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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO EM HISTÓRIA
ARTHUR REIS E A HISTÓRIA DO AMAZONAS:
UM INÍCIO EM GRANDE ESTILO
LADEME CORREIA DE SOUSA
MANAUS
2009
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1
LADEME CORREIA DE SOUSA
ARTHUR REIS E A HISTÓRIA DO AMAZONAS:
UM INÍCIO EM GRANDE ESTILO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós
Graduação em História da Universidade
Federal do Amazonas UFAM, como
requisito para obtenção do grau de Mestre
em História.
Orientador: Prof. Dr. Auxiliomar Silva Ugarte
MANAUS
2009
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2
LADEME CORREIA DE SOUSA
ARTHUR REIS E A HISTÓRIA DO AMAZONAS: UM INÍCIO EM
GRANDE ESTILO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós
Graduação em História da Universidade
Federal do Amazonas UFAM, como
requisito para obtenção do grau de Mestre
em História.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Auxiliomar Silva Ugarte
(Presidente)
Prof. Dr. Ernesto Renan Freitas Pinto
(Membro)
Prof. Dr. Luis Balkar Sá Peixoto
(Membro)
Prof. Dr. Sínval Carlos Mello Gonçalves
(Suplente)
3
Dedico:
Ao meu grande amor, Emerson Silva de Sousa pelo
apoio e compreensão
À minha florzinha, Larissa Correia de Sousa por
aceitar, nem sempre pacientemente, dividir minha
atenção com o Arthur Reis.
Aos meus pais, Manoel José Correia e Rosineide
Santos Correia pelo amor incondicional.
4
AGRADECIMENTOS
“Tema ao SENHOR toda a terra, temam-no todos os
habitantes do mundo. Pois ele falou, e tudo se fez; ele
ordenou, e tudo passou a existir.” (Salmos, 33:8 e 9).
Meu agradecimento primeiro, a Deus, criador do Universo que torna todas as
coisas possíveis.
Aos professores Deusa Costa, Orange Matos, Elisangela Maciel, Dorinete dos
Santos Bentes, Aureliano Pinheiro e Tarcísio Normando que ao longo da graduação
contribuíram com exemplos de profissionalismo, discussões importantes e palavras de
incentivo à continuidade dos meus estudos.
À Secretaria de Cultura do Estado do Amazonas, através do seu Secretário Robério
dos Santos Pereira Braga, por abrir o acesso ao material de pesquisa ainda em vias de
classificação, por indicar documentos fundamentais ao trabalho e por se colocar a disposição
em auxiliar em quaisquer necessidades em relação à pesquisa.
Aos funcionários do Centro Cultural dos Povos da Amazônia, Maria Clara da Gama
Bentes, Maria da Glória Sarmento Costa e Raimundo Nonato Santos Braga, pela facilitação
ao processo de pesquisa, auxiliando todas as vezes que foram necessárias no acesso aos
documentos, prestando um atendimento de excelência.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Amazonas, que ministraram cursos dos quais participei contribuindo com
discussões fundamentais para a realização desse trabalho de pesquisa: Eloína Monteiro dos
Santos, Auxiliomar Silva Ugarte, Márcia Eliane e Almir Diniz de Carvalho Junior.
Aos professores Patrícia de Melo Sampaio e Sinval Carlos Mello Gonçalves que
compuseram a banca do meu exame de qualificação, apontando possibilidades para a
conclusão do trabalho.
Um agradecimento todo especial ao meu orientador Prof°. Dr. Auxiliomar Silva
Ugarte pelo apoio, incentivo, carinho, dedicação e presença constante nos momentos de
dificuldades.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas pelas bolsas que
auxiliaram na minha manutenção durante o curso
5
RESUMO
Compreender quais foram as formas de representação utilizadas por Arthur Cezar
Ferreira Reis sobre os sertanistas, missionários e indígenas numa relação que levaria à
colonização e, por conseguinte à civilização foi o norte que deu sustentáculo a este trabalho.
Para tanto, fez-se necessário ir à busca dos suportes teóricos-metodológicos do autor, o que
passou indispensavelmente pela sua relação com os intelectuais brasileiros que lhe serviram
como referência. Através da análise das correspondências passivas do autor e de sua obra
História do Amazonas conclui-se que as representações expressas no seu primeiro trabalho
estavam estreitamente ligadas à sua relação com os Institutos Históricos e, em especial,
alguns de seus membros, como Francisco Adolfo de Varnhagen representando o IHGB e
Álvaro Maia no âmbito amazonense.
6
ABSTRACT
Understanding what were the forms of representation used by Arthur Cezar Ferreira
Reis on sertanistas, missionaries and indigenous people in a relationship that would lead to
the colonization and therefore civilization was the north that gave base this work. Thus, it
was necessary to go in search of theoretical and methodological support of the author the
now essentially for his relationship with Brazilian intellectuals that served as a reference.
Through the analysis of passive connections the author and his work História do Amazonas
concluded that the representations showed in his first work was closely linked to his
relationship with the Historical Institute, and particularly some of its members, as Francisco
Adolfo de Varnhagem represented the IHGB and Álvaro Maia under Amazon.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
...................................................................................................................8
CAPÍTULO I ARTHUR REIS E A HISTÓRIA DO AMAZONAS: DA
FILIAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA À RECEPÇÃO DA OBRA
1.1 Arthur Reis e a História do Amazonas nos quadros da historiografia
brasileira...........................................................................................................................14
1.2 – A História do Amazonas: entre Varnhagen e Capistrano de Abreu.........................28
1.3 – A História do Amazonas e sua recepção entre os intelectuais brasileiros.................46
1.4 – Arthur Reis e os Institutos...........................................................................................59
CAPÍTULO II – A HISTÓRIA DO AMAZONAS NO CONTEXTO LOCAL
2.1- Por uma história cívica..................................................................................................64
2.2 – “Mestre dos moços”.....................................................................................................88
CAPÍTULO III – HISTÓRIA DO AMAZONAS: A OBRA
3.1 – História do Amazonas: o “orgulho dos amazonenses”.............................................101
3.2 – História do Amazonas: temáticas e abordagens........................................................107
CONSIDERAÇÕES FINAIS
......................................................................................136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
....................................................................141
FONTES
.............................................................................................................................145
8
INTRODUÇÃO
Arthur Reis, filho do jornalista Vicente Torres da Silva Reis e de Emília Ferreira da
Silva Reis, nasceu em Manaus em 08 de janeiro de 1906, cresceu e se educou na capital da
borracha durante seu período de crise, de onde se mudou para Belém em 1939 e depois para
o Rio de Janeiro em 1945, construindo uma carreira que o consolidaria como especialista em
assuntos amazônicos. As escolas Saldanha Marinho, Marechal Hermes e o Ginásio
Amazonense Pedro II foram grandes responsáveis pela sua formação inicial, que se
completaria com o curso de Direito realizado entre 1923 e 1927.
Membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas desde o início de sua
juventude e Redator da Revista Amazonense em 1923, dirigida por Álvaro Maia, Arthur Reis
dava mostra de sua ligação com a escrita que perdurou por toda sua vida. Entre os anos de
1928 e 1938, ocupou funções no magistério, exercido no Colégio Dom Bosco, lecionando
História do Brasil, História da Civilização e História do Brasil na Escola Sólon de Lucena e
Economia Política e Ciências das Finanças na Faculdade de Direito do Amazonas, entre
outras. Foi redator do Jornal do Comércio, Diretor da Instrução Pública no governo de
Álvaro Maia e Fiscal de Seguros da Primeira Circunscrição vinculado ao Ministério do
Trabalho, Indústria e Comércio.
Elencamos apenas suas atribuições realizadas ainda em Manaus, por estarmos nos
referindo, particularmente, à fase inicial de sua carreira. Carreira que, aliás, parece ter sido
desejada desde muito cedo por seus pais. Ao menos é o que indica a seção de aniversariantes
do Jornal do Comércio de propriedade de Vicente Torres, seu pai, que oportunamente na
passagem do aniversário do filho, que completava catorze anos, em um texto quase profético,
tendo em vista que previa uma carreira de sucesso para o tão jovem Arthur Reis, o
apresentava, através dos funcionários do Jornal, como um grande prodígio:
Um acontecimento auspicioso faz vibrar de íntimo regozijo o
lar do nosso diretor Dr. Vicente Reis e de seu idolatrado
filho Arthur Cézar Ferreira Reis que entra no décimo quarto
aniversário de sua existência. Jovem ainda trilhando a
estrada ampla e luminosa de uma vida toda cheias de
atrativos e expansões suaves, Arthur Reis é uma promessa
9
que se revela, pois alia a sua exemplar conduta, um espírito
inteligente e vivo, uma alma cheia de aspirações que só
propendem para o esposamento de idéias nobres e elevadas.
As congratulações prosseguem, dando a medida das expectativas com as quais o
jovem era apresentado à sociedade local:
A sua maior preocupação é o estudo. No doce aconchego do
lar, como no Ginásio Amazonense, onde cursa com
brilhantismo, o terceiro ano de Ciências e Letras, jamais
descurou de sua educação moral e espiritual, manuseando
sempre com prazer os seus livros e ouvindo com desvelo as
lições de seus mestres. Segue assim, um belo exemplo de
virtude e civismo, tomando como lema a frase de Raul
Pompéia: feliz é a alma que tenta, entre as florescências da
juventude, descortinar o panorama imenso do futuro. É, pois,
um jovem que orgulha os seus pais e o berço onde nasceu,
iniciando os seus passos na arena espinhosa da vida, sob os
influxos de muita esperança. Merecidas, portanto, serão as
provas de afeto que receber nesse dia, de seus amiguinhos e
admiradores, que são em grande número
1
.
Arthur Reis era, portanto, apresentado, apesar da pouca idade, como uma promessa
propensa ao cultivo de idéias nobres e elevadas, um belo exemplo de virtude e civismo que
possuía não poucos admiradores. Essa extensa nota sobre o aniversário de Arthur Reis fez
parte da seção do Jornal intitulada “Manaus Social”, que anunciava somente os nomes dos
aniversariantes do dia; entretanto as figuras de relevo no cenário local recebiam espaço maior
com direito a fotografia, como no seu caso. Arthur Reis, como filho do proprietário do
jornal, recebeu um espaço ainda maior em relação aos comumente concedidos às pessoas de
destaque na sociedade manauense, revelando a dimensão do anseio de seu pai em incluí-lo
entre os notáveis, ao atribuir-lhe grande número de admiradores.
1
Jornal do Comércio. 08 de janeiro de 1920.
10
Neste trabalho, buscamos auxílio nas discussões apresentadas pela história cultural que
redescoberta nos anos 1970, vem se revigorando principalmente no meio acadêmico
2
. O
campo da historia cultural explorado foi o das representações, como meio de buscar
significados para as representações historiográficas construídas por Arthur Reis em um
determinado período. Representações que receberam interpretações possivelmente geradoras
de práticas. Mas, estudar um intelectual como Reis é trabalho que não se realiza em poucas
linhas, necessitando, portanto, de outros trabalhos nesse sentido.
Tendo em vista que o “discurso histórico é, acima de tudo, representação, ou seja, a
manifestação, através da narrativa, de um sistema de representações ideológicas de um grupo
social, de uma comunidade, de um nação”
3
,verificamos as raízes das representações
construídas por Arthur Reis e sua ligação com os grupos intelectuais de onde se originou.
Roger Chartier
4
trabalha as noções de prática e representação, extremamente úteis à
realização desse trabalho. Chama a atenção para a contribuição de três autores na ampliação
das análises de história cultural, Michel Foucault, Michel de Certeau e Lois Marin que, apesar
de guardarem algumas diferenças entre si, defendem pontos comuns fundamentais, como a
relação entre as produções discursivas e as práticas sociais, isto é, a interdependência que
entre a construção discursiva do mundo social e a construção social dos discursos. Dessa
forma, as práticas sociais são produtoras de discursos, assim como os discursos são moldados
de acordo com determinadas práticas que têm o poder de afirmá-los e limitá-los ao mesmo
tempo.
As práticas estão intensamente articuladas às representações. Assim, as diversas
formações sociais e culturais podem ser examinadas pela relação entre as práticas e as
representações. Este trabalho procurou analisar uma construção discursiva das representações
2
Em Peter Burke podemos ver uma interessante discussão sobre os caminhos da história cultural que, longe de
ser prática nova, já era realizada na Alemanha, com essa denominação, mais de duzentos anos. A
denominação “nova história cultural” passou a ser corrente entre os historiadores no final da década de 1980
trazendo em seu bojo um novo “paradigma”. Melhor compreendido, de acordo com Peter Burke, se analisados os
trabalhos dos quatro teóricos: Mikhail Bakhtin, Norbert Elias, Michel Foucault e Pierre Bordieu que trouxeram
contribuições significativas a esse campo do saber histórico. A história cultural se manifestou de várias formas
através do estudo da história das práticas, da fala, do experimento, da viagem com a intenção de compreender
suas significações, desvinculando-se do lado puramente teórico. Para Peter Burke, a conceituação do que seja
história cultural ainda espera por uma resposta definitiva, mas infere que talvez o deslocamento do objeto para o
método possa auxiliar nessa questão. Jacob Burchardt declarou ter usado a intuição, e “alguns descrevem seu
trabalho em termos de uma procura de significado, outros focalizam as práticas e as representações”. Cf.
BURQUE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 7.
3
Buescu, Ana Isabel. “Um mito das origens da nacionalidade: o milagre de Ourique”. Conferência realizada na
Fundação Caloust Gulbenkian Outubro de 1987. Lisboa: Livraria Carta Editora, 1991. p. 49.
4
CHARTIER, Roger. A beira da falésia: a história entre incertezas e inquietações. Porto Alegre: Ed.
Universidade/UFRGS, 2002.
11
de Arthur Reis quanto à história do Amazonas com atenção às práticas que possibilitaram e/ou
limitaram as pretensões do autor.
Chartier
5
também nos remete à aparente simplicidade dessa tarefa, quando a mesma
estava atrelada à corrente historiográfica que privilegiava as concepções da história das
mentalidades praticada, principalmente, pela terceira geração dos integrantes dos Annales. A
partir de um conjunto determinado de discursos viria a caracterização de uma “mentalidade”
ou de “visão de mundo” que em seguida seria atribuída a um conjunto social de forma
homogênea, sem que se atentasse para as pluralidades. Com as contribuições da história
cultural, uma análise desse porte se tornou mais complexa na mesma proporção de sua
eficiência. Aderindo às novas noções trazidas pela nova história cultural, os discursos devem
ser vistos em suas devidas especificidades; tem que se levar em conta o meio em que foram
produzidos, os princípios que os limitam e que os tornam possíveis. Em suma, é necessário
que se conceda atenção especial às práticas viabilizadoras desse discurso ou dessa
representação.
Retomemos Peter Burke
6
que, ao comentar concepções de Jacques Le Goff, alerta para
o perigo da homogeneização de convicções, quando se analisa determinado sujeito histórico
sem considerar suas individualidades. Não devemos, portanto, relacionar uma determinada
forma de pensar de um indivíduo a toda sociedade da sua época e, talvez, nem mesmo à
íntegra do grupo social do qual fez parte; antes, como uma possibilidade mais coerente,
devemos limitar as correlações a um número determinado de indivíduos que compartilhem de
suas convicções, sem optarmos por fazer generalizações a toda à história intelectual do
período analisado. Desse modo, situamos as representações construídas por Arthur Reis com o
cuidado de não cometermos generalizações, sem homogeneizar convicções de forma
apressada. Procurando compreender com quais grupos de indivíduos Reis compartilhou
determinadas crenças transparentes ou não em seu discurso.
Enfim, as representações são entendidas por Roger Chartier como classificações e
divisões que organizam a apreensão do mundo social como categoria de percepção do real.
Variam segundo as disposições dos grupos ou classes sociais; mas, ainda que aspirantes à
5
CHARTIER Op. cit. p.77.
6
BURKE, Peter. Forças e fraquezas da história das mentalidades. In: O mundo como teatro: estudos de
antropologia história. Lisboa: DIFEL, 1992.
12
universalidade são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam.
7
Esse
instrumental nos possibilitará a viabilização do que é objetivo desse trabalho.
Para além das disputas no campo de debates teóricos acerca da história cultural
8
e dos
usos das representações nas práticas de pesquisa em história, nos lançamos-nos em busca de
resultados efetivos a fim de traçar um panorama da forma como Arthur Reis apreendeu a
realidade em que estava inserido, de como organizou a apreensão do mundo social, tendo a
noção de representação como uma dentre as possibilidades para o que nos propusemos, longe
da pretensão de vê-la como resolução de todos os problemas, ou como integrante da “tirania
do cultural”, como Ronaldo Vainfas, segundo Ciro Cardoso, preferiu caracterizar a proposta
de Chartier
9
.
No primeiro capítulo ocupamos-nos com três questões específicas: a inserção da
História do Amazonas no contexto da historiografia brasileira, procurando analisar em quais
bases teórico-metodológicas Arthur Reis se ancorou para a elaboração do seu primeiro
trabalho de grandes proporções; de que forma a obra foi recebida pelos intelectuais brasileiros
e a relação de Arthur Reis com os Institutos Históricos do país.
O segundo capítulo traça um paralelo entre o, então, jovem Arthur Reis e Álvaro Maia,
autor da famosa Canção de e Esperança, que instigou alguns intelectuais amazonenses e
serviu como base para a construção da História do Amazonas dentro de uma preocupação com
o civismo que deveria ser repassado às novas gerações amazonenses devedoras de aprender
com os homens que passaram. Com essa proposta de educar a sua geração no exemplo dos
“grandes nomes” da história, verificamos, ainda no segundo capítulo, o alcance que Arthur
Reis teve entre os intelectuais amazonenses nas décadas de 1930 e 1940.
As fontes principais utilizadas nos primeiro e segundo capítulos foram as cartas
recebidas por Arthur Reis nas décadas de 1920 a 1940, que ainda se encontram em processo
de classificação
10
. Essas correspondências com as quais tivemos o privilégio de trabalhar,
causando até certo estado de euforia, por possibilitarem desvendar as relações intelectuais
travadas entre Arthur Reis e vários estudiosos brasileiros e alguns estrangeiros, possibilitou a
7
CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: A história cultural entre
práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p.17.
8
CARDOSO, Ciro Flamarion Cardoso. Introdução: uma opinião sobre as representações sociais. In:
CARDOSO, Ciro Flamarion Cardoso, MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações: contribuição a um
debate transdisciplinar. Campinas, SP: Papirus, 2000. Discute as limitações da própria história cultural.
9
Ibidem, p. 19.
10
Acervo de Correspondências passivas de Arthur Reis, localizadas na Biblioteca Arthur Reis.
13
compreensão da importância da História do Amazonas e de seu autor no contexto local e sua
busca em se inserir nos círculos intelectuais do Sul do país.
Elegemos no terceiro capítulo o que chamamos de principais temáticas da obra História
do Amazonas para procurar compreender como Arthur Reis as representou e de que forma
suas propostas tinha relações com seu objetivo principal de narrar as “glórias” da colonização
que encaminhou o Amazonas a tão desejada civilização. Foi objeto também do terceiro
capítulo analisar a recepção que teve a História do Amazonas no meio intelectual manauara,
sendo isto possível, através dos jornais impressos.
14
1.1 ARTHUR REIS E A HISTÓRIA DO AMAZONAS NOS QUADROS
DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA
“A preocupação em recuperar as representações necessita
também de uma busca de mediações que são os traços para
compreender como o olhar do outro, diferente de si no espaço
e no tempo, foi estruturado e de marcar as coincidências e
discordâncias entre o dito e o experimentado”
11
.
A epígrafe acima, retirada de uma obra de François Dosse, interessa-nos duplamente
por remeter-nos à historiografia e aos usos das representações. Em primeiro lugar a
historiografia, pois o autor menciona a preocupação em recuperar as representações, ato que
vem se realizando nas últimas décadas com o advento da história cultural.
Como afirma Dosse, a noção de representação não é inteiramente nova na prática
historiográfica, visto que já era trabalhada nos anos 1970, porém como coadjuvante na
história das mentalidades que passava nesse período pelo seu esplendor. Momento em que
trouxe para o ofício do historiador a possibilidade de eleger novos objetos e novas temáticas
dentre elas, a morte, as crenças e o comportamento religioso.
Com o retorno ao estudo das “utensilagens mentais”
12
que havia inspirado os
fundadores dos Annales nos anos 1930, os historiadores puderam, além da eleição de novos
objetos, fazer uso dos conhecimentos das disciplinas vizinhas à História. Mas, essa nova
atitude não conseguiu se desvencilhar do que, até então, esteve nas raízes do sucesso da
disciplina: o tratamento serial, o quantitativismo e o recorte socioprofissional. E, embora
tivesse a oportunidade de trabalhar novos objetos, a história das mentalidades transferiu os
métodos de um outro campo de estudos para trabalhar uma “noção deliberadamente fluida,
generalizante, como a de mentalidade.”, resultando em uma produção historiográfica
desconectada de “esquemas interpretativos” e “cada vez mais esmigalhada”
13
.
11
DOSSE, François. As representações coletivas: a saída da história das mentalidades. In: O Império do
sentido. p. 276.
12
CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In: A história cultural entre
práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p.32.
13
Cf. DOSSE, François. Op. cit, p. 271.
15
E é nesse contexto, como sugere Dosse com o título do seu texto, que as
representações coletivas se apresentaram como uma saída da história das mentalidades dentro
do contexto da Nova História Cultural.
A história cultural “tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes
lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”
14
.
Para a efetivação de caminhos em termos conceituais orientadores da pesquisa em história
cultural, Roger Chartier apresenta o conceito de representações, delineado a partir das
contribuições que recebeu de vários autores, entre eles Pierre Bordieu.
Tendo visto a recuperação das representações pela historiografia, dentro do campo da
história cultural, partiremos agora para o uso das representações propriamente dito. No nosso
caso interessa o uso da representação para compreender como o olhar de Arthur Reis foi
estruturado e de marcar as coincidências e discordâncias entre o dito e o experimentado
15
.
Dito isso, podemos explorar o que é objetivo central desse texto com a companhia contínua
da noção de representações.
O objetivo geral do trabalho é compreender quais foram as formas de representações
utilizadas por Arthur Cezar Ferreira Reis na discussão de alguns temas constantes em seu
trabalho, entre eles: índios, missionários, colonizadores e civilização. Acompanhando a
trajetória do autor é possível verificar que sua obra de maior destaque foi “A Amazônia e a
Cobiça Internacional”, com várias edições. Entretanto, queremos analisar o autor em início
de carreira, compreender quais suas concepções teórico-metodológicas e de que modo
construiu as bases para a solidificação de suas interpretações, posteriormente tão respeitadas,
acerca da Amazônia.
Como meio para alcançar esse objetivo, buscaremos situar o livro História do
Amazonas, de Arthur Cezar Ferreira Reis nos quadros da historiografia brasileira e para tanto
teremos que desvendar como o seu olhar foi estruturado no período de elaboração da obra,
como apreendeu a realidade na qual estava inserido. Ao mesmo tempo quais foram,
predominantemente, as influências de intelectuais brasileiros que recebeu. Só depois de situá-
lo no contexto historiográfico nacional e local, poderemos compreender por que fez
determinadas escolhas, e em quais bases se firmou para discutir as temáticas presentes na
obra.
14
CHARTIER, Roger. Por uma sociologia histórica…, p. 16.
15
DOSSE, François. Op. cit. p. 276.
16
Nesse momento, interessa-nos apreender como sua realidade intelectual foi
construída, entre quais grupos da historiografia brasileira sua obra se insere, visto que, como
foi exposto, as representações são sempre determinadas pelos grupos que as forjam. Com
essa finalidade, vamos procurar semelhanças e/ou diferenças entre Reis e os intelectuais de
sua época com os quais possivelmente mais se aproxima em termos teórico-metodológicos e
em sua concepção de história.
Não é, portanto, a intenção desse trabalho analisar minuciosamente as obras dos
autores e, sim, através de alguns indícios, encontrar lugar para a inserção do livro História do
Amazonas dentro desse contexto.
Para fins didáticos podemos dividir a análise da trajetória intelectual de Arthur Reis
em três momentos:
1°) De 1920 a 1938 - momento que vai de sua inicial busca profissional, cursando Direito e
escrevendo pequenos textos de história à edição do seu primeiro grande trabalho intitulado
História do Amazonas, seguido de outros trabalhos importantes como Manáos e outras villas.
Portanto, se configura em um período no qual já mostrava aos seus pares a intensidade de sua
proposta.
2°) De 1939 a 1945 - do ano que se transfere para Belém, travando novas e importantes
relações pessoais em busca de sua ascensão profissional à sua transferência para o Rio de
Janeiro que marcou um período de apogeu, visto que era comum entre os intelectuais do
Norte e do Nordeste ansiar por uma boa colocação nos quadros intelectuais do Sul.
3°) E de 1946 a 1990 - momento em que se estabeleceu no Rio de Janeiro como Diretor
Geral da Divisão de Expansão Econômica do Departamento de Administração do Ministério
do Trabalho, passando depois por diversos cargos sempre conciliados com ao trabalho de
produção historiográfica, que culminou com a publicação de seu mais célebre trabalho A
Amazônia e a Cobiça Internacional. É importante destacar que poderão caber a esse último
período diversas subdivisões por ser o mais extenso e por marcar um período importante de
sua trajetória devido à sua atuação como governador do Amazonas (1964-1967), no período
militar.
17
Mas, para o que é proposto neste trabalho devemos nos ater a uma partícula do
primeiro período, procurando compreender parte da gênese da trajetória que levou Arthur
Reis a ser conhecido nacionalmente como o grande amazonólogo.
Arthur Cezar Ferreira Reis, apesar de não figurar entre os grandes nomes nos livros
de historiografia brasileira, fez parte de uma geração de intelectuais que estava preocupada
inicialmente em construir uma identidade para o Brasil, interessados em explicar e interpretar
o país. Como escritor da década de 1930, poderíamos de imediato buscar correspondência
intelectual entre ele, Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda. Os três têm em comum o
fato de participarem de um mesmo contexto histórico. Todos publicaram obras importantes e
que vieram a ser disseminadoras de um discurso historiográfico proveniente das inquietações
intelectuais de uma periodização comum. Para compreender por que Arthur Reis optou por
determinada concepção historiográfica é necessário inseri-lo em um grupo, que de algum
modo foi determinante para suas escolhas e, portanto, para as representações que construiu
acerca da história de um modo geral, e especificamente do Amazonas.
Analisando mesmo superficialmente o contato intelectual entre os três autores
mencionados, poderíamos aferir que Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre
construiriam ao longo de suas respectivas carreiras profissionais um contato amistoso com
Arthur Reis.
Fazendo uma breve incursão pelo caminho intelectual dos três, podemos encontrar
discursos elogiosos de Freyre e Holanda referentes a Reis e vice-versa. Para exemplificar o
que temos afirmado, basta citar os convites feitos por Freyre a Reis, para que este
participasse de conferências na Fundação Joaquim Nabuco
16
e o convite de Holanda para
que Reis escrevesse para a Historia Geral da Civilização Brasileira, da qual Holanda foi
organizador.
Quando convidado a participar do seminário de cultura afro-brasileira em Manaus em
1981, Freyre, ao expor seu texto A Amazônia brasileira e uma possível luso-tropicologia, fez
questão de afirmar a admiração que cultivava por Reis:
Notável é a contribuição que para uma interpretação luso-
tropical da Amazônia hoje brasileira vêm trazendo o professor
Arthur Reis e seus discípulos. O historiador Arthur Cezar
Ferreira Reis é especialista antigo no estudo não
16
BRAGA, Robério. Arthur Cezar Ferreira Reis. Manaus: Imprensa Universitária, s.d. p.20.
18
histórico-econômico como histórico-social de uma das mais
importantes regiões não apenas brasileira como lusotropicais: a
Amazônia.
17
Em artigo de jornal, verificamos o apreço de Freyre no elogio que tece a Arthur Reis
pelo seu livro A Amazônia e a cobiça internacional, no momento na edição, indicando-o
como grande intelectual que deveria ser mais ouvido nas universidades brasileiras, tanto por
estudantes como por professores.
18
No entanto, apesar do confirmado contato entre Gilberto Freyre, Sérgio Buarque e
Arthur Reis ao longo das suas trajetórias, parece que o Reis da História do Amazonas não se
assemelhou, tanto quanto poderia se supor inicialmente, aos autores de Casa-grande e
Senzala (1933) e Raízes do Brasil (1936). É possível que, num exame mais detalhado e
comparativo entre suas respectivas obras, pudéssemos encontrar questões comuns
17
BRAGA, Robério. Arthur Cezar Ferreira Reis... p. 21.
18
Esse artigo não possui mais as devidas referências de data e local da publicação, por se tratar de um recorte de
jornal que não foi devidamente arquivado.
19
propulsoras das suas pesquisas por terem participado de um mesmo grande momento
histórico. Mas os três autores, em início de carreira, tiveram formações diferentes e não
fizeram parte de um mesmo grupo intelectual.
Arthur Reis publicou sua obra em 1931 dois anos antes de Gilberto Freyre e cinco
anos antes de Sergio Buarque. Reis foi ainda mais precoce que ambos os autores, por ser
mais novo em idade e ter publicado seu livro também antes. O livro História do Amazonas
foi publicado quando ainda tinha 25 anos, quatro anos depois de concluir o curso de Direito.
Gilberto Freyre foi bastante influenciado pela antropologia norte-americana de Franz
Boas, quando da sua experiência nos Estados Unidos, e Sérgio Buarque que também teve
uma experiência no exterior recebeu grande influência direta das idéias alemãs
19
. Pensamos
que essa diferença de experiência intelectual no exterior foi um fator relevante para o
distanciamento intelectual de Holanda, Freyre e Reis, que apesar de não ser um determinante
oferece uma questão para reflexão. Certamente que Arthur Reis tinha suas influências locais,
mas uma experiência intelectual no exterior em início de carreira, certamente influencia o
modo de pensar e sentir do autor.
Reis não teve inicialmente influências diretas do exterior. Começou seu curso de
Direito em Belém e o concluiu no Rio de Janeiro. Suas experiências no exterior vieram
algum tempo depois da publicação da História do Amazonas.
As experiências de Freyre e Holanda propiciaram a construção de uma história que,
na releitura contemporânea, vem sendo analisada como precursora da história cultural,
principalmente por trazerem temas posteriormente abordados, por historiadores da
chamada Nova História. De acordo com Laura de Mello e Souza, “Gilberto Freyre foi um
precursor da moderna historiografia das mentalidades e da nova história cultural, Sérgio foi
um dos seus criadores, e o fez simultaneamente aos franceses, mesmo que os autores a
guiarem-no tenham sido diferentes”
20
.
Freyre, ainda muito cedo em viagem à França, no ano de 1922 e, portanto, com 22
anos de idade, teve contato direto com a cultura francesa, fato significativo para sua
formação, como bem afirma Peter Burke. Dentre outras leituras importantes realizadas por
19
Cf. Revista Biblioteca Entre Livros. São Paulo, Ediouro, 2007, n.8, pp.1-27.
20
SOUZA, Laura de Mello e. Aspectos da historiografia da cultura sobre o Brasil Colonial. In: FREITAS,
Cezar (org). Brasil em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998.
20
Freyre no seu período francês, destacaremos o trabalho dos irmãos Goncourt de 1860, por
serem apontados como praticantes do que viria a ser chamado de história da vida privada
21
.
Para o que nos propomos o mais importante dessa leitura dos irmãos Goncourt, feita
por Freyre por volta de 1922, foi principalmente o fato de os autores terem explicitado no
prefácio de seu estudo sobre as amantes de Luis XV, a preocupação com uma história nova
ou social. “Essa nova história segundo os Goncourt, utilizaria uma ampla variedade de
fontes, tais como jornais, novelas e pinturas. Ambas as preocupações, com a mulher e com o
uso de jornais, também são marcas do trabalho de Freyre. Se ele tem tanto em comum com
os praticantes da novelle histoire, a explicação obvia é em termo de uma ancestralidade
intelectual comum”
22
.
A importância deste trabalho de Peter Burke, que até agora tem sido esclarecedor em
busca do objetivo proposto, se pelo fato de expor de forma bem clara como as viagens
propiciaram a Freyre um contato intelectual que o influenciou em grande medida.
Corroborando com essa assertiva, também está Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, quando
menciona que “Freyre afirmou que sua formação se devia em grande parte a seus contatos no
estrangeiro ‘com novíssimas formas de pensar, de sentir, de viver, de escrever... ’”
23
.
Certamente que as influências culturais de outros países não são obtidas
necessariamente só com o contato direto, mas este pode ser um meio eficiente para mudanças
consideráveis no modo de visão do indivíduo. Quanto a isso, podemos apresentar duas
questões. A primeira confirma que realmente foi uma prática corrente entre os intelectuais
brasileiros a importação cultural; no entanto, na maioria das vezes, as adaptações feitas à
realidade brasileira nem sempre eram feitas de modo compensador
24
. E a segunda diz
respeito à afirmação do próprio Freyre citada acima, para quem o estrangeiro possibilitou
novas formas de pensar, sentir, viver e escrever, mostrando que o contato direto com os
intelectuais de outros países traz mais do que idéias transcritas em papéis. Este contato direto
possibilitou-lhe “sentir e viver” de outra forma, representando muito mais que receber
influências estrangeiras através das obras que muitas vezes chegavam ao Brasil, quando
estavam, de algum modo, ultrapassadas no exterior.
21
BURKE, Peter. “Gilberto Freyre e o Estudo da História Social”. In: Tempo social, Revista de sociologia da
USP. São Paulo: USP, Vol. 9. n.2 Outubro de 1997, pp. 1-12.
22
Ibidem. p.8.
23
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos. São Paulo: Unesp,
2005. p. 91.
24
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da Cultura Brasileira. São Paulo; Editora Ática, 1994. p. 25.
21
A partir daí poderemos comparar sua trajetória com a de Reis que, como já foi dito,
não realizou nenhuma viagem ao exterior antes da publicação da História do Amazonas, e
provavelmente as influências teóricas e metodológicas circulantes fora do Brasil chegaram
até ele indiretamente por indicações de outros intelectuais brasileiros.
Quando Reis estava escrevendo sua História do Amazonas, Sergio Buarque e Gilberto
Freyre também ainda estavam em pleno período inicial de suas formações e, portanto com
grande probabilidade de que ainda não fossem referências de peso para Arthur Reis, pois
ainda não haviam publicado suas primeiras obras que lhes dariam credibilidade.
Prosseguindo por esse caminho, queremos ainda ressaltar, no rastro de Peter Burke,
além da experiência francesa de Freyre, também a norte-americana com a qual estabeleceu
conexões com a “New Historyamericana que postulava “uma história que tratasse de todo
aspecto da atividade humana e se valesse das descobertas de antropólogos, economistas,
psicólogos e sociólogos”
25
; daí, provavelmente, foram retirados alguns aspectos que
estiveram presentes na obra de Freyre. Ele aderiu a essa interdisciplinaridade e, na busca de
interpretar o Brasil, abordou a atividade humana em seus vários aspectos, tratando de temas
como a sexualidade, alimentação, infância e muitos outros, antecipando-se às questões depois
propostas pela nova história cultural francesa. E da França, como vimos, trazia a leitura dos
irmãos Goncourt.
Devido sua incansável atuação e grande contribuição na área de pesquisas
historiográficas e ao período em que publicou sua primeira obra, Arthur Reis pode ser
inserido no mesmo contexto histórico dos grandes intelectuais da década de 1930. Ocupou
junto a eles a função de realizar estudos de extrema relevância; no entanto, permaneceu num
caminho mais conservador, ainda atrelado às concepções do IHGB, enquanto Freyre e
Holanda seguiram em busca de novos caminhos para a abordagem historiográfica.
História do Amazonas e Casa grande & Senzala foram frutos de uma mesma época,
mas caminharam por trilhas diferentes. Freyre realizou um estudo pontual, aprofundando
uma temática. Os subtítulos de seu trabalho nos indicam a dimensão da novidade que trazia à
historiografia brasileira. Incorporou ao seu fazer-história o estilo interdisciplinar aprendido
na Universidade de Columbia. Freyre rompeu com o tipo de história que vinha sendo
praticada no Brasil nos moldes do IHGB.
25
BURKE, Peter. “Gilberto Freyre e o Estudo da História Social”... p. 8.
22
Casa grande & Senzala fugiu ao modelo de síntese e assumiu característica de
ensaio que visava abordar um período específico do Brasil colonial. O foco eram os
personagens da casa grande e da senzala. Para Freyre foi nas casas grandes “onde melhor se
exprimiu o caráter brasileiro”, por isso ele partiu das significações dessa construção para
escrever o que chamou de história íntima. Recuperou os múltiplos aspectos da casa-grande e
da senzala: o econômico, o social, o político, na prática de uma historia social que, em suas
palavras, “é a história íntima de quase todo brasileiro”
26
.
Tudo que estava no entorno e no interior da casa-grande e da senzala davam a ler a
realidade de uma época: a forma de produção, de trabalho, de transporte, de religião, de vida
sexual, de família, os hábitos de higiene do corpo e da casa. A casa-grande foi, ainda.
“fortaleza, banco, cemitério, hospedaria, escola, santa casa de misericórdia amparando os
velhos e as viúvas, recolhendo órfãos”
27
. A história que Freyre se propôs a escrever nesse
seu primeiro trabalho tinha a função de reviver uma época, pois sua busca pelo passado era
um meio de “procurar o tempo perdido” numa “aventura de sensibilidade, não apenas um
esforço de pesquisa pelos arquivos”
28
.
A atenção de Freyre se voltou para fontes inéditas e inovadoras na prática
historiográfica, chamando a atenção para os livros de assento de batismos, óbitos, e
casamentos de livres e escravos e os de rol de famílias, autos de processos matrimoniais e
outros não convencionais aos historiadores brasileiros até o momento. Reclamou, já na
primeira edição do seu livro, a ausência de publicação de fontes desse tipo nas revistas de
história, que preferiam dedicar “páginas e ginas à publicação de discursos patrióticos e de
crônicas literárias”, ação que demonstra a sua auto-proclamada sensibilidade
29
.
Suas contribuições, realmente dignas de um pensador original, estão de algum modo
atreladas aos contatos externos, como ele fez questão de assinalar a importância de seus
estudos de antropologia, feitos com orientação de Franz Boas, que o ajudou a “considerar
fundamental a diferença entre raça e cultura”, critério norteador de toda a obra “Casa-grande
& Senzala
30
.
Conforme Pallares-Burke, Freyre encarava com muita lucidez e consciência sua
educação no exterior: “Tratava-se de suprir ‘seu reservatório’ com largueza, de fazer que sua
26
FREYRE, Gilberto. Prefácio à primeira edição. In. Casa-Grande & Senzala. 13 ed. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 1963. p.20.
27
Ibidem, p.10.
28
Ibidem, p. 21.
29
Ibidem, p.23.
30
Ibidem, p.5.
23
mente e sua sensibilidade se nutrissem o mais possível para que, da junção desse aprendizado
com outras experiências de vida, finalmente um pensador original pudesse emergir”
31
.
Assim, essas experiências diretas de Freyre com as propostas teórico-metodológicas
de outros países propiciaram o que conhecemos, ou seja, uma história que ultimamente
vem sendo resgatada como precursora da história cultural. Queremos chamar a atenção para
o quanto seus contatos com o exterior contribuíram com a historiografia que praticou a ponto
de Burke afirmar que, “na história global da história social, Freyre merece ser lembrado
como um vínculo importante na cadeia viva que une a new history com a nouvelle histoire. O
caminho de Nova Iorque a Paris passou por Recife”
32
. Freyre, diferentemente de Reis, viajou
para o exterior, e pôde resgatar dessas viagens em tempo real o que os intelectuais estavam
discutindo.
Por outro lado, Sergio Buarque de Holanda, de acordo com Laura de Mello e Souza
33
marcou com Raízes do Brasil o início de uma história cultural madura e vigorosa do ponto de
vista teórico e metodológico. Sua primeira obra foi o começo de um trabalho que ainda traria
muitos frutos à historiografia. Toda essa contribuição deve ser atribuída aos esforços
intelectuais de Holanda, por ter começado a produzir textos desde muito cedo
34
e também ao
seu contato direto com o mundo das idéias alemãs
35
, pois é ponto pacífico que sua
experiência na Alemanha exerceu grande influência sobre suas obras.
Francisco Iglesias, ao discorrer sobre os primeiros escritos de Holanda até chegar à
sua obra inaugural, Raízes do Brasil, mencionou a importância da Alemanha na sua
construção de idéias citando o seguinte comentário de Francisco de Assis Barbosa, amigo e
talvez o maior conhecedor do trabalho de Holanda: “com a viagem à Alemanha encerra-se
para Sérgio sua etapa de mocidade, a de seu aprendizado”. E completa Iglesias, “voltará
outro. A permanência em Berlim permitiu-lhe ver um momento decisivo da história do
31
PALLARES-BURKE. Gilberto Freyre: um vitoriano dos trópicos... p.102.
32
Ibidem, p. 9.
33
SOUZA, Laura de Mello. Aspectos da Historiografia da Cultura sobre o Brasil Colonial. In: Brasil em
Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. p. 23.
34
Publicou seu primeiro artigo no Correio Paulistano em 1920, quando tinha apenas 18 anos. Cf. IGLESIAS,
Francisco. “Sérgio Buarque de Holanda”. 3º Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
35
“Sabemos que rgio Buarque de Holanda, antes de escrever sua obra, estivera, de 1929 a 1930, a viajar,
pesquisar e estudar na Europa, particularmente em Berlim, na Alemanha, onde na Repúplica de Weimar,
vivia-se num clima de intensa vida cultural”. Cf. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cartografia do tempo:
palimpsestos na escrita da História. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (org). Um historiador nas fronteiras: o
Brasil de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. p. 19.
24
mundo, como também o colocou em convívio com o pensamento alemão, que lhe abriu
outros horizontes”
36
.
Ainda Laura de Mello e Souza, abordando as contribuições de Holanda em história
cultural, atribuiu claramente sua desenvoltura às experiências no exterior:
Se Raízes do Brasil é ainda um ensaio, na boa tradição
brasileira de pensar o país, aborda, pela primeira vez, temas
ligados à cultura com metodologia rigorosamente adequada ao
objeto, manejando conceitos com segurança, ancorando-se na
sociologia da cultura dos alemães, na teoria sociológica e na
etnologia.
37
E vale a pena citar o excelente trabalho de Sandra Pesavento que, em busca de
compreender como Holanda estabeleceu sua noção de tempo na construção de um espaço
histórico, fez uma cartografia do social, indo ao encontro das suas prováveis leituras
berlinenses em busca dos fundamentos do livro Raízes do Brasil, atribuindo, portanto, grande
importância ao destaque alemão na biografia de Holanda
38
.
Se partirmos do princípio, adotado por Chartier, já ressaltado anteriormente, de que as
representações, ainda que aspirantes à universalidade, são sempre construídas a partir das
determinações de grupos específicos que partilham de idéias comuns, com o percurso
percorrido até agora, fica claro que as experiências de Freyre e Holanda em grupos
diferenciados lhes possibilitaram construir representações, em alguma medida, determinadas
pelas concepções teórico-metolológicas partilhadas pelos grupos por onde passaram. Ainda
que consideremos as escolhas individuais, como concepção de mundo, posicionamento
político, experiências no núcleo familiar, no caso, também forjadas devido ao pertencimento
a vários grupos concomitantemente, devemos considerar em grande parte as determinações
dos grupos intelectuais aos quais pertenceram, já que é esse o foco da análise. No caso de
Arthur Reis, para compreendermos por que adotou determinado modo de interpretar os
documentos, precisamos analisar o que era compartilhado no grupo ou grupos intelectuais
aos quais pertenceu no momento de elaboração da sua primeira obra.
36
IGLESIAS, Francisco. “Sérgio Buarque de Holanda”..., p. 21.
37
SOUZA, Laura de Mello. Aspectos da historiografia da cultura sobre o Brasil colonial... p. 23.
38
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cartografia do tempo: palimpsestos na escrita da História... p. 19.
25
Toda essa incursão em busca de exemplificar a assertiva de que as viagens de Freyre
e Holanda influenciaram sobremodo suas idéias, contribui para a possibilidade de demonstrar
que, apesar de Arthur Reis ter feito parte do mesmo momento histórico desses dois grandes
historiadores brasileiros, está situado no interior de um outro grupo da historiografia
brasileira, dentro da periodização proposta por Iglesias, e que veremos a seguir.
A divisão é feita em três períodos e vamos utilizá-la aqui, assim como também fez
Iglesias, apenas para fins didáticos. Este autor lembra, instituindo como o primeiro período,
os historiadores que escreveram do século XVI até meados do século XIX como Pero de
Magalhães Gândavo (1573), Frei Vicente do Salvador (1627), Sebastião da Rocha Pita, entre
outros.
39
A criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IGHB), em 1838, marcou o
início do segundo período que se estende até o início do século XX, mais especificamente até
o final da década de 1920. Este período é considerado mais rico e imbuído de maior atenção
ao caráter científico, com pretensões de alcançar objetividade na prática historiográfica. Um
expoente intelectual do início desse período foi Francisco Adolfo de Varnhagen com sua
conhecida Historia Geral do Brasil. E mais para o final do século se destacaram Capistrano
de Abreu, Oliveira Lima, Oliveira Viana e Paulo Prado.
De acordo com Iglesias, o terceiro período foi marcado pela reforma no ensino de
1931 realizada por Francisco Campos. A reforma educacional incluiu a intenção de dar corpo
à Universidade com a implantação das faculdades de filosofia oferecendo vários cursos,
inclusive o de História
40
. As ciências sociais receberam maior atenção, dando início a um
processo de formação de cursos específicos na área das ciências humanas.
A reforma educacional de 1931, de acordo com Iglesias, marcou o início do “surto
renovador” que se completou com a publicação das obras de Freyre, Holanda e Caio Prado
Junior. A década de 1930 é realmente vista como período fervilhante da historiografia
brasileira, por ser palco de três projetos historiográficos que serviram como referenciais às
gerações posteriores.
Lembrando que os três autores mencionados acima não foram diretamente
influenciados pela criação das faculdades de filosofia, porque não tiveram suas formações e
39
IGLESIAS, Francisco. Op. cit. p. 14.
40
Cf. DIEHL, Astor. A cultura historiográfica brasileira. Passo fundo: ediup, 1998. Onde também chama
atenção para o surgimento das faculdades de filosofia nesse período como viabilizadoras da troca de
experiências entre os historiadores e demais cientistas.
26
carreiras definidas pela vivência universitária no Brasil. tempos depois a Universidade
produziu contribuição significativa com criticidade
41
.
Dentro dessa periodização adotada, queremos inserir o autor que é objeto principal de
nossas atenções. Arthur Reis, que apesar de todo o contato profissional posterior com Freyre
e Holanda, no momento da escrita de História do Amazonas pode ser incluído no segundo
período da historiografia brasileira, de acordo com a divisão feita por Iglesias, isto é, no
período anterior às renovações que vieram à tona após a publicação do grande marco Casa-
grande & Senzala, visto que apesar do “surto renovador” que ocorria em termos
historiográficos, ainda estava inteiramente ligado à prática dos Institutos Históricos.
Aos autores do segundo período, que construíram concepções até então consideradas
praticamente inéditas e recebidas como revolucionárias no momento, surgiu um grupo de
autores
42
que revelaram novas questões e apresentaram “novos parâmetros no conhecimento
do Brasil e de seu passado”
43
. Arthur Reis e sua História do Amazonas estão situados na
fronteira entre esses dois períodos. No entanto, pensamos que sua obra, publicada em 1931,
pende mais para o lado de da fronteira, isto é, ao período anterior às publicações
renovadoras de Freyre e Holanda, não em termos cronológicos, como também em relação
às suas concepções teórico-metodológicas. Será melhor inserido no grupo que tem como
expoentes Varnhagen e Capistrano de Abreu. Embora esses dois autores apresentem
divergências entre si, Reis foi influenciado por ambos na construção de sua obra.
Tanto Varnhagen como Capistrano foram membros do IHGB, embora esse último
tenha guardado algumas reservas em relação ao Instituto, como veremos adiante. Ainda que
Reis estivesse escrevendo numa década considerada renovadora em termos historiográficos,
devido às grandes obras iniciadas com a publicação de Casa-grande & Senzala, sua História
do Amazonas assemelha-se bastante às concepções historiográficas do final do século XIX e
início do século XX, ligadas ao IHGB
44
.
Dentre algumas características apontadas por Astor Diehl sobre o IHGB, podemos
encontrar algumas semelhanças entre essas idéias e a prática historiográfica de Reis na
História do Amazonas. No período em que o Instituto se estabeleceu, as preocupações dos
intelectuais giravam em torno da construção de um perfil da nação brasileira. E, ao contrário
41
MOTA. Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo: Ed. Ática, 1994.
42
Autores como Gilberto Freyre e Sergio Buarque de Holanda, que coincidentemente, ou não, tiveram boa parte
de suas formações construídas através das experiências no exterior.
43
MOTA. Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira... p.28.
44
Arthur Reis foi membro tanto do IGHB, quanto do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas.
27
do ocorrido em outros países da América Latina, a noção identitária do Brasil não foi forjada
prevendo uma descontinuidade entre a antiga metrópole e o novo país. Diferente disso, “a
nova nação brasileira se reconheceu como continuadora da tarefa civilizadora iniciada pela
colonização portuguesa”. Caso expresso em Varnhagen, que, em carta ao imperador D. Pedro
II, expõe suas idéias quanto aos fundamentos da identidade brasileira enquanto herdeira da
civilização européia
45
.
Enfim, consideramos nesse momento a influência de dois fatores na construção da
História do Amazonas: Varnhagen com forte influência e ao mesmo tempo influenciador do
IHGB e Capistrano de Abreu com sua incansável busca da verdade.
45
Cf. DIEHL, Astor. Op. cit., p. 25.
28
1.2 ARTHUR REIS: ENTRE VARNHAGEN E CAPISTRANO DE
ABREU
“À geração nova de minha terra ... A Graziela da Silva Reis,
Iria, José Ruy, Miriam e Evangelina da Silva Reis ... A Vicente
Torres da Silva Reis e Emília Ferreira Reis ... À memória de
Capistrano de Abreu, que me sugeriu a elaboração desta
obra
46
.
Entre os seus conterrâneos e seus familiares, Reis incluiu unicamente Capistrano de
Abreu como intelectual para dedicar sua obra. A partir daí podemos pensar numa possível
influência deste na elaboração da História do Amazonas.
Na homenagem do IHGB feita a Arthur Reis, quando do seu falecimento em 1993,
Geraldo de Menezes atesta a proximidade intelectual entre Reis, Capistrano de Abreu e
outros nomes do Instituto:
“Iniciou seus estudos em Manaus, vindo concluir no Rio de
Janeiro o curso de Direito, em 1927. Aqui encontraria os
estímulos culturais propiciatórios à realização de seus
objetivos mais elevados, no que respeita particularmente aos
conhecimentos humanísticos, voltados desde então para os
problemas da terra natal, cujo deslumbramento lhe despertava
crescente interesse. Nessa fase, recebeu orientação metódica e
lições enriquecedoras no convívio de Capistrano de Abreu,
Rodolfo Garcia e Max Fleiuss, seus mestres declarados”
47
.
Karina Anhezini destacou a função de “mestre” das novas gerações exercida por
Capistrano, mesmo que este rejeitasse receber esse tipo de tratamento:
“Naquelas cadas de 10 e 20 ele era uma referência quase
unânime, pelo menos para os pesquisadores de diversas
46
REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas... p. 13. Grifo meu.
47
MENEZES, Geraldo. Um amazônida universal. In. Homenagem a Arthur Cezar Ferreira Reis. Rio de
Janeiro: IHGB, 1993.
29
regiões do Brasil vinculados de alguma maneira, ora por
meio dos Institutos, ora por contatos pessoais, ao universo de
produção historiográfica de São Paulo e Rio de Janeiro.
Esses autores relataram em diversos escritos suas dívidas
para com Capistrano, o grande “orientador” do período”
48
.
Os historiadores da historiografia são unânimes em apontar Capistrano de Abreu
como o responsável pela prática de uma história inovadora, que representou uma ruptura com
o método praticado até então pelos historiadores brasileiros.
Questão com a qual concorda Ângela de Castro Gomes, que apresenta Capistrano
como representante de uma ruptura com o método praticado até então pelos historiadores
brasileiros. De acordo com Ângela Gomes, a historiografia brasileira divide-se em antes e
depois de Capistrano, símbolo do nascimento do saber histórico no Brasil. Assim, o autor de
Capítulos de história colonial é apresentado como “marco de afirmação de um saber
histórico” e o período em que escreveu, entre 1880 e 1920, “como crucial para se pensar as
características pelas quais esse saber foi sendo definido”
49
.
Ângela Gomes afirma que 1920 têm os méritos de ser uma década onde o saber
histórico começou a delimitar suas fronteiras, marcando seu espaço diferente dos tomados
pela prosa e pela ficção:
Esse saber passa a ter profissionais “especializados”, que
além da ABL e do IHGB com suas respectivas revistas,
possuía uma associação alternativa e bem específica: a
Sociedade Capistrano de Abreu. Vale ressaltar que o ponto
que queremos caracterizar aqui é a constituição da história
com um campo de estudos, com um método “científico”, um
“objeto” e uma escritura próprios
50
.
Capistrano “era um escritor que escolhia temas e assuntos e os esclarecia com
erudição”. Gomes analisou Capistrano ancorada no suplemento literário “Autores e Livros”,
48
ARAÚJO, Karine Anhezini de. Um metódico à brasileira: a história da historiografia de Afonso de
Taunay (1911 a 1939). Tese de doutorado. Franca: Universidade Estadual Paulista, 2006. p. 70.
49
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores: a política cultural do Estado Novo. Rio de Janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999.
p.90.
50
Ibidem. p. 90.
30
dirigido pelo jornalista Múcio Leão com a finalidade de “examinar uma produção sobre o
Brasil realizada por brasileiros a partir de uma “ótica” interna, nacional”
51
.
Assim, como base em Humberto de Campos, um dos autores do suplemento que
homenageou Capistrano, Ângela Gomes apresenta as características do autor de Capítulos de
história colonial que o tornaram singular: “o faro da verdade” e “o processo de convencer”.
A primeira característica se refere à sua habilidade diferenciada com os documentos, que o
levou a identificar os trabalhos de Frei Vicente do Salvador e o de Fernão Cardim em
arquivos antes já visitados por muitos pesquisadores que não puderam responder pelos
méritos de grandes achados como esses.
52
. E a segunda característica engrandece a
peculiaridade de Capistrano em analisar e “expor vários pontos de vista conflitantes, com o
mesmo cuidado e zelo”. A “verdade” que demonstrava era fruto de várias cogitações junto ao
leitor, “onde ele exibia e destruía, passo a passo, várias possibilidades” antes de apresentar
suas conclusões. Diferente dos seus “antecessores” que faziam suas demonstrações baseados
em verdades preconcebidas, onde os documentos eram utilizados apenas para confirmar
idéias anteriores ao processo de pesquisa.
Concordando com Ricardo Benzaquem de Araújo
53
, texto que apresentaremos a
seguir, Ângela Gomes afirma que o uso do método crítico e da narrativa são as virtudes de
Capistrano que o associam a uma “concepção moderna” de história, a exigir procedimentos
como objetividade e neutralidade por parte do historiador. Dentro dessa perspectiva os
preconceitos não deveriam ser um dos condutores da pesquisa com o intuito de confirmar
valores e posicionamentos éticos do autor, ao contrário: “a história como ciência, não
procuraria nem produziria uma “verdade ética (...). Daí o método crítico exigir a exposição
neutra das alternativas dos vários atores em conflito”
54
. Outros pesquisadores, como
Varnhagem, já tratavam da documentação sugerindo o uso do método crítico, mas não
interpretava os fatos, apenas os colecionava
55
.
Ângela Gomes ressalta, ainda, que o interesse de autores como João Francisco
Lisboa, considerado um “moralista”, diferentemente de Capistrano, era “produzir um relato
que justificasse a “verdade ética” que desejava sustentar”, por isso, “Lisboa não é um
51
Ibidem, p. 37.
52
Ibidem, P.92.
53
ARAÚJO, Ricardo Benzaquém de. “Ronda Noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu”. In:
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº.1, 1988, PP. 28-54.
54
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores... p.93.
55
Ibidem, p.93.
31
historiador “moderno”, justamente por dar um sentido ético-pedagógico à sua atividade”, e
completa exemplificando bem o ponto que nos interessa:
“Nem Lisboa, bom exemplo do uso da história como um
“espaço de experiências”, nem Varnhagen, que, segundo o
próprio Capistrano, não formulava teorias e não
“compreendia” os fatos, embora pudesse estabelecê-los,
deram um sentido “moderno”, isto é, científico à história.
Esta é a inovação de Capistrano, que pode ser ainda melhor
analisada pelas observações do estudo de Humberto
Campos”
56
.
Demonstrativo também das idéias inovadoras de Capistrano de Abreu, de acordo com
Ângela Gomes, em sua análise baseada em Humberto Campos, era sua recusa ao
determinismo evolucionista. O pioneirismo de Capistrano vinha exatamente do fato de ter
inaugurado “um tipo de visão da nossa história que combinaria fatores naturais e sociais” que
não tentava se adequar às perspectivas evolucionistas nem às voluntaristas/idealistas. Tinha a
preocupação de situar acontecimentos em lugares, unindo a cronologia à idéia de espaço: e
este é o ponto essencial – a própria idéia de espaço não era natural. O espaço não era produto
exclusivo da “natureza”, mas, como ela, sofria a conformação do social”
57
.
Desse modo, Ângela Gomes conclui que Capistrano de Abreu rompeu com uma
“tradição de “colecionadores” (de números, de nomes, de acontecimentos) [propondo] a
relação bilateral de influências entre natureza e sociedade”. Sempre imbuído de um rigor
metodológico e de uma perspectiva interpretativa distante “dos determinismos rígidos do
meio e da raça que inferiorizavam o país”
58
. Diferente de Reis em alguns aspectos, para
quem a raça e o meio foram em alguns pontos determinantes para suas análises.
No entanto, é importante destacar que essa concepção de Capistrano ocorreu em
maior grau a partir de 1880, quando começou de forma mais sistemática se interessar pela
história e deixar que os documentos lhes mostrassem os caminhos, sem que estivesse
preocupado em estabelecer leis. Essa fase do autor é vista por Arno Wehling como sua
passagem do cientificismo para a ciência. Wehling aponta os anos entre 1874 e 1880, período
56
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores... p. 94
57
Ibidem, p.96.
58
Ibidem, p. 97 e 98.
32
em que elaborou trabalhos de análises literárias, como o período em que a influência
cientificista foi determinante na obra de Capistrano. Após esse período quando abandonou
“gradualmente a crítica literária pela análise histórica”, priorizou muito mais o documento
que a teoria se afastando dos determinismos. É exatamente à sua fase científica e não
cientificista que estamos nos referindo nesse trabalho
59
.
Rebeca Gontijo procurou através das correspondências de Capistrano de Abreu,
compreender como este planejou escrever a história, considerando as especificidades de sua
época quanto à prática historiográfica observando sua sensação de frustração possivelmente
decorrente da consciência da impossibilidade de reconstituir o passado completamente.
Mesmo após publicar seus Capítulos de história colonial “Capistrano achava que uma
história melhor seria feita por um historiador do futuro”, e em carta datada de 1920 confessa
a Guilherme Studart: sabes melhor que ninguém como a cousa é difícil, como sai
imperfeita, como o segundo que vier pode melhora-la consideravelmente, [com] metade do
trabalho”. A “frustração com a completude jamais atingida” era comum entre os escritores do
século XIX
60
.
Esse receio de Capistrano de Abreu com a completude inatingível e quanto à
imperfeição na abordagem do que se propunha podemos ver em Reis. Mas enquanto no
primeiro tinha a conotação de incompletude do trabalho, no segundo se referia a um vazio
historiográfico. A primeira frase do livro de Arthur Reis expressa bem o que estamos
afirmando; “A história do Amazonas não está escrita”
61
. Sua primeira preocupação foi
informar ao leitor, que mesmo sendo esta uma obra de maior desenvolvimento em relação às
de outros autores que esboçaram reconstruir períodos da história do Amazonas, não era uma
obra completa.
Entretanto, o que incomodava Capistrano de Abreu era a impossibilidade de atingir
uma completude nas suas obras, enquanto que Arthur Reis era consciente do vazio
historiográfico quanto à história do Amazonas, por isso, continuou em alguns casos tentando
tornar mais “completo” o que havia iniciado na História do Amazonas. Seu primeiro extenso
trabalho foi escrever uma síntese que pretendia abordar toda a história do Amazonas, do
século XVI ao XIX, esboçando inclusive alguns aspectos do século XV, na parte inicial do
59
WELHING, Arno. A invenção da história: estudos sobre o historicismo. Rio de Janeiro: Editora Central da
Universidade Gama Filho, 1994.
60
GONTIJO, Rebeca. “História e historiografia nas cartas de Capistrano de Abreu”. In: Revista de História. São
Paulo, v.24, n. 2, p.159-185. p 174.
61
REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas...p. 35.
33
livro onde trata dos antecedentes históricos. Consciente de que não poderia fazer uma
abordagem completa, especifica ao leitor resumidamente o que constaria na obra: a história
de certas figuras impressionantes, Ajuricaba, Samuel Fritz, Lobo d’Almada, Tenreiro
Aranha. E o que dela não faria parte: o relativo às populações ameríndias. Reis optou pelo
que João Lúcio de Azevedo, retomado por Rebeca Gontijo, denominou de ir em frente,
seguindo a reta, uma das opções diante da impossibilidade de tornar completa qualquer
história. A outra opção foi a seguida por Capistrano, a de andar em círculo: “para ele sempre
faltava um documento, tornando-se necessário voltar periodicamente ao mesmo ponto a fim
de tentar corrigi-lo”
62
.
Capistrano de Abreu, depois de escrever seus Capítulos, achava que uma história
melhor poderia ser feita por um historiador do futuro. Reis, que também via incompletude em
sua obra, tratou de ele mesmo dedicar toda a sua vida a aprofundar questões que havia apenas
esboçado na História do Amazonas. Exemplo disso foram as obras Autonomia do Amazonas,
A Conquista espiritual do Amazonas e o Seringal e o seringueiro, sem mencionar os diversos
trabalhos de menores dimensões. No caso de Capistrano, é de algum modo compreensível
que tenha deixado essa tarefa para historiadores futuros, considerando que publicou sua obra
aos 54 anos. Reis publicou sua “História do Amazonas” quando ainda tinha 25 anos e,
portanto, no auge da sua juventude. Depois disso escreveu por mais sessenta anos.
Capistrano de Abreu desejava algo diferente daquilo que era oferecido pelo IHGB.
Para exemplificar podemos recorrer ao seu artigo produzido em 1880 sob o título “Uma
grande idéia”, dirigido ao então Ministro da Agricultura Buarque de Macedo, que estava
organizando uma comissão para escrever a história do Brasil. Nesse artigo, Capistrano
alertava ao ministro quais os membros do instituto que estavam capacitados para escrever a
“Historia do Brasil”. E em sua opinião, dos 187 membros do IHGB apenas 26 poderiam
servir para o propósito requerido. A sua intenção de fundar o Clube Taques que deveria
congregar intelectuais com proposições diferentes das que estavam em voga, também dá bem
a medida da fragilidade em que se baseava sua relação com essa instituição brasileira
consagrada no âmbito dos estudos históricos. O Clube Taques, que Capistrano vislumbrava,
deveria ser, em suas próprias palavras, “uma sociedade histórica, menos pomposa, e menos
protegida que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, porém quero ver se mais
efetiva”
63
. Esse seu desejo de apresentar uma sociedade alternativa ao IHGB, impunha,
62
GONTIJO. Rebeca. p. 169 e 172.
63
Ibidem, p. 169.
34
segundo Rebeca Gontijo, a revisão de três questões: “o uso das fontes, o método e a
narrativa”
64
.
Seu distanciamento do IGHB lhe rendeu os méritos de ser considerado como peça-
chave na implementação da moderna historiografia brasileira
65
. Mas, antes de se dedicar
exclusivamente às pesquisas, foi funcionário da Biblioteca Publica e professor do Colégio
Pedro II no Rio de Janeiro de onde conseguiu disponibilidade, a partir de 1889, quando foi
extinta a cadeira de Corografia e História do Brasil, disciplina que lecionava. Recusou-se a
trabalhar com Historia Geral, alegando que sua especialidade era Historia do Brasil.
Daí em diante foi se desvinculando da função de professor e passou ao exercício da
pesquisa “que irá destacá-lo e transformá-lo em modelo de toda uma geração de autores
66
.
Figura admirada no meio intelectual, foi homenageado após sua morte em 1927, com a
fundação que levava seu nome.
O autor de Capítulos de história colonial “fez parte de uma geração de pesquisadores
formados pela prática do ofício interessados em redescobrir o Brasil’ através do estudo de
suas particularidades”
67
, não mais preocupados em buscar bases para a formação do Estado
Nacional. Capistrano, assim como seus discípulos, queria compreender o desenvolvimento da
cultura nacional em sua multiplicidade. É a essa geração que pertence Arthur Reis, e foi
provavelmente envolto por esse anseio de conhecer o Brasil nas suas particularidades, que
Capistrano sugeriu a escrita de uma história que abordasse uma partícula da história nacional,
dentro da sua perspectiva da existência de cinco brasis: o amazônico, o litorâneo, o baiano, o
paulista e o riograndense
68
.
De acordo com Rebeca Gontijo, o ideal a ser alcançado no Brasil do início do Século
XX, em termos historiográficos era conceber uma obra que tivesse caráter de conjunto,
pretensa a expor uma síntese de história geral da nação, que poderia estar contida em um ou
mais volumes. Capistrano ensaiou várias vezes realizar uma obra de história do Brasil, e
ficou conhecido como aquele que mesmo podendo realizar esse projeto com autoridade, não
o fez.
A despeito dessa preocupação em escrever uma história do Brasil, visando atender as
expectativas da época, à revelia dos seus planos, o que falou mais alto foi sua predileção por
64
Ibidem, p. 162.
65
Cf. DIEHL, Astor. Op. cit. p. 42.
66
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. “Ronda Noturna: narrativa, critica e verdade em Capistrano de Abreu”. In:
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nº.1, 1988, PP. 28-54. (grifo meu)
67
GONTIJO, Rebeca. Op. cit. p. 176
68
Ibidem, p. 179.
35
“algo mais circunscrito a temas (...); ou a épocas particulares, como a história colonial”
69
.
Essa sua preferência ao particular, mesmo frustrando as expectativas da época, parece estar
ligado com sua sugestão para que Arthur Reis escrevesse a história de um desses cinco
brasis.
Capistrano não atendeu ao que era solicitado na época, a escrita de uma história do
Brasil, mas escreveu os Capítulos de história colonial com a característica de síntese
histórica, característica comum na época, procedimento esse que influenciou Reis, pois no
mesmo rumo, este traçou uma síntese da história do Amazonas, indo da Colônia aos começo
da República. Reis foi além do exemplo do mestre, se fosse seguir-lhe à risca talvez tivesse
abordado apenas um período da história do Amazonas. Assim fizeram J.B. de Faria e Souza e
Bertino de Miranda, citados por ele como estudiosos que apenas examinaram episódios e
reconstituíram períodos
70
.
Reis se “abalançou ao conjunto do que houve ontem às margens do Rio-Mar” como
ninguém ainda havia feito. Propôs-se a realizar uma obra com “maior desenvolvimento” que
Aprígio de Menezes autor de um ensaio “bem feito, é inegável, [mas] muito ligeiro, muito
sintético”. Sua obra que também possuía características de síntese - assim como também foi a
síntese realizada por Capistrano nos seus Capítulos de história colonial, procedimento
comum na época - tinha pretensões maiores que o ensaio de Aprígio de Menezes, o que
explica a “audácia do título – HISTÓRIA DO AMAZONAS”
71
.
Também esclarecedora para o que nos propomos é a discussão de Rebeca Gontijo,
ressaltando o modo como esse saber histórico estava em transformação no final do século
XIX e início do culo XX. Havia uma “espécie de agenda” de discussão sobre a pesquisa e
a escrita da história que colocava em pauta questões como “a busca de documentos e os
esforços para ampliar o acesso a eles, ao lado das reflexões sobre a natureza e uso das fontes
no estudo histórico; sobre os métodos de análise; os problemas da narrativa e interpretação”
72
. Porém, essa “agenda” possuía característica fragmentária, visto que essas discussões sobre
a forma do fazer história, não eram divulgadas de modo sistemático como por meio de
manifestos ou livros. Ao contrário, vinham à tona em publicações esparsas em forma de
artigo de jornal e revistas, prefácios, discursos e traduções. Mas, apesar de não possuírem
características sistemáticas, essas discussões serviam “para dar algum sentido à produção
69
Ibidem, p.179.
70
REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas. 2ªed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989. p. 35.
71
Ibidem. p. 35
72
GONTIJO. Op. cit. p. 2.
36
historiográfica”
73
. Queremos destacar que nesse contexto de transformações e de discussões
metodológicas quanto à prática historiográfica que se dava de modo fragmentado, Arthur
Reis se propôs a produzir um trabalho de história que não seguia um manual, mas que fez
parte desse momento de formação de novas idéias; por isso, nele encontraremos uma prática
que ainda é devedora do IHGB e de Varnhagen, tem algumas influências de Capistrano e que
ainda tentava responder aos anseios da sua comunidade intelectual local. Mas, suas
preocupações, no que se refere ao contexto mais restrito a Manaus, discutiremos nos
próximos capítulos.
Ricardo Benzaquen de Araújo aponta a obra de Capistrano de Abreu como a mais rica
contribuição individual à historiografia brasileira do período entre a produção de Varnhagen
e as análises de Freyre, Holanda e Prado Junior. Mas para situar Capistrano e suas
contribuições nesse período, como autor que permitiu a discussão de uma série de questões
ligadas à chamada “concepção moderna” de história (realista, factual e narrativa), Ricardo
Araújo faz um apanhado da prática historiográfica, indo da “concepção clássica” até a
“concepção moderna”, sendo essa última o motor que impulsionou as obras de Capistrano
74
.
A “concepção clássica” de história foi dominante na Europa desde o Renascimento
até o Iluminismo e, portanto antecedeu a concepção “moderna”, sua opositora. Apresentava-
se como “uma formulação ética e pedagógica da história, resumida na velha expressão latina
de Cícero: “história magistra vitae” história mestra da vida”
75
. Essa concepção de história
era praticada por diversos autores, não se constituindo em gênero somente para especialistas.
A busca pela verdade não se dava através de documentos e testemunhas, mas sim através de
uma comparação, ainda que precária com os valores referentes à moral em vigor no
presente
76
.
Mas a “concepção moderna” trouxe uma modificação na noção de verdade. Passou-se
à busca por uma verdade exata, procurando-se saber quando e onde as ações dos homens
efetivamente existiram. Na busca da “verdade”, as atitudes humanas em função dos seus
valores éticos não mais interessavam como no classicismo. A preocupação agora era chegar o
mais objetivamente possível à realidade.
73
Ibidem, p. 2.
74
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen. Op. cit. p. 39.
75
Ibidem, p.29.
76
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2006. O autor faz uma discussão pontual das transformações do topos historia magistra
vitae e sua dissolução na história moderna. pp. 41-61.
37
A verdade e o fato eram entrelaçados pelos estudiosos, tornando-os quase que uma
coisa na tentativa de se afastarem ao máximo da fantasia. A concepção moderna exigia
imparcialidade e objetividade que demandava procedimentos críticos, devendo auxiliar na
busca por maior precisão rumo à “verdade dos fatos”. A exigência de domínio de
procedimentos mais específicos pedia do historiador maior erudição, transformando-o em
especialista que deveria dominar um determinado método revelador da verdade.
Ainda conforme Ricardo Araújo, a Revolução Francesa certamente marcou a
mudança do classicismo para a concepção moderna de história, entre outros motivos, porque
a intensidade dos conflitos alterou a noção de verdade que se tinha até então. Isso se deu
porque a Revolução causou uma crise profunda obrigando a uma mudança de valores que
incidiu na necessidade de se redefinir a noção de verdade. Contudo, essa nova definição de
verdade no interior da “concepção moderna” de história não se apresentou como construção
perfeita. Questões como a relação entre imparcialidade e posicionamento intelectual eras
discutidas e atravessaram o século XIX. Araújo coloca Capistrano no interior desse debate
por considerá-lo como provavelmente o mais importante historiador brasileiro moderno e
“que talvez tenha melhor encarnado entre nós o ideal da busca moderna da “verdade””
77
. A
busca de Capistrano pela “verdade” inclui a comprovação documental com o fim de ser o
mais objetivo possível. Reis também preocupava com a objetividade, mas sua busca pela
verdade, como veremos, recebeu ainda a influência do classicismo.
Pensamos que, ainda, vale à pena citar um ponto que nos chamou bastante atenção.
Ao analisar o texto “O descobrimento do Brasil Povoamento do solo evolução social” de
Capistrano, onde esse busca a identidade dos “verdadeiros” descobridores do Brasil, Ricardo
Araújo cita um trecho do texto em questão onde fica evidente que a história do Brasil, para
Capistrano começa após a chegada dos portugueses. Depois de descartar outras hipóteses
quanto aos prováveis descobridores do Brasil, através do método crítico, Capistrano chega a
essa conclusão: “sociologicamente falando os descobridores do Brasil foram os portugueses,
neles inicia-se a nossa história
78
.
Semelhante percepção de história podemos encontrar em Reis, que inicia o primeiro
capítulo de seu livro com a seguinte expressão: A América entrou na História com a
aventura de Colombo, em 1492”
79
, sugerindo aquela mesma idéia vista em Capistrano para
77
Ibidem, p.33.
78
ARAÚJO, Ricardo Benzaquén de. “Ronda Noturna”... p. 40.
79
REIS, Arthur Cezar Ferreira Reis. Op. cit. p. 36.
38
quem certamente, o que havia no Brasil antes da chegada dos europeus não pode ser
considerado História.
Ambos estão imbuídos de um tipo de pensamento que acompanhou a historiografia
por muito tempo. Pela ausência de documentos escritos, os povos ágrafos eram considerados
a-históricos. Pois, a tradição oral ainda “não era digna de credibilidade”
80
, período no qual
sem fontes escritas, não era possível a construção historiográfica.
também um outro indício que nos faz supor a proximidade entre Reis e
Capistrano. Esse último inicia seus Capítulos de História Colonial com um capítulo
denominado de “Antecedentes indígenas”, e depois de publicado esse livro, dedicou tempo
ao estudo das línguas indígenas. Arthur Reis, ao contrário, decide não explorar a temática
relacionada aos nativos. Mas o que em particular nos chama a atenção é a necessidade deste
em justificar essa omissão. Embora não seja uma total omissão, visto que o autor ao longo da
obra mostras suficientes de como trata a questão indígena. A sua justificativa se refere
então, mais ao fato de os nativos não terem recebido capítulo específico como ocorrera no
trabalho de Capistrano. Ainda que o argumento esteja menos baseado em qualquer
comprovação documental e mais em suposições “farejadas” pelos indícios, pensamos que
essa justificativa de Reis se devia, entre outras causas possíveis, à necessidade de explicação
a uma comunidade de intelectuais que tinham Capistrano como modelo
81
; e nesse caso,
ainda, pesava o fato deste sempre ter defendido a importância dos indígenas
82
.
Em suma, o período em que Arthur Reis produziu sua História do Amazonas estava
vivenciando uma mudança na prática historiográfica com a publicação de textos do mestre
Capistrano de Abreu, que trazia uma forma diferente na prática de pesquisa e produção de
seus trabalhos baseados no método crítico. Teríamos desse modo, motivos suficientes para
crer que Capistrano foi um grande exemplo de historiador para a composição da História do
Amazonas. Entretanto, um fato de extrema importância nos chama a atenção. Essa
dedicatória de Reis a Capistrano, apareceu na segunda edição da sua obra em 1989, pois a
primeira edição de 1931 não trazia a homenagem ao grande historiador, sendo essa uma
questão interessante que pode alterar o curso da análise.
80
FREIRE, José R. Bessa. “Tradição oral e memória indígena: a canoa do tempo”. In SALOMÃO, Jaime.
América: descoberta ou invenção. 4º Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago 1992. (pp 138-164).
81
O próprio Francisco Adolpho de Varnhagem dedicou parte da sua História Geral do Brasil para tratar da
questão indígena, ainda que com um claro posicionamento anti-indígena.
82
WELHING p. 174.
39
Não colocamos em “xeque” aqui, uma possível inverdade de Reis, quanto à sugestão
de Capistrano que ele escrevesse sua História do Amazonas. Preferimos acreditar que Reis, já
consagrado em estudos amazônicos no período da segunda edição de seu livro, não
necessitava de endossamento de autor algum para fazer sua obra respeitada. Nesse caso,
pensamos a hipótese de o indício sugerir que, apesar de Capistrano de Abreu ter indicado a
elaboração do trabalho, Reis não estava tão filiado assim às suas idéias, como um leitor
desavisado poderia supor ao se deparar pela primeira vez com sua obra e nela encontrar uma
dedicatória ao autor dos Capítulos de história colonial.
Pode ser que em trabalhos posteriores à História do Amazonas Reis tenha se
aproximado cada vez mais de Capistrano, tendo em vista que, quando do falecimento deste
em 1927, foi fundada a Sociedade Capistrano de Abreu, destinada a divulgar os
ensinamentos do mestre; mas sua primeira obra ainda traz grandes influências de Varnhagen
e do Instituto Histórico e em menor grau aparecem as influências de Capistrano.
Método crítico, neutralidade, objetividade, uso do tempo linear, são características
fundamentais de Capistrano de Abreu apontadas pelos autores mencionados acima, que
quando comparadas à escrita de Reis nos fazem crer que este estava muito mais atrelado às
concepções ainda tomadas do IHGB e de Varnhagen, do que a Capistrano, apesar de ter-lhe
dedicado a obra em sua segunda edição.
Em vários pontos dos argumentos usados por Reis, vemos essa mesma preocupação
em se pautar em provas documentais diminuindo ao máximo a margem de dúvidas com o fim
de alcançar a objetividade. Quando tentou provar a inocência de Ajuricaba quanto à acusação
de ter “traído” os portugueses, apresentou alguns documentos seguidos da afirmativa de que
“... provas que elucidam mais, convencem definitivamente”
83
, ou seja, o documento era
visto como uma prova inconteste da verdade. E esse é um dos exemplos dos qual a obra
esta permeada. Reis investe o documento de autoridade ao afirmar que este convence
definitivamente; em outras palavras, não deixa margem para que essa verdade seja
contestada.
Objetividade e o uso de um tempo linear são características de Capistrano que
também podemos encontrar em Arthur Reis. Como vimos no trecho acima citado, Reis
buscava de forma objetiva, através da documentação, comprovar certas “verdades” que,
pautadas na documentação deveriam convencer definitivamente. Contudo, o uso que
83
REIS, Arthur Cezar Ferreira. Op. cit. p. 101
40
Capistrano fez do método crítico o levou a perseguir a neutralidade de acordo com seu
pensamento acerca da história observada, quando afirmou que: “as perguntas são feitas
muitas vezes de acordo com o presente, mas as respostas dependem da pesquisa, pois de
outro modo o historiador se tornaria tendencioso e sem categoria científica”
84
. Reis não teve
essa preocupação, visto que os julgamentos que fazia do passado, tal como Varnhagen,
visava responder questões atreladas à concepção que tinha do presente.
Quanto ao uso do tempo linear, que Ricardo Araújo observa em Capistrano de Abreu,
na análise de um dos seus textos, de que sua narrativa se desloca de modo absolutamente
consistente e ordenado rumo a um final em que “pretende reunir todos os fios soltos do texto
para criar uma imagem absolutamente coerente, regulada e compreensível da realidade, uma
imagem, onde tudo (...) deve fazer sentido”
85
. Também observamos que Reis tem por
objetivo traçar “um quadro da evolução amazonense”
86
, tendo seus argumentos em gradual
avanço à intenção de mostrar os êxitos conseguidos pela ação portuguesa, com o ímpeto de
colonizar os gentios ou bárbaros, como preferia denominar os nativos. Assim, junta todos os
fios buscando uma coerência dentro da meta a ser atingida.
Trata do Amazonas colonial, da Capitania de São José do Rio Negro, da Comarca do
Alto Amazonas, e quando chega à Província podemos verificar qual o objetivo central em
torno do qual tece todo o texto. “Território imenso, povoado ainda de muitos milhares de
aborígines, a Província tinha necessidade imperiosa de atraí-los, pacificá-los, trazê-los ao
convívio da sociedade”
87
, ou seja, civiliza-los e completar a grandiosa obra colonizadora.
Mas uma questão muito importante separa Arthur Reis de Capistrano de Abreu e liga o
primeiro a Francisco Adolpho de Varnhagen e à “concepção clássica” de história: a ausência
de imparcialidade. Arthur Reis, como dito acima, não parecia muito preocupado com a
neutralidade, pois sua busca era por uma verdade que atendesse aos valores éticos-
pedagógicos. A história que escreveu, assim como a de Varnhagen, tinha a liberdade de
julgar os atos das personagens históricas à luz dos valores morais de sua contemporaneidade.
Assim, o que o diferencia imensamente de Capistrano é a forma como busca a verdade.
Capistrano baseado no método crítico vai aos documentos tentando se desvencilhar ao
máximo de preconceitos; cuidava para não passar para sua obra assertivas preestabelecidas
84
Apud. RODRIGUES, José Honório. Teoria da História do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1957.
85
ARAÚJO, Ricardo Benzaquén de. Op. cit. p.46.
86
REIS, Arthur Cezar Ferreira. Op. cit. p. 35
87
Ibidem p.209
41
que visassem “a confirmação de valores que esposasse e desejasse defender, ainda que com
finalidades louváveis”
88
. Arthur Reis, na abordagem de várias questões, foi aos documentos
com verdades preestabelecidas na medida em que buscava constantemente justificar os feitos
dos colonizadores, tornando-os modelos para a nova geração; portanto, esses deveriam
aparecer sem máculas e quando porventura, essas fossem impossíveis de cobrir foram por ele
justificadas em nome de um objetivo maior: a colonização/civilização
89
.
Provavelmente essa grande influência do Instituto Histórico e de Varnhagen, presente
na História do Amazonas se deva ao fato de que, apesar de Capistrano ter apresentado uma
forma alternativa de escrever história, a sua inovação não foi percebida imediatamente a
ponto de ser logo tão utilizada assim, como propõem alguns historiadores, ou então, estes
guardaram um tempo de maturação das idéias para que mais tarde inserissem os
pressupostos capistranianos em seus trabalhos. Ao menos é o que comprova o trabalho de
Lúcia Maria Pachoal Guimarães
90
, que afirma serem as cadas de 1910 e 1920 ainda
portadoras de um extremado sentimento de nacionalidade que culminou com o I Congresso
Nacional de História organizado pelo IHGB, em 1914. Segundo a autora, em 1913 o
historiador Manuel de Oliveira Lima, membro do Instituto, pronunciou uma conferência de
grande repercussão, onde defendeu o reforço do sentimento nacional.
“O IHGB, diga-se de passagem, desde o princípio da década
de 1910, vinha promovendo uma rie de atividades, que
se destacavam como manifestação de nacionalismo. (...) O
certo é que, no Instituto, dias depois da citada conferência de
Manuel de Oliveira Lima, Max Fleiuss e Afonso Arinos
encaminharam à Mesa Diretora uma proposta formal”
convocando o Primeiro Congresso Nacional de História”
91
.
Ao analisar o teor de todos os estudos proferidos no Instituto por conta do Congresso,
Lúcia Guimarães asseverou que, na maioria dos trabalhos referentes ao período colonial
88
Cf. GOMES, Ângela de Castro..., p. 99.
89
Como veremos no próximo capítulo, Reis foi em nível local bastante influenciado pelas idéias de Álvaro
Maia, assim para cumprir os anseios de sua comunidade local a obra de Varnhagen era o modelo que mais se
aproximava do tipo de história praticada em sua primeira obra .
90
GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal. “Primeiro Congresso de História Nacional”: breve balanço da
atividade historiográfica no alvorecer do século XX. In: Tempo, Rio de Janeiro, n° 18. pp. 147-170.
91
Ibidem, p.152.
42
apresentados, a “relação das matérias calcava-se na obra de Francisco Adolpho de
Varnhagen”:
“os estudos relativos à América Portuguesa, via de regra,
eram tributários da História Geral do Brasil de Francisco
Adolfo de Varnhagen, confirmando as palavras de Oliveira
Lima, de que a obra de Varnhagen (...) foi e continua a ser a
peça de resistência da nossa refeição histórica, o assado
sólido, gordo, apetitoso na sua simplicidade sem adubos
nem temperos franceses,com um molho leal e nenhum
acompanhamento
92
.
De acordo com a autora, isso comprova “que os estudiosos ainda não haviam
incorporado certos encaminhamentos propostos por Mestre Capistrano”, pois foram raros os
autores que se basearam no autor dos “Capítulos de História Colonial” para preparar suas
apresentações
93
.
Os Capítulos foram publicados em 1907, e em 1914 ainda não haviam ecoado
completamente, possivelmente porque as novidades não tinham sido absorvidas de imediato
e os historiadores tenham optado pelo consagrado História Geral do Brasil. Consagrados,
Varnhagen e sua obra, ainda eram a opção mais segura e as inovações são sempre recebidas
com cautela, como no demonstrativo do I Congresso, pois poucos foram os que se
aventuraram por elas.
Quando Reis escreveu sua História do Amazonas, no final da década de 1920,
certamente, que essas discussões da década passada ainda estavam a ecoar e, com a ausência
de universidades que promovessem cursos específicos de História, o IHGB ainda era a
grande referência. Apesar de Capistrano ter apresentado inovações, a força maior ainda era
da Instituição que representava o mais alto indicativo de conhecimentos de história. E nesse
contexto de transformações do saber histórico no Brasil, Capistrano apresentou uma nova
alternativa; entretanto, boa parte dos seus pares ainda manterá uma atividade historiográfica
“movidos pelo desejo do combate político por uma causa”, como Lisboa que carregou uma
“nítida perspectiva “presentista” e com o sentido da defesa de uma verdade ética”
94
.
92
Ibidem, p.164.
93
Ibidem, p. 170.
94
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores... p. 100.
43
Desse modo, Capistrano foi uma exceção em sua busca da verdade livre de
preconceitos. E no caso de Reis, um outro fator a considerar era seu conservadorismo, e sua
proximidade com Álvaro Maia que em sua “Canção de e Esperança” atribuía ao
historiador o papel de “restabelecer a verdade”, através da qual viria a público os
“benfeitores” e os “detratores” da história do Amazonas. A história praticada com esses
objetivos não teria como estar isenta de preconceitos, visto que buscava iluminar os “heróis”
e mostrar os malfeitos dos “vilões” que não deveriam ser imitados, constituindo-se, assim,
uma verdade ética e moral
95
.
No capítulo seguinte, essas questões deverão ser retomadas para um maior
esclarecimento, quando trataremos da obra História do Amazonas e alguns temas trabalhados
pelo autor que são extremamente importantes para o que por hora sugerimos.
João Ribeiro acusou a narrativa de Varnhagen de ser pouco atrativa e menos ainda
interpretativa, impossibilitando o contato com “os vivos”, a história escrita sofria de falta de
imaginação, se restringindo muitas vezes, aos papeis velhos, sem as interpretações que
tornariam a história mais que “esqueletos”
96
. A nosso ver, Arthur Reis não pode ser, como
Varnhagen, acusado de ser autor de uma narrativa desinteressante. O primeiro ainda estava
em início de Carreira, e ainda iria melhorar bastante ao longo de sua trajetória; mas, ainda
assim, não apresentou na História do Amazonas um trabalho que não se “comunicava com os
vivos”
97
. Sua linguagem não é cansativa e se mostrava fluida e, portanto, não é sua forma
narrativa que o aproxima de Varnhagen.
A forma de escrever julgando o tempo todo, a busca por uma verdade ética, a escrita
do passado como “oportunidade de mostrar aos nacionais a realização do projeto civilizatório
empreendido pelo colonizador”, a construção de uma história onde “o passado é um grande
enigma a ser decifrado e o plano para o passado é mesclado pelo porvir”, a forma de
supervalorizar as intempéries sofridas pelos colonizadores, a fim de garantir maior valor aos
colonizadores e a preferência em elogiar o civilizador em detrimento do nativo, entre outras
que apontaremos, são questões que aproximam em grande medida Arthur Reis do autor de
História Geral do Brasil
98
. Sempre lembrando que as maiorias dessas questões eram
95
MAIA, Álvaro. Canção de Fé e Esperança. In: Poliantéia. p. 154
96
GONTIJO, Rebeca op. cit. p. 175.
97
Ibidem.
98
MOLLO, Helena Miranda. História Geral do Brasil entre o espaço e o tempo. In: COSTA, Wilma Peres &
OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles (org.). De um Império a outro: formação do Brasil, séculos XVIII e
XIX. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 2007. p. 17. Destacamos que essas características de Arthur Reis,
semelhantes á Varnhagen também são demonstradas ao longo dos outros dois capítulos desse trabalho.
44
originárias do Instituto Histórico e através deste se irradiaram, tornando-se de uso freqüente
na escrita de diversos historiadores. Assim, Reis pode ter adotado essas questões quando da
elaboração de seu livro, não diretamente da obra de Varnhagen, como também de outros
autores que eram adeptos deste e divulgaram sua forma de fazer história como os referidos
no texto de Lúcia Guimarães quando analisou os participantes do I Congresso Brasileiro de
História.
José Honório Rodrigues, homenageando Varnhagen, destacou que o grande tema da
História Geral do Brasil é a colonização. Varnhagen se baseou em von Martius na
construção da sua História Geral, mas colhendo determinados aspectos que lhe interessavam.
A idéia de valorizar o indivíduo da terra não foi aproveitada, pois “se dirige ao povo
brasileiro, preferindo o elogio ao europeu e civilizador em detrimento dos elementos negro e
índio. (...) O autor primeiro se refere aos índios e depois aos negros, na História Geral,
atribuindo àqueles o papel de entrave na formação da nação”
99
.
Semelhante propositura também tomou Arthur Reis. Como mencionamos, a
história que escreveu visava “contar” a trajetória do colonizador português na “grande obra”
de colonizar parte da América. Seu objeto principal foi sempre o elemento civilizador, pois
como ele mesmo afirmou, deixou de lado propositadamente “o relativo às populações
ameríndias” para não fugir aos seus objetivos e nem tornar o livro “maçudo”
100
. Nesse ponto
silenciou ainda mais, porque diferente de Varnhagen que dedicou parte específica da obra
para tratar do nativo, Reis preferiu frisar ao leitor que não trabalharia a questão do nativo. A
tônica de sua obra também foi a colonização, o grande feito por meio do qual tudo seria
justificável. Quando o nativo apareceu em sua narrativa foi sempre, como em Varnhagen,
associado a “barbárie” e como um impeditivo à colonização. Para Reis “Tudo aqui
conspirava contra eles [os colonizadores]: clima, meio geográfico, o indígena”
101
.
“Preconceitos políticos, sociais, religiosos se revelam sempre, especialmente no
julgamento das figuras e no tratamento dos inconformismos”, assim José Honório Rodrigues
se refere a Varnhagen, completando que este exerceu “com o maior rigor, seu julgamento
histórico sobre as personalidades”
102
. Por outro lado Nilo Odália ressalta que no seu
processo de definição da Nação, Varnhagen criou “um panteão de heróis”
103
. Arthur Reis
99
MOLLO, Helena. op. Cit. p. 15.
100
REIS, Arthur. Op. cit. 37.
101
Ibidem. p.48.
102
RODRIGUES, José Honório. Op. Cit. p.208.
103
ODÁLIA, Nilo. Varnhagem. São Paulo: Editora Ática, s.d. p. 21.
45
constrói ao longo de sua obra os heróis e os vilões; para aqueles, palavras elogiosas e
justificativas para os seus atos contra os nativos, ao passo que estes receberam o seu
julgamento mais duro e condenatório. Tudo isso sempre redundando na busca por uma
verdade ética que servisse aos princípios do presente e à nova geração de sua terra”. Ou
seja, a história que planejou escrever tinha uma função didática, pois a busca pelo passado
assumiu características de resolução de questões do futuro, sempre numa defesa aberta à
colonização. À semelhança de Varnhagen, que no dizer de José Honório Rodrigues “quem o
ler de fio a pavio, como aconselhava Capistrano de Abreu, verá que são inumeráveis as
passagens de louvor e de compreensão até para com os erros da colonização”
104
.
Mas aprofundaremos muito melhor essas questões quando da análise detida da obra,
principalmente as temáticas que nos propusemos: índios, missionários, colonizadores e
civilização. O que por ora temos apresentado nos auxiliará, na medida em que situamos o
autor em um contexto intelectual, para que facilite o nosso processo de compreensão quanto
aos rumos que tomou ao abordar as temáticas que discutiremos no decorrer deste trabalho.
As formas como construiu suas representações acerca dessas temáticas certamente foram
fruto de sua filiação a um grupo específico de historiadores em nível nacional (Varnhagen/
IHGB e Capistrano) e a nível local seguiu muito das premissas de Álvaro Maia como
veremos no segundo capítulo, atestando que foi em menor grau a influência recebida de
Capistrano. Primeiro pela sua própria posição conservadora e depois por que talvez o cerne
das inovações de Capistrano tenha circulado com mais força no Rio de Janeiro através da
Sociedade que levava seu nome a partir de 1927, ano de sua morte, período em que Reis
havia acabado de chegar a Manaus, recém-formado em Direito, provável época em começou
a pensar a construção de uma história do Amazonas. Não iremos discutir nesse capítulo,
ponto a ponto, as semelhanças entre Reis e Varnhagen sob pena de tornar o trabalho
cansativo, visto que as discussões dos próximos capítulos, que destacarão a obra em si, serão
um demonstrativo do quanto Arthur Reis ainda estava distante da prática historiográfica
proposta por Capistrano de Abreu e o quanto seu modelo foi a obra de Varnhagen, como
ocorreu com os autores dos trabalhos apresentados ao I Congresso de História Nacional tão
devedores à Varnhagen.
104
RODRIGUES, José Honório. Op. Cit. p. 219.
46
1.3 A HISTÓRIA DO AMAZONAS, E SUA RECEPÇÃO ENTRE OS
INTELECTUAIS BRASILEIROS
Aparentemente, a História do Amazonas, por se tratar de uma produção que
privilegiou um dos “Cinco Brasis”, não se incluindo na categoria de história geral ou historia
universal, como preferiam denominar esse tipo de história mais abrangente na época, deveria
somente ser analisada, como uma obra importante no contexto regional. Mas, por se tratar de
obra de um autor muito bem articulado com a historiografia brasileira, preocupado desde o
início em fazer seu trabalho conhecido, e por ter mantido contato com a intelectualidade dos
grandes centros, como Rio de Janeiro e São Paulo, nos preocuparemos em acompanhar de
que modo sua primeira obra foi recebida no período, não na Região Norte, mas sua
repercussão no restante do Brasil. Isso irá corroborar com a idéia apresentada acima, relativa
ao pertencimento de Reis ao grupo de intelectuais que estavam impregnados pelas
concepções correntes nos Institutos Históricos espalhados pelas capitais brasileiras.
Arthur Reis foi filho único de Emília Ferreira da Silva Reis e de Vicente Torres da
Silva Reis. Formado em Direito na Faculdade do Rio de Janeiro, o carioca Vicente Reis
obteve reconhecimento em Manaus, no jornalismo, como Diretor-proprietário do Jornal do
Comércio que adquiriu em 1906. Jornal que serviu à carreira de Arthur Reis, onde trabalhou
como redator e publicou diversos artigos seus, inclusive trechos da História do Amazonas,
quando ainda estava em período de elaboração.
Certamente que a posição ocupada pelo seu pai na sociedade amazonense propiciou a
Arthur Reis um reconhecimento, também, mais rápido do trabalho que se propôs a realizar.
Vicente Reis exerceu as funções de promotor público e delegado de polícia no Rio de
Janeiro, paralelas às funções de escritor e teatrólogo
105
com produção de textos para o teatro
e uma obra de cunho policial publicada em 1904
106
. A convite do governador Antônio
Constantino Nery, estabeleceu-se em Manaus no ano de 1904, sendo inicialmente secretário
da Prefeitura da capital e, posteriormente, deputado estadual. Logo obteve maior visibilidade,
ainda, com a aquisição Jornal do Comércio.
Foi considerado, em um artigo de jornal do Rio de Janeiro, o decano dos escritores
teatrais do Brasil, “uma das criaturas mais populares e mais festejadas do nosso teatro” do
início do século XX. O jornal o recupera como personagem importante no cenário carioca:
105
BRAGA, Robério. Arthur Cezar Ferreira Reis. Manaus: Imprensa Universitária, s.d. p.2
106
REIS, Vicente Torres da Silva Reis. Consultor policial: guia para qualquer funcionário. S.L, s.d.
47
“(...) Vicente Reis era um homem de intensa vivacidade, com
um que de boêmio. ... Todo o Rio de Janeiro o conhece. Era
jornalista de vida intensa. Era teatrólogo de intensa produção
... Todo o Rio de Janeiro o conhece. Era jornalista de vida
intensa. E de intensa produção. ... Para mostrar a vivacidade de
Vicente Reis basta dizer que, aos dezenove anos, já era escritor
de teatro”
107
.
O artigo, em evidente homenagem ao pai de Arthur Reis, prossegue dando conta da
sua transferência para Manaus e do seu destaque como diretor do Jornal:
“Um dia Vicente Reis desaparece do Rio de Janeiro. ... Havia
ido para o Amazonas... Hábil jornalista que conhecia todos os
segredos da profissão fundou em Manaos o Jornal do
Comercio. Êxito completo, êxito maior ainda do que em teatro.
Em pouco tempo o Jornal se tornou o primeiro do Estado. O
primeiro em tudo: em numero de leitores, em prestigio, em
importância política, em recursos financeiros”.
Apesar da informação equivocada, pois o Jornal do Comércio foi fundado em 1904
por Rocha dos Santos, este artigo nos indica o prestigio de Vicente Reis tanto no Rio, como
teatrólogo, como em Manaus na direção do Jornal, que facilitou em grande medida os
contatos posteriores estabelecidos por Arthur Reis no mundo intelectual brasileiro. Sua
função como redator-chefe do Jornal foi um dos espaços que deu visibilidade e credibilidade
aos seus trabalhos, contribuindo para seu crescente prestígio. Através do jornal, levou a
público, como dito acima, trechos da sua pesquisa em andamento, publicadas em primeira
página, onde logo abaixo do título dizia: “Da ‘História do Amazonas’ a ser publicada
brevemente”
108
. Assim, pôde sem dificuldades aguçar a curiosidade dos leitores quanto ao
trabalho que estava produzindo. Nesse período, essa prática de utilizar as páginas dos jornais
para fins de divulgação dos trabalhos de pesquisa era comum pelas regiões brasileiras. Selda
107
Jornal disponível no acervo digital do Centro Cultural dos Povos da Amazônia. www.ccpa.am.gov.br.
108
“O início do povoamento” e “Capitania de São José do Rio Negro”, artigos de Reis publicados no Jornal do
Commercio, respectivamente em 04 de maio e 20 de julho de 1930. Acervo de jornais dos documentos pessoais
de Arthur Reis, disponíveis na Biblioteca Arthur Reis.
48
Vale da Costa afirma que em Natal, “a redação dos jornais era a escola dos intelectuais da
época. Com fraco parque editorial/gráfico, eram os veículos naturais da produção intelectual”
109
. Essa afirmativa também é válida para Manaus e esteve presente no início da carreira de
Arthur Reis.
Arthur Reis estabeleceu bons contatos com intelectuais de Belém, Rio de Janeiro e
São Paulo, entre outros lugares do Brasil, possivelmente consolidados durante sua estada nas
duas primeiras capitais onde cursou Direito. Em Manaus, possuía a visibilidade de filho de
jornalista e, posteriormente, a de redator-chefe do Jornal, ocupando desde cedo lugar de
prestígio na sociedade amazonense, que pelo visto através de suas correspondências pessoais,
se estendeu aos intelectuais com os quais se comunicava: (Affonso de Taunay, Basílio de
Magalhães, Max Fleiuss), no Rio de Janeiro (José Bueno de Oliveira Azevedo Filho), em São
Paulo, (Luis A. Câmara Cascudo de Natal e Braga Ribeiro) e em Belém.
A História do Amazonas foi, em certa medida, o cartão de visitas de Reis. Através
dela pôde mostrar que realmente tinha aptidão para pesquisa. Sua colocação de destaque e
prestigio o auxiliaram na distribuição da obra; mas, o que realmente o impulsionou foi sua
incansável persistência junto aos arquivos, gerando diversos trabalhos. De todas suas funções
profissionais, queremos destacar a de historiador, pois junto a todos os cargos que exerceu, o
gosto pela historia foi constante. De redator-chefe do Jornal do Comércio a Superintendente
do Plano de Valorização Econômica do Amazonas (SPVEA), Diretor do Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia e Governador do Estado do Amazonas (INPA), entre outras
funções importantes, admiravelmente nunca abandonou a pesquisa e a produção
historiográfica.
Alguns indícios mostram o quanto de seriedade Reis empregou no seu trabalho de
pesquisador desde sua primeira obra, que não tinha pretensões de ser obra única, mas de abrir
caminhos para novas publicações. O autor traçava planos para seguir carreira na função.
Antes da publicação, já fazia propaganda da obra ao anunciar trechos no Jornal do Comercio.
E quando publicada em 1931, trazia na folha de rosto o anúncio de mais quatro trabalhos que
estavam em preparo: “O povoamento do Amazonas”, “Diccionário Geographico e Histórico
do Amazonas”, “História da América” e “História do Brasil”. Talvez com um pouco de
109
COSTA, Selda Vale da. Labirintos do saber: Nunes Pereira e as culturas amazônicas. Tese de
Doutorado defendida na Puc de São Paulo em 1997
.
49
exagero, pois eram obras de grande abrangência para que estivessem em preparo ao mesmo
tempo. Algumas delas nunca apareceram, mas certamente foram cogitadas pela ânsia
produtiva que cercava Arthur Reis.
Publicada a obra, Reis cuidou de fazê-la conhecida fora do Estado, mais uma
demonstração de sua certeza na carreira que pretendia seguir e a busca de meios para efetivá-
la. Já em dezembro, no mesmo ano da publicação (1931), recebia carta de Affonso de
Taunay, então diretor do Museu Paulista e membro do Instituto Histórico de São Paulo,
opinando sobre a obra:
“(...) agradeço a remessa do volume de sua História do
Amazonas, enriquecido por tão generosa dedicatória. Li com o
maior interesse e prazer a sua obra em que tanto aprendi.
Parabéns por esta brilhante rie de páginas tão interessantes e
tão bem escritas. Seu livro fica sendo um excelente guia a que
se reportarão os consultantes dos fatos do Amazonas”
110
.
E toma a “liberdade de fazer dois pequenos reparos”; no primeiro, se ressente pela
ausência de referência à passagem da “prodigiosa bandeira de Raposo Tavares, pelas águas
do Rio Mar”; e no segundo, corrige Reis, quando este disse ter sido extinto pela varíola o
corpo de artilharia que fez parte da expedição de Mato Grosso: “Creio que ahi um engano
de informação”, pois os soldados amazonenses, em número reduzido “estiveram na retirada
da Laguna sob a chefia de um verdadeiro herói o tenente (pernambucano) Cesário de
Almeida Nobre de Gusmão”. Taunay fez essa afirmação baseado nos relatos de seu pai em
seus os livros de campanha. Depois em 1932, Taunay, respondendo outra carta, agradeceu a
Reis por suas gentis palavras quanto ao seu trabalho e quanto aos “Annaes do Museu
Paulista” e pediu desculpas pelo atraso na reposta que:
“Pretendia dá-la em publico num artigo no “O Estado de São
Paulo”. Mas é tal o acúmulo de serviço que não consigo por
me em dia. Espero porém, mais dias menos dias, escrever uma
110
Carta de São Paulo em 02 de dezembro de 1931. Todas as correspondências consultadas neste trabalho
fazem parte do Acervo de Correspondências Passivas localizadas na Biblioteca Arthur Reis, a partir de agora
identificado com a abreviatura ACPBAR. As cartas por enquanto estão indisponíveis ao grande público por
estar em processo de catalogação. Neste trabalho a grafia das correspondências foi atualizada, sem, contudo,
alterações na pontuação.
50
pequena critica á sua excelente Historia do Amazonas de que
gostei imenso”
111
.
A correspondência entre ambos demonstra a liberdade que tinham em opinarem um
sobre o trabalho do outro, ao mesmo tempo em que vemos na forma de tratamento certa
formalidade de Taunay em relação a Reis:
“Verifico que o Dr tem carradas de razão do que disse a
respeito do corpo policial do Amazonas na Retirada de Laguna.
Que fiasco da minha parte ter me esquecido de um trecho dos
servidores ilustres do Brasil que eu havia tão pouco ainda
corrigira em provas de impressão.”
Outras correspondências também atestam a circulação do “História do Amazonas” em
outros Estados. Antônio de Sousa Amorim, secretário da Sociedade Luso-Africana do Rio de
Janeiro, em resposta à carta de Reis, informa, ainda, não ter recebido o livro “História do
Amazonas”, “que se dignou a oferecere-nos para a Biblioteca desta colectividade”.
112
Max
Fleuiuss, do IHGB, o informa: Logo que me seja possível, pois tenho estado
sobrecarregado de trabalhos, escreverei sobre o seu livro que deveras me agradou no
“Jornal do Commércio””
113
.
Também do IHGB, recebeu:
“Ao Exmo. Amigo, confrade e colega Sr. Dr. Arthur César
Ferreira Reis cumprimenta atenciosamente o abaixo assinado,
agradecendo a preciosa dádiva da interessantíssima História
do Amazonas, que é mais um atestado dos talentos e nobre
operosidade do seu autor (...)”
114
.
Recebeu também de Epifanio Doria, diretor da Biblioteca Pública de Sergipe, duas
correspondências que demonstram a recepção de seu trabalho. Na primeira, Doria expõe sua
preocupação em reunir na Biblioteca, “documentos que atestem aos coevos e aos posteros a
111
Carta de São Paulo em 23 de maio de 1932. ACPBAR.
112
Carta do Rio de Janeiro em março de 1932. ACPBAR.
113
Carta do Rio de Janeiro em 27 de maio de 1932. ACPBAR.
114
Carta do Rio de Janeiro em 11 de março de 1932. ACPBAR.
51
altura da intelectualidade brasileira”, por isso, “(...) tomo a liberdade, meu ilustre patrício, de
suplicar-lhe a remessa de um exemplar do seu livro HISTÓRIA DO AMAZONAS”
115
.
E na segunda agradece:
“Acusando o recebimento de um exemplar do vosso
substancioso livro HISTÓRIA DO AMAZONAS, livro que é
um testemunho de uma inteligência robusta e de um espírito
talhado a grandes conquistas na carreira das letras”
116
.
Pelo acima exposto, nota-se o sucesso de Reis quanto ao seu primeiro trabalho.
Através de alguns conhecidos de peso no meio intelectual brasileiro, fez acontecer a
circulação da obra no Brasil e, consequentemente, seu nome como historiador começava a ter
respaldo, para quem viria ser reconhecido posteriormente como o grande autor sobre temas
amazônicos. Autor respeitado, que certamente serviu como fonte para outros pesquisadores.
Em 1935, portanto, passados quatro anos da publicação do “Historia do Amazonas”,
encontramos sinais de seu vigor, pois nesse período o autor já havia produzido outros
trabalhos, como o “Manaos e outras villas”; mas sua primeira obra continuava a ecoar pelo
Brasil como leitura necessária. Max Fleiuss, por carta informou a Arthur Reis do interesse de
Basílio de Magalhães em receber um exemplar do livro “cuja leitura lhe parece
indispensável”
117
. Mas, foi do amigo Luis A. Câmara Cascudo que recebeu a mais elogiosa
consideração acerca do livro:
“(...) Estou lendo a HISTÓRIA DO AMAZONAS e gostando
de tudo. Inicialmente você é uma fisionomia, um estilo
delicioso de graça, leveza, brilho e liberdade de frase. Um
estilo serelepe, ágil, pronto, flexível, envolvedor, com todas as
nuanças. Sua HISTÓRIA é verdadeiramente uma História,
mas, antes de tudo, a história da inteligência criadora e nítida
de seu autor”
118
.
E prossegue em tom quase poético e crítico aos escritores nortistas:
115
Carta de Aracaju em 28 de janeiro de 1932. ACPBAR.
116
Carta de Aracaju em 20 de abril de 1932. ACPBAR.
117
Carta do Rio de Janeiro em 16 de setembro de 1935. ACPBAR.
118
Carta de Natal em 4 de outubro de 1935.
52
“Tenho uma leve superstição sobre o verbalismo ahi do
extremo norte quase sempre, a custa de ver tanta água e mirar
tanta folha, surge um jacto luminoso, sonoro e lindo, tão
embriagador como efemero e tão ressonante como vazio. Lê-se
aquillo como se ouve uma música dos clavincelistas,
movimento, força, clareza, deslumbramento. Intrinsecamente,
nada. Você bate outra estrada. Estylo água-forte, Kodak,
gênero vivo. Copyrigth Arthur Reis a quem Deus cubra de
mercês e de livros. Oportunamente escreverei um depoimento
sobre seus livros. Desde anuncio que não me juro suspeito
por dizê-los magníficos”
119
.
Arthur Reis e Câmara Cascudo eram amigos íntimos, pelo que indicam as
correspondências. Em uma delas, Cascudo se refere ao amigo, em tom carinhoso, como “rei
Arthur da távola redonda”. Em reciprocidade, recebeu de Reis considerações apreciáveis
sobre seu trabalho, às que agradeceu:
“Recebi as ‘provas’ e a palavra inicial de apresentação que
você escreveu. Fiquei extremamente grato pela sua generosa
bondade em realçar méritos e trabalhos que só podiam ter
relevo através de um gesto gentil e claro como o seu”
120
.
Arthur Reis escreveu essa apresentação ao trabalho do amigo, atendendo à sua
solicitação feita em carta anterior, que demonstra o quanto de admiração cultivava pelo autor
da História do Amazonas, autorizando-o, inclusive, a representá-lo: “Subentende-se que você
tem bastante procuração para intervir em tudo quanto meu nome figure (...). O melhor e mais
lógico será que você escreva um prefácio sobre meu ensaio... e assine”
121
.
Entretanto, a amizade entre os que viriam ser grandes nomes da intelectualidade
brasileira, não diminui em nada a importância do reconhecimento que Câmara Cascudo
dispensou à História do Amazonas, considerando-a verdadeiramente uma História. E a
despeito dos laços de amizade que uniam os dois autores, fez questão de dizer, como visto na
119
Carta de Natal em 4 de outubro de 1935. ACPBAR.
120
Carta de Natal em 28 de março de 1936. ACPBAR.
121
Carta de Natal em 23 de março de 1936. ACPBAR.
53
transcrição acima, não se jurar suspeito em considerar magníficos os trabalhos produzidos
por Arthur Reis.
Nesse período, Câmara Cascudo, um dos mais assíduos missivistas de Reis
122
, ainda
não era reconhecido no contexto nacional e, ressentido “do silêncio do sul-maravilha acerca
de seu trabalho”, confidencia a Nunes Pereira:
“... No final das contas, eu sou um provinciano, bicho de conta,
morando a 2.400 quilômetros do Rio de Janeiro, escrevendo
sem autorização da Cidade Maravilhosa e suas pompas. É
natural que irrite e se faça um silenciozinho derredor do
ousado catucador de bonzos. É fácil citar quem vive morando
na primeira folha dos jornais!”
123
À
semelhança de Reis, que também buscava reconhecimento, mantendo contato e
enviando seus livros aos intelectuais dos grandes centros, Rio de Janeiro e São Paulo. Apesar
de reclamar da pouca notoriedade em outras capitais, em Natal, Câmara Cascudo, de acordo
com Veríssimo de Mello, “teve existência de príncipe. Andava de polainas, monóculo e
bengala do Egito, guiando um “Ford de bigode”, dos primeiros chegados à cidade. A Vila
Cascudo, no Tirol, era centro permanente de reuniões literárias, jantares festivos, recitais de
músicos famosos, que transitavam em Natal...”
124
. Nunes Pereira registrou que “Cascudo era
chamado de Dom Luiz Câmara Cascudo, para lhe agregar ao nome sonoro uma liga de
nobreza... Quando, no remoto ano de 1924, chegamos a Natal, estava ele à frente de um
jornal próprio (A Imprensa) de existência acidentada, em cujas colunas, moço e rebelde
como um deus primitivo, desdobrava os mais variados espetáculos da sua inteligência”
125
. E
sua influência, certamente, contribuiu para que tornasse Arthur Reis conhecido entre os
intelectuais do seu círculo e indicasse seu nome, com aprovação, a pertencer ao Instituto
Histórico de Natal como sócio-correspondente.
Certamente que os trabalhos de Reis, produzidos pouco depois da sua primeira obra,
foram complementando o reconhecimento de sua recente iniciação como historiador, espaço
que havia sido aberto com o envio da História do Amazonas aos amigos intelectuais pelo
122
Essa parece ter sido uma de suas características, pois Selda Costa o intitula de missivista compulsivo pelas
longas cartas que escrevia a Nunes Pereira.
123
Apud. COSTA, Selda Vale da. Labirintos do saber... p.76
124
Ibidem, p. 72.
125
Ibidem. p. 72.
54
Brasil afora, e até aos que se encontravam no exterior, como foi o caso de Fidelino de
Figueiredo, também escritor, que recebeu o livro em Portugal:
“(...) tive o gosto de receber a excelente obra “História do
Amazonas”, com que V. Exa. quis ter a bondade de me
obsequiar. Agradeço muito a V. Exa. a sua gentileza e
cumprimento-o pela sua obra, escrupulosamente documentada,
muito bem ordenada e dominada por um elevado espírito
crítico, com o que honra a erudição brasileira”
126
.
Não temos números relativos à quantidade de exemplares que circularam pelo Brasil,
mas vimos que a obra teve uma boa aceitação entre os leitores acima citados, que no mínimo
demonstra o quanto Reis estava determinado a prosseguir seu caminho na pesquisa
historiográfica. Seus trabalhos não parecem ter começado ao acaso, ou como capricho de
filho do reconhecido Vicente Reis. Pelos indícios acima, é perceptível que Arthur se
preocupou seriamente com todos os detalhes, da produção à distribuição dos exemplares,
visando uma circulação abrangente e não restrita a um círculo local de leitores; afinal, como
disse Câmara Cascudo, se referindo à publicação de um trabalho, Crônicas do Norte, junto
com Reis, “... nenhum de nós deduz a possibilidade de ganhar dinheiro com livros de
história”
127
.
De B. Silva do Valle, proprietário da Livraria Universal, localizada em São Paulo,
Reis recebeu um pedido de 20 exemplares do livro, estabelecendo o compromisso de se
interessar pela sua venda na região Sudeste, demonstrativo da repercussão imediata da obra,
pois o pedido foi feito em 6 de junho de 1932, portanto pouquíssimo tempo depois de sua
publicação aqui em Manaus
128
.
Desse modo, fica evidente que o primeiro trabalho de Arthur Reis, que abordava em
forma de síntese uma região específica do Brasil, provavelmente serviu como símbolo
representativo da história amazonense. Até aquele momento, não havia ainda trabalhos, como
ele mesmo afirmou, com maior profundidade sobre o assunto; logo, sua obra se tornaria
referência aos ávidos por conhecer mais sobre uma região ainda misteriosa e com muito por
126
Carta de Lisboa em 5 de fevereiro de 1932. ACPBAR.
127
Carta de Natal em 23 de março de 1936. ACPBAR.
128
Carta de São Paulo em 6 de junho de 1932. ACPBAR.
55
ser descoberto. Afinal, a Amazônia despertava grande interesse, nos habitantes do Sul, visto
nessa carta de Brito Pereira recebida por Reis:
“Hoje será a sua “História do Amazonas” entregue ao “Círculo
de Estudos”. Na mesma ocasião entregarei os outros livros que
trouxe. Garanto-lhe que vai ser uma sessão “cheia”. As cousas
da Amazônia são sempre muito bem recebidas por aqui. O
sulista em nossas cousas qualquer nota de mistério, que o
atrai”
129
.
A História do Amazonas foi o primeiro de muitos outros livros que tornaram Arthur
Reis grande expoente nacional, o amazonólogo respeitado, que construiu representações
sobre a Amazônia, servindo como base para diversos estudos, pois a referência às suas obras
estão em muitos trabalhos de outros autores e ao longo de sua carreira não lhe faltaram
reconhecimentos quanto ao seu trabalho. Foi, provavelmente, o destaque recebido como
historiador, um dos fatores que o encaminharam como autoridade competente para ocupar os
diversos cargos no cenário político local e nacional. Como o cargo de Diretor da Instrução
Pública que já ocupou, em Manaus, em 1935.
E interessado que estava, desde o início, em fazer carreira como historiador, distribuiu
sua obra para o conhecimento e reconhecimento que esperava receber pelo Brasil e até fora
do âmbito nacional, como foi o caso de correspondências recebidas de Buenos Aires da lavra
do historiador Enrique de Gandia onde, este elogia:
Su “História do Amazonas” es um libro fundamental. Está
escrito con gran erudicion y un estylo claro y elegante. Esta
sola obra basta para hacer-lo reconocer a usted como a uno de
los más notables historiadores americanos. Su estudio sobre
“Manaos e outras villas” es, también, un libro de muy grande
utilidad. No se imagina con quanto provecho he leído sus obras
admirando sus conocimientos y alegrandome de conocer a su
autor
130
.
129
Carta de Curitiba em 15 de fevereiro de 1934. ACPBAR.
130
Carta 24 de outubro de 1936. ACPBAR.
56
Arthur Reis enviou sua obra, também, ao amigo Arthur Ramos, que morava em
Lisboa há dois anos e dirigia a filial da Livraria Aillaud & Lello com matriz no Porto,
provavelmente com intenções de irradiar seu trabalho em Lisboa através do auxílio do amigo
diretor da Livraria. Arthur Ramos, em carta de 1933, agradeceu o envio da História do
Amazonas e parabenizou Arthur Reis “por tão bela obra, única no gênero e que agora nos faz
esperar que continue a produzir mais para orgulho dos que estremecem o nosso muito amado
Amazonas”.
131
Em Jaboticabal, seu amigo, o advogado Pires dos Santos também recebeu o livro, ao
qual não poupou elogios:
“Só agora, depois da ligeira carta que te fiz acusando o
recebimento do teu precioso livro “Historia do Amazonas”,
é-me dado escrever-te com um pouco mais de vagar.
Conforme te fiz ver em minha carta referida, encontrei o teu
trabalho que, de passagem se diga, é um primor, quanto á
forma, quanto ao método, (...) Com a leitura da Historia do
Amazonas, estou agora perfeitamente ao par de fatos e coisas
da nossa maravilhosa terra. Já não os ignoro mais. É preciso,
porém, que continues a escrever sobre a Amazônia. E para
tanto estás habilitado; não te faltam conhecimentos. Pelo
menos é o que acabo de verificar ante a erudição demonstrada
no teu livro”
.
É importante frisar que não encontramos em seu acervo de correspondências,
referentes às cadas de 1920 e 1930, nenhuma correspondência recebida de Gilberto Freyre
e de Sérgio Buarque de Holanda, o que de certo modo atesta que não pertenciam nesse
momento ao mesmo grupo intelectual.
De um funcionário do Tribunal Eleitoral do Rio de Janeiro e autor de artigos para o
“Correio da Manhã”, Arthur Reis recebeu em 1934, a notícia da publicação do Casa Grande
& Senzala, que, como podemos ver, já era recebido como trabalho inovador:
“Acaba de sair o livro do Gilberto Freyre: Casa Grande e
Senzala. Estou lendo. Parece bem interessante. É um estudo da
131
Carta de Lisboa em 12 de fevereiro de 1936. ACPBAR.
57
vida e da formação social do Brasil colonial. Feito a luz dos
conhecimentos modernos sobre historia e ciências auxiliares.
Para o nosso meio, coisa bem original. Além do mais, escreve
muito bem. Peço que me mande a sua opinião. Como disse,
ainda estou lendo, de sorte que não posso lhe dar uma
impressão mais segura”
132
.
Não temos como precisar se essa foi a primeira notícia que Reis teve da publicação de
Freyre, e também não será possível verificar nesse trabalho, se após tomar ciência desse livro
“moderno” e “original”, houve alguma modificação na escrita da história de Reis
influenciado pelas novidades presentes na obra de Freyre. Pela importância imediata de sua
obra entre os intelectuais que se correspondiam com Reis, é possível e provável que sim. Em
1936, Arthur Reis propôs, em carta a Câmara Cascudo, a produção de uma obra sob o título
“Crônicas do Norte”, recebendo a seguinte resposta:
“Idéia magnífica. Ótima. Tenta como sorvete em dia de calor.
(...) Várias dificuldades estão de permeio. Parece que a melhor
é pensar em um camarada para cada Estado, mas aceitando
incluir aspectos sociais e econômicos em todos os livros, para
dar uma feição comum e própria”
133
.
Câmara Cascudo prossegue sugerindo nomes para cada Estado. Em Pernambuco,
sugere o nome de Barbosa Lima Sobrinho:
“(...) Gilberto Freyre, não se discute, construiria a melhor
história social e econômica, mas dentro dos dois trilhos onde
corre atualmente sua inteligência formosíssima. Explicaria
tudo pelo açúcar e fome-de-terras. Mas não devemos o pôr de
lado. Pensemos”
134
.
Suas afirmações, apesar de assumirem, de um modo sutil e irônico, um tom de
críticas, não deixam de ressaltar que Freyre faria a melhor história social e econômica,
132
Carta do Rio de Janeiro em 26 de janeiro de 1934. O autor assina só o sobrenome: “Pinto”. ACPBAR.
133
Carta de Natal em 23 de março de 1936. ACPBAR.
134
Carta de Natal em 23 de março de 1936. ACPBAR.
58
reconhecendo a força de suas interpretações, sendo, pois possível, que após o
reconhecimento do trabalho de Freyre, Reis possa ter de algum modo buscado aproximação
para seus próximos trabalhos. Mas, esse será um tema para futuras pesquisas.
59
1.4 ARTHUR REIS E OS INSTITUTOS
Os Institutos Históricos fundados em vários Estados brasileiros, em geral seguiram o
mesmo propósito do pioneiro Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), com
fundação em 1838. Foi esse o caso do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas
(IGHA), inaugurado em março de 1917 com seus objetivos voltados ao: “estudo, discussão,
investigação, desenvolvimento e vulgarização da Geografia, da História e das ciências a elas
conexas... reunindo, concatenando, publicando e arquivando documentos e trabalhos
concernentes ao Brasil e especialmente ao Estado do Amazonas”
135
. Envolvidos por esses
objetivos, certamente que os intelectuais associados ao IGHA buscavam inserção numa
associação que respaldasse seus trabalhos, que os fizessem ser reconhecidos como
pertencentes a um grupo seleto. Portanto, o Instituto era mais que “relicário das honrosas
tradições amazonenses”
136
; era reduto de pessoas que recebiam o “status” de a ele pertencer,
validando as produções científicas e culturais dos seus sócios. O diploma de sócio do
Instituto era quase como o passaporte que possibilitava o livre transitar de seus membros em
outros círculos intelectuais fora do Estado. Isto é, pertencer a um, ou mais dos Institutos
existentes no país facilitava as relações com a intelectualidade dos demais centros destinados
à produção científica e cultural, ao menos é o que demonstra Mario França (Rio de Janeiro),
em carta dirigida a Arthur Reis, datada de 22 de dezembro de 1933:
“Consegui mais uma boa quantidade de livros sobre historia e
geografia dos estados em que passava, visitando ao mesmo
tempo seus respectivos Institutos Históricos. Fazendo sempre
valer a qualidade de sócio dos do Amazonas e Pará, era por
toda a gente recebido com a maior gentileza e simpatia. (grifo
meu) Estive dest’arte nos do Maranhão, onde me recebeu o Dr.
Antonio Lopes, no do Ceará, no do Reio Grande do Norte,
acompanhado do Luiz da Câmara Cascudo, no da Baía ( mas
que colosso que realmente é, de fato o primeiro do Brasil) no
de Alagoas, com Craveiro da Costa e no de Pernambuco com
Mario Melo. O da Paraíba estava fechado e não houve meio de
encontrar o Secretario.
135
COSTA, Selda Vale da. Labirintos do saber... p.188.
136
Ibidem, p. 187
60
Também obtive com as autoridades locais, que sempre
visitava, mapas murais de quase todos os estados.
Quanto a livros devo lhe dizer que cheguei ao Rio com 5
caixotes e, um vasto embrulho deles”.
E foi desse respaldo oferecido pelo IGHA, que Arthur Reis legitimamente se
beneficiou, facilitando o seu reconhecimento nos grandes centros Rio-São Paulo. A primeira
edição da sua Historia do Amazonas traz na capa a comprovação da qualidade do livro, pois
foi produzido por “Arthur Cezar Ferreira Reis, do Instituto Histórico e Geográfico do
Amazonas”, e esse era um dos selos de certificação de competência do autor.
A ata de 21 de março de 1926, constante nos arquivos do IGHA, registra a reunião
ordinária onde foram propostos e aprovados como sócios efetivos os nomes “dos Senhores
Doutores Manuel Pais Barreto, Marcílio Dias, Arthur Reis, Paulo Sarmento, Roberval
Pompílio Nogueira Castro”
137
. Portanto, Reis foi eleito aos vinte anos de idade, ainda em fase
de conclusão do seu curso de Direito, num período em que acabava de ser instituído o novo
corpo administrativo do Instituto, para os anos de 1926 a 1929, tendo como presidente
reeleito Bernardo Ramos e como primeiro secretário Agnello Bittencourt. Nessa reunião de
21 de março, o “senhor presidente marcou às oito horas da noite de vinte e cinco do corrente
para ter lugar a sessão plenária de posse dos novos eleitos”
138
, propositalmente no dia em
que o Instituto completaria nove anos de existência, tornando ainda mais memorável a
solenidade de posse.
O próximo passo de Reis no Instituto foi ocupar o cargo administrativo de primeiro
secretário em 1931, coincidência ou não, no ano de publicação da História do Amazonas. A
eleição ocorreu na sessão extraordinária de Assembléia Geral, em 22 de março, convocada
especificamente para fins de eleição de membros a cargos vagos. O professor Agnello
Bittencourt, até então primeiro secretário, pediu através de oficio a renúncia do cargo,
“alegando que os seus múltiplos afazeres não permitiam mais exercê-lo”, obtendo o aceite da
Assembléia. Assim:
“O Senhor Presidente (Alfredo da Matta) mostrou a
necessidade de ser o cargo de Secretário preenchido por
sócio que aliasse zelo e dedicação a conhecimentos dos
137
Livro de Atas de 1926 do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, localizadas neste mesmo Instituto.
138
Ibidem.
61
múltiplos ramos da atividade do Instituto. Autorizado pela
Assembléia a indicar um nome, indicou o do sócio Dr. Arthur
Cezar Ferreira Reis, que foi aclamado por unanimidade”
139
.
Estando bem colocado no seu Instituto, e com um livro publicado, Arthur Reis seguiu
os próximos passos para ter aceitação e livre circulação entre os intelectuais de outros
Institutos de pesquisa do país, muito auxiliado pelas correspondências trocadas com grandes
nomes desses Institutos, que o subsidiavam na indicação do seu nome, numa relação de troca.
Arthur Reis também fazia suas indicações para eleição de sócios correspondentes do IGHA.
Como demonstra Câmara Cascudo, em carta de 1936, onde reclama por Arthur Reis não ter
recebido sua carta anterior, devido os maus serviços do “correio ladrão”, e diz: “Mandei
todos os meus agradecimentos pela proposta ao Instituto e solicitei de você uns dois livros
seus e me permiti apresenta-lo no nosso Instituto potiguar na próxima sessão”
140
. A
reciprocidade dos amigos intelectuais lhes rendeu frutos, confirmado por outra carta de
Cascudo em 1937:
Recebi o numero da revista do Instituto Histórico do
Amazonas assim como um oficio assinado por V. informando
a aprovação do parecer que me aceita por sócio
correspondente. Creio que V. já deve ter em mão comunicação
idêntica a respeito de seu ingresso no Instituto daqui, desde 12
ou 13 de março p.p.(...) Muita alegria tive em poder incluí-lo
no nosso Instituto e não foi menor honra saber-mo sócio do
“seu” Instituto
141
.
Nessa mesma carta, Câmara Cascudo elogia Arthur Reis por suas publicações nas
Revistas do IHGB, de onde já era membro desde dezembro de 1936, quando recebeu de Max
Fleuss, Secretário, o comunicado: “foi por unanimidade de votos aprovado o parecer da
Comissão de Admissão de Sócios favorável á entrada de V. Exa para a classe dos membros
correspondentes”
142
.
139
Ata da reunião realizada em 22 de março de 1931. In: Acervo do IGHA.
140
Carta de Natal em 28 de abril de 1937. ACPBAR.
141
Carta de Natal em 28 de abril de 1937. ACPBAR.
142
Carta de Natal em 28 de abril de 1937. ACPBAR.
62
A documentação não nos permite afirmar com precisão se a aprovação de Reis para o
IHGB, foi realizada por indicação de Max Fleiuss, mas certamente teve sua influência e a de
Afonso de Taunay que tinham pelo autor amazonense uma alta estima. Trocou com Taunay
diversas correspondências. Nas recebidas por Reis, Taunay assinava como “afetuoso e
grande amigo”, e de Fleiuss recebia “um afetuoso abraço”.
Foi a partir desse círculo de trocas que Reis passou também a fazer parte do Instituto
de Estudos Genealógicos de São Paulo por indicação do Secretário JoBueno de Oliveira
Azevedo Filho, que diz em carta de 1935:
“Consulto o prezado amigo se poderei propor-lhe o nome para
membro correspondente do Instituto de Estudos
Genealógicos... Tal distinção é puramente honorífica, não
acarretando nenhuma obrigação. E nada mais é que uma
homenagem que o Instituto” presta a quem dela é merecedor,
residindo fora da cidade de São Paulo...”
143
Convite aceito, Reis foi eleito como membro correspondente em novembro de 1935.
Mas descuidado em retribuir o amigo, foi por ele cobrado em abril de 1936:
“Como foi recebido meu trabalho folclórico? Ele seria
suficiente para me aproximar (sob sua égide) do Instituto
Histórico do Amazonas? Peço sua condescendência para um
escritor tão modesto quão bem intencionado...”
144
.
José Bueno pede a interferência do amigo para fazer parte do IGHA, nessa saudável
barganha intelectual, ao mesmo tempo em que reafirma a confiança que tem em Reis quando
este indica alguns nomes para fazer parte do Instituto de Estudos Genealógicos: “A sua
proposta do nome do Jorge HURLEY já foi aceita e ele proclamado. (...) Subscrevi a
proposta com muito gosto. Repito que todos os seus candidatos, o são meus também”
145
.
143
Carta de São Paulo em 29 de setembro de 1935. ACPBAR.
144
Carta de São Paulo em 27 de abril de 1936. ACPBAR.
145
Carta de São Paulo em 27 de abril de 1936. ACPBAR.
63
As correspondências recebidas por Arthur demonstram o intercambio comum entre os
intelectuais da época, pois seus vínculos de amizade intermediavam a aceitação de novos
sócios indicados pelos laços de respeito e admiração mútua pelos trabalhos realizados. E era
uma prática comum a troca de notícias sobre a atuação dos institutos, pois cada um queria
fazer conhecida a atuação do seu Instituto e, ainda compartilhar a falta de uma atuação mais
enérgica. A sensação é de que não havia uma disputa para comprovar qual instituto produzia
mais, mas sim uma preocupação geral com o desempenho de cada um, dando a impressão de
que os institutos em conjunto formavam um todo; por isso com a decadência de um deles, o
conjunto, isto é, a produção científica e cultural do país seria desfalcada.
Em viagem a Belém, Ambrosio Peres escreveu a Arthur Reis, lamentando a situação
do Instituto Paraense:
“O Instituto Histórico e Geográfico do Pará, funciona n’uma
das dependências da Prefeitura Municipal. É muito acanhado.
A biblioteca é inferior á nossa, tanto em numero de exemplares
como na organização. Possui elevado número de sócios. Mas
de nada valem. não aparecem. Está análogo ao do
Amazonas, infelizmente”
146
.
Enfim, os Institutos eram os santuários de preservação e criação científicas, e os que
deles fizeram parte, de uma forma ou de outra, produziram uma historiografia atreladas aos
seus princípios teórico-metodológicos.
146
Carta de Belém em 23 de janeiro de 1933. ACPBAR.
64
2.1 POR UMA HISTÓRIA CÍVICA
(...)
As ossadas são necessárias às nações. Não morre o povo
que se nutre dos exemplos grandiosos dos mortos.
147
Álvaro Maia
A História do Amazonas, como visto no capítulo anterior, traz em sua forma e
métodos as influências do fazer história praticado pelos membros do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, mas também traz em seu ideal as noções de civismo proclamadas por
Álvaro Maia; práticas não excludentes, muito pelo contrário, o modelo recebido dos
Institutos Históricos e as proposições de Álvaro Maia foram complementares entre si na
construção da primeira obra de Arthur Reis.
Após ter concluído seu curso de Direito no Rio de Janeiro, Álvaro Maia retornou a
Manaus, onde “iniciou suas atividades intelectuais, colaborando com os periódicos Jornal do
Comércio e A Imprensa”
148
, o primeiro de propriedade de Vicente Reis. Seu contato com a
família Reis teve início, quando Arthur Reis vivia seu período de adolescência e Álvaro Maia
já começava a trilhar uma carreira que lhe renderia a admiração da mocidade amazonense.
Álvaro Maia representou uma liderança política advinda de grupos dominantes locais,
como era comum nos estados emergentes nas cadas de 1930 e 1940
149
. De acordo com
Eloína Monteiro seus primeiros empregos públicos atestam sua proximidade com os grupos
dominantes denominados de “classes conservadoras amazonenses”.
Sua atuação em cargos públicos de relevância, sua participação na fundação da
Academia Amazonense de Letras em 1918 e sua intensa produtividade como escritor, tendo
diversos artigos publicados em jornais e revistas, certamente chamou a atenção do jovem
Arthur Reis. A proximidade de ambos pode ser percebida quando da participação de Reis
como Primeiro Secretário da Comissão Comemorativa do Centenário da Adesão do
Amazonas à Independência do Brasil, solenidade realizada a 09 de novembro de 1923.
Arthur Reis trabalhou ativamente nessa comissão, enviando ofícios às instituições da época
para pedir auxílio financeiro ao evento
150
. O Teatro Amazonas foi palco desse momento
147
MAIA, Álvaro. Canção de Fé e Esperança. In: Poliantéia. p. 154.
148
SANTOS, Eloína Monteiro dos. Álvaro Maia: uma liderança política cabocla. Tese de doutorado, p. 30.
149
Ibidem, p.31.
150
Cartas recebidas por Arthur Reis na década de 1920, localizadas na Biblioteca Arthur Reis.
65
cívico, onde Álvaro Maia apresentou sua famosa Canção de e Esperança, dirigida à
mocidade amazonense.
“Era uma convocação com clarinadas de extraordinária
sonoridade; uma convocação à juventude para os prélios
cívicos e uma advertência vigorosa e decisiva à situação
política dominante. A “Canção de e Esperança” tornou-se
uma espécie de Bíblia para as gerações do Amazonas...”
151
.
Mario Ypiranga Monteiro em homenagem póstuma também deu a medida da
importância do famoso texto de Álvaro Maia:
“Havia muito, já o admirava, através de seus belos poemas,
discursos e outras peças literárias, como aquela formosa
“Canção de Fé e Esperança”, que, com a pureza do seu
significado, a beleza de suas imagens e a musicalidade de
suas frases, andava a empolgar o pensamento sócio-lítero-
cívico da época, entre os da velha e os da nova geração”
152
.
Desse modo, Álvaro Maia se constituía modelo para os aspirantes a intelectuais da
pouco populosa Manaus, pelo seu ascendente papel junto à intelectualidade e junto às
“classes conservadoras amazonenses”. Como lembra Eloína Monteiro, “na ótica de Djalma
Batista, intelectual amazonense, seu contemporâneo, ele se tornou uma espécie de
“evangelizador das gerações moças”
153
.
No mesmo ano em que se comemorou a adesão amazonense à Independência do
Brasil, Arthur Reis seguiu para Belém para iniciar seus estudos em Direito, mas certamente
levou consigo o exemplo de sucesso alcançado por seu, então, amigo Álvaro Maia e suas
proposições proclamadas no discurso “Canção de e Esperança”. Se Álvaro Maia era o
“evangelizador das gerações moças”, conseguiu plantar no jovem Reis algo de suas propostas
intelectuais, dada a proximidade de ambos, visto que Reis também foi redator da Revista
151
MONTEIRO, Mario Ypiranga. In: Poliantéia... p. 40.
152
Ibidem, p. 85.
153
SANTOS, Eloína. Op. cit. p. 31.
66
Amazonense de 1923, da qual Álvaro Maia era Diretor. Nessa revista, Arthur Reis dava
mostras da sua inclinação para a história com a publicação de pequenos artigos.
154
Arthur Reis deixou Manaus, levando para Belém e Rio de Janeiro a semente plantada
pelos intelectuais amazonenses representados por Álvaro Maia e por outros membros do
IGHA. Essa Instituição, desde seu início, indicava o papel da história como detentora da
“capacidade de exercer remodelações e mudanças no modo de conceber a realidade presente”
155
, assim vista por seu fundador Bernardo Ramos; expectativa expressa em seu discurso de
inauguração do Instituto: “(...) não esqueçamos as sábias doutrinas de Cícero, que define: a
história é a testemunha do tempo, a luz da verdade, a escola da vida. ’”
156
E no seu contato,
especialmente no Rio, Arthur Reis pôde acompanhar de perto as produções dos intelectuais
ligados ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Ao retornar a Manaus, apesar da pouca
idade, já tinha convivido em meios intelectuais importantes para o amadurecimento de
algumas idéias que iriam despontar na sua História do Amazonas.
A História do Amazonas foi um misto dessas suas experiências. Como vimos no
capítulo anterior, esteve ligado ao IHGB, produzindo uma historiografia um pouco distante
da prática historiográfica de Sergio Buarque e Gilberto Freyre. A partir de agora a nossa
proposta é acompanhar as influências recebidas por Arthur Reis do seu, então companheiro,
Álvaro Maia.
Quando retornou do Rio de Janeiro em 1927, devidamente qualificado no curso de
Direito, Arthur Reis encontrou Álvaro Maia lecionando no Ginásio Amazonense D. Pedro
II, nas cátedras de Instrução Moral e vica e Português, cargo que ocupou através de
aprovação em concurso de 1926. Através das cartas recebidas por Arthur Reis, resgatamos a
proximidade deste com Álvaro Maia nos preparativos da comemoração da adesão do
Amazonas à Independência do Brasil ocorrida em 1923. Carta específica recebida do Rio de
Janeiro em 1933, ano em que Álvaro Maia estava se preparando para retornar a Manaus,
dá mostras da admiração que Reis nutria pelo autor da famosa Canção de Fé e Esperança:
154
REIS, Arthur Cezar Ferreira.A Aventura de Orellana”. In: Revista Amazonense. Manaus, ano I, n° I, 1923,
pp 49-51.
155
PAIVA, Marco Aurélio de. A Conquista Intelectual do Amazonas. Dissertação de Mestrado. São Paulo,
2000.
156
Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, Manaus, Imprensa Pública do Amazonas, ano I, v.
I, 1917, p.64.
67
“O Álvaro, o homem que você tanto reclamava, aí vai,
atendendo ao chamado dos seus amigos e conterrâneos. Que
a sua jornada frutifique em bênçãos sobre sua querida terra.
Tenho a impressão que, agora, vai começar a revolução. Os
responsáveis por ela, compreenderam que a enterravam e
pedem o auxilio dos que valem alguma coisa nos seus
Estados. O Álvaro vai trabalhar por ela, que nunca o deveria
ter esquecido. Que tudo seja para a felicidade do
Amazonas”.
157
E o mesmo amigo de Arthur Reis, em carta de 1935, parabenizou Reis pela nomeação
para o cargo de Diretor da Instrução Pública no governo de Álvaro Maia acrescentando:
“Tenho a impressão de que vocês venceram, sim a partida. E
lindamente. Resta, agora, que todos se agrupem em torno do
nosso querido governador e o ajudem a levar a cruz, que lhe
puseram sobre os ombros.”
Essa proximidade com Álvaro Maia está também refletida na construção da sua
primeira obra. A Canção de Fé e Esperança traz duas noções que estão presentes na
representação do passado construído por Reis. Nosso autor utilizou a história como
instrumento para proclamar os brados de civismo de Álvaro Maia, defendendo ardentemente
a pátria. Seu texto objetivou construir os heróis e os vilões da história, os primeiros devendo
ser imitados, em seu aspecto moral, pelas novas gerações, e os segundos foram apresentados
como figuras que deveriam ser conhecidas nas profundezas de sua falta de caráter para
jamais serem copiadas. Portanto, a representação do passado construída por Reis está
intimamente ligada com a função presente e futura da história no interior de um projeto
educativo apresentado por Álvaro Maia. Entretanto, Reis, como historiador, adaptou algumas
propostas de Álvaro Maia ao âmbito da história, seguindo em linhas gerais, alguns de seus
passos.
157
Carta recebida de Abelardo Santos em 31 de março de 1933.
68
Álvaro Maia, ancorado em Olavo Bilac, acreditava que “a ausência de civismo
produzia a indiferença e o marasmo”
158
. Assim como outros intelectuais da década de 1930,
via na educação a chave para a superação de dificuldades contemporâneas:
“Aos moços amazonenses homens em botão e mulheres
em manhã cabe arquitetar a obra ressurgente, em qualquer
profissão que tentarem, mas principalmente no trabalho de
ensinar crianças, de formar almas e modelar caracteres.”
159
A cadeira de Educação Moral e Cívica adotada nos cursos secundários recebeu seus
aplausos porque “com a República, as gerações novas, cedendo ao pessimismo e à descrença
nos erros republicanos, haviam esquecido a noção de pátria”. Desse modo, deu “ênfase ao
civismo destinado a fortalecer a “unidade moral da pátria””.
160
A Canção de e Esperança, destinada a comemorar o centenário de adesão do
Amazonas à Independência do Brasil, demonstra a reverência com a qual seu autor se
reportou aos homens do passado:
“(...) ave aos conquistadores, aos exploradores, aos
bandeirantes, que percorreram a terra pela primeira vez,
recebendo, pobres abelhas, o prêmio do aniquilamento pelo
gozo fluido; ave as tribos guerreiras, que em seu heroísmo
inconsciente, defenderam as balizas do solo, tingindo-o de
sangue num último adeus sangrento aos vencedores”
161
.
Europeus e indígenas foram considerados igualmente dignos de louvores desde que
seus atos estivessem direcionados em prol de uma causa maior. Os segundos ainda que
considerados selvagens, nos momentos apropriados foram tidos em alta consideração, como
foi o caso de Ajuricaba, declarado herói por Álvaro Maia e seguido por Arthur Reis, autor de
um grande esforço para mostrar as gerações moças do Amazonas o caráter íntegro do
indígena que não poderia ser considerado “traidor”, pois ao contrário do que alguns disseram
não travava relacionamento com os holandeses em oposição aos portugueses. Antes foi
158
SANTOS, Eloína Monteiro. Op. cit. p.52.
159
MAIA, Álvaro. Canção de Fé e Esperança. Poliantéia. p. 162.
160
SANTOS, Eloína Monteiro. Op. cit. p. 50.
161
MAIA, Álvaro. Op. Cit. p. 162.
69
injustiçado e morreu como herói. No próximo capítulo, retomaremos detalhadamente a
abordagem de Reis em relação a Ajuricaba.
Álvaro Maia buscava um Amazonas onde a justiça fosse feita, um Amazonas que
colheria seus méritos através da história:
“Nós cremos nessa época de paz e de justiça, sem ser
obsessões vesánas de crimes, ó Amazonas, novo berço das
Amazonas! (…)Há de chegar o dia em que, sob o efeito da
sinceridade, as calúnias se esgarçarão, confundindo os seus
inventores delinqüentes. (...) os historiadores do futuro,
consultando fontes seguras, espanarão a poeira, a imundície,
o monturo, e irão restabelecer a verdade, embora revolvam
os arquivos mais complicados e secretos. Todos os
“monstros feios, cujo peso afrontoso a terra oprime”, todos
os “espíritos obscenos”, que ferem, em vez dos corações, os
calcanhares, todos esses anões “vastos e estéreis, ocos e
sonoros, unicamente grandes no tamanho”, - serão obrigados
a sair de fojos e antros, e aparecer em sua nudez, para serem
inoculados e desmedulados, como os coelhos nas salas dos
laboratórios... (…) Surgirão, frente a frente, os teus
benfeitores e os teus detratores, ó Amazonas...
162
.
Essa foi a missão de Arthur Reis: consultar “fontes seguras”, “espanar a poeira” e
“restabelecer a verdade”, fazendo vir à luz através da história os benfeitores” e os
“detratores” do Amazonas. A História do Amazonas tinha, entre outros objetivos, o de servir
como modelo educativo à nova geração amazonense:
“À geração nova de minha terra, para educar-se no exemplo
dos homens que passaram e ter forças a fim de batalhar pelo
Amazonas, que começa a redimir-se ao civismo de Álvaro
Maia”
163
.
162
MAIA, Álvaro. Op. cit grifo meu.
163
REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas. 2° ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998. p. 13.
70
Por isso, seu autor se preocupou em definir com a maior precisão possível o caráter
dos personagens históricos. Os heróis, que deveriam ser copiados pelo exemplo de força e
dedicação, e os vilões que deveriam ser conhecidos, mas não imitados. Portanto, Reis
assinalou a necessidade de dar um maior enfoque aos que denominou de figuras
impressionantes como Samuel, Fritz, Lobo D’almada, Tenreiro Aranha e Ajuricaba, pois não
poderiam ficar escondidos em trechos de capítulos, merecedores que eram, na visão do autor,
de um destaque especial. Esses foram personagens que ganharam maior visibilidade;
entretanto, todos que trabalharam em favor da colonização receberam frases e outras vezes
parágrafos elogiosos.
Arthur Reis iniciou a narrativa relacionada à região amazônica, através da famosa
expedição de Orellana seguida pela de Ursua. E como fez ao longo de toda a obra, iniciou
ressaltando o “heroísmo” dos colonizadores que, vencendo os mares, conquistaram a
América, e “armados de coragem, vararam as selvas, arrostando mil perigos... semeando a
civilização”. E parafraseando Maquiavel, afirma que os fins justificam os meios utilizados
pelos espanhóis na saga colonizadora. As qualidades dos conquistadores que venceram o
clima, o meio geográfico e o indígena os redimiam de tudo “quanto perpetraram de mau”,
pois “era preciso vencer”
164
. Proposta semelhante à de Álvaro Maia, para quem, “toda morte
deve ser bendita, desde que seja em nome da pátria”
165
.
A partir daí construiu o contexto que elegeu Orellana como o primeiro grande herói
de sua narrativa. Gonçalo Pizarro partiu em expedição saída de Cuzco, em busca do País da
Canela, lugar rico nessa especiaria considerada “das mais preciosas do Novo Mundo”.
Passando por Quito, Francisco Orellana se ofereceu para participar da expedição, dispondo
inclusive, de recursos materiais e financeiros em prol da mesma. Pizarro deixou Quito em
1539, com “trezentos e quarenta soldados, destes cento e cinqüenta bem montados, gente da
melhor sociedade e mais de quatro mil índios recrutados nas prisões”. Orellana só se juntou à
expedição no vale de Zumaco “com um punhado de companheiros” e quarenta mil pesos-
ouro; recebendo logo de Pizarro, chefe da expedição, o posto de lugar-tenente, “como prova
de confiança”
166
. Ao iniciar, demonstrando a confiança que Pizarro depositou em Orellana,
164
Ibidem. p. 37.
165
MAIA, Álvaro. Op. cit. p. 159.
166
REIS, Arthur Cezar Ferreira. Op, Cit. p. 41.
71
Arthur Reis visava preparar o leitor para a importância deste último, por ele consagrado
como herói ao longo da narrativa.
A busca ao País da Canela foi frustrada, quando os espanhóis chegaram ao destino e
perceberam inviável a exploração da canela, porque apesar de farta suas árvores eram muito
espalhadas, “não compensavam as despesas da colheita”. A chegada até o País da Canela foi
feita à custa de muitas dificuldades, pois nos dois meses que ficaram a fome e as doenças
vitimaram cerca de duzentos espanhóis. Seguiram para as margens do Coca. Diante das
intempéries sofridas pela falta de alimentação, construíram um bergantim e quatro canoas
para a descida do rio em busca de mantimentos. Sendo que “Francisco Orellana tomou a seu
cargo a obra”
167
.
Na descida, que se fez com sessenta homens, as dificuldades não foram poucas:
“novamente a fome apertava, desta vez forçando ao aproveitamento de cintos, solas de
sapatos para saciá-la”. Distante do lugar onde tinha ficado Pizarro e os demais
expedicionários, Orellana e os seus tiveram que seguir, diante da inconveniência de retornar
rio acima. Num percurso que durou oito meses, Orellana atingiu o Atlântico em agosto de
1542, tendo percorrido todo o Solimões/Amazonas.
“Pesa ainda sobre sua memória a pecha de traidor a Gonzalo
Pizarro. Homem de feias ações, escrevem os historiadores
antigos e modernos, dando curso à inverdade. Francisco de
Orellana, de que José Toríbio de Medina, autêntico sabedor
do passado da América, traçou um retrato fidelíssimo, foi
soldado disciplinado, ardoroso, fiel à palavra
empenhada”
168
.
A partir daí, Arthur Reis seguiu em busca de “provas”, que confirmassem a
“inocência” de Orellana, entre elas a petição por escrito em que seus companheiros
requisitaram a descida, que está registrada e por isso, segundo o nosso autor, não admite
contestação. Outra prova foi o fato de em carta de Gonçalo Pizarro a Carlos V não haver
menção da existência de esmeraldas e quantia em dinheiro dada por Gonçalo a Orellana. E
acima de todas essas provas está a atitude do Conselho das Índias, que atuante quanto à
prática da justiça e a perseguição de culpados, não hostilizou Orellana, situação
167
Idem, p. 41e 42
168
Ibidem p. 46.
72
comprobatória da sua hombridade. A preocupação do autor se sempre no sentido de
procurar provas a seu ver irrefutáveis, tendo o documento como prova máxima da verdade,
no sentido de provar os grandes louros colhidos pelos colonizadores. E no caso de Orellana,
autor de um grande feito, não poderia ser passada às novas gerações uma imagem de um
herói com máculas; portanto, seu caráter deveria estar bem definido.
Por todas essas qualidades, Orellana pode “figurar na galeria dos criadores do Novo
Mundo, como dos mais bravos pioneiros da civilização ocidental nas selvas amazônicas, [e
por isso merece] a glória de ter desvendado a maior artéria fluvial do globo”
169
. Estava
criada uma das figuras que deveriam servir de inspiração aos moços amazonenses, pelo seu
caráter, dedicação e por ter realizado uma grande conquista.
Segundo Arthur Reis, quando conhecida na Europa e na América, a expedição de
Orellana provocou interesses exploratórios em portugueses, espanhóis e nos habitantes que se
encontravam no Peru. Inicialmente, foram desencorajados pelas autoridades régias que não
aprovaram os projetos exploradores. Mas tempos depois, o vice-rei do Peru, D. Andrés
Hurtado de Mendonza, preocupado com o aumento do número de desocupados, resolveu
autorizar uma expedição a Pedro de Ursua, que deveria ocupar muitos dos que estavam sem
trabalho.
A partir da narrativa da expedição de Ursua, Reis vai confirmando seu intuito de
construir e dignificar “heróis” e condenar “vilões”. Cheio de mérito, “por seus feitos dignos
de bravos”, Pedro de Ursua deixou Lima em fevereiro de 1559 com dinheiro e poderes
repassados pelo vice-rei. No caminho, arregimentou sertanistas desejosos de ir ao Dorado e
aos Omáguas. Mas, Lopo d’Aguirre, integrante da expedição,“indivíduo de precedentes
sujos, useiro e vezeiro em motins, conhecido pelas misérias que praticava, pela alcunha de
louco”
170
, chefiou uma conspiração contra Ursua, motivada pelo desejo deste e dos
conquistadores pela mestiça Ignés Atienza que Ursua levava em sua companhia.
Ursua e outros foram assassinados. A partir daí “surgiram novas rivalidades entre os
que se julgavam os diretores novos da jornada”. E em março de 1561, enquanto construíam
novos bergantins entre o Catuá e o Coary, Aguirre reuniu seus companheiros dos quais
obteve consentimento para declarar D. Fernando de Gusmão, como príncipe do Peru, posição
até então ocupada por Felipe II. Segundo Arthur Reis, alguns historiadores tomaram esse
momento como precursor das independências no continente americano; entretanto, sua visão,
169
REIS, Arthur Cezar Ferreira. Op. cit., p. 48.
170
Ibidem, p. 51.
73
visto que defendia princípios éticos e morais, se associou a de outro grupo de historiadores
que analisando os feitos de Aguirre associado aos marañones, como eram conhecidos esses
expedicionários, assinalou-lhe “apenas como gesto de traição à pátria”, pois faltava aos seus
realizadores “o ideal honesto de separatismo que mais tarde apontou” em outros movimentos
de independência.
171
Arthur Reis fez uma leitura das fontes, sempre preocupado com o cunho ético e moral
da situação estudada. Afinal, seu livro deveria cumprir a função de formar almas” como
havia sugerido Álvaro Maia em sua “Canção de e Esperança”. A expedição de Ursua foi
exposta de modo a deixar bem evidente os papéis. De um lado Ursua, o colonizador que
recebeu as bênçãos da Coroa para realizar sua grande façanha; de outro lado, Lopo
d’Aguirre, personagem cruel, assassino, “malvado”, “alma danada de todas as maquinações”,
“bandido”. “Não se fartava. Escrevia em sangue a página mais trágica da história amazônica”
172
. Da Venezuela
“...escreveu a Felippe II uma carta atrevidíssima, dando as
razões do motim que chefiava. Insultou o rei. A carta é
verdadeiro amontoado de diatribes, valendo como
documento da ousadia e do despudor de Aguirre.(...) teve a
memória declarada infame. Ninguém mereceu tanto ficar
assim marcado. Os historiadores são unânimes na
condenação aos desmandos de Aguirre
173
.
Aguirre é apresentado como o grande vilão, que nosso historiador, preocupado com a
moral, pretendia revelar aos seus leitores. Um personagem que deveria ser conhecido, mas,
jamais honrado, pois seu final foi trágico: teve “cortada a sua cabeça, retalhado o corpo,
exposto aos pedaços em vários lugares da Venezuela para exemplo aos vindouros”
174
. Era de
extrema importância para o nosso autor justificar eticamente as “boas ações” de
colonizadores “ilustres”, assim como caracterizar e julgar devidamente os praticantes de atos
que ele considerou desonesto. Como visto acima, a história que se propôs a escrever tinha
deliberadamente, a intenção de resgatar o passado com a missão de servir ética e moralmente
171
REIS, Op. cit,. p. 52.
172
Ibidem, p. 53.
173
Ibidem, p. 53.
174
Ibidem, p. 53.
74
aos jovens do presente. Reis transfere todos os seus valores éticos e morais para a história, foi
com esse olhar do qual não conseguiu se despojar que escreveu a História do Amazonas,
julgando a história de acordo com seus princípios, muitos dos quais aprendidos com Álvaro
Maia.
Com esse mesmo espírito o autor prosseguiu no resgate da personalidade de Pedro
Teixeira, “um sertanista que não conhecia hesitações e valia muito pela experiência adquirida
em anos de lutas na Amazônia”
175
. Responsável pela expedição que percorreu toda a
extensão do rio Amazonas de 1637 a 1639, primeiro de Belém a Quito, depois, no sentido
oeste-leste, de Quito a Belém, Pedro Teixeira e seus comandados fizeram o reconhecimento
de todo o curso e das áreas próximas ao rio Amazonas, abrindo caminho para novas
expedições portuguesas que futuramente conquistariam toda a região.
Representante de todas essas conquistas, Pedro Teixeira, recebeu os louvores de
Arthur Reis, como um verdadeiro herói ao qual “Portugal deve-lhe a conquista da Amazônia”
176
. No período da expedição, estava vigorando a União Ibérica, que permitiu aos portugueses
efetuarem a conquista territorial nos domínios, antes espanhóis, fixados pelo Tratado de
Tordesilhas. Assim, preocupado continuamente em dar aos personagens históricos seu senso
ético e moral, Reis acentuou que os portugueses expedicionários desse período, “súditos de
D. Felipe III não cometiam invasão nas façanhas, não desrespeitavam direitos alheios.
Trabalhavam para o seu rei, comum às duas nações ibéricas”
177
. É relevante como Reis
avaliou a história da Amazônia colonial, como a desejar o tempo inteiro caracterizar as
atitudes dos personagens históricos como certas ou erradas de acordo com seus valores,
visando internalizar em seus leitores as noções de civismo proclamadas por Álvaro Maia. Na
sua concepção, havia uma grande necessidade de registrar que os portugueses não cometiam
invasão, para que dessa forma, a imagem desses grandes realizadores não fosse manchada.
Afinal, perseguia a construção de uma imagem mpida da colonização portuguesa e para
tanto seus realizadores deveriam ser homens íntegros e honestos. Ao contrário dos
holandeses, ingleses, e franceses que, “disputando-se de direitos que não existiam para eles”,
foram aos poucos invadindo e explorando o delta do rio Amazonas.
178
Nem o consentimento de Pedro Teixeira ao derramamento de sangue indígena,
realizado por Pedro da Costa Favela, fez Reis manchar a imagem imaculada do grande
175
REIS, Op. cit. p. 57.
176
Ibidem, p. 65.
177
Ibidem, p. 55.
178
Ibidem. p. 55.
75
sertanista. Ainda quando a expedição subia o Napo, Teixeira encarregou Favela de ficar com
grande parte da tropa no lugar onde provavelmente, tempos atrás, havia sido morto, pelos
índios Encabelados, o expedicionário Juan de Palácios. Entrando em choque com os índios,
“Pedro da Costa Favela, para garantia de seus comandados,
assinalava em sangue e fogo a sua presença de disciplinador
passando pelas armas os Encabelados que pudera agarrar e
incendiando-lhes aldeamentos. Pedro Teixeira castigou os
culpados, aprovando, com tamanha decisão, o procedimento
enérgico de seu oficial subordinado”
179
.
Foi o próprio Reis, quem assinalou a aprovação de Teixeira aos atos destrutivos de
Favela contra os indígenas. Entretanto, defende-o, criando sobre o mesmo a imagem de um
homem de uma integridade irrefutável. Assim o descreve com grande admiração:
“Pedro Teixeira é o mais impressionante tipo de sertanista da
Amazônia. Durante três décadas a fio, não há um episódio de
vulto, seja de guerra, seja de que natureza for, a que seu
nome não esteja ligado e coberto de ilustrações. Um ou outro
deslize com que pretendem toldar-lhe a vida de heroísmo, de
ardor patriótico, nada exprime ao lado da esplêndida folha de
serviços. Varonil, disposto aos últimos sacrifícios, não
encontra rival nas atitudes. Batendo holandeses ou ingleses,
varando o coração da selva, tratando com o ameríndio, é
sempre a figura esplendida do homem-arrojo, do homem-
desprendimento”
180
.
Para Arthur Reis não há nenhuma contradição em considerar Pedro Teixeira como um
grande sertanista, a despeito de sua aprovação à carnificina realizada por seu subordinado
Pedro da Costa Favela. Sua tentativa era de procurar meios que o “inocentasse”. Desse modo,
assinalou que “acossando os nativos, nunca os tratou com barbaria”
181
. Reis aplicou na
narrativa sobre Pedro Teixeira a máxima que utilizou no início do livro, “os fins justificaram
179
Ibidem, p.61.
180
Ibidem, p. 61.
181
Ibidem, p.65.
76
os meios”, utilizados pelos colonizadores. Os deslizes de Teixeira são irrisórios diante da
lista de contribuição que deu à colonização e diante da necessidade de nutrir os seus
conterrâneos dos exemplos grandiosos dos mortos, como expressou Álvaro Maia na epígrafe
transcrita no início deste trabalho. Companheiro de Francisco Caldeira Castelo Branco,
quando este fundou o futuro núcleo de Belém, Pedro Teixeira, “desde esse instante, simples
alferes, principiou a destacar-se”. Mandado ir a São Luiz, por terra, avisar Jerônimo de
Albuquerque do ocorrido, em uma viagem extremamente arriscada
“... por causa da tapuiada que se ajuntava para incomodar os
portugueses. Pedro Teixeira, sem nenhuma queixa que o
revelasse receoso do cometimento, com uma escolta de
poucos homens, atravessou o emaranhado sertão, de que
tomou posse para Portugal... indo sair na capital maranhense
afamado e a despertar espanto
182
.
Arthur Reis ainda continuou, ressaltando mais os grandes feitos realizados por Pedro
Teixeira. Dedicou páginas consideráveis a narrar suas qualidades. A expedição comandada
por Texeira foi realmente de grande importância para a colonização portuguesa na
Amazônia, fato que enaltece, visto que procurou em sua obra inaugural tecer fio a fio os
pontos que ligaram a grandiosa obra portuguesa colonizadora que trouxe para o Novo Mundo
a civilização tão prezada pelo nosso autor. Por isso, Pedro Teixeira, ícone da colonização, se
revelou como “o grande soldado merecendo a admiração da posteridade e de seus
contemporâneos na luta contra os holandeses e ingleses, plantados ao longo do
Amazonas”
183
. Mais uma vez se confirma, nessa passagem, sua preocupação em fazer dos
personagens históricos exemplo aos seus leitores. A história que escrevia devia ter uma
função prática.
Seguindo a cronologia da obra, os três próximos “vultos esplêndidos de sertanistas”
apresentados são Pedro da Costa Favela, Francisco da Mota Falcão e Guilherme Valente:
“são as figuras mais interessantes desse período da história amazonense”
184
. O período ao
que o autor se refere é o da fixação do forte do São José do Rio Negro, marco inicial do que
viria a ser a cidade de Manaus. Ao supervalorizar os colonizadores, Arthur Reis,
182
REIS, Op. cit, p.63.
183
Ibidem, p. 64. Grifo meu.
184
REIS, Op. cit. p. 71.
77
consequentemente minimiza os nativos, pois como foi visto acima, sua intenção era narrar
a história da colonização, a história de vencedores, que enfrentaram a adversidade do
ambiente e as dificuldades impostas pelos nativos em busca de um fim supremo e legítimo: a
colonização que traria a civilização.
Pedro Teixeira foi o sertanista que abriu as portas do território amazonense para as
novas entradas; por isso, teve o tão grande reconhecimento de Reis. E os três vultos citados
acima foram responsáveis pelo início do povoamento, merecedores também de glórias. É
bom lembrar que Reis não foi incoerente ao longo da sua narrativa, na medida em que
anunciou inicialmente que os fins justificaram os meios usados pelos colonizadores. Assim,
reconheceu os abusos cometidos pelos sertanistas sem nenhum pesar; nesse ínterim, não
teceu comentários éticos em favor dos indígenas, ainda que tenha reconhecido as atrocidades
cometidas contra os mesmos.
Em sua abordagem sobre o início do povoamento do território amazonense, ressalta a
necessidade de braços indígenas para a ocupação e desenvolvimento da região. “A caça ao
índio, mais lucrativa, foi, todavia, a mais custosa", pois a legislação acerca do nativo imposta
desde D. Sebastião, que “procurava protegê-lo, defendendo-lhe os direitos à liberdade como
legítimos donos da gleba”, ofereceu algumas dificuldades. Mas,
“Apesar dos rigores, os abusos eram constantes. Os
sertanistas, nas suas penetrações, reduziam à escravidão
quantos indígenas encontravam, estivessem ou não nas
condições exigidas pela lei. Os nativos, assim subtraídos à
liberdade, carregados aos montões, para Belém, eram
vendidos aos moradores por preço marcado pelo governador
e pela câmara. Tinham de escravizar-se-lhe por dez anos,
findo o que deveriam regressar às aldeias, determinação
jamais cumprida e mesmo revogada, ilegalmente, em
deliberação tomada numa junta reunida em Belém para
violar os dispositivos da legislação
185
.
Arthur
Reis não fez vistas grossas” à situação do nativo. Reconheceu como
historiador compromissado, como se apresentava desde o início, a situação atravessada
pelo nativo. Em vários momentos, aponta situações onde este, ao tentar resistir à invasão
185
Ibidem, p.66.
78
portuguesa era exterminado juntamente com o seu grupo. Entretanto, a história que,
deliberadamente, se propôs a escrever era a da grande obra colonizadora, que necessitava de
heróis, como os citados. Não desprezava a história indígena, como fica exposto em sua
exaltação a Ajuricaba, destacada no próximo capítulo desse trabalho; apenas escrevia uma
história, comum à época: a história dos “vencedores”.
Apesar de todas as práticas violentas de Favela em relação aos indígenas, Reis traçou
um esboço biográfico o arrolando na lista dos grandes heróis, relatando os seus feitos em prol
da ocupação portuguesa no Brasil:
“Tomara parte na expulsão dos franceses da Ilha do
Maranhão. Na Amazônia, combateu os holandeses e ingleses
instalados no Xingu e na Ilha de Tucujus. Sertanista dos
mais ousados, no Tapajós, no Tocantins, revelou-se terrível
perseguidor dos índios. Seu nome causava-lhes terror. Foi
companheiro de Pedro Teixeira na subida a Quito e exerceu
várias comissões de importância, tal a confiança que nele
depositavam as autoridades”
186
.
Mesmo o massacre aos índios do rio Urubu, levado a cabo por Favela, foi narrado por
Arthur Reis a partir da ótica dos colonizadores, não interferindo em nada a apresentação dos
méritos do sertanista que fez sua parte na grande obra colonizadora “infligindo uma tremenda
lição” aos indígenas “traidores”. O sargento-mor Antônio Arnau de Vilela, em 1663, em
expedição chegou à missão do Saracá, onde deságua o rio Urubu, povoado por Caboquenas,
Bararurus e Guanaveses, que persuadiram Vilela e Frei Raimundo, da Ordem das Mercês,
“da facilidade de conseguir escravos se subissem mais para as cabeceiras do Urubu”. No
percurso de subida, Vilela e a maioria de seus companheiros foram “barbaramente”
assassinados. Em defesa dos sertanistas, o alferes João Rodrigues Palheta e seus soldados
acabaram “vencendo-os num sangrento combate”. Chegada a notícia até Belém, foi
organizada uma expedição sob o comando de Favela, “para castigar os Caboquenas,
Guanaveses e Bararurus”.
186
Ibidem, p. 70.
79
“A 25 de novembro, Favela chegava à boca do Urubu. (...)
Não teve contemplações. Levou tudo a ferro e fogo. Reduziu
a cinzas trezentas malocas, liquidou setecentos indígenas,
aprisionando quatrocentos. Infligiu uma tremenda lição.
Reforçado com um importante destacamento comandado
pelo sargento-mor Antônio da Costa, (...) caçou os traidores
por todos os cantos do rio. Fez uma sangueria.”
187
O massacre praticado sob o comando de Favela não mereceu maiores comentários de
Arthur Reis; bastou a narração do feito, justificável, pois de volta ao Urubu em 1668 Favela,
guiado até o Rio Negro pelos Aroquis, “onde os Tarumás o acolheram bem” acompanhou
Frei Teodósio da Veiga na fundação de Santo Elias do Jaú, o primeiro povoado da região.
Enfim, Favela cumpriu sua missão auxiliando na garantia do domínio português na região.
Feito digno de nota que, a despeito dos meios utilizados, o que realmente se sobressaiu na
narrativa de Reis foi o heroísmo da ação.
Traçou também uma breve biografia de Francisco da Mota Falcão, não o fazendo em
relação a Guilherme Valente por falta de documentos. Com esses três nomes, Reis encerra a
narração do início do povoamento e a partir daí entra no século XVIII, destacando a ação dos
sertanistas e missionários na exploração da Amazônia que, “exibindo provas de uma
coragem, de uma resistência admiráveis (...). Galgaram cachoeiras, lutaram com a aspereza
do clima, batalharam contra o indígena. Venceram quase sempre. Foram os protagonistas de
um drama sensacional”
188
.
Assim, o autor da História do Amazonas buscava modelo na história para as novas
gerações, próximo do pedido por Álvaro Maia. A Canção de e Esperança, foi acima de
tudo, um chamado à juventude para o valor do Amazonas e para o papel que deveriam
assumir politicamente em benefício da região:
“A nossa luta para o desvirginamento da nova Atlândida,
boiando na vastidão da América como um corpo verde e
voluptuoso, reclama também uma audácia inflexível no
sentido de repelir a injúria e a pequenez, até no dia, sonhado
em deslumbramento, em que as gerações novas, gerações
187
Reis, Arthur Cezar Ferreira. Op. cit. p. 68
188
Ibidem. p. 71.
80
amazonenses (estão incluídos nesse termo todos os homens
honestos que aqui vivem, ou para aqui vêm) for entregue a
direção do Amazonas”
189
.
O jovem foi o público alvo da Canção de Fé e Esperança:
“Encarar os dias com indiferença (...) é um crime, que deve
ser regra de velhos caquéticos e de moços corrompidos;
jamais, porém, da gente nova de uma terra, (...). É o instante
da mocidade intervir na luta”
190
Mas, esse chamado à juventude veio carregado de “reverência ao passado”, pautado
nos heróis da história, e de “saudação ao futuro”
191
, depositado na esperança de ação das
novas gerações amazonenses. Em vários pontos do texto, Álvaro Maia se reportou ao
passado em alusão aos personagens-símbolos de gestos nobres em nome da região. Quando
se referiu “à primeira injustiça” praticada contra os amazonenses ao serem incorporados ao
Pará, quando deveriam ser província, como as demais regiões após a independência, lembrou
a glória dos que conquistaram a autonomia do Amazonas: “somente hoje restabelecem o lado
real das coisas e coroam de racimos e corimbos os heróis de um século atrás”
192
.
Glorificou os que na história mais recente, fizeram parte do crescimento da região:
“Todas as bênçãos devem cair sobre os homens
destemerosos que desbravam o Amazonas (...) O poema da
colonização do Amazonas iluminado pelo clarão gelado de
trezentos mil mortos, ainda não foi escrito, mas o seu fulgor,
como o luar nas geleiras, espadanando Himalaias de chamas,
cai sobe nós à maneira de um opulento gulf stream , que nos
traz do passado, das idades remotas, a coragem e o calor para
a beleza e para a glória.(...) O Amazonas reconhece quanto
deve aos nobres bandeirantes do nordeste: a mocidade
proclama-o, neste minuto religioso. (...) Somos guiados pelo
passado e pelo futuro (...) nos momentos supremos do
189
MAIA, Álvaro. Op. cit. p. 159.
190
Ibidem, p.159.
191
Ibidem, p. 147.
192
Ibidem, p. 148.
81
combate, temos sobre a cabeça, como uma flâmula
espiritual, a visão protetora dos antepassados, dos mortos
amparando-nos do fundo de suas covas
193
.
Foi através dos exemplos grandiosos dos homens do passado que Álvaro Maia
conclamou a juventude a adotar atitudes cívicas em prol do Amazonas, uma região que junto
a outros estados do Norte era colocada em posição inferior em relação ao Sul do país:
“Devido a isso, chega a haver dentro das lindes da mesma pátria, em pleno Rio de Janeiro,
conjuntos para a defesa do norte, como se o norte fosse um feudo do sul”. A história deveria
resgatar o valor do Amazonas por que o lugar que ocupava na federação foi conquistado
pelos missionários e pelos seringueiros: “Esses sim, são os nossos credores supremos”, em
outras palavras, Álvaro Maia reanimou a juventude a isentando de dívida com o sul do país e
redirecionando a dívida para com os heróis da história.
194
Arthur Reis se incumbiu de trazer à tona, na História do Amazonas, os heróis que
ajudaram a “fazer” a região; e continuou na mesma linha, quase como um sucessor de Álvaro
Maia, tornando-se ele próprio modelo para as novas gerações do Amazonas, fazendo seu
trabalho e seu profissionalismo repercutir no sul do país, e sendo por isso, muito admirado
pelos seus conterrâneos como veremos no subcapítulo a seguir. Nesse sentido, sua missão
em escrever um livro para que a juventude se educasse no exemplo dos homens do passado
foi cumprida.
Ainda nesse mesmo intuito de nutrir o povo “do exemplo grandioso dos mortos”
195
,
Arthur Reis prosseguiu colocando em relevo as “figuras impressionantes”
196
de Ajuricaba,
Samuel Fritz, Lobo d’Almada e Tenreiro Aranha. Cobrindo-os de elogios e quando
necessário justificando seus atos eticamente duvidosos.
Samuel Fritz, “inteligência vivaz, cultura magnífica, os que lhe dirigiam a formação
espiritual o destinavam à cátedra de Teologia conquanto seu desejo constante fosse o trato
com os selvagens da América, na obra admirável de tirá-los da barbaria.” Fundou vários
povoados, entre eles o que viriam a ser Fonte Boa, Coari, Tefé e São Paulo de Olivença.
Revelou-se então missionário modelar, que não media sacrifícios, arrostando com perigos
193
Ibidem, p. 153, 154.
194
Ibidem, p, 154 e 158.
195
Ibidem, p. 155.
196
REIS, Arthur Cezar Ferreira. Op. cit. p. 35.
82
materiais de toda natureza, minando a saúde com as febres de mau caráter, próprias da
região”.
197
De acordo com Arthur Reis, o padre espanhol em território reclamado pelos
portugueses enfrentou alguns problemas, mas, “homem inteligente, sabia vedar dificuldades”
198
; e após algumas rusgas com portugueses, chegando mesmo a ficar detido em Belém por
um período de nove meses, “não se deu por vencido”
199
e retornou às missões.
“À sua voz, Omaguas, Jurimaguas, Aisures, regressaram aos
aldeiamentos. Reanimou-se tudo. Os povoados foram
restabelecidos. De todos os cantos, vinham bandos, tribos
inteiras, procurar-lhe os ensinamentos preciosos. Não houve
agrupamento indígena que não lhe rendesse homenagens.
Adoravam-no. Havia motivos. Curando os doentes,
animando os indecisos, ensinando processos de lavoura,
distribuindo carinhos, encaminhando todos para uma vida
mais organizada, não os escravizava, não os explorava e
ainda os defendia da agressividade dos sertanistas paraenses.
Seu nome tornou-se respeitado. Tomaram-no por santo, filho
de Deus. No Pará, é ele próprio quem relata, os negros
receberam-no como redentor da raça”
200
.
Entretanto as disputas por território continuaram, e após a confirmação de que Samuel
Fritz “não se ocupava apenas de sua igreja, mas de objetivos políticos, tentando a conquista
espiritual e material da larga porção do vale
201
, o Conselho Ultramarino mandou capturá-lo.
Fritz partiu para Quito mandando um substituto em seu lugar. O intuito político de Fritz não
foi criticado por Arthur Reis, pois o padre havia sido “missionário modelar”; estabeleceu
povoado, tratou os nativos com carinho, defendendo-os da agressividade dos sertanistas e
com um “espírito privilegiado” que possuía elaborou um mapa “tido como o melhor
levantamento da bacia amazônica (...). Os anteriores são imperfeitíssimos, e dos posteriores,
muitos não passaram de cópia dele”
202
.
197
Ibidem, p. 86 e 87. Grifo meu.
198
Ibidem, p. 87.
199
Ibidem, p. 89.
200
Ibidem, p. 89.
201
Ibidem, p. 90.
202
Ibidem, p. 90 e 92.
83
Estava constituído mais um herói da história para nutrir as novas gerações de
exemplo, Fritz,
“Encarado como missionário, sem ser esquecido o político, a
sua obra resulta gigantesca. Chamaram-lhe Apostólo do
Amazonas. Fica-lhe bem o título, que ninguém, de justiça,
lhe pode disputar”
203
.
Ajuricaba marcou pela dignidade a história do Amazonas, defendeu suas convicções
até ao extremo e quando capturado não se deixou ser morto. Num ato heróico “para não
sujeitar-se às humilhações do inimigo, ufano da vitória, lançou-se com outro principal às
águas do oceano fluvial que tanto amava”. Não percebemos na narrativa de Arthur Reis uma
aversão ao nativo; no entanto, seu enfoque principal foi a colonização que traria a civilização
e consequentemente o progresso para a região amazônica. Quando o contexto pediu,
justificou as atrocidades cometidas pelos sertanistas, mas quando abordou a saga de
Ajuricaba também o defendeu e encheu de glórias ele e os “famosos Manaus”
204
, grupo ao
qual pertencia. Assim, Arthur Reis adequava sua narrativa na busca dos heróis da história,
ora defendendo os colonizadores, ora defendendo os colonizados, embora os colonizados
tenham maior número de representantes em sua narrativa.
Os Manaus, grupo ao qual pertencia Ajuricaba, “povo inegavelmente superior a
quantos correram a bacia, o elogio dele está no respeito com que o olhavam as autoridades
régias”. No começo do século XVIII se juntaram “para o combate ao conquistador que não os
deixava na faina violenta de fazer escravos”. Diante do avanço dos conquistadores, Ajuricaba
“deu então o grito de rebeldia”, obedecendo junto com os seus “ao sentimento de justa
repulsa ao sertanista preador”. Entretanto, após várias investidas contra os portugueses
Ajuricaba teve o final tanto trágico quanto heróico narrado acima.
205
Na busca de traçar um perfil da identidade de Ajuricaba, Arthur Reis se ocupou em
limpar da biografia do nativo o rótulo de traidor aos portugueses: “Ajuricaba foi traidor?
Ajuricaba manteve aliança com os Holandeses? Eis a grande questão.” Foi o governador do
Pará João da Maia da Gama que, em 1723, ao tomar conhecimento da primeira agressão
comandada por Ajuricaba contra os conquistadores, pediu auxílio a Lisboa para conter a
203
Ibidem, p. 93.
204
Ibidem, p. 93.
205
Ibidem, p. 94.
84
hostilidade dos nativos, informando que estes “se apresentavam com armas e munições
fornecidas pelos holandeses da Guiana, a que se ligavam em perigosa aliança”
206
.
Continuada as resistências comandadas por Ajuricaba, Maia da Gama se dirigiu
novamente a Lisboa, em 1724, juntando “as devassas que concluíam por dar Ajuricaba como
amigo dos holandeses, cuja bandeira tinha a flamejar na embarcação em que fendia os rios na
perseguição aos sertanistas paraenses”
207
. Entretanto, contra essas acusações a Ajuricaba,
Arthur Reis buscou provar sua inocência, primeiro através de documentos holandeses
tornados público através de Joaquim Nabuco, que iluminam a questão; concluindo que os
Manaus eram aliados dos Badon e,
“De Badon os Manaus, em troca de escravos, feitos nos
povoados aportuguesados, obtinham as mercadorias
holandesas, as tais armas. As relações, com a gente do
Surinan
208
, por conseguinte, não existiam. Ajuricaba, diante
de tais provas, não manteve absolutamente não manteve
aliança com os holandeses”
209
.
Arthur Reis prosseguiu apresentando provas que na sua concepção “elucidam mais,
convencem definitivamente”. Os documentos holandeses relatam a inimizade entre os
Manaus e os Caraíbas, estes aliados dos holandeses. Em 1724, sendo os Caraíbas atacados e
derrotados pelos Manaus, a Corte de Essequibo determinou que fosse morto qualquer dos
Manaus encontrados na colônia de Surinan. “Ajuricaba, que chefiava os Manaus, contra os
quais se tomavam em Surinã tamanhas medidas de hostilidade, foi aliado dos holandeses?” .
Esse questionamento de Arthur Reis é por ele respondido com uma negativa; a acusação a
Ajuricaba havia sido arranjada para que se obtivesse de Lisboa fácil aprovação à guerra
contra os Manaus
210
.
É importante destacar que dos documentos holandeses aos quais Arthur Reis se
refere, nomeou apenas um, o relatório de 15 de junho de 1724. E numa nota de rodapé diz ter
tomado como base uma publicação de Miranda Leão sobre Ajuricaba na revista carioca
206
Ibidem, p. 95 e 100.
207
Ibidem, p.96.
208
Surinan foi o nome dado a colônia fundada pelos holandeses. Reis, p.100.
209
REIS, Arthur Cezar Ferreira. Op. cit. p. 96.
210
Ibidem. p. 101 e 102.
85
Mundo Literário: “Socorremo-nos dela para as provas de que Ajuricaba nem foi traidor nem
aliado dos holandeses da Guiana.”. Desse modo, não ficou bem claro se Arthur Reis leu a
documentação primária ou apenas retomou o texto de Miranda Leão. Mas, para o que nos
propomos, não é interessante seguir como o autor da História do Amazonas, na busca de
definir o caráter de Ajuricaba. O que realmente nos interessa é a tentativa de Arthur Reis,
dentro dos seus preceitos éticos, em apresentar Ajuricaba com uma imagem sem ranhuras.
Segundo o autor, foi Ribeiro de Sampaio em seu Diário de Viagem quem “deu curso a
inverdade”, rotulando Ajuricaba de traidor no que foi seguido por outros cronistas. Mas,
depois de lançadas o que chamou de provas da inocência de Ajuricaba, pôde lançar a
consagração do herói:
“Ajuricaba; que esse mesmo Ribeiro de Sampaio, proclamou
“um herói entre os índios”, esperado, segundo a lenda, ainda
hoje, entre os seus Manaus, para redenção da raça, foi, assim
um guerreiro ilustre, dos primeiros a batalhar pela liberdade
na América. Este o título a que tem direito”
211
.
Ainda em relação aos heróis da História do Amazonas, de acordo com Arthur Reis,
Tenreiro Aranha equiparado “com Lobo d’Almada, pelos relevantíssimos e desinteressados
serviços prestados, foi dos maiores governantes do
Amazonas”
212
. Foi o próprio autor quem
assemelhou essas duas personagens históricas em termos de relevância como grandes nomes
da história amazonense. Manuel da Gama Lobo d’ Almada por todas suas realizações
“revelara capacidade de trabalho, tino administrativo, inteligência, honestidade e patriotismo
ardente”, méritos que “naturalmente o indicaram à confiança real para o governo da
Capitania”
213
exercido entre 1788 e 1799. A imagem criada por Arthur Reis em torno desses
personagens se aproxima da perfeição. Lobo d’ Almada soube aproveitar a agricultura, ciente
de que “compensadora, fácil, encontraria os meios por que reanimar a região”
214
; montou
várias fábricas, incentivou a pesca e o comércio de peixes, introduziu o gado no vale do rio
211
Ibidem, p. 102.
212
Ibidem, p.196.
213
Ibidem, p. 142.
214
Ibidem, p. 143.
86
Branco o que valeu “para eternizar-lhe o nome”
215
. Enfim, Almada foi um “homem de visão,
enxergava e sabia resolver todos os entraves ao progresso da Capitania”
216
.
Tenreiro Aranha, primeiro presidente da Província do Amazonas, “militar, educador,
jornalista, político, economista, era das melhores expressões de cultura e civismo na
região”
217
“A escolha de Tenreiro Aranha para a presidência da nova
Província não podia ser mais acertada. Dados os seus
conhecimentos das necessidades vitais da região, o ardor de
suas atitudes sempre claras e a atividade desinteressada que
revelara na obtenção da grande medida pleiteada pelo povo
da comarca, ninguém, no momento, com melhores
credenciais para o alto cargo. Estava naturalmente
indicado”
218
.
Tenreiro Aranha se preocupou com o povoamento, sugerindo a fundação de colônias
militares nas fronteiras. A agricultura “lhe mereceu carinhosa observação e especial
cuidado”; ele se destacou por ter sido pioneiro na indicação do “plantio da hevea, na previsão
do que ela seria tempos adiante”, procurou restaurar algumas indústrias, reanimou o
comércio, inclusive baixando um regulamento para tal atividade que incorria em tolher “ao
grande princípio da liberdade de negócios”, mas as condições urgentes da Província
“desculpavam a medida”. A imagem criada por Arthur Reis se propunha tão pura que
qualquer ato do herói histórico, passível de crítica, merecia ser justificado. Pois, “infatigável,
Tenreiro Aranha tinha a atenção sempre voltada para o bem público”
219
.
“A província, como se percebe, tinha a administrá-la um
homem de energia, que guardava em si as qualidades de
construtor, de organizador. Embora, só muito vagarosamente
poderia levantar-se de todo, a não ser que o governo central
se dispusesse a auxiliá-la eficientemente”
220
.
215
Ibidem, p. 143.
216
Ibidem, p. 145.
217
Ibidem, p. 191.
218
Ibidem, p. 190.
219
Ibidem, p. 193, 194 e 195.
220
Ibidem, p. 196.
87
Os dois modelos de governantes eleitos por Arthur Reis tiveram suas qualidades
maximizadas de tal modo que parecem utópicos. Em comum, Lobo d’Almada e Tenreiro
Aranha possuem as qualidades que os indicariam naturalmente ao cargo. Eram
desinteressados em usar o cargo em benefício próprio; olhavam a questão indígena com
atenção; o primeiro procurando vencer os nativos através da docilidade e o segundo cuidando
de pacificá-los “favorecendo-os no que pleiteavam, animando-os ao trabalho e ao respeito
aos diretores que, por lei, os governava”
221
. E, principalmente, tinham em comum o fato de
terem de deixar o cargo não por conveniências políticas ou por possíveis incompetências,
mas porque foram alvo de injustiças causadas por intrigas políticas, no caso de Tenreiro
Aranha; e de invejas que atingiram Almada, tendo sua fama de bom administrador crescido
tanto que D. Francisco de Souza Coutinho, governador do Pará, “não tremeu em criar-lhe os
maiores embaraços e em infamá-lo junto à metrópole”
222
. Ambos deixaram seus cargos
políticos porque foram alvos de calúnias e difamações. Competentes como foram, dentro da
perspectiva da construção historiográfica de Arthur Reis, a imagem desses dois grandes
ícones deveria permanecer incólume.
Desse modo, a história escrita por Arthur Reis, como temos demonstrado até agora,
visava um fim prático na medida em que pretendia implantar nas novas gerações o ideal de
civismo proclamado por Álvaro Maia, sendo necessária a representação de figuras históricas
portadora de virtudes e de caráter inquestionável. A História do Amazonas visava incorporar
novos valores à sociedade através da história, na mais perfeita expressão da historia magistra
vitae. Através dessa proposta, Reis se distanciou da moderna busca da verdade proclamada
por Capistrano de Abreu, próximo que estava de Álvaro Maia e num contexto mais amplo
das proposições de Francisco Adolfo de Varnhagen
223
.
221
Ibidem, p.194.
222
Ibidem, p.146.
223
O primeiro capítulo desse trabalho, principalmente as páginas 49, 50 e 52, discute rapidamente a busca da
verdade em Arthur Reis que se distancia da proposta de Capistrano. Afonso de Taunay, seguidor de Capistrano,
na mesma linha de pensamento de seu mestre propunha que o historiador deveria se libertar do seu ponto de
vista moderno e aceitar que “os séculos transformam fundamentalmente o conjunto de idéias que formam o
caráter nacional ou o caráter de uma época”, portanto “imparcialmente” o historiador deveria tratar do tema que
era relevante para a época e não aquele que se apresentasse como significativo para ele no presente. (ARAÚJO,
Karine Anhezine de. Op. cit. p. 42) O exposto no presente capítulo também corrobora com a afirmativa desse
distanciamento de Arthur Reis em relação a busca da verdade histórica perseguida por Capistrano e por seus
seguidores.
88
2.2 “MESTRE DOS MOÇOS”
Pelo que indicam as missivas recebidas por Arthur Reis, sua missão de ensinar aos
moços amazonenses foi cumprida, em parte, na década de 1940. Através das cartas, pode
ser verificado o nível de influência que exercia sobre seus conterrâneos. Foi um intelectual
manauense que buscou seu espaço e, ainda, muito jovem saiu de Manaus rumo a Belém,
trocando uma capital em situação intelectual não tão privilegiada por outra, à época, vista
como mais promissora. Belém simbolizava o primeiro passo para quem queria se deslocar
rumo a um “novo mundo”, pois servia como ponto de partida para os que queriam alçar vôos
mais altos, que levariam ao grande centro Sul/Sudeste. Acerca da importância de Belém na
carreira dos que queriam galgar melhores postos, escreveu Moacyr Dantas a Arthur Reis em
1941:
“(...) Estimo saber que possibilidade na minha ida até ahi,
por conta da Prefeitura de Belém, para passar algum tempo
fazendo estudos nos arquivos paraenses. (...) O essencial é
sahir daqui com a garantia de um mez. O resto virá depois.
(...) Peço-lhe também todo o seu prestígio.(...) Calcule a dor
de cabeça dessa gente daqui, caso eu saia a convite do
Prefeito de Belém! Imagine as caras...
224
O primeiro e mais importante passo era sair de Manaus, símbolo de atraso cultural e
intelectual. O sucesso viria, consequentemente, com os contatos feitos em Belém,
possibilitando maiores realizações, nos grandes centros, sonho de grande parte dos estudiosos
amazonenses:
“Creio que Waldir já deve ter passado por aí. Este pode
dizer-se que triunfou. Levado por seu esforço e trabalho,
conseguiu atingir à meta de seus sonhos. Irá aos Estados
Unidos sorver o supra-sumo da ciência que professa. E
voltará, naturalmente, com uma nova mentalidade das coisas,
224
Carta recebida de Moacyr Dantas de Manaus em 07 de maio de 1941.
89
sem a estreiteza de ambiente e de clima que vivemos e sem a
involução que sofremos, principalmente na nossa terra natal.
Infelizmente a verdade é dura e crua. que não o podemos
acompanhar, resta-nos, a satisfação espiritual de vê-lo sair de
um vale e meter-se num vastíssimo oceano, onde tudo é
grande e belo. Onde não limites na mentalidade, porque
essa acompanhou as fronteiras extensas do desenvolvimento
econômico e intelectual. Acompanhou de perto as fronteiras
naturais que tomaram contato com outros povos. Ele haverá
de elevar o nome de nosso Estado à altura que merece,
embora este não tenha culpa de ser mal orientado. O
Amazonas é sempre o Estado sofredor e mais tristes são
ainda os seus filhos, que são comparados às aves de
arribação, nunca estão bem onde nascem não podem de
forma alguma se sujeitar ao mimetismo, porque aqui nada
valem ou valem menos do que os estranhos. Para que possa
progredir é necessário ir-se do torrão natal. Eis porque
Waldir ganhou 100% de vantagem e também porque todos
nós ambicionamos sair daqui, mesmo até para outros
Estados, contando que não vegetemos mais com os outros. E
também porque o senhor triunfou e lá fora. E agora
granjeou muitíssimo mais do que se aqui estivesse”
225
.
Arthur Reis havia conquistado um passo para a tão sonhada escalada rumo a outros
centros; de Belém recebeu provas da admiração dos amigos amazonenses. Moacyr Dantas
continuou, através das cartas, dando a medida da importância do grande historiador
amazonense. Mencionando, em carta ainda de 1939, sobre o livro que estava escrevendo,
pediu a Reis que escrevesse seu prefácio:
“E o prefácio? Como vai? Nem o Dr. Álvaro Maia, nem o
Jorge Andrade, nenhum leu os originais, pois somente quero
dar-lhes depois de encadernados, juntamente com o prefácio.
225
Carta recebida de Walter Vieiralves de Manaus em 22 de setembro de 1943. Grifo meu.
90
Isso é apenas um desejo de mostrar que minha obra recebeu
o aplauso do mestre de estudos amazônicos. Nada mais”
226
.
Dantas dispensava ao “Dr. Arthur Reis” um tratamento respeitoso e formal, ao mesmo
tempo em que expressava um nível íntimo de amizade entre os dois; amizade baseada na
admiração pelo historiador que, apesar do pouco tempo de experiência, já figurava como
grande exemplo a ser seguido, como expressou seu discípulo: “Dr. Arthur Reis, (...) Estou
resolvido a seguir-lhe os passos, senão publicando obras, ao menos escrevendo-as para eu
próprio ler”
227
.
André Araújo também expressou sua admiração por Arthur Reis, elegendo sua obra
como grande contribuição aos amazonenses:
“Recebi o seu magnífico livro “A política de Portugal no
vale amazônico”, que muitíssimo lhe agradeço. (...) li-o todo
de um fôlego só, pois o que você escreve tem o dom de atrair
o espírito daqueles que sabem apreciar a erudição.(...)
Pretendo escrever breve um trabalho de apreciação ao seu
livro, que bem merece o acolhimento que tem tido nas rodas
intelectuais do Paiz. Essa obra veio afirmar mais uma vez as
suas grandes qualidade de historiador e sociólogo. (...) O
Amazonas, ou melhor, o Brasil, deve ao seu talento uma
das maiores contribuições em prol das futuras gerações”
228
.
A Politica de Portugal no Vale Amazônico era o livro do momento, publicação
recente com a qual presenteava os amigos, como fez com a História do Amazonas, mas tendo
o autor muito mais renome e reconhecimento nas rodas intelectuais do país. Antonio Maia,
prefeito de Manaus em 1940, expressa sua opinião acerca das obras do autor que se tornara
motivo de orgulho para os amazonenses:
226
Carta de Manaus em 5 de março de 1939.
227
Carta de Manaus em 23 de abril de 1940.
228
Carta de Manaus em 8 de abril de 1940.
91
“Prezado e ilustre amigo Arthur Cezar, (...) Tenho grande
satisfação em acusar recebido o exemplar da nova e
magnífica obra de sua autoria intitulada A política de
Portugal no vale amazônico” (...) Suas obras representam
para o Amazonas um verdadeiro patrimônio histórico-
cultural, pela realidade descritiva dos seus entrechos, já
pela escolha feliz dos seus temas”
229
.
Moacyr Dantas continuou asseverando sobre a importância que o “mestre dos
moços”, Dr. Arthur Reis, tinha junto à intelectualidade, e de como suas opiniões possuíam
grande valor no meio intelectual amazonense. Reis o orientava em relação aos trabalhos que
estava escrevendo, e este, querendo se mostrar digno dessa orientação, muitas vezes
interpelava e desafiava o mestre:
“Recebi sua carta, onde me falava a respeito do estudo que
escrevi sobre o problema do índio na Amazônia. Diz o
senhor que entre o regime de colonização inglês e espanhol
com o português, há grande diferença. Concordo. Apesar
disso, espero seus ensinamentos, no artigo que vai escrever,
para então me convencer de que havia humanidade na
colonização do homem português. Disse, no meu artigo, que
a política da Corte era toda de proteção e de amparo ao
índio. As leis que a Metrópole nos mandava, todas elas, eram
de caráter benigno. Não neguei isso. Neguei apenas que elas
fossem adotadas aqui. A culpa da desumanidade existente,
portanto, não cabe a administração, mas somente ao colono
em si. Não acha que tenho alguma razão?”
230
.
Moacyr Dantas queria ser convencido por Arthur Reis, de que havia humanidade na
colonização portuguesa, dando a entender que havia recebido deste, através de carta, tal
afirmativa. Isso confirma o que temos exposto quanto à defesa que Arthur Reis fez da
colonização, o que, aliás, salta aos olhos na leitura da sua obra pelo leitor mais desavisado.
229
Carta de Manaus em 13 de fevereiro de 1940.
230
Carta de Manaus em 17 de junho de 1940.
92
Nesse sentido, não como deixar de relacioná-lo a Varnhagem. José Carlos Reis trabalhou
com clareza essa questão na História Geral do Brasil de Varnhagem, demonstrando que “o
olhar de Varnhagem sobre a história do Brasil é... o olhar do colonizador português”
231
. A
colonização foi vista por este “como bem-sucedida, trouxera a civilização européia, a religião
cristã e tornara produtiva uma região abandonada e desconhecida. Portugal integrou o Brasil
na rota da ‘grande história’”
232
. Nessa questão, a diferença entre ambos, era apenas que
Arthur Reis em vários pontos reconheceu as atrocidades cometidas pelos portugueses, mas as
justificou, sendo, desse modo, conivente; enquanto que Vanhagem defendeu com mais
contundência, tendendo mesmo, a não reconhecer a violência praticada, em muitos
momentos, durante o processo de colonização. Conforme José Carlos Reis, Varnhagem
defendeu
“...como sempre o colonizador: eles não matavam e
escravizavam os índios! Não sejamos tão injustos com os
nossos antepassados! Eles não podem se defender! Se houve
excessos, foram punidos. Os donatários se comportaram bem
com os indígenas! Eles procuraram coopta-los, defende-los,
tutela-los, cristianiza-los. A força só foi usada contra os mais
ferozes. O tipo índio, na verdade, ele afirma, desapareceu
mais em virtude de cruzamentos sucessivos do que do
verdadeiro e cruel extermínio”
233
.
Mas, retornando às cartas recebidas por Arthur Reis de Moacyr Dantas. Nessa relação
de embate produtivo, em 30 de abril de 1941, Dantas suplicou pelo apoio de Reis ao seu
trabalho e se propôs a retribuí-lo publicando críticas aos seus livros Lobo d’Almada e D.
Romualdo de Sousa Coelho. Essa carta também expressa possíveis rejeições dos governantes
e da imprensa às realizações de Reis, que merecem ser investigadas em momento apropriado.
“Dr. Arthur Reis
231
REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.
p. 33.
232
Ibidem, p.32.
233
Ibidem, p.40 e 41.
93
(...) Sei que o Mario Ipiranga e o Aderson de Menezes vão
publicar criticas, muito favoráveis a respeito da minha tese.
Mandarei ambas , para que o senhor veja como essendo
encarada, pelos moços daqui, uma vitória de moço. Não
esqueça de que a sua opinião escrita sobe até nós todos como
uma afirmação única. Peço, por isso, sua opinião. (...)
deve ter sabido de que fiz aproximação com o Abelardo
Condurú e em um almoço intimo, em casa dele, aclareei a
situação em que vivemos no Amazonas. Interessante a
admiração que ele sentiu ao saber que “o mestre dos moços”
(o Dr. Arthur) era visto com pouco apreço pelos governantes
da terra e até por gente de imprensa. (...) Logo que receba o
seu livro publicarei algo. Não se espante com o que
escreverei. O seu “Lobo d’Almada” e o “D. Romualdo de
Sousa Coelho” serão retratados. Mas retratados à minha
maneira. O Mario Ipiranga também escreverá a respeito”
234
.
Mas é de 1943 a carta que dá maior ênfase à missão de orientador de Arthur Reis:
“Creio que estou em grande falta com o ilustre Professor. De
vez enquanto tenho sabido de noticias agradáveis acerca de
sua personalidade e procurado ter contacto com a sua família
aqui.(...) Sentimos a sua falta, quando pela vez primeira saiu
daqui. Era o nosso mentor intelectual. Não somente nosso
como da mocidade amazonense. Esta foi que mais sofreu
com a sua falta. Hoje não tem aquela orientação nos traçados
de estudo com a que sempre lhe acudia nos momentos mais
precisos. Acha-se atualmente desunificada, dispersada,
melhor. Talvez hoje tivéssemos grupos bastante
aproveitáveis, centros de estudos e especializações.
Justamente é a nossa grande falta. Não possuímos nem
grupos, nem centros de estudos e menos ainda
especializações. Por que? Por falta de um orientador, de um
mentor da mocidade. Esta era a sua grande função aqui em
234
Carta de Manaus em 30 de abril de 1941.
94
Manaus. Cabia-lhe a missão árdua, mas dignificante porque
seriam reflexos de sua personalidade...E nos vimos forçados
a ficar sós, sem a sua assistência e sem a sua aquilatada
orientação”
235
.
Em 1944, Geraldo Pinheiro também reverencia o mestre:
“Caro prof. Arthur Reis
Sua carta, datada de Belém, deu-me a satisfação esperada,
pois é sempre com alegria que noto o mesmo entusiasmo e
amor, da parte do mestre, pelos assuntos de nossa terra.
Grato pela leitura dos meus trabalhos e o oferecimento de
sua orientação, para minha pessoa, desde os bancos de
escola, tão valiosa e indispensável”
236
.
Desse modo, a proposição de Arthur Reis foi em grande parte cumprida, pois através
do prestígio que alcançou com a produção incansável de trabalhos historiográficos conseguiu
influenciar parte dos moços amazonenses, proposta da sua História do Amazonas. As cartas
recebidas dos amigos de Manaus, de modo geral, davam notícias do meio intelectual local,
deixando latente a sensação de abandono pela qual passava a região em termos intelectuais.
Arthur Reis representava o “sucesso”, na medida em que estava conseguido despontar nos
círculos intelectuais dos grandes centros do país.
Num conjunto de cartas recebidas entre os anos de 1944 e 1949, fica notório o que
temos afirmado. Manaus ainda era, na visão de seus intelectuais, um ambiente provinciano e
a narrativa contida nas cartas que expressavam com pesar a situação do local tinha o objetivo
de compartilhar a situação de penúria pela qual passava a cidade, mas também visava receber
alguma ajuda do “mestre dos moços”. Afinal, este estava em contato com pessoas que
representavam o ápice da produção intelectual do país, e os manauenses que se
correspondiam com Arthur Reis pareciam ávidos em participar desse círculo, como
demonstra essa carta de Walter Vieiralves:
235
Carta de Walter Vieralves de Manaus em 10 de fevereiro de 1941.
236
Carta recebida de Geraldo Pinheiro de Manaus em 13 de setembro de 1944.
95
“Continuo a ser um fervoroso admirador de seus trabalhos e
de seu valor pessoal. Seu nome, aqui em Manaus, ainda é de
vez em quando relembrado por antigos discípulos, amigos e
por todos os que vêem, indiscutivelmente o seu valor.
Parece, que, quanto mais se distancia, mais se aproxima o
seu contato, a falta que faz na orientação das gerações novas
e no aprumo dos futuros destinos de nossa triste Terra. Faz
anos que o professor daqui saiu, amargurado pelo meio
sórdido, ingrato e fartamente hipócrita. Também outros
tomaram a mesma resolução. Agora, é minha vez. Saturado
das decepções administrativas que diariamente
presenciamos, do retrocesso da civilização e do ambiente
extremamente oposto à nossa mentalidade, é que resolvi ir
com minha pequena família residir em São Paulo. Creio que
o prezado amigo é conhecedor do meio e do ambiente que
ora temos atravessado aqui. Nada se faz, nada se constrói,
nada se produz. Tudo se vê. Parece a lei de Lavouisier ao
contrário. E assim, com os mesmos propósitos seus e dos
que se seguiram, outros virão atrás de mim, decepcionados
com os homens daqui. O Amazonas sempre é o Estado que
fica no extremo. Até na interpretação da mentalidade sempre
é o último a compreender o progresso. Em outros Estados a
mentalidade nova está em franco desenvolvimento e
trabalho. Aqui, ainda continuam os partidarismos
improdutivos e que tem por finalidade tornar o Estado do
Amazonas sempre na retaguarda da retaguarda. Vejo-me,
como filho daqui, a decidir o dilema irrefragável , emigrado
do Estado ou sucumbir. Eu vou optar pelo audacioso de sair
daqui, onde tudo é farsa e por este motivo é que nada temos
e nada somos. Parece incrível esta realidade que se anuncia
pelo lado oposto. Mas, porque temos uma política de
tapeação, de embromação é que permanecemos sempre
iludidos e nos iludindo a nós mesmos. Eis porque prezado
professor, dentro em breve, deixarei a nossa Terra na
esperança de me divorciar completamente dela, de me
desligar de todos os seus vínculos, para não mais participar
96
dessa inércia material e moral que assola os nossos
responsáveis pelo retrocesso do Amazonas
237
.
A
expressão “de vez em quando”, usada pelo autor da carta, para as lembranças que
os manauenses tinham de Arthur Reis, não diminui absolutamente, o valor que o mesmo
tinha para sua região. O próprio autor da carta menciona a falta que Arthur Reis fazia na
orientação às novas gerações. Mas, o que realmente queremos destacar dessas relações são as
descrições de uma Manaus que estava pedindo socorro, como sugere essa missiva de Geraldo
Pinheiro:
“Felizmente tenho a registrar para o mestre e amigo que o
ambiente de Manaus está se modificando a contento. Como
deveis saber, eu, Nunes, André, Ypiranga e outros fundamos
alguns meses o Instituto de Etnologia e Sociologia do
Amazonas, reunindo um grupo de elementos mobilizáveis
visando, exclusivamente, a terra e os seus problemas
culturais. O ideal seria a criação de um centro de estudos
amazônicos para abranger toda a preocupação de estudar o
que é nosso. Estamos em pleno movimento e tudo leva a crer
que venceremos a apatia do meio e a indiferença dos
responsáveis pelo destino de nossa terra. Esperamos contar
com vossa preciosa orientação no desenvolvimento de
nossas pesquisas”
238
.
Geraldo Pinheiro apresentou a criação de um novo Instituto, como paliativo à situação
de “apatia” pela qual passava a cidade. Com outras palavras, mas, expressando a mesma
situação, Djalma Batista reiterou:
“O Amazonas, que não o compreendeu, permitiu-lhe ao
menos isto: que, com a sua (digamos a palavra certa)
expulsão, lhe fossem abertas novas perspectivas aos labores
intelectuais, e muito mais ampla projeção perante o Brasil. O
país todo está lhe concedendo aquilo que a província
237
Carta recebida de Walter Vieiralves de Manaus em 18 de janeiro de 1944.
238
Carta recebida de Geraldo Pinheiro de Manaus em 09 de agosto de 1944.
97
mesquinha lhe negou. Abstraindo o travo inelutável da
mágoa que deve pungi-lo, por sem dúvida, convenhamos que
a vantagem foi sua, foi do Brasil e foi também do Amazonas,
onde não havia clima espiritual para a ampliação, que agora
se corrobora, dos horizontes de sua vida. (...) Meus parabéns,
pois, meu abraço fraterno e amigo, de congratulações pelas
suas merecidas vitórias. Esteja certo de que eu e muitos
moços, que lhe somos gratos e lhe conhecemos o quilate da
inteligência, o acompanhamos daqui, na sua escalada
ascensional, com o melhor do nosso carinho e da nossa
simpatia.
239
Num misto de admiração por Arthur Reis, descontentamento com a situação local e
pedido de ajuda intelectual, as cartas indicam a importância do manauense que havia dado
um passo em busca de alçar maiores vôos:
“Recebi a tua amável noticia de haver a minha tese sido
aprovada com “grandes louvores” no Congresso. Mas os
grandes louvores não serão porventura bondade tua? Sei que
devo agradecer a sua imediata preocupação, pois de outro
modo não creio que ela tivesse sido tão louvada. Mas como
quer que seja, foi para mim uma surpresa agradável a tua
noticia telegráfica. Espero que tenha gostado da
representação amazonense no Congresso. Ao menos não se
diga que ficamos no esquecimento, e você, meu nobre
amigo, não se esqueça de para o futuro procurar levar-me
pela mão até essa gente, que nós desconhecemos como
provincianos que somos”
240
.
De forma mais explícita, Mário Ipiranga, na carta citada acima, contou com o amigo,
para sua inclusão, como era comum no interior da “barganha saudável” que ocorria de um
modo geral, entre os intelectuais do país, como foi mostrado no capítulo anterior desse
trabalho. Anísio Jobim também contava com Arthur nesse mesmo sentido:
239
Carta recebida de Djalma Batista de Manaus em 25 de outubro de 1947.
240
Carta recebida de Mario Ipiranga Monteiro de Manaus em 11 de maio de 1949.
98
“Respondo sua última carta que me deu muito prazer. E
creia, estou admirado da sua invejável capacidade de
trabalho, em se tratando de coisas difíceis, e em que entra em
grande cópia a pesquisa bem dirigida. (...) Fico-lhe muito
obrigado por tudo. Desejo ingressar como sócio
correspondente do Instituto Histórico Brasileiro. Você será o
braço que me guiará a essa altura
241
.
Em suma, esse conjunto de cartas exposto, demonstra ao menos três situações para os
objetivos aos quais nos propomos: 1°) Os méritos colhidos por Arthur Reis entre os
intelectuais manauenses, cumprindo o objetivo citado na História do Amazonas de educar a
nova geração de sua terra “no exemplo dos homens que passaram”
242
; 2°) As queixas feitas
por seus amigos em relação à situação da intelectualidade local, inclusive retratando-a como
província, e sua população como sendo de provincianos, termos pejorativos usados
respectivamente por Djalma Batista e Mário Ipiranga, denotando o lugar de inferioridade
ocupado pela cidade em relação aos grandes centros de produção literária ; 3°) E
consequentemente essas queixas assumiam a função de um pedido de ajuda a um autor da
“terra” que, pelo trabalho realizado e pelo papel que ocupava junto à intelectualidade
brasileira, representava um possível e provável apoio aos seus pares.
Arthur Reis foi incumbido e assumiu o papel de “padrinho” da intelectualidade
manaura. Sendo ao longo do tempo considerado pelos seus amigos e intelectuais
manauenses, como exemplo de profissional e refúgio à falta de estrutura em termos de
incentivo à pesquisa pela qual passava a cidade. O Padre Raimundo Nonato Pinheiro quando
tratou dos “Aspectos evolutivos do IGHA”, escrito em 1967, retratou bem essa situação:
“Arthur Cezar Ferreira Reis marca uma fulgurante moldura
nessa casa, que lhe dedicou um salão e lhe apôs o retrato no
dia da sua solene reinauguração. Seu amor ao Instituto vem
de longa data. E sem sua passagem pelo governo do Estado,
tão benéfica ao progresso cultural do Amazonas não teria
241
Carta recebida de Anísio Jobim de Manaus em 27 de fevereiro de 1949.
242
REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas... p. 13.
99
sido possível a recuperação desta Casa, e mais do que sua
recuperação, sua prodigiosa opulentação”
243
.
A despeito do tom de lisonja contida nessas declarações, as mesmas denotam a
importância que Arthur Reis continuou a ter para as gerações moças do Amazonas, pois em
1967, muitos anos depois de sua primeira publicação e agora com o peso de ter sido
governador do Estado, recebia ainda mais os louvores pela atuação junto aos intelectuais
locais. O Boletim do IGHA de 03 expõe a situação de abandono da Instituição e a falta de
investimento das autoridades, realidade melhorada quando da passagem de Arthur Reis pelo
Governo:
“Era o Governo Revolucionário do Professor Arthur Cezar
Ferreira Reis, que assumia as rédeas do Estado, era o
Secretário Perpétuo do Instituto Geografico e Historico do
Amazonas que estava no poder e numa visita que fez, a
nosso pedido, a “Casa da Memória Amazonense”, num
domingo, acompanhado da esposa e que constatou a miséria
e sua decepção foi incontida, sentiu também a revolta e
vendo a necessidade por que passávamos deu-nos uma ajuda
de dois milhões de cruzeiros velhos, com a qual, num alento
de satisfação, pudemos evitar, em parte, a queda desastrada
de nosso rico Salão Nobre...”
244
Enfim, trinta e seis anos depois de sua primeira publicação, Arthur Reis ainda com
mais força continuava a ser o “mestre dos moços”, certamente que com alguns desafetos
245
,
porém mantendo sua posição de destaque iniciada na década de 1930 com a edição de sua
primeira obra. Na década de 1940, encontramo-lo, visto através das cartas recebidas, como
grande historiador a oferecer um auxílio aos colegas no campo das idéias. Em 1967, depois
de ter passado pelo governo, foi reconhecido por poder contribuir também com a estrutura
243
PINHEIRO, Raimundo Nonato. “Aspectos evolutivos do IGHA”. In: Boletim do IGHA de 1967. Edição
Comemorativa ao Cinqüentenário de Fundação do Instituto.
244
Boletim do IGHA, n° 03, de 1967.
245
O próprio Álvaro Maia, anos depois da proximidade que teve com Arthur Reis, parece ter se tornado seu
desafeto. (Em carta recebida de Genesino Braga de Manaus em 01 de janeiro de 1940, este teceu comentários
negativos quanto à Álvaro Maia, sugerindo um possível desencanto de Arthur Reis para com aquele).
100
física da Instituição que representava o Centro do conhecimento geográfico e histórico da
região.
101
3.1 HISTÓRIA DO AMAZONAS: “ORGULHO DOS AMAZONENSES”
“O leitor da História do Amazonas chega ao fim das
duzentos e sessenta páginas maciças, que compõem o livro,
com uma noção clara, vivaz do nosso drama civilizador, das
nossas conquistas, dos nossos sofrimentos, da nossa
grandeza e da nossa glória”
246
.
A História do Amazonas assumiu a função de representante maior da historiografia
amazonense entre os intelectuais locais. Veio para preencher uma lacuna e foi recebida como
trabalho mais “completo” comparado aos poucos escritos anteriormente. Afinal, “antes o
Amazonas ainda não tinha escrita a sua história sistematizada. Havia escritos e crônicas
fragmentárias, esparsos, muito difícil de reunir, e de ler”. A Cidade de Manaus e a
Corografia do Amazonas, respectivamente de Bertino de Miranda e de Agnello Bittencourt,
são apontadas por Anísio Jobim como únicas publicações antes da História do Amazonas. A
primeira “de tão sintética é mais um arcabouço de história, como chamou o seu preclaro
autor”, e a segunda “condensa grandes estudos”. Mas foi Arthur Reis “mostrando uma
cultura superior, um cabedal científico extraordinário” quem “organizou a história do
Amazonas”
247
.
Anísio Jobim escreveu sua crítica sobre a História do Amazonas, no jornal de
propriedade do pai de Arthur Reis, onde este era redator. E pelo grau de amizade que ambos
nutriam mutuamente, a crítica, obviamente, ressaltou os aspectos positivos da publicação,
com todos os elogios merecidos” pelo autor do livro. Entretanto, não deixa de ser uma
crítica útil ao que propomos desenvolver, na medida em que ressalta o tom de pioneirismo do
trabalho e junto com a crítica de Agnello Bittencourt, também publicada no Jornal do
Comércio, demonstra mesmo que rapidamente o tipo de leitura que foi feita da obra.
Apesar de ter sido uma obra de grande importância, a História do Amazonas recebeu
apenas três edições. A primeira de 1931, a segunda de 1989 e a terceira de 1998. “Que dizer
sobre a estranha ocorrência de um livro, publicado no ano de 1931, em Manaus, logo se
esgotando, (...) permanecer nas sombras, quando, por sua importância, deveria ter aparecido
246
JOBIM, Anísio. “História do Amazonas”. Jornal do Comércio. Manaus, sex. 23/10/1931.
247
Ibidem.
102
sucessivamente nestes longos tempos que se contam em mais de meio século?
248
. Esse
questionamento feito por Leandro Tocantins quando da terceira edição da obra, pode ser
respondido possivelmente, menos pela falta de procura pela obra do que pelo envolvimento
do autor com outras publicações, visto que a História do Amazonas foi a primeira de um
grande número de obras publicadas por Arthur Reis. Ao menos é o que expressa a carta de
Genesino Braga, então diretor da Biblioteca Pública dos Estado, recebida por Arthur Reis em
1944:
Que está preparando, você, agora? Não pretende reeditar a
“História do Amazonas”? Havia muito andava em luta para
obter um exemplar para a Biblioteca, onde dele se fazia
muita procura e eu ficava um tanto vexado para explicar que
não tínhamos. Cheguei a anunciar nos jornais. Finalmente
consegui comprar um exemplar bastante usado, por Cr$
120,00. Mandei encadernar e está prestando bons serviços,
principalmente aos americanos, que muito o procuram. Um
capitão aviador americano, na impossibilidade de adquirir
um exemplar, chegou a pagar Cr$ 200,00 a uma datilógrafa
nossa para copiar alguns capítulos que o interessavam. Penso
que uma reedição valeria a pena. Esta é, pelo menos, a
opinião de um Bibliotecário, esse obscuro intermediário sem
lucros entre o produtor e o consumidor de lucros.
249
Em 1972, portanto, antes da segunda edição da História do Amazonas, uma
reportagem do Jornal A Crítica sob o título Arthur Reis, um dos mais procurados na
Biblioteca, visava informar ao público sobre os espaços, acervos e funcionamento da
Biblioteca Pública. Entre as informações sobre os livros mais procurados, o jornal informou:
“A História do Amazonas, de autoria do professor Arthur Cezar Ferreira Reis, ex-governador
do Estado, é o mais procurado, seguido de Oliveira Lima”
250
. Sem informar maiores
detalhes, a reportagem sugere a importância para o público amazonense da primeira obra de
autoria de Arthur Reis, ainda que este já tivesse publicado diversos outros trabalhos.
248
TOCANTINS, Leandro. Arthur Cezar Ferreira Reis: da História ao governo de seu Estado. In: REIS, Arthur
Cezar Ferreira. História do Amazonas. Belo Horizonte: ed. Itatiaia, 1998.
249
Carta de Genesino Braga a Arthur Reis de Manaus em 30 de dezembro de 1944.
250
“Arthur Reis, um dos mais procurados na Biblioteca”. Jornal A Crítica, Manaus, 10 de março de 1972.
103
Inicialmente, quando da primeira publicação, o livro surgiu como obra de um
“menino”, o jovem Arthur Reis, que apesar da pouca idade, como visto na introdução deste
trabalho, atraía muitas expectativas quanto ao seu potencial intelectual. A tenra idade
trouxe aos apresentadores da sua obra à imprensa local, os já referidos Anísio Jobim, Agnello
Bittencourt e Alberto de Castro e Carlyle de Chevalier a preocupação de validar seu trabalho.
Carlyle de Chevalier foi bem específico quanto a essa questão:
A juventude desse elegante escritor, viçosa e reverberante,
sempre esteve a serviço dessa invulgar paciência do
pesquisador da História, quer Universal, quer
particularmente do Amazonas.
Não lhe faltaram, contudo, pela agravante incongruente da
mocidade florida de estudioso, as turras e os cochichos dos
mosqueteiros da perfídia insidiosa, que os em toda parte,
guiados ali pela senilidade apavorante de um velho rebutalho
da quadrilha Rego Monteiro, ainda escapo – sabe Deus como
da vergasta necessária dos homens dignos do Amazonas
com o intuito de empanar o brilho da vitória decisiva que
o ilustre historiador alcançou merecidamente.
251
O cenário é de intrigas políticas, mas não iremos entrar no mérito da questão para não
desviarmos do foco principal. O quadro que temos é de um grupo disposto a legitimar o
trabalho de Arthur Reis, posto à prova por determinado segmento da sociedade manauense
que duvidava de tal trabalho saído da “pena” de um tão jovem escritor. Alberto de Castro e
os demais escritores citados publicaram suas críticas em 1931, antes de Chevalier, e
expressavam a mesma necessidade de legitimar o trabalho do jovem escritor.
(...) fui lendo grande parte do livro, tendo podido formar uma
segura opinião sobre esse belo espécime da nossa cultura
regional, a História do Amazonas de autoria do esforçado e
apreciado jornalista, que é o Dr. Artur Cezar Ferreira Reis,
um dos mais jovens e distintos intelectuais do Amazonas.
251
CHEVALIER, Carlyle de. “História do Amazonas”. Jornal O Imparcial. Manaus, 01 de janeiro de 1932.
104
Muito moço admirei a temeridade do gênero literário com
que se estreava, pois demanda de uma pena forte, que
gravando, imperturbável e friamente, os atos, os feitos, as
cousas e os fatos de um povo, conservando completamente
independente a sensibilidade natural, do pensamento que vai
delineando a idéia e traduzindo-a para o papel
252
.
No texto de Anísio Jobim se faz presente também a apresentação de um autor “no
verdor dos anos”, mas com um “cabedal científico extraordinário”
253
. Agnello Bittecourt, na
mesma linha de pensamento, anunciou que acabava de sair
(...) a História do Amazonas, da lavra do Dr. Arthur Cezar
Ferreira Reis. O seu jovem autor, (...) sempre teve um
especial pendor uma natural vocação para o estudo da
História. (...) Obra de um espírito moço, mas ponderado, está
destinada à consagração dos que lhe quiserem fazer justiça
(...)
254
.
A palavra jovem e moço foram unanimidades entre as publicações de críticas
favoráveis ao trabalho, mas sempre acompanhadas de adjetivos que tornavam a pouca idade
apenas um detalhe diante de tamanha competência enxergada pelos seus críticos
admiradores.
Essas críticas visavam apresentar o trabalho ao público local, desfazer qualquer
dúvida em relação à qualidade do trabalho, devido a pouca idade do seu autor, para então
tornar o livro um arauto da história Amazonense. Afinal, a conjuntura que o Estado
atravessava diante da consolidação da crise da borracha
255
afligia seus intelectuais que
buscavam uma saída e uma forma de se impor no contexto nacional
256
.
252
CASTRO, Alberto de. “História do Amazonas”: de Arthur Cezar Ferreira Reis. Jornal do Comércio. Manaus,
25 de outubro de 1931.
253
JOBIM, Anísio. “História do Amazonas”. Jornal do Comércio. Manaus, sex. 23/10/1931.
254
BITTENCOURT, Agnello. Op. cit.
255
Capítulo 2 deste trabalho, p. 38.
256
Caberia aqui uma discussão sobre regionalismo devido à necessidade da população local em ter um
representante diante da posição “periférica” que ocupava em relação ao “sul maravilha”. As quatro críticas
sobre a obra a apresentam como portadora de um conhecimento necessário aos de fora do Estado. O Brasil
deveria conhecer o Amazonas.
105
Assim, a História do Amazonas cumpriu a função de “criar” a primeira sistematização
mais completa da história do Estado, estruturando um conhecimento que seria “vendido” ao
Brasil; e de forjar pontos de vista acerca de determinados temas que foram aceitos como
verdade pelos seus críticos. O texto de Alberto de Castro congrega todas essas expectativas
em relação à obra:
Irmanou a sentimentalidade regional com o sentir pessoal,
lançando deste Paraízo Verde, cheio de encantamentos, de
riqueza e de mistério, a Vitória Régia dos anaes
amazonenses através das multidões da terra brasileira, onde
ainda caso original o Amazonas é tão pouco apercebido
e tão mal e indevidamente apreciado, quer no seu próprio
valor, quer no heroísmo de seus filhos, quer nas suas
manifestações de alegria ou de amargura, passando através
dos tempos e dos fatos, altivo, forte, dedicado e leal, sempre
resignado e cheio de fé e de esperança
257
.
O sentimento regional estava ferido; o Brasil não dava a devida atenção às coisas do
Amazonas, apesar deste estar sempre “cheio de e esperança”, como antes propunha
Álvaro Maia. Aliás, essa discussão está inteiramente relacionada com a do capítulo anterior.
Arthur Reis e sua História do Amazonas foram produtos de um momento em que o Estado
atravessa a fase final das agruras da crise da borracha, tendo sido depositário de um ideal de
civismo que visava reerguer o Estado, ainda que, no campo intelectual. Sua primeira obra foi,
de certo modo, porta-voz de um grupo que almejava notoriedade além das fronteiras do
Norte do país:
O livro História do Amazonas incontestavelmente é um
triunfo e fará sucesso; se um paladino da terra
amazonense; uma vibração da alma heróica da nossa gente,
ecoando galhardamente ao longo dos esmaltes floridos da
selva e do sussurro das torrentes prodigiosas, levando o
canto da vitória através do azul onde cintila o Cruzeiro,
esculpindo na etérea página do infinito, seus feitos, suas
257
CASTRO, Alberto de. Op. cit.
106
glórias e suas dores, em caracteres de brilhante imortalidade,
revivendo e palpitando nessas páginas o altruísmo da vida
regional e, de certo, da grandeza nacional
258
.
O livro foi recebido como representante maior da história amazonense, orgulhando os
seus filhos, por imortalizar os seus feitos e torná-los mais que um mero “conjunto social”:
A obra é um ensinamento e uma revelação; tem forma, tem
qualidades, demonstrando cultura e proficiência; tem
equilíbrio na exposição; tem todos os requisitos para, com
justiça, ser recebida com aplausos, com encômios, e tornar-
se orgulho dos amazonenses, pelos aspectos, pela
originalidade e pelo assunto em que culminam fatos que
ilustram, engrandecem e imortalizam um povo.
E um povo sem história, não é precisamente um povo; não
passa de um mero conjunto social que vive e passa com
espetros; e o Amazonas tem história, e tanto que Artur Reis
acaba de brilhantemente a escrever e publicar
259
.
Sendo uma obra que assumiu lugar de destaque no espectro de parte dos intelectuais
amazonenses e tendo seu autor crescido em importância para o seu Estado, cabe a discussão
em torno dos principais temas por ele abordados, visto que foi uma fonte produtora de
determinados eixos de “verdade” que permearam a visão da população local sobre a sua
história, isto é, muitas das representações construídas por Arthur Reis na sua História do
Amazonas receberam status de “verdade” dos seus leitores e merecem ser vistas mais de
perto.
258
CASTRO, Alberto. Op. cit.
259
Ibidem.
107
3.2 HISTÓRIA DO AMAZONAS: TEMÁTICAS E ABORDAGENS
Vê-se, pelas páginas da História do Amazonas que os
arautos da civilização ibérica haviam despertado bem cedo,
para a luta, que logo tiveram, de dividir o território e chamar
à sua fluência e posse as grandes riquezas sonhadas e, depois
verificadas nessa parte da América
260
.
Agnello Bittencourt ressaltou o fio condutor da História do Amazonas: a busca pela
civilização, isto é, a trajetória dos “grandes homens” que a tornaram possível. Como visto,
ainda que de forma resumida, no primeiro capítulo deste trabalho, Arthur Reis desenvolveu
toda a sua argumentação, defendendo a colonização que, afinal, teria sido a responsável por
tirar o Amazonas do estado de barbárie no qual se encontrava antes da chegada dos europeus
e no qual ainda permaneceu por longo tempo, sendo motivo de trabalho duro para os colonos
e missionários.
As temáticas eleitas para essa discussão são exatamente os esteios com os quais o
autor sustentou a obra. A relação índios/sertanistas/missionários, cheia de intempéries,
deveria resultar na civilização. Nosso autor transferiu para as personagens históricas seus
anseios pelo civismo e sua preocupação com a formação de uma consciência de pátria que
não eram próprias do contexto histórico que estudou, mas fazia sim, parte do seu tempo
presente.
Assim, é de fundamental importância compreender quais foram as representações
construídas por Arthur Reis em torno dos indígenas, sertanistas e missionários, sendo estes os
responsáveis pela “salvação” daqueles do estado de barbárie em que se encontravam. Que
lugar o autor deu em sua obra a esses três grupos ainda que tenha tratado deles de forma
genérica? A resposta para essa questão tem dupla finalidade: a) desvendar que tipo de
história Arthur Reis colocou em prática tendo sempre em vista que suas análises foram
gestadas e compartilhadas por um grupo de intelectuais locais e, portanto nos a dimensão
de como a região foi pensada nesse período; b) dada a importância da obra e compreendendo
de que forma o autor construiu suas representações acerca dessa temáticas, estaremos mais
próximos de chegar às formas de apropriação que os leitores locais fizeram dessas questões.
Mas, essa é apenas uma sugestão para futuros trabalhos.
260
BITTENCOURT, Agnello. Op. cit. Grifo meu.
108
Impregnada das propostas de Álvaro Maia, a História do Amazonas lançou as bases
para a construção de uma forma de pensar a história amazonense que, conforme Anísio
Jobim, trouxe à tona assuntos desconhecidos “ou rapidamente tratados pelos cronistas”
261
; e
pela repercussão que a obra alcançou, certamente essas bases permearam a visão de história
local, tornando-se presentes no conjunto da população.
Iremos em busca das representações construídas por Arthur Reis na História do
Amazonas acerca da imagem dos três grupos que participaram do processo de colonização do
Amazonas que resultaria na tão esperada civilização. Como a proposta do autor não era
discutir diretamente a história indígena sob pena de tornar o trabalho “maçudo”
262
, não
encontramos na obra definições claras da visão que o mesmo possuía em torno dessa temática.
Entretanto, ao longo da obra e de forma dispersa encontramos alguns indícios do modo como
o autor pensava esse nativo.
De um modo geral, em vários trechos, como seria esperado, visto que o autor defende a
colonização, o indígena foi apresentado como um impeditivo à colonização/civilização
263
.
Portanto, legitimamente sujeito às formas que fossem necessárias para civilizá-lo. O bárbaro,
selvagem, de costumes rudes, como Arthur Reis preferia denominar os nativos, precisava
ceder aos novos hábitos impostos pelos colonos e missionários a fim de que se completasse a
obra civilizadora.
Longe de ter formado uma concepção homogênea, Arthur Reis, deu uma conotação ao
nativo ora como “selvagem”, que precisava ser “domado”; ora como “menos bárbaro”, isto é,
o índio bom que de algum modo contribuiu para o processo colonizador. No primeiro caso
eram os que se impunham ao avanço dos sertanistas e missionários, sendo por isso
merecedores de justa punição. Como pode ser visto quanto tratou do tratamento enérgico de
“Gonçalo Pizarro [que] não poupava um só indígena que lhe caísse às mãos. Assinalava a
passagem em rastros de sangue. Os índios que lhe mentiam nas informações pagavam caro a
ousadia, queimados em vida ou entregues aos cães que lhes dilaceravam as carnes e as
devoravam”
264
Esta questão está evidenciada no capítulo anterior deste trabalho quando
tratamos da exaltação de Reis aos colonizadores, sem imputar-lhes falta quanto ao massacre
que realizaram contra os nativos.
261
JOBIM, Anísio. Op. cit.
262
REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998. P. 35.
263
Colonização/civilização: os termos vêm acompanhados porque durante a narrativa de Arthur Reis
percebemos que conta a história da colonização, porém, com o fim maior de chegar ao seu ápice, isto é, a
colonização, estando, portanto um termo relacionado ao outro.
264
REIS, Op. cit. p. 42.
109
No segundo caso estão os nativos que, de certa forma, até auxiliavam na colonização,
não apresentando resistência aos sertanistas e/ou missionários. Ainda sobre a expedição de
Gonçalo Pizarro antes de se separar de Francisco de Orellana, Reis asseverou: “A expedição
lançou-se de novo pelo desconhecido. Beirando o Coca, foi sair entre nativos que, menos
bárbaros, cobrindo-se em vestes de algodão, conheciam o milho que empregavam no fabrico
do pão. Pizarro socorreu-se deles...”.
265
Quando construiu um rápido panorama da atuação de Portugal no primeiro século de
colonização que lançou “as bases de um grande império-colonial”, Arthur Reis teceu uma
narrativa perfeita do empreendimento português. Após o estabelecimento do sistema de
Governo-Geral, para o autor, a partir daí deu-se início à colonização com segurança e
eficiência. Os bandeirantes avançaram pelo sertão “dilatando o território”. Foram fundadas as
primeiras cidades ao longo da costa e no sertão surgiram os primeiros povoados. O comércio
com Portugal era praticado de forma intensa. O gado “espalhava-se em fazendas florescentes”
e até o próprio selvagem prestava o seu concurso, deixando-se aldear”. Nesse caso, apesar
de ter usado a denominação de selvagem para esses nativo, fica evidente que os mesmos
contribuíam para a colonização, o que os torna co-participantes do processo que levaria a
civilização
266
.
No ponto onde relatou as demarcações de terras feitas por portugueses e espanhóis na
Amazônia, frisou que os demarcadores contaram com a “bondade” dos nativos. Na expedição
demarcadora de 1782, portugueses e espanhóis discutiam qual seria “o verdadeiro curso da
grande artéria diante das várias extensões fluviais”.
Corriam nesse desencontro de opinião as verificações quando
violenta epidemia de febre assolou o rio. Os demarcadores,
impossibilitados de fugir-lhe aos efeitos, atingidos por ela,
socorreram-se dos índios Coretus que se revelavam cheios de
caridade cercando os enfermos de cuidados extremosos
267
.
O
s missionários também aprenderam com o nativo que na compreensão de Arthur
Reis, quando “menos bárbaro” deixaram sua contribuição:
265
REIS, Arthur Cezar Ferreira. Op. cit. P. 42. Grifo meu.
266
Idem, p. 38.
267
Ibidem, p. 138. Grifo meu.
110
Desde o primeiro instante, recebendo a lição do nativo,
tinham aprendido a aproveitar as riquezas que lhes oferecia a
terra, regada pela maior corrente d’água doce que o mundo
conhece. As reservas piscosas, os frutos selvagens, a caça dos
matos, toda, enfim, a cozinha indígena, entrara a ser aceita,
saboreada, com grandes desvantagens para a alimentação
européia, que fora sendo posta de banda
268
.
Em outro momento, quando tratou da população da Capitania de São José do Rio
Negro, também ressaltou a contribuição dos nativos: “essa gente toda alimentava-se da caça,
da pesca e dos produtos naturais, que os índios ensinavam a aproveitar em vinhos saborosos.
A cozinha européia desprestigiava-se dia a dia”
269
.
Esse posicionamento de Arthur Reis de forma a não generalizar quanto à barbárie do
nativo, possivelmente estivesse ligado com sua preocupação em resgatar aspectos positivos
dos nativos, que foram das relações desses com os brancos que surgiu “os fundamentos da
família amazonense”
270
. Tendo em vista que estava sistematizando um pensamento sobre a
história do Amazonas que se pretendia servir às novas gerações, de algum modo os nativos
tinham que ser valorizados; afinal, eles estavam na base da formação da população do
Amazonas. Talvez daí venha a explicação para corroborar com a exaltação ao mito
Ajuricaba, pois de que forma explicar tamanha admiração de Arthur Reis a um guerreiro
nativo que impôs resistência à colonização/civilização que tanto procurou destacar em sua
narrativa? Era preciso incluir um típico “amazonense”, ou o “grande amazônida”
271
no rol de
“grandes homensque estava criando na História do Amazonas. Interessante como Arthur
Reis descreveu os Manaus de forma diferenciada como a merecer, junto ao seu líder
Ajuricaba, as glórias da resistência ao invasor:
Indômitos, assinalando a presença pela força das armas,
esses ameríndios destacavam-se no volume das gentes, por
que se impunham às demais, exigindo-lhes vassalagem,
obrigando-as a sujeição. Não lhes tendo sido possível
dominar os Cararais, do Cauauri, esmagaram-nos
268
Ibidem, p. 71.
269
Ibidem, p. 130.
270
Ibidem, p. 122.
271
Dessa forma Agnello Bittencourt preferiu denominar Ajuricaba.
111
completamente. (...) Votavam a mais decidida aversão aos
brancos conquistadores que vinham subindo o rio e contra o
qual se defenderam sempre. (...)
Povo, inegavelmente, superior a quantos correram a bacia, o
elogio dele está no respeito com que o olhavam as
autoridades régias (...)
272
.
Os nativos foram exaltados devido sua resistência à conquista, diferente do que
aconteceu ao longo do restante da narrativa, onde os índios foram bem vistos quando
auxiliaram os conquistadores. Quando tratou de Ajuricaba, os “brancos conquistadores”
referidos na citação acima não são os heróis da civilização antes revelados, mas agora estes
especificamente faziam parte da massa de sertanistas que cometeram desatinos os mais
variados na caça ao índio. Os heróis, diferentes dessa massa de sertanistas, foram antes
colocados acima de qualquer suspeita. Como vimos no capítulo anterior deste trabalho,
quando tratamos da preocupação de Reis em eleger “grandes” sertanistas, mas, esses
sertanistas contra quem os Manaus guerreavam estavam imbuídos de uma “faina violenta de
fazer escravos. Faina de tal modo violenta que de Portugal o monarca ordenara ao
governador Christóvão da Costa Freire que tomasse cuidado, empenho, em fazer evitar
tamanhos desacertos que resultavam mal para a religião e para o Estado”
273
. Diante da
“avançada criminosa” desses sertanistas com o fim de obter escravos, “os Manaus
entenderam que os recursos da força. Formou-se, por esse tempo, a maior confederação
ameríndia da Amazônia. Todos os Manaus, obedecendo ao sentimento de justa repulsa ao
sertanista preador, se dispuseram a continuar na guerra que os tinha tornado famosos e
respeitados”
274
. Enquanto em outros momentos Arthur Reis justificou a ação dos sertanistas
quanto à dizimação de nativos, nesse caso fez o inverso, pois justificou a ação dos nativos
quanto à sua repulsa ao sertanista. O importante era contar a história do “nosso drama
civilizador, das nossas conquistas, dos nossos sofrimentos, da nossa grandeza e da nossa
glória”
275
; e Ajuricaba fazia parte dessa glória, elevado que foi à galeria dos “grandes
homens”. Afinal, “mais adiante, por meados do século XVIII, em pazes, em fusão com os
272
REIS, op. cit. p. 93.
273
Idem, p. 94. De um modo geral os sertanistas foram considerados por Arthur Reis juntamente com os
missionários como responsáveis pela grande obra colonizadora, mas quando necessário, como nesse caso em
que o alvo de interesse era Ajuricaba, ajustava a narrativa desvalorizando aqueles em função destes.
274
Ibidem, p. 94.
275
JOBIM, op. cit.
112
povoadores, aquietados, para muitos perdido o ânimo vibrátil, guerreiro, deram origem aos
mais antigos troncos da sociedade amazonense”
276
.
Mais um motivo, talvez o principal motivo, para que Arthur Reis corroborasse para a
legitimação do mito Ajuricaba. Se os Manaus estavam na origem da sociedade amazonense,
eles não poderiam estar representados na História do Amazonas sem o devido exemplo de
heroísmo que Arthur Reis pretendia deixar para os moços do Amazonas. Aliás, nessa questão
o autor da História do Amazonas também mostrou a sua vida para com Álvaro Maia que,
em sua Canção de e Esperança, conclamava a mocidade para reagir às opressões,
animado pelo exemplo de Ajuricaba:
Somente o esplendor dessa hora febril, clarinando em nossos
horizontes pela redenção, teria o milagre de acordar na alma
da mocidade as energias adormecidas vertendo-lhe aquele
desapego que levou Ajuricaba à rebelião e à morte, dos
modos supremos de reagir às opressões e às tiranias, quer
partam de estranhos violando a integridade do solo, que
partam de homens da mesma raça poluindo as reservas do
Estado, pelo engano aos que o servem com desinteresse, pelo
afastamento dos que o defendem com patriotismo.
277
Embevecido por esse sentimento de exaltação à Ajuricaba, Arthur Reis narrou de
forma emocionada seus feitos. Das três grandes aldeias existentes num dos afluentes da
margem esquerda do rio Negro
Em uma delas era principal o distinguido Ajuricaba, que a
sua gente amava e temia, escreveu um cronista. “A natureza
o tinha dotado com ânimo valente, intrépido e guerreiro”.
Filho de Huiuiebéue, dos maiores chefes do Manaus, neto de
Caboquena, que votava o mais decidido ódio aos
portugueses, Ajuricaba, segundo a lenda, “era robusto, forte
e corajoso”. “As filhas dos Tocanos e Bares o disputavam”.
Escolhera, porém para companheira “a mais bela cunhatã
dos Tariás poderosos”. Herdando do avô a aversão ao branco
conquistador, abandonara a casa paterna por discordar da
276
REIS, op. cit, p. 93
277
MAIA, Álvaro. Canção de Fé e Esperança. In: Poliantéia, p. 147.
113
aliança firmada com eles por Huiuiebéue. Regressara para
vingar-lhe o assassínio, praticado pelos estrangeiros
cobiçosos, malvados. Ninguém com melhores títulos, pois,
para dirigir a luta.
278
Arthur Reis que em outros trechos da narrativa não escondeu sua admiração pelo
sertanista português, abriu essa exceção desmerecendo os portugueses em nome do líder
guerreiro do povo dos quais os amazonenses são descendentes. Apresentou, portanto, com
orgulho a bravura de Ajuricaba contra o invasor:
Ajuricaba, que se criara a ver o modo violento por que
tratavam os seus, deu então o grito de rebeldia. Até 1727, à
frente de centenares de bravos, guiou-os no combate ao
invasor das terras, enchendo de pavor as posições
portuguesas e pondo em perigo o domínio da velha nação
ibérica. (...) ia levando a destruição até aldeiamentos de
ameríndios, quando os sabia aliados aos portugueses.
Castigando esses nativos, escravizava-os, incendiava-lhes os
povoados, assinalando-se em sangue e fogo. Noutras
ocasiões entrincheirava-se em estacadas de pau-a-pique, a
modo das fortificações dos conquistadores, desafiando-os,
certo de que não seria atacado, o que de fato jamais ocorreu,
dado o ardor por que se batia.
279
Entretanto, apesar de aberta essa exceção em prol do nativo, o desfecho do acontecido
para Arthur Reis não poderia ser outro. Ajuricaba foi elevado a um nível de heroísmo,
devendo ser lembrado pelo exemplo de bravura, mas a resistência por ele liderada “na
verdade, não podia perdurar (...), do contrário Portugal teria de perder a Amazônia à rebelião
de todas as nações indígenas, levadas à guerra justa pelo exemplo de energia da gentilidade
rionegrina”
280
.
O governador Maia da Gama conseguiu autorização para realizar guerra justa contra
os Manaus e os Mayapenas comandada por João Pais do Amaral. Ajuricaba foi preso. “A
278
Ibidem, p. 94.
279
Ibidem, p. 95.
280
Ibidem, p.97.
114
lenda informa que houve choque violento. De parte a parte, muito heroísmo.” Ou seja,
novamente é regatado o louvor aos portugueses por estarem retomando a “ordem” na
Amazônia que de outro modo seria perdida. Mas, Ajuricaba teve um fim digno de um
verdadeiro herói: depois de preso, sendo transportado até Belém ainda rebelou-se
“ameaçando seriamente a tropa de Pais do Amaral” que reagiu dominando a rebelião e,
“depois de muito sangue vertido, para não sujeitar-se às humilhações do inimigo, ufano da
vitória, lançou-se com outro principal às águas do oceano fluvial que tanto amava”
281
.
O fim trágico do herói Ajuricaba não poderia ser outro, visto que a
colonização/civilização deveria continuar. Assim,
Os resultados de todo esse esforço dos portugueses não
custaram. Os povoados, os aldeiamentos carmelitas
começaram a prosperar. Castigados severamente, sem chefe
que os levasse a novas correrias, os próprios Manaus
cederam, (...), atendendo aos carinhos dos religiosos. O
principal Camandari, (...) aceitou a catequese, concordando,
mais, na descida de outros principais com o que ficou
organizada a aldeia de Mariuá, hoje Barcelos, logo povoada
por duas mil almas
282
.
O
s nativos menos bárbaros já faziam parte do “sistema” de colonização enquanto que
os selvagens precisavam ser inseridos nesse “sistema”. Por isso, a visão de Reis sobre esses
nativos está dividida basicamente nesses dois grupos, os selvagens e os menos bárbaros, com
exceção ao mito Ajuricaba, em favor de quem modificou a forma como vinha qualificando
esses nativos. Porque Ajuricaba, apesar de nativo, possuía uma elevada noção de resistência
de modo organizado que pressupunha certo grau de inteligência. Inclusive, Arthur Reis
atribuiu a Ajuricaba o título de ter sido “um dos primeiros a batalhar pela liberdade da
América”
283
, ou seja, apesar de impor resistência aos portugueses os Manaus não foram
enquadrado na categoria de bárbaros por terem de algum modo apresentado organização na
forma de resistir na luta pela liberdade. Dessa forma, transformou a tentativa de libertação
que os Manaus empreenderam em relação aos sertanistas como algo maior, atribuindo um
281
Ibidem, p.98.
282
REIS, Arthur Cezar Ferreira. Op. cit. p.99.
283
Ibidem, p. 93.
115
sentimento que não era próprio dos nativos. Aliás, esse anacronismo está também em vários
outros pontos da sua narrativa, quando atribuiu o patriotismo de modo impróprio a algumas
personagens históricas.
Quanto à legislação indigenista, Arthur Reis argumentou que a mesma apenas serviu
para “significar o interesse das autoridades portuguesas, inegavelmente impressionadas e
dispostas a amparar os direitos do ameríndio”
284
, porque na prática não era cumprida, visto
que era “interpretada ao sabor dos interessados, ora missionários, ora sertanistas”. Sendo que
os primeiros utilizam a persuasão e esses últimos faziam o uso da força para arregimentar o
nativo. Ora Arthur Reis justificou as atrocidades cometidas pelos sertanistas, ora reconheceu
os direitos dos nativos ressaltando o papel positivo de Portugal nesse sentido, e acusou os
missionários e sertanistas de interpretar a legislação ao sabor dos seus interesses. Porque
como vimos, os indígenas “menos bárbaros” era, em muitos casos, úteis ao processo
colonizador. Esse indígena compôs a sociedade amazonense, sendo por isso, importante
revelar sua contribuição ao longo da história.
Isto revela que, apesar de justificar os desmandos dos sertanistas em relação aos
nativos, não tinha um posicionamento anti-indígena; apenas estava em busca de narrar as
glórias da colonização/civilização
285
. Tarefa realizada em grande parte devido ao trabalho
dos missionários que retiraram o nativo da vida nômade “pacificando-o, civilizando-o”.
286
Portanto, não deixou explícita uma clara aversão aos nativos; de um modo geral, qualificou-
os de acordo com a situação, como selvagens, nesse caso considerando ilegítimo que
lutassem pela sobrevivência; mas em outros pontos, considerou a contribuição dos nativos,
reconhecendo-os como legítimos donos das terras.
Quanto aos sertanistas, explorados no capítulo anterior deste trabalho, foram, na
concepção de Arthur Reis, os responsáveis pela colonização, pelo desbravamento de
territórios, sendo por seus grandes feitos, dignos de títulos os mais louváveis. Entretanto, em
284
Ibidem, p. 73.
285
Neste ponto Reis manteve uma distância em relação à Varnhagem. Segundo Pedro Puntoni Varnhagem que
na juventude “defendera, ainda que de forma mitigada, o estudo e ensino da cultura indígena como maneira de
expressão da nacionalidade”, depois de uma viagem ao interior de São Paulo, quase atacado por índios na
estrada, “desde então, resolvera assumir seu antiindianismo. Assim se expressou Varnhagen: ‘pouco depois, nos
fins deste mesmo ano, perdi repentinamente todas as ilusões poéticas em que a respeito dos mesmos índios
estava, e comecei a meditar e a pensar muito mais séria e positivamente acerca deles’”. PUNTONI, Pedro. O
Sr. Varnhagem e o patriotismo caboclo: o indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira. In:
JANCSÓ, István. Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo: Editora Hucitec, 2003. pp. 633-675.
286
Ibidem, p.72.
116
alguns momentos foram chamados de preadores e impetuosos, necessitando dos missionários
para contê-los.
Os missionários foram os responsáveis por trazer os nativos à civilização através da fé
cristã, usando, portanto, de meios mais brandos. Na medida em que portugueses “numa
atividade digna de especial menção” iam penetrando lugares de difícil acesso
as relações com os nativos, espalhados aos milhares às beiras
dos rios, custando a vida de homens dessas entradas,
mostravam a necessidade de trazer as tribos ao convívio da
civilização européia. As ordens religiosas num afã bendito,
encarregaram-se da tarefa.
287
Aos desmandos dos sertanistas apresentou-se a figura do missionário, uma espécie de
tutor dos nativos. Porque após a viagem de Pedro Teixeira, quando “começou o devassamento
do território amazonense”, a “caça ao índio” foi intensificada.
Mas desde D. Sebastião, uma série de leis procurava protege-
lo, defendendo-lhe os direitos à liberdade como legítimo dono
da terra. (...) Apesar dos rigores, os abusos eram constantes.
Os sertanista, nas suas penetrações, reduziam à escravidão
quantos indígenas encontravam, estivessem ou não nas
condições exigidas pela lei. Os nativos, assim subtraídos à
liberdade, carregados aos montões, para Belém, eram
vendidos aos moradores por preço marcado pelo governador e
pela câmara. Tinham de escravizar-se-lhe por dez anos, findo
o que deveriam regressar as aldeias, determinação jamais
cumprida e mesmo revogada, ilegalmente, em deliberação
tomada numa junta reunida em Belém para violar os
dispositivos da legislação. (...) A chegada dos jesuítas a
Belém fez surgir os primeiros obstáculos a essas operações.
288
287
Ibidem. P.56.
288
Ibidem. P. 65 e 66.
117
Nesse contexto, o missionário apareceu para remediar a situação enfrentada pelo
nativo, passou a ser seu porta-voz junto a Portugal. “O padre Antonio Vieira, desprezando
ameaças e perseguições, levou à corte portuguesa as vozes de súplica da raça que se
extinguia”. A partir de então, as tropas de resgate desaceleraram, dando lugar aos
descimentos, através dos quais os jesuítas estavam autorizados a penetrar a selva e fazer
descer “aldeias inteiras”, a fim de aumentar os povoados.
Era, sob certo aspecto, ainda o cativeiro, porque os
missionários os retiravam da vida nômade a que estavam
habituados, trazendo-os, nas reduções, ao regime do trabalho
organizado, metodizado, de todo estranho a eles. Embora,
havia muitas vantagens. Essas criavam-se, com a nova
situação, na brandura do tratamento. Os catequistas, a pouco
e pouco, suavemente, venciam o ânimo vibrante ou
desconfiado do nativo, conquistando-o, matando-lhe as
irreverências condenadas pela religião, transformando-lhe os
costumes rudes em usos civilizados, brandos, salvando a
raça ameaçada com as investidas violentas dos sertanistas e
os tratos bárbaros infligidos nas fazendas, nos sítios
agrícolas, nas ocupações domésticas dos moradores de
Belém a São Luís
289
.
Como sugere nos textos citados anteriormente, Arthur Reis lançou seu
posicionamento de acordo com a situação. Em alguns momentos o nativo foi apresentado
como entrave, por isso seus direitos eram o que menos importava. No entanto, quando da
narrativa sobre os missionários, foi necessário reconhecer os direitos dos nativos como os
verdadeiros “senhores da gleba”
290
, os sertanistas como carrascos e os missionários como os
289
Ibidem, p. 66. Grifo meu. Nesse ponto Arthur Reis compactuou com os demais intelectuais que viam a
necessidade de o nativo ser tutelado.
290
Varnhagem não compactuava com a idéia de o nativo ser o verdadeiro dono da terra, como sugeria os
adeptos do romantismo indianista. É o que mostra Puntoni transcrevendo as próprias palavras de Varnhagem:
Ignorantes! Não sabeis que esta gente nômade, e sem assento fixo; e que aproveita do território enquanto
nele acha caça? E quem diz que esta raça, que está bravia, não veio em grande parte ao Brasil repelida do Peru à
força pelos Pizarros e Almagros?” Cf. PUNTONI, Op. cit. p. 651. Diferentemente de Varnhagem na forma de
abordar a questão indígena, Arthur Reis justificou as atrocidades dos portugueses contra os nativos enquanto
que Varnhagem defendeu abertamente o uso da força para se sobrepor à barbárie. Arthur Reis adotou uma
postura menos agressiva, mas, se analisada detidamente pode ter tido efeitos semelhantes ao da proposta de
Varnhagem.
118
intermediários entre estes e aqueles, sendo as figuras que “salvariam” os nativos tanto no
plano espiritual quanto no material, no que dizia respeito às práticas violentas dos sertanistas.
Isto é, nesse ponto foi necessário reconhecer os direitos dos nativos, não por causa deles
mesmos, mas para que os missionários aparecessem como seus auxiliadores.
Os missionários exerceram um papel extremamente importante na colonização/
civilização, devendo, por isso serem inclusos na categoria dos “grandes homens”. Como
expõe Arthur Reis, em 1657 os padres Francisco Velozo e Manoel Pires partiram de São Luís
“para missionar no Amazonas”, situação narrada em carta por Antônio Vieira.
À partida dos invictos propagadores da fé, a oratória de
Vieira não escondera as dificuldades da jornada. Todo um
cortejo de provações fizera desfilar animando-os, por fim,
com exemplos de abnegação que buscou à história, e
lembrando-lhe os deveres da Ordem, comprometida na
salvação da alma daqueles infiéis do sertão.
291
Os dois missionários obtiveram grande êxito, “a visitação ao Amazonas e ao Negro
até os Tarumás, frutificando, rendeu seiscentos cativos e descidos”. Fundaram a missão dos
Tarumás, “considerada de grande importância”, tendo sido por isso, visitada pelo “próprio
provincial dos jesuítas, padre Francisco Gonçalves, missionário de proclamadas virtudes”.
Tomando as palavras de João Lucio de Azevedo, Arthur Reis prosseguiu ressaltando os
méritos do padre Gonçalves:
apóstolo encanecido nas conversões, perito na língua da
terra; tão modesto que por bagagem tinha uma canastra,
em que guardava o cilício, disciplinas e livros de casos de
consciência que não dispensava para as dúvidas do
confessionário; um dos prediletos do céu, que tinham
prenunciado a aclamação de D. João IV
292
.
291
REIS. Op. cit. p. 67.
292
Ibidem, p. 67.
119
A ausência de bens materiais conferia legitimidade às ações desinteressadas do padre.
Entretanto, nem sempre foi essa a visão de Arthur Reis, que mais à frente reconheceu nos
religiosos, ações com fins lucrativos.
Das ordens religiosas que realizaram esse trabalho civilizador, nenhuma pode se
“igualar aos carmelitas, a quem cabem, sem dúvida, as maiores glórias na obra gigantesca de
civilização inaugurada no sertão amazonense”. Sua preferência pelos carmelitas, ele mesmo
justificou por terem sido esses os que “criaram quase todos os povoados do rio Negro”, os
que foram além das corredeiras, fundaram também aldeias no rio Branco e continuaram o
trabalho de Samuel Fritz no Solimões. Apesar de não poder citar com segurança o nome de
todos os carmelitas “que tanto lustre deram à Ordem”, Reis elegeu alguns, entre eles Frei
José da Madalena, “considerado sacerdote de inatacáveis virtudes e de energia construtora” e
que
Sabendo triunfar, sobre os costumes rudes daquelas gentes
primitivas, pela cordura no trato, imprimindo-lhes confiança,
defendendo-os da voracidade com que se apresentavam os
sertanistas, à sua palavra amiga, convencedora, aos seus
gestos de desprendimento, foram cedendo os ímpetos de
vingança da gentilidade.
293
Arthur Reis construiu uma história que se pretendia ética, por isso, não tentou
camuflar os problemas existentes nas investidas dos missionários, assim se referindo aos
carmelitas:
Acusavam-nos e acusam-nos de exploradores da energia dos
nativos, à custa da qual enricaram a Ordem, comerciando os
produtos da lavoura e da indústria extrativa. Acusam
também de tamanha culpa os jesuítas, os mercenários.
Mesmo aceitando o ataque, é preciso convir que sem esses
religiosos a ocupação do vale amazônico não se teria
registrado sem muitas centenas de vidas perdidas e com tanta
293
Ibidem, p.74.
120
presteza. A raça teria desaparecido no embate com os
sertanistas.
294
Foi a obra dos missionários que possibilitou “a realidade esplêndida observada por
viajores” que se depararam com um quadro admirável onde “floresciam os povoados. A
indiada vivia contente. Havia ordem e progresso”
295
. “Progresso”, entretanto alcançado com
inúmeras dificuldades. Arthur Reis não deixou de, em vários momentos, destacar a
resistência dos nativos que “roubou vidas preciosas”, inclusive dos próprios catequistas,
“obrigando o governo a movimentar forças para castigar os rebeldes”
296
.
Enfim, Arthur Reis precisava resolver uma questão, que talvez não estivesse bem
resolvida nem para ele mesmo. Num primeiro momento precisava reconhecer que o nativo
era selvagem e bárbaro para poder justificar a colonização/civilização, mas ao mesmo tempo
reconhecer as dívidas dos colonizadores para com estes, que contribuíram de várias formas
com o processo colonizador: socorrendo os europeus em alguns casos, e introduzindo a
culinária indígena em outros casos. Assim, de um modo geral, os índios foram bárbaros, mas
Reis abriu algumas exceções para atribuir sentimentos “nobres” aos mesmos.
Em alguns pontos os missionários apareceram como heróis íntegros, mas em outros,
os documentos mostraram que os mesmos agiram de acordo com interesses materiais e nesse
ínterim Reis reconheceu seus interesses, mas tratou de justificá-los, “resolvendo” o problema.
Os sertanistas foram, juntamente com os missionários, os heróis da colonização;
entretanto, os missionários precisaram defender os nativos das atitudes impetuosas daqueles.
Então em tese, na narrativa de Arthur Reis, apareceu o índio bom, que contribui de algum
modo com a colonização, e o índio mal, ou bárbaro, que se opôs ao processo colonizador. O
missionário foi, na maioria das vezes, íntegro, desinteressado, mas quando assim não agiu
houve justificativas para tal. Em meio aos sertanistas, saltaram alguns nomes tornados heróis
por Arthur Reis; entretanto, quando necessário os missionários precisaram defender os
nativos da impetuosidade dos sertanistas. Enfim, nativos, sertanistas e missionários foram
qualificados, de um modo geral, os dois últimos como heróis, e os primeiros como selvagens;
mas, em ambos os casos, nosso autor abriu algumas exceções, heroicizando o nativo
Ajuricaba e apontando exageros por parte de missionários e sertanistas, ainda que
justificando os seus atos.
294
Ibidem, p.75.
295
Ibidem, p. 76.
296
Ibidem, p.83.
121
As relações entre esses três grupos, pensadas por Arthur Reis, fazem todo o sentido,
se tivermos claro que o fim principal do autor era narrar a história de uma grande saga
colonizadora. Tudo em nome da civilização que seria o ápice da narrativa. Arthur Reis
escreveu acreditando na evolução de um povo que, deixando seu estado primitivo alcançaria
um estágio de civilização confirmando o progresso. Como fez questão de deixar claro, seu
livro apresentava “um quadro da evolução amazonense até os primeiros dias da República”
297
.
Partiremos então para o que era o objetivo principal do autor: a civilização. Em meio
aos problemas enfrentados para que chegasse a civilização ao Amazonas, Arthur Reis
ressaltou os méritos alcançados:
O Alto Amazonas, finda a luta [autonomista]
298
, arrastava-se
em penúria. Toda a atividade agrícola desaparecera. A
população diminuíra consideravelmente. (...) Tudo
desorganizado, fazia-se muito mister muita atividade e
patriotismo para levantar a comarca.
[Mas, mesmo com todos os problemas] A comarca até 1852,
quando se realizou o sonho de autonomia dos amazonenses,
teve progresso sensível diante do quadro desolador que
oferecia. Manaus desenvolveu-se
299
.
Esse desenvolvimento era sentido devido ao aumento da população, que “cresceu para
8.300 almas”; devido à “certa vida comercial”; algum desenvolvimento na educação com a
fundação do Seminário de São José com capacidade para trinta alunos e devido à paz que o
Alto Amazonas vivenciava em termos político. Ainda que de Airão para cima a situação
fosse desoladora, porque os povoados estavam por desaparecer, outras vilas como Tefé e
Luzéa “tiveram desenvolvimento”
300
.
A partir da instalação da Província Arthur Reis apontou algumas dificuldades no
campo educacional, por conseguinte na vida intelectual prejudicando as atividades artísticas e
literárias, que eram pouco desenvolvidas porque os intelectuais não tinham incentivos; pelo
contrário, “o meio, muito acanhado, não lhes dava margem a demonstrações, antes lhes
297
Ibidem, p.35.
298
O autor se referia a Cabanagem.
299
Ibidem. p. 181.
300
Ibidem. p. 182.
122
asfixiando as manifestações”
301
. Dificuldades também eram enfrentadas nos campos da
agricultura, da indústria e o comércio
302
. Manaus “de feição totalmente colonial, cortada de
igarapés, carecia de reformas que a tornassem uma capital”
303
. A Província como um todo
no extremo norte do Império, por isso mesmo quase que
desligado dele, tomando conhecimento da vida da nação com
esforço, sem progresso intelectual e material, desorganizado
em sua economia, (...) exigia muito patriotismo e atividade
de seus governantes
304
.
Entretanto, ainda que de forma tímida, alguns “progressos” foram alcançados nos
setores administrativos e judiciários. A ordem foi restabelecida. Depois da Cabanagem não
ocorreram “agitações políticas que fizessem perturbar a ordem pública”. Por que “a índole do
homem da Amazônia, influência de fatores mesológicos, repelia as demonstrações
violentas”. Diferente do que ocorreu no Nordeste e no Sul, onde as lutas partidárias “tinham
epílogo trágico, em mazorcas e assassínios frios”
305
. Enfim, o elogio nesse ponto estava na
situação de “ordem” pública alcançada graças à contribuição do amazonense ao não
demonstrar ímpetos violentos. Mais uma vez, a intenção era deixar à sua geração a impressão
de serem descendentes de homens naturalmente “bons”, devendo seus exemplos serem
imitados. Por isso, mesmo registrando as dificuldades que a região atravessou ao longo da
sua história, o propósito maior era resgatar quão grandiosos foram seus homens que, em meio
a tantas intempéries, venceram o meio e alcançaram “ordem” e “progresso”, construindo
cidades em meio à selva.
Um dos problemas enfrentados, mesmo após a instalação da província, foi o do
povoamento; entretanto, “os homens da Província, embora cientes do que ele significava,
olharam-no sem grande interesse”
306
. O povoamento ia vagarosamente acontecendo de
forma espontânea. “Nem uma iniciativa, porém, de caráter oficial, não obstante o clamor de
301
Ibidem. p. 206.
302
Ibidem, p.194.
303
Ibidem, 195
304
Ibidem, p. 196.
305
Ibidem, p. 199.
306
Ibidem, p. 218.
123
Tavares Bastos, mostrando, no parlamento imperial, a urgência de medidas em prol
civilização da Amazônia”
307
.
Mesmo com a ausência do poder público,
O povoamento prosseguiu, sempre crescente, vindo da
Província vizinha. Pioneiros destemerosos, reconhecendo
locais próprios à exploração de produtos naturais,
regressavam aos centros onde podiam recrutar colonos,
formando grupamentos grandes com os quais iam ocupando
as margens das correntes fluviais. Dos mais famosos desses
pioneiros foi o cidadão José Manoel da Rocha Tury, que se
localizou no Purus e no Solimões, fundando em 1862 à
esquerda deste, o povoado de Codajás. A esse tempo, a fama
da riqueza amazônica passava fronteiras provocando gerais
atenções nas outras Províncias, de onde principiou a
encaminhar-se uma corrente imigratória. A leva de Rocha
Tury já viera seduzida por tais notícias
308
.
Nordestinos e paraenses foram os responsáveis pela “expansão” do Amazonas. “Os
altos rios foram sendo atingidos. (...) O desbravamento se operava com rapidez, obra de
energia do nacional a se revelar com qualidades de homem forte”
309
. Entretanto, os
nordestinos mereceram melhores honras pelo povoamento. A ocupação foi quase toda por
eles realizada, “pelo cearense principalmente”, que fugia do sofrimento das secas que assolou
o Nordeste em 1877.
As secas de 1888 e 1889 também trouxeram grande número de nordestinos para o
Amazonas, apesar de terem que lidar com as dificuldades da forma de trabalho oferecido,
sobretudo, a coleta de produtos naturais, enfrentando a “floresta densa que era preciso
penetrar sem esmorecimento”
310
, diferente do que estavam acostumados no Nordeste “de
veios pequenos, uma vida agrícola, campesina”.
307
Ibidem, p. 219.
308
Ibidem, p.219.
309
Ibidem, p. 220.
310
Ibidem, p.221.
124
O nordestino, em páginas de heroísmo, triunfando sobre
todos esses empecilhos, tamanhas dificuldades, lutando
contra a própria natureza, bandeirante, sertanista do século
XIX, devassou o vale, ocupou-o, sem desfalecimentos. Fez
obra de soldado e de economista, das maiores obras políticas
do Brasil no século. Ao ser proclamada a República, essa
conquista, esse povoamento, essa colonização nordestina
plantara marcos brasileiros, assinalando-lhe a fronteira com
o Peru e a Bolívia
311
.
O resultado positivo foi um crescimento em mais de cem mil pessoas nos trinta e sete
anos entre a instalação da Província e o surgimento da República, devido principalmente, ao
heroísmo do nordestino. Mais uma vez, Arthur Reis deixou aparente sua dívida para com
Álvaro Maia, filho do cearense Fausto Ferreira Maia, que em sua Canção de e Esperança
também rendeu glórias ao imigrante nordestino.
Todas as benção devem cair sobre os homens destemerosos,
que desbravam o Amazonas – os nativos caluniados, que
morrem em sua trincheira de honra, e os sertanejos do
nordeste calcinados, os cearenses que, talvez pela seleção em
que vivem, constituem o expoente rácico mais definido e
característico do Brasil.(...) O Amazonas reconhece quanto
deve aos nobres bandeirantes do nordeste: a mocidade
proclama-o, neste minuto religioso, pela voz dos seus filhos
agradecidos (...)
312
.
Além do povoamento crescente, como demonstrativo do “progresso”, isto é da
civilização, que se ia delineando no Amazonas, Arthur Reis ressaltou com orgulho o
desenvolvimento da navegação e, conseqüentemente, da economia. E ressaltou que, apesar
da decadência na agricultura e na indústria, “mesmo sem uma política econômica,
conduzindo o homem a um aproveitamento mais seguro das riquezas naturais e da uberdade
do solo, a Província prosperou a olhos vistos
313
. Demonstrou isso através dos números que
311
Ibidem, p.221. Grifo meu.
312
MAIA, Álvaro. Canção de Fé e Esperança. In: Poliantéia. p. 153.
313
Ibidem, p. 227.
125
mediram a arrecadação crescente da província entre 1852 e 1888. Destacou, também, a
participação de amazonenses na Guerra do Paraguai contribuindo com 984 Voluntários da
Pátria, que nos confrontos “davam provas de valentia”, com relevo para as figuras de
Benjamim da Silva que “estava sempre entre os mais heróicos” e Luiz Antony, “outro
valente”
314
.
O pioneirismo do Amazonas no movimento abolicionista também foi colocado como
meio de mostrar o “progresso” da Província. Com a campanha abolicionista, “amparada no
quase total da população”, iria oferecer “exemplo admirável” à nação.
Admirável essa obra dos sentimentos igualitários de um
povo e de um governante clarividente, humanitário, que
precisava conhecer as homenagens de sua gente. (...) Embora
Província nova, de apoucada importância política e
econômica, o Amazonas provava que a sua gente se guiava
por sentimentos de alta nobreza e dava uma lição que teve
ilimitada influência na boa marcha da campanha, (...). O
Brasil inteiro festejou-lhe a atitude. Os maiores vultos da
propaganda abolicionista, Joaquim Nabuco Lopes Trovão e
José do Patrocínio exaltaram-na, apontando-a à nação como
grande exemplo a seguir
315
.
Arthur Reis se ressentia dessa pouca importância política e econômica do Amazonas
e, era isso que queria mudar através da História do Amazonas, incumbida de revelar o
desenvolvimento alcançado apesar dos impeditivos naturais. Havia um sentimento de
inferioridade dos intelectuais amazonenses das décadas de 1920-1930, demonstrado em
Álvaro Maia e em Arthur Reis
316
, que se sentiam injustiçados, primeiro pela subordinação
do Amazonas ao Pará após a independência; e depois pela “inferioridade” em relação ao Sul:
No presente, além de Silvio Romero, que anunciou a
profunda divergência entre o norte e o sul, é a campanha
314
Ibidem, p. 231.
315
Ibidem, pgs. 240, 241 e 242.
316
Álvaro Maia chama a subordinação do Amazonas ao Pará como “a primeira injustiça que nos atingiu”
(Canção de e Esperança. P. 148). E Arthur Reis ressaltou largamente essa “injustiça clamorosa” quando
tratou do assunto na História do Amazonas, p. 157.
126
persistente de homens de responsabilidade e da própria
imprensa, que pregam estados do norte como colônias do
sul: recebem os seus produtos, pagam os impostos, e não
chegam a ter livre arbítrio na escolha de seus representantes
e dirigentes. Devido a isso, chega a haver dentro dos lindes
da mesma pátria, em pleno Rio de Janeiro, conjuntos para a
defesa do norte, jornais para a defesa do norte, como se o
norte fosse um feudo do sul
317
.
Por isso, o povoamento foi um dos itens mais ressaltados por Arthur Reis, tendo em
vista que povoar significava colonizar e, em muitos sentidos, civilizar. O ideal de civismo e
civilização buscados por Álvaro Maia, e seguidos por Arthur Reis, fez parte de uma
necessidade dos intelectuais locais em apresentar os “progressos” alcançados pela região ao
longo da história. Precisavam mostrar ao Brasil que a civilização havia alcançado o Norte.
Essa busca aparecia ao menos uma década antes da publicação da História do Amazonas,
como demonstrou Marco Aurélio Paiva
318
ao observar que o filme No Paiz das Amazonas,
do documentarista Silvino Santos, apesar de ter como objetivo principal divulgar as empresas
do grupo J. G. Araújo & Cia, não deixou de representar Manaus de modo a ressaltar uma
cidade com certo grau de urbanização. Entretanto, Paiva observou que Silvino Santos
estabeleceu uma confrontação “entre um conjunto de imagens que, por um lado, revelam a
presença humana, e, por outro lado, ressaltam a natureza a impor dificuldades e ‘barreiras’
para o seu enraizamento”
319
.
A relação problemática entre “o Homem e a Natureza” no
ambiente amazônico encontrou no “cinematógrafo” do
“cineasta” português uma resolução exatamente na
contraposição de imagens que, de um lado, buscavam
ressaltar o uso da técnica e do maquinário produtivo, e do
outro, o ritmo “lento” e “caótico” da floresta e dos grandes
rios
320
.
317
MAIA, Álvaro. Canção de Fé e Esperança... P. 154.
318
PAIVA, Marco Aurélio Coelho de. A conquista intelectual do Amazonas (1900-1930). Dissertação de
Mestrado. USP. São Paulo, 2000.
319
Ibidem, pp. 5 a 8.
320
Ibidem, p. 5.
127
Através dessa contraposição de imagens Manaus é representada dualmente ora, como
quase que nascendo do rio; destacando seus símbolos de civilização e desenvolvimento, a
industrialização através da cervejaria “Miranda Corrêa”; a modernidade através do “Porto
Flutuante”, os patrimônios históricos através da Igreja da Matriz do Teatro Amazonas e Praça
do Comércio, entre outras; o comércio através do movimento de uma das ruas principais da
cidade; e o trânsito através da movimentação dos automóveis
321
. E ora, demonstrando as
dificuldades da floresta.
As imagens da natureza (...), parecem revelar um elevado
grau de “ameaça” constante oferecido por um meio ainda
silvestre. Inicialmente, o flagrante de uma tempestade
amazônica”, quando do deslocamento de barco da equipe de
produção do filme rumo ao interior, é expressa
imageticamente através do balançar vertiginoso das árvores,
salientando-se, com isso, a alta velocidade dos ventos. Em
seguida uma grande quantidade de jacarés reunidos em um
igarapé (...), tendem a demonstrar o caráter exótico e
selvagem do ambiente amazônico. A cobra enrolada em um
galho de árvore parece estar à espreita de sua próxima
vítima. O esforço sobre-humano do pescador na captura do
“peixe-boi” e do “pirarucu” indicam o porte avantajado dos
animais aquáticos (...)
322
.
Pensamos que essa contraposição de imagens apresentadas por Silvino Santos fazia
parte de um anseio maior dos intelectuais locais em demonstrar os “progressos” alcançados
321
“Não por acaso o prédio e a chaminé da cervejaria “Miranda Corrêa” aparecem um primeiro plano de
apresentação da cidade. A fumaça que sai da sua chaminé propõe um dinamismo típico de centros urbanos
industrializados. Em seguida nos é apresentado o “Porto Flutuante”, considerado na época um dos mais
modernos do Brasil. (...)” Cf. PAIVA, Marco Aurélio. p. 7.
“(...) O espaço público da cidade é apreendido de um modo a ressaltar a amplitude de um conjunto de praças e a
importância dos vários monumentos e prédios então investidos de um certo valor histórico e patrimonial.”
Idem, p. 7
“O centro comercial manauara, por sua vez, é focalizado a partir do posicionamento do “cinematógrafo” em
meio aos transeuntes de uma das ruas centrais da cidade. (...) Ocorre uma multiplicação de imagens dentro do
mesmo enquadramento, ou seja, opera-se uma “transformação”, via a sobreposição de imagens, dos transeuntes
a trafegarem em meio aos pedestres. (...) O aparecimento dos automóveis a circularem conturbadamente em
meio aos pedestres, dessa forma, propiciou uma caracterização da cidade não como uma “aldeia” isolada no
meio da selva, mas sim como um centro comercial que atingiu um certo grau de urbanização comparável a
poucas cidades brasileiras do período.” Ibidem, p. 8.
322
Ibidem, p. 15.
128
pela região que, apesar das dificuldades impostas pela natureza, estava triunfando em plena
selva, tendo em vista que a urbanização mostrada representava exatamente que, apesar de
momentaneamente a região ter vivido um período de crise, devido à queda na exportação de
borracha, o homem ia aos poucos vencendo a natureza e implantando heroicamente a
civilização.
Por isso, essa contraposição de imagens, de um lado, a natureza com todas as suas
intempéries, e de outro, o homem a vencê-las, construindo, passo a passo, um centro
urbanizado. Marco Paiva sugere que, no período de produção da borracha, a cidade se
transformou rapidamente de uma “quase aldeia” em um “centro de comércio internacional”,
rendendo-lhe “um status singular de ‘civilização’”. Entretanto, quando da produção do filme,
em 1920, o período áureo já havia terminado. Mas
Evidentemente que a cidade de Manaus, conforme o desejo
de suas elites dirigentes, não poderia abrir mão dos “ganhos”
então alcançados, mesmo que tais ganhos estivessem
materializados em determinados sinais com função
eminentemente simbólica. As imagens captadas por Silvino
Santos, de certo modo, buscaram conferir eficácia a esses
elementos simbólicos
323
.
A
leitura que Marco Paiva fez do filme No País das Amazonas, demonstra claramente
esse anseio de Silvino Santos em potencializar as “grandezas” de Manaus, que foram criadas
bravamente, apesar das monumentais dificuldades impostas pela natureza. Ainda que Paiva
não atribua diretamente essas “contraposições de imagens” de Silvino Santos como um
anseio que fez parte de um grupo de intelectuais locais em não se deixar perder a visão da
construção de uma cidade na selva, onde se a natureza não estava de todo dominada pelo
homem, estava em processo de ser.
Queremos resgatar esse lado do filme de Silvino Santos através da narrativa de Paiva,
no entanto com alguns adendos. Nessa contraposição de imagens, onde o uso da técnica é
apresentado, mas também se apresenta o ritmo “lento” da floresta:
323
Ibidem. p. 12.
129
é sugestivo o contraste de imagens entre o processo
mecânico utilizado pelas operárias ordenadamente
enfileiradas para descascar a castanha e o “método
primitivo” e “desorganizado” empregado pelos “primatas”
na selva
324
.
Nesse caso, a nosso ver, as operárias representavam o “progresso” alcançado pela
região, que outrora tinha seus recursos pouco aproveitados devido à ausência de técnica. E o
ritmo “lento” e “caótico” da floresta era principalmente para demonstrar a conquista do
homem sobre o ambiente. A intenção primeira do filme era mostrar os empreendimentos do
grupo J. G. Araújo que, certamente para engrandecê-lo, também deveria ser mostrado como
parte dos que ajudaram a construir Manaus. Portanto, o contraste pode ter sido apresentado
para demonstrar o triunfo da construção da urbanidade em um ambiente aparentemente
inóspito, mas que poderia perfeitamente ser modificado e aproveitado pelo homem. Como
descreveu Paiva, nas cenas das operárias e do macaco:
(...) se alternam imagens de um pequeno macaco tentando
quebrar a casca de uma castanha a partir do uso da pedra e
imagens de um grupo de operárias empreendendo o
descasque de castanhas através do uso e manuseio de
máquinas
325
.
Ou seja, é o primitivismo dando lugar ao desenvolvimento. Outro ambiente que teve
seu uso modificado e, portanto valorizado no filme, já que não poderia ser ignorado foi o dos
igarapés que cortavam a cidade.
Se, por um lado, os automóveis e os bondes elétricos
constituíram-se em indicativos delineadores de uma cidade
moderna, por outro lado, os diversos igarapés então
existentes, ao mesmo tempo que impediam uma visualização
da cidade dentro dos padrões urbanos prevalecentes, não
324
Ibidem. P. 6.
325
Ibidem. P. 6.
130
poderiam ser desprezados e alijados da paisagem de Manaus.
(...)
326
.
Depois do soterramento de parte dos igarapés realizados na administração de Eduardo
Ribeiro para instalar novas avenidas, época em que o igarapé representava a forte conotação
de ambiente selvagem e impedia a inclusão da cidade nos “padrões europeus de civilidade”:
Os igarapés que ainda permaneceram a entrecortar a cidade
são apresentados por Silvino Santos dentro de um novo
contexto e significação, isto é, são registrados ou como
locais de realização de esportes náuticos, como as regatas, ou
como ambientes de lazer, como os balneários públicos
327
.
Mais uma vez a natureza é transformada de um ambiente hostil em um agradável
local, tendo seus usos modificados pela civilização.
Após citar a aparição no filme da
construção de uma rodovia em plena selva onde aparece a “oposição por contraste entre o
“centro urbano” e o hinterland ‘selvagem’”, Paiva concluiu que:
Apesar dos entraves que eventualmente possam surgir no
caminho da “civilização” (a cena do automóvel que precisa
diminuir a sua velocidade e até mesmo parar a fim de que o
“bicho-preguiça, com toda a sua “lentidão”, atravesse a
estrada, sugere a existência desse tipo de “barreira”) faz-se
necessário a subjugação e mesmo a “domesticação” (e até
conforme o caso, a destruição) dos elementos que
representem alguma forma de barbarismo.
328
.
Pensamos que Silvino Santos estava mostrando, não apenas que essa subjugação
era necessária, mas que ela já estava acontecendo, na medida em que a cidade, com suas
indústrias e monumentos, já era uma realidade e a construção da estrada se apresentava como
o início de mais uma conquista.
326
Ibidem. P.13.
327
Ibidem, p. 13.
328
Ibidem, p. 14.
131
Em uma outra contraposição de imagens” no filme, Paiva cita o surgimento de
Manaus num primeiro conjunto de imagens, “quase como que ‘brotando’ das águas do rio
Negro”
329
. Enquanto que, em uma outra série de imagens, Manaus que antes foi “apreendida
a partir da perspectiva do rio, revelando todo um suposto ‘gigantismo’ de uma ‘metrópole
das selvas’”, agora “quase que se recolhe à sua ‘pequenez’, sendo praticamente ‘tragada’
pelas imagens ‘excessivas’ do rio e da floresta localizadas ao fundo”
330
. Pensamos que
quando a cidade é mostrada dando a conhecer a imensidão dos rios e da floresta, a intenção
de Silvino Santos não era demonstrar a “pequenez” da cidade, mas sim valorizar ainda mais o
seu “gigantismo”, visto que, apesar de tamanhos impeditivos naturais, o homem estava
conseguindo se adequar ao meio ambiente a tal ponto de nele construir empreendimentos
como os do grupo J.G. Araújo. Isso era uma realidade em andamento e não apenas uma
sugestão. Foi um filme que mostrou todo o potencial da região que, com o uso de técnicas
mais eficientes, estava florescendo. O homem estava vencendo o meio hostil.
Enfim, Silvino Santos procurava mostrar na década de 1920 o que viria a ser
preocupação de Arthur Reis uma década depois e que foi preocupação de Álvaro Maia na
mesma década de Silvino Santos: os “progressos” obtidos através da civilização. As
pretensões de Arthur Reis foram possibilitadas por uma prática comum a um conjunto de
intelectuais das décadas de 1920/1930 de procurar uma identidade para o Amazonas tentando
equipará-lo às outras regiões com um grau de desenvolvimento considerável.
Quanto a essa questão, é sugestiva a interpretação que Marco Paiva deu ao filme de
Silvino Santos quanto à necessidade deste, em apresentar uma Manaus urbanizada:
O aparecimento dos automóveis a circularem
conturbadamente em meio aos pedestres, dessa forma,
propiciou uma caracterização da cidade não como uma
“aldeia” isolada no meio da selva, mas sim como um centro
comercial que atingiu um certo grau de urbanização
comparável a poucas cidades brasileiras do período”
331
.
Quando os intelectuais amazonenses nutriam o desejo de ir para Belém, discutido no
capítulo anterior deste trabalho, na verdade estavam imbuídos de um sentimento de uma
329
Ibidem, p. 6.
330
Ibidem, p. 7.
331
Ibidem, p. 8.
132
espécie de inferioridade e o intuito era resgatar o valor da cidade através da literatura, ou de
imagens, como fez Silvino Santos. O certo é que, apesar dessa tentativa, na prática, o que
houve mesmo foi uma intensa migração de intelectuais para outras capitais do país em busca
de melhores condições. Não queriam ficar na cidade, que foi por eles mesmos representada,
como portadora de uma história permeada de heróis, onde o “progresso” estava surgindo
apesar das dificuldades naturais.
“(...) as elites manauaras também buscavam reproduzir em
escala reduzida os melhoramentos urbanísticos que se faziam
presentes em Belém, dado o grau de concorrência existente
entre ambas as cidades, tanto no plano econômico, (...)
quanto no plano cultural
332
.
Não é nossa intenção generalizar, tornando esse sentimento com sendo pertencente a
todo o grupo de intelectual amazonense, mas sugerir que foi predominante num conjunto de
intelectuais que tentaram fazer o Estado do Amazonas conhecido da forma como queriam
enxergá-lo. Como foi mostrado no capítulo anterior, havia um interesse de alguns intelectuais
que se correspondiam com Arthur Reis, e que manifestaram o desejo de deixar Manaus pela
razão de que a cidade não apresentava as condições esperadas para o desenvolvimento
cultural e econômico de seus moradores. Por isso, podemos dizer que as representações
construídas na História do Amazonas foram forjadas a partir desse compartilhar de idéias do
grupo (que não pretende aqui ser retratado como homogêneo) do qual Arthur Reis fez parte,
isto é, de um pequeno número de intelectuais que estavam agrupados em torno do Instituto
Geográfico e Histórico do Amazonas. Tanto assim, que a obra foi recebida como porta-voz
da história do Amazonas para o Brasil, como demonstrou Chevalier: “Elaborou o ilustre
historiador uma obra que bem lhe merece vinculada a gratidão de todos os seus conterrâneos
por isso que vem revelar ao país em suas arestas repolidas”
333
.
As temáticas trabalhadas por Arthur Reis foram recepcionadas tal como o esperado e
de forma semelhante por alguns amigos intelectuais:
(...) na “História do Amazonas” de Arthur Reis, estão
compendiadas, com largueza analítica, algumas das figuras
332
Ibidem, p. 9.
333
CHEVALIER, Carlyle de. “História do Amazonas”. Jornal O Imparcial. Manaus, 01 de janeiro de 1932.
133
mais impressionantes da Planície de ontem, tais como
Ajuricaba, o Índio: Samuel Fritz, Lobo d’Almada, Tenreiro
Aranha, etc. Todos do período proto-histórico daqueles
rincões
334
.
Assuntos não conhecidos entre nós, ou rapidamente tratados
pelos cronistas, acharam em Arthur Cezar um expositor
elegante, conciso, escrupuloso, tais como a ação do padre
Samuel Fritz na bacia amazônica, certas particularidades
acerca, do povoamento do Amazonas, a defesa que faz, de
Ajuricaba, da pecha de traidor, apoiado em documentos da
melhor valia
335
.
Mas, foi Agnello Bittencourt quem demonstrou de forma mais contundente o quanto
concordava com as proposições de Arthur Reis, ressaltando a atuação dos conquistadores que
haviam iniciado a obra colonização possibilitando a civilização do Amazonas. Assim se
refere Bittencourt à obra História do Amazonas:
Para explicar os fundamentos da formação política do
estado, a obra remonta a tragédia dos conquistadores
espanhóis, na parte superior da bacia amazônica.
Comenta os avanços arrojados desses famosos pioneiros do
Eldorado e do País da Canela. Orellana e Ursua ficam bem
definidos no conceito do jovem historiador. Com certa
habilidade, retira do primeiro a pecha de traição, que os
seus compatriotas lhe imputaram, fazendo-o com felizes
argumentos.(...) Vê-se, pelas páginas da História do
Amazonas que os arautos da civilização ibérica haviam
despertado bem cedo, para a luta, que logo tiveram, de
dividir o território e chamar à sua fluência e posse as grandes
riquezas sonhadas e, depois verificadas nessa parte da
América. (...) Falando de Pedro Teixeira, um capitão afeito
às intempéries das jornadas, em terras do Pará e do
334
CHEVALIER, op. cit.
335
JOBIM, op. cit.
134
Maranhão, um verdadeiro herói de lenda, confere ao
bandeirante português o título de homem sem hesitação,
porque, realmente, para subir o grande rio, de Cametá, à
confluência do Napo com o Aguarico, e daí à sede da real
Audiência de Quito, era preciso ter, na alma, a tempera dos
argonautas de Jazão
336
.
Agnello Bittencout foi um representante de como os amigos intelectuais de Arthur
Reis receberam sua História do Amazonas, demonstrando que seus objetivos em apresentar
os heróis da colonização e, posteriormente, os “progressos” da região foram alcançados.
Ressaltando na sua crítica à História do Amazonas os “desmandos” de Aguirre e
corroborando com a versão do autor da obra ao torná-lo, talvez o principal vilão da história
do Amazonas:
O quadro em que se assenta o segundo (Ursua), essa pobre
vítima do famigerado Aguirre, para inspirar, num poeta
de talento e forte emoção, uma nova Ilíada a reconstituir os
dramas sanguinolentos daquela descida do Rio Mar, cujas
águas quase diariamente, espalhavam cenas de assassinatos e
opressões, por causa da ambição de mando e ciúmes por
dona Ignez, viúva de Ursua
337
.
Mostrando, através da figura do padre Samuel Fritz, o heroísmo dos missionários,
suas responsabilidades cumpridas ao tornar a colonização menos desastrosa para os nativos e
a particularidade dos carmelitas:
O capítulo consagrado a Samuel Fritz deixa claro os ingentes
esforços que os jesuítas de Castella empregaram para
estender, pelo vale do Amazonas abaixo, até à foz do rio
Negro, os domínios do seu rei, para os quais o sol jamais se
ocultava, tão vastos eram, sobre a gentilidade de todas as
terras. (...) O trabalho do Dr. Arthur Reis, ocupa-se também
336
BItTENCOUT, Agnello.
337
Ibidem.
135
largamente, do papel que os frades carmelitas
desempenharam, posteriormente, sobretudo no vale do Rio
Negro. Chama a atenção do leitor para a tenacidade e
brandura com que realizavam seu apostolado, mais do que
outros religiosos espalhados, no Solimões e incumbidos da
submissão dos catecúmenos
338
.
C
oncordou, também, com a exaltação ao grande herói nativo Ajuricaba que cumpriu
seu papel na história:
Descreve as correrias de Ajuricaba, o defensor do nativismo
contra a prepotência dos estranhos, o símbolo da altivez dos
silvícolas, o Cauantemoc do Amazonas. Defende esse grande
amazônida, do anátema de traidor, por suposta aliança com
os holandeses da Guiana. Põe, no seu pedestal, uma figura
que as incertezas da história estavam querendo esquecer
339
.
Nesse texto de Bittencourt, vemos que o grande esforço de Arthur Reis não foi em
vão. Sua obra teve a interpretação esperada. Os heróis foram reconhecidos, os que possuíam
o rótulo de traidores sem o merecerem foram retratados, os vilões foram condenados e a
história da civilização construída pelos “grandes homens” em plena selva, admirada.
338
Ibidem.
339
Ibidem.
136
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Arthur Reis foi, sem vida, o grande responsável pela forma como o Amazonas e a
Amazônia foram por muito tempo dados a ler no Brasil e até fora dele. Tornou-se um dos
maiores nomes da historiografia sobre o Amazonas e no decorrer de sua carreira, à medida
que foi se aprofundando nas pesquisas e ampliando seus conhecimentos, foi também se
especializando em Amazônia e passou a ser conhecido pela intelectualidade brasileira como
amazonólogo ou amazonófilo, como preferiu Gilberto Freyre que, aliás, não poupou palavras
para referendar o intelectual amazonense: “Você, Arthur Reis, é uma das mais altas
competências com que vem contando o Brasil dos nossos dias, no trato de problemas
nacionalmente brasileiros, em geral, e regionalmente amazônicos em particular”
340
.
Sua carreira como historiador foi se desenvolvendo paralelamente à de professor,
iniciada em Manaus quando do seu retorno do Rio de Janeiro após a conclusão do curso de
Direito. Sua primeira experiência no magistério foi em 1928 no tradicional Colégio Dom
Bosco, tendo a partir daí ministrado disciplinas na área de história em outras escolas de
Manaus até chegar a ocupar a cátedra de História da América na Faculdade de Filosofia da
PUC do Rio de Janeiro e ministrar disciplinas no curso de mestrado em História da
Universidade Federal Fluminense.
341
Vivenciamos agora um momento importante para os estudos em relação a essa
temática que começa a despontar em alguns trabalhos realizados por mestrandos do
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas.
Como um dos primeiros trabalhos realizados nesse tema, optamos por um recorte
curto por percebermos se tratar de uma questão extremamente complexa, na busca do ponto
de onde deveríamos partir para compreender de que modo as obras desse autor se tornaram
referência e, portanto, representação de uma realidade que, certamente, foi apropriada pela
sociedade local e nacional, criando um discurso sobre a região e validando-o, devido ao
respaldo que Arthur Reis conquistou desde o início de sua trajetória. Desse modo, sentimos a
necessidade de contextualizar o autor e buscar compreensão da sua trajetória intelectual
inicial para, assim, discutirmos as temáticas abordadas na obra, tendo em vista que o autor,
foco desse estudo, escreveu por um período de sessentas anos.
340
Artigo de jornal intitulado “Meu caro Arthur Reis”, localizado no acervo do Centro Cultural dos Povos da
Amazônia.
341
Cf. BRAGA, Robério. Arthur Cezar Ferreira Reis. Manaus: Imprensa Universitária. sd. p.20.
137
Desse modo, podemos ver que ele foi um dos elementos que consolidaram o anseio
dos intelectuais de Manaus de se transferir para o Rio de Janeiro em busca de consagrar sua
atuação intelectual. Conforme Marco Aurélio Paiva,
A explosão do comércio da borracha ligou as elites dirigentes
da região diretamente aos padrões europeus de consumo de
bens materiais e espirituais. Os contornos da nação brasileira,
nesse momento preciso, não faziam parte do conjunto de
preocupações dos setores dirigentes e nem de seus porta-
vozes intelectuais.
342
A preocupação não estava direcionada “mais seriamente com os desdobramentos
especificamente literários que ocorriam no Brasil”
343
, fato que começou a ocorrer com o
início da crise da borracha. Processo que fez com que a elite manauara do período se
mobilizasse no sentido de buscar alternativas eficazes ao estancamento da crise em curso”,
surgindo, então, instituições como o IGHA e a Academia Amazonense de Letras. A partir de
então
a referência deixou de ser a desgastada ideologia da belle
époque em troca de novos parâmetros, desta feita garimpados
em meio a produção intelectual que se fazia na então capital
da nação. Essa referência foi sendo exacerbada por parte de
alguns intelectuais nativos, a tal ponto que vários deles
passaram a almejar a conquista de uma posição destacada no
contexto carioca.
344
Essas instituições tornaram possível “a reunião e a visibilidade de um conjunto de
intelectuais ‘nativos’, responsáveis pela emergência de uma tradição de pensamento social
regional”
345
, da qual certamente Arthur Reis passou a ser expoente.
Marco Paiva mostrou, também, que a criação de instituições que agregavam um grupo
de pessoas interessadas em produção literária em Manaus no início do século XX, entre elas
342
PAIVA, op. cit. p. 126.
343
Idem, p. 127.
344
Ibidem, p. 127.
345
Ibidem, p. 128.
138
o IGHA, pode estar relacionada com um meio estratégico “para as oligarquias ‘locais’
afirmarem-se de alguma forma no âmbito extra-regional”, visto a pouca influência política
que exerciam no contexto nacional.
346
Marco Paiva sugere que o fato de o IGHA, assim como a Academia Amazonense,
terem sido fundados respectivamente em 1917 e 1918, ao contrário das instituições similares
do restante do país, fundadas no final do século XIX, reflete:
a necessidade de vislumbrar uma nova alternativa não só
econômica mas também política e cultural para a região em
crise, e para a cidade de Manaus em particular, e, com isso,
recoloca-la e readapta-la no âmbito de um novo contexto
nacional e internacional.
347
A região que atravessava o momento de crise da borracha procurou uma forma de
ocupar destaque no contexto nacional, através de suas Instituições que congregavam os
intelectuais então responsáveis pelo “processo de fabricação de um novo conjunto de
representações sobre a região”
348
. Arthur Reis foi fruto desses anseios, visto que em 1923,
seis anos depois da fundação do IGHA, participava desse ambiente. Ele foi o nome que
despontou para tornar a região mais conhecida. Por isso, recebeu tantos louvores de seus
colegas; e a tomar como referência as cartas por ele recebidas, podemos sugerir que a questão
da distancia cultural, política e econômica entre Manaus e o Sul não havia, ainda, sido
resolvida, e o sonho de muitos era deixar a cidade em busca de melhores colocações.
Portanto, estudar a trajetória de Arthur Reis pode ser fundamental para a compreensão das
redes de relações mantidas entre os intelectuais amazonenses desse período, visto que o autor
da História do Amazonas representou parte essencial desse processo.
É importante lembrar, também, que o fato de os Institutos de cada região do país terem
sido criados a partir do modelo do IHGB, não significa que aqueles seguiram à risca as
propostas deste. Ao contrário, como afirma Paiva, com base no trabalho de Lilia Scharwcz
349
,
“mesmo que o IHGB tenha pretendido confeccionar uma história ‘unificadora’ da nação
brasileira, a problemática regional acabou por converter-se em um elemento de entrave para a
346
PAIVA, Marco Aurélio Coelho de. Op. Cit. p. 49.
347
Idem, p. 48.
348
Ibidem, p. 48
349
SCHWARCZ, Lilia. Os guardiões da nossa história oficial: os institutos históricos e geográficos brasileiros.
São Paulo, Idesp, 1989.
139
consolidação desse projeto homogeinizador”. Estando, portanto, o surgimento dos institutos
dos demais estados do país atrelados à necessidade de “demonstração das especificidades
regionais existentes dentro do quadro mais amplo de ‘confecção’ de uma ‘história nacional’”
350
.
Apesar dessas necessidades “regionais”, de um modo geral, havia como Lilia
Scharwcz aponta para o caso do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, a necessidade
de imprimir uma marca “ao mesmo tempo comum ao modelo ilustrado e civilizado idealizado
pelo IHGB, e por outro lado bastante diversa da forma original, que se buscava destacar
primordialmente uma suposta especificidade paulista”
351
. Este modelo ilustrado e civilizado
idealizado pelo IHGB tinha relação com o grande projeto posto em prática pela maioria dos
demais institutos, que acreditavam que “escrever a história era, sobretudo, uma ato de ‘recriar
um passado’, ‘solidificar mitos de fundação’, ordenar fatos buscando homogeneidades em
heróis e eventos até então dispersos”
352
. Muitas características das quais algumas foram
seguidas por Arthur Reis que pretendeu recriar, com a História do Amazonas, um passado
permeado de heróis inclusive solidificando a saga do mito Ajuricaba. Como visto no decorrer
deste trabalho, muitas das propostas de Francisco Adolfo Varnhagen que eram em certo
sentido os anseios do próprio IHGB, como a forma de escrever julgando as personagens
históricas, a busca por uma verdade ética, e a narrativa do “sucesso” do projeto civilizatório
realizado pelo colonizador foram seguidos por Arthur Reis; entretanto, como “filho” do
IGHA, sua missão era responder às aspirações intelectuais da sua região; por isso o fato de ter
realizado seu primeiro trabalho, por ele mesmo considerado ousado devido à intenção de
escrever uma síntese da história do Amazonas, isto é, iniciando por um trabalho de grande
porte. Mas essa era a necessidade local em termos historiográficos, tendo em vista que a
região carecia de ter sistematizada a sua história. Para tanto, o autor atendendo à demanda
local se ancorou na proposta de Álvaro Maia, à época figura de grande relevo, admirado por
grande parte da intelectualidade local; e junto com seu mestre, Arthur Reis deu início à
construção, ou em alguns casos, à reconstrução de algumas questões que, foram por muito
tempo, adotadas como “verdades”. Os heróis da “história localforam enaltecidos; Ajuricaba
ficou livre da acusação de traição e por isso se solidificou a admiração ao mito; e aos
350
Ibidem, p. 32.
351
SCHWARCZ, op. cit. p. 45.
352
Idem, p. 4.
140
nordestinos foi imputada a glória do povoamento do Estado, fato que recebeu destaque para
enaltecer os conterrâneos do pai de Álvaro Maia.
Em suma, o jovem Arthur Reis lançou sua primeira obra de grande porte, e de título
realmente ousado, iniciando sua carreira em grande estilo dada à importância da obra no
âmbito da historiografia amazonense.
141
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