas e frutas que lá se
cultivavam. As millefleurs nessas tapeçarias, além de preencher o fundo, tinham função
terapêutica e os aromas por elas exalados simbolizavam o amor, a amizade, a prosperidade,
a saúde. Na tapeçaria da Visão, a flor que se destaca é o narciso, [...] a que o unicórnio se
olha no espelho como Narciso no lago (Chevalier, 2006, p. 120).
nia Moeller, tapeceira de Porto Alegre, em seu mini-têxtil My Blue Unicorn (ver figura
16), faz uma reflexão sobre a tapeçaria intitulada Tato (ver figura 17), uma das seis
tapeçarias de A Dama e o Unicórnio. Porém, em lugar da Dama, ela apresenta a imagem
masculina de Ernesto Aroztegui, homenageando o tapeceiro uruguaio que se dedicou por
rias décadas à tapeçaria, ministrando aulas e encantando muitas pessoas pela atividade.
Segundo as lendas, o unirnio seduzia as donzelas, assim como Aroztegui encantava como
tapeceiro e mestre do ofício. Ele soube criar uma cultura em seu país que ele mesmo
importou, semeou e fez crescer.
Figura 16 Figura 17
nia Moeller, My Blue Unicorn
8
Detalhe de Tato, do conjunto A Dama e o
Unicórnio
9
8
Fonte da Imagem: It’s About Time. Small Format Tapestry. Portland, Wentz Gallery, 1996.
9
Fonte da Imagem: DELAHAYE, Elizabeth. La Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
49
Ao viajar pelos ateliês do Oriente Médio, da França e fazendo contato com os povos dos
Andes, ele absorveu conteúdos técnicos característicos de cada região e desenvolveu seu
próprio método, ou seja, um simulacro
10
da técnica. Inicialmente o utilizou na confecção de
suas próprias tapeçarias e, num segundo momento, dividiu com seus alunos tanto no
Uruguai como no Brasil através dos cadernos de aluno
11
, curso por ele criado. Essa sutil
homenagem de nia Moeller traduz quanto os tapeceiros do Uruguai, Argentina e Sul do
Brasil são gratos a esse tapeceiro viajante que trouxe em sua bagagem essa cultura, a
implantou e literalmente a fez frutificar.
2.2 – O Narrador e o Mestre Tapeceiro:
O dia a dia do ateliê de tapeçaria na atualidade sofreu algumas mudanças, se for analisada a
forma como funcionava um ateliê na Idade Média. Começando pela iluminão do
ambiente que por vários séculos funcionava à luz do dia e do sol. Hoje existem várias
possibilidades de iluminação artificial que se aproximam bastante da luz natural. Embora
seja perceptível que a iluminão em alguns horários do dia, assim como em alguns
períodos do ano, favoreça uma melhor visualização das cores. Os poucos exemplares de
tapeçarias da Idade Média a que hoje se tem acesso, ainda mostram como a cor foi um
elemento fundamental na sua confecção. O leque de cores era pequeno, mas as cores eram
vibrantes se analisar que existiam tingiduras naturais e todas eram usadas de maneira
harmoniosa. Ainda hoje muitas pessoas, vítimas da imagem convencional da “idade das
trevas”, imaginam a Idade Média como uma época “obscura”, mesmo do ponto de vista
colorístico (ECO, 2007, p. 99).
Um outro fator que mudou ao longo dos séculos é a mão de obra. O ofício de tapeceiro na
Idade Média e em períodos posteriores era uma profissão que o artesão iniciava na
adolescência. Muitos tapeceiros aprendiam na própria família, com o pai e o avô também
10
Jean Baudrillard também pode ser consultado sobre o simulacro em Simulacros e Simulação.
11
Nome dado por Ernesto Aroztegui ao curso composto por três tapeçarias, onde o aluno tapeceiro aprende as
técnicas necessárias para posteriormente utilizá-las em suas próprias criações.
50
tapeceiros. Hoje, muitos tapeceiros iniciam suas atividades na universidade, como
curiosidade ou atividade de lazer. Em vários períodos da história a figura do tapeceiro
sempre foi associada aos homens, cabendo às mulheres da família o apoio no urdimento, na
preparação dos fios da trama e nos arremates. Hoje, nos vários continentes onde a tapeçaria
acontece, muitas mulheres, geralmente com mais de trinta anos, exercem a atividade. Nos
Estados Unidos da América existe a preocupação de trazer aprendizes jovens aos ateliês
para tomarem gosto pela arte da tapeçaria. A figura apresentada por Walter Benjamin
aparece aí, porque o mestre tapeceiro repassa aos mais jovens sua experiência e
conhecimento na condição de narrador. Não adianta nada o jovem tapeceiro ter acesso a
bons livros técnicos e ao exercício da atividade, isso dificilmente vai envolver e criar
vínculos. Mas quando o mestre tapeceiro intercala entre as atividades práticas, narrativas de
práticas de ateliê, fatos acontecidos ao longo da história, sim existem grandes chances de
se criar um novo tapeceiro. Na Europa, onde a tapeçaria acontece vários séculos em
ateliês, o aprendizado era feito de pai para filho e do artesão aprendiz que almejava ter uma
profissão. A técnica era passada para os mais jovens através do fazer manual, e esse
iniciava nas tarefas básicas, como separar os fios da trama, confecção do urdimento e
preenchimento do fundo da tapeçaria. O licier, responsável pelo ateliê, tecia todas as partes
importantes da tapeçaria, e supervisionava o trabalho dos demais tapeceiros. Portanto, o
aprendiz aprendia através da [...] experiência que passa de pessoa a pessoa a fonte a que
recorrem todos os narradores (BENJAMIN, 1996, p. 198). A vivência diária no ateliê e a
cobrança de um trabalho adequado por parte do licier responsável obrigavam o aprendiz a
produzir conforme as exigências e necessidades do cartão. Hoje pode-se considerar a
presença do aprendiz no ateliê uma raridade. Ao longo do século XX novos ateliês de
tapeçaria se criaram, mas a figura do aprendiz que aprendia através da experiência passada
tanto oralmente como do fazer manual está se perdendo. Seria pela falta de interesse na
atividade ou a falta de oportunidade econômica?
O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas
artesanais (BENJAMIN, 1996, p. 214). Assim também o tapeceiro uruguaio Ernesto
Aroztegui (1931-1994), encantado com a técnica da tapeçaria, buscou conhecer em diversas
partes como no Oriente Médio, na França e com os índios dos Andes. Relaciona-se o fazer
51
do tapeceiro uruguaio com a experiência da narrativa, em que as melhores narrativas
escritas [...] são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros
narradores anônimos (BENJAMIN, 1996, p. 198). A inexistência de ateliês no Uruguai e
no Brasil levou Ernesto Aroztegui a reunir em três tapeçarias propostas de exercícios que
reúnem técnicas usadas nos diversos lugares por onde ele esteve aprendendo. Ernesto
Aroztegui poderia ser considerado por Walter Benjamin o marinheiro comerciante, aquele
que vem de longe e sempre tem muito que contar. Ao passo que o licier dos ateliês entre
1400 e 1900 poderia ser o artesão que ali aprendeu, viveu e repassou seus conhecimentos,
suas histórias e tradições. Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da
arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram (BENJAMIN, 1996, p. 199).
Especificamente no centro-sul do Brasil, as cidades de São Paulo e Porto Alegre tiveram a
oportunidade de conviver por alguns anos com o tapeceiro Aroztegui. Este se deslocava
para as referidas cidades para ministrar aulas de tapeçaria. Os cadernos de aluno, como
Aroztegui os denominava, são três tapeçarias que reúnem uma rie de exercícios para
aprendizes a tapeceiro. No primeiro caderno de aluno, também denominado de Recursos
Têxteis no Plano, o aprendiz inicialmente aprende a urdir seu tear, usando três fios por
centímetro de um algodão de espessura fina. O urdimento segue um ritual de várias etapas
que deve ser firme e parelho, pois serve de sustentação para a trama. Geralmente o aprendiz
ainda não teve contato com o curso proposto, por isso ele olha o caderno de aluno como
um todo. O tear a ser usado é o de alto-liço, um tear vertical mais comum no Oriente Médio
e entre os povos andinos, e o de baixo-liço, sendo horizontal, ocupa mais espaço físico e é
usado principalmente na Europa. O caderno de aluno reúne e é tramado em várias
propostas de exercícios, que servem de alicerce para futuras tapeçarias. Para o bom
aprendizado da técnica, é primordial a presença do mestre tapeceiro e sua orientação. O
senso prático é uma das características de muitos narradores natos (BENJAMIN, 1996, p.
200). Ao final da série de exercícios, o aprendiz desenvolve um cartão com um desenho por
ele criado. O objetivo é que nesse cartão estejam inseridas as técnicas anteriormente
propostas, mas como proceder? O mestre tapeceiro poderá sugerir onde os recursos
técnicos melhor se adaptam naquele cartão. O conselho tecido na substância viva da
existência tem um nome: sabedoria (BENJAMIN, 1996, p. 200). Em toda essa trama, do
52
início ao fim é proposto ao aprendiz que use cinco cores de um mesmo fio, algodão, lã ou
acrílico, escolhidos previamente. Para Aroztegui, é mais importante o fazer manual no tear,
narrado pelo mestre tapeceiro, do que qualquer outro tipo de anotação. O aprendiz [...] é
livre para interpretar a história como quiser, e com isso [...] atinge uma amplitude que não
existe na informação (BENJAMIN, 1996, p. 203).
No segundo caderno de aluno Aroztegui propõe exercícios de domínio da forma. O
aprendiz desenvolve vários cartões para exercícios propostos verbalmente onde a história
pessoal do aprendiz faz a diferença. Quando o ritmo do trabalho se apodera do ouvinte, ele
escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom narrativo. Assim se
tece a rede em que está guardado o dom narrativo (BENJAMIN, 1996, p. 205). Nesse
segundo caderno o aprendiz escolhe novamente cinco cores, preferencialmente diferentes
das cinco iniciais. O cartão final desse caderno não deve ser fixado por baixo do urdimento
como no primeiro. O aprendiz deverá usá-lo só para fazer marcações no urdimento e
mantê-lo ao lado para observação e acompanhamento. Será que essas diferentes
experiências podem ajudar o aprendiz na escolha de suas preferências?
A tapeçaria, ao longo dos séculos, tinha utilidade de aquecer ambientes, esconder as
irregularidades das paredes e principalmente mostrar o poder de seus proprietários, por isso
suas grandes dimensões. Hoje, em virtude do alto custo da mão de obra e dos materiais, e o
longo tempo de execução, as tapeçarias foram sendo reduzidas. Assim também os
ambientes que podem expor uma grande tapeçaria são reduzidos, resumindo-se a espos
públicos. Resta então ao tapeceiro da atualidade adaptar suas tapeçarias às exigências do
mercado e [...] o homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado (BENJAMIN,
1996, p. 206). Por isso, assistem-se hoje em todos os continentes a tantas exposições de
mini-têxteis, pequenas tapeçarias, fáceis e rápidas de serem confeccionadas e transportadas.
Todos aqueles que tiveram a oportunidade de conhecer e aprender a arte da tapeçaria com
Ernesto Aroztegui, têm, por outro lado, o compromisso de repassar esses ensinamentos para
outros aprendizes da tapeçaria. A relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada
pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante é
53
assegurar a possibilidade da reprodução (BENJAMIN, 1996, p. 210). O tapeceiro deixa
de ser aprendiz quando, ao desenvolver seus cartões, os faz valorizando os recursos
técnicos da tapeçaria de forma única e criativa. Pode-se comparar essa desenvoltura do
tapeceiro com o aprendizado de um idioma, inicialmente se aprende o vocabulário, a
concordância, pequenas frases e enfim quando o raciocínio no idioma é que ocorre o
domínio sobre ele. Por essa razão, os tapeceiros medievais acreditavam que um aprendiz
deveria ser um jovem, um adolescente, um indivíduo que ao longo de sua vida teria tempo
suficiente para aprender, armazenar e usar todo esse conhecimento. Quando não existe a
maturação do conhecimento e o tempo de convivência com a fatura - fato comum na
atualidade - é muito difícil o tapeceiro que consiga criar e tecer algo que vai além da média.
Por isso [...] a memória é a mais épica de todas as faculdades (BENJAMIN, 1996, p. 210).
Segundo Benjamin, quem escuta uma história está em companhia do narrador e quem tece
sua tapeçaria está em um ateliê, em companhia do tear, da técnica anteriormente assimilada,
do seu cartão e de todos os fios necessários para execução da trama. Nos diversos períodos
da história, a atividade dentro do ateliê foi e continua sendo silenciosa, de muita
concentração, mas um exercício criativo intenso que não pode ser associado à solidão.
O primeiro som será, se quisermos, o minucioso serpentear, a passagem
dupla do fio de lã entre os fios de linho, animal e vegetal entrelaçados, um
ao outro, necessários e sem isso mortos. São estes os primeiros sons,
porque a lua ainda está longe e sobre ela as sedas arrastadas nenhum
rumor fariam. O tear bate. Ajustam-se os fios, e o tear move-se e bate.
Mas é irregular este som, tem pausas, atrasa-se ou precipita-se, porque
uma cor toma a vez doutra e é preciso pensar, porque a pintura prende os
olhos tanto (SARAMAGO, In: Poética dos Cinco Sentidos, 1979, p. 26.).
No terceiro caderno de aluno Ernesto Aroztegui propõe a confecção de franjas e formas
tridimensionais. Essas formas remetem inicialmente à cestaria, mas o que as diferencia é
que estamos ainda tramando no urdume do tear, ao passo que a cestaria não usa esse
suporte. Os volumes podem ser preenchidos e possibilidade de várias formas planas e
espaciais acontecerem na mesma composição. Segundo Ernesto Aroztegui, somente depois
de executar esses três cadernos o aprendiz estará apto a desenvolver seus próprios cartões e
se expressar através da tapeçaria. A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo
campo. Interagindo eles definem uma prática (BENJAMIN, 1996, p. 220). Portanto, a
54
escolha e combinação correta dos fios, suas texturas e cores - materiais de procedências
distintas nem sempre se harmonizam na trama - são fatores também imprescindíveis no
resultado da tapeçaria. O toque da mão em contato com os diversos materiais é que define o
que melhor se ajusta às necessidades do cartão.
Assim como [...] o narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração
consumir completamente a mecha de sua vida (BENJAMIN, 1996, p. 221), também o
mestre tapeceiro narra suas experiências ao aprendiz e não teme dividir o espaço com um
outro tapeceiro. A narrativa não tem um autor específico e o tapeceiro não tem como
prioridade assinar suas tapeçarias. Em vários períodos da história não existem registros de
quem as executou, somente quem pintou o quadro que foi desenhado como cartão e
principalmente quem as encomendou. Portanto, ainda hoje, o tapeceiro como [...] o
narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo (BENJAMIN, 1996, p.
221).
Todo o processo, desde a criação, o desenho do cartão, o urdimento adequado, a escolha
dos fios da trama, a fatura como um exercício de paciência, num certo momento chega ao
fim. O tapeceiro além de trabalhar geralmente pelo avesso, pouco visualiza da tapeçaria
entre os fios dos arremates, no processo da fatura a mesma vai sendo enrolada e somente ao
terminar e cortar os fios do urdimento poderá vê-la por inteiro.
O dia do corte é muito auspicioso para o tapeceiro, pois a peça que foi
trabalhada durante tanto tempo está pronta para ser tirada do tear.
Trabalhamos uma faixa da largura de uma mão, que depois é enrolada
num rolo de madeira; por isso só vemos a tapeçaria completa quando ela já
está pronta. E trabalhamos pelo seu avesso; para conferir o desenho, temos
de colocar um espelho embaixo para checar o trabalho. quando
cortamos a tapeçaria do tear e a estendemos no chão é que temos uma
idéia de todo o trabalho. Então, ficamos em silêncio, olhando o que
fizemos (CHEVALIER, 2006, p. 80).
55
2.3 – A Tapeçaria como Exercício Perceptivo:
O tear de alto-liço ou vertical, utilizado para confecção das tapeçarias, é de madeira, pode
ter pedais ou ser somente manual, e a impressão de ser um instrumento muito simples,
mas possibilita desenvolver trabalhos densamente elaborados. No Oriente Médio este tear é
utilizado para confecção de tapetes de chão conhecidos mundialmente como tapetes
“persas”. Nos Andes, as diversas comunidades que lá viveram e ainda vivem usam o tear de
alto-liço, feito de troncos de árvores bem rudimentares, para confecção de vestes e artigos
como bolsas, mantos, mortalhas entre outros. Na Europa, antes mesmo da Idade Média,
existem registros de tapeçarias feitas nesses teares, embora lá seja mais comum o tear de
baixo-liço ou horizontal. Na atualidade o tapeceiro pode tirar proveito de recursos como a
fotografia, as muitas possibilidades que o desenho gráfico oferece, ou ainda usar o
computador como ferramenta na criação de cartões. Pode ainda utilizar materiais não
convencionais, tanto no urdimento como na trama. Texturas variadas podem valorizar a
trama da tapeçaria e as grandes opções de cores podem até cegar o tapeceiro. O círculo de
cores é analógico; a cartela de cores é digital. A cor analógica é um contínuo, uma fusão
de todas as cores. A cor digital é individuada; envolve apenas limites, degraus e bordas. A
cor analógica é cor; a cor digital é cores (BATCHELOR, 2007, p. 128). Isso significa que
nem sempre um leque muito grande de cores é sinal de bom resultado na tapeçaria. Todos
esses recursos e essas possibilidades acima mencionadas serão significativos quando o
tapeceiro souber traduzi-las para a linguagem da tapeçaria, ou seja, quando usar os recursos
técnicos do passado harmoniosamente com as possibilidades da atualidade. Pode-se
chamar de síntese ativa da memória o princípio da representação sob este duplo aspecto:
reprodução do antigo presente e reflexão do atual (DELEUZE, 2006, p. 125).
2.4 – Os Cadernos de Aluno:
O primeiro caderno de aluno, também denominado Recursos Têxteis no Plano, reúne uma
série de exercícios que podem ser utilizados pelo tapeceiro posteriormente, para
desenvolver seus próprios cartões. O aluno tapeceiro ao iniciar esta atividade tem a tarefa
56
de escolher cinco cores contrastantes de fios de mesma espessura, fina ou média, podendo
ser de algodão, lã, linho ou algum material sintético. O contato tátil com os diversos
materiais é determinante na escolha deste ou daquele fio a ser usado, pois em clima quente
a grande maioria prefere trabalhar com algodão, enquanto no hemisfério norte utiliza-se na
grande maioria lã e linho. Inicialmente, a escolha das cinco cores é a única contribuição do
aluno tapeceiro, que, à primeira vista, parece algo sem importância, mas pode ser
considerada a identidade do aluno, uma vez que sempre se escolhem cores que agradam ou
um conjunto de cores que encantam. O visível à nossa volta parece repousar em si mesmo.
[...] como se houvesse entre ele e s uma familiaridade tão estreita como a do mar e da
areia (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 128).
O urdimento desse primeiro caderno de aluno é de três fios por centímetro, podendo ser
feito de barbante bem fiado e preferencialmente de boa qualidade. Devido à tensão contínua
dada ao urdimento durante a execução do trabalho, o mesmo deve ser de boa qualidade
caso contrário poderá comprometer toda a trama. Ao urdir o tear, o fio segue contínuo em
volta da estrutura retangular muito bem tencionado. O ato de urdir o tear considera-se um
ritual onde o tapeceiro tem seu primeiro contato visual e tátil com sua futura tapeçaria e,
como o fio é contínuo, a execução não deve ser interrompida para não comprometer a
tensão do urdimento. A largura do urdimento é proporcional ao tamanho do cartão a ser
executado e Deleuze considera o tecido como um espaço estriado que pode [...] ser infinito
em comprimento, mas não na sua largura, definida pelo quadro da urdidura, a necessidade
de um vai e vem, implica um espaço fechado (DELEUZE, 2007, p. 181). Em seguida os
alunos separam os fios do urdimento, um para cima e outro para baixo, formando a calada e
nos fios de baixo são colocados os liços. Esse contato inicial acaba criando uma conivência,
ou melhor, uma intimidade do aluno tapeceiro com seu tear, e reforça a proposta inicial de
Ernesto Aroztegui onde o aluno tapeceiro tem a possibilidade de experimentar urdir o tear
o através de anotações, mas vivenciar o fazer, cada qual o seu. O ato de urdir é uma
experiência pessoal onde se utiliza a visão, o tato e através do olfato percebe-se o cheiro
característico da goma do fio de algodão. Segundo Maurice Merleau-Ponty (2000, p. 131),
toda experiência do visível sempre me foi dada no contexto dos movimentos do olhar, o
espetáculo visível pertence ao tocar nem mais nem menos do que as “qualidades tácteis”.
57
No capítulo O Entrelaçamento O Quiasma, no livro O Visível e o Invisível, o autor
Maurice Merleau-Ponty inicialmente relaciona o sentido da visão com a fala e mostra como
esses dois instrumentos de comunicação estão interligados. Depois ele menciona que o
olhar envolve e apalpa as coisas visíveis, mas é através do contato tátil das mãos, que se
percebem as diferenças das texturas lisas das rugosas. Contudo, é preciso que esta
exploração tátil tenha um significado para aquele que a executa, ou seja, deve fazer sentido
o toque para que haja o aprendizado. Segundo Merleau-Ponty existe uma indefinição entre
os sentidos da visão e do tato, porque [...] o mesmo corpo e toca, o visível e o tangível
pertencem ao mesmo mundo (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 131). Percebem-se através do
tato, e ainda de forma distinta na mão direita da esquerda, as texturas dos fios de cores
diferentes. Isso ocorre porque cada tingidura, dependendo da química utilizada, produz
qualidades distintas às diversas cores. Para Merleau-Ponty a cor é variante, isto é, depende
de sua vizinhança, talvez seja justamente essa a intenção de Aroztegui ao limitar em cinco
cores as possibilidades nos cadernos de aluno. Essa sensibilidade o aluno tapeceiro
desenvolverá através do entrelaçamento das experiências visuais e táteis.
Inicialmente, o aluno tapeceiro só tem uma idéia do caderno de aluno, a visão do todo, o
conjunto da tapeçaria que o encanta, portanto ele não consegue visualizar os exercícios
sendo unidades ou como recursos técnicos disponíveis para utilizar em criações posteriores.
Para que isto ocorra [...] é preciso que aquele que olha não seja, ele próprio, estranho ao
mundo que olha (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 131).
Faz-se então uma série de subdivisões no urdimento para iniciar os exercícios (ver figura
18). O aluno tapeceiro escolhe duas cores das cinco inicialmente por ele selecionadas e faz
um degradê sensível, onde numa extremidade tece em média 25 fios do urdimento e na
outra, tece somente um fio. Conciliar o uso das diversas mesclas com o controle de
urdidura é o grande desafio deste primeiro exercício. [...] minhas duas mãos tocam as
mesmas coisas porque são as mãos de um mesmo corpo; ora, cada uma delas possui sua
experiência tátil (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 137). Na atividade do tear, tanto no
urdimento como na trama, o tapeceiro usa as duas mãos, por isso inicialmente é tão difícil
58
para o aluno tapeceiro desenvolver as atividades com a mão não adestrada. Num segundo
momento essa mesma mão não tem a sensibilidade de perceber as diferenças de espessura e
textura dos fios que facilmente a outra o educada diferencia. O que ocorre nessa
seqüência de exercícios é justamente a mistura de cabos de duas cores, ou seja, ao preparar
os fios para o degradê o aluno tapeceiro vai misturar as cores de fios de tal forma que haja
uma passagem harmoniosa de uma cor para a outra e sempre usando a mesma espessura do
fio para não comprometer a textura da trama na tapeçaria como um todo.
Figura 18
Subdivisões no urdimento
Fonte da imagem: caderno de aluno de Elke Hülse.
No segundo exercício o degradê de duas cores é racional, e o material proposto é linha de
costura, onde nas extremidades estão as cores puras e no centro a metade dos cabos de cada
cor. No terceiro exercício o degradê é com as cinco cores, observando que inicie da cor
com mais luz para a cor com menos luz, fazendo um degradê sensível. Nas duas laterais o
aluno tapeceiro, de acordo com Aroztegui, desenvolverá o degradê de três e cinco cores,
59
um diferente do outro. Com a primeira visão, o primeiro contato, o primeiro prazer,
iniciação, [...], estabelecimento de um nível que será ponto de referência para todas as
experiências daqui em diante (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 146). Tendo completado essa
primeira série de exercícios usando a técnica do degradê, o aluno tapeceiro normalmente
utiliza todas as cinco cores alternadamente. Certamente um novo olhar do mesmo, diante
do seu caderno de aluno, em distribuir harmoniosamente essas mesmas cores (ver figura
19). Eventualmente acontecem questionamentos de que já se esgotaram todas as
possibilidades de combinações das cinco cores e a preocupação em redistribuir as mesmas
cinco cores nos exercícios posteriores. Nessa etapa o aluno tapeceiro também começa a
observar os exercícios propostos isoladamente, tentando familiarizar-se com a técnica.
Existe o encantamento inicial com o resultado parcial da fatura e ao mesmo tempo uma
preocupação estética com o todo.
Figura 19
Cinco exercícios de degradê.
Fonte da imagem: caderno de aluno de Elke Hülse.
60
Na seqüência o aluno tapeceiro faz uma faixa de 1,5 cm de altura tramando duas cores que
se repetirão com propostas variadas intercalando os exercícios maiores. O sétimo exercício
propõe emendas e fendas entre duas cores. As emendas podem ser posteriores ou acontecer
na trama, ou seja, ao tecer duas cores, lado a lado, o aluno pode emendá-las através de
hachuras mínimas que, além de serem uma ótima sustentação, funcionam como efeito
decorativo. O nono exercício é maior, tem 10 cm de altura e é composto de três figuras
geométricas planas. Na primeira, o quadrado é tecido em degradê de duas cores e seu fundo
em volta com as mesmas cores no sentido inverso. A segunda figura, um triângulo tecido
em degradê de três cores e o fundo também no sentido inverso; finalmente a terceira figura,
um losango em degradê de cinco cores. Percebe-se nesse exercício uma dificuldade em
coordenar além da figura/fundo, o uso e a troca correta das cores para formar um degradê
sensível, pois todos dominam visualmente estas formas geométricas tão elementares, mas
ao trazer para esta linguagem, existe a preocupação com a verdade (ver figura 20). O
décimo primeiro exercício propõe os listados de trama, horizontais e inclinados ou curvos.
Nesse momento surge uma nova dificuldade, a de tecer em inclinada e curva, pois a visão
tende a padronizar tudo na horizontal. Culturalmente tenta-se manter e alcançar sempre o
horizonte, porém em certas circunsncias encontram-se dificuldades para alcançá-lo,
entretanto quebrar este paradigma e tentar tecer em curva pode ser um desafio. No décimo
terceiro exercício introduz-se o smyrna
12
, uma técnica muito usada no Oriente Médio onde
todos os tapetes são tecidos nessa técnica, menos os kelim
13
. No caderno do aluno, o
smyrna é usado como uma curiosidade e num dado momento propõe-se desenvolver um
desenho (cartão), usando como tema o feio (ver figura 21). Essa proposta do feio traz à tona
o peso cultural que esta qualidade tem, e por outro lado no smyrna, sendo uma técnica tátil,
dificilmente há unanimidade quanto à feiúra proposta.
É preciso que nos habituemos a pensar que todo visível é moldado no
sensível, todo ser táctil está voltado de alguma maneira à visibilidade,
havendo, assim, imbricação e cruzamento, não apenas entre o que é
tocado e quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está nele
incrustado (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 131).
12
Tipo de usado pelos tapeceiros da cidade de Smyrna, na Turquia, e que forma um pêlo de espessura
dia, também usado por tapeceiros de outras regiões.
13
Também denominado kilim, comumente usado na Turquia, mas proveniente da Pérsia onde significa “algo
áspero”. É a técnica rica em desenhos geométricos na qual as cores não se entrelaçam, ou seja, existem
pequenas fendas entre as diversas formas que compõem o tapete.
61
Figura 20
Degradê em figuras geométricas planas.
Fonte da imagem: caderno de aluno de Elke Hülse.
Nesse momento em que o aluno tapeceiro finaliza praticamente a metade dos exercícios
propostos, recebe as primeiras informações sobre o cartão final de curso. Cada qual
escolherá uma imagem, que pode ser um desenho, uma fotografia, uma imagem
computadorizada. Qualquer imagem pode ser desenhada e adaptada para a técnica, também
denominado cartão. Cada vez que queremos ter acesso à idéia imediatamente, [...]
enquadrá-la, ou vê-la sem véus, percebemos perfeitamente que a tentativa é um contra-
senso, que ela se afasta à medida que dela nos aproximamos (MERLEAU-PONTY, 2000,
p. 145).
No décimo quinto, décimo sexto e décimo sétimo exercícios, têm as interpenetrações e
hachuras horizontais, técnicas muito utilizadas na tapeçaria como sustentação, e
visualmente também proporcionam efeito de sombra, profundidade (ver figura 22) e [...] a
cor é, aliás, variante em outra dimensão de variação, a de suas relações com a vizinhança
62
[...], é uma espécie de na trama do simultâneo e do sucessivo (MERLEAU-PONTY,
2000, p. 129).
Figura 21
Figuras geométricas em Smyrna.
Fonte da imagem: caderno de aluno de Elke Hülse.
O décimo nono exercício propõe as interpenetrações curvas, os arabescos, as chamas e a
relva, onde se retoma o tramado curvo e inclinado. Esses podem ser desenhados no
urdimento, ou num cartão sob o urdimento para facilitar sua execução. O vigésimo primeiro
exercício propõe o degradê de textura e o degradê por pontos ou manchas. Ao terminar esta
etapa, o aluno tapeceiro estará por algum tempo estudando algum desenho que será seu
cartão final de curso. Isto significa que ele desenvolverá um desenho na largura do
urdimento, com altura aproximada de 15 cm, podendo usar mais uma cor além das cinco
cores iniciais e utilizando vários recursos têxteis.
Como escolher entre os diversos recursos têxteis, qual melhor se adapta em cada situação
do cartão? Esse é o novo desafio para o aluno tapeceiro.
63
Caminhamos em direção ao centro, procuramos compreender como há um
centro, em que consiste a unidade, não dizemos que ela seja soma ou
resultado e, se fazemos o pensamento aparecer sobre a infra-estrutura de
visão, é em função desta visão incontestada que é preciso ver ou sentir
[...], que todo pensamento advém de uma carne (MERLEAU-PONTY,
2000, p. 141).
Figura 22
Exercícios de interpenetrações.
Fonte da imagem: caderno de aluno de Elke Hülse.
Ao tecer este cartão final de curso (ver figura 23) reunindo uma imagem e utilizando os
recursos têxteis acima mencionados, qual a contribuição do aluno tapeceiro? Essa relação
mágica entre o tapeceiro e sua tapeçaria é algo além do visível e do palpável, é a sua
verdade. A experiência perceptiva traz idéias ao tapeceiro que sua razão transformará em
objetos reais.
O segundo caderno de aluno denomina-se Controle e Domínio da Forma, utiliza um
urdimento de três fios duplos, ou seja, seis fios por centímetro. Esse urdimento possibilita
64
tramar detalhes minuciosos desenhados no cartão. O aluno tapeceiro escolhe cinco cores
distintas das anteriores e também segue usando-as até o final do caderno. A primeira faixa
de exercícios tem vinte centímetros de altura e divide-se em três propostas de desenhos com
formas inclinadas em vários ângulos. Na seqüência é feita uma faixa de 1,5cm onde
exercita a técnica do jackard. No terceiro exercício o aluno tapeceiro desenha dois cartões,
no primeiro, um pequeno retângulo em cinco posições distintas de movimento seqüencial
onde o fundo é liso e os retângulos são tramados em degradê de duas cores. No segundo,
um pequeno envelope quadrado também em cinco posições de movimento, no qual o fundo
é um degradê de duas cores e o envelope também é tramado com duas cores.
Figura 23
Cartão final do primeiro caderno de aluno em execução.
Fonte da imagem: caderno de aluno de Elke Hülse.
65
O quinto exercício tem 12,0cm de altura e divide-se em três partes, onde a primeira é uma
composição de 6 a 8 formas geométricas conntricas e preferencialmente desencontrando
as arestas. As demais são composições com letras que expressam sentimentos de
agressividade e raiva, de tranqüilidade e paz. Cabe ao aluno tapeceiro desenvolver seu
cartão usando as técnicas do caderno anterior e escolhendo as cores mais apropriadas para
cada composição. Aqui o passado é presente e como Deleuze escreve [...] o passado é
contemporâneo de si como presente que todo presente passa, e passa em proveito de um
novo presente (DELEUZE, 2006, p. 126).
No sexto exercício o aluno vai tecer movimentos circulares que destacam uma situação
comum na tapeçaria, ou seja, o fundo em vários momentos define a forma. No sétimo
exercício o aluno tapeceiro fará uma composição de 15,0cm de altura usando as cinco cores
com círculos de vários tamanhos, semicírculos, círculos tangentes e secantes. O nono
exercício é uma composição de 15,0cm de altura, usando elipses e espirais com
sobreposição de formas, transparências e o fundo composto de duas cores. O décimo e
décimo segundo exercícios são faixas decorativas com 1,5cm de altura, usando formas
simétricas curvas e inclinadas. No décimo primeiro exercício o aluno tapeceiro desenvolve
um cartão com o seu monograma e tece seu nome criando composições que podem vir a ser
usados em tapeçarias de sua autoria.
O décimo terceiro exercício é dividido em três partes onde cada uma abriga um cubo, um
cone e um cilindro com sombras em planos tridimensionais. Ao terminar essa série de
exercícios, o aluno tapeceiro fará seu cartão final sem fixá-lo sob o urdimento. Essas
diversas possibilidades proporcionam ao aluno tapeceiro escolher a melhor maneira de
posteriormente trabalhar com seus cartões. Na tapeçaria, como em qualquer outra atividade
manual, não existe uma regra, mas várias formas de trabalhar os recursos técnicos da
maneira que o tapeceiro melhor se adapta. É comum que o aluno tapeceiro, ao executar o
cartão final do segundo caderno, perceba o quanto é rico em conteúdo e quanto ele pode
explorar e aprender com esses cadernos de aluno. Aprender é o nome que convém aos atos
subjetivos operados em face da objetividade do problema (Idéia), ao passo que saber
66
designa apenas a generalidade do conceito ou a calma posse de uma regra das soluções
(DELEUZE, 2006, p. 236).
No terceiro caderno de aluno, denominado Franjas e Formas Tridimensionais, o aluno
tapeceiro vai tramar formas tridimensionais cheias e vazadas sem abandonar a estrutura do
tear. Isso significa que o urdume passa a ser usado sem os liços, ou seja, em pré-tear, e a
trama segue em volta do urdimento. Embora essacnica limite um pouco o uso do
desenho, é possível tramar formas planas juntamente com as tridimensionais. A cestaria se
assemelha bastante à técnica do tridimensional na tapeçaria, porém esta não usa o tear
como suporte.
Se o que se quer são metáforas, seria melhor dizer que o corpo sentido e o
corpo que sente são como o direito e o avesso, ou ainda, como dois
segmentos de um único percurso circular que do alto, vai da esquerda
para a direita e, de baixo, da direita para a esquerda, constituindo, todavia,
um único movimento em suas duas fases (MERLEAU-PONTY, 2000, p.
134).
Todas essas possibilidades técnicas que Ernesto Aroztegui oferece ao aluno tapeceiro
também estão em livros específicos e podem ser estudados em ateliês centenários ou em
cursos superiores de diversos países. Aprender é penetrar no universal das relações que
constituem a Idéia e nas singularidades que lhes correspondem (DELEUZE, 2006, p. 237).
Cabe ao aluno tapeceiro buscar nas mais diversas fontes as informações e anseios que ele
almeja para seu conhecimento da técnica na tapeçaria.
67
CAPÍTULO 3
Tapeceiros Contemporâneos
68
Ao longo de séculos o conhecimento do uso da técnica da tapeçaria sempre foi passado
pelos tapeceiros mais experientes aos mais jovens nos ateliês em um trabalho diário de
disciplina e exaustão. Apresentar três histórias distintas de vida, mas unidas por um
conteúdo comum, faz-se necesrio para mostrar que aqui a tapeçaria é a motivação.
Cabe perguntar se diferença ou repetição entre o trabalho de um tapeceiro nascido
entre tapeceiros e aquele que ao longo da vida optou por esta atividade?
3.1 – Luiz Ernesto Aroztegui, sua história e obra:
Artistas dificilmente o tão interessantes quanto sua obra
1
(ABBONDANZA, 1995, p.
45 - tradução da autora). Esta frase enunciada pelo crítico de arte uruguaio Jorge
Abbondanza define muito bem Luiz Ernesto Aroztegui, que nasceu em 1930 na cidade
de Melo no interior do Uruguai e faleceu em 1994 em Montevidéu. Não teve contato
familiar com a tapeçaria, mas na década de 50 encantou-se por ela quando fez os
primeiros ensaios. Durante dez anos viajou, pesquisou e conheceu a tapeçaria do
Oriente Médio, da França e da América do Sul, com alguns povos andinos. Tendo a
oportunidade de conviver por algum tempo nesses lugares, ele aprendeu muito da
técnica utilizada em cada região visitada. Conheceu seus teares que pouco diferem de
um continente para outro, o processo de cada região, adaptado ao seu produto. A
matéria prima predominante nas três regiões é a lã, mas proveniente de animais
distintos.
O Uruguai não tem exemplares significativos de arte pré-colombiana e nem teve
movimentos artísticos expressivos até a década de 50, surgindo o somente alguns
artistas isolados como Carmelo de Arzadun, Guillermo Laborde, Jose Cuneo, entre
outros. As artes plásticas na Escola Superior de Belas Artes neste período dividiam
espaço com a cerâmica e a ourivesaria em prata, atividades estas muito expressivas até
então. Aroztegui ingressou no meio artístico de Montevidéu em meados da década de
1
Künstler sind selten so interessant wie ihr Werk .
69
60, lecionando no Instituto Artigas de Professores, estudou hisria da arte e participou
de encenações teatrais. Em 1965 montou o Ateliê de Montevidéu, onde ministrou aulas
de tapeçaria e, junto com seus alunos, criou na década de 70 o Centro de Tapeçaria do
Uruguai (CETU). Aroztegui envolveu inclusive familiares na arte da tapeçaria, criou
uma referência em seu país que frutificou e até hoje novas gerações de tapeceiros são
formados. Ele sempre teve uma dedicação especial para com seus alunos, conquistando-
os e envolvendo-os na atividade, muitos deles tornando-se colegas de profissão. Sua
produção arstica como tapeceiro foi sempre uma busca pelo exercício da técnica, ou
seja, criação e experimentação. Segundo Deleuze, pode-se dizer que aprender, é uma
tarefa infinita (DELEUZE, 2006, p. 238). O resultado desse empenho como tapeceiro
apareceu ao longo dessa trajetória de vida, ao participar da décima Bienal de São Paulo
e da Bienal de Veneza em 1986. Hans Belting, historiador da arte faz a seguinte
colocação sobre a fotografia, que também é pertinente à tapeçaria:
Durante muito tempo pareceu que a história da fotografia era apenas
uma história das técnicas fotográficas, a saber, como se funcionassem
segundo o lema: fazemos sempre aquilo que podemos fazer a cada
momento. Porém como se pode explicar que, a despeito do aparelho
fotográfico e de sua técnica neutra, reconhecemos imediatamente os
grandes fotógrafos por seu estilo pessoal?(2006, p. 211).
O tear da tapeçaria é sempre o mesmo e os materiais alternam, mas o processo de
execução sempre segue o mesmo princípio, quase todos partem de um cartão; será então
a leitura e interpretação desse cartão o diferencial? Somente depois de muito explorar a
técnica, Aroztegui assim como tantos outros tapeceiros da contemporaneidade foram
reconhecidos pelo público espectador. Ele considerava esse processo natural e
necessário, por esta razão, primava e cobrava de seus alunos o mesmo procedimento.
Aroztegui dedicou-se intensamente à tapeçaria, mas sempre estava disponível aos
amigos e às surpresas da vida, deixava transparecer um entusiasmo juvenil que era
limitado pela idade do corpo físico. Tão magro e ossudo como era, Aroztegui tinha
rompantes de fúria e desequilíbrio, mas também períodos de trabalho ininterrupto.
Quem conhecia suas alterações de humor, dificilmente conseguia imaginar como ele
podia ficar durante horas tecendo diante de um tear
2
(ABBONDANZA, 1995, p. 45 -
tradução da autora). Como tapeceiro, pesquisou e desenvolveu recursos técnicos que
2
So mager und knochig, wie er war, hatte Aroztegui Ausbrüche von Wut und Unausgeglichenheit, aber
auch Perioden unbegrenzten Arbeitseifers. Wer seine Stimmungen kannte, konnte sich nur schwer
vorstellen, wie er stundenlang vor seinem Webstuhl sitzen konnte.
70
melhor se adaptassem aos seus cartões. Em seus 25 anos de profissão foi incanvel na
busca de novas experiências, na divulgação da tapeçaria em eventos mundiais e
conquistou novos alunos tanto no Uruguai como no Brasil. Ao participar da décima
Bienal de São Paulo, na oportunidade ele reuniu um grupo de tecelões interessados em
aprender a técnica tradicional da tapeçaria nesta cidade, com os quais iniciou um curso
que se estendeu por alguns anos. Nesta oportunidade Henrique Schucman foi um dos
participantes, que será apresentado a seguir. Da mesma forma aconteceu em Porto
Alegre, onde Aroztegui também ministrou workshops para tapeceiros da região.
Na década de 60, rias manifestações artísticas como a tapeçaria, a escultura em
madeira e o vitral ganharam relevância no Uruguai, dividindo espaço com a pintura e
outras atividades desenvolvidas na Escola Superior de Belas Artes de Montevidéu.
Aroztegui participou ativamente desta quebra de paradigmas das artes plásticas e as
artes menores. Foi pelas mãos desse tapeceiro e de Celia Brugnini que a tapeçaria no
Uruguai ganhou espaço e adeptos, tanto na Universidade como nas galerias de
exposições. A partir da cada de 70 anualmente aconteceu um encontro nacional de
tapeceiros em Montevidéu para exposição, análise e avaliação dos trabalhos executados.
Em 1973 e nos anos seguintes, com a ocupação militar, estes encontros foram
importantes para a sobrevivência da atividade. Como não havia muitas iniciativas
artísticas, Aroztegui acreditava que essas reuniões e exposições manifestariam a
energia, o vigor e a persistência dos tapeceiros. O trabalho de Aroztegui foi significativo
nesses 25 anos de produção, quando se sabe que a fatura da tapeçaria é de resultado
demorado. Aos olhos dos espectadores e admiradores, o tapeceiro captava com
habilidade e sutileza elementos do contexto e os explorava de tal forma que em algumas
tapeçarias é no fundo que ele concentra a riqueza de sua pesquisa. A série de retratos de
celebridades por ele tramada mostra o rigor técnico que ele sempre almejava, e a
realidade das figuras contrapõem com as combinações cromáticas usadas no fundo. Para
Tassinari, a arte do retrato é em parte captar o não-sei-quê do retratado (TASSINARI,
2006, p. 90). Algumas personalidades como Freud, Borges e Golda Meir fazem parte
dessa série (ver figuras 24 e 25). Ao escrever um breve currículo para a Bienal de
Veneza, Aroztegui comenta:
Eu tenho gasto muito esforço, energia e tempo em minhas tentativas
de me libertar do jugo intelectual, e estou tranqüilo, não certo de que
eu alcancei o degrau que gostaria. Por tudo isso não poderia
71
responder, por exemplo, a perguntas como: Por que você escolheu o
gobelin no auto-liço como técnica plástica? Por que o tema dos
retratos? Por que precisamente estas pessoas? Por que retratos em
gobelin?
3
(AROZTEGUI, 1994, p. 50 - tradução da autora).
Figuras 24 e 25
Ernesto Aroztegui
Golda Meir e Jorge Luis Borges
Fonte das imagens: ABBONDANZA, Jorge. Luiz Ernesto Aroztegui. Têxtil&forum, Hannover, n.2, p.44-
45, 1995.
3
I have spent a lot of effort, energy and time in my attempt to free myself from the intellectual yoke, and
I’m still not sure I have succeeded to the degree I would like. Because of all this, I could not answer, for
example, questions such as: Why did you choose the gobelin haute lisse as a plastic technique? Why the
theme of the portrait? Why precisely these persons? Why portraits in gobelin?
72
Fez ainda experiências com deformações óticas, onde esticava ou encolhia rostos
famosos (ver figura 26). Utilizou uma técnica no tear onde a urdidura fica aparente e
esta, juntamente com a trama, formam uma espécie de retícula. Segundo Rosalind
Krauss, a retícula reafirma a modernidade da arte moderna através de duas maneiras
distintas, uma espacial e outra temporal. No sentido espacial ela declara a autonomia da
arte que se manifesta de maneira antinatural, antimimética e antireal (KRAUSS, 2002,
p. 23). No sentido temporal ela pode ser analisada como uma característica inexistente
no culo XIX. Apesar de Aroztegui experimentar essa técnica somente em meados da
década de 70, o crítico Jorge Abbondanza classifica essa rie como sendo uma busca
de novas fronteiras. No acabamento de seus trabalhos, Aroztegui usou os mesmos
métodos usados nas grandes tapeçarias desde a Idade Média, sem molduras e
possibilitando a obra se inserir ou voltar ao espo de exposição. Para Tassinari, o que
há de novo na arte contemporânea é que a moldura espacial da obra não a separa mais
do mundo cotidiano. Não o transcende, apenas traça pontes para uma experiência
estética que vai do mundo ao próprio mundo (TASSINARI, 2006, p. 91).
Figura 26
Ernesto Aroztegui
Mahatma Ghandi
Fonte da imagem: ABBONDANZA, Jorge. Luiz Ernesto Aroztegui. Têxtil&forum, Hannover, n.2, p.44-
45, 1995.
73
Em toda sua trajetória, Aroztegui ultrapassava os limites da linguagem têxtil tradicional
e em sua participação na Bienal de Veneza, segundo Graciela Kartofel, crítica de arte,
os visitantes, [...] entravam, sorriam indefectivelmente comovidos. Os rostos saíam
transformados e as expressões suavizadas, o olhar nostálgico e alerta (KARTOFEL,
1994, p. 07). A tapeçaria Mi Vision Del Mundo” Albert Einstein (ver figura 27)
apresenta detalhadamente as diversas espessuras de letras desenhadas com giz no
quadro negro. Para conseguir esse efeito de cores ele fez uso do chinè, recurso no qual
o usados alguns cabos de uma cor misturados a vários de outra cor. Através deste
recurso ele consegue tecer algumas letras mais nítidas e outras dando a impressão de
estarem quase se apagando.
Figura 27
Ernesto Aroztegui
Albert Einstein
Fonte da Imagem: Ministério de Educación y Cultura. XLII Biennal de Venezia. Venezia, Museo Nacional
de Artes Plásticas e Visuales, (1986).
O número reduzido de cores, além do contraste entre elas, pode servir como atrativo
para o espectador. O retângulo em dégradé de cinco cores no centro do quadro negro
desestabiliza a rigidez dos cálculos, das equações e das demais anotações ali
74
apresentadas. No lado direito superior da tapeçaria a fórmula que o tornou conhecido e
ainda a figura de Einstein com um giz na mão diante do quadro negro, ou seria um tear
de auto-liço? Todo o rigor técnico que Aroztegui utilizava em suas tapeçarias e a
disciplina com que realizava seu trabalho podia, ser percebido no contato que tinha com
seus alunos. Assim como Aroztegui priorizava que seu aluno exercitasse as técnicas no
tear ao invés de anotações escritas, também seu trabalho como tapeceiro foi pouco
registrado. Esse exercício manual realmente é imprescindível para todo tapeceiro,
porque as duas mãos trabalham juntas dividindo tarefas e não existe comando de um
dos lados. Esta atividade requer equilíbrio, é preciso que o tapeceiro exercite justamente
atribuir tarefas similares às duas mãos.
As mãos não são um par de gêmeos passivamente idênticos, nem se
distinguem uma da outra como a mais velha e a cula ou como duas
moças desigualmente dotadas, uma versada em todas as habilidades e
a outra, mera escrava embotada pela monotonia da prática de
trabalhos grosseiros. [...] Construída como a outra, ela tem as mesmas
aptidões, às quais renuncia para ajudá-la (FOCILLON, 1983, p. 129).
As imagens existentes atualmente das tapeçarias de Aroztegui estão em revistas
específicas, ilustrando artigos sobre sua trajetória. Na grande maioria são em preto e
branco o que dificulta a visualização das cores usadas principalmente no plano de fundo
onde ele explorava e experimentava as várias possibilidades técnicas. Vários exercícios
de estudo de cores propostos por Aroztegui são similares aos exercícios propostos por
Josef Albers em seu livro, recém editado em português, A interação da cor, onde este
autor sugere o uso de papéis enquanto Aroztegui em seus cadernos de aluno sugere o
uso de fios de algodão ou lã. Josef Albers sugere que os estudos feitos com tiras de
papel:
[...] nos farão lembrar imediatamente de tecidos, e poderemos lê-los e
interpretá-los como tecidos de lã ou de algodão para usos diversos -
de diferentes climas de cor: do novo ao velho, do jovem ao idoso, do
moderno ao antigo - associados a povos, épocas e períodos (ALBERS,
2009, p. 66).
Aroztegui, sendo um obstinado e insistente pesquisador da técnica da tapeçaria, também
não mediu esforços ao divulgar entre seus alunos todo seu conhecimento. Ele usava a
técnica para se aproximar ao máximo do real e o processo da fatura era mais importante
que a criação do cartão. Vários rostos tramados em suas tapeçarias saíram de jornais ou
revistas e foram adaptados como cartões. Quando o espectador está familiarizado com a
75
imagem que vê, isto é, o retrato de celebridade, fica mais suscetível a perceber o
processo técnico utilizado, os materiais e as cores. Por outro lado, ao usar a técnica da
retícula como recurso, associado à distorção dos traços do rosto das celebridades,
Aroztegui enfatiza o simulacro. Será que Aroztegui teceu preferencialmente retratos de
celebridades para enaltecer justamente o exercício da técnica da tapeçaria?
3.2 – Henrique Schucman, sua história e obra:
Henrique Schucman nasceu em Erechim, interior do Rio Grande do Sul, em 1950, mas
fez contato com a tecelagem na cidade de São Paulo. Morando nessa cidade fez
engenharia elétrica na Universidade Federal de São Paulo, mas ao conhecer o tapeceiro
uruguaio Ernesto Aroztegui abandona a carreira da engenharia. Inicia como aluno,
executando os exercícios dos cadernos de aluno e atua no Ateliê Casa 11
4
em São
Paulo. No ateliê promovia cursos para iniciantes em vários tipos de teares e assim
difundiu a tapeçaria nessa região do Brasil. Em 1989 fez uma exposição individual no
MASC Museu de Arte de Santa Catarina -, em Florianópolis onde apresentou várias
tapeçarias de tamanho médio e grande. Uma delas, denominada Cidadíndio (ver figura
28), com 300 x 200 cm, sugere uma montagem de duas partes bem distintas das
diversidades do Brasil. Uma paisagem urbana noturna, provavelmente em São Paulo,
com os inúmeros clarões de luzes dos engarrafamentos de carros e as infinitas luzes dos
prédios e luminosos, o deixando a cidade escurecer. Ao lado o índio sendo iluminado
pelo clarão dessas mesmas luzes olha assustado para a cena. Essa tapeçaria, assim como
várias outras por ele tramadas, remetem justamente à nossa realidade, aos belos
contornos e expressões dos nossos indígenas (ver figuras 29 e 30). Se Aroztegui foi
incansável na pesquisa da técnica, Henrique busca renovar na pesquisa de materiais e
tem uma profunda obstinação em reaproveitar tudo que possa ser cortado em tiras e ser
tramado. Em 1998 Henrique participou da 9th Internacional Trienale of Tapestry em
Lodz na Polônia com a tapeçaria Meninas da Guerra (ver figura 31).
4
O Ateliê Casa 11 iniciou suas atividades com Marina e Jacques Overmeer, ministrando cursos em tear
manual com finalidades terapêuticas na Clínica Tobias. Em novo endereço, Henrique faz parceria com
Marina e durante dois anos ministram juntos aulas de tear de pente-liço e posteriormente também em
auto-liço. Depois de quatro anos de parceria outras tapeceiras se associam à Casa 11 e durante 10 anos
produzem tecidos, tapetes, mantas, tapeçarias e divulgam atras de cursos a arte nos diversos teares.
76
Figura 28
Henrique Schucman
Cidadíndio (1986).
Dimensões: 300x200cm
Fonte da Imagem: RUSSEL, Carol. The Tapestry Handbook. Hong Kong, 1990.
Figuras 29 e 30
Henrique Schucman
Mirada Indígena (1987) Interferência (1988)
Dimensões: 200x100cm Dimensões: 140x180cm
Fonte das Imagens: http://turisite.com.br/henrique/
77
Sua urdidura foi feita em algodão com a média de dois fios por centímetro, e na trama
foram usados materiais plásticos, cordas, nylon, entre outros, recolhidos na beira das
praias de Florianópolis durante meses antes de sua confecção. Materiais estes de
diversas procedências que foram lavados pela chuva e posteriormente cortados em tiras
para poderem ser tramados. Todo esse processo de preparação dos materiais pode ser
considerado similar ao usado pelos ateliês da Idade Média, porque como as tapeçarias
eram muito grandes era preciso ter grandes quantidades das diversas cores de lã tingidas
em uma mesma tingidura, e segundo Focillon, as matérias possuem um certo destino
ou, se quisermos, uma certa vocação formal. Elas têm consistência, cor, textura. Elas
são forma, [...] por isso mesmo provocam, limitam ou desenvolvem a vida das formas
da arte (FOCILLON, 1983, p. 68).
Figura 31
Henrique Schucman
Meninas da Guerra (1996)
Dimensões: 180x280cm
Fonte da Imagem: Fotografado por Elke Hülse.
78
No ato de recolher restos também é preciso calcular quantidades de cores e texturas
necessárias para a execução da obra e para tanto, [...] são escolhidos não apenas pela
comodidade do trabalho ou na medida em que a arte serve às necessidades da vida,
pela adequação do seu uso, mas também porque causam certos efeitos (FOCILLON,
1983, p. 68). Na confecção da tapeçaria Meninas da Guerra percebe-se no detalhe (ver
figura 32) que existe uma riqueza de cores muito bem estudada, apesar da textura da
trama ser bem irregular e dificultar a visualização pormenorizada. Da mesma forma, o
material ali utilizado não permite a sofisticação da técnica e o detalhamento dos
elementos descritos na série de tapeçarias A Dama e o Unicórnio. Mas como a cena
mesmo sugere um ambiente cheio de cinzas e destroços os materiais ali empregados
suprem e dialogam perfeitamente com as necessidades da cena. Segundo Focillon:
[...] os mestres do Extremo-Oriente, para quem o espaço é
essencialmente o lugar de transformações e de migrações e que
sempre consideraram a matéria como a encruzilhada de um grande
número de caminhos, preferiram, entre todas as matérias da natureza,
aquelas que são, [...] as mais intencionais e que parecem elaboradas
por uma arte obscura; e por outro lado muitas vezes se dedicaram, ao
tratarem as matérias da arte, a lhes imprimir características da
natureza, a ponto de fazer uma passar pela outra, se bem que,
paradoxalmente, para eles a natureza esteja cheia de objetos artísticos
e a arte cheia de curiosidades naturais (1983, p. 69).
Em um exercício poético, a menina em primeiro plano da tapeçaria Meninas da Guerra
recebendo os holofotes das luzes remete às seis damas das tapeçarias da Idade Média.
Sua expressão facial prende o olhar e sugere rios questionamentos entre eles [...]
planejar a questão do anacronismo, é pois interrogar esta plasticidade fundamental e,
com ela, a mescla, tão difícil de analisar, dos diferenciais do tempo que operam em
cada imagem
5
(DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 20 - tradução da autora). Meninas da
Guerra mede 180 x 280 cm, portanto bem menor que as grandes tapeçarias medievais,
mas para os padrões atuais pode ser considerado de tamanho médio. Observando o
detalhe desta tapeçaria e comparando-o com os detalhes das tapeçarias medievais
percebe-se que a textura e as cores dos materiais revelam desenhos e formas abstratas
muito diferentes das pequenas flores e animais tramados em A Dama e o Unicórnio. Isto
pode ser traduzido na frase de Tassinari onde [...] não é da negação de um gênero,
entretanto, que algo se torna arte, mas por sua própria força (TASSINARI, 2001, p.
5
Plantear la cuestión del anacronismo, es pues interrogar esta plasticidad fundamental y, con ella, la
mezcla, tan difícil de analizar, de los diferenciales de tiempo que operan en cada imagen.
79
121). Na série de tapeçarias A Dama e o Unicórnio as cores sinalizam a Idade Média, ou
seja, são basicamente cores elementares. Umberto Eco se refere à pintura medieval
descrevendo-a [...] com zonas cromáticas definidas e hostis à esfumatura, com a
combinação de tintas que geram luz pelo acordo do conjunto e que não têm como
característica uma luz que envolva em claro-escuros ou que leve a cor para além dos
limites da figura (ECO, 2007, p. 100). Este autor refere-se à pintura medieval, mas ao
observarem-se as tapeçarias acima citadas, nelas também se encontram cores definidas
sem sombras nem profundidade e bem diferente da tapeçaria contemporânea, Meninas
da Guerra.
Figura 32
Henrique Schucman
Meninas da Guerra (Detahe)
Fonte da Imagem: Fotografado por Elke Hülse.
80
Em outra obra de Henrique homenageando seu mestre Ernesto Aroztegui (ver figura 33)
o tapeceiro usa novamente uma urdidura de aproximadamente dois fios por centímetro e
na trama tiras de materiais recicláveis. Os fios que se soltam das tiras pouco tramadas
compõem de forma harmoniosa com a expressão facial do homenageado. Apesar de
usar um leque pequeno de cores, existe um jogo de claro e escuro e de profundidade
conseguido através das hachuras e mesclas de tonalidades.
Figura 33
Henrique Schucman
Ernesto Aroztegui (1997)
Dimensões aproximadas: 120x200cm
Fonte da imagem: Fotografado por Elke Hülse.
Para Tassinari, uma poética não se mostra apenas pelas aparências visuais mais
imediatas da obra (TASSINARI, 2001, p. 112). Isso quer dizer que quando Henrique
opta em usar materiais de espessura mais larga serão estes que vão ditar através de sua
textura e cores a composição da trama. Segundo o mesmo autor:
81
[...] o fazer afeiçoa aspectos da obra segundo uma dinâmica que solda
suas aparências por um jogo ao mesmo tempo aquém e além das
poéticas. Aquém, porque as aparências não são unificadas por um
estilo. Além, porque sem um estilo para reuni-las, elas deixam
perceber procedimentos que põem à mostra mais uma imaginação e
uma operação com as coisas e suas aparências (2001, p. 112).
Será que essa pesquisa de materiais que Henrique vem fazendo algumas cadas,
traz em sua essência a mesma busca incansável pela técnica que seu mestre Aroztegui
lhe passou?
3.3 – Jean Pierre Larochette, sua história e obra:
Jean Pierre Larochette nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1942, filho de três
gerações de tapeceiros em Aubusson na França. Ele aprendeu o oficio no ateliê de seu
pai, Armand Larochette, que migrou na década de 30 para a Argentina. Nos anos de
1963 e 1964, Jean Pierre estudou e trabalhou sob a orientação do tapeceiro francês Jean
Lurçat em Israel. Sua esposa, Yael Lurie, nasceu em 1943 no Kibbutz Givath – Brenner,
Israel, e seguiu a profissão de seu pai, o pintor e professor Jacob Lurie. Yael cria e
desenha os cartões para as tapeçarias que Jean Pierre Larochette tece no tear. Essa
parceria existe mais de quatro décadas com muitas encomendas para instituições
públicas e colecionadores particulares, principalmente nos Estados Unidos da América.
No início da década de 70 o casal se estabeleceu em Berkeley, Califórnia, mas antes
disso viajaram e trabalharam em diversas regiões do mundo conhecendo culturas
diversas e suas atividades nos teares. Apesar dos materiais e alguns processos técnicos
serem diferentes, na grande maioria todos partem do mesmo princípio. A formação de
Jean Pierre Larochette é baseada na técnica tradicional da tapeçaria francesa de
Aubusson, e somente nos últimos anos que todas as informações colhidas ao longo do
tempo começaram a ser exploradas (ver figura 34). Seria então um diálogo entre a
tapeçaria mexicana, ou dos povos andinos do Peru e Bolívia, ou ainda de países do
Oriente Médio com a tradicional tapeçaria francesa? A tapeçaria européia da Idade
Média ou anterior a ela desenvolveu artifícios para representar formas curvas ou outras
composições que são possíveis com a ajuda de um cartão para chegar às formas
desejadas. Os povos da América do Sul, México e América do Norte só tecem formas
82
retas ou inclinadas em suas tapeçarias e não seguem um caro, quando muito são feitas
algumas marcações na urdidura. São composições retilíneas e seus desenhos são
reaproveitados seguidamente, inclusive como pinturas em cerâmicas. Com nossos
velhos desenhos nós não alcançamos à lua, mas s também não destruímos a terra
6
(LAROCHETTE, 2007, p. 14 - tradução da autora).
Figura 34
Jean Pierre Larochette
Spirals (1996)
Dimensões: 60”x 40”
Fonte da Imagem: http://homepage.mac.com/billgreene1/larochette/tapestry.html
Para Jean Pierre Larochette e Yael Lurie acostumados com a tradição francesa e
principalmente com a necessidade que se criou ao longo de vários séculos de sempre
inovar no desenho das tapeçarias, deve ter sido muito difícil absorver este pensamento.
Para o tapeceiro que vem da escola francesa sempre que surgem encomendas, estas
devem ter algo novo para encantar o cliente, muitas vezes o tapeceiro quer ir além, mas
acaba buscando no passado o inusitado. De qualquer forma, a tapeçaria é uma atividade
manual com limitações reais, um sistema de coordenadas composto pela urdidura e
trama onde a precisão é o alvo do tapeceiro. Para Larochette, essa é a obsessão do olhar
6
Declaração de um tapeceiro Mapuche: With our old designs we didn’t reach the moon, but we didn’t
ruin the earth either.
83
do tapeceiro. Normalmente esse processo não é divulgado, e o interesse todo está sobre
o produto final, mas o processo faz parte deste produto. Pesquisar a hisria, perceber o
processo e poder apreciar a obra ajuda a manter vivas as peculiaridades da tapeçaria.
Saber que o processo pode ser exaustivo, repetitivo, entre outras qualidades acaba
aproximando e envolvendo o espectador. A aposta de Didi-Huberman em Ante el
Tiempo é justamente [...] começar uma arqueologia crítica dos modelos de tempo, dos
valores do uso do tempo na disciplina histórica que quis fazer das imagens seu objeto
de estudo
7
(DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 15 - tradução da autora).
Em Árvore da Vida com Salamandra e Phoenix (ver figura 35) é possível ver um dos
processos de confecção de um cartão. Nesse caso a autora Yael Lurie desenhou e
coloriu com pis de cor de tal forma que o tapeceiro identifica sua linguagem e a traduz
para a tapeçaria. Existe uma série de códigos usados pela designer que se fazem
necessários, mas que são do conhecimento do tapeceiro para que este consiga se
expressar dentro das limitações existentes.
Figura 35
Jean Pierre Larochette
Cartão de Árvore da Vida com Salamandra e Phoenix (1994)
Dimensões: 150x150 cm
Fonte da Imagem: Fotografado por Elke Hülse
7
Empezar una arqueología crítica de los modelos de tiempo, de los valores de uso del tiempo en la
disciplina histórica que quiso hacer de las imágenes su objeto de estudio.
84
A tapeçaria tem 150 x 150 cm (ver figura 36), sua urdidura é de algodão com a dia
de 6 fios por centímetro e a trama é de lã. Foi confeccionada da direita para a esquerda e
por esta razão o desenho das hachuras foi feito preferencialmente na vertical para
facilitar e valorizar o trabalho do tapeceiro. A hachura usada em volta de toda a cena
principal proporcionando um degradê do azul escuro para outro mais claro e em seguida
para as outras cores que formam o desenho central é uma das características mais fortes
da tapeçaria tradicional da França. No cartão a hachura é determinada com o desenho
das cores num vai e vem formando pontas e na tapeçaria esse recurso técnico cria
ilusões visuais.
Figura 36
Jean Pierre Larochette
Árvore da Vida com Salamandra e Phoenix (1994)
Dimensões: 150x150 cm
Fonte da Imagem: Fotografada por Elke Hülse
85
Geralmente o tapeceiro trabalha pelo avesso da tapeçaria onde ele vê todos os arremates
que por um lado facilita a programação da entrada das diversas cores na seqüência do
desenho, mas também dificulta a visualização do todo. O tramar da urdidura segue dois
caminhos, isto é, os fios da urdidura alternadamente estão dispostos um para cima e
outro para baixo, formando a calada, por entre a qual o fio da trama passa. É preciso
sempre estar atento à posição correta da calada, observar a troca de cores e seguir o
desenho do cartão. Para o tapeceiro experiente esse processo é simples, mas tem seu
tempo de execução. Segundo Archie Brennan, o é que o tecer seja lento, mas a vida é
que passa apressada. Na parte inferior do cartão existe uma tira tramada com as
diversas cores necessárias para aquela tapeçaria. Para tanto, de acordo com o tamanho
da obra o tapeceiro precisa calcular a quantidade necessária das diversas cores para
poder preparar as tingiduras ou então comprar o material já tingido todo de uma mesma
partida da cor. É muito comum a tonalidade de uma cor variar quando foi produzido em
tingiduras distintas mesmo industrialmente e isso compromete o resultado final da obra.
A tapeçaria Árvore da Vida com Salamandra e Phoenix foi uma encomenda
confeccionada em 1995 e todas as cores nela usadas são muito sugestivas e bem
estudadas. O azul do u, emoldurando a cena da luta entre o bem representado pela
Phoenix e o mal pela Salamandra sobre uma árvore de folhas e estrelas sendo tomada
pelas chamas. Na parte superior da árvore as tonalidades claras, entre o branco, o
amarelo e o dourado prevalecem; na parte inferior da árvore o vermelho, o marrom e o
preto sugerem chamas de fogo. As formas desenhadas nessa cena sugerem um
movimento intenso e existe ainda a tensão provocada pelas chamas no da árvore. A
forma da folha está presente em toda cena principal, ela aparece nas chamas, no corpo
da Salamandra, nas asas da Phoenix, na composição da árvore e ainda com o azul
escuro que emoldura o todo (ver figura 37). Cabe aqui a expressão tautológica:
[...] vejo o que vejo se recusarmos à imagem o poder de impor sua
visualidade como uma abertura, uma perda – ainda que momentânea
praticada no espaço de nossa certeza visível a seu respeito. E é
exatamente daí que a imagem se torna capaz de nos olhar (DIDI-
HUBERMAN, 1998, p. 105).
86
Figura 37
Jean Pierre Larochette
Árvore da Vida com Salamandra e Phoenix (Detalhe)
Fonte da Imagem: Fotografada por Elke Hülse
A simplicidade da forma da folha que se repete em toda a tapeçaria deixa de ser simples
com a introdução das cores. São os contrastes entre claro e escuro, cores posicionadas
de tal forma que com suas interpenetrações provocam ilusões visuais de uma terceira
cor. Goethe, na Doutrina das Cores, explica a cor da pintura assim:
Dizíamos que a totalidade da natureza se revela ao sentido da visão
através da cor; agora por estranho que pareça, afirmamos que o olho
não forma alguma, uma vez que somente claro, escuro e cor
constituem, juntos, aquilo que distingue para a visão um objeto de
outro e uma parte de um objeto de outra (GIANNOTTI, 1996, p. 26)
O que aproxima as tapeçarias de Jean Pierre Larochette com as tapeçarias da Idade
Média é a espessura do grão do material usado, o processo técnico e a composição em
um plano. Larochette, tendo iniciado suas atividades na tradicional técnica da
tapeçaria francesa e depois estudado com Jean Lurçat, poderia se expressar da mesma
forma em outra linguagem?
87
Uma tapeçaria, um pedaço de vida
8
(LAROCHETTE, 2006, p.65 - tradução da autora).
Com esta frase Jean Pierre Larochette encerra seu livro, Recordando a Jacques
Larochette; El Tapiz Más Grande de Las Americas, escrito em homenagem ao seu
irmão também tapeceiro já falecido.
Estes tapeceiros acima apresentados, assim como tantos outros na contemporaneidade,
caminham sobre uma linha imaginária muito frágil, que por um lado tem todo o fascínio
e a busca do novo e por outro lado o encantamento e o resgate do passado. Pode-se
considerar esta a dobra da qual Didi-Huberman fala em Ante el Tiempo? Caberia
perguntar agora a mesma disciplina histórica que quer fazer com esta dobra: ocultar o
anacronismo que emerge, e por isso esmagar caladamente o tempo sob a história ou
bem abrir a dobra e deixar florescer o paradoxo?
9
(DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 31 -
tradução da autora).
De qualquer forma, para o tapeceiro da técnica tradicional, quando terminada sua obra,
cortar os fios da urdidura que a prendem ao tear e olhar a tapeçaria à imagem de seu
cartão, será este o ápice? E assim a imagem como acontecimento se dá, [...] menos pelo
que acontece como acidente ou sucessão de eventos e mais por aquilo que se relaciona
ao sentido obtido pelo jogo incessante entre alcançar e formular (Cherem, 2009, p. 20).
8
Un tapiz, un pedazo de vida.
9
Cabría preguntar ahora a la misma disciplina histórica qué quiere hacer de este pliegue: ocultar el
anacronismo que emerge, y por eso aplastar calladamente el tiempo bajo la historia –o bien abrir el
pliegue y dejar florecer la paradoja?
88
CAPÍTULO 4
Tapeçaria x Pintura
89
4.1. O Trompe l’oeil na Taparia:
Para Baudrillard (2000) o trompe l’oeil ou engano do olhar é a simulação encantada,
isto é, a imagem mais falsa que o falso, que ele ainda denomina como o segredo da
aparência. para Henri Focillon, o trompe l’oeil cria um falso infinito, tornando o
espaço cênico ilimitado, [...] ele recua indefinidamente os limites da visão e ultrapassa
o horizonte do universo. Ele não cessa de criar relações originais entre a forma e o
espaço (FOCILLON, 1981, p. 64). Será que a tapeçaria contemporânea, ao usar o
trompe l’oeil como recurso visual, busca reforçar seus laços com a tapeçaria medieval?
É bem provável, porque além do trompe l’oeil os tapeceiros reduziram o leque de cores
e resgataram várias técnicas que enaltecem a tapeçaria. As características do trompe
l’oeil são: a eliminação do real, a luz que o vem de uma direção definida e ao mesmo
tempo o provoca a profundidade que é oriunda desta mesma fonte luminosa real e
ainda a ausência de perspectiva, acentuada pelo fundo vertical. A taparia, a partir do
Renascimento até o século XIX, tendo sido cópia da pintura, procurou usar todos os
recursos possíveis para ser o mais fiel possível à perspectiva. Provavelmente os
tapeceiros a partir do século XX buscam na tapeçaria medieval recursos técnicos que ao
longo dos séculos foram inutilizados, mas que reforçam a identidade da mesma. Faz-se
necessário especificar aqui que as tapeçarias serão analisadas através do sentido da
visão e [...] ver se pensa e se experimenta em última instância num exercício do
tocar (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 31). Na tapeçaria o uso de diversos materiais e
suas texturas variadas é um convite ao olhar tátil. A relação entre esses dois sentidos, o
da visão e do tato, sugere a fuão háptica, isto é, [...] quando a visão descobrir em si
mesma uma função de tato que lhe é característica, e que pertence a ela, distinta de
sua função ótica (DELEUZE, 2007, p. 156). Será que essa função háptica, sendo uma
sensibilidade, poderá ser desenvolvida pelo tapeceiro e também pelo espectador de
eventos têxteis?
90
Na série de tapeçarias medievais A Dama e o Unicórnio (ver figuras 2, 3, 4, 5, 6 e 7)
existem vários elementos que se repetem e numa aparente simplicidade figurativa eles
atraem o olhar do espectador. Inicialmente o fundo vermelho, ricamente ornamentado
com plantas e animais que flutuam sobre esse espaço cênico:
[...] estendido como um mapa ou uma tapeçaria por trás das figuras.
[...] Existe, no entanto, uma arte que parece capaz de se transportar
sem alterações de uma para outra técnica: é a arte ornamental, talvez o
primeiro alfabeto do pensamento humano às voltas com o espaço
(FOCILLON, 1981, p. 39 - 63).
Num segundo momento, a ilha central que sustenta a cena principal, esta também flutua
sobre o mesmo fundo. O vermelho na série de seis tapeçarias medievais poderia ser
considerado um pano de fundo para uma cena externa, porém encenada em um espaço
interno. Da mesma forma, a dama em algumas tapeçarias parece flutuar sobre a ilha
central, e talvez essas questões antigas da arte onde o artista relaciona a ilusão atribuída
inicialmente à imagem artística tornam-se familiares devido aos recursos e artifícios
usados.
casos em que o espaço permanece como ornamento enquanto que
o objeto que nele se forma, o corpo humano por exemplo, se separa
dele e tende a se bastar; da mesma forma, outros casos em que a
forma do objeto guarda um valor ornamental enquanto que o espaço
em volta dele tende a uma estrutura racional (FOCILLON, 1981, p.
57).
Desde a Idade dia a tapeçaria era tramada a partir de um cartão, que por sua vez era
desenhado a partir de uma pintura. Isso acentua a dependência e a necessidade de
adaptação da tapeçaria para ser o mais fiel à pintura que lhe deu origem, ainda assim
respeitando sempre que possível a essência de cada qual. Na tapeçaria foram
desenvolvidos vários recursos técnicos, como a hachura, o pontilhado, o chiné - termo
francês que significa mistura de cabos de cores diferentes para serem tramados juntos.
Esses e outros artifícios foram sendo introduzidos na confecção da tapeçaria para suprir
a falta de opções de tingiduras neste período. Deleuze considera que um campo
homogêneo apresenta sutis variações internas em função de sua vizinhança (2007, p.
148). A escolha de certos materiais, como o uso do fio de ouro em detalhes das jóias da
Dama, apresenta e reforça a textura e a cor, enfatizando o seu significado no contexto da
tapeçaria. Devemos levar em consideração esta espécie de liberdade relativa do espaço
em relação às matérias em que se incorpora, mas levemos em consideração tamm a
91
pureza com que ele toma esta ou aquela forma, de acordo com esta ou aquela matéria
(FOCILLON, 1981, p. 54).
Talvez se as pinturas que deram origem aos seis cartões que por sua vez foram o pano
de fundo das tapeçarias medievais ainda existissem, seria possível estudar a
metamorfose, ou esse deslocamento de valores ocorrido com a passagem de uma forma
de um espo para outro. Pode-se deduzir daí que:
[...] as matérias de arte o o intercambiáveis, isto é, que a forma,
passando de uma matéria para outra, sofre uma transformação. [...] As
tentativas feitas pelo mosaico e pela tapeçaria para conseguir os
efeitos da pintura a óleo tiveram as conseqüências que se conhece
(FOCILLON, 1981, p. 72).
Entre os séculos XV e XIX a tapeçaria serviu como instrumento de divulgação da
pintura através de grandes painéis espalhados pelos castelos e residências, tendo como
utilidade ornamentar e aquecer os ambientes, mostrando o poder das famílias e da igreja
nos diversos reinados. Sendo um instrumento de divulgação de alguns mestres da
pintura, a tapeçaria comprometeu ao longo de vários séculos sua individualidade e
particularidades expressivas da técnica. Somente no início do século XX alguns
tapeceiros reivindicaram a necessidade de valorizar a forma e a matéria no espaço têxtil.
A tapeçaria O Guarda-chuva (ver figura 38), da artista húngara Rózsa Polgár, medindo
67 x 220 cm, confeccionada em 1984, se encerrada em uma moldura retangular,
tramada em tonalidades claras que remete a um simples móvel ou um bengaleiro. Ao
longe um senhor de casaco e chapéu passeia com uma pequena criança, caminhando em
direção a um fundo sombrio e sem fim. Na parte inferior esquerda da tapeçaria,
encontra-se encostado um guarda-chuva com sua sombra e suas pregas, como se ali
tivesse sido deixado por alguém. Observando a cena acima descrita, esta pode ser
considerada um trompe l’oeil, pois não existe natureza, nem paisagem, não linha do
horizonte nem um u definido. Não luz natural e como os personagens caminham
ao longe e aparecem de costas não vemos nem seus rostos, e nem sua expressão facial.
A hachura, técnica usada ao longo de toda a cena, delineando o caminho com um
sombreado, confunde o próximo e o distante, o sombrio e o luminoso, e a superfície
plana se torna aparentemente real. Aqui tudo é artefato; o fundo vertical erige em signos
puros objetos isolados de seu contexto referencial (BAUDRILLARD, 2000, p. 70).
92
Figura 38
zsa Polgár
O Guarda-Chuva (1984)
Dimensões: A.220 x L.67 cm - lã
Fonte da imagem: FITZ, Péter. Rózsa Polgár. Textil&Forum, Hannover, vol.1, p. 47, março 1994.
Em uma segunda obra da artista zsa Polgár, denominada Amassado (ver figura 39),
confeccionada em 1991, o trompe l’oeil surge novamente como uma característica no
trabalho da tapeceira. Ao tramar objetos sem referências, esvaziados de seu decoro, e
não se enquadrando em uma moldura convencional, poderia ser um pedaço de papel,
93
um tecido ou até um lenço. Na parte superior e inferior da forma tramada, aparece uma
barra em tom mais claro, sugerindo formas estilizadas de botões de rosas e marcas da
silhueta de lábios. [...] somente objetos isolados, decaídos, fantasmagóricos na sua
circunscrição de qualquer discurso, poderiam traçar uma obsessão da realidade
perdida, algo como uma vida anterior ao sujeito e a sua tomada de consciência
(BAUDRILLARD, 2000, p. 70). A mancha mais escura na parte central direita reforça o
movimento, o volume, o amassado, que dá nome à tapeçaria.
Figura 39
zsa Polgár
Amassado (1991) - lã.
Fonte da imagem: FITZ, Péter. Rózsa Polgár. Textil&Forum, Hannover, vol.1, p. 47, março 1994.
A busca pelo real é perceptível nas formas irregulares dos contornos e para aproximar-
se ao ximo o tapeceiro usa os recursos da cnica simulando um volume e uma
94
sombra em um fundo plano. Simulacros sem perspectiva, com freqüência as figuras do
trompe l’oeil aparecem numa exatidão sideral, como que despojadas da aura do
sentido e mergulhadas num vazio etéreo. Apancias puras têm a ironia do excesso de
realidade (BAUDRILLARD, 2000, p. 70). Também para este autor, o excesso de
realidade acaba com o desejo de iluo. Se por um lado existe a busca pelo realismo por
outro um distanciamento da realidade, sugerido por uma mancha escura que cria a
ilusão de um movimento ou a idéia sobre o mesmo. Uma imagem crítica [...] que critica
nossas maneiras de vê-la, na medida em que, ao nos olhar, ela nos obriga a olhá-la
verdadeiramente (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 172).
A American Tapestry Alliance é uma associação existente 25 anos que reúne
tapeceiros dos Estados Unidos da América e de outros países interessados em divulgar e
incrementar essa atividade. Em 2006, organizou a sexta Bienal de Tapeçarias no Urban
Institute of Contemporary Arts em Grand Rapids, Michigan. Neste evento participaram
trinta e nove tapeçarias de tamanho médio e grande, tramadas na técnica descontínua
também denominada tradicional, confeccionadas em teares verticais (alto-liço) ou
horizontais (baixo-liço). O que se destaca em uma exposição de tapeçarias é justamente
a experiência táctil do olhar, a função háptica, poderia esta ser considerada endêmica?
Ou esta experiência também acontece em exposições de pinturas e fotografias?
Provavelmente o conjunto da textura dos materiais e suas cores, reunidos na trama,
provocam no espectador essa sensação háptica que pode ser apreciada e reconhecida
somente em uma tapeçaria.
Enfim, falaremos de ptico toda vez que não houver mais
subordinação rigorosa em um sentido ou em outro, nem subordinação
branda nem conexão virtual, isto é, quando a visão descobrir em si
mesma uma função de tato que lhe é característica, e que pertence só a
ela, distinta de sua função ótica (DELEUZE, 2007, p. 156).
A obra de Christine Laffer, tapeceira americana, denominada Cloth of Construction
(ver figura 40), de 2003, é um exemplar desta exposição. A tapeçaria tem 2.59 x 3.50m,
foi confeccionada em e as barras alaranjadas que cortam horizontalmente a tapeçaria
sustentam a lona assim como os marrons e beges. Estes formam retângulos sobrepostos
de várias larguras que são cobertos em grande parte pela massa de tons azuis, de verde e
tons de marfim. Segundo Christine, uma lona pode ser grande o suficiente para cobrir
uma construção, pode aproximar-se da monumentalidade em tamanho, mas não pode
95
aproximar-se do monumental como obra por si só. Sua tapeçaria, usando materiais
como fios de tramados, cria formas irregulares com desenhos que simulam o
claro/escuro, os volumes, as formas e desenhos visíveis no amassado da lona. Essas
sombras não se modificam com o movimento do sol, não crescem com a noite, não se
mexem. Esta misteriosa luz sem origem cuja incidência oblíqua nada mais tem de real
é como uma água sem profundeza, água estagnada, doce ao toque como uma morte
natural (BAUDRILLARD, 2000, p. 71).
Figura 40
Christine Laffer
Cloth of Construction (2003)
Dimensões: A. 2,59 X L. 3,50m – Lã
Fonte da Imagem: American Tapestry Alliance. American Tapestry Biennial Six. Grand Rapids, Urban
Institute of Contemporary Arts, 2006.
Ao vestir uma parede com uma tapeçaria monumental como Cloth of Construction, a
autora homenageia a lona que inicialmente pode ter coberto as paredes da construção
que abriga a exposição, enquanto estava em obras. Ela considera as lonas, tecidos
transirios, efêmeros e simultaneamente os considera fortes o suficiente para proteger
96
os objetos desprovidos de cobertura. Nessa tapeçaria as ondulações simulam o plano
irregular, as dobras, e assim [...] cria esse efeito de sedução, de apreeno
característica do trompe l’oeil: vertigem ctil que redesenha a louca promessa do
sujeito de restringir sua própria imagem e por isso mesmo se desvanecer
(BAUDRILLARD, 2000, p. 72).
Joan Baxter, tapeceira escocesa, apresentou na Bienal de Tapeçaria em 2006 a obra
Migdale Kilt (ver figura 41), medindo 70 x 207 cm, confeccionada em , algodão e
seda. Essa tapeçaria foi confeccionada em 2005 e a artista usou como referencial para
seus desenhos a herança cultural, local e as paisagens selvagens do norte da Escócia. Ela
tece na técnica tradicional e considera a tapeçaria um processo antigo, muito excitante,
embora seja lento e deliberado, mas permite que com calma busque no desenho
conciliar a técnica da tapeçaria, com os materiais e as cores.
Figura 41
Joan Baxter
Migdale Kilt (2005)
Dimensões: A. 70 X L. 207 cm - Lã, algodão e seda.
Fonte da Imagem: American Tapestry Alliance. American Tapestry Biennial Six. Grand Rapids, Urban
Institute of Contemporary Arts, 2006.
Reunir em uma tapeçaria elementos da forma com a estrutura da trama e ainda os
materiais e suas cores requer um conhecimento profundo da técnica e um tanto de
ousadia. Assim a forma não age como um princípio superior modelando uma massa
passiva, que se pode considerar que a matéria impõe sua própria forma à forma
(FOCILLON, 1981, p. 67). Segundo Joan Baxter, Migdale Kilt foi desenhado depois de
uma caminhada em uma região arborizada, que até o século XIX foi bastante habitada e
97
explorada pelo homem. Hoje reflorestada em-se entre troncos e folhas supostas
silhuetas que remetem ao desenho do tecido xadrez escocês, refletido nas calmas águas
que vislumbram o passado no presente. Essa combinação de cores e formas remete a um
espaço geográfico e também resgata elementos culturais. As manchas claras, quase
brancas, misturadas aos tons de verde e lilás na parte inferior da tapeçaria remetem ao
reflexo das nuvens nas águas e para Baudrillard o [...] espelho d’água é não uma
superfície de reflexão, mas uma superfície de absorção (BAUDRILLARD, 2000, p.
77). As fendas criadas ao longo da tapeçaria simulando as pregas do saiote escocês são
artifícios ou similitudes que também se podem denominar mimetismo. Assim a
tapeceira problematiza aquilo que desestabiliza o fenômeno do olhar, ou seja, [...] a
semelhança não está senão no olho daquele que percebe (CAILLOIS, 1986, p. 55). A
sutileza das linhas que formam o xadrez em tonalidades de azul, de verde, de vermelho,
de lilás, aliado ao uso de materiais muito finos, reforça que o [...] mimetismo
morfológico poderia ser então, ao modo do mimetismo cromático, uma verdadeira
fotografia, mas da forma e do relevo, uma fotografia no plano do objeto e não da
imagem, reprodução no espaço tridimensional com volume e profundidade
(CAILLOIS, 1986, p. 58).
Monique Lehman, americana, apresentou na Bienal de Tapeçaria em 2006 a tapeçaria
Heartsong of American Hero Mattie Stepanek (ver figura 42), desenvolvida em 2005. A
obra foi confeccionada em algodão, e rayon, e mede 142 x 76 x 8 cm. Segundo
Monique, ela ficou lisonjeada, mas temerosa quando foi convidada a fazer o retrato de
Mattie Stepanek para o Pasadena City Hall em homenagem ao ano dos deficientes. Ela
imaginou desenvolver durante meses o desenho da face de uma criança que faleceu em
2004 com a idade de 13 anos. Inicialmente ela estudou bastante sobre sua vida e sua
poesia para estar apta a expressar sua mensagem de paz na tapeçaria. O uso da
transparência no urdume da segunda camada adicionada provoca uma energia
dramática, um véu, e uma qualidade misteriosa à tapeçaria. Translucidez, suspensão,
fragilidade, dessuetude daí a insistência do papel, da carta carcomida nas bordas,
[...] de uma transcendência diluída no cotidiano [...] são coisas que duraram, é um
tempo que correu (BAUDRILLARD, 2000, p. 70). Depois de tramar a parte inicial,
Lehman inseriu na tapeçaria um segundo urdume de um filamento que entrelaça com o
inicial, adicionando um véu que gera profundidade e significados. O sentido de perda ou
tragédia é explorado com fios tramados aleatoriamente, bordas esfiapadas e espaços
98
vazios com transparências no urdume, permitindo assim que em alguns pontos a luz
atravesse. No trompe l’oeil não se trata de se confundir com o real; trata-se de produzir
um simulacro em plena consciência do jogo e do artifício imitando a terceira
dimensão, instaurar a dúvida sobre a realidade dessa terceira dimensão
(BAUDRILLARD, 2000, p. 73). O realismo ou a ilusão do trompe l’oeil está, entre o
limite da tapeçaria apresentada, como imagem bidimensional a partir de um rosto que,
por um deslocamento sutil, revela este resíduo de diferenciação.
Figura 42
Monique Lehman
Heartsong of American Hero Mattie Stepanek (2005)
Dimensões: A. 142 X L. 76; P. 8 cm - Lã, algodão e rayon.
Fonte da Imagem: American Tapestry Alliance. American Tapestry Biennial Six. Grand Rapids, Urban
Institute of Contemporary Arts, 2006.
99
Shelley Socolofsky, americana, participou da Bienal de Tapeçaria com a obra Well of
Surrender (ver figura 43), confeccionada em lã e urdume em algodão, medindo 76 x 61.
Tem um rosto feminino na parte superior que apresenta olhar difuso e lábios vermelhos
bem definidos, esse mesmo rosto é respingado por manchas coloridas. Um suposto
corpo que ocupa o restante da tapeçaria expõe seu sistema circulatório, e um coração
envolto em uma luz tem um pássaro voando ao seu redor. Suas obras o repletas de
jardins secretos, santuários escondidos, poesia visual, um eco, uma memória perdida,
uma música, estas são as estórias contadas em tapeçarias por Socolofsky.
Figura 43
Shelley Socolofsky
Well of Surrender
Dimensões: A. 76” X L. 61” - Lã e algodão.
Fonte da Imagem: American Tapestry Alliance. American Tapestry Biennial Six. Grand Rapids, Urban
Institute of Contemporary Arts, 2006.
100
A artista sempre parte de uma colagem, técnica que há muitos anos explora e
experimenta.
Não há horizonte, é um espelho opaco erguido diante do olho, e o
há nada por trás. Essa é propriamente a esfera da aparência; nada para
ver, são as coisas que nos vêem; [...] colocam-se na nossa frente com
aquela luz que lhes vem de um outro lugar e essa sombra produzida,
que entretanto nunca lhes dá uma terceira dimensão
(BAUDRILLARD, 2000, p. 73).
Todo o processo, desde a criação do cartão até a execução da tapeçaria, é um processo
lento de maturação, que acarreta rigor, repetição, paciência, como tem sido há centenas
de anos, e Socolofsky considera essa experiência um ritual sagrado. A figura feminina
introspectiva é uma constante em suas obras e simboliza esperança e crescimento. Em
Soliloquy (ver figura 44), tapeçaria encomendada para a Biblioteca da Western Oregon
University em 2001, medindo 13,5 x 5 m, vê-se nas laterais um texto poético rico em
referências ao crescimento e ao conhecimento, tramado sobre uma estampa decorativa
de arabescos. Na parte inferior, um rosto feminino tem seus cabelos transformados em
galhos que crescem verticalmente e em sua mente abre-se um céu azul. Segundo a
tapeceira, os jovens pássaros com seus bicos abertos aguardam o alimento,
simbolizando o potencial da juventude e a fome pela sabedoria.
Daí surge, distinta do gozo estético, a inquietante estranheza do
trompe l’oeil, da estranha luz que projeta sobre a realidade totalmente
nova e ocidental que se destaca em triunfo da Renascença; ele é seu
simulacro irônico. É o que foi o surrealismo para a revolução
funcionalista do início do século XX, pois o próprio surrealismo
tamm nada mais é que o delírio irônico do princípio da
funcionalidade. Tanto quanto o trompe l’oeil, não pertence
exatamente à arte nem à historia da arte; sua dimensão é metafísica
(BAUDRILLARD, 2000, p. 74).
Socolofsky sempre que possível, apresenta nas exposições sua tapeçaria juntamente
com o cartão ou colagem, recurso muito usado pela tapeceira, propiciando ao público
espectador entender o seu processo de criação. A riqueza de detalhes, a relação entre
figura e fundo e a fidelidade com o cartão, são elementos que se repetem em suas
tapeçarias.
101
Figura 44
Shelley Socolofsky
Soliloquy (2001)
Dimensões: A. 13,5” X L. 5” - Lã e algodão.
Fonte da Imagem: LANE, Mary. Fertile Associations. Fiberarts, Loveland, vol. 32, p. 50/51, summer
2005.
A tapeçaria contemporânea tramada de maneira tradicional, como tem sido feito
vários séculos por incontáveis gerações, ainda hoje na era digital tem adeptos nas várias
regiões do globo. O trompe l’oeil, recurso visual perceptível em algumas tapeçarias na
102
Idade Média e que ao longo da Renascença foi se perdendo, é resgatado pelos tapeceiros
do culo XX. O ideal renascentista pode ser traduzido na tapeçaria como a cópia fiel da
pintura e a riqueza de detalhes em seus desenhos, o uso de uma grande quantidade de
cores; ignorando a textura dos materiais e os recursos técnicos. Esse processo ao longo
de centenas de anos mostrou a fragilidade das tinturas e da trama; o que levou os
tapeceiros a rever todo o processo da fatura. Do outro lado, o público que sempre é
convidado e presenteado a apreciar as obras do tempo nos dois sentidos:
primeiramente pelo tempo disponibilizado para criar o cartão que servirá de referência
para a execução da tapeçaria, e num segundo momento pelo tempo propriamente dito,
de execução com fios e linhas, urdidura e trama, ou seja, a fatura. Para que essa fatura
se concretize na plenitude, existe uma relação entre os olhos e as mãos. Quanto mais a
mão é assim subordinada, mais a visão desenvolve um espaço ótico “ideal” e tende a
apreender suas formas segundo um código ótico (DELEUZE, 2007, p. 155). O sentido
háptico pode ser desenvolvido tanto pelo tapeceiro como pelo público que ao visitar
exposições de tapeçaria com certa freqüência acaba percebendo sutilezas que o primeiro
olhar dificilmente toca. Poderíamos dizer então que o tapeceiro tece com os olhos na
medida em que toca com as mãos? Muitos artistas plásticos ao longo do século XX
traduziram suas pinturas em tapeçarias, teria sido o sentido háptico um dos estímulos?
4.2 Artistas plásticos do culo XX e suas taparias:
Tecer tapeçarias de parede é uma das mais antigas manifestações artísticas. Em várias
culturas, como babilônica, persa, egípcia e na antiga Grécia, tapeçarias decoravam
paredes do Parthenon. Em várias épocas e diferentes culturas não só os aristocratas, mas
também a burguesia decoravam suas casas com tapeçarias, assim como usavam
pequenos fragmentos de tapeçarias ou mini-têxteis em detalhes de vestimentas. Os
tapeceiros, que ao longo da história sempre transformaram em tapeçarias os cartões
criados no papel ou nas telas por outros artistas, no século XX foram reconhecidos e
considerados pelos mesmos, detentores de conhecimento técnico específico, destreza
manual, domínio no uso de cores, muita habilidade e paciência. Existem fragmentos de
tapeçarias dos séculos 5 e 6 d.C. tramadas pelos coptas, povo que vivia no Egito, em
teares muito simples com características técnicas muito próximas às usadas na Idade
Média em várias regiões da Europa. Sempre, diante da imagem, estamos diante do
103
tempo
1
(DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 11 - tradução da autora). Justamente neste
período e na Renascença a tapeçaria tornou-se uma atividade importante e relevante
com o aprimoramento técnico e desenvolvimento de novas tingiduras. A cor foi sempre
um elemento central na tapeçaria de parede e os tintureiros tornaram-se altamente
especializados. Os materiais usados variavam de acordo com sua localização geográfica.
Os coptas usavam principalmente o linho, os chineses usavam a seda, e a lã até hoje é o
material mais utilizado nos diversos países da Europa. Ao longo de vários séculos a
tapeçaria tornou-se umapia da pintura com a qual acabou dividindo os espos
físicos. Especificamente na França, vários ateliês foram criados principalmente no
período da Renascença, alguns sob tutela real, outros mantidos pelas encomendas da
burguesia, mas no século XIX vários fecharam suas portas.
No culo XX, artistas como Jean Lurçat (1892 1966), pintor e tapeceiro francês,
repensaram a utilização e a manufatura da tapeçaria tradicional, reavaliando sua
execução, reduzindo o número de cores por tapeçaria e abolindo a perspectiva no
desenho dos cartões; redescobriram também características e peculiaridades que a
tapeçaria tinha na Idade Média e que foram abolidas ao longo dos séculos. Essa busca
pelo conteúdo técnico seria o sintoma, aquilo que sempre volta e se repete, seria isto o
que os tapeceiros do século XX almejavam? A busca de sintomas medievais visa reatar
com concepções da função da imagem da arte longínquas das nossas, cujo
anacronismo abre as possibilidades produtivas inerentes à rememoração e ao
ressurgimento de um paradigma intempestivo (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 18).
Depois da Segunda Guerra Mundial, Jean Lurçat reuniu um grupo de artistas para
desenhar cartões que posteriormente foram tecidos no atelier de Aubusson, reforçando
nessa nova tapeçaria todos os elementos considerados prioritários e resgatados da
tapeçaria da Idade Média, juntando os valores da modernidade. As fronteiras entre a
pintura ou desenho e a tapeçaria sempre existiu e provavelmente no início do século
XX começou a ser questionada. Qual seria então o limite dessa fronteira? Para Jean-
Louis Prat, diretor da Fundação Maeght em Saint-Paul-de-Vence, [...] nada é igual ao
original, tudo é diferente e complementar, porque a arte de tecer tapeçarias evoca
1
Siempre, ante la imagen, estamos ante el tiempo.
104
outras linhas mestras, para alcançar criatividade e autonomia: a autonomia de um
mestre tapeceiro
2
(BAAL-TESHUVA, 1999, p. 17 - tradução da autora).
Uma das maiores contribuições de Jean Lurçat foi incentivar a criação, no início da
década de 60, da Bienal Internacional de Tapeçaria em Lausanne, evento xtil
considerado o maior do mundo durante várias décadas. Neste mesmo período, várias
exposições similares surgiram em diferentes países onde o tapeceiro era o artista criador
de seus pprios cartões. Marcel Duchamp também foi um incentivador da tapeçaria ao
levar artistas de seu convívio aos ateliês de Gobelins, Beauvais e Aubusson, na França,
para que ali fossem tecidas tapeçarias a partir de cartões desenhados por estes mesmos
artistas. A tapeçaria Polynesia, the sea, desenhada por Matisse no final da década de 40,
foi tecida na manufatura Nacional de Beauvais entre 1950-51.
Marc Chagall, no início da década de 60, recebeu uma encomenda do governo de Israel
para o salão de recepções do parlamento que ainda estava em construção, também
denominado Knesset. A construção fica no Givat Ram, uma região elevada de onde se
avista Jerusalém e tem como vizinhos o Museu de Israel e o campus da Universidade
Hebraica. Como tema lhe foi sugerida a história do povo judaico que inicialmente ele
desenvolveu em três desenhos, mas ao voltar depois de algum tempo decidiu finalizar
na forma de cartões para tapeçarias, devido à amplitude e luminosidade do local. As três
tapeçarias foram confeccionadas no atelier de Gobelins em Paris, que por sua vez foi
criado em 1667, pelo Rei Luís XIVe posteriormente foi apoiado financeiramente pela
família Rothschild. Antes de tornar-se atelier de tapeçaria foi uma tinturaria, e a família
Gobelin ficou conhecida pelas variadas e novas tingiduras que desenvolveu para as
diversas manufaturas da França. As três tapeçarias foram concluídas em quatro anos,
foram usadas 160 tonalidades de cores; os cartões por sua vez haviam sido desenhados e
pintados com guache. A primeira cena intitulada A Entrada em Jerusalém, como o
próprio título sugere, é uma cena de festa onde o Rei David, em vermelho no centro da
cena, toca sua harpa, e muitos instrumentos de sopro e metais sendo tocados simbolizam
a comemorão. Na cena com os músicos pode ser vista a Arca da Aliança e no lado
2
Nichts ist mit dem Original identisch, alles ist anders und komplementär, denn die Bildtepichkunst
verlangt andere Kraftlinien, für die es einer kreativen Autonomie bedarf: der Autonomie der
Gobelinmeisterin.
105
esquerdo a bandeira de Israel com a estrela de David. A segunda cena denominada
Êxodo é também a maior, apresenta Moisés recebendo a tábua com os dez mandamentos
e todo o sofrimento estampado na expressão do rosto e gestual do povo judeu diante do
Rei David. A última cena que completa o tríptico, denominada A Profecia de Isaías,
sugere assim como na bíblia um futuro de paz e harmonia onde não há caça nem
caçador, e para Chagall essas três tapeçarias significaram o triunfo porque:
[...] comprovam o sucesso do trabalho conjunto entre ele e os
tapeceiros, eles que usaram os muitos azul, verde, vermelho, dourado,
amarelo, marrom, lilás e tonalidades de branco de seus cartões
seguindo fielmente o original e com isso realizaram um grande
trabalho
3
(BAAL-TESHUVA, 1999, p. 12 - tradução da autora).
Em todas as três tapeçarias consta a data de finalização da mesma, a assinatura de Marc
Chagall e do tapeceiro que a executou. No dia 18 de junho de 1969 as tapeçarias foram
oficialmente entregues às autoridades em uma cerimônia na qual estava presente o
artista, a primeira ministra Golda Meier e várias outras autoridades da época. Para Henri
Foccilon:
[...] o material do qual o confeccionadas as tapeçarias de parede é
mais quente e precioso do que das pinturas. As tapeçarias refletem
alegria na escolha dos detalhes, desenvolvidas com amor e
ponderação, que é o sentido único e que diferencia esta cultura
4
(BAAL-TESHUVA, 1999, p. 72 - tradução da autora).
As três tapeçarias ao serem elogiadas pelo mundo afora, também foram consideradas
uma sinfonia de cores para os olhos.
Nessa mesma época, o escritor e ministro da cultura da Fraa, André Malraux,
anunciou a construção do Museu Nacional de Mensagens Bíblicas Marc Chagall, em
Nice, para o qual o artista homenageado desenvolveu um cartão que posteriormente foi
tecido no atelier de Yvette Cauquil-Prince. O contato da tapeceira com o trabalho de
Marc Chagall foi à época das tapeçarias confeccionadas para a Knesset no atelier de
Gobelin. Traduzir uma pintura a óleo, guache ou litogravura para o cartão requer rigor e
3
Sie betzeugen die erfolgreiche Zusammenarbeit zwischen ihn und die Weber, die die vielen
verschiedenen Blau-, Grün-, Rot-, Gold-, Gelb-, Braun-, Lila- und Weisstöne seiner Kartons
originalgetreu übertrugen und damit eine grossartige Leistung vollbrachten.
4
Das Material, aus dem Bildteppiche gearbeitet sind, ist warmer und kostbarer als das der Wandmalerie.
Sie spiegeln die Freude am Seltenen, Erlesenen, mit Liebe und Bedacht Ausgeführten, die das eigentliche
Wesen dieser Kultur ausmacht.
106
respeito pelo original, mas também intuição e afinidade com a técnica a ser usada.
Segundo Yvette, seu trabalho com Chagall foi uma grande parceria. A tapeçaria para o
Museu em Nice apresenta cores alegres, formas leves e sugere uma cena de praia com o
mar e as palmeiras, e essa tapeçaria assim como rias outras posteriores foram tecidas
nesse mesmo atelier. Cenas bíblicas e de circo (ver figura 45) foram temas recorrentes
na obra de Marc Chagall, e ele considerava o circo uma manifestação artística das mais
trágicas, porque durante centenas de anos os integrantes continuam oferecendo lazer e
alegria ao público.
Figura 45
Marc Chagall
Die Harlekinfamilie (1993 - Detail)
Dimensões: 317 X 527cm
Manufatura de Yvette Cauquil-Prince
Fonte da Imagem: BAAL-TESHUVA, Jacob. Chagall - Tapestries – Tapisserien – Tapisseries. Espanha:
Taschen, 1999.
107
A ampliação de um desenho ou pintura para um cartão que servirá de referência para a
confecção de uma grande tapeçaria é um exercício para o cartunista ou para o próprio
tapeceiro, pois na contemporaneidade este geralmente é responsável pela criação e
execução de seus cartões. Ampliar um pequeno desenho para uma grande tapeçaria
requer imaginação para preencher as grandes áreas, porque nem sempre a ampliação
poderá seguir à risca o desenho inicial. Existe naturalmente um compromisso moral do
tapeceiro com a intenção do pintor, mas por outro lado há a fidelidade do tapeceiro com
a interpretação do cartão segundo as técnicas usadas na tapeçaria. Valorizar e
proporcionar uma nova leitura para uma obra de arte é aceitar as fronteiras que existem
entre as diversas manifestações artísticas. Essas fronteiras se manifestam nitidamente
nas tapeçarias enunciadas anteriormente, ou seja, nas três tapeçarias confeccionadas no
atelier de Gobelin. Nelas não se percebem elementos como hachura ou outras
comumente usadas e que são recorrentes na execução de uma tapeçaria medieval assim
como no século XX. Os tapeceiros do atelier de Gobelin estariam contaminados pela
técnica usada desde o século XVI? Ao longo de vários séculos os tapeceiros serviram
aos pintores e progressivamente tentaram ser o mais fiel possível às suas pinceladas e
combinações de cores, isto talvez justifique a necessidade e dificuldade em mudar os
limites entre essas fronteiras.
Segundo Yvette Cauquil-Prince, Chagall sentia-se compreendido e artisticamente muito
bem traduzido nas tapeçarias por ela executadas. A tapeceira Yvette Cauquil-Prince
nasceu na Bélgica onde estudou pintura, e depois em Paris dedicou-se à tapeçaria no
Museu de Cluny e no Museu de Artes Decorativas do Louvre. Com um atelier montado
e vários colaboradores, a partir da década de 60, desenvolveu tapeçarias para Alexander
Calder, Roberto Matta entre outros, e na década de 70, para Georges Braque, Marc
Chagall, Max Ernst, Wassily Kandinsky, Paul Klee, e ainda Pablo Picasso que, segundo
o próprio artista, depositou bastante confiança em seu trabalho. Na tapeçaria La
Minotauromachie, de 1991, ela usou somente o preto, o branco e tonalidades de cinza,
traduzindo para a técnica da tapeçaria os borrões provocados pelo apagar da borracha no
desenho de Picasso. Esses borrões que na cnica da tapeçaria podem ser traduzidos
como hachura, ou pontilhado, ou ainda as mesclas de cores, são exemplos do que se
usava na taparia medieval e foram resgatados pelos tapeceiros do século XX.
Segundo Sylvie Forestier, diretora do Museu Nacional de Mensagens Bíblicas Marc
Chagall, o fio jamais denuncia o pincel, muito pelo contrário, tudo o que aparece no
108
contexto do quadro de maneira enfática, será otimizado na tradução para a tapeçaria
5
(BAAL-TESHUVA, 1999, p. 18 - tradução da autora). Em A doutrina das semelhanças,
Walter Benjamin enuncia as diversas particularidades na esfera das semelhanças, que
aqui parecem pertinentes:
[...] sua percepção, em todos os casos, dá-se num relampejar. Ela
perpassa, veloz, e, embora talvez possa ser recuperada, não pode ser
fixada, ao contrio de outras percepções. Ela se oferece ao olhar de
modo tão efêmero e transitório como uma constelação de astros. A
percepção das semelhanças, portanto, parece estar vinculada a uma
dimensão temporal (BENJAMIN, 1996, p. 110).
Anteriormente Pablo Picasso já havia feito parceria durante vinte anos com outro atelier
de tapeçaria na França, sob o comando de René Dürrbach e Jacqueline de la Baume
Dürrbach. No início da década de 50 o casal Dürrbach encorajou vários artistas a
traduzirem suas obras em tapeçarias. Fernand Léger ficou encantado com as
características da técnica da tapeçaria que valorizaram suas pinturas. Quando Jacques
Villon viu suas pinturas tramadas como tapeçarias, afirmou: você deu autoridade aos
meus trabalhos
6
(GLIBOTA, 1985, p. 139 - tradução da autora). Essas tapeçarias
encomendadas pelos próprios artistas e confeccionadas a partir de suas pinturas podem
ser consideradas como reproduções? Para Walter Benjamin:
[...] a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam
sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era
praticada por discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a
difusão das obras, e finalmente por terceiros, meramente interessados
no lucro (BENJAMIN, 1996, p. 166).
E aqui especificamente é o trabalho do tapeceiro que desde a Idade Média até meados
do século XX continua traduzindo para sua linguagem sob conivência do artista, obras
expressivas. A primeira tapeçaria que o casal Dürrbach fez para Pablo Picasso foi Les
Arlequins e muitas outras foram feitas, entre elas Guernica (ver figura 46) e Les
Demoiselles d’Avignon. Ao analisar a tapeçaria Guernica, ela foi tramada da esquerda
para direita e todas as linhas de contorno denunciam a diferença do desenho a lápis
sobre papel, pincel sobre tela ou com fios entre liços. As linhas formando degraus quase
em zig-zag modelam as curvas ou as inclinadas, e são estas as linhas de contorno que
5
Der faden verrät den Pinsel nie, im Gegenteil, alles, was im bildlichen Universum zum Ausdruck
Kommt, wird optimal in eine Tapisserie übertragen.
6
You have given my works authority.
109
aumentam ou diminuem de espessura conforme sua direção em relação aos liços. Essa
tensão e rigidez, provocada pelos contornos das figuras na tapeçaria, completa-se com a
cena de horror e guerra desenhada por Picasso.
Figura 46
Pablo Picasso
Guernica (1955)
Dimensões: 330 X 700 cm
Manufatura de Jacqueline de La Baume Durrbach
Fonte da Imagem : GLIBOTA, Ante. Nouvelles Tapisseries. Paris: Chiffoleau, Nantes, 1985.
Nelson Rockefeller foi quem adquiriu grande parte das tapeçarias tramadas a partir das
obras de Pablo Picasso, inclusive a primeira versão de Guernica, que posteriormente foi
emprestada para a sede da Organização das Nações Unidas em Nova Iorque. Já a
segunda versão de Guernica se encontra no Museu Unterlinden, em Colmar na França.
O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza
uma tradição que identifica esse objeto, aos nossos dias, como sendo aquele objeto,
sempre igual e idêntico a si mesmo (BENJAMIN, 1996, p. 167). Talvez as tapeçarias
que são tecidas a partir de pinturas não sejam reproduções se considerar que cada
tapeceiro interpreta de maneira distinta aquela pintura; já a fotografia em muitos casos
reproduz exatamente a pintura. o especificamente a fotografia artística
contemporânea. Aqui caberia enunciar o significado de aura da obra de arte que,
segundo Walter Benjamin, é uma figura singular, composta de elementos espaciais e
temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja
(BENJAMIN, 1996, p. 170). Essa explicação justifica as muitas manifestações de
encanto e êxtase dos pprios artistas diante de suas obras traduzidas em tapeçarias.
110
Ao longo de várias décadas o casalrrbach desenvolveu tapeçarias para muitos
artistas, seus contemporâneos, assim como criaram suas próprias obras, sempre
preocupados em resgatar elementos essenciais para a tapeçaria. René rrbach resume
seu trabalho nas seguintes palavras:
Esse ato feito por um homem para a humanidade e seu Deus, é um ato
o qual memoriza um ponto no tempo para todo o tempo. Esse ato não
deve nunca apontar para a degradação, repetição que resulta em
diferença. O único nome para o nosso objetivo é a UNIDADE
7
(GLIBOTA, 1985, p. 139 - tradução da autora).
Não foi somente na França que tapeceiros e pintores se mobilizaram para resgatar e
reconstruir as fronteiras entre essas duas atividades. Na Escócia, especificamente em
Edimburgo, desde 1912 o Dovecot Studios produziu tapeçarias, inicialmente com
desenhos que remetiam aos padrões de William Morris. Ao longo do culo XX vários
nomes se destacaram nesse atelier, entre eles Archie Brennan que iniciou como aluno,
depois aprendiz e posteriormente como professor no Tapestry Department at Edinburgh
College of Art, e foi quem teve participação efetiva nas mudanças que ocorreram no
atelier. Com a inovação no uso de materiais que inicialmente se limitava à lã, o
incentivo aos pprios tapeceiros desenharem os seus cartões, o incremento e
diversificação da técnica usada na confecção das tapeçarias. Depois da Segunda Guerra
Mundial, artistas famosos britânicos traduziram suas pinturas em tapeçarias no Dovecot
Studios, entre eles Henry Moore, David Hockney e Cecil Beaton. Frank Stella, artista
americano, também encomendou ao Dovecot Studios que traduzisse várias de suas
pinturas para tapeçaria. Em 1963, Archie Brennan assumiu a direção da Dovecot Studios
incentivando e enfatizando a aproximação do artista e do tapeceiro, criando uma
conivência no trabalho ali desenvolvido. Nesse caso os limites da fronteira entre pintura
e tapeçaria, tornando-se flexíveis e acessíveis a ambas as partes. Será que o tapeceiro
deixa de ser mero artesão para dividir com o artista a tarefa de criar uma nova obra de
arte? Georges Didi-Huberman, em entrevista a Pedro Romero na Espanha, questiona
justamente a hierarquia que se criou antes mesmo da Renascea entre as Belas Artes e
demais atividades manuais. Na Academia ensinava-se a teologia, a retórica e a
geometria, e a esta foi incluída a pintura, ou seja, uma atividade do intelecto, as artes
7
This act done by a man for humanity and its God is an act which memorizes a point in time for all time.
This act must never aim for degrading, repetition which results in dissimilarity. The only name for our
goal is UNITY .
111
mecânicas usavam as os e o corpo, por isso ainda hoje persiste a conotação de artes
menores.
Joan Mi, artista espanhol que ao longo de sua vida desenvolveu atividades bem
variadas explorando materiais diversos, também usou a tapeçaria para divulgar várias de
suas obras. Provavelmente foram confeccionadas em ateliê da Espanha porque têm
características bem marcantes da técnica lá desenvolvida, isto é, conciliam na trama fios
de espessuras diferentes e exploram bastante os relevos enfatizando além do desenho a
textura visual. O tapete de de 1974 (ver figura 47) ilustra bem todas essas
características, mas foi destruído em 11 de setembro de 2001 no World Trade Center
em New York.
Figura 47
Joan Mi
Tapestry New York, Port Authority (1974)
Dimensões: 660 X 1.100 cm – Lã.
Fonte da imagem: ERBEN, Walter; DÜCHTING, Hajo. Miró. China: Taschen, 2008.
Na Alemanha, em 1919, a escola e oficina Bauhaus, sob direção de Walter Gropius,
instalada inicialmente na cidade de Weimar e depois em Dessau, oferecia várias áreas
de estudos, entre elas a oficina de tecelagem sob a orientação de Johannes Itten. Desde o
112
princípio todas as atividades partiam de projetos de estudo, onde o aluno além de
desenhar os cartões de suas tapeçarias também estudava as combinações de cores e
tingiduras de diversos materiais. Artistas como Paul Klee, Georg Munch e Wassily
Kandinsky contribuíram com a escola lecionando e divulgando o trabalho realizado.
Gunta Stölzl e Benita Koch-Otte foram alunas, fizeram parte da primeira turma e
buscaram posteriormente novos conhecimentos em outros ateliês. Em 1929 Gunta
assumiu o atel de tecelagem da Bauhaus, onde desenvolveu várias tapeçarias que
estão no acervo do arquivo da Bauhaus em Berlim.
Esse trabalho docente de oportunizar ao público interessado um contato com atividades
específicas como a tapeçaria, abriu fronteiras. Ao longo do século XX e início do século
XXI muitos ateliês surgiram e tapeceiros desenvolveram tapeçarias desenhadas por eles
assim como encomendadas por outros artistas. Pensar estas tapeçarias, tanto as
confeccionadas pelos coptas nos séculos V e VI, assim como as tapeçarias da Idade
Média, e ainda as acima mencionadas do século XX, implicam pensar em uma história
da tapeçaria não através de fronteiras gidas e limites impostos, mas sim considerar as
questões que reverberam, que sobrevivem. Como bem cita o teórico Georges Didi-
Huberman:
Diante de uma imagem tão recente, tão contemporânea como seja –
o passado não cessa nunca de reconfigurar-se, posto que esta imagem
se torna pensável em uma construção da memória, quando não da
obsessão. Enfim, diante de uma imagem, temos que humildemente
reconhecer o seguinte: que provavelmente ela nos sobreviverá, que
diante dela somos o elemento fgil, o elemento do passado, e que
diante de nós ela é o elemento do futuro, o elemento da duração. A
imagem, amiúde, tem mais de memória e mais de porvir que o ser que
a olha
8
(DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 12 - tradução da autora).
Pesquisar materiais inusitados para a confecção de tapeçarias, e buscar novos limites
entre as fronteiras do desenho, pintura, ou ainda de outras formas que podem constituir
os cartões, conciliando estes com a confecção da tapeçaria, continuam sendo alguns dos
desafios dos tapeceiros contemporâneos. Por que a pintura produzida por pintores
consagrados e traduzida em tapeçaria é tão pouco divulgada? Ou ainda, por que essas
8
Ante una imagen – tan reciente, tan contemporánea como sea -, el pasado no cesa nunca de
reconfigurarse, dado que esta imagen sólo deviene pensable en una construcción de la memoria, cuando
no de la obsesión. En fin, ante una imagen, tenemos humildemente que reconocer lo siguiente: que
probablemente ella nos sobrevivirá, que ante ella somos el elemento frágil, el elemento de paso, y que
ante nosotros ella es el elemento del futuro, el elemento de la duración. La imagen a menudo tiene s
de memoria y más de porvenir que el ser que la mira.
113
tapeçarias são divulgadas em literatura específica? Por fim, pretende-se trazer à luz
um pouco mais desta parceria e mostrar que a retícula também está presente na tapeçaria
contemporânea.
4.3 A Retícula na Tapeçaria:
A primeira retícula perceptível na tapeçaria é o conjunto da urdidura e da trama, ou seja,
a urdidura representada pelos fios dispostos no tear paralelamente ao seu comprimento,
e por entre os quais passam os fios da trama. Para Deleuze e Guattari, essa estrutura da
tapeçaria ou do tecido reúne características que o definem como espaço estriado.
Em primeiro lugar, ele é constituído por dois tipos de elementos
paralelos: no caso mais simples, uns são verticais, os outros
horizontais, e ambos se entrecruzam perpendicularmente. Em
segundo lugar, os dois tipos de elementos o m a mesma função;
uns são fixos os outros móveis, passando sob e sobre os fixos.
(DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 180)
Esse campo estriado se concretiza a partir do momento em que uma duite da trama é
entrelaçada com a urdidura. A textura dessa grade pode variar conforme o material
usado tanto na urdidura como na trama e o espaçamento entre fios da urdidura. Todas as
características que Deleuze e Guattari enumeram como sendo do tecido estriado são
perceptíveis na tapeçaria. Por exemplo, é uma atividade de um espaço sedentário; a
moldura do tear limita a área de trabalho, obrigando os fios da trama ao vai e vem que
assim completam as duites
9
e consequentemente resulta na tapeçaria. O comprimento do
urdume pode ser infinito e o avesso no tecido estriado é resultado dos arremates dos fios
da trama. Não foi em função de todas essas características que Platão pôde tomar o
modelo da tecelagem como paradigma da ciência “régia”, isto é, da arte de governar
os homens ou de exercer o aparelho de Estado? (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p.
181). Seria então a disciplina e organização necessárias para executar inicialmente o
urdume e depois a trama, que levaram os autores acima citados a fazer essas relações?
Da mesma forma, para Anni Albers, tapeceira da BAUHAUS, [...] a grade da urdidura
e trama em si oferecia a matriz para a estrutura do seu trabalho. Tão adepta que era,
ela poderia criar pura gica a partir de simples ingredientes (ALBERS, 2008, p. 32).
9
Unidade mínima para formar a trama, ou seja, são duas carreiras atravessando a urdidura em posições
distintas dos liços.
114
Na disciplina ministrada por Paul Klee e Johannes Itten, nos primeiros anos da Bauhaus
em Weimar, eles sugerem aos tecelões depois das aulas teóricas e exercícios sobre
papel, [...] verem por si mesmos as limitações do tear e seu idioma específico
(ALBERS, 2008, p. 55). Como transportar para o tear o efeito das pinceladas no papel e
[...] onde é fisicamente impossível misturar cores e a mudança de cor pode ser
concretizada pela ilusão criada quando dois ou mais fios sobrepostos interagem nos
olhos do espectador (ALBERS, 2008, p. 150). o várias as questões de ordem prática
que podem ser discutidas principalmente pelo fato da tapeçaria tradicional européia
partir sempre de um desenho.
Quando se observam tapeçarias de diversos períodos da história é possível, antes
mesmo de analisar a tetica, perceber através do grão de sua estrutura, ou seja,
espaçamento entre fios do urdume e material usado na trama, identificar em qual
período ela foi confeccionada e, através do tema, em qual região isso aconteceu. Essas
características são tão marcantes na tapeçaria como em qualquer outra atividade manual.
A tapeçaria executada por povos de regiões não catalogadas até o início do século XX
foi e até hoje continua sendo alvo de estudos por parte dos tapeceiros europeus para
conhecer e até aprender com essas culturas. O casal Josef e Anni Albers é um exemplo
desta busca, se conheceram na Bauhaus, Alemanha, onde ele ministrava aulas e ela
inicialmente foi aluna; em 1933 saíram da Alemanha para os Estados Unidos. Dois anos
depois eles haviam estado no México e haviam feito vários contatos com a cultura
local. Anni Albers, com o conhecimento adquirido ao longo de vários anos na Bauhaus,
percebeu logo as grandes diferenças no fazer quando menciona que [...] os métodos
tradicionais europeus de ensino têxtil começaram com o planejamento do pado
original no papel; os tecelões andinos, no entanto, não utilizam anotação. O processo é
mnemônico e ligado diretamente ao processo de tecelagem (ALBERS, 2008, p. 56).
Assim ao longo de muitos anos criou-se uma linguagem na qual o idioma do tapeceiro é
respeitado. Um outro fator de extrema relevância na tapeçaria andina é sua aceitação
como manifestação artística e atividade de maior importância. Bem diferente da Europa
na qual:
[...] importantes referências na arte têxtil, tais como a tapeçaria
tica, renascentista e barroca, produzidas em oficinas que
continuaram a funcionar na Europa até o século XX (e de fato o
fazem até hoje). Essas imagens de grande formato foram reproduzidas
por mestres tecelões a partir de desenhos feitos por mestres pintores.
Para Anni Albers, esse método afetava a maneira na qual a tecelagem
115
era vista e por um longo tempo a relegou à categoria de arte de menor
importância (ALBERS, 2008, p. 57).
Ao longo do século XX muitos tapeceiros de origem européia, preocupados com essas
questões, buscaram novos caminhos ao incentivar o próprio tapeceiro a criar seus
cartões. Exposições e eventos têxteis surgiram para divulgar a tapeçaria criada e
executada pelo tapeceiro; e um diálogo ou uma nova parceria surge entre pintores e
tapeceiros. Josef Albers em sua pintura segue o que [...] em outras artes é considerado
uma questão de lógica. Isto é, desempenho é preparado com ensaio, exercícios
precedem o recital e planos precedem a execução. E era uma regra dentre os velhos
mestres da pintura (ALBERS, 2008, p. 156). Na execução da tapeçaria tradicional
européia, poderia-se incluir aí a criação e desenvolvimento do cartão.
Archie Brennan, tapeceiro escocês atualmente vivendo em Nova Iorque, na década de
1980 fez a seguinte pergunta: Será a tapeçaria um prolongamento ou uma tradução de
um desenho ou ainda uma mudança de um sistema para outro com a possível
adaptação técnica e das cores?
10
(LANE, 2002, p. 42 - tradução da autora). Em sua
exposição The Drawing Series, na Gail Martin Gallery em Nova Iorque, essas questões
transparecem em suas obras. O artista partiu de desenhos feitos com carvão sobre papel,
usando modelos vivos. Na primeira obra da série, denominada Female Head (ver figura
48), Brennan assume ter feito literalmente uma tradução de uma técnica para outra,
ignorando elementos expressivos da técnica da tapeçaria, e a mesma ficou aquém do
cartão que lhe serviu de apoio. Usar a textura da grade formada pela urdidura e trama
como recurso visual seria uma maneira de valorizar as características da mesma? O
tapeceiro, conhecendo as limitações da tapeçaria, como poderá traduzir do seu cartão
uma linha reta horizontal quando na trama a unidade mais próxima é uma duite?
Numa outra tapeçaria da rie Butch IV percebe-se o quanto o artista explorou a grade
formada pela urdidura e trama, valorizando e definindo os contornos da imagem. Essa
estrutura da grade, formada pela urdidura na vertical e trama na horizontal, fica mais
evidente nessas tapeçarias de Brennan, porque o tapeceiro as teceu seguindo o desenho
de cima para baixo, e reforçando as linhas curvas em degraus contornando as formas. A
composição de linhas e formas é valorizada com o bom uso do desenho e da estrutura da
10
Wird die nach einer Zeichnung hergestellte Tapisserie zu einer Erweiterung der Bildaussage führen
oder nur in einem System von Herstellungstechniken und Farbanpassungen modifiziert.
116
tecelagem, isto pode ser conferido em Standing Male Nude (ver figura 49). Brennan
explora e reforça a bidimensionalidade da tapeçaria e conhece os materiais que utiliza.
As texturas distintas do algodão, lã e linho, e ainda as várias maneiras como cada
material reflete a luz são características que um artista tapeceiro deve levar em conta.
Para Mary Lane, historiadora e tapeceira, [...] a arte filtra o olhar pelas lentes do
artista
11
(LANE, 2002, p.24 - tradução da autora).
Figura 48
Archie Brennan
Female Head
Dimensões: 30 X 40 cm.
Fonte da Imagem: LANE, Mary. Gewebte Zeichnugen von Archie Brennan. Textilforum, Hannover, n.2,
p.42, 2002.
Outra retícula perceptível, não na pintura moderna, mas também na tapeçaria
moderna e contemporânea, foi alvo de rios estudiosos. À medida que vai crescendo
nosso contato com a retícula, vamos descobrindo que uma de suas características mais
modernas é sua capacidade para servir como paradigma ao modelo do ante evolutivo,
11
Kunst filtert den Blick durch die Linse dês Künstlers.
117
do ante narrativo e do ante histórico
12
(KRAUSS, 2002, p. 37 - tradução da autora). Na
tapeçaria é possível explorar tanto a retícula composta pela urdidura e trama assim
como a retícula na composição do desenho.
Figura 49
Archie Brennan
Standing Male Nude (2002)
Dimensões: 45" X 21.75"
Fonte da Imagem : RUSSEL,Carol. Intellect and Invention :Tapestries by Archie Brennan and Susan M.
Mafei. Fiberarts, New York, vol.30, n.5, p.60, 2004.
12
A medida que va creciendo nuestro contacto con la retícula, vamos descubriendo que uno de sus
caracteres más modernos es su capacidad para servir como paradigma o modelo de lo antievolutivo, lo
antinarrativo y lo antihistórico.
118
Em obras da exposição The Drawing Series (ver figura 50), Brennan usa duplamente a
retícula atraindo o olhar do espectador para partes específicas, em outras provoca um
passeio pela obra. O tapeceiro cria uma tensão no olhar do espectador ao usar as
molduras e os contornos; em algumas obras a retícula funciona como um limite que não
limita, extrapola os contornos da tapeçaria. Rosalind Krauss considera a retícula na obra
de arte:
[...] como mero fragmento, um pequeno retalho arbitrariamente
cortado de um tecido infinitamente maior. Deste modo, a recula
opera desde a obra de arte para fora, forçando nosso reconhecimento
de um mundo situado mais além do marco. Essa é a leitura centrífuga.
A centrípeta opera, com bastante naturalidade, desde os limites
externos do objeto estético para o interior
13
(KRAUSS, 2002, p. 33 -
tradução da autora).
Figura 50
Archie Brennan
Drawing Series-Grid (1997)
Dimensões: 66 X 100 cm
Fonte da Imagem : BERRY, Helga. Das Internet – ein medium r textilkünstler. Textilforum, Hannover,
n.3, p.33, 1998.
13
De este modo, la retícula opera desde la obra de arte hacia fuera, forzando nuestro reconocimiento de
um mundo situado más allá del marco. Ésta es la lectura centrífuga. La centrípeta opera, con bastante
naturalidad, desde los límites externos del objeto estético hacia el interior.
119
Em Disassembled Nude (ver figura 51) o tapeceiro fez uma composição com áreas
sobrepostas, a figura humana se multiplica e ao mesmo tempo é fragmentada. Essa
tapeçaria é um exemplo de leitura centrípeta; enquanto a próxima tapeçaria poderia ser
considerada uma leitura centrífuga, porque extrapola os limites da moldura e poderia ir
muito além. Em Deconstruct/Reconstruct (ver figura 52) essa manipulação é ainda mais
evidente e aqui algumas partes não identificáveis de corpos esquartejados são
apresentadas, impossibilitando ao observador visualizar e compor novamente uma
figura.
Figura 51
Archie Brennan
Disassembled Nude (2001)
Dimensões: 56 X 104 cm
Fonte da Imagem : LANE, Mary. Gewebte Zeichnugen von Archie Brennan. Textilforum, Hannover, n.2,
p.43, 2002.
120
Figura 52
Archie Brennan
Desconstruct-Reconstruct (2002)
Dimensões: 82,5 X 110,5 cm
Fonte da Imagem : LANE, Mary. Gewebte Zeichnugen von Archie Brennan. Textilforum, Hannover, n.2,
p.43, 2002.
Quando o tapeceiro desenha seus cartões sobre uma folha de papel, esta funciona como
pano de fundo para áreas desenhadas e outras não desenhadas. Na confecção da
tapeçaria todas as áreas são preenchidas, tanto figura como fundo. Nesse processo
ambos têm a mesma importância, em alguns momentos quem define a figura é o fundo
e em outros o fundo precisa ser tramado para poder receber a figura. Para Brennan o
fascinante de sua atividade está na tensão existente entre o seu desenho e a evolução de
sua tapeçaria. O fato de não usar elementos da pintura como o desenho da pincelada na
execução da tapeçaria e introduzir a retícula como recurso visual, enfatiza a busca pela
identidade da tapeçaria? Para Mary Lane, Brennan oferece ao espectador, um encontro
121
com as tapeçarias, em uma incansável visão criadora de unidade entre o processo e o
produto
14
(LANE, 2002, p. 42 - tradução da autora).
Observando esse conjunto de tapeçarias de Archie Brennan, a leveza de suas linhas em
um exercício muito difícil de executar na tapeçaria, caberia aqui uma menção de Paul
Klee em suas aulas na Bauhaus. Klee sugerira que alguém pode levar uma linha para
um passeio (ALBERS, 2008, p. 168). Provavelmente esse comentário foi possível
devido ao seu grande envolvimento com o atelde tecelagem e sua percepção diante
das dificuldades e limitações da técnica.
A tapeceira Jane Kidd é canadense e leciona “Desenho têxtil e teoria da tapeçaria
contemporânea” no Alberta College of Art and Design. Segundo a tapeceira, sua obra
remete a elementos do mundo material e espiritual reunidos em coleções de símbolos
universais e particulares. As tapeçarias Possession: Imprint/Impact #1 e Possession:
Imprint/Impact #2 (ver figuras 53 e 54) exploram as implicações de acumular,
colecionar e mostrar objetos do mundo natural e da cultura material. Para o espectador
das tapeçarias acima mencionadas, se revelam várias áreas ricamente ornamentadas,
misturadas a padrões têxteis, com molduras de desenhos e dimensões distintas, mas para
Kidd, sua obra reúne o material e espiritual.
Ao contrário da perspectiva, a retícula não projeta o espaço de uma
habitação, ou de uma paisagem, ou um grupo de figuras sobre a
superfície de uma pintura. Trata-se de uma transferência na qual nada
muda de lugar. Poderia dizer que as qualidades físicas da superfície se
transferem para as dimensões estéticas da mesma superfície. E como
tem demonstrado nesses dois planos o físico e o estético – resultam
ser o mesmo plano. Visto desta forma, o fundamento da retícula nos
remete a um aberto e decidido materialismo
15
(KRAUSS, 2002, p. 24
- tradução da autora).
14
Für den Betrachter bietet seine Tapisserien Begegnungen mit der unermüdlichen einer gestalterischen
Vision anhängt, in der Prozess und Produkt eine Einheit bilden.
15
Al contrario que la perspectiva, la retícula proyeta el espacio de una habitación, o un o paisaje, o un
grupo de figuras sobre la superficie de una pintura. Se trata de una transferencia en la que nada cambia
de lugar. Podría decirse que las cualidades físicas de la superficie se transfieren a las dimensiones
estéticas de la misma superficie. Y, como se ha demostrado, esos dos planos el físico y el estético
resultan ser el mismo plano. Visto de esta forma, el fundamento de la retícula nos permite a un abierto y
decidido materialismo.
122
Figuras 53 e 54
Jane Kidd
Possession : Imprint-Impact#1 (2006)
16
Possession: Imprint / Impact # 2 (2006)
17
Dimensões: 54” X 35” Dimensões: 54” X 35
Jane Kidd usa seus estudos como professora investigando a história dos padrões têxteis
de diversas culturas; sua apropriação e transformação através da globalização.
Especificamente, [...] esta rie de tapeçarias explora o impacto do desejo humano de
possuir e controlar seus corpos, seu meio ambiente e suas histórias
18
(KIDD, 2006, p. 9
- tradução da autora). A recula, manifestação artística explorada na arte moderna, não
é um símbolo, algo superficial, mas pode ser considerado um mito. Talvez o poder
16
Fonte da Imagem: American Tapestry Alliance. American Tapestry Biennial Six. Grand Rapids, Urban
Institute of Contemporary Arts, 2006.
17
Fonte da Imagem: KIDD, Jane. The Artists, Early ATA Exhibitors. Tapestry Topics, Califórnia, vol.33
n.2, p.8, Summer 2007.
18
This series of tapestries explores the impact of the human desire to possess and control our bodies, our
environment and our histories.
123
mítico da obra de Jane Kidd seja conciliar em uma mesma tapeçaria elementos da
natureza, do conhecimento humano e de suas emoções. Criar campos para expor os
diversos elementos e usar molduras de diversas espessuras e padrões de desenhos para
limitar e emoldurar esses mesmos campos também caracteriza a retícula. Talvez Jane
Kidd e Archie Brennan, assim como tantos outros tapeceiros contemporâneos, usam a
retícula em suas tapeçarias para mostrar a unidade de seu trabalho no tear. Quando o
tapeceiro conhece e domina os recursos da técnica, a tradução do cartão para tapeçaria
não tem sotaque e cabe ao espectador a visão final.
Sarah Swett, de nacionalidade russa, trabalha em seu ateliê em Moscou e sua produção
como tapeceira é conhecida desde o final da década de 1980. É autora do livro Kids
Weaving, no qual apresenta as diversas possibilidades da tapeçaria e incentiva crianças e
jovens a explorar as tramas no tear. Suas tapeçarias exploram a grade formada pela
urdidura e trama de forma consciente e harmoniosa, usando somente fiada e tingida
manualmente em seu ateliê. A tapeçaria Half Passed (ver figura 55) foi capa do convite
da exposição Half Passed 12: Moments in Tapestry, em 2001. Aconteceu em Illinois
no The Fine Line Creative Arts Center e reuniu 50 pequenas tapeçarias de tapeceiros
contemporâneos dos EUA e outras nacionalidades. Half Passed explora em quase toda
sua extensão a trama com fendas, e ao retratar uma cena da execução de uma tapeçaria
mantém parte da área da urdidura à vista. A grande grade quadriculada ao fundo remete
a uma janela e sugere inicialmente que a cena acontece em ambiente fechado, e num
segundo momento reforça a necessidade da presença da luz do dia no trabalho de
escolha de cores e execução da trama pelo tapeceiro. Esses diversos planos contidos na
tapeçaria bidimensional sugerem que a retícula aqui utilizada não é um relato, [...] é
uma estrutura, uma estrutura que possibilita a existência de uma contradição entre os
valores da ciência e os valores espirituais, mantendo-os conscientes ou
inconscientemente, como elementos reprimidos, no meio da arte moderna
19
(KRAUSS,
2002, p. 29 - tradução da autora).
19
[...] es una estructura, una estructura que, además, posibilita la existencia de una contradicción entre
los valores de la ciencia y los valores espirituales, manteniéndolos consciente o inconscientemente, como
elementos reprimidos, en el seno del arte moderna.
124
Figura 55
Sarah Swett
Half – Passed (2001)
Fonte da Imagem: www.neon.chem.uidaho.edu/~swett/
Em outra obra de Sarah Swett, denominada Blue Day, a tapeceira usa novamente a
grade da janela agora visivelmente aberta e a moldura da tapeçaria na qual o tapete na
parte inferior dá continuidade. As cores mais claras no centro remetem a um clima mais
quente e tendo sido confeccionado na Rússia isso acontece muito raramente. Os azuis e
verdes do tapete repetem na paisagem, na almofada e na blusa da figura feminina,
porém em tonalidades mais claras, isso mostra a preocupão do tapeceiro
contemporâneo em reduzir ao máximo o leque de cores em suas obras. Essa tarefa é
125
difícil justamente porque para clarear uma tonalidade o tapeceiro reúne num mesmo
cabo tonalidades diferentes de uma mesma cor, ou de cores distintas, e somente o olhar
do espectador é que fará a leitura desse degradê. Segundo Rosalind Krauss:
[...] para nós como seres humanos receptores, existe um abismo
intransponível entre a cor real” e a cor percebida”. Podemos ser
capazes de medir o primeiro, mas o segundo podemos
experimentá-lo. E isso se deve, entre outras coisas a que a cor sempre
implica numa interação: uma cor determina e afeta a outra cor
vizinha
20
(KRAUSS, 2002, p. 29 - tradução da autora).
Tanto nessa tapeçaria como na anterior, Swett usa a fenda como um recurso visual
quando duas cores diferentes estão lado a lado. Enfatizar os degraus onde surgem linhas
verticais e inclinadas também reforça e valoriza a existência da grade formada pela
urdidura e trama.
Valorizar a grade da estrutura da tapeçaria talvez tenha sido um dos pontos positivos da
tapeçaria contemporânea, e usar a retícula como recurso na composição ajudou alguns
tapeceiros em sua busca pela identidade de suas obras, descartando dessa forma a longa
dependência que os cartões exerceram sobre as tapeçarias. As tapeçarias acima
apresentadas assim como muitas outras na atualidade são tramadas de cima para baixo,
ou até de baixo para cima devido às suas pequenas dimensões. Ao longo de vários
culos as grandes tapeçarias sempre foram tecidas da direita para esquerda para
equilibrar o peso entre urdidura e trama.
Pesquisar o uso das cores e combinar as texturas de fios na urdidura e na trama também
o elementos relevantes na tapeçaria contemporânea. Seque além das retículas nas
pequenas tapeçarias, podemos considerar os mini-têxteis a marca da tapeçaria
contemporânea?
20
[...] para nosotros, como seres humanos perceptores, existe un abismo infranqueable entre el color
“real” y el color “percibido”. Podemos ser capaces de medir el primero, pero el segundo sólo podemos
experimentarlo. Y ello se debe, entre otras cosas, a que el color siempre implica una interacción: un
color determina y afecta a otro color vecino.
126
4.4. O mini-têxtil anacrônico:
A tapeçaria é uma das mais antigas e sedutoras formas de expressão têxtil e a principal
maneira de representar desenhos ou pinturas através da trama. Apesar de ser uma
atividade lenta e demorada, um processo laborioso se comparado a outras atividades no
tear, esta tem sido usada ao longo de séculos por povos de diferentes culturas. Desde
tempos remotos foi explorada com o apelo decorativo ou como ornamentação e entre as
formas têxteis é uma das mais resistentes. É encontrada como tapeçaria de parede,
tapete de chão e em mini-têxteis como detalhes de vestimentas dos coptas, povo que
viveu no Egito. Eles usaram teares horizontais e verticais e suas tapeçarias eram
tramadas da parte inferior para superior do desenho. Foi provavelmente na Idade Média,
nos ateliês da França e região da atual Bélgica, que as grandes tapeçarias começaram a
serem tramadas da direita para a esquerda do desenho. Assim, quando a tapeçaria era
exposta, o peso maior que é da trama ficava na vertical e não comprometia a estrutura
visual da peça. Muitos dos recursos técnicos usados na Idade Média ainda hoje podem
ser vistos nas tapeçarias coptas. Isto é possível porque milhares de taparias deste
povo mantiveram-se intactas devido ao clima seco e desértico onde os corpos dos
cristãos coptas foram enterrados. Algumas tapeçarias encontradas serviram para enrolar
os corpos dos mortos, e outras eram fixadas na parte anterior de suas vestimentas como
ornamento. Os ornamentos mereceram exposições críticas, museus especializados e
estudos eruditos; critérios para avaliação dos ornamentos foram estabelecidos em
função do seu grau de inventividade e abstração (PAIM, 200, p. 17). Os desenhos
remetiam a temas da história romana e bizantina, de antigas culturas pagãs e ainda
ideais cristãos. Segundo Riegl, a arte surgiu com o ornamento, mais especificamente
quando a linha conquistou a sua independência em relação aos modelos naturais e
passou a obedecer as “leis artísticas fundamentais da simetria e do ritmo (PAIM,
2000, p. 41). O material usado preferencialmente naquela região foi o linho, num leque
grande de cores tingidas a partir de pigmentos naturais, e a cor mais próxima do branco
era a cor natural do linho. A composição das tapeçarias variava, mas a maioria tinha
uma barra decorativa em volta da cena principal, com formas que se repetiam ao longo
da mesma. Essa mesma forma de composição pode ser encontrada ao longo de vários
culos, mais especificamente entre 1600 e 1800, nas grandes tapeçarias confeccionadas
nos ateliês da Europa. Observar esses exemplos, para Didi-Huberman é [...] uma
127
extraordinária montagem de tempos heterogêneos que formam anacronismos
21
(DIDI-
HUBERMAN, 2006, p. 19 - tradução da autora).
Tapeceiros contemporâneos estudam os recursos técnicos usados pelos coptas, seu
desenho, o material e suas cores. Constataram que quem as confeccionou, tinha mãos
muito habilidosas e pequenas (ver figura 56). A história do ornamento não é um feixe de
pequenas histórias complementares, mas uma história de desenvolvimento único que
apresenta um traçado sinuoso porém contínuo (PAIM, 2000, p. 39). É muito provável
que os tapeceiros da Idade Média na Europa tenham bebido dessa fonte, mas suas obras
foram monumentais enquanto as tapeçarias coptas eram de pequeno tamanho. A rie de
tapeçarias A Dama e o Unicórnio, poderia ser então um exemplo que reúne seis
tapeçarias de grande formato, mas em pequena escala? Observando os elementos que
preenchem o fundo dessas tapeçarias muitos deles podem ter sido copiados de
ilustrações de iluminuras. Se forem recortados pequenos detalhes desse grande fundo
ricamente ornamentado, poder-se-á criar muitos mini-têxteis que isolados do todo
compõem novas tapeçarias (ver figuras 57 a 68). Miniaturas não são grandes imagens
encolhidas
22
(LANE, 2008, p. 2 - tradução da autora). Tramar em pequena escala requer
uma sensibilidade especial, uma urdidura adequada, materiais apropriados e uma
composição do desenho condizente com as possibilidades do espaço de trabalho.
Portanto as tapeçarias de grande formato da Idade Média e os pequenos têxteis coptas
interligam-se fortemente através do sintoma que sempre retorna. Enquanto as grandes
tapeçarias cercam o espectador e obrigam-no a observar de muito longe o todo, os
pequenos xteis atraem o público para perto. O anacronismo se faz presente aqui [...]
na dobra exata da relação entre imagem e história: as imagens, desde logo, têm uma
história, mas o que elas são, seu movimento próprio, seu poder específico, não aparece
na história mais que como um sintoma
23
(DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 28 - tradução da
autora).
21
[...] un extraordinario montaje de tiempos heterogéneos que forman anacronismos.
22
Miniatures are not a large image shrunk small.
23
[...] en el pliegue exacto de la relación entre imagen e historia: las imágenes, desde luego, tienen una
historia; pero lo que ellas son, su movimiento propio, su poder específico, no aparece en la historia más
que como un síntoma.
128
Figura 56
Tapeçaria Copta - séculos 5 ou 6 d.C.
Dimensões: 28 X 30 cm.
Fonte da Imagem: PHILLIPS, Barty. Tapestry. London: Phaidon, 1994.
Na contemporaneidade tanto o mini-têxtil como as pequenas tapeçarias são muito
exploradas, devido a rios fatores. Inicialmente muitos tapeceiros alegam falta de
espaço para manter grandes teares, num segundo momento grandes tapeçarias pedem
grandes espaços para serem exibidas e os ambientes na atualidade também são menores.
Obras monumentais pedem espos muito maiores e não o dividem com outras. O custo
de grandes tapeçarias é inviável para muitos colecionadores e interessados em adquirir
essas obras. Da mesma forma, o tapeceiro que faz grandes tapeçarias na atualidade só as
confecciona mediante encomenda prévia, porque envolve muito tempo e material para
execução. Entre as décadas de 1960 e 1970, vários artistas que haviam desenhado
cartões para grandes tapeçarias nos Estados Unidos da América mandavam seus cartões
129
para serem confeccionados em ateliês na França e Inglaterra. Essa prática ainda hoje
acontece esporadicamente, porque existem grandes teares e mão de obra
especializada em poucos ateliês no mundo. Na atualidade as grandes taparias são
quase que exclusivamente confeccionadas em ateliês como Gobelin, na França;
Victorian Tapestry Workshop na Austrália; Dovecot na Escócia e West Dean na
Inglaterra.
Figuras 57 e 58
A Dama e o Unirnio - Tato (Detalhes)
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. A Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
Por outro lado pequenas tapeçarias assim como mini-têxteis, são rápidas de serem
executadas e envolvem pouco material, assim reduz-se o custo final da obra, e podem
ser facilmente transportadas para eventos e exposições. Instituições que promovem
essas exposições são cada vez mais freqüentes, acontecendo em diversos continentes e
recebendo um número bastante significativo de participantes, possibilitando também ao
público o acesso e apreciação de tapeçarias de origens bem distintas. O que era
inicialmente uma arte mural somente para os reis, nobres e a igreja, é agora possível
para todos em escala doméstica.
130
Figuras 59 e 60
A Dama e o Unicórnio - Paladar (Detalhes)
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. A Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
Figuras 61 e 62
A Dama e o Unicórnio - Olfato (Detalhes)
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. A Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
É unânime a opinião dos tapeceiros com relação a esses fatores, mas é preciso observar
e analisar a obra para qualificar quais os critérios que estão sendo usados para distinguir
um mini-têxtil de uma pequena tapeçaria. Nos muitos eventos de mini-têxteis que
acontecem em diferentes países os critérios para inscrição e aceitação de obras variam
131
bastante, e as dimensões e a forma final não são as únicas questões a serem
consideradas. Poderia ser qualificada como mini-têxtil uma tapeçaria de 15 x 15 cm
com uma urdidura de dois fios por centímetro e trama de espessura proporcional? Nessa
possibilidade o tapeceiro não estaria trabalhando em pequena escala, mas em grande
escala numa área de trabalho bem reduzida, limitando-se a explorar texturas e talvez
cores; exercício este que não correspondente às pequenas tapeçarias coptas ou às
grandes tapeçarias medievais.
Figuras 63 e 64
A Dama e o Unirnio Audição (Detalhes)
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. A Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
Um outro exemplo seria uma tapeçaria de dez centímetros de largura e dois metros de
comprimento. Cabe aqui salientar que [...] não somente é impossível compreender o
presente ignorando o passado, senão, inclusive, é necessário conhecer o presente
apoiar-se nele para compreender o passado e então, saber projetar as perguntas
convenientes
24
(DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 33 - tradução da autora).
24
[...] no solamente es imposible comprender el presente ignorando el pasado, sino, incluso, es necesario
conocer el presente – apoyarse en él – para comprender el pasado y, entonces, saber plantearle las
preguntas convenientes.
132
Figuras 65 e 66
A Dama e o Unicórnio Visão (Detalhes)
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. A Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
Muitos tapeceiros na atualidade argumentam que confeccionam pequenas tapeçarias ou
mini-têxteis pela facilidade de transporte do tear de um local para outro. Em muitas
situações o tapeceiro mora em uma cidade e ministra aulas em outras, e com um grande
tear suas tapeçarias ficariam interrompidas em períodos de viagens. Poder iniciar e
finalizar uma tapeçaria independentemente de seu tamanho, sem intervalos
significativos, é relevante no resultado final da obra. É imprescindível que o tapeceiro,
assim como em qualquer outra atividade artística, tenha um envolvimento profundo
com sua obra e isso só é possível quando ele não precisa interromper suas atividades.
Todas essas questões relacionadas ao tamanho e escala das obras fazem parte do dia a
dia do tapeceiro. Tanto grandes como pequenas tapeçarias em pequena escala, têm
limitações inerentes à técnica e cabe ao tapeceiro ultrapassar esses limites, não no
formato da obra, mas tentar extrapolar seus limites como tapeceiro. A tapeçaria não é
definida pelo seu material, nem pelo seu tamanho e nem pela sua forma, mas o que a
define? Em todas as situações o que a define é a harmonia entre sua urdidura e sua
trama, usando a técnica adequada para cada situação do desenho a ser traduzido em
materiais que valorizam esse mesmo desenho.
133
Figuras 67 e 68
A Dama e o Unicórnio A Mon Seul Désir (Detalhes)
Fonte da imagem: DELAHAYE, Elisabeth. A Dame à la Licorne. Paris: RMN, 2007.
É importante [...] reconhecer a necessidade do anacronismo como uma riqueza: parece
interior aos objetos mesmos – às imagens – cuja história tenta-se fazer. O anacronismo
seria assim, em uma primeira aproximação, o modo temporal de expressar a
exuberância, a complexidade das imagens
25
(DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 18 -
tradução da autora). Reunir imagens de tapeçarias coptas, juntamente com as medievais
e exemplares contemporâneos é estar diante de [...] - três tempos heterogêneos,
anacrônicos, uns em relação aos outros se entrelaçando de maneira notável
26
(DIDI-
HUBERMAN, 2006, p. 19 - tradução da autora). Quando o tapeceiro contemporâneo
consegue assimilar e transmitir em sua obra toda essa riqueza de conteúdos, seu trabalho
torna-se consistente e um mini-têxtil pode vir a ser uma grande tapeçaria.
Visitar uma exposição de mini-têxteis é algo diferente justamente pelo tamanho das
obras expostas que não excedem 20 x 20 cm em média. Nos Estados Unidos da
25
[...] reconocer la necesidad del anacronismo como una riqueza: parece interior a los objetos mismos
a las igenes cuya historia intentamos hacer. El anacronismo sería así, en una primera
aproximación, el modo temporal de expresar la exuberancia, la complejidad de las imágenes.
26
[...] – tres tiempos heterogéneos, anacrónicos los unos en relación a los otros – se trenzan de manera
notable.
134
América existe a American Tapestry Alliance, entidade que reúne muitos tapeceiros e
que promove a Small Format Tapestry Exhibition a cada dois anos em uma cidade
diferente, onde os tapeceiros daquela região assumem e organizam o evento, tanto nos
Estados Unidos da América como no Canadá. A exposição não tem seleção prévia e tem
por objetivo reunir mini-têxteis de tapeceiros de todas as regiões do mundo. A edição de
2008 reuniu um número expressivo de mais de 180 trabalhos, todos na técnica
tradicional da tapeçaria e cada tapeceiro pode inscrever uma obra. Participam
tapeceiros renomados como Archie Brennan (ver figuras 69, 70, 71), Jean Pierre
Larochette (ver figura 72), Henrique Schucman (ver figura 73) e seus alunos, entre
tantos outros tapeceiros das mais diferentes regiões do mundo.
Figura 69
Archie Brennan
Defining Tapestry (1995)
Dimensões: 20 X 15 cm
Fonte da imagem : BRENNAN, Archie. It’s About Time. Small Format Tapestry, Portland. Pacific
Northwest College of Art, 1996. p.5.
Existem exigências de acabamento para participação nestes eventos e todas as
tapeçarias são fixadas da mesma forma. Posteriormente são disponibilizados catálogos
para os tapeceiros participantes e demais interessados. Se o ornamento tinha uma
história, as contribuições de diferentes culturas para esta história deviam ser
135
consideradas tão relevantes quanto a irradiação dos padrões originais (PAIM, 2000, p.
44).
Figuras 70 e 71
Archie Brennan
Drawing Series-K-Torso Nude-Rear
27
(1997) Rules, Rules
28
(2006)
Dimensões : 15 X 20 cm Dimensões: 20 X 20 cm
Nesse diálogo de tapeçarias em um evento internacional em que as exigências são
justamente usar a técnica tradicional, todos partem de uma mesma urdidura e trama,
mas a diversidade de resultados é surpreendente. Aqui cabe ressaltar o pensamento de
Didi-Huberman em seu livro Ante el Tiempo, onde ele menciona que, conscientemente
ou não, o sempre usadas as experiências cotidianas para reconstruir o passado. O
anacronismo, como “definição contrária da história”, proporciona também a definição
heurística da história como amnésia cronológica, regreso do tempo ao contrário da
27
Fonte da Imagem : BRENNAN, Archie. Encore. Small Format Tapestry, Atlanta. Atlanta International
Museum, 1998. p.10.
28
Fonte da Imagem : BRENNAN, Archie. Grand Ideas. Small Format Tapestry, Grand Rapids. Kendall
College of Art and Desing, 2006. p.3.
136
ordem dos acontecimentos
29
(DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 35 - tradução da autora). Se
forem agrupados em uma colcha de retalhos todos os mini-têxteis da exposição acima
mencionada, será possível perceber sintomas da contemporaneidade, esta constelação
tem uma origem comum, qual seja a técnica usada nas tapeçarias coptas do povo
egípcio ou nas grandes tapeçarias da Idade Média.
Figura 72
Jean Pierre Larochette
Show and Tell (1997)
Dimensões: 15 X 20 cm
Fonte da Imagem : LAROCHETTE, Jean Pierre. Encore. Small Format Tapestry, Atlanta. Atlanta
International Museum, 1998. p.12.
29
El anacronismo, como “definición a contrario de la historia”, proporciona también la definición
heurística de la historia como anamnesia cronológica, regresión del tiempo a contrario del orden de los
acontecimientos.
137
Figura 73
Henrique Schucman
Mei-Wong It is a Bird (1995)
Dimensões: 20 X 20 cm
Fonte da Imagem : SCHUCMAN, Henrique. It’s About Time. Small Format Tapestry, Portland. Pacific
Northwest College of Art, 1996. p.11.
138
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Arrematar uma tapeçaria parece tão definitivo quanto finalizar uma dissertação. Depois de
meses lendo os livros de historiadores e filósofos da arte, relacionando o conteúdo prático
da fatura no tear com esses escritos, percebe-se o quanto o tapeceiro da atualidade ainda se
nutre estudando obras da Idade Média. Provavelmente o tapeceiro contemporâneo busque
no passado elementos para inovar no presente, será este o anacronismo do qual Didi-
Huberman escreve em Ante el Tempo? Trata-se então de uma necessidade intrínseca à
criação, além da necessidade de inovação?
O simulacro enunciado por Rosalind Krauss em O Fotográfico, e por Deleuze em
Diferença e Repetição, também é perceptível na tapeçaria contemporânea. Vários exemplos
ilustram esse diálogo entre o conjunto das seis tapeçarias A Dama e o Unicórnio, que datam
de 1480 a 1490, e outras tapeçarias deste período como referências na produção da
atualidade, respondendo desta forma a alguns questionamentos formulados ao longo da
pesquisa.
A figura do narrador apresentada por Walter Benjamin pôde ser incorporada ao mestre
tapeceiro desde os ateliês da Idade Média até hoje, quando no dia a dia do atel este
repassa todos os seus conhecimentos aos jovens tapeceiros incentivando-os e envolvendo-
os no ofício. Em alguns países, onde a tapeçaria foi introduzida recentemente, o tapeceiro
narrador em seu ateliê pode ser substituído pelo tapeceiro professor que ministra aulas em
escolas superiores de arte. Essas adaptações sutis acabam mantendo o tapeceiro e sua obra
em sintonia com o espectador nos diversos continentes, o que pode ser constatado através
das inúmeras exposições de grandes tapeçarias e mini-têxteis.
139
Para analisar a obra dos tapeceiros Ernesto Aroztegui, Henrique Schucman e Jean Pierre
Larochette foi selecionada uma constelação de tapeçarias expressivas de momentos
distintos, e estas relacionadas com sua trajeria histórica. Pôde-se observar através da
escolha das cores, da textura do material, da urdidura e da trama qual a identidade do
tapeceiro. Ver os cartões que os tapeceiros usam para tramar suas tapeçarias revela, assim
como na pintura, que o tapeceiro não tece aquilo que vê, mas aquilo que aprendeu a tecer.
Embora não tenha tido acesso à grande maioria dos cartões, mas somente às imagens das
tapeçarias esse conteúdo ainda pode vir a ser bastante explorado.
O trompe l’oeil e a retícula, artifícios bastante usados na pintura em diversos momentos,
também são perceptíveis na tapeçaria contemporânea. Embora o tapeceiro do século XX
tenha tido necessidade de se afastar da pintura para buscar seu próprio desenho, criando
seus cartões, estes sintomas sempre reaparecem. Resgatar na Idade Média ou anterior a ela
elementos da técnica, e conciliar com novos materiais e novas tingiduras, propicia ao
tapeceiro contemporâneo mais possibilidades. Isso se justifica observando, por exemplo, a
tapeçaria Meninas da Guerra, confeccionada com materiais o convencionais para esta
modalidade e nem por isso menos harmoniosa.
Por outro lado, o diálogo entre as diversas manifestações artísticas pôde ser percebido
inclusive ao longo do século 20, quando muitos pintores procuraram os ateliês de tapeceiros
para tramarem tapeçarias usando suas pinturas como cartões. A reprodutibilidade técnica
enunciada por Walter Benjamin, nesse caso, foi sustentada com a conivência dos próprios
artistas.
O que se buscou na contemporaneidade, tentando resgatar a identidade da tapeçaria, diz
respeito a como explorar os recursos técnicos em favor da autenticidade da tapeçaria, sem
deixar de usar a pintura, o desenho, a fotografia ou outros meios como seu cartão. Diz
respeito ainda ao fato de que nenhum conhecimento pode se dar como perdido e que afinal
todos os dias nos reinventamos, sempre diferentes, mas com muitas semelhanças.
140
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