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este encontro. Como dissemos anteriormente, a identidade, antes de ser aquilo que
estabelece a fixidez, é o que nos mistura às coisas:
Assim, complexa e assustadora, surge nossa carta de identidade.(...)
Os que têm necessidade de ver para saber ou crer desenham ou pintam
e fixam o lago de pele inconstante e ocelado, tornam visível, com
cores e formas, o puro tátil. Mas, pra cada epiderme, seria preciso uma
tatuagem diferente, seria preciso que ela evoluísse com o tempo: cada
rosto pede uma máscara tátil original. A pele historiada traz e mostra a
própria história; ou visível: desgastes, cicatrizes de feridas, placas
endurecidas pelo trabalho, rugas e sulcos de velhas esperanças,
manchas, espinhas, eczemas, psoríases, desejos, aí se imprime a
memória; por que procurá-la em outro lugar; ou invisível: traços
imprecisos de carícias, lembranças de seda, de lã, veludos, pelúcias,
grãos de rocha, cascas rugosas, superfícies ásperas, cristais de gelo,
chamas, timidez do tato sutil, audácias do contato pugnaz. A um
desenho colorido ou abstrato, corresponderia uma tatuagem fiel e
sincera, onde se exprimiria o sensível. A pele vira porta-bandeira
quando porta expressões. [Idem, p. 18]
É nesta topologia do corpo que encontramos nossas identificações. Variáveis por cada
traço de afecção que nos produziu e, ao mesmo tempo, identificados a estas variações,
somos o que se apresenta como ponto de intersecção, único e variável.
Mas, nas texturas que compõem o corpo, encontramos, mais uma vez, as
variações de contato. Serres expressa estas variações de formas diferentes, nos
remetendo, mais uma vez, às próprias afecções. Nos quadros de Bonnard, Serres
encontra as texturas, a pele, os véus e a tela. É no jogo destas superfícies que
encontramos a própria idéia de revestimento, que é tão importante para nosso trabalho.
Sobre um quadro do autor de 1890, Serres nos diz:
Tirem as folhas, tirem o penhoar: tocarão a pele da mulher morena ou
a tela do quadro? Pierre Bonnard menos deixa ver do que sentir sob os
dedos películas e camadas finas, folhagem, pano, tela, em liso,
desfolhamento, desnudamento, desvelamentos refinados, cortinas
leves, acariciantes: sua tela cheia de tato não faz da pele um objeto
banal de se ver, mas o sujeito que sente, sujeito ativo sempre por trás.
[Idem, p. 25]
Esta relação entre a tela, o véu e a pele, nos remete, mais uma vez, à relação entre as
afecções e as coisas. Além disso, não há privilégio aqui de um tipo de revestimento que
encobre as coisas, pois, todos os revestimentos são os meios de contato e relação.
O Nu no Espelho de Pierre Bonnard mantém em equivalência ou em
equação a tela, os véus e a pele. A nudez é coberta de tatuagens, a pele
é impressa, impressionada. O nu enfia o penhoar ou a criança o
avental, tecidos impressos, sóbrios ou cintilantes, que expressam mal,
com rigidez ou convenção, nossas impressões singulares. O pintor
mancha a tela para expressar, digamos, suas impressões: ele a tatua,
expõe sua pele frágil, privada, caótica. [Idem, p. 26/27]