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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CFCH - INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Lucia Maria Filgueiras da Silva Monteiro
O CORPO COMO AGENTE DA COGNIÇÃO DE CRIANÇAS CEGAS: UMA
QUESTÃO DE EXPERIÊNCIA
Rio de Janeiro
2009
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Lucia Maria Filgueiras da Silva Monteiro
O CORPO COMO AGENTE DA COGNIÇÃO DE CRIANÇAS CEGAS: UMA
QUESTÃO DE EXPERIÊNCIA
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção de
grau de Doutor em Psicologia Cognitiva, Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, área de concentração Ciências
Humanas, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Orientadora: Prof
a
. Dr
a
. Virgínia Kastrup
Rio de Janeiro
2009
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Lucia Maria Filgueiras da Silva Monteiro
O CORPO COMO AGENTE DA COGNIÇÃO DE CRIANÇAS CEGAS: UMA
QUESTÃO DE EXPERIÊNCIA
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção de Doutor em Psicologia
Cognitiva, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, área de concentração
Ciências Humanas, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
Aprovado em: 19 de março de 2009
Banca Examinadora:
_______________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Virgínia Kastrup – Orientadora (UFRJ)
_______________________________________________________________
Profº. Dr. Carmelino Souza Vieira (IBC)
_______________________________________________________________
Profª. Drª. Elcie Masini (USP/Mackenzie)
_______________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Jane Correa (UFRJ)
_______________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Márcia Moraes (UFF)
Rio de Janeiro
2009
Dedico este trabalho aos meus filhos, Luisa e Luciano e aos alunos do
Instituto Benjamin Constant, que sempre me instigaram para as
questões da Educação.
Agradecimentos
Ao criador.
Aos meus pais (in memorian) por tudo que fizeram, permitindo que eu chegasse até
aqui.
A todos que direta ou indiretamente contribuíram para a realização deste trabalho e em
especial, à minha orientadora Virgínia Kastrup, pelo seu conhecimento que fez com que eu
mudasse bastante minha forma de pensar, o que tem se refletido na minha vida cotidiana; e
ainda pela dedicação, compreensão e particularmente paciência que teve comigo.
À Professora Elcie Masini, pela disponibilidade, gentileza, carinho e prontidão com
que sempre atendeu aos meus apelos.
À banca de qualificação, pela ajuda e sugestões. (Professoras Elcie Masini, Márcia
Moraes e Virgínia Kastrup).
Aos Professores Marcos Jardim e Jane Correa, primeiras pessoas que conheci no
Instituto de Psicologia e que foram muito importantes durante o meu percurso como aluna do
IP.
Aos professores do curso de doutorado pelo conhecimento e dedicação em suas aulas.
Às colegas do Instituto Benjamin Constant que colaboraram na pesquisa.
Aos colegas do curso de doutorado pelo acolhimento.
Aos “super-secretários”, Ana e Gean, sempre delicados e competentes.
Aos bibliotecários do CFCH, pessoas que gostam do que fazem.
Ao meu colega de trabalho Cláudio Vilardo pelo apoio.
Às minhas chefes e diretoras, Regina Lázaro, Ana Lúcia e Érica Deslandes, pessoas
que facilitaram o meu trabalho e valorizaram o meu percurso enquanto pesquisadora.
À minha família e aos amigos, que muitas vezes privei de minha convivência nos
momentos de dedicação ao estudo.
Ao Álvaro Augusto meu companheiro em todos os momentos.
RESUMO
MONTEIRO, Lucia Maria Filgueiras da Silva. O corpo como agente da cognição de
crianças cegas: uma questão de experiência. Rio de Janeiro, 2009. Tese (Doutorado em
Psicologia) Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
Este trabalho tem como objetivo discutir a importância do corpo na aprendizagem e no
funcionamento cognitivo de deficientes visuais. Toma como principais referências teóricas a
noção de uma cognição incorporada, de Francisco Varela, de corpo no mundo, de Maurice
Merleau–Ponty, de experiência, tal como definida por John Dewey e das contribuições
decisivas acerca do corpo de Jean Le Bouch. Reflete sobre a cognição da pessoa cega,
entendendo-a como resultado da ação do corpo e da experiência vivida, caracterizando uma
forma peculiar de conhecer o mundo baseada em referenciais perceptivos distintos das
pessoas com visão. A partir daí, analisa este aspecto no ensino em ambiente escolar voltado
para o grupo deficiente visual. Através de uma pesquisa de campo, entrevista professoras
cegas e videntes que trabalham com crianças deficientes visuais, procurando investigar se
consideram relevante o papel do corpo em ação na aprendizagem desses alunos. Verifica que
para ambos os grupos de professoras ainda predominam as propostas educacionais baseadas
no modelo da transmissão da informação. Concluímos que é necessária a invenção e o
desenvolvimento de novas práticas educativas, onde o corpo ocupe lugar de destaque.
Palavras chave: deficiência visual, cognição incorporada, corpo e aprendizagem.
ABSTRACT
MONTEIRO, Lucia Maria Filgueiras da Silva. O corpo como agente da cognição de
crianças cegas: uma questão de experiência. Rio de Janeiro, 2009. Tese (Doutorado em
Psicologia) Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
This paper aims to discuss the importance of the body in learning and cognitive
functioning of visually impaired. It takes as the main theoretical references the notion of an
embedded cognition of Francisco Varela, the body, of Maurice Merleau-Ponty, experience as
defined by John Dewey and contributions decisive about the body of Jean Le Bouche. It
reflects on the cognition of the blind person, it understood as a result of the action of the body
and experience, featuring a peculiar way of knowing the world based on different benchmarks
perceptive of people with vision. Since then, it examines this aspect in teaching in the school
environment toward the visually impaired group. Through a field research, it interviews blind
teachers and seers who work with visually impaired children, seeking to investigate whether
relevant consider the role of the body into action on learning of these students. Notes that for
both groups of teachers still dominate the educational proposals based on the model of
transmission of information. That is required the invention and development of new
educational practices, which the body occupies a prominent place.
Keywords: visual disabilities, cognition incorporated, body and learning.
SUMÁRIO
I – INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10
CAPÍTULO I – Tateando e procurando uma trilha... ....................................................... 30
I.1-Primeiras considerações ...................................................................................... 30
I.2-Ver: uma experiência corporal. De onde partimos e que caminho seguir? ... 35
I.3-Ressonâncias entre Merleau-Ponty e John Dewey ........................................... 48
1.3.1- John Dewey e o seu conceito de experiência ..................................... 50
I.3.2-Interação, experiência e a atividade escolar ....................................... 55
I.4-Corpo e experiência encarnada perspectivas contemporâneas:
O diálogo entre Varela, Merlau Ponty e Dewey ..................................................... 59
CAPÍTULO II Rastreando pelos caminhos em busca de uma aproximação entre a
psicologia cognitiva e a deficiência visual ........................................................................... 72
II.1-Algumas considerações ...................................................................................... 72
II.1.1- A Compensação .................................................................................. 74
II.1.2-Temos que aprender a ver? ................................................................ 83
II.2-Pesquisas cognitivas com sujeitos deficientes visuais ..................................... 90
II.3-Desenvolvimento Cognitivo e deficiência visual .............................................. 98
II.4-A formação de conceitos, base para a construção do conhecimento ........... 103
II.5-Um comportamento que intervém no processo de conhecimento: O
Verbalismo ............................................................................................................... 111
CAPÍTULO III – Tocando e aprendendo com o corpo ................................................... 122
III.1-Pesquisas sobre corpo- desenvolvimento motor- deficiência visual ........... 122
III.2-Aprender, uma experiência corporal? ......................................................... 133
III.2.1-Como atuamos? ............................................................................... 137
III.3-Contextualizando, e, ao mesmo tempo, ampliando o alvo .......................... 142
III.4-Uma prática corporal com crianças deficientes visuais
................................................................................................................................... 144
III.5- Um espaço para o corpo na aprendizagem ................................................. 151
III.6-Tornando tangível o que até o momento foi abstrato ................................. 154
CAPÍTULO-IV Como professores de crianças deficientes visuais articulam corpo e
cognição ................................................................................................................................ 156
IV.1-O Campo de pesquisa ..................................................................................... 156
IV.2-A organização da pesquisa ............................................................................. 162
IV.2.1-A opção de pesquisa ......................................................................... 162
IV.2.3-Os sujeitos ......................................................................................... 163
IV.2.4-As entrevistas ................................................................................... 164
IV.2.5-A análise ............................................................................................ 165
CONCLUSÃO ..................................................................................................................... 192
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 203
APÊNDICE – Definição de termos ..................................................................................... 215
Autorização para a pesquisa................................................................................................. 221
M775 Monteiro, Lucia Maria Filgueiras da Silva.
O corpo como agente da cognição de crianças cegas: uma
questão de experiência / Lucia Maria Filgueiras da Silva
Monteiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
220f.
Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Instituto de Psicologia / Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, 2009.
Orientador: Virgínia Kastrup.
1. Cognição. 2. Corpo. 3. Crianças deficientes visuais.
4. Aprendizagem. I. Kastrup, Virgínia. II. Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia.
CDD: 155.413
10
I - INTRODUÇÃO
O trabalho desta tese parte de inquietações e questionamentos surgidos durante minha
vida profissional quando do meu encontro com alunos deficientes visuais no Instituto
Benjamin Constant (IBC). Nasce da procura de uma melhor compreensão de meu percurso
como professora de crianças, adolescentes e adultos que apresentavam uma diferença
sensorial e que por este motivo não utilizavam os mesmos recursos para aprender que outras
crianças com as quais eu havia trabalhado anteriormente. Desde o primeiro momento, a
aproximação com um universo totalmente novo despertou em mim diversas questões.
Algumas respondidas com a prática pedagógica e com a convivência com meus alunos, e
outras que ficaram sem respostas e que me impulsionaram a buscar respondê-las através da
pesquisa no curso de doutorado. Tais questões estavam relacionadas principalmente ao
processo de aprendizagem desses alunos, os quais apresentavam com alguma freqüência
repetência e abandono escolar, fato observado tanto no local em que eu lecionava como
também mencionado por colegas de outras instituições. Surgem ainda do anseio por soluções
senão definitivas, mas que pelo menos apontem novos rumos para seguir adiante,
contribuindo com inovações e ações pedagógicas que possam no futuro facilitar o processo de
aprendizagem deste grupo em particular.
Tendo em vista o tema central da investigação – o papel do corpo como facilitador dos
processos de aprendizagem de pessoas com deficiência visual julgo pertinente iniciar este
trabalho com um pequeno relato de minha história.
Experiências corporais fazem parte da vida de todos os seres humanos, embora alguns
com mais intensidade, como é o meu caso. Desde pequena a vontade de ter meu corpo em
movimento mobilizou meus pais, levando-os a me inscreverem num curso de balé.
Interessante que tal medida não decorreu de uma decisão familiar e sim do aconselhamento de
11
uma vizinha que morava no apartamento imediatamente abaixo do meu. Escutar aquela
criança pulando o dia todo fez com que ela sugerisse aos meus pais que deveriam colocar-me
em alguma atividade física em que eu pudesse gastar toda aquela energia (desde que longe de
seus ouvidos!). A identificação imediata com as aulas de dança resultou na opção profissional
anos mais tarde. Passei a freqüentar por toda a minha infância e adolescência esta atividade,
na qual me formei como bailarina. Dancei profissionalmente até os 23 anos de idade, quando
já formada também em educação física ingressei no Instituto Benjamin Constant (IBC), como
professora desta disciplina. A partir deste momento, ao deparar-me com alunos cegos e com
baixa visão que utilizavam outros canais perceptivos em seus processos de aprendizagem,
começaram a surgir diversos questionamentos. Como fazer para que essas pessoas
entendessem os meus movimentos que antes eram percebidos pela visão de meu corpo no
espelho? Como proceder para que todos tivessem o mesmo entendimento do que eu queria
dizer? Enfim, como dar aulas que dependiam de movimentos do corpo a pessoas que não
podiam vê-lo? Acontecia neste momento o que Masini (2003) sinaliza,
O contato com o cotidiano de pessoas que exploram e conhecem o ambiente
que as cerca sem a visão, sem a audição, ou sem ambas, convida à reflexão.
Desperta naquele que dispõe da audição e da visão interrogações sobre as
formas de existência daqueles que utilizam caminhos perceptuais diferentes
dos que lhes são habituais. (p.39)
Um de meus primeiros questionamentos foi parcialmente respondido no concurso para
ingresso na instituição. Tive a sorte de ter sorteado como ponto da prova prática: “As
atividades rítmicas”, atividade que estava muito próxima de toda a minha formação; assim,
dei minha primeira aula de dança para meninas cegas na faixa etária de oito anos. O apoio
para a elaboração do plano da prova prática me foi dado por uma professora cega
1
, que
explicou como eu deveria proceder com aquelas crianças. Até então, o único contato que
tivera com pessoas cegas ocorrera com idosos da minha família. Precisava de uma orientação,
1
Hetel Rosenfeld, professora com cegueira total e que na época lecionava no Sodalício da Sacra Família,
instituição estadual para meninas cegas.
12
pois não tinha noção de como ministrar uma aula em que o corpo ocupava papel essencial
para pessoas que não podiam me ver e nem espelhar meus movimentos, prática até então vista
por mim como única forma possível de transmitir a execução de ações corporais. Por meio de
uma conversa com esta professora cega, comecei a compreender como se dava esta nova
forma de comunicação corporal. Já que a imitação não era possível, eu deveria falar e explicar
detalhadamente quais movimentos desejava. Caso houvesse alguma falha de entendimento,
deveria ir perto de cada menina pedir para que tocasse meu corpo e tentasse dessa forma
perceber meus movimentos. Se ainda assim não conseguisse sucesso, deveria eu mesma,
manipulando o corpo da aluna, levá-la a executar o movimento, que eu tentara explicar apenas
de forma verbal. Na minha primeira tentativa, percebi o quanto esta tarefa merecia cuidado.
Antes de elaborar o plano de aula, resolvi fazer um teste para verificar se eu era
mesmo capaz de tal empreitada. Ao tentar explicar um exercício para um menino cego, pedi
que ele colocasse as mãos na cintura e depois colocasse as mãos nos pés. O que eu queria era
o exercício de flexão do tronco. O menino colocou as mãos na cintura, mas, em seguida,
levantou uma das pernas e colocou as mãos em um dos pés. Ele estava certo. Não era o
exercício que eu imaginara, entretanto, a ordem havia sido perfeitamente cumprida! E este foi
meu primeiro insight: a linguagem tinha que exprimir clara e detalhadamente o exercício.
Na falta da visão, a interpretação individual possibilitava uma gama infinita de
execuções do movimento anteriormente descrito. Tratando-se de crianças, o potencial criativo
influenciava ainda mais a diversidade da execução. Assim, cheia de dúvidas e de idéias,
iniciei a elaboração do meu plano de aula. O plano iniciava-se com exercícios de
movimentação no espaço, de repetição de ritmos através de palmas e era finalizado com uma
pequena coreografia. Uma dança simples, mas que em determinado momento exigia o
movimento dos quadris, chamado de rebolado. No momento em que falei para que
rebolassem, as meninas começaram a se movimentar das formas mais diversas. Acredito que
13
não fosse a primeira vez que elas ouviam esta palavra, pois começaram a movimentar seus
corpos. As meninas faziam vários movimentos com o corpo e perguntavam: “É assim?
Movimentavam todo o corpo, faziam gestos com os braços, com a cabeça. Algumas
chegavam a colocar as mãos na cintura, mas o executavam nada que se parecesse com um
rebolado. Pareciam ter uma idéia, mas não sabiam realmente o que significava rebolar. Fui
então a cada uma delas e coloquei suas mãos em meus quadris, para que tocando meu corpo
entendessem o significado da palavra rebolar. Imediatamente elas passaram a movimentar os
quadris, e todas fizeram o mesmo movimento. Consegui desta forma finalizar a aula com a
coreografia executada. Como nos lembra Bavcar (2001, p.22), “o toque tátil continua sendo o
sentido da verdade, dado que ele não pode negar a materialidade das coisas.”.
Mais tarde, com a continuidade de minhas leituras sobre deficiência visual, percebi o
que ocorrera naquele dia. Existia uma atitude chamada pelos especialistas de verbalismo, ou
seja, a educação dessas crianças quando pautada apenas na linguagem ocasionava uma
situação na qual os deficientes visuais passavam a usar palavras ou expressões que não
correspondiam a qualquer experiência vivida, palavras que repetiam e muitas vezes
desconheciam o significado. Masini (1994, p.50) define o verbalismo como “a aplicação do
sistema verbal sem que a pessoa disponha de significados.”. Afirmei numa outra ocasião que
o verbalismo acontece quando as pessoas cegas ou videntes utilizam-se em demasia de
palavras sem o ancoramento na própria experiência ou desconhecem o seu significado,
aplicando-as apenas pela memorização de informações ouvidas anteriormente.
Falam de movimentos de animais sem nunca terem experimentado o que querem
dizer, como por exemplo, o rastejar de um réptil, o caminhar de um felino a espreita, o
ziguezaguear de uma abelha entre tantas outras expressões. Essa certamente era uma questão
que deixava muitas vezes o deficiente visual aparentemente incluído nos espaços de
comunicação, mas, na verdade, à margem do entendimento de parte do processo
14
comunicacional. Com essas questões de compreensão, como poderiam entender todo o
conteúdo de um texto, de uma fala em que encontrassem palavras cuja representação
desconheciam? Sua comunicação estaria então parcialmente comprometida? Sua cognição
estaria comprometida pela falta de uma ampla apropriação da linguagem?
Anos mais tarde, retomei a questão escrevendo um trabalho para a conclusão do curso
de Especialização em Alfabetização de Deficientes Visuais
2
intitulado A Importância das
Atividades Corporais no processo de Alfabetização de Alunos Deficientes Visuais
(MONTEIRO, 1992). Nesse trabalho tentei associar o papel do corpo com a aprendizagem do
sistema Braille, demonstrando a importância da lateralidade e das noções de espaço para a
escrita e leitura. Com esse trabalho sinalizava para algumas questões relativas à
compreensão dos textos pelas crianças cegas, que muitas vezes por desconhecerem o
significado de palavras, expressões idiomáticas ou metáforas apresentavam dificuldades na
interpretação de textos. Talvez por esse e por outros motivos passassem um período longo nas
classes de alfabetização, fato que sempre me intrigou.
No curso de mestrado, desenvolvi uma pesquisa cuja proposta era investigar os
motivos que levavam crianças e adolescentes deficientes visuais, que matriculadas em escolas
do ensino regular, procuravam ou mesmo retornavam para o IBC, mencionando inadaptação
no ensino comum. (MONTEIRO, 2003).
Percebi a necessidade de aprofundar as causas desse fato. A dissertação de mestrado
levantou apenas os motivos que estes alunos alegavam para voltarem à escola especial,
trilhando um caminho inverso ao pretendido pela legislação em vigor que prima pela escola
inclusiva. Nos resultados, apareciam em destaque queixas versando sobre a dificuldade de
entendimento de textos e de conteúdos programáticos de diversas matérias, tais como:
fórmulas químicas e matemáticas, aspectos da biologia relativos ao corpo humano, entre
2
Curso realizado pelo Instituto Benjamin Constant em parceria com a Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO).
15
outros exemplos. Esses conteúdos eram em sua maioria explicados de forma verbal, deixando
lacunas de entendimento para os alunos deficientes visuais, ocasionadas pela falta de uma
aproximação com a realidade através da experiência tátil. Seria esta uma ocorrência de
verbalismo no espaço da educação no qual a maioria é vidente
3
? Seria nossa educação
apoiada em ações nas quais a palavra sobrepuja a experiência?
Outras queixas sobressaíam, porém eram muito mais ligadas a aspectos sociais,
rejeição à condição da cegueira, falta de identificação com os colegas, desconhecimento por
parte da professora da escola regular de suas especificidades em termos de aprendizagem,
bem como dos recursos de que ela poderia lançar mão para ensinar a seus alunos deficientes
visuais. Ainda hoje percebemos pouca divulgação junto aos estabelecimentos de ensino
quanto às possibilidades que instituições especializadas oferecem no sentido de apoiar o aluno
deficiente visual, quando este estuda em escolas regulares. A transcrição de textos em braille,
o livro adaptado e os cursos que estas instituições oferecem, na maioria das vezes de forma
gratuita, ainda não são amplamente divulgados.
Talvez por ser a cegueira uma deficiência que atinge pequena parcela da população
brasileira, o conhecimento sobre as cnicas básicas de ensino utilizadas para este grupo não
sejam amplamente difundidas. O IBGE e o Conselho Brasileiro de Oftalmologia (COB)
contabilizam 1,2 milhões de pessoas cegas no território nacional numa população total de 180
milhões de pessoas (IBGE, COB; 2007
).
É evidente que essa questão numérica não justifica a
situação, sinaliza apenas para a dificuldade em aceitar as diferenças e considerá-las como
características específicas de um grupo que merece atenção como qualquer outro,
independentemente de ser um pequeno ou grande contingente.
A inadaptação ao ensino oferecido nas escolas da rede regular alegada por esses
alunos revelava que, além da rejeição à deficiência em si, algo mais acontecia, desmotivando
3
O termo vidente é utilizado neste texto para citar os indivíduos que não são deficientes visuais, que não
um termo específico, a não ser indivíduo com visão normal ou pessoa normo-visual os quais deixam uma idéia
de normalidade e anormalidade que preferimos não usar.
16
esses educandos a permanecerem em espaços escolares. Mesmo nas escolas especiais muitos
já haviam interrompido seus estudos diversas vezes. Apontando em princípio para uma
inadequação da metodologia utilizada também nestas escolas, característica dos modelos das
escolas regulares. (MONTEIRO, 2003).
As respostas à pesquisa indicavam em princípio que algo em seus processos cognitivos
e, sobretudo na aprendizagem, não estava sendo considerado. Isto certamente ocorria pelo fato
do professor desconhecer os processos adequados para ensinar a estes alunos. Na verdade este
fato não se dava somente na escola regular. Em minha experiência de 24 anos como
professora de educação física, dança e expressão corporal com deficientes visuais, muitas
vezes ouvi comentários dos professores relativos a dificuldades para passar alguns conteúdos
a seus alunos. Em alguns momentos fui solicitada pelos professores do IBC a ajudá-los
quando a explicação verbal não era o bastante para que a criança cega entendesse algum
conteúdo. Isto se deu na década de 1990, quando se percebia também na escola especial algo
semelhante ao que acontecia no ensino comum: dificuldades no processo de aprendizagem de
alunos deficientes visuais.
A partir dessas questões, realizamos juntamente com todos os professores de educação
física uma primeira pesquisa no IBC, o Projeto NEP Núcleo de Educação Psicomotora
(projeto registrado e oficialmente aplicado nas classes de Alfabetização à quarta série do
Ensino Fundamental do IBC). O objetivo deste projeto era de, por meio das aulas de educação
física, ajudar os professores que atuavam na sala de aula a explicar, através de experiência
concreta com atividades corporais, conteúdos e conceitos que as crianças demonstrassem
dificuldades de entendimento. Conceitos como círculo, fileira, coluna eram explicados na sala
de aula através de desenhos em relevo ou com apoio de barbantes, mas a queixa dos
professores era a de que no dia seguinte as crianças esqueciam o que havia sido explicado.
Parecia que elas não tinham internalizado completamente aquela vivência, feita apenas
17
através do tato de suas mãos.
Tentando resolver ou amenizar o problema, tínhamos o NEP, formulou-se, assim, no
IBC uma nova abordagem nas aulas de educação física. Descortinava-se um novo olhar sobre
o corpo e uma aplicação do que se chama Educação pelo Movimento. A leitura de Jean Le
Bouch, sobretudo de seu livro Educação Psicomotora, a psicocinética na idade escolar, foi a
base da qual partimos. A vivência corporal, ou seja, a experimentação do corpo como mais
um canal do processo cognitivo foi comprovadamente uma ferramenta capaz de beneficiar a
compreensão do espaço e dos objetos, intervindo na formação de conceitos, propiciando uma
interação entre o abstrato e o concreto, entre o falado e o tocado. Desde então percebemos que
poderíamos explorar e aprofundar a relação corpo-cognição-aprendizagem, num propósito de
facilitar o ensino de deficientes visuais.
É muito difícil expressar verbalmente o que significa fofo, duro, curvo, convexo e
outros adjetivos. Como explicar determinados verbos, tais como: flutuar, perceber, organizar,
isto é, ações que somente através da experimentação podem ser compreendidas pelos
deficientes visuais, que não conseguem observar a distância, para depois compreenderem o
conceito expresso, como fazem os alunos que enxergam. Entretanto, muitas vezes, a educação
dada a estas crianças em quase nada se diferencia da educação formal ministrada na maioria
das escolas, pois a graduação dos professores não inclui disciplinas sobre as especificidades
de cada uma das deficiências, em particular da deficiência visual. Esta não é uma ocorrência
em determinados espaços escolares e sim no sistema educacional brasileiro. Masini (1994)
aponta que a educação do cego e das pessoas com baixa visão é na maioria das vezes
fundamentada ou inspirada em modelos adotados pelos videntes, de acordo com os padrões
destes, e que esses padrões produzem um desconhecimento das especificidades do que é ser
deficiente visual. Num outro trabalho a autora a partir de uma análise bibliográfica do tema
confirma sua opinião,
18
A análise da bibliografia especializada sobre o portador de deficiência visual
mostra que seu desenvolvimento e sua aprendizagem têm sido definidos a
partir de padrões adotados para os videntes. Verifica-se, com certa surpresa,
que, nos instrumentos e propostas examinadas, o conhecer esperado na
educação do deficiente visual tem como o pressuposto o ver, e que, portanto
não leva em consideração as diferenças de percepção do deficiente visual e
do vidente. (MASINI, 1995, p.615)
Belarmino (2004) ratifica o que foi dito por Masini, apontando que percebe uma
homogeneização nas práticas pedagógicas adotadas para as pessoas deficientes visuais, as
quais se apóiam naquelas pensadas para as pessoas que enxergam, adotando como solução
para o ensino daqueles aproximações das técnicas utilizadas com os alunos videntes, tentando
uma adaptação para o ensino dos cegos. Esta autora aponta para o desprezo do tato enquanto
sentido, quando se trata do conhecimento do mundo pelos deficientes visuais. Denomina
“mundividência tátil”, o próprio complexo tátil no que tange à valorização do tato e dos
outros sentidos. Refere-se à situação da pouca valorização do tato como uma marca da
modernidade, que concebe o conhecer como sendo basicamente fundamentado no ver.
Denomina esta postura como paradigma visuocêntrico. Ou seja, uma forte supremacia da
visão em relação aos outros sentidos. Belarmino nos faz atentar para o tempo em que vivemos
e como nos relacionamos com os sentidos e menciona que,
É tempo de darmos alguma atenção a essa realidade específica, que
configura o modo como os indivíduos cegos situam-se no mundo: as
estratégias das quais lançam mão para construir sua própria visão da
realidade. É tempo de darmos voz à nossa própria experiência de como
vivenciamos o mundo enquanto habitantes desse universo tátil em que corpo,
aparelho neuro-sensório-motor, mente e ambiente constroem uma visão
particular do real. (BELARMINO, 2004, p.111)
A experiência e o uso do corpo como um todo ainda não é uma prática corrente no
âmbito das escolas, pois nelas prevalece um fazer pedagógico pautado na separação corpo-
mente. Ainda a total supremacia da mente em relação ao corpo vigora no processo educativo.
Todavia, o lugar do corpo como agente da cognição não pode ser desprezado, sobretudo para
aqueles que não se utilizam da visão. Mesmo para os que podem ver o papel do corpo no
processo cognitivo não deveria ser relegado. Sabemos, no entanto, que esta não é uma prática
19
comum.
Estas inquietações nos levaram a busca de um entendimento mais profundo dos
processos cognitivos das crianças cegas. D a escolha da psicologia e das ciências da
cognição como suporte para esta investigação. Partimos da educação e pretendemos a ela
retornar, com uma bagagem advinda de uma abordagem interdisciplinar. Neste aspecto
fazemos um estudo das pesquisas existentes sobre a cognição de crianças cegas, levantando
informações significativas à luz das teorias que propõem uma cognição incorporada.
O objetivo desta tese é estudar elementos do funcionamento cognitivo dos deficientes
visuais, investigando o papel do corpo neste processo. Nossa meta é discutir a prática
pedagógica voltada para crianças deficientes visuais e o papel de práticas corporais no
cotidiano escolar. Além de investigar se os professores vêm valorizando o corpo como um
auxílio importante na educação desses alunos.
Como objetivos específicos, investigaremos se as experiências corporais estão
presentes na relação professor-aluno para a compreensão de conteúdos em sala de aula
(palavras, frases, expressões e conceitos). Observaremos junto aos professores que lugar o
corpo ocupa na sua prática pedagógica. Verificaremos como e se as atividades corporais são
encaradas pelo professor como facilitadoras para a compreensão de conceitos. Enfim, vamos
apurar junto aos professores se eles utilizam outras metodologias que não apenas a aula
expositiva e teórica. Partiremos então para uma investigação de campo questionando os
docentes sobre o assunto foco e levantando suas idéias relativas ao uso do corpo como uma
contribuição no processo de ensino.
Justificamos este estudo por percebermos uma educação formal muito pautada em
informações verbais, na qual o espaço do corpo limita-se a uma mesa e uma cadeira, e onde o
corpo está cindido, sendo apenas observado como mente em formação. Um corpo que pouco
interage e que não é acionado no sentido de contribuir como agente da cognição. Uma
20
educação apoiada estritamente na palavra, na abstração e na oralidade, ou seja, uma educação
verbalista. Para a criança cega ou com baixa visão, essa forma de educação limita
sobremaneira sua possibilidade de aprender e de construir seu mundo, que apoiada apenas
na audição deixa de compreender integralmente muitos pontos do que é falado pela falta do
domínio dos significados das palavras.
Além do exposto, fatores inibidores de sua movimentação freqüentemente acarretam
na criança cega que o foi adequadamente estimulada uma defasagem psicomotora se
comparada à criança de mesma idade que não seja portadora de deficiência (MEC – CENESP,
1987, p. 12). Compartilham dessa idéia inúmeros autores, entre eles Sampaio (1986) e
Hatwell (2003). Pode-se supor que talvez esta defasagem advenha ao menos em parte de uma
educação baseada no mundo da visão” e que por conta deste enfoque, que desconsidera
abordagens educativas voltadas para estratégias pedagógicas que utilizem os demais canais
perceptivos, tal defasagem se aprofunde. Portanto, seria importante que a escola oferecesse a
todos os alunos cegos a oportunidade de, através de vivências corporais profícuas,
minimizarem estas defasagens. Amiralian (1997) sinaliza para possíveis defasagens,
interrogando e apontando algumas hipóteses:
Será que a educação especializada para o ensino dos cegos é tão precária e
insuficiente em nosso meio, que a maioria deles não recebe o atendimento
necessário? Será a informação aos pais das crianças cegas tão inconsistente e
inadequada que eles não sabem da existência de recursos para a educação de
seus filhos cegos? Ou será que os cegos realmente apresentam atrasos e
dificuldades insuperáveis de desenvolvimento e aprendizagem, sendo
este quadro característico da sua situação de cegueira? (AMIRALIAN,
1997, p.99, grifo nosso)
Pretendemos também que as idéias apontadas neste estudo possam, no futuro, ajudar a
criar condições de libertar alunos e professores de uma formação que ainda aprisiona o
cotidiano escolar e as práticas pedagógicas ao espaço da sala de aula, privilegiando a
abstração mental em detrimento da experiência corporal. Uma possibilidade de atuar de outra
forma que não apenas através da transmissão oral da informação, feita basicamente neste
21
restrito espaço. A nosso ver, esta seria uma forma de valorizar outras práticas, tais como:
passeios, visitas a museus, vivências corporais planejadas com objetivos pedagógicos, as
quais ainda são ações esporádicas e que não fazem parte efetivamente do cotidiano escolar.
Levar os alunos a perceberem a construção do mundo que os cerca através da interação
constante dos sentidos do seu corpo com o ambiente é uma meta a ser atingida no sentido de
dar mais potência e eficiência aos mesmos.
Estas questões merecem ser investigadas a fim de que crianças cegas não sejam
marginalizadas intelectualmente, principalmente na escola.
Hoje os projetos interdisciplinares são uma realidade, que uma possibilidade
maior de interface entre as ciências. Diferentes campos do conhecimento podem ser
aprofundados à luz de um olhar mais abrangente, observando o que se pode conjugar num
objetivo investigativo. Por isso, este trabalho transita na interface entre a psicologia e a
educação, objetivando estudar o que é de fundamental importância para a segunda, com o
apoio da primeira, ou melhor: os estudos da cognição voltados para o modo de construção do
conhecimento que valorizem a experiência corporal como uma possibilidade e um caminho.
A opção pela psicologia nasceu ainda no curso de mestrado, no qual pude observar
que a disciplina psicologia da educação não se ocupava do aprofundamento em questões
específicas da cognição. Com relação às crianças cegas, quase nada era conhecido mesmo por
colegas e orientadores do curso. Durante o doutorado, o estudo sobre o caráter aprendido da
visão e sobre a auto-produção do sistema cognitivo de cegos e videntes foi o ponto mais
questionado pelo grupo de pesquisa, um grupo que até então muito pouco sabia sobre
deficiência visual. A questão da cegueira no campo da psicologia tradicional estava associada
a uma falta, era preciso estudar tanto a cegueira como a visão, verificando-se a única
dimensão da cegueira, ou se nós, marcadamente dominados pela visão, julgávamos de forma
equivocada os processos de formação do conhecimento dos deficientes visuais, desprezando
22
suas outras possibilidades cognitivas. Citando Kastrup, “O cego é ainda hoje encarado
majoritariamente sob o ponto de vista do ficit, da falta, do defeito, o que dificulta o
entendimento de seu modo de estar no mundo.” (2004, p.16).
A procura por informações nos levou à aproximação com autores da psicologia, pois
eram estes que tratavam com mais intimidade do assunto. Os primeiros encontrados foram
Telford e Sawrey, que além de escreverem em 1977 o clássico sobre Educação Especial, O
Indivíduo Excepcional, escreveram anteriormente em 1971 Psicologia, Uma Introdução aos
Princípios Fundamentais do Comportamento, em que analisavam a percepção e dedicavam
um capítulo à visão. Com isso, partimos para a busca de um diálogo entre o conhecimento na
área da educação e os novos conhecimentos que certamente adviriam dos textos da psicologia.
Uma opção difícil, que toda a formação anterior encontrava-se na educação. Entretanto,
sabendo que as áreas possuem aproximações consideráveis, o trabalho mescla o que de
relevante encontrou em ambas, conjugando o conhecimento adquirido nas leituras, com a
prática advinda dos anos de experiência com a deficiência visual, no propósito de ajudar
professores e outros profissionais que venham a interagir com esses alunos. Desta forma
pretendemos ao longo deste estudo chegar a uma contribuição que possa sinalizar para
práticas inovadoras que venham a facilitar o processo de aprendizagem dos alunos deficientes
visuais.
Para tal, organizamos a pesquisa da seguinte forma, uma parte teórica e outra de
campo. A investigação baseou-se, primeiramente, na bibliografia levantada a respeito da
cognição de crianças cegas, nela trabalhamos principalmente com Yvette Hatwell, Elcie
Masini e Maria Lucia Amiralian, observando ainda algumas pesquisas sobre o tema. Nas
leituras sobre a abordagem corporificada da cognição, valemo-nos dos escritos de Humberto
Maturana, Francisco Varela, Maurice Merleau-Ponty, John Dewey, Virgínia Kastrup, entre
outros. Com relação à educação pelo movimento estamos basicamente apoiados nas propostas
23
de Jean Le Bouch. A parte de campo foi feita por meio de entrevistas semi-estruturadas com
professores de alunos deficientes visuais, analisadas através do método de análise de conteúdo
de Laurence Bardin.
O estudo reflete sobre as propostas de uma cognição incorporada e sobre questões
relativas à cegueira, bem como de pesquisas que investigaram o tema da cognição dos
deficientes visuais. A parte de campo tem como objetivo principal verificar como e se os
professores utilizam práticas corporais com seus alunos, bem como averiguar se percebem o
corpo como um agente facilitador da cognição de seus educandos.
Por ser uma pesquisa que trabalha com informações acerca de seres humanos o projeto
passou pela análise do comitê de ética da Escola de Enfermagem do Instituto Ana Nery da
UFRJ, sendo aprovada e autorizada a investigação.
A ordenação dos capítulos foi construída de forma a paulatinamente aproximar as
questões da visão e da cegueira, daquelas, em que, a construção do conhecimento através da
percepção corporal fosse o foco principal. Observamos a visão e a falta da mesma,
percebendo como o corpo surge em ambas as situações, como integrador e potencializador da
relação do homem com o ambiente. Os capítulos foram intitulados utilizando termos afeitos à
deficiência visual, expressando na maioria das vezes os momentos vividos durante a escrita.
Assim, o primeiro capítulo tem como título: Tateando e procurando uma trilha, é composto
por quatro seções. A primeira revela nossa postura com relação à deficiência visual, e
contextualiza a relação social e histórica que perpassa a relação entre cegos e videntes. A
segunda seção expõe os primeiros caminhos que nos aproximaram das reflexões sobre o que
significava ver e das questões relativas à cegueira. O referencial do qual partimos foi em
princípio o nosso, isso significa o do pesquisador, que no caso não apresenta deficiência
visual. Ocupamo-nos do que significa a cegueira partindo do nosso olhar de videntes, que
24
estamos imersos numa cultura eminentemente visual, a qual interfere no nosso olhar sobre as
pessoas com essa deficiência,
Para nós que dispomos da visão, a predominância desse sentido está tão
arraigada que nos tornamos desatentos ao fato de que criamos uma
linguagem visual para descrever o que nos cerca [...]. Assim no mundo dos
videntes, como não poderia deixar de ser é o referencial visual que se impõe.
Seria absurdo negar esse fato. (MASINI, 2007, p.20)
Ao longo do trabalho, esta posição foi sofrendo modulações que nos fizeram perceber
o quanto o pesquisador deve procurar caminhos que o desvincule de um olhar preconceituoso
e pré-definido por qualquer fator pessoal que venha a interferir em sua investigação.
Precisamos, por mais difícil que seja, buscar caminhos que, mesmo estando vinculados à
nossa visão crítica do tema, nos façam desconstruir ou rever valores, crenças e paradigmas.
Torna-se importante mencionar este fato por entendermos que esta análise parte da interação
vivida durante nosso contato com alunos deficientes visuais por um longo período no qual
atuamos como professora de educação física no IBC.
Na terceira seção apresentaremos a opção e escolha de John Dewey para compor uma
parceria com Merleau-Ponty e Francisco Varela. Explicaremos como este autor fala sobre
experiência ser a forma pela qual construímos nosso conhecimento de mundo, bem como pela
qual nos relacionamos com as pessoas e os objetos que dele fazem parte. O apoio em Dewey
tem um motivo que merece ser explicado. De que forma o corpo pode nos trazer
conhecimento, senão pela experiência, pelo corpo em ação, pelo corpo em relação com o
ambiente? Tendo o autor tratado do tema da experiência enquanto processo que nos
acompanha durante toda a vida e que nos remete sempre a uma aprendizagem, utilizamos
trechos de sua obra em que aparecem ressonâncias com as idéias de Merleau-Ponty e Varela.
A quarta seção traz o pensamento de Humberto Maturana e Francisco Varela sobre
cognição encarnada, revigorando, atualizando e inovando os pressupostos tanto de Maurice
25
Merleau-Ponty quanto de John Dewey sobre a construção do conhecimento. Ou seja, uma
cognição que não é apenas mental e na qual o corpo ocupa um lugar de destaque. Varela
atualiza os pressupostos desses autores quando preconiza uma cognição encarnada, advinda
de uma experiência humana culturalmente incorporada. Uma relação corpo-cognição afastada
de uma ótica em que a cognição seria apenas o ato de representar um mundo pré-existente,
neste caso, uma cognição desprovida da relação corpo no mundo. Apesar desses autores não
tratarem especificamente de questões da deficiência visual, trabalhando com a construção do
conhecimento de forma geral, são nosso apoio por tratarem a cognição não como uma
representação de mundo e sim como algo advindo da relação e da experiência do homem com
o mundo e de uma organização única e particular a qual Maturana e Varela chamam de
autopoiética. O pensamento desses autores fornece suporte teórico para nossa proposta da
construção do conhecimento da pessoa com deficiência visual depender fundamentalmente de
sua relação corporal com o mundo que a cerca.
O segundo capítulo intitula-se Rastreando pelos caminhos em busca de uma
aproximação entre a Psicologia Cognitiva e a deficiência visual. Tem como objetivo
observar e analisar a deficiência visual à luz de pesquisas contemporâneas da psicologia
cognitiva. Procura também fazer uma aproximação do tema para o leitor que não está
ambientado com questões da deficiência visual. Tratamos especificamente de algumas
características do grupo deficiente visual, de seus processos de construção do conhecimento e
de como a relação se constitui num importante canal de invenção na busca do novo,
principalmente para estes alunos. Relatamos também pesquisas sobre a cognição e de
problemas relativos à linguagem e a formação de conceitos. Para esta parte, recorremos
essencialmente aos escritos de Vygotski, Warren, Fraiberg e Fredman, Hatwell, Amiralian e
Masini.
O terceiro capítulo, Tocando e aprendendo com o corpo, é iniciado com um recorte
26
de pesquisas sobre o desenvolvimento motor dos deficientes visuais, com o objetivo de
mostrar a necessidade de intervenções nesta área. Fala da teoria da educação pelo movimento
e de como esta abordagem avançou no campo da psicologia e da educação. Esta teoria nos
serviu de inspiração para que considerássemos o corpo com possibilidade de atuação na
construção do conhecimento. Dela retiramos a idéia de uma educação física voltada para os
objetivos da sala de aula e não para a simples melhoria de performances esportivas ou
estéticas. A diferença entre o que pretendemos e o enfoque da teoria é que esta tem um caráter
de organização e reorganização psicomotora, enquanto nós pretendemos apenas facilitar a
construção do conhecimento através de práticas nas quais o corpo se revele como agente
cognitivo. O que chamamos de inspiração na teoria deriva do fato de que foi através das
leituras de Jean Le Bouch que percebemos um novo enfoque para a organização dos tempos
de aula, que segundo a teoria passam a destinar um espaço significativo de tempo para
práticas corporais, além das aulas de educação física regulares.
Le Bouch traça um caminho que considera a evolução psicomotora como a base da
organização global do ser para a construção do conhecimento. Trata-se de um estudo voltado
para a escola e que propõe soluções através desta teoria. Este autor nos diz que: “O objetivo
central da educação pelo movimento é contribuir ao desenvolvimento psicomotor da criança,
de quem depende, ao mesmo tempo, a evolução de sua personalidade e o sucesso escolar.”
(LE BOUCH, 1998, p.15)
Antes de iniciarmos o nosso enfoque sobre a questão do corpo como agente facilitador
da aprendizagem, apresentaremos algumas pesquisas que trataram do tema com relação aos
deficientes visuais, as quais nos dão suporte e orientação para a nossa proposta de intervenção
intensiva com relação ao trabalho corporal, com vistas a dinamizar a sua construção do
conhecimento.
27
Todos os capítulos têm também o intuito de fazer um pano de fundo, construindo uma
rede de apoio para dar suporte à nossa proposta de uma educação em que o corpo tenha lugar
como facilitador da construção do conhecimento dos deficientes visuais, mais especificamente
no seu período inicial de escolarização.
O quarto capítulo: Entrevistando professoras de deficientes visuais, trata da
pesquisa de campo com professoras de crianças com deficiência visual realizada por meio de
entrevistas semi-estruturadas. As respostas obtidas das falas das professoras foram colhidas
através da indicação de alguns pontos, tais como: percepção do corpo do aluno, explicação de
conteúdos abstratos, relação professor-aluno, dentre outros. O que nos interessa é, de maneira
objetiva, trazer à cena as vivências que o professor tem em sua prática pedagógica tentando
perceber como o corpo é visto nesta prática. Os sujeitos da pesquisa (todos do sexo feminino)
são professoras das classes das primeiras séries do Ensino Fundamental, três cegas e três
videntes, que lecionam no IBC. Foram escolhidos de forma voluntária a partir da proposta da
entrevista. A divisão objetivou levantar possíveis diferenças e/ou semelhanças entre os dois
grupos a partir de suas diferenças sensoriais. Foi explicado que após a conclusão desta tese, os
dados serão devolvidos aos docentes e poderá haver a organização de oficinas para que os
professores da instituição se utilizem de seus corpos, a fim de experimentarem maneiras
diferentes de explicar determinados conteúdos para seus alunos através de vivências práticas.
A idéia aposta que a experiência corporal do professor possa definir e facilitar sua prática
pedagógica. Esta proposta parte da vontade de fazer deste estudo um dispositivo para a
adoção de novas práticas pedagógicas voltadas para crianças deficientes visuais, sejam elas
cegas ou de baixa visão, bem como aquelas com visão normal, que, de acordo com nosso
ponto de vista, tais práticas ajudariam a qualquer criança, mesmo aquelas que não apresentem
nenhuma deficiência.
28
Foram realizadas seis entrevistas no formato semi-estruturado, em que através de
cinco questões norteadoras, colheram-se os dados que após gravação e transcrição foram
analisados utilizando-se o método de análise de conteúdo (BARDIN, 1995). O tema central
foca como o professor observa e promove práticas para que o corpo do aluno seja visto como
um possível agente da cognição. Através das entrevistas feitas durante a investigação,
buscamos no contato com os professores, fazer uma reflexão sobre meios de ampliar o
entendimento de conceitos e conteúdos através das atividades corporais, bem como abrir
perspectivas para o uso desta ferramenta.
Na conclusão do trabalho estão descritas algumas considerações finais, recomendações
e propostas de futuros estudos que, fruto de questões que emergiram ao longo da pesquisa,
nos apontam para a necessidade de se buscarem respostas em outras investigações. Uma das
principais conclusões do estudo é que a preponderância da visão sobre os outros sentidos faz
com que um olhar desprovido da valorização dos outros canais perceptivos imponha um
modo de pensar que ainda hoje reforça pensamentos que revelam uma superioridade dos
videntes em relação aos cegos. Esperamos que com este trabalho esta postura preconceituosa
possa senão ser totalmente modificada, pelo menos amenizada.
29
CAPÍTULO I – Tateando e procurando uma trilha...
I.1-Primeiras considerações
Antes de nos focarmos no assunto tema da tese, é importante dizer qual a nossa
abordagem em relação à pessoa com deficiência visual, que estará implícita todas as vezes
que o termo for empregado, bem como as palavras cego e baixa visão. Nossa postura
investigativa é aquela na qual nenhuma generalização se faz presente e, portanto, as
definições que classificam os deficientes visuais em cegos e pessoas com baixa visão, para
nós, dizem muito pouco sobre a diversidade presente em cada indivíduo.
4
As nuances
advindas das experiências de vida mais ou menos ricas que cada um deles teve não cabem em
4
Na parte de anexos, na seção definição de termos, estão listadas as definições sobre cegueira e baixa visão
ditadas por órgãos governamentais e por autores de referência.
30
definições. Estamos pautados no único e no individual em busca de uma potencialização do
singular que cada indivíduo traz consigo, seja ele deficiente ou não.
Em Queiroz (1986), livro autobiográfico, lê-se:
Uma coisa muito comum de acontecer é a generalização. É como se para as
pessoas, todos os cegos fossem iguais. Isso autoriza a dizer que todas as
pessoas com visão são iguais pelo simples fato de verem. O problema é que
na palavra cego estão embutidos muitos valores depreciativos tais como
dependência, tutela, alienação, ignorância etc.(1986, p.85)
Portanto, pretendemos esclarecer, pelo menos um pouco, do que é divulgado sobre a
deficiência visual, mas sempre lembrando que mesmo havendo algumas características e
comportamentos típicos dessa deficiência, percebemos como imprópria toda e qualquer
uniformização e generalização com relação a este grupo de indivíduos. Consideramos
importante reconhecer as similaridades, mas chamamos a atenção para a ocorrência de idéias
equivocadas sobre pessoas cegas ou com baixa visão. Tais idéias são fruto de falsas premissas
as quais ainda hoje ocupam lugar em alguns trabalhos teóricos, em aparições de deficientes
visuais na mídia ou mesmo nos espaços públicos, formando um senso comum muitas vezes
distante da realidade. O que nos interessa é tentar esclarecer um pouco sobre o assunto para
aqueles que não lidam cotidianamente com deficientes visuais e também para aqueles que
lidam avançarem na pesquisa sobre o tema.
Buscamos contribuir para desconstruir ou amenizar uma imagem da pessoa deficiente
visual ainda muito vinculada à falta, ao desamparo, à incapacidade e à invalidez, que se
apresenta quando se fala de pessoa com essa deficiência. Entender de que forma acontece o
encontro entre aqueles que enxergam e aqueles que nada vêem, talvez esclareça como e
porque forma-se um senso comum a respeito da cegueira baseado em estereótipos.
Marcas históricas sobre a questão da deficiência colaboram para que esta seja vista
como defeito insuperável entre outros pensamentos preconceituosos. Estas marcas históricas
permanecem influenciando as atitudes tomadas pelas pessoas ditas “normais”, quando atuam
31
junto aos deficientes. Atitudes muito ligadas a sentimentos de pena, superproteção e a uma
forte marca de impossibilidades que não facilitam o relacionamento com a pessoa deficiente.
Os estigmas da cegueira que contribuem para a sua desvantagem total
consistem num conjunto de conceitos ou falsas concepções populares que
resultam em práticas sociais suficientemente compatíveis com essas falsas
concepções a ponto de apoiá-las, constituírem uma profecia auto-
cumpridora. Como o estereótipo popular do desamparo e da dependência é o
que predomina, o tratamento do indivíduo cego resulta, freqüentemente em
práticas sociais que o impedem de desenvolver e exercitar as aptidões e a
competência que o habilitarão a tornar-se independente. (TELFORD e
SAWREY, 1984, p.477
)
Notamos que em decorrência do que foi mencionado pelos autores acima citados, a
cegueira permanece sendo vista como algo envolto em mistério e desconhecimento,
compondo um imaginário refém de pouca ou nenhuma divulgação. São idéias equivocadas
que precisam ser desconstruídas, que marcaram todas as deficiências ao longo do tempo. “A
sociedade sempre teve uma atitude ambivalente para com os cegos, ignorando-os na maioria
dos casos ou venerando-os e acreditando que são possuidores de poderes especiais.”
(MARTIN e BUENO, 2003, p.125).
É interessante apontar que antigas concepções sobre a deficiência
permearam todos os períodos históricos e ainda se refletem neste final de
milênio. Somos constantemente surpreendidos pela percepção de que a
deficiência é uma herança maldita, possessão de espíritos, doença incurável,
incapacidade generalizada, objeto de maldição ou obra do divino. (BRUNO
e MOTA, 2001, p.26)
O conceito de deficiência mostra-se variável do momento que atende a critérios
diferentes de acordo com o tempo e o espaço. Portanto, é um conceito basicamente social,
transformando-se conforme os parâmetros eleitos pela sociedade. Glat (1989, p.19) nos
aponta esse mesmo pensamento dizendo que, “Os diferentes desvios aos padrões de
normalidade são considerados mais ou menos estigmatizantes dependendo, a cada momento
histórico, dos valores em jogo em cada cultura.”.
32
Configura-se a deficiência como mais ou menos grave e, portanto, mais ou menos
aceita, de acordo com as exigências do meio social num determinado espaço e tempo. Em
Telford e Sawrey encontramos um exemplo que elucida o que foi dito:
Numa cultura primitiva, onde a sobrevivência e a eficiência dependam da
aptidão da caça, as deficiências físicas são defeitos graves, ao passo que a
incapacidade de aprender a ler e escrever, calcular e lidar com conceitos
abstratos é muito menos significativa. (1984, p.346)
O olhar do meio social determina o quão deficiente uma pessoa pode ser. Padrões
aceitáveis em determinadas sociedades não o são em outras.
Em culturas ocidentais, orelhas grandes e longas são comumente ocultas sob
cortes de cabelo bem feitos. Em várias culturas africanas e polinésias as
orelhas são muitas vezes puxadas de forma torturante para, deliberadamente
alongarem-se, e, assim tornarem-se mais atraentes e mais desejáveis aos
indivíduos da comunidade. (BUSCAGILA, 1997, p.22
)
Com relação à cegueira especificamente, Vygotski (1997) já apontava a questão social
como fator relevante interferindo nas relações entre cegos e videntes. Ressalta que é no
embate social que o cego pode ter maiores ou menores problemas com relação à sua condição,
que a percebe como defeito a partir do encontro com a sociedade. “A cegueira é um
estado normal e não patológico para a criança cega, ela o percebe indiretamente,
secundariamente, como resultado de sua experiência social nela refletida.” (1997, p.79). Mais
adiante Vygotski elucida o que quer dizer com relação ao tema,
A cegueira cria dificuldades para a participação do cego na vida. Por esta
direção se instala o conflito. Na realidade, o defeito se projeta como desvio
social. A cegueira coloca o seu portador numa determinada e difícil posição
social. O sentimento de inferioridade, de insegurança e debilidade surgem
como resultado da valorização social, por parte dos cegos, de sua posição.
Como uma reação do aparato psíquico, se desenvolvem tendências em
direção à supercompensação. Essas tendências estão dirigidas a uma
personalidade de pleno valor ao aspecto social e à conquista de uma posição
na vida social. (1997, p.103, tradução nossa)
Analisando o que o autor aponta, fica evidenciado que o cego se percebe como
incapaz no momento que tenta atingir padrões socialmente determinados, os quais na maioria
33
das vezes estão fundamentados em padrões visuais, como mencionado quando aborda a
tendência a uma supercompensação. Fica então difícil suplantar os impedimentos que a
sociedade os impõe por não considerá-los tais como são, valorizando suas capacidades e suas
possibilidades.
Considerando as diferenças individuais que são inerentes a todos os seres humanos,
cada sociedade determina aquelas que, consideradas de acordo com suas necessidades, tornar-
se-ão mais do que simples diferenças e passarão a ser deficiências.
Não se trata aqui de negar os problemas que um cego, surdo, ou uma pessoa com
síndrome de dowm enfrentam, fruto de uma sociedade que não acolhe as diferenças e,
portanto, discrimina-os e tenta afastá-los de seu convívio, na maioria das vezes optando pela
institucionalização dos mesmos. O que desejamos é contextualizar a questão, demonstrando
que os impedimentos que um indivíduo apresenta poderão vir a representar para ele um
problema maior ou menor, de acordo com seu meio social e com as exigências que este lhe
fizer; dependendo ainda, para sua inclusão social, das oportunidades que tiver no ambiente
onde vive.
Em alguns momentos do cotidiano, podemos experimentar uma sensação de
deficiência momentânea nos aproximando sutilmente da condição de impedimentos pelas
quais os deficientes passam. Quando adoecemos e, de certo modo, ficamos de alguma forma
incapazes de realizar determinadas tarefas, normalmente nos desviamos para outras possíveis
de serem executadas naquele momento. Estar ou não deficiente depende então do momento e
do lugar em que se está inserido e do tipo de cobranças que são feitas no ambiente onde se
transita.
No meio social, alguns estereótipos são baseados na aparência dos deficientes e de
como são vistos pela sociedade. Portanto, não é raro que as pessoas identifiquem como
deficientes mentais paralisados cerebrais, simplesmente, pela sua imagem corporal, que às
34
vezes sugere este julgamento. Outra atitude muito comum, produto do preconceito com
relação às pessoas cegas, é que gritem com elas como se também estivessem impossibilitadas
de ouvir e, ainda, julguem pessoas surdas como mentalmente incapacitadas.
A deficiência não pode ser vista como uma qualidade presente no organismo
da pessoa ou no seu comportamento. Em vez de circunscrever a deficiência
nos limites corporais da pessoa com deficiência, é necessário incluir as
reações de outras pessoas como parte integrante e crucial do fenômeno, pois
são essas reações que, em última instância, definem alguém como deficiente
ou não deficiente. As reações apresentadas por pessoas comuns face às
deficientes ou às deficiências não são determinadas única nem
necessariamente por características objetivamente presentes num dado
quadro de deficiência, mas dependem bastante da interpretação,
fundamentada em crenças científicas ou não, que se faz desse quadro.
(OMOTE, 1994, p. 67)
O desconhecimento da sociedade quanto às características e possibilidades das pessoas
deficientes faz com que atitudes inadequadas no relacionamento com tais pessoas tomem
lugar no espaço social. Essas atitudes são resultado das representações que marcaram durante
séculos as mentes das pessoas com relação ao deficiente. Para Hildebrant (1998) a sociedade
não se relaciona com os indivíduos, mas com uma “imagem” que lhes atribui ao longo da
história, constituída a partir de características comuns a um grupo de indivíduos.
A partir dessas considerações, o trabalho transitará por algumas dessas questões
tentando esclarecer para aqueles que vierem a conviver com deficientes visuais, aspectos de
sua maneira diferente de estar no mundo, encarando a diferença sem negá-la, mas
encontrando formas de dar potência aos sentidos preservados. Deste modo, mesmo tendo o
corpo e a construção do conhecimento como foco central, entendemos ser importante abordar
questões específicas sobre a deficiência visual, as quais formam uma rede de apoio necessária
para o entendimento da estratégia que propomos no final do trabalho com relação a uma
educação que priorize a concretude e a experiência corporal.
35
I.2-Ver: uma experiência corporal. De onde partimos e que caminho seguir?
Iniciamos esta seção com uma citação de Merleau-Ponty (2000) que nos fez refletir
sobre a cegueira e sobre nossa relação com a mesma, tendo como pressuposto a visão.
Vemos as coisas mesmas, o mundo é aquilo que vemos fórmulas desse
gênero exprimem uma comum ao homem natural e ao filósofo desde que
abre os olhos, remetem para camada profunda de “opiniões” mudas
implícitas na nossa vida. Mas essa tem isto de estranho: se procurarmos
articulá-la numa tese ou num enunciado, se perguntarmos o que é este nós, o
que é este ver e o que é esta coisa ou este mundo, penetramos num labirinto
de dificuldades e contradições. (2000, p.15, grifo nosso)
Para a maioria das pessoas a cegueira significa escuridão, pois julgamos que o
indivíduo cego é alguém como nós, só que de olhos fechados. Esquecemos que a momentânea
perda desse sentido nem de longe nos aproxima da maneira de perceber o mundo de um cego.
Destacamos aqui interessante menção à simulação da cegueira descrita por Moraes
(2008) ao narrar a fala de um menino com baixa visão, que durante uma oficina de sua
pesquisa, quis experimentar o uso de vendas,
No nosso último encontro na Oficina de Expressão Corporal uma das
pessoas do grupo, que tem baixa visão, quis vendar os olhos durante a
Oficina para experimentar como é ficar sem enxergar.”. O menino - aquele
que interpretou o palhaço de molas manifestou-se enfaticamente contra o
uso das vendas. Argumentava que ser cego não é o mesmo que ficar
vendado, ser cego disse ele: é um outro mundo, o vidente tem um mundo, o
cego tem outro mundo. Um vidente coloca uma venda, depois tira e volta a
enxergar. Quem vai tirar a venda que eu tenho nos olhos? Ninguém, ela é
para sempre, minha cegueira é real. (2008)
Nosso pensamento na ausência momentânea da visão está permanentemente voltado
para a possibilidade de vermos novamente, quer pelo restabelecimento da luz, quando esta nos
falta, ou pelo simples fato de abrirmos os olhos ou retiramos uma venda. Assim, sabemos que
essa é uma situação passageira e, por isso, nossa adaptação ao espaço na falta da visão ainda
considera o retorno a esse sentido, continuando como mediador de nosso comportamento
durante o momentâneo encontro com a cegueira. Nossa prévia noção do ambiente, nossa
36
memória do mapa espacial e a certeza de que se houver alguma ameaça ou perigo poderemos
recorrer à nossa vista faz com que apenas nos aproximemos, levemente, da condição de
alguém cego.
Na ausência da visão, nosso corpo, ou melhor, nossa postura se transforma, pomos as
mãos para frente em busca do toque e do reconhecimento dos objetos que compõem o
ambiente, nossos passos modificam-se, passamos a arrastar os pés, todo nosso corpo parece
nos dar sinais que antes não eram percebidos. Além disso, nossas experiências anteriores
utilizando a visão respaldam nossa forma de agir na falta passageira desse sentido. Mesmo
sem a visão reconhecemos trilhas, apontamos caminhos, perguntamos sobre os locais e a
direção onde se encontram detalhes dos ambientes, enfim, utilizamos toda a nossa memória
visual e cinestésica
5
. Esse comportamento também procura ser realizado pela pessoa que
perdeu a visão na idade adulta, que tenta manter o maior tempo possível em sua mente dados
de sua memória visual.
Esta é uma experiência que nos chama a atenção para o quanto passamos a valorizar, a
orientar nossa atenção aos outros canais sensoriais de que dispomos, principalmente a audição
e o tato de todo nosso corpo, além das informações que colhemos através de nossa
experiência corporal anterior.
A visão, para nós que enxergamos, constitui nosso maior canal perceptivo, sendo
citado em muitos estudos (os quais não citam a fonte de pesquisa da apuração deste
percentual) que, oitenta por cento das nossas informações vem por esta via sensorial
(AMIRALIAN, 1997; MARTIN e BUENO, 2003). Encontramos em Goldman (1964, p.175)
5
Cinestesia: Sentido pelo qual se percebem os movimentos musculares, o peso e a posição dos
membros.(AURÉLIO, 1995, p.151). Sinestesia: Relação subjetiva que se estabelece espontaneamente entre uma
percepção e outra que pertença ao domínio de um sentido diferente;ex um som que evoca uma imagem
(AURÉLIO, 1995, p.602).
Cinestesia é definida como o sentido pelo qual são percebidos o movimento, o peso e a posição dos músculos. O
aparato vestibular é o órgão sensor, no ouvido, que detecta sensações relacionadas com orientação e equilíbrio. A
estimulação cinestésica e vestibular é reconhecida como sendo extremamente importante desde antes do
nascimento até a primeira infância e continua importante pelos sucessivos estágios de crescimento até a idade
adulta.(Padula,W, Spugin,S., Revista Benjamin Constant,Nº03,1996)
37
a relação percentual de utilização dos sentidos, relacionada às pessoas que enxergam.
Segundo o autor, 87% dos estímulos que chegam ao nosso cérebro vêm através da visão,
ficando a audição com 7%, o olfato com 3%, o tato com 1,5% e o paladar com 1,5%. Desta
forma, podemos compreender o quanto a visão nos domina em termos comportamentais,
sendo responsável pelo maior número de conexões com o meio ambiente nas pessoas que
enxergam.
Estamos então monitorados por esse sentido e talvez por esse motivo a condição de
alguém cego nos pareça tão limitadora.
O predomínio da visão sobre os outros sentidos é tão intenso que se chega às
vezes a conceder aos olhos poder condicionante sobre a própria realidade.
No Evangelho, tem-se o exemplo clássico, na passagem em que Tomé
mostra-se incrédulo diante dos outros apóstolos, que lhe diziam terem visto
Cristo ressuscitado. Tomé requisitava o testemunho visual para crer no que
lhe diziam. Finalizando cabe uma sentença lapidar, dita no filme de Irwin e
Wilker: “o fato de o ver as coisas não significa que elas não existam.
(OLIVEIRA, 2002, p.161)
A experiência com a cegueira, mesmo que momentânea, nos abre uma nova gama de
atenção aos outros canais perceptivos espalhados pelo nosso corpo, que passam a atuar no
mundo segundo outros referenciais de interação com o ambiente. Percebemos com esta
experiência que, tanto quando vemos como quando não vemos, uma integração de nossos
sentidos com o ambiente e uma contextualização dos estímulos recebidos com toda nossa
bagagem cognitiva, como nos aponta Bárbaras:
Assim, a visão não é, em hipótese nenhuma, a pura recepção de um conteúdo
visual, o que equivale a dizer que não vemos apenas com nossos olhos.
Enquanto apreensão de um sentido dentro do sensível ou como sensível, a
visão é mais do que visão física: ela envolve uma forma de compreensão ou
de pensamento. (2005, p.69)
Numa experiência momentânea com a cegueira, temos que atentar para o caráter
absolutamente único e irrepetível do que estamos vivendo e nos distanciarmos do pensamento
de que estamos vivenciando algo da mesma forma que os deficientes visuais vivenciam
quando passam por experiências semelhantes.
38
O que não se pode desconhecer é que o deficiente visual tem uma dialética
diferente, devido ao conteúdo – não visual quando se trata do cego ou
reduzido, não da pessoa com baixa visão e a sua organização, cuja
especificidade é a de referir-se aos sentidos predominantes de que dispõe.
(MASINI, 2007, p.24)
Mesmo que não haja uma comparação entre o comportamento de um vidente e de um
cego, entender melhor a visão é importante para que possamos diferenciá-la o melhor possível
da cegueira, ou pelo menos para melhor compreendê-la, afastando-nos de uma postura que
entende a cegueira como inferioridade. Segundo Vygotski (1997) há uma estruturação
diferenciada na configuração da personalidade de uma pessoa cega.
A cegueira cria uma nova e peculiar configuração da personalidade, origina
novas forças, modifica as direções normais das funções, reestrutura de forma
criativa e organicamente a psique do homem. Por conseguinte, a cegueira
não é apenas um defeito, uma deficiência, uma debilidade, é também, em
certo sentido, uma fonte de revelação de atitudes, uma vantagem, uma força
(por mais estranho e absurdo que isso possa parecer!). (1997,p.99)
Nós, que estamos impregnados pelos estímulos visuais, percebemos na cegueira uma
limitação quase que insuperável, quando passamos a entender que a visão não é um sentido
tão completo como pensamos e que também depende de uma interação dos outros sentidos
para configurar-se reavaliamos esta postura. Com isso mudamos consideravelmente a forma
como encaramos sua falta.
É importante observar que a visão não é um sentido perfeito e absoluto, como foi
dito anteriormente, ela também depende da interação com os outros sentidos para nos dar a
dimensão exata dos objetos, portanto estudá-la nos leva a desmistificá-la fazendo com que nos
distanciemos de sua supremacia, conferindo maior atenção à eficácia dos outros sentidos, no
caso em questão o tato. Deste modo, introduzimos um novo olhar sobre o que consideramos
um sentido tão perfeito e absoluto, que determina em sua falta uma idéia de invalidez
completa. Percebermos os outros sentidos com uma potência capaz de dar condições à pessoa
de atuar no mundo com outras possibilidades tão ricas quanto as daqueles que se utilizam da
39
visão. Isso depende de uma nova contextualização do que significa ver e de um pensamento
mais voltado para a riqueza e possibilidades dos demais sentidos.
Passamos a ter um novo olhar, menos dependente apenas deste sentido, e
consideramos então os outros canais sensoriais tão importantes quanto a visão em termos de
percepção do ambiente. Estudar mais aprofundadamente a visão reconfigura nosso
pensamento sobre sua supremacia e confiabilidade, modificando nossa percepção sobre a sua
falta, no caso a cegueira. Isto se torna importante, que estamos fortemente marcados pelo
paradigma visuocêntrico (BELARMINO, 2004)
6
o qual coloca o ver como sentido quase que
único no que tange ao conhecimento e à construção da subjetividade. Desconstruir essa idéia
se torna fácil quando percebemos a imprevisibilidade da visão e passamos a considerar a
cegueira como outra forma de estar, de agir e de se relacionar com o mundo.
A partir dos escritos de psicologia, fomos aprofundando as diversas concepções do
significado do sentido da visão. Buscamos, então, textos que focalizassem a visão, suas
características e desdobramentos no processo cognitivo. Em outra atitude investigativa, fomos
também observando como esta palavra era usada com freqüência na relação entre videntes e
cegos e entre cegos e cegos. Durante nossa prática com deficientes visuais, percebemos que a
palavra ver aparecia nos diálogos dos deficientes visuais de uma forma similar à que aparecia
nos diálogos das pessoas videntes. O ver para eles não significava, explicitamente, apenas o
uso do sentido da visão. Temos outras formas de ver que não com os olhos. Na verdade,
quando falamos, desde pequenos, “deixa eu ver”, estamos na maioria das vezes, tocando ou
querendo tocar em alguma coisa. A experiência da visão, em princípio, nos é incompleta,
necessitamos do toque, do olfato, enfim, dos outros sentidos para ter a noção integral do
objeto. Na verdade, ver é uma resposta a estímulos do mundo. Nas palavras de Gregory
percebemos claramente de que forma e porque vemos algo, “Ao receber o estímulo da luz, os
6
Termo que Joana Belarmino propõe para caracterizar a supremacia da visão com relação aos outros sentidos:
paradigma que marca também as pesquisas sobre o perceber e o conhecer na filosofia ocidental.
40
olhos alimentam o cérebro com a informação codificada em atividade neural cadeias de
impulsos elétricos – a qual pelo seu código e pelos padrões de atividade representam objetos.”
(1979, p.77).
Para o autor ver é uma reação à estimulação do ambiente e na falta da visão, vamos
apelar para os outros sentidos: táteis, auditivos, olfativos. Podemos, então, pensar que a falta
da visão, de certo modo, parece não comprometer completamente o ato de “ver”, no sentido
de perceber as qualidades do objeto, seu entorno e as diferenças que se apresentam, quando,
na falta desta utilizarmos bem os outros sentidos. Podemos dizer que esta é uma destacada
competência utilizada pelos deficientes visuais, através de treinamento e de utilização
constante de seus outros sentidos, comumente confundida com a compensação da visão. Algo
explicado com bastante propriedade por Vygotski em sua obra Fundamentos de Defectologia
(1997), na qual o autor reitera que a compensação é uma falsa idéia difundida na opinião
pública e na literatura científica em que se pensa que pode haver uma compensação biológica
do defeito,
Crêem que a natureza, quando somos privados de um sentido, nos
recompensaria com um desenvolvimento inusual dos sentidos restantes, que
os cegos possuem um tato extraordinariamente agudo, e que os surdos se
distinguem por uma visão de particular agudeza. (p.61)
Através da convivência com os deficientes visuais, muitas vezes, éramos
surpreendidos por detalhes percebidos por estes que nos escapavam, em princípio pela
dispersão natural da abundância de estímulos visuais. Contudo, parecia evidente que isto não
se dava por uma simples compensação e sim por uma atenção significativamente intensa dos
outros sentidos, particularmente o tato, que por suas características específicas de observar os
objetos de maneira seqüencial e, por conseguinte, mais demorada, fazia com que os detalhes
do objeto observado fossem melhor percebidos pelos deficientes visuais.
41
Parece como nos aponta Diderot, que o uso de dois sentidos conjuntamente pode nos
trazer alguma dispersão e confusão entre ambos,
Concluo daí que tiramos sem dúvida do concurso de nossos sentidos e de
nossos órgãos grandes serviços. Mas seria de todo diferente ainda se nós os
exercêssemos separadamente e se nunca empregássemos dois nas ocasiões
em que o auxílio de um só nos bastaria. Juntar o tato à vista, quando os olhos
são suficientes, é atrelar a dois cavalos, que já o muito vivos, um terceiro
na dianteira, o qual puxa de um lado, enquanto os outros puxam do outro.
(1979, p.7)
Muitas foram as questões que surgiram ao longo de nossa revisão de bibliografia,
teorizar sobre a questão do ver, e todas as nuances que isso implica, carecia de um aporte
teórico, objetivo e preciso para o trato com a temática. Foi num compêndio de Herrnestein e
Boring (1971), no qual são reproduzidos escritos da história da psicologia, que encontramos
diversos textos que tratavam do assunto.
O primeiro deles data de 341-270 a.C., é um texto de Epicuro chamado: “A percepção
de objetos mediada pelas imagens que deles emanam”. O texto é iniciado com a interpretação
dos atomistas gregos sobre a percepção dos objetos, segundo a qual os mesmos emitem
delicadas imagens que atingem os órgãos dos sentidos e são conduzidas ao cérebro, onde
representam os objetos. Herrnestein e Boring comentam ser esta uma antiga teoria da
percepção, segundo eles advinda de hábitos inconscientes de filósofos e psicólogos, e que
continua a influenciar o pensamento até os dias de hoje.
A discussão passa por Molineux (1692), que apresenta uma solução correta para o
problema da inversão da imagem, e segue com as soluções de Johannes Muller para o mesmo
problema, mostrando como as teorias sobre a inversão estavam firmemente estabelecidas. Até
então a questão da imagem e de como conseguíamos ver era uma indagação. Isto se resolveu
com o experimento clássico de Stratton (1897), que mostrou que o uso de lentes de inversão
na retina conduz ao fato da experiência tornar-se normal logo que se tenham formado novas
associações entre a percepção visual de objetos e a resposta comportamental a elas.
42
Desde o texto de Epicuro a questão do comportamento tem sido mencionada com
relação à visão dos objetos: “Precisamos supor também que quando algo entra em nós, vindo
dos objetos externos, não apenas vemos, mas também pensamos em suas formas.”
(HERRNESTEIN, E BORING, 1971, p.109).
Herrnestein e Boring (1971, p.139) iniciam o capítulo dedicado ao estudo da
percepção visual de tamanho e distância com a transcrição de um texto de René Descartes, “A
Percepção Visual de Tamanho, Forma e Distância”, escrito em 1638. Neste texto, além do
estudo sobre a visão, Descartes faz menção à falta da mesma:
(...) quando o homem cego (...) muda sua mão A na direção de E, ou sua mão
C na direção de E, os nervos da mão provocam certa mudança no cérebro, e
isso à sua alma um meio para conhecer a localização não apenas de A ou
C, mas também de todos os outros pontos nas linhas retas AE e CE, de forma
que a alma pode então voltar sua atenção para os objetos B e D, a fim de
verificar suas localizações, sem precisar saber a localização de suas mãos, ou
nela pensar.
(p.109)
Mais adiante os autores reproduzem outro texto de Descartes, o qual encanta-nos com
sua fala sobre a imprevisibilidade da visão :
(...) como a visão pode nos enganar. Em primeiro lugar pode nos enganar
porque a alma, e não o olho, é que vê, e a alma diretamente apenas pela
mediação do cérebro, e é por isso que pessoas distraídas ou que estão
dormindo freqüentemente vêem, ou acreditam ver, vários objetos que na
realidade não estão diante de seus olhos. (p.143)
Ainda neste texto, aparecem as considerações de Berkley, que uma descrição mais
complexa das mesmas idéias e fenômenos abordados por Descartes.
Após esta busca facilitada pelas pesquisas de Herrnestein e Boring (1971) de textos
antigos, escritos por volta do século XVII, passamos a outros autores da mesma época, mas
que se utilizavam de pesquisas mais recentes sobre o assunto, fazendo referência a estudos
e experiências sobre a visão.
Recorremos à obra da psicologia, de Telford e Sawrey (1971), em que o capítulo sobre
os processos sensoriais aborda a visão sob o aspecto biológico, fisiológico e perceptual. Neste
43
livro são descritas diversas experiências sobre a percepção visual e como aprendemos a ver;
nele é afirmado, mais uma vez, que vemos porque literalmente respondemos a estímulos
externos e, também, em que tempo perderemos a capacidade de desenvolver esta habilidade
caso não sejamos estimulados.
A primeira pesquisa citada por Telford e Sawrey é a de Fantz (1957), que
experimentou ver a reação de pintinhos com relação a bicar objetos. Eles bicavam com mais
vontade aqueles que tinham formas circulares (em princípio porque pareciam algo
comestível). Depois isolou os objetos em sacos plásticos, eliminando a sensação do odor, do
gosto e do toque, e os pintinhos continuavam a bicá-los. Em seguida, fez a mesma experiência
com pintinhos mantidos no escuro durante algum tempo e constatou que eles continuavam
bicando; desta forma, verificou que o comportamento de bicar não se modificava pela
ausência ou não da visão. Entretanto, Padilha (1935) e mais tarde Risen (1947) fizeram outro
experimento e constataram que pintinhos mantidos no escuro por mais de 15 dias, ao serem
colocados em ambiente iluminado após o período de privação de estímulos luminosos, não
mais conseguiam bicar a comida e morriam de fome no meio do alimento à sua volta. A falta
da prática do bicar por um período maior de 15 dias, nos quais pela falta de luz os
impossibilitava de usar a visão, fazia com que os pintinhos não mais bicassem, deixando
então de associar a visão ao ato de bicar, abandonando esse comportamento.
São ainda mencionadas por Telford e Sawrey pesquisas sobre percepção de
profundidade. Gibson e Walk (1960), com um experimento chamado “penhasco visual”,
demonstram em sua pesquisa o que se numa investigação de campo com crianças. Os
pesquisadores estimulam crianças que sabem engatinhar a percorrer um tablado com
desenhos de quadrados pretos e brancos. Na continuação do tablado uma placa de vidro
transparente no mesmo alinhamento, o que permitiria a continuação do caminhar. Entretanto,
abaixo da placa de vidro são desenhados os mesmos quadrados, dando a impressão de
44
profundidade e de um declive considerável. A experiência demonstra que as crianças embora
sabendo engatinhar, não avançavam sobre o vidro, pois tinham a impressão que cairiam. Os
mesmos autores comentam ainda sobre experiências de recuperação da visão de indivíduos
congenitamente cegos submetidos a cirurgias de recuperação da visão. Relatam algumas
conclusões apresentadas por Revez (1950), que transcrevemos a seguir:
1) Os indivíduos não puderam reconhecer formas visuais imediatamente
após as operações.
2) Os objetos familiares aos indivíduos, como formas táteis, não puderam ser
identificadas visualmente.
3) O reconhecimento de pessoas familiares com base na sua aparência visual
foi impossível.
4) Na maioria dos casos, formas bi e tridimensionais não puderam ser
distinguidas visualmente.
5) Em alguns casos os indivíduos foram capazes de reconhecer figuras
visuais simples (círculos, triângulos, quadrados) várias semanas após a
operação, muito embora as reconhecessem prontamente pelo tato.
6) Num caso, o paciente, considerado inteligentíssimo, só foi capaz de
reconhecer alguns rostos visualmente depois de dois anos.
7) As relações entre figura e o fundo foram visualmente percebidas logo
após a operação, como indicava o fato de terem quase sempre os indivíduos
consciência de um objeto, que se destacava do fundo; revelaram-se, porém,
incapazes de reconhecer a coisa.
Os autores citados por Telford e Sawrey são unânimes em demonstrar o caráter
aprendido da percepção visual e de sua íntima relação com o comportamento e, mais
especificamente, com a aprendizagem.
Num salto para textos mais atuais, debruçamo-nos sobre os escritos de Oliver Sacks,
que através de diversos relatos, analisa o sentido da visão e como as experiências visuais nos
instigam a uma reflexão sobre a real percepção do mundo através desse sentido. A visão, ou
melhor, a construção de uma imagem pelo nosso organismo, necessita de outras conexões
para que seja atribuída a esta imagem sentido e reconhecimento. Ou seja, isto demonstra que o
reconhecimento de algo, ou a construção do conhecimento, passa por uma ação de nosso
organismo, uma ação de integração dos sentidos, do corpo naquela experiência e não a
simples captação da informação. Como menciona Sacks (1995, p.132): “Não se vê ou percebe
45
em isolamento a percepção está sempre ligada ao comportamento e ao movimento, à busca
e à exploração do mundo.”.
Sabemos que esse é um ponto de discussão profícuo nos estudos sobre cognição e que
as diversas vertentes permanecem em debate constante.
Segundo Crary (2001, p.81), “No espaço de poucas décadas, discursos dominantes e
práticas do olhar efetivamente romperam com um regime clássico de visualidade e
fundamentaram a verdade da visão na densidade e materialidade do corpo.”. No caso de
Crary, um corpo analisado fisiologicamente.
O discurso sobre a visão ampliou-se nos últimos anos e passou a figurar sob novos
paradigmas que não aqueles apenas anatomo-fisiológicos. As considerações de que a visão
depende menos da natureza do estímulo e mais da constituição e funcionamento de nosso
aparelho sensorial determinou o conceito de visão autônoma. O que segundo Crary, faz com
que se possa mensurar a percepção humana, advinda de uma “verdade empírica da visão
situada no corpo.”. E não, simplesmente, da visão fruto apenas da capacidade fisiológica.
A idéia da visão subjetiva – a noção de que a qualidade das nossas sensações
depende menos da natureza do estímulo e mais da constituição e do
funcionamento do nosso aparelho sensorial foi uma das condições para o
surgimento histórico das noções de visão autônoma, isto é, para uma
separação (ou liberação) da experiência perceptiva de sua relação necessária
e determinada com um mundo exterior.(CRARY,2001, p.82
)
As considerações sobre a visão nos fazem perceber a cegueira e, por conseguinte, a
deficiência visual sob outra ótica. Percebemos como o ver e o reconhecer algo também
necessitam de uma vinculação à experiência, bem como à utilização conjunta dos sentidos na
observação dos objetos, ambientes e pessoas. As informações captadas apenas pelos sentidos,
apartadas de uma contextualização, são apenas estímulos que o indivíduo recebe não o
tornando capaz de dizer a que se referem. A bagagem de conhecimentos acumuladas pelo
indivíduo, assim como a relação e a integração dos sentidos trazem entendimento ao
percebido, seja pela visão ou pelo tato, além dos outros sentidos: audição, olfato e paladar.
46
Podemos dizer ainda que pela relação entre seu corpo e o ambiente, pelo vivenciar de
experiências perceptivas, o deficiente visual sai da condição imposta pelo meio social de ser
humano incompleto. Mas para que possamos ter este pensamento, é necessário que nos
afastemos de uma forte imposição da visão em detrimento dos outros sentidos. Afastarmo-nos
do paradigma visuocêntrico não é tarefa fácil, já que estamos impregnados pelo uso excessivo
da visão e por conta disso, na maioria das vezes, desprezamos informações ricas que os outros
sentidos nos trazem. Observar e aceitar os limites, a incompletude e as ilusões da visão não a
destitui de ser um sentido dotado de características únicas e insubstituíveis, mas atenua o
pensamento de que sua falta traz para o cego uma condição exclusiva de incompletude e
inferioridade em relação aos videntes. Traz sim outra forma de interagir com o mundo,
apoiada nos outros sentidos, principalmente o tato e a audição.
A partir dessas reflexões que nos fazem conceber tanto a vidência como a cegueira
sobre outro prisma, afastando a condição da cegueira, do estigma, do deficit e da deficiência,
iniciamos nosso estudo sobre a importância da experiência, dos aspectos da deficiência visual,
das pesquisas sobre o assunto e, também, como o corpo pode ser o elemento integrador de
todos estes canais perceptivos, o qual na falta da visão pode ocupar ainda que não
completamente este lugar, mas pode dar ao indivíduo cego condições de apreender o espaço
do mundo, das pessoas e dos objetos existentes na sua vida, valorizando suas experiências
com os outros sentidos, construindo, assim, sua visão de mundo.
I.3-Ressonâncias entre Merleau-Ponty e John Dewey
47
Iniciamos nosso caminho de reflexão a partir das considerações sobre o ver e o o
ver, focalizando nas experiências vividas e na integração dos sentidos o caminho para que a
falta da visão adquira potência cognitiva. Partindo do conceito de experiência de John Dewey,
continuaremos nossa análise observando o corpo como foco central e ponto de encontro de
todos os estímulos do ambiente. E como vemos no conceito de experiência um caminho que
nos aproxima do pensamento de Merleau-Ponty. Cito Dewey:
A experiência ocorre continuamente, porque a interação da criatura viva com
as condições que a rodeiam está implicada no próprio processo da vida. Sob
condições de resistência e conflito, aspectos e elementos do eu e do mundo
implicados nessa interação qualificam a experiência com emoções e idéias,
de maneira tal que emerge a intenção consciente.(1980, p.89)
A aliança entre Dewey, Merleau-Ponty e Varela é, a nosso ver, de especial ajuda.
Nossa definição de corpo é a de Merleau-Ponty, que preconiza um corpo visto como
fenomenológico, em relação como corpo no mundo.
A experiência motora de nosso corpo não é um caso particular de
conhecimento; ela nos fornece uma maneira de ter acesso ao mundo e ao
objeto; como uma “praktognosia” que deve ser reconhecida como original e
talvez como originária. Meu corpo tem seu mundo ou compreende seu
mundo sem precisar passar por “representações”, sem subordinar-se a uma
“função simbólica” ou “objetivante”. (1999, p.195)
Dewey quando se refere à experiência se reporta, tal como Merleau-Ponty, à relação
entre o corpo e o ambiente, remetendo-se à modificação que se opera no corpo quando sea
experiência.
Com efeito o fato de conhecer uma coisa importa em uma relação simultânea
no agente do conhecimento e na coisa conhecida. Essas duas existências se
modificam, porque se modificaram as relações que existiam entre elas. A
árvore que era apenas objeto de minha experiência visual passa a existir de
modo diverso, se entre mim e ela outras experiências se processarem, pelas
quais eu a venha a conhecer em outros aspectos: úteis, medicinais, de
resistência, etc. Depois dessas experiências, eu e a árvore somos alguma
coisa diferente do que éramos antes. Existimos de modo diverso um para o
outro. Houve, através daquelas experiências, uma transformação que i
permitir alterar, sob certo aspecto, o mundo em que vivo. (1980, p.114)
Merleau-Ponty fala da relação do corpo-mundo:
48
Corpo e mundo são um campo de presença onde emergem todas as relações
da vida perceptiva e do mundo sensível. Há um logus do mundo estético, um
campo de significações sensíveis constituintes do corpo e do mundo. È esse
logos do mundo estético que torna possível a intersubjetividade como
intercorporeidade, e que, através da manifestação corporal e na linguagem,
permite o surgimento do logos cultural, isto é, do mundo humano da cultura
e da história. (1980, p.11)
Observando as duas citações, reconhecemos como ponto em comum o que Dewey
aponta ao referir-se à transformação pela qual os corpos dos atores da experiência passaram,
com o que Merleau-Ponty considera como corpo e mundo serem um campo de presença, que
torna possível a intersubjetividade e a intercorporeidade, ou seja, a relação entre corpos
acontecida na experiência.
Como ressalta Masini (2007) quando se refere ao autor,
O corpo é, então, visto como fonte de sentidos, isto é, de significação da
relação do sujeito no mundo: sujeito visto na totalidade, na sua estrutura de
relações com as coisas ao seu redor. O esforço desse autor foi o de mostrar
que a relação no mundo é corporal e sempre significativa. (2007, p.22)
A partir das formulações e do que encontramos em ambos os autores, percebemos
ressonâncias e aproximações significativas entre suas idéias, as quais nos fazem explorar a
aliança entre Dewey e sua noção de experiência, Merleau-Ponty com a de corpo no mundo e
Varela com a de cognição encarnada, constituindo, a nosso ver, modos diferentes de exprimir
uma mesma idéia, compondo assim uma parceria de especial relevância.
I.3.1- John Dewey e o seu conceito de experiência
Em John Dewey, encontramos uma direção para a investigação do corpo que
queremos abordar, um corpo imerso na experiência e atrelado a ela. Queremos explorar um
49
corpo em relação com os objetos e com outros corpos. Neste estudo, o que mais nos interessa
é perceber de que forma é possível, através da experiência corporal, aperfeiçoar o processo de
construção do conhecimento do deficiente visual e de que modo esta ação é explorada no
ambiente escolar.
O estudo pela via da experiência parece um caminho para a observação do todo
corporal no ato em si. O corpo em ação, em relação com o ambiente e com os objetos
continuamente. A ação, a interação e a experiência advinda destas ações podem nos trazer
respostas significativas, driblando, assim, a nítida separação entre mente e corpo que
permanece viva nas mentes e na prática de profissionais da saúde e da educação, firmando e
ratificando um discurso dualista com bases cartesianas.
A partir da leitura dos textos de John Dewey “A arte como experiência” (1980, p.89-
105), “Experiência e Natureza” (1980, p.3-52) e “Vida e Educação” (1980, p109-181),
começamos a chegar mais perto daquilo que buscávamos.
Até então conhecíamos o autor, nas alusões feitas em textos que comentavam a
famosa Escola Nova. Foi a leitura de outros textos de sua obra que nos fez optar por seu
pensamento que, para nós, fazia a ponte perfeita entre a psicologia e a educação.
Para que possamos iniciar o entendimento das idéias de Dewey, é imperioso que
atentemos para as considerações do autor com respeito ao conceito de experiência. Dewey
considera, basicamente, que a experiência é a relação do homem com outro corpo (objeto),
seja ele humano ou não. A ação de um corpo em outro modifica a ambos, num movimento de
ação e reação mútuas, fazendo com que os mesmos se transformem em corpos diferentes do
que eram antes; assim, o autor diz que ambos passaram por uma experiência, “Esse agir sobre
outro corpo e sofrer de outro corpo uma reação é, em seus próprios termos, o que chamamos
de experiência.” (DEWEY, 1980, p.113).
Experiência o é portanto, alguma coisa que se oponha a natureza- pela
qual se experimente ou se prove a natureza. Experiência é uma fase da
50
natureza, é uma forma de interação, pela qual os dois elementos que nela
entram- situação e agente_ são modificados. (...) o fato de conhecer uma
coisa importa em uma alteração simultânea no agente do conhecimento e na
coisa conhecida. Essas duas existências se modificam, porque se modificam
as relações que existiam entre elas. (DEWEY,1980, p.114)
Para Dewey a experiência ocorre o tempo todo, porque sempre uma interação do
corpo com o espaço que o rodeia e do corpo com o próprio corpo. A interação do corpo, dos
elementos desse “eu” com o mundo que o rodeia confere ao ato de experienciar emoção e
idéia, emergindo daí a intenção consciente. “A experiência ocorre continuamente, porque a
interação da criatura viva com as condições que a rodeiam está implicada no próprio processo
da vida.” (1980, p.90).
O que é dito por Dewey como sendo uma experiência é tratado por Merleau-Ponty
como sendo corpo no mundo, ou seja,
Eu não sou o resultado ou o entrecruzamneto de múltiplas causalidades que
determinam meu corpo ou meu “psiquismo”, eu não posso pensar-me como
uma parte do mundo, como o simples objeto da biologia, da psicologia e da
sociologia, nem fechar sobre mim o universo da ciência. Tudo aquilo que sei
do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de
uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam
dizer nada. Todo o universo da ciência é construído no mundo vivido, e se
queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu
sentido e alcance, precisamos primeiramente despertar essa experiência do
mundo da qual ela é a expressão segunda. (MERLEAU-PONTY, 1999, p.3)
Para Dewey o vivenciar da experiência nem sempre é completado integralmente,
um grau de dispersão antes que se finalize qualquer ação. “Pomos nossas mãos no arado e
voltamo-nos para trás; começamos e logo nos detemos, não porque a experiência haja
alcançado o fim em vista do qual foi iniciada, mas por causa de interrupções estranhas ou por
qualquer letargia interna.” (1980, p.89).
Entendemos que isso aconteça devido à atuação de nossos sentidos e de nosso
pensamento que nem sempre estão, conjuntamente, implicados na experiência vivida. Ou seja,
quando estamos arando a terra, não deixamos de ouvir os ruídos do campo, nem de sentir o
51
vento no rosto, ou mesmo de pensarmos em algo que não tenha a ver com a terra e o arado.
Este desvio de nossa atenção é visto pelo autor como um momento de dispersão, não se
constituindo em uma experiência. O corpo não esteve inteiramente voltado para aquele ato-
momento. Para Dewey, a experiência estética acontece quando o ato experienciado segue
seu curso até sua realização. Seguem-se os exemplos: “um jogo é executado completamente;
um problema recebe uma solução.” (ibid. p.89). Ressalta-se que o conceito de experiência
estética para Dewey não se refere somente àquela com obras de arte e sim àquela que nos traz
algum prazer em desenvolvê-la.
Todo o ser deve estar implicado na ação, assim, o autor considera que se tem uma
experiência. Nesta medida a experiência não se confunde e se individualiza por si só:
Uma experiência possui uma unidade que lhe confere seu nome, aquela
comida, aquela tempestade, aquela ruptura de amizade. A existência dessa
unidade está constituída por uma qualidade única que penetra toda a
experiência, apesar da diferença de suas partes constitutivas. (DEWEY,
1980, p.90)
nas mesmas uma unidade qualitativa que a diferencia das demais e a individualiza
como única, como aquela que marcará espaço em nossa memória. Qualifica-se e destaca-se
das demais por estar impregnada de valor estético para nós. E o que é este valor estético? É
todo aquele que consideramos como agradável, como vivido intensamente, como desfrutado
por todos os nossos sentidos. “A palavra 'estético’ refere-se, como observamos, à
experiência enquanto apreciativa, perceptiva e agradável.” (ibid., p.98).
São também formuladas considerações a respeito das experiências de pensamento:
(...) dizemos de uma experiência de pensamento que alcançamos ou
extraímos uma conclusão. A formulação teórica do processo faz-se
freqüentemente em termos tais que efetivamente ocultam a semelhança da
“conclusão” com o aspecto consumatório de toda experiência integral em
desenvolvimento. (DEWEY, 1980, p.91)
Na experiência de pensamento, um conjunto de perguntas e respostas intermitentes,
de elucubrações e de conclusões, que se interpelam de forma a nos levar a um estado de
52
pensamento ondulatório em que proposições, premissas e conclusões intercalam-se durante o
processo. Quando se chega a uma conclusão (que pode se manter ou não), esta não é algo
isolado, é, sim, a consumação de todo um movimento. O autor diz então que “uma
experiência de pensamento tem sua qualidade estética própria.” (ibid., p.91). Ou seja, um
desenho único, aquele que não se repete de uma mesma maneira, mas que conserva e acumula
novas contribuições ao seu significado. Para Dewey há em toda experiência um elemento de
padecimento, não em sentido negativo, mas de uma passagem, sem a qual, em sua visão, não
haveria a incorporação vital. uma reconstrução, fruto da modificação sofrida na interação
corpo-objeto, ou pensamento-conclusão, a qual pode ser penosa ou prazerosa, dependendo das
condições particulares no momento da experiência.
Em relação ao processo de aprendizagem, o caráter experimental desta denota aspectos
de tentativas, de novidades, de incógnitas a serem decifradas, sendo este movimento algo que
nos remete ao “novo”, ao desconhecido, ao descobrir e ao pesquisar. Trazem em seu bojo o
que o autor chama de padecimento, quer dizer, temos dúvidas sobre o sucesso ou não do que
experimentamos, se a experiência nos trará boas ou nefastas conseqüências, ou mesmo se
durante a experiência teremos prazer. Realmente, antes do processo não sabemos sobre sua
validade e isto, às vezes, causa desinteresse por algumas tarefas, o que se percebe com
freqüência nas escolas.
Experienciar uma tempestade, com seus trovões, raios e ventos fortes pode nos trazer
prazer ou desprazer, dependendo de nossas condições em alcançar um abrigo. Mesmo assim,
a tempestade não mudou, é a mesma em intensidade e força, mas pode ser experimentada
como bela ou aterrorizante, dependendo de onde nos encontramos para apreciá-la. Seu caráter
estético modifica-se; aquele raio no céu poderá ser visto como belo ou ameaçador. Portanto, a
interface entre a experiência e a forma como vamos percebê-la é o que a diferencia e
individualiza. Nesta interação cada um vai viver diferentes emoções ao longo da experiência.
53
Quais e quantas emoções estão envolvidas nas diversas experiências? Neste ponto
percebemos no texto uma abordagem bastante interessante, que destacamos, pois, vemos a
experiência escolar como algo envolto em emoções as quais são vividas intensamente.
Vejamos:
Somos dados a pensar sobre as emoções como coisas o simples e
compactas quanto às palavras que utilizamos para nomeá-las. Alegria,
tristeza, esperança, temor, ira, curiosidade, são tratadas como se cada uma,
em si própria, fosse uma espécie de entidade que entra em cena já completa,
uma entidade que poderá durar muito ou pouco tempo, mas cuja duração,
cujo crescimento e curso mostram-se irrelevantes quanto a sua natureza.
(DEWEY, 1980, p.94)
As emoções não podem ser consideradas como fenômenos isolados sem um contexto,
destituídas de um cenário. Estão incluídas nas experiências que nos são significativas, as quais
nos afetam e nos modificam perante e durante as mesmas. As emoções fazem parte de um
movimento do eu, pertencem ao eu e estão qualificadas pelo eu. Neste tópico Dewey mostra-
nos que existem alguns padrões de emoção relativos a determinadas experiências e o
exemplo do levantamento de uma pedra por um homem. Explica que o peso da pedra, a
aspereza, seus ângulos são propriedades comuns e imutáveis da mesma, causando em quem a
levanta, pelo menos um mesmo sentimento. No ato de levantá-la, qualquer pessoa sentiria o
mesmo peso, faria o mesmo esforço, dependendo de sua força, entretanto as emoções sentidas
por cada pessoa frente à dificuldade de levantar a mesma pedra seriam únicas, diferentes e
particulares, pois dependeriam de sua individualidade.
Podemos fazer uma analogia entre o exemplo de Dewey e as experiências cognitivas
ocorridas na escola. Os conteúdos são os mesmos e a progressão da aprendizagem também.
Os sentimentos percebidos quando um aluno não consegue aprender dependem de cada aluno
em particular. A sensação de impotência, fracasso e de conseqüente desinteresse pela
aprendizagem são freqüentes, todavia, estas situações acarretam diferentes comportamentos
nos alunos. Alguns enfrentam as dificuldades, outros abandonam a escola.
54
I.3.2-Interação, experiência e a atividade escolar
Prosseguindo na leitura de Dewey observamos o que nos é apresentado como o caráter
interativo da experiência e seus padrões. Os padrões serão aqueles que denotam semelhança a
experiências, ou seja, do esforço do início, do padecimento do processo e da harmonia e alívio
da finalização. Isto quer dizer que estes padrões são comuns a todas as experiências,
conferindo a elas modelo e estrutura.
A intensidade e a amplitude das experiências são percebidas e sentidas de acordo com
cada indivíduo em particular, e as relações entre o padecer e o fazer estão relacionadas ao
indivíduo e ao seu acúmulo de vivências. O autor exemplifica considerando a experiência da
criança: “A experiência de uma criança pode ser intensa, mas, por causa da falta do pano de
fundo da experiência passada, as relações entre o padecer e o fazer são fracamente captadas, e
a experiência não tem grande profundidade e extensão.” (DEWEY, 1980, p.96).
Penso que talvez o autor esteja se referindo a uma possível gradação do experimentado
em comparação com experiências anteriores que qualificam a experiência vivida naquele
momento. Pode-se, com isso, inferir que o acúmulo do vivido qualifica e intensifica, ou não, a
nova experiência. Se esta é percebida em profundidade, o que não acontece com freqüência
devido aos fatores intervenientes que a perpassam, diz ele:
Nenhuma experiência tem oportunidade de completar-se a si própria porque
alguma coisa mais entra em cena muito rapidamente. O que é chamado de
experiência torna-se tão disperso e misturado, que dificilmente faz jus ao
nome.[...] As experiências também são interrompidas antes da maturação por
excesso de receptividade. (DEWEY, 1980, p.96)
Quando pensamos no nosso cotidiano atual, inflacionado de informações que nos
dispersam e que parecem nos afetar de maneira superficial, percebemos nitidamente o que
Dewey quis dizer, já que nossa atenção não se fixa em uma única experiência, mas se distribui
55
em várias a despeito de nossa vontade. Pode-se aqui refletir sobre nosso viver contemporâneo
que se desloca para a escola, reproduzindo este tipo de comportamento e concorrendo para o
surgimento de novos problemas no cotidiano escolar. Em recente artigo, Kastrup sinaliza para
a ocorrência desses novos problemas:
É cada vez mais freqüente o diagnóstico de transtorno de déficit de atenção
(TDA), que tem como sintomas baixo rendimento na realização de tarefas,
dificuldade de seguir regras e desenvolver projetos de longo prazo, e a cujo
quadro podem estar associadas a hiperatividade e a impulsividade. No
contexto escolar, o problema é colocado como aquele da atenção requerida
para que o processo de aprendizagem tenha lugar. Considera-se que a
criança não aprende porque não presta atenção. (KASTRUP, 2005)
Quando colocamos a comida no microondas e não acompanhamos seu cozimento, não
vemos a transformação do alimento, atentamos a outra tarefa, na qual também não nos
detemos muito, que nossos ouvidos estarão atentos para o bip-bip que nos chama. No
computador, mensagens que não queremos nos bombardeiam a todo o momento com
informações que, por mais que aparentemente não dispersem nossa atenção, estão sim
mandando mensagens aos nossos receptores cerebrais. Muitas outras situações poderiam
demonstrar a atualidade do texto no que tange a este ponto de reflexão. De acordo com
Kastrup (2004)
É possível observar que a atenção desliza incessantemente entre fatos e
situações, transparecendo uma certa dificuldade de concentração. Numa
busca acelerada de novidade a atenção é passageira, muda constantemente de
foco e é sujeita ao esgotamento em frações de segundos.Quando se procura
descrever como a atenção funciona nos dias atuais, o primeiro aspecto que
sobressai é uma acentuada dispersão, que resulta da mudança constante do
foco da atenção. (KASTRUP, 2004, p.1)
Com relação ao aluno cego o que é dito se reflete na dificuldade que os professores
relatam, (conselhos de classe do IBC) queixando-se do problema que enfrentam para
conseguir manter a atenção de seus alunos focada em alguma tarefa por muito tempo.
Mencionam um grande fator de dispersão e uma instabilidade que prejudica a finalização das
tarefas.
56
Aqui paramos para refletir sobre esta queixa. Seque a experiência escolar desses
alunos tem para eles qualidades suficientes para prender sua atenção? Ou são atividades com
o mesmo caráter daquelas oferecidas a alunos com visão normal? Freqüentemente o
adaptações de exercícios para crianças videntes, os quais, talvez, não confiram aos alunos
deficientes visuais uma qualidade estética capaz de mantê-los atentos por um longo período, o
qual contemple sua finalização. Poderíamos citar aqui as dificuldades encontradas por alunos
cegos quando utilizam livros adaptados, deparando-se com desenhos em relevo, os quais em
princípio não são bem compreendidos por eles. Ou quando nas classes de alfabetização
rejeitam o contato de pronto com o sistema Braille, pois ainda não têm o tato suficientemente
sensível para discriminar os diversos pontos, não conseguindo então perceber a diferenciação
entre as letras. Esta não é uma crítica aos professores e sim a todo o processo escolar, que não
se modifica com a mesma velocidade que os alunos. Estamos nos referindo aqui,
principalmente aos alunos de nosso tempo, que muito rapidamente se cansam das tarefas
escolares, demonstrando pouco interesse pelas mesmas, sejam eles deficientes visuais ou não.
Finalizando essa parte do estudo e percebendo que essa discussão poderia se alongar
demasiado, desviando-se do verdadeiro foco do trabalho, encerramos com mais uma citação
de John Dewey, retirada de seu texto “Vida e Educação” o qual parece traduzir tudo o que se
poderia dizer sobre este problema,
(...) verdadeiro interesse é o sinal de que algum material, objeto, habilidade,
ou o que quer que seja, está sendo apreciado de acordo com o que
atualmente concorra para a marcha progressiva de uma ação, com a qual a
pessoa tenha se identificado. Interesse verdadeiro, em suma, significa que
uma pessoa se identificou consigo mesma, ou que se encontrou a si mesma
no curso de uma ação. E daí se identificou com o objeto, ou a forma de agir
necessária à prossecução feliz de sua atividade. (DEWEY, 1980, p.170)
Captamos nesta citação, o significado que a experiência escolar deveria ter para o
aluno. Ou seja, aquela que venha a se traduzir num encontro prazeroso com a tarefa escolar e
que o remeta a um pensamento do significado da mesma como importante para sua vida
57
futura, seja no campo social, de sua formação intelectual e também de seu desempenho
profissional.
I.4 Corpo e experiência encarnada perspectivas contemporâneas: O diálogo entre
Varela, Merlau Ponty e Dewey
O objetivo principal dessa tese é potencializar o corpo como agente cognitivo.
Entretanto, sabemos que permanecemos extremamente marcados pelo modelo cartesiano o
qual ainda nos remete a uma divisão entre os processos mentais e corporais. Precisamos de
aliados para que o corpo deixe esse lugar subutilizado, principalmente na escola.
Quando criamos distâncias entre corpos e entre corpos e objetos, descartando a
experiência corporal como meio de construção do conhecimento, a relação entre
aprendizagem e experiência corporal fica senão impossibilitada, bastante limitada. A
utilização, basicamente, da visão em detrimento dos outros sentidos, perpetua-se, fazendo
com que a relação visão-objeto seja, majoritariamente, eleita como caminho para a construção
do conhecimento. A evolução da espécie humana mostra a eleição da visão como sentido
dominante, pois ao longo da mesma, nosso olfato, audição e tato perderam a agudeza em prol
da visão, na medida em que nos civilizamos.
A eleição da visão como sentido dominante advém da evolução do ser humano em
razão do alcance da postura bípede, na qual o olfato deixa de ser o mais aguçado dos sentidos.
De acordo com Bastos (2006),
Na espécie humana, o sentido do olfato foi relegado a um segundo plano na
medida em que a menstruação não mais correspondia ao cio. A postura ereta
distanciou o homem dos odores genitais, tornou a genitália visível e, desse
modo, a excitação sexual pelo olfato foi suplantada pela visão. (BASTOS,
2006, p.85)
Com isso, o domínio do sentido da visão foi determinante para o afastamento de nosso
corpo das pessoas e dos objetos, e de um contato mais próximo do corpo com o ambiente.
58
Além da questão da evolução biológica, também uma construção social e histórica
em que o ver ganha supremacia em relação aos outros sentidos. Sendo um sentido que não
necessita de uma grande aproximação com o que se quer ver, colabora também para certo
distanciamento entre os corpos e entre os corpos e objetos.
Outros fatores, religiosos, culturais, sociais e históricos, agregaram-se para a
efetivação desse afastamento e de uma tradição de certo pudor em relação ao uso do corpo, do
toque, e da relação entre corpos.
Assim, a educação, também, não escapa desse afastamento e, por conseguinte, a
aprendizagem que utiliza o corpo como meio de facilitar a apreensão dos conteúdos é pouco
considerada.
A partir de um novo olhar para o corpo, aprofundamos nosso estudo nas questões
relativas a uma aprendizagem corporificada, na qual o corpo possa atuar com todos os seus
canais perceptivos, em busca do conhecimento, num diálogo permanente entre o eu e o
mundo.
Partimos do pressuposto que a percepção (numa abordagem fenomenológica e não
fisiológica) nos é possível a partir das oportunidades que temos de compartilhar
experiências significativas, nas quais nos for permitido utilizar nossos canais perceptuais.
Desse momento em diante, quando podemos nos beneficiar da experiência de forma integral,
agimos segundo e para onde essa percepção nos leva. E esta se dá através de nosso corpo,
imerso no ambiente em que estamos.
O pensamento de Merleau-Ponty retomado e revigorado pelas ciências cognitivas,
mais, precisamente, pela contribuição de Humberto Maturana e Francisco Varela, aponta-nos
uma percepção que emerge do corpo, em uma relação íntima e circular entre organismo e
meio. O diálogo entre a filosofia de cunho fenomenológico de Merleau-Ponty e o atual
59
contexto das ciências da cognição contribui, significativamente, para os estudos da
corporeidade, unindo diversas áreas do conhecimento e diferentes abordagens de intervenção.
Prioritariamente, os estudos da percepção de Merleau-Ponty aproximam-se do que
hoje é apresentado por Francisco Varela e sua abordagem da enação
7
, que quer dizer pôr em
ato, efetivar, apontando para a relação estreita que existe entre a ação e o agente do processo
cognitivo, uma cognição, na qual é revelado que a experiência humana é culturalmente
incorporada. (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003). Com este respaldo científico, a
relação corpo-cognição passa a ser vista sobre uma nova óptica, na qual o corpo é considerado
como fundamental no processo cognitivo.
Nesta abordagem há forte crítica às ciências cognitivas tradicionais, postulantes de um
modelo mentalista de representação, o qual considera a cognição sob dois pontos de vista: o
primeiro no qual a cognição consiste sempre em construir ou representar um mundo pré-
existente; e outro no qual a cognição deve ser explicada pela hipótese de que um sistema age
com base em representações internas. (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003). O
conhecimento, no enfoque tradicional seria visto como uma representação de um mundo
exterior, no qual o sujeito seria apenas o receptor das informações que emergiriam desse
mundo.
Trata-se de uma concepção cognitivista que prevaleceu vigente durante muitos anos,
nela havia uma separação entre o cognitivo e o extracognitivo. Um pensamento forjado num
processar invariante que tem como pressuposto um sujeito e um objeto dados, entre os quais
existe um espaço de representação. Segundo Kastrup (1999), essa é uma abordagem, mas não
a única, fundamentada em princípio no conhecimento como processamento de informações
similar ao cognitivismo computacional, no qual as informações nos chegam por meio de
7
Enação- O termo traduzido aqui como enação foi transposto do inglês enaction, que é utilizado pelo autor no
sentido de uma ação que faz “emergir”. Pode também significar “acionamento” (VARELA, 2003, p.78).
60
inputs e outputs. Nela somos apenas um lócus de recepção e processamento de informações,
sem nenhuma participação subjetiva que as modifique.
Essa é uma concepção de cunho cartesiano, objetivo e racionalista; uma tradição
dominante de nossa educação ocidental, que despreza a subjetividade de cada um de nós,
enquanto construtores do conhecimento.
A experiência, na tradição filosófica e científica ocidentais, opera uma
disjunção, uma redução e uma simplificação entre o “interno” e o “externo”,
o sujeito e o objeto, o corpo e a alma, a natureza e a cultura, a intuição e a
razão. Esses princípios, norteadores da construção do pensamento da
modernidade, empobreceram a experiência. Não nos permitem reconhecer
que o conhecimento das coisas precisa ser complementado com o
conhecimento do nosso conhecimento das coisas, isto é o conhecimento de
nós mesmos. (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003, p.127)
Com relação à concepção de representações, Varela, Thompson e Rosch (2003)
sinalizam que seriam dois os tipos de representação, uma está em sentido fraco, que seria
aquela que fazemos a partir do nosso modo particular de conhecer; segundo Kastrup,
“representação resultante da experiência e destituída de fundamentos.” (1999, p.193). Este
tipo de representação não é criticado por Varela e, sim, aquele que ele considera um modelo
de representação em sentido forte, no qual se supõe a existência de um mundo prévio e de um
conhecimento objetivo, relativo a tal mundo. Para Varela, não se tem conhecimento por meio
de uma “transferência de informação do remetente para o destinatário, mas, sim, pela
modelagem mútua de um mundo comum por meio de uma ação conjugada.” (1994, p.91).
Assim, o conhecimento não se de acordo com a simples absorção do que está fora de nós,
pronto para ser processado. Ele é dependente da atuação do agente :
Trata-se de uma interpretação contínua que não pode ser adequadamente
fechada num conjunto de regras e de pressupostos, porque depende da ação e
da história; é um mundo de significados de que nos apoderamos por imitação
e que se torna parte integrante do nosso mundo preexistente. Mais ainda, não
podemos nos excluir do mundo para comparar seu conteúdo com suas
representações: Estamos sempre imersos neste mundo. (VARELA, 1994,
p.78)
61
O conhecimento depende de um agente no mundo, que incorpora ou corporifica os
fenômenos do conhecer. A relação do ser no mundo, de seu comportamento e de suas ações,
faz parte de seu processo cognitivo, de sua evolução e de sua constante transformação
enquanto ser humano. Neste ponto percebemos uma aproximação efetiva do que postula
Varela com que nos aponta Merleau- Ponty ao falar do mundo como algo que depende da
nossa percepção.
O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto
ao mundo, comunico-me com indubitavelmente ele, mas o o possuo, ele é
inesgotável. “Há um mundo” ou antes o mundo; dessa tese constante de
minha vida não posso nunca inteiramente dar razão. (MERLEAU-PONTY,
1999, p.14)
Varela, Thompson, e Rosch nos apontam de que modo se referem ao termo
“corporificado”, dizendo que “(1) A cognição depende dos tipos de experiência que derivam
da existência de um corpo com várias capacidades sensório motoras e (2) Estas capacidades
sensório motoras individuais encontram-se também incrustadas num contexto cultural e
biológico mais abrangente”. Enfatizam ainda que os processos sensoriais e motores – a
percepção e a ação – são fundamentalmente inseparáveis da cognição vivida (2003, p.177).
O conceito de enação, formulado por Varela, contraria a formulação de um mundo
dado, apontando que somos partícipes da constituição do mundo a partir de nossas ações
sobre ele. “É alguma coisa em que temos parte graças ao modo como nos movemos, tocamos,
respiramos, e comemos.” (VARELA, THOMPSON e ROSCH, 2003, p.18).
Consideramos que aquilo que vivenciamos através de ações corporificadas está para
sempre incorporado ao nosso sistema cognitivo. Diferentemente, das situações nas quais
somos apenas observadores ou meros reprodutores de um conhecimento introjetado apenas
como informação; nestes casos, nossa tendência é esquecê-lo ou sequer absorvê-lo. Um
comportamento motor dificilmente é esquecido, uma vez aprendido permanece incorporado e
basta que o acionemos, para termos aos poucos fluência no mesmo. Andar de bicicleta, dirigir
62
automóvel, dançar ou jogar bola ficam para sempre aprendidos mesmo que não se faça com
freqüência esses movimentos. Diferentemente parece que não temos memória tão boa quanto
a corporal, quando tentamos recuperar um conhecimento aprendido apenas teoricamente
como é o caso de uma raiz quadrada ou uma equação diferencial.
Em sua obra Sobre a Competência Ética, Varela (1995, p.29) recupera uma citação de
John Dewey com relação a nossos hábitos e comportamentos, fazendo a distinção entre os
tipos de conhecimento que apresentamos. Explica este conceito comentando que um tipo de
conhecimento seria aquele que fazemos quase sem nos darmos conta, e outro aquele sobre o
qual precisamos refletir e que, segundo ele, é de outro gênero. Esses conhecimentos são
distintos por e nomeados por, derivando daí as expressões know-how e know-what (saber
como e saber o que).
Pode-se dizer que, mediante os nossos hábitos, sabemos como comportar-
nos. Passeamos e lemos em voz alta, saímos e descemos do elétrico,
vestimo-nos e despimo-nos, em suma, fazemos uma infinidade de atos úteis
sem neles pensar. Sabemos alguma coisa: isto é sabemos como fazê-los.[...]
Se a este trabalho prático quisermos dar o nome de conhecimento, então as
outras coisas que recebem também o nome de conhecimento, o
conhecimento de e acerca de coisas, o conhecimento que implica uma
reflexão e uma valoração consciente, permanecem coisas de outro gênero.
(DEWEY apud VARELA, 1995, p.29)
A citação nos remete ao conhecimento adquirido no decorrer da nossa vida de forma
espontânea e para o qual não atentamos com freqüência; um fazer que não é por nós
merecedor de atenção e que acontece sem nenhuma reflexão, simplesmente agimos: “O nosso
mundo vivido está tão ao alcance de nossa mão que não temos necessidade alguma de refletir
conscientemente sobre o que ele é e como o habitamos.” (VARELA, 1995, p.19).
Esse conhecimento sobre modos de agir e de se comportar que os autores consideram
como conhecimento e experiência é por nós absorvido na maioria das vezes, através da
imitação que acontece quando da interação sociocultural.
63
Voltando-se, aqui, ao deficiente visual, chamamos a atenção que até mesmo esses
comportamentos, absorvidos pelos que enxergam de uma forma quase que automática através
da imitação, são para eles parte de sua educação formal, tanto em casa quanto na escola. Não
são incorporados pela falta de um modelo visual ao qual possam recorrer. São então ensinados
e aprendidos, ou seja, também são incluídos como algo que vem através da interação com
outras pessoas. Na escola, nas atividades cotidianas são, formalmente, ensinadas as
habilidades de amarrar, abotoar, dobrar, vestir, calçar meias e sapatos, atividades que fazem
parte do currículo dos deficientes visuais.
A dificuldade na execução das Atividades da Vida Diária (AVD) é sem
dúvida, um dos grandes prejuízos acarretados pela cegueira e se não for
devidamente considerada, levará o indivíduo à contínua dependência. O
desenvolvimento das habilidades necessárias para realização das atividades
cotidianas constitui um dos aspectos mais importantes de um programa de
educação ou de reabilitação. (BRUNO e MOTA, 2001, p.46)
É importante mencionar que aqueles que perdem a visão quando adultos também
necessitam de uma reeducação das atividades cotidianas e passam por um treinamento nesta
área, através da disciplina chamada: Atividades de Vida Diária ou Prática (disciplina
obrigatória tanto na escola, como na reabilitação). É preciso aprender uma nova forma de
executar tarefas simples como dobrar uma camiseta, cortar os alimentos durante uma refeição
utilizando apenas o tato e o sentido háptico
8
, reorganizando-se cognitivamente para dar conta
dessas atividades. Nesta nova situação modifica-se sobremaneira o direcionamento de sua
atenção,
Algumas das transformações cognitivas da deficiência visual adquirida estão
diretamente relacionadas à redução da eficiência de habilidades e hábitos
anteriores, ou seja, de comportamentos caracterizados pelo automatismo,
como verter água em um copo, colocar pasta na escova de dente ou caminhar
pela rua. O comportamento automático é um comportamento sem atenção.
8
Gibson (1968) propõe o termo háptico, entendendo-o como um sistema perceptivo no qual o tato ativo é aquele
em que a iniciativa do contato parte do sujeito e não do ambiente juntamente com o tato passivo no qual o
sujeito recebe o estímulo que não escolheu. Kennedy (1978) define o sistema háptico como uma junção de: 1)
Toque, que engloba todas as possibilidades de toque usando a pele; 2) Contato, uma ampla categoria que inclui o
uso de instrumentos para intermediar o tato; 3) Exploração, diz respeito à percepção propriamente dita.
64
Sua utilidade na vida prática é justamente liberar a atenção, para outras
atividades. Assim, quando um vidente caminha para o trabalho, seguindo seu
percurso habitual, libera a atenção para pensar em algo que está lhe
preocupando, um compromisso que terá no final da tarde, para fazer projetos
ou evocar lembranças do dia anterior. A perda da visão, quando se instala,
produz uma redução das ações automáticas e um aumento da participação da
atenção nas simples tarefas da vida cotidiana. (KASTRUP, 2007, p.70)
Retomando a questão, podemos dizer que temos conhecimento e experiência,
quando utilizamos a percepção e agimos. A percepção imediata do pequeno espaço que
nossos sentidos alcançam, sendo essa interação nossa fonte de conhecimento e de ligação com
o mundo. Portanto, somos, também, aquilo que percebemos, e é a partir dessas percepções,
que construímos nosso saber e nossa subjetividade. Nosso viver está imerso nas experiências
pelas quais passamos, as quais qualificam e distinguem nossa individualidade. Somos únicos
porque interagimos com o mundo de forma particular através de nossos sentidos. Nesse
sentido Maturana e Varela (2004) aproximam-se de Dewey, com relação ao conceito de
experiência,
[...] nossa experiência está indissociavelmente amarrada à nossa estrutura.
Não vemos o “espaço” do mundo – vivemos nosso campo visual. Não vemos
as cores do mundo vivemos nosso espaço cromático. Sem dúvida,
habitamos um mundo. Mas ao examinarmos mais de perto como chegamos a
conhecer esse mundo sempre descobriremos que não podemos separar nossa
história de ações-biológicas e sociais a partir das quais ele aparece para
nós. É algo tão próximo de nós que fica muito difícil percebê-lo. (p.28)
Esse pensamento revela que as características biológicas e as situações vividas, as
quais são de caráter único para cada um de nós, fazem com que essa construção de mundo
seja, também, única e diferenciada. Pautada nos acontecimentos que permeiam nosso
processo de crescimento dentro de uma cultura e de um modus vivendi extremamente
particular. E isto não acontece de forma diferente para o deficiente visual pelo simples fato de
construir seu mundo sem o sentido da visão, o mundo que o deficiente visual habita é aquele
construído através de seus outros sentidos numa interação com o ambiente, com as pessoas e
objetos.
65
A experiência citada por Maturana e Varela (2004) das meninas indianas, resgatadas
em 1992 de uma família de lobos, elucida claramente essa questão. As duas foram criadas no
seio de uma família de lobos; quando encontradas, tinham oito e cinco anos respectivamente.
Apresentavam comportamentos daquele grupo social, os únicos que conheciam até então.
Tinham hábitos noturnos, caminhavam extremamente bem de forma quadrúpede e
apresentavam rostos inexpressivos. Recusavam o contato humano, preferindo a companhia de
cães ou lobos. Ao serem separadas da família lupina, entraram em depressão. A menor faleceu
e a mais velha sobreviveu, mudando alguns de seus hábitos. Entretanto, quando necessitava
correr, recorria ao quadrupedismo como melhor opção de comportamento motor. Este
comportamento estava estruturado e encarnado, apesar de seu corpo não estar adequado a ele,
pois seus membros superiores eram menores do que os inferiores como em qualquer corpo
humano, o que em princípio dificultaria essa posição. Todavia, era dessa forma que a menina
sentia-se confortável para correr. A situação descrita nos mostra também que a interação
homem-cultura-ambiente modifica e qualifica sua estrutura, seu comportamento e seu
conhecimento do mundo. “Nós, seres de carne e osso, não somos alheios ao mundo em que
existimos e que está disponível em nosso existir cotidiano.” (MATURANA E VARELA,
2004, p.146). Esse exemplo demonstra de forma bastante singular a propriedade das
observações de Maturana e Varela sobre o que designam ser a cognição.
Nesse sentido, não há um mundo dado a priori, o mundo é uma construção da qual
somos parte e com o qual nos relacionamos de forma contínua e permanente, através de nossa
experiência, “esse encadeamento entre ação e experiência, essa inseparabilidade entre ser de
uma maneira particular e como o mundo nos parece ser, nos diz que todo ato de conhecer faz
surgir um mundo.” (ibid. 2004, p.31).
66
Neste ponto, considerando as definições dos autores acima, reiteramos a sintonia entre
as idéias propostas desses com nosso assunto tema corpo-cognição e deficiência visual, bem
como para o diálogo com Dewey (experiência) e Merleau -Ponty (percepção).
A experiência ocorre continuamente, porque a interação da criatura viva com
as condições que a rodeiam está implicada no próprio processo da vida. Sob
condições de resistência e conflito, aspectos e elementos do eu e do mundo
implicados nessa interação qualificam a experiência com emoções e idéias,
de maneira tal que emerge a intenção consciente. (DEWEY, 1980, p.89)
A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma
tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se
destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual
possuo comigo a lei da constituição ele é o meio natural e o campo de todos
os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade
não habita apenas o homem interior, ou antes não existe homem interior, o
homem está no mundo e é no mundo que ele se conhece. (MERLEAU-
PONTY, 1999, p.6)
Nas duas citações, observa-se um estar no mundo em que o ser comparece sempre
como principal ator das ações, numa relação de figura e fundo, intimamente desenhada e
indissociável. É nessa concepção de um estar no mundo como agente que o modifica
enquanto modifica a si mesmo, que entendemos ser esta uma relação de profícuo encontro
teórico com a questão do conhecimento e do deficiente visual, numa perspectiva de
singularidades e de construções absolutamente originais. As teorias de Varela, Dewey e
Merleau-Ponty possibilitam o diálogo entre nosso olhar sobre os processos de aprendizagem
do deficiente visual, segundo um caráter participante, no qual suas oportunidades de
experiência, seus canais perceptivos e sua capacidade cognitiva estarão implicadas e
interligadas no processo do conhecer e do aprender. Mas, segundo Kastrup (1999) em um
aprender firmado com base nas especificidades exigidas pelo seu modo de ser e de habitar o
mundo, numa constante invenção de si. Uma aprendizagem que envolve invenção contínua da
maneira de ser e estar no mundo, criando um vínculo entre o aprender e a experiência. De
acordo com Dewey (1980), temos que:
Ora se a vida não é mais que um tecido de experiências de toda a sorte, se
não podemos viver sem estar constantemente sofrendo e fazendo
67
experiências, é que a vida é toda ela uma longa aprendizagem.
Simultaneamente vivemos, experimentamos e aprendemos. (p.115)
Aquele que não tem seu jeito próprio e particular como qualquer outro ser humano
de construir seu mundo e a partir dessa elaboração interagir com ele.
É claro que surgem diferenças e obstáculos para que essa pessoa conheça e construa
esse mundo, fruto, em meio a outros fatores, do distanciamento imposto socialmente, entre
corpos e corpos e objetos, como comentamos anteriormente; todavia, vencida essa distância,
suas experiências advindas de seus canais perceptivos conferem a possibilidade dessa
construção, de forma a potencializar suas abstrações e sua formação de conceitos, antes
elaborados majoritariamente por uma constante transmissão da informação. Borges (1980,
p.174), falando sobre sua própria cegueira, exemplifica o que ora foi dito, “A cegueira não foi
para mim uma desgraça total. Não deve ser encarada pateticamente. Trata-se de um outro
modo de vida e de mais um dentre os tantos estilos de vida dos homens.”.
O que queremos dizer é que, na maioria das vezes, o cego não fica paralisado por sua
condição, ele recorre a outras vias perceptivas para organizar sua vida, constrói imagens
mentais (auditivas, táteis, olfativas, cinestésicas), utilizando-se tanto de suas experiências
quanto das explicações de outras pessoas. Quando tem condições de vivenciar o que lhe foi
apenas dito oralmente, potencializa o que antes era uma informação. Desta forma tem uma
oportunidade de viver corporalmente o que antes era só uma aproximação da realidade,
formada através de um olhar que não é o seu. Assim, afasta-se de um conhecimento
verbalista, sem profundidade e com pouca ou nenhuma significação para ele. Esta situação de
possível verbalismo, caso não seja debelada, favorece o desinteresse, interferindo
negativamente em sua motivação para adquirir conhecimentos futuros. Caracteriza-se desse
modo um conhecimento baseado no modelo da transmissão da informação. então uma
diferença patente entre um conhecimento forjado na abstração das palavras versus outro
forjado na experiência e na concretude.
68
Varela (2003) elucida bem essa situação quando fala do conhecimento como enação,
como algo corporificado e dependente dos tipos de experiência que temos advindas de um
corpo dotado de capacidades sensório-motoras individuais. Enfatiza os processos sensoriais e
motores, no caso, a percepção e a ação, como inseparáveis da cognição vivida. Em seu texto
“O Desencantamento do Abstrato, diz que a realidade não é projetada como algo dado: ela
depende do sujeito da percepção não porque ele a “constrói” por um capricho, mas porque o
que se considera um mundo relevante á inseparável da estrutura do percipiente (2003, p.79).
O mundo, segundo a abordagem enativa, depende da atividade daquele que percebe,
não sendo um mundo preestabelecido, independente do sujeito da percepção; compreende a
ação no ambiente e as relações do sujeito através de suas estruturas sensório-motoras.
Assim, a cognição depende da ação do sujeito no mundo e de uma criação fruto dessa
relação. E, não, conseqüência da percepção de uma realidade a priori.
Por conseguinte, a cognição não é formada por representações, mas por
ações corporizadas. De igual modo, podemos dizer que o mundo por nós
conhecido não é pré-definido, mas sim efectivado (enacted) mediante a
nossa história de conexão estrutural, e os eixos temporais que articulam a
efectivação estão radicados no número de micromundos alternativos
activados em cada situação. Tais alternativas são a fonte quer do sentido
comum quer da criatividade na cognição. (VARELA, 1995, p.27)
Esta posição opõe-se basicamente ao modelo no qual a construção do conhecimento se
dá pela transmissão da informação. Um modelo tubular em que o receptor é um mero
acumulador de informações vindas de fora. Maturana e Varela mencionam esse modelo,
denominando-o de metáfora do tubo: “segundo a qual a comunicação é algo que se produz
num ponto, é levado por um conduto (ou tubo) e é entregue no outro extremo, o receptor.”
(2004, p.218).
Varela não imagina um mundo pré-definido, no qual o sujeito é apenas depositário do
que nele acontece e no qual a cognição se daria por um processo representativo deste mundo.
Na abordagem enativa, a realidade não é um dado: “depende do percipiente, não em virtude
69
de se construir por capricho, mas porque o que conta num mundo relevante é inseparável do
que a estrutura do percipiente é.” (VARELA, 1995, p.23).
Sendo nosso interesse a parte da cognição relativa à aprendizagem, esta idéia é uma
rica fonte de apoio. Consideramos a aprendizagem como algo sempre em construção e não
como um produto, advindo de intervenções temporais, nas quais em um espaço de tempo
determinado ter-se-á um conhecimento pronto e acabado produto de uma transmissão do
saber.
A gica circular do aprender aponta para o inacabamento do processo. O
aprendizado jamais é concluído e sempre abre para um novo aprendizado.
Ele é contínuo e permanente, não se fechando numa solução e não se
totalizando em sua atualização, precisando por isso ser sempre reativado.
(KASTRUP, 2005, p.1280)
A partir dessas reflexões, podemos dizer que a princípio toda experiência tem um
caráter de aprendizagem, incorporando-se ao nosso acervo de conhecimentos e contribuindo
para o que, no futuro, iremos aprender e, mais adiante, ensinar, em um bailado criativo, no
qual os pares, professor e aluno, ou mestre e aprendiz, estão sempre trocando de lugar, de
acordo com os compassos e descompassos da dança
.
CAPÍTULO II- Rastreando pelos caminhos em busca de uma aproximação entre a
psicologia cognitiva e a deficiência visual
II.1- Algumas considerações
70
Esta parte do estudo procura fazer uma interlocução entre o tema da deficiência visual
com questões da psicologia cognitiva. Entretanto, nessa busca investigativa precisamos
retomar alguns pontos mencionados sobre nossa postura com relação ao termo deficientes
visuais. Consideramos que o termo abrange uma população com características semelhantes,
no entanto, sabemos que existem inúmeras diferenças entre os próprios deficientes visuais e
qualquer generalização deve ser feita com prudência.
Diversos fatores concorrem para diferenças marcantes entre os deficientes visuais, tais
como: a idade em que ocorreu a cegueira, a oportunidade ou não de terem sido estimulados
precocemente, as vivências educacionais por que passaram, e a interação social que puderam
presenciar e participar. Todos esses fatores apontam que o olhar para o deficiente visual tem
que ser individualizado. Certos comportamentos são peculiares a todos, mas mesmo assim
com gradações e intensidade diferentes. As definições médicas e educacionais estão listadas
no final do trabalho, entretanto o que se pretende durante todo o estudo é considerar o
indivíduo e não o deficiente como se costuma chamar aquele que apresenta uma diferença da
maioria. Nossa idéia aproxima-se do que Ormelezi (2000) sinaliza,
Tratar a deficiência pelo enfoque do respeito à diferença e não do déficit e da
normalização modifica significativamente as relações nos ambientes
educacionais e, portanto, as metodologias para apropriação do conhecimento
pela pessoa portadora de deficiência visual. É dentro deste princípio que esta
pesquisa se coloca, buscando trazer à discussão a idéia da particularidade
que existe no processo de desenvolvimento do cego, como também refletir
sobre a dimensão na qual a constituição de sujeito se coloca para além da
diferença sensorial, apesar de marcada por ela. (ORMELEZI, 2000, p.6)
Segundo HATWELL (2003), são as situações do cotidiano as que mais diferenciam os
deficientes visuais entre si, o que confere com nossa experiência neste campo.
Desconsiderar o caráter singular de cada encontro da pessoa com o mundo, seja ela
deficiente visual ou não, é submetê-la a uma classificação que desconsidera as características
individuais. Diante da diferença e no caso em questão diante da cegueira, cada ser humano
percorre experiências distintas, mais ou menos, enriquecedoras, ou mais ou menos
71
limitadoras, as quais formarão sua bagagem para lidar também com a diversidade do mundo e
das pessoas. Portanto, não existe “o cego” e, sim, experiências que acontecem com os cegos,
as quais pela falta da visão determinam atitudes e fazem com que uma gama de
comportamentos semelhantes faça parte do perfil do deficiente visual.
Na busca sobre aspectos da cognição dos deficientes visuais consideramos que
algumas situações que permeiam o imaginário com relação a esse grupo, e que são
constantemente discutidas merecem aprofundamento. Destacamos duas delas para estudo: a
compensação e a aprendizagem da visão no propósito de atenuar alguns equívocos.
II.1.1-A Compensação
Uma idéia que ainda persiste e sobrevive com relação à cegueira é a questão da
compensação, palavra usada com diferentes acepções: psicológicas, fisiológicas, sociológicas
entre outras, quando se comenta sobre a deficiência de um modo geral. A questão surge na
tentativa de se obter respostas para a atuação daquele indivíduo de forma a compensar o
defeito ou a falta. No caso da deficiência visual, comumente sugere uma situação de
substituição, ou seja, de um aperfeiçoamento de um sentido na falta de outro. Ousamos dizer,
uma falsa idéia de que a privação de um sentido possa ser compensada biologicamente.
Na literatura científica e na opinião pública tem arraigada fortemente a falsa
idéia de que existe certa compensação biológica do defeito. Crêem que a
natureza ao privar-nos de um dos sentidos, nos recompensaria com um
desenvolvimento incomum dos restantes, que os cegos possuem um tato
extraordinariamente agudo, que os surdos se distinguem por uma visão de
particular agudeza. (VYGOTSKI, 1997, p.61)
Num estudo recente Ormelezi (2000) também comenta sobre a compensação como
sendo um ponto importante a ser discutido quando se fala da cegueira,
72
A idéia de compensação, popular ou cientificamente, sempre esteve presente
na referência à condição da cegueira. Na fisiologia, a teoria da substituição
sustenta a idéia de que quando um órgão faltante, como um rim ou um
pulmão ou cuja falha inviabiliza a realização de sua função, outro terá seu
funcionamento otimizado, assumindo aquela função parcial ou totalmente.
Essa teoria foi erroneamente utilizada na cegueira, promovendo uma
associação direta entre a ausência da visão e sua substituição por outros
sentidos, criando falsas expectativas sobre uma ultra-sensibilidade auditiva
no cego, por exemplo. (ORMELEZI, 2000, p.35)
Com esse quadro, um dos entendimentos do que seria essa compensação é a idéia de
uma substituição ou mesmo de uma adaptação sensorial, na qual, os sentidos remanescentes
compensariam a falta da visão. O que seria a grosso modo dizer que, por estar privado de um
sentido, o indivíduo cego imediatamente passaria a escutar melhor, ter melhor olfato, melhor
paladar e melhor tato do que as pessoas que vêem, compensando desse modo a falta da visão.
Uma criança não é mais ou menos capaz por ser cega. A cegueira não
confere a ninguém qualidades menores nem potencialidades compensatórias.
Seu crescimento afetivo dependerá exclusivamente das oportunidades que
lhe forem dadas, de forma pela qual a sociedade a vê, da maneira como ela
própria se aceita. (BRUNO e MOTA, 2005, p.93)
Abordando este assunto em sua obra Tratado de Defectologia, Vygotski nos traz uma
longa discussão sobre o tema. Destaca que as opiniões sobre a psicologia dos cegos pode ser
representada numa linha de tempo que se inicia na antiguidade e vai até os dias atuais (no
caso no momento em que escrevia seu texto). Distingue três fases bem marcadas com relação
ao assunto. A primeira que denomina como stica, em que os cegos eram muitas vezes
vistos como pessoas com poderes específicos advindos de sua condição, tais como: a
premonição e a adivinhação, entre outros. A segunda como ingenuamente biológica, na qual a
cegueira seria compensada fisiologicamente pelo organismo com a potencialização dos outros
sentidos. Finaliza com a terceira fase, que denomina como científica ou sociopsicológica na
qual a interação com o ambiente e com as pessoas faz com que o indivíduo cego aguce seus
outros sentidos para se integrar, e sinaliza sobre o entendimento do que seria a compensação
de um sentido na falta de outro. Adverte que esta compensação estaria fortemente atrelada ao
73
fator social, ou seja, de como a pessoa com defeito criaria socialmente formas de viver, para
compensar o defeito.
Com relação à educação pondera que os conflitos que surgem na criança cega ao
entrar em contato com a vida não são tanto da cegueira em si, mas das situações de
enfrentamento social que passam a definir o comportamento dessa criança. Adverte que a
tarefa da educação seria então de introduzir a criança deficiente na vida social e criar a
compensação de sua deficiência física ou sensorial através de uma boa adaptação; diz ainda
que esta tarefa se define como uma forma de utilizar modos diferentes de conexão com a vida
no sentido de alcançar um bom desempenho social utilizando outros caminhos. Com relação
específica aos cegos Vygotski (1997) menciona ainda que,
(...) não existe nos cegos um desenvolvimento acentuado das funções do tato
ou do ouvido; que pelo contrário estas funções podem estar desenvolvidas
nos cegos em menor medida que nos videntes; a compensação não surge da
compensação fisiológica direta do déficit da visão, senão de uma
compensação sociopsicológica geral que segue um curso muito complexo e
indireto, sem substituir a função suprimida nem ocupar o lugar do órgão
deficiente.(p.101)
O que se pode dizer a esse respeito, tentando entender e ao mesmo tempo explicar o
que seria esse outro modo de se conectar ao mundo social pode ser comprovado com o
simples ato de fecharmos os olhos. Esse ato nem de longe nos aproxima da maneira de
perceber o mundo de alguém cego, entretanto, pode nos ajudar nos aproximando um pouco do
entendimento daquilo que ocorre conosco na falta de um sentido.
Quando fechamos os olhos ou quando nos faltam condições para ver, como por
exemplo, na falta de luz, imediatamente passamos a dirigir nossa atenção aos estímulos
captados pelos outros sentidos. Temos a impressão de estarmos ouvindo melhor do que antes,
percebendo tatilmente mais diferenças no ambiente como, por exemplo, a passagem de uma
corrente de ar, ou um som longínquo anteriormente despercebido. Interessante é pensar que
repetimos esse tipo de comportamento (fechar os olhos) naturalmente, quando queremos focar
74
nossa atenção sobre alguma tarefa que não envolva o sentido da visão. No momento em que
fechamos os olhos para ouvir música, rezar, meditar, entre outras ações, modificamos o foco
de nossa atenção. Parece que ao isolarmos o sentido da visão, concentramo-nos melhor na
execução das tarefas mencionadas, as quais prescindem desse sentido para sua execução. Com
respeito à redireção da atenção em deficientes visuais Kastrup (2007) menciona que,
No domínio da psicologia cognitiva da deficiência visual, o tema da atenção
surge no âmbito da discussão sobre o problema da compensação
sensorial.[...] Embora bastante utilizada, a noção de compensação não deixa
de colocar muitos problemas.O apelo excessivo a ela pode levar a pensar que
todo o problema da reorganização cognitiva dos que perderam a visão
consiste em compensar uma perda para, enfim, continuar conhecendo o
mundo como fazem os videntes, apenas seguindo, para isto, caminhos mais
longos.(p.70-71)
Telford e Sawrey (1971) compreendem esse fato como um ajustamento dos órgãos dos
sentidos, salientando tanto uma correlação entre eles para uma melhor percepção como uma
relação de competição entre os mesmos. A conjunção dos sentidos para a execução de
algumas tarefas á bem-vinda; todavia, para a execução de outras é fator de dispersão. Estes
autores mencionam: “Ao mesmo tempo em que vários ajustamentos dos órgãos dos sentidos
aumentam a potência dos estímulos pertinentes, ocorrem reações concomitantes, destinadas a
abafar ou bloquear estímulos competidores.” (1971, p.172). A mesma idéia é retomada por
Hatwell, “a cegueira não provoca uma mudança nas capacidades sensoriais propriamente
ditas, mas modifica sem dúvida a orientação da atenção e o modo de tratamento dos dados
auditivos.” (2003, p.85).
No momento em que vendamos os olhos, nossos sentidos remanescentes o
aguçados, que o sentido da visão, para nós videntes parece ser o que mais nos
informações sobre o nosso entorno. Muitos trabalhos, tais como os de: Rathgeber (1981),
Cobo, Martins e Bueno (2003), partilham a idéia que a visão é responsável pela mediação de
70% a 80% das informações que o meio nos fornece, os últimos escrevem que,
Considerando que 80% das informações recebidas do meio são adquiridas
pela via visual podemos fazer uma idéia da quantidade de informações
75
que deixam de ser recebidas quando não se dispõe desse sentido, e mais
ainda se temos em mente o caráter globalizador da visão. (COBO,
MARTINS e BUENO, 2003, p.99, grifo nosso)
Essa idéia bastante difundida nos estudos sobre cegueira, muitas vezes, não esclarece
que o percentual comentado se refere a pessoas que enxergam. Além do que, não foi
mencionada pelos autores a fonte de pesquisa e consequentemente que tipo de experimento
levou-os a chegar a esta conclusão. Merece então um cuidado e uma contextualização para
que não dê margem a interpretações errôneas, com relação aos deficientes visuais. A premissa
está relacionada aqueles que enxergam, pois realmente captamos a maioria das informações
usando o sentido da visão, que é o sentido que desde tenra idade nos guiou e capturou por
mais tempo nossa atenção. Na maioria dos espaços e no caso que particularmente nos
interessa na escola, somos formados olhando a lousa, lendo os livros, observando cartazes.
São raros os momentos nos quais somos instigados a usar nosso corpo como um todo,
estimulando todos os nossos sentidos na atividade escolar.
A idéia descrita acima apoiada nesse percentual matemático deveria ser
contextualizada, que provoca um entendimento generalizante em relação à cognição de
pessoas cegas. Quando utilizado em trabalhos sobre cegueira, esse pensamento revela-se
altamente limitador da competência cognitiva dos deficientes visuais.
No que tange ao processo de comunicação, as pessoas cegas realmente queixam-se
bastante do fato de não poderem acompanhar com a mesma riqueza de detalhes, como os que
enxergam, peças de teatro, comerciais e outras manifestações culturais. Até mesmo em
conversas, a expressão facial do interlocutor, a qual pode enfatizar o que está sendo dito, não
é percebida por aquele que não enxerga. Não forma neste caso de se compensar a falta da
visão. O gestual escapa-lhes. Um olhar sugestivo, uma intenção corporal, qualquer cena em
silêncio rouba-lhes o sentido e a compreensão da mesma.
9
9
Atualmente um movimento no sentido de se amenizar estas dificuldades de entendimento de filmes, peças
teatrais e outras manifestações culturais. O problema seria resolvido com a obrigatoriedade do que é chamado de
76
Todavia, no campo educacional, tendo em vista nossas observações durante todo o
tempo em que trabalhamos na área, teríamos outra visão desse mesmo percentual, caso
contrário restaria para os deficientes visuais apenas 20% de possibilidades de apreensão das
informações, não só nas atividades escolares, mas em todas aquelas que exigem esforço
cognitivo. Esse número nos parece subestimar a capacidade cognitiva dos deficientes visuais
se levarmos em conta sua competência para realização de tarefas e de seu sucesso escolar
quando lhes são dadas as condições adequadas. Enfim esse dado citado em muitos trabalhos
sobre deficiência visual não está, a nosso ver, amparado em pesquisas com deficientes visuais,
é apenas uma transposição de um dado em relação às pessoas que enxergam como atuando da
mesma forma para as pessoas cegas. Seria mais uma crença bastante vinculada ao paradigma
visuocêntrico.
Repensando a questão, poderíamos inferir algo a respeito, tentando nos afastar desse
paradigma. Não é porque não podemos ver os planetas, por exemplo, que sejamos incapazes
de entender seus movimentos de rotação, translação e fazermos uma imagem mental de sua
posição relativa em relação ao planeta Terra. Este é um conhecimento que nos é dado a partir
da representação gráfica ou tátil da órbita terrestre. Nesse particular também não podemos nos
utilizar da visão; entretanto, somos capazes de compreender o conceito. Desse modo,
podemos refletir e entender que a falta da visão nem sempre é fator impeditivo para o
entendimento de determinados conceitos. Se forem dadas condições para a percepção e
posterior formação de uma imagem mental do que se quer explicar, o deficiente visual
utilizando seus outros sentidos certamente entenderá o conceito. Através da percepção tátil,
auditiva e cinestésica, o deficiente visual pode compreender a maioria dos conceitos. Mas isso
não se de forma imediata, como no caso da compreensão feita através do uso da visão.
áudio-descrição, ou seja, um sistema de descrição das cenas em silêncio, ouvidas apenas pelos deficientes visuais
através de fones de ouvido em teatros e cinemas, e de uma adaptação da transmissão pela televisão, através de
uma tecla similar a tecla SAP.
77
um tempo maior para a compreensão de conceitos táteis, devido às características desse
sentido que como já exposto diferencia-se da visão.
De acordo com J. Gibson (1962), existem importantes diferenças entre o tato e a visão;
em seu artigo Observations on Active Touchcomenta sobre elas. Diz que há similaridades e
diferenças entre o tato ativo (tato de exploração de objetos, com movimento das mãos) e a
percepção visual. Observa que tanto a visão quanto o tato podem perceber superfícies sólidas,
texturas físicas as quais podem ser observadas pelos dois sentidos, menos as cores, que não
são tangíveis e consequentemente não podem ser apreciadas tatilmente. Entretanto, a
temperatura de um corpo só pode ser observada através do tato, sendo imperceptível ao olhar.
As mãos podem explorar os objetos como um todo rapidamente, enquanto que a visão
observa a face do objeto que está na sua direção. Muitas outras características dos objetos
podem ser observadas pelo tato, tais como: o peso e a consistência. Rosa e Ochaita (1995)
mencionam que existem importantes diferenças entre a percepção e o processamento da
informação mediante o tato e a visão. Afirmam que a captação da informação mediante o tato
é muito mais lenta que a proporcionada pelo sistema visual e lembram que essa informação
tem caráter seqüencial. Consideram que isto lugar a uma maior carga na memória de
trabalho, quando os objetos a serem explorados são grandes e numerosos.
Hatwell (2000) diz que o tato se distingue da visão por ser uma modalidade de contato,
na qual os receptores estão por todo o corpo. Comenta que o tato tem uma apreensão
fragmentada, mais ou menos coerente, e algumas vezes parcial e sempre muito seqüencial,
que sobrecarrega a memória de trabalho. Isto porque ao fim da exploração, um trabalho
mental de integração e de síntese tem de ser feito para chegar a uma representação unificada
do objeto.
Todo um esforço de memória recente tem que ser realizado para voltar-se à primeira
percepção tátil do objeto, associando cada uma delas para enfim ter o entendimento do todo
78
do objeto.
10
Essa ação, no entanto, não se todas as vezes que o deficiente visual toca em
alguma coisa. Assim como nós, ele é capaz de reconhecer o objeto, quando este lhe é
conhecido, tocando em apenas uma parte do mesmo.
Hatwell (2003) diz ainda que o tato é a modalidade perceptiva mais capaz de suplantar
a visão deficiente, pois pode informar rapidamente todas as propriedades dos objetos: textura,
temperatura, peso, maciez ou dureza, propriedades que a visão não é capaz de captar.
Voltando a compensação, o que podemos dizer a esse respeito, tentando explicar
melhor a questão, seria que o cego, focando sua atenção nos outros sentidos de que dispõe e
utilizando-se perfeita e ininterruptamente dos mesmos, confere a estes, por sua utilização
constante, grande habilidade e, por conseguinte, a possibilidade de um melhor desempenho.
De acordo com Vigotsky (1997, p.105)
Não devemos nos interrogar sobre a diferença quantitativa, mas sim
qualitativa funcional da mesma atividade em cegos e videntes. Em que
direção se desenvolvem a atenção do cego? Isto é o que devemos nos
perguntar. E aqui, nas particularidades qualitativas todos concordam.
Exatamente como existe no cego a tendência de desenvolvimento da
memória de uma maneira específica, existe a tendência a um
desenvolvimento específico da atenção.
Diderot indica algo a esse respeito quando relata uma passagem na qual utiliza o
conceito de exercício para se referir a habilidade de um cego ao reconhecer e distinguir
medalhas falsas de verdadeiras, deixando antever que não haveria uma compensação
fisiológica e sim o aperfeiçoamento e a destreza de um dos sentidos, no caso o tato. O termo
compensação não se aplicaria neste caso, pois se assim fosse qualquer cego reconheceria
naturalmente as moedas, o que é fato para aquele deficiente visual que aperfeiçoa sua
habilidade tátil, vale lembrar que muitos deficientes visuais apresentam dificuldades quanto à
10
Transcrevemos aqui uma anedota contada no livro O que é ser cego, pelo professor José Espínola Veiga.
Vamos aqui a uma conhecida anedota da opinião de três cegos que apalparam diferentes partes de um elefante
que passou por eles. Diz a anedota: infeliz do cego que apalpou as orelhas do elefante disse que o bicho era
como uma ventarola; o que apalpou a pata disse que o bicho era como uma árvore; o que apalpou as ilhargas
disse que o bicho era como uma parede (1983, p.30).
79
leitura do sistema Braille justamente por não terem uma habilidade tátil capaz de distinguir os
pontos em relevo, o que pode em princípio ratificar a idéia da não compensação.
O exemplo do ilustre cego prova que o tato pode tornar-se mais delicado que
a vista, quando aperfeiçoado pelo exercício; pois, percorrendo com as mãos
uma rie de medalhas, ele discernia as verdadeiras das falsas, embora as
últimas fossem tão bem contrafeitas a ponto de enganar um conhecedor
dotado de bons olhos. (DIDEROT, 1979, p.17)
Ainda sobre esta questão, podemos pensar que se a visão pudesse ser compensada por
qualquer outro sentido, as pessoas cegas não teriam tantas dificuldades causadas pela falta da
visão como, por exemplo, aquelas ligadas à sua locomoção.
Fraiberg e Freedman (1964), Hatwell (2003) referem-se à movimentação no espaço
como uma das maiores dificuldades a serem superadas pelo indivíduo cego. Neste caso,
podemos perceber que apesar dos sentidos remanescentes ajudarem o cego a se locomover,
eles não substituem ou compensam a falta da visão. O domínio do espaço é algo que somente
a visão pode trazer de imediato, esta questão de tempo não pode ser compensada. Para o cego
este espaço terá que ser explorado tatilmente e cinestesicamente, tarefa que demanda muito
mais tempo em sua execução. Apesar dos deficientes visuais caminharem pelas ruas e se
locomoverem na cidade, isto é fruto de treinamento e de uma aprendizagem que demanda
grande esforço cognitivo. A memória fator fundamental para a construção de mapas mentais
do ambiente bem como a atenção aos ruídos, odores e pistas ambientais constituem um apoio
para o domínio do espaço que não se naturalmente, advém de uma constante observação e
atenção ao ambiente enquanto caminha.
Hatwell (2003) comenta que a movimentação e a passagem de pequenos espaços para
grandes espaços é uma dificuldade, senão uma das maiores para a pessoa cega. Quanto à
compensação, sua idéia é a de que, de uma maneira geral, admitimos hoje que a cegueira não
modifica as entradas dos sentidos por eles mesmos, mas pode orientar diferentemente a
80
atenção dos cegos. Pelo que é dito aqui, os cegos direcionam sua atenção para os sentidos
remanescentes, dando a impressão de que eles são mais aguçados.
Esta discussão sobre os mecanismos cognitivos que levam à possível compensação
ainda não encontrou uma resposta definitiva, embora haja uma forte corrente no sentido da
não compensação, podemos ser surpreendidos pelos avanços nas investigações como
podemos destacar pela citação a seguir:
Foi demonstrado que em surdos de nascença (especialmente se sempre se
comunicaram pela linguagem dos signos) algumas das partes auditivas do
cérebro são realocadas para uso visual. Também ficou provado que em cegos
que lêem em Braille o dedo leitor tem uma representação excepcionalmente
grande nas partes táteis do córtex cerebral. È de se suspeitar que as partes
táteis (e auditivas) do córtex são alargadas nos cegos e podem até se
expandir para o que normalmente é o córtex visual. O que sobra do córtex
visual sem o estímulo visual, pode ficar em grande parte sem se desenvolver.
Parece provável que tal diferenciação do desenvolvimento cerebral
acompanhe a perda de um sentido na infância e a intensificação
compensatória de outros sentidos. (SACKS, 1995, p.153)
Para nós o termo compensação não deveria ser aplicado à questão da cegueira, pois
carrega uma idéia de substituição das funções da visão com o desenvolvimento acentuado dos
outros canais sensoriais. Esta premissa traz a nosso ver um equívoco de princípio no qual está
embutida a comparação e equiparação entre cegos e videntes, e não uma constituição e uma
organização cognitiva diversa e singular da pessoa cega. O termo compensar” nos remete
mais à falta do que a uma diversidade na qual o indivíduo através de sua autopoiese estrutura-
se para viver e transitar no meio social em que está inserido de acordo com suas
possibilidades.
II.1.2-Temos que aprender a ver?
A maioria das pessoas pensa que por ter os olhos fisiologicamente perfeitos está
imediatamente capacitada a ver. Desconhece que a visão é um fenômeno psicológico e que
passamos a ver se formos estimulados a isso, temos que aprender a ver. Mesmo tendo nosso
81
aparato visual em perfeitas condições, não conseguiríamos enxergar, caso fossemos mantidos,
desde o nascimento, numa sala escura. A ação e a interação de nosso aparato visual com o
ambiente são fundamentais para que nossa visão se desenvolva. Esse é mais um dado que
aponta para a importância da experiência nas ações sensoriais.
A aprendizagem visual não depende apenas do olho, mas também da
capacidade de o cérebro cumprir sua função de pegar qualquer tipo de
informação que lhe chegue, codificá-la, classificá-la, organizá-la em imagens
e guardá-la para associação com outras mensagens sensoriais, que se
evocada em outro momento. (MARTIN e BUENO, 2003,p.179)
Varela (1995, p.23) aponta um estudo de Held e Hein (1956), no qual dois grupos de
gatinhos cresceram no escuro e foram expostos à luz em condições controladas. O primeiro
grupo movia-se livremente, carregando um carrinho no qual havia uma cesta em que se
encontrava o segundo grupo de animais. Este grupo, apesar de acompanhar dentro da cesta
toda a movimentação, encontrava-se passivo, não exercitando ações de observação do
caminho e nem de locomoção. Os dois grupos participavam de formas diferentes da
experiência visual; assim, o grupo que participou da experiência dentro da cestinha, ao ser
solto comportou-se como se fosse cego. Varela conclui que “os objetos não são vistos
mediante a extração visual de características, mas por meio da regulação visual da ação”.
Podemos inferir que o sentido da visão forja-se na medida em que o utilizamos ou não,
ou seja, se dá na experiência. O funcionamento visual é um comportamento aprendido:
“quanto mais experiências visuais uma criança tiver, mais condutos cerebrais serão
estimulados, o que dará lugar a uma acumulação de imagens visuais variadas e de
recordações.” (BARRAGA, apud MARTIN e BUENO, 2003, p.45). Aquele indivíduo que
nasce com o olho perfeito não está imediatamente capacitado a ver.
Ainda que para um cego seja possível recuperar a sensação visual, isto não garante que
a percepção visual seja recuperada de imediato. O caso citado por Sacks, em seu texto “Ver e
82
não Ver”, no qual a operação de uma pessoa para recuperação da visão não alcança sucesso
pela resposta visual, exemplifica bem esta situação.
A percepção visual é construída na interação olho-cérebro, e a visão, o ver algo, é um
comportamento aprendido através da ação e da estimulação que o ambiente fornece ao olho.
Nesta relação, que se na experiência, passamos a entender e reconhecer o que
estamos vendo, percebemos contornos, discriminamos formas, adquirimos a noção de
profundidade, e vemos o mundo em perspectiva entre outras habilidades. Neste ato de
interação, tanto da visão com o ambiente, como dela com todos os nossos outros sentidos,
memorizamos percursos, rostos, cores; enfim, imagens com as quais criamos o nosso mundo.
Sacks (1995) diz a esse respeito que “não se , sente ou percebe em isolamento a
percepção está sempre ligada ao comportamento e ao movimento, à busca e à exploração do
mundo. Ver não é suficiente; é preciso olhar também.” (p.132).
O que foi dito está bem explicado no texto de Sacks (op.cit). A história de um cego
precoce
11
que depois de adulto opera os olhos, por insistência de sua noiva, que mesmo
obtendo sucesso na cirurgia demonstra dificuldade para usar a visão. A falta de conexões
cerebrais, advindas da experiência do ato de ver, fazia falta, dificultava a discriminação das
imagens percebidas. Para Virgil, nome do personagem em questão, as imagens eram confusos
borrões sem identificação.
Neste sentido, cabe fazermos a distinção entre percepção visual e sensação visual, para
que entendamos perfeitamente o que aconteceu neste caso.
O que denominamos “sensação” e o que chamamos “percepção” diferem um
pouco nos respectivos significados”. A sensação se refere a simples
consciência dos componentes sensoriais e das dimensões da experiência. O
perceber supõe as sensações acrescidas dos significados que se lhes atribuem
em resultado da experiência. (TELFORD e SAWREY, 1971, p.179)
11
Aquele que perdeu a visão até um ano (HATWELL, 2003).
83
A cirurgia de Virgil devolveu a ele de imediato a sensação visual, e mesmo assim, essa
sensação era acompanhada de borrões que atrapalhavam a discriminação das imagens.
Todavia, ainda não conferia ao paciente a percepção visual.
Nós que nascemos com a visão mal podemos imaginar tal confusão. Já que,
possuindo de nascença a totalidade dos sentidos e fazendo as correlações
entre eles, um com o outro, criamos um mundo visível de início, um mundo
de objetos, conceitos e sentidos visuais. Quando abrimos nossos olhos todas
as manhãs, damos de cara com um mundo que passamos a vida aprendendo
a ver. O mundo não nos é dado: construímos nosso mundo através de
experiência, classificação, memória e reconhecimento incessantes. (SACKS,
1995, p.129)
O que tais estudos fazem entrever é que o mundo não nos é dado, é construído na
experiência. Nosso acervo de conhecimento advém das experiências pelas quais passamos ao
longo de nossa existência. São elas que nos abrem novos caminhos e possibilidades de estar
no mundo. Este acervo, que podemos comparar a uma biblioteca, com livros que
consideramos apaixonantes, outros que nos são em princípio indiferentes e outros que não
desejamos ler. Seria, neste sentido, nossa coleção de experiências com as quais nos
relacionamos das mais diferentes formas. São estas as que neste caso da experiência visual
trazem significado ao que é visto.
Voltando ao caso de Virgil e tentando analisar o que se passava, questionamos. Que
experiência era aquela com a recuperação de Virgil na qual a expectativa do cirurgião
frustrara-se? Virgil não recuperara a visão, como de costume ocorria em suas operações
anteriores; o cirurgião operava pessoas que tinham visto a bem pouco tempo antes da
cirurgia, sendo então um sucesso a recuperação da visão da maioria de seus pacientes.
Deparava-se ao tirar os tampões dos olhos daquele paciente, com um novo quadro no qual o
sucesso da operação não significava devolver a visão. E o que dizer da noiva de Virgil,
imaginando um novo companheiro que mudaria de atitude, construindo a partir da
recuperação da visão uma nova relação com o mundo? Por fim, o que dizer de Virgil? Todos
pareciam estar vivendo uma experiência, mas uma experiência inesperada. Principalmente
84
Virgil, que experimentava algo completamente novo, a experiência da sensação visual e a
expectativa em princípio frustrante de uma percepção visual. Como foi visto anteriormente,
Virgil teria que aprender a ver, todavia este era um fato novo e inesperado para todos. O
sucesso cirúrgico não significava a recuperação da visão. Todos estes personagens viviam
naquele momento algo semelhante ao que Kastrup (1999) nos relata como sendo uma
experiência de estranhamento, uma experiência que suscita e impõe outra cognição. Um novo
modo de problematizar uma questão dada. Kastrup nos o exemplo da volta a casa em que
moramos na infância e na qual nossas impressões acerca de sua dimensão se reconfiguram ao
retornarmos a ela, anos mais tarde. “O reconhecimento mistura-se a um estranhamento acerca
das dimensões da casa. O imenso quintal parece agora um pequeno pátio, a antiga escada não
passa de alguns degraus, o portão embora o mesmo, revela-se outro.” (1999, p.58).
Reflitamos sobre como processamos experiências que consideramos conhecidas, e que
nos impactam por serem percebidas de outra forma quando se dão num outro contexto, numa
outra temporalidade.
No caso analisado todos (talvez menos Virgil) esperavam que o sucesso da
recuperação fisiológica dos olhos de Virgil significasse também o sucesso de sua experiência
de percepção visual. Isto não ocorreu, porque não havia na memória de Virgil imagens visuais
acumuladas, para que ele pudesse fazer as conexões meio-olho-cérebro que resultassem numa
experiência de ver e enxergar. O que acontecia era apenas a volta de uma espécie de
sensações desconectadas. No caso de Virgil, existiam imagens táteis, mas não imagens visuais
que ele pudesse recordar de imediato e que conferissem a sua sensação visual algum
significado. Virgil teria que reaprender a ver. E por que reaprender? Porque em algum
momento de sua vida Virgil viu, no entanto, isto não o qualificava a ver novamente e de
imediato.
85
Virgil ainda reconhecia nos borrões que passou a enxergar um pouco de forma, que
por intermédio de uma ligação feita entre o sentido da audição e da visão o fez, ao ouvir a voz
de seu cirurgião, identificar algo que mesmo sem forma parecia ser o rosto de seu médico.
Havia aí um processo explícito de problematização dos esquemas de recognição. Virgil
passava por uma experiência de estranhamento de outra natureza, mas que nos faz lembrar o
que Kastrup (1999) comentou quando se referiu ao confronto entre sensação e memória. Ela
nos deu o exemplo do retorno a casa na qual moramos na infância: “é ou não a casa em que
morei?”, neste caso sensação e memória entram em conflito. No caso de Virgil as perguntas
eram de outra natureza, mas refletiam o mesmo estranhamento: isto é ou não um rosto? Estou
ou não vendo? O que estou vendo? Esta experiência de recuperação da percepção visual era
possível para Virgil, mas requeria que antigas conexões fossem restauradas pouco a pouco, ou
seja, que sua memória visual
12
adquirida na infância fosse recuperada. Virgil teria que
reaprender a ver, sensação e percepção teriam de estar em sintonia.
Como seria este processo para aquele que nunca viu? Seria possível que recuperando a
sensação da visão conseguisse também recuperar a percepção visual?
Já nos idos do século XVIII, Diderot comentava sobre esta questão e discutia a
posição de dois interlocutores, os quais divergiam sobre a capacidade de um cego de nascença
recuperar a percepção visual caso lhe fossem operados os olhos e retirassem suas cataratas.
Como se comportaria esta pessoa quando ao se lhe apresentar um cubo e uma esfera antes
reconhecidos pelo tato lhe fosse solicitado que dissesse apenas usando sua visão, qual era o
cubo e qual era a esfera (1979, p.21). Como seria seu comportamento, e que mecanismos
cognitivos usaria para dar conta do problema? Diderot menciona que foi Molineuax quem
primeiro propôs essa questão e também quem tentou resolvê-la. Na opinião de Molineuax o
12
As restrições sensórias impostas pela deficiência visual dependem do modo como esta se manifesta. Em geral
as impressões visuais registram-se na memória apenas a partir dos seis anos de idade aproximadamente; se uma
pessoa torna-se cega antes dessa faixa etária, na prática é como se tivesse nascido sem ver (OLIVEIRA, p.39,
2002).
86
cego não seria capaz, a primeira vista, de reconhecer qual seria o cubo e qual seria o globo,
necessitando tocá-los para que pudesse identificá-los.
Ao mencionarmos que o ato de ver se na interação olho-estímulo-cérebro, e que
através dessa interação o organismo inicia um aprendizado que torna possível a visão,
percebemos que a privação deste sentido responsável pela maioria das informações que
recebemos do meio é um sentido dotado de características específicas, tais como: a percepção
de cores, de distância, figura e fundo. Todavia, isto não quer dizer que a pessoa cega não
encontre formas para suprir a falta deste sentido. O que se quer frisar é que não uma forma
do deficiente visual substituir o sentido da visão, e sim, uma elaboração de novas formas de
utilização dos sentidos remanescentes.
Finalmente quando analisamos a experiência da recuperação da visão por um
deficiente visual, demonstramos que, além do fator aprendizagem, este movimento de
recuperação de um sentido reconfigura toda a interação dos outros sentidos e confere à
experiência da percepção visual uma dimensão subjetiva considerável. Neste aspecto, estamos
tentando demonstrar que há uma relação no mínimo curiosa entre a presunção dos que
enxergam sobre aqueles que não em. Quase que uma imposição visual que desconsidera a
eficiência possível dos demais sentidos. Sacks, comentado o texto Lettre sur les aveugles à
l’usage de ceux qui voient (1749), menciona que o jovem Diderot mantém uma posição de
relativismo cultural e epistemológico de que os cegos podem, à sua maneira, construir um
mundo completo e suficiente, ter uma identidade “cega” completa e nenhum sentimento de
incapacidade ou inadequação. Baseado no pensamento de Diderot, Sacks comenta que “o
problema” de sua cegueira e o desejo de curá-la, por conseguinte, é nosso, não deles.” (1995,
p.152). Por isso, é importante respeitar que voltar a ver pode não ser o desejo da pessoa
deficiente visual, no caso daquela que nasceu cega, pois esta já construiu uma relação com o
mundo, independente da percepção visual, e relaciona-se com este a partir de uma invenção
87
de si, particular e intransferível, de uma forma completamente distinta da dos videntes. Esta
relação que compreende a aceitação da diferença engloba outra postura, na qual no diverso,
no diferente, aceitamos a deficiência não como um defeito, e sim como uma diferença.
Comumente entendemos como defeito o que pode ser entendido como outra forma de existir.
Quando temos um pensamento marcado pelo preconceito e para a observação do
defeito, a ênfase é colocada na impossibilidade de execução de inúmeras tarefas, ao contrário,
quando focamos nosso olhar na diferença, percebemos as mesmas tarefas como possíveis,
mas vistas segundo outro limiar que considera outra forma de execução do que foi proposto.
Olhando a questão sob este ângulo, mesmo correndo o risco de ser redundante,
podemos dizer que este ato engloba outra percepção de mundo.
II-2 Pesquisas cognitivas com sujeitos deficientes visuais
Em Psychologie cognitive de la cecité précoce”, Ivette Hatwell (2003) faz um
minucioso levantamento de diversos estudos sobre cognição e cegueira, abrangendo desde os
aspectos relativos ao desenvolvimento perceptivo-motor de cegos congênitos até as
representações mentais e espaciais, passando pelo desenvolvimento das funções simbólicas,
da linguagem, do desenvolvimento intelectual, postural e motor. Trata-se de um pequeno
compêndio sobre os principais pontos de investigação a respeito dos cegos, tanto os que
nasceram cegos como os com cegueira adquirida ou com baixa visão.
Ao observarmos as pesquisas citadas nesta obra, percebemos que a maior parte dos
estudos é comparativa entre videntes e cegos. Tais pesquisas reportam-se aos resultados
levando em consideração as diferenças encontradas, seja em escores que medem a realização
de tarefas, seja naqueles que observam atitudes. Muitos estudos utilizam-se ainda de crianças
videntes vendadas. Para a autora, além destas, outras questões interferem nos resultados
88
como, por exemplo, a falta de homogeneidade entre os grupos de cegos, os quais se reduzem a
um ou dois sujeitos.
A variação da idade em que ocorreu a perda da visão é para ela fator determinante de
diferenças quando da apuração dos resultados. São problemas metodológicos que outros
autores também mencionam. Hatwell aponta ainda pesquisas que comparam cegos precoces
(perderam a visão entre os seis meses e um ano) com cegos tardios (os que perderam após um
ano) e videntes. Alguns resultados não estabelecem diferenças significativas do
comportamento dos sujeitos, entretanto outros fazem menção a defasagens consideráveis. “Os
resultados têm mostrado que os cegos têm um desenvolvimento em geral comparável ao dos
videntes com exceção do retardo motor dentro das taxas que implicam na coordenação
(motricidade) manual fina e aquisição da locomoção.” (2003, p.23).
Segundo Hatwell (2003) os problemas cognitivos dos cegos tardios são os mesmos dos
cegos precoces, principalmente os relativos ao domínio do espaço, mas são diferentemente
enfrentados de acordo com a época em que ocorreu a perda da visão. Neste aspecto cabe
ressaltar que as principais diferenças entre os deficientes visuais encontram-se justamente
relacionadas ao momento em que houve a perda da visão, como nos diz Kastrup (2007),
São considerados cegos congênitos pessoas que nunca viram. Seu sistema
cognitivo é desde o nascimento, constituído com base nos demais sentidos
sem referência a elementos visuais. Cegos precoces são aqueles que
perderam a visão entre seis meses e um ano de idade. Como o diagnóstico da
cegueira pode não ser imediato, a diferença mais significativa não é entre
cegos congênitos e precoces, mas entre cegos precoces e tardios, em função
da existência nos últimos, de referências visuais. (p.70)
É citada no trabalho de Hatwell (2003) a primeira pesquisa sobre o desenvolvimento
sensório-motor e cognitivo de recém nascidos cegos. Trata-se da pesquisa de Norris,
Spaulding e Brodie, datada de 1956. Esta foi uma pesquisa feita nos Estados Unidos da
América com um grande número de recém nascidos e crianças cegas bem pequenas. A
pesquisa mostrou que as crianças cegas tinham um desenvolvimento comparável ao dos
89
videntes, com exceção da coordenação motora fina e da locomoção. Este estudo poderia ser
utilizado para questionar outras pesquisas que apontam defasagens consideráveis entre
crianças cegas e videntes sem, contudo, apontar especificamente a quais defasagens estão se
referindo. Estes estudos tratam de forma genérica o assunto e transmitem uma idéia de que o
deficiente visual é seriamente prejudicado em todas as suas competências cognitivas, o que
definitivamente não confere com a realidade.
Hatwell diz que são os fatores sócio-educacionais que determinam as defasagens
constatadas em outras pesquisas feitas com crianças mais velhas. Se o desenvolvimento nos
primeiros anos de vida é comparável ao de crianças videntes, pode-se supor que esta condição
de atraso é advinda no decurso do desenvolvimento a partir desta idade, ou que a interação
mãe-bebê nos primeiros anos de vida também influencie sobremaneira para possíveis
ocorrências de defasagens. Outros fatores podem ser apontados como motivadores dessas
defasagens. A autora menciona que Fraiberg (1977) mostrou que as trocas não verbais entre
mãe e bebê são alteradas porque a cegueira modifica os sinais habituais que o bebê emite para
a mãe e vice-versa. A mãe espera que seu filho lhe mande sinais, tais como os videntes.
Assim, as mães que esperam por esse comportamento são derrotadas pela impossibilidade de
estabelecer um contato visual com seus bebês. Em alguns estudos, são feitos relatos de
experiências com mães que falam sobre suas dificuldades com seus filhos deficientes visuais:
Tenho muito clara na memória a lembrança do momento em que olhei para
meu bebê cego e pensei: O que faço agora?Como poderei me comunicar
com ele? Qual a forma de educá-lo?Como ele irá conhecer o mundo,
aprender como as outras crianças sem enxergar? É uma hora difícil para toda
mãe e no início parece uma tarefa impossível. Foi difícil para mim e é difícil
para todas as mães. (SIAULYS, 2007, p.180)
Entendemos que esta situação possa atrasar um pouco os aspectos cognitivos e
motores desse bebê. Muitos estudos convergem para essa conclusão. Alguns profissionais que
trabalham com deficientes visuais alegam que mesmo havendo oportunidades motoras para a
criança cega este atraso persiste; neste sentido podemos citar os estudos de Warren (1984,
90
1986 e 1994). Hatwell (2003) sinaliza para outro ponto de defasagem, dizendo que o
desenvolvimento postural é afetado pela cegueira porque este não depende apenas da
propriocepção corporal, mas também da propriocepção visual: “A visão de seu próprio corpo
participa com efeito para a formação de uma representação unificada desse corpo.” (ibid,
p.25).
Parece que o desconhecimento das possibilidades das crianças cegas favorece a estas
situações de atraso, advindas ainda das limitações que o meio social lhes impõe
principalmente no cerceamento à sua movimentação.
A visão assume importância primordial na localização, compreensão e
domínio do espaço; na mobilidade independente; na comunicação não verbal
que se estabelece desde as primeiras semanas na dinâmica interativa
mãe/bebê; na comunicação gestual e expressões fisionômicas; na relação
consigo, com os outros e com o mundo de uma forma geral. Quando ocorre
uma lesão ou impedimento dessa função sensorial, o mundo da criança fica
restrito, diminuindo suas possibilidades de trocas com o meio, o que causa,
frequentemente, transtornos em seu desenvolvimento. (RODRIGUES e
MACÁRIO, 2006, p.23)
Conforme destaca Hatwell, as pesquisas têm na maioria das vezes o referencial dos
videntes, essa é uma questão metodológica a ser amplamente discutida futuramente.
A menção a este problema metodológico é comentada em diversos trabalhos, Sampaio
refere-se a isto dizendo que: “As pesquisas até hoje têm a preocupação de comparar os
resultados obtidos na modalidade visual com os obtidos pelos cegos.” (SAMPAIO, 1986,
p.33). Sampaio fala ainda que os protocolos usados são adaptações diretas daqueles utilizados
dentro da modalidade visual.
Masini (1994) também destaca esse mesmo ponto ao falar até mesmo de documentos
oficiais
13
que se baseiam em referenciais dos videntes para o estudo dos deficientes visuais.
Como ficou ilustrado pelos comentários feitos sobre os três programas,
14
o
referencial utilizado é o do vidente ou “normal”. Isso reitera de um lado
13
Os documentos são: Reformulação de Currículos para a Educação Especial do Centro Nacional de Educação
Especial (CENESP), Programa para desenvolver a eficiência do funcionamento visual, (BARRAGA E
MORRIS) e o Manual para treino de Orientação e Mobilidade (BUENO,1998).
14
Os programas são os citados na referência 13.
91
como já foi assinalado, que o deficiente visual é comparado com o portador
de visão a partir das características deste. (MASINI, 1994, p.72),
Ormelezi (2000) refere-se à escassez de obras que se dedicam ao tema, sem a
comparação com videntes. Menciona que no Brasil, pode-se citar apenas os trabalhos de
Masini e Amiralian como exemplos de pesquisas que se utilizam do referencial do cego.
Reiterando o que já foi dito sobre o levantamento bibliográfico,
identificamos uma lacuna no campo de pesquisa científica sobre esse tema,
quer na psicologia educacional, quer na clínica. Julgamos importante, ainda,
abordar essas questões buscando o referencial do cego, sua maneira própria
de aprender, para que nos indique parâmetros para sua educação, apoiando-
nos na idéia central de que para sabermos da elaboração cognitiva da pessoa
sem visão, devemos perguntar por seus próprios caminhos e não por aqueles
de quem dispõe de visão. (ORMELEZI, 2000, p.63)
Martin e Bueno (2003) corroboram a idéia dos efeitos danosos destas comparações em
algumas falas de seu livro, fazendo um questionamento importante logo na introdução.
Mencionam que a criança cega não é um vidente que carece de visão. Assinalam que sua
maneira de perceber o mundo é uma elaboração dela mesma, a qual difere de uma criança de
visão normal privada de visão, referem-se aqui especificamente a pesquisas que comparam
crianças deficientes visuais com crianças videntes vendadas.
Pelos estudos dos autores apresentados, as defasagens ocorridas não podem em
princípio estar vinculadas à questão da deficiência visual apenas, lembramos aqui que Warren
(1977, 1984 e 1994) questiona a interpretação mais em voga sobre os resultados de estudos
comparativos do desempenho de crianças cegas e videntes, em relação a diferentes aspectos
do desenvolvimento. Para o autor embora esses estudos apontem para resultados inferiores ao
das crianças videntes, isso não quer dizer que os atrasos constatados sejam inerentes à
cegueira.
Como já foi dito anteriormente, uma criança vidente, vendada, não apresenta um
comportamento similar ao de uma cega ou mesmo a uma de baixa visão, que tem total
92
conhecimento do espaço para citar uma das muitas diferenças e também sabe que está
passando por uma situação momentânea.
O caminho percorrido pelos pesquisadores, em sua maioria videntes, toma como
padrão a visão para falar da falta de visão, recorrem a crianças videntes vendadas para simular
uma situação de cegueira. Sabemos que desse modo os resultados não corresponderão de
forma fidedigna aos padrões de comportamento das crianças deficientes visuais. Espera-se
que futuras pesquisas sejam realizadas com sujeitos deficientes visuais tentando obter
resultados de acordo com seus referenciais. Esta situação parece repetir-se com relação à
educação, pois o que é pensado para esse grupo social ainda é uma adaptação de um modelo
já utilizado pelos videntes, o que certamente não é o ideal.
Todo esse quadro se reflete também no interesse por investigações sobre o tema da
cegueira, sendo diversos os textos teóricos, mas escassas pesquisas de campo recentes que
considerem o universo da pessoa cega, principalmente crianças. Parece que dificilmente são
encontrados dados sobre a cognição da criança cega em relação a elas mesmas. O que se
encontra são dados desta cognição comparada e testada em relação à das crianças videntes.
Este fato não pode mascarar a realidade quanto a cegueira, deixando-a refém de falsas
premissas, como fomentar representações sociais equivocadas. Até o momento não se pode
desconsiderar que os padrões das pesquisas são sempre baseados nos resultados obtidos em
relação a grupos majoritários, com características semelhantes, neste caso as pessoas que
enxergam. Por isso seus resultados devem ser considerados como possíveis e não como
determinantes.
De outro lado, a maioria das pesquisas também utiliza o referencial do próprio
pesquisador. Sua condição sensorial pode influenciar nos resultados, pelo fato de estar
fortemente atrelada a padrões de julgamento visuocêntricos. Esta é uma discussão bastante
explorada quando se fala da pretensa neutralidade da pesquisa científica; o quanto os
93
referenciais do pesquisador influenciam nos resultados. Comparar dados de pessoas que
enxergam com as que nada vêem pode levar a desprezar a princípio a potência dos outros
canais perceptivos e dar à visão uma supremacia entre os mesmos, recaindo-se no paradigma
visuocêntrico.
Fazendo-se uso de uma situação hipotética tentando explicar o que foi dito recorremos
ao conto de H. C. Wells, Em Terra de Cegos escrito em 1889. Talvez se as pesquisas fossem
realizadas na cidade do conto de Wells, os resultados obedecessem a outro padrão, ou seja, o
da cegueira. Neste conto, um homem chamado Nuñes escalava uma montanha quando, após
uma avalanche, cai numa cidade onde todos os habitantes são cegos, e percebe após alguma
convivência, que uma antiga lenda contada nos Andes tornara-se para ele uma realidade.
Nuñes depara-se com uma cidade de características distintas das que havia visto; as casas
não tinham janelas, eram alinhadas seguindo uma única linha e pintadas de maneira muito
diferente do que ele estava acostumado. Em dado momento do conto uma qualificação das
diferenças das casas:
As casas da aldeia central eram bem diferentes da aglomeração casual e
amontoada das aldeias montanhesas que ele conhecia; as casas ficavam
numa fileira contínua de cada lado de uma rua central surpreendentemente
limpa; aqui e ali, sua fachada multicolorida era perfurada por uma porta, e
nem uma única janela quebrava sua frontaria harmoniosa. Eram
multicoloridas com extraordinária irregularidade, manchadas com um tipo de
cimento que era às vezes cinza, às vezes pardo, às vezes cor de ardósia ou
marrom-escuro; e foi a visão desse colorido selvagem que trouxe primeiro a
palavra “cego” aos pensamentos do explorador. “O bom homem que fez
isso”, pensou, “deve ter sido tão cego quanto um morcego.” Quando se
conta de que todos os habitantes são cegos, pensa: “Em terra de cegos quem
tem um olho é rei!” Todavia um estranhamento dos habitantes quanto à
aparência de Nuñes, e sua maneira de caminhar, pois logo de imediato ele
tropeça, e os habitantes comentam que seus sentidos ainda não estão
completamente desenvolvidos, ao que Nuñes retruca, “Eu posso ver!” Mas
de nada adiantava essa fala; naquela aldeia ver, nada significava, os
ambientes escuros, faziam com que Nuñes caísse, se confundisse ao
caminhar, dando a impressão de não estar completamente socializado ou
maduro. Para os cegos ele era imperfeito; naquela aldeia, outros valores e
outras habilidades eram valorizadas, a sensibilidade das mãos, dos ouvidos a
organização de tudo e a forma de interação dos habitantes com o mundo era
diferente. Por isso todo o estranhamento se dava de forma tão forte. Nuñes
tentou inutilmente explicar o que era ver, mas os habitantes não estavam
interessados em suas explicações, haviam se adaptado e construído novas
94
formas de lidar com o ambiente, seguiam os passos através do som,
reconheciam as pessoas pelo olfato e pela voz, mesmo que distantes,
executavam seus trabalhos utilizando-se de outros recursos, entre outras
habilidades que Núñes não possuía. (WELLS,2007)
Ele era visto como um ser estranho, com comportamento diferente da maioria, com
“coisas irritantes nos olhos” e de tanto diferir dos demais, quase perde a visão. Após muitas
situações de estranhamento entre os cegos e o homem, fica verificado pelos habitantes da
cidade que aquilo que o atrapalha são seus olhos perfeitos, ou seja, a visão. É decidido num
conselho que ele poderia se casar com uma moradora do local se operasse os olhos e
ficasse também cego. No final do conto, o homem acaba por deixar a cidade dos cegos,
inadvertidamente, da mesma forma que chegou a ela, conservando sua visão. O conto termina
deixando ao leitor uma metáfora sobre a diferença, sobre o que significa ver, sobre como os
padrões são difíceis de serem alterados, entre outras questões. Mas algo fica bem claro, a
diferença não é bem aceita, em princípio o pensamento da maioria ou de uma minoria que
assume uma condição de poder dita o que deve ser seguido.
Por outro lado, também podemos pensar que o conto aponta para o quanto parâmetros
tidos como normais que podem ser desconstruídos quando deixamos em outro plano noções
como as de perfeição, competência e incompetência, entre outras, as quais são determinadas
pelo espaço e tempo ao serem analisadas. O conto instiga-nos a pensar como é difícil a
aceitação da diferença, e como são relativas as noções de perfeição. Acolher a diferença
muitas vezes significa quebrar regras, subverter normas e reorganizar padrões, e estas são
atitudes não muito comuns de serem implantadas nos espaços sociais de um modo geral.
II.3-Desenvolvimento Cognitivo e deficiência visual
95
Partindo-se do pressuposto de que não existe uma psicologia da cegueira, formulamos
nossas observações sobre desenvolvimento cognitivo dos deficientes, tomando por base as
teorias formuladas a respeito do ser humano. Consideramos o deficiente visual atuando
com outros canais perceptivos e entendendo esta condição como outra maneira de estar no
mundo, a qual pode prescindir de imagens mentais visuais. Entretanto, esta maneira peculiar
do comportamento da pessoa deficiente visual de forma nenhuma determina uma
desigualdade em termos psicológicos, intelectuais ou afetivos das outras pessoas, é sim uma
diferença ou mesmo uma limitação sensorial. Estas condições podem reorganizar seus canais
perceptivos, mas não configuram em princípio outra condição psicológica.
Acreditamos que pensar a subjetividade da pessoa deficiente visual em nada difere de
pensarmos a subjetividade de todo ser humano, já que esta se dá como processo de construção
e reconstrução de si, através da experiência com o mundo e de suas relações com as pessoas e
objetos que dele fazem parte. Ou seja, do conjunto de relações vividas ao longo da existência.
Estas relações a nosso ver são construídas por outras vias que não as visuais. Através
desse processo de construção e interação com o entorno e com as pessoas emerge em cada ser
humano uma singularidade, fruto de uma invenção de si, e que necessita ter espaço para
configurar-se e sentir-se confortável em seu viver, fazendo parte do mundo.
A subjetividade do cego ou da pessoa com baixa visão é obviamente construída
através de outros canais perceptivos que não a visão, o que passamos a explicar.
O indivíduo deficiente visual forma imagens mentais, auditivas, táteis, olfativas e
cinestésicas, construindo através destas seus referenciais. Reage aos estímulos do entorno por
outras vias perceptivas que não a visual, mas seus outros canais perceptivos o qualificam
igualmente a interagir no mundo.
Todavia, nem sempre lhes são dadas às condições para que o aproveitamento integral
de seus canais perceptivos ocorra. E, é este o fator que muitas vezes concorre para que
96
ocorram algumas defasagens. A questão dos processos cognitivos, entendimento do mundo e
de seus componentes subjetivos, é abordada em muitos estudos sobre cegueira. Iniciamos
relacionando as pesquisas citadas por Masini (1994). A maioria destas pesquisas considera
que defasagens cognitivas e certo atraso encontrado no desenvolvimento dos deficientes
visuais. São citadas as pesquisas de Hatwell (1966), Fraiberg (1966), Swalow(1976),
Gottesman (1976) e Rowland (1984). Em todas estas pesquisas é mencionado o atraso das
crianças deficientes visuais. Alguns pesquisadores concordam entre si que, mesmo havendo
diferenças nos resultados quanto ao tempo de defasagem, devem ser levados em consideração
outros aspectos, basicamente aqueles ligados à falta de intervenção precoce e ao ambiente
social muitas vezes empobrecido em termos de estímulos a que tem acesso, seja na família ou
na escola. Fazem comentários ressalvando que dependendo das intervenções com estas
crianças, estes atrasos podem ser suavizados.
Masini (1994) sintetiza as conclusões das pesquisas que abordam tais defasagens,
indicando que estes atrasos se devem a alguns aspectos:
aos aspectos perceptuais ou representacionais caracterizados pelo
empobrecimento de imagens, e não a dificuldades situadas no aspecto
operacional;
à utilização de níveis cognitivos não apropriados à compreensão e
organização das situações num esforço de compensar déficits;
às condições educacionais (familiares e escolares) que não supririam as
necessidades de desenvolvimento dos D.V.s e nem forneciam oportunidades
para maximizar suas possibilidades e não aos limites provenientes da
deficiência visual. (p.48)
Refletindo mais adiante sobre o que encontrou nas pesquisas sobre deficientes visuais,
a autora comenta que os dados e as conclusões da maioria das pesquisas fazem-na inferir que
pouco se sabe sobre o deficiente visual, e parte então para duas questões:
O “empobrecimento de imagens” estará revelando características de sua
percepção ou ausência de recursos para conhecimento dessas características?
A utilização de níveis cognitivos não apropriados à compreensão e
organização das situações estará se referindo a deficiências do D.V. ou das
condições educacionais que não propiciaram a ele essa apropriação? (p.49)
97
Com estas questões, Masini sinaliza para a necessidade de uma contextualização da
realidade do deficiente visual e de seu campo problemático, bem como da conscientização de
que até o momento sua educação distanciada de seus canais perceptivos influencia seu perfil
quando é sujeito das investigações. As metodologias e instrumentos das pesquisas, em
princípio, não consideram estas condições peculiares ao deficiente visual, dando então a
impressão de que auferem resultados significativos apenas em termos comparativos, e não
fruto de uma análise específica da deficiência visual.
Amiralian (1997) fez também um levantamento de diversas pesquisas sobre este tema
e cita em seu trabalho os estudos de Canning (1957) (apud GOTTESMAN, 1976) sobre
conservação de água num recipiente. Baseada nos experimentos de Piaget sobre
desenvolvimento cognitivo, essa pesquisa conclui que a interação visual com o ambiente é
fator decisivo para as habilidades desta natureza e observa um atraso nas crianças cegas. O
autor segue citando a pesquisa de Hatwell (1966), citada por diversos autores
(GOTTESMAN, 1976; SWALOW, 1976; e HALL, 1981), sobre conservação de massa e
habilidades classificatórias, que observa uma diferença de dois a três anos entre os grupos,
imputando este atraso à perda da visão. Menciona ainda outras pesquisas, que corroboram
com a idéia da defasagem em torno de dois a três anos, entre crianças cegas e videntes com
relação aos aspectos mencionados. Mais adiante Amiralian cita as pesquisas de Swallow e
Poulson (1973) (apud GOTTESMAN, 1976; e ANDERSON, 1981) sobre o conceito de
espaço; de Simpkis e Stephens (1973) sobre conservação, classificação, memória, imagens
mentais e operações formais. Nessas pesquisas os autores perceberam diferenças
insignificantes entre cegos e videntes quanto aos aspectos ligados ao raciocínio lógico.
Salientam apenas defasagens entre cegos e videntes quanto à orientação espacial e imagens
mentais. Já Higgins (apud GOTTESMAN, 1976; SAWLOW, 1976; e HALL, 1981) traz
98
conclusões divergentes dos autores anteriores e menciona que o cego não revela defasagem de
desenvolvimento que possa ser relacionada a atraso na formação das estruturas cognitivas.
Para Santine e Simmons (1996), a criança cega não dispõe das mesmas informações
que a criança vidente, por isso a construção da realidade pela criança cega é necessariamente
diferente daquela da criança vidente,
Como a informação de que dispõe a criança cega não é a mesma informação
de que dispõe a criança vidente, a construção da realidade pela criança cega
é necessariamente diferente daquela criança vidente. A criança que nunca
teve visão não tem campo visual estável (normalmente a base de
permanência do objeto) carece da capacidade de coordenar e organizar os
elementos para formar níveis mais altos de abstração, ficando sua capacidade
de verificar as informações severamente limitadas. (p.7)
Hatwell (2003) discute diversas pesquisas de investigação cognitiva. Ela também
escreve sobre os efeitos cognitivos da cegueira e nos traz um pensamento com pontos de
aproximação com o de Santine e Simmon. Diz que desde o nascimento a visão ocupa um
lugar importante nas trocas entre a mãe e o bebê. Podemos inferir aqui que essas trocas, a
pouca manipulação do corpo dessa criança pela mãe, que a trata em princípio como um bebê
normal, ou o rejeita pela sua deficiência, podem de certo modo colaborar para as futuras
defasagens mencionadas.
Ainda em 2003, Hatwell diz que a visão também é regra essencial para a organização
postural, para o equilíbrio entre outras valências motoras. Menciona toda a gama de
características inerentes à visão, mas ressalva que os deficientes visuais têm outras
modalidades perceptivas, que têm excelente desempenho e que podem de certa forma
substituir a visão. Sobre a cognição propriamente dita diz que uma sensível diferença
relativa à deficiência, em relação à idade em que apareceu a cegueira, visto que existe uma
integração intermodal entre o tato e a visão nos bebes, de suma importância para o
desenvolvimento cognitivo. A falta desta integração intermodal das crianças cegas explicaria
as defasagens observadas. Mostra-nos então que quanto mais tarde a cegueira se apresentar,
99
menos defasagens cognitivas podem ser detectadas. Entretanto, Hatwell menciona as
possibilidades que o cego tem de minimizar os efeitos cognitivos e sociais da cegueira através
do apoio da família e de pessoas especializadas, as quais através de aconselhamento à família
podem interferir positivamente no desenvolvimento dessa criança.
Complementando as idéias de Hatwell, podemos mencionar que políticas públicas e
ações das instituições especializadas são fundamentais para que o deficiente visual seja
acolhido na sociedade e tenha por conta disso melhores condições de desenvolvimento.
Volta a frisar as dificuldades metodológicas presentes nas pesquisas e relata ser difícil
interpretar os resultados de diferentes estudos os quais apontam para conclusões por demais
contraditórias o que Hatwell imputa ao fato destes estudos serem realizados com muitos anos
de diferença entre si. Menciona ainda o mesmo comentário de outros autores quanto aos
métodos que são utilizados nas pesquisas com deficientes visuais, reforçando que a maioria
delas é feita de dois modos: um que compara cegos e videntes, utilizando os mesmos
protocolos, desconsiderando a maneira de interagir dos cegos; e outro que compara cegos e
videntes, vendando os olhos destes e simulando uma situação de cegueira, fato que também a
seu ver compromete os resultados.
Considerando estas falhas metodológicas, parece não haver ainda um consenso sobre
as reais possibilidades e sobre as defasagens cognitivas dos deficientes visuais. Mesmo com
essas ocorrências metodológicas, os resultados obtidos parecem apontar que as possíveis
defasagens advêm mais das limitações das oportunidades que os deficientes têm de utilizarem
seus outros sentidos do que a aspectos fisiológicos.
Podemos concluir que a maioria das pesquisas indica que a criança deficiente visual
depende como qualquer outra criança de uma boa integração com o ambiente e de sua
socialização com as pessoas a sua volta. Depende ainda do conhecimento e entendimento de
100
conceitos que, fazendo parte de sua linguagem, facilitarão seu processo de comunicação, fator
determinante para a sua adaptação social.
II.4-A formação de conceitos, base para a construção do conhecimento
A formação de conceitos é um pilar de sustentação importante de sua organização
como sujeito. Estudar como esta formação se dá torna-se imprescindível para que se possa
facilitar esta organização.
De acordo com Batista (2005), Vygotski aborda a questão da aquisição de conceitos,
fazendo uma distinção entre conceitos espontâneos e conceitos científicos. Os primeiros são
adquiridos na experiência pessoal da criança e os científicos em sala de aula. Esta aquisição
em princípio dependerá da linguagem e das experiências anteriores. A linguagem constituída
de significante e significado necessita, para ter sentido, de um perfeito entendimento de
ambos, do que realmente aquele significante traz como conteúdo.
Para Vygotski (1984) uma palavra sem significado é um som vazio. Em nossa
concepção, esse som vazio pode ser aquele que é dito pelas crianças deficientes visuais nas
situações de verbalismo.
Imaginemos então a abundância de sons vazios que se apodera do mundo da criança
deficiente visual a cada vez que ela se depara com uma conversação ou um texto em que
aparecem palavras que, para ela, ainda não têm significado. Caso ela não manifeste este vazio,
deixa de compreender o sentido das frases e às vezes incorpora estas palavras ao seu
vocabulário, mesmo não sabendo o que querem dizer, desenvolvendo uma linguagem sem
sentido para ela. Este comportamento verbalista se caracteriza pela repetição de palavras
ouvidas pelo deficiente visual, fruto de serem expressões sem uma ancoragem na experiência
101
concreta. São palavras muitas vezes repetidas aleatoriamente imitando falas de outras pessoas
e decoradas pelo deficiente visual.
Recortamos aqui uma experiência relatada por Moraes (2005), que aponta uma
situação em que uma menina deficiente visual demonstra desconhecer o que seria uma
bailarina, e uma primeira tentativa de explicação ancorada apenas na palavra,
A primeira abordagem adotada pela professora foi “explicarpara a menina
o que é ser bailarina: “Uma bailarina demonstra leveza, dança na ponta dos
pés,levanta os braços”. Tais “explicações” pareciam ser bastante enigmáticas
para a menina e quando lhe era solicitado fazer os movimentos da bailarina a
menina não se mexia e dizia: “mas eu não sei o que fazer, o que significa
esta leveza?”. (p.8, grifo nosso)
Quantas palavras sem significado para a menina faziam parte desta fala? Caso ela não
tivesse liberdade para dizer que na verdade não sabia o que era uma bailarina e nem leveza,
talvez mais uma situação de verbalismo se configurasse. A primeira ação de explicar os
conteúdos da fala com palavras não foi e nem seria suficiente para que a menina entendesse
alguns conceitos, principalmente aqueles abstratos, como a noção de leveza.
Martim e Bueno (2003) definem o verbalismo como a utilização de conceitos abstratos
sem ancoragem em experiências vividas. Falam ainda que o deficiente visual nesta situação
tem uma predisposição a usar a linguagem de modo excessivo, o que a impressão de que a
domina.
Em geral, o vocabulário dos cegos é diversificado em duas áreas bem
limitadas: por um lado, as palavras que têm significado real por serem
baseadas em fatos ou experiências objetivas; por outro lado, as palavras que
se referem a situações visuais e que carecem de um significado real para
eles. Esta última é uma característica da maioria das crianças cegas.[...] Essa
utilização de conceitos abstratos e, portanto, não baseados em experiências
diretas, é o verbalismo. (p.112)
A criança deficiente visual parece realizar este comportamento, talvez, para tentar se
incluir em seu meio social, demonstrando conhecimento sobre coisas que efetivamente
desconhece em sua experiência, repetindo o que ouve, num processo de imitação social quase
102
mecânico. Para que possa realmente conhecer e se apropriar do conhecimento, necessita
compreender de fato o que as mensagens faladas trazem em seu conteúdo.
Aqueles que têm a visão se utilizam da observação mimética, observando o gestual das
pessoas, tentando compreender deste modo o significado da fala quando esta não é entendida
em sua totalidade apenas pela linguagem verbal. Enquanto que os bebês videntes podem
apontar os objetos que desejam ou mais tarde através da mímica podem se fazer entender, ou
ainda perceber através destas mesmas ações o que os outros querem dizer quando aparecem
nas falas aspectos não verbais da linguagem (expressões faciais e gestuais). O deficiente
visual necessita de outras estratégias, táteis ou modulações auditivas ou olfativas, seu corpo
precisa estar voltado para a experiência. Precisa apreender o significado das palavras e sua
relação entre si, o que quer dizer um verbo, um adjetivo, ou ainda um advérbio, expressões
lingüísticas importantes para uma comunicação inteligível e com algum sentido, a qual
fundamenta toda uma rede de funções básicas da linguagem. Para Vygotski (1989),
É no significado que se encontra a unidade das duas funções básicas da
linguagem: o intercâmbio social e o pensamento generalizante. São os
significados que vão propiciar a mediação simbólica entre o indivíduo e o
mundo real, constituindo-se no “filtro” através do qual o indivíduo é capaz
de compreender o mundo e agir sobre ele. (p.104)
A linguagem é uma das formas de construção da subjetividade. No caso de quem
enxerga, gestos, expressões faciais e corporais complementam o discurso, trazendo a este uma
gama de informações não verbais.
Vygotski (1997), em seus estudos sobre defectologia, enfatizou a importância da
linguagem e da aquisição de conceitos como meio de favorecer ao deficiente um
desenvolvimento intelectual de melhor qualidade. Defendia a criação de ferramentas culturais
adaptadas aos diversos tipos de deficiência para que estes tivessem acesso aos conhecimentos
produzidos pela sociedade.
103
Estas idéias partilhadas também por Luria defendiam que a educação das crianças
deficientes tivesse como base a formação ou construção de processos mentais superiores,
particularmente a linguagem.
Em se tratando da criança deficiente visual, a linguagem adquire um papel mais
especial, já que a audição e o tato têm papel fundamental na formação de conceitos.
Para uma criança desprovida de visão, a apropriação dos conceitos acerca
dos objetos e fatos que ocorrem em seu redor, organizados pelas sensações
táteis, a linguagem se o meio fundamental para alcançar o
desenvolvimento do intelecto com as características tipicamente humanas,
ou seja, baseadas em sua cultura e sua história. (ROCHA, ALVES,
AGUIAR, 2006, p.3)
Algumas pesquisas falam da formação de conceitos pelos deficientes visuais. De
acordo com Batista (2005), que publicou o estudo “Formação de Conceitos em crianças
cegas:Questões teóricas e Implicações Educacionais”, diferentes pesquisas foram realizadas
sobre o assunto. Passos (1999) estudou a compreensão de metáforas em meninos cegos
congênitos com idade entre 12 e 13 anos. A intervenção envolvia a explicação de algumas
metáforas. Os resultados obtidos indicaram que a compreensão de metáforas cujo significado
foi explicado melhorou muito, o que facilitou a seguir a compreensão em metáforas não
explicadas. O autor não deixa claro como se deu a intervenção. Mas inferimos que ao saberem
o que era uma metáfora, os alunos compreenderam que nelas as palavras são usadas muitas
vezes com uma concepção figurativa, que a ação descrita não corresponde fielmente ao que é
dito como, por exemplo, falar pelos cotovelos, pisar em ovos.
Ormelezzi (2000) pesquisou a aquisição de representações mentais por cegos adultos.
Constatou que a formação de imagens e conceitos dos participantes se dava pelas experiências
táteis, olfativas e auditivas, inter-relacionadas pela linguagem. Atribuiu grande peso à
linguagem para a formação de conceitos em deficientes visuais. Este autor encontrou poucas
diferenças entre pessoas que enxergam e os deficientes sobre a aquisição de conceitos, mas
ressaltou a maneira particular e diferenciada de como são explicados.
104
Nunes (2002) propôs o ensino de quatro grupos de conceitos: coisas táteis pequenas,
coisas táteis grandes, conceitos não táteis e conceitos abstratos, para crianças cegas entre nove
e 10 anos de idade. Os resultados indicaram que todas as crianças melhoraram seus
desempenhos após a intervenção, fazendo a distinção entre conceitos táteis e abstratos.
Nunes (2004) pesquisou sobre este tema nas principais bases de dados verificando o
período de 1980 a 2004, e encontrou um número baixo de trabalhos, sendo a maioria
publicada no Journal of Visual Impairment and Blindness. Como resultados, as pesquisas
mostraram que até aquele momento a capacidade de conceituar dos cegos assemelhava-se a
dos videntes, sendo discutidos apenas as relações e modos alternativos de processamento
cognitivo das informações sensoriais.
Segundo Batista (2005),
Assim o que se revela é a pouca existência de comprovações sobre o
processamento cognitivo que leva às pessoas cegas a formarem seus
conceitos, mas é evidente que uma questão sobre a forma com que são
apresentadas as alternativas para que esta habilidade se dê. Assim, a
diferença entre alunos videntes e cegos fica centrada nos modos de
representação a serem utilizados como auxiliares na explicação de diferentes
conceitos, o que é mais promissor que a discussão centrada na constatação
das dificuldades trazidas pela cegueira, sempre comparadas com a ausência
dessas dificuldades nos videntes. Um exemplo refere-se à compreensão da
idéia de “trem com 45 vagões”. Para tanto, é necessário saber o que é trem,
vagão e ter noção de número. Trata-se de vários conceitos, cuja aquisição
envolve múltiplas situações de ensino aprendizagem, tanto no caso do aluno
cego, como do vidente. No caso do aluno cego, não é preciso, como
freqüentemente postulado, levá-lo a percorrer um trem com esse número de
vagões ou apresentar-lhe uma miniatura desse trem. A oferta de recursos
pedagógicos para o ensino do conjunto de conceitos envolvidos na referida
expressão dependerá dos conhecimentos anteriores do aluno, e não se dará
em uma única aula. (p.15)
Com relação à citação é preciso, no entanto, ter em mente que não se pode garantir o
prévio conhecimento do aluno sobre esta ou qualquer outra questão. Não porquê não se
fazer uso de miniaturas ou mesmo de proporcionar um passeio no qual o aluno cego tenha a
oportunidade de entrar e sair de vagões, perceber de fato o que é um trem ou qualquer outro
objeto utilizando-se de experiências e vivências, em que seu corpo será seu canal cognitivo.
105
Parece-nos temeroso mesmo para videntes considerar que um conteúdo seja dado,
contando com o prévio conhecimento do aluno, mediado apenas pela linguagem.
Consideramos a importância da linguagem, mas acreditamos que somente uma ação concreta,
corporificada, vivida pode realmente trazer um melhor entendimento dos conceitos.
A discussão sobre a formação de conceitos pelo deficiente visual faz parte de
considerações sobre a construção de sua função simbólica e é encarada com alguns aspectos
controvertidos. Nos PCNs
15
encontramos um trecho que questiona alguns pontos. O texto diz:
“O que significa para a criança cega pular como um sapo, como canguru? O que significa ser
o chapeuzinho vermelho, a bela adormecida, experimentar o sapatinho de cristal?Estas são
questões que se forem simplesmente apresentadas a qualquer criança, sem que ela saiba o que
é um sapo ou canguru também não farão nenhum sentido, estarão desprovidas de valor
simbólico caso não façam parte da experiência prévia da criança. Dramatizar um gesto, como
o pular como um sapo é importante desde que a criança tenha o conhecimento do que é este
animal, de que ele pula e que ação corporal corresponde à palavra pular. Parece que não
haverá significado para a criança cega ou para a criança vidente executar estas ações
simplesmente como ato mecânico. Em nossa experiência pelo contrário, são justamente ações
como estas que trazem para a criança deficiente visual uma gama considerável de importantes
informações, desde que as ações adquiram significado e sejam executadas dentro de um
contexto. Neste documento não percebemos como adequado o trecho que fala que algumas
experiências são exclusivamente visuais apontando para impossibilidades de entendimento
pela criança deficiente visual,
Algumas informações e experiências exclusivamente visuais não fazem
sentido, não têm significado, por isso são impossíveis de serem
compreendidas e interpretadas pela criança deficiente visual. Outras são
possíveis de serem vivenciadas apenas pelo caminho não visual, mas pelo
tátil-cinestésico (toque e movimento), com a descrição verbal para a
elaboração do conceito. As percepções, as imagens e as representações nas
15
Parâmetros Curriculares Nacionais - Documento que fundamenta e norteia a educação brasileira. Constituem o
referencial de qualidade em vigor para a educação no Ensino Fundamental em todo o país (2002, p13).
106
crianças cegas seguem outro caminho: elas se interessam mais por dublar
vozes, ritmos,onomatopéias do que ações, ou preferem atividades mais
passivas para obter o controle da ação. (PCNs, 2002, p.44)
Esta fala nos parece limitadora e preconceituosa com relação às possibilidades de
simbolizar da criança cega. Até o momento, observamos nos estudos sobre deficiência visual,
bem como fruto de nossa prática pedagógica, uma abordagem que considera esta criança
como capaz de compreender e interpretar, desde que lhe sejam dadas as condições adequadas.
Não percebemos esta diferença, a menos que a criança não tenha sido estimulada. Isto é fato,
se o que foi dito referir-se a uma criança que não esteja participando de atividades que façam
sentido para ela, pois naturalmente rejeitaesta atividade, mas isso ocorre com qualquer
criança, não só com a cega.
A menção da preferência por atividades passivas também reflete o comportamento de
crianças que estão à margem de uma interação significativa com o meio e com as pessoas.
Realmente se isto se refere a estas crianças podemos a concordar com o que foi dito,
entretanto, não é possível generalizar este comportamento, pois a impressão que mesmo
sendo estimulada a criança cega responderá desta maneira, rejeitando atividades ativas e
lúdicas, o que decididamente não é fato.
Considerando os escritos de Belarmino (2004) e as pesquisas sobre deficiência visual,
percebemos que a maioria delas ainda é marcada pelo paradigma visuocêntrico, que segundo
a autora, comparece na filosofia ocidental, quando tratam sobre o conhecer e o perceber. Este
paradigma, diz ela, relega outros modos de perceber que não o visual a um plano inferior e
desconsiderado.
Perceber a formação de conceitos como parte indispensável na elaboração da
construção de suas representações dos objetos, do próprio corpo e do espaço são fundamentais
para que mais tarde esta criança possa compreender e abstrair quando for necessário, resolver
107
problemas geométricos, entender mapas, representações geográficas e astronômicas entre
outras.
Moraes (2006), através de uma pesquisa intitulada “Arte e Percepção entre Crianças
Deficientes Visuais”, realizada desde o ano de 2003 no IBC, nos faz perceber que não
estamos sós nesta linha de pensamento. Em seu protocolo de pesquisa, através de entrevistas,
foram colhidas algumas falas de crianças deficientes visuais, que apontam sobre sua vontade
de permanecer participando de atividades onde o jogo simbólico no teatro ocupa lugar central.
Reproduzimos uma delas: “não tenho dificuldade de me localizar no palco. O teatro faz eu
entender melhor meu corpo, o que é bom para eu fazer outras coisas. Com o teatro eu fico
mais desinibido e eu mostro para todo mundo que o cego pode fazer um monte de coisas”
(sujeito cego, sexo masculino, 13 anos de idade) (MORAES, 2006, p.8). Nesta fala como em
outras descritas por Moraes, percebemos que a criança cega não rejeita atividades nas quais
sua capacidade de imaginar e de representar estejam presentes e, ao que parece, torna-se
prazeroso para ela fazer uso das mesmas. Moraes ainda menciona o fato da relação da
construção dos personagens, não passar pela visão, mas por outras experiências corporais, tais
como: o manuseio de objetos pela audição e pelo o olfato, a partir das quais considera o corpo
como uma superfície cognitiva, como um espaço de elaboração do mundo e de si mesmo.
Podemos dizer, em suma, que é consenso que a formação de conceitos através da
experiência concreta é fundamental para que o deficiente visual possa elaborar as mensagens
que recebe, as quais formarão sua subjetividade. Entretanto, é importante que uma ocorrência
bastante comum em seu cotidiano seja debelada: o verbalismo. Por isso algumas
considerações a respeito desse assunto fazem-se necessárias.
II.5-Um comportamento que intervém no processo de conhecimento: O
Verbalismo
108
Um dos principais objetivos deste trabalho é fornecer subsídios para que o deficiente
visual possa, através do uso de seu corpo, chegar ao entendimento e construção do mundo que
o cerca, com todas as nuances que isto implica. Deixando claro que esse objetivo se propõe a
otimizar suas potencialidades.
Para que este objetivo seja alcançado precisamos entender e apontar situações que
muitas vezes dificultam o relacionamento e a convivência entre o deficiente visual e a maioria
das pessoas que é vidente.
Uma das situações que com certa freqüência aparece na relação cotidiana entre
videntes e deficientes visuais é a interrupção de uma conversa ou leitura de texto para que
haja a explicação de algum termo, postura, expressão facial que, aparecendo no decorrer do
texto ou da palavra falada, não tenha sido entendida pelo cego. Essa é uma ocorrência
corriqueira e seguramente bem resolvida, quando o deficiente visual percebe que não
compreendeu bem o sentido do que lhe é dito ou lido.
Na comunicação a predominância de visão sobre os outros sentidos, bem
como do verbal sobre o não verbal, faz com que os conhecimentos
(percepções e intelectações) não acessíveis ao D.V. sejam utilizados pelo
vidente ao falar com ele. Isto faz com que o D.V. desenvolva uma linguagem
e um aprendizado conduzidos pelo visual. Como os dados não provêm de
sua experiência não podem, portanto, ser organizadas por ele, ficando a nível
de verbalismo e aprendizagem mecânica. (MASINI, 1994, p.143
)
Quando o deficiente visual reconhece sem problemas que essa situação é um
acontecimento advindo da falta da visão, ela é facilmente resolvida e passível de ser vencida.
Esse reconhecimento em primeiro lugar deve ser feito pelo próprio deficiente, quando adulto,
e pelo interlocutor, quando a situação ocorre em crianças. O detalhamento de situações como,
por exemplo, o uso de metáforas, a descrição de expressões faciais, tais como: “cara de nojo”,
“tez crispada”, entre outras ocorrências, tem de ser explicadas com pormenores capazes de
proporcionar ao cego senão o entendimento, pelo menos uma aproximação do que essas e
outras expressões querem dizer. O entendimento dessas expressões, na maioria das vezes,
109
depende da percepção visual para a sua compreensão, o que não é possível para o deficiente
visual. Nem sempre as pessoas ao se comunicarem estão atentas a essa dificuldade, e vão
deixando que se acumulem ao longo da vida, palavras sem o menor sentido em suas mentes.
Deste modo corriqueiramente aplicam-nas ou repetem frases inteiras em que as mesmas
aparecem, iludindo o interlocutor a pensar que o deficiente domina o conteúdo do que está
dizendo. Isso é mencionado com alguma freqüência com relação ao diálogo entre crianças
cegas e suas professoras. Estas, assim que detectam a falha de entendimento, procuram dar a
explicação, mesmo que a mesma não seja solicitada.
O professor deve estar atento, pois muitas crianças chegam à escola com fala
exclusivamente reprodutora, destituída de significado. São crianças que
estiveram expostas apenas à informação verbal, sem experiência corporal ou
ação funcional para a construção do sistema de significação. Como
desenvolvem uma boa memória auditiva, manipulam e impressionam
verbalmente. (BRUNO E MOTA, 2001, p.154)
No caso dos adultos, eles mesmos podem solicitar a explicação, entretanto, nem todos
agem dessa forma, por uma série de motivos como inibição, medo de parecer ignorante ou
mesmo receio de não entender a explicação, ou ainda pelo acanhamento em interromper a
conversa, deixam passar a oportunidade de terem domínio do que está sendo lido ou falado,
entre outras situações. Essas atitudes acarretam falhas na compreensão do conteúdo da fala,
concorrendo para que a construção do conhecimento desse indivíduo fique prejudicada.
Cabe muitas vezes ao vidente sensibilidade quando percebe tal situação, agir,
interferindo de imediato, sanando o problema através de uma explicação ou de uma ação na
qual a experiência concreta lhe traga o entendimento do que está sendo falado. Parece algo
simples e de fato seria, se os sentimentos já mencionados não impedissem que essas lacunas
de entendimento ficassem pelo caminho, esse seria o ideal.
Além dos fatores apontados, posturas sociais de não reconhecimento das
peculiaridades inerentes à formação do conhecimento dos deficientes visuais contribuem para
o acontecimento de situações de verbalismo bastante comuns e freqüentemente citadas nos
110
textos sobre cegueira. Abaixo destacamos duas dessas menções retiradas de artigos sobre
deficiência visual.
Mostrar o mundo a um cego requer o estabelecimento do contato o mais
concreto possível; do contrário, corre-se o risco de que as palavras, em sua
dimensão descritiva, sejam reduzidas ao verbalismo, denotando assim
realidades desprovidas da compreensão do seu significado efetivo.
(OLIVEIRA, 1998, p.3, grifo nosso)
Talvez em nenhuma outra forma de educação os recursos didáticos assumam
tanta importância como na educação especial de pessoas deficientes visuais,
levando-se em conta que um dos problemas básicos do deficiente visual, em
especial o cego, é a dificuldade de contato com o ambiente físico; a carência
de material adequado pode conduzir a aprendizagem da criança deficiente
visual a um mero verbalismo, desvinculado da realidade; a formação dos
conceitos depende do íntimo contato da criança com as coisas do mundo.
(CERQUEIRA, FERREIRA, 1996, p.6, grifo nosso)
A forma de educar os deficientes visuais, com base na transmissão da informação,
utilizando apenas a explicação e a oralidade, faz com que este receba uma idéia pré-elaborada
pelo olhar do outro sobre a coisa ou o fato. Essa atitude, além de cercear a liberdade de
pensamento da pessoa cega, despreza sua idéia e sua experiência individual, que poderia ser
construída através da ação corporal. A repetição do modelo educacional dos videntes,
sobretudo baseado na transmissão oral do conhecimento, o qual na maioria das vezes está
representado pela ação da fala do professor e da escuta dos alunos, acarreta muitas vezes um
verbalismo do professor que implica no verbalismo do aluno. Ou seja, uma situação de pura
transmissão de informação, que desconsidera a experiência corporal a interação do corpo na
experiência concreta como formadora do conhecimento. Desta forma, podemos dizer que o
modelo que se utiliza apenas da palavra incentiva o verbalismo, tão comumente detectado em
crianças, adolescentes e até mesmo em alguns adultos deficientes visuais. Infelizmente na
maioria das vezes, a transmissão oral do conhecimento é a opção educacional mais utilizada,
não na educação desses alunos, mas também com crianças sem deficiência, o que também
não é adequado.
111
O problema do verbalismo nos deficientes visuais foi pela primeira vez mencionado
por Cutsforth em seu livro O cego na escola e na sociedade – Um Estudo Psicológico,
traduzido no Brasil em 1969, mas escrito em 1932, é até hoje considerado como obra clássica
sobre a cegueira. O autor definiu o verbalismo do cego como uma situação de dissonância
entre as palavras e a realidade. Relatou diversos casos nos quais essa situação se aprofunda
principalmente na escola, quando professores lançam mão de descrições tanto para videntes
quanto para cegos, completamente apartadas do mundo real. Em interessante parágrafo nos
diz Cutsforth:
Num ponto de vista mais amplo, a intenção fundamental do verbalismo é a
de encontrar aprovação social. É uma tentativa de representar aos outros, as
coisas de uma maneira mais realista possível, dentro da situação social.
Social e educacionalmente espera-se que os cegos apreciem as coisas, não
como eles mesmos as tenham experimentado, mas como lhes são ensinadas
através da experiência alheia. Por exemplo: uma ovelha que é um animal
cheio de dobras, peludo, ossudo e bamboleante, possuidor de odor nada
agradável, cujas patas pontudas estão geralmente sujas e cuja boca e focinho
são úmidos e babosos, não lhes é descrita como tal, mas sim como um
carneirinho inocente, travesso e branquinho como a neve. (1969, p.50)
Interessante nesse parágrafo é notar que mesmo para nós que enxergamos é feita a
mesma representação gráfica e caricatural do animal, distanciada e muito da realidade. Muitos
de nós têm consciência disso, entretanto, nos dias atuais, quando raramente crianças têm a
oportunidade de ver este animal, a descrição deste e de outros animais, pode gerar também um
verbalismo nas crianças videntes.
Na mesma obra Cutsforth segue dando diversos exemplos de descrições equivocadas,
as quais pela falta da experiência tátil do deficiente visual dão a este uma idéia dos objetos
apartada da realidade. Mencionou um teste simples, feito à época com 26 crianças cegas
congênitas, no qual foram apresentadas palavras para que as crianças mencionassem a
qualidade do objeto. Cutsforth (1969) refere que metade das respostas das crianças foram
nomes de qualidades visuais, enquanto que um terço de qualidades ligadas ao tato. Cutsforth
conclui que a criança cega é impelida a utilizar padrões visuais em seu vocabulário, dos quais
112
desconhece o sentido, e reputa essa situação ao desejo dos videntes em fazer dessa criança o
mais “normal” possível.
A predisposição para o uso injustificável de terminologia visual, sem
sentido, demonstra forte tendência para a irrealialidade, na qual as relações
válidas são inteiramente ignoradas. O resultado inevitável é o de ser possível
apenas o pensamento incoerente e impreciso. Intelectualmente, a criança está
organizada em relação a si mesma ou ao seu próprio mundo experimental. O
mundo dos que vêem, com seus conceitos e valores visuais, torna-se o fio
delicado do qual sua contextura intelectual deve ser tecida. Este é o erro de
não educar-se a criança cega dentro do seu mundo de experiência, a fim de
que ela possa viver em harmonia consigo mesma e com o seu mundo, quer
seja entre cegos ou entre videntes. (p.63)
Num artigo de Rosel (1984) sobre a história do verbalismo, observamos que muitas e
diversificadas pesquisas foram realizadas sobre o tema. Neste escrito são mencionadas a
pesquisa de Cutsforth, como sendo a primeira, seguida da de P. Henri, realizada em 1948, que
conclui que “muitos cegos utilizam palavras cujo conteúdo abstrato desconhecem, bem como
sua referência real”. Não diferindo então do pensamento de Cutsforth, mas acrescentando que
os alunos mais verbalistas parecem apresentar também (mas não sempre) transtornos
psicomotores, de linguagem, tendência à abstração (falam palavras sem se preocupar com o
conteúdo) e deficit de capacidade gica o que, segundo Henri, pode ter sido motivada pela
formação familiar e social.
Após a pesquisa de Henri (1948), houve um intervalo de 12 anos até a pesquisa de C.
Y. Nolan (1960). Este autor fez um teste de associação de palavras análogo ao de Cutsforth.
Conclui que o verbalismo não é uma característica apenas dos deficientes visuais
distanciando-se dos resultados de Cutsforth. Diz que o verbalismo não é um problema
significativo nem para cegos nem para videntes. Harley (1963) tinha como objetivo
comprovar o uso que as crianças faziam de termos de conteúdo visual e também estudar a
correspondência entre esta utilização e a capacidade para identificar objetos. Concluiu que o
verbalismo de orientação visual acontece quando a criança utiliza um ou vários termos
referentes à cor ou a luminosidade para definir um objeto determinado. Ou quando a criança é
113
incapaz de associar a palavra a um objeto determinado. Esta pesquisa foi realizada com 40
crianças, 15 meninos e 25 meninas cegos de nascimento, com idade entre seis e 14 anos.
R.M. Demont (1972), pesquisando sobre o verbalismo, tinha como hipótese que não
havia diferenças significativas entre cegos e videntes quando atribuíam significado às
palavras, o autor comprova sua hipótese concluindo que não diferença significativa entre
os dois grupos.
Rosel (1984) utilizou como grupo controle indivíduos videntes. A pesquisa de Rosel
sobre as investigações anteriores chegou a algumas conclusões que em princípio percebemos
como presentes nos alunos deficientes visuais. A conclusão mais importante a que chega o
autor é que o verbalismo não é um desvio psicopatológico do cego e nem um deficit cognitivo
relacionado à cegueira, e sim uma condição ligada ao meio sócio-cultural no qual o cego vive
e como foram suas experiências com a linguagem. Diz ainda que o uso de termos verbalistas
indica a presença do verbalismo quando o contexto é de enunciação; quando o contexto é
descritivo ou de solicitação de qualidades o índice de verbalismo tende a aumentar, o que não
ocorre em um contexto de associação livre de palavras ou narrativo. Essas conclusões
reforçam o que até hoje se discute com relação ao verbalismo e sinalizam que ações
educativas podem minimizar sua ocorrência. A organização de estratégias educativas que
primem por uma contextualização permanente e uma ligação com situações vividas podem
levar o deficiente visual a perceber quando não entende algum conceito, exigindo assim uma
explicação imediata. Acreditamos que o verbalismo ocorre em decorrência de uma
linguagem dissociada do vivenciado e apartada de um contexto e que o fenômeno pode estar
presente em cegos e videntes.
Bruno e Mota (2001), discutindo a questão do verbalismo no caso da inclusão do
deficiente visual, referem-se a uma possível intensificação desse evento, a partir da situação
114
do contato do deficiente visual somente com videntes. Sinalizam para o problema da seguinte
forma:
a convivência e interação com pessoas e crianças videntes podem gerar
conceitos irreais, que são chamados de verbalismo, ou seja a tendência de
emprego de palavras e expressões de conteúdo puramente visual, sem ter
real significado para a criança. (p.176)
Esta fala não deve ser tomada como um argumento contra a inclusão. Acreditamos que
o que as autoras temem é o abandono de atitudes que priorizem a forma de conhecer dos
deficientes visuais. Por ser esse espaço freqüentado em sua maioria por crianças videntes,
poderá haver a ocorrência da supremacia de atitudes orais e visuais, fazendo assim que se
intensifique o comportamento verbalista do cego. O emprego do tato e de oportunidades nas
quais se possa sanar esse problema tem de ser encarado de frente, sem pudores tanto pelos
deficientes quanto pelos videntes.
Em recente artigo, Rosel et alli (2005) relatam os resultados de sua pesquisa sobre o
verbalismo, intitulada: Verbalism in the Narrative Language of Children Who Are Blind and
Sighted “Verbalismo na Linguagem Narrativa de Crianças que São Cegas e Videntes”, a
investigação foi realizada com 63 crianças cegas desde o nascimento e 63 crianças videntes.
A discussão dos resultados traz como conclusões as seguintes respostas: relatam que a
principal resposta obtida na pesquisa é que o grau de visão das crianças não tem um efeito
significativo na estrutura da linguagem dessas crianças e nem nas ocorrências de verbalismo,
sejam elas cegas ou videntes. O verbalismo tende a desaparecer com o avanço da idade e não
difere segundo os autores em quantidade entre cegos e videntes. Parece ser uma questão
relacionada ao meio em que a criança ou o adulto vivem e seu afastamento ou acolhimento no
grupo social, e o quanto isto interfere na sua linguagem, mais ou menos elaborada de acordo
com essas oportunidades. Fica, para nós, a idéia de que o verbalismo não é uma ocorrência
exclusiva de grupos com deficiência visual. Entretanto, ele com certeza pode ser mais
prejudicial às crianças que dependem de um bom entendimento da linguagem do que o grupo
115
vidente. A falta do entendimento do significado das palavras prejudica a compreensão do que
é dito, lido e interpretado, levando o deficiente visual a conclusões equivocadas. Este é um
prejuízo considerável para alguém que depende de uma comunicação eficaz, basicamente
mediada pela linguagem e o entendimento desta. Cabe lembrar aqui algo sobre este
entendimento,
A origem das palavras ajuda-nos a compreender-lhes o significado. Mas
sempre devem ser tidos em conta os limites inerentes à linguagem, bem
como o enorme abismo que existe entre o abstrato da fala e o concreto do
real. (OLIVEIRA, 2002, p.45)
pouco tempo vivi uma situação em que pude avaliar o quanto se pode acrescentar
ao universo do cego, quando este nos solicita a explicação de algo. É interessante mencionar
esse fato, pois elucida muito bem a perda de entendimento completo de conteúdo,
prejudicando a forma da compreensão futura da comunicação seja ela textual ou oral. Estava
numa festa no IBC, as mesas estavam decoradas com flores, copos-de-leite mais
precisamente. Uma colega cega, pessoa bastante ciente de sua condição e dos aspectos e
peculiaridades da cegueira, sem querer esbarrou no arranjo e ficou curiosa quando tocou na
flor, que para ela até o momento era desconhecida sob o aspecto forma, mas não sob o aspecto
semântico. Quando mencionei que eram copos-de-leite, a colega ficou muito interessada em
tocar demoradamente a flor e me disse a seguir: “– A flor do Jorge Tadeu!
16
Daquela
novela...deixa eu ver direito!”. Quando terminou sua pesquisa me disse: Agora sim eu
entendo o que queriam dizer os atores quando falavam dessa flor, ela realmente tem algo de
erótico, bem semelhante ao órgão genital masculino!”. Começou a rir e a dizer que as pessoas
tentavam explicar para ela o que queria dizer o silêncio que se dava antes de cenas mais
quentes, nas quais a imagem era apenas da tal flor, ou de mulheres comendo a flor. Ela
entendia que se tratava de um sinal de uma cena erótica, mas tocando na flor percebeu todo
16
Jorge Tadeu é o nome de um personagem de uma novela da TV Globo, Pedra sobre Pedra. Este personagem,
quando lembrado pelas mulheres, fazia com que elas comessem uma flor chamada copo-de-leite e sentissem a
presença física do personagem.
116
um significado até então desprovido de uma lógica, a qual não era entendida completamente
por ela. Quando pedia uma explicação sobre o silêncio da cena, as pessoas diziam que na tela
aparecia uma flor chamada copo-de-leite. Por que especialmente era aquele tipo de flor que
representava o erotismo? O que tinha aquela flor de tão especial? Ela chegou a me dizer que
pensava que a flor tinha um cheiro e um paladar peculiar com efeitos afrodisíacos, tal como a
papoula tem de inebriante. Essa e outras histórias poderiam ilustrar a falta que faz o toque, e a
aproximação corpo-objeto para que o deficiente visual enriqueça sua subjetividade, afastando-
se assim das ocorrências de verbalismo.
O caso apresentado não se caracteriza como uma forma de verbalismo. A pessoa sabia
que o nome copo-de-leite era o de uma flor, entretanto, no contexto que se apresentou na
encenação, havia um conteúdo a mais que até o momento no qual a professora realmente
conheceu a flor, através do tato percebendo seu formato, não fazia sentido para ela. Quando
pôde tocá-la, percebendo seu formato, entendeu o que antes lhe era ocultado pela falta da
percepção tátil daquela flor em especial. A explicação verbal não deu conta da mensagem
subliminar (perdida pela pessoa cega) oculta nas cenas em que a flor aparecia, ocorrendo um
desdobramento do que chamamos verbalismo.
Quando a pessoa não tem uma clareza sobre os conceitos, não sendo capaz de usá-los
com propriedade, pode efetuar uma fala verbalista. E de outro modo, quando a pessoa cega é
verbalista, muitas vezes perde a oportunidade de aprender conceitos, pelo fato de que nem
sempre seu verbalismo é detectado.
O papel da experiência corporal, da exploração tátil do ambiente e dos objetos nele
encontrados pode se configurar como um meio de minimizar os efeitos do verbalismo,
trazendo a concretude no propósito de facilitar a compreensão de conceitos antes apenas
nomeados de forma repetitiva sem uma relação entre significante e significado.
117
Reproduzimos aqui uma experiência de Veiga (1983), referindo-se ao assunto quando
visitou o Museu do Louvre,
Na minha visita ao Louvre não quis cansar minha mulher com a descrição
permanente dos quadros dos salões de pintura. Deixei-a ir sozinha percorrer
essas galerias, enquanto eu me fiquei servindo do cassete que explica em
francês tudo o que se exibe. Para mim, foi uma delícia. Como? Não sei.
Cego desde tenra idade, nunca pude apreciar a arte da pintura. Mas gostei
muito da descrição e do histórico dos quadros recitados no cassete. Quando
encontrei minha mulher, eu sabia muito mais da história dos quadros do que
ela, que não se servira do cassete. Sabia mas não tinha a sensação que ela
trazia em si. Sabia mas não sentia. Era o tal verbalismo de que tanto nós
nos servimos; nós, os cegos, de que tanto nos empanturram os nossos
professores menos avisados. (VEIGA, 1983, p.32)
Esta fala revela com clareza a relação entre o verbalismo e aquilo que estamos
defendendo nesta tese com uma cognição incorporada, advinda de experiências em que o
corpo esteja sentindo, participando, conhecendo. Receber apenas informações verbais como
no caso descrito por Veiga não deixa de ser importante, entretanto, é possível ampliar as
noções ouvidas realizando ações nas quais a experiência corporal tenha lugar, trazendo
concretude e um diferente entendimento do que é ouvido, através das sensações que o corpo
pode vivenciar e perceber.
Este capítulo teve como objetivo apontar aspectos da deficiência visual, analisados a
partir de situações muito comuns neste campo, tais como: a compensação e a aprendizagem
da visão, a formação de conceitos, a linguagem e o verbalismo. Através desses temas
tentamos abordar questões pontuais sobre a cognição dos deficientes visuais e a necessidade
de uma aprendizagem corporificada que formam uma base para a nossa proposta, apoiada
numa educação menos abstrata pautada na ação do corpo como agente cognitivo.
118
CAPÍTULO III – Tocando e aprendendo com o corpo
III.1-Pesquisas sobre corpo: desenvolvimento motor, deficiência visual
Um dos aspectos mais citados sobre dificuldades inerentes a deficiência visual refere-
se à questão corporal, mais especificamente a aspectos motores e relativos ao domínio do
espaço. O reconhecimento de seu próprio corpo, a separação deste em relação ao espaço e o
domínio do mesmo acontecem de forma peculiar no deficiente visual. Ele não o corpo do
outro, não pode espelhar movimentos, bem como organizar suas ações no ambiente
considerando experiências que têm como base a imitação.
Alguns autores, tais como: Warren (1984), Amiralian (1997), Martin e Bueno (2003)
partilham a idéia de que a falta da visão interfere na construção do esquema corporal, na
organização e estruturação espaciais, na orientação e identificação de objetos, entre outras
habilidades. Martin e Bueno consideram que a visão, por interagir de forma intensa com o
desenvolvimento motor, afeta a criança cega com relação ao seu desenvolvimento nesta área.
Bueno aponta que o equilíbrio entre outras habilidades, por exemplo, orientação corporal,
postura, tomada de posição do corpo e orientação espacial, interferem na orientação e
mobilidade futura do deficiente visual.
Ainda são mencionadas, nesta área do desenvolvimento motor, questões relativas a
atrasos. Segundo Amiralian (1999, p.61) “o atraso na mobilidade é apontado como freqüente
entre crianças cegas”, a autora cita as observações de Lowenfeld (1981), que considera a
restrição à mobilidade como causada pela cegueira. Rodrigues (2002, p.9) diz: “O atraso na
aquisição da sustentação cefálica, comum em crianças cegas, interfere na aquisição das etapas
119
motoras subseqüentes.”. Hatwell (2003) menciona que os cegos têm um desenvolvimento
geralmente comparável ao vidente com exceção do desenvolvimento motor, destaca que,
O desenvolvimento postural é afetado nos cegos porque ele não depende
somente da propiocepção corporal (tendões, articulações, músculos) mas
também da propiocepção visual. A visão de seu próprio corpo participa com
efeito da formação de uma representação unificada do corpo. A mais as
trocas da estimulação visual informam sobre a direção e a velocidade de
deslocamento de objetos exteriores. Enfim a importância e a permanência
dada sobre as direções verticais e horizontais que estruturam o mundo, a
propiocepção visual fornece à propiocepção corporal e ao sistema vestibular
um quadro de referência interior do qual a criança vidente situa mais
facilmente seu corpo e os segmentos do seu corpo. (p.25)
Não dúvidas de que a visão, sendo o órgão que nos permite observar o espaço, a
distância entre os objetos e nos a noção do ambiente como um todo, interfere no modo
como nos movimentamos. A falta desse conhecimento determina o modo de se movimentar
da pessoa com deficiência visual. Ela terá que através do sentido háptico reconhecer os
espaços por onde seu corpo circulará. Leva então um tempo consideravelmente maior neste
reconhecimento.
Kirk e Gallagher (1987, p. 250), ao citar Cratty, apontam que nas crianças cegas
congênitas, a lateralidade, ou o uso preferencial de um dos lados do corpo, não é tão bem
estabelecida. Pela afirmação desses autores e pelo conjunto de observações feitas por
Monteiro (1992, 2003), Figueira (2000) e Rodrigues (2006), percebemos a necessidade de
estimulação planejada, assim que detectado o problema da deficiência, para o
desenvolvimento adequado de atividades que estimulem as habilidades motoras das crianças
cegas e conseqüentemente de sua lateralidade, algo de fundamental importância para esta
criança. Este tipo de trabalho, chamado de estimulação precoce, deverá fazer parte da vida da
criança cega, primordialmente em seu lar, desenvolvido por seus pais, que deverão ser
orientados para tal fim. Todavia, muitas vezes isso não ocorre devido a fatores emocionais
que afetam a família, quando percebem a deficiência de seu
120
filho. Rodrigues e Macário (2006,
p.12
) mencionam que ao nascer, em geral a criança
cega não encontra a receptividade esperada de sua família, se comparada à recebida pela
criança de visão normal: “Tão logo a cegueira da criança é percebida, nos primeiros dias ou
meses de vida, ocorre com freqüência uma ruptura ou comprometimento do vínculo afetivo
que se estabelece e sustenta a relação mãe e filho.”
Sem esse apoio familiar, a criança cega passa, precocemente, por circunstâncias
adversas que certamente a afetam em termos psicológicos, particularmente, de cunho afetivo.
Se tiver a sorte de nascer em uma família que naturalmente a acolha e promova atividades
lúdicas, similares àquelas que são feitas com um bebê de visão normal, provavelmente não
apresentará defasagem significativa neste aspecto. Caso contrário, terá sem dúvida,
postergada uma parte importante de sua vivência psicomotora, a menos que,
espontaneamente, durante seu desenvolvimento, esta criança procure e desenvolva por si
própria estratégias de movimentação.
Hatwell diz que “Os bebês cegos são tipicamente muito ‘calmos’ durante os primeiros
meses de vida. Eles têm uma fraca atividade postural e motora e ficam um longo tempo
imóveis.” (2003, p24). Comenta ainda que seu desenvolvimento postural é afetado porque ele
depende não só da propiocepção
17
corporal (tendões, articulações e músculos), mas também
da propiocepção visual (ibdip25). Bruno (1993) também comenta sobre esta questão dizendo
que:
Em virtude da baixa atividade motora, propioceptiva e vestibular decorrentes
da ausência da visão, estas crianças têm pouca oportunidade de prolongar as
experiências táteis-cinestésicas de flexão do corpo, da sucção dos dedos e
roçar o rosto, que vivenciam no útero materno... A ruptura dessas
experiências sensório-motoras integradas prejudica a organização e o
planejamento do ato motor, a vivência do corpo no espaço que são
responsáveis pelo desenvolvimento do mecanismo de adaptação ao meio e
de organização interna do sujeito. (p.14 e 15)
17
Propiocepção: capacidade de perceber as sensações que informam o cérebro sobre o estado físico do corpo;
tensões musculares, dos tendões etc.
121
Voltando-se à questão específica da lateralidade, pode-se dizer que nomear um de seus
membros como o “direito” ou o “esquerdo” será possível após a informação desse dado tal
como para as crianças videntes. Nota-se que na criança cega essa aquisição é fruto apenas de
informação verbal fornecida na escola e não de uma aquisição advinda de sua capacidade de
apreender de forma natural este conceito como no caso das crianças videntes que associam
essas palavras à direção e posição por terem a experiência visual. Figueira (2000) menciona
que existem alguns trabalhos realizados pela Organizacion Nacional de Ciegos de Espanha
(ONCE) em que se tem obtido sucesso num programa de estimulação de crianças cegas com
respeito à sua lateralidade:
têm-se observado em crianças com quatorze meses conhecimento de direita
e esquerda, e capacidade de buscar objetos próximos em cada lado de seu
corpo, quando indicada. Crianças com dois anos, que seguiram o programa
da ONCE, conheciam perfeitamente s e mãos, direitos e esquerdos. Este
conhecimento é fruto de um trabalho intenso, no qual através da repetição é
formado um hábito, desta forma a criança vai interiorizando. Um novo
conceito só é introduzido quando há a interiorização do anterior. (p.18).
Durante um trabalho desenvolvido nas classes de educação física desenvolvido no IBC
(1980 a 2003), foi possível constatar que as crianças, na faixa etária entre seis e oito anos e,
até mesmo, antes desta idade, são muito receptivas aos exercícios que trabalham sua
lateralidade, pois muito cedo percebem a necessidade de diferenciar esquerda e direita, já que
a maioria das orientações para seu caminhar seguro mencionam as referidas direções. A
criança observa, então, que, quando o conceito é dominado por ela, imediatamente ela se
beneficia, pois, assim que sai da sala de aula, o professor a orienta, indicando, a porta de
saída, ou outro espaço da sala utilizando as direções, facilitando assim o seu caminhar.
Entretanto, esse é um trabalho intensivo direcionado para esse fim, ministrado tanto nas
classes de educação física como nas de Educação Infantil, para que esta dificuldade seja
amenizada ou extinta.
122
O próprio posicionamento das letras no alfabeto Braille, normalmente, é apresentado,
empregando-se a noção de direita, esquerda, em cima e embaixo. Se tais conceitos no início
de sua alfabetização estiverem encarnados pela criança cega certamente estará facilitado o
rápido domínio das técnicas do sistema. Deste modo, não é difícil concluir quão importante é
a definição da lateralidade. Tendo em vista que as pesquisas detectam uma defasagem a esse
respeito, é importante que os professores invistam em atividades que facilitem a
internalização deste conhecimento.
Quanto ao domínio do espaço, diversas pesquisas mencionam as dificuldades
encontradas pelas crianças cegas. Gottesman (1976) menciona que os bebês cegos têm grande
desvantagem em relação às crianças videntes por não poderem fazer a mesma relação e
coordenação do espaço, durante os dois primeiros anos de vida, faz, ainda, considerações
sobre esta condição comparando-a ao problema da lógica em crianças surdas.
o desenvolvimento da inteligência sensório-motora e a coordenação das
ações neste nível são seriamente impedidos na criança cega. Por esta razão
achamos que há um grande atraso em seu desenvolvimento no nível do
pensamento representacional, e a linguagem não é suficiente para compensar
a deficiência na coordenação das ações. O atraso é naturalmente e
posteriormente compensado, mas ele é significante e muito mais
considerável do que o atraso no desenvolvimento da lógica nas crianças
surdas e mudas. (p.94).
O domínio do espaço pode ser considerado como uma das maiores dificuldades da
criança ou do adulto cego. A falta de percepção espacial dificulta a movimentação e interfere
no ritmo, na direção e no equilíbrio, necessários ao deslocamento. As principais pesquisas
relatam este fato, detectado na maioria das vezes, quando são analisados os comportamentos
posturais e motores de bebês cegos. Fraiberg (1977) citado por Hatwell (2003) comenta que
as questões de desenvolvimento motor e do atraso nesta área das crianças cegas não advêm
apenas dos aspectos motores, embora também tenha aspectos mais ligados à cognição como
um todo. Menciona que muitos bebês cegos capazes de engatinhar, do ponto de vista motor,
não o fazem por não terem motivação para tal. A falta da percepção visual dos objetos que, na
123
maioria das vezes, não são fontes sonoras, não cria a motivação necessária para o
deslocamento do bebê que ainda não construiu uma noção do espaço e também não sabe da
possibilidade de encontrar objetos quando se desloca. A autonomia para a movimentação que
os bebês videntes naturalmente adquirem não é presente nos bebês cegos, que deverão ser
estimulados para esses deslocamentos.
As conclusões das diversas pesquisas analisadas por Hatwell trazem para esta autora
os seguintes resultados quanto aos aspectos perceptivos-motores dos recém nascidos cegos:
até os dois meses de idade a falta da visão não causa diferenças entre crianças cegas e
videntes, mas a partir dos dois ou três meses, as diferenças começam a se manifestar. São
observados retardos motores com respeito à elevação da cabeça (evidentemente pela falta de
motivação para olhar o entorno), à condição de se manter sentado e aos deslocamentos
autônomos. É preciso dizer que as etapas de aquisição das posturas citadas acontecem na
mesma seqüência que as crianças videntes, há apenas uma considerável diferença em relação
ao tempo em que as aquisições se dão. O bebê cego demora um tempo consideravelmente
maior para atingir determinadas posturas, tais como: a de sustentação da cabeça, a posição de
pé, o engatinhar, entre outras. Hatwell ressalta que estas características são mais comuns em
bebês afetados pela Retinopatia da prematuridade.
18
Prossegue, relatando que a construção do
espaço exterior e a questão da permanência dos objetos, os quais para a criança cega
desaparecem, quando não estão em seu alcance, faz com que, naturalmente, não haja
motivação para deslocamentos, ocasionando pouca movimentação.
Aponta ainda que um retardo em um domínio, no caso, a locomoção poderá provocar
retardo em outros domínios fruto do primeiro. A autora não menciona quais seriam estes
outros domínios que poderiam manifestar o atraso, no entanto, pode-se supor que seriam
aqueles derivados da falta de exploração do espaço, como a restrita variedade de experiências
18
A retinopatia da prematuridade (ROP) é reconhecida como causa de redução da acuidade visual e de cegueira
desde 1942, quando Terry descreveu pela primeira vez as alterações vasculares de uma retina imatura (SUS-SP,
2007).
124
táteis, advindas da pouca investigação e experimentação do ambiente. Ainda pode-se apontar
um possível empobrecimento da linguagem, resultante de pouca estimulação, ocasionando um
repertório limitado de objetos conhecidos, de suas características e de seus nomes, ou seja, do
reconhecimento e da identificação destes objetos. Finalizando, a autora menciona, mais uma
vez, que os resultados advindos de trabalhos de psicologia experimental traduzem resultados
de médias estatísticas e comenta que alguns cegos têm um desenvolvimento análogo aos
videntes.
De um ponto de vista empírico, fruto de nossa experiência com diversas famílias de
crianças cegas, podemos supor que a superproteção dada a alguns bebês limita sua atividade
motora e prejudica a busca espontânea de espaços e objetos novos. Entretanto, quando a
família e a escola estimulam um desenvolvimento saudável através da exploração do espaço e
dos objetos, vigiando a criança e apenas limitando sua movimentação para impedir que ela
venha a se machucar, o quadro se inverte e sua atividade motora tende a se aproximar bastante
da das crianças videntes, ressalvando-se sua maneira peculiar de se locomover sem o auxílio
da visão, ou seja, mais lentamente e com alguns desvios de direção.
Raros são os trabalhos científicos que não mencionam a superproteção como fator
interveniente nas possíveis defasagens cognitivas e ou motoras apresentadas por essas
crianças. Entre outros autores, referem-se a este tema: Cobo e Bueno (2003), Santin e
Simmons (2000), Amiralian (1997), Bruno (1993), Telford e Sawrey (1983). A curiosidade
natural da criança cega fica muitas vezes sensivelmente prejudicada, caso não lhe seja dada a
liberdade para buscar, explorar e descobrir seu meio ambiente. O oferecimento de fontes
sonoras ou outras que agucem seus sentidos remanescentes pode facilitar essa exploração,
criando oportunidades de vivências ricas e significativas, as quais contribuem para uma
ampliação significativa de seu universo tátil.
125
Dar liberdade de movimentos a um bebê cego tanto quanto um bebê vidente é algo que
costuma preocupar os pais que têm medo que ele venha a se machucar. Mas no caso dos
bebês cegos essa falta de liberdade parece se acentuar, assim, na maioria dos casos, a
superproteção se consubstancia.
Por diferentes razões, os pais tendem a proteger as crianças cegas de golpes
e contusões, de se sujarem, perderem-se, machucarem-se ou dos comentários
de outras pessoas. Essa proteção impede que a criança experimente outros
tipos de estimulação e adquira muitos conceitos novos. (MARTIN E
BUENO, 2003, p.115)
Desse modo, são poucas e raras as crianças que apresentam desenvolvimento motor
com um ritmo semelhante ao dos videntes. Esta observação reforça mais uma vez, a idéia de
que não são os aspectos biológicos e fisiológicos que determinam defasagens e atrasos nestas
crianças, mas, sobretudo, a falta de oportunidades e experiências ocasionadas pela educação
familiar e escolar, muitas vezes, limitadora de sua expressão corporal.
Aquele que não se utiliza da visão para ter conhecimento do espaço, das pessoas, das
formas dos objetos e, portanto, poder nomeá-los, distingui-los e reconhecê-los, faz uso de
seus outros sentidos e de sua percepção háptica para poder dar conta dessas e de outras
tarefas. O sistema háptico é um sistema complexo encarregado de apreender e codificar a
estimulação que chega aos receptores cutâneos e cinestésicos. Gibson (1962) em seu artigo
Observations on active-touch discorre longamente sobre o assunto, mencionando que o tato
ativo pode ser chamado de tocando (touching), ou seja, uma atividade em que a função do
tato é a de explorar, reconhecer algo, pesquisar um objeto, atuando perceptivamente para
obter uma resposta sobre o que está sendo tocado, diferentemente do tato passivo que residiria
apenas em ser tocado por algo ou simplesmente tocar sem explorar, por exemplo, quando
repousamos nosso corpo na cama ou nossas mãos no colo.
Segundo Loomis e Lederman (1986), a percepção háptica é entendida como a
combinação da informação adquirida através da pele que cobre o corpo humano. Ballesteros
126
(1999) concorda e reforça o que foi dito sobre o sentido háptico, identificando-o como sentido
importante e fundamental para o deficiente visual, menciona que,
O sistema háptico (tato ativo) é um sistema perceptivo complexo
encarregado de apreender e codificar a estimulação que lhe chega aos
receptores cutâneos e cinestésicos. Por percepção háptica se entende a
combinação e a informação adquirida através da pele que recobre o corpo
humano, e a informação obtida através do movimento o sentido cinestésico.
Se trata de um sistema perceptivo complexo que incorpora e combina a
informação a partir de distintos subsistemas táteis como o subsistema
cutâneo (percepção da pressão e da vibração),e o subsistema térmico e o
subsistema da dor. (p.6)
Assim, podemos dizer que é através desse sistema que o deficiente visual processa as
experiências que lhe chegam do ambiente e das pessoas e objetos nele existentes.
A cognição dos deficientes visuais é construída primordialmente com base nas
experiências concretas. A pessoa deficiente visual depende da aproximação de seu corpo do
mundo que a cerca por isso é necessária a eliminação de qualquer tipo de barreira no intuito
de que essa aproximação aconteça. Muitas pesquisas (AMIRALIAN, 1997; MASINI, 2003;
ORMELEZI, 2000; RODRIGUES, 2006; BORGES, 2007) mostraram a importância de uma
cuidadosa atenção que deve ser dada ao corpo do deficiente visual, facultando-lhe melhores
possibilidades de desenvolvimento tanto motor quanto cognitivo.
No que concerne à educação dada na escola, percebe-se, ainda, uma educação por
demais centrada na linguagem verbal, na qual o corpo fica restrito a espaços determinados,
normalmente e na maior parte do tempo, uma mesa e uma cadeira. São poucas as
oportunidades de contato entre os corpos devido à imposição de barreiras sociais e culturais
que determinam o comportamento de alunos e professores no espaço escolar. Toda esta gama
de situações parecem concorrer para acentuar as defasagens motoras relatadas pelas pesquisas
feitas sobre o tema. A partir desses conhecimentos, passamos a analisar questões que
perpassam estas situações.
127
No parágrafo acima falamos sobre barreiras sociais e culturais que interferem nas
questões do comportamento motor dos deficientes visuais. E de quais barreiras estamos
falando? Daquelas que, ainda hoje, fazem parte da experiência corporal entre pessoas e entre
pessoas e objetos, limitando a distância entre eles, bem como, valorizando, sobremaneira, e
cada vez mais, apenas o diálogo pautado apenas na oralidade, principalmente através das
novas tecnologias capazes de favorecer o contato verbal mas que distanciam cada vez mais os
corpos uns dos outros.
Mesmo antes desse distanciamento proporcionado pelas novas tecnologias, havia
uma distância a ser respeitada entre os corpos, construída historicamente e socialmente,
diferenciada em cada cultura. Na escola, que é o espaço que nos interessa, esse corpo
permanece envolto em significativo distanciamento, tanto em relação às pessoas quanto em
relação aos objetos. Para quem não vê, essas barreiras e esses distanciamentos têm de ser
quebrados, caso contrário, esse indivíduo desprovido do contato terá menos chances de viver
experiências que lhe tragam informações. Portanto, estudar as possibilidades do corpo e suas
aplicações como mediador dos processos cognitivos, torna-se fundamental.
A partir das dificuldades dos deficientes visuais em termos de movimentação do
corpo, de percepção do espaço, de apropriação dos movimentos desse corpo, consideramos
indispensável repensar as atividades corporais direcionadas a essas pessoas. O ato de apenas
movimentar esse corpo através de exercícios planejados para desenvolver a musculatura e a
condição física de maneira geral não preenche, a nosso ver, as lacunas existentes na relação
corpo espaço e limitam as possibilidades de um corpo que não é reconhecido como agente do
processo de conhecer.
Em princípio, as ações desse corpo devem ser contextualizadas, conferindo aos
movimentos algum significado, pois para aquele que não e não pode espelhar os
movimentos essa significação traz um sentido ao movimento, retirando deste uma conotação
128
mecânica. Explicando melhor, dizer para a criança que quando ela está rastejando ou rolando
no chão está executando um movimento que alguns animais também executam e que também
os objetos quando impulsionados rolam, seria um exemplo do que queremos dizer com
contextualizar o movimento, retirando deste o fazer por fazer. Aproveitando a experiência
vivida pelo corpo em movimento para dar uma gama importante de informações. É preciso
potencializar a relação entre o que se está fazendo e o que se está pensando e sentindo. É dar
sentido ao percebido ao experienciado,
Um fato pré-verbal não nos ensina nada a respeito do sentido do termo com
que o designamos. Um exemplo banal: o sentido de “prurido” não deriva
imediatamente da sensação que temos quando por acaso esbarramos numa
folha de urtiga. Para saber o que é “prurido” (saber que tipo de coisa é
prurido”) e usar o termo na hora certa é necessário saber diferenciá-lo de
outros termos (dor, irrritação, cócegas, queimação) e aproximá-lo de outros
(comichão, coceira). [...] É preciso pois, dominar uma rede holística de
significações e enunciados dentro da qual se estabelece a identidade
relacional do termo. (BEZERRA JR, 2001, p.33)
Esse diálogo entre o corpo e o espaço, entre os corpos e entre o corpo a linguagem e o
contexto do que ele está executando, é o que em princípio designamos como um conhecer
pautado na experiência.
A emergência de um sujeito depende da aquisição, por parte dos organismos
humanos, de uma habilidade especial: a de configurar sua experiência no
mundo por meio de significações. Essa capacidade está relacionada aos tipos
mais básicos de experiência cognitiva possibilitados pelas estruturas
sensório-motoras que caracterizam o organismo humano – isso significa
dizer que a mente ou a experiência subjetiva é corporizada (embodied).
(BEZERRA JR, 2001, p.41)
Especialmente para o deficiente visual a experiência cognitiva adquire significação
quando uma conjugação do que é corporalmente vivido com o que é relacionado pela
linguagem.
III.2-Aprender, uma experiência corporal?
129
Estudos recentes mostram o papel irrefutável da experiência corporal, ou da
incorporação da experiência (corpo-ação-movimento), como mediadora dos processos
cognitivos. Nestes estudos são confirmados que a ação é determinante como agente do
conhecimento. Dizendo de outra maneira: o corpo é agente do processo cognitivo, o qual se
dá a partir da e na experiência.
O corpo não é apenas um veículo: ele constitui o principal modo de
percepção e expressão do homem. Ele fala por intermédio das nossas
emoções que, em sentido próprio, são os movimentos. Nossa expressão
corporal deve, assim, ser entendida em seus múltiplos significados e
possibilidades: saber o que somos e sentir o como somos é a capacidade que
nos permite expressar qualquer tipo de conteúdo mental, por meio do corpo,
sem necessidade de complicadas elaborações conceituais. (THOMPSON,
2007, p.141)
As ciências da cognição ao longo de sua história vêm estudando prioritariamente as
relações mente-cérebro, deixando num outro patamar, talvez até hoje menos relevante, as
questões do corpo como agente da cognição. São estudados mais freqüentemente os processos
de raciocínio, consciência, atenção, entre outros, intrínsecos ao funcionamento cerebral. A
valorização do corpo e do corpo em ação (movimento) como elemento importante do
processo cognitivo aparece, mais recentemente, nos escritos de Damásio, Maturana, e Varela.
Estes autores valorizam os processos perceptivos atencionais, entre outros que fazem parte
dos esquemas cognitivos, observando-os numa ótica que valoriza o corpo, a experiência e a
incorporação da mesma.
Se o corpo e o cérebro interagem intensamente entre si, o organismo que eles
formam interage de forma não menos intensa com o ambiente que o rodeia.
Suas relações são mediadas pelo movimento do organismo e pelos aparelhos
sensoriais. (DAMÁSIO, 2006, p.117)
Damásio define o conceito de “protoself” em que o corpo é considerado o sensor que
antecipa e capta os sinais que futuramente serão por nós codificados e nomeados de
sensações, as quais se tornam conscientes pela via corporal. De maneira simples e objetiva,
nos faz entender esta relação. “A mente é tão estritamente moldada pelo corpo e destinada a
130
servi-lo que somente uma mente poderia surgir nesse corpo. Não mente que não tenha um
corpo, não há corpo que tenha mais de uma mente” (2004, p.187). Ou seja, a mente emerge de
um corpo e é organizada e desenvolvida com base nas experiências que esse corpo sofre, não
se cria num ato apenas reflexivo isolado das experiências corporais, ela é corporificada, é uma
mente incorporada.
Tudo o que ocorre em sua mente se dá em um tempo e em um espaço
relativos ao instante em que seu corpo se encontra e à região do espaço
ocupada por ele. As coisas estão dentro ou fora de você. As que estão
paradas podem estar perto, longe ou a uma distância intermediária. As coisas
que estão em movimento podem estar se aproximando ou se afastando, ou se
deslocando em uma trajetória que não passa por você, mas o seu corpo é
sempre a referência. (DAMÁSIO, 2000, p.190)
Nos escritos de Maturana e Varela mencionados anteriormente, encontramos vários
conceitos como enação e autopoiese, os quais assinalam a corporificação da cognição.
Em primeiro lugar, a cognição depende dos tipos de experiência que advém
do fato de se possuir um corpo dotado de diversas capacidades sensório-
motoras; e em segundo lugar, essas capacidades sensório-motoras
individuais estão elas próprias embutidas em um contexto biológico e
cultural mais abrangente
.
(VARELA, 2003, p.78)
O conceito de autopoiese, advindo da biologia, é formulado pelos autores, rompendo a
barreira desta ciência para traçar caminhos mais amplos, ao ser aplicado em outros campos
teóricos. No caso da educação a palavra remete à autoprodução no processo de construção do
conhecimento. Há no texto destes autores certamente uma ampliação do conceito de cognição,
uma forma, poderíamos dizer, interdisciplinar de olharmos para o que seja aprender. Um
caminho para se pensar a aprendizagem numa ótica em que a subjetividade emerge do ato
criador.
Neste processo, autopoiético, o sujeito enquanto aluno, ou melhor dizendo, enquanto
aprendiz, é alguém que produz e, ao mesmo tempo enquanto faz o “trabalho”, passa a uma
autoprodução, modificando-se, e como nos diz Kastrup (1993), reinventando a si e ao mundo.
Poiesis é um termo grego que significa produção. Autopoiese quer dizer autoprodução. E
131
realmente ao se pensar que a construção do conhecimento nos remete sempre a uma produção,
seja esta ligada a tarefas escolares no caso aqui especificamente, escrever, ler, estudar,
verifica-se que o conceito encaixa-se perfeitamente.
O papel irrefutável da experiência corporal, ou da incorporação da experiência (corpo-
ação- movimento) como mediadora nos processos cognitivos e de recognição, pode ser
confirmado com o uso de novas tecnologias,
Com a aplicação de pulsos magnéticos no chamado córtex motor primário,
região do cérebro que atua no controle dos movimentos corporais, consegue-
se mapear alterações no nível de atividade cerebral associadas ao movimento
de determinados músculos e identificar nesses mapas mudanças provocadas
por problemas como amputações de membros. “Há uma representação dos
movimentos dos membros no córtex motor”. E se uma pessoa perde a mão,
por exemplo, a representação do braço se expande para ocupar aquele espaço
que era da mão. (MOURA, 2006, p.4)
Lendo esses estudos, confirmamos que a ação é determinante como agente do
conhecimento, dizendo de outra maneira, que o corpo “estático” (porque mesmo
aparentemente estático nosso corpo é movimento), ou em movimento, é reconhecidamente
agente do processo cognitivo, o qual se a partir da e na experiência. A enação enfatiza a
dimensão existencial do conhecer, emergindo da corporeidade. A cognição depende então da
experiência que acontece na ação corporal. Essa ação se vincula às capacidades sensório-
motoras envolvidas no contexto biopsicocultural. O termo significa que os processos
sensório-motores, percepção e ação, são essencialmente inseparáveis da cognição (VARELA,
THOMPSON e ROSCH, 1996).
Entender o corpo e não a mente (que dele emerge) como mediador do processo de
conhecer ou mesmo de aprender é algo que não é uma prática corrente nos ambientes da
educação, mais precisamente na escola. Neste meio social costuma-se eleger prioritariamente
a mente e os trabalhos a ela destinados como melhor e maior espaço dos processos de
construção do conhecimento. Exercitam-se sobremaneira as tão propaladas competências e
habilidades desde que não se afaste o aluno do espaço da sala de aula. Na sala de aula toma-se
132
como ideal de comportamento e disciplina, um corpo estático que experiencia novos
conteúdos prioritariamente através dos atos de ler e escrever. Isso traz como conseqüências a
pouca exploração de ambientes e objetos, limitando desta forma uma construção do
conhecimento mais rica de informações. Não se opera na escola uma política voltada para um
maior envolvimento do corpo como um todo nas tarefas escolares, limita-se e circunscreve-se
esse corpo na maior parte do tempo ao restrito espaço de sua carteira escolar.
O corpo não é uma coisa, nem idéia. O corpo é movimento, sensibilidade e expressão
criadora. É essa, de maneira geral, a concepção de corpo de Merleau-Ponty, em contraposição
às perspectivas mecanicistas da filosofia, da fisiologia e da psicologia. Nesse sentido, sua
concepção se alia a uma nova compreensão de corpo e do movimento humano, considerando
a compreensão das relações do corpo/mente como unidade e não como integração de partes
distintas com suas respectivas funções. Deste modo, corpo e mente não são unidades
separadas, estão conjuntamente imbricados em nossas experiências.
III.2.1 Como atuamos?
Certamente não aprendemos a ler, a escrever, a caminhar, após diversas lições teóricas
nas quais o texto menciona que músculos devemos acionar, que organização postural
construir e de que forma devemos nos mover para efetivar essas ações. Aprendemos durante a
experiência com o nosso corpo atuando e voltado para a aprendizagem. No caso específico do
caminhar, não se a receita que diz: Coloque um adiante do outro, a cabeça erguida para
que possa ver o caminho, os braços soltos entre outras informações. Vamos nos movendo
tentando alcançar os objetos, movidos pela curiosidade numa busca do espaço e das múltiplas
133
surpresas que ele nos oferece. É certo que quase nunca pensamos sobre isso e muito menos
associamos este difícil e elaborado ato motor à nossa capacidade de aprendizagem. Parece, à
primeira vista, que este será um comportamento natural, adquirido independente de uma
prática. No caso da percepção do espaço, de distância, de profundidade, entre outras, também
não nos damos conta do esforço que nosso organismo demanda, como nos aponta Sacks:
Atingimos a constância perceptiva-a correlação de todas as diferentes
aparências, as modificações dos objetos- muito cedo, nos primeiros meses
de vida. Trata-se de um enorme tarefa de aprendizado, mas é alcançada tão
suavemente, tão inconscientemente, que sua imensa complexidade mal é
percebida(embora seja uma conquista a que nem mesmo os maiores super-
computadores conseguem começar a fazer face). (1995, p.141 e 142)
No caso do deficiente visual saber que direção tomar, que caminho seguir, como se
desviar de obstáculos constitui algo que depende de uma prática e de um exercício constante
de sua mente incorporada.
Esta é uma provocação inicial, apenas para nos darmos conta de que não valorizamos
o empenho cognitivo que esta tarefa nos exige. Nosso corpo empenhado nesta tarefa é ao
mesmo tempo professor e aprendiz. É aprendiz quando observa e examina outros corpos
executando este movimento, tentando captar o gesto como um todo, detalhando cada nuance
do caminhar. É professor (de seu próprio corpo) quando tenta voluntáriamente reproduzir o
movimento, executando incessantemente as ações percebidas até conseguir êxito.
Não nos detemos na complexidade de tal fato, pois, em geral, não valorizamos a
relação intrínseca entre o pensamento e a corporeidade. Michel Serres (2004) elucida de
forma primorosa o que se quis dizer :
O corpo não recebe ajuda de qualquer memória externa, ele faz por si só,
copia e armazena os dados. Essa preciosidade encontra-se também presente
na história de todas as culturas nas quais não existe um trabalho mais
difundido e mais preciso do que copiar. (p.76)
Considerado algo natural, quase banal e um feito atingido por todos, o simples fato de
caminhar, o qual talvez demanda um de nossos maiores trabalhos cognitivos, não vem sendo
134
destacado como uma conquista de valor. Isto acontece quando o caminhar não consegue
ser executado; sim, um sinal de alerta é acionado, mencionando que algo muito grave está
acontecendo. Se uma criança não atinge esta etapa num tempo comumente previsto (por volta
dos doze meses), então o corpo passa a ser visto como corpo cognitivo, como mente
incorporada e começa a ser investigado e valorizado de forma conjunta. A relação entre esse
comprometimento e uma disfunção de ordem cerebral passa a ser cogitada.
A observação efetiva de nosso corpo parece nos chamar a atenção quando parte
dele se encontra fora da ordem, dolorida, sem movimento, ou seja, impedida de sua função.
Lidamos com o corpo como se ele praticamente não nos pertencesse, nos percebemos
tendo um corpo no momento em que ele nos impede de usá-lo, como de costume. Quando ele
não sinais de impedimento, passa como mero “carregador” de um eu. Uma estrutura da
qual nos damos conta quando nos sinais de dor principalmente. Entretanto, mesmo
sem nos darmos conta, o corpo nos fornece uma série de informações importantes.
É verdade que a atenção destinada ao processamento visual tende a fazer-
nos, em parte, ignorar o corpo. No entanto, se instalam a dor, o mal-estar ou
a emoção, a atenção converge de imediato para as representações do corpo e
a sensação nele sai do fundo de cena para o primeiro plano. (DAMÁSIO,
2006, p.264)
Partimos da idéia de que o corpo é o agente cognitivo que nos traz mais informações
sobre nossas experiências, e que também é ele que nos adverte sobre nossos enganos
perceptivos.
Nossa primeira base de cognitiva reside nas recordações encarnadas, em
dados que se transformam em programas. Quanto mais se dilata esse capital,
esse reservatório inconsciente pois o inconsciente é o corpo menos ele
pensa e mais ele se torna leve e aéreo em virtude das adaptações
conquistadas. O que existe de mais precioso do que os mapas desses lugares
visitados que permaneceram no fundo da memória corporal? (SERRES,
2004, p.76)
Maturana (2001) ressalta que relacionar a cognição com algo externo não se pode
sustentar. Fala-nos da experiência que temos quando parados dentro de um trem, vemos outro
135
se movimentando e temos a impressão de que é o nosso que está se movendo. Temos uma
falsa idéia da realidade, do externo. O que se manifesta é que nossa percepção se faz
momentânea e ilusória. Daríamos uma resposta cognitivamente errada se nos baseássemos
no fator externo percebido. Ainda mais interessante é o fato de que para percebermos que o
movimento do nosso trem era uma ilusão, temos que fazer referência ao ambiente, ao nosso
corpo em relação às imagens, que por serem as mesmas demonstram que o trem em que
estamos continua parado. Fica evidenciado dessa forma que é necessária a apreensão por parte
do nosso corpo de que na realidade estamos parados, mas isso denota um tempo, um tempo
cognitivo corporal. Um ajustamento de nossa percepção ao ambiente e as ocorrências
seguintes, pois muito rápido percebemos que estamos parados e é o outro trem que se move.
Fomos timas de um engano perceptivo, nosso corpo permanece no mesmo lugar, pois o
trem não se moveu.
Como explicar o conhecer, o ter a certeza de que se conhece algo, de que se tem a
resposta de uma situação sem antes tê-la vivido? Seríamos seres imersos no modelo de
transmissão da informação? No caso que descrevemos acima fica constatado que não e mais
ainda, talvez aquele que ainda não passou pela experiência descrita, irá entendê-la quando
efetivamente experimentá-la.
E é nesse ponto que conjeturamos sobre o ato de apenas explicar algo verbalmente
para alguém. Será que na maioria das vezes a explicação verbal nos basta? Ou estamos
timidamente aceitando a explicação como algo entendido, porque este é o comportamento
mais usual? Seria a linguagem suficiente para expressar qualquer experiência? Acreditamos
que não.
A experiência humana é um interjogo em que o mundo age de maneira
permanente e complexa sobre nós e nós sobre ele: é possível descrever esse
processo como o emergir nosso e do mundo na experiência. O mundo
nos atinge de maneiras infinitas, e muitas vezes de forma surpreendente, para
as quais não dispomos de equipamento semântico. (BEZERRA Jr., 2001,
p.32)
136
As informações que nos chegam de forma apenas verbal, certamente, se reconfiguram
a partir das experiências vividas e das conseqüentes lições que nos trazem. Aquele perfume,
aquele tombo, aquela refeição, tudo o que se passa em nossa vida nos remete ao nosso corpo
que experimenta, analisa e mais tarde reproduz para o outro apenas como uma informação
teórica, mas que certamente só será compreendida em profundidade quando experienciada por
este outro.
Entender o corpo e não a mente que dele faz parte como mediador do processo
de conhecer ou mesmo aprender, é algo que não se consubstancia como prática nos espaços
da educação formal, ou seja, na escola. Belarmino (2004), sendo uma pessoa cega, tece
algumas considerações sobre o tema fazendo uma conjugação de suas idéias a respeito de uma
cognição incorporada.
A idéia da cognição corporificada e, mais ainda, a idéia de que cada
organismo, submetido a um contexto biológico-histórico particular, munido
dos mecanismos sensoriais que lhe são próprios, percebe e atua no mundo
também de um modo próprio (um dos grandes achados das ciências
cognitivas), precisa ser levada às últimas conseqüências em projetos
pedagógicos e de estimulação dos indivíduos cingidos pela condição da
cegueira, sobretudo quando se trata de cegueira congênita ou adquirida ainda
na infância. (BELARMINO, 2004, p.123)
Na escola elege-se, prioritariamente, a mente e os trabalhos a ela destinados como
melhor e mais eficaz caminho para os processos de construção do conhecimento. Práticas
tradicionais de ensino ainda são consideradas como mais eficazes, sendo então continuamente
repetidas ao longo dos anos letivos. Poucas são as escolas que ousam modificar sua didática
optando por ações menos pautadas na transmissão da informação. Essa tendência dominante
nessas instituições ignora as atividades psicomotoras, esquecendo-se que estas são as que
possibilitam à criança condições para, no futuro, efetuar uma leitura e escrita de qualidade.
Colaborando ainda mais com esta situação de pouca movimentação, estas práticas se repetem
fora do ambiente escolar.
137
A criança de hoje está cada vez mais afastada de oportunidades de viver seu corpo,
que o espaço do brincar ficou sensivelmente reduzido. Até mesmo para crianças cegas essa é
uma nova realidade que também têm acesso aos jogos e à informática. No próprio IBC
podemos constatar esta preferência observando o comportamento dos alunos, que mesmo
podendo usufruir de grandes espaços optam pelos laboratórios de informática em seu tempo
livre.
Estes jogos são a referência atual de brincadeiras. Um espaço físico restrito a uma
mesa e a uma cadeira é ocupado tanto em casa quanto na escola, determinando um corpo com
pouquíssimas oportunidades de movimentação. Cada vez mais, percebe-se um corpo limitado
a pequenos espaços e que muito pouco se movimenta. As práticas cotidianas, de maneira
geral, não oportunizam vivências nas quais esta situação se modifique, em que o corpo ocupe
grandes espaços e, também, seja criativo quando haja oportunidade de ocupá-lo. O
cerceamento, tanto do espaço como de experiências corporais espontâneas (longe das
academias e centros de fitness), em que a criatividade natural era expandida como, por
exemplo, subir em árvores, brincar de pega-pega, pular corda, brincar de roda, foram
esquecidas no tempo; hoje são outras as preferências infantis, contudo, a maioria delas são
atividades sedentárias e de pouca movimentação.
Comportamentos que agilizavam sobremaneira esse corpo, garantindo sem
treinamento aparente e de forma natural vivências de pleno engajamento psicomotor, estão
fora do cotidiano. Com isso, limitações de aprimoramento de valências importantes para o
pleno desenvolvimento psicomotor das crianças, limitações essas que segundo a Educação
pelo Movimento, mencionada nos escritos de Jean Le Bouch, estão na base dessas
ocorrências. Para suprir essa aparente lacuna em seu desenvolvimento propomos aqui para
alunos das primeiras séries da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, os ensinamentos
dessa proposta, que tem como objetivo central: Contribuir ao desenvolvimento psicomotor da
138
criança, de quem depende, ao mesmo tempo, a evolução de sua personalidade e o sucesso
escolar (LE BOUCH, 1998, p.15).
III.3-Contextualizando, e, ao mesmo tempo, ampliando o alvo
A percepção de que a proposta de educação pelo movimento coloca para a escola um
desafio em termos de uma reorganização da pedagogia atual, centrada ainda na transmissão da
informação, bem como, de atitudes que estimulam o verbalismo e uma abstração acentuada,
nos faz entender ser esse um longo e árduo caminho.
Todavia, sabemos que as mudanças são lentas, mas que, pelo menos, sendo
sinalizadas, têm mais chances de um dia serem compreendidas e aplicadas. Sobretudo, se
teorias cientificamente fundamentadas, como as novas abordagens sobre cognição
mencionadas, estiverem apoiando propostas de intervenção que facilitem a adoção do corpo e
de práticas corporais como vias possíveis de cognição. No caso da educação de alunos
deficientes visuais, notamos certa facilidade para adoção de novas propostas para essa forma
de construção do conhecimento, pois pelo menos uma parte do corpo, as mãos, ocupa um
lugar de certo destaque na educação desses alunos, que o tato é considerado, além da
audição e do sentido háptico, como principal canal perceptivo. Portanto, atividades que elejam
o corpo como facilitador da construção do conhecimento têm consideráveis chances de
aplicação nesse grupo.
Assim, o que se propõe a partir de agora, deveencontrar uma sensível aceitação
nesse espaço, podendo vir a se concretizar com mais rapidez junto a esses educandos. Além
do que, as propostas recentes da corporificação da experiência respaldam e fortalecem esse
caminho. Entretanto, é nosso objetivo alcançar também a educação de crianças sem nenhuma
deficiência, por perceber em sua vida escolar problemas acentuados de fracasso escolar nas
139
primeiras experiências com a escola, tanto na Educação Infantil quanto do Ensino
Fundamental, como nos apontam alguns trabalhos sobre o tema, tais como os de Cohen
(2007) e Patto (1996).
Durante as páginas anteriores, tecemos uma rede entre alguns autores que
reconhecemos como parceiros na idéia de conferir ao corpo uma valorização, enquanto
elemento forte no processo do aprender. Autores que acreditam numa corporeidade aplicada
no processo da aquisição do conhecimento. E é nessa rede que nos apoiamos para inserir no
trabalho as propostas da educação pelo movimento.
Faz-se necessária uma explicação sobre a significação que daremos a dois termos:
educação pelo movimento e psicomotricidade.
19
O primeiro, a educação pelo movimento,
define bem o sentido que queremos dar a nossa futura intervenção uma proposta de atuação
do corpo dentro do espaço-tempo pedagógico, distanciada de qualquer enfoque
psicoterapêutico. O segundo: psicomotricidade que, em nosso estudo, refere-se ao corpo como
origem das aquisições cognitivas e afetivas, sustentada por três conhecimentos básicos: o
movimento, o intelecto e o afeto. É, portanto, um termo empregado dentro de uma concepção
de movimento organizado e integrado, resultante das experiências vividas.
III.4-Uma prática corporal com crianças deficientes visuais
O entendimento de que a via corporal era extremamente eficaz na aquisição de certos
conceitos, bem como, de uma forma de trabalho que favorecia a socialização e os processos
afetivos dos deficientes visuais, norteou nosso trabalho durante todo o tempo em que atuamos
nessa área no IBC no período dos últimos vinte e cinco anos. Isto se dava de forma mais ou
menos intensa de acordo com a demanda dos professores, quando percebiam em seus alunos
certas dificuldades. Foi nessa experiência de lidar com o corpo como um mediador, como um
19
A palavra psicomotricidade tem hoje também o significado de estratégias terapêuticas que tratam distúrbios
psicomotores, daí originando o nome psicoterapeuta.
140
facilitador do entendimento da linguagem, da aquisição de praxias psicomotoras, entre outros
ganhos, que buscamos um estudo que desse suporte a essa prática.
A proposta de um corpo que age como meio de entender o entorno, através de
experimentações, está apoiada na proposta de uma aprendizagem corporificada. O que quer
dizer isso? Quer dizer que podemos atuar no sentido de compreender algo subjetivo, através
de uma ação objetiva. Podemos organizar ações corporais para atuar no campo semântico com
o objetivo de torná-lo mais claro. Principalmente para crianças cegas, torna-se primordial uma
proposta desse tipo, já que muitas vezes o uso exclusivo da oralidade deixa lacunas de
entendimento.
Essa proposta não se restringe apenas aos deficientes visuais, para todos nós o corpo
representa nosso espaço de relação com o mundo e nosso maior canal cognitivo.
A cognição emerge da corporeidade, expressando-se na compreensão da
percepção como movimento e não como processamento de informações.
Somos seres corporais, corpos em movimento. O movimento tem a
capacidade não apenas de modificar as sensações, mas de reorganizar o
organismo como um todo, considerando ainda a unidade mente-corpo. Essa
proposição geral sobre a percepção se aproxima da apropriação enactiva, na
qual a cognição é inseparável do corpo, sendo uma interpretação que emerge
da relação entre o eu e o mundo, corpo e mente, nas capacidades do
entendimento. (NÓBREGA, 2005, p.606)
Partindo de todas as reflexões feitas através da leitura de Varela, Merleau-Ponty e
Dewey, encontramos na psicocinética, e mais especificamente em Jean Le Bouch, o apoio
para o entendimento das possibilidades do uso do corpo com um enfoque diferenciado.
Esse autor, professor de educação física, médico e psicólogo, descreve a pluralidade
de sua formação como uma busca por modos de aprofundar sua pesquisa sobre corpo e
movimento. Entretanto, relata ser esse caminho ainda insuficiente para dar respostas às suas
perguntas, descreve então sua caminhada de forma deveras interessante e que reproduzimos
aqui :
Minha formação inicial é a de professor de educação física [...],
essencialmente técnica, fundada sobre a aprendizagem de um certo número
141
de gestos codificados – as técnicas esportivas. Insatisfeitos por esta formação
enciclopédica e, contudo superficial sob muitos aspectos, alguns deles
demandam estudos de medicina, outros de psicologia ou de filosofia.
Pessoalmente comecei pela medicina; esta formação de seis anos permite
aprofundar certas áreas da biologia, fundamentais em ciência do movimento;
porém ao preço de quanto tempo perdido no estudo e na prática de técnicas
sem interesse direto para o assunto que me atraía. Sendo esta formação
insuficiente para abordar cientificamente o estudo do movimento, empreendi
uma formação em psicologia, que me parecia indispensável. Após ter obtido
três diplomas de estudos superiores, interrompi esses estudos, pois havia
compreendido que se prosseguisse neste caminho, precisaria também
formar-me em sociologia e isto, sem dúvida, não teria sido o suficiente. Foi
então que enriquecido com todas estas experiências nos estudos tradicionais
e consciente do considerável tempo perdido acumulado no decorrer destes
anos, decidi abordar o estudo do movimento humano partindo de um ponto
de vista muito global, considerando-o como uma das dimensões da conduta,
na mesma óptica com que a lingüística contemporânea aborda o estudo da
linguagem. (LE BOUCH, 1987, p.10)
Consideramos os estudos de Le Bouch, em que corpo e o movimento descrevem um
corpo distanciado da concepção dualista, um caminho possível muito próximo do que
empiricamente aplicávamos e do que hoje apontamos através do respaldo dado pelo estudo de
autores contemporâneos que dão suporte a esta idéia que considera o corpo como agente da
cognição.
A consideração do corpo em movimento apenas como corpo em atos mecânicos
desprovidos de intenção e afetividade é criticada pela psicocinética de forma patente.
Adotamos então essa teoria como suporte de nossa futura proposta de intervenção com
pessoas deficientes visuais, colocando-a como base científica de uma abordagem corporal na
qual o corpo mediará o significado das coisas do mundo, quando isso se fizer necessário.
Em psicocinética, acentuamos a necessidade de considerar o movimento não
como uma forma “em si”, cuja natureza é elucidada por uma descrição
mecânica, mas como uma manifestação “significante” da conduta de um
homem e: “A unidade do ser só pode realizar-se no ato que ele inventa”. (LE
BOUCH, 1987, p.25)
Considerar o corpo como unidade pressupõe outro olhar, que na escola esse corpo é
visto sobre três aspectos, a saber: o afetivo, o cognitivo e o psicomotor. Nessa ótica se
142
fragmenta o olhar sobre o corpo, observando-o e avaliando-o como se um fator não
influenciasse diretamente o outro.
A postura de alguém afetivamente abalado é facilmente observável, pois é por ela que
a expressão de fragilidade, tristeza ou mesmo alegria se expressa. Portanto, é primeiramente
pelo corpo que percebemos no outro um estado emocional, bem como expressões derivadas
desse estado: alegria, tristeza, raiva etc. Nossa expressão corporal transparece nossas
emoções. “Mobilidade e motricidade estão ambas imersas na temporalidade, que por sua vez é
inseparável de uma afetividade primordial, portanto o corpo (carnal e cinestésico) será
constantemente constituído imerso nessa temporalidade afetiva imanente.” (J. ROCHA, 2007,
p.119).
O pensar sobre a linguagem do corpo está ligado a uma promoção de possibilidades de
movimento através de vivências, da conscientização das partes do corpo, da sensibilidade, da
expressão corporal e da ludicidade.
A falta de uma reflexão profunda sobre os processos educacionais vigentes leva a
maioria dos professores a considerar o aluno como corpo-objeto, no processo de
aprendizagem. Deriva dessa postura pouca ou nenhuma preocupação com a auto-organização,
com suas formas de vivência e interação com o meio, contemplando-o como ser, constituído
da reunião integrada entre suas partes.
A movimentação desse corpo no espaço prescinde de um fator básico: ou seja, a
liberdade que lhe é conferida. Assim, postulamos que uma educação que não liberta esse
corpo, não o qualifica como importante no processo do aprender.
Nossos aprendizados dependerão essencialmente, portanto daquilo que
realmente vivemos e da forma como vivemos. Por conseguinte, é através de
sua prática pessoal, de sua própria exploração, que a criança domina e
compreende uma situação nova, e não por referência à experiência do
mestre. (LE-BOUCH, 1987, p.19)
143
O encontro entre a psicocinética e a psicologia situa-se na conduta do indivíduo ser
principal foco de atenção. Preconiza uma educação que opta pela ação no espaço educativo.
Um de seus objetivos está em favorecer o desabrochar humano, permitindo ao homem situar e
agir no mundo em transformação através do conhecimento de si, da adequação de sua conduta
e de uma verdadeira autonomia e acesso à responsabilidade no âmbito social.
Le Bouch (1987) comenta,
O emprego em psicologia do conceito de atitude, que designa um modo de
reação significante e não fortuito, referindo-se a um comportamento não
fragmentário mas total, corresponde a uma certa reação contra as concepções
mecanicistas e traduz bem, no plano do vivido, o aspecto global e
intencional da ação. (p.23)
Segundo o autor o termo atitude expressa, então, certa correlação entre aspectos
corporais e mentais do comportamento. A atitude traduz um modo de reação permanente do
indivíduo em questão em relação a outros indivíduos e em presença de certa cultura. A atitude
implica, no plano subjetivo, uma determinada emoção ou um determinado sentimento que
traduz a maneira pela qual o sujeito vive a relação com um objeto ou uma pessoa. No plano
objetivo ela se revela por reações corporais ou verbais,
Através da noção de atitude, acabamos de adiantar dois dados essenciais na
compreensão da organização estrutural do ser: o da unidade do corpo
funcional e do psiquismo, verdadeira estrutura psicossomática; e o da
importância da experiência vivida pelo corpo, modo de ser no mundo. (LE
BOUCH
,
1987, p.24)
Nesse ponto Le Bouch critica a dicotomia que herdamos segundo ele de um Descartes
simplificado, comentando que esse olhar para o corpo está definitivamente ultrapassado por
uma filosofia e uma psicologia do corpo animado. Aproxima sua fala de nosso referencial
teórico, mais especificamente de Dewey com relação à experiência, de Merleau- Ponty
apontando que a experiência advém de um corpo, modo de ser no mundo e de Varela que
propõe um corpo cognitivo.
144
Esse corpo animado traduz-se para nós como um modo de expressão concreta e
objetiva do pensamento do sujeito, e de como sua mente imperceptível sinais exteriores do
que nela se passa.
Desta forma, a psicocinética tenta atingir o ser total, “pois o ato motor não é um
processo isolado e tem um significado se estiver em relação com a conduta de toda a
personalidade.” (LE BOUCH, 1987, p.17). É uma proposta para o educador voltada para que
os princípios pedagógicos sejam realizados também com uma inspiração em meios ativos,
práticos que possibilitem os mesmos resultados de uma educação eminentemente oralizada. A
psicocinética é então uma concepção geral da utilização do movimento como meio de
educação global da personalidade. Propõe uma formação e uma evolução harmoniosa da
criança objetivando uma motricidade expressiva e um bom equilíbrio emocional, ambas as
condições para o bom desenvolvimento das funções mentais.
O que Le Bouch designa como uma formação consiste em proporcionar à criança uma
imagem do corpo operatória, ou seja, que não se reduz ao mero conhecimento intelectual do
seu corpo. Perceber seu corpo e suas possibilidades de exploração tanto do ambiente como
dele próprio, observando sua capacidade expressiva e também como forma de comunicação e
de entendimento da comunicação com o outro. É uma forma de acionar esse corpo num
caminho mais participativo e facilitador dos processos de aprendizagem. Parte-se do gestual
desse corpo, como manifestação de sua presença no mundo, para a seguir encontrar sob esta
simplicidade aparente entregue pela experiência imediata, toda a complexidade real dos
fenômenos que esse corpo nos mostra. Os movimentos de um organismo são
compreensíveis quando são concebidos não como contrações musculares que se desenvolvem
num corpo, mas como respostas globais ou atos que se ajustam a certo meio.
O estudo do movimento segundo a psicocinética é feito a partir de um corpo situado
no mundo e assume todo o seu sentido quando a tradução motora da conduta está
145
compreendida em suas relações com a conduta do ser, considerado em sua totalidade. Este
situado pode ser entendido como um corpo que se integra ao mundo, como bem nos explica
Merleau-Ponty, ao falar da integração e o mundo,
Enquanto tenho um corpo e através dele ajo no mundo, para mim, o espaço e
o tempo não são uma soma de pontos justapostos, nem tampouco uma
infinidade de relações das quais minha consciência operaria a síntese e que
implicaria meu corpo; não estou no espaço e no tempo, não penso espaço e
tempo; eu sou no espaço e no tempo, meu corpo aplica-se a eles e os abarca.
(MERLEAU-PONTY, 2004, p.195)
Não importa para esse estudo a parte estética do movimento e sim aquilo que ele
representa e traz como sensível ao corpo, enquanto gesto e significação.
Com o apoio da psicocinética, propomos uma forma de intervenção na educação dos
deficientes visuais, na qual em princípio se faz necessária uma organização e uma aplicação
do corpo de forma a garantir uma plena integração desse corpo com o ambiente, num
movimento de apreensão do entorno e de construção do conhecimento.
Nossa idéia parte da constatação de que a criança cega, quando não estimulada, não
encontra sozinha formas de acionar seu corpo, dependendo da intervenção do outro para que
isso aconteça. A criança que enxerga aprende naturalmente, mas a criança cega tem que ser
ensinada a engatinhar, andar, brincar e comer.” (SIAULYS, 2006, p.188). O que foi dito nos
mostra que esta criança, pela falta de modelos em que se espelhar como ocorre com a criança
vidente e muitas vezes sem estímulos capazes de motivá-la ao contato e a exploração, tem que
a partir do encontro com o outro organizar de outra forma ações que a levem ao conhecimento
do mundo. No quesito da aprendizagem formal esse outro é o professor.
A aprendizagem sendo o resultado da exploração do ambiente pelo indivíduo que se
expressa, diante de uma situação, de um estímulo ou de um problema, depende no caso da
criança cega, de uma intervenção e de uma mediação muitas vezes proporcionada por sua
proximidade do professor ou de qualquer outra pessoa que esteja nesse ambiente. É neste
lugar que vive experiências cognitivas capazes de levá-la a uma reflexão sobre o mundo. É,
146
pois, da reflexão sobre o vivido e da atenção à experiência perceptiva que emergem os
significados dessa criança sobre o mundo.
A reflexão da criança com deficiência visual surge da sua experiência de habitar o
mundo por meio de sua apalpação tátil, através da qual pode perceber o objeto de forma mais
próxima do que se o fizesse com o olhar (MASINI, 2003).
A cegueira, ao criar uma formação peculiar de personalidade, reanima novas
fontes, muda direções normais do funcionamento e, de uma forma criativa e
orgânica, refaz e forma o psiquismo da pessoa. Portanto, a cegueira não é
somente um defeito, uma debilidade, senão também em certo sentido, uma
fonte de manifestação das capacidades, uma força, por estranho que seja
semelhante a um paradoxo. (VYGOTSKI, 1997, p.99)
Esta força mencionada por Vygotski, no entanto, aflora na criança que não está
isolada do contato humano, aquela que está exposta a uma proximidade e a experiências que
tenham sentido para ela. A partir de suas experiências e nas oportunidades de interação e
comunicação com o outro, mediante suas ações sobre o meio, bem como de vivências
sensoriais variadas e significativas, esta criança estará aos poucos elaborando seu processo de
linguagem e de pensamento, fontes das quais ela não pode prescindir para que seu processo
educacional obtenha sucesso.
III.5-Um espaço para o corpo na aprendizagem
Nas páginas anteriores escrevemos sobre uma rede de assuntos que, a nosso ver,
traçam um pano de fundo para as questões objetivas que iremos tratar a partir de agora. Foi
necessário construir senão um, mas vários argumentos para dar suporte a nossa proposta de
aprendizagem na qual o corpo tivesse um lugar. Mas não aquele lugar que a escola vem
colocando o corpo, ou seja, no espaço restrito da sala de aula, e ainda no reduzido espaço de
uma carteira escolar. Facilitar e aperfeiçoar a educação dos deficientes visuais é o propósito
que perseguimos. Se for através das oportunidades de usar seu corpo que ele terá mais
147
chances de construir seu conhecimento, cabe então uma ampla modificação nas linhas
traçadas na didática aplicada a estes educandos. Reconhecemos nas práticas pedagógicas
voltadas para esses alunos um caminho de adaptação do que se aplica a educandos videntes, e
não uma busca de um novo comportamento frente às necessidades do aluno deficiente visual.
Mas parece que tanto para alunos videntes quanto para deficientes visuais a transmissão oral
da informação perpetuou-se como método de ensino, o lugar do corpo ficou restrito a
determinadas disciplinas, mais especificamente à educação física.
Le Bouch (1977) diz que
A partir do momento em que se admite a heterogeneidade entre corpo e
espírito e a superioridade de um face ao outro, é evidente que as
preocupações educativas devem incidir sobre o essencial, isto é o espírito.
Séculos a fio, nos países de cultura ocidental, em comparação com este
aspecto primordial da educação, desenvolveu-se um ramo que o podia ser
mais pequeno: a educação física. (p.35)
Com uma concepção intelectualista e mecanicista de educação ainda em vigor, a parte
que pertence ao corpo ficou de certa maneira resguardada apenas ao espaço desta disciplina.
O exercício físico obrigatório nas escolas é justamente o momento em que o professor da sala
de aula tem para um pequeno intervalo em suas atividades. Desse modo, ele desconhece as
dificuldades de coordenação motora daqueles para os quais dirigirá exigências que dependem
fundamentalmente dessa coordenação. O professor só se depara com as falhas na coordenação
motora de seus alunos no momento do ensino da leitura e escrita; lança mão então de uma
série monótona e repetitiva de exercícios, chamados de grafo-motores, com o intuito de
amenizar as dificuldades que os alunos apresentam com relação à coordenação motora fina,
necessária principalmente para a execução da escrita. Na maioria das vezes, esse professor
desconhece que não se tem uma coordenação motora fina eficiente, exigência fundamental
para esta tarefa, se ainda não se organizou a coordenação chamada de grossa, ou seja, dos
grandes movimentos, do corpo como um todo e de suas partes em separado.
148
Principalmente entre as crianças cegas que dependem do sistema Braille, esses
exercícios comparecem de forma intensiva, pois o Braille é um sistema que exige da criança
cega, além da memorização e tato aguçados, uma complexa organização espacial. Como diz
Kirk e Gallanger (1987), o Braille é mais um acréscimo no currículo das crianças cegas. Além
disso, essas crianças freqüentemente apresentam “dificuldades com relação aos movimentos
coordenados, com o corpo inteiro e, também, nas atividades em que emprego específico
das mãos. Essas dificuldades se apresentam por movimentos inadequados ou incompletos, de
movimentos alternados, simultâneos, dissociados, além de terem dificuldade de perceber o
alvo dos movimentos.” (MEC/CENESP, 1984, p.14). Fica patenteada a necessidade de
organizar uma intervenção, a fim de sanar estas dificuldades e de trabalhar como um todo esse
corpo.
Uma das questões colocadas pela psicocinética diz respeito à consideração do corpo
como um todo, não decomposto em partes, Le Bouch comenta: “Nós consideramos, portanto
o organismo como uma estrutura indecomponível de comportamento cujas reações são
unificadas e ordenadas.” (LE BOUCH, 1977, p.54).
Observando este pensamento, propomos uma série de vivências corporais que possam
facilitar para o deficiente visual o entendimento de palavras de conteúdo abstrato, entre outras
aquisições. Ações corporais através das quais o deficiente visual possa obter o entendimento
de determinados conceitos, tentando aproximá-lo o mais possível de uma concretude que o
leve a futuras abstrações.
Esta fala de Merleau-Ponty retirada do livro Conversas-1948 nos aproxima de um
melhor entendimento sobre o que pretendemos, ao mencionar que existem certas qualidades
que a experiência corporal pode elucidar, ele nos fala de uma determinada qualidade,
dando o exemplo sobre o melado,
149
Existem até qualidades bem numerosas em nossa experiência, que não têm
quase nenhum sentido se as separarmos das reações que provocam em nosso
corpo.
Uma qualidade como o melado é o que a torna capaz de simbolizar toda
uma conduta humana é compreendida pelo debate que estabelece entre
mim como sujeito encarnado e o objeto exterior que é seu portador. (2004,
p.21)
Neste exemplo do melado, podemos dizer que certas qualidades dos objetos ou de
palavras de conteúdo abstrato são também compreendidas por s videntes, quando
passamos do visível ao tangível, pois não possibilidade de entendimento de outra forma
senão tocando-as, experimentando-as. sei dizer que um objeto está melado, se
experimentei algo com esta mesma característica. É impossível descrever em palavras a
sensação que algo melado nos provoca. O mesmo se pode dizer com relação às sensações de
calor, de frio, de morno, de áspero e duro, entre outras. É pela experiência de nosso corpo que
adquirimos esses conceitos.
Masini (1994) fala que os dados sensíveis, primeiro alicerce, fundamento da
consciência e da ação, através da dialética entre forma e conteúdo, são retomados pela
consciência e recebem dela um sentido original. E de que forma captamos esses dados, senão
através de todos os nossos sentidos em conjunção e em contato direto com o entorno? É
através de nossa experiência que podemos decodificar esses dados traçando um fio condutor
entre o tangível e o intangível ou ainda abstrato. No caminho inverso, abstraímos quando nos
pautamos na concretude. Esta conversa que se passa em nosso corpo, numa ligação direta
entre o que percebemos e o que abstraímos, se o tempo todo e ininterruptamente,
entretanto, um corpo em isolamento do tangível restringe-se basicamente apenas às
percepções auditivas para realizar suas abstrações.
150
III.6-Tornando tangível o que até o momento foi abstrato
algum tempo ouvi uma conversa entre duas alunas cegas no pátio do IBC, elas
diziam mais ou menos assim: Enquanto ouço a professora dizer que dentro é o contrário de
fora, fico pensando o que será que é dentro e o que será que é fora. Que qualidades são estas e
quais os objetos que as possuem? São qualidades de coisas ou de gente? Uma vez ouvi
alguém dizer: Fora daqui [...] será que é a mesma coisa?. Quantas dúvidas ela apresentava
com relação a como deveria interpretar as palavras, a mesma palavra era utilizada em ocasiões
diferentes e com conotações diversas. Como fazer com que esta aluna entendesse que nem
sempre a mesma palavra tinha um mesmo significado, dependendo então do contexto da frase.
Como sinalizar para essa menina que caminho poderia utilizar para entender uma fala e como
interpretar mais corretamente um texto em que a palavra fosse empregada?
Assaltada por esses questionamentos, dias depois estava praticando com os alunos o
conceito de dentro e fora, e tentava estabelecer para eles condições de entendimento e de
aplicação do mesmo. Com a ajuda de bambolês fazia uma série de brincadeiras, de modo que
os alunos passassem seus corpos por dentro dos bambolês, ou andassem em torno dele,
pisando do lado de fora e do lado de dentro em relação ao objeto. Outros exercícios foram
propostos com o mesmo objetivo: fazê-los entender o que era dentro e o que era fora.
Contudo, os exercícios eram acompanhados pela linguagem explicativa do ato: Você está
entrando, você está saindo. Não basta para criança cega executar um movimento, ela por si
não saberá que ação está realizando. Se o professor não informar não verbalizar, o movimento
será executado, mas a ação correspondente ao movimento não será nomeada. Isto que hoje é
tão óbvio para mim, durante um longo tempo o foi. Trabalhar conjuntamente a expressão
corporal e a linguagem não foi uma prática durante um longo período em que demos aulas
para crianças deficientes visuais.
151
Por que ainda é tão difícil para nós unirmos o corpo ao intelecto? Muitas vezes ainda
agimos e pensamos de forma cartesiana, separando a ão do pensamento ou da linguagem.
No caso em questão fica patente que ação, pensamento e linguagem devem caminhar juntos.
Quando se trata de passar algum conceito para uma criança deficiente visual; precisamos
nomear o que ela está fazendo para que mais tarde possa entender o que significa o conceito
quando empregado num texto ou numa fala. A utilização de seu corpo é então preciosa para
que ela adquira noções que a simples explicação verbal não dá conta.
Por conta desta peculiaridade, ou melhor, deste modo de sempre aliar a linguagem à
ação corporal, percebendo no corpo do aluno um potencial para a compreensão do seu
entorno, é que este trabalho objetiva tornar-se uma proposta metodológica para professores de
alunos com deficiência visual. Mas para que a idéia ganhe espaço é preciso verificar como
alguns professores pensam atualmente a respeito sobre o uso do corpo como uma ferramenta
na aquisição de conceitos e no entendimento de palavras e expressões por seus alunos.
CAPÍTULO-IV Como professores de crianças deficientes visuais articulam corpo e
cognição
IV.1-O Campo de pesquisa
A institucionalização do ensino para cegos e portadores de baixa visão remete ao
século passado, sendo o IBC o primeiro educandário no Brasil para atendimento desta
clientela. Esta instituição, centro de referência nacional para as questões da deficiência visual,
foi criada por D. Pedro II, por meio do decreto 1428 de 12 de setembro 1854, designando-a
com o nome de Imperial Instituto dos Meninos Cegos. Desde essa época até os dias atuais, o
152
educandário sofreu significativas mudanças por força do acompanhamento da legislação
educacional.
Segundo Hildebrant (2004),
Com o desenvolvimento tecnológico e os conflitos vividos no pós-guerra,
não são poucas as modificações verificadas em todos os setores da atividade
humana, nos últimos 50 anos. As instituições educacionais, como o IBC e a
própria educação, não estão isentas da influência deste processo. (p.3)
Desta forma, o IBC modificou-se e modifica-se para atender às alterações na
legislação brasileira. A adoção da política de inclusão prevista na Constituição Federal de
1988, Título VII da Ordem Social, Artigo 208 Inciso III, indica que deve ser dada preferência
à matrícula de deficientes visuais na rede regular de ensino. Transcrevendo-se seu texto,
temos que: “Atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,
preferencialmente na rede regular de ensino”. A Lei 9394/96, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, repete integralmente seu texto em seu Art.4º, reafirmando o
Art.208 da Constituição Federal. Para adequar-se à nova legislação, a instituição criou centros
de capacitação de recursos humanos e produção de material didático, os quais fomentam uma
política de divulgação de técnicas e de capacitação de profissionais para atenderem aos alunos
deficientes visuais matriculados no próprio IBC, como também aqueles matriculados na rede
regular de ensino. Fruto destas modificações o espaço institucional, antes ocupado apenas por
uma escola, ganha outro perfil, ampliando-se e diversificando seus setores, transformando-se
em centro de referência nacional para as questões relativas à deficiência visual.
Para atender a esta nova configuração e demanda, tornou-se indispensável uma
renovação de competências, o que foi alcançado mediante a elaboração de um novo
Regimento Interno, publicado em D.O. de 7 de dezembro de 1998. Foram criados outros
setores, tais como: a Divisão de Pesquisa, Informação e Divulgação; Divisão de Pesquisa e
Produção de Material Didático e a Divisão de Capacitação e Recursos Humanos, mais
voltados à disseminação do conhecimento, os quais acompanhavam a política de inclusão
153
proposta em legislação pelo governo federal. Desta época até os dias de hoje, o IBC atualizou
seu regimento interno sempre com vistas a manter e aperfeiçoar suas ações no sentido de
conservar o título de Centro de Referência Nacional para as questões da deficiência visual.
Tendo em vista que nossa pesquisa tem como sujeitos os professores dessa instituição,
descreveremos mais detalhadamente o espaço da escola no qual eles transitam na maior parte
do tempo. Podemos dizer que a escola do IBC pouco difere da maioria das escolas públicas
em termos administrativos. As diferenças encontram-se especialmente na forma de matrícula
de seu alunado. dois regimes de matrícula: o externato e o semi-internato. Os alunos do
externato têm horário integral, permanecendo na escola de manhã à tarde (8 h às 17 h). Na
parte da manhã é oferecido o ensino das disciplinas da grade curricular e à tarde o
oferecidas classes de reforço, atividades artesanais (cestaria, tapeçaria, modelagem, tricô etc.),
atividades artísticas (música, teatro, canto coral etc.) e atividades extraclasse (passeios,
visitas, oficinas de leitura, entre outras). outra diferença significativa: a idade de ingresso
na escola, já que são atendidas crianças de zero a três anos no setor de estimulação precoce. A
escolaridade é oferecida até a oitava série do Ensino Fundamental.
20
A escola é dirigida por uma professora
21
, que tem o cargo de chefe do Departamento
de Educação, tendo em vista que o IBC funciona com um modelo departamental de
organização. Além do Departamento de Educação, existem ainda o Departamento de
Planejamento e Administração, o Departamento de Estudos e Pesquisas Médicas e de
Reabilitação, e o Departamento Técnico-Especializado.
O Departamento de Educação é subdividido em quatro divisões, são elas: Divisão de
Ensino – cuida basicamente das questões relativas ao currículo, avaliação e organização
20
Durante a elaboração deste trabalho houve uma modificação feita pelo MEC na nomenclatura das séries,
passando a se chamar primeira série do Ensino Fundamental o que antes era chamado de alfabetização, e
conseqüentemente de segunda série o que era anteriormente denominado primeira. Mantivemos no texto a
nomenclatura antiga pelo fato de evidenciar mais precisamente se o aluno já é ou não alfabetizado.
21
Não obrigatoriedade regimental de que o Departamento de Educação seja dirigido por um professor,
todavia nas duas últimas décadas o cargo foi sempre ocupado por professores.
154
educacional; Divisão de Apoio ao Educando – ocupa-se das questões disciplinares, bem como
da rotina diária dos alunos (refeições, banho, horários de estudo e horários de descanso);
Divisão de Cultura e Lazer voltada para a área artística e cultural, a qual ainda compreende
uma biblioteca infantil e outra para atender ao blico, em geral, utilizada principalmente por
ex-alunos do IBC; e, por fim, a Divisão de Orientação Educacional voltada para o
atendimento e orientação dos alunos nas questões afetivas e de convivência junto aos colegas
e professores.
Nas primeiras séries do Ensino Fundamental, a organização das turmas obedece a uma
divisão por grau de visão. Os alunos são divididos em turmas de cegueira e baixa visão. No
caso dos alunos cegos, a divisão objetiva o aperfeiçoamento e treinamento do sistema Braille,
e no caso dos alunos com baixa visão, objetiva o uso efetivo, exploração e conservação do
resíduo visual, bem como o treinamento dos alunos para utilização dos recursos para a
ampliação dos textos. uma peculiaridade com relação ao número de alunos por turma a
qual também representa uma diferença significativa em relação às escolas da rede regular de
ensino. No IBC as turmas são formadas por cinco a oito alunos aproximadamente; este fato
permite um atendimento mais personalizado aos educandos, podendo ser um fator de
facilitação da aprendizagem quando outras dificuldades além da cegueira se apresentam, tais
como: dificuldades motoras, neurológicas ou biológicas.
Há uma expressiva ocorrência de alunos com quadros de epilepsia e diabetes, cabendo
ao professor o controle dos horários para que esses alunos sejam encaminhados ao serviço
médico para tomarem suas medicações. Sendo a cegueira uma conseqüência de outras
doenças, não é raro encontrar na instituição alunos com doenças crônicas e degenerativas, as
quais demandam um olhar mais atento e cuidadoso do professor, já que estas doenças e seus
sintomas podem influenciar no rendimento escolar.
155
Outro ponto merece destaque, há uma heterogeneidade em relação à faixa etária para a
organização das turmas, fato ocasionado pela época em que o aluno perdeu ou teve a visão
diminuída. Em alguns casos, o aluno ao ingressar na instituição tem que ser enturmado em
classes de faixa etária bem inferior a sua pelo fato de não ter freqüentado a escola
anteriormente. Este fato causa algumas dificuldades para o professor que, ao organizar
atividades pedagógicas, depara-se com alunos de faixas etárias diferentes, cujos interesses são
distintos conforme suas idades. Em pesquisa recente realizada nas primeiras séries do
Instituto este fato é comentado,
Na instituição, é comum a entrada de alunos
novos acima de sete anos, que são matriculados no primeiro ano para se
alfabetizarem, a não ser que tenham o conhecimento necessário para serem
inseridos em outros anos. Por este motivo, foi freqüente encontrar alunos
com idades avançadas nessas séries iniciais. (NICOLAIEWSKY e
CORREA,2008,p15)
O corpo docente é formado por professores com pós-graduação principalmente na área
da educação e/ou com o curso de 400 horas, ministrado no próprio IBC
22
, no qual são
ensinados entre outras disciplinas o sistema Braille e o manejo do Sorobã (instrumento
utilizado para cálculos matemáticos). Estes são requisitos básicos para que o professor possa
lecionar nas classes de primeira à quinta série do Ensino Fundamental.
Afora estas características específicas, a escola do IBC pouco difere das demais,
enfrentando em seu dia a dia os mesmos problemas que as escolas públicas da rede regular de
ensino enfrentam com relação à repetência, evasão escolar e falta de professores e
funcionários de apoio. Destacamos, entretanto, que algumas atividades, tais como: a educação
física na qual os alunos têm oportunidade de freqüentarem aulas de natação, judô, que
raramente são oferecidas em escolas públicas, conta ainda com aulas de música, com o
aprendizado de piano, violão e instrumentos de percussão, e o ensino de artes que
22
Este curso oferecido desde 1947 é reconhecido como de excelência em todo território nacional. Hoje tem o
nome de Curso de Qualificação de Professores na Área de Deficiência Visual; não é reconhecido pelo MEC
como de pós-graduação por não ter a chancela de uma universidade. É um curso de 400 h em que são abordados
a maioria dos aspectos didáticos e metodológicos para o ensino de deficientes visuais.
156
desenvolvem além de teatro e canto coral, artes plásticas como a modelagem e a escultura em
cerâmica, entre outras.
que se destacar ainda o fluxo constante de alunos que saem da escola buscando
estudar mais perto de suas casas, mas que retornam ao IBC, por não encontrarem, ainda,
condições de ensino satisfatórias em termos de suas especificidades com relação
principalmente a material didático e professores com alguma informação sobre suas reais
possibilidades de aprendizagem, conforme descrito por Monteiro (2003) na dissertação de
mestrado intitulada O retorno de alunos deficientes visuais ao espaço da escola especial:
Afinal como caminha a Inclusão?, trabalho que motivou o aprofundamento de questões
pedagógicas e cognitivas com relação ao processo de aprendizagem de alunos deficientes
visuais que ora desenvolvemos.
IV.2-A organização da pesquisa
A opção pela pesquisa do tipo qualitativa veio da vontade de destacar e perceber
tendências, posições e atuações no espaço pedagógico da sala de aula. Captar, através das
respostas, comportamentos e modos de agir, observando como se dava o ato de ensinar às
crianças cegas, por professores de uma instituição destinada a esta clientela. E descobrir
também se a diferença sensorial (professores cegos e professores videntes) determinava
diferentes modos de agir dos professores. Queríamos, desde o início do trabalho, além de
obter as respostas dos professores, de alguma forma sensibilizar este grupo para a questão do
corpo como uma possibilidade interessante na prática pedagógica. Entretanto, precisávamos
verificar com as professoras se havia condições institucionais que permitissem certa liberdade
em termos metodológicos e meios de utilizar esse caminho numa instituição secular,
preponderantemente voltada para propostas de ensino tradicionais.
157
Foi observado durante todo o tempo de trabalho na instituição que raramente alunos e
professores eram vistos juntos, fora do espaço da sala de aula, com propostas pedagógicas
sendo realizadas. O corpo como parte importante do processo pedagógico e como meio
facilitador de futuras aquisições de conhecimento, em princípio, não era considerado como
uma opção viável para os professores do IBC. Deste modo, a entrevista teve como foco
principal investigar a possível ocorrência de estratégias desta natureza. Foi nosso propósito
também, através do diálogo sobre o assunto tema da tese, motivá-los a conhecer outras
possibilidades metodológicas nas quais a experimentação do corpo no espaço pudesse ser
percebida como uma alternativa às práticas apoiadas unicamente na transmissão oral de
informação.
IV.2.1-A opção de pesquisa
De acordo com Gaskel (2003), a pesquisa qualitativa pode ser considerada como a
porta de entrada para obter-se um mapeamento e um perfil do mundo social pelo pesquisador.
Apreender e identificar nas narrativas pontos relevantes para a investigação depende,
fundamentalmente, da habilidade do pesquisador quando da realização das entrevistas, bem
como de sua análise. A escolha pela entrevista semi-estruturada objetivou colher dados sobre
o tema em questão, como também abrir espaço para falas espontâneas que enriquecessem a
investigação.
Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, previamente agendadas para o final do
horário escolar. O local escolhido pela maioria dos entrevistados foi a própria sala de aula. Os
relatos foram gravados e, posteriormente, transcritos e analisados através do método de
158
análise de conteúdo (BARDIN, 1995). Procurou-se extrair dessa análise pontos comuns ou
núcleos temáticos com semelhanças e diferenças entre si.
Segundo Bauer e Gaskell (2002)
O emprego da entrevista qualitativa para mapear e compreender o mundo da
vida dos respondentes é o ponto de entrada para o cientista social que
introduz, então, esquemas interpretativos para compreender as narrativas dos
atores em termos mais conceptuais e abstratos, muitas vezes em relação a
outras observações. A entrevista qualitativa, pois, fornece dados para o
desenvolvimento e a compreensão detalhada de crenças, atitudes, valores e
motivações, em relação aos comportamentos das pessoas em contextos
sociais específicos
. (p.65)
IV.2.3-Os sujeitos
Participaram da pesquisa três professoras cegas e três videntes das classes da
Educação Infantil e primeira série do Ensino Fundamental, que lecionam no IBC. Todas as
professoras são concursadas e têm como grau de formação a especialização. A formação de
todas no nível de graduação é a pedagogia. A faixa etária das professoras está compreendida
entre 40 e 60 anos e todas lecionam na instituição pelo menos 20 anos. Duas das
professoras têm tempo para se aposentar, sendo que uma oficializou sua aposentadoria antes
do término deste trabalho.
Das três professoras cegas entrevistadas, duas foram ex-alunas da instituição. Quanto
às professoras videntes, foi também interessante notar que todas, antes de efetivarem-se na
instituição, foram estagiárias e/ou voluntárias, trazendo também em sua bagagem profissional
uma íntima relação com os procedimentos e as regras institucionais. Esta situação nos remete
ao que Glat (1989, p.31) comenta: “Toda entrevista individual traz à luz direta ou
indiretamente uma quantidade de valores, definições e atitudes do grupo ao qual o indivíduo
pertence.”.
Não se constituiu tarefa fácil conseguir professores videntes que se dispusessem a
participar das entrevistas em seus horários vagos, ou que reservassem um tempo depois do
159
horário para tal. Além disso, percebemos certo movimento de esquiva dos professores antes
mesmo de saberem qual seria o teor da entrevista.
Parece que este fato está ligado à falta de uma política na instituição voltada para a
pesquisa como meio de trazer soluções ou melhorias futuras. Reputamos a esta carência o
desinteresse dos professores em participar, como sujeitos, da investigação. O grupo de
professores está pouco tempo em contato com pesquisadores de outras instituições e ainda
se observa certa desconfiança com relação às pesquisas de um modo geral.
Torna-se importante ressaltar que esta situação de esquiva ocorreu somente com o
grupo vidente. Nenhuma professora cega negou-se a participar da pesquisa; assim, as que
responderam à investigação são as que foram consultadas no primeiro momento. Quanto às
videntes, as que responderam foram aquelas que a partir de minha fala relatando a dificuldade
em encontrar sujeitos para a minha pesquisa, aceitaram participar com o nítido intuito de
ajudar a uma colega de trabalho.
A inclusão de professoras cegas e videntes objetivou verificar se existem diferenças e
similaridades significativas entre os grupos, levando em conta a diferença sensorial. O
propósito foi investigar como essas professoras percebiam o corpo de seus alunos como um
caminho para a aquisição do conhecimento e de que forma utilizavam recursos para a
aprendizagem, principalmente aqueles em que o corpo e a experiência concreta estivessem
presentes. Além disso, verificar se a diferença da condição sensorial entre os docentes exerce
papel relevante no que concerne às questões investigadas.
A opção pelas classes de alfabetização e primeiras ries do Ensino Fundamental
originou-se da observação de expressivos níveis de repetência, principalmente nas classes de
alfabetização (Dados da secretaria do IBC entre 2005 e 2007, inclusive relativos à repetência
nas classes de alfabetização e primeiras séries do Ensino Fundamental).
160
IV.2.4-As entrevistas
Foram propostas cinco questões que faziam alusão ao corpo dos alunos e sua inserção
no cotidiano escolar como práticas pedagógicas propostas adotadas pelos professores. Tinham
como objetivo observar que lugar o corpo ocupava na prática pedagógica e como esse
professor avaliava uma abordagem educativa na qual a experiência concreta, não só de
manipulação de objetos, mas de todo o corpo como agente cognitivo, fosse valorizada
enquanto uma possibilidade de prática de ensino. As perguntas foram:
1) Como você percebe a expressão corporal de seus alunos?
2) Que importância a relação corpo do aluno corpo do professor permeia a sua prática
escolar?
3) De que forma é feita por você a explicação de conceitos por demais abstratos?
4) De que forma o corpo do aluno ocupa lugar na sua prática pedagógica?
5) Quantas vezes por semana seus alunos saem da sala para atividades em que se faça o
uso do corpo como meio facilitador da aprendizagem?
IV.2.5- A análise
Os dados coletados serão analisados na ordem em que as perguntas foram feitas.
Transcreveram-se falas e respostas que sinalizavam tanto um pensamento comum sobre os
tópicos investigados, estas foram destacadas, bem como as divergentes sinalizadas também.
Os sujeitos foram nomeados: P1, P2 e P3 (grupo deficiente visual) e P4, P5 e P6 (grupo
vidente).
A primeira pergunta foi: Como você percebe a expressão corporal de seus alunos?
De saída, houve uma sensível diferença na forma com que cada grupo compreendeu a
pergunta. O termo “perceber” foi diferentemente entendido por cegos e videntes. Para as
161
professoras cegas, o verbo perceber estava eminentemente ligado à sua experiência. Elas
afirmavam que se baseavam no tato e na audição, respondendo à questão sinalizando para a
percepção que tinham dos movimentos de seus alunos: como sabiam de seus deslocamentos,
como localizavam suas posições na sala de aula ou como podiam corrigir suas posturas.
Entenderam que a pergunta referia-se às suas próprias percepções, ocasionando uma descrição
sobre seus modos de observar o ambiente e as pessoas. as professoras videntes
interpretaram o verbo perceber como uma avaliação dos alunos, mais especificamente, em
relação às suas posturas e seus movimentos.
Ficou evidenciada uma situação interessante que apontava para o modo distinto de
compreensão da pergunta pelos dois grupos. Foi de certa forma curiosa a homogeneidade de
entendimento entre os sujeitos do grupo deficiente visual, que conceberam a percepção como
ação concreta fruto do contato, em que o tato e a audição são imediatamente associados ao
sentido do verbo. Parece que, em princípio, para esse grupo, perceber quer dizer
principalmente tocar. para o grupo vidente, perceber quer dizer observar, julgar através do
sentido da visão. Este fato nos traz respostas com enfoques distintos, fruto da diferente
compreensão do termo perceber”. O entendimento diversificado da questão trouxe também
respostas bem distintas entre os dois grupos.
Observa-se aqui como o sentido da visão domina o julgamento das professoras
videntes e como ele é preponderante e aparentemente absoluto quando a questão é observar
um objeto dado (no caso em questão os alunos). Parece que, ao usar apenas o sentido da visão
em seu julgamento, o professor deixa de se aproximar de seu aluno, de descrever
detalhadamente os objetos de promover experiências sensoriais significativas. No entanto,
sabemos o quanto a visão pode nos enganar. Como nos mostra Barbarás (2005),
Em outras palavras tem-se de reconhecer uma invisibilidade constitutiva da
visão. Essa invisibilidade não remete ao fato de que nunca vejo uma coisa
integralmente, de modo que sempre posso tornar visíveis aspectos invisíveis
do objeto. Pelo contrário, ela significa que por essência, na própria visão, na
medida em que ela não é apropriação, mas aproximação, uma não visão.
162
Se a visão fosse visão de ponta a ponta, ou seja, se nada no objeto lhe
escapasse, ela não seria visão, mas representação ou conhecimento: por
conseguinte, a visão aquilo que ela está vendo, contanto que não o veja
plenamente, contanto que permaneça nela uma forma de cegueira. (p.75)
Com relação às professoras cegas, as respostas a esta questão começaram pela
explicitação de que se tratava de sua própria percepção. Foram em sua maioria voltadas para a
observação tátil do corpo do aluno, em relação à sua posição no espaço, postura e
maneirismos. Uma das professoras também mencionou a audição como meio utilizado para
ter a percepção de seus alunos. A forma como colhiam estas informações também foi
ressaltada, apresentando-se similar em todas as entrevistadas. Falaram que percebiam a
expressão corporal de seus alunos chegando perto deles e tocando-os, assim, verificavam suas
posturas, se estavam ou não de cabeça baixa, fora da carteira ou executando maneirismos, tais
como: o balançar da cabeça e do corpo, entre outras atitudes. Uma das professoras relatou um
fato interessante acontecido em sua sala de aula e que ela reputa à sua condição de cegueira
total e a intenção de alguns alunos em enganá-la. Descreveu uma situação ocorrida, na qual o
aluno havia saído de seu lugar, ficado de pé, e ido até a carteira de um colega. Quando a
professora mandou que voltasse a seu lugar o aluno voltou devagar e disse que estivera todo o
tempo em seu lugar. A professora mencionou, então, que pela voz do aluno percebera todo o
seu deslocamento, mas que ele pensava que ela não tinha esta noção. “Eles acham que por eu
não enxergar não dou conta de seus movimentos e tentam me enganar. Mas a gente sabe pela
voz onde cada aluno se encontra; se está andando, se está com a cabeça baixa e tudo mais”.
Esta professora (P1) refere-se à audição como seu sentido primordial para o domínio do
ambiente e de seus alunos, não se reporta ao tato como forma pela qual percebe a posição e a
postura dos mesmos, referindo-se à voz como o meio de observação desses fatores.
Duas professoras (P2 e P3) apontam o toque como a forma de perceberem o
posicionamento de seus alunos e observarem suas posturas. Uma delas citou que, dependendo
da idade, os alunos começam a rejeitar o toque em seus corpos, com exceção do toque na
163
mão. Relatou que eles não aceitam bem serem tocados no rosto, nos braços, nas pernas e que
preferem que ela apenas fale sobre suas posturas. A professora mencionou que não consegue
perceber a postura dos alunos sem tocá-los. Acrescenta que a postura deveria ser corrigida
quando a criança é pequena, pois fica bem mais difícil corrigir esses problemas com o avançar
da idade.
Com relação às professoras videntes, uma entrevistada (P4) afirmou que percebia os
corpos de seus alunos com uma expressão corporal “empobrecida”, com possibilidades de
efetiva movimentação, mas sem estímulos para tal. Mencionou que só quando existem fortes
apelos para que os alunos se expressem corporalmente isto acontece, ou seja, em aulas que
basicamente necessitam do movimento, como as de educação física, ou uma oficina de
interpretação, por exemplo. Em outras ocasiões, como no recreio dos alunos, não observa
grande movimentação dos mesmos. Relata que a maioria dos alunos usa seu tempo livre
conversando sentados em bancos, ou caminhando em grupos, de braços dados, em duplas ou
em grupos de três ou quatro crianças.
Comenta que a falta da visão acarreta uma limitação dos movimentos, havendo uma
notável insegurança para a movimentação por esses alunos. Uma das professoras vidente (P5)
percebe maior insegurança nos alunos com baixa visão do que nos alunos cegos. Perguntada
sobre como analisa esta diferença, mencionou que pensa que, pelo fato do cego saber que
precisa usar o tato para ter consciência dos obstáculos no caminho, se movimenta utilizando
esse sentido todo o tempo. O aluno com baixa visão, parece utilizar seu resíduo em vez do
tato e este resíduo nem sempre garante uma movimentação segura. Ao dispensar o tato, o
aluno com baixa visão acaba tendo mais dificuldade no caminhar e na movimentação em
geral. Outra professora também vidente (P6) tem uma fala discordante desta; refere-se a seus
alunos com baixa visão como tendo boa movimentação e uma expressão corporal com boa
desenvoltura. Ressalta que os alunos de sua turma têm um resíduo visual muito bom.
164
Uma professora cega (P3) comentou ainda que os alunos deveriam ser melhor
trabalhados neste quesito. Mencionou que é “muito pobre” a expressão corporal da maioria
dos alunos, relatou que pouca expressividade facial. Sua fala apontou concordância com
uma das professoras cegas que fez alusão ao corpo dos alunos como “estático”, “enrijecido”,
“duro mesmo”. A professora não mencionou que ações pratica no sentido de minimizar estas
características observadas nos corpos de seus alunos, disse apenas que sai da aula muito
cansada quando os alunos têm esse corpo menos maleável e, portanto, oferecendo certa
resistência à manipulação. Observou que esta não é uma característica comum a todos os
deficientes visuais, mas que aqueles que não foram estimulados ao toque durante a primeira
infância costumam apresentar estas características, passíveis de serem modificadas, mas que
exigem do professor empenho constante. Falou ainda que muitas vezes esses alunos rejeitam
as aulas de educação física. Ela disse achar estranho que os alunos não queiram participar de
atividades mais movimentadas e não sabe dizer que razões os alunos alegam para esta
rejeição. Advertiu que um corpo que pouco se movimenta não pode ter desenvoltura
principalmente no caminhar.
Nestas falas podemos perceber que os professores observam uma expressão corporal
um tanto limitada em seus alunos, parece que alguns deles apresentam pouca mobilidade
corporal e certo temor, melhor dizendo, certa rejeição em tocar objetos. Isto em princípio
pode advir de poucas oportunidades que tiveram de experimentar, de explorar e de sentirem-
se seguros nesta exploração. Talvez isto ocorra por limitações de movimento que lhes foram
impostas durante o seu desenvolvimento, como nos diz Almeida (1997):
Uma criança não é mais ou menos capaz por ser cega. A cegueira não
confere a ninguém nem qualidades menores nem potencialidades
compensatórias. Seu crescimento efetivo dependerá exclusivamente das
oportunidades que lhe forem dadas, da forma pela qual a sociedade a vê, da
maneira como ela própria se aceita. (p.4)
165
De acordo com o que foi dito, a professora não considera que a opção pelo movimento
se mostre muito presente nas crianças deficientes visuais. Como mencionado nos estudos
citados anteriormente, por Hatwell (2003), o movimento e a locomoção são para o aluno
deficiente visual tarefas consideradas difíceis. É então natural que sua atitude corporal seja
mais passiva e que seja necessária uma intervenção capaz de motivá-lo a uma movimentação.
Ele por si talvez não procure formas de movimentar-se se não encontrar estímulos capazes
de fazê-lo vencer a insegurança, oriunda da falta de conhecimento do espaço. Fica, então,
apontada a necessidade de ações que propiciem uma movimentação segura para estes alunos,
levando-os a terem mais confiança ao se movimentarem e descobrindo dessa forma seu
entorno.
A segunda questão, “Que importância a relação corpo do aluno, corpo do professor
permeia a sua prática escolar?”, apontou para a intermediação da linguagem. Apenas uma das
professoras, que é cega, aponta para uma aproximação sua com o aluno no sentido de corrigir
sua postura ou mostrar alguma posição para execução de tarefas. Algumas professoras
mencionam o toque como fator importante para o ensino, mas referem-se basicamente ao
toque em objetos, aproximações corporais entre professores e alunos não foram constatadas.
A primeira resposta dada por (P1), uma das professoras cegas, revelou um
estranhamento com relação à questão. Diz que não tem noção de como o corpo do professor
poderia influenciar o corpo do aluno. Mencionou que em sala de aula, fica sentada em sua
mesa e os alunos em suas carteiras. Pela audição pode perceber os movimentos de seus
alunos. Neste caso, parece não haver nenhuma proximidade entre ela e os estudantes, ficando
a relação professor-aluno basicamente mediada pelo sentido da audição.
Outra professora cega (P2) disse utilizar o seu corpo para mostrar aos seus alunos
posições, posturas e direções, entre outras noções corporais: “Eu falo para meus alunos: olha
como estão as minhas mãos, sinta o movimento que eu faço quando escrevo”. Esta professora
166
diz que não acredita numa educação feita a distância. Diz que os resultados de ações apenas
verbais podem até ocorrer, mas que serão insipientes. Acredita que só no corpo a corpo, na
aproximação, é que pode atuar ensinando a seus alunos como sentar com postura correta,
como pegar no punção,
23
como posicionar o papel na reglete
24
etc.
Uma professora vidente e outra cega, (P3) e (P4), responderam à pergunta destacando
os aspectos sociais e comportamentais da relação corporal, não mencionando nenhum aspecto
pedagógico. Consideram que o corpo do professor serve de modelo para o corpo do aluno.
Argumentaram que querer ser como o professor influencia, e muito, o aluno no que tange a
vários aspectos como, por exemplo, se usa bengala, se tem guia, como se veste etc.
Entretanto, não encaminham argumento sobre como isto ocorreria. Mencionaram as questões
de postura e também a relação quanto a padrões estéticos e sociais. As professoras
comentaram que interesse dos alunos em saber como são seus professores em termos
estéticos, como se vestem, se usam determinados adereços, se pintam o cabelo etc. As
professoras não relataram que para obter tais conhecimentos eles poderiam ter uma
aproximação corporal. Em princípio os alunos obtêm estas informações através de perguntas
que fazem aos professores. No caso da professora cega, ela percebe um interesse particular de
seus alunos em saber se ela usa bengala. A questão do caminhar com ou sem bengala foi
mencionada pela professora cega, que disse perceber em seus alunos dúvidas com relação a
isso, que muitos de seus professores não usam bengala, deslocando-se com a ajuda de
guias. Em sua opinião, os alunos parecem querer saber que modelo devem seguir. As duas
professoras comentaram sobre a importância de o professor servir de modelo para seus
alunos. Mas com relação a uma aproximação corporal nada foi mencionado, indicando que
também é pela linguagem e muitas vezes pela mediação de outra pessoa que a obtenção de
informações sobre o corpo do professor se faz.
23
Punção: espécie de lápis que fura o papel para que a letras do sistema Braille sejam escritas.
24
Reglete: instrumento para escrita do sistema Braille, retângulo de metal em que é preso o papel para que seja
perfurado pelo punção.
167
A questão da imitação do ponto de vista cognitivo depende amplamente da visão e da
audição. Hatwell (2003) discorre longamente sobre as dificuldades que o bebê cego enfrenta
pela ausência da visão e da conseqüente impossibilidade de imitar posturas movimentos e
expressões faciais. Comenta sobre a dificuldade existente nas trocas não verbais entre a mãe e
o bebê. Diz que a criança cega sem ter o que e a quem imitar cresce carente de expressividade
fisionômica e postural. Essas dificuldades podem ser bastante diminuídas caso haja uma
estimulação corporal entre a mãe e o bebê. Como nos aponta Hatwell (2003), as trocas
corporais entre a mãe e o bebê são fundamentais para que a criança possa diferenciar seu
corpo de outro corpo e também reconhecer aos poucos pessoas ambientes e objetos que a mãe
utiliza para brincar com ela.
Uma professora vidente (P5) referiu-se ao toque como ação passível de preconceitos.
Ela mencionou que certo pudor em tocar ou se aproximar do corpo do outro. Seu discurso
assumiu um tom afetivo, distinto dos demais, revelando uma preocupação com uma formação
que ela chama de acadêmica, com muitos conteúdos teóricos, distanciada do que seria uma
formação voltada para o que chamou de formação de um ser humano integral. Em sua fala ela
mencionou idéias sobre a afetividade no processo educativo:
Na minha prática não permeia nenhum preconceito, porque você é chamado
de professor, professor-educador; a educação abrange todos os fatores, e essa
parte corpo é fundamental. O toque, o beijo, o abraço são essenciais em nível
de percepção, de evolução e de consciência de onde você está no mundo
atual em constante mutação. Eu acho sim, enquanto ele não perceber seu
corpo e o corpo do outro, não vai haver essa sintonia, essa transformação.
Tem que ser percebido, tem que ser trabalhado, tem que ser vivido, tem que
ser exteriorizado, falado, tudo o que puder ser feito. É daí que nós
começamos a trabalhar para chegarmos ao que chamamos de ser humano
integral.
Outra professora vidente (P6) falou que se o aluno é cego tudo tem de ser explicado
através da interação entre o corpo e o ambiente, bem como entre o corpo e os objetos, não
sendo assim fica muito difícil um ensino de qualidade. Segundo ela,
168
As coisas têm que ser apalpadas, tocadas para que o aluno tenha a noção dos
objetos. Na minha sala de aula eu tenho muitas miniaturas, muitos jogos,
muitas coisas de texturas e formas diferentes para que o aluno tenha uma
gama diversificada de sensações e saiba distinguir os objetos e nomeá-los.
Mesmo utilizando bastante o tato e a experimentação, sua fala não mencionou a
importância da interação do corpo do professor com o do aluno, e sim uma interação do corpo
do aluno com objetos. Parece haver uma distância corporal entre professor e aluno, ficando
apenas na fala a relação entre os dois. O corpo do professor fica fora da resposta. Ele não
aparece em nenhum momento de sua fala. Isto é consonante com as observações de Araújo
(2004),
As questões do corpo são geralmente ignoradas ou desconsideradas pelos/as
próprios/as docentes, pela escola, pelos/as formuladores/as das políticas
educacionais, entre elas a de formação de professores, como muitos
trabalhos apontaram e ainda apontam. Em geral, as questões do corpo têm
sido vividas e explicitadas como corpo-máquina, ou seja, como instrumento,
emocional e operacional, não como ser no mundo, como experiência vivida,
como lugar de encontro. (p.10)
As professoras, de um modo geral, não atribuíram a essa relação um valor pedagógico,
que remeta ao uso dos corpos como campo perceptivo no sentido de facilitar situações de
aprendizagem. Apenas uma professora cega referiu ao toque e a proximidade como ponto
importante em sua prática pedagógica, referindo-se ao seu corpo para exemplificar para o
aluno uma determinada postura para escrever. A proximidade entre o corpo do professor e
corpo do aluno não foi constatada.
Uma das professoras videntes referiu-se à questão do preconceito quanto ao toque no
corpo, afirmando que em sua prática não existe nenhum preconceito neste sentido. Falou de
um ser humano integral, mas não explicou bem o que queria dizer com isso. Pareceu querer
dar mais importância à formação do aluno com ênfase na socialização do que propriamente no
academicismo, ou seja, na aprendizagem apenas de conteúdos formais. Disse sentir falta de
outras ações na escola que se voltem também para a formação integral da pessoa. A
169
professora observa o caráter afetivo da relação corpo do aluno, corpo do professor (e revela
em sua fala uma aproximação e um possível contato entre ambos, quando se refere ao abraço,
ao toque e ao beijo como ações de uma prática), apontando para o que denomina ser um
professor educador, não só um professor que tem conteúdos a passar.
Em cinco das seis entrevistas, a preocupação postural é o ponto comum nas falas.
Entretanto, que se ressaltar que, mesmo sendo a postura e a correção da mesma algo que
em princípio denota uma proximidade entre os corpos, foi sobretudo na linguagem e na
audição que esta ão de correção se notabilizou. Este fato sugere que a expressividade e a
possível integração do corpo como um agente cognitivo em princípio não faz parte das idéias
dos professores, o corpo pelo que foi dito é visto como algo a ser corrigido para obter uma
boa postura. Entretanto, até mesmo essa correção se faz a distância, não havendo uma
aproximação dos corpos de alunos e professores no sentido de haver oportunidades de os
professores atuarem como modelos de postura para seus alunos, o que a nosso ver motivaria
mais que a simples fala para que os alunos corrijam suas posturas.
A terceira pergunta, “De que forma é feita por você a explicação de conceitos por
demais abstratos?” revelou muitas informações interessantes.
P1, professora cega, nos diz que tem noções de substantivos abstratos por já ter
enxergado, mas não sabe dizer se será possível passar determinados conceitos para os alunos
cegos. Durante a entrevista, deu o exemplo de céu como um conceito concreto, mas não
tangível, o qual ela tem noção por tê-lo visto. Ela pensa que depende muito do potencial de
abstração do aluno para poder alcançar determinadas idéias. Ela demonstrou dúvidas quanto
ao entendimento dos alunos. Comentou sobre a noção de céu e espaço sideral, dizendo:
“Posso mostrar no globo terrestre como é a terra e que a sua volta o ar que nós chamamos
de céu. Agora eu não sei se eles vão conseguir ter esta noção.”. O exemplo dado é bastante
ilustrativo de um conceito que, também, para os alunos videntes não é de fácil entendimento,
170
a não ser que possam observar o espaço através de um telescópio. Apesar de não serem
conceitos abstratos, mas impalpáveis, dependem de um entendimento que transcende a
experiência tátil.
Sacks (1995), comentando sobre a noção de espaço físico entre pessoas e objetos, nos
explica com propriedade sobre esta ser uma noção um tanto difícil para os deficientes visuais,
ele diz:
Nós, com a totalidade dos sentidos, vivemos no espaço e no tempo; os cegos
vivem num mundo de tempo. Porque os cegos constroem seus mundos a
partir de seqüências de impressões (táteis, auditivas, olfativas) não sendo
capazes, como as pessoas com visão de uma percepção visual simultânea, de
conceber uma cena visual instantânea. Efetivamente, se alguém não
consegue mais ver no espaço, a idéia de espaço torna-se incompreensível
mesmo para pessoas que ficaram cegas relativamente tarde na vida – essa é a
tese central da formidável monografia de Von Senden, que é vigorosamente
transmitida por John Hull em sua notável autobiografia, Touching the rock,
quando fala de si, do cego como vivendo (quase que exclusivamente) no
tempo. Como cego ele escreve: este sentido de estar num lugar é menos
pronunciado. [...] O espaço é reduzido ao seu próprio corpo, e a posição
deste é conhecida não pelos objetos que passaram por ele, mas pelo tempo
que esteve em movimento. [...] Para o cego, as pessoas não estão se não
falam. [...] As pessoas estão em movimento são temporais, vêm e vão.
Aparecem do nada; desaparecem. (p.138 e 139)
Para os cegos, como não é possível observar o espaço, a noção de amplitude ou de
limitação espacial é construída através das percepções auditivas que se propagam de forma
diferente em espaços maiores ou menores. Por isso é comentada na citação a questão da
temporalidade em relação à observação do espaço, já que o cego capta a noção de distância
através do som, mais audível ou menos audível, verificando dessa forma as distâncias entre
ele e os objetos que produzem sons, tais como: carros, máquinas e outros, e com relação às
pessoas através do barulho de seus passos ou de sua voz.
Para os videntes muitos conceitos, que não podem ser vistos a olho nu, são entendidos
de forma similar aos deficientes visuais, tais como: átomos, células, entre outros. Temos
representações gráficas em relevo para os cegos, e gráficas visuais para os videntes, as quais
também nos levam a aproximações e entendimento.
171
Uma professora cega (P2) disse que quando ela tem os conceitos, tenta passá-los e que
a vivência prática, as situações do dia a dia são importantes para dar certas noções.
Mencionou, por exemplo, sentir o que é a areia da praia, a água do mar, o que é uma onda,
que o mar faz barulho etc., mas salientou que a noção visual a pessoa nunca vai ter:
Bem você pode andar numa praia, sentir a areia, o gosto da água, sentir o
barulho da onda, que a onda está te derrubando, mas você não tem a noção
visual que as pessoas têm, o que os sentidos que te restam, os quatro sentidos
que te restam trazem, constituem a sua percepção, mas você não tem aquela
dimensão visual. Porque as pessoas que dizem que têm sem nunca ter
enxergado... e quem diz que tem... estas pessoas estão extrapolando.
Percebemos, que a professora faz aqui uma crítica aos deficientes visuais que dizem
ter certas noções que a visão pode dar. Esta crítica nos faz retomar o tema do verbalismo e
constatarmos como ele se manifesta, sendo percebido e analisado pelos próprios deficientes
visuais em relação a outros, como no caso desta professora cega. Após analisar o assunto,
compreendemos que são duas as posições dos cegos com relação ao verbalismo: uma que o
condena de forma patente e outra que ainda tem dúvidas em relação à questão, como nos diz
Veiga (1983),
Todas essas coisas têm de ser repensadas na educação dos cegos. Será
mesmo inteiramente prejudicial esse verbalismo tão instalado na educação
dos que não vêem? Ou será que esse verbalismo é, de algum modo, um
vínculo que ajuda a manter relações sociais de quem tanto precisa, o cego,
para sua verdadeira sobrevivência?(p.33)
A professora continua sua fala contando sobre sua experiência quando criança,
perguntando ao seu pai como era a Lua. Perguntou ao seu pai, quando tinha a idade de seis
anos, como era a Lua, dizendo que queria que a Lua caísse para que ela pudesse ver, no caso
tocar. O pai então comparou a Lua a um queijo. Ela relatou que a partir daquele momento
ficou com esta representação, que permaneceu para ela durante muito tempo. Comentou que
quando se faz uma representação a título de comparação para um cego, este tem que ser
esclarecido que o que se está dizendo é apenas uma aproximação, uma forma de dar uma
172
noção, de trazer o entendimento entre significante e significado, mas que é apenas uma
aproximação. “O que se explica tem que ser dito como algo que apenas simboliza ou que se
aproxima do real, mas nunca dizendo, como por exemplo: ‘a nuvem parece um algodão, e
quando chove é como se ela estivesse chorando, isso é muito doido!”, disse ela indignada com
o que normalmente é dito para as crianças. Lembremo-nos do que nos fala Masini (1997)
sobre explicações distanciadas de um contexto próximo ao deficiente visual,
Os dados sensíveis apresentados, ou conteúdos particulares, através de um
referencial que não é o do deficiente visual, não podem ser elaborados e
organizados pela sua mente; eles chegam fragmentados. Assim, as funções
sensoriais e simbólicas ficam dissociadas. Isso enfatiza a importância de se
buscar o referencial do deficiente visual e oferecer-lhe objetos e dados que
partam de seu contexto de vida. (p.36)
Mesmo as crianças videntes podem ficar reféns de representações que muitas vezes
estão distantes do real. A professora mencionou que, por exemplo, o que se convencionou
desenhar como sendo o Sol – um círculo com tracinhos em volta – é uma convenção arbitrária
e que não corresponde ao real do cego. Para ele o sol é um calor, coisa impossível de ser
representada por um desenho. Com relação ao vidente, muitas vezes encontramos
representações nas quais o sol é representado como tendo boca, nariz, entre outros detalhes
fictícios, os quais também não conferem com a realidade. Nestes casos as crianças videntes e
também as cegas, em princípio, devem estar cientes da conotação imaginária e ficcional
dessas ilustrações.
Houve um consenso entre as professoras, tanto cegas quanto videntes, que para se
ensinar conceitos, as explicações devem partir do dia a dia do aluno, para que este possa
abstrair e chegar o mais próximo possível do que se está querendo explicar. Uma professora
mencionou os conceitos de clima e de tempo, como sendo difíceis de explicar. Falou que
somente a vivência do cotidiano com suas variações de temperatura é que levam o aluno a
entender a diferença entre clima característico das estações do ano e temperatura, ou melhor,
173
tempo chuvoso, tempo quente, tempo frio. Em sua prática percebeu ser difícil fazer esta
distinção e que os alunos costumam confundir as duas noções.
Outro conceito interessante mencionado foi a noção de cor. Duas professoras cegas
mencionaram o conceito, uma delas disse que não lógica em ensinar cores para o cego, o
cego nunca terá a noção da cor, para ele a cor não é importante. Outra professora cega (P3)
pensa diferente, considera que o cego tem que ter uma noção do que a cor representa. Para
ensinar cores para seus alunos, fez uma relação das cores com a textura das frutas. Não ficou
claro para nós como é feita esta relação, que existem frutas com texturas diferentes que
apresentam a mesma cor. Nem tam pouco se é tão importante para o cego saber se uma
laranja é amarela ou se uma maçã é vermelha, se ele não tem nenhuma noção do que
significam essas cores. Talvez fosse mais significativo nomear e diferenciar as frutas pelo
odor que delas emana. Hatwell (2003) menciona que a cor é uma propriedade específica da
visão, fazendo uma relação às propriedades que podem ou não ser captadas pelas modalidades
sensoriais,
O toque é a modalidade perceptiva que para os não-videntes, é mais capaz de
suplantar a visão deficiente. Trata-se de uma modalidade espacial que, sobre
certas condições, pode informar quase todas as propriedades dos objetos as
quais acedem a visão: forma, tamanho, localização, orientação, distância,
textura, etc. Com exceção da cor, específica da visão e da temperatura e peso
específicos da percepção tátil, todas as outras propriedades dos objetos são
acessíveis ao mesmo tempo pela visão e pelo tato. (p.12)
Sacks (1995) também se refere à cor quando analisa sua importância no texto “O caso
do Pintor Daltônico”, diz ele:
A cor não é um assunto trivial: por centenas de anos ela despertou uma
curiosidade apaixonada nos maiores artistas, filósofos e cientistas
naturalistas. O jovem Spinosa escreveu seu primeiro tratado sobre o arco-
íris; a mais jubilosa descoberta do jovem Newton foi a composição da luz
branca; o grande trabalho de Goethe sobre a cor , assim como o de Newton
teve início com um prisma: Schopenhauer, Young, Helmholtz e Maxwell, no
século passado, foram todos atormentados pelo problema da cor; o último
trabalho de Wittgenstein foi seu Observações sobre a cor. Ainda assim, a
maioria de nós, na maior parte do tempo, despreza o grande mistério da cor.
(p.22)
174
Fazendo-se uma pequena reflexão sobre o assunto, lembremo-nos do conto de
Orígenes Lessa denominado “As cores” no qual o autor descreve a história de uma
personagem cega de nome Maria Alice que, tentando se aproximar do mundo dos videntes,
começa a fazer a relação das cores com determinadas situações do cotidiano. O conto
evidencia uma imposição social feita para uma moça cega que se obrigada a saber o
significado das cores, revelando uma situação típica de verbalismo. Numa análise do conto,
feita por Nobre (2007), é dito que “As cores e imagens, que compõem o mundo dos videntes
(pessoas que enxergam), são para Maria Alice referências de um mundo que não é seu.
(2007, p.20).
Com relação à questão das cores, nenhuma das duas professoras mencionou qual a
importância para um cego em saber sobre tal assunto. Esta é uma questão que merece ser
aprofundada, mas que foge aos limites do presente estudo.
De um modo geral, a questão da explicação de conceitos abstratos parece ocorrer
através da transmissão da informação, mais que pela experimentação, pelo que cada um pode
construir através da ação, do contato e da experiência tátil. É uma questão que preocupa
educadores que, não estando próximos de alunos com deficiência visual, angustiam-se pelo
fato de não saberem como esses alunos formam seus conceitos. Podemos lembrar aqui o que
comenta Batista (2005) em seu artigo: “Formação de conceitos em Crianças Cegas: Questões
Teóricas e Implicações Educacionais”:
Uma das preocupações constantemente apresentadas por professores do
ensino regular que recebem alunos cegos em suas classes refere-se ao modo
de aprendizagem do aluno cego e, especialmente, aos recursos necessários
para essa aprendizagem. A resposta reside em parte, na adoção de recursos
alternativos para acesso ao texto escrito, tais como o Sistema Braille.
Entretanto, ficam muitas dúvidas: Como a criança vai entender as noções
apresentadas nas aulas? Como vai por exemplo fazer distinções entre
animais? Conhecer o funcionamento do corpo humano? Compreender como
são os acidentes geográficos? De onde vêm essas dúvidas? Em parte, de uma
concepção de aprendizagem centrada no aporte sensorial e, basicamente, na
visão. (p.7)
175
O que Batista ressalta é mais uma vez a supremacia de ações educativas que primam
pelo discurso, não havendo lugar para a experiência concreta como uma opção para a
apresentação de conceitos e conteúdos do currículo. Sendo a oralidade seu único canal de
explicação, o professor na presença de um aluno que não se satisfaz apenas com a explicação
verbal, seja deficiente visual ou não, realmente se preocupa e muitas vezes se sente incapaz de
ensinar a este aluno. que se ressaltar ainda que a explicação do professor parte na maioria
das vezes de suas experiências visuais, ou seja, de um referencial distinto do aluno deficiente
visual, o que impõe a ele uma aceitação passiva do olhar do outro. Masini (1994) refere-se a
esta questão e diz que,
Na comunicação, a predominância da visão sobre os outros sentidos bem
como do verbal sobre o não verbal, faz com que os conhecimentos
(percepções e intelecções) não acessíveis ao D.V. sejam utilizados pelo
vidente ao falar com ele. Isto faz com que o D.V. desenvolva uma linguagem
e uma aprendizagem conduzida pelo visual. Como os dados o provêm de
sua experiência, não podem portanto serem organizados por ele, ficando a
nível de verbalismo e aprendizagem mecânica. (p.143)
A divulgação de outras formas de ações didáticas pode vir no futuro a amenizar esta
situação em que prepondera uma comunicação distanciada da experiência perceptiva do
aluno, deixando-o numa atitude de total passividade, gerando um conseqüente desinteresse, o
qual, muitas vezes, ocasiona o abandono da escola por parte de muitos educandos.
A quarta pergunta foi: “De que forma o corpo do aluno ocupa lugar na sua prática
pedagógica?”
Uma professora cega (P1) respondeu que dependendo do assunto, o corpo é primordial
na explicação como, por exemplo, no ensino de ciências: “Para mostrar o que é uma coluna
vertebral, eu os faço colocar a mão no próprio corpo e mostro: aqui é a coluna vertebral”.
Mencionou ainda o globo terrestre e as representações táteis da órbita terrestre como um
material que os ajuda pela apalpação a terem uma idéia bem próxima da disposição, forma e
tamanho relativo dos planetas.
176
Outra professora cega (P2) disse que quando nos centramos num ensino muito voltado
apenas para os conteúdos acadêmicos, nos distanciamos do que significa ensinar. Sua fala
literal diz que:
A gente finge que ensina e o aluno finge que aprende. A coisa não é real não
se tem uma preocupação real, genuína, autentica e verdadeira de se
estabelecer uma multi e uma interdisciplinaridade no sentido de cultivar esse
corpo que é prejudicado, porque essa criança nasceu cega, ela sofre
mutilações inerentes. Porque não vai me dizer que isso não acontece, porque
acontece; pode ser a melhor família, mais bem intencionada. Eu digo isso
com relação a mim mesma, eu tive tudo, tive uma família, mas claro que
ficaram seqüelas, lacunas e vazios, porque não adianta, isso é complicado,
não é que a escola não privilegie esse aspecto bem, eu nem sei o que é
privilegiado nesse momento que nós estamos vivendo.
A professora parece querer dizer que é através da experiência e de uma pedagogia
menos voltada para a mera transmissão de informação de modo verbal que poderá vir a ser
possível uma construção mais adequada do conhecimento pela pessoa deficiente visual.
Novamente evidencia-se uma pedagogia que se limita à transmissão verbal da informação
distanciada de ações voltadas para uma aproximação do corpo do espaço e dos objetos no
sentido de dar valor à experiência concreta como uma via para a construção do conhecimento.
Lembremo-nos aqui do que Dewey preconiza,
Ora, se a vida não é mais que um tecido de experiências de toda sorte, se não
podemos viver sem estar constantemente sofrendo e fazendo experiências, é
que a vida é toda ela uma longa aprendizagem. Vida, experiência,
aprendizagem não se podem separar. Simultaneamente vivemos,
experimentamos e aprendemos. (1980, p.115)
Nesta perspectiva, aprender é experimentar e não apenas observar ou ouvir
explicações, o aprender se fundamenta numa ação do organismo para sua futura modificação,
fruto da experiência da aprendizagem.
Outra professora cega (P3), respondendo a quarta pergunta, mencionou que existem
alunos que, por não terem trabalhado o tato quando pequenos, apresentam muitas resistências
em apalparem objetos ou se deixarem ser tocados. Quanto a essa peculiaridade Bruno e Mota
(2005) fazem menção,
177
Há crianças que, quando vêm para a escola, mostram pouco a ação funcional
da mão, o desenvolveram ainda o mecanismo de preensão, tocam de leve
ou rapidamente os objetos e rejeitam materiais de texturas marcantes ou
diferentes, o que dificulta uma exploração tátil ativa para formar a imagem
mental do objeto. (p.159)
A professora alegou que, mesmo sendo difícil, essa barreira tem que ser vencida, já
que é basicamente pelo tato que o deficiente visual, mesmo o de baixa visão, pode completar
sua noção de um objeto, reconhecer formas e distinguir texturas. Disse que não há outro
caminho possível e apontou que a explicação verbal é muito pouco para se conhecer o
mundo. Mencionou na entrevista a importância de uma estimulação precoce, que ofereça
vivências corporais ricas e diversificadas, levando a criança cega a otimizar seu tato e perder a
inibição para a exploração dos objetos e dos ambientes em que transita. Mencionou ainda que
estamos numa cultura em que o tocar é muito limitado, na qual existem avisos para que não se
toquem nas coisas, em que existem espaços limitados por cordas para que as pessoas não se
aproximem de determinados objetos. Falou do quão desinteressante é uma visita a um museu
no qual não se possa tocar em nada. Esta situação de primazia apenas do contato visual com
obras de arte e objetos em geral traz a marca do visuocentrismo, segundo o qual a visão dá
conta integralmente do processo perceptivo, desprezando assim outras qualidades dos objetos
que não podem ser percebidas pelo contato visual, tais como: peso, textura, temperatura, entre
outras. Os videntes também perdem oportunidades de perceberem de outra forma estes
objetos, deixando assim que apenas as propriedades captadas pela visão sejam apreciadas.
Uma professora vidente (P4) respondeu à questão dizendo que quando se ensina algo,
parte-se de si mesmo para poder ensinar ao outro, e que o mesmo processo se dá com o aluno,
afirmou : “Se ele não conhece o próprio corpo, não vai ser capaz de conhecer ou de fazer uma
separação entre ele e o mundo, de distinguir onde está o limite entre o seu corpo e o espaço.”
Disse que faz muitas dinâmicas de reconhecimento das partes do corpo, dos objetos da sala e
das posições dos alunos dentro do ambiente, tentando fazer uma relação do corpo dos alunos
178
com o espaço. Neste caso é importante que se atente para o que a professora mencionou como
sendo “conhecimento de si mesmo”. Caso esteja se referindo ao conhecimento do corpo do
aluno por ele mesmo para uma aprendizagem a partir de seu autoconhecimento para depois
conhecer o mundo a sua volta, não vemos problema com o uso da expressão. Entretanto, se o
que quer dizer com o uso da expressão refere-se a um conhecimento a ser passado, baseando-
se em sua própria experiência, ela deveria atentar para a diferença sensorial entre ela e seus
alunos, pois no caso, como ela é vidente, pode sem querer dar um sentido muito ligado à
visualidade quando parte de si para interagir com os alunos. Se ela não estiver atenta à
diferença sensorial poderá negligenciar aspectos mais afeitos à condição sensorial de seus
alunos, recaindo no visuocentrismo.
Outra professora vidente (P5) mencionou que quando o aluno é cego não outro
caminho senão partir de seu corpo para explicar as coisas do mundo. Quando fala para ele
colocar a mão num determinado objeto, diz que é uma forma do corpo do aluno estar
atuando.
P6 (vidente) diz que o conhecimento do próprio corpo pelo aluno é fundamental para
que ele faça a distinção entre ele e as outras pessoas. Falou que teve experiências com
alunos de classes de Educação Infantil (entre cinco e sete anos), que falavam de si próprios
como se fossem uma terceira pessoa, e reputou este fato ao pouco reconhecimento da
distinção entre ele mesmo e o mundo:
A criança diz: ele quer brincar, ele quer beber água, ou fala o próprio nome
sem usar o pronome eu. Repete seu nome como se não fosse ele. Parece que
está se referindo a outra pessoa, acha que isso acontece pela falta de
reconhecimento de si como um corpo distinto dos outros e do espaço. Eu
acho que o corpo tem que ser trabalhado, mas nem sempre eu tenho tempo,
fica então para as aulas mais específicas como a de educação física esta parte
da educação corporal. Mas a gente tem que reforçar sempre.
Fazer uso do corpo na prática pedagógica ficou muito evidenciado na terceira e na
quarta pergunta. Trazer o abstrato para o concreto através de uma vivência corporal parece ser
179
uma meta importante e uma possibilidade explorada pelas professoras cegas e videntes com
os mesmos objetivos. O grau de importância que é dado ao corpo apareceu em todas as
respostas. A maioria das professoras disse que principalmente para o cego o corpo é o espaço
do toque, da referência; algumas mencionaram que é a partir do corpo que entendemos o que
está fora de nós. Mesmo que existam lacunas, é possível transpô-las se houver uma intenção
determinada no sentido de oportunizar o contato do corpo com o espaço, garantindo desse
modo um entendimento baseado nas experiências. O reconhecimento do corpo foi citado
como meio de conseguir perceber a si, distinguindo entre si mesmo e o ambiente. Houve
significativa menção quanto ao corpo e seu reconhecimento serem fundamentais para o aluno
deficiente visual, entretanto, não foram descritas atividades no espaço da sala de aula onde
esse corpo seja trabalhado neste sentido; o foco principal mencionado pelos professores
restringe-se ao uso das mãos. Uma professora cega (P3) disse até a seguinte frase: “o corpo é
o centro do universo e eu acho que é o elemento principal, e outra coisa que eu acho, de um
modo geral, os professores acham que o aluno é uma mão e ele não é, ele é um corpo.”
O oferecimento basicamente de atividades que estimulam o tato das mãos sendo
percebidas como suficientes na educação do deficiente visual tem sido uma prática criticada
pelos próprios professores cegos, como no caso da fala acima. que se atentar para outras
formas de educar esse aluno, ampliando suas possibilidades de percepção, de contato, de
atuação nos espaços tanto pedagógicos como em quaisquer outros.
[...] não se pode centrar a discussão na substituição da informação recebida
pela visão por um ou mais sentidos alternativos. Ou seja, a tarefa de educar
um aluno cego, ou com baixa visão severa, não se limita ao oferecimento de
materiais tateáveis (ou, eventualmente, por outras modalidades sensoriais),
entendidos como substitutivos da informação habitualmente recebida pela
visão, embora essa seja uma concepção bastante presente entre educadores.
(BATISTA, LAPLANE, 2007, p.101)
Para nós ficou a impressão de que apesar de ser reconhecida a importância do corpo na
educação formal dos deficientes visuais, citada principalmente nas respostas à quarta
180
pergunta, parece que isso não se efetiva no cotidiano escolar. Nas falas das professoras
entrevistadas não são mencionadas práticas pedagógicas concretas, tais como: oficinas ou
jogos pedagógicos que revelem um emprego efetivo de ações corporais. por parte das
professoras, uma forte menção ao tato, ao uso das mãos no reconhecimento de objetos,
maquetes e do próprio corpo.
A fala da professora cega de que muitas vezes o aluno é considerado como uma mão, e
não como um corpo, reafirma não ser comum que o corpo como um todo seja visto como um
instrumento facilitador da aprendizagem. Esta crítica da professora ressalta o reducionismo
com que o corpo é visto, o qual despreza o potencial háptico presente em seu organismo.
Não tivemos indícios de uma efetiva utilização do corpo como um ponto importante
no cotidiano escolar. Os professores falam dessa importância, reafirmam que o conhecimento
do próprio corpo é fundamental, mas não aparecem ações que demonstrem a adoção de
práticas nas quais o corpo ocupe um lugar.
Perceber o conhecimento como ação do organismo como exposto na teoria de Varela
(2003) é percebê-lo como agente da cognição,
[...]
enfatizar que os processos sensoriais e motores, a percepção e a ação,
são basicamente inseparáveis na cognição vivida, e não estão simplesmente
conectados de maneira casual nos indivíduos. Ao adotar o que denomino
uma “abordagem enactiva da cognição”, dois princípios são fundamentais:
primeiro, a percepção consiste em ação orientada perceptivamente; e
segundo, as estruturas cognitivas surgem a partir de padrões sensório
motores recorrentes que permitem que a ação seja orientada
perceptivamente. (p.78 e 79)
A quinta pergunta foi
Quantas vezes por semana seus alunos saem da sala para
atividades em que se faça o uso do corpo como meio facilitador da aprendizagem?”. As
respostas indicaram que os professores não se consideram responsáveis por essas saídas da
sala de aula. Mencionaram as aulas de educação física como primeira resposta, o que indica a
idéia de que esta responsabilidade é apenas do professor dessa disciplina. Ou seja,
experimentar o corpo fora do espaço da sala de aula, em princípio, não é tarefa do professor
181
que fica a maior parte do tempo na companhia dos alunos. Para um melhor entendimento da
pergunta explicamos que a pergunta referia-se à sua participação como professor em
atividades fora do espaço da sala de aula e não de aulas nas quais isso já acontecia.
Uma professora cega (P1) revelou que não sai com seus alunos, disse que outra
professora saiu com seus alunos no início do ano letivo para dar os conceitos de rua, de bairro
e do espaço da escola etc. Os outros professores (P2, P3, P4, P5 e P6) referiram-se a passeios
esporádicos, visitas a museus e exposições, mas ressalvando que nem sempre é permitido a
seus alunos que toquem nas peças expostas, o que retira todo o possível valor de tais visitas.
Disseram que, além de serem passeios esporádicos, não existe uma proposta de continuidade
que sinalize ser esta idéia considerada como tendo um valor pedagógico.
Estas atividades permitem que o aluno possa realmente interagir com o ambiente,
fazendo uso do mesmo para ter uma idéia mais concreta, e não somente saber de seu entorno
através das explicações teóricas feitas em sala de aula. Mesmo não havendo muitas
oportunidades para estas ações, os professores sinalizam ser muito profícuo para os alunos
estabelecerem um contato entre a explicação teórica dada em sala de aula, com uma
experiência prática, concreta. Dois professores (P3 e P5) referiram-se a um espaço no IBC
onde os alunos participaram de uma exposição intitulada: “O corpo ao alcance das mãos”
25
.
Nesta exposição os alunos puderam tocar em diversos protótipos de órgãos do corpo humano,
podendo então fazer uma relação direta com o que aprendem nas aulas de ciências. Estas
iniciativas pensadas para atender às necessidades dos deficientes visuais beneficiam todas as
pessoas, uma vez que possibilitam a exploração através de outros canais perceptivos do que
está sendo exposto.
O que é imediatamente experimentado não precisa ser ensinado nem
repetido para ser memorizado [...] aprendizagem imediata. Quanto mais
25
Esta é uma exposição permanente no IBC em que se encontram protótipos dos órgãos do corpo humano, os
quais podem ser tocados pelos visitantes. Foi fruto de pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, Museu
de Ciências Morfológicas doada ao IBC.
182
separado da experiência um determinado conteúdo, maiores e mais
complicadas as mediações verbais. (ALVES, 1998, p.49)
Outra professora cega (P3) mencionou ainda ser possível utilizar a expressão corporal
através de peças de teatro, ou em atividades do cotidiano como, por exemplo, colocar uma
carta no correio ou fazer compras. Diz que sair da sala de aula para ter noção da realidade fora
da escola é muito importante. Vivenciar situações do dia a dia enriquece a experiência de seus
alunos. Nessa fala encontramos ressonância com o que Moraes (2006) aponta,
A experiência do teatro com cegos e portadores de baixa visão permite-nos
acompanhar o modo como a criança utiliza os sentidos para a elaboração do
mundo e do universo do personagem. O espaço cênico cria um campo de
aprendizagem que engloba diversos pontos fundamentais no
desenvolvimento cognitivo da criança cega: a orientação e a locomoção, as
relações interpessoais, a orientação do corpo no espaço etc. O trabalho de
construção dos personagens, bem como a memorização do texto implica,
portanto um dispositivo cognitivo que leva à criação e a produção de um
universo cognitivo cujos efeitos são incorporados pela criança em seu dia-a-
dia, na sua vida diária. (p.5)
Masini (
1997)
comentava sobre a importância do deficiente visual experimentar, e
mencionou uma pesquisa na qual o propósito era investigar os caminhos perceptuais do
deficiente visual,
A análise dos dados revelou que em situações do dia a dia, em momentos de
espontaneidade, essas crianças mostravam sua maneira própria de perceber e
organizar aquilo com que lidavam, sem utilização de expressões ou palavras
“copiadas” dos que vêem e distantes de suas experiências. (p.37)
Na maioria das respostas, foi revelado que os alunos têm poucas oportunidades de
explorarem ambientes fora da sala de aula na companhia de seus professores, e que estes,
apesar de perceberem a importância disso, não efetivam esta prática com assiduidade, por não
ser um hábito presente no cotidiano escolar. Mencionaram que não há um calendário no qual
estas ações estejam agendadas com freqüência, são então momentos esporádicos e não
planejados com este fim. Estas ações em princípio são avaliadas como atividades de lazer e
183
não como capazes de trazer ganhos pedagógicos. Talvez por isso não façam parte do
planejamento do ano letivo.
Um balanço geral das entrevistas aponta que não se constatou uma diferença
significativa nem de pensamento nem de atitudes entre as professoras cegas e videntes. Em
suas falas percebeu-se uma prática pedagógica com um viés bastante semelhante, muito
ligado à linguagem e a oralidade. Não houve um ponto que pudesse ser ressaltado como um
comportamento típico de professora vidente ou cega. Parece que a formação de professores
desenha um profissional com perfil fortemente ligado à transmissão da informação e muito
pouco voltado para a experiência. Esta formação traça um profissional com um perfil bastante
semelhante em termos de práticas pedagógicas. Em nossa pesquisa, a diferença sensorial não
determinou um modo específico de atuar pedagogicamente. Tanto nas classes de professoras
cegas como nas de professoras videntes, não foi revelado nenhum procedimento que sugerisse
ser conseqüência da condição sensorial dos professores. Basicamente, todos atuam em suas
classes com o modelo de transmissão oral da informação. Sabemos da importância da
linguagem no processo de desenvolvimento de todos os seres humanos, mas chamamos a
atenção de que o deficiente visual pode aliar à linguagem a experiência corporal a qual
complementará eficazmente todo este processo.
A sociedade exige que os indivíduos cegos apreciem as coisas como os
videntes, como conseqüência, um conceito irreal e idealizado. Para que isso
seja evitado, é imprescindível que o indivíduo tenha uma experiência
sensorial o mais completa possível, ao mesmo tempo acompanhada de
explicações claras e concretas que ajudem uma melhor compreensão.
(MARTÍN e BUENO, 2003, p.112)
O lugar do corpo é apontado nas respostas, por ambos os grupos, como sendo
importante para os alunos deficientes visuais, mas nem num grupo nem em outro se detectam
ações efetivas de aproveitamento desse corpo como uma ferramenta pedagógica. Uma das
questões que revelou uma sensível diferença entre os dois grupos, cegos e videntes, foi a que
abordou a explicação de conceitos abstratos. No caso de algumas professoras cegas que nunca
184
enxergaram, estas não se sentem capazes de explicá-los pelo fato de também elas não terem a
noção desses conceitos. Para elas fica então difícil dar uma noção, uma explicação da qual
nem mesmo elas têm o entendimento efetivo.
Denota-se que a investigação não revelou diferenças no comportamento de professoras
videntes e de professoras cegas quanto à importância que dão ao aspecto corporal como sendo
importante para o aluno deficiente visual. Todas concordam que o corpo e os trabalhos que
aliam explicações orais com a experiência concreta são muito mais ricos e promovem uma
melhor construção do conhecimento. Mas fica patente a falta de práticas pedagógicas em que
o corpo compareça como recurso facilitador da aprendizagem.
O corpo está todo tempo presente na aprendizagem humana. E, apesar de
todos esses conhecimentos, comumente ainda se observam, nas escolas,
desde a primeira série, crianças sentadas uma atrás da outra, cabeça olhando
cabeças, corpos presos atrás das mesas, “petrificados”, olhares fixos no
caderno; quando alguns conversam, a professora pede silêncio. E o corpo
“sofre”. (SILVA e WEISS, 2004, p.81)
Verifica-se uma constante menção ao uso das mãos, de ações que levem os alunos a
exercitarem o sentido do tato, e de uma preocupação quando alguns alunos, por não terem
sido acostumados a utilizarem este sentido, rejeitam o tocar, o explorar e o apalpar objetos.
Nota-se que a vivência fora da sala de aula é eminentemente ligada a atividades
extraclasse, tais como: a educação física, e que os professores, de um modo geral, não
circulam com seus alunos fora do espaço sala de aula. Fica-nos a impressão de que a vivência
e a exploração de ambientes ricos em informações que poderiam ser experimentados não são
vistos e nem utilizados como possíveis ambientes pedagógicos.
Foi nosso propósito, durante as entrevistas, refletir sobre o tema do corpo na educação.
Nos encontros, sentimos nitidamente essa reflexão expressa nas falas das professoras, em
diversos momentos de nosso diálogo. Durante as entrevistas, outras reflexões originaram falas
que foram muito além do escopo das perguntas. Sabemos que não podemos generalizar as
falas como sendo institucionais, porque existem inúmeras situações que configuram valores e
185
crenças dos grupos, no caso, os professores do IBC. Situações que perpassam o cotidiano
institucional, modificando-o e, muitas vezes, fragmentando-o, ressaltando características
marcantes de grupos pequenos que lutam entre si por ideologias e propostas diversas. Mas
dentro do possível, podemos perceber nuances de homogeneidade em diversas falas, que se
caracterizam por uma concordância em relação a alguns temas. Na falta de uma política
pedagógica definida institucionalmente, cada professor imprime suas crenças e seus valores
conferindo ao dia a dia da sala de aula nuances que trazem certas divergências pedagógicas,
como no caso da discussão da cor. Se por um lado isto possa ser visto como prejudicial, a
nosso ver garante ainda uma liberdade ao professor para escolher e adotar técnicas nas quais
confia, não atuando de forma “engessada”, garantindo assim alguma criatividade em sua
prática.
Foi interessante observar que, mesmo havendo políticas pedagógicas diversificadas,
fruto da liberdade que cada professor tem de escolher suas metodologias de trabalho,
similaridade em diversas respostas, que denotam, em princípio, um pensamento advindo do
pertencimento à instituição.
Constatamos que, muitas vezes, a fala espontânea surgida logo após o término da
entrevista trouxe grande contribuição e enriqueceu sobremaneira a investigação. Pois nesses
momentos, o encontro entre pesquisador e sujeito da pesquisa foi transformado numa
aproximação entre colegas que passam por problemas semelhantes, motivando uma saudável
reflexão conjunta, atingindo assim algo proposto por nós no início do trabalho como um
objetivo a ser alcançado. Imersos num campo de pesquisa, ambos, pesquisador e pesquisados
se interrogaram durante as entrevistas sobre diversas questões que perpassam o espaço
institucional, conferindo às entrevistas relatos interessantes que não estavam inicialmente
previstos. Esta situação parece ter amenizado bastante a desconfiança inicial dos sujeitos
quanto aos objetivos da investigação, revelando aos mesmos um valor interessante até então
186
não experimentado pelos entrevistados, ou seja, um diálogo reflexivo sobre os caminhos e
práticas efetuadas no dia a dia de suas classes, que de um modo geral não são formalmente
registradas pelos professores.
CONCLUSÃO
Falar e principalmente escrever sobre um assunto com o qual convivemos durante
muito tempo é uma experiência de resgate e de reencontro, além de também propiciar
descobertas. Digo reencontro pelo fato de que durante a escrita da tese, passamos a observar e
a refletir sobre nossa atuação profissional com um olhar distanciado de nossa prática imersa
na rotina do dia a dia que, raramente, é registrada e analisada por nós. Acontece então um
verdadeiro resgate de nosso percurso, modulado pelas novas informações teóricas, pelos
questionamentos do grupo de pesquisa e pelo olhar atento de nosso orientador, que nos fazem
repensar, aprofundar e aperfeiçoar nosso conhecimento atrelado até então basicamente ao
empirismo. Posso dizer que desse reencontro com a questão da deficiência visual derivaram
mais descobertas que resgates.
Mesmo tendo trabalhado por mais de 20 anos com deficientes visuais, foi necessário
um mergulho teórico inusitado, agregando valor a toda experiência empírica acumulada, para
que fosse possível a confecção desta tese. Nesse mergulho percebemos que ainda muito a
ser pesquisado sobre o tema, entretanto, não mais se justifica a menção feita em muitos
trabalhos teóricos que sinalizam para a falta de bibliografia especializada sobre o assunto. Já
podemos contar com muitos estudos relevantes que abordam sobre diversos ângulos e sob a
égide de diversas disciplinas o tema da deficiência visual. O trabalho de Yvette Hatwell por si
demonstra a quantidade de pesquisas e estudos existentes sobre o tema. Quanto ao
187
panorama nacional, percebemos uma significativa ampliação de pesquisas na área e um
quadro significativo de publicações que focam tanto o tema da deficiência visual, de um modo
geral, bem como dos problemas de inclusão desses alunos, assunto bastante comentado na
última década.
No decorrer de nosso estudo, foram muitas as descobertas e diversos foram os
encontros com autores que respaldaram nossa idéia de uma cognição via corpo e via
experiência. Humberto Maturana, Francisco Varela, Antônio Damásio, entre outros, foram de
capital relevância para construir um referencial teórico capaz de sustentar nossa proposta de
uma metodologia educacional que fornecesse aos deficientes visuais mais experiências
concretas nas quais seus corpos estivessem em ação. A leitura desses autores contemporâneos
nos fez também entender melhor e dar uma interpretação atual das idéias formuladas por
Merleau-Ponty e John Dewey. Neste caminho, através da leitura, não foram poucas as
modificações de pensamento que certamente ocorreram.
A primeira descoberta e conseqüente modificação se deu em mim mesma. Perceber o
quanto estava marcada pelo paradigma visuocêntrico foi uma surpresa, eu nunca me dera
conta disso. Os quatro anos nos quais mergulhei na pesquisa de tese fizeram com que eu me
afastasse, não sem esforço, dessa marca de nossa educação, fortemente balizada pelos
estímulos visuais e pelo quase que embotamento de nossos outros canais sensoriais. Nós,
indivíduos acostumados com a dominância do sentido da visão, percebemos em sua falta uma
grande limitação, esquecemo-nos que esta limitação surge de nossa autopoiese, a qual se
diferencia da do cego formada sem o estímulo visual.
Nos livros de Oliver Sacks em que o autor relata alguns de seus casos clínicos,
pudemos nos certificar de que freqüentemente julgamos o modo de ser da pessoa deficiente
visual a partir de referências, em sua grande maioria, visuais; dessas referências o deficiente
não sente falta justamente pelo fato de ter uma particular referência de mundo a partir de
188
seus outros canais perceptivos. Em alguns relatos, Sacks menciona, tal como Denis Diderot,
questões que nos remetem às especificidades do tato e da visão e as diferenças perceptivas
que cada um desses sentidos abriga. Os textos e até mesmo a prosa poética de Joana
Belarmino apontaram que o visuocentrismo está impregnado em nossa cultura ocidental,
deixando pouco espaço para outras experiências sensoriais.
A partir de todas essas constatações, emerge a primeira conclusão a que chego ao final
deste trabalho: eu mudei. Revi a forma com que até então percebia a cegueira. Saí de um
pensamento cognitivista para um redimensionamento do que hoje considero a cognição e de
como se pode conhecer ou construir um mundo sem ter necessariamente as marcas de um a
priori visual. Tive a oportunidade de apreciar e de me aproximar do pensamento de autores
para os quais, cada um de nós é responsável pela particular e intransferível experiência de
viver e estar no mundo. Saí do mundo dado para o mundo a ser construído. Acredito que este
seja o mais substancial efeito deste trabalho. Ele atuou como um dispositivo de reorganização
e de transformação daquele que em princípio pretendia transformar, e não ser transformado.
Esta foi uma conclusão inesperada, mas de grande significação; se a tese não tiver o poder de
impacto para impulsionar pensamentos que levem a possibilidades de mudanças no campo de
pesquisa, pelo menos ela já pode contabilizar com uma mudança: a do pensamento do
pesquisador.
Uma segunda constatação é que ainda é preciso promover e fomentar a reflexão sobre
o quanto estamos atuando tanto na psicologia quanto na educação com a marca cartesiana da
separação entre mente e corpo. Levar principalmente os profissionais da educação, bem como
aqueles que atuam de forma indireta neste espaço (psicólogos educacionais, fonoaudiólogos,
técnicos em assuntos educacionais, entre outros), a repensarem suas práticas e a atentarem
para a forma reducionista com que percebem os corpos de seus alunos, vistos basicamente
189
como mentes e não como um todo corporal. Suscitar a discussão da forma como a escola vem
tratando os cinco sentidos, que mais parecem ser apenas um, o sentido da visão.
Durante toda a pesquisa, tanto bibliográfica como de campo, constatamos uma
considerável variedade sobre o que é ser cego. Pensamentos muitas vezes distintos da
realidade, contribuindo para a formação de um modelo de ações equivocadas no trato com a
pessoa cega, e que ainda hoje se apresentam no cotidiano, tais como aqueles relativos à
inferioridade e a impossibilidades. Neste particular, Virgínia Kastrup, a partir de sua
abordagem de uma cognição inventiva a qual pressupõe uma permanente reinvenção de si,
sinaliza em seus recentes artigos na área para a singularidade da pessoa cega ou de baixa
visão e do modo com que esta constrói o seu mundo, convivendo com pessoas videntes sem o
estigma da falta ou da inferioridade. Existem sim limites para aqueles que são cegos, se
comparados aqueles que são videntes, por exemplo, dirigir automóveis, apreciar e distinguir
as cores etc. Todavia, também não é um limite para nós caminhar com desenvoltura sem ver?
Esta idéia de superioridade e inferioridade ainda muito arraigada no imaginário com relação
ao deficiente sensorial tem de ser reavaliada. Neste sentido, os textos de Elcie Masini
reforçaram e apontaram o quanto a educação do cego ou mesmo do indivíduo com baixa visão
é pautada na educação das pessoas videntes, sofrendo apenas adaptações, o que nem sempre
para não dizer na maioria das vezes não dão conta das exigências estéticas e funcionais de
que o deficiente visual necessita para sua aprendizagem.
Outra conclusão a que chegamos parece desconstruir uma premissa bastante difundida
nos estudos sobre cegos e pessoas de baixa visão, referimo-nos a menção às defasagens que
os deficientes visuais apresentam em relação aos videntes. Fica patente que tais defasagens
não são uma conseqüência da cegueira e sim das condições sócio-educacionais as quais o
deficiente visual teve ou não acesso. Lev Semiónovic Vygotski muito nos apontava o
fator social como a base da educação dos deficientes visuais, destacando que condições
190
sociais favoráveis promoviam um desenvolvimento saudável e uma forma de construção da
personalidade desse indivíduo de acordo com sua condição sensorial. Vygotski sinalizava
para a peculiaridade da construção do mundo da pessoa cega, não fazendo comparações e não
reforçando aspectos de inferioridade desse indivíduo, pelo contrário apontava para um
redirecionamento das funções orgânicas, criando novas vias para a sua formação psíquica
enquanto homem.
Encontramos em diversos trabalhos, mais tradicionais, a menção a estas defasagens,
sem contudo, mencionarem os porquês desse acontecimento, dando a impressão de que as
mesmas adviriam da condição da cegueira. Estamos certos de que, apesar da maioria das
pesquisas compararem desempenhos entre cegos e videntes, os resultados insatisfatórios com
relação aos cegos ocorrem tanto pela inadequação dos protocolos e dos instrumentos de
pesquisa, mencionados por Ivette Hatwell, Eliana Sampaio, Elcie Masini, Eliana Ormelezi,
entre outros, como pela diversidade de sujeitos deficientes visuais, que tiveram diferentes
trajetórias de vida. As oportunidades nos campos da estimulação essencial, das interações
sociais e das vivências anteriores, fruto de uma educação tanto familiar quanto formal (na
escola) em que os padrões de liberdade limitam ou não, são realmente os fatores que
determinam as defasagens que comumente se apresentam.
A partir de toda a bibliografia consultada, verificou-se que é consenso que as
defasagens com relação ao desenvolvimento motor e cognitivo, mencionadas na maioria das
pesquisas com deficientes visuais, provêem de uma situação relacionada basicamente ao meio
social e às oportunidades de estimulações e de vivências que esse meio proporcionou a esta
pessoa. Conclui-se que a deficiência visual não é o fator que motiva estas defasagens e, sim, a
forma como a partir da constatação dessa deficiência são efetivadas ações no sentido de
organizar atividades e experiências que sejam significativas para alguém que não dispõe do
sentido da visão. Neste sentido, é importante que essas atividades não sejam adaptações
191
daquelas oferecidas a crianças videntes, mas as atividades elaboradas especialmente para
crianças deficientes visuais.
A mesma constatação quanto a importância do meio social como fator decisivo em
várias questões também evidenciou-se quanto a este fator ser determinante para a ocorrência
ou não de verbalismo. Ficou claro que não é a deficiência visual que diretamente contribui
para que o cego tenha uma fala verbalista, mas sim as oportunidades que deixou de ter de
correlacionar a experiência concreta com a linguagem, de modo que pudesse dar significação
à sua fala, deixando então de efetuar uma comunicação na qual apenas repetisse aquilo que
ouviu. Contamos neste aspecto com a rica contribuição de Thomas D. Cutsforth, um clássico
nos estudos sobre deficiência visual, e ainda com a experiência pessoal de Jo Espínola
Veiga por meio da qual nos esclarece de forma simples aspectos sobre o verbalismo nas
pessoas cegas. Fica também esclarecido que este não é um comportamento exclusivo de
pessoas deficientes visuais, ocorre também com pessoas videntes. A educação pautada em
instruções e informações verbais, reafirmando a lógica da transmissão oral do conhecimento
criticada por Maturana e Varela e por eles denominada como metáfora do tubo, parece ainda
vigorar no sistema educacional como um todo, mas certamente é mais prejudicial para aqueles
que apresentam deficiência visual.
Não podemos deixar de mencionar como conclusão importante o que foi sinalizado
por Marilda Bruno e Maria Glória Batista Mota, ou seja, atentar para a delicada missão que a
política de inclusão tem ao promover o acesso dos deficientes a todos os espaços de convívio
com pessoas videntes. Torna-se fundamental que se esteja atento ao modo peculiar que o
deficiente visual tem de interagir e de conviver num mundo em que a maioria é vidente, pois
do contrário o que em princípio é uma ação de ampliação de oportunidades pode se tornar um
modo de apenas garantir lugar, mas não garantir acesso.
192
Podemos também concluir que muitos são os textos de livros e de artigos que não
apontam diretamente para a supremacia da mente em relação ao corpo, deixando entrever
posturas ainda muito marcadas por esta distinção. O dualismo cartesiano ainda vigora. Afora
isso, a observação do indivíduo de forma fragmentada está claramente verificada com o
aparecimento, a cada dia, de novas e diversificadas especializações, as quais em princípio
derivam desse olhar compartimentado sobre o indivíduo. O que antes era assunto da
psicologia, hoje é da neuropsicologia, ou da psicopedagogia. O que antes podia ser resolvido
no âmbito da escola, hoje extrapola seus domínios, apontando para uma patente
medicalização do espaço escolar. Nada contra o apoio dos psicomotricistas, dos
fonoaudiólogos e dos psicopedagogos, mas há realmente tantas crianças para serem “tratadas”
por diferentes áreas do conhecimento? Ou o olhar decomposto e fragmentado com que se vê o
educando é mais um fator que propicia um claro distanciamento do professor de seu aluno, o
que leva a um desconhecimento desse aluno como um todo, gerando uma conseqüente entrega
dos problemas ocorridos na escola a outros profissionais?
Nossa proposta de uma educação na qual o corpo tivesse destaque foi amparada nos
estudos de Jean Le Bouch, acrescidos de intervenções de Michel Serres, Antônio Damásio e
mais uma vez de Humberto Maturana, Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch,
autores baseados em teorias firmemente desenvolvidas a respeito de uma cognição
incorporada, e que trouxeram consistência teórica para que atuássemos com segurança em
nossa pesquisa de campo.
O corpo como espaço cognitivo através de sua ação no mundo constrói a mente que
dele faz parte e não o contrário. Defendendo com convicção esta idéia, pudemos partir para a
investigação de campo prontos para dirimir quaisquer dúvidas que surgissem ao longo de
nossa pesquisa.
193
Quando nos lançamos na aventura da pesquisa de campo, sabemos de antemão que
estamos num terreno nebuloso e que nem sempre aflorarão as respostas que esperávamos
encontrar. Muitas vezes, fatos importantes nos serão ocultados pelo receio da divulgação de
algo que, mesmo fazendo parte do dia a dia do sujeito, é por este resguardado, ou nem mesmo
por ele percebido. Estes fatos também fazem parte da imprevisibilidade de uma investigação,
espaço aberto e caminho sem mapa, sendo aos poucos organizado através do apoio dos
referenciais teóricos e das experiências empíricas fruto da aproximação com o campo a ser
investigado. Encontramos muitas vezes mais questionamentos que soluções para o problema
que formulamos no início da investigação.
Em nossa pesquisa, o pequeno número de sujeitos impede que os resultados possam
ser generalizados. No entanto, podem sinalizar novos temas de pesquisa mencionados nas
respostas abrindo questões de futuras investigações.
Não foi percebido como fator determinante que a diferença sensorial entre as
professoras videntes e cegas traga posturas didáticas e metodológicas distintas. A questão do
ensino parece ocorrer de forma mais ou menos padronizada, através dos recursos técnico-
pedagógicos utilizados. Nenhuma resposta nesta área se caracterizou como sendo fruto da
diferença sensorial, portanto, a hipótese de que essa diferença poderia determinar
pensamentos e modos de agir pedagogicamente distintos entre os dois grupos não se
confirmou.
Houve, no entanto, uma diferença significativa entre cegas e videntes que se
apresentou quanto ao modo de perceberem os corpos de seus alunos. As videntes percebem os
corpos de seus alunos a distância, observando-os com respeito a suas desenvolturas e
expressão corporal, consideradas por elas como pobres. Sua percepção está totalmente
amparada no sentido visual, o qual como foi dito pode nos enganar. Já as cegas fazem uso
do toque para perceberem os corpos de seus alunos, estas se referem constantemente a questão
194
postural como ponto a ser corrigido. Utilizam-se também da audição para perceberem a
localização de seus alunos no espaço. Esta situação nos faz concluir que os professores
videntes entrevistados são marcados muitas vezes sem se darem conta pelo paradigma
visuocêntrico. A diferença no entendimento do verbo perceber demonstrou um modo distinto
de relacionamento corporal entre professores e alunos, dependendo se o professor é cego ou
vidente. Parece haver uma proximidade maior do corpo do professor cego com seu aluno,
pelo fato deste utilizar com mais freqüência o toque.
Houve uma questão levantada apenas por duas professoras cegas relativa ao
conhecimento das cores serem ou não importantes para o deficiente visual, mas esta não é
uma situação que interfira no modo pedagógico de agir, ponto que se queria verificar com
relação à diferença sensorial, é uma opção de adoção ou não do assunto como conteúdo a ser
ou não ensinado. Há uma interessante divergência quanto ao aspecto da importância do
deficiente visual ter a noção de cor, sendo esta menção feita apenas por estas professoras. A
divergência marcante com relação a esse item patenteou o fato de saber ou não sobre cores
estar mais ligado ao aspecto social da pessoa deficiente que propriamente de sua relevância
para o conhecimento do indivíduo cego. Entretanto, podemos supor que a experiência anterior
do deficiente visual com relação à perda da visão é um fator importante, para não dizer
determinante, no trato com a questão. A professora que não considera a noção de cor como
importante é cega congênita e a outra professora enxergou até a idade de sete anos, ou seja,
teve noção de cores entre outras noções impossíveis de serem apropriadas para aqueles que
nunca viram. Mais uma vez observamos que a história pessoal de cada deficiente visual define
e contextualiza suas respostas. Dito isso reforçamos o que foi mencionado no texto do
trabalho com relação a padronizações e generalizações indevidas feitas a respeito deste grupo
de pessoas.
195
Percebe-se que há uma notória consideração do corpo como elemento fundamental
para a constituição do conhecimento do deficiente visual, sendo apontadas diversas práticas
(passeios, visitas a museus, atividades do dia a dia, atividades de expressão corporal etc.)
como importantes para a constituição e consolidação desse conhecimento. Todavia, não se
tem presente e nem se verificam ações que demonstrem que essas atividades se constituam
numa prática eminentemente empregada no cotidiano escolar. no discurso dos professores
o total reconhecimento da importância de uma educação que prime por experiências, por uma
relação do corpo com o ambiente e com os objetos, mas esse reconhecimento não se
concretiza como uma ação executada no espaço da escola. Nota-se ainda um discurso com
uma marca teórica forte, revelando que a transmissão oral da informação ainda é o canal mais
utilizado para a educação dos deficientes visuais.
Apontamos a partir destas conclusões a necessidade de ações que façam com que os
professores sejam instigados a conhecerem melhor o sistema cognitivo de seus alunos,
valorizando sua autopoiese e adequando as estratégias de ensino às necessidades dos
educandos. Fica claro, também, que políticas que facilitem o estudo e a pesquisa em
instituições que ainda hoje abrigam um número expressivo de deficientes visuais podem no
futuro sustentar a inclusão desses em espaços escolares de forma a garantir um planejamento
pedagógico adequado para atender a esta clientela. Este campo de pesquisa tem sido
investigado esporadicamente e não pode ser esquecido tendo em vista as dificuldades
mencionadas na tese sobre a dificuldade em encontrar grupos de deficientes visuais com
alguma homogeneidade para que pesquisas sejam realizadas.
Políticas de capacitação e atualização dos docentes em termos de conhecimentos
cognitivos, bem como de ações que estimulem práticas pedagógicas inventivas, são de suma
importância para que seja despertado o interesse dos docentes nestas e em outras questões
educacionais, tornando-os capazes de saírem do lugar de meros cumpridores de regras dos
196
sistemas de ensino, passando a ter um conhecimento consistente capaz de fazer com que
possam atuar como dispositivos de mudança a partir da reflexão de suas práticas pedagógicas.
Finalizando, encontramos sinais no nosso diálogo com os professores que em princípio
demonstram não haver resistência à idéia da consideração do corpo enquanto lócus valorizado
em termos cognitivos. No entanto, percebemos que o que chamamos de construção de mundo,
através de uma cognição incorporada, carece de um longo trabalho de convencimento para
que a ação do corpo na experiência concreta substitua a prática da transmissão oral do
conhecimento em que a palavra sobrepuja a experiência principalmente na sala de aula.
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2008.
APÊNDICE
Definição de termos
São muitas e diversificadas as definições de cegueira que são encontradas na
bibliografia sobre o assunto, portanto separamos algumas, nacionais e internacionais,
209
contemplando tanto as científicas como as educacionais. Ao consultar Masini (1994),
Cavalcante (1995), Carvalho et al (1992), Brasil (1994), Almeida e Conde (2002),
observamos que as definições dos termos relacionados à deficiência visual são muito
semelhantes. Estas são baseadas na capacidade que o ser humano tem de distinguir os
mínimos detalhes (acuidade visual), considerando o campo visual que será inferior a 180
graus. Assim temos que :
Cego: é uma pessoa que apresenta desde uma insignificante acuidade visual até a inexistência
total da mesma, necessitando de técnicas e métodos especializados para alcançar alguns dos
objetivos educacionais, sociais, culturais etc.
Pessoa com baixa visão ou visão subnormal: refere-se à pessoa que conserva uma
capacidade visual bem limitada, apresentando dificuldades para desempenhar atividades em
geral, também necessita de recursos e equipamentos especiais para acompanhar o processo
educacional, social etc. Tanto a pessoa cega como a de baixa visão são consideradas
deficientes visuais.
De acordo com a organização Mundial de Saúde (OMS), temos uma classificação de
doenças que recebe o nome de Classificação Internacional de Doenças (CID), abaixo
relacionamos, segundo Masini, Chagas e Couvre (2006), as definições de cegueira e baixa
visão, fruto da décima revisão da CID.
Tabela 1: Definição da CID 10 sobre cegueira
210
Acuidade visual com a melhor correção
possível
Graus de
comprometimento
visual
Máxima menor que: Mínima igual ou maior
que:
3
3/60
1/20 (0,05)
20/400
1/60 (capacidade de contar
dedos a 1 m)
1/50 (0,02)
5/300 (20/1200)
4
1/60 (capacidade de contar
dedos a 1 metro)
1/50 (0,02)
5/300
Percepção da luz
5 Ausência da percepção da
luz
A baixa visão ou visão subnormal foi catalogada pela CID como H54.2 e compreende
os graus de comprometimento apresentados na tabela 2:
Tabela 2: Definição da CID 10 sobre baixa visão
Acuidade visual com a melhor correção
possível
Graus de
comprometimento
visual
Máxima menor que: Mínima igual ou maior
que:
1
6/18
3/10 (0,3)
20/70
6/60
1/10 (0,1)
20/200
2
6/60
1/10 (0,1)
20/200
3/60
1/20 (0,05)
20/400
De acordo com o Conselho Internacional de Oftalmologia (20 de abril de 2002, Sidney
Austrália) foram também consideradas algumas definições:
Cegueira: somente em caso de perda total de visão e para condições nas quais os indivíduos
precisam contar predominantemente com habilidades de substituição da visão.
211
Baixa visão: para graus menores de perda de visão nos quais os indivíduos podem receber
auxílio significativo por meio de aparelhos e dispositivos de reforço da visão (outro termo
utilizado é visão subnormal).
Visão Diminuída: quando a condição de perda da visão é caracterizada por perda das funções
visuais (com acuidade visual, campo visual etc.). Muitas dessas funções podem ser medidas
quantitativamente.
Visão funcional: descreve a capacidade de uso da visão pelas pessoas para as Atividades de
Vida Diária (AVD), sendo que muitas dessas atividades podem ser descritas apenas
qualitativamente.
Perda de Visão: termo geral que compreende perda total (cegueira) e perda parcial (baixa
visão), caracterizada por visão diminuída ou perda de visão funcional.
Cego: indivíduo que apresente “perda total da visão ou acuidade visual central não excedente
a 6/60(0,1) após correção óptica pelos optóticos de Snellen ou acuidade visualcentral superior
a 6/60, porém, campo visual não excedente a 20 graus no maior meridiano do melhor olho
após correção óptica”. Para efeito de atendimento educacional são considerados cegos:” os
alunos que apresentem perda total ou resíduo mínimo de visão, necessitando detodo
Braille como meio de leitura e escrita/e outros métodos didáticos e equipamentos especiais
para a sua educação (PORTARIA INTERMINISTERIAL, n. 186, 10 mar. 1978).
Portador de visão subnormal (visão reduzida ou baixa visão): indivíduo que possua
acuidade visual entre 6/20 e 6/60 no melhor olho, após correção máxima (ASHCROFT,
1963). Para efeito de atendimento educacional, consideram-se portadores de visão subnormal,
“os alunos que possuam resíduos visuais em grau que lhes permitam ler textos impressos a
tinta desde que se empreguem recursos didáticos e equipamentos especiais para sua educação,
excluindo as deficiências facilmente corrigidas pelo uso adequado de lentes (Idem).
212
De acordo com Hatwell (2003), a cegueira tem padrões diferenciados nos países, ela
diz que na França é considerada legalmente cega a pessoa com acuidade inferior ou igual a
1/10, já nos Estados Unidos é considerada a fração de 1/20 para a mesma classificação.
No Brasil sob parâmetros legais, compreende no Decreto n. 5296 de 02 de dezembro
de 2004, Art.5°, Capítulo II – Do atendimento Prioritário, §1°:
c) deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor
olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e
0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os cegos nos quais a somatória da medida
do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60°; ou a ocorrência simultânea
de quaisquer das condições anteriores.
Para a compreensão prática das definições, fizemos um resumo no intuito de facilitar a
identificação do que seja ser cego ou pessoa com baixa visão. Passou-se a considerar a
cegueira, do ponto de vista médico e quantitativo, como a capacidade visual de 0 a 6/60 ou
inferior, no melhor olho, após a possibilidade máxima de correção óptica e tratamentos,
significando que aquilo que uma pessoa enxerga normalmente a 60m, o cego enxerga de 0 a
6m. São denominados cegos também aqueles cujo campo visual é restrito a um ângulo de 20º
(visão tubular), ainda que possa ter acuidade normal nessa região, pois ficam impedidos da
principal função dada pela percepção visual, a capacidade de captar o ambiente físico na sua
totalidade.
O quadro da deficiência visual abrange também o que se denomina, na terminologia
mais recente, baixa-visão, definida nesses termos como acuidade visual residual entre 6/60 e
6/20, no melhor olho, após a máxima correção, utilizando-se o mesmo referencial citado
acima para compreensão dessa medida oftalmológica.
Na década de 1970, os avanços da prática educacional e clínica resultaram em uma
definição e classificação funcional com base na eficiência da visão, e não mais na acuidade
213
visual, que determinava que uma pessoa era cega quando, na realidade, ela utilizava seu
resíduo visual de várias formas, fosse para as atividades da vida diária, ou mesmo para a
escrita e a leitura em tinta. Essa concepção educacional provocou uma mudança significativa
no enfoque da deficiência visual, estabelecendo a seguinte classificação:
Cegos - são aqueles que apresentam desde ausência total de visão (amaurose) até percepção
de luz (distinguindo entre claro e escuro), ou projeção de luz (identificando a direção de onde
vem a luz). A cegueira parcial condição na qual a grande maioria dos cegos se encontra
permite que os indivíduos possam perceber vultos, claro-escuro e contar dedos a uma certa
distância (ROCHA, 1987). Precisam do Braile para a escrita e utilizam outros sentidos que
não a visão para o conhecimento do mundo.
Pessoas com baixa-visão - mostram a possibilidade de indicar a projeção de luz até onde a
dificuldade visual limita seu desempenho, porém, utilizam a visão residual para a situação
educacional, incluindo a leitura e a escrita, com ou sem recursos ópticos, e para as situações
práticas da vida diária.
sistema Braille - Sistema de pontos em relevo que possibilita à pessoa cega ler e escrever
através do tato. (Modelo para integração de Deficientes ao Sistema Regular de Ensino, MEC-
INEP-UFRJ. 1980 RJ)
Pessoa com Necessidades Educativas Especiais (PPNE) - Consideram-se educandos que
apresentam necessidades educacionais especiais, prioritariamente, aqueles que apresentam
superdotação, ou condutas típicas de síndromes e quadros psicológicos, neurológicos ou
psiquiátricos, e os portadores de deficiência, ou seja, significativas diferenças físicas,
sensoriais ou intelectuais de caráter temporário ou permanente e que, em interação com
fatores socioambientais, resultam em necessidades educacionais especiais (Art.3° das
Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Especial –17/02/2001).
214
Educação Especial - Modalidade de educação escolar, entende-se um processo educacional
que se materializa no âmbito de uma proposta pedagógica, assegurando um conjunto de
recursos e serviços educacionais especiais, organizados institucionalmente para apoiar,
complementar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços educacionais comuns,
de modo a garantir a educação formal e promover o desenvolvimento das potencialidades dos
educandos que apresentam necessidades educacionais especiais, em todas as etapas e
modalidades da educação básica (Art. 2° das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação
Especial).
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