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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
MONIQUE CORDEIRO FIGUEIREDO MENDES
A FIGURA FEMININA EM CONSTRUÇÃO
NA LITERATURA PORTUGUESA:
Repensando a Ficção em Capitães de Abril
NITERÓI
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
CURSO DE MESTRADO EM LETRAS
MONIQUE CORDEIRO FIGUEIREDO MENDES
A FIGURA FEMININA EM CONSTRUÇÃO
NA LITERATURA PORTUGUESA:
Repensando a Ficção em Capitães de Abril
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do Grau de Mestre em Letras (Área:
Estudos Literários; Subárea: Literatura
Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa).
Área de concentração: Literaturas Estrangeiras
Modernas; Outras Literaturas Vernáculas.
ORIENTADOR: PROF. DR. MÁRIO CÉSAR LUGARINHO
NITERÓI
2007
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
CURSO DE MESTRADO EM LETRAS
MONIQUE CORDEIRO FIGUEIREDO MENDES
A FIGURA FEMININA EM CONSTRUÇÃO
NA LITERATURA PORTUGUESA:
Repensando a Ficção em Capitães de Abril
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do Grau de Mestre em Letras (Área:
Estudos Literários; Subárea: Literatura
Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa).
Área de concentração: Literaturas Estrangeiras
Modernas; Outras Literaturas Vernáculas.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Mário César Lugarinho UFF/USP (Orientador)
Prof. Dr. Ronaldo Menegaz ABL
Prof. Dr. Silvio Renato Jorge UFF
Profª Drª Dalva Calvão UFF (suplente)
Profª Drª Mônica Figueiredo UFRJ (suplente)
Aprovada em de de 2007.
AGRADECIMENTOS
Antes de tudo preciso dizer que meus
agradecimentos não são solenes. Eu não me
reconheceria neles se assim fora. Quero
agradecer a todas as pessoas que se fizeram
presentes, que se preocuparam, que foram
solidárias, que torceram por mim. Mas bem
sei que agradecer é sempre difícil, temo
cometer alguma injustiça e deixar de fora
amigos que muito me ajudaram.
De qualquer forma, todos os que
realizam um trabalho de pesquisa sabem
que não o fazem sozinhos, embora seja
solitário o ato da leitura e o do escrever. O
resultado de nossos estudos foi possível
apenas pela cooperação e pelo esforço de
outros antes de nós. Pesquisadores de vulto
histórico como Newton já escreveram sobre
o fardo que impomos aos ombros de
gigantes que nos precederam. Isto me leva a
questionar-me: quanto de mim sou eu, e
quanto é dos outros com quem convivi e
com quem convivo? A pergunta cabe porque
sinto que este trabalho não é só meu. Pelos
autores que li, pelos professores com quem
tive aulas na graduação e pós-graduação,
pelos colegas de Mestrado que me fizeram
aprender com as discussões e conversas e
pelos comentários e sugestões feitos aos
meus primeiros rabiscos da dissertação.
Queria agradecer a minha mais
querida amiga Jane dos Santos, pela sua
mão estendida, a querida Nelma da
secretaria, pela ajuda na formatação do
texto, a Professora Maria Lúcia, minha
primeira professora no Mestrado, e que
muito me marcou. Ao meu querido amigo
Ronaldo pela sua sempre pronta atenção, e
ao meu Mestre amado Mário Lugarinho,
pela ajuda sempre tão certeira.
À Minha família, deixo o
agradecimento final, que merece poucas
palavras, mas aquelas que me são mais
caras. Obrigado por vocês existirem.
A todos os que me ajudaram, o meu
carinho eterno.
RESUMO
Trabalho que tem por objetivo apontar a
transformação da imagem feminina, da mulher através
dos tempos. Tem como proposta apontar a mudança
significativa da imagem feminina portuguesa e dos
modelos dela idealizados anteriores à Revolução dos
Cravos até o ápice revolucionário. Como a imagem
foi sendo representada no decorrer dos séculos até a
sua representação na produção cinematográfica da
Revolução dos Cravos.
Este corpus se estabelece na história literária
portuguesa, num viés comparativo, que tomará como
modelo a imagem delineada da mulher na Era
Clássica, com as Cartas Portuguesas (1699), de
Mariana do Alcoforado, e aquela imagem que se
(re)constitui, na Era Contemporânea, com a releitura
proposta, desde o título, em Novas Cartas
Portuguesas (1973), das chamadas Três Marias, a
saber, Maria Velho da Costa, Maria Tereza Horta e
Maria Isabel Barreno, e o filme Capitães de Abril
(2000), de Maria de Medeiros.
É como se as cartas escritas estivessem sendo
colocadas na mesa, no sentido de esclarecer todos os
pontos de uma questão, sem omitir nada. Onde elas
podem declarar suas intenções; agir às claras, abrir o
jogo; mostrar as cartas. E esta cumplicidade
feminina aparece de forma interessante, visto que as
cartas não são assinadas e nem precisariam, pois não
são cartas de uma mulher e sim DA MULHER.
RESUMÉN
Se trata de un estudio cuyo objetivo es señalar
la transformación de la imagen femenina que se
produjo en la mujer a lo largo de los años. Plantea,
pues, no sólo apuntar los cambios significativos de
esa imagen en Portugal, sino también los modelos de
ahí plasmados, anteriores a la Revolución de los
Claveles hasta su ápice revolucionario. Una imagen
que poco a poco ha sido representada a través de los
siglos y sus reflejos en la producción cinematográfica
de dicha Revolución.
Este corpus se establece en la historia literaria
de Portugal por medio de una arista comparativa, que
tendrá como modelo la imagen de la mujer en la Era
Clásica, como lo comprueban las Cartas portuguesas
(1699), de sóror Mariana Alcoforado, y la que se
(re)constituyó después, en la Era Contemporánea, con
la relectura planteada, a partir del título, en Nuevas
cartas portuguesas (1973), de María Velho da Costa,
María Tereza Horta y María Isabel Barreno - las
llamadas Tres Marías- y la película Capitanes de
abril (2000), de María Medeiros.
Es como si las cartas escritas estuvieran
puestas en la mesa, para aclarar todos los puntos de
una cuestión, sin nada omitir. Donde ellas pueden
revelar sus intenciones; actuar a las claras; abrir el
juego; enseñar las cartas. Y esta complicidad
femenina aparece de un modo inaudito, porque no son
firmadas ni tampoco lo necesitarían, pues no son
cartas de una mujer, sino DE LA MUJER.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 8
CAPÍTULO I
A Mulher Mariana Alcoforado 10
1.1 As Cartas Portuguesas 12
1.2 As Três Marias 16
CAPÍTULO II
Maria de Medeiros 28
2.1 Maria de Medeiros e Os Capitães de Abril 30
CAPÍTULO III
As Mulheres e a Revolução 33
3.1 As Mulheres e o cinema 38
3.2 As Mulheres em Capitães de Abril 41
CONCLUSÃO 52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 55
ÍNDICE 62
8
INTRODUÇÃO
Em um primeiro momento para a realização dessa Dissertação de
Mestrado tinha como objetivo analisar a imagem que a mulher tinha de si
mesma, através dos questionamentos que construiu e com as que a sociedade
fez dela no decorrer dos séculos. Uma pesquisa bíblica se faria necessária
para que respostas fossem encontradas, já que a imagem da mulher ideal, mãe,
esposa, aquela que forma a base da estrutura familiar de nossa sociedade, se
formou na Bíblia, que é o livro que serve de alicerce, de apoio para toda a
sociedade cristã. Existem na Bíblia diversas demonstrações de que Deus fez o
homem e a mulher iguais, porém a tradição patriarcal evidenciou apenas
momentos em que a mulher está na condição de total submissão.
Contudo, nas conversas, leituras e estudos das obras a serem
abordadas, verifiquei que elaborar uma imagem da mulher na Bíblia não seria
tarefa fácil, pois séculos separam essa mulher da mulher que queríamos
enfocar e que teria como pano de fundo o filme Capitães de Abril, de Maria
de Medeiros. Assim recorremos à imagem da mulher na clausura, que se
verificou tanto nas Cartas Portuguesas com Sóror Mariana Alcoforado, como
com as Três Marias, em Novas Cartas Portuguesas, e no filme Capitães de
Abril, evitando assim um salto, uma lacuna que seria impossível de transpor,
pois o que estamos evidenciando não é o que fizeram com e da MULHER e
sim o que esta MULHER fez por si, sua participação no processo de mudança,
9
tanto no âmbito do lar como no processo de mudanças políticas de sua Pátria.
No entanto, deixar de avaliar a figura feminina, a partir da imagem
bíblica, não resolveria a questão de extensão temporal que envolveria tal
processo de análise. Assim, optou-se por perguntar: que ou quais aspecto (s)
da figura feminina se pretende analisar, sob que ótica temporal.
A fim de resolver esta questão optamos por analisar o modelo da
mulher que desperta para consciência de si, em meio à sociedade em mutação,
que era precisamente, aquela da Revolução dos Cravos. Para tanto se buscou
um modelo literário que correspondesse aos anseios expressos no filme
Capitães de Abril tomado como lelemento central de nossas análises. Neste
sentido, parece pertinente discorrermos sobre As novas cratas portuguesas,
cujo teor era também revolucionário, não só porque obviamente fazia
referência aos novos valores e direitos das mulheres, mas também porque
optou por através do próprio títilo, romper com um modelo de mulher, cujo
discurso apenas poderias referir-se ou remeter-se ao elemento amoroso
masculino, como foram as cartas portuguesas.
Assim, optou-se por analisar conjuntamente neste trabalho o filme de
Maria de Medeiros, em extensão às Novas Cartas Portuguesas e crítica às
primeiras Cartas Portuguesas.Queremos falar do aparecimento do discurso
feminino, aparecimento do discurso feminino sobre o amor e do discurso
feminino sobre a vida, sobre a vida do cotidiano português.
A mulher que fala por ela, não mais as vozes que se ouviam desde as
cantigas medievais, voz do homem que falava pela mulher, e que demonstrava
uma dupla imagem dela, que ora era boa e meiga como a Virgem Maria e ora
surgia como a Eva sedutora, formadora de um alicerce cristão que levaria a
mulher a viver omissa e escondida durante séculos.
10
CAPÍTULO I
A MULHER MARIANA ALCOFORADO
Mariana Alcoforado foi uma das religiosas da Ordem de Santa Clara, do
Convento da Conceição de Beja, local onde atualmente funciona o Museu
Regional da cidade. Natural de Beja, nasceu a 22 de abril de 1640, entrou na
clausura com 11 anos, vindo a professar aos 16. Rosa Montero, em Histórias
de Mulheres, afirma que o convento era o único local onde as mulheres
poderiam ter uma carreira. E Porteira, Escrivã e Vigária, foram alguns dos
cargos que Mariana exerceu durante a sua longa vida conventual. Faleceu em
28 de julho de 1723.
A 2 de janeiro de 1650, Mariana Mendes da Costa Alcoforado deu
entrada no Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, em Beja. Tinha 11
anos incompletos e não precisou andar muito para lá chegar. O palácio do seu
pai, na Rua do Touro, ficava quase defronte ao convento onde iria passar o
resto da sua vida extraordinária, no decorrer da qual iria assinar, com
lágrimas de sangue, um dos mais belos testemunhos literários portugueses.
Mariana viveu à mesma época da Carta de Guia de Casados, de Dom
Francisco Manuel de Melo, que são cartas de regras do bom casamento, e que
11
sobre os casados se debruça, quase sempre, sobre o comportamento desses
casais tendo presente à imagem pública logo, a fama do homem, da
mulher e, conseqüentemente, de toda a casa. As reservas em relação às
saídas e visitas das mulheres, ao modo como estas se relacionavam com
criados e criadas, às suas atitudes em público, nomeadamente na igreja ou
diante de outras pessoas exteriores a casa, às amizades com clérigos e com
mulheres beatas, às modas nos vestidos e adornos, por um lado, e os
conselhos relativos aos modos como o marido devia comportar-se com a
mulher, com os filhos, com os criados, com os amigos e, até, nas idas à
corte.
1
Dom Francisco era um homem grave, apaixonado, fogoso,
comprometido com as lutas do seu tempo, porém pouco complacente com as
veleidades feministas.
Ao contrário de Mariana, que retratou o universo dos anseios
femininos, a partir de sua experiência amorosa com o Marquês de Chamilly.
E foi no ano de 1663, época que chega o exército francês para socorrer
Portugal de uma invasão espanhola e é onde surge, em 1666, Noël Bouton,
que tinha os títulos de Saint Léger e Marquês de Chamilly, que no comando da
cavalaria, é deslocado para Beja.
Mariana, do alto da janela do Mosteiro, avistava a entrada da cidade
(Mértola) e estando Chamilly no comando das tropas francesas encanta os
olhos da freira.
Toda a gente se apercebeu da completa mudança do meu
caráter, dos meus modos, do meu ser. Minha mãe falou-me nisto,
primeiro com azedume, depois com certa brandura. Nem sei que lhe
respondi; parece-me que lhe confessei tudo. Até as freiras mais
austeras têm dó do estado em que me encontro, que lhes merece
alguma simpatia, e até cuidado. Todos se comovem com o meu amor,
só tu ficas profundamente indiferente, escrevendo-me apenas frias
1
In: EDWARDS, Jorge. Da casa ao palácio: A Carta de Guia de Casados de D. Francisco
Manuel de Melo em Espanha no século XV III.
12
cartas, cheias de repetições, metade do papel em branco, dando
grosseiramente a entender que estavas morto por acabá-las.
Dona Brites insistiu, nestes últimos dias, para que saísse do meu
quarto; julgando distrair-me, levou-me a passear até ao balcão de onde
se avista Mértola. Segui-a, mas fui logo ferida por tão atroz lembrança
que passei o resto do dia lavada em lágrimas. [...] Muitas vezes dali te
vi passar com um ar que me deslumbrava; estava naquele balcão no dia
fatal em que senti os primeiros sinais da minha desgraçada paixão.
(Carta Segunda)
2
Marcada pelo amor-paixão e pela dor da ausência do amado, o sujeito
da enunciação (Mariana) lança o grito do seu desespero, recorda os momentos
vividos, informa sobre o estado psicológico e físico, anuncia a sua ruína após
a separação, interroga o vazio da sua vida, reflete sobre a relação passada,
toma consciência da ambivalência da sua escrita: a saudade e o
arrependimento, a dupla clausura, a da cela e a do preconceito: Mariana
começa aí a conjugar a escrita em papel com o sofrimento do abandono em
vida.
1.1 As Cartas Portuguesas
Em 1810, a nota publicada no jornal LEmpire, de Paris, pelo erudito
Boissonade, trouxe para a ribalta o nome, até aí desconhecido, de Mariana
Alcoforado como a autora das já muito célebres Lettres Portugaises, cinco
cartas de amor dedicadas ao cavaleiro francês Noël Bouton, Marquês de
Chamilly.
As cartas de amor são a sua paixão sublime não correspondida, que
perdura no tempo e tem despertado o interesse de todo o mundo. Desde a
edição Princeps de Claude Barbin, datada de 4 de janeiro de 1669, com o
título de Lettres Portugaises Traduites en François, até hoje, e nesse período
sucederam-se centenas de edições em diferentes idiomas, poemas, peças de
2
ALOFORADO, Sóror Mariana. Cartas Portuguesas.
13
teatro, filmes, obras de interpretação plástica e musical.
Porém é de extrema complexidade a atmosfera que envolve essa
epistolografia, que vai desde a sua real autoria (seriam as cartas do francês
Gabriel de Guilleragues ou da freira de Beja, Mariana Alcoforado)
3
, levando a
uma segunda polêmica: a do gênero (homem ou mulher teria escrito as cartas),
vemos também o problema da língua: teriam sido originalmente escritas em
português, castelhano ou francês? Há ainda o questionamento sobre a
autenticidade do texto: adaptação ou tradução do original? Amálgama de
cartas ou textos integrais? Passando pela problemática da ordenação das
mesmas: cronologicamente a segunda é a quarta e vice-versa.
As cartas ainda são analisadas pelo lado psiquiátrico
4
, onde o deleite
no sofrimento e as marcas deixadas pela paixão não são novas, mas antes
exacerbadas, sugerindo um comportamento patológico e não de amor.
Não conheci o desvario do meu amor senão quando me
esforcei de todas as maneiras para me curar dele, e receio que nem
ousasse tentá-lo se pudesse prever tanta dificuldade e tanta violência.
Creio que me teria sido menos doloroso continuar a amá-lo, apesar da
sua ingratidão, do que deixá-lo para sempre. Descobri que lhe queria
menos do que à minha paixão, e sofri penosamente em combatê-la,
depois que o seu indigno procedimento me tornou odioso todo o seu
ser. O orgulho tão próprio das mulheres não me ajudou a tomar
qualquer decisão contra si. Ai, suportei o seu desprezo, e teria
suportado o ódio e o ciúme que me provocasse a sua inclinação por
outra! Ao menos, teria qualquer paixão a combater. Mas a sua
indiferença é intolerável. Os impertinentes protestos de amizade e a
ridícula correção da sua última carta provaram-me ter recebido todas
as que lhe escrevi e que, apesar de as ter lido, não perturbaram o seu
coração. Ingrato! E a minha loucura é tanta ainda, que desespero por já
não poder iludir-me com a idéia de não chegarem aí, ou de não lhe
terem sido entregues. (Carta Quinta)
5
Mas o que importa para nós não é a discussão que se formou, e a
polêmica que se criou em torno da obra, mas antes desvalorizar toda essa
3
Hipótese defendida por Luciano Cordeiro, Rainer Maria Rilke, Pinheiro Chagas e Maria
Amália Vaz de Carvalho, entre outros. Ver o estudo de António Belard da Fonseca,
Mariana Alcoforado: A Freira de Beja e as Lettres Portugaises , 1966.
4
Ver Asdrúbal Aguiar, Masoquismo Psíquico de Soror Mariana Alcoforado, 1922.
5
ALCOFORADO, Sóror Mariana. Cartas Portuguesas.
14
atmosfera que só serve para enfraquecer a imagem feminina que queria se
estabelecer como voz no patriarcal Portugal.
Ainda assim, ressaltamos que ao lado de tantas hipóteses temos
também fatos reais, tais como: Está provado que existiu uma freira com esse
nome no convento de Beja nessa época; Nas cartas a signatária diz chamar-se
Marianne; O capitão Noël Bouton esteve ao serviço do Conde de Schomberg
em Portugal, tendo passado mais de dois anos sediado em Beja, detendo o
título de Conde de Chamilly e Marquês de Saint-Léger, atingindo o posto
máximo na hierarquia das Forças Armadas (Marechal de França) a serviço de
Luís XIV, e que nunca se deu ao trabalho de desmentir ser ele o destinatário,
embora ironicamente se tenha tornado mais conhecido por isso do que pela
sua brilhante carreira militar.
Manuel Ribeiro
6
coloca As mulheres em geral não prezam nenhuma
arte, nenhuma as prende e não têm gênio [...] somente aquelas que exigem
apenas leveza de espírito.
Mariana rompe essa barreira ao escrever a Chamilly um total de cinco
cartas, enviadas através de um militar e, possivelmente, também por
intermédio de seu irmão Baltazar. Com o rompimento e o fim da
correspondência, Mariana encerra-se na clausura do Convento, sem a ninguém
receber, por anos. Após esse afastamento, volta ao dia a dia do convento,
onde chega ao cargo de vice-abadesa. Nós porém vemos que as Cartas
Portuguesas vivem por si, marcaram uma época e se tornaram um marco no
gênero epistolar da literatura portuguesa. Destaco alguns trechos desse amor
sofrido de Mariana Alcoforado.
6
RIBEIRO, Manuel. Vida e Morte de Madre Mariana Alcoforado. p.283.
15
CARTA PRIMEIRA
[...] Eu não te posso esquecer, e não esqueço também a esperança que
me deste de vires passar algum tempo comigo. Ai!, porque não queres
passar a vida inteira ao pé de mim? Se me fosse possível sair deste
malfadado convento, não esperaria em Portugal pelo cumprimento da
tua promessa: iria eu, sem guardar nenhuma conveniência, procurar-te,
e seguir-te, e amar-te em toda a parte.[...] Adeus. Não posso separar-
me deste papel que irá ter às tuas mãos. Quem me dera a mesma sorte!
Ai, que loucura a minha! Sei bem que isso não é possível! Adeus; não
posso mais. Adeus. Ama-me sempre, e faz-me sofrer mais ainda.
CARTA SEGUNDA
[...]Nomearam-me há pouco tempo porteira deste convento. Todos os
que falam comigo crêem que estou doida, não sei que lhes respondo, e
é preciso que as freiras sejam tão insensatas como eu para me julgarem
capaz seja do que for. Nada desejo no mundo senão ver-te. Lembra-te
ao menos de mim. Bastar-me-ia que me lembrasses, mas eu nem disso
tenho a certeza. Quando te via todos os dias não cingia as minhas
esperanças à tua lembrança mas tens-me ensinado a submeter-me a
tudo quanto te apetece. [...] Ter-me-ás deixado para sempre? Estou
desesperada, a tua pobre Mariana já não pode mais: desfalece ao
terminar esta carta. Adeus, adeus, tem pena de mim!
CARTA TERCEIRA
Que há-de ser de mim? Que queres tu que eu faça? Estou tão longe de
tudo quanto imaginei! Esperava que me escrevesses de toda a parte por
onde passasses e que as tuas cartas fossem longas; que alimentasses a
minha paixão com a esperança de voltar a ver-te; que uma inteira
confiança na tua fidelidade me desse algum sossego, e ficasse, apesar
de tudo, num estado suportável, sem excessivo sofrimento. [...]Adeus.
Era melhor nunca te ter visto. Ah, sinto até ao fundo a mentira deste
pensamento e reconheço, no momento em que escrevo, que prefiro ser
desgraçada amando-te do que nunca te haver conhecido. Aceito, assim,
sem uma queixa, a minha má fortuna, pois não a quiseste tornar
melhor. Adeus: promete-me que terás saudades minhas se vier a morrer
de tristeza; e oxalá o desvario desta paixão consiga afastar-te de
tudo.
CARTA QUARTA
[...] Atormentaste-me com a tua insistência, transtornaste-me com o
teu ardor, encantaste-me com a tua delicadeza, confiei nas tuas juras,
seduziu-me a minha inclinação violenta, e o que se seguiu a tão
agradável e feliz começo não são mais que suspiros, lágrimas e uma
tristíssima morte que julgo sem remédio. [...] Toda a gente se
apercebeu da completa mudança do meu carácter, dos meus modos, do
meu ser. [...] Estou mais que convencida do meu infortúnio; a injustiça
do teu procedimento não me deixa a menor dúvida, e tudo devo recear,
já que me abandonaste. [...] Que fiz eu para ser tão desgraçada?
Porque envenenaste a minha vida? Porque não nasci noutro país?
Adeus. Perdoa-me. Já não ouso pedir-te que me queiras. Vê ao que me
reduziu o meu destino. Adeus.
16
CARTA QUINTA
Escrevo-lhe pela última vez e espero fazer-lhe sentir, na diferença de
termos e modos desta carta, que finalmente acabou por me convencer
de que já me não ama e que devo, portanto, deixar de o amar. [...] Se
me tivesse dado alguma prova de amor, depois de ter saído de
Portugal, teria feito todos os esforços para sair daqui; ter-me-ia
disfarçado para ir ter consigo. Ai, que teria sido de mim se não se
importasse comigo, depois de estar em França? Que horror! Que
loucura! Que vergonha tão grande para a minha família, a quem quero
tanto, depois que deixei de o amar! [...] Mas, por fim, livrei-me do
encantamento. Grande foi a ajuda que me deu, e de que tinha,
confesso, extrema necessidade. [...] Ao devolver-lhe as suas cartas,
guardarei, cuidadosamente, as duas últimas que me escreveu; hei-de
lê-las ainda mais do que li as primeiras, para não voltar a cair nas
minhas fraquezas. Ah, quanto me custam e como teria sido feliz se
tivesse consentido que o amasse sempre! Reconheço que me preocupo
ainda muito com as minhas queixas e a sua infidelidade, mas lembre-se
que a mim própria prometi um estado mais tranquilo, que espero
atingir, eu então tomarei uma resolução extrema, que virá a conhecer
sem grande desgosto. De si nada mais quero. Sou uma doida, passo o
tempo a dizer a mesma coisa. É preciso deixá-lo e não pensar mais em
si. Creio mesmo que não voltarei a escrever-lhe. Que obrigação tenho
eu de lhe dar conta de todos os meus sentimentos?
Estas cartas, como vemos, tornaram-se símbolo do amor enclausurado,
mostrando que o verdadeiro drama está dentro de nós e na forma como vemos
o amor, independentemente do lugar em que nos encontramos, pois não
fugimos de nós mesmos, e se torna imperioso acreditar que a escrita feminina
é uma arma poderosa que pode ser usada como uma forma de oposição à
opressão. E esse é o caminho utilizado pelas Três Marias em Novas Cartas
Portuguesas.
1.2 As Três Marias
Sobre as autoras de Novas Cartas Portuguesas, ou, como são mais
conhecidas, as três Marias, propomos uma breve apresentação:
Maria Velho da Costa é escritora portuguesa, licenciada em Filologia
Germânica, e também professora no ensino secundário. Juntou na sua obra às
teses de reivindicação feminina a um inconformismo quanto aos cânones
narrativos. Logo suas preocupações embora, inicialmente, voltadas para o
17
universo feminino, não se limitaram a ele: É possível observar em suas
personagens a experiência de ser mulher em Portugal desde finais do século
XIX. Maria Velho da Costa é uma das poucas vozes femininas, dentro do
espaço ficcional português, a retratar a questão multicultural no Portugal
pós-colonial (...).
7
Maria Teresa Horta nasceu em Lisboa e fez a sua estréia no campo da
poesia em 1960. A partir de 1971, devido ao escândalo que envolveu a
publicação de Novas Cartas Portuguesas, de que foi co-autora, e ao processo
judicial que se lhe seguiu, passa a ser vista como um expoente do feminismo
em Portugal. A sua luta pelos direitos das mulheres é inseparável de uma
carreira literária muitas vezes afetada, positiva ou negativamente, pelo seu
posicionamento ético. No entanto, e apesar da intransigência das suas
convicções, a escritora não se reconhece na imagem estereotipada da
feminista militante
8
Já Maria Isabel Barreno, formou-se em Ciências Histórico-Filosóficas
na Faculdade de Letras de Lisboa. O seu trabalho literário iniciou-se em 1961,
com a publicação de três contos. Em 1968, colaborou na obra A Condição da
Mulher Portuguesa, organizada por Urbano Tavares Rodrigues. Foi co-autora
de Novas Cartas Portuguesas (1972), tendo estado envolvida no chamado
processo das três Marias, resultante da então polêmica publicação do livro.
Foi um dos nomes do movimento feminista português e as questões da
condição da mulher na sociedade portuguesa estiveram quase sempre
presentes nas suas obras.
9
7
GALLO. Liliana M. Portugal entre Próspero e Caliban: Quando se está na diáspora
mesmo estando na própria terra. Estudos feministas e pós-coloniais. In:
www.fazendogenero7.ufsc.br/artigos, acessado em 10 de abril de 2007.
8
In: http://www.mulheres-ps20.ipp.pt/Maria_Teresa_Horta%20.htm , acessado em 01 de
maio de 2007.
9
In: http://www.universal.pt/scripts/hlp/hlp.exe/artigo?cod=2_12 , acessado em 01 de maio
de 2007.
18
1.2.1 As Novas Cartas Portuguesas
Engels (Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado,
1884) aceitou também existir num passado longínquo uma sociedade
matriarcal, não da mítica tribo das guerreiras amazonas, que tantas lendas
gerou, na qual as mulheres dispunham de uma liberdade sexual desconhecida
para os modernos.
Em Las mujeres y la narrativa
10
, Virginia Woolf propõe tanto a
reflexão sobre as mulheres quanto a ficção por elas escrita como também, a
ficção que sobre elas se escreve. A confiar nos manuais de história da
literatura, a ausência das mulheres no cânone literário é evidente e flagrante.
Assim, a partir desta constatação, quase que poderíamos acreditar num total
desinteresse das mulheres pela escrita ou pelo exercício intelectual. Woolf nos
esclarece, no entanto, que, se é verdade que as mulheres sempre quiseram
escrever, também é verdade que nunca puderam fazê-lo e, que puderam menos
ainda publicar, simplesmente por não possuírem condições materiais
favoráveis para exercer o ofício intelectual em meio às urgentes e
intermináveis demandas domésticas, como também pelo universo patriarcal
que delimitava sua área de atuação.
Por que a escolha de cartas? Deste modo vamos construindo um
azulejo: painel. Carta por carta ou palavra escrita, volátil, entregue. A nós
principalmente, depois a eles; a quem nos quiser ler mesmo com raiva.
11
Como vimos anteriormente, as cartas íntimas sempre se constituíram como
possibilidade de expressão artística para muitos autores, que não deixaram de
incluí-las no todo de sua atividade criadora. A estruturação própria do
10
WOOLF, Virginia. Las mujeres y la narrativa. In: La torre inclinada. Barcelona:
Editorial Lumen, 1977.
11
Primeira Carta II de Novas Cartas Portuguesas
19
discurso epistolar se ajusta, nesse contexto, à prática do desabafo, que
entendemos como manifestação de uma revolta dirigida a variados alvos da
conjuntura política e cultural de Portugal, no século vinte.
Mas então onde estavam essas mulheres? Essas vozes femininas, que
contrariavam a temática de que para ser feliz uma mulher deveria casar e ter
filhos? Estavam dentro do espaço privado, morriam de parto, eram
analfabetas, mas, coloca-se, não eram burras, e assim formaram a nova
geração, as novas mulheres que despertaram para essa nova consciência, que
ousaram criar, ousaram viver sozinhas, que abriram caminhos, estas
teimosíssimas mulheres que sedentas por mais, muito mais do que lhes havia
sido permitido viver, abriram caminhos para todas que, até hoje, reverenciam
o ofício da escrita e que não desistem de se apossar dela para protestar, amar,
denunciar, falar.
Segundo Walter Benjamin
12
, o movimento de atualização do passado
implica uma reconstrução de uma significação que não é idêntica à
significação do passado, embora nela seja referenciado. O movimento de
atualização é um movimento de transformação do passado e do presente.
Nesse sentido, ele é a construção, pois a luta pelo passado não é outra coisa
que a tentativa de salvar o presente. O resgate do passado é também um
resgate do futuro, pois para se compreender o que vem depois é preciso que se
compreenda o que veio antes. Mostrar como o passado encerra signos e
auspícios favoráveis à libertação, ainda que reprimidos. Deve haver uma
reapropriação do passado, não repeti-lo de maneira saudosista: isto é o que
Benjamin chama de salto tigrino em direção ao passado.
O livro, Novas Cartas Portuguesas, escrito sob o formato de cartas,
12
BENJAMIN, Walter. Uma leitura das teses Sobre o conceito de história, São Paulo,
Bom tempo, 2005.
20
teve também uma razão de ser, pois aquele que escreve, o faz para alguém, e
esse interlocutor pode ser a sociedade, o homem ou as próprias mulheres. Foi
necessário que houvesse um primeiro estágio, uma ruptura, uma quebra, para
o conhecimento, e depois a união, para a luta.
[...] e porque se diz por laracha que a mulher é a última
colônia do homem, Colônia do homem a mulher?
E são as Marias mesmo quem respondem:
Que idéia, que exagero!... [...] se a mulher nada tem, se existe
só através do homem. Que pode a literatura, irmãs, as palavras, contra
tudo isto? Havendo ainda por cima a contar sempre com que: a mulher
não tem uma cultura própria. Ela existe numa cultura onde o poder
pertence aos homens. (Segunda Carta VIII.)
Não nos tomarão mais como guerreiros tomavam castelos em
vitória, a fim de os habitantes não só com leis, espadas, mas também
com vinho: vigor deles, abastança. Mulher: abastança de homem, sua
semelhança, sua terra, seu latifúndio herdado. (Primeira Carta V).
É com essa escrita que Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno e
Maria Teresa Horta resgatam a história e os desejos proibidos da freira
portuguesa do século XVII, Mariana Alcoforado, num texto não menos
polêmico, publicado nos alvores de um novo tempo da história de Portugal no
princípio dos anos 70. Contudo é bom ressaltar que sem nostalgias e
sentimentos de resgate de um passado, mas como forma de desafio as
convenções e recato exigido às mulheres, em falas que se misturam,
escondendo a autoria, falam de tudo, do aborto à pureza, do prazer sexual à
vergonha do próprio corpo, revelam um mundo escondido, mas conhecido de
todas as mulheres, e desmistificam o fato de quando uma mulher fala por ela
própria vira pornografia e defendem que ao se colocar, fazem sim, um
registro.
21
PRIMEIRA CARTA I
Pois que toda a literatura é uma longa carta a um interlocutor
invisível, presente, possível ou futura paixão que liquidamos,
alimentamos ou procuramos. E já foi dito que não interessa tanto o
objecto, apenas pretexto, mas antes a paixão; e eu acrescento que não
interessa tanto a paixão, apenas pretexto, mas antes o seu exercício.
Não será portanto necessário perguntarmo-nos se o que nos
junta é paixão comum de exercícios diferentes, ou exercício comum de
paixões diferentes. Porque só nos perguntaremos então qual o modo do
nosso exercício, se nostalgia, se vingança. Sim, sem dúvida que
nostalgia é também uma forma de vingança, e vingança uma forma de
nostalgia; em ambos os casos procuramos o que não nos faria recuar; o
que não nos faria destruir. Mas não deixa a paixão de ser a força e o
exercício o seu sentido.
Só de nostalgias faremos uma irmandade e um convento, Soror
Mariana das cinco cartas. Só de vinganças, faremos um Outubro, um
Maio, e novo mês para cobrir o calendário. E de nós, o que faremos?
1/3/71
TERCEIRA CARTA I
Considerai, irmãs minhas, cá hoje e ensoalhada a febra por
este brando sol se repartindo e bem rendido, turista o dar e o brotar
para esta novidade literária que há-de vender-se, eu vos asseguro, ó
seis patinhas sonsas de nós três caminheiras, considerai cá hoje e abri-
vos nós para nós e eles. Considerai a cláusula proposta, a
desclausura, a exposição de meninas na roda, paridas a esconsas da
matriz de três. Moças só meio meninas bem largadas da casa de seus
pais e arrematados já seus dotes em leilão de país. Nem vai ser isto,
pois não é? Que vai ser de nós e Mariana depois desta partida, choro
de ausência, de alguma falta, falha de Mariana ou quem ou dela
querer sabê-la? Só que Beja ou Lisboa, de cal ou de calçada há
sempre uma clausura pronta a quem levanta a grimpa contra os usos:
freira não copula
mulher parida e laureada
escreve mas não pula
(e muito menos se o fizer a três)
com a Literatura,
LITERATURA, não se faz
Rodinhas
porém, ledores, haveis comprado
Mariana e nós, tendo ela
montado o cavaleiro e bem
no usado para desmontar
suas/doutras razões de conventuar.
E nós, e nós, de quem, a quem o rumo, os dizeres que nem
assinados vão, o trio de mãos que mais de três não seja e anónimo o
coro? Oh quanta problemática prevejo, manas, existiremos três numa
só causa e nem bem lhe sabemos disto a causa de nada e por isso as
mãos nos damos e lhes damos, nos damos o redondo da mão o som
agudo a escrita, roda de saias-folhas, viração de quê? Garantia
porém a quem folheia o tema é de passagem, de passionar, passar
paixão e o tom é compaixão, é compartido com paixão. 3/3/71
22
O momento de libertação é a ocasião em que os oprimidos rompem
com a seqüência ordenada ininterrupta do tempo e instauram um outro
conceito do presente, revela as possibilidades do presente até então
insuspeitadas, as Marias selecionam no passado os breves instantes, os mais
significativos e auspiciosos, e os apresentam sobre a forma de uma narrativa
que comporta o seu próprio projeto.
E às vezes um pouco como desterradas nos sentimos; se sente a
mulher quando não cumpre a figura imposta pelos tempos, não a interpreta e
assim tenha de procurar caminhos, outros [...]
13
. Elas quebram com o modelo
da fêmea que é reduzida a um objeto, objeto de desejo. Objeto porque é
desejada, mas não deseja, já que é submissa a um macho. Atuaram assim como
porta-vozes do que há de mais reacionário e degenerado, apologistas de
antivalores morais e sociais. Derrubam a visão perversa onde a mulher era
apenas um reflexo mal-acabado da figura masculina.
Meu texto de amor ou proposto de uma mulher, à maneira de
monólogo.
Não necessàriamente, meu amor, sem ti a liberdade ou a
pressa de morte no meu corpo. A morte que se bebe pela sede voraz; a
morte que se bebe como vinho doce, dourado à transparência do vidro.
A morte que se bebe pela dormência ou indiferença de tudo e já nada
importa que saibamos.
Conservemos, meu amor, raivosamente, ambiciosamente, a
vertigem. Esta vontade de te morder os pulsos e o ventre, as verilhas.
Esta ansiedade de que me beijes os ombros e me violentes devagar até
ao êxtase. Esta ternura esgarçada e leve de passar lentamente a língua
pelas tuas pernas, pelas tuas axilas, pelos teus testículos, tão frágeis e
desprotegidos, tão maravilhosamente quentes e veludo de que se
revestem os frutos.
Urgentemente.
Mergulhemos, caiamos até ao fundo bem fundo da vertigem.
Da tontura.
Utilizemos, meu amor, a loucura. Móvel, tão móvel; tão cega e
tão detida, tão sequer de tudo já erguida se retornas.
E me tomas.
Te governo eu pela cintura e nos olhos. No lume das tuas
veias: nós tão pouco de vontade; só por sagacidade, impulso imediato.
13
Primeira Carta VI, de Novas Cartas Portuguesas.
23
Minha louça e ouro e linho e viagem. Provoquemos a perca, o limite, o
começo de tudo o que nos cerca; não oiçamos o tempo. Neguemos as
pessoas: todas; uma por uma; enquanto as mulheres com os seus
compridos cabelos a aflorarem a cintura desenham a boca e os homens
têm as armas apontadas, os dedos apertados no ardor das armas, no
ardor ácido e amargo do ódio.
Esqueçamos, meu amor, esqueçamos. Mesmo que
desesperadamente nos mantenhamos lúcidos e a vertigem não seja mais
que a fictícia queda de um pesadelo sonhado em qualquer cama. Assim
caio e penso que me suicido e de manso me enovelo na queda, no
vento, no sol, na pedra mansa do ar, na vontade de voar não permitida.
Assim me envolvo no medo do peso do corpo que me arrasta e me
desguarnece do riso, ancorada a mim.
Como um afogado vou agarrada ao teu pescoço enquanto tu
nadas contra a minha morte. Não, jamais... e vejo-te naufragar sem
pena...
Debrucemo-nos, tombemos bem até ao fundo a tocarmos com
os pés o lodo, abaixo das escarpas. Que as plantas mansas da loucura
começam já a rodear-nos com os seus caules macios, suaves, graves, a
sugarem-nos o sangue e dele a febre e a raiz meu amor e nada nos
resta entre os outros.
Escolhamos o silêncio, entreguemos: os braços às agulhas que
nos rasgam as veias e adormeçamos devagar depois, sem pesadelos
mais do que nós próprios.
Lá embaixo a árvores esperam-nos.
Lentamente desço sobre elas, verdes, radiosas, enormes, a
taparem o chão penumbroso onde os nossos corpos descansarão depois,
onde os nossos corpos baterão em vez de sobre as árvores que já se
abrem, se entreabrem a fim de no deixarem passar: úmidas, férteis,
vibrantes, alimentadas de terra; de estrume, de pequenos animais que
lhes matam a fome, o desejo.
Como na realidade é meiga a pedra calcinada, a pedra ruída,
ruiva, mansa, morna, que me recebe. Eis a morte que se bebe como
vinho doce, dourado à transparência do vidro.
Um vinho velho que adormeceu há séculos, amodorrado nos
frascos postos em fila, com as suas pesadas rolhas de vidro trabalhado.
Eis, meu amor, a morte à qual tu afinal não pertences:
desço sòzinha, ambiciosamente, pela vertigem, e descanso
enfim nos degraus escondidos debaixo das árvores: enormes degraus de
pedra carcomida, escavada pelos anos, de onde a minha cabeça pende e
de onde os cabelos se espalham ainda aquecidos e vivos. Agarro com
as mãos as tuas mãos que já me desprendem para o vácuo.
Nas ancas tenho ainda a marca dos teus dedos; a marca da tua
boca, o traço molhado da tua língua, dos teus dentes.
Desço: macio deve ser o chão que as árvores conservam com a
sua seiva.
Não necessàriamente meu amor sem ti a liberdade ou a pressa
de morte no meu corpo. 25/10/71
A libertação feminina está intimamente ligada à construção de um
novo tempo e nesse novo contexto a mulher passou a se enxergar, a se assumir
e a questionar as imagens que dela fizeram, como também aquelas que
percebia dela mesma ao se olhar no espelho.
24
1.2.2 As Novas Cartas Portuguesas e a Censura
A Censura terá somente por fim impedir a
perversão da opinião pública na sua função de força
social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de
todos os factores que a desorientem contra a verdade, a
justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a
evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da
organização da sociedade.
Decreto n.
o
22 756. de 29 de Junho de 1933 (art. 3)
A história da ditadura em Portugal está intimamente ligada a um nome:
Antônio Oliveira Salazar. No dia 27 de abril de 1928, tomou posse no
Ministério das Finanças e, durante 40 anos, até 1968, foi ele quem governou o
país. Salazar somente deixou o governo por causa de um acidente sofrido em
sua casa de campo.
A ditadura portuguesa seguiu o modelo italiano e alemão, baseado na
censura, violência política, repressão, prisões e tortura. Por definição temos
Censura por uso pelo estado ou grupo de poder, no sentido de controlar e
impedir a liberdade de expressão. A censura criminaliza certas ações de
comunicação, ou até a tentativa de exercer essa comunicação. No sentido
moderno, a censura consiste em qualquer tentativa de suprimir informação,
opiniões e até formas de expressão, como certas facetas da arte.
Em Portugal a censura em si era algo mais complexo que a censura
política, pois era também uma censura de costumes. Tudo aquilo que pudesse
ir contra a moral conservadora e respeitadora das tradições era censurado. O
Estado Novo chegou, inclusive, a legislar acerca do casamento das
professoras.
A PIDE, polícia secreta, tinha informantes em todos os lugares, por
isso ninguém ousava levantar a voz para dizer mal do governo, com medo de
ir preso. A censura tinha, portanto, representantes a nível distrital.
25
Quanto à censura literária, o autor ou o editor de uma obra literária era
obrigado a comunicar aos serviços de censura o título da obra para que sob
esta informação se decidisse se dispensariam ou não a leitura prévia e, após a
apreciação se autorizavam a impressão e circulação da obra no país. Logo, e
visto que alguns títulos poderiam não ser sugestivos de propaganda contra o
regime, os autores e editores tinham uma imensa margem de manobra,
podendo editar e vender livros de conteúdo crítico ao regime. Esta situação,
tendo sido relatada a Salazar, deu poder à censura para que após a publicação
e venda dos livros pudesse através de denúncias, da própria vigilância da
Polícia Política e da própria colaboração de alguns proprietários de livrarias,
tipografias, tabacarias, quiosques ou postos de venda de livros, que temiam os
prejuízos causados por multas, apreensões de livros ou o encerramento por
tempo determinado do estabelecimento, agir na caça ao livro.
Assim, [a] ditadura sendo um período de repressão afectou não só a
vida social mas também todas as formas de arte, e bastante a área das Letras.
Apesar da censura não ser dirigida directamente aos livros, a caça ao livro
fazia-se após a impressão e os seus autores e editores eram sujeitos a castigo.
Visto que não existia uma censura prévia tal como havia nos meios de
comunicação. Enquanto o resto do Mundo evoluía e diversas tendências
artísticas surgiam, Portugal tinha as fronteiras encerradas à novidade e desta
forma a influência estrangeira na arte Portuguesa era tardia e muito pobre. E
assim, um certo sentimento de revolta e contestação surge devido a essa
lacuna que separa Portugal dos restantes países ocidentais. Torna-se óbvio,
então, a forma como a censura literária afectou as condições de produção e
difusão da literatura nacional. Toda a manifestação que fosse de combate
político teria de ser clandestina, deixando a literatura de surgir de forma
26
natural e passando a sofrer com a castração à criatividade. Para além da
polícia política o autor tinha, então, de passar pela sua própria autocensura e
encontrar mecanismos de camuflagem como analogias e metáforas para que a
sua obra pudesse passar pelos serviços de censura do regime. Não há Estado
forte onde o Poder Executivo o não é, e o enfraquecimento deste é
característica geral dos regimes políticos dominados pelo liberalismo
individualista ou socialista, pelo espírito partidário e pelos excessos e
desordens do parlamentarismo.
1 4
A luta pela libertação da mulher não deveria em nenhum momento ser
desvinculada da busca de soluções dos problemas mais gerais da sociedade.
Mas em raríssimas oportunidades as forças políticas que se propõem a travar
as lutas gerais elegeram a questão da mulher como fundamental para o
desenvolvimento do próprio processo de libertação do povo.
A publicação das cartas se dá em Portugal nesse momento, o da
ditadura e da pesada censura, mesmo sem conotação política, foram
censuradas e tiveram sua circulação cessada. É interpretada como uma obra,
cuja focalização quase exclusivamente feminina e a alusão direta e sem
subterfúgios a realidades e problemas que de regra eram escondidos e
modificados como escandalosas, valerá às autoras um processo judicial.
Cândido de Azevedo, jornalista da RTP e professor universitário, autor
de vários livros, dos quais, destacamos aqui, Mutiladas e Proibidas Para a
História da Censura Literária em Portugal nos Tempos do Estado Novo
coloca, segundo suas investigações, um trecho do parecer do órgãos da
censura homologada em 26 de maio de 1972, onde se lê a ressalva ao livro
Novas Cartas Portuguesas.
14
http://igitur-archive.library.uu.nl/student-theses/2006-0830-200928/3ª%20versão.doc.
Acessado em 17 de maio de 2007.
27
Este livro é constituído por uma série de textos em prosa e
versos ligados à história de Mariana Alcoforado, mas em que se
preconiza sempre a emancipação da mulher em todos os seus aspectos
através de histórias e reflexões. Algumas das passagens são
francamentes chocantes por imorais, constituindo uma ofensa aos
costumes e à moral vigente no País.
Concluindo: sou do parecer que se proíba a circulação no país
do livro em referência, viando-se o mesmo à Polícia Judiciária para
efeitos de instrução do processo crime.
1 5
Coloca-se ainda que assim como a proibição da obra também se deu a
apreensão e destruição de todos os exemplares da mesma encontrados em
livrarias, editoras e universidades.
É certo que a História influenciou e muito a Literatura Portuguesa,
talvez a tenha até tornado mais forte, mais rica devido a ter de lutar para
sobreviver. Mas não se pode deixar de salientar que os escritores não
passaram só pelos serviços de censura, passaram também pela sua própria
autocensura, já que aqueles parece que tinham como função exercer a
castração da imaginação e destruir a criatividade. Muito possivelmente
imensas obras ficaram por escrever, e, como se sabe, muitas outras foram
apreendidas.
Muitos escritores afirmavam que:
Escrever assim é uma verdadeira tortura. Porque o mal não
está apenas no que a censura proíbe mas também no receio do que ela
pode proibir. Cada um de nós coloca, ao escrever, um censor
imaginário sobre a mesa de trabalho e essa invisível, incorpórea
presença tira-nos toda a espontaneidade, (), obriga-nos a mascarar o
nosso pensamento, quando não a abandoná-lo, sempre com aquela
obsessão: Eles deixarão passar isto? assim a principal censura é a
que se exerce só pelo facto de existir a censura (Rodrigues, 1980).
15
AZEVEDO, Cândido. Mutiladas e Proibidas Para a História da Censura Literária em
Portugal nos Tempos do Estado Novo. p 121.
28
CAPÍTULO II
MARIA DE MEDEIROS
Uma breve apresentação se faz necessária, para futuro entendimento
das questões a serem abordadas no filme Capitães de Abril, da diretora
Maria de Medeiros.
Maria de Medeiros nasceu em Lisboa numa família de intelectuais. A
sua mãe é jornalista, o seu pai pianista, compositor, maestro e historiador da
música. Viveu toda a sua infância em Viena, Áustria.
Após a Revolução dos Cravos em 1974, seguiu os seus pais para
Lisboa. Fez toda a sua escolaridade no Liceu Francês.
Aos quinze anos, interpreta o seu primeiro papel no cinema em
Silvestre de João César Monteiro. Ainda adolescente, começou igualmente a
abordar o teatro clássico sob a direcção de Philippe Fridman.
Aos dezoito anos, instala-se em França onde começa estudos de
filosofia antes de entrar para a Escola Nacional Superior de Artes e Técnicas
do Teatro na aula de Brigitte Jaques.
Dois anos mais tarde, entra para o Conservatório Nacional Superior de
Arte Dramática de Paris onde segue as aulas de Michel Bouquet e de Jean-
Pierre Vincent.
29
Em seguida, Maria alternará peças em Paris e filmes em diversos
países. Representa Corneille, Federico Garcia Lorca, Mairet, Calderón, sob a
direcção de Brigitte Jaques, Jorge Lavelli, Jean-Marie Villégier, José Luis
Gomez, nos teatros nacionais de Chaillot, La Colline, L’Odéon.
Paralelamente, filma em França com realizadores como Chantal
Ackerman, Christine Laurent, Suzanne Schiffman, Jean-Charles Tacchella,
Serge Moati, Didier Le Pêcheur, Bernard Rapp, Christian de Challonges,
Gérard Pullicino, John Lvoff, Patrick Braoudé, Richard Berry, Jean-Pierre
Améris.
Nos Estados Unidos, Maria protagoniza grandes produções como
Henry & June, de Philip Kaufman ou Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, mas
também representa em filmes independentes.
Maria permanece igualmente muito fiel ao cinema português onde
filma com Manoel de Oliveira, Teresa Villaverde, Luis Galvão Telles, Joaquim
Leitão. Trabalha igualmente com realizadores ingleses, canadenses, italianos,
alemães, austríacos, japoneses, brasileiros...
Em França, é também intérprete de alguns filmes de televisão, sob a
direcção nomeadamente de Joyce Buñuel, Robert Enrico ou Miguel Courtois.
Para além da sua atividade como atriz, Maria de Medeiros começa por
volta dos vinte anos a realizar curtas e médias metragens, entre as quais
Fragmento II, a partir da peça de Samuel Beckett, e A morte do príncipe,
a partir da peça de Fernando Pessoa.
Em 1999, dirige a sua primeira longa-metragem, Capitães de Abril
(Selecção oficial Cannes 2000) sobre a Revolução dos Cravos, pela qual
obtém o Grande Prémio da Mostra Internacional de São Paulo no Brasil, o
prémio Globo de Ouro para o melhor filme em Portugal e vários prémios do
30
público em França.
1 6
Essas informações foram retiradas do Site oficial de Maria de
Medeiros, onde coloca ainda sua predileção pela música popular brasileira e
sua paixão pelos músicos Caetano, Chico Buarque, Milton Nascimento, pois
com eles compartilhava a língua, e sobretudo a certeza de que como ela, eles
também eram poetas, pensadores e resistentes. Foram para nós verdadeiros
orientadores, afirma.
2.1 Maria de Medeiros e os Capitães de Abril
Nesta obra de Maria de Medeiros percebe-se que outro tipo de relação
com os paradigmas do passado se construiu, e o novo modelo questiona a
Revolução de Abril, sublinhando diferenças e semelhanças com a obra das
Três Marias.
Verifica-se a ficcionalização da revolução que se estabelece no roteiro
de Maria Medeiros: a ação de recriar a história que, de algum modo, ainda
toca o presente, na medida em que a liberdade de expressão apenas havia sido
(re)conquistada há vinte e cinco anos.
No filme, percebemos como Medeiros relata a emoção de encenar os
momentos da euforia popular, quando o povo saiu às ruas para apoiar os
canhões, a exemplo da florista que distribuía cravos aos revolucionários,
como teria ocorrido historicamente (e que levou o movimento a ser conhecido
como Revolução dos Cravos). Ficcionalizando o passado, consegue criar um
eixo narrativo para aquele momento que justifique a memória do presente, já
que pouco se sabe a respeito deste fato específico ocorrido ao longo do dia 25
de Abril de 1974, em Lisboa.
16
http://www.mariademedeiros.net/blue/index_blue.html, acessado em 21 de maio de 2007.
31
Com isso, a diretora consegue recuperar o momento de festa, tal como
a história a fixou, e como a que se inscreveu na memória popular.
Capta o movimento dos capitães, relido a partir de um presente de
possibilidades de ser da realidade que se desejava construir. Prova disto é o
papel que se concede à figura feminina, reinserindo no seio da Revolução uma
passeata, ocorrida em 13 de janeiro de 1975, na qual elas assumem a frente
com suas palavras de ordem homens na cozinha, mais liberdade sexual.
Celebra-se, deste modo, um 25 de Abril não-histórico, mas alegoria de um
desejo libertário, principalmente feminino.
A revolução é percebida pela diretora como um movimento interior: se
não conseguirmos mudar interiormente, não poderemos abrir-nos para pensar
em formas mais justas e humanas. A história é feita por homens e mulheres a
cada instante, no cotidiano de suas vidas.
Assim sendo, outro ponto importante é o caminho inverso da linha de
pesquisa sempre apresentada, Maria de Medeiros percorreu com Capitães de
Abril, no caminho onde o cinema entrou na literatura, e dela se apropriou
para construir uma linguagem, que ao distanciar-se das comemorações
oficiais, reflete acerca do que na cultura e também na sociedade aconteceu, a
ânsia pela libertação de um sistema político ultrapassado, que impedia a livre
expressão.
Para Medeiros, a literatura não se bastou, e, por isso dá novo rumo ao
acontecimento revolucionário. Pois se verifica no filme uma tentativa de
quebra do ideal feminino elaborado pela literatura portuguesa anterior e
contemporânea a 1974.
Os Capitães, no filme de Medeiros, surgem como aqueles que
intensificaram o movimento de insatisfação das Forças Armadas e entenderam
32
que o tempo dos dogmas estava ultrapassado, fazendo acontecer a Revolução.
Assim, se por um lado a História provoca a literatura a construir suas
produções, a literatura provoca o cinema. Pois um filme deixa sua marca, essa
ambigüidade cinematográfica, produzida por linguagens verbais e não-verbais,
que escondem e ressaltam idéias, sentimentos e discursos. Pode-se perder a
seqüência dos fatos narrados, mas alguma coisa permanece na lembrança e
desafia o tempo. O poeta José Delmo escreve que se não vigiarmos a vida
eles escreverão a história e o futuro poderá neles acreditar (DELMO, 1987,
p. 58).
Daí a necessidade que a diretora Maria de Medeiros teve de falar e
escrever outra vez sobre o assunto, para que a história não se apague,
sobretudo, para quem viveu tão fortemente acontecimentos pré e pós-
revolucionários.
33
CAPÍTULO III
AS MULHERES E A REVOLUÇÃO
Maria de Medeiros percebe que a luta pela libertação da mulher não
deveria em nenhum momento ser desvinculada da busca de soluções dos
problemas mais gerais da sociedade. Mas em raríssimas oportunidades as
forças políticas que se propõem a travar as lutas gerais elegeram a questão da
mulher como fundamental para o desenvolvimento do próprio processo de
libertação do povo.
A história da revolução não relata ou revela heroínas ou delatoras. Não
vimos nenhuma mulher em lugar de destaque; essa negligência em relação à
mulher fica mais visível nos momentos mais significativos dessa história; as
mulheres em todo o país encontravam-se desorganizadas, e parece-nos que
aquele dia foi apenas conhecido pelo universo masculino.
Contudo, essa ausência de protagonismo feminino, não significa que as
mulheres não estivessem com e pela revolução, e assim se envolvendo neste
processo antes, durante e depois.
As mulheres foram incorporadas às organizações de esquerda, tanto no
campo como nas cidades. Mas essas organizações relutaram em absorver a
34
mulher militante de maneira mais adequada ao papel que ela já vinha
desempenhando nas diversas áreas da vida social e econômica, por
considerarem que as ações guerrilheiras só diziam respeito aos homens.
Mas por excessiva discrição as mulheres estiveram presentes, mas
quase invisíveis, desempenhando o papel que já lhes pertencia, permanecendo
no espaço privado, a casa, deixando o espaço público para os homens.
Entretanto, aquelas que se dedicaram à luta pela libertação do povo
mostraram mais uma vez que a mulher não deixou por menos: foi rebelde à
tirania e enfrentou o inimigo cara a cara.
Ao participar da luta armada, as mulheres puderam sentir as
discriminações por parte de seus próprios companheiros, tanto pela
superproteção, como pela subestimação de sua capacidade física e intelectual.
Quando caíam nas mãos do inimigo, enfrentavam a tortura e seus algozes
aproveitaram-se delas para a prática da violência sexual.
Zita Seabra, em um artigo intitulado As mulheres na clandestinidade:
a minha experiência
1 7
aborda o tema dessa mulher oculta, disfarçada, porém
atuante, e constantemente usada nesse processo revolucionário de abril de
1974. Destaca-se:
Passei à clandestinidade, em 1967, por razões idênticas às de
muitas e muitas outras pessoas. Tinha então 17 anos de idade. Vivia
no Porto e era Presidente da Associação de Estudantes do Ensino
Liceal desta cidade. Até 1974 vivi com identidade e com documentos
falsos, longe da família e dos amigos, sempre no país, sem nunca ter
saído para o estrangeiro, excepto no acto de transição da legalidade
para a clandestinidade. Reencontrar a liberdade foi bem mais fácil do
que o caminho inverso apesar do aparelho oleado do PCP que com
dezenas de anos de experiência, enquadrava os novos quadros e lhe
transmitia experiências que procuravam garantir a sobrevivência em
condições complexas particularmente para quem, como eu, trabalhava
com estudantes. O sector estudantil era o mais vulnerável de todos,
sobretudo desde os meados dos anos 60, porque, por um lado era
aquele em que se desenrolavam maiores e mais visíveis lutas, por
17
CAMÕES Revista de Letras e Culturas Lusófonas. N.º 5, abril/junho, p. 26, 1999.
35
outro era obviamente a organização em que se sucediam mais prisões
(incluindo de funcionários clandestinos).
Nas vésperas de um dia 1.° de Maio recebi uns panfletos
apelando aos trabalhadores para que se manifestassem na Baixa do
Porto em comemoração do seu dia. Fiquei encarregada de organizar
uma brigada de distribuição com dois estudantes das Escolas Técnicas
que, entretanto acabavam de ser recrutados para o PCP. A brigada
distribuiu os papéis tão bem ou tão mal que passaram à porta de uma
esquadra da polícia e foram presos. Para evitar então a minha própria
prisão, fui três meses para Paris para despistar a Polícia Política e
reentrar no país com maior segurança.
Nessa altura, os funcionários clandestinos viviam
preferencialmente nas zonas rurais e não nos centros urbanos. A minha
primeira casa clandestina foi em Cête, junto ao Gaiato, no concelho de
Penafiel.
Não durou muito tempo esta casa, uma vez que a prisão de um
funcionário que a conhecia (Francisco Canais Rocha), me obrigou a
transferir-me inicialmente para uma pensão em Valongo, pouco depois
para uma parte de casa no Porto, até, por fim, ir parar, por bem mais
tempo a uma pequena vivenda de Rio Tinto.
Esta época foi a fase mais dura da minha vida de clandestina e
de militante. Eram muito raras as mulheres que tinham trabalho de
organização no aparelho clandestino. Primeiro porque havia uma
tradicional divisão de funções em que à mulher competia defender a
casa e ao homem os contactos com os militantes e com os dirigentes.
Em segundo lugar esta divisão facilitava a forma como o aparelho
clandestino se organizava, disfarçava e defendia.
Tendo vindo posteriormente a ser promovida ao trabalho de
organização, importa, porém referir que nenhuma experiência foi tão
dura e dolorosa do que a vivida com as chamadas oficialmente
Amigas das Casas do Partido.
As Amigas tinham por missão dar à clandestinidade, uma
aparência de normalidade. Por isso estavam sempre em casa, enquanto
os companheiros saíam para o trabalho. Elas apenas podiam ir às
compras duas vezes por semana e nunca se afastavam de um pequeno
raio muito próximo da residência.
Pelo meu lado, habituada a uma vida fácil da média burguesia
portuense a adaptação foi para mim dolorosa e o isolamento foi
sentido como um peso terrível. Os únicos contactos que tinha com o
exterior eram com o camarada que vivia na casa e com o controleiro
que uma vez por mês vinha durante dois ou três dias fazer reuniões às
quais eu não tinha o direito de assistir. Uma regra de ouro da
sobrevivência clandestina é precisamente só se conhecer aquilo que é
estritamente necessário. As Amigas apenas assistiam ao ponto político
da ordem de trabalhos em que o controleiro dava conta das lutas
nacionais que sistematicamente varriam o país, dos bons ventos de
esperança que chegavam do Leste a par com os grandes feitos
econômicos e científicos do socialismo real... Elas não conheciam
sequer, o sector onde o marido trabalhava. O perigo de prisão para
estas mulheres era, porém tão grande como os dos homens que
trabalhavam em contacto com a organização e com os militantes
legais. A PIDE procurava não prender imediatamente um funcionário
clandestino localizado, mas procurava vigiá-lo e segui-lo, para tentar
atingir a sua casa e outros funcionários. Basta dizer que, por exemplo:
no período de 1957 a 1965, foram assaltadas 40 casas clandestinas,
encontradas pela PIDE e presos 122 funcionários (homens e mulheres)
do PCP.
36
O isolamento das Amigas das Casas era tal que o PCP criou um
jornal para difundir entre estas camaradas ou amigas (a diferença entre
amigas e camaradas resultava do facto de que a muitas delas não serem
reconhecidas sequer como militantes, apesar das duras funções
desempenhadas). Chamava-se A Voz das Camaradas das Casas do
Partido e foi durante esses anos tarefa minha receber os artigos e
contribuições e imprimi-lo numa pequena tipografia clandestina que
tinha em casa. A Voz das Camaradas era distribuído a estas mulheres
clandestinas e foi a certa altura suspensa a sua publicação por se
considerar que dava pistas à polícia sobre a forma de organização das
casas. O seu esquema gráfico inicial era da autoria do pintor Dias
Coelho.
Habituada a uma vida movimentada dava-me particularmente
mal com o vazio da grande tarefa que tinha: estar em casa! Por isso,
procurei sempre e muitas outras o fizeram também, encontrar outros
trabalhos compatíveis com a vida isolada entre paredes. Tive sempre,
durante esses anos, uma pequena tipografia onde imprimia,
diariamente, muitos dos panfletos e outros documentos do sector
estudantil. Fui ainda encarregada de um outro trabalho que me dava
um particular prazer: passar à maquina muitas folhas escritas à mão, a
lápis, em papel mortalha de cigarro, vindas dos presos nas cadeias de
Caxias ou de Peniche. Eram papéis escritos sem o mínimo desperdício,
num minucioso trabalho de muitas horas e passados para o exterior nas
condições mais curiosas: nas bainhas das roupas, nas solas dos
sapatos, etc. Lembro-me bem do carinho e emoção com que recebia
essas minúsculas folhas de papel e as descodificava para letra de
máquina. Traziam notícias das cadeias, informavam de novos presos,
do comportamento dos presos recentes, de questões pessoais e
políticas das pessoas que viviam nas cadeias e particularmente das
celas que mandavam aquelas notícias. Respondiam também às questões
políticas que tinham recebido do exterior.
A minha última casa clandestina onde mantive funções de
Camarada da Casa do Partido, foi na praia da Madalena, junto ao
Porto. Desta casa guardo melhores recordações porque conseguia ir a
pé, através do pinhal até ao mar de que tinha imensas saudades. O mar
ainda hoje tem para mim a dimensão da liberdade.
As tarefas eram as mesmas, mas outras diferenças para melhor,
existiam. Esta casa era o local de reunião dos funcionários
clandestinos que controlavam o sector estudantil nas três Academias
entretanto existentes: Lisboa, Coimbra e Porto.
[...] Recordo-me bem que nesse tempo o responsável por
Lisboa chegava à Madalena passando por Castelo Branco! Nesta casa,
tinha como vizinha uma vidente, com clientes vindos de todo o país, o
que por um lado era tranquilizante uma vez que ninguém estranhava
nada do que acontecesse por ali e tudo o que de anormal sucedia era
em muito ultrapassado pela estranha vida e curiosos poderes da
vizinha.
Mas, por outro lado, a estadia dos seus clientes horas a fio de
pé, na rua, à espera de vez, facilmente disfarçaria qualquer polícia que
quisesse vigiar a nossa casa.
Esta vida de verdadeira clausura terminou porém para mim um
dia quando me comunicara que vindo de encontro aos meus desejos o
partido tinha decidido enviar-me para o trabalho de organização em
Lisboa. Ia controlar os estudantes de Lisboa. Ainda recordo a conversa
que tive na altura como se fosse hoje mesmo. Dizia-me o camarada
controleiro que ia mudar de tarefas, salientando sempre que o Partido
apreciava tanto a modéstia da tarefa de uma camarada da Casa do
37
Partido e dava-lhe tanto valor como a mais arriscada missão do
Secretário-Geral do Partido. Eu, é que concordar, concordava. Mas
achar, não achava nada. Queria definitivamente agarrar o trabalho de
organização e dar algum sentido ao imenso sacrifício que fazia ao
estar isolada, longe da família e dos amigos. Não ia mais pôr em
prática os conhecimentos e a experiência que já tinha ganho, em como
se alugava uma casa sem fiador (na altura era obrigatório a sua
indicação) e sem fotografia do casamento, que alguns senhorios de
casas já mobiliadas pediam para se certificarem que não se tratava de
um senhor e uma senhora pura e simplesmente fugidos aos legítimos
esposos! [...]
Como percebemos até na luta pela liberdade, não de uma classe, mas
sim de um povo, as mulheres também estiveram enclausuradas. Zita ainda
ressalta que ao longo dos 48 anos que durou a luta clandestina, o PCP sempre
subalternizou as mulheres e as remeteu para um papel de mero apoio aos
trabalhos revolucionários dos camaradas. Houve sempre, evidentemente,
algumas exceções, de mulheres que ultrapassaram este estatuto, mas são muito
poucas. De tal forma foi assim que em 1981 quando o PCP organizou a
Exposição: 60 Anos de Luta ao Serviço do Povo e da Pátria, o projeto de
livro e de exposição que foram apresentados no Comitê Central, tinham pura e
simplesmente esquecido as mulheres! Apenas após críticas e protestos de
várias mulheres presentes (a começar por mim) é que a exposição e o livro
foram ligeiramente corrigidos... Foi, por exemplo introduzida a página que
tem a fotografia de 12 mulheres que viveram na clandestinidade, todas elas
nessa altura, membros do Comitê Central.
As conclusões são evidentes! Nada se compara em dureza, do
quotidiano das Camaradas das Casas do Partido. A solidão, o isolamento, o
ideal revolucionário alimentado não pela luta, mas por uma outra pessoa e
tudo reduzido a um imenso espírito de missão. Muitas vezes, estas mulheres
tiveram filhos na clandestinidade e deles foi preciso separar-se na idade de
entrarem para a escola. Então as crianças eram entregues para a família do pai
38
ou da mãe em Portugal que desconheciam em absoluto, ou iam para a União
Soviética para uma escola especial de portugueses, onde permaneciam juntas
longe da pátria e dos pais. Desta escola vieram em grupo após o 25 de Abril.
Separadas dos filhos e do mundo são obreiras de uma luta que as
esqueceu. Após a queda do anterior regime, algumas (poucas) transitaram
finalmente - para o trabalho de organização. Mas a maioria continuou com
funções que vinham no seguimento do que já anteriormente faziam. Muitas
vêm a assegurar as sedes do PCP legal (limpeza, abertura da porta e
funcionamento em geral). E ninguém recorda o seu esforço e abnegação. Não
figuram pura e simplesmente nas múltiplas listas de antifascistas a recordar
ou a condecorar. No 25 de Abril, apetece porém lembrar que houve pessoas,
como elas que apenas por amor a um ideal ou por amor ao homem da sua vida,
ou pelas duas coisas, dedicaram anos e anos a uma causa que consideravam
justa, sem esperar nada em troca.
1 8
3.1 As Mulheres e o Cinema
Sempre soubemos que o grande mérito da boa adaptação
cinematográfica consiste em atrair o público para a leitura do texto literário, e
isto se comprova ao vermos a preocupação das livrarias em decorar suas
vitrines com obras que deram origem a filmes. Porém o contrário também é
verdadeiro, após assistirmos uma boa produção cinematográfica queremos
correr atrás de livros que comprovem tal abordagem.
Desde os primórdios dos movimentos de liberação da mulher, as
feministas americanas vêm estudando a representação da sexualidade feminina
nas artes na literatura, na pintura, no cinema e na televisão. Na medida que
18
Idem. Ibidem. p. 30
39
lutamos por uma teoria significativa, é importante notar que a crítica
feminista, enquanto uma nova forma de interpretar textos, emergiu de
preocupações correntes de mulheres que reavaliavam a cultura na qual haviam
sido criadas e educadas. Nesse sentido, a crítica feminista diferencia-se dos
antigos movimentos críticos de modo básico, já que eles desenvolviam-se a
partir de uma reação contra posições teóricas dominantes (uma reação que
ocorreu no nível intelectual). Incomum é a combinação que o feminismo faz
entre o teórico e o ideológico.
Se assim é, torna-se extremamente importante para a mulher estudar o
outro lado da história, mesmo que para isso se utilize de meios psicanalíticos,
como ferramenta, já que ela pode desvendar os segredos de nossa socialização
dentro do patriarcado (capitalista). Se concordarmos que os filmes comerciais,
até certo ponto, tomaram a forma que tomaram para satisfazer desejos e
necessidades criados pela organização familiar do século XIX (uma
organização que produz traumas edipianos), a psicanálise torna-se então uma
ferramenta crucial para explicar as necessidades, os desejos e as posições
assumidas por macho e fêmea que se refletem nos filmes. Os signos do cinema
hollywoodiano estão carregados de uma ideologia patriarcal que sustenta
nossas estruturas sociais e que constrói a mulher de maneira específica
maneira tal que reflete as necessidades patriarcais e o inconsciente, também
patriarcal.
Se tomarmos como ponto de referência os gêneros melodramáticos,
perceberemos que apesar de ser destinado ao público feminino, por despertar
contradições interiores, sempre acabam beneficiando o universo masculino,
pois a mulher e as questões femininas só são centrais, só se desenvolvem no
melodrama familiar. Designada ao lugar de objeto, ela é depositária do desejo
40
masculino, aparecendo de modo passivo e não ativo.
Tanto na literatura quanto nos filmes que expressava toda sorte de
fantasias de submissão masculina e feminina. As situações apresentadas eram
sempre passíveis de imaginar-se: garotos ou mesmo homens seduzidos por
mulheres em posição de autoridade governantas, enfermeiras, amas-secas,
professoras, madrastas etc. (E claro que é significativo que nas fantasias
correspondentes de domínio-submissão das mulheres, as posições de
autoridade assumidas pelos homens possuam muito mais status professores,
médicos, policiais, executivos: esses homens seduzem as garotas inocentes e
as jovens esposas que cruzam seus caminhos.)
O que podemos concluir com tal discussão é que nossa cultura está
profundamente comprometida com os mitos das diferenças sexuais
demarcadas, chamadas de masculina e feminina, que por sua vez giram
em torno, em primeiro lugar, de um complexo aparato do olhar e depois de
modelos de domínio-submissão.
A transição do filme entendido como mera técnica fotorreprodutora
para o filme entendido como linguagem auto-suficiente já não deveria causar
nenhum espanto, principalmente se tivermos em conta a inegável função de
matriz da cultura desenvolvida pelo cinema de modo cada vez mais consciente
ao longo de sua existência. Ao contrário da prática televisiva, que se limita a
reproduzir sentidos previamente organizados, o filme é dotado de uma
capacidade significante que lhe permite recriar a realidade sob a forma de
uma linguagem, recorrendo a uma série de processos de reelaboração poética.
41
3.2 As Mulheres em Capitães de Abril
Os Capitães de Abril é um filme visto com freqüência pelos olhos
de uma menina, filha de um casal que vive a fratura de sua união. A mulher
quer lutar por transformações, acha que o marido militar é reacionário. Na
verdade, ele integra o movimento revolucionário. A menina descobre que seu
pai é um herói, mas isso não salva o casamento de seus pais. Aquela menina
não sou eu, aqueles não são meus pais, mas de certa forma eu posso me
identificar com ela e escolhi seu olhar inocente e puro para mostrar aqueles
dias que abalaram Portugal.
19
Maria de Medeiros conta como foi emocionante encenar a euforia
popular, quando o povo saiu às ruas para apoiar os canhões. A florista
distribui cravos aos revolucionários, como ocorreu na realidade, e o
movimento ficou conhecido como Revolução dos Cravos. Tudo começou com
uma senha, quando uma rádio veiculou, na madrugada de 24 para 25 de abril
de 1974, uma canção proibida pela ditadura Grandola Vila Morena. A partir
daí, começou a movimentação dos militares, que logo teve respaldo nos civis.
Era maravilhoso ver as pessoas recriarem a história diante da câmera; elas
ficaram tão entusiasmadas que não paravam quando eu gritava Corta!; a
euforia deixava a todos nós da equipe excitados, porque sabíamos que
estávamos captando algo muito forte e verdadeiro.
2 0
Como ocorreu na realidade, ela mostra que o movimento dos capitães
foi conseqüência de Maio de 68. Muitos deles tinham sido universitários,
muitos eram casados com universitárias. Medeiros coloca nas telas de
Portugal a cena em que as mulheres pedem o fim da tirania e dão vivas à
liberdade. O papel das mulheres é realçado na passeata de apoio, quando elas
19
www.terra.com.br/cinema/drama/capitaes.htm acessado em 21 de junho de 2007.
20
www.terra.com.br/cinema/drama/capitaes.htm acessado em 21 de junho de 2007.
42
assumem a frente com suas palavras de ordem os homens na cozinha, mais
liberdade sexual. Foi uma licença poética, diz Maria, mas ela ainda coloca
que tem tudo a ver. O espírito revolucionário é, por excelência, libertário e
transformador. Ela conta o que quis passar com seu filme A revolução é um
movimento interior; se não conseguirmos mudar interiormente, não poderemos
abrir-nos para pensar em formas mais justas e humanas.
21
No filme de Maria de Medeiros podemos perceber uma série de
mudanças, que podem ser entendidas ou não, mas que com certeza mudam a
ordem social a qual estamos acostumados. Mostram uma preocupação com o
posicionamento das mulheres e com as questões femininas que não era
evidente em filmes feitos por diretores homens.
Antónia, personagem da própria Maria, é uma mulher em busca da
verdade, e essa busca lhe tira o ponto de equilíbrio, pois na realidade ela
procura sua própria identidade, e enquanto enigma, mistério, ela fica em
segundo plano, sua participação nas cenas são limitadas, pontuais.
Em contrapartida Manuel, seu esposo, passa a figurar em primeiro
plano dentro da ficção, como se de alguma forma esse jogo de mostra/esconde
impedisse que a heroína fosse conhecida pelo espectador. Por razões
também dúbias, pois ou ela não estava realmente presente por si mesma, já
que na verdade apenas representava, ou outra coisa que pudesse ser de certo
modo simbólica. Mas a narrativa não contava com esse desconhecimento, nem
tentava chamar a atenção do espectador para ele. Poderíamos dizer, talvez,
que era um efeito inconsciente dos medos e fantasias masculinos sobre a
mulher. E isso vai ficando claro ao passar das cenas, o desconhecimento da
mulher faz com que Manuel tente descobrir essa mulher, que apesar de com
21
http://www.mariademedeiros.net/blue/index_blue.html, acessado em 24 de junho de
2007.
43
ela ser casado e ter uma filha, desconhece, tenta conhecê-la através de sua
imagem e através do que ela diz, nas breves interações que tem com ela,
percebe-se isso no começo do filme, quando ele e Antónia, numa breve
conversa, sentada em frente a uma penteadeira, defronte a um espelho, se
coloca, se reflete, não mais se esconde, e aí que ele tenta buscar essas
descobertas no que ela diz a respeito de si mesma.
Apesar de Capitães de Abril contar a história da revolução
comandada pelos capitães, homens (grifo meu) do exército nacional
português, ele não é um filme feito para o espectador masculino, ou melhor,
essa era a expectativa da diretora, naquele momento da produção do filme
(1999), criar uma empatia com o público feminino, ansioso por ter voz, daí
dizer que seria um filme para mulheres. Em determinados momentos é como
se o tratamento dado à política estivesse em conexão com os problemas
pessoais e psicológicos da personagem vivida por Maria de Medeiros, como
também da própria cineasta, pois tratava os problemas das mulheres
portuguesas.
Apesar da personagem Antónia aparecer lindamente trajada em um
vestido vermelho, arrancando olhares na festa em que vai, e continuando a
encarnar o ideal baseado sobretudo na fascinação física que a mulher exerce
sobre o homem. Onde sua beleza coloca-a acima de qualquer suspeita, é por
um breve momento, logo ela se expressa, se coloca, mesmo ao ser arrastada
pela PIDE, ela não se entrega, seu olhar fixo não revela em nenhum momento
o que ela está planejando em particular.
Então, nesse nível da narrativa, Antónia começa a sua caminhada
dentro da trama e a revolução se torna o palco da ações da Mulher, não mais
da esposa e mãe.
44
Ocorre, dessa forma a desmistificação do mito da mulher bela, pura e
inocente que por tanto tempo cativou a imaginação do homem, como uma
mulher atraente, inteligente e corajosa, que, apesar de sua postura firme e
independente, anseia por amor e intimidade.
Não podemos nos esquecer da empregada, figura da primeira cena do
filme: A câmera se fixa inicialmente no relógio da estação que marca 10 h,
podemos fazer uma leitura de tempo delimitado, tempo de mudanças, tempo
do novo, a câmera aos poucos vai abaixando e se fixa no casal que se despede,
um parte para a guerra e o outro (Rosa) parte para a luta diária, mas agora
com voz. No decorrer do filme vemos isso com mais clareza, é como se ela
tivesse em um período de espera, como alguém que deu uma pausa, antes de
comprometer-se com a ação, mas que depois de assumir sua nova posição se
envolve e cria uma forma de comunicação genuína, mudando radicalmente a
ordem social, em contrapartida ao que ela chama de falsas revoluções que
eram impostas contra a vontade do povo.
Os olhos que nos contam esta história são os da menina, que nada fala,
o silêncio é, entretanto, a principal forma pela qual as mulheres podem
resistir à opressão da linguagem, assim ela apenas observa. Amália e a mãe
estão, de certo modo, juntas nisso. Não é tanto um conflito entre elas, mas um
conflito entre as mulheres e a cultura patriarcal na qual estão inseridas.
Um fato interessante é que vemos muitas vezes mãe e filha no espaço
restrito da casa. Há uma espécie de efeito de prisão, o espaço da casa assume
a segurança, a intimidade, a calidez e a proteção; pertence às mulheres e à sua
maneira de ser; elas têm controle sobre esse espaço, é como se enquanto
dentro do espaço privado, Antónia não conseguisse se colocar. A rádio
anuncia o momento da revolução, conclama o povo às ruas, era a peça que
45
faltava para montar esse quebra-cabeça.
Foi a senha para o seu despertar, as três mulheres juntas (mãe, filha e
empregada) saem para o espaço público, ganham as ruas inicialmente juntas,
mas logo se separam para que cada uma tivesse uma presença própria, sem
dependências, sem muletas, sós, únicas.
O discurso do mundo público masculino é exposto para elas como uma
articulação imperfeita e com uma dose de hesitação, sem sentido à luz dos
valores que as mulheres encarnam. Quanto mais elas caminham pelas ruas de
Lisboa, resistindo a esse discurso, mais desconcertado ele fica e mais
incoerente se torna essa fala masculina. O poder do discurso da mulher sobre
o discurso masculino é evidenciado a todo instante. É como se elas saíssem do
território do imaginário, recusando a ordem masculina. Assumem um discurso
político, não mais dentro do território do simbólico, agora tudo é real. O que
fica claro é que existe um espaço de comunicação entre mulheres de todas as
origens sociais, pois elas vão às ruas gritar: Homens na cozinha.
A cena da empregada com o namorado ao serem pegos dentro do
canhão se amando, é abasolutamente inovadora, pois ela não se enverganha,
ao contrário, ela grita: Viva a liberdade!, mesmo rodeada de homens, e por
eles é ovacionada.
Outro fato que chama a atenção tem relação com a cena acontecer
dentro de um canhão de guerra, território exclusivamente masculino, o oficial
abrindo a escotilha e se deparando com a cena, desce sem ação, passando a
atitude para outro oficial, que apesar de parecer mais forte, incisivo, também
não consegue ofuscar a personagem de Rosa, que sai para a rua, outro espaço
masculino, e se faz notar, por um discurso marcante e vitorioso. Todos que
assistem a cena, soldados da revolução, começam a cantarolar a marcha
46
nupcial. A música entra aqui com caráter bastante significativo, gerando um
inter-relacionamento, uma vez que é possível mudar substancialmente a
imagem, ela que está por um segundo sozinha, diante daquela multidão, agarra
a mão do namorado e corre gritando: Viva a liberdade!
O mesmo se vê com Antónia, na cena onde os presos políticos são
libertados. Um repórter pergunta ao seu namorado qual a impressão que ele
tem do momento Histórico, ele engasga e quem responde é ela. O discurso
masculino fica esvaziado, o discurso recorrente é o da mulher, e Maria de
Medeiros na condição de diretora, apostou nas palavras de ordem das
mulheres portuguesas, estas já tão mitigadas após décadas de repressão.
Capitães de Abril narra uma história de amor, de uma guerra que
uniu e desuniu um homem e uma mulher.
O processo revolucionário colocado no filme não tem como objetivo
desafiar a descrição da realidade; mas discutir a opressão da mulher dentro do
texto do filme não é o objetivo da diretora: a linguagem do cinema/descrição
da realidade é por ela também questionada, de forma que percebemos uma
ruptura entre a ideologia e o texto.
É como se Maria de Medeiros se confrontasse dentro do filme com as
representações aceitas da realidade a fim de denunciar sua falsidade. Como a
própria coloca: Quis mostrar que a Revolução dos Cravos, aparentemente tão
masculina, teve motores femininos muito fortes. Além de optar por meios
mais civilizados de se impor, sem precisar recorrer à força, esse grupo de
jovens tinham namoradas universitárias. E foram elas que os colocaram a par
dos movimentos de resistência ao redor do mundo. Elas os inspiraram a
agir.
2 2
Medeiros se utiliza da câmera, luz, som, edição, encenação, tendo
22
http://www.terra.com.br/cinema/ acessado em 5 de julho de 2007.
47
sempre como meta o abandono do aparato cinematográfico, usando-o de modo
novo a fim de desafiar as expectativas e os pressupostos da platéia em relação
ao fato narrado.
Em uma entrevista a que assisti Maria de Medeiros ao ser perguntada
do que faz o seu Capitães de Abril destoar das demais produções sobre
revoluções, se seria a abordagem informal, quase anti-histórica, ela responde
sem pensar: Claro. Isso eu extraí dos textos do Capitão Maia, o líder, em que
ele relata a sua experiência na Revolução. Os textos são apaixonantes,
principalmente por retratarem a precaridade com que a revolução foi feita.
Isso deu muito humor ao filme e garantiu uma reconstrução fiel ao seu
espírito, sem aquele ar pomposo que as produções do gênero costumam ter.
Nunca tive a intenção de fazer algo épico ou histórico. Até porque as pessoas
que fazem a história nem sempre têm consciência disso. Acredito que foi por
isso que o filme foi criticado em Portugal. Muitos portugueses ficaram
chocados porque queriam o tom histórico e solene. Mas eu não podia fazer
isso. Foi justamente esse caráter incomum que me motivou a dirigir o filme.
Não houve muitas revoluções assim. Ela foi muito particular, não se parece
com nada.
O espectador de modo geral pode estar resistindo a ser presenteado
com uma imagem não-convencional, que viola suas expectativas. O aparato
cinematográfico neste filme não utiliza técnicas para quebrar a ilusão de que
não estamos vendo um filme mas a realidade. Os duas coisas são mescladas,
de maneira a criar certa tensão entre o pensamento histórico, a subjetividade e
a representação.
As narrações interrompidas fazem-nos tomar consciência de que as
imagens são reproduções da realidade, não a realidade em si. Essa construção
48
cinematográfica representa as dissonâncias e contradições dos discursos
históricos, o que nos leva a viver e sentir a euforia do momento como algo
que transcende o ato revolucionário em si, através da ligação entre imagens de
arquivo produz um discurso de continuidade que resulta não no passadomas
no efeito desse passado.
Vemos também Maria de Medeiros se utilizando de voz sobreposta
(mas não necessariamente fazendo comentários), é como se uma marca própria
estivesse sendo colada, é como se ela pretendesse provocar um efeito de
choque ou até mesmo provocar determinada interpretação dos acontecimentos
políticos, segundo sua ótica, não mais de forma histórica.
O mesmo perceberemos se voltarmos nossa atenção para a relação
mãe/filha, que surge no sentido de enfatizar os aspectos temáticos inovadores
desse filme. Essa carência é parte de uma omissão generalizada por parte das
feministas uma vez que o patriarcado também deixou a mãe de fora, histórica
e culturalmente.
Não podemos esquecer que o patriarcado foi construído de acordo com
o inconsciente masculino, e as mulheres cresceram numa sociedade que
reprime a mãe. Os sentimentos ambivalentes das crianças em relação à mãe
resultam numa divisão da mãe como objeto bom e objeto mau. A mulher/
mãe por causa de sua função reprodutora está vinculada a forças naturais e
sobrenaturais não-humanas. A lembrança de ter sido protegido maternalmente
então é tão ameaçadora que tem de ser reprimida. A mãe enquanto ela mesma
é, no patriarcado, relegada ao silêncio, à ausência e à marginalidade. Então, o
que o patriarcado enfocou foi o status da mulher como castrada, como carente
de um status que confere ao macho o lugar de possuidor, aquele que é usado
para dominar a mulher.
49
No final do filme a criança ao ver os acontecimentos, com voz em off,
está especificamente concentrada em associações de palavras que evocam os
sentimentos afetuosos e aconchegantes entre mãe e filha, quando todo o
sentido de separação desaparece e a mãe parece estar totalmente satisfeita, o
pai não está presente, mas a voz que narra o questiona. Coloca os
casamentos da mãe, sua vida, seu futuro, se impõe, como alguém que
presenciou tudo, que fez parte da História, não mais espectadora, mas sim
agente participante, seus olhos viram e hoje contam aquilo que eles viram,
não vive mais a experiência do discurso masculino, ela enquanto mulher se
coloca por si só é possuidora de seu próprio discurso.
Olívia Barradas
2 3
, professora de cinema da UFRJ, coloca sobre o
assunto:
adaptar não é tarefa para iniciantes. A transposição da escrita
a imagens em movimento, exige do cineasta experiência, olhar arguto,
sutis percepções para detectar o que deve ou não ser mantido da trama
romanesca, a fim de garantir a qualidade de seu produto. Precisa ele
ter em mente que a literatura, por sua polissemia constitutiva, às vezes
não se pode ser submetido a técnicas da sétima arte. Aliás, segundo
Walter Bernstein, citado no livro de David Howard: Os bons livros
nem sempre dão bons filmes. Em geral, é um erro tentar conservar as
qualidades da obra. Igualmente, em sentido contrário, maus livros
podem gerar bons filmes. Ilustrando a afirmação, conta-se que, certa
vez, Orson Welles teria dito ser capaz de transformar qualquer escrita
medíocre em película de sucesso. Assim, retirou de uma estante um
livro ao acaso e dele surgiu A Dama de Shangai, estrelado por Rita
Hayworth.
Ao elaborar seu roteiro, o cineasta depara-se sempre com
opções, principalmente quando se trata de longas narrativas com vários
núcleos temáticos, interligados em torno da trama central. Ele se vê,
então, diante de escolhas. Difícil lhe é estabelecer cortes e
condensações, mantendo a equivalência com a história primeira,
embora o dado criativo se coloque na reelaboração. Todavia, a sua
liberdade em recriar não raro suscita críticas por parte de alguns
aficionados da literatura que, não compreendendo as dificuldades dos
procedimentos da adaptação e a genialidade de seu autor, exigem uma
cópia fidedigna da fábula matriz. Eles desconhecem que a simples
reprodução da obra literária não avaliza a qualidade de uma película.
O que é importante é intuir o sentido que o escritor imprimiu ao seu
23
Conferência proferida na Academia Brasileira de Letras no ciclo “A Literatura no
Cinema em junho de 2005.
50
texto, ou seja, o espírito, a essência norteadora da construção estética.
Indiscutivelmente, adaptar exige muito mais domínio das
técnicas cinematográficas do que produzir um roteiro novo sem as
marcas de uma história, de uma intriga (plot) já existente.
Outro elemento importante a observar-se é que o leitor, diante
de certas passagens obscuras portas fechadas vê-se obrigado a
convocar a sua imaginação a fim de melhor clarificar o entendimento
do texto. Pelo fato de o cinema trabalhar com a concretude da imagem
visual e sonora, o processo de adaptação, quando de fato é recriador,
possibilita vislumbrar-se atrás daquelas portas fechadas.
É o que percebemos na adaptação de Maria de Medeiros; ela não
reconstruiu nada, fez novamente, e para isso se utilizou de suas percepções,
lembranças, marcas, pois ninguém passa por uma Revolução, mesmo que
somente como observador, e fica da mesma forma de antes, ela deixa em nós
seu registro.
A cineasta vai além da História, a lê nas entrelinhas, percebe o que se
esconde e se desvela atrás das portas cerradas da literatura apresentada e que,
na maioria das vezes, é escrita por aqueles que de alguma forma tentam
imprimir à obra sua marca pessoal.
Embora a revolução tenha posto a velha ordem de lado, somos
informados de que a cultura que vive nas profundezas do subconsciente pode
opor forte resistência às mudanças sociais.
Ao longo do filme, a ênfase está sempre nas relações entre os sexos
que ficam em primeiro plano, mas como a própria Antónia observara o
contexto político e social para essas relações e as tensões envolvidas são
sempre enfatizados.
Este filme está focalizado na representação feminina dentro de
culturas capitalistas. Mas à medida que comecei a pensar a respeito do futuro
do cinema feminista independente e sobre a influência que têm os contextos
da produção, da exibição e da distribuição de filmes na América, assim como
na realização de filmes independentes, me pareceu importante observar, o que
51
as mulheres diretoras são capazes de fazer numa esfera não-capitalista. A
diferença está muito mais na atitude da cultura em geral diante das posturas e
comportamentos patriarcais que permaneceram na era pós-revolucionária.
A voz de uma mulher, a voz de Maria de Medeiros, nos informa que o
filme é tanto sobre pessoas reais quanto sobre pessoas fictícias, e nós então
vemos um novo olhar que nos conta que as pessoas que estamos vendo são
então personagens reais.
52
CONCLUSÃO
A presente Dissertação procurou a partir de um objetivo mais amplo:
tratar do aparecimento do discurso feminino sobre o amor, sobre a vida e
sobre o cotidiano português, destacar produções da literatura e do cinema, em
que de fato se evidencia marcas estéticas e semânticas de um discurso
feminino que fala por si, sem o intermédio de uma voz masculina que o
autorize ou censure. Para tanto, três obras principais foram analisadas: Cartas
Portuguesas, de 1669; Novas Cartas Portuguesas, de 1972 e a produção
cinematográfica Capitães de Abril, de 1999.
O tratamento analítico de tais obras, além de obedecer ao objetivo
principal anteriormente citado, seguiu a lógica de escapar aos estereótipos
determinados pela tradição ocidental quando se trata de falar da mulher, ou
seja, buscou abandonar os rótulos da imagem feminina perpetuada pela leitura
bíblica: ora boa e meiga como a Virgem Maria, ora Eva sedutora.
A primeira imagem feminina que destacamos, neste sentido
transgressor de rótulos, é aquela de Sóror Mariana Alcoforado, que por trás de
uma escrita motivada pela falta do amante, que a abandona, revela uma escrita
de autoria feminina em que mostra seus anseios e desejos e a não
53
conformidade com o seu destino social, contra o qual esbraveja.
Mariana começa aí a conjugar escrita e sentimentos, a falar por si,
para reconhecer-se e ser reconhecida, estabelecer um diálogo com um
interlocutor, este sim passivo no processo de ouvi-la falar de si, sem mais a
poder silenciar. O discurso epistolar se une à prática do desabafo, que se
realiza como manifestação de uma revolta dirigida a variados setores da
política e da cultura portuguesas.
Já em Novas Cartas Portuguesas, a opção pela escrita epistolar se dá
talvez pela mesma razão de desabafo, mas agora efetivamente disposta a
desafiar a ordem social, sem as desculpas ou o subterfúgio do desespero
amoroso. Não se trata de expor um sofrimento, cujas causas não possam ser
alteradas, mas de usar a escrita como arma pontiaguda de ataque, como
instrumento para um protesto, em que a principal motivação é o desejo de
mudança dos padrões patriarcais. Há uma consciência política e social, que
necessita agredir para se fazer ouvir, uma agressão verbal, em que a
munição é a palavra escrita, na qual se lê a condição da mulher desejante,
consciente de si mesma.
Finalmente no filme de Maria de Medeiros, observamos através das
imagens, que falam por si mesmas, a progressiva inserção da mulher no
domínio do público. As participações femininas são decisivas e sequer
necessitam de manifestações verbais. Basta lembrarmos de cenas
emocionantes como a expressão resoluta da doméstica Ana ao sair de dentro
de um tanque de guerra com o seu amor (flagrante mudança de postura, de
submissa, que era no início da película, à decidida mulher de um combatente),
das ações de Antónia, que transita com desenvoltura nos espaços da
Revolução ou ainda na atitude da florista que distribui cravos aos soldados e
54
transforma o cenário da Revolução em uma grande festa do povo.
Quando a palavra entra em cena, percebe-se também a clara
participação das mulheres, no cenário público idealizado pela diretora. Ela
toma a licença poética de transformar o que foi, no que poderia ter sido e
introduz na narrativa uma entusiasmada passeata feminina. Coloca na boca
das mulheres as principais falas do filme, assim como concede a uma menina,
isenta de ideologias pré-programadas, o olhar narrativo que busca dar sentido
ao que presencia.
Com esta feliz união do verbal e do não-verbal cinematográfico,
fechamos o nosso percurso pelas narrativas que revisitaram e reformularam o
discurso feminino. Agora claramente consciente de si mesmo e capaz de se
reinventar, de se ficcionalizar.
55
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Paulo: Abril Cultural, 1983.
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62. WOOLF, Virginia. Las mujeres y la narrativa. In: La torre inclinada.
Barcelona: Editorial Lumen, 1977.
62
ÍNDICE
RESUMO v
RESUMÉN vi
INTRODUÇÃO 8
CAPÍTULO I
A Mulher Mariana Alcoforado 10
1.1 As Cartas Portuguesas 12
1.2 As Três Marias 16
1.2.1 As Novas Cartas Portuguesas 18
1.2.2 As Novas Cartas Portuguesas
e a Censura 24
CAPÍTULO II
Maria de Medeiros 28
2.1 Maria de Medeiros e Os Capitães de Abril 30
CAPÍTULO III
A Mulher e a Revolução 33
3.1 As Mulheres e o cinema 38
3.2 As Mulheres em Capitães de Abril 41
CONCLUSÃO 52
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 55
A) Bibliografia Ativa 55
B) Bibliografia Passiva 56
Livros Grátis
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Milhares de Livros para Download:
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