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Universidade Federal Fluminense
Instituto de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras
Leonardo Nolasco-Silva
A Senhora do Álbum de Família no mar que afoga a Casa e não devolve os corpos:
a sociologização do texto teatral como método de leitura a partir de Garcia Lorca
La Casa de Bernarda Alba e Nelson Rodrigues Álbum de Família e Senhora dos
Afogados.
Niterói
2008
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Leonardo Nolasco-Silva
A Senhora do Álbum de Família no mar que afoga a Casa e não devolve os corpos:
a sociologização do texto teatral como método de leitura a partir de Garcia Lorca
La Casa de Bernarda Alba e Nelson Rodrigues Álbum de Família e Senhora dos
Afogados.
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense como parte das
exigências para obtenção do título de doutor
em Literatura Comparada.
Orientadora: Profª. Drª Lygia Rodrigues
Vianna Peres
Niterói
2008
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
N786 Nolasco-Silva, Leonardo.
A Senhora do Álbum de Família no mar que afoga a Casa e não
devolve os corpos: a socialização do texto teatral como método de
leitura a partir de Garcia Lorca La Casa de Bernarda Alba e Nelson
Rodrigues Álbum de Família e Senhora dos Afogados / Leonardo
Nolasco-Silva. 2008.
296 f.
Orientador: Lygia Rodrigues Vianna Peres.
Tese (Doutorado) Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Letras, 2008.
Bibliografia: f. 282-288.
1. Garcia Lorca, Federico 1898-1936 Crítica e interpretação. 2.
Rodrigues, Nelson 1912-1980 Crítica e interpretação. 3. Teatro
(Literatura) Século XX. 4. Texto teatral. I. Peres, Lygia Rodrigues
Vianna. II. U
niversidade Federal Fluminense. III. Título.
CDD 809
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Leonardo Nolasco-Silva
A Senhora do Álbum de Família no mar que afoga a Casa e não devolve os corpos:
a sociologização do texto teatral como método de leitura a partir de Garcia Lorca
La Casa de Bernarda Alba e Nelson Rodrigues Álbum de Família e Senhora dos
Afogados.
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense como parte das
exigências para obtenção do título de doutor
em Literatura Comparada.
Aprovada em 19 de dezembro de 2008.
Banca examinadora:
Profª Drª Adélia Miglievich (UENF)
Profº Dr. Carlos Henrique Aguiar Serra (UFF)
Profª Drª Gladys Viviana Gelado (UFF)
Profª Drª Lygia Rodrigues Vianna Peres (UFF- Orientadora)
Profª Drª Margarida Gandara Rauen (FAP/ UNICENTRO)
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Aos meus pais, Elza e
Francisco, filhos de um outro
mundo, de uma outra cultura, que
mesmo não compreendendo a
tortura subjetiva do artista, se
fizeram malabaristas para realizar
os meus sonhos. Aos meus
feitores que seguraram a minha
mão e um dia permitiram a
partida. Às lágrimas de minha
mãe e à saudade contida de meu
pai; às preces de uma e aos
conselhos de outro; ao exemplo
de honestidade que sempre
esteve presente em nossa casa,
aliada ao amor que nunca cessa e
ao respeito que nunca finda; às
lembranças que trago comigo
ainda: o cheiro do nosso castelo,
da nossa comida, da estrada de
terra que nos levava à praia e os
almoços de domingo no quintal
embaixo da mangueira. Essa tese
é a prova derradeira de que tudo
valeu a pena, pois se os sonhos
não eram poucos, a alma nunca
fora pequena. Dedico aos meus
pais cada linha do meu poema.
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Tempos atrás, quando eu era uma criança e sonhar ainda era permitido,
planejei o meu futuro em termos do que eu seria quando crescesse. Os lugares-
comuns que permeiam boa parte das mentes também se fizeram acreditar em minha
memória e por alguns segundos, dias ou horas, eu desejei ser astronauta,
marinheiro, guerrilheiro do Vietnã, ator de novela, cantor famoso ou Presidente da
República. Todos esses desejos, que eram minha bússola, tinham a sua razão de
ser, eram plausíveis praquele ethos em processo de formação. Entretanto, com o
tempo, a ação da tão comentada sociabilidade fez do caminho do sonho uma
encruzilhada de escolhas e o coração sempre aos sobressaltos desejou construir
pra si uma bolha, com intenção de proteção e fuga do meu ainda temido olhar de
desencantamento diante do mundo. O segundo que separa a “criança-eu-mesmo”
do “adulto-quem-sou(?)” durou uma eternidade e vez ou outra ainda faz alarde
tentando chamar a atenção pra essa duplicidade que nos caracteriza Weber me
ensinou a pensar assim (ou seria a sentir?). Não sei, mas ao lado de Marx e
Durkheim ele embalou meus sonhos e meus pesadelos mais cruéis. Mas, como sou
o resultado de variados papéis, em mim ainda habitam alguns dos antigos sentires,
que ao invés de instigarem à batalha, alimentam a paciência e dizem que no final
tudo dará certo. E aberto ao destino, ao acaso, aos escritos, ao provável, eu me
vesti de fantasia para entender a realidade. Fiz-me bacharel, sociólogo, cientista. Na
antropologia renovei minha forma de ver, de enxergar, de olhar o outro e a mim
mesmo. Quando menos esperava cismei de mudar o mundo e a ideologia do sonho
me conduziu às Políticas Públicas, onde de maneira muito privada, muito restrita,
tímida e dolorida me fantasiei de mestre... mestre em que mesmo? Mestre de quem?
A quem eu ensinei? A quem eu deixei um legado importante? O diamante da minha
vida, o tesouro mais deslumbrante ainda estava por ser conquistado, e com
Fernando Pessoa, de braços dados e almas ligadas, aprendi a conjugar um verbo
novo: outrar. Não sei se inventamos a palavra ou se fomos inventados por ela, mas
em meio a tantas primaveras, fiz da vida o meu palco, do meu corpo um
personagem e da minha voz uma cantiga. Era preciso cantar o que ninguém mais
cantava, afinal, como dizia Vinicius,mais que nunca é preciso cantar”. Cantar não
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apenas a melodia conhecida, tornada sucesso, mas experimentar um canto novo,
mesmo que os ouvidos pretendidos não estejam acostumados aos acordes
dissonantes da voz que se opõe ao resto do mundo. Em um segundo, pelas mãos
da docência, a ciência entraria em minha vida para nunca mais se despedir. Somos
tantos e tão ligados, que mesmo dormindo sonos pesados permanecemos
acordados observando o “panoptismo-nosso-de-cada-dia”. Alegria. Descobri que
felicidade é construção, mas esse dado não me fez menos feliz. Talvez mais
consciente e mais urgente pela busca deste bálsamo. A teatralização do
sobressalto, do exagero, da grandiloqüência justificou a minha urgência em
transformar o instransponível. Sensível, porém racional, segui a “criança-eu-mesmo-
brincando-no-quintal” e decidi que a multiplicidade seria a minha sina. Um
personagem variado, muitas vidas, muitas histórias, muitas maneiras de ver o
mundo. Um ator social que lá no fundo vive e respira de maneira teatral e se orgulha
disso. Um risco: o que é sonho ou realidade nessa vida de artifícios? Não sei, não
me preocupei em perguntar ao roteirista da minha história o que ocorrerá agora que
Inês é morta e o adeus não finda. Filho da pós-modernidade, essa idade tão menina,
encontrei no “dramaturgo-todos-nós-da-nossa-sina”, a ponte de significados que nos
apresenta ao legado do mundo da dramaturgia. Portas abertas, a língua como via, a
ficção do meu passado se fazendo alegoria. Ator e cientista, leitor de poesias,
inventor de sentimentos e tradutor de “emoções--minhas”. Literatura Comparada,
amparada, sentida, conversada, encenada de uma forma um tanto estranha
“sociologizada”. Mais uma invenção. Elas não param. E invadem a consciência num
desfile de interpretações. Emoções. A cada dia um novo salto, um novo pulo, e no
mergulho do aparente inédito eis que despontam companheiros antigos que, tempos
atrás, disfarçados de perigo, me ensinaram a acreditar e a duvidar do mundo. Lá do
fundo, das profundezas de uma formação acadêmica difícil, foram resgatados os
escritos e os precipícios dos clássicos que pouco a pouco se converteram em “meu
vício”: Marx, Durkheim e Weber... tão distantes e ao mesmo tempo tão próximos,
mentores neste negócio de ler o homem e a humanidade... Sociedade de mentira,
mentiras da sociedade. E mais uma vez o teatro fez alarde pra variação da leitura.
Antropólogo da cultura, sociólogo da rua, embrenhamos por entre os becos
decorados por nossa língua. Em meio às perguntas, o silêncio. Depois do silêncio a
resposta. Eis em minha frente a aposta mais ousada dessa lida. Lorca e Nelson
Rodrigues: o teatro de nossas vidas. Comovida, a minha alma agradece... Em forma
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de prece e de aplausos, minha gratidão é inconteste: à Lygia pela orientação amiga,
pela liberdade e pelos mapas; Lana Lage pelo primeiro passo; Marinete dos Santos
Silva pelo despertar do pesquisador; Adélia Miglievich pela profissão, pela docência
e pelo sonho; Sílvia Martinez pela generosidade que mudou a minha trajetória
acadêmica; Maria Cristina Gatti pela amizade e pelos ensinamentos no teatro e na
vida; Lourdes Tura pelo primeiro emprego e pelo crédito em meu potencial de
professor; Tao Burity e Luciana Roscoe pela camaradagem, pela casa e pelo abrigo;
Davi, pela amizade que foi a Londres e voltou; Cristiano Queiroz e Jerônimo Vieira,
pelos primeiros rabiscos; meus alunos da UERJ, por me ensinarem todos os dias;
Simone, Rebeca e Walter, pelas festas e pelas conversas no Loreninha; Melane
Maracajá, pela poesia e pela praia; Juliana Soh, pela música e pela parceria; Bruno
Paradiso, pelo encontro com o CEMA; Vittorio Lo Bianco por estar sempre comigo,
sendo fortaleza e inspiração para continuar essa história; meus sobrinhos Valeska e
Lenilson que sustentam minha crença no mundo; minha irmã Cremilda, certeza de
bondade e força; CIA Paulista de Artes Marcelo, Aline, Anna, Vivi, Rodrigo e
Rosângela essa pesquisa foi bem mais divertida tendo vocês nos bastidores... Aos
meus amigos e família, minha coleção de amores, dedico as páginas que seguem e
agradeço a acolhida... Obrigado, Deus, por cada uma dessas vidas.
Léo.
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[...] é fácil entender porque a ficção nos fascina tanto. Ela nos
proporciona a oportunidade de utilizar infinitamente nossas
faculdades para perceber o mundo e reconstituir o passado. A
ficção tem a mesma função dos jogos. Brincando as crianças
aprendem a viver, porque simulam situações em que poderão
se encontrar como adultos. E é por meio da ficção que nós,
adultos, exercitamos nossa capacidade de estruturar nossa
experiência passada e presente. (Eco, 2004, p. 137).
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Nos cenários propostos por Garcia Lorca e Nelson Rodrigues, através das
vidas criadas por esses dramaturgos em forma de personagens e enredos,
intentamos nesta tese refletir sobre um caminho metodológico de leitura do texto
teatral. Amparados pelo conceito de obra aberta, creditado a Umberto Eco e pela
metáfora do bosque proposta pelo mesmo autor, recorremos aos clássicos da
Sociologia Marx, Durkheim e Weber e sugerimos mapas de leitura a partir de
suas contribuições teóricas. Como produto dessa etnografia-de-gabinete,
apresentamos o método da sociologização da cena teatral, objetivando contribuir
junto a diretores, atores e outros leitores do teatro com um novo olhar sobre a cena
seja no palco ou na vida.
Palavras Chave: Teatro Metodologia de Leitura Sociologia Teatral Federico
Garcia Lorca Nelson Rodrigues
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In the scenarios proposed by Garcia Lorca and Nelson Rodrigues, through the
lives created by these dramatists in the shape of characters and storylines, it was
tried in this thesis to reflect about a methodological path to read theatrical texts.
Supported by the concept of "open work", credited to Umberto Eco, and by the "wood
methaphor" proposed by the same author, it was appealed to the Sociology classics
Marx, Durkheim and Weber and suggested reading maps based on their
theoretic contributions. As a product of this "office ethnography", it is presented the
method of "sociolization" of the theatrical scene, aiming to contribute to directors,
authors and other drama readers with a new look on the scene being it the stage or
the real life.
Key Words: Theater Reading Methodology Theatrical Sociology Federico
Garcia Lorca Nelson Rodrigues.
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Introdução (Prólogo) A sociedade como palco e o palco como
sociedade: primeiras idéias sobre uma metodologia para a
sociologização da cena.......................................................................................... 13
Capítulo I (Ensaio Geral) A teatralização dos signos: endereçamentos,
bosques e o papel do leitor frente a um texto de teatro
1. Da abertura de uma obra teatral à definição de conceitos preliminares............. 20
1.2. Da presença do público/ leitor e do seu papel de atualização..................... 30
1.3. Do papel desempenhado pelos signos e a condição
de abertura que eles proporcionam ....................................................................... 34
1.4. Dos elementos paratextuais e dos protagonistas do texto de teatro............ 41
1.5. Dos acordos entre o autor-modelo e o leitor/ expectador-modelo
e seus mapas......................................................................................................... 55
Capítulo II (Avant-Première) Encontrar uma forma no tumulto da experiência
humana: a sociologização da cena teatral um mapa de leitura
2. A sociedade como palco e o palco como sociedade .......................................... 88
2.1. O teatro do mundo e o mundo do teatro: base e superestrutura
na produção da cena teatral um mapa marxista................................................... 97
2.1.1. Dialética: a dinâmica do movimento............................................................... 98
2.1.2. Materialismo histórico: a personagem e suas
condições materiais de existência........................................................................... 101
2.1.3. A vida real na irrealidade da cena teatral: entre
o palpável e as idéias Infra-estrutura e Superestrutura................................... 106
2.1.4. As classes sociais como endereçamentos de personagens:
lugarização e confrontos na organização da vida social na cena de teatro........... 108
2.1.5. Alienação: quando os personagens não se
reconhecem em suas obras e se tornam estranhos em si mesmos....................... 111
2.1.6. Recapitulando o mapa marxista................................................................... 114
2.2. O homem que age na cena e a cena que age
no homem: script social e anomia um mapa durkheimiano ............................ 115
2.2.1. Fatos sociais: ação dramática por Émile Durkheim.................................... 115
12
2.2.2. Cena e coesão: por que as personagens
vivem juntas a despeito do conflito entre elas?..................................................... 121
2.2.3. Tipos de solidariedade: teatralizando vínculos............................................ 124
2.2.4. O dramaturgo invisível: da integração ao suicídio....................................... 126
2.2.5. Anomia: o outro nome do conflito................................................................ 130
2.2.6. Recapitulando o mapa durkheimiano...........................................................133
2.3. O sentido da ação social: o personagem é livre?
um mapa weberiano............................................................................................134
2.3.1. Significando a ação dramática: compreendendo a cena
pelos tipos ideais da sociologia compreensiva de Weber......................................134
2.3.2. Poder e controle social na cena....................................................................138
2.3.3. weber e a dominação: a teatralização das relações de poder......................142
2.3.4. Recapitulando o mapa weberiano ............................................................... 144
Capítulo III (Estréia) Princípio da liberdade x Princípio da
autoridade: diálogos de García Lorca e Nelson
Rodrigues por meio da sociologização da dramaturgia teatral...................... 147
3. Lorca: “la poesía que se levanta del libro y se hace humana”.........................147
3.1. La Casa de Bernarda Alba “esta casa de guerra”........................................158
3.1.2. Bernarda: “tirana de todos los que la rodean”..............................................173
3.1.3. Adela: “¡yo hago con mi cuerpo lo que me parece!”.....................................185
3.1.4. Angustias: “debía estar contenta y no lo estoy”...........................................192
3.1.5. Martirio: “es un pozo de veneno”..................................................................196
3.1.6. La Poncia: “yo soy una buena perra”............................................................200
3.1.7. Magdalena: “malditas sean las mujeres”.......................................................206
3.1.8. Amelia: “nacer mujer es el mayor castigo”.................................................... 210
3.1.9. Maria Josefa: “fuerte como un roble”............................................................ 213
3.1.10. Pepe, el romano: “un hombre es un hombre”............................................. 216
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3.1.11. Criada: “sangre en las manos tengo de fregarlo todo”.............................220
3.1.12. Prudencia: “yo dejo que el agua corra”.................................................... 221
3.2. Nelson Rodrigues: o dramaturgo do teatro desagradável.............................224
3.2.1. O álbum e o mar: família, morte e identidades
sexuais em Nelson Rodrigues..............................................................................235
3.2.2. Paternidade: a negação do prazer e da
subjetividade em Jonas e Misael..........................................................................239
3.2.3. As santas: feminino e pecado em D.
Senhorinha e D. Eduarda......................................................................................248
3.2.4. As doces meninas: incestos e crimes de Glória e Moema..........................254
3.2.5. Os varões: complexo de Édipo em
Guilherme, Edmundo, Nonô, Paulo e Noivo......................................................... 259
3.2.6. Personagens secundárias? Modelos marginais
que sustentam ações........................................................................................... 271
Considerações finais (Epílogo) .........................................................................276
Bibliografia ..........................................................................................................282
Anexos .................................................................................................................289
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(...) o sociólogo (...) é uma pessoa intensa, interminável, desavergonhadamente
interessada nos atos do homem. Seu habitat natural consiste em todos os
lugares de reunião humana, todo lugar em que os homens se juntem. O
sociólogo pode estar interessado em muitas outras coisas. Mas seu interesse
dominante será o mundo dos homens, suas instituições, sua história, suas
paixões. (BERGER, 1986, p. 27)
Em meu primeiro período como aluno de um curso de Ciências Sociais fui
apresentado ao livro Perspectivas Sociológicas: uma visão humanística, de autoria
de Peter L. Berger. O sociólogo norte-americano apresentava em seu argumento
uma leitura particular sobre a carreira do cientista social, conferindo a esse
profissional a habilidade de previsão do comportamento humano, conquistada por
uma observação meticulosa, baseada na disciplina e no rigor teórico-metodológico.
O sociólogo era por ele caracterizado como um homem extremamente
comprometido com o seu ofício e, por isso mesmo, capaz de interpretar de forma
séria e competente os significados da ação humana e o funcionamento, de caráter
regulador e socializante, de nossas instituições. As reflexões sobre o produto do
trabalho do sociólogo propostas por Berger instigaram-me a ter vontade de
reordenar o mundo, revisitando os conceitos até então apreendidos, desconstruindo
minhas certezas e fabricando outras, sabidamente temporárias.
A aproximação com essa corrente de pensamento despertou em mim,
naquele início de socialização acadêmica, a disponibilidade de investigar,
sistemática e apaixonadamente, o objeto da sociologia. Em pouco tempo a teoria de
Peter Berger passaria a compor o meu discurso, e os antigos conceitos de controle
social, papel, grupo de referência e lugar ganhariam novas interpretações.
Na contramão deste movimento, entretanto, o mundo real, vivenciado em
circunstâncias nem sempre antecipadas pelas pesquisas, sinalizaria para o caráter
15
falível da teoria bergeriana. Tal percepção apareceria de maneira irrefutável nas
aulas de Antropologia, quando a idéia de campo passasse a despertar o interesse
por desvendar o Outro, convertendo o contato observador x observado em lócus de
aprendizagem e descoberta. Instaurou-se, assim, em meu processo de
sociologização da vida, a premissa até hoje praticada: transformar o familiar em
exótico e o exótico em familiar, sendo o resultado desse confronto uma realidade
geralmente imprevisível.
Uma vez no campo, o antropólogo se entregaria à aventura do
descobrimento, lançando-se na instabilidade dos cenários mutáveis, sem certezas
prévias, interessado nos mapas e nas demais formas de endereçamento dispostas
pelo caminho. Essa preocupação com a alteridade revelou-se indispensável nas
pesquisas que desenvolvi na graduação e no mestrado, sendo este último decisivo
para o tema aqui desenvolvido.
No decurso de dois anos (2004-2005), já socializado pelo método
antropológico, realizei para o mestrado em Políticas Sociais da Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro uma série de incursões à Penitenciária
Carlos Tinoco da Fonseca, situada em Campos dos Goytacazes, norte do Estado do
Rio de Janeiro, intentando compreender, por meio de entrevistas e aplicação de
questionários, a construção identitária de um determinado tipo de infrator: o
estuprador. Diante deste interlocutor nem sempre disposto ao diálogo sobre o crime
cometido, percebi a necessidade de um atalho metodológico que viabilizasse uma
primeira aproximação entre pesquisador e pesquisado. Após muitas tentativas
frustradas, que comprovam o caráter imprevisível desse confronto de universos o
Eu e o Outro decidi modificar a direção do método, almejando uma saída frente ao
cenário de empecilhos que emoldurava a pesquisa
1
.
Antes de avançar, todavia, revelando o percurso metodológico utilizado, devo
informar ao leitor que, para além da ciência como vocação (para ser fiel ao famoso
capítulo weberiano), experimentei, ainda na adolescência, o definitivo encontro com
as artes cênicas, na função de ator. Neste outro âmbito da vida social, entrei em
contato com o teatro de Nelson Rodrigues, atuando profissionalmente em algumas
peças de sua autoria que, somadas à qualidade artística da estrutura cênica e
1
NOLASCO-SILVA, L. O público de um crime privado: estupro, masculinidades e condicionantes
culturais apontamentos para políticas públicas de reintegração de infratores, prevenção e
atendimento à mulheres. 2006, 198 f. Dissertação (Mestrado em Políticas Sociais) Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Campos dos Goytacazes, RJ, 2006.
16
dramatúrgica, ainda mantinham um estreito diálogo com o imaginário de seu tempo,
seja servindo-lhe de respaldo conservador, seja despertando o incômodo por uma
temática desagradável (adjetivo sugerido pelo próprio Nelson para ilustrar suas
peças), onde fulguravam incestos, traições e um constante suceder de violências
físicas, simbólicas e psicológicas.
Essa leitura sociologizada das peças rodrigueanas coincidiu, em certo
momento de minha incursão antropológica na cadeia, com a constatação, ainda
superficial naquela ocasião, mas nem por isso menos verdadeira, de que os homens
que habitavam o ínfimo espaço das celas, silenciosos e resistentes ao diálogo,
traziam em si determinados traços comportamentais muito próximos das descrições
rodrigueanas acerca de suas personagens masculinas. A equiparação das
identidades dos reclusos com as identidades dos viventes da ficção me indicariam o
arriscado método: teatralizar, por meio de cenas extraídas da obra de Nelson,
situações de violência cometidas por um homem contra uma mulher, bem como as
conseqüências derivadas desta violência.
Uma vez redefinido o viés metodológico, sugeri aos internos que, a título de
entretenimento e experimentação, passássemos a ler coletivamente algumas cenas
escritas pelo dramaturgo pernambucano, dedicando ao final da leitura um tempo
para o debate de idéias. Para dinamizar a prática proposta, dividi o grupo de homens
em dois lados antagônicos: o primeiro agiria, após a leitura dramatizada, como
advogados de acusação da personagem violenta, apontando as suas falhas e
definindo punições; já o segundo, por sua vez, tentaria justificar a infração cometida,
tomando para si a responsabilidade pela defesa do réu da ficção, pleiteando sua
absolvição.
Para executarem a tarefa da teatralização do pensamento e da opinião, os
participantes precisavam construir e expor seus argumentos e, muitas vezes,
utilizavam a própria experiência pessoal como fonte de interpretação do caso a ser
julgado. Em diversas ocasiões o preso se referia ao réu da ficção na primeira pessoa
do singular, alternando em seu discurso as trajetórias da personagem rodrigueana
com as suas próprias.
Por esses caminhos de identificação, revelados não apenas pela fala, mas
também pela emoção e pelos demais signos expressos ao ler uma cena
possivelmente familiar para eles, percebi que o texto de teatro ultrapassava, naquele
ambiente de tensões diárias, o status de ficção, tocando profundamente aqueles
17
homens, em geral, acusados de insensíveis pela sociedade, levando-os muitas
vezes às lágrimas.
As personagens masculinas criadas por Nelson Rodrigues pareciam manter
uma ligação com os moradores daquelas celas: eram próximas, contemporâneas,
aliadas numa certa forma de conceber o mundo e a masculinidade. Em alguma
medida, o teatro rodrigueano traduzia-lhes as dores, representava o imaginário
caótico, típico de quem não possui mais nenhum controle sobre a própria existência,
perdidos que estão num conjunto de atribuições identitárias que lhes cobram
posturas nem sempre condizentes com as normas de seu tempo.
Pode-se dizer que, por meio da cena teatral, os internos da Penitenciária
encontraram uma forma de expor as experiências pessoais que antecederam à
prisão, identificando nos textos e nos contextos das peças, realidades muito
próximas daquelas que um dia eles vivenciaram. Este novo atalho metodológico foi
então batizado de ‘a teatralização da cena social’.
Com a adoção desse método minha etnografia na cadeia finalmente se fez
possível, valendo-se de uma das técnicas da História Oral o depoimento de vida
para a obtenção de dados.
Sendo assim, diante da teatralização da cena social, indaguei-me sobre a
pertinência do caminho oposto: a sociologização da cena teatral. Será possível
interpretar uma cena de teatro da mesma forma que interpretamos sociologicamente
um fato social? Exerceriam as instituições sociais que conhecemos o mesmo poder
de definição de caminhos e requisição de posturas sobre a personagem teatral,
como fazem com os atores sociais? O movimento da ação dramática no teatro pode
ser interpretado a partir dos mesmos conceitos com os quais interpretamos as
interações entre os homens? Em outras palavras: será possível utilizar a sociologia
para auxiliar a interpretação do texto de teatro, retribuindo ao campo das artes
cênicas o instrumento disponibilizado na pesquisa passada, situada no âmbito das
ciências sociais?
A partir destas questões de pesquisa procuramos refletir sobre as
possibilidades metodológicas aplicáveis à leitura de um texto de teatro, tendo como
ponto de partida uma perspectiva sociológica de interpretação proveniente das
contribuições teóricas dos clássicos Marx, Durkheim e Weber.
Transitando entre os conceitos sistematizados por esses sociólogos,
pretendemos averiguar a viabilidade de uma leitura sociológica da cena amparada
18
na seguinte hipótese: se o leitor de uma peça de teatro consegue obter uma
identificação com a cena lida (ou assistida) é possível pensar que a estrutura
dramatúrgica elaborada pelo autor esteja ligada àquilo que o leitor conhece da vida
social, sendo, portanto, uma representação dessa vida, cabendo-lhe o método
sociológico de investigação e interpretação.
A título de ilustração, escolhemos como recorte a ser submetido ao método
da sociologização da cena teatral, as peças rodrigueanas Álbum de Família e
Senhora dos Afogados as mesmas utilizadas nas dinâmicas com os internos da
Penitenciária contrapostas ao universo andaluz do teatro de Federico García Lorca
em La Casa de Bernarda Alba.
A aproximação dos dois autores, situados em tempos e espaços diferentes,
justificou-se pela convergência temática de suas obras: tanto em Lorca quanto em
Rodrigues o confronto entre o princípio da autoridade e o princípio da liberdade são
responsáveis pelo movimento da ação dramática. Em ambos prevalece um certo
pessimismo em relação ao amor e tal postura define de maneira trágica o desfecho
das personagens que amam sem controle. Além disso, a figura da mulher
transgressora aparece nos dois contextos como fonte de conflito e demonstrativo de
alterações sociais não apenas no mundo de ficção criado pelos dramaturgos, mas
também na sociedade que lhes serve de cenário. A obra de Nelson Rodrigues
dialoga, em alguma medida, com a poética lorquiana, ao eleger a instituição familiar
como base de suas construções cênicas. As alegorias de um podem ser
encontradas no trabalho do outro e neste suceder de imagens comuns podemos
estabelecer fortes laços de identificação, ao passo que nos é viável destacar
diferenças culturais que permitem certos caminhos a um, interditando estradas no
outro. Ademais, o recorte sugerido poderá possibilitar o cotejo acerca da
universalidade do método aqui proposto, já que Espanha e Brasil encontram-se
separados por tradições, economias, formas políticas e oceanos.
Na trilha dos questionamentos expostos, dividimos a tese em três capítulos
complementares. No primeiro, empreendemos um levantamento teórico sobre o
texto de teatro e seu enquadramento no conceito de obra aberta; refletimos sobre
os endereçamentos oferecidos pelo autor que pretende guiar o leitor por meio de
didascálias implícitas ou explícitas, municiando-o de elementos paratextuais a
indicar pistas e outros procedimentos dramatúrgicos que visam planejar os possíveis
pontos de chegada para um bom-leitor da obra teatral. Contudo, indagamos,
19
respaldados pelas teorias de Veltruski, Ubersfeld, Ryngaert entre outros, sobre o
poder de decisão desse leitor, as suas chances de escolha diante de um conjunto de
informações ficcionais, que podem despertar nele interesses e interpretações
situados no âmbito dos afetos e das memórias, categorias aptas a escapar do poder
de endereçamento tão caro ao autor. Nesse primeiro capítulo não anteciparemos
ainda o enredo das peças que nos serviram de recorte e ilustração de leitura,
cabendo ao leitor a decisão de avançar até o capítulo três para se familiarizar com
as histórias criadas por Lorca e Nelson Rodrigues, a fim de conjeturar possíveis
associações com a teoria que estiver sendo apresentada. Se assim o fizer, não se
perderão os endereçamentos desse texto, mas adiantamos que a espera poderá
possibilitar ao leitor uma aproximação mais instrumentalizada das obras, uma vez
que no decorrer dos dois primeiros capítulos ofereceremos mapas e guias que
objetivam somar experiências e disposições de leitura e atualização. Diante das
imprevisibilidades do ato da leitura e suas atualizações, sugerimos que o texto de
teatro é potencialmente rico em significados que, mesmo variando entre leitores
situados em lugares sociais distintos, guardam possibilidades de coerência com a
poética do autor inicial, podendo ser desvelados com o auxílio de um método de
investigação: a sociologização da cena.
O segundo capítulo é destinado à exposição deste método sociológico,
objetivando, primeiramente, apresentar ao leitor os fundamentos teóricos que
sustentam os argumentos de Marx, Durkheim e Weber e suas idéias sobre a
interpretação da vida social. A veiculação desta variada gama de conceitos servirá,
no futuro, como uma vitrine de categorias de análise, devidamente aplicáveis ao
estudo das peças em questão. Por meio das definições conceituais expostas neste
capítulo, a sociologização da cena terá seu sustentáculo teórico e poderá ser
confirmada ou refutava como metodologia de leitura. Em linhas gerais, analisaremos
aqui os conceitos marxistas de dialética, materialismo histórico, trabalho, forças
produtivas, relações sociais de produção, infra-estrutura, superestrutura, classes
sociais, luta de classes, alienação, revolução e ideologia; as definições
durkheimianas de fatos sociais, maneiras de agir, maneiras de ser, instituições
sociais, coesão social, moral, consciência individual, consciência coletiva, tipos de
solidariedade, normal e patológico, suicídio, anomia, educação moral e divisão do
trabalho social; além das idéias weberianas sobre ação social, racionalidade, tipos
puros, relações sociais, poder, situação de classe, estamento, partido, dominação,
20
carisma e desencantamento do mundo. A esses conceitos serão contrapostas as
definições do capítulo anterior, objetivando uma coerência interpretativa da cena
teatral a partir de uma associação de idéias interdisciplinares.
O capítulo três, por sua vez, trará a discussão sobre as peças que constituem
o nosso escopo de análise, numa tentativa de aplicação prática do método de
sociologização da cena. Na ocasião serão expostas as biografias de García Lorca e
Nelson Rodrigues, apresentando ao leitor os cenários e o contexto histórico de suas
produções artísticas. Uma vez desenhado esse perfil social da elaboração do texto,
empreenderemos os esforços necessários para a aplicação do método, sugerindo
mapas para a interpretação das tramas. O produto desse mapeamento do texto de
teatro por meio da perspectiva sociológica pretende, se confirmada a hipótese, ser
sugerido a qualquer texto teatral, não estando limitado às obras dos dramaturgos
aqui trabalhados.
Faz-se mister informar ao leitor que a leitura acerca das peças aqui
apresentadas teve como princípio metodológico de abordagem a sociologia de Marx,
Durkheim e Weber, estando as demais possibilidades interpretativas como a
psicanalítica, por exemplo fora de nosso alcance e interesse. Decerto, estamos
falando de escolhas e não de determinações. O leitor que pretender vislumbrar
outros diálogos estará livre para fazê-lo, sendo de nossa alçada o suporte
sociológico para futuras interlocuções multidisciplinares. Desta forma, não limitamos
a abrangência de nosso método, apenas definimos um foco para dele tratarmos
minuciosamente.
Atentos aos perigos do caráter totalitário de um método, sigamos em frente na
busca por caminhos e não de regras fixas e intransponíveis. Se convier mudar a
direção do pensamento, mudemos. Se as contradições entre os autores sugerirem
abandonos, abandonemos. Mas se a diversidade de mapas sinalizar para a
possibilidade de fusões e rearranjos, reinventemos as regras de um jogo há muito
praticado e sedento por renovação. Pois, nas palavras de Lorca (1973, p. 965),
“Caminos nuevos hay para salvar al teatro. Todo está en atreverse a caminar por
ellos”.
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A obra de teatro, a partir de sua forma e da temática que aborda, pode ser
pensada como depositária de mensagens ricas em significados e de caminhos
colocados à disposição do leitor/ expectador, de maneira a convidá-lo a percorrer
uma variedade de possibilidades interpretativas, em níveis diferenciados de
intervenção por parte do autor, ou daqueles que, através de suas funções na
construção do espetáculo, modificam a estrutura textual original: o diretor que
concebe uma montagem da peça, o ator que defende certa exposição da conduta da
personagem, o sonoplasta que intervém com suas escolhas sonoras e indutoras de
determinadas reações por parte do público, o figurinista que personifica e materializa
o drama através das vestes que caracterizam os espíritos criados para a cena, e
todos os demais participantes espécies de co-autores que compõem o processo
teatral. Diante dessas intersecções comunicativas, optamos por declinar da idéia de
univocidade interpretativa quando tratamos de uma obra de teatro.
Decerto, o leitor/ expectador desse tipo de literatura, quando se entrega ao
ofício (ou ao deleite) de desvendar os caminhos da trama apresentada em forma de
diálogo (ou de monólogo), encontra no dramaturgo uma via inicial de
endereçamento, mas não a única. É por intermédio do autor, de suas didascálias
implícitas e explícitas que experimentamos um primeiro contato com a mensagem do
teatro, e este contato termina por situar o leitor/ expectador dentro de certos
condicionamentos necessários à compreensão da peça. Todavia, somos levados a
considerar hodiernamente, como bem atesta Veltruski (1988), que o dramaturgo não
está sozinho quando o assunto é dar materialidade ao texto.
Completando/ atualizando/ modificando o escopo textual inicial, vemos
emergir, por exemplo, a figura do diretor que, em tempos modernos, desfruta de
22
grandes liberdades de interpretação e criação artísticas. Tal como o autor de “O
texto dramático como componente do teatro”, não é nossa intenção opinar sobre
esses comportamentos de intervenção no texto por parte dos diretores, mas é
salutar recordar que mesmo Stanislavski costumava interferir nas obras dos
dramaturgos que escolhia para montar (VELTRUSKI, 1988, p.163 -189). O que
cumpre ressaltar aqui é que estaremos atentos aos movimentos de recepção da
obra de teatro na contemporaneidade, mas esses movimentos não estarão restritos,
em nossa análise, ao comportamento dos envolvidos numa montagem-espetáculo
dos textos selecionados para esta tese. Nosso objetivo é refletir sobre mapas e
endereçamentos provenientes de interpretações empreendidas por qualquer tipo de
leitor que se aventure diante de uma obra de teatro, recriando formas de acesso,
inventando aproximações geradoras de novos sentidos, oferecendo apontamentos
sobre infinitas maneiras de imersão nesses bosques literários.
A nossa proposta é analisar o texto teatral como dotado de uma
potencialidade de transposição, de uma virtualidade encenável, mesmo quando o
leitor não se converte em expectador de uma encenação real. O próprio ato da
leitura é capaz de induzir aquele que lê a uma certa expectativa de montagem, o que
auxilia a recepção da mensagem de maneira mais intensa e autônoma, uma vez que
o leitor reconstrói, ele mesmo, a partir do arsenal informativo inicial, uma série de
possibilidades artísticas, que conferem movimento e vida à narrativa.
No decorrer da leitura de um texto dessa natureza é possível imaginar e
visualizar, através de um exercício de abstração e de co-participação autoral, o rosto
da personagem descrita, o tom de sua voz, a reação de seus sentimentos diante dos
fatos narrados, os detalhes do cenário que lhe serve de abrigo e tantas outras
informações que nos são apresentadas pelo autor com o intuito de nos familiarizar
com a obra.
Entendemos, pois, a dramaturgia teatral como literatura acrescida de
singularidades que nos levam à visualização de algo que ultrapassa a simples
narrativa. Trata-se de um texto com imagens; imagens que sustentam movimentos;
movimentos que garantem reações; reações que sintetizam sentimentos;
sentimentos que conduzem a interpretações; interpretações que variam dependendo
do leitor. Nas palavras de Veltruski (1988, p. 164):
23
A querela sem fim acerca da natureza do drama, isto é, se é um gênero
literário ou uma peça teatral, é inteiramente fútil. Uma coisa não exclui a
outra. O drama é uma obra de literatura por direito próprio; não requer mais
do que a simples leitura para penetrar na consciência do público. Ao
mesmo tempo, é um texto que pode, na maioria das vezes pretende, ser
usado como componente verbal da representação teatral.
Não pretendemos aqui construir uma estratégia normativa de leitura, nem tão
pouco oferecer uma visão pretensamente acertada acerca das obras que nos
servem de recorte. Antes, estamos dispostos a sugerir que os caminhos possíveis
diante de uma mensagem literária endereçada ao público/ leitor sob a forma de
teatro, são amplos, convidativos e flexíveis ao viajante consciente de suas rotas e de
seus desejos de chegada. O que intentamos sugerir é uma reflexão sobre a
comunicação estabelecida entre ficção e realidade, apostando mais uma vez no
texto de teatro como um poderoso instrumento de diálogo entre o gênio criativo do
autor e o pensamento social de seu tempo histórico.
Por meio de sua perpetuação através das publicações impressas e das
variadas formas de montagem, a obra de teatro está sempre se atualizando, se
reinventando, alcançando novos leitores, seja sob o rótulo de expectadores, seja por
meio da leitura tradicional das páginas escritas por um autor em seu tempo. Isso
permite-nos considerar que as comunicações e inter-relações de que falávamos
acima, não se resumem apenas ao momento da elaboração da trama, mas estão
fadadas a um processo inesgotável de atitudes comunicativas e interpretações
variadas que se perdem no tempo, sinalizando para a longevidade do texto e seu
aspecto de eterna atualização. Em outras palavras, o texto de teatro sobrevive ao
autor e se atualiza no decorrer dos tempos, experimentando a recepção de seus
novos intérpretes, garantindo ao leitor/ expectador uma maior participação no jogo
que se estabelece, com regras que se modificam constantemente.
Adiante, quando apresentarmos nossa abordagem das obras de Lorca e
Nelson a partir de uma perspectiva sociológica, será de fundamental importância a
clareza sobre esse entendimento do leitor/ expectador como sujeito ativo da obra
teatral. E mais: tornar-se-á imperativo compreender a dramaturgia como produto de
um jogo de escolhas empreendidas por um autor que dialoga em maior ou menor
medida com o seu tempo, suas crenças e suas instituições sociais. Antes, contudo,
devemos esmiuçar um pouco mais a idéia de transformabilidade do texto teatral (que
24
já definimos como um tipo de literatura), frente aos múltiplos leitores que sobre ele
dedicam atenção, convertendo-se em co-autores.
Quando Umberto Eco (1989) se propõe a decifrar os enigmas de um texto
literário, sinaliza para a condição de “máquina preguiçosa” que caracteriza esse tipo
de obra. O autor considera que, para além do texto produzido e publicado,
divulgador de uma determinada história, narrador de certos conflitos e seus
respectivos desfechos, torna-se fundamental a participação efetiva do leitor que
completará, com seu trabalho de cooperação, as lacunas deixadas pelo “inventor” da
história. Assim sendo, uma obra literária poderá ser pensada através de um modelo
hipotético definido por Eco como obra aberta”, o que conferiria ao leitor a
oportunidade de percorrer certas trilhas dentro dos “bosques” sugeridos pela ficção
2
.
Nessa mesma direção, Anne Ubersfeld (1977), argumentará que o texto de
teatro também poderá ser caracterizado por essa condição de abertura,
convertendo-se em máquina ainda mais “preguiçosa”, já que possui mais brechas ao
pressupor um conjunto de signos não verbais que deverão se relacionar com os
signos verbais no momento da representação ou da transposição do texto ao palco.
Diante de um texto teatral, então, caberia ao leitor descobrir formas ainda mais
eficientes de alimentar a máquina, associando o escrito àquilo que poderá fazer
parte de uma virtual encenação, o que exige dele um constante processo de
atualização.
Ryngaert (1996), contudo, demonstra certa preocupação com esse tipo de
interpretação, ao perceber que, muitas vezes, o leitor da obra de teatro é levado a
buscar uma completude do mesmo na encenação futura da peça. Assim, todo
trabalho de atualização, de (re) invenção da relação leitor X texto, será
equivocadamente transferido para a cena que nem sempre cuidará de preencher as
lacunas da ficção escrita. Argumenta esse autor que uma encenação pode ser tão
“preguiçosa” quanto o texto, deixando outros espaços vazios entre os interlocutores.
Sendo assim, como devemos nos posicionar frente a um texto de teatro? Qual
o papel do leitor nesse preenchimento de lacunas? Existem regras para a leitura/
interpretação de uma peça? Essas regras seriam as mesmas de um texto literário de
outra natureza como as descritas com sucesso por Umberto Eco no tocante à
2
Esses conceitos de Eco serão trabalhados detalhadamente no decorrer desse capítulo, utilizando
como base as discussões sugeridas pelo autor nos livros Obra Aberta e Seis caminhos pelos
bosques da ficção.
25
ficção? Antes de esboçar algumas possibilidades de respostas, cuidaremos mais
detalhadamente da identificação conceitual daquilo que seria, por convenção, um
texto escrito para o teatro.
Segundo Ryngaert (1996), em sua “Introdução à análise do teatro”, parecia
ser mais fácil proceder a esse tipo de empreitada no passado. Aristóteles, por
exemplo, foi pioneiro ao oferecer claras definições classificatórias daquilo que seria
por natureza um texto teatral. Mas na atualidade, tal empreendimento ficaria
comprometido, já que estabelecer regras fixas para esse tipo de texto é uma ação
que entraria em conflito com a diversidade de dramaturgias levadas à cena
atualmente. Porém, algumas idéias podem ser enumeradas.
Se nos remetermos ao século XIX, por exemplo, concluiremos que ali
prevaleceu a crença na onipotência do texto. Para E. Scribe uma “peça bem feita”
precisava funcionar junto ao público e deveria ser baseada na arte da composição
dramática, sendo demonstradora de um certo virtuosismo. Já para Antoine Vitez, o
material que antecede à cena o texto é naturalmente transformável, por isso é
possível fazer teatro de tudo. Dos anos 60 aos 80 do século XX presenciamos uma
perda do prestígio do texto, elevando-se em importância a representação/
encenação da peça. A teatralidade foi buscada fora da escrita teatral e as possíveis
carências do texto teriam sido camufladas por sua transposição ao palco
3
. Os
diretores acreditavam poder transformar em teatro qualquer tipo de escrita, o que
nos coloca diante de um problema metodológico: como tratar das especificidades de
um texto teatral, se não temos definidos os limites ou potencialidades da natureza
desse tipo de dramaturgia? Na tentativa de uma sistematização pode ser
interessante explorar alguns conceitos clássicos.
Para Aristóteles (1990), uma tragédia gênero teatral por excelência
poderia ser definida como a imitação de uma ação nobre que gera no expectador
uma certa purgação de emoções catharse através do temor e da piedade. Essas
sensações seriam despertadas por meio de uma dupla consciência do leitor/
expectador: por um lado, ele reconheceria o caráter ficcional da tragédia, mas por
outro, manteria acesa a idéia de que aqueles fatos narrados seriam viáveis na vida
real. Tal constatação possibilitaria o estabelecimento entre a tragédia e o seu público
de um laço forte de comunicação, onde o fantástico, o improvável, o fantasioso,
3
Essas idéias aqui sugeridas à guisa de problematização de uma metodologia para a leitura de um
texto teatral encontram-se dispostas na argumentação de Ryngaert, op. cit.
26
possuiriam um diálogo profícuo com um universo de possíveis. Desta forma, haveria
uma construção cognitiva da aplicabilidade da mensagem trágica ficcional à vida
extrapalco.
Um dos principais conceitos trabalhados por Aristóteles
4
diz respeito à
imitação, cujo termo grego retomado hoje é mimese. Trata-se do motor inicial da
produção artística, já que os homens que se propõem a esse tipo de criação
criam imagens imitando muitos objetos através das cores e das formas,
assim outros [...] imitam através da voz. Todas essas artes (ele cita: a
epopéia, a poesia trágica, a comédia, o ditirambo, a poesia aulética e a
citarística) realizam a imitação por intermédio do ritmo, do discurso e da
harmonia, seja separadamente, seja em conjunto. (BORIE, 1996, p. 20).
Quando se imita, diz Aristóteles, imitam-se homens em ação. O que difere,
por exemplo, a tragédia da comédia é a forma como esses homens que agem são
produzidos. No primeiro caso, tendem os autores, a criar uma versão melhorada do
sujeito, ao passo que o segundo, o faz a partir de um desenho inferior. Ou seja, a
tragédia pretende imitar homens superiores aos de seu tempo, e a comédia,
inferiores. Mas o que levaria o homem a imitar a si mesmo e a seus pares?
As causas da imitação para Aristóteles e aí podemos pensar sobre a
verdadeira função do fazer teatral são por excelência naturais. A imitação faz parte
da natureza do homem desde a sua infância, já que por meio dela a criança
experimenta os cenários e sensações que terão de habitar no futuro. Eis o que
diferenciaria os homens dos outros animais: a capacidade de reinventar a vida.
Ademais, a imitação se configura para o homem como fonte inesgotável de prazer.
No caso da tragédia, esse prazer viria acompanhado de outras sensações, como o
temor e a piedade.
A tragédia, que se caracteriza por imitar homens respeitáveis, tende
geralmente a caber dentro de um dia, ou não muito além disso. Sua ação é séria
e completa (com princípio, meio e fim), de grandeza equilibrada e linguagem
agradável, ou seja, aquela que tem ritmo, melodia e canto. Os acontecimentos são
vivenciados por personagens e não contados por um narrador, o que poderá
4
As considerações sobre a Poética de Aristóteles serão aqui trabalhadas por meio da seguinte
publicação: BORIE, Monique et al. Estética Teatral: textos de Platão a Brecht. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1996.
27
viabilizar no expectador a verdadeira purgação de sentimentos despertada pelo
temor e pela piedade. Aqui devemos recuperar o conceito de katharsis que aparece
numa outra obra de Aristóteles A Política numa passagem do livro VIII, onde se
evoca a reação dos auditores à música. A abordagem é assim traduzida por M.
Somville (1975, p. 77):
Esta maneira de ser afetado, tão viva e profunda em algumas pessoas,
existe em nós, e não difere senão para mais ou para menos; tal acontece
com a piedade, o terror e o entusiasmo. De fato, há indivíduos que são
particularmente sensíveis a esta espécie de movimento: são aqueles que
vemos tornarem-se calmos pelo efeito das melodias sagradas, assim que
começam a ouvir os cantos apropriados para acalmar as paixões violentas;
ficam como se tivessem encontrado aí remédio e katharsis. Os homens com
disposição para a piedade, o terror e, em geral, para os afetos vivos, devem
necessariamente experimentar o mesmo efeito; os outros também, segundo
o grau em que cada um deles seja susceptível a estes diversos afetos; e
todos devem experimentar uma espécie de alívio acompanhado por um
sentimento de prazer. É assim que os cantos destinados a produzir esse
efeito proporcionam aos homens uma alegria inocente e pura.
Sendo um resultado da tragédia, a katharsis ou catarse em português
poderá ser gerada ao longo de todo um trabalho de composição. Como a imitação
se dará por meio de homens em ação, teremos uma boa parte da tragédia dedicada
à encenação, seguindo-se pelo canto e pelo texto. O texto diz respeito ao conteúdo
dos versos, que traduz em cada homem imitado uma particularização dada pelo seu
caráter e pelo seu pensamento. O caráter de uma personagem, ou psicologia, é
aquilo que faz o público emitir algum tipo de julgamento acerca da ação executada,
ao passo que o pensamento, para Aristóteles, é o mesmo que papel, isto é, tudo
aquilo que a personagem diz com intenção de provar ou exprimir uma opinião.
Por fim, teríamos no rol das partes que compõem uma tragédia, a fábula,
definida por ele como o conjunto das ações que sustentam a imitação. A fábula é,
portanto, a parte mais importante da tragédia, já que esse gênero prioriza a imitação
não dos homens, mas da ação, da felicidade e da infelicidade. E se os homens são
o que são por conta de seu caráter, eles serão felizes ou infelizes por causa de suas
ões. Isso nos leva a concluir que são as ações executadas nas tragédias que
definirão para o homem o seu caráter.
28
A peripécia e o reconhecimento são dois procedimentos presentes nas
fábulas complexas. Enquanto o primeiro é o inverter das ações em sentido contrário
segundo a verossimilhança e a necessidade, o segundo trata da passagem da
ignorância ao conhecimento. Para Aristóteles, na interpretação de Borie (1996, p.
27)
o reconhecimento que melhor convém à fábula e à ação é [...] o que se
acompanha de uma peripécia; ela suscitará piedade ou terror pelas ações
de que a tragédia é imitação, e que provocarão, segundo os casos,
infelicidade e felicidade.
Parem além dessas duas partes da fábula, teríamos uma terceira: o patético,
definida como uma ação de morte ou de sofrimento, como as agonias que aparecem
em cena, as grandes dores, os ferimentos etc.
As ações verificadas na tragédia, para causar o efeito desejado a catarse
devem priorizar o embate entre pessoas amigas, cujos laços de afetividade
garantam esse tipo de emoção ao público. De nada adiantaria apresentar a luta
entre dois inimigos, a não ser para cumprir a categoria do patético. Ao contrário, a
purgação das emoções será mais viável quando o assassinato se der entre pai e
filho, mãe e filho, dois irmãos e assim por diante. Essas ações se darão num campo
de tensões entre um “tempo humano” e um “tempo divino”, este último inacessível
ao homem, indecifrável ao bel-prazer do indivíduo.
As determinações dos Deuses aparecem como realidade inevitável, que
encerra no homem o cumprimento de um destino atroz, alheio às suas vontades.
Quando Édipo, por exemplo, toma conhecimento da sua sina, ainda que tente fugir
do destino que lhe fora revelado, é surpreendido por sua inevitabilidade, cônscio de
que a tentativa de ir contra ao estabelecido encontra-se fadada, desde o princípio,
ao insucesso. A ação dramática das tragédias, bem como das poesias reveladas
pelas ninfas, situa o homem no limiar da liberdade e do aprisionamento a um mundo
sobrenatural, diante do qual ele se torna impotente e contemplativo.
Quando Nietzsche (2005) indaga sobre a origem da tragédia, revela-nos mais
uma vez Aristóteles foi o precursor dessa revelação a condição de necessidade
que ronda o fazer artístico. A primeira manifestação da arte dar-se-á no sonho, que
se apresenta ao homem como o cenário dentro do qual ele dará seus primeiros
29
passos como agente da ilusão, visto que ao sonhar todos os homens estão aptos à
imitação e a catarse. São, portanto, artistas. No mundo real, situados como
membros de uma sociedade, envoltos pelo sonho-coletivo a cultura os indivíduos
seguem seu curso divididos entre dois instintos que viabilizam a sua atuação: de um
lado, um instinto estético apaziguador, límpido, transparente, remanescente de
Apolo; do outro, o caos, o abismo, a busca pelo saciar dos desejos mais mundanos,
característicos de Dionísio. Da junção entre o Apolíneo e o Dionisíaco nasceu a
tragédia grega, ou seja, o caos humano mostrado através da beleza das formas
próprias de Apolo.
Respeitadas as diferenças de entendimento por parte dos distintos teóricos,
podemos pensar a tragédia como uma dramaturgia que dialoga com o improvável,
com o fantasioso, com o fantástico, mas que pauta as suas ações numa realidade
possível, ainda que adornada com cores fortes para garantir o status de espetáculo.
Em essência, temos na tragédia e no teatro como um todo ingredientes
plenamente humanos, observáveis na trajetória de qualquer pessoa, mas numa
disposição inusitada, recortada, revestida por uma atmosfera de símbolos e
intenções subliminares.
Na visão de Victor Hugo, o teatro é a mistura no palco de tudo aquilo que na
vida está misturado, o que denota uma reação contra o mundo literário
excessivamente organizado pelos clássicos
5
. Decerto, percebemos que o teatro
contemporâneo, em geral, ignora as definições de gênero, sendo escrito sem
rótulos. Poderíamos por esse fato falar em uma perturbação da escrita teatral?
Estaria existindo no campo do texto para teatro um certo problema de identidade?
Mesmo quando buscamos as diferenciações classificatórias entre Drama e
Epopéia, esbarramos em alguns empecilhos conceituais. Tradicionalmente temos
que o Drama é “uma obra que imita pessoas que fazem alguma coisa”, ao passo
que a Epopéia “promove a imitação por meio de uma narrativa” (Aristóteles, 1990).
Mas há nos textos de teatro uma mistura de ação executada diretamente pelos
personagens e de narrativas que se encarregam das ações passadas, tornando
similares estilos teatrais que seriam, por definição, diferentes.
Hegel (1964), ao discutir as estruturas que conduzem a ação dramática ao
movimento, defende que todo drama é composto por um conflito, viabilizado pela
5
Os apontamentos precedentes sobre a teorização do teatro podem ser mais bem aprofundados em
ROUBINE, Jean-Jacques. Indroduction aux grandes théories du théâtre. Paris: Bordas, 1990.
30
oposição de paixões entre personagens antagônicas. Cada personagem ao agir
deve ter consciência da ação que pratica, uma vez que lhe será cobrada em algum
momento da sua atuação a responsabilidade pelas escolhas empreendidas. Hegel
encara a personagem como uma “pessoa moral”, capaz de optar por certos
comportamentos e atitudes em detrimento de outros. A responsabilidade pela ação
ou pelas escolhas conscientes que faz pertence exclusivamente à personagem
colocada diante de um outro indivíduo ficcional ou encarando a si mesma no caso de
um monólogo. A oposição de interesses norteia o caminhar da história, conferindo
movimento à ação dramática, garantindo-lhe o status de “teatro”.
Sabemos hodiernamente que a encenação moderna privilegia o agir, fazendo
o personagem executar diversas tarefas na representação, mesmo que estas não
tenham ligação direta com o que está sendo dito. Ryngaert (1996, p. 10-11) aponta
que:
não é raro vermos espetáculos nos quais uma personagem se entrega a um
longo monólogo ao mesmo tempo que executa trabalhos de limpeza ou de
cozinha, sem relação visível com o discurso. É certo que há uma “ação” em
cena, mas ela não decorre de uma necessidade evidente inscrita no texto.
A ação não mais estaria ligada a uma necessidade descrita pelo texto, mas é
(re) criada na cena, por outros autores situados como leitores/ transformadores da
mensagem original (o texto). Por isso haveria, na visão de Ryngaert, uma cobrança
aos dramaturgos para que estes cuidem apenas da escrita, sem oferecer muitos
indícios (didascálias explícitas) sobre aquilo que deverá ser levado ao palco pela
encenação. Mais tarde, veremos que esse tipo de conduta verificada na atualidade
não corresponde à poética dos dramaturgos que ilustram a nossa análise, uma vez
que podemos notar neles a insistência nos amplos endereçamentos feitos por
didascálias explícitas (rubricas).
O que devemos guardar, por hora, é a informação de que os conceitos que
traduzem as nossas abordagens sobre o teatro e seus textos, estão longe de gerar
consensos. Tal variedade de opiniões, contudo, sinaliza mais do que uma confusão
para a elaboração de métodos de leitura. Antes, nos apresenta à riqueza de trilhas,
de atalhos, de mapeamentos que podemos usar, elaborar e transformar no decorrer
de nossas incursões literárias. Sem critérios rígidos, mas ao mesmo tempo
31
reconhecendo os limites já traçados, será possível nos aproximar dos velhos textos
e dos textos novos, fazendo deles um uso consciente, rico, atento de quem explora
um mapa tentando redescobrir-se no ato da releitura. Seguindo a máxima de um de
nossos dramaturgos-inspiradores
6
, para quem a arte da leitura é exatamente a arte
da releitura, a intenção de um novo instrumento metodológico de leitura, de um
outro mapa que nos apresente aos demais endereços do texto de teatro é
justificável.
Em linhas gerais, o texto de teatro tem sido considerado a partir de sua
estrutura de diálogo, seja entre um personagem e outro (s), ou entre um
personagem e a platéia (monólogo). O público é, na visão de Ryngaert (1996), o
interlocutor primeiro do ator, ainda que no teatro dramático puro, sua presença seja
teoricamente ignorada. O autor argumenta que a relação estabelecida entre atores e
público é de natureza dupla: um sabe da existência do outro e das suas
competências. Porém, o que resulta dessa correlação é, antes de tudo, imprevisível.
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Desde que Brecht (1979) sistematizou suas idéias acerca da cena e do texto
teatral, o público passou a ocupar um lugar de destaque nas preocupações de
encenadores e artistas em geral, sendo essa preocupação constantemente
influenciada pelas premissas da chamada forma épica pura, onde o expectador é
interlocutor único e privilegiado. A idéia brechtiana era fazer o texto agir sobre os
homens situados na platéia, algo similar com a pioneira concepção aristotélica de
catharse. Contudo, para Brecht, o ator não ignora a presença do público e assume
isso no momento da encenação. A preocupação do encenador deve ser com o
desenrolar da cena, muito mais do que com o seu desfecho. Por isso as cenas
devem ser trabalhadas isoladamente. O objetivo não é fazer o público acreditar na
verdade do ator, mas mostrar a ele um quadro de possibilidades reais, levadas ao
palco de maneira ficcional, mas nem por isso descomprometida com a realidade
conhecida do expectador. Brecht não pretende deixar o público à mercê dos
sentimentos. Sua intenção é criar um distanciamento entre atores e texto, para que,
de forma crítica, a platéia possa perceber o que há de ilusório e o que poderá haver
6
RODRIGUES
E
, Nelson. O óbvio ululante: as primeiras confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007.
32
de verdade na cena proposta. Como num jogo de espelhos, a dramaturgia se coloca
diante do expectador e cada um reconhecerá em si mesmo e, no mundo em que
vive, a parcela de responsabilidade que mantemos com aquele universo de
possíveis traduzido em teatro. A cena é pensada didaticamente, bem como os
prováveis efeitos que ela causará sob o público.
Todavia, se reconhecemos no parágrafo anterior uma ligação entre esta
premissa brechtiana e o princípio aristotélico de catharse, devemos agora
estabelecer a necessária diferenciação entre esses teóricos. Aristóteles, ao
reconhecer no texto de teatro a possibilidade de ação sobre o público, não o faz de
forma similar ao didatismo brechtiano. Para ele, a ação dramática existe também em
um universo de possíveis, mas agirá afetiva e sensorialmente sobre a platéia, que
terá a chance de purgar suas paixões no momento em que for colocada diante dos
fatos narrados/ vivenciados. A ação dos atores, para Aristóteles, é dotada de
humanidade, a ponto de, mesmo sob o véu do ficcional, despertar no expectador o
temor e a piedade como no caso da tragédia. Ao invés de distanciar, como no
caso de Brecht, o teatro aproxima, mas essa aproximação aristotélica também não
deverá fazer o expectador esquecer que está diante de uma peça, de uma
representação do real. A consciência desse fato, todavia, não finda as possibilidades
de envolvimento e reconhecimento, o que permite, por algum tempo, a elevação de
certos sentimentos que estavam adormecidos e que, por conta da cena, emergem
em cada expectador, mostrando a ele caminhos de exercício e de superação.
Nos dois casos, podemos perceber uma tendência a situar o texto de teatro
num terreno que ultrapassa os limites da inventividade, e que constrói com o mundo
real vias de identificação repletas de significados. Seja durante a leitura ou na
experiência da encenação, o leitor de um texto teatral poderá manter com este texto
uma relação de cumplicidade intensa, fazendo mover a “máquina preguiçosa” de
diferentes maneiras. A estrutura dramatúrgica, ainda que pautada na variedade de
caminhos interpretativos, apontaria ao leitor um ou alguns pontos de chegada.
Tal tentativa de “encaminhamento” pode ser percebida na obra de Calderón
de La Barca, que no século XVII produziu na Espanha um vasto número de autos
sacramentais, claramente destinados a criar no espectador um certo espírito de
disciplina e entendimento sobre as leis necessárias para o viver em sociedade, de
maneira harmoniosa e honrada, segundo os princípios cristãos. No decorrer da
trajetória dos homens que protagonizam suas histórias, percebemos a utilização de
33
alegorias, que servem não apenas de recurso cênico, mas também como remetente
de mensagens subliminares.
Em El Divino Orfeo além do personagem-título e de sua amada Eurídice, o
autor nos apresenta os alegóricos Albedrio, El Amor e La Gracia, alegorias que
servirão de referência para as ações dos protagonistas. O pecado e a virtude serão
contrapostos e a salvação será uma questão de adesão ao entendimento, à razão.
O desfecho dos autos calderonianos conduzirá o leitor ou tentará conduzir a todo
custo à idéia de que o pecado não compensa, sendo aconselhável uma vida
regrada, dentro dos princípios da religião vigente. Assim, o amor de Orfeo e Eurídice
implica obediência desta em relação àquele, causando nos alegóricos Albedrio e
Gracia uma calorosa discussão de cunho moral, como podemos verificar nestas
réplicas de Calderón de La Barca (1966, p. 1827):
Orfeo Por esso Eurídize mia
Llega solo a la que yo
Te señarle, y permita;
Sigueme esposa.
Eurídize Mis vozes
Tus alabananzas repitan. (Vanse los dos).
Albedrio Muy mal me estubiera a mi
Y fuera cosa muy linda
Que para aver de comer
Cada vez lizenzia pida.
Gracia ¿No ves que la más hermosa
Manzana tiene podridas
Las entrañas?
Albedrio ¿Pues ay mas
De mondarla, y de partirla
Y en viendola sana, zas?
Gracia No está el peligro en la vista,
Que está en el gusto el peligro
Ainda que o mito de Orfeo tenha sido extraído da mitologia dos deuses
pagãos, é notório o comprometimento de Calderón com o contexto cristão dentro do
qual produzia. Essa filiação ideológica nos permite associar Orfeo, remanescente
das Metamorfoses de Ovídio, ao Cristo do catolicismo para servir de exemplo de
virtude e sinalizador das tentações típicas da natureza humana. O mito original
34
ganhou na versão calderoniana um comprometimento moral endereçado aos
homens de seu tempo, sendo o dramaturgo um agente do Rei para a manutenção
da ordem. Esse compromisso político-ideológico, contudo, em nada diminui o valor
artístico de seu legado.
O que estamos argumentando aqui é que, ao endereçamento primeiro do
texto, serão acrescidos outros pontos, outras trilhas, outras possibilidades de leituras
advindas do trabalho de reconstrução (e por isso mesmo de co-autoria) do leitor,
consciente de sua necessidade de fazer mover a máquina preguiçosa.
Tal observação torna imperativo não menosprezar o fato, anteriormente
ressaltado, de que a atualidade tem presenciado uma tendência à diminuição das
intervenções autorais, já que os estudos sobre o tema nos colocam diante de um
mosaico dramatúrgico que tudo abriga sob o rótulo de teatro
7
. Ao invés das grandes
narrativas, por exemplo, experimentamos hoje o fortalecimento do teatro de uma só
voz, sejam por questões econômicas que favorecem a linguagem do monólogo, ou
concepções estéticas outras que procuram designar como teatral outras chances de
inserção para além do diálogo entre personagens corporificados em atores distintos.
Nesse cenário, tudo pode ganhar o status de teatro e a responsabilidade pela
distribuição das falas foge das mãos do autor e ganha a alçada do encenador, sendo
ele o eleito para decidir sobre as regras do jogo iniciado entre locutor (ator) e
interlocutores (público).
Destarte, mais do que novas formas de se fazer teatro, estaríamos
presenciando novas maneiras de receber o teatro. Ryngaert (1996) argumenta que a
idéia de público já alça vôos plurais e que muitos espetáculos são concebidos para
atender demandas específicas de platéias determinadas. Textos específicos, criados
para expectadores específicos, com pretensões de despertar reações específicas.
Assim colocado, de que forma poderíamos ler um texto teatral hoje se nem sempre
fazemos parte do público para o qual esse texto foi criado? De que elementos nós
poderíamos dispor para receber uma mensagem que não nos foi endereçada? Do
universal ao particular pensaremos em trilhas possíveis nesse bosque tão vasto.
Mesmo que optemos na atualidade pela idéia de um texto de teatro criado
para o leitor particular, para o específico, não deveríamos perder de vista a premissa
7
Ryngaert demonstra grande preocupação com essa variedade de transposições existentes na
atualidade e dedica boa parte dos capítulos iniciais de Introdução à análise do teatro a discutir o que
vem a ser teatro e àquilo que o traz como rótulo classificatório.
35
ryngaertiana da dramaturgia teatral como um texto dotado de autonomia frente à
encenação. Independentemente das elucubrações do encenador profissional haverá
no momento da leitura para qualquer leitor a possibilidade de movimentar a
“máquina preguiçosa”, criando infindáveis formas de representação e significados. E
esse vasto caminho de atualizações não seria, para o autor, uma exclusividade do
teatro. Em todo texto ficcional o leitor estaria apto a experimentar esse exercício,
mas no teatro essa possibilidade é maior. Isso acontece porque o teatro elegeu,
para além da palavra, outros signos não verbais capazes de transmitir mensagens
múltiplas. Um texto teatral repleto de didascálias conduzirá o leitor a movimentos de
interpretação que ultrapassa o texto, não se resumindo aos diálogos transcritos.
Nesse decifrar de mensagens de múltiplas naturezas a personagem ganha voz e o
gesto, muitas vezes, substitui a palavra. Vejamos então o papel que cabe aos signos
no texto teatral.
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De acordo com Bogatyrev (1988, p. 71-91), o signo pode ser pensado como a
materialização de uma idéia, a transposição abstrata de uma intenção em objeto ou
imagem. Um único signo no teatro pode abrigar a representação de vários outros
signos. Um traje, por exemplo, poderá remeter o leitor/ expectador à nacionalidade
da personagem como um chinês mas também poderá fornecer indícios sobre a
sua situação econômica se é luxuoso, simples, bem cuidado, desleixado. O
cenário também servirá de referência neste tocante, a partir do momento que revela
ao público realidades que nem sempre aparecem no discurso da personagem,
servindo de contraponto ao que ele pretende mostrar ou ocultar.
Os signos teatrais geralmente estão reduzidos a uma parcela da realidade
dos signos verdadeiros. Um cenário que reconstitua uma casa de lavrador terá
apenas alguns elementos de uma casa verdadeira de um lavrador de verdade, bem
como o figurino do ator que interpretará o lavrador será somente uma referência ao
que habitualmente utiliza o lavrador na vida real. Isso ocorre porque os signos
desempenham uma função em determinada situação dramática, função essa que
dificilmente dialogaria com a realidade em sua vastidão de sentidos.
36
A utilização dos signos é tão singular no teatro que nem sempre eles
precisam existir materialmente. Podemos pensar num cenário-verbal apresentado ao
público através do discurso do ator. Por meio da descrição, inserida coerentemente
na cena, o público é induzido a visualizar o não mostrado fisicamente, mas conotado
na ação. O espaço que escapa aos olhos, não escapará aos demais sentidos do
expectador, e diferentemente daquilo que ocorre na vida real os signos do teatro
possuem grande capacidade de transformação. Eles renascem, assumem novos
papéis. Uma bengala, por exemplo, que sustenta um idoso enfermo poderá ser
convertida numa arma mortal que o defende de algum malfeitor e posteriormente ser
transformada em instrumento de malabarismo circense. A utilização do signo é,
portanto, uma constante no teatro, uma vez que ele possibilita um transitar entre
situações sob a permissividade do simbólico, com seu caráter crível aos olhos
daqueles que se permitem embarcar na história que está sendo contada.
Um dos signos mais complexos, segundo Bogatyrev é o discurso do ator, que
possui não apenas a intenção de descrever a cena e os conflitos vivenciados pelas
personagens, mas também toma para si a responsabilidade de traçar um perfil do
ethos desses “viventes temporários”. Através da fala podemos entrar em contato
com informações acerca de classe social, nível cultural, nacionalidade, enfim, da
maneira como se expressa verbalmente a personagem, ela se mostra enquanto
depositária de sentidos diversos, um ser de múltiplas características nem sempre
divulgadas em seu discurso como conteúdo, mas às vezes sinalizadas em sua fala
por meio da forma.
A fala do ator, aliada as muitas outras características da sua atuação e do
contexto no qual está inserido, confere ao espetáculo uma polissemia de signos que
resulta na diferenciação do teatro em relação às outras artes. Ele reúne, inclusive,
elementos pertencentes a artes diversas, não sendo, todavia, a soma de muitas
artes, mas um pouco e a mistura de todas elas, com algo de diferente. Num
espetáculo teatral, ou na leitura de um texto rico em didascálias implícitas ou
explícitas, somos conduzidos a perceber movimentos de dança, situações sonoras
que nos remetem à música, indicações estéticas que remontam às artes plásticas, e
tantas outras possibilidades semânticas dispostas em domínios variados daquilo que
convencionamos nomear como arte.
Ao mesmo tempo em que esses signos congregam, se unificam na arte
teatral, eles possuem a qualidade de se transformar, ganhando cores diferenciadas
37
e sentidos novos ao entrar em contato com as decisões interpretativas do
expectador. Uma escultura, por exemplo, colocada num canto do palco, ao receber
um certo tipo de luz, poderá ter acrescentado a sua forma original um significado
novo. Isso ocorre porque sobre o objeto, passará a atuar um outro olhar, não
necessariamente convergente à idéia inicial de seu criador; a escultura passará a
fazer parte de um espetáculo, de uma totalidade de signos dispostos na cena,
conferindo materialidade ao texto e sendo por ele alterado em termos de
significação. Diante da platéia, a escultura poderá representar coisa bem diversa de
sua conformação semântica original, pois sobre ela estarão agindo circunstâncias
múltiplas, como a música, a luz, os demais elementos cenográficos e, é claro, a
disposição receptiva da platéia que, dotada de informações prévias, de leituras
sobre aquele universo de possíveis, tratará de atualizar o texto e tudo mais que o
acompanhar no momento da encenação.
Neste ponto podemos indagar uma vez mais sobre a recepção do texto de
teatro. De que forma um texto pode chegar ao seu leitor? Que predisposições o
leitor possui quando se propõe a ler teatro (ou a assistir ao teatro)? De que forma ele
é conduzido (pelo autor ou pelo diretor)? Tais questionamentos nos aproximam mais
uma vez de Umberto Eco que, oportunamente, teceu as mesmas perguntas diante
da literatura ficcional. Ao propor esse diálogo com o pesquisador italiano,
incorremos, mais uma vez, no perigo das críticas por aqueles que insistem na
diferenciação entre o teatro e as demais ficções literárias. Por isso, cumpre sublinhar
novamente nossa posição diante dessa resistência de associação, valendo-nos
agora do argumento de Bogatyrev (1988, p. 85):
essa polissemia da arte teatral faz com que uma mesma cena possa ser
compreendida diferentemente por expectadores diferentes. Por exemplo,
representa-se uma cena de despedida, onde o diálogo é acompanhado por
uma música. O expectador que seja músico dará uma importância
preponderante à música, mas para o expectador mais sensível à dicção
prevalecerá o elemento declamatório. Esta polissemia da arte teatral, que a
distingue das outras artes, permite que espectadores com gostos diferentes
e com exigências estéticas diferentes compreendam a mesma peça.
Na mesma direção de Bogatyrev, Kowzan (1988, p. 93-123) defende a idéia
de que a arte do espetáculo é rica em situações de endereçamento não unívocas.
38
Uma frase como eu te amo pode assumir diferentes conotações dependendo da
forma como for pronunciada, ou dentro de certas condições conjeturais. Seu sentido
final, ou seu consumo pelo público/ leitor, dependerá da forma como o seu processo
chegará até a cena. Já vimos que os signos não aparecem no teatro em seu estado
puro e isso faz com que a ação que despertam no espectador dialogue com um
elemento surpresa: a interpretação do interlocutor (público-leitor). O significante ou
seja, a expressão nem sempre torna de fácil acesso o significado o conteúdo da
expressão. Ao assumir essa definição saussuriana, Kowzan divide os signos em
duas categorias: os signos naturais e os signos artificiais. No primeiro caso,
podemos dizer que eles existem sem a participação da vontade, são signos para
quem os percebe porque representam coisas, mas essa representação é
involuntária. Em outras palavras, a relação com a coisa significada não resulta
senão das leis da natureza. Por exemplo, a fumaça é um signo que denota fogo.
No que tange aos signos artificiais, o autor argumenta que a relação com a
coisa significada depende de uma decisão voluntária e geralmente coletiva. Os
signos artificiais são criados pelo homem e objetivam assinalar coisas ou comunicar
mensagens a alguém. A arte do espetáculo é essencialmente composta por signos
artificiais e o teatro possui o dom artificializar signos naturais. Tal constatação,
entretanto, não exclui a possibilidade de signos naturais no teatro. Se pensarmos
num ator octogenário com sua voz trêmula dando vida a um personagem idoso, não
podemos afirmar que a fragilidade vocal apresentada seja um signo artificial que
pretende expressar a velhice. Neste caso estamos diante de um signo natural
apropriado pelo contexto cênico e que será somado a outros tantos signos em sua
maioria, artificiais para tornar crível uma história sabiamente ficcional.
A título de sistematização tomarei de empréstimo a catalogação dos principais
sistemas de signos utilizados no teatro feita por Kowzan: a) a palavra, b) o tom, c) a
mímica, d) o gesto, e) o movimento cênico do ator, f) a maquilagem, g) o penteado,
h) o vestuário, i) o acessório, j) o cenário, l) a iluminação, m) a música, n) o ruído.
Mesmo que estas categorias possam ser todas observadas, em diferentes
proporções, na leitura do texto de teatro, não será objeto desta tese a análise de
cada uma delas. Sua simples exposição servirá somente de alerta para a sua
existência que poderá influenciar incomensuravelmente a recepção do texto
enquanto leitura que convida a uma encenação, mesmo que virtual, na imaginação
39
do leitor. O jogo dos signos e, por isso mesmo, o jogo da leitura de um texto teatral
é assim resumido por Kowzan (1988, p. 116):
Temos, em primeiro lugar, o autor dramático; ele é principalmente criador
de signos da palavra, mas pode inspirar pelo próprio texto ou participando
dos ensaios, signos que pertencem a todos os outros sistemas. O diretor é,
hoje em dia, o senhor todo-poderoso do espetáculo, podendo criar ou
suprimir os signos de qualquer sistema (abrangendo aqueles da palavra,
fazendo cortes, mudanças, ou acrescentando algo ao texto). O ator
determina, de uma maneira mais ou menos independente, os signos do
tom, da mímica, e do gesto, parcialmente aqueles do movimento cênico, por
vezes os da maquilagem, do penteado ou do vestuário. O papel do
cenógrafo (chamado também de autor do dispositivo cênico, ou decorador)
é criar signos do cenário, dos acessórios, às vezes da iluminação; ele
mesmo, ou os colaboradores especializados criam os signos do vestuário,
do penteado, da maquilagem. Por determinada disposição no espaço
cênico, o cenógrafo pode sugerir os signos do movimento. Enfim, o
compositor, para não falar somente dos principais co-autores do espetáculo
teatral, cria os signos da música e, eventualmente, do ruído; no caso da
música do balé ou da pantomima, o compositor inspira os signos do
movimento do ator (como o autor do texto dramático o faz com relação aos
diferentes sistemas de signos). No balé e nos interlúdios dançados, o
coreógrafo é o principal criador de signos do gesto e do movimento.
Diante dessa enumeração aparentemente tão sistematizada, poderemos ficar
com a equivocada idéia de que os signos no teatro são fixos e assimiláveis por meio
de regras previamente sistematizadas, de caráter universal. Ao contrário, estamos
longe de compreender a disposição dos signos e de seus significados, uma vez que
a única certeza que sobre eles repousa é a da sua mobilidade. Honzl (1988, p. 125-
147) leva essa mobilidade até as últimas conseqüências, e fala de um teatro que se
liberta das amarras de certezas semânticas que pretendem o estabelecimento de
regras.
Para ele, o palco não é somente um espaço definido arquitetonicamente, e
muito menos o ator precisa ser um homem com capacidade para interpretar
personagens. O exercício do fazer teatral independe de espaços reservados a ele e
tudo pode ser transformável num vivente da ficção. Uma praça pública pode servir
de palco, e um boneco de marionete poderá fazer as vezes de um ator. Há peças
40
em que apenas uma voz em off representa um personagem, e essa voz é um ator,
sem corpo definido, aparente, visível aos olhos do público. Cada ouvinte cuidará de
dar forma a essa voz-personagem e tal potencialidade desfruta, por excelência, de
liberdade.
Essa constatação, entretanto, em nada diminui a importância do ator, uma
vez que caberá a ele, em maior instância, utilizar todos os signos dispostos na cena.
Tudo que está no palco dependerá do manuseio ou da relação estabelecida pelo
ator com as coisas que o circundam e a “arte total” contará com ele para cumprir o
seu ciclo funcional. Nas palavras de Honzl (1988, p. 141):
A “arte total” organiza a pluralidade dos meios de maneira a que se unifique
em seu resultado, a fim de que produza um “efeito total”. A personagem do
drama está então presente não apenas no palco, mas também na
orquestra; seu estado de alma, sua evolução, seu destino nos são
perceptíveis não apenas através das palavras, dos eventos que
presenciamos em cena, mas também através dos sons que ouvimos. Trata-
se, portanto, de um paralelismo entre o fluxo musical, o desempenho do
ator, as palavras, o cenário, os acessórios, a luz e todo o demais.
O texto de teatro, por essa razão, convida o leitor a cumprir um papel de
extrema participação. A ele é apresentada não somente uma história, mas também
uma maneira de contar, assimilar e sentir essa história. Algumas personagens
possuirão a função da empatia, o desejo da torcida, da expectativa para os
desfechos mais satisfatórios, e sua presença no texto estará vinculada a inúmeros
signos que habitam a cena mesmo quando de sua ausência. O texto teatral caminha
na direção da onipresença do protagonista ou de outros personagens de primeiro
escalão, dependendo da disposição do leitor, das suas redes de identificação. Toda
didascália, cada linha, cada réplica, cada pausa sugerida acompanharão a
respiração de um ser personificado, cuidarão de desvendar a sua essência, o seu
lugar no mundo ficcional tornado verdade momentânea. Se o texto virar espetáculo o
leitor será convertido em platéia; caso o texto permaneça literatura o espetáculo
estará garantido no palco privado da imaginação de quem o lê. Em ambos os casos
os signos vivem e se reinventam.
Porém, esse caráter de transformabilidade do signo teatral, que garante ao
texto, e à cena montada, o status de flexibilidade interpretativa, não deve nos
41
oferecer o falso indício de que o grau de decisão do leitor ou daqueles que
compõem a arte do espetáculo seja ilimitado. De volta a Veltruski (1988, p. 181),
temos que:
A criação do ator nunca pode escapar plenamente da obrigação imposta a
ele pelo texto dramático. É verdade que só ele cria todos os componentes
extralingüísticos da figura cênica. Mas até mesmo aqui, seu âmbito não é
ilimitado. Ele fica muito limitado em sua liberdade criativa quando o
desempenho vocal é fortemente determinado por um componente como a
entonação, que já se apresenta tão concretamente plasmada no texto que
relativamente pouco pode ser acrescentado na representação.
Essas “amarras” literárias pertencem ao gênio criativo do autor, que não se
contentaria em contar uma história de ficção sem utilizar o seu poder de decisão e
endereçamento frente aos personagens e tramas que cria. Quando nos deparamos
com um texto repleto de didascálias muito comum em Nelson Rodrigues
estamos entrando em contato com um dramaturgo cônscio de sua atividade e dos
limites e potencialidades que ela lhe apresenta. Esses limites, como vimos, dialogam
com as variadas formas de recepção da mensagem teatral, estando as didascálias
limitadas a cercear as intenções de encaminhamento que o dramaturgo sugere a
partir de sua obra. Em outras palavras, “o texto predetermina apenas seus
significados globais, o ponto de partida e o de chegada de cada movimento, e não
os meios específicos pelos quais é mister levá-lo a cabo” (Veltruski, 1988, p.185).
Uma leitura apressada sugere que determinados textos oferecem ao ator a
chance de usufruir grande liberdade de improvisação, uma vez que seu corpo e seus
gestos, como argumentamos, ganham o status de mensagem, ampliando a
comunicação ao mesmo tempo em que cria condições de expressão aparentemente
dissociadas do labor do autor. Essa visão, todavia, seria ilusória na concepção aqui
adotada, pois ainda que o ator contemporâneo, bem como seu antepassado da
commedia dell’arte, como defende Ryngaert (1996), sejam capazes de peripécias e
sopros de liberdade cênica, existirá por trás de cada ação desenvolvida um texto
que lhe confere o necessário respaldo. O ator possuirá, em qualquer circunstância,
suas “bengalas”, seus pontos de apoio que agirão no momento da ausência de seu
poder criativo. E esse ponto de apoio será sempre o texto. Como afirma Veltruski
(1988, p. 187):
42
(...) mesmo em um caso tão extremo como o da commedia dell’arte, a
estrutura teatral era predominada pelo texto (...) quando escreve uma peça,
o dramaturgo não desconhece a estrutura teatral existente e as várias
aberturas que ela apresenta para novos desenvolvimentos. Isto é verdade,
muito embora a peça seja uma obra de literatura auto-suficiente, que não
requer necessariamente representação teatral; o sujeito criador em geral
sente, conquanto muitas vezes inconscientemente, as possíveis aplicações
de sua obra.
O poder do autor teatral, e o controle exercido sobre os diálogos por ele
estruturados, podem ser mensurados pela extensa gama de enunciados que ele
oferece ao leitor no corpo de seu texto (os chamados elementos paratextuais). Não
apenas uma trama é construída, mas ao lado dela fulguram didascálias, sentidos
complementares sinalizados pelo título, pelo gênero, pela estruturação das falas em
diálogos ou monólogos, pela contextualização da ação, pelas indicações de figurino
e cenário, ou seja: em muitas ocasiões o dramaturgo mostrará ao leitor certas
conduções de caminhos, oferecendo alternativas para movimentar a máquina,
dentro de trilhas coerentes com o seu gênio criativo. Nesse tocante, devemos
empreender uma maior reflexão sobre os índices supracitados.
1
1
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.
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4
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D
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A
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R
O
O
O título de uma peça de teatro pode fornecer ao leitor a primeira indicação de
significado apresentada pelo autor. Ele pode revelar o direcionamento da trama,
antecipar seu desfecho ou simplesmente confundir, dando encaminhamentos falsos
para uma desejada surpresa. Se tomarmos como exemplo os títulos das peças que
ilustram a nossa discussão, veremos em “Senhora dos Afogados” uma legião de
sentidos possíveis. Um desses sentidos poderia nos conduzir a um aspecto
criminológico, onde uma mulher mataria em série suas vítimas por afogamento;
noutra perspectiva seríamos levados a pensar numa conotação religiosa onde a
Senhora” do título seria a protetora celeste dos que morrem afogados ou ainda,
numa acepção metafórica, que entre os afogados existiria uma líder feminina
exercendo sobre eles certo tipo de domínio. O uso do adjetivo “afogados” antecipa
43
também a informação de que, provavelmente, não apenas mulheres serão vítimas
do mar-alegoria, como sugerido no início da peça, restando também a um homem
(ou a vários) a morte por afogamento. Não obstante, o autor localiza desde o título
uma das alegorias mais importantes da peça: o mar que a tudo presencia e que
todos os segredos esconde.
No caso de “Álbum de Família”, temos uma menor sugestão no título e só
compreendemos, verdadeiramente, seu significado quando lemos as didascálias e
entramos em contato com a opção do autor em localizar as ações para além do
registro fotográfico, situando o leitor no plano da construção de uma imagem familiar
e, sua posterior desconstrução, dotada de peripécias. A mensagem contida no texto
é diametralmente oposta àquilo que se enxerga na foto, pois ao invés da imagem
revelada, o dramaturgo chamará a atenção para aquilo que ela oculta. O álbum de
família, que tradicionalmente pretende retratar aquilo que se é e as lembranças que
se têm, encontra aqui sentido diverso: ele oculta as identidades e modifica memórias
por critérios de seleção moral, ou seja, tratando de enquadrar os comportamentos
nas normas vigentes da sociedade que lhe serve de cenário.
No tocante ao texto lorquiano, o título também sugere algumas interpretações
possíveis, carregadas de significados que podem, em alguma medida, antecipar
desfechos ou simplesmente indicar caminhos para análises prévias. Num primeiro
momento, La Casa de Bernarda Alba, enquanto título, põe o leitor/ expectador diante
da idéia de propriedade. E essa informação é sinalizadora do poder exercido pela
matriarca das Alba. Não apenas o imóvel lhe pertence, mas também a vida de todos
que vivem sob o seu comando, debaixo daquele teto que ela, com pulso firme,
gerencia. Ao mesmo tempo, estando presente no título, a Casa se faz personagem
da própria história, ganhando certo status que ultrapassa sua condição de cenário,
chegando mesmo a participar da narrativa, com suas paredes brancas, seus
cômodos silenciosos, seu olhar panóptico que, a todas, vigia e pune. A Casa é o
depositário dos medos e das perspectivas de cada personagem, seja daquelas que
aceitam o cárcere proposto por ela, seja por intermédio de quem sonha com a
liberdade situada para além de seus muros. A história da peça é a história das
personagens que experimentam a vida dentro daquele cenário único, como se todo
o mundo estivesse ali resumido, como se não houvesse vida em outro lugar.
Metaforicamente, a Casa poderia ser o núcleo de uma sociedade à parte, singular,
dotada de regras próprias, não perceptíveis aos olhares mais leigos e desatentos.
44
No que concerne ao gênero, temos na contemporaneidade um certo
esvaziamento de sua classificação. Verifica-se, de acordo com Ryngaert (1996), que
os autores modernos tendem a não explicitar nos cabeçalhos de suas tramas
teatrais, a indicação de pertencimento comum no passado desse tipo de literatura,
onde fulguravam as nomenclaturas “comédia”, “tragédia”, “farsa”, “tragicomédia”,
dentre outras. Esse ocultar encontra-se provavelmente ligado, como apresentamos
mais acima, à diminuta participação do autor nos rumos que o texto teatral tende a
tomar nesses tempos, onde tudo pode converter-se em teatro, onde o poder do
encenador coloca-se muitas vezes, acima do processo criativo inicial, com a
hegemonia dos gestos e das linguagens em detrimento da palavra e do contexto
pré-elaborado pelo criador pioneiro (o autor). Contudo, os dramaturgos que ilustram
a discussão da presente análise, deixaram definidas para o leitor a natureza dos
terrenos sobre os quais pretendiam erguer suas obras. Enquanto Nelson Rodrigues
confere a Álbum de Família e Senhora dos Afogados o gênero da tragédia, Garcia
Lorca classifica La Casa como um drama andaluz.
Por sua vez, as didascálias ou rubricas informam ao leitor sobre as
considerações do autor acerca da cena que escreveu. Elas podem conter simples
indicações de cenários, adereços e movimentos, como também chegam a traduzir
todo um conjunto de códigos cênicos destinados a definir o caminho da encenação.
Eis um exemplo dessa segunda possibilidade:
Ele (Clov) vai colocar-se sob a janela da esquerda. Andar ereto e vacilante.
Olha a janela à esquerda, a cabeça jogada para trás. Vira a cabeça, olha a
janela à direita. Vai colocar-se sob a janela à direita. Olha a janela à direita,
a cabeça jogada para trás. Vira a cabeça e olha a janela à esquerda. Sai,
volta em seguida com um banco, instala-o sob a janela da esquerda, sobe
nele, puxa a cortina. Desce do banco, dá seis passos na direção da janela à
direita, volta para pegar o banco, instala-o sob a janela à direita, sobe nele,
puxa a cortina. Desce do banco, dá três passos na direção da janela à
esquerda, volta para pegar o banco, instala-o sob a janela à direita, sobe,
olha pela janela. Riso breve. (...) (RYNGAERT,1996, p. 45)
8
Em Álbum de família, as didascálias fornecem informações valiosas já que a
representação das fotografias fundamental para a compreensão dos conflitos da
8
Trecho da didascália sugerida por Samuel Beckett em Fim de Jogo.
45
peça deve mostrar exatamente o oposto daquilo que as cenas revelam. Nelson
Rodrigues dedica parte de seu texto a situar leitores, encenadores e atores nos
caminhos que seu gênio criativo decidiu escolher. Vejamos a rubrica do Primeiro Ato
do Álbum:
Abre-se o pano: aparece a primeira fotografia do álbum de família, datada
de 1900: Jonas e Senhorinha, no dia seguinte ao casamento. Os dois têm a
ênfase cômica dos retratos antigos. O fotógrafo está em cena, tomando as
providências técnico-artísticas que a pose requer. Esmera-se nessas
providências, pinta o sete; ajeita o queixo de Senhorinha; implora um sorriso
fotogênico. Ele próprio assume a atitude alvar que seria mais compatível
com uma noiva pudica depois da primeiríssima noite. De quando em
quando, mete-se dentro do pano negro, espia de lá, ajustando o foco. E vai,
outra vez, dar um retoque na pose de Senhorinha. Com esta cena,
inteiramente muda, pode-se fazer o pequeno balé da fotografia familiar.
Depois de mil e uma piruetas, o fotógrafo recua, ao mesmo tempo que puxa
a máquina, até desaparecer de todo. Por um momento, Jonas e Senhorinha
permanecem imóveis: ele, o busto empinado; ela, um sorriso falso e cretino,
anterior ou não sei se contemporâneo de Francesca Bertini etc. Ouve-se,
então, a voz do speaker, que deve ser característica, como a de D’Aguiar
Mendonça, por exemplo. NOTA IMPORTANTE: o mencionado speaker,
além do mau gosto hediondo dos comentários, prima por oferecer
informações erradas sobre a família (RODRIGUES, 1981, p. 55).
Quando Nelson propõe as didascálias, ele não somente interfere nos
movimentos que serão sugeridos pelo encenador, como também conduz o ator a um
certo tipo de interpretação. As rubricas do dramaturgo, muitas vezes ajudam a
construir a personagem e a estabelecer as relações entre elas, como podemos
atestar ainda no primeiro ato:
Já saíram da janela. D. Senhorinha, triste, digna, altiva, com uma dor bastante
sóbria, procurando sempre ficar de costas para a irmã. Tia Rute com uma
crueldade que não pode esconder (RODRIGUES, 1981, p. 59).
As rubricas de Nelson também podem sugerir adereços, cenários e
movimentos de cena do coro, como podemos perceber no segundo quadro do
primeiro ato de Senhora dos Afogados:
46
Os vizinhos fogem para um canto, onde ficam em grupo, com uma das
mãos tapando o rosto. Os Drummond perdem, então, a rigidez da pose
fotográfica e adquirem a plasticidade normal. Misael estende os pés sobre
uma pequena almofada. Usa botinas e botão. Imediatamente, Moema
ajoelha-se, cheia de solicitude, e põe-se a descalçá-lo. Já sem botinas,
Misael concede em suspirar, meio eufórico (RODRIGUES, 1981, p. 275).
_____________
Misael e D. Eduarda fazem todo o semicírculo da escada e verifica-se,
então, que só de uma maneira muito teórica saíram do ponto de partida.
Estão, agora, no quarto. Entram por uma porta também teórica e que de
porta mesmo só tem uma indicação sumária. Misael senta na cama,
ofegante. É evidente que fez um enorme esforço físico (RODRIGUES, 1981,
p. 278-279).
Em contrapartida a esse detalhismo das didascálias rodrigueanas, o texto de
Garcia Lorca limita-se a oferecer breves indicações de cenários e alguns
movimentos de cena, da maneira como encontramos nas didascálias do acto
primero:
Habitación blanquísima del interior de la Casa de Bernarda. Muros gruesos.
Puertas en arco con cortinas de yute rematadas con madroños y volantes.
Sillas de anea. Cuadros con paisajes inverosímeles de ninfas o reyes de
leyenda. Es verano. Um gran silencio umbroso se extiende por la escena. Al
levantarse el telón, está la escena sola. Se oyen doblar las campanas
(LORCA, 2005, p. 33)
____________
Por el fondo, de dos en dos, empiezan a entrar mujeres de luto, con
pañuelos grandes, faldas y abanicos negros. Entran lentamente hasta llenar
la escena (LORCA, 2005, p. 43)
Quando optamos por verificar esses índices iniciais oferecidos pelo autor,
deparamo-nos com muitas possibilidades de pré-leituras, caracterizadas pela
divisão do texto em atos, cenas, quadros, movimentos, jornadas, fragmentos,
ou seja, certa elaboração ideológica empreendida pelo autor que deseja, de alguma
47
forma, situar o leitor em suas redes de localização
9
. A estrutura textual nasce de um
sentido particular que ganha forma no gênio daquele que escreve. O leitor que se
debruçar sobre a obra terá de decifrar esses códigos particulares, percebendo no
texto os indícios sugeridos pelo inventor da história. Esses indicadores ajudarão o
leitor-empírico a descobrir o autor-modelo da obra, bem como lhe dará a chance de
converter-se num leitor-modelo.
Antes de dar prosseguimento à análise dos elementos paratextuais,
objetivando encontrar um novo caminho metodológico para a leitura de um texto
teatral, sugerimos uma visita aos conceitos de Umberto Eco, citados no final do
parágrafo acima.
Quando proferiu suas conferências Norton, Eco chamou a atenção do seu
público para o papel desempenhado pelo leitor no transcorrer de uma história
narrada. Sinalizou para a inevitabilidade desse papel, mostrando que sem a
presença do leitor o ato de escrever uma obra de ficção ou qualquer outra obra
não teria sentido, ou pelo menos, perderia em grande medida seu significado real.
Todo texto se destina a alguém e poderá ser recebido de múltiplas maneiras,
dependendo das predisposições daquele que o lê.
A primeira possibilidade de papel a ser desempenhado por um leitor, diz
respeito àquele que Eco denominou “leitor-empírico”, isto é, toda pessoa que reage
mais ou menos de maneira imprevisível diante do texto que pretende ler. O leitor-
empírico encontra-se no momento inicial da leitura repleto de sentidos, preconceitos,
intenções particulares, vontades, falta de vontades, ânimo ou desânimo, sentimentos
divergentes, enfim, configura-se um indivíduo singular, diante do qual pouco
podemos afirmar com segurança.
Um indivíduo possuidor de tão variado estado de espírito seria capaz de
interpretar e atualizar uma obra de ficção e por isso, também, um texto de teatro
da forma como melhor lhe convier, fugindo de qualquer responsabilidade com os
encaminhamentos sugeridos pelo autor da história. Acreditando fazer escolhas,
entre aquelas que lhe parecem mais razoáveis, o leitor-empírico acredita agir em
nome do bom senso, optando pelos caminhos aparentemente mais plausíveis ou
mais próximos de ações reais, ainda que não seja um exemplo de bom senso
acreditar num lobo que fala e numa menina de capa vermelha que não percebe as
9
Sempre que utilizarmos as passagens das peças selecionadas para ilustrar argumentos,
recorreremos à classificação divisória dada por seus respectivos dramaturgos.
48
diferenças entre esse bicho e sua avó. Esse tipo de leitor não pode ser considerado
um bom receptor do objeto artístico, já que tomará para si as rédeas de um
direcionamento que não pertence exclusivamente a ele próprio.
Esse comportamento, que confere ao leitor-empírico tamanha autonomia e
interação, será viabilizado porque todo texto de ficção pode ser considerado
metaforicamente como um bosque a partir do qual, em qualquer ponto de referência,
irão se vislumbrar caminhos e atalhos a serem percorridos. Na argumentação de
Eco, que toma de empréstimo a metáfora criada por Jorge Luis Borges,
um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não
existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria
trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore
e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção (ECO,
2004, p. 12).
Se um indivíduo se encontra diante de um bosque, a contemplar as árvores, e
nada o obriga a sair correndo de lá isto é, se nenhum perigo ou compromisso
inadiável o espreita ele poderá explorar abundantemente os caminhos,
percebendo os atalhos, divagando sobre possibilidades, ponderando hipóteses,
enfim, torna-se convidativo demorar-se o tempo necessário para apreender toda a
dimensão desse tipo de experiência.
Alguns indivíduos, contudo, optarão por sair depressa do bosque,
embrenhando-se pelo caminho mais fácil ou mais rápido, aplicando nesse
empreendimento toda a sorte de emoções que traz em seu íntimo. Ele pode seguir o
caminho com raiva, com pressa, com fome, com medo, com preguiça, com euforia
etc. É a esse indivíduo pouco disposto à experimentação no bosque que estamos
chamando de leitor/ expectador-empírico.
Nos bosques da ficção, diante do texto (ou da peça representada), o leitor/
expectador-empírico terá muito mais caminhos a percorrer e essa travessia poderá
ser ditada pelos imperativos mais diversos. Se uma pessoa se sente triste e decide
assistir a uma peça cômica, provavelmente a leitura que fará do espetáculo será
influenciada por seu estado de espírito, que naquela ocasião não conseguia achar
engraçado o desempenho dos atores, muito menos o texto levado à cena. Ainda que
futuramente, já curado da referida tristeza, esse indivíduo se recorde da peça, não
49
terá motivos para sorrir, já que a lembrança do texto (e do espetáculo) poderá
remetê-lo ao estado de espírito vivenciado no momento daquele contato inicial. Ou
seja, o leitor-empírico não está disposto a receber a mensagem proposta pelo autor
da comédia que fora assistir, simplesmente porque não conseguiu se desvencilhar
das emoções que trazia, atribuindo possivelmente ao autor e/ ou ao encenador e
atores o fracasso diante da proposta de fazer um teatro cômico.
O leitor-empírico não só interpreta o texto de uma maneira particular e,
possivelmente desvinculada das previsões de leitura pensadas pelo autor, como
também o utiliza de forma equivocada, fazendo dele um mau-uso, uma apropriação
indevida, já que não é capaz de lhe atribuir um sentido coerente com os propósitos
artísticos do processo de criação. Ainda que o leitor tenha o dever e o direito de
fazer movimentar essa “máquina preguiçosa” que é o texto, ele não poderá esquecer
dos caminhos que foram pensados para essa trajetória por aqueles que, antes dele,
tiveram a função de formular a obra.
Mas como saberemos se estamos sendo leitores-empíricos de uma
determinada obra? Como identificar em nosso ato de leitura se estamos fazendo um
uso perverso do texto ou simplesmente atualizando, permitindo o movimento da
máquina? Antes de antecipar esse outro papel do leitor o de leitor-modelo
proponho que pensemos num possível par para o leitor-empírico o autor-empírico.
Segundo Eco, o autor-empírico é aquele que escreve e que se coloca tão
somente como o elo entre a imaginação e o consumo da história ficcional. É o
próprio autor da obra, com sua biografia, seus procedimentos sociais, suas formas
de localização, os papéis que desempenha no âmbito dos diferentes grupos de
referência, suas resistências e aceitações dos controles sociais que sofre
10
, enfim, é
aquele que mescla a bagagem de informações que possui e o seu gênio criador,
originando o produto artístico que chegará até o consumidor final: o leitor. Para Eco,
e também para os propósitos desta tese, o autor-empírico não será decisivo para o
entendimento da análise que pretendemos empreender. As trajetórias pessoais de
Nelson Rodrigues e de Garcia Lorca, ainda que atraentes enquanto contextualização
e curiosidade, não serão abordadas numa perspectiva de causalidade. Nosso intuito
é o exame dos textos e suas formas de produção e recepção, estando a vivência de
10
Os conceitos sociológicos supracitados (localização social, grupo de referência, papel social,
controle social) serão trabalhados no próximo capítulo.
50
cada dramaturgo situada na periferia de nossos interesses. O terceiro capítulo será
dedicado a esse exercício de contextualização.
Por hora, devemos pensar no segundo papel atribuído por Umberto Eco ao
leitor. Segundo ele, na direção oposta ao leitor-empírico, encontraríamos o leitor-
modelo,
uma espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas
ainda procurar criar. Um texto que começa com ‘Era uma vez’ envia um
sinal que lhe permite de imediato selecionar seu próprio leitor-modelo, o
qual deve ser uma criança ou pelo menos uma pessoa disposta a aceitar
algo que extrapola o sensato e o razoável (ECO, 2004, p.15).
As peças infantis necessitam contar, geralmente, com esse tipo de leitor, uma
vez que a criança é apresentada a um mundo imaginário, com personagens capazes
de fugir demasiadamente daquilo que consideramos, por meio do bom senso,
aceitáveis na vida real. Ainda assim, ela aceita o chamado à suspensão da
descrença, da mesma forma como ocorre, algumas vezes no teatro adulto. Certas
peças de Nelson Rodrigues, por exemplo, como Dorotéia (1949), exige do leitor essa
disponibilidade imaginativa ao apresentar personagens alegóricos, como uma bota
masculina, convertida em representação crível de um homem, a pedir a colaboração
de um leitor-modelo.
Ao contrário do leitor-empírico, o leitor-modelo estará predisposto a encontrar,
no ato da leitura, a postura exigida ou sugerida por aquele que escreveu o texto. Ele
pode ser classificado em: a) leitor-modelo de primeiro nível indivíduo que se
preocupa em saber muito bem como termina a história que está lendo e b) leitor-
modelo de segundo nível indivíduo que estará preocupado a todo o momento em
ser aquilo que o autor-modelo espera que ele se torne, para que o diálogo com a
obra seja rico em significados, coerente e desafiador. Enquanto o leitor-empírico
procura laços de identificação e satisfação imediatos com o escrito, colocando nele
suas impressões pessoais e vivências únicas, o leitor-modelo de segundo nível está
ansioso por começar o jogo literário, cônscio da existência das regras que ele
precisa conhecer para se tornar um bom jogador.
Mas como nos tornamos um leitor-modelo? Como possibilitar a emergência
desse tipo de leitor? Ou ainda: quem é o responsável pela existência dele? A
resposta de Eco é conclusiva: o leitor-modelo é formado pelo próprio texto. Ele é
“um conjunto de instruções textuais, apresentadas pela manifestação linear do texto
51
precisamente como um conjunto de frases ou de outros sinais” (ECO, 2004, p. 22).
Os leitores-modelo não são previstos apenas nos textos narrativos, mas em
qualquer exposição textual que exija um determinado tipo de cooperação. O leitor
modelo nasce com o próprio texto e cuida de sustentar as estruturas mais
importantes da sua interpretação. Ao adentrar uma história, essa categoria de leitor
se prende voluntariamente a suas páginas e é capaz de desfrutar somente da
liberdade que o texto lhe oferecer.
Assim colocado, o leitor-modelo deverá descobrir e decifrar os sinais
transmitidos por aquele que escreveu o texto, e esses sinais não possuem
necessariamente uma relação direta com o seu autor-empírico. Este apenas
emprestou seu nome e sua biografia para que a obra de ficção tivesse alguma
materialidade, estando acima dele uma outra entidade responsável pelos
encaminhamentos da história ficcional. Neste ponto, Eco nos apresenta um quarto
conceito de extrema relevância para a presente discussão: trata-se do autor-modelo
e suas formas de aparição e direcionamento, que podem apontar caminhos e proibir
desvios, já que a ele pertence o destino das vidas que ele mesmo criou.
O autor-modelo não é simplesmente aquele que narra a história, muito
menos aquele que vive a história que está sendo contada. Ele
é uma voz que nos fala afetuosamente (ou imperiosamente, ou
dissimuladamente), que nos quer ao seu lado. Essa voz se manifesta como
uma estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos são dadas
passo a passo e que devemos seguir quando decidimos agir como leitor-
modelo (ECO, 2004, p. 21).
Em outras palavras, podemos pensar no autor-modelo como um estilo
literário, cercado de significados que se repetem e se atualizam a cada novo texto, e
que forma, por conseguinte, um certo tipo de leitor-modelo, apto a receber sua obra
e a fazer movimentar coerentemente a sua “máquina preguiçosa”. Como nos aponta
Eco (2004, p. 23-30):
(...) meu autor-modelo não é necessariamente uma voz gloriosa, uma
estratégia sublime: o autor-modelo atua e se revela até no mais pífio dos
romances pornográficos para nos dizer que as descrições apresentadas
52
devem constituir um estímulo para nossa imaginação e para as nossas
realizações físicas.
_____________
O autor-modelo e o leitor-modelo são entidades que se tornam claras uma
para a outra somente no processo de leitura, de modo que uma cria a outra.
Acho que isso é verdadeiro não apenas em relação aos textos narrativos
como em relação a qualquer tipo de texto.
Um leitor-modelo das peças de Nelson Rodrigues entende que é preciso estar
disposto a presenciar situações socialmente recriminadas e perceber nelas toda a
essência poética que compõe os textos do autor. No lugar da comum rejeição frente
ao incesto e ao adultério, o autor-modelo pede que sejamos tolerantes com as
condutas das suas personagens, tentando enxergar nos erros, e até mesmo nos
crimes cometidos por elas, uma possibilidade para a piedade e até mesmo para a
identificação não confessada. A trama rodrigueana exige um tipo de leitor/
expectador sem preconceitos, ou que seja capaz de controlar suas disposições
morais em nome de uma contemplação artística (como indica Aristóteles quando da
definição da tragédia). Ademais, não deveríamos buscar explicações exclusivas para
as ações dessas personagens transgressoras, tomando como pano de fundo a
biografia de seu autor-empírico, ainda que muitos pontos em comum entre a vida e a
obra de Nelson Rodrigues possam ser cotejados.
No tocante às peças de Lorca, faz-se necessário que o leitor/ expectador-
modelo do dramaturgo espanhol, esteja atento aos cenários que se repetem e que
contextualizam suas tramas. A Andaluzia citada em suas histórias é um requisito
metafórico para a compreensão de ações que se dão em uma determinada
sociedade, localizada num tempo remoto, de tradições muito arraigadas. O
entendimento do amor como premissa de sofrimento também deverá nortear as
atitudes de leitura do leitor/ expectador-modelo, bem como os definidos horizontes
entre o masculino e o feminino que, diante da sociedade e de seus preconceitos,
precisam se adequar a certos ditames culturais. Um leitor/ expectador-empírico
possivelmente creditaria em Lorca o status de autor que se copia, seja no estilo
(peças quase sempre compostas em verso), seja na temática (o amor e suas formas
inevitáveis de sofrimento) e tentaria explicar o comentado pessimismo lorquiano por
meio da biografia de seu autor-empírico, marcada por perseguições políticas,
53
preconceitos contra a sua orientação sexual que culminaram em seu cruel
assassinato.
O autor-modelo, muitas vezes, sugere estados de espírito ao leitor, e o faz em
grande medida valendo-se de certas formas literárias de condução da narrativa.
Sabemos que numa peça de teatro, a história precisa ser contada de forma
dinâmica, sem muitos rodeios, para se chegar ao ponto que precisa ser mostrado.
Uma peça geralmente representa um retrato de certa parcela da história de alguém
ou de um grupo, retrato esse devidamente criado sob um ângulo muito específico. O
olhar do dramaturgo prioriza alguns aspectos e afasta outros, decidindo sobre aquilo
que será encenado ou lido. Entretanto, ainda que a rapidez seja uma prática
corrente pensemos nos saltos temporais dentro de um espetáculo, ou nas ligeiras
trocas de cenários alguns autores não desperdiçam o recurso da delectatio
morosa.
Em algumas passagens de uma obra teatral, o leitor/ expectador é
surpreendido pelo autor-modelo, que se demora em certo diálogo antes de antecipar
uma ação decisiva para o desfecho da trama. Se não temos pressa diante do
bosque, podemos, enquanto leitores-modelo, demorarmo-nos mais um pouco
naquela paisagem proposta pelo autor, a fim de captar a contento a mensagem que
ele gostaria de passar.
Ao mesmo tempo, essa espécie de freio, que o autor impõe a leitura, permite
que façamos aquilo que Eco denomina “passeios inferenciais” (Eco, 2004, p. 56),
isto é, caminhadas no bosque destinadas a divagação, como se parássemos
realmente para pensar na cena que vimos/ ou lemos, com intuitos de reflexão,
identificação ou críticas. Durante os passeios inferenciais, podemos somar à
experiência daquilo que estamos vendo/ lendo com a nossa própria bagagem de
informações prévias, nossa enciclopédia pessoal, sem deixar, claro, de estar atento
ao risco de tornarmo-nos a contragosto um leitor-empírico. Esse ato de espera, essa
pausa proposital tem a ver com o prazer da leitura e da viagem literária, e é
aconselhável não perder de vista o aspecto temporário desse tipo de conduta. No
argumento de Eco (2004, p. 56),
quando falei em “passeios inferenciais” quis dizer, nos termos de nossa
metáfora silvestre, caminhadas imaginárias fora do bosque: a fim de prever
54
o desenvolvimento de uma história, os leitores se voltam para a sua própria
experiência de vida ou seu conhecimento de outras histórias.
Além desse deleite pessoal, dessa tentativa de co-autoria, ou de capacidade
de previsão dos rumos literários de uma obra de ficção, poderá a estratégia da
demora sugerir um tempo de trepidação. Antes de surpreender o leitor/ público com
um final dramático, o dramaturgo decide preparar o terreno, conduzindo o leitor/
expectador a um certo estado de espírito que o deixe mais receptivo à mensagem
final. Eco acredita que “o tempo de trepidação visa não só manter a atenção do
espectador ingênuo do primeiro nível, mas também estimular a fruição estética do
espectador do segundo nível” (ECO, 2004, p. 72).
Em Senhora dos Afogados, por exemplo, Nelson Rodrigues propõe uma
mudança de cenário e de personagens quase no fim da peça. A casa dos
Drummond cede espaço para o Café do Cais e o primeiro quadro do Terceiro Ato
trata de assuntos corriqueiros ligados aos negócios ali realizados:
Vendedor de pentes Bonita oração.
Sabiá (lambendo os beiços, depois de beber) Mais ou menos.
Vendedor de pentes (lambendo os beiços) Quer dizer, que já acabaram.
Dona (sempre com sotaque) Parrece.
Vendedor de pentes (para uma lourinha esquálida) Pode ser, minha flor?
Loura (enfezando-se) Já lhe disse que não!
Mulata Hoje não recebemos, filho... (RODRIGUES, 1981, p. 313)
Nesta ocasião, Vendedor de Pentes é apresentado ao público como um
cliente que deseja ser atendido por uma das prostitutas, sem saber que naquele dia
as mulheres do cais estão impedidas de atender:
Vendedor de pentes (...) estou no meu direito. Pois venho aqui, faço
despesa e sou desfeiteado. Ora que pinóia!
Noivo (doce) Não houve desfeita, cavalheiro. Vou-lhe explicar a razão por
que essas meninas não recebem hoje (...) (RODRIGUES, 1981, p. 314).
Esta cena, aparentemente sem ligação com a história central, apresenta ao
leitor/ expectador importantes informações. Em primeiro lugar, insere o personagem
“Noivo” em certo espaço social que une a sua trajetória ao trajeto pessoal de Misael,
55
pai de sua noiva Moema. Em seguida, no decorrer da réplica que não transcrevemos
aqui, para manter em suspense os desfechos da trama, os principais conflitos da
peça serão explicados por meio de flashback verbal, contando com os personagens
do lugar para a sucessão de esclarecimentos. Por último, a natureza da vingança
que o Noivo pretende empreender contra Misael se justifica, e aponta D. Eduarda
como via de realização:
Noivo (subitamente fora de si) E se eu te mandasse de volta? Fiel como
antes?
D. Eduarda (com medo) Não!
Noivo Seria uma vingança também, não seria?
Dona (sempre com sotaque) Não acredita na ilha, Senhorra!
D. Eduarda (suplicante) Quero ficar contigo... E aqui... (RODRIGUES,
1981, p. 320).
Este tempo de trepidação é extremamente funcional para a cena que se
sucede, pois a entrada do personagem Paulo, filho de D. Eduarda e de Misael, no
desfecho dos diálogos transcritos, pretende causar impacto, surpreendendo a platéia
ao alterar os rumos da história:
D. Eduarda (rosto duro como um máscara) Deus fez tua vontade! Traí
meu marido!
(Moema imóvel.)
D. Eduarda (num grito maior) Desce e vem chamar tua mãe de prostituta!
(Silêncio. Moema desce, lentamente. Mãe e filha, face a face.)
Moema Prostituta!
(Moema passa adiante. D. Eduarda cai de joelhos; chora sobre o corpo do
amante) (RODRIGUES, 1981, p. 322).
No novo cenário, aparentemente sem ligação com a casa dos Drummond, o
destino da família é decidido: a rivalidade entre Moema e D. Eduarda, sua mãe, se
acentua, ao passo que Paulo tem definida a sua trajetória final. A inclusão do
Vendedor de Pentes na trama, por sua vez, torna-se decisiva para o desfecho de
Moema no último quadro do terceiro ato:
56
Vendedor de pentes (aproximando-se de Moema) Nunca mais verás a
própria imagem... Nunca mais verá o próprio rosto... Nunca mais...
(RODRIGUES, 1981, p. 327).
Uma vez findado o tempo de trepidação, já tendo sido revelados os segredos
da história, Nelson Rodrigues consegue situar o leitor no lugar de quem prevê um
desfecho trágico. E isso ocorre devido ao fato de que não se torna possível
vislumbrar outras saídas para aquelas personagens imersas em conflitos de quase
impossível salvação. A mudança de cenário, bem como a entrada de personagens
mais leves, e até mesmo divertidos, auxilia o equilíbrio das emoções, já bastante
exaltadas pelo encaminhamento denso do enredo, condicionando o espírito do leitor/
expectador a uma assimilação mais favorável do trágico final.
Nesse tocante, acabamos por retomar a idéia de que um autor-modelo
precisa da colaboração de um leitor-modelo e, por isso mesmo, oferece a ele as
condições necessárias para uma boa leitura. Esse cuidado para não chocar demais
o leitor, conquistando sua simpatia, mesmo prevendo um desfecho pouco favorável
a essa idéia de apoio e cumplicidade, pode ser compreendido a partir da análise do
contrato estabelecido entre esses dois tipos-ideais. Para aprofundar nossa
compreensão dessa relação-indispensável entre o artista e o seu consumidor, base
de qualquer fruição, convidamos o leitor para mais um passeio no bosque.
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Como toda obra de ficção, o texto teatral necessita de um contrato prévio
entre o autor e seus possíveis leitores/ expectadores, que mesmo sabendo da
inventividade daquelas cenas, acreditarão, por alguns instantes, na existência dos
personagens descritos e na veracidade de suas ações.
Sem entrarmos no mérito da questão da identificação com a cena assistida ou
lida como fizemos antes ao contrapor Aristóteles e Brecht devemos sublinhar
algumas premissas fundamentais para o bom encaminhamento desse acordo. A
primeira delas diz respeito àquilo que Coleridge chamou de “suspensão da
descrença” (ECO, 2004, p. 81).
57
Quando o leitor se coloca diante de um texto ficcional, ele deverá aceitar toda
sorte de elucubrações pensadas pelo autor. Na ficção, o bom senso (ou a noção de
razoabilidade) permite crer na existência de lobos que falam, de princesas que
enfrentam perigos causados por bruxas invejosas, em super heróis que desafiam
monstros e vencem no final; enfim, o leitor aceita um leque de situações
mirabolantes e se permite entrar no universo apresentado pelo autor.
Todavia, a suspensão da descrença precisa de uma comunicação com o
mundo real, servindo este de cenário para a atuação da fantasia. Dito de outro
modo, o leitor/ expectador estará disposto a crer no impossível, desde que o ilusório
tenha como pano de fundo a concretude do mundo que conhecemos. É dessa forma
Hamlet conversa com o fantasma de seu pai e o leitor de Shakespeare entende que
o infortúnio do protagonista encontra-se ligado a um jogo de disputas políticas muito
comuns na vida real; e assim Peter Pan leva seus novos amigos para a Terra do
Nunca e enfrenta os piratas do Capitão Gancho, em seu navio de verdade, num mar
de verdade, com armas de verdade. Na mesma direção, Calderón sugere que Orfeo
sensibilizou os deuses com o tocar triste de sua lira, ganhando o direito de descer
aos infernos para buscar a amada Eurídice. Nesta trajetória, Orfeo possuía um
instrumento musical verdadeiro e sua ida ao mundo dos mortos se deu por meio de
uma embarcação, aos moldes dos conhecidos barcos que navegam pelo mar. Dito
de outra forma: o leitor aceita a cena fantasiosa, desde que ela dialogue com aquilo
que conseguimos identificar no mundo real:
(Lleva Aqueronte a la barca a Orfeo, y entran los três en ella)
Aqueronte Vencido me ha tu canto
Tanto suspende, y enamora tanto:
Al rio de la muerte
Ven, que quiero pasarte.(CALDERÓN DE LA BARCA,1966, p.
1832).
Com esses exemplos devemos ressaltar, uma vez mais, que toda ação
ficcional deverá ocorrer em um universo de possíveis, ainda que a sua existência
esteja pautada no além da realidade.
Nas obras rodrigueanas, ainda que o incesto, o adultério e a morte sejam
elementos utilizados em situações que beiram ao incrível e ao absurdo, as relações
58
sociais que garantem a existência desses fenômenos (ou fatos sociais, como
veremos mais tarde), são dotadas de verossimilhança.
O poder do pai, a subordinação da mulher, os instintos sexuais reprimidos, o
poder de controle e de castração da instituição religiosa, o medo da traição, a
ambição, os olhares panópticos da sociedade sobre o indivíduo são experiências
que circundam o dia-a-dia do leitor/ expectador. Configuram eventos apreensíveis
que, quando dispostos ao lado de situações mais inusitadas, garantem a essas
últimas o estatuto de possível.
Nas obras de Lorca, a seu turno, também iremos encontrar o inusitado e
acreditaremos nele por meio da suspensão da descrença. É dessa forma que
recebemos a história de Curianita Silvia em El maleficio de la Mariposa, estando,
enquanto leitores-modelo, dispostos a conceber a possibilidade de existência de
sentimentos exclusivamente humanos no mundo dos insetos. Assim, lemos na
segunda cena do primeiro ato:
DOÑA CURIANA - ¿Qué os pasa entonces?
CURIANITA SILVIA - Tristezas..
Que estoy pasando.
Sin que nadie se dé cuenta.
DOÑA CURIANA - Tan joven y ya tan triste.
¡Bueno que lo esté esa vieja
De la Nigromanta! Vos
Aún sois demasiado nueva
Y nada os falta en el mundo (LORCA,1973, p. 830).
De maneira similar, a Tragicomedia de Don Cristobal y la Seña Rosita humaniza as
relações entre viventes não humanos, conduzindo-nos a aceitar essas
possibilidades de ocorrência desde o prólogo:
Sonarán dos clarines y un tambor. Por donde se quiera, saldrá Mosquito. El
Mosquito es un personaje misterioso, mitad duende, mitad martinico, mitad
insecto. Representa la alegría del vivir libre, y la gracia y la poesía del
pueblo andaluz. Lleva una trompetilla de feria. (LORCA,1973, p. 927).
O misticismo lorquiano simbolizado por personagens ciganos, loucos, animais
personificados, alegorias fantásticas e músicas proféticas têm como pano de fundo
59
relações sociais muito próximas àquelas descritas acima no tocante às peças de
Nelson. O universo ficcional criado pelos dois autores, ainda que assumidamente
ilusório, utiliza, como ponto de partida, o mundo conhecido, racional e
sensorialmente, pelo leitor. Nas palavras de Eco (2004, p: 84), “Esse é o verdadeiro
atrativo de qualquer ficção, verbal ou visual. A obra de ficção nos encarcera nas
fronteiras de seu mundo e, de uma forma ou de outra, nos faz levá-la a sério”
A ficção só permitirá a purgação de nossos sentimentos em contato com o
mais fantasioso dos mundos, se estiver ligada, em alguma medida, com o
conhecimento que temos do mundo real, uma vez que precisamos dessa referência
conhecida, familiar. Eco concebe o mundo ficcional como um parasita do
mundo real, sem regras fixas para a quantidade permitida de elementos fantásticos,
mas cônscio de que tudo aquilo que não for diferenciado pelo autor da história,
corresponde exatamente ao fenômeno ou coisa conhecida da realidade do leitor.
Portanto, parece que os leitores precisam saber uma porção de coisas a
respeito do mundo real para presumi-lo como o pano de fundo correto do
mundo ficcional. A essa altura, porém, deparamos com uma dificuldade. Por
um lado, na medida em que um universo de ficção nos conta a história de
algumas poucas personagens em tempo e local bem definidos, podemos
-lo como um pequeno mundo infinitamente mais limitado que o mundo
real. Por outro lado, na medida em que acrescenta indivíduos, atributos e
acontecimentos ao conjunto do universo real (que lhe serve de pano de
fundo), podemos considerá-lo maior que o mundo de nossa experiência.
Desse ponto de vista, um universo ficcional não termina com a história, mas
se estende indefinidamente. Na verdade, os mundos ficcionais são
parasitas do mundo real, porém são, com efeito, “pequenos mundos” que
delimitam a maior parte de nossa competência do mundo real e permitem
que nos concentremos num mundo finito, fechado, muito semelhante ao
nosso, embora ontologicamente mais pobre. Como não podemos
ultrapassar suas fronteiras, somos levados a explorá-lo em profundidade
(ECO, 2004, p. 91).
E é justamente nesse ato de explorar o texto/ espetáculo, extraindo dele
aquilo que é passível de identificação, que encontramos um dos aspectos mais
importantes do texto teatral e de todo texto ficcional. Ao entrar no bosque sugerido
pelo autor-modelo, o leitor-modelo, em suas múltiplas possibilidades de caminhos,
60
se comporta como uma criança diante de seu brinquedo. Quando uma menina
brinca de boneca, ou um menino experimenta a velocidade de seu carrinho de
controle remoto, estão, na verdade, se preparando para futuros afazeres que
mantêm, com essas brincadeiras, algum tipo de relação. E assim também nos
comportamos diante da literatura (e do teatro): a ficção nos permite explorar as
emoções antes mesmo de sermos convidados a sentir tais emoções. Antes da
nossa experiência real de dor, experimentamos a dor de outrem, contada na fábula
ou no romance; identificamos a experiência do medo a partir de uma bruxa ou do
Capitão Gancho, ainda que em nossa vida real, em nossa história pessoal, não
tenhamos tido contato com nenhum tipo de temor. A ficção antecipa muitos dos
nossos sentimentos e, de certa forma, nos prepara para decifrá-los.
Essa é a função consoladora da narrativa a razão pela qual as pessoas
contam histórias e têm contado histórias desde o início dos tempos. E
sempre foi a função suprema do mito: encontrar uma forma no tumulto da
experiência humana (ECO, 2004, p. 93).
Poderá ser esta, também a função do teatro: permitir que através dos
movimentos internos e externos do outro, nos projetemos, em situações similares,
entregues à viagem aristotélica da catharse.
Nesse tocante, uma segunda premissa deve ser cotejada. Trata-se da
“continuidade da ação” (RYNGAERT,1996, p. 40-42). A obra de teatro precisa
convencer o leitor de que, ao sair de cena, a personagem continua existindo. Sua
atuação diante do público precisa ser tão verdadeira quanto tudo aquilo que ela faz
fora de cena, a ponto de, ao retornar ao palco minutos depois, seja viável acreditar
que, com o passar do tempo, ela executou tudo aquilo que se propôs a fazer, sendo
crível o seu comentário sobre os atos acontecidos fora do alcance do olhar do
público.
De uma cena para outra, ou no transcorrer dos atos, jornadas, quadros ou
movimentos, existe um vazio temporal que precisa ser preenchido. É nesse
momento que a “máquina preguiçosa” pede pelo trabalho do leitor/expectador, que
no caso da leitura/ montagem de um texto teatral observará em pouco tempo a
mudança de cenários, figurinos, atores; enfim, será testemunha de uma nova
61
configuração do real, em atos de representação que transformam diante dos seus
olhos os caminhos sugeridos no momento precedente.
Em Senhora dos Afogados, por exemplo, passamos algum tempo a ouvir falar
num sujeito chamado Misael, patriarca dos Drummond que não aparece tão logo em
cena. Temos no primeiro quadro do primeiro ato:
Vizinho Mas... e o pai, senhorita?
Vizinho Nós, vizinhos, queríamos dar os pêsames ao pai.
Moema O pai não está.
Vizinho E já sabe?
D. Eduarda Mandamos avisar... A esta hora talvez já saiba.
Vizinho Vai ter um choque tremendo.
Vizinha (numa mesura de menina) Gosto de ver homem chorando. Acho
bonito.
Moema (altiva) Meu pai não chora. Nossa família chora pouquíssimo
(RODRIGUES, 1981, p. 263-264).
Muito se fala a respeito de uma personagem que não vimos de imediato, mas que,
ao entrar em ação, traz consigo a confirmação das informações que recebemos.
Misael relata, de maneira minuciosa, as ocorrências de um banquete não visualizado
pela platéia, mas a riqueza de detalhes possibilita a construção imaginativa da cena
por meio da réplica da personagem no segundo quadro do primeiro ato:
Moema Fala do banquete, pai!
(...)
Misael (já de pé) Quando me levantei para falar, para fazer o discurso vi
uma mulher... Estava no outro lado da mesa, bem na minha frente... Vestida
diferente das outras e sem pintura (RODRIGUES, 1981, p. 276).
Também em Álbum de família, fatos importantes da trajetória das
personagens ocorrem fora do olhar do público. O trajeto cênico do personagem
Nonô, por exemplo, é representativo dessa premissa de continuidade não
visualizada, já que quase todo o seu desenvolvimento dramático se dará no exterior
da casa, longe dos olhos do público, sendo permitido ao ator que o interpreta
apenas algumas aparições na cena, e sem fala. Boa parte de sua atuação estará
limita ao imaginário do leitor e quando seus gritos forem escutados, deverão trazer a
62
crença dos sofrimentos que experimentou ao longo das cenas que não nos foram
mostradas.
Em La Casa de Bernarda Alba, o leitor também será apenas informado sobre
o velório de Benavides, ocasião singular que autoriza a presença de homens
naquela casa exclusivamente feminina. A percepção desse fato estará condicionada
ao discurso, jamais à visualização, conforme sinalizam estas réplicas do primeiro
ato:
Bernarda - ¿Está hecha la limonada?
La Poncia Sí, Bernarda (sale con una gran bandeja llena de jaarritas
blancas, que distribuye)
Bernarda Dale a los hombres.
La Poncia La etán tomando en el patio.
Barnarda Que salgan por donde han entrado. No quiero que pasen por
aquí (LORCA,2005, p. 45-46).
Complementando essa segunda premissa, podemos falar numa outra forma
de estruturar o texto de teatro, caracterizada pela “descontinuidade afirmada”.
Trata-se de um recurso comum a alguns dramaturgos, como Brecht, que optam por
isolar as cenas em seu universo de fragmentação proposital. Nessa perspectiva, os
autores não possuem uma preocupação com o encadeamento das cenas que
escrevem, uma vez que “o mundo que nos é dado a ver não obedece a uma
construção harmoniosa e equilibrada” (RYNGAERT, 1996, p. 43).
Nas duas formas de estruturar a cena, todavia, o autor se vê perseguido por
aquilo que Eco chamou de “o fantasma da Verdade” (ECO, 2004, p. 94). Mesmo
sabendo que estamos diante de uma ficção, desejamos poder aferir características e
posicionamentos aos personagens que nos são apresentados. Isso só poderá ser
garantido, se pudermos afirmar, com alguma certeza, que conhecemos bem o seu
mundo e a sua personalidade, a ponto de identificar falsos indícios sobre os seus
procedimentos. A verdade de cada personagem chegará até o leitor como a verdade
total acerca do mundo que a cerca e, por isso, é necessário que a ação da
personagem seja coerente com todo o contexto daquele mundo fictício, tornado
realidade momentânea.
Como um universo fechado, particular, a obra de teatro daria chances ao
leitor/ expectador de se outorgar conhecedor máximo da personagem e de sua vida,
a ponto de negar ou afirmar coisas a seu respeito.
63
“À parte as muitas e importantes razões estéticas, acho que lemos
romances [e assistimos/ lemos peças] porque nos dão a confortável
sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade é indiscutível,
enquanto o mundo real parece um lugar mais traiçoeiro” (ECO, 2004, p. 97).
Uma terceira premissa que nos permite caminhar nos vastos bosques da
ficção, diz respeito ao desvelamento do enredo e sua necessária diferenciação
com a história. De acordo com Eco (2004, p. 39), o enredo de uma obra de ficção
está ligado ao estilo do escritor, à forma como ele encadeia os fatos da história, seu
modo particular de contar as aventuras e desventuras das personagens,
independente da ordem cronológica dos fatos. Já a história diz respeito ao trajeto do
personagem que saiu do ponto A e chegou ao ponto B, vivenciando nesse percurso
algumas peripécias.
A história de Álbum de Família começa com o casamento dos primos Jonas e
D. Senhorinha e culmina com o desfecho trágico de um deles. Já o enredo de Álbum
de Família tem início na expulsão de Glória do internato e sua tentativa de retorno
ao lar paterno.
Em Senhora dos Afogados, a história se inicia com o assassinato de uma
prostituta, dezenove anos antes de o enredo começar a ser contado e culmina com
a punição da Senhora dos Afogados. Todavia, o enredo tem origem com o
afogamento de Clarinha e caminha entre o presente e o passado, revelando
segredos e suscitando planos de vingança.
No que concerne à La Casa de Bernarda Alba, podemos pensar que sua
história tem início com o primeiro casamento de Bernarda, de onde nasceu
Angustias e por meio do qual a matriarca das Alba ficou viúva pela primeira vez. Mas
o enredo de La Casa começa no dia do velório do segundo marido da matriarca e
aos poucos vai revelando os segredos que unem Bernarda e La Poncia, e essa
última a cada uma das filhas.
Destarte, podemos dizer que a história ou
fábula é o esquema fundamental da narração, a lógica das ações e a
sintaxe das personagens, o curso de eventos ordenado temporalmente. [...]
O enredo, pelo contrário, é a história como de fato é contada, conforme
aparece na superfície, com as deslocações temporais, saltos para frente e
64
para trás [...], descrições, digressões, reflexões parentéticas (ECO, 2004, p.
39).
Eco informa ainda que “um texto narrativo pode não ter enredo, mas é
impossível que não tenha história ou discurso” (ECO, 2004, p. 42). Ryngaert (1996,
p. 54-62), por sua vez, sugere que busquemos no texto teatral o encadeamento
racional das ações, deixando para uma análise posterior a manifestação dos
sentimentos. Ele recomenda a descrição das ações sempre no tempo passado, para
que seja possível enumerar aquilo que o texto efetivamente conta em forma de ação
e aquilo que fica subtendido. Tal postura técnica permite que percebamos, para
além dos conflitos latentes na obra, aqueles outros que ficam no segundo plano da
ação, mas que revelam aspectos importantes da história que está sendo contada.
A intriga pode ser pensada como nossa quarta premissa. Em toda peça
teatral a ação nos é apresentada de maneira a colocar a personagem em uma
situação complicada, a exigir dela certas condutas para se chegar aonde se
pretende ir. Tal artifício prende a atenção do leitor ao conferir à trama o necessário
conflito. A história de Chapeuzinho Vermelho não atrairia tantas versões no decorrer
do tempo se a menina chegasse rapidamente à casa da Vovozinha; muito menos o
amor de Romeu e Julieta despertaria os sentimentos mais românticos dos leitores
de Shakespeare se as famílias dos enamorados aceitassem sem resistências o
enlace entre eles.
De acordo com Ryngaert (1996, p. 63): “fazer aparecer a intriga de uma peça
consiste em colocar-se no núcleo da ficção e desenredar-lhe os fios para desnudar
sua mecânica subjacente. A intriga está ligada à construção dos acontecimentos, a
suas relações de causalidade [...]”.
Uma intriga acontece quando um obstáculo é colocado diante do desejo de
um ou mais personagens. Esse empecilho pode advir de um desejo contrário da
personagem antagonista, ou de imposições morais, sociais ou psicológicas
dispostas no corpo da trama. Geralmente as peças trazem não apenas um
empecilho, mas alguns. Existirá, decerto, o conflito central, que despertará a atenção
do leitor-empírico, mas haverá em sua circunferência outros conflitos a serem
desvendados pelo leitor-modelo. Observando a trajetória das Alba, podemos
verificar que o grande empecilho colocado diante de Bernarda é a rebeldia de Adela,
a filha mais nova, já que todas as outras filhas, ainda que possuam desejos de
65
liberdade e de superação da repressora figura materna, são mantidas sob o seu
controle. Por sua vez, colocam-se diante de Adela vários outros obstáculos:
primeiro, a mãe, com todo poder que exerce sobre os rumos da casa, depois
Angustias, a irmã mais velha que fica noiva de Pepe, el romano, por quem Adela é
apaixonada, em seguida La Poncia, que descobre seus segredos e ameaça entregá-
la a mãe e, por fim, Martirio, que movida pela inveja e pelo ciúme, tenta atrapalhar
os planos da caçula.
Em Senhora dos Afogados, a personagem Moema encontra empecilhos de
ordem prática e também psicológica: para satisfazer suas vontades mais frementes
ela precisaria ser a única mulher da casa de Misael, mas precisa conviver com as
duas irmãs, a avó e a mãe. Esta última, por possuir mãos muito parecidas com as
suas, termina por representar uma ameaça velada, ao se converter numa rival
simbólica a disputar o direito sobre a imagem das mãos. Para sobrepor-se às
dificuldades, Moema opta por caminhos definitivos, envolvendo-se em situações
onde o retorno ao estágio inicial apresenta-se como inviável.
Em Álbum de Família, a vida de Jonas encontrava-se, no início da peça,
fadada às repetições que, de alguma forma, atendiam os seus interesses. O retorno
dos filhos ao lar, todavia, suscitou a inconveniente rememoração do passado,
colocando diante de Jonas a necessidade de tomar difíceis decisões, dentro das
quais as perdas se mostrariam maiores que as conquistas.
Sistematicamente podemos pensar no seguinte léxico da intriga proposto por
Ryngaert (1996, p. 65-66):
1) Exposição: Momento em que o dramaturgo situa o leitor com informações
necessárias à compreensão da ação. Na representação teatral, podemos
pensar no prólogo como equivalente a esse momento da leitura;
2) Nó: Obstáculo colocado no meio da exposição da ação. Na peça encenada, o
nó irá se apresentar assim que as personagens estiverem caracterizadas
perante o público, geralmente antes de findar a primeira metade do
espetáculo;
3) Peripécia: “Golpes teatrais” ou “mudanças de sorte” que alteram o
encaminhamento dos fatos de maneira súbita. No espetáculo esses
movimentos inusitados garantem a surpresa do público perante uma
revelação ou mudança de comportamento de uma ou mais personagens. A
66
peripécia tende a desarrumar em alguma medida as certezas que o público
experimentara até então;
4) Desfecho: É a eliminação do último obstáculo para a conclusão do enredo. Na
peça, trata-se do happy end ou da consolidação da tragédia; é o momento em
que tudo se esclarece aos olhos do público e dos personagens; não restam
mais segredos ou disfarces.
Uma quinta premissa a ser esboçada diz respeito à noção de espaço e de
tempo. Sabemos que no passado, a encenação teatral contava com grandes
cenários que possibilitavam igualmente grandes saltos temporais. Todavia, o que
verificamos na atualidade é uma tendência à unidade, à exigência da
verossimilhança que reduz a obra de teatro há ações decorridas em geralmente
vinte e quatro horas e em poucos espaços.
O tempo pode ser informado de três maneiras distintas:
a) descrito na cena pelo autor através das réplicas das personagens:
La Poncia Treinta años lavando sus sábanas, treinta años comiendo sus
sobras, noches en vela cuando tose, dias enteros mirando por la rendija
para espiar a los vecinos y llevarle el cuento; vida sin secretos una con
outra, y sin embargo, maldita sea! (LORCA,2005, p. 37).
b) Através de didascálias que situam o leitor: “Apaga-se totalmente o palco central.
Ilumina-se o álbum de família. Segunda página. Mesmo fotógrafo, mais velho 13
anos [...]” (RODRIGUES,1981, p. 69).
c) Por meio de metáforas, revelado pelo sentido do texto: “Vendedor de pentes e
outros (gritando) Viverás com elas... E elas dormirão contigo... E não estarás
sozinha nunca... Sempre com tuas mãos... Quando morreres, elas serão enterradas
contigo...”(RODRIGUES, 1981, p. 331-332)
11
.
Já os espaços contam com essas possibilidades de descrição:
11
Segundo Quadro do Terceiro Ato de Senhora dos Afogados.. Nessa passagem o leitor descobre
que a maldição lançada sobre Moema é a eterna solidão, tendo como única companheira as mãos
que simbolizam o aprisionamento à imagem da mãe/ rival.
67
a) Informado com maior ou menor exatidão pelo autor nas didascálias:
[...] Ilumina-se uma nova cena: interior da igrejinha local. Altar todo
enfeitado. Retrato imenso de Nosso Senhor, inteiramente desproporcionado
que vai do teto até o chão. [...] (RODRIGUES, 1981, p. 87).
______________
No quarto, a única coisa que existe de realmente integral é a cama
hereditária grande, pesada, antiga. Os vizinhos colocam um pudico
biombo, como se nada quisessem ver da cena conjugal, mas logo trepam
em cadeiras e suas máscaras aparecem por cima do biombo [...] Moema
sobe a escada e pára no meio acompanhada pela avó. Vai espionar os pais
(RODRIGUES, 1981, p. 279).
______________
Habitación blanca del interior de la casa de Bernarda. Las puertas de la
izquierda dan a los dormitorios. Las hijas de Bernarda están sentadas en las
sillas bajas cosiendo. Magdalena borda. Con ellas está La Poncia.(LORCA,
2005, p. 85).
b) Citado pelos personagens:
Tia Rute (castigando a irmã) Imagine que enlouquece e a primeira coisa
que faz é tirar toda a roupa e viver no mato assim. Como um bicho! Você
não viu, outro dia da janela, ele lambendo o chão? Deve ter ferido a língua!
[...] Hoje está rondando, em torno da casa, como um cavalo doido! [...] Ele
nunca gostou disso aqui (da casa), nunca pode passar meia hora numa
sala, num quarto. Vivia lá fora! (RODRIGUES, 1981, p. 59)
12
.
_____________
Avó E depois de não existir mais a família a casa! (Olha em torno, as
paredes, os móveis, a escada, o teto). Então, o mar virá aqui, levará a casa,
os retratos, os espelhos! (RODRIGUES, 1981, p. 262)
13
.
______________
Bernarda [...] En ocho años que dure el luto no ha de entrar en esta casa
el viento de la calle. Haceros cuenta que hemos tapiado com ladrillos
12
Primeiro Ato de Álbum de Família. Nos trechos selecionados, Tia Rute descreve o espaço habitado
pelo personagem Nonô.
13
Primeiro Quadro do Primeiro Ato de Senhora dos Afogados. Trecho em que a Avó revela seu medo
do mar e do estrago que ele pode fazer na família. Nesse momento ela termina por descrever certos
traços da casa: retratos, espelhos, além da proximidade da praia.
68
puertas y ventanas. Así se pasó en casa de mi padre y en casa de mi
abuelo (LORCA, 2005, p. 52)
14
.
c) Indicado de maneira metafórica:
Edmundo (mudando de tom, apaixonadamente) Mãe, às vezes eu sinto
como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós,
quer dizer, você, papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a
única e primeira. (Numa espécie de histeria). Então, o amor e o ódio teriam
de nascer entre nós. (Caindo em si). Mas não, não! (Mudando de tom). Eu
acho que o homem não devia sair nunca do útero materno. Devia ficar lá,
toda a vida, encolhidinho, de cabeça para baixo, ou para cima, de nádega,
não sei. [...] O céu, não depois da morte; o céu, antes do nascimento foi
teu útero...(RODRIGUES, 1981, p. 102)
15
.
______________
Moema (desesperada) Tens tanto orgulho dessa ilha! Falas tanto nela!
Nas suas dálias selvagens, nas suas praias de silêncio... Dizes que as luas
maiores a procuram... Que as estrelas se refugiam nelas como
barcos...(RODRIGUES, 1981, p. 290)
16
.
______________
Maria Josefa Me escapé porque me quiero casar, porque quiero casarme
con un varón hermoso de la orilla del mar, ya que aquí los hombres huyen
de las mujeres. [...] y yo me quiero ir a mi pueblo. Quiero irme de aquí,
Bernarda! A casarme a la orilla del mar, a la orilla del mar (LORCA, 2005, p.
80-81)
17
.
Pelo exposto, podemos dizer que o entendimento das categorias espaço e
tempo dialoga com a observação atenta de todos os indícios disponíveis no texto
pelo dramaturgo, o que sugere uma maior atenção diante das didascálias implícitas
e explícitas. O autor da obra teatral tende a situar sua história em localizações muito
14
Primero. Nesta fala, Bernarda revela as filhas como deverá ficar a casa nos anos que seguem ao
luto do segundo marido.
15
Terceiro Ato de Álbum de Família. Esse trecho revela a forma como Edmundo enxerga a casa e a
família e ainda cria uma projeção de como seria o mundo ideal para ele: o útero da mãe.
16
Primeiro Quadro do Segundo Ato de Senhora dos Afogados. Moema descreve a ilha imaginária
aonde supostamente vivem as prostitutas que morrem. A metáfora da ilha serve de sustentáculo
emocional do Noivo frente a idéia de morte de sua mãe.
17
Acto Primero. Descrição de Maria Josefa do lugar onde mora a felicidade: o mar. Estando a ação
da peça situada em um povoado sem água corrente por perto, a metáfora do mar é utilizada pelo
autor para servir de contraponto à vida seca levada pelas personagens, aos ciclos que se repetem e
nunca mudam. O mar, em contrapartida, aparece como o motor da mudança, a força das marés
transformando a vida, levando embora a tristeza, o luto, trazendo a esperança.
69
próprias, que dialogam com a sua poética e com os rumos que essa forma de
organizar o mundo pretendem tomar. A ação das personagens, ainda que
verificadas em um certo espaço físico, pode muitas vezes, trazer como premissa
uma idealização espacial que pouco tem a ver com o cenário real que a cerca, bem
como poderá estabelecer uma relação com o passado remoto ou com as
expectativas futuras. O uso de flashbacks e de flashforwards
18
permite à narrativa
um livre passeio entre mundos à procura de decifrações, diante dos quais o leitor
poderá saber muito ou perceber, a tempo, que não sabe de fato nada. Em todo
caso, é aconselhável frente a um texto de teatro, colocarmo-nos dispostos a explorar
os muitos caminhos que se abrem diante dos bosques da ficção, desvendando as
pistas do autor-modelo, nos aproximando gradativamente da oportunidade de
sermos convertidos em leitores-modelo. Perceber o tempo da ação (ou tempos
dramáticos) e o (s) espaço (s) evocado (s) pela narrativa são duas atitudes que nos
garantem um decisivo passo rumo à análise de um texto teatral.
O estudo das personagens configura nossa sexta premissa e representa
mais um passo decisivo na busca por uma metodologia de leitura. É através da
personagem que o autor de ficção exercita o diálogo mais direto com o seu leitor,
desnudando aos poucos a estrutura dramatúrgica pensada, as idéias selecionadas e
os efeitos desejados a partir da história criada. É pela boca da personagem que o
autor fala e é por meio dela que toda uma gama de relações ganha materialidade.
Atuando ao lado de outras personagens ou sozinha na presença do público, o
locutor fantasioso sai do domínio de seu criador e experimenta possibilidades de
vida fora daquele âmbito individual e solitário. Mas ainda assim, encontra-se
morando, por longínquo tempo, nas páginas do texto escrito. Na argumentação de
Castagnino, “personagem é o ser ou ente literário que, como dotado de vida própria,
se manifesta por sua presença. Quando atua revela uma linha de conduta, descobre
seu caráter” (CASTAGNINO,1971, p. 125).
Quando ouvimos falar em teatro, possivelmente o primeiro elemento cênico
que nos vem à memória é a personagem associada a um ator ou a uma atriz.
Criador e criatura parecem se envolver em estranha simbiose, a ponto de
confundirem-se diante dos olhares leigos, por vezes, passionais da platéia. Muitos
18
Segundo Hildegard Feist, tradutor de Seis passeios pelo bosque da ficção de Eco, trata-se do
contrário de flashback, isto é, um fato futuro inserido na estrutura cronológica de uma obra literária ou
cinematográfica. ECO (op.cit. p. 35).
70
são os relatos de atores que experimentaram o sucesso de uma personagem de TV,
positiva ou negativamente, sinalizando para uma postura, ainda presente no público
das artes cênicas, que insiste em associar a pessoa ao produto de uma elaboração
artística. Fala-se em “entrar na pele da personagem” ou “dar vida à personagem”,
como se por meio de um nascimento autônomo o ator ficasse diante de seu duplo,
com plenos poderes sobre ele. Através desse jogo de identificação onde o “eu” ator
empresta o seu corpo para um “ele” personagem, tem-se o confortável caminho da
adaptação aos desejos do corpo que se empresta, corpo este que decidiria a hora
de parar e os parâmetros da utilização. Levar a cena uma personagem, partindo
desse pressuposto controlador, significa abandonar equivocadamente uma gama
infinita de informações contidas no texto, informações estas que não dialogam
necessariamente com os elementos disponíveis na psique do ator, nem com o
mundo real que o circunda. Esse é o caminho mais fácil para se adentrar no bosque
do texto teatral, mas não é certamente o mais rico, já que se configura prática
corrente dos leitores-empíricos.
A personagem pode estar inscrita de forma muito abstrata no texto, nas suas
entrelinhas, e percebê-la implica conhecer em demasia toda a partitura textual. Para
os gregos, persona e personagem eram conceitos distintos, uma vez que o primeiro
se referia à máscara usada pelo ator no desempenho de um papel, e o segundo ao
desenho com traços humanos empreendido pela mente criativa do autor. A persona
aumentava a imagem do ator nos amplos espaços ao ar livre, possibilitando-lhe que
a voz se tornasse majestosa. Por transporte semântico a palavra passou a designar
o contorno externo do ser, seu aspecto físico, palpável, material. Em contraposição
fala-se de “caráter” como o traçado interno, o moral, o interior, o espiritual, ou seja,
tudo aquilo que traduz o universo mais subjetivo da personagem.
Em grego, temos originariamente o sentido de caráter designado como
talhado, sinal gravado, impresso em madeira ou metal. Num sentido figurado, os
técnicos da literatura associam o caráter ao conjunto de traços morais que se
verificam através da conduta da personagem (CASTAGNINO,1971, p. 125-126).
De acordo com Verest (1931, p. 48), “todo personagem deve ter um caráter
bem definido, manifesto pela ação e mantido ao longo de todo o seu transcurso”.
Esse caráter não está necessariamente ligado às qualidades particulares do ator.
Com essas definições, percebemos que na Grécia o intérprete não se confundia
nem era confundido com a personagem interpretada, simplesmente porque ambos
71
pertenciam a naturezas deferentes. Tal prerrogativa do teatro grego nos informa
sobre uma necessidade crucial na interpretação de um texto: não devemos iniciar
nenhuma análise de uma obra de ficção, partindo do princípio que as personagens
são demasiadamente decifráveis e reconhecíveis na gama de tipos sociais que
conhecemos. A personagem não pode ser reduzida a uma pessoa localizada
socialmente em quesitos de sexo, nome, idade, profissão, estado civil, classe, credo,
etnia e outros endereçamentos sociais. Ela está inscrita na poética do autor
dramático, a espera de um leitor-modelo que lhe atribua a devida vivência. O ser
artístico seria, pois, melhor apreendido se o leitor considerasse no primeiro plano a
configuração íntima de seu caráter e, de maneira secundária, os contornos do seu
físico. De volta a Castagnino (1971, p. 126), temos que
o caráter é o núcleo íntimo, intransferível, que constitui a individualidade; é
uma resultante na qual intervêm, entre muitos outros fatores, a herança, o
temperamento, a sensibilidade, as crenças, a educação, o meio, a classe
social, o lugar, a época, a família; mas sobretudo, a vontade.
Ainda na direção da ênfase do caráter para a análise da personagem,
poderemos recorrer a Richter e salientar que ao olharmos para o arcabouço de
subjetividades da personagem estamos diante de um raio de vontade que se refrata
e toma cor no prisma da vida. O caráter deverá apresentar traços externos
representativos que mesclem todas as qualidades da personagem, fazendo essa
última vestir o primeiro (RICHTER apud CASTAGNINO, 1971, p. 126).
Dito isto, a análise da personagem deverá considerar todas as informações
advindas do delineamento do caráter, seja pelo conjunto de movimentos exteriores
possíveis pela ação, seja pelo desvelar dos traços mais subjetivos sinalizados pelas
intenções e objetivos daquele que publiciza o texto. Contudo, devemos ter clareza
quanto à natureza do caráter, sem confundi-lo com aquilo que alguns estetas
chamariam de paixão. Em alguns personagens o exercício de certo movimento
interior, dado pelo exagero e pela repetição de uma vontade não justificada no texto,
cria diante do público um certo tipo que poderá voltar à cena na interpretação de
outros atores. Se o tipo for o primeiro de uma série, estaremos diante de protótipos;
caso seja um modelo bem delineado, gerador de protótipos e reconhecido pelos
executores do fazer cênico, falaremos em arquétipo.
72
O caráter será revelado por uma conduta exterior, dialogará com as regras
impostas “pelo meio familiar, social, pela moda, a educação etc. A conduta o
personagem a realiza por ordem do caráter” (CASTAGNINO,1971, p. 127). Em
Aristóteles, temos o caráter pautado por certas condições de existência enumeradas
a seguir:
1) Os caracteres serão bons se suas decisões e escolhas forem boas;
2) Os caracteres deverão ser apropriados, isto é, deverão existir em harmonia
com a lógica interna da personagem e em comunhão com aquilo que a sociedade
espera dela;
3) Deverão ser semelhantes, extraindo sua natureza de fontes comuns ou
conhecidas dos demais elementos fictícios que compõem o texto;
4) Precisam ser constantes, ainda que seu desenho seja caracterizado pela
inconstância. Em outras palavras, o caráter inconstante deverá ser constantemente
inconstante;
5) Os caracteres devem ser necessários e verossímeis, sem cores supérfluas,
tendo sua existência ligada a alguma demanda textual.
Liddlell (1947) argumenta que a personagem, ainda que inspirada nos
modelos reais, não terá seu caráter tal como uma fotografia do real, visto que não se
trata de um ser vivo, mas sim de um esboço sugerido por um ser vivo. Dito de outra
forma, podemos pensar que o autor possivelmente criará sua personagem a partir
da observação de indivíduos reais, mas nem por isso será cópia fidedigna desses
indivíduos.
Suberville (1961), por sua vez, acredita que o autor projeta na personagem a
forma como ele mesmo se vê, podendo até mesmo superar seus limites e
transgredir na ficção os preceitos sociais que desejaria romper na vida real. Na
concepção de Michaud (1950) nenhum personagem literário realmente humano
deixará de trazer em seus traços algo da intimidade do escritor, embora há alguns
personagens que experimentem justamente o oposto, isto é, ganham vida a partir de
uma “vontade de metamorfose” (GOUHIER, 1943) de seu criador, uma espécie de
fuga daquilo que se é e daquilo que se faz através da ação desenvolvida pelo ser
fictício que é a continuidade permitida de si mesmo, sem no entanto ser sua cópia.
Esse status de continuação fictícia é garantido pelo argumento de Luppé (1946),
73
onde a obra literária é diferenciada da obra biográfica. Na primeira, as personagens
são criação da história, ao passo que na segunda a história só é possível através da
ação de personagens reais. Diz ainda Luppé, fortalecendo a tese de Eco (2004), que
o autor-empírico pouco nos informa sobre o desenrolar da obra, que a personagem
não precisa ter a aparência física de seu criador, pois ela é apenas a encarnação de
suas paixões e afetos, de seu espírito. Em suas palavras, a
paixão que o artista experimenta se exterioriza sob a forma de
personagens. Objetiva-se. Anteriormente se refugiava no mais íntimo do
homem. Turbulenta por essência. Pela obra e na obra, projeta-se em um
novo plano. Desenha-se aos olhos do escritor e este, pelo ato criador,
extirpa de si a paixão, não a sofre mais, domina-a, dela se liberta (LUPPÉ,
1946, p. 27).
Assim sendo, o escritor viveria no ato da criação da personagem, algo
bastante similar ao que o público experimentaria ao assistir um espetáculo: a
catarse. Ao inventar novas vidas ele purifica a sua própria e faz indiretamente tudo
que não executaria numa situação real, sem arcar com as responsabilidades de um
trajeto essencialmente biográfico.
Ao longo dos anos, muitas abordagens em torno da personagem foram
oferecidas pelos teóricos do teatro. Uma das mais profícuas é a que psicologiza a
ação, aproximando o agir cênico do agir real. Por meio dos resultados obtidos pelos
estudos do comportamento humano, esses teóricos fizeram inferências sobre a
trajetória das personagens teatrais, buscando no mundo real explicações que
cobram validade no universo da dramaturgia.
Uma empresa desse tipo corre o risco de ignorar a dimensão artística da
personagem, caracterizada por uma construção voluntária do autor, como a soma de
discursos reunidos acerca de uma identidade útil a ficção. Para retornar ao já citado
fantasma da verdade”, alguns leitores/ expectadores se sentem capazes de afirmar,
leviana e superficialmente, coisas acerca dos gostos e vontades de determinado
personagem, sem perceber que essa personagem possui uma existência para além
dos nossos valores ocidentais tidos como universais. Nesse caminho, torna-se
comum associar Antígone de Sófocles ao arquétipo da mulher moderna, fruto do
movimento feminista, bem como atribuir a Hamlet uma sensibilidade hodiernamente
comum ao chamado “novo homem” em sua busca constante pela criação/
74
recuperação de uma subjetividade masculina. Dito de outra forma: tendemos a
assimilar à personagem a uma pessoa e à pessoa a um modelo implícito conhecido
por todos.
Em tempos de contestações das certezas e das grandes narrativas, alguns
teóricos anunciam, de acordo com Ryngaert (1996, p. 128-129), o fim da
personagem no texto ficcional e, podemos estender essa preocupação ao texto de
teatro. Diante da enfadonha rotina da psicologização, da identificação exacerbada
entre ficção e realidade, estariam os autores, atores e encenadores optando por um
certo distanciamento que esvazie a idéia de personificação. As vozes no texto
começam a ser distribuídas de maneira a não conferir um único papel ao ator, mas
uma gama de papéis ou estruturas de papéis, para que o intérprete não se
acostume (ou se acomode) a um tipo (protótipo ou arquétipo) determinado. O
objetivo dessa iniciativa seria pôr fim à tríade texto-personagem-ator, promovendo
um jogo de interações que ao invés de direcionar papéis, compartilha-os, tal como
encontramos no sistema Coringa de Augusto Boal
19
.
Para Castagnino, a personagem já existe antes de ser escrita, ela habita o
branco do papel, tal como nós, indivíduos humanos, já encontramos nossas
perspectivas de vida esboçadas pela sociedade antes de nosso nascimento. O
nascimento de um ser ficcional é similar a um filme fotográfico que se revela: “à
medida que progride a reação química e os reativos atuam sobre as emulsões
fotófilas, vão perfilando-se nitidamente os traços captados no negativo”
(CASTAGNINO, 1971, p. 135).
19
Modelo dramatúrgico criado por Augusto Boal para permitir a montagem de qualquer peça com
elencos reduzidos, alterando as tradicionais relações narrativas do gênero dramático, apoiado numa
proposta épica e crítica. São empregados quatro procedimentos: a desvinculação ator/personagem
(qualquer ator pode representar qualquer personagem, desde que vista a máscara correspondente),
perspectiva narrativa unitária (o ponto de vista autoral é assumido ideologicamente pelo grupo que
faz a encenação), ecletismo de gênero e estilo (cada cena tem seu estilo próprio - comédia, drama,
sátira, revista, melodrama, etc. - independentemente do conjunto, que se transforma numa colagem
estética de expressividades), uso da música (elemento de ligação, fusão entre o particular e o geral,
introdução do ingrediente lírico ou exortativo no contexto mítico e dramático). O Coringa é uma
personagem onisciente que altera, inverte, recoloca, pede para ser refeita sob outra perspectiva uma
cena, sempre que sinta necessidade de alertar a platéia para algo significativo, concentrando a
função crítica e distanciada. Função oposta ocupa o protagonista, o herói. Ele deve ser naturalista,
fechado em sua lógica causal e psicológica, sempre representado pelo mesmo ator, destinado a criar
e dar corpo à dimensão do particular típico, insuflando a ilusão cênica e materializando a dimensão
mítica, uma vez que se destina à identificação e ao fomento da empatia junto ao público. O conjunto
de tais procedimentos é especialmente épico, oriundo de Bertolt Brecht, mas não deixa de abrigar,
igualmente, uma tentativa de conciliar o historicismo proposto pelo distanciamento brechtiano com o
particular típico, como concebido por Lúkacs, outro teórico marxista que defende um herói mítico e
fechado sobre si mesmo.
75
Na visão de Robert Abirached (1978) a personagem “é uma soma de
significantes cujo significado deve ser construído pelo expectador”. Essa visão
afasta a discussão do parágrafo precedente sobre a morte ou sobrevivência da
personagem, e abre espaço para uma nova leitura acerca da sua construção. Trata-
se, então, de escapar do comodismo da personagem acabada, com a chave da
interpretação nas mãos, e investir num modelo aberto à criação, que deixa espaço
livre para a atuação do público em seu constante trabalho de atualização, de
consumo, de autor do movimento da “máquina preguiçosa”.
Esse argumento é sustentado por Ryngaert, ao afirmar que “a personagem
não existe verdadeiramente no texto, ela só se realiza no palco, mas ainda assim é
preciso partir do potencial textual e ativá-lo para chegar ao palco” (RYNGAERT,
1996, p. 129). Destarte, não nos é aconselhável iniciar a leitura de um texto
acreditando conhecer a personagem, mesmo que se trate de um clássico como
Édipo ou Romeu e Julieta. O contato que teremos com ele se dará pelos caminhos e
meandros que o texto sugerir, desde que nos coloquemos numa posição de bons
receptores, sem modelos prévios de identificação.
Mas se a personagem não nos é identificável de pronto, como podemos nos
servir dela para interpretar uma obra de teatro? Como nos aproximar de seu
universo literário sem nos tornar leitores-empíricos capazes de fazer dessa obra um
uso perverso, aos moldes de Eco? Adiante, sugeriremos alguns procedimentos
pautados naqueles que já se propuseram iniciativa similar
20
.
Os teóricos que se dedicaram a esboçar uma estratégia de aproximação
analítica com a personagem de um texto teatral recomendam em primeiro lugar
verificar os princípios de identificação, isto é, averiguar tudo quanto possível no
corpo do próprio texto, que se refira à personagem. Isso significa dizer que se
converterá em material de nossas observações os dados que o autor disponibiliza
sobre ela, seja pelas didascálias, pelas réplicas ou pelas falas dela própria.
Inevitavelmente, o texto construirá para além de sua trama, um certo perfil para a
personagem, a ponto de torná-la uma voz autorizada para a divulgação de sua
história.
Em Senhora dos Afogados, por exemplo, antes mesmo da entrada de Misael,
temos traçado já o seu perfil identitário, pois os vizinhos e a família do patriarca dos
20
Esses procedimentos de leitura da personagem são produtos advindos da leitura dos trabalhos de
Ryngaert, Abirached, Ubersfeld e Prado.
76
Drummond cuidaram de estabelecer tais parâmetros, preparando o público para o
encontro que se daria posteriormente. Eis as informações dispostas no Segundo
Quadro da peça, antes que Misael profira uma só palavra:
Vizinho (Logo que Misael aparece à porta) Olha o grande pai!
Vizinho O grande bêbado!
Vizinho Não bebe! O doutor não bebe!
Vizinho Bebe, sim!
Vizinho Não!
Vizinho Tem úlcera no duodeno!
Vizinho Mas foi ele, não foi ele?
Vizinho Quem?
Vizinho Foi ele!
Vizinho Quem matou aquela mulher?
(Vizinhos cochichando entre si).
Vizinho Dizem que foi ele!
Vizinho Mentira!
(Os vizinhos aproximam-se, agora, da família, em diferentes atitudes, uns
agachados, outros rindo, outros gritando. A família nada percebe, nada vê).
Vizinho (numa ofensa coletiva) Família que não chora os seus defuntos!
Vizinha (patética) Não chora seus afogados!
Vizinho (patético) Nem seus doidos! (RODRIGUES, 1981, p. 274).
Num segundo momento, após averiguar essas informações diretas e indiretas
sobre a construção da personagem pelo seu autor, podemos nos debruçar sobre
aquilo que Ryngaert (1996, p. 131) chamou de “carteira de identidade”.
As ações e palavras que pertencem a uma personagem são reunidas no texto
através de uma sigla, que pode ser o seu nome ou simplesmente sua marca
particular. Isso porque vimos a tendência em muitos textos contemporâneos de não
conferir um nome específico à personagem, mas sim um sinal que distinga as
réplicas e tréplicas, ou classificações do tipo Homem 1, Homem 2, como
observamos em Senhora dos Afogados, onde os vizinhos não possuem nomes
definidos, sendo identificados somente por Vizinho e Vizinha. A opção dramatúrgica
de não conferir nomes, ajuda a criar o distanciamento daquilo que é falado em
relação àquele que fala, priorizando o texto em detrimento de seu locutor. Por outro
lado, nas peças que compõem o recorte desta tese, a não utilização de nomes
próprios para caracterizar parte das personagens, pode estar relacionada a uma
77
estratégia dramatúrgica de salientar os personagens centrais e contrapô-los aos
secundários. Tanto Lorca quanto Nelson nomeiam seus protagonistas, sem, no
entanto, deixar de criar papéis como Noivo e Avó (Senhora dos Afogados), Avô e
Mulher Grávida (Álbum de Família), Criada, Mendiga, Mujeres (La Casa de Bernarda
Alba).
Não é comum encontrarmos na obra teatral a biografia completa da
personagem, já que a transposição daquela vida para o universo da dramaturgia se
dará a partir de um recorte onde certas características são importantes para o
funcionamento da história, e outras são irrelevantes. Em algumas situações,
sabemos apenas o sexo, em outras somos informados da idade ou estado civil. Mas
geralmente essas informações não serão fornecidas com a intenção de construir tão
somente um desenho mais apurado para o trabalho do ator e do encenador, mas
sim, porque são necessárias ao elucidar da trama.
Dessa forma, quando somos informados que Bernarda ficou viúva pela
segunda vez, Lorca nos remete ao primeiro casamento dela, de onde nasceu
Angustias e a partir do qual se explica o fato da filha mais velha possuir um dote, ao
passo que as outras nada possuem. Na história, somos levados a acreditar que
Pepe, el Romano só pretende se casar com Angustias por conta do seu dinheiro, já
que ela é a mais velha e a menos servida de beleza. Se esse dado não tivesse
chegado ao leitor, estaríamos até hoje nos perguntando, porque então ele não se
casou com Adela, já que ela é mais jovem e mais bonita que a irmã?
Ainda no âmbito de La Casa de Bernarda Alba, a identidade das personagens
sinaliza para aspectos interessantes da sua conformação psicológica. Alguns nomes
são associados a estados de espírito, ao passo que outros se referem à ocupação/
condição social que delimitam uma situação de classe e de subordinação. No
primeiro caso temos Angustias, Martirio e Prudência e no segundo, Criada,
Mendiga, Mujeres de Luto e Muchacha. Essas marcas identitárias de teor
metafórico são comuns na obra de teatro quando o autor pretende ligar sua
personagem a alguma idéia maior que ultrapasse os limites do seu texto. Ryngaert
(1996, p. 133) argumenta que
o simples exame da identidade remete a pistas muito diversas: à mitologia
(Orestes), à História (Júlio César), à tradição teatral (Arlequim) ou mesmo à
pura abstração no caso de uma alegoria (a morte). Quando concebemos,
78
portanto, um levantamento de identidade para uma personagem, esta só
adquire realmente sentido no contexto da peça considerada como uma
estrutura fechada. As informações exteriores muitas vezes acabam sendo
uma faca de dois gumes, já que saber muito sobre uma personagem no
texto pode tornar ainda mais difícil a passagem ao palco, se nos deixamos
levar por pistas falsas ou por clichês.
Pelos perigos que esses indícios nos oferecem, alguns teóricos como Anne
Ubersfeld (1977) preferem fugir a qualquer tipo de levantamento individual da
personagem. Ao invés de se propor uma abordagem do universo particular daquele
que detém certo número de falas no texto de ficção, seria preferível avaliar o sistema
de relações que essas falas estabelecem. Isso nos conduz a contrapor o
personagem a seus interlocutores, percebendo o produto dessas trocas como sendo
revelador do movimento que cada um executa. Só assim poderemos situar os
elementos discursivos de um texto em sua dualidade de oposições e semelhanças,
o que possivelmente nos auxiliará também no desvelar do enredo e da intriga.
Na mesma direção, Richard Monod (1977) fala de constelações de
personagens, procurando compreendê-las como interdependentes e possíveis
apenas a partir desse jogo de trocas simbólicas, onde o “eu” só tem validade se
contraposto ao “nós” ou ao “ele (a)”. Dessa forma, os Vizinhos de Senhora dos
Afogados, só são vizinhos porque existe uma casa da família Drummond nos
arredores das casas deles; o Noivo só existe na mesma peça porque Moema o
namora; a Criada de La Casa de Bernarda Alba existe porque Bernarda é sua
patroa, assim como a Mulher Grávida de Álbum de Família só está ali em resposta
ao adultério de Jonas. Ou seja, nenhuma personagem existe isolada, não sendo
produtiva para a análise sua consideração individual. Até mesmo um monólogo,
apresentará uma personagem em contraposição a alguém, seja a outros
personagens que ele cita ou imagina contracenar, seja ao próprio público.
Todavia, ainda que tomemos todos esses cuidados, ao transpor esses
“personagens-ocultos” para o palco, o faremos numa perspectiva de “atores-reais”, e
isso nos obriga a aceitar a parcela de atualização que todo leitor/ expectador é
capaz de oferecer. Por mais metódicos que sejamos não poderemos acreditar
possuir um registro civil completo da personagem, simplesmente por existir uma
dimensão artística passível de (re) interpretações. Dessa forma, nosso
conhecimento sobre um texto de teatro tende a ser um conhecimento parcial,
79
datado, localizado espacialmente, assim como é o conhecimento acerca da própria
realidade. Ou nas palavras de Ryngaert: “A personagem textual jaz entre essas
referências; compete ao palco ativá-las, dando-lhes ou não importância”
(RYNGAERT, 1996, p. 135).
Uma terceira preocupação que devemos ter ao empreender esse tipo de
estudo, diz respeito à ação. De acordo com Aristóteles (1990) em sua Poética, o
caráter da personagem é ditado por aquilo que ela faz, como assinalado
anteriormente. É no âmbito da ação que a sua presença no texto se explica, logo, é
preciso compreender o que ela faz e o que a motiva fazer, para aferirmos qualquer
coisa a respeito do seu “ser”. Isso nos direciona para uma análise descomprometida
com os motivos psicológicos da ação. Em nossa abordagem, optaremos por verificar
a ação, deixando de lado as motivações que a determinam. Somente dessa forma,
poderemos fugir ao risco de opinar sobre a vontade sincera da personagem,
emprestando a ela nossos códigos de leitura da ação humana, ou seja, abdicamos
da tentação de querer entender o comportamento do ficcional a partir daquilo que
norteia nosso próprio agir. Percebamos o caminho realizado pela personagem,
ligando esse caminho à conquista de seus objetivos. Voltemos à história de Moema
para ilustrar esse raciocínio.
Moema desejava ser a única mulher presente na vida do pai, porém tinha
duas irmãs, uma mãe e uma avó. As irmãs de Moema eram alvo do carinho e
devoção de Misael, o pai. Para mudar esse quadro, Moema entregou-se à execução
de certos planos que a tornaram a única filha, mas não a única mulher. Restavam na
casa a mãe e a avó. Diante desses obstáculos, novas estratégias de ação foram
eleitas. Ao fim do caminho, Moema consegue atingir seu objetivo: ficam na casa
somente ela e Misael. O que ela não esperava era o desfecho reservado a Misael. A
ilustração abaixo mostra essa trajetória da personagem a partir da sua ação.
80
Também na visão de Prado (1976, p. 81-101), a ação é o que confere o
estatuto de teatro ao texto que visa à encenação. E a grande diferença entre a
personagem do romance e a personagem teatral é que aquela se encontra
dissolvida na narrativa, enquanto esta se aventura no agir que informa. Essa
condição de agente dispensa, na maioria dos casos, a presença do narrador, que se
converte por vezes, numa estrutura de coro. Nas peças rodriguenas a figura
narrativa divide-se entre o Speaker (Álbum de Família) e os Vizinhos (Senhora dos
Afogados).
Para Hankiss (1951) a ação pode ser pensada a partir de cinco princípios
básicos: 1) sua matéria se alimenta da vida humana, compõe-se de fatos
importantes para os homens, é essencialmente realista; 2) os detalhes supérfluos
dessa vida devem ser eliminados, não deixando espaço para o cair do ritmo da
narrativa; 3) o leitor/ expectador da obra de teatro volta o seu olhar para o objeto que
é alvo da atenção das personagens e deseja enfrentar e superar os obstáculos que
porventura aparecerem na história; 4) o leitor espera que o trajeto da história
comporte surpresas, a fim de que sua atenção esteja sempre em suspenso; 5) e
espera ainda um atmosfera de mistério e suspense no transcorrer da narrativa.
Polti (1980), a seu turno, afirma que a personagem é aquilo que executa.
Tudo que cerca o seu estudo pode ser resumido na análise das suas atitudes.
Quanto menos a personagem interferir no rumo da ação e, ao contrário, quanto mais
QUADRO SINÓPTICO DA AÇÃO DE MOEMA
81
a ação definir os caminhos da personagem, maior serão a naturalidade, a
espontaneidade e a veracidade da criação literária. Essa premissa de uma
inevitabilidade do destino sobre os caracteres é umas das razões para que o leitor/
expectador empenhe sua atenção na narrativa, a espera dos empecilhos e
resoluções que caracterizam a trama.
Por fim, resta-nos perguntar pela importância da personagem na obra de
teatro. De certa forma, sua existência já é sinalizadora da sua relevância, isto é, se
ela foi criada pelo autor certamente contribui para a história ou para o enredo. Mas é
fato que o texto teatral possui tradicionalmente uma gama de classificações que
qualifica seus componentes: protagonista, antagonista, escada, figurante, narrador,
dentre outros. A definição desses tipos, todavia, não é tarefa simples.
É comum creditarmos ao protagonista da história o maior número de falas ou
ações na peça, mas há aqueles que não falam tanto, como o Sr. de Pourceaugnac,
papel título da peça de mesmo nome, que quase não fala e padece muito. Há
também os que aparecem pouco, mas que ao fazê-lo são exímios tagarelas, o que
afasta a validade dessas quantificações matemáticas para definir a estruturação de
um texto por meio de seus locutores.
Podemos então pensar que o protagonista é aquele de quem se fala mais ao
longo da peça, mas isso também incorre em certos perigos. As personagens falam
de si mesmas e também dos outros, e não obstante, tecem também considerações
sobre o mundo que as cerca. A motivação das réplicas, todavia, pode ser de
natureza diversa, já que cada universo dramatúrgico possui suas intenções e quem
fala, na verdade, é o autor por meio de suas variáveis. Nos jogos literários é comum
desviar a atenção de um certo indivíduo ficcional para fazê-lo aparecer somente no
desfecho, guardando o elemento surprese para o momento conveniente.
Outro caminho a ser explorado nesse bosque diz respeito ao movimento da
ação dramática possibilitado pela personagem principal. Aparentemente, caberia ao
protagonista sofrer ou comandar as ações que são executadas na peça, já que o
objetivo central a ser conquistado pertence a ele. Mas isso nem sempre é verdade.
Há peças onde o protagonista não é uma personagem isolada, mas uma
instituição ou personificação alegórica. Em Álbum de Família, por exemplo, somos
levados a situar a instituição familiar como o agente do discurso principal, já que o
movimento da ação dramática é ditado pelos vários posicionamentos coletivos.
Ainda que na cena principal estejam Jonas e Senhorinha, é inegável a força
82
exercida pelos filhos no desenrolar dos acontecimentos entre eles. Afinal, é o retorno
de Glória, Guilherme e Edmundo, que faz a peça ganhar algum sentido, alterando as
posições iniciais dos pais.
Também em La Casa de Bernarda Alba, ainda que o papel-título ganhe status
de protagonista, é latente a importância de Adela que modifica, com sua rebeldia e
sede de liberdade, os preceitos que até então gerenciavam a família Alba. Noutra
acepção, como mostrado em outro momento, podemos conceber a Casa como a
grande protagonista da história, uma vez que é através dela que as ações se
desenvolvem e os sentimentos são criados. A Casa-Prisão se mostra como o algoz
das personagens, inclusive de Bernarda que, a despeito de todo poder que exerce,
mostra-se impotente diante das obrigações que a casa lhe impõe. É possível pensar
na Casa como alegoria da sociedade, e assim fazendo, entregamos a ela a
responsabilidade do movimento central da trama. Por outro lado, sem a família a
casa não teria significação, o que nos conduz a pensar numa dependência mútua
entre esses dois elementos cênicos.
Já em Senhora dos Afogados, as atenções se voltam desde o título para uma
protagonista mulher, pois somos conduzidos a pensar que o movimento da história
será ditado por aquela que comanda, de alguma maneira que desconhecemos de
início, os mortos por afogamento. Não demora muito e o leitor/ expectador é
apresentado a Moema e crê na força motriz da personagem. Porém, no prosseguir
da história, somos apresentados ao mar que não devolve os corpos e que ameaça a
Casa e a família Drummond. Todas as mortes da história se darão em sua presença
ou por seu intermédio, e até mesmo Moema, ao concluir seus planos de
exclusividade no coração do pai, é castigada por uma força dotada de misticismo
que a faz conviver com a memória das mãos de D. Eduarda e com o sofrimento das
irmãs assassinadas, todas essas guardadas pelo mar. Seria, pois, viável pensar no
Mar como importante personagem da história, aliado primeiro de Moema e, em
grande medida, responsável pelo “movimento da ação dramática”.
Uma vez definidos os protagonistas, fica mais fácil pensar nas demais
categorias. O antagonista oferecerá os empecilhos para a conquista de seus
objetivos, os figurantes garantirão as cenas de movimento ou comporão os quadros
necessários, com ou sem réplica, ao passo que as escadas darão suporte para que
o protagonista conte a história principal. Caberá também a esses personagens
permitir ao público o conhecimento daquilo que se passa no interior da protagonista,
83
já que as revelações íntimas que justificariam suas ações não são no teatro tão
apreensíveis quanto nos romances, onde o autor pode se valer de vários parágrafos
para expor a subjetividade do seu herói ou heroína. A saída encontrada para esse
limite do texto teatral foi, na concepção de Prado (1976, p. 89-91), delegar às
personagens-escada algumas possibilidades de localização, e permitir ao ator
principal fazer-se comentarista da própria ação diante do público. E como vimos em
outro momento, é nesse tocante que o dramaturgo se valerá dos signos. Assim
sendo, temos esses três caminhos de exposição:
1) Criação de um personagem-confidente: aquele que atua sempre ao lado do
protagonista, sendo seu conselheiro, amigo, empregado, fazendo as vezes do
seu alter ego. Em Senhora dos Afagados a Avó desempenha essa função em
relação a Moema;
2) Incentivar o à parte: ao executar uma ação, planejar uma peripécia, ou
perceber uma intenção oculta no outro, o personagem se remete à platéia e
esclarece o fato, fingindo não ser ouvido pelos colegas de cena;
3) Assumir no monólogo a solidão compartilhada: quando se está sozinho
em cena, o ator pode dirigir seus pensamentos mais íntimos a si mesmo ou
reconhecer no público seu interlocutor privilegiado.
A despeito da importância que esses mecanismos de revelação interior
representaram e ainda representam, aos autores modernos continuam a privilegiar a
ação como sendo a grande reveladora do sentido da personagem. Prado (1976, p.
91) sinaliza que “a ação é não só o meio mais poderoso e constante do teatro
através dos tempos, como é o único que o realismo considera legítimo”. Em grego,
drama significa ação e, por conta disso, se quisermos obter um desenho acerca da
personagem devemos primeiro assimilar aquilo que ela faz. Não basta que o ator
viva interiormente aquilo que acredita se passar dentro dela, mas sim, faz-se
imperativo que ele traduza em ação o que na personagem é sentimento.
Em alguns textos, como os aqui trabalhados, haverá ainda a presença do
coro, um tipo de personagem à parte, capaz de ser o elo de ligação entre a ação da
peça e a opinião pública. Oriundo das tragédias gregas, o coro possui uma função
vital nas peças de Nelson Rodrigues, sendo camuflado pelos arquétipos dos
84
vizinhos, dos funcionários públicos, das tias, entre outros. Na opinião de Prado
(1976, p. 87):
[...] devemos compreender o coro da tragédia que, se por um lado era pura
expressão lírica, por outro desempenhava funções sensivelmente
semelhantes às do narrador do romance moderno: cabia a ele analisar e
criticar as personagens, comentar a ação, ampliar, dar ressonância moral e
religiosa a incidentes que por si não ultrapassariam a esfera do individual e
do particular. Quando Antígone morre, é do coro a palavra final: “Nunca aos
deuses ninguém deve ofender”.
De tudo que foi dito, cabe lembrar que a personagem é uma continuação do
autor e de seu estilo literário ou, para ser fiel ao conceito de Eco, ela é uma parte do
universo proposto pelo autor-modelo. Ainda que possamos associá-la ao mundo
real, ainda que reconheçamos nela uma inspiração no quotidiano, não podemos
perder de vista a sua dimensão artística e seus critérios de verdade dentro do
mundo em que habita. Se pretendemos caminhar de mãos dadas com a
personagem nos bosques da dramaturgia, devemos deixar que ela nos guie, nos
afastando da tentação de lhe apontar saídas. De certo modo, o dramaturgo se
aproxima da imagem de Deus criada por Newton: após a criação seu papel se esvai
para que a criatura aja por suas próprias vontades. E no teatro isso é ainda mais
verdadeiro. Ao abrir a cortina, a criação do autor rompe o último laço que a prendia
ao ficcional e, por meio do corpo do ator, chega até o público, podendo despertar
nele as emoções mais diversas. Diante daqueles que farão movimentar a “máquina
preguiçosa” a personagem é uma incógnita, ainda que tenhamos nas mãos os
códigos que pretensamente a decifra.
Nossas certezas frente a uma história, nossa intimidade com essa ou aquela
personagem se devem a um fator já citado. A percepção que temos da literatura (e
do teatro), funciona mais ou menos igual à percepção que trazemos de nosso
próprio mundo. Quando nos contam uma história aparentemente verídica, somos
capazes de acreditar na narrativa, bem como duvidar do relato. Isso acontece
porque somamos um certo cabedal de experiências que nos permite projetar a
Verdade dentro dos nossos parâmetros. Essa postura nos acompanha também
diante do teatro, pois possuímos o desejo de experimentar a vida dentro daquele
85
universo tão seguro e aparentemente tão confortável da literatura. Nas palavras de
Eco (2004, p. 137):
[...] é fácil entender porque a ficção nos fascina tanto. Ela nos proporciona a
oportunidade de utilizar infinitamente nossas faculdades para perceber o mundo e
reconstituir o passado. A ficção tem a mesma função dos jogos. Brincando as
crianças aprendem a viver, porque simulam situações em que poderão se encontrar
como adultos. E é por meio da ficção que nós, adultos, exercitamos nossa
capacidade de estruturar nossa experiência passada e presente.
Dito isto, podemos associar a obra de teatro, não apenas a uma experiência
literária, artística, procurada em nome da satisfação de um prazer intelectual. Mas,
sobretudo, somos levados a perceber a influência sensorial que uma peça exerce
sobre o leitor/ expectador-modelo. A estrutura de diálogos presente no texto teatral
parece mais convidativa e apta ao trabalho de atualização, de movimento da
máquina preguiçosa”. Sendo assim, o universo da ficção teatral deverá em alguma
medida manter suas ligações com o mundo real, para que o leitor utilize sua
enciclopédia pessoal no ato da suspensão da descrença. O público, ao assistir uma
peça, ainda que esteja preparado para ouvir mentiras assumidas, está sedento por
verdades temporárias, que lhes garantam a purgação das emoções que na vida se
dariam de forma mais complexa. A literatura ensaia diante dele um futuro possível,
um presente provável ou um passado (re) vivido ou (re) inventado.
Seguindo as trilhas desse ponto de vista, sustentamos a idéia de que o texto
de teatro mantém com o mundo real uma estreita comunicação, seja em seu
processo inicial de criação, onde o trabalho do autor se dá em certo contexto sócio-
histórico-cultural, sejam nas leituras posteriores empreendidas por aqueles que
cuidarão de transpor o literário para o palco. Nesse caminho de atualizações
constantes a história exerce seu papel, influenciando interpretações, ditando
tendências, sinalizando linguagens, a ponto de poder converter a idéia inicial de um
autor em algo completamente diverso daquela atitude artística primeira.
Processos como esses, onde a obra de arte é (re) inventada em seu
consumo, despertaram os interesses acadêmicos de Umberto Eco, inclusive no
campo musical. Em Obra Aberta (ECO, 2005), o autor argumenta que muitas peças
musicais são, em seu tempo, executadas de forma livre pelo intérprete que decide
ao seu bel-prazer as notas, tons e melodias adotadas em sua leitura da partitura
86
inicial. Essa possibilidade de (co) participação na autoria de um produto artístico é
garantida pela condição de abertura que caracterizaria a arte contemporânea. Esta,
dotada de ambigüidade, deixaria para o seu receptor um caminho para a utilização
pessoal, numa espécie de continuação do produzir que é próprio da fruição.
Até mesmo os dramaturgos mais adeptos de uma proposta ideológica
definida, como Brecht, deixaram para o consumidor, na visão de Eco, um espaço
para a livre interpretação. O teatro da significação de Brecht ligava-se diretamente a
um teatro político que afirmava o sentido da idéia que desejava transmitir, mas não o
completava. Era um teatro da exposição do problema (no campo do trabalho, da
natureza, do racismo, fascismo, guerra, alienação, história), não do apontamento de
soluções; tratava-se de uma proposta de consciência, não de ação; de expor a
questão, não de levantar a bandeira da resposta. Todas as peças de Brecht
terminam com uma espécie de “procure você mesmo a solução”, endereçada ao
expectador. Não é um teatro dos significados, mas sim dos significantes. A produção
artística é aqui entendida como o resultado da interação de seu autor com o mundo
que o cerca, aos moldes da teoria marxista que relaciona a base com a
superestrutura
21
.
A argumentação de Eco, ao retomar o pensamento de Marx, gira em torno da
observação do contexto sócio-cultural da elaboração do produto artístico em
contraposição ao mesmo contexto presente no momento da recepção. A condição
de abertura, sugerida pela ambigüidade, permite que interpretações, localizadas
social e historicamente, modifiquem a idéia do produto original. No capítulo seguinte
cuidaremos de esmiuçar essa argumentação a partir dos preceitos da Sociologia de
Marx, Durkheim e Weber.
Por hora o que nos interessa é perceber que a leitura da obra de teatro
deverá considerar inúmeras variáveis para que sejamos capazes de nos localizar
como os leitores-modelo esperados pelo autor. O texto é um objeto produzido a
partir de certos sinais comunicativos, organizados esteticamente pelo seu criador, na
intenção de que cada fruidor (re) compreenda a proposta que o gerou. Essa (re)
compreensão poderá se dar através de estímulos à sensibilidade ou à inteligência
do receptor, mas
21
Voltaremos a esse ponto em outro capítulo.
87
no ato de reação à teia dos estímulos e de compreensão de suas relações,
cada fruidor traz uma situação existencial concreta, uma sensibilidade
particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendências,
preconceitos pessoais, de modo que a compreensão da forma originária se
verifica segundo uma determinada perspectiva individual. [...] Cada fruição
é, assim, uma interpretação e uma execução, pois em cada fruição a obra
revive dentro de uma perspectiva original (ECO, 2005, p. 40).
Com isso, devemos estar atentos à variedade de sugestões que nos serão
apresentadas diante do bosque, sem perder de vista nossos propósitos de ocupar o
lugar mais próximo do leitor pensado por Nelson e Lorca.
A poética da obra “aberta” poderá despertar no intérprete os chamados “atos
de liberdade consciente”, que o conduzirá à percepção de inesgotáveis formas de
fruição (ECO, 2005, p. 41). Antes de ser um problema, tal potencialidade é um jogo
instigante, uma vez que desperta no expectador/ leitor a curiosidade de (re) elaborar
o mundo traduzido em arte.
Se o conhecimento do mundo é da alçada da ciência, a elaboração de seus
complementos fica a cargo da arte. O artista cria elementos adjacentes que se fixam
no real, mantendo com este uma relação autônoma, com leis próprias, mas não
totalmente alheias à realidade. Se a arte não pode possuir o estatuto de científico,
poderá servir à ciência como metáfora epistemológica.
Ao sugerir esse argumento, Eco acredita que em cada século a vida da
sociedade pode ser refletida na produção de seus artistas. Guardadas as devidas
proporções, o olhar poético que enxerga o mundo é de natureza similar àquele olhar
que vive no mundo. Dito de outra forma, é possível tecer redes de conhecimento e
recuperação da memória, através do produto artístico resultante de cada momento
histórico (ECO, 2005, p. 54-55).
Destarte, convidamos o leitor a considerar esses apontamentos iniciais como
um mapa de condução para os demais caminhos a serem adiante percorridos. No
próximo capítulo, apresentaremos a Sociologia de Marx, Durkheim e Weber, e
refletiremos sobre possíveis formas de interpretar a realidade através de seus
instrumentos conceituais, métodos e teorias. Considerando a informação de que o
texto literário é uma espécie de parasita do mundo real, mantendo com este uma
comunicação semântica considerável, propomos a utilização da perspectiva
sociológica como mais uma via de acesso à mensagem teatral. Esta nova via, como
88
já salientamos, não pretende ser a única, nem a mais acertada. Outras trajetórias
poderão ser cotejadas pelo leitor situado diante do bosque e interessado por
explorá-lo. Se assim desejar, contará com outras perspectivas epistemológicas que,
confrontadas com a nossa ou aliadas a ela, poderão sugerir novas leituras,
ampliando a dimensão do papel de atualização conferido ao leitor. Caberá a este
interlocutor privilegiado empreender suas escolhas, municiando suas intenções de
abordagem com as perspectivas mais adequadas aos seus anseios. Diante do vasto
bosque, pois, examinemos os novos mapas com o auxílio da sociologia.
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No capítulo anterior, quando apresentamos e refletimos sobre os conceitos
referentes à elaboração e recepção de um texto de teatro, sugerimos que a
variedade de caminhos interpretativos, sintetizada pelo conceito de obra aberta de
Eco, poderia oferecer ao leitor eficazes instrumentos de co-participação na
transformação da mensagem inicial, alterando ou complementando essa mensagem
quando de seu consumo, ou fruição.
Tamanha autonomia do receptor do texto, todavia, foi ponderada a partir do
conceito de autor-modelo, ao contrapormos a idéia, do mesmo Umberto Eco, de que
cabe a essa voz-autorizada um certo encaminhamento cognitivo pelos bosques
literários por ela desenhados. O leitor-empírico, ao abrir mão da liberdade total que
poderá instigá-lo ao mau uso do texto, teria a chance de se converter num leitor-
modelo de primeiro ou de segundo nível e, assim fazendo, criaria condições mais
aconselháveis de recepção da mensagem, participando de sua atualização de
maneira consciente e coerente com a proposta do criador original, julgando
reconhecer os endereçamentos propostos pelo autor-modelo.
Contudo, esses caminhos de fruição sinalizados pela teoria literária, pautados
na idéia de liberdade consciente e direcionamento consentido, podem encontrar na
perspectiva sociológica sérios empecilhos que, ao invés de liberdades, apontariam
para o indivíduo condicionamentos socializantes de naturezas diversas, a inseri-lo
num universo de interdições, normas e controles punitivos.
22
Na linguagem teatral e cinematográfica o jargão é utilizado para se referir a uma pré-estréia,
geralmente para amigos e poucos convidados.
23
Frase de Umberto Eco (2004, p. 93)
90
A vida social, objeto de estudo da Sociologia, quando abordada por Peter
Berger, encontrou na linguagem teatral uma interessante e reveladora metáfora, que
lhe confere sentido e possibilidades de sistematização e entendimento. O sociólogo
norte-americano, ao refletir sobre as diversas respostas tipificadas que os indivíduos
precisam dar diariamente para se enquadrarem em seus grupos de atuação, recorre
ao conceito de papel, atestando sua viabilidade como forma de expressar
adequadamente, para apreciação da sociedade, o grau de integração de
determinado sujeito a seus pares. Nessa direção, Berger concebe a sociedade como
o palco sobre o qual desempenharíamos nosso drama quotidiano, intentando
convencer nossos interlocutores dos méritos que dispomos para sermos aceitos e
considerados membros desse agrupamento privilegiado. Em suas palavras,
usando a linguagem do teatro, do qual se derivou o conceito de papel,
podemos dizer que a sociedade proporciona o script para todos os
personagens. Por conseguinte, tudo quanto os atores têm a fazer é assumir
os papéis que lhes foram distribuídos antes de levantar o pano. Desde que
desempenhem seus papéis como estabelecido no script, o drama social
pode ir adiante como planejado (BERGER,1986, p. 108-109).
Com essa linha de pensamento, podemos ter a falsa impressão de que o papel
social, descrito por Berger como uma necessidade de dar respostas tipificadas a
expectativas sociais tipificadas, seja apenas uma construção utilitarista com vistas à
aquisição de benefícios imediatos por sujeitos mal intencionados. Ao contrário dessa
conclusão apressada e superficial , o autor argumenta que
os papéis trazem em seu bojo tanto as ações como as emoções e atitudes
a elas relacionadas. O professor que representa uma cena de sabedoria
vem a se sentir mais sábio. O pregador passa a crer no que prega. O
soldado descobre pruridos marciais em seu peito ao vestir a farda. Em cada
um desses casos, embora a emoção ou atitude já existissem antes de
assumir o papel, este, inevitavelmente, reforça aquilo que já existia
(BERGER,1986, p. 109).
Dito de outra forma, o papel social é o meio de expressão utilizado pelos
indivíduos no caminho da interpretação da cena social. Utilizando a metáfora do
palco e do script, somos conduzidos a pensar que, para cada cena, para cada ato ou
91
jornada, será exigido do indivíduo um posicionamento coerente com a sua trajetória
dentro daquele grupo, algo bastante similar à idéia de pessoa moral apresentada por
Hegel (1964) quando da definição da categoria personagem. Tudo que o indivíduo
faz na execução de seu papel no teatro ou na vida real terá conseqüências mais
ou menos graves, dependendo do grau de aceitação ou rejeição do seu
comportamento pela coletividade. Para cada situação social haverá uma expectativa
de interpretação e uma via de controle. Essa correlação, isto é, a condição de
dependência que liga a ação individual a um contexto de coletividade que julga,
aprova ou rejeita, se dá porque “o processo de tornar-se homem efetua-se na
correlação com o ambiente” (BERGER, 1973, p. 71), da mesma forma como vimos
em relação à construção da personagem se dando a partir de redes de
relacionamentos. Em outras palavras, “desde o momento do nascimento, o
desenvolvimento orgânico do homem, e na verdade uma grande parte de seu ser
biológico enquanto tal, está submetido a uma contínua interferência socialmente
determinada” (BERGER,1973, p. 71). O que o homem é, e aqui já podemos ampliar
para o ser da personagem, depende do cenário ou da situação social em que ele se
encontra.
A situação social é vista por Berger como “uma realidade estabelecida por
acordo ad hoc entre aqueles que dela participam, ou, mais exatamente, entre
aqueles que a definem” (BERGER, 1986, p. 107). Trata-se do contexto, amplamente
discutido em Weber, onde as pessoas orientam suas ações umas para as outras.
Isso significa que, diante de uma situação social, o indivíduo/ personagem precisará
dispor de certos meios para responder adequadamente às expectativas vigentes,
sofrendo as conseqüências da sua adequação ou da sua transgressão. Sobre esse
indivíduo/ personagem estarão agindo forças coercitivas que possibilitam o seu
desejo de colaboração e aceitação frente aos ditames sociais, visto que uma cena
pautada exclusivamente na espontaneidade do ator (de teatro ou social) poderia
levar ao dissenso e ao conflito. A esse conjunto de forças, que torna viável a
cooperação, Berger define como controle social que, segundo ele,
refere-se aos vários meios usados por uma sociedade para “enquadrar”
seus membros recalcitrantes. Nenhuma sociedade pode existir sem controle
social. Até mesmo um pequeno grupo de pessoas que se encontrem
92
ocasionalmente terá de criar seus mecanismos de controle para que o
grupo não se desfaça em muito pouco tempo (BERGER,1973, p. 81).
Assim sendo, podemos pensar no controle social como uma voz onipresente
que condiciona os nossos passos ou, pelo menos, nos faz ponderar em nossas
ações, refletindo sobre caminhos distintos a serem seguidos. A forma mais primária
de controle social é, sem dúvida, a violência física, mas, como o uso constante da
violência seria impraticável em qualquer sociedade, cuidamos de inventar outros
meios de coerção. Os órgãos oficiais de controle social, por exemplo, como a
polícia, confiam na influência inibidora da ameaça da violência, sinalizando para a
sua disponibilidade, caso necessário. Em condições normais, a violência costuma
ser utilizada com parcimônia e como último recurso e “a mera ameaça dessa
violência final basta para o exercício do controle social” (BERGER,1973, p. 83).
Mais sutil, a ameaça econômica representa nesse campo de controle um
poderoso instrumento de persuasão, visto que inibe o indivíduo a partir daquilo que é
fundamentalmente indispensável pra sua vida: a subsistência. Somados a essa
forma restritiva, encontramos no ridículo, na difamação e no opróbrio outras vias
eficazes de punição ou ameaça, a alertar o indivíduo sobre as implicações do não
enquadramento. De acordo com Berger (1973, p. 85)
o ridículo e a difamação são instrumentos potentes de controle social em
grupos primários de todas as espécies. Muitas sociedades usam o ridículo
como um dos principais controles sobre a criança a criança obedece à
norma não por receio ou castigo, mas para não ser alvo de zombaria. (...) A
difamação, ou o mexerico, como é bem sabido, é de especial eficácia em
pequenas comunidades, onde a maior parte das pessoas conduz suas
vidas num alto grau de visibilidade e possibilidade de inspeção por parte de
seus vizinhos. Em tais comunidades, o disse-me-disse é um dos principais
canais de comunicação, essencial à manutenção da trama social. Tanto o
ridículo como a difamação podem ser manipulados deliberadamente por
qualquer pessoa inteligente que tenha acesso às suas linhas de
transmissão.
A atuação dos atores sociais/ personagens, então, dialogaria com todos esses
mecanismos de controle e, o produto final de sua ação, é a soma dos esforços
empreendidos para equilibrar a vontade pessoal com a correspondência aos apelos
93
do grupo. Mas, “a ordem social não faz parte da ‘natureza das coisas’ e não pode
ser derivada das ‘leis da natureza’. A ordem social existe unicamente como produto
da atividade humana” (BERGER, 1973, p. 76). Ao reconhecermos esse caráter de
construção, podemos desconstruir o que nos é apresentado como verdade absoluta
e até mesmo repensar formas de ação dentro de um jogo cujas regras não são
necessariamente invariáveis. Isto é, tanto na investigação da sociedade quanto na
interpretação da cena, caberá a nós atores sociais e leitores tomar decisões de
obediência ou de transgressão às normas. Seja qual for a postura adotada
precisamos estar cientes das regras, para que a recepção da mensagem nos
aproxime de um leitor-modelo, sedento por respostas que instigam e não por
atualizações que distorçam. Reconhecer os instrumentos de controle dispostos no
texto e na cena social pode ser o primeiro passo para eleger estratégias de
atuação que ultrapassem o imediatismo das personificações hierárquicas.
No texto de teatro, temos a exata medida dessa construção social das relações,
pautadas na coerção, quando verificamos o estabelecimento do conflito. Uma vez
apresentada à platéia, a personagem encontrará em sua trajetória cênica vontades
opostas ao seu caráter, precisando eleger estratégias de ação, comumente advindas
de peripécias, para vencer os nós e alcançar o resultado almejado. Essa busca pela
satisfação da vontade, contudo, dialoga com o reconhecimento dos empecilhos por
parte da personagem ou do público e, para um ou outro, a transgressão encenada
trará a consciência das conseqüências inevitáveis. É por meio dessa idéia de
escolhas associadas ao contexto, de adequação da ação aos mecanismos de
controle vigente, que temos definida, enquanto leitores/ público, a classificação entre
protagonista e antagonista, tendendo o primeiro a despertar empatia no público e, o
segundo, desejo de punição.
A atuação do indivíduo na sociedade, e da personagem no texto teatral, contará
sempre com essa proposta de endereçamento, seja no papel de estabelecido ou de
marginal, sendo o primeiro mais adequado, segundo o crivo da coletividade, do que
o segundo. Dependendo da ação do indivíduo, da motivação que impulsiona o ato e
das conseqüências geradas a partir dele, o grupo avaliará o seu desempenho e
definirá o seu status. O indivíduo se estabelecerá então segundo critérios de
reconhecimento e sua lugarização, positiva ou negativa, despertará nele certos
hábitos que passarão a caracterizar o seu movimento. Nessa direção, passaremos a
conceber a ação individual como produto de determinados sistemas de forças
94
socializadoras, sendo o comportamento usual o caminho para a aceitação, ao passo
que o seu oposto configura ameaça de desfiliação. Dito de outra forma, serão os
hábitos do indivíduo/ personagem que definirão, em última instância, sua leitura por
parte do público/ leitor. Segundo Berger (1973), “o hábito fornece a direção e a
especialização da atividade que faltam no equipamento biológico do homem,
aliviando assim o acúmulo de tensões resultantes dos impulsos não dirigidos”
(BERGER, 1973, p.78). Adaptados ao consenso, poderão os indivíduos oferecer as
respostas esperadas pelo grupo, numa espécie de adestramento dos hábitos que,
antes de se mostrar como subserviência, significa entendimento das regras e, por
conseguinte, aprendizagem do jogo. A vida em sociedade, e ampliamos nossa
perspectiva para a vida ficcional do texto de teatro, depende desse transitar de
personagens em códigos previamente estabelecidos. O sentido da ação social,
contudo, que impulsiona alguns indivíduos a transgredir e outros a obedecer é que
fará a diferença, apontando para a complexidade da formação dos atores sociais e
das personagens. Ponderando entre liberdades e interdições, demoremo-nos mais
um pouco nas formas de controle social.
Um sistema de controle social bastante eficaz na condução de posturas diz
respeito à moralidade, costumes e convenções. O grupo social tende a ver de
maneira negativa os indivíduos que não respeitam os códigos pautados na tradição,
estabelecendo para eles espaços de não-atuação, caracterizados pela exclusão.
Para Berger, “a imoralidade é punida com a perda do emprego, a excentricidade
pela perda das possibilidades de se conseguir outro, o anticonvencionalismo pela
rejeição dos grupos que respeitam aquilo que consideram boas maneiras”
(BERGER, 1986, p. 87).
Dentre esses ciclos vigilantes e punitivos devemos considerar a família como
dotada de grande capacidade de influência sobre as decisões do indivíduo, pois
seria erro grave supor que este [o círculo familiar] seja necessariamente o
mais débil de todos, apenas por não possuir os meios formais de coerção
de alguns dos outros sistemas de controle. É nesse círculo que se
encontram normalmente os laços sociais mais importantes de um indivíduo.
A desaprovação, a perda de prestígio, o ridículo, ou o desprezo nesse
grupo mais íntimo têm efeito psicológico muito mais sério que em outra
parte (BERGER,1973, p. 91).
95
A perda do respaldo familiar configura, na visão de Berger, o deslocamento
mais grave na trajetória da pessoa, gerando para o indivíduo questionamentos de
ordem psicológica de difícil superação. Talvez por esse motivo, os conflitos
familiares despertem tanto interesse no campo da dramaturgia teatral, uma vez que
se apresenta como uma via profícua de formação de conflitos. Uma personagem
localizada no limiar do não-reconhecimento familiar acaba por desempenhar o seu
papel a partir da idéia de desfiliação. Como pessoa moral ela necessita se localizar
socialmente, uma vez que a construção da sua identidade se dará, como vimos, por
atos de reconhecimento social. O grupo definirá o endereço da pessoa e a esse
espaço que define pertencimentos vamos chamar de lugarização ou
endereçamento. Para Berger (1986, p. 79),
estar localizado na sociedade significa estar no ponto de interseção de
forças sociais específicas. Geralmente quem ignora essas forças age com
risco. A pessoa age em sociedade dentro de sistemas cuidadosamente
definidos de poder e prestígio. E depois que aprende sua localização, passa
também a saber que não pode fazer muita coisa para mudar a situação.
Uma vez assimilado o seu lugar, esse espaço simbólico que traduz o indivíduo
para o mundo e para si mesmo, a cena social ganha um agente cônscio de suas
limitações, interado acerca das expectativas que sobre ele recaem, cuidadoso com o
movimento realizado para não despertar desafetos ou incompatibilidades em seus
interlocutores. Essa preocupação com o outro possui, na argumentação bergeriana,
um sentido de sobrevivência. Como não nos é permitido obter o estatuto de ser
humano isoladamente, sendo o homem, por natureza, um ser social, necessitamos
do respaldo da coletividade para construir e validar aquilo que chamamos identidade
que, por definição, é atribuída, sustentada e transformada socialmente”
(BERGER,1973, p.112). Em outras palavras, podemos afirmar que a identidade não
é um dado pré-existente, mas definido por atos de reconhecimento social. Nesse
tocante, devemos observar o conceito de grupo de referência.
Quando falamos de situação social observamos que para cada passagem da
vida, em cada cenário visitado, o sujeito/ personagem precisa apreender a
expectativa do coletivo para que, a partir disso, desenvolva suas formas de atuação.
Já sabemos que o não cumprimento dessas expectativas proporciona o acionar dos
mecanismos de controle, que podem levar o indivíduo a um endereçamento
96
desfavorável. Resta-nos perguntar sobre a procedência desses dispositivos, ou seja,
quem são as pessoas que sobre nós exercem controle?
Em nosso processo de socialização, ainda na infância, percebemos que não
estamos sozinhos no mundo. Reconhecemos no âmbito familiar a existência de
outras pessoas e, rapidamente, somos informados que elas guardam determinadas
expectativas a nosso respeito. Esse primeiro grupo de referência constitui os
primeiros modelos de que dispomos para começarmos a pensar em nossos papéis,
e é também a partir dele que a noção de punição nos é embutida. Berger define
esse primeiro grupo como “outro significativo”.
Adiante, quando experimentamos outros espaços, já conscientes de que a casa
não é o único lugar existente, somos apresentados a outros atores, localizados em
pontos distintos, proponentes de outros papéis e formas de interação. Não
demoramos a descobrir que esse outro, aparentemente sem ligação com a formação
da nossa identidade, também guarda expectativas a nosso respeito e, por
conseguinte, boa parte daquilo que precisamos para garantir a viabilidade das frases
começadas por “eu sou”, necessita da sua aprovação para se fazer verdade. Esses
outros que se multiplicam no decorrer de nossa atuação são classificados por Berger
como “outro generalizado”.
No capítulo anterior, quando falamos sobre as diretrizes para o estudo da
personagem, apontamos para o caráter de interdependência entre os sujeitos da
ficção. Agora podemos acrescentar ao argumento precedente a idéia de que a ação
individual desperta necessariamente uma reação coletiva, já que estamos
caminhando sempre numa trilha de busca por reconhecimento, seja do outro
significativo, seja do outro generalizado.
Com a percepção desses conceitos, proporcionados pela Sociologia, podemos
vislumbrar novas possibilidades de leitura do texto teatral, repensando a
personagem por meio de sua lugarização, identificando as formas de controle que
agem sobre ela, as situações sociais que vivencia, os grupos de referência para
quem executa suas ações e todo o processo de busca por reconhecimento que
culmina na veiculação/ crença de seu papel social.
Além disso, podemos repensar a leitura do enredo a partir da constatação dos
pontos de tensão da história, problematizar as forças sociais presentes na execução
das cenas e, sobretudo, indagar sobre o funcionamento daquela pequena
97
sociedade, provavelmente dirigida por instituições sociais inspiradas em nosso
mundo.
A nomeação de pequena sociedade para o conjunto de personagens de um
texto teatral e suas instituições está aqui sendo compreendida a partir da idéia de
que “tem-se uma sociedade quando um complexo de relações é suficientemente
complexo para ser analisado em si mesmo, entendido como uma entidade
autônoma, comparada com outros da mesma espécie” (Berger,1973, p. 36).
Partindo dessa definição, precisamos compreender o que são as instituições e
a real função desempenhada por elas de modo a delimitar o comportamento e
aspirações dos indivíduos.
Usualmente se define instituição como um complexo específico de ações
sociais. Sob esse rótulo consideramos a lei, as classes, a família, a religião, a escola
e demais agrupamentos sociais devidamente organizados sob a tutela de regras
definidas. Segundo Berger (1986, p. 101), a instituição é
um órgão regulador, que canaliza as ações humanas quase da mesma
forma como os instintos canalizam o comportamento animal. Em outras
palavras, as instituições proporcionam métodos pelos quais a conduta
humana é padronizada, obrigada a seguir por caminhos considerados
desejáveis pela sociedade. E o truque é executado ao se fazer com que
esses caminhos pareçam ao indivíduo como os únicos possíveis.
Como órgão regulador, entendemos as instituições como fundamentais para o
endereçamento do indivíduo, já que, em última instância, serão elas que tratarão de
veicular a presença constante dos mecanismos de controle, além de estruturar a
influência dos grupos de referência. No texto teatral, quando falamos de ou de
conflito, estamos muito provavelmente percebendo a incompatibilidade da
personagem e de sua vontade com alguma instituição vigente, seja ela representada
por uma construção moral que permeia as réplicas, ou personificada pela ação do
antagonista da história. Berger (1973) argumenta que a formação do hábito e a
rotinização da prática estão diretamente ligadas à institucionalização dos meios
considerados corretos e esse processo de legitimidade “ocorre sempre que há uma
tipificação recíproca de ações habituais por tipos de atores. Dito de maneira
diferente, qualquer uma dessas tipificações é uma instituição” (BERGER,1973, p.
79). Quando dizemos que determinada ação social encontra-se institucionalizada
98
estamos, na verdade, reconhecendo, que sobre esse modo de agir já atuam fortes
instrumentos de controle.
Uma vez definidos esses conceitos iniciais, podemos avançar na elaboração do
método da sociologização da cena, direcionando indagações sociológicas para o
texto teatral enquanto produto artístico que se inspira nas relações sociais, sendo,
em grande medida, tentativas de transposição do real ao poético. E nosso esforço é
válido, afinal
o sociólogo se ocupará de assuntos que outras pessoas possam considerar
demasiado sagrados ou demasiado repulsivos para uma investigação
desapaixonada. Encontrará satisfação na companhia de sacerdotes e de
prostitutas, dependendo não só de suas preferências pessoais, como
também das perguntas que ele estiver fazendo no momento. Ocupar-se-á
também de assuntos que outras pessoas possam julgar demasiado
enfadonhos. Estará interessado nas interações humanas que acompanham
a guerra ou as grandes descobertas intelectuais, mas também nas relações
entre empregados de um restaurante ou entre um grupo de meninas
brincando com suas bonecas. Sua atenção principal não se volta para o
significado final daquilo que os homens fazem, mas para a ação em si,
como exemplo da infinita riqueza do comportamento humano
(BERGER,1986, p. 29).
A seguir, caminharemos nos bosques das teorias marxistas, durkheimianas e
weberianas, propondo através delas passeios inferenciais que poderão, se
estivermos certos, indicar novos mapas de leitura. Atentos às bifurcações da
trajetória, sigamos em ordem cronológica e voltemos a algum ponto, caso se faça
necessário.
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Um dos pensamentos mais difundidos sob o rótulo de teoria sociológica é
aquele atribuído ao alemão Karl Marx (1818-1883). Seus esforços de interpretação
da vida social, sobretudo as análises que fez sobre o sistema capitalista, causaram
grande impacto na sociedade e, para alguns teóricos, a produção sociológica do
99
Ocidente tem sido direcionada constantemente a estabelecer diálogos com a vasta
obra rotulada de teoria marxista.
Herdeiro do ideário Iluminista, Marx argumentava que a Razão serviria não
somente para viabilizar o entendimento acerca da realidade, mas também seria
através dela que uma sociedade mais justa se veria consolidada.
Sua busca pessoal e científica intentava oferecer ao homem de seu tempo a
percepção dos instrumentos de dominação sob os quais estava subjugado,
acreditando que esse homem possuía, um ainda desconhecido, potencial de
perfectibilidade. Na visão de Berman (1986), o pensamento de Marx oferece, dentre
outras coisas, um entendimento amplo e avassalador sobre a modernidade, uma vez
que ele “se move na dimensão de seu tempo, tentando evocar o próprio curso de um
drama e um trauma históricos” (BERMAN, 1986, p.88).
Na complexidade de sua obra, Marx pretendeu difundir ideais de igualdade e de
consciência de classe, acreditando na possibilidade de converter o reino da
necessidade em reino da liberdade. Seu método dialético serviu de parâmetro para
muitos estudos sociológicos e será adiante pensado como mapa de leitura para um
texto teatral. Através dele poderemos fortalecer nossa idéia de movimento, de
transformação, de atualização e abertura desse tipo de literatura, pois
todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antiguidade e
veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações
se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo o que é
sólido se desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens
finalmente são levados a enfrentar (...) as verdadeiras condições de suas
vidas e suas relações com seus companheiros humanos (MARX apud
BERMAN,1986, p. 20)
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Proveniente do idealismo alemão, a moderna idéia de dialética deve boa parte
de sua fundamentação teórica a Hegel (1770-1831). Caracterizada como uma
reação aos pressupostos de imutabilidade do mundo e de suas substâncias,
defendidos pela tradição filosófica até então vigente, a dialética hegeliana propunha
o movimento, a negação do naturalismo seguro e estável que permeava o
imaginário ocidental. Hegel considerava a contradição e o conflito como a própria
100
substância da realidade, condenada a ser superada por meio de um contínuo
processo de negação, conservação e síntese. Todos os fenômenos trariam em seu
bojo um movimento intrínseco, um devir, uma tendência, uma inquietação. Os
fenômenos seriam prenhes de negação de si, se autotransformariam, produzindo a
si mesmos. Fadados ao movimento constante, estariam livres da perecibilidade, mas
não desapareceriam por completo. Apenas se converteriam em algo novo,
conservando em si as propriedades do que um dia foi. Em suas palavras,
a opinião não concebe a diversidade dos sistemas filosóficos como o
progressivo desenvolvimento da verdade, mas na diversidade vê apenas a
contradição. O botão desaparece no desabrochar da flor, e pode-se dizer
que é refutado pela flor. Igualmente, a flor se explica por meio do fruto como
um falso existir da planta, e o fruto surge em lugar da flor como verdade da
planta. Essas formas não apenas se distinguem, mas se repelem como
incompatíveis entre si. Mas a sua natureza fluida as torna, ao mesmo
tempo, momentos da unidade orgânica na qual não somente não entram
em conflito, mas uma existe tão necessariamente quanto a outra, e é essa
igual necessidade que unicamente constitui a vida do todo (HEGEL,1980, p.
6).
No tocante aos fenômenos sociais, historicamente produzidos, a ótica
dialética sinaliza para as contradições que constituem a vida social, levando à
negação de uma determinada ordem. Marx foi fortemente influenciado pela dialética
hegeliana, mas cuidou de diferenciar o seu método, apontando as divergências entre
suas visões acerca do movimento:
meu método dialético não apenas difere em sua base do hegeliano como,
além disso, é totalmente inverso deste. Para Hegel, o movimento do
pensamento, que ele encarna com o nome de Idéia, é o demiurgo da
realidade, que não é mais do que a forma fenomênica da Idéia. Para mim,
ao contrário, o movimento do pensamento é o reflexo do movimento real,
transportado e transposto no cérebro do homem. (...) a compreensão
positiva das coisas existentes inclui, ao mesmo tempo, o conhecimento de
sua negação fatal, de sua destruição necessária, porque ao captar o próprio
movimento, do qual todas as formas acabadas são apenas uma
configuração transitória, nada pode detê-la, porque em essência é crítica e
revolucionária (MARX,1973
A
, p. 31-32).
101
Portanto, para Marx, não basta reconhecer que as coisas do mundo são
guiadas impreterivelmente por esse movimento dialético. Os fenômenos sociais
devem ser submetidos à crítica, para que possamos apreender toda a sua
capacidade de revelação de potencialidades.
Em suma, podemos pensar na dialética como a disposição inesgotável para o
movimento, disposição essa que, garante aos fenômenos sociais, uma constante
capacidade de mudança, até o ponto em que a ordem verdadeira das coisas se
estabelece no caso marxista, a sociedade comunista. Dito de outra forma, toda
realidade estabelecida é uma tese que traz em si a sua própria negação, sua
unidade de contrários, ou seja, sua antítese. Desse contato inevitável entre tese e
antítese uma nova realidade será formada a síntese, que, por sua vez, se
apresentará como realidade estabelecida, trazendo também em si sua unidade de
contrários, a antítese, através da qual nascerá uma nova síntese. No incessante
devir, estaria toda realidade apta à Revolução.
Voltando a nossa metáfora da cena teatral como pequena sociedade, a contar
com a influência de instituições sociais que disponibilizam formas de controle frente
à atuação das personagens, podemos pensar na seguinte apropriação do método
dialético com vista à leitura:
MODELO DIALÉTICO EM MARX
102
1) O início do espetáculo, geralmente destinado a apresentar as personagens
em seu estado natural, sem grandes conflitos estabelecidos, pode ser
pensado como a nossa tese;
2) A partir do momento em que a personagem protagonista perceber, ou der
sinais, de uma complicação/ empecilho/ para a satisfação de sua
vontade, estaremos nos aproximando da antítese. Nessa ocasião, é
fundamental que percebamos o jogo de forças ao qual a personagem está
submetida, o mecanismo de controle social que estão agindo sobre ela e a
forma como ela se porta diante do seu grupo de referência. Essas
observações poderão nos dar a dimensão exata da natureza da antítese e,
com alguma segurança, conseguiremos prever os efeitos de sua atuação
como negação da tese.
3) O encaminhamento da história rumo ao desfecho nos apresentará a síntese,
resultante do confronto da tese o mundo cênico em seu estágio natural
com a antítese sua negação em forma de conflito de vontades divergentes
(ou ). Contudo, se para Marx o movimento dialético encontraria
estabilidade com a implantação da sociedade comunista, fruto da Revolução
do Proletariado, no caso do texto teatral as possibilidades de estabilidade
vão variar de acordo com a recepção do leitor que, como vimos, desfruta de
certas liberdades de interpretação. Em outras palavras, o novo definitivo do
texto não é o novo definitivo de Marx.
Seguindo esses passos, poderemos empreender uma decoupage do texto
teatral, de forma a estruturar nossa análise com base em divisões seguras de início,
meio e fim ainda que as unidades de tempo estejam deslocadas dessa lógica
seqüencial.
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Ainda que confira extrema importância à percepção das leis de mudança que
regem a vida social, Marx acredita que o estudo da sociedade deve considerar, em
primeira instância, os fatos concretos, pois o verdadeiro ponto de partida “são os
indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de existência, quer se
103
trate daquelas que encontrou já elaboradas quando do seu aparecimento, quer das
que ele próprio criou” (MARX; ENGELS, 1976, p. 18).
Marx defende a idéia de que a base das relações sociais encontra-se
sustentada nas relações materiais que os homens estabelecem entre si, na forma
como constroem a sua vida, modificando a natureza para dela obterem os meios
para sua subsistência. Se quisermos, pois, compreender o homem teremos de
investigá-lo em seu campo mais pleno de atuação: o trabalho. Pois
o ser propriamente humano não preexistiu a essa atividade e não poderia
ser reconhecido antes de passar a existir como tal (e de se expressar nela).
O homem é o sujeito ativo e criativo que existe se modificando, se
superando, e só podemos nos aproximar dele através do que ele faz. O
trabalho é a forma inicial e persistente da capacidade que os homens
têm de agirem como homens (KONDER, 2002, p. 14).
Somente através do trabalho é que o homem reinventa a si mesmo, se
converte em sujeito da história, ao mesmo tempo em que se revela. Nas palavras de
Marx e Engels (1976, p. 19):
a forma como os indivíduos manifestam sua vida reflete muito exatamente
aquilo que eles são. O que são coincide, portanto, com a sua produção, isto
é, tanto com aquilo que produzem como com a forma como produzem.
Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de
sua produção.
A essa forma de enxergar a realidade, concebendo a ação do homem como
produto do diálogo existente entre o indivíduo e os meios de produção que regem a
história de seu tempo, convencionou-se chamar de materialismo histórico. Nessas
condições, complementando a idéia de dialética, Marx concebe a realidade social
como potencialmente efêmera, uma vez que
as formas econômicas sob as quais os homens produzem, consomem e
trocam são transitórias e históricas. Ao adquirir novas forças produtivas, os
homens mudam seu modo de produção, e com o modo de produção
mudam as relações econômicas, que não eram mais que as relações
necessárias daquele modo concreto de produção (MARX; ENGELS,1975
C
,
p. 472).
104
O materialismo histórico de Marx permite que enxerguemos a realidade social
e também a cena teatral como potencialmente desnaturalizável. Nenhuma relação
é natural, visto que todas estão cumprindo o seu papel no jogo das relações de
poder. Ao serem mudadas as regras do jogo, terão os jogadores, novas regras a
seguir. E isso é particularmente notável no campo do texto teatral.
Provavelmente, o leitor de Nelson Rodrigues dos anos quarenta, não aceitava
totalmente de bom grado o teor de sua poética teatral. Mas hodiernamente, situado
em um novo mundo, onde o sistema econômico possibilitou mudanças também no
campo das idéias, a recepção da mensagem rodrigueana pode ter se alterado,
tornando-se mais permissiva a certa temática incompreendida no passado. Isso
explicaria a alardeada unanimidade do público contemporâneo que consome sua
obra, seja como expectador ou como profissional das artes cênicas.
A qualidade de transitoriedade, de desconstrução das narrativas
universalizantes, sugere em Marx a opção pela inquietude. Ao encararmos o
indivíduo no campo do trabalho e aqui estamos mais uma vez estendendo o
raciocínio ao indivíduo ficcional ou personagem podemos obter dele muito mais
informações do que a simples constatação de sua identidade mais visível. Ainda que
a categoria trabalho nem sempre seja informada nos textos para teatro, podemos
apreender, por meio das didascálias de cenário e figurino, por exemplo, a
representação física da personagem, bem como do meio em que ela vive. A
percepção desses aspectos externos será de grande valia para a compreensão do
lugar que ela ocupa, ou seja, nos dará pistas importantes sobre o seu
endereçamento, inclusive profissional ou de classe.
O materialismo histórico explicará não apenas as formas de recepção do texto
e sua variação ao longo do tempo, como também oferecerá uma visão mais ampla
da personagem e de seu campo de atuação, explicitando a natureza da relação que
ela mantém com o mundo, o que será de grande valia para a definição do seu ethos.
Afinal, para existir, o indivíduo/ personagem precisa consumir, pois
um primeiro pressuposto de toda existência humana e, portanto, de toda
história, a saber, é que os homens devem estar em condições de poder
viver a fim de fazer a história. Mas, para viver, é necessário, antes de mais,
beber, comer, ter um teto onde se abrigar, vestir-se etc. O primeiro fato
histórico é, pois, a produção dos meios que permitem satisfazer essas
necessidades, a produção da própria vida material; trata-se de um fato
105
histórico; de uma condição fundamental de toda a história, que é
necessário, tanto hoje como há milhares de anos, executar, da a dia, hora a
hora, a fim de manter os homens vivos (MARX; ENGELS, 1976, p. 33).
Dependentes dessa base material, os indivíduos não são vistos em Marx como
dotados de grandes liberdades, já que estão localizados na sociedade sob a égide
das hierarquias. No texto teatral essa disposição desigual dos agentes pode ser
percebida quando da definição das relações de poder. Diante de uma trama narrada,
podemos perguntar às personagens: 1) Por meio de que você vive? 2) De onde vem
o seu sustento? 3) A quem você obedece? 4) Você exerce pode sobre alguém? 5)
Qual a natureza desse poder, caso a resposta da questão anterior tenha sido
positiva?
Mesmo que encontremos uma personagem que não trabalhe, que tire o seu
sustento de uma herança recebida, que não se submeta à ordem de ninguém, que
nem exerça poder sobre outrem, ainda assim, essa personagem encontra-se ligada
ao mundo (seja qual mundo for). E essa condição de pertencimento a uma
coletividade implica necessariamente o estabelecimento de algumas relações. Se
em seu discurso estiver valorizada a dinâmica da subjetividade, em algum momento
a vida material entrará em confronto com esse aspecto de abstração. Afinal, teatro é
ação e ação precisa de confronto, de unidades de contrário para se fazer
perceptível.
A apreensão dessa idéia de materialismo acaba por construir diante do
indivíduo uma parede de isolamento que, ao invés de ocultar torna-o ainda mais
visível aos olhos da sociedade. O pertencimento a certas condições materiais de
existência exige dele uma disciplina constante e o controle sobre suas ações
funciona de maneira quase panóptica. Isso significa que
os homens não são livres árbitros de suas forças produtivas base de toda
sua história pois toda força produtiva é uma força adquirida, produto de
uma atividade anterior. Portanto, as forças produtivas são o resultado da
energia prática dos homens, mas essa mesma energia está determinada
pelas condições em que os homens se encontram colocados, pelas forças
produtivas já adquiridas, pela forma social anterior a eles, que eles não
criaram e que é produto da geração anterior. O simples fato de que cada
geração posterior encontre forças produtivas adquiridas pela geração
precedente, que lhe servem de matéria-prima para a nova produção, cria na
106
história dos homens uma conexão, cria uma história da humanidade, que é
tanto mais a história da humanidade porque as forças produtivas dos
homens e, por conseguinte, suas relações sociais adquiriram maior
desenvolvimento (MARX; ENGELS,1975
C
, p. 470-471).
Nesse ponto, precisamos esclarecer os conceitos de forças produtivas e
relações sociais de produção, tão citados anteriormente. O primeiro refere-se aos
instrumentos e habilidades que possibilitam o controle das condições naturais, e seu
desenvolvimento é cumulativo. O segundo implica diferentes formas de organização
da produção e distribuição, de posse e propriedade dos meios de produção, bem
como em suas garantias legais, o que gera substrato para a estruturação das
classes sociais.
Ainda que exerça forte influência sobre a ação dos homens, os conceitos
supracitados têm em sua gênese o próprio homem, sendo por ele construídos.
Quando mudam os modos de produção, mudará também a realidade que serve de
cenário ao homem:
o moinho movido a braço nos dá a sociedade dos senhores feudais; o
moinho movido a vapor, a sociedade dos capitalistas industriais. Os
homens, ao estabelecerem as relações socais vinculadas ao
desenvolvimento e sua produção material, criam também os princípios, as
idéias e as categorias conforme às suas relações sociais. Portanto, essas
idéias, essas categorias, são tão pouco eternas quanto as relações às quais
servem de expressão (MARX,1974
B
, p. 91).
No decorrer de um texto de teatro, podemos refletir: 1) De que forma as
personagens lidam com as condições materiais de existência? 2) Quem trabalha? 3)
Em que trabalha? 4) O trabalho ou o sustento material da vida gera conflitos na
trama? 5) Se sim, quais? Qual o grau de importância desses conflitos para os fatos
apresentados? 6) A mudança de sorte, ou peripécia, teve alguma relação com a
transformação das bases materiais? Todos os personagens chegam ao final da peça
localizadas nas mesmas situações materiais do início do espetáculo?
Empreendendo essas indagações, precisaremos aprofundar a visão marxista
de base e superestrutura.
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Quando consideramos o homem, tal como pintado nos escritos de Karl Marx,
agente de transformações, mas também platéia de eventos que ele não poderá
alterar, mutável às circunstâncias e, ao mesmo tempo, resistente por estar preso às
convenções de seu tempo, de sua história, incorremos no risco de perceber, com
enfática exclusividade, a influência das relações sociais de produção sobre a
percepção que este homem tem de si mesmo e do mundo.
De certo modo, é característica dos escritos marxistas a valorização desse
aspecto material para a localização do homem, mas essa informação está longe de
excluir quaisquer outras possibilidades de mapeamento. Para Marx, ainda que a
base para a construção das interações humanas sejam as forças produtivas e as
relações materiais de produção, existiria uma outra via de reconhecimento do mundo
que conduz ao plano das idéias.
No primeiro caso, definido como base ou infra-estrutura, se edificariam as
demais instituições sociais. Na outra via citada a superestrutura repousariam as
percepções do homem sobre as ideologias políticas, as concepções religiosas, os
códigos morais e estéticos, os sistemas legais, as formas de educação, ou seja, sua
decodificação imaterial de realidade que, define, entre outras coisas, aquilo que ele
é e a forma como convive com aquilo que ele tem.
O homem marxista, ou melhor, o modelo de homem pensado por Marx, age
dentro do plano material, constrói a sua trajetória a partir do que está disposto a sua
volta, influenciado que é pela forma de organização da produção. Mas, esse mesmo
homem influenciado, datado historicamente, possui a qualidade da reinvenção, da
inquietude, da mudança e, por isso mesmo, poderá atualizar o seu papel no mundo,
dando vazão a procedimentos criativos, desde que encontradas as condições
necessárias para a sua livre atuação. Em outras palavras,
são os homens que produzem as suas representações, as suas idéias, etc.,
mas os homens reais, atuantes, e tais como foram condicionados por um
determinado desenvolvimento das suas forças produtivas e do modo de
relações que lhes corresponde, incluindo até as formas mais amplas que
estas possam tomar. A consciência nunca pode Ser mais que o Ser
consciente, e o Ser dos homens é o seu processo de vida real... Assim, a
108
moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, tal como as formas
de consciência que lhes correspondem, perdem imediatamente toda
aparência de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; serão,
antes, os homens que, desenvolvendo a sua produção material e as suas
relações materiais, transformam, com esta realidade que lhes é própria, o
seu pensamento e os produtos deste pensamento. Não é a consciência que
determina a vida, mas sim a vida que determina a consciência (MARX;
ENGELS, 1976, p. 25-26).
Com isso, podemos dizer que na origem de toda instituição social está o
homem, sujeito transformador, embora submetido às formas de produção
específicas que lhe impõem interdições. O mundo que temos é o mundo criado
pelos homens. Mas homens que criam idéias, não somente bens materiais. A infra-
estrutura viabiliza a superestrutura, não a nega. Uma e outra são produtos da
elaboração humana e, juntas, constituem a vida.
Da mesma forma como apontamos anteriormente a relevância de se pensar a
personagem agindo em seu aspecto mais material, considerando o método do
materialismo histórico de Marx, neste ponto é imperativo ressaltar que será a partir
dessa vivência prática que poderá a personagem explicitar a sua parte subjetiva. A
forma como ela produz no mundo está diretamente ligada à forma como ela concebe
este mundo. É por meio dessa localização na hierarquia da produção que a
personagem/ indivíduo irá elaborar as demais categorias do pensamento, revelando-
se um complexo de informações, inscritas naquilo que ela tem de mais íntimo e, ao
mesmo tempo, mais coletivo.
Diante de um texto, de suas didascálias implícitas ou explícitas, de seus
mapas condutores, podemos, enquanto leitores-modelo, indagar sobre a divisão
cênica de infra-estrutura e superestrutura. Como o autor concebe o plano material
dentro do qual as personagens atuam? Como ele define as suas formas de
subsistência? Quem comanda a produção? Os meios para a sobrevivência das
personagens são abundantes ou escassos? Ao refletirmos sobre essa base
material da peça, ou seja, sobre sua infra-estrutura, poderemos imediatamente
submeter as nossas possíveis respostas a uma tentativa de associação de idéias: a
forma como as personagens estão organizadas, em seu modo de produção na peça,
estabelece entre elas alguma situação de conflito? Há concordância entre os meios
utilizados para a sobrevivência e a idéia acerca de como elas deveriam viver? O que
109
garante a aceitação dessas personagens frente aos limites de uma interdição
econômica? Dito de outra forma: que idéias são elaboradas para tornar possível, e
justificada, a vida material dos habitantes da ficção? Como eles concebem a sua
superestrutura? Que ideologias os regem? No que eles acreditam? Qual o discurso
de quem os comanda? Como justifica o controle exercido? De que maneira o poder
está ali estruturado?
As indagações precedentes são pertinentes porque
as relações jurídicas assim como as formas de Estado não podem ser
compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito
humano, inserindo-se, pelo contrário, nas condições materiais de existência
(...). Na produção social de sua existência, os homens estabelecem
relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade,
relações de produção que correspondem a um determinado grau de
desenvolvimento das forças produtivas materiais. (...) O modo de produção
da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e
intelectual em geral. (...) A transformação da base econômica altera, mais
ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura (MARX,1973
A
, p. 28).
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Se as condições materiais de existência definem a realidade do homem e a
sua forma de ver o mundo, não nos será estranha a informação de que os homens
ocupam nesse mundo posições diferenciadas, pautadas em critérios de
desigualdade. O acesso desigual aos meios de produção, que estabelece em Marx a
clássica divisão dos atores sociais em duas classes antagônicas burguesia e
proletariado constitui a base de todo movimento histórico em sua percepção, pois
é pelo embate de interesses dessas duas classes sociais que o motor da história se
movimenta.
A organização social analisada por Marx se pauta no entendimento de que
uns possuem os meios de produção, ou seja, os instrumentos necessários para
garantir a vida, ao passo que outros precisam vender a sua força de trabalho para
utilizarem esses instrumentos. Dessa forma, enquanto alguns homens, a maioria,
110
modificam a natureza para garantir a sustentabilidade da existência, outros usufruem
esse trabalho, sem produzir, valendo-se de uma lugarização privilegiada.
Embora seja muito sintomático da sociedade capitalista esse tipo de
dinâmica, a dicotomia explorador x explorado pode ser percebida em qualquer
sociedade, em qualquer tempo histórico. Em qualquer tempo histórico, aqueles que
detém o poder se valem da não consciência daqueles que obedecem, já que esses
últimos estão presos a uma desigual divisão social do trabalho:
os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras
coisas, uma consciência, e é em conseqüência disso que pensam; na
medida em que dominam enquanto classe e determinam uma época
histórica em toda sua extensão, é lógico que esses indivíduos dominem em
todos os sentidos, que tenham, entre outras, uma posição dominante como
seres pensantes, como produtores de idéias, que regulamentem a produção
e a distribuição dos pensamentos de sua época; as suas idéias são,
portanto, as idéias dominantes de sua época (MARX; ENGELS, 1976, p.
56).
É enganoso, contudo, suspeitar que as classes, ao longo de sua atuação
discrepante, tenham a sua existência pautada na conformidade daqueles que sofrem
a dominação. As classes sociais sempre se enfrentaram e “mantiveram uma luta
constante, velada umas vezes e noutras franca e aberta; luta que terminou sempre
com a transformação revolucionária de toda a sociedade ou pelo colapso das
classes em luta” (MARX; ENGELS, 1975
A
, p. 22).
A título de definição, Marx considera as classes sociais como grupo de
pessoas que têm status social similar segundo critérios diversos, especialmente o
econômico. A diferença entre a classe dominante e a classe dominada, reside na
percepção que uma e outra possuem acerca da sua condição. Enquanto a primeira
possui uma consciência de classe para si, a segunda se reconhece apenas como
classe em si. Os dominantes sabem que precisam se reunir ideológica e
politicamente para conquistarem os seus interesses, ao passo que os dominados
apenas têm o conhecimento de que compartilham o mesmo mal, de que sofrem as
mesmas mazelas, sendo o futuro muito limitado para todos.
Devemos, todavia, recordar que a idéia de dialética em Marx atesta a
potencialidade do movimento nos eventos sociais, sendo, por isso, permitido a todos
111
os grupos humanos experimentarem a mudança. Ou seja, as classes sociais que se
vêem apenas como classe em si, poderão algum dia, devidamente esclarecidos,
passarem à condição de classe para si. Nessa transição, finalmente, estaria sendo
construído o necessário e inevitável processo de Revolução.
Pensando na luta de classes, e na constituição de seus meios, podemos
caminhar por entre os bosques do texto teatral, a procurar, com um novo mapa, as
pistas para o estabelecimento dos conflitos dramáticos.
Considerando que a estruturação de uma dramaturgia teatral se vale,
sobretudo, da oposição de interesses entre as personagens, do confronto entre
vontades divergentes, para se fazer movimentar a máquina do conflito, temos que
uma divisão das personagens em classes sociais poderá nos apresentar um
diagnóstico mais completo de suas motivações.
Quando empreendemos esforços para identificar a lugarização de classe,
podemos compreender porque algumas personagens se ligam a outras por laços de
empatia, ao mesmo tempo em que estabelecem, em outra direção, relações de
confronto. Também nos será mais viável apontar as causas que permitem à
subordinação de uns a outros, entendendo-lhes os motivos, os impedimentos para a
superação e as possibilidades de virar o jogo.
Portanto, façamos algumas perguntas ao texto que pretendemos analisar: 1)
Que similitudes existem entre as personagens que estabelecem entre si laços de
empatia e cooperação? 2) Quais as diferenças entre aqueles personagens que
estão localizados em lados opostos? 2) Que justificativas ambos os lados utilizam
para explicar o confronto entre eles? 3) Do começo ao fim do texto há uma alteração
entre a divisão inicial de dominantes e dominados? 4) De que forma são descritas as
características dos integrantes das diferentes classes no texto? 5) Como elas
convivem com essas diferenças? 6) Podemos identificar as noções de classe em si e
de classe para si através do discurso das personagens?
Com essa lista de indagações tornar-se-á necessário explorar mais alguns
conceitos marxistas.
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A divisão estabelecida acima entre classe em si e classe para si se sustenta,
dentre outras coisas, na informação de que a primeira não se reconhece no produto
que criou, escapando de seu arbítrio e de seu entendimento a grandiosidade de sua
atuação sobre a natureza. Ela não vê em seu trabalho nenhuma outra finalidade que
não seja garantir a própria sobrevivência, caminhando no sentido oposto à
humanização das relações sociais.
Uma vez não se reconhecendo naquilo que produz, e já sabemos que aquilo
que o homem produz retrata as demais áreas em que ele atua, a consciência de
classe apresenta-se bastante comprometida. Dessa forma, o homem insere a sua
existência no reino da necessidade, se afastando cada vez mais daquilo que Marx
sugere como o reino da liberdade, produto da Revolução do Proletariado. Isso
acontece porque a atividade reconhecida pelo homem como trabalho
não é para ele mais do que um meio para poder existir. Ele trabalha para
viver. O operário nem sequer considera o trabalho como parte de sua vida;
para ele é, antes, um sacrifício de sua vida. É uma mercadoria por ele
transferida a um terceiro. Por isso o produto de sua atividade não é
tampouco o objetivo dessa atividade. O que o trabalhador produz para si
mesmo não é a seda que tece, nem o ouro que extrai da mina, nem o
palácio que constrói. O que produz para si mesmo é o salário, e a seda, o
ouro e o palácio reduzem-se para ele a uma determinada quantidade de
meios de vida, talvez um casaco de algodão, umas moedas de cobre e
quarto num porão (MARX,1975
B
, p. 75).
Esse não reconhecimento do que há de seu na força empregada no decurso
do trabalho é o que Marx chama de alienação. Trata-se do autômato exercício de
reprodução, da repetição que visa fins imediatos, não importando a complexidade
criativa dos meios empregados.
Em condições de alienação temos, no trabalho bem sucedido, a emergência
de uma riqueza objetiva, que irá ocorrer em detrimento da humanização do
trabalhador. Por isso, o trabalho para o homem “não é a satisfação de uma
necessidade senão, somente, um meio para satisfazer as necessidades fora do
trabalho” (MARX,1974
A
, p. 109). Numa síntese, Marx define que:
113
as doze horas de trabalho não têm para ele [o trabalhador] sentido algum
enquanto tecelagem, fiação, perfuração, etc., mas somente como meio para
ganhar dinheiro que lhe permite sentar-se à mesa, ao banco no bar e deitar-
se na cama. Se o bicho-da-seda fiasse para ganhar seu sustento como
lagarta, seria o autêntico trabalhador assalariado (MARX,1975
B
, p. 75).
Como conseqüência direta da alienação, temos a emergência da ideologia,
que funciona como mecanismo de convencimento que, gradativamente, vai
afastando do homem a inquietação pela contestação daquilo que está socialmente
determinado, compondo o quadro das desigualdades. Na observação de Konder
(2002, p. 16) sobre esse conceito marxista,
numa sociedade marcada pela divisão social do trabalho, pela luta de
classes, pela generalização da produção de mercadorias, pela
hipercompetitividade, a ideologia, com suas distorções, se impõe à
construção do conhecimento. A possibilidade de atenuar seus efeitos e
fazê-la recuar depende da participação consciente do sujeito no movimento
histórico que se realize em direção à superação prática da alienação.
O indivíduo sob o prisma marxista encontra-se aprisionado no sistema
capitalista e, como tal, não consegue vislumbrar uma existência alternativa a essa
que se tem. Sua chance de superação virá somente quando da tomada de
consciência de classe, o que estaria ligado necessariamente às melhorias das
condições de trabalho. No texto de teatro, como já salientamos, esse dado prático
da vida da personagem nem sempre é fornecido, o que poderá dificultar o cotejo de
alguns importantes conceitos marxistas no método da sociologização da cena.
Contudo, se observamos com atenção as didascálias, as réplicas e demais
informações dispostas na peça, poderemos nos aproximar daquilo que estamos
chamando de condições materiais de existência da vida da personagem, ou seja, a
localização material do indivíduo ficcional no cenário que lhe serve de habitat.
Indagaremos sobre a estrutura prática que garante a sua existência e,
provavelmente, encontraremos modelos muito próximos dos que codificamos em
nosso mundo social.
A personagem estará sempre em contraposição a alguém ou a alguma coisa
e, muitas vezes, precisa se submeter a uma vida de interdições. Aquilo que faz se
114
contrapõe ao que gostaria de fazer se tivesse as condições necessárias para isso.
Por isso, estamos aqui considerando a ação humana que produz alguma coisa
inclusive imaterial como trabalho. Se a personagem se esmera em conquistar a
afeição de alguém visando lucros, estará realizando um tipo de trabalho; se ela se
submete a uma situação ou pessoa para garantir determinada localização, também
estará atuando no campo do trabalho, uma vez que precisa modificar as coisas em
seu estado “natural”, enquanto matéria-prima, para possibilitar a sobrevivência de
seu papel social naquela situação específica.
Sabemos que o conceito de trabalho em Marx implica mudanças na matéria-
prima encontrada na natureza para a satisfação de necessidades, mas propomos
ampliar a abrangência desse conceito, empreendendo uma leitura do trabalho no
nível da superestrutura. Sendo assim, entendemos que toda ação empreendida pelo
homem com vistas a modificar uma realidade em benefício próprio ou de terceiros,
configura um tipo de trabalho.
Como no texto teatral as personagens são concebidas a partir do
estabelecimento de vontades divergentes entre elas e o (s) outro (s), é possível
imaginá-las produzindo um trabalho de persuasão, convencimento, sujeição ou
enfrentamento de empecilhos (nós). Pelo que vimos, muitas vezes, a personagem
executa uma ação sem se reconhecer verdadeiramente nela, logo, executa um
trabalho sem nele perceber a inscrição de sua subjetividade, de sua vontade íntima,
cumprindo simplesmente a função que lhe compete, ditada por determinada
ideologia, a fim de adquirir algo mais imediato, como a manutenção do lugar, devido
a critérios de acomodação. Esse seria um possível indício de alienação, pois “o reino
da liberdade só começa quando se deixa de trabalhar por necessidade e condições
impostas desde o exterior; por natureza, então, encontra-se depois da esfera da
produção material propriamente dita” (MARX,1973
B
, p. 802). No texto teatral, o reino
da liberdade será conquistado quando a personagem não mais agir pela obrigação
de atingir determinados objetivos, nobres ou egoístas, passando a efetuar suas
escolhas por critérios ligados à subjetividade, à experimentação de sentimentos sem
o compromisso de um produto final pautado na reciprocidade de afetos dispensados.
Em outros termos, a consciência de classe ou o ultrapassar da condição alienada
está condicionado ao ser o que se é e não ao que se é necessário ser.
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A contribuição marxista para o entendimento da sociedade, a emergência da
idéia de homem como um sujeito ativo no percurso do seu caminho, embora
condicionado, pode oferecer ao método da sociologização da cena um profícuo
mapa de encaminhamento.
Por meio do conceito de dialética, passamos a compreender a cena teatral
como potencialmente apta ao movimento, sendo de sua natureza a transposição de
limites, de situações sociais, a alternância entre estágios sucessivos de realidades
estabelecidas, sua negação e posterior síntese. Dialeticamente podemos decoupar o
espetáculo em três partes seqüenciais e, analisando os pormenores dessas partes,
teremos uma visão mais completa do desenho cênico proposto pelo autor-modelo.
O materialismo histórico, por sua vez, permitirá que enxerguemos a
personagem em suas condições materiais de existência, sinalizando para uma
concepção de mundo a dialogar primordialmente com a base material da vida, ou
seja, com as relações sociais de produção. Essas relações, responsáveis pela
formação da chamada infra-estrutura, possibilitarão o estabelecimento de todas as
demais instituições sociais, chegando a interferir na forma como o indivíduo concebe
a vida em seu plano mais subjetivo a superestrutura.
Agregadas por critérios de empatia e interesse enquanto possuidoras de certo
ethos comum, as personagens podem ser pensadas em termos de classes sociais,
tendo através desta localização a chance de serem percebidas sob o crivo da
ideologia e da alienação. O conceito de luta de classes auxiliará o estudo das
situações de conflito, permitindo ao leitor do texto de teatro desvendar as
motivações de cada um, bem como compreender o jogo literário proposto pelo
dramaturgo ao contrapor certos grupos de personagens a outros, criando hierarquias
entre eles e desejos de superação. Concebendo a alienação como o não
reconhecimento do produto do trabalho realizado, sendo este trabalho entendido no
plano da superestrutura, tornar-se-á viável conceber a personagem num campo de
ação menos imediato e mais comprometido com ideologias e lugarizações. No
capítulo III voltaremos a essas vias de encaminhamento marxista dentro do bosque
da cena teatral.
A seguir, mapearemos mais uma via de sociologização da cena inspirados
pela teoria de Émile Durkheim.
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Durkheim (1858-1917) é reconhecidamente um dos pensadores que mais
contribuiu para a formação do pensamento sociológico como ciência empírica e
disciplina acadêmica.
No bojo de sua produção podemos identificar a influência grandiosa das duas
Revoluções que estiveram em curso no Ocidente ao longo do século XVIII a
Industrial e a Francesa sendo a sua Sociologia uma tentativa de fornecer
respostas às questões colocadas por esses divisores de água.
Durkheim tem como pano de fundo de sua teoria, uma sociedade em vias de
transformação, ainda não muito adaptada aos novos tempos, tentando se
reorganizar após os vários processos de ruptura. O seu mundo vive a intersecção
entre tradição e modernidade; o homem de seu tempo presenciou a morte da idéia
de Deus e viu emergir uma inédita racionalidade, tendo o pensamento Iluminista
como fonte de interpretação de uma nova história.
A teoria durkheimiana é um esforço de compreensão, mas também uma
proposta de intervenção nos rumos da nova sociedade, pois pretende identificar os
problemas vividos pelos grupos humanos no novo contexto, apontando saídas de
caráter disciplinador.
Por esse compromisso com a reestruturação da ordem, amplamente inspirado
pelas idéias de Saint-Simont (1760-1825) e Comte (1798-1857), Durkheim teve o
seu nome associado às correntes de pensamento mais conservadoras, acusado de
ser um nostálgico da monarquia.
Contudo, é inegável a posição que o autor ocupa como o grande
sistematizador da ciência sociológica, responsável por delimitar seu objeto de
estudo, instituindo-lhe um método próprio.
A seguir, oferecemos um passeio pelos bosques durkheimianos.
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Durkheim define a Sociologia como a ciência que pretende oferecer uma
leitura acertada sobre as instituições sociais, diagnosticando a sua gênese e o seu
funcionamento. Em outras palavras, a Sociologia visa conhecer a natureza da
117
crença e do comportamento verificados numa coletividade, considerando-os como
fenômenos sociais.
O objeto de estudo do sociólogo são os fatos sociais, a saber,
toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo
uma coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma
sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das
manifestações individuais que possa ter (DURKHEIM,1974, p. 11).
Os fatos sociais são exteriores ao indivíduo, representados como coisas e,
por esse motivo, apreensíveis por meio do método científico. São
maneiras de agir, de pensar e de sentir (...) dotadas de um poder de
coerção em virtude do qual se lhe impõem. (...) maneiras de fazer ou de
pensar, reconhecíveis pela particularidade de serem suscetíveis de exercer
influência coercitiva sobre as consciências particulares (DURKHEIM,1974,
p. 29-31).
O que ocorre no reino social, portanto, é bem diverso do que pode ser
percebido no reino psicológico/ individual, pois está sujeito a outras leis, devendo,
por isso, ser estudado por uma ciência própria, uma ciência que explique os efeitos
sociais dos fatos sociais. Diante dessa demanda, Durkheim tratou de sistematizar o
método sociológico.
Do ponto de vista durkheimiano, a sociedade não é a simples soma dos
indivíduos nela localizados. O resultado dessa junção de consciências individuais é
algo completamente novo, que ultrapassa essas consciências, sobrepondo-se a
elas. O que compõe a sociedade não pode ser explicado pelas partes, pois os
indivíduos não trazem em si essa informação complexa que, necessariamente,
remonta à totalidade. O homem é uma parte mínima dessa multidão de
colaboradores que forma a sociedade e mesmo aqueles que já morreram
permanecem inscritos como parte desse conjunto total. Disso deriva a força da
tradição, que atua sobre o indivíduo e tem sua gênese perdida no tempo, sem
grandes necessidades de justificativas, já que foram feitas e transmitidas por nossos
antepassados, quando nem tínhamos nascido. De tal modo, a sociedade é
118
o mais poderoso feixe de forças físicas e morais cujo resultado a natureza
nos oferece. Em nenhuma parte encontra-se tal riqueza de materiais
diversos levado a tal grau de concentração. Não é surpreendente, pois, que
uma vida mais alta se desprenda dela e que, reagindo sobre os elementos
dos quais resulta, eleve-os a uma forma superior de existência e os
transforme (DURKHEIM, 1951, p. 445).
A mentalidade do indivíduo é de natureza diversa da mentalidade do grupo, e
será sempre o coletivo que explicará os fatos sociais, uma vez que
as consciências particulares, unindo-se, agindo e reagindo umas sobre as
outras, fundindo-se, dão origem a uma realidade nova que é a consciência
da sociedade. (...) Uma coletividade tem as suas formas específicas de
pensar e de sentir, às quais os seus membros se sujeitam, mas que diferem
daquelas que eles praticariam se fossem abandonados a si mesmos.
Jamais o indivíduo, por si só, poderia ter constituído o que quer que fosse
que se assemelhasse à idéia dos deuses, aos mitos e aos dogmas das
religiões, à idéia do dever e da disciplina moral, etc (DURKHEIM,1975, p.
117).
O fato social diz respeito, então, às representações coletivas e não
individuais, pois constitui a forma como a sociedade pensa a si mesma e o mundo
no qual está inserida. São essas representações coletivas que viabilizam a
emergência do crédito destinado à religião, aos preceitos morais, às normas
socializantes e demais instrumentos de formação de idéias e propagação de
endereçamentos, pois constituem
o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no
espaço mas no tempo também; para fazê-las, uma multiplicidade de
espíritos diversos associaram-se, misturaram e combinaram suas idéias e
sentimentos; longas séries de gerações acumularam nelas sua experiência
e sabedoria. Uma intelectualidade muito particular, infinitamente mais rica e
mais complexa do que a do indivíduo está aí concentrada
(DURKHEIM,1951, p. 20).
É necessário distinguir, todavia, dois tipos de fatos sociais: ao primeiro,
caracterizado por serem menos consolidados, chamaremos de maneiras de agir, e
nele abarcaremos as correntes sociais, os movimentos coletivos, as correntes de
119
opinião e tudo mais que induz o indivíduo a certa atuação momentânea, localizada
no tempo, numa moda, numa atitude disseminada, mas ainda não cristalizada como
socialmente indispensável. Ao segundo tipo denominaremos maneiras de ser e a
partir dele nos referiremos às regras jurídicas, aos preceitos morais, aos dogmas
religiosos, sistemas financeiros e demais convenções que se perderam no tempo,
dispensando a obrigatoriedade de uma justificativa. São fatos sociais inscritos no
espírito da sociedade, perpetuados pela história, válidos por excelência.
Tanto um quanto outro, possuem grande ascendência sobre o indivíduo,
coagindo-o a seguir por certa trilha, ainda que não seja essa a sua vontade. Tal
como vimos ao tratarmos a teoria dos papéis sociais, o indivíduo passa a acreditar
na ação que executa, tornando-a parte integrante da sua vontade, quando, na
verdade, advém de uma imposição social.
Por serem externos ao indivíduo, e por isso mesmo tratados por Durkheim
como coisas, os fatos sociais necessitam de um processo de socialização para
serem corretamente assimilados. Esse esforço educacional se inicia na infância e
prossegue no decurso de toda a vida, fornecendo ao homem, depois de já
estabelecido como verdade inquestionável, a falsa idéia de que agimos exatamente
da forma como queremos agir. O sociólogo francês argumenta que
o devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da vida
religiosa; existindo antes dele, é porque existem fora dele. O sistema de
sinais de que me sirvo para exprimir pensamentos, o sistema de moedas
que emprego para pagar as dívidas, os instrumentos de crédito que utilizo
nas minhas relações comerciais, as práticas seguidas na profissão, etc.
funcionam independentemente do uso que delas faço (DURKHEIM,1974, p.
2).
A realidade, concebida dessa forma, existe independente da vontade do
homem, mas é equivocado supor que esse homem não possa se rebelar contra a
realidade existente. Ainda que influenciada pelo todo, sua ação pode seguir em
direção oposta, restando ao homem o pagamento inevitável da transgressão
empreendida. Isto é, o indivíduo pode
experimentar ir contra os costumes, mas, nesse caso, as forças morais
contra as quais nos insurgimos reagem contra nós e é difícil, em virtude de
120
sua superioridade, que não sejamos vencidos. (...) estamos mergulhados
numa atmosfera de idéias e sentimentos coletivos que não podemos
modificar à vontade (DURKHEIM,1955, p. 7).
Porém, a despeito dessa dificuldade de transpor o coletivamente aceito como
correto, poderá o homem protagonizar eventos de inovação. Para isso ele precisará
da concordância de outros homens que, empreendendo com ele esforços coletivos,
poderão gerar um produto novo, ou seja, um novo fato social. Contudo, não
podemos perder de vista que, quanto mais forte for a regra, mais difícil será a sua
superação, pois a sociedade oferece ao indivíduo o script da sua vida, define para
ele os cenários e aguarda as cenas que serão desempenhadas. Qualquer desvio
implica alteração do roteiro e, como não estamos sozinhos nesse palco social,
incorremos no risco de não correspondermos às expectativas de nossos pares,
interlocutores, coadjuvantes de nossa trama.
Como salientamos antes, não nos é possível atuar isoladamente em
sociedade e, na intenção de sermos aceitos pelos grupos de referência,
empreenderemos esforços para seguir a risca o que nos for exigido.
Se voltarmos ao texto teatral com intenção de pensar novos mapas,
encontraremos em Durkheim uma fonte inesgotável de estradas a serem
percorridas. A idéia de um pensamento coletivo agindo sobre as partes individuais
nos autoriza a perceber o texto enquanto promotor de caminhos, sinalizador de
movimentos, indutor de posturas e de expressão de sentimentos. A presença das
didascálias explícitas atesta a efetiva participação do autor no encaminhamento do
enredo, insinuando que ele mesmo pretende segurar a mão do leitor e direcioná-lo
para este ou aquele lugar. Na réplica das personagens novos endereçamentos
serão fornecidos e é difícil imaginar que aquelas vidas que nos chamam a atenção
estejam livres para seguir individualmente o percurso que escolheram. Sobre elas e
sobre nós os leitores recaem a obrigação dos endereços, pois mesmo quando
ensaiamos uma rebeldia literária, ameaçando fazer um uso perverso do texto alheio,
sabemos que basta fechar o livro para que tudo volte ao lugar de origem: as
personagens continuarão vivendo aquilo que o autor definiu para elas e até pode ser
que outros leitores lhes modifiquem a sina, contudo, jamais lhe conferirão liberdade
total.
121
Tal como o indivíduo em sociedade está consensualmente “preso” às
atribuições do coletivo, a personagem do texto teatral também experimenta o
cativeiro consentido. Suas ações estarão condicionadas às ações de outrem e o
percorrer de seu caminho se dará em atos de reconhecimento ou interdição.
Tal informação incita-nos a procurar no texto teatral o conteúdo coletivo da
ação individual. Qual a ascendência do todo sobre a personagem? Em que medida o
seu discurso reproduz o discurso dos outros? Que situações ela pretende viver e
quais são as situações que ela vivencia de fato? De que forma podemos avaliar as
suas ações considerando-as fatos sociais, seja pela maneira de agir, seja pela
maneira de ser? Como se dá o embate ou a concordância entre as consciências
particulares e a consciência da sociedade?
Seguindo essas indagações nos aproximaremos da força externa que inibe a
personagem a realizar plenamente a sua vontade, pois muito provavelmente a
identificaremos subjugada aos fatos fatos sociais.
Os fatos sociais se apresentam à personagem como realidade cristalizada,
amparada na força da repetição, da tradição, do culturalmente vinculado ao
consenso geral. As instituições sociais como a moral, por exemplo, apresentam ao
indivíduo um horizonte já bastante definido em termos de possibilidades e limites, e
o caminhar por entre esses parâmetros pode significar a aceitação da pessoa no
grupo de referência que almeja. Pois
ao mesmo tempo que as instituições se impõem a nós, aderimos a elas;
elas comandam e nós as queremos; elas nos constrangem, e nós
encontramos vantagem em seu funcionamento e no próprio
constrangimento. (...) talvez não existam práticas coletivas que deixem de
exercer sobre nós esta ação dupla, a qual, além do mais, não é
contraditória senão na aparência (DURKHEIM,1974, p. 30).
Destarte, não devemos ter a impressão enganosa de que o indivíduo/
personagem esteja sempre em confronto com a sociedade já que não aceita suas
imposições por livre vontade, mas sim com intenções de aceitabilidade e integração.
Durkheim defende a idéia de que o homem deseja receber esse controle, pois assim
acontecendo ele terá condições de prever o seu comportamento e o comportamento
do outro, tornando mais fáceis as decisões da vida coletiva. Inseridos numa
122
coletividade em que as partes precisam do todo para se fazer atuantes, é
fundamental que saibamos previamente as regras.
Familiarizados com o poder das instituições, podemos refletir nos bosques do
texto de teatro: 1) Qual é a instituição social mais atuante na peça? 2) De que
maneira ela se apresenta e se impõe às personagens? 3) Todas as personagens se
submetem da mesma forma às instituições presentes? 4) Que formas de controle
social são possíveis identificar como instrumentos de persuasão dessa instituição?
5) Às personagens transgressoras foi apresentado algum castigo por meio da
instituição social que lhe define procedimentos? 6) Caso seja afirmativa a questão
anterior, como elas encararam a retaliação?
Considerando a atuação do todo sobre as partes, pensemos um pouco mais
sobre essa relação...
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O conjunto de idéias elaborado por Durkheim nos apresenta a sujeitos que
co-habitam um certo espaço simbólico a sociedade tendo como premissa de
convivência a abdicação de certos interesses pessoais em nome de interesses mais
gerais, coletivos. E mais do que abrir mão de algumas de suas vontades mais
íntimas, esses indivíduos lutam para manterem-se unidos, integrados a um espaço
que nem sempre lhes proporciona a melhor localização social. Que benefícios,
então, teriam esses indivíduos para que seja desejável a permanência desses
laços?
Durkheim defende a tese de que não faz sentido pensar no homem
isoladamente, pois esse homem quando se isola perde aquilo de mais importante
que ele possui: a qualidade de membro de uma coletividade. Isso ocorre porque é
somente na vida coletiva que o indivíduo aprende a se localizar, já que “a sociedade
é a melhor parte de nós. Na verdade, o homem não é humano senão porque vive
em sociedade e sair da sociedade é deixar de sê-lo” (DURKHEIM, 1955, p. 35).
O homem durkheimiano somente adquire humanidade quando supera a si
mesmo, quando vence os seus interesses pessoais e se dedica mais a perceber e
atender os interesses da coletividade.
123
Quando há esse esforço, por cada uma das partes que compõem a
sociedade, podemos falar que se tornou possível a tão desejada coesão social. E,
na argumentação durkheimiana, esse sentimento de cooperação é indispensável em
tempos de enfraquecimento de vínculos com as instituições sociais tradicionais
como a família, a religião, a educação e o estado. Para Durkheim (1975, p. 244),
nada mais resta que os homens possam amar e honrar em comum senão o
próprio homem... E como cada um de nós encarna algo da humanidade,
cada consciência individual encerra algo de divino e fica assim marcada por
um caráter inviolável para os outros.
A exaltação da humanidade tornou-se o mais forte sistema de crenças, a
permitir à sociedade moderna alguma unidade moral: a moral individualista e a
religião da humanidade, dentro da qual o homem é fiel e Deus ao mesmo tempo
(DURKHEIM,1975, p. 238).
O homem, convivendo com outros homens, igualmente sagrados na
preservação de seus interesses coletivos, possui, em Durkheim, dois tipos de
consciência que se completam: uma que agrega, que oferece similitudes entre os
pares, possibilitando a nomeação de grupo; e uma outra que individualiza, ligada ao
que realmente somos em termos de interesses individuais e identidade singular.
Uma é comum com todo o nosso grupo e, por conseguinte, não representa
a nós mesmos, mas a sociedade agindo e vivendo em nós. A outra, ao
contrário, só nos representa no que temos de pessoal e distinto, nisso é que
faz de nós um indivíduo (DURKHEIM,1967, p. 113).
Sendo assim, o homem viveria a duplicidade do individual com o coletivo,
estando fadado, enquanto ser social, a abrir mão do primeiro em nome do segundo,
isto é, priorizando
um sistema de idéias, sentimentos e de hábitos que exprimem em nós (...) o
grupo ou os grupos diferentes de que fazemos parte; tais são as crenças
religiosas, as crenças e as práticas morais, as tradições nacionais ou
profissionais, as opiniões coletivas de toda espécie. Seu conjunto forma o
ser social (DURKHEIM,1955, p. 67).
124
Ao passo que o indivíduo se integra à vida social, ele naturalmente percebe a
necessidade de superar a si mesmo, suas paixões e desejos individuais, pois os
reconhece ameaçadores da ordem dentro da qual está localizado ou tentando se
localizar. Por meio do processo de socialização, já apontado como fonte geradora de
instrução desde a infância, a educação vai sendo constituída e esse processo é para
Durkheim “essencialmente moralizador; liberta os espíritos das visões egoístas e dos
interesses materiais; substitui a piedade religiosa por uma espécie de piedade
social” (DURKHEIM, 1975, p. 159).
A consciência coletiva diz respeito ao “conjunto das crenças e dos
sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade”
(DURKHEIM,1967, p. 74). Por meio dela é criado um mundo de sentimentos, de
idéias, de imagens que se tornam desejáveis e aceitas pela coletividade como se
fossem escolhas pessoais e não socialmente condicionadas. Haverá mais coesão
entre os membros de um grupo quando esse tipo de consciência tiver bases mais
sólidas. O que não exclui, como já foi falado, o comportamento desviante, pois, para
Durkheim (1974, p. 60):
a consciência moral da sociedade não é encontrada por inteiro em todos os
indivíduos e com suficiente vitalidade para impedir qualquer ato que a
ofendesse, fosse este uma falta puramente moral ou propriamente um crime
(...) Uma uniformidade tão universal e tão absoluta é radicalmente
impossível (...) mesmo entre os povos inferiores, em que a originalidade
individual está muito pouco desenvolvida, esta não é todavia nula. Assim
então, uma vez que não pode existir sociedade em que os indivíduos não
divirjam mais ou menos do tipo coletivo, é inevitável também que, entre
essas divergências, existam algumas que apresentem caráter criminoso.
Para o nosso método de sociologização da cena teatral é interessante notar
que a idéia de coesão social apresenta-se diretamente antagônica à idéia de
conflito, sendo aquela ligada ao desfecho da trama e essa ao movimento da ação
dramática propriamente dito. Se observamos a forma como cada personagem
vivencia o embate entre sua dupla consciência, entenderemos o que norteia sua
ação, pois a vislumbraremos caminhando entre a obediência à regras e a tentativa
de superação. Em outras palavras, podemos identificar no trajeto cênico da
personagem os pontos de tensão entre a consciência individual e a consciência
125
coletiva, cuidando de observar qual delas sobressai ao final do texto. Assim fazendo,
será possível testar a máxima durkheimiana do poder do todo sobre as partes e até
mesmo compreender melhor as conseqüências da ação cênica. Quando a
humanidade ganha o status de Deus, ou seja, quando ela passa a representar para
o indivíduo/ personagem uma entidade superior, torna-se viável cotejar a dimensão
da vontade humana como regra estabelecida por direito e isso é fundamental para o
entendimento de algumas personagens em suas histórias de abusos de poder e
busca pelo saciar das querências.
A seguir, faremos uma incursão teórica pelos laços que mantém os indivíduos
unidos a despeito das divergências, intentando identificar no texto teatral a natureza
das relações estabelecidas pelas personagens, seus interesses compartilhados e
suas animosidades declaradas.
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Em Durkheim, os laços que unem cada elemento ao grupo constituem a
solidariedade. Se esses vínculos que agregam os indivíduos existirem pautados em
uma obrigação de subserviência eles não serão recíprocos, mas sim mecânicos.
Neste caso, o indivíduo não possui a posse sobre si mesmo, pois ele é “literalmente
uma coisa de que a sociedade dispõe” (DURKHEIM,1967, p. 114). A localização do
indivíduo na sociedade advirá de um longo e intenso processo de socialização
empreendido por um sistema educacional difuso e não personificado num mestre. É
por via dessa difusão que a consciência individual se submete à consciência
coletiva, já que “as idéias e as tendências comuns a todos os membros da
sociedade ultrapassam em número e intensidade aquelas que pertencem a cada um
deles pessoalmente” (DURKHEIM,1967, p.113).
Em condições assim, não podemos encontrar neste cenário uma
diferenciação entre os seus membros que nos permita falar em indivíduos. Como
suas consciências dialogam muito intimamente com a consciência geral somos
levados a concluir que eles pouco se diferenciam e, por conseguinte, são solidários
devido às suas semelhanças. De acordo com a classificação durkheimiana o que
liga os integrantes de um agrupamento dessa natureza são os laços de
solidariedade mecânica. Não há intermediários entre o homem e a sociedade, pois
já se encontra definido e bastante propagado “um conjunto mais ou menos
126
organizado de crenças e sentimentos comuns a todos os membros do grupo: é o
chamado tipo coletivo” (DURKHEIM,1974, p. 99).
Geralmente, nesse tipo de agrupamento social, existe um chefe absoluto que
parece emanar da consciência geral, perpassando os limites da individualidade.
Esse dado nos permite falar que, já nas sociedades formadas pela solidariedade
mecânica, encontramos desenhado um primeiro modelo de divisão do trabalho entre
os povos primitivos, mas essa divisão ainda é insuficiente para diferenciar o
agregado informe: a horda.
Quando uma sociedade é constituída por um conjunto de hordas passa a ser
chamada por Durkheim de clã, isto é, um agregado homogêneo, de natureza familiar
e política, pautado em forte solidariedade.
Por outro lado, com o desenvolvimento da divisão do trabalho social, vimos
emergir na teoria durkheimiana uma nova classificação: a solidariedade orgânica,
advinda da instauração de uma crescente individualização. Neste caso, a sociedade
se condensa e multiplica as relações intersociais. Os membros, então, se tornam
solidários porque têm uma esfera própria de ação, uma especialidade, uma tarefa
que depende do pleno funcionamento de todas as outras partes. Em outras
palavras, uma solidariedade desse tipo nasce da expectativa que o outro precisa
criar acerca do comportamento de seus pares, pois dessa previsibilidade nascerá a
certeza ou a promessa de que suas ações surtirão o efeito desejado. Nas
palavras de Durkheim (1967, p. 163), esta sociedade encontra-se respaldada em
um sistema de funções diferentes e especiais, onde cada órgão tem um
papel diferenciado; (...) a função que o indivíduo desempenha é o que
marca o seu lugar na sociedade, e os grupos unidos por afinidades
especiais tornam-se órgãos (...) e chegará o dia em que toda organização
social e política terá uma base exclusivamente ou quase exclusivamente
profissional.
Pensando nesses dois tipos de solidariedade conseguiremos estabelecer
frente a um texto de teatro a natureza dos vínculos que agregam personagens.
Observando o cenário onde se desenrola a ação, atentos às instituições que nele
aparecem e influenciam, será possível apreender a organização das relações sociais
que ali se desenvolvem, aumentando nosso leque de caminhos nos bosques
pensados pelo autor-modelo.
127
Munidos desses conceitos, indaguemos ao texto: as personagens que
compõem a trama mantêm com o grupo uma relação de cooperação ou de
individualidade? Suas ações obedecem ao que os outros esperam ou entram em
conflito com as expectativas coletivas? A personagem é senhora dos seus atos ou
cumpre obrigações impostas pelo contexto? Há uma divisão do trabalho social na
peça? Há diferentes funções sendo executadas por personagens distintos? Há
muitas diferenças nas ações desses personagens? Essas ações se completam?
Que tipo de solidariedade impera na peça: mecânica ou orgânica?
De posse dessas perguntas deveremos nos preocupar em levantar no texto
as situações em que as personagens se integram umas as outras e aquelas em que
há conflito de interesses, gerando enfraquecimento dos vínculos. Durkheim nos
fornecerá mais uma coordenada de seu mapa.
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Já dissemos em outro momento, seguindo a concepção durkheimiana, que o
homem, por ser um ator social, requer um certo encaminhamento nos assuntos mais
importantes da vida em sociedade. Essa condução, chamada de script por Berger,
se naturalizaria ao logo da nossa socialização até que não exigisse mais justificativa
para ocorrer e se impor sobre nós. É por meio dessa “imposição consentida” que
sabemos dos impedimentos que nos limitam as vontades, ao mesmo tempo em que
nos tornamos conscientes do que é crime. A assimilação das regras acontece de
forma tão eficiente que em muito pouco tempo já não precisamos que nos recordem
a todo o momento o que a sociedade considera normal ou patológico. Trazemos
inscrito em nosso ethos o que nos é possível e o que nos é proibido e durante a
transgressão, se a cometermos, perceberemos atuar sobre nós os diversos meios
de punição analisados anteriormente quando abordamos o controle social.
Durkheim defende a idéia de que, para a sociedade, o homem que infringe a
lei, isto é, o sujeito que ameaça a unidade do corpo social, deve ser punido para que
a coesão social seja resguardada. A prática da punição não servirá somente para
“corrigir” o infrator ou funcionar de exemplo para os possíveis futuros membros
recalcitrantes, mas é graças a ela que a vitalidade dos vínculos sociais se fortalece e
se propaga. A função social do castigo não se restringe apenas ao transgressor,
128
mas estende a sua abrangência até o inocente. Na visão de Durkheim (1967, p. 95):
o castigo destina-se, sobretudo, a influir sobre as pessoas honestas”. Essa
expansão dos efeitos do ato de punir nos fornece a imagem de uma sociedade
constantemente atenta aos passos dos indivíduos, panóptica, vigilante, onipresente.
Diante desse olhar social controlador e punitivo, tanto nas sociedades simples
da solidariedade mecânica, quanto nas sociedades complexas da solidariedade
orgânica, percebemos em Durkheim a crença num poder coletivo invencível e mais
que isso: desejável. Quando os laços se afrouxam, o indivíduo se perde. Encontra-
se confuso em suas tentativas mal sucedidas de guiar-se sozinho, pelas próprias
escolhas.
Na busca pela confirmação de seu argumento holístico, o sociólogo francês
investigou um ato aparentemente egoísta, individual, pertencente ao mais privado
dos dispositivos humanos: o suicídio. Ele diz:
considerando que o suicídio é um ato da pessoa e que só a ela atinge, tudo
indica que deva depender exclusivamente de fatores individuais e que sua
explicação, por conseguinte, caiba tão somente à psicologia. De fato, não é
pelo temperamento do suicida, por seu caráter, por seus antecedentes,
pelos fatos da sua história privada que em geral se explica a sua decisão?
(DURKHEIM,1982, p. 18).
Todavia, a interpretação durkheimiana sobre o suicídio abandona a
exclusividade da explicação pessoal e indaga sobre os processos coletivos que
influenciam o homem a subtrair a própria vida. Ele argumenta que o suicídio é um
fato novo e sui generis, produzido por fatores de ordem social as correntes
suicidogêneas. Essas disposições sociais funcionariam como estímulos sobre os
indivíduos, fazendo-os procurar a morte como alternativa de vida. Para chegar a
essa conclusão Durkheim empreendeu uma análise das estatísticas nacionais
européias e, baseado nelas, percebeu que a evolução do suicídio acontece por meio
de ondas de movimento que, apesar de variadas, configuram taxas constantes
durante longos períodos. Ou seja, há momentos na vida social em que determinados
fatores políticos, econômicos, culturais possibilitam a ascensão do suicídio como
prática corrente. É sinalizador de certa regularidade o aumento das estatísticas de
suicidas numa época e a diminuição do suicídio em outras. A questão que Durkheim
nos apresenta a partir disso é: que fatos sociais podem ser encontrados nas
129
sociedades que experimentaram uma onda crescente de suicídio? Como se
comportam as instituições sociais e seus membros nos aglomerados humanos em
que essa prática decresce ou mantém-se estável?
Durkheim sugere, através de uma perspectiva sociológica, uma tipologia dos
suicidas que escape da armadilha da explicação de casos isolados, pois se assim o
fizermos estaremos distantes dos motivos geradores do ato, que são, em sua visão,
externos ao agente. Nessa perspectiva, cada grupo social teria uma inclinação
coletiva para o suicídio e a partir dessa disposição grupal se configurariam as
disposições individuais. Estamos falando aqui “das correntes de egoísmo, de
altruísmo ou de anomia que afligem a sociedade (...) com as tendências à
melancolia langorosa, à renúncia ativa ou à fadiga exasperada que são as
conseqüências das referidas correntes” (DURKHEIM,1982, p. 239).
Quando essas três correntes estão equilibradas, isto é, quando nenhuma
delas impera mais que as outras sobre o indivíduo, poderemos pensar numa
moderação que protege o corpo social das práticas dessa natureza. Porém, se uma
delas se sobressair, as chances de haver o suicídio aumentam. Quanto maior a
coesão e a vitalidade dos laços que agregam os sujeitos, fazendo-os reconhecerem-
se como grupo, mais afastadas estarão as possibilidades de sua ocorrência. Em
outras palavras, estamos reconhecendo em Durkheim que a sociedade estimula o
suicídio, mas também o detém por meio da religião, da educação, da família, do
Estado, desde que essas instituições estejam funcionando bem.
Quanto mais se enfraqueçam os grupos sociais a que ele pertence, menos
ele dependerá deles e cada vez mais, por conseguinte, dependerá apenas
de si mesmo para reconhecer como regras de conduta tão-somente as que
se calquem nos seus interesses particulares. Se, pois, concordamos em
chamar de egoísmo a esta situação em que o ego individual se afirma com
excesso diante do eu social e em detrimento deste último, poderemos
designar de egoísta o tipo particular de suicídio que resulta de uma
individuação descomedida (DURKHEIM,1982, p. 162).
O suicídio do tipo egoísta é característico dos tempos modernos e é
provocado pela desagregação social que gera no indivíduo certa carência de
amparo, levando-o à melancolia e à depressão.
130
Nas sociedades tradicionais, por sua vez, é mais comum a ocorrência de
suicídios do tipo altruísta, praticados por pessoas acometidas por doenças ou muito
idosas, viúvas que não concebem a vida na ausência do marido, fiéis e servidores
diante do falecimento de seus chefes e demais atos heróicos provenientes de
guerras e convulsões sociais. A não opção pelo suicídio, nesses termos, apontaria
para a desonra, para a perda do prestígio social, pois se no tipo egoísta o agente
suicida conseguiu escapar dos laços que o prendia ao grupo, no tipo altruísta sua
ação não mais o pertence.
Por fim, teríamos o suicídio do tipo anômico, produto de um estado de
desregramento social, dentro do qual as normas estão ausentes e o respeito,
perdido. O script social perde a sua influência sobre o indivíduo, deixa de controlar
suas paixões desmedidas, entregando o homem a sua própria sorte. Sem ter
condições de gerenciar-se por si mesmo, opta pela morte, já que a vida social não
mais lhe sustenta. Explica Durkheim (1982, p. 201):
De fato, há um século, o progresso econômico tem consistido
principalmente em libertar as relações industriais de toda e qualquer
regulamentação. Até recentemente, um sistema inteiro de poderes morais
tinha por função discipliná-las. Havia, em primeiro lugar, a religião, cuja
influência se fazia sentir igualmente entre operários e patrões, entre pobres
e ricos. Consolava os primeiros e os ensinava a se conformarem com a sua
sorte ao lhes pregar que a ordem social é providencial, que o quinhão de
cada classe foi determinado por Deus, e fazendo com que esperassem de
um mundo futuro as justas compensações pelas desigualdades existentes
neste. Moderava os segundos, lembrando-lhes que os interesses terrestres
não são a essência do homem, logo devem estar subordinados a outros
mais elevados e que, por conseguinte, não merecem ser buscados sem
comedimento.
Esse afrouxamento dos laços tão característico da era moderna sinalizado
por Durkheim como a dissolução da capacidade de auto-regulação da sociedade
que deixa os indivíduos à mercê da liberdade não-tutelada, forma o estado de
anomia, isto é, uma realidade marcada pela perda da função reguladora da
sociedade. Antes, entretanto, de aprofundar nosso conhecimento acerca desse
conceito, guardemos o seguinte roteiro de questões para o texto teatral: as
personagens das peças contam com um aparato ideológico forte oferecido pelo
131
grupo? As crenças de cada personagem são coletivas ou individuais? Há a
participação no desenvolver das tramas das instituições: família, religião, estado,
política? Como essas instituições agem sobre o discurso e sobre o comportamento
da personagem? Em que momentos do texto podemos falar em desagregação dos
vínculos sociais e em quais ocasiões percebemos a coesão? Houve algum suicídio
na peça? De que tipo? Egoísta? Altruísta? Anômico?
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A idéia incipiente de anomia que expusemos na seção anterior pode ser
associada àquilo que no texto teatral chamamos de conflito. É justamente na
ocasião em que se afrouxam os laços sociais que as personagens ensaiam suas
transgressões, elegendo suas vontades como prioridades acima de qualquer
interesse divergente apresentado por outrem. Mas o que gera a anomia em
Durkheim? As fontes geradoras indicadas por ele são da mesma natureza daquelas
que no texto de teatro desencadeiam o conflito?
Para Durkheim a anomia é caracterizada por um estado de desordem advindo
de uma crise econômica ou de transformações bruscas nas crenças que vigoram em
determinada sociedade. Como falamos antes, no cenário anômico a sociedade deixa
de cumprir a sua função reguladora sobre as consciências individuais, não
oferecendo ao indivíduo o tempo necessário para o aprendizado da liberdade
subitamente adquirida. O que se perde em condições dessa natureza é a estrutura
emocional e cognitiva de uma educação moral sólida, que na teoria durkheimiana
aparece como essencial para a manutenção da solidariedade.
Esse processo de instauração de apetites não contidos pode ser verificado
tanto nas ocasiões em que o indivíduo perde poder e prestígio, quanto naquelas em
que o indivíduo ascende socialmente. A anomia não é uma realidade criada apenas
a partir dos infortúnios de uma sociedade, mas existirá também quando os ganhos
não forem acompanhados por uma severa mudança moral nas formas de
organização social. Tanto a miséria quanto o sucesso precisam de uma regulação
moral adequada, senão perdem-se os vínculos e a solidariedade passa a ser uma
opção e não uma obrigação social.
Por isso, a moralidade possui importância imperativa no argumento do
sociólogo francês, já que é através dela que cada membro da sociedade medirá
132
suas aspirações e ações, calculando o espaço reservado ao direito do outro. Os
fatos morais fulguram na tese durkheimiana A Divisão do Trabalho Social como
imprescindíveis para o estabelecimento e manutenção dos vínculos solidários entre
os homens. Ele diz:
Moral (...) é tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força o
indivíduo a contar com seu próximo, a regular seus movimentos com base
em outra coisa que não os impulsos de seu egoísmo, e a moralidade é tanto
mais sólida quanto mais numerosos e fortes são esses laços (DURKHEIM,
1967, p. 338).
O que ocorre nas situações de crise, como vimos, é a perda por parte da
sociedade dos freios morais de que dispõe em condições normais. Ela não mais
atua como uma consciência superior à dos indivíduos e isso extingue ou diminui
sobremaneira os laços de solidariedade e, por conseguinte, a coesão. Pois,
as tréguas impostas pela violência são provisórias e não pacificam os
espíritos. As paixões humanas não se detêm senão diante de um poder
moral que respeitem. Se toda autoridade desse tipo faz falta, é a lei do mais
forte que reina e, latente ou agudo, o estado de guerra é necessariamente
crônico (DURKHEIM, 1967, p. 8).
Fica evidente na argumentação durkheimiana a não simpatia por esse tipo de
cenário, devendo a sociedade eleger, sempre que se fizer necessário, novos
instrumentos de controle, ou seja, a reestruturação da educação moral, das normas
que viabilizam a coesão e que fazem da solidariedade uma prática corrente,
cotidiana, desejada. Isso é fundamental para o retorno da previsibilidade, isto é, a
capacidade que temos de antever a reação do outro diante da nossa intenção de
ação.
Quando Durkheim empreende suas pesquisas, o cenário que lhe serve de
observatório encontra-se submerso em mudanças muito profundas. Estamos falando
de uma França recém saída da Revolução, respirando ao mesmo tempo os ares do
progresso e do passado. A convivência entre o novo e velho, é claro, não se
apresentava por meio de relações harmoniosas, pois enquanto a burguesia
comemorava o poder adquirido, os representantes do Antigo Regime conspiravam o
retorno à condição anterior. É sabido, portanto, que em condições como essas, a
133
nova moralidade não poderia abarcar a todos e, assim sendo, a coesão e os laços
de solidariedade estavam profundamente ameaçados. O que viabilizaria para
Durkheim, então, o restabelecimento da ordem?
Como o cenário estudado por ele tinha no Capitalismo a grande força
promotora de mudanças, a solução encontrada por Durkheim foi conferir aos grupos
ocupacionais ou profissionais a função de reordenação e regulamentação da vida.
Disso deriva seu interesse recorrente pela Divisão do Trabalho Social,
capaz de suceder a família nas funções econômicas e morais que ela se
torna cada vez mais incapaz de preencher, (...) será preciso pouco a pouco
vincular os grupos de homens às suas vidas profissionais, constituir
fortemente os grupos desse gênero, será preciso que o dever profissional
assuma, dentro dos corações, o mesmo papel que o dever doméstico
desempenhou até agora (DURKHEIM,1921, p. 13).
A divisão do trabalho social, pelo que vimos até aqui, possui uma função que
vai além do estabelecimento de capacidades profissionais, exigência da era
moderna. Ela produz solidariedades, não mais do tipo mecânica, mas sim do tipo
orgânica. Produzindo solidariedades, colabora para a instauração da coesão e uma
sociedade coesa vê afastada de seus domínios as chances de anomia.
Podemos, diante disso, pensar que o conflito exposto no texto de teatro não
se resolve facilmente porque as personagens estão mais preocupadas com o
imediatismo de vontades particulares do que com a organização da vida prática em
grupos de reconhecimento mais sólidos, como os grupos profissionais? A situação
cênica que promove o conflito adviria dessa não filiação ao coletivo como fonte de
auto-regulação? Podemos falar de anomia no desenrolar do texto? De que forma os
apetites incontidos das personagens afetam os laços de solidariedade entre eles? O
restabelecimento da ordem, ao final, obedece aos encaminhamentos durkheimianos
aqui apresentados?
Guardemos, mais uma vez, esse leque de questões para o próximo capítulo.
O mapa durkheimiano pode agora ser temporariamente armazenado ao lado do
marxista para que exploremos as diretrizes interpretativas propostas por Max Weber.
Antes, porém, recapitulemos.
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Nos bosques durkheimianos encontramos uma trilha de interpretação que
considera a personagem não como indivíduo, nem como classe social, mas sim
como parte integrante de uma totalidade que atua decisivamente sobre ela.
Vimos emergir a função reguladora da sociedade e aprendemos que os fatos
sociais são externos e coercitivos. A organização da cena passou a contar então
com o embate entre dois tipos de consciência: uma individual, ligada às vontades do
indivíduo/ personagem, e uma outra coletiva, pertencente à sociedade.
Esse embate, longe de ser uma ameaça à integridade social, foi apresentado
como benéfico à manutenção da ordem, sendo as imposições sociais desejáveis
pelo próprio homem numa espécie de “interdição consentida”.
A relação sociedade > indivíduo serviu de inspiração para mensurarmos o
poder do contexto sobre a personagens, passando a figurar em nossa análise os
papéis desempenhados pelas instituições como a religião, a moral, a educação, a
família e o estado.
A idéia de anomia, contraposta ao conceito de coesão permitiu que
estabelecêssemos uma profícua relação entre apresentação, conflito e desfecho,
sendo as três etapas do texto para teatro pertinentes ao estudo sociológico.
A moral individualista como a religião da humanidade fornecerá adiante uma
via de compreensão sobre a ação da personagem, servindo de contraponto ao
conceito marxista de alienação.
A exposição dos tipos de solidariedade, por sua vez, esclarece-nos a
natureza dos vínculos entre os indivíduos da ficção, ao mesmo tempo em que
apontam para as expectativas de previsibilidade, reciprocidade e imperativos morais
universais.
O mapa durkheimiano instrumentaliza a análise holística da cena, permitindo
ao observador desfrutar da liberdade comedida, filha da autoridade bem
compreendida.
No próximo bosque caminharemos com Weber.
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Max Weber (1864-1920) é o terceiro nome da lista de clássicos da Sociologia.
Sua extensa obra advém de um cenário de múltiplas tensões na Alemanha e no
Ocidente como um todo, testemunhas dos contrastes ideológicos entre os
positivistas e aqueles que propunham a separação das ciências naturais em relação
às ciências do espírito.
Não se furtando a esse debate epistemológico, Weber firmou sua trajetória
intelectual dialogando sistematicamente com os pensadores de seu tempo,
sobretudo com Marx e Nietzsche (1844 -1900). Com o primeiro, compartilhou a
preocupação em perceber o Capitalismo ocidental como o grande agente da
transformação vivenciada pelas sociedades do século XIX, cabendo aos intelectuais
atuar para compreendê-lo em sua complexidade. Com o segundo, refletiu sobre o
sentido da ação humana com vistas à vontade de poder. Nessa direção, a marcha
da racionalidade passou a perseguir o sociólogo alemão em forma de indagações e,
diante dessas, Weber construiu as sólidas bases de sua sociologia compreensiva.
De acordo com Winckelmann (1992), a sociologia compreensiva de Weber
constitui um amplo tratado sobre as relações sociais, ao passo que sua teoria
política indica um profícuo sistema explicativo das relações de poder ou de
dominação.
Tendo a ciência como vocação, Weber cuidou do refinamento das idéias de
seus pares, preocupado com a precisão metodológica que viria marcar sua
interpretação sobre o desenvolvimento histórico do Ocidente.
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Para Weber, a sociologia é, por definição, uma ciência que pretende
compreender a ação social e os efeitos que ela produz. Nesta perspectiva, o autor
estará preocupado com as regularidades da ação, expressas por meio de usos,
costumes ou situações de interesse (WEBER,1984).
A ação social é uma conduta humana dotada de um significado subjetivo por
parte daquele que a executa e, este, possui um arsenal de informações sobre atos
semelhantes ao seu, localizados no passado, no presente ou no futuro,
136
empreendidos por seus pares ou interlocutores. Dito de outra maneira, a ação social
conta com a previsibilidade da recepção, visto que está pautada em processos de
repetição, atualização e propagação de costumes.
O modelo que o indivíduo dispõe para agir pode advir de uma pessoa que,
como ele, encontra-se localizada na sociedade, ou poderá também ser fruto de uma
generalização comportamental de um certo tempo histórico e de um espaço. O
trabalho sociológico, diante dessa incógnita de múltiplos significados, deverá se
esforçar em reconhecer as causas e os motivos da ação, tentando atribuir a ela um
significado, um sentido (WEBER,1984, p. 18).
Essa tentativa de compreensão, todavia, não se destina apenas à análise do
indivíduo que age, com vistas a estabelecer julgamentos individuais. O que interessa
ao sociólogo é a localização da ação social executada no campo maior das relações
sociais, suas interlocuções, a forma como é elaborada, ativada e recebida, bem
como as conseqüências advindas de seu estabelecimento.
Com o advento da modernidade, Weber delega à racionalidade do Ocidente a
responsabilidade por considerável parte das ações sociais, argumentando que as
condutas serão mais racionalizadas na medida em que o indivíduo experimentar o
enfraquecimento dos laços de submissão que o prende aos costumes, aos hábitos
coletivos e às crenças. O que está em pauta nessa elaboração weberiana é o fato
de que os indivíduos modernos, diferentemente de seus antepassados, contam com
a possibilidade do planejamento para guiar seus atos, o que torna a ação cada vez
mais previsível quando mais racional.
Para sistematizar seu pensamento e viabilizar suas observações, o sociólogo
alemão construirá um modelo de leitura para a conduta racional e, a partir dele,
cuidará de interpretar até as condutas menos racionais. A esse modelo, que nos
propicia uma elaboração limite, Weber chamou de tipos puros ou ideais.
Tais construções (...) permitem-nos ver, em traços particulares ou em seu caráter
total, se aproximam de uma de nossas construções, determinar o grau de
aproximação do fenômeno histórico e o tipo construído teoricamente. Sob esse
aspecto, a construção é simplesmente um recurso técnico que facilita uma
disposição e terminologias mais lúcidas (WEBER,1979
A
, p. 372).
No campo da ação social encontraremos nos bosques weberianos quatro
possibilidades classificatórias:
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1) Ação racional com relação a fins ocorrerá sempre que o indivíduo, para
atingir um objetivo previamente definido, utilizar os meios disponíveis,
considerando-os necessários ou adequados. Os procedimentos científicos e
as transações econômicas são exemplos de uma ação dessa natureza;
2) Ação racional com relação a valores característica dos indivíduos que agem
guiados por suas convicções, fiéis aos seus preceitos morais, crédulos na
retidão do comportamento escolhido como expressão legítima de seu senso
de dignidade. O agente movido por esse tipo de orientação, pode, em
algumas ocasiões, ultrapassar a racionalidade ao obedecer cegamente a uma
inspiração externa, carente de imperativos lógicos. Na maior parte dos casos,
aquele que guia suas ações motivado por valores está mais preocupado com
o comportamento em si do que com as conseqüências do ato;
3) Ação tradicional é inspirada por hábitos e costumes arraigados, valendo-se
da máxima: “faço porque sempre fiz e porque sempre fizeram”. Alguns rituais
religiosos são bons exemplos desse tipo de ação, pois atuam até mesmo em
sujeitos que não praticam a religião;
4) Ação afetiva fruto de emoções imediatas, a ação afetiva não considera os
meios utilizados, nem se preocupa com os fins que podem advir de sua
prática. É o caso da vingança, do medo, da inveja, do ciúme e de outras
atitudes subjetivas dotadas de não planejamento.
É preciso ressaltar que esses tipos puros são modelos e não estruturas
totalitárias a cobrar validade sobre todos os fatos da vida social. O próprio Weber
reconhece a não aplicação desses termos em determinadas situações e sinaliza
para condutas de natureza distinta como a ação homogênea e a ação proveniente
de uma imitação ou condicionada pela massa. No primeiro caso, o sujeito age
coletivamente, guiado por uma mobilização instintiva, como nas calamidades
naturais, ao passo que no segundo o indivíduo não orienta sua conduta com fins
racionais, mas apenas segue o fluxo do movimento, adere ao observado sem
intenções previamente definidas.
Estudando as ações sociais, Weber concluiu que, quando reciprocamente
orientadas, as condutas humanas geram certo tipo de expectativas. Assim, se um
homem opta por agir de uma forma e não de outra, é porque ele decodifica os prós e
138
os contras da sua ação, colocando-se sempre em contraposição aos seus
interlocutores. Guiando-se não apenas pela vontade, mas, também, pela expectativa
da recepção do ato, o sujeito adquire a qualidade da previsibilidade e passa a se
inserir num contínuo de relações sociais.
Se aderirmos à amizade, ao amor conjugal, às relações comerciais, às
inimizades, aos jogos de interesse etc, é porque prevemos a contrapartida, o
comportamento do outro ou acreditamos prever. Nem sempre, contudo, o que
motiva a ação de um corresponde à motivação do outro, pois repletas de conteúdo
significativo, as ações nem sempre precisam coincidir no que tange aos fins
(WEBER, 1979, p. 22).
As relações sociais variam de acordo com a sua maior ou menor durabilidade.
relações efêmeras que mudam de sentido quando a subjetividade dos atores se
modifica. Por isso, uma relação social pode passar de cordial a hostil e vice-verso.
Mas há também aquelas que são mais duráveis, aparentemente eternas, como a
Igreja, o Estado, o matrimônio e tantas outras que se apresentam, por via do
costume, dotadas de uma legitimidade incontestável. Mesmo essas instituições, na
concepção weberiana, podem ser consideradas pretensas estruturas sociais, porque
a sua continuidade dependerá da manutenção das relações sociais que a
constituem.
As relações sociais, quando estabelecidas por critérios de racionalidade,
tendem a se solidificar, gerando normas que cuidarão de legitimar algumas práticas
subjetivas socialmente compartilhadas. Os atores sociais podem, não obstante,
relacionar-se de duas maneiras distintas:
1) Relação comunitária - caracterizada por laços de afetividade que embutem no
indivíduo certo sentimento de pertencimento. Uma relação desta natureza
muitas vezes se pauta na tradição e não na vontade espontânea de querer
agir coletivamente;
2) Relação associativa mais comum nos tempos modernos, derivada da
racionalidade que liga as pessoas por laços de interesse recíproco, como nas
relações comerciais. Pode existir por meio de uma ação racional com relação
a fins ou de uma ação racional com relação a valores.
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Dito isto, nosso mapeamento weberiano poderá traçar algumas coordenadas
novas para o texto teatral. Primeiro, poderemos investigar as personagens por meio
de suas ações sociais, verificando a sua regularidade na cena e, sobretudo,
observando as associações efetivadas com os outros personagens, instituições ou
cenários da trama. Que modelos de comportamento a personagem tem a sua
frente? Esses modelos influenciam sua ação? Há ponderação nos atos da
personagem ao cogitar as reações que podem advir daquele comportamento
específico?
Em segundo lugar, será interessante classificar essas ações sociais tomando
como guia os quatro tipos puros de ação social, decodificados por Weber. Assim,
teremos mais elementos para compreender o estabelecimento do conflito, pois
sabemos que esse momento da narrativa cênica é geralmente provocado por uma
ação, executada ou pretendida, que foge às normas de alguém ou de alguma
instituição. Se soubermos o sentido da ação que move a personagem nos
aproximaremos das demais relações que fazem dela um ser social, coletivo,
relacional. Perguntemos: as principais ações empreendidas pela personagem são de
cunho racional, afetivo ou tradicional? Em qualquer um dos casos, como essa ação
é recebida pelos demais, quando descoberta? A personagem possui algum
sentimento de pertencimento ao grupo com o qual atua? Se sim, como manifesta
sua ligação com os outros? Se não, como se diferencia?
É muito provável que, ao adentrarmos nesses bosques, encontremos mais
uma vez as hierarquias salientadas por Marx e Durkheim, pois no campo das
relações sociais nos depararemos com condutas mais aceitas ou menos toleradas.
Então, para continuarmos coerentes com o pensamento weberiano, apresentaremos
o conceito de poder e refletiremos sobre as diferenças sociais que, na dramaturgia
teatral, poderão suscitar conflitos, movimentando a ação dramática.
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Weber reconhece, tal como Marx, que o sistema capitalista fez acentuar no
Ocidente as desigualdades sociais. É claro que não há por parte do sociólogo
alemão a intenção de afirmar que o capitalismo inaugura as diferenças, visto que em
outros cenários é comum termos relações de discrepância entre grupos localizados
hierarquicamente. Ele cita a sociedade chinesa tradicional, onde as posições sociais
140
eram ditadas pelas qualificações que determinavam a ocupação de cargos muito
mais do que pela posse de riqueza.
No cenário capitalista, entretanto, como a mola propulsora do
desenvolvimento é a acumulação de capital, gerando riqueza através do lucro, o
papel do sujeito na tessitura social será determinado pela posse ou não posse de
bens e condições de consumo. Mas não será a esfera econômica a mais importante
para essa lugarização.
No modelo de sociedade elaborado por Weber, encontremos as diversas
instituições funcionando de maneira autônoma, com uma lógica interna singular que,
quando unidas, formam a vida social do indivíduo verdadeira unidade de análise
sociológica. O sujeito weberiano transita entre as esferas econômica, religiosa,
familiar, política ou educacional, reunindo informações de cada uma delas, mas
cuidando de separar os códigos provenientes do conjunto para utilizá-los
adequadamente em cenários diferentes. Assim, um grande empresário capitalista
poderá se apresentar como um sujeito ávido por lucro e, fora da empresa, se
mostrar um fervoroso católico, generoso e solidário.
Porém, a despeito dessa “liberdade” que o indivíduo desfruta em Weber, a
organização social é composta de uma certa ordem que coordena as condutas
individuais, elegendo procedimentos necessários à divisão de papéis. É por esse
motivo que vamos à escola, à Igreja, ao trabalho, pois validamos a legitimidade
desses espaços como componentes indispensáveis da vida social. A partir dessa
validação, efetivada por cada um de nós, tendemos a ponderar nossas ações
respeitando as regras provenientes de cada uma dessas instituições que nós
mesmos criamos, uma vez que, como vimos, elas só existem enquanto as relações
sociais que a sustentam existirem. Weber acredita que as formações sociais
não são outra coisa que desenvolvimentos e entrelaçamentos de ações
específicas de pessoas individuais, já que apenas elas podem ser sujeitos
de uma ação orientada pelo seu sentido. Apesar disto, a Sociologia não
pode ignorar, mesmo para seus próprios fins, aquelas estruturas sociais de
natureza coletiva que são instrumentos de outras maneiras de colocar-se
diante da realidade. (...) Para a Sociologia, a realidade ‘estado’ não se
compõe necessariamente de seus elementos jurídicos, ou mais
precisamente, não deriva deles. Em todo caso não existe para ela uma
personalidade coletiva em ação. Quando fala do ‘estado’, a ‘nação’, da
141
‘sociedade anônima’, da ‘família’, de uma ‘corporação militar’ ou de
qualquer outra formação semelhante, refere-se unicamente ao
desenvolvimento, numa forma determinada, de ação social de uns tantos
indivíduos (WEBER, 1984, p. 12).
Essas esferas da vida social têm a sua lógica de funcionamento atualizada
quando os indivíduos executam suas ações, conferindo-lhes um sentido. Destarte, “a
forma pela qual a honra social é distribuída dentro de uma comunidade, entre grupos
típicos pertencentes a ela pode ser chamada de ordem social” (WEBER, 1984, p.
683). Podemos, enquanto indivíduos, com as nossas consciências individuais que,
diferentemente do que diz Durkheim, em Weber são fontes de explicação
sociológica, filiarmo-nos a diferentes ordens sociais e dentro de cada uma delas
encontraremos um sentido próprio de ação. Diante dessa possibilidade de
fragmentação, de atuação individual dentro de um mosaico de relações sociais e
instituições, Weber procurou observar como os indivíduos se agrupam em células
sociais dotadas de normas próprias, condutas comuns e sentimentos unívocos.
Deste estudo surgiram os conceitos weberianos de classe, estamento e partido, que
nos auxiliam compreender a lógica da distribuição do poder.
O poder pode assumir a forma de riqueza, de distinção ou de influência
política. Os indivíduos que possuem a mesma posição econômica abastada ou
precária se encontram numa mesma situação de classe. Nesses termos, o que
definirá suas ações sociais será o mercado, lugar privilegiado de atuação do poder
econômico. Assim,
falamos de ‘classe’ quando: 1) é comum a um certo número de pessoas um
componente causal específico de suas probabilidades de existência na
medida que 2) tal componente esteja representado exclusivamente por
interesses lucrativos e de posse de bens 3) em condições determinadas
pelo mercado (de bens ou de trabalho) (WEBER, 1984, p. 683).
Quando o poder dialoga com mecanismos de distinção estaremos diante de
um conjunto de ações sociais pautadas num forte sentimento de pertencimento,
onde a constituição do sujeito é parte integrante da constituição de seus pares.
Disso deriva o conceito de grupos de status ou estamentos:
142
em oposição às classes, os estamentos são normalmente comunidades,
ainda que, com freqüência, de caráter amorfo. Em oposição à ‘situação de
classe’ condicionada por motivos puramente econômicos, chamaremos
‘situação estamental’ a todo componente típico do destino vital humano
condicionado por uma estimativa específica positiva ou negativa da
‘honra’ adstrita a alguma qualidade comum a muitas pessoas. (...) Quanto
ao seu conteúdo, a honra correspondente ao estamento é normalmente
expressa, antes de tudo, na exigência de um modo de vida determinado
para todos os que queiram pertencer ao seu círculo (WEBER, 1984, p. 687-
688).
Decerto, a situação estamental se encontra bastante ameaçada nos tempos
atuais, diante da racionalidade moderna. Weber reconhece que, em algum momento
da trajetória capitalista, a propriedade poderá determinar pertencimentos de status,
ampliando a importância das relações sociais numa ordem de mercado. Mas ainda
assim, “enquanto as classes têm seu verdadeiro solo pátrio na ordem econômica, os
estamentos o têm na ordem social e, portanto, na esfera da distribuição das honras”
(WEBER, 1984, p. 693).
Finalmente temos os partidos, lócus de distribuição do poder político, que
corresponde por um lado à ordem econômica das classes e, por outro, à ordem
social dos estamentos. O partido é visto por Weber como uma organização que luta
especificamente pelo domínio, embora só adquira caráter político quando passa a
contar com a coação física ou sua ameaça.
Em oposição à ação comunitária exercida pelas ‘classes’ e pelos
‘estamentos’ nos quais esse caso não acontece necessariamente a
ação comunitária dos ‘partidos’ contém sempre uma socialização, pois
sempre se dirige a um fim metodicamente estabelecido, tanto se trata de
um fim ‘objetivo’ a realização de um programa com propósitos ideais ou
materiais como de uma finalidade ‘pessoal’ prebendas, poder e, como
conseqüência disso, honras para seus chefes e sequazes ou ambos de
uma só vez. Portanto, só podem existir partidos dentro de comunidades de
algum modo socializadas, isto é, de comunidades que têm uma ordem
racional e um ‘aparato’ pessoal dispostos a assegurá-la, pois a finalidade
dos partidos consiste precisamente em influir sobre tal ‘aparato’ e, se
possível, em ocupá-lo com seus seguidores (WEBER, 1984, p. 693).
143
Com as classificações weberianas precedentes, aprendemos a conceber o
individuo como responsável pelo encaminhamento da vida social, conferindo às suas
ações determinados sentidos que a Sociologia procura compreender. Vimos,
todavia, que na organização da sociedade encontra-se disposta uma certa ordem,
responsável pela representação das relações de poder. Pautados nisso,
indaguemos ao texto de teatro: como as personagens se organizam na cena? Em
grupos? Qual a natureza desses grupos? Religiosa? Familiar? Profissional?
Podemos perceber na peça a existência de situações de classe? Estamentos?
Poder político? A quem as personagens estão subordinadas? Quais os critérios
existentes no texto para a distribuição da honra? O que indica a unidade do grupo e
o que ameaça à integração social na peça?
A seguir, exploraremos o atalho da dominação em Weber.
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Uma das questões mais importantes e intrigantes da Sociologia diz respeito
ao fato dos indivíduos permanecerem juntos, a despeito de algumas localizações
sociais desfavoráveis. O que motivaria os indivíduos a persistirem em suas ações
sociais, preocupados com as expectativas dos pares, das instituições, das normas
vigentes? O que garante a perpetuação dessas práticas no tempo e no espaço? A
resposta weberiana a essas questões encontra-se sintetizada no conceito de
dominação ou produção da legitimidade.
A dominação se baseia numa probabilidade de obediência a um certo
mandato e
os meios utilizados para alcançar o poder podem ser muito diversos, desde
o emprego da simples violência até a propaganda e o sufrágio por
procedimentos rudes ou delicados: dinheiro, influência social, poder da
palavra, sugestão e engano grosseiro, tática mais ou menos hábil de
obstrução dentro das assembléias parlamentares (WEBER,1984, p. 693).
Weber propõe a contraposição de dois tipos opostos de dominação. A
primeira forma deriva de uma constelação comum de interesses, sobretudo no que
tange às situações de monopólio, ao passo que o segundo tipo se desenvolve
144
mediante a autoridade, ou seja, poder de mando e dever de obediência. Deste
modo, o conceito de dominação abarca, então,
um estado de coisas pelo qual uma vontade manifesta do dominador ou
dos dominadores influi sobre os atos de outros, de tal modo que em um
grau socialmente relevante, estes atos têm lugar como se os dominados
tivessem adotado, por si mesmos e como máxima de sua ação, o conteúdo
do mandato (WEBER,1984, p. 699).
Lançando mão dos seus tipos puros ou ideais, a teoria weberiana reconhece
três possibilidades de dominação legítima: tradicional, carismática e legal ou
racional, formas básicas de legitimação, justificadas sobre
a autoridade do ‘ontem eterno’, isto é, dos mores santificados pelo
reconhecimento inimaginavelmente antigo e da orientação habitual para o
conformismo. É o domínio ‘tradicional’ exercido pelo patriarca e pelo
príncipe patrimonial de outrora.
Há a autoridade do dom da graça (carisma) extraordinário e pessoal, a
dedicação absolutamente pessoal e a confiança pessoal na revelação,
heroísmo ou outras qualidades da liderança individual. É o domínio
‘carismático’ exercido pelo profeta ou no campo da política pelo senhor
de guerra eleito, pelo governante plebiscitário, o grande demagogo ou o
líder do partido político.
Finalmente, há o domínio da ‘legalidade’, em virtude da fé na validade do
estatuto legal e da ‘competência’ funcional, baseada em regras
racionalmente criadas. Nesse caso, espera-se o cumprimento das
obrigações estatutárias. É o domínio exercido pelo moderno ‘servidor do
Estado’ e por todos os portadores do poder que, sob este aspecto, a ele se
assemelham (WEBER,1979
b
, p. 99).
Uma vez apresentado o conceito de dominação e seus tipos ideais,
poderemos identificar no texto teatral a manutenção dos vínculos coletivos, isto é, a
natureza das relações sociais, tendo como prerrogativa o sentido da obediência e a
legitimidade do mandato. Verifiquemos novamente a distribuição de poderes na
peça. A quem pertence o direito de mandar e a quem se destina o dever de
obedecer? A dominação exercida por uma personagem, por um grupo ou instituição
145
na peça se aproxima mais do tipo tradicional, carismático ou racional / legal? De que
maneira e em quais circunstâncias esse poder foi legitimado?
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O mapa weberiano, com suas coordenadas alentadoras que disponibilizam ao
indivíduo certa autonomia de ação, indicará em nosso método de sociologização da
cena a consideração da personagem como agente de mudanças, permanências e
propagação de estilos de vida. Aqui, voltamos a nos aproximar da concepção de
pessoa moral de Hegel (1964) e nos deparamos com visões alternativas para a
alienação marxista e para a vitória da consciência social sobre a consciência
individual profetizada por Durkheim.
A apreensão do conceito de poder ajudará nosso entendimento sobre os
movimentos na ação dramática, ao passo que a elaboração dos tipos puros auxiliará
uma sistematização das partes constituintes da peça, objetivando uma análise mais
lúcida e abrangente.
A definição weberiana de dominação, por sua vez, fará com que caminhemos
mais atentos às relações de poder, instrumentalizando nosso olhar para o
esclarecimento de determinadas situações cênicas em que a ação da personagem
não corresponde as nossas expectativas de leitores-empíricos, atordoados pelo
fantasma da verdade, por aquilo que conhecemos do mundo e que desejamos
encontrar representado na ficção.
Antes, todavia, de encerrar esse capítulo sociológico, é salutar assumir o
caráter pessimista da teoria weberiana. A racionalidade estudada de maneira tão
sistemática pelo autor não aparece em seus escritos como garantia de um maior
conhecimento sobre a vida. Antes, funciona como o anúncio da perda da magia, da
descrença em uma força que ultrapassa os poderes humanos ou, em expressão
própria, do desencantamento do mundo. O cenário dos deuses e dos mitos foi
despovoado pelo progresso da civilização; a magia foi substituída pelo
conhecimento científico e pelo desenvolvimento das formas burocráticas de
organização racional. O homem moderno não conta com mais ninguém, além dele
próprio, para viabilizar a existência e tamanha autonomia não parece ao autor
promessa de felicidade. Em suas palavras,
146
a não ser que se trate de um físico, quem viaja num bonde não terá,
seguramente, nenhuma idéia de como e por que aquilo se move. Ademais,
tampouco necessita sabê-lo, basta-lhe poder ‘contar’ com o comportamento
do bonde e orientar, assim, sua própria conduta; mas não sabe fazer
bondes que funcionem. O selvagem sabe muitíssimo mais acerca de seus
próprios instrumentos. Se se trata de gastar dinheiro, eu poderia apostar
que, se nos ocorresse perguntar por que, com uma mesma quantidade de
dinheiro podemos comprar, em distintas ocasiões, quantidades muito
diferentes da mesma coisa, obteríamos tantas respostas distintas quantos
sejam os sujeitos interrogados, mesmo que alguns fossem economistas. O
selvagem, pelo contrário, sabe muito bem como conseguir seu alimento
quotidiano e quais são as instituições que o ajudam nisso. A
intelectualização e racionalização crescentes não significam, pois, um
crescente conhecimento geral das condições gerais da nossa vida. Seu
significado é muito diferente; significam que se sabe ou se crê que, a
qualquer momento que se queira, pode-se chegar a saber que não existem
em torno da nossa vida poderes ocultos e imprevisíveis, mas que, pelo
contrário, tudo pode ser dominado pelo cálculo e pela previsão. Isto quer
dizer simplesmente que se excluiu a magia do mundo. Diferentemente do
selvagem, para quem tais poderes existem, nós não temos que recorrer a
meios mágicos para controlar os espíritos ou para movê-los por meio da
oração. Isto é uma coisa que se consegue graças à meios técnicos de
previsão (WEBER,1979
C
, p. 165)
Entretanto, ressalta, Weber, a história não pode ser encarada como um
progresso linear, pois fazem parte da sua trajetória as descontinuidades e as
rupturas. Há ocasiões em que as instituições consolidadas se desintegram e aquilo
que até então se mostrava ao homem como suficiente para sustentar a vida revela a
sua carência (GERTH; MILLS,1979, p. 69-70). Eis que daí surge o agente da
ruptura: o herói, o líder, o profeta portador do carisma. Como vimos,
deve-se entender por ‘carisma’ a qualidade que passa por extraordinária
(condicionada magicamente em sua origem, de igual modo, quer se trate de
profetas, feiticeiros, árbitros, chefes de caçadas ou comandantes militares),
de uma personalidade, graças à qual esta é considerada possuidora de
forças sobrenaturais, sobre-humanas ou pelo menos extraquotidianas,
não acessíveis a qualquer pessoa ou, então, tida como enviada de Deus,
ou ainda como exemplar e, em conseqüência, como chefe, caudilho, guia
ou líder (WEBER,1984, p. 193).
147
Weber acredita na existência desse indivíduo extraordinário, capaz de opor-se
aos arraigados mecanismos produtores de desigualdades do mundo racionalizado.
Porém, identifica na modernidade as forças contrárias à elevação do carisma essa
qualidade de caráter inovador e irracional. O carisma weberiano foi engolido pela
lógica das instituições e diariamente tem que se submeter a rotinização do cotidiano.
Ao fim desse desgaste, restarão os caminhos da institucionalização tradicional ou
legal/ racional.
Chegamos ao ponto mais importante dessa pesquisa: conceber o teatro como
potencialmente irracional, pautado em um poder de convencimento que sobrevive ao
estatuto de mentira autorizada. A capacidade extraordinária de reinventar o cotidiano
com as cores utilizadas no dia-a-dia do ‘homem-leitor-expectador’ confere ao teatro
amplos poderes de intervenção, persuasão, transformação e consolidação de
emoções, sensações e novos valores. Se no capítulo I assumimos que o texto
teatral elaborado por um dramaturgo competente é revelador de seu tempo histórico,
estamos agora sublinhando nossa crença na atemporalidade do texto e sua
dimensão sociológica, política e revolucionária.
Nos termos weberianos, associamos teatro e carisma, ao mesmo tempo em
que retomamos os conceitos de revolução (Marx ) e de educação moral (Durkheim),
fazendo-os sinônimos da nossa definição de teatro. De tal modo, a sociologização
da cena teatral pode nos oferecer um valioso mapa para caminharmos nos bosques
da teatralização da vida social. Ensaiemos os primeiros passos, então.
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O senso comum e a literatura especializada acostumaram-se a pensar em
Nelson Rodrigues e García Lorca como homens inseridos em turbulentas biografias,
as quais dialogariam em alguma medida com aquilo que ambos produziram. É
notória a trajetória política de Lorca, bem como o seu senso de justiça contra os
grupos marginalizados, traduzidos em personagens de suas tramas. Do mesmo
modo, também é evidente o caráter de cronista urbano de Nelson Rodrigues,
observador de um Rio de Janeiro de subúrbios e crimes passionais, cenários
prediletos de suas peças.
Todavia, ainda que seja convidativa esta possibilidade de associação,
tentaremos escapar das armadilhas de uma excessiva contextualização,
concentrando nossos esforços na análise da estrutura dramatúrgica por eles
levantada, enquanto texto de teatro, e sua concomitante análise por meio da
sociologização da cena.
Não perderemos, contudo, de vista as pistas possíveis que residem no estudo
do autor-empírico, já que essas pistas poderão nos levar ao (re) conhecimento do
autor-modelo. Diante do vasto bosque, com os mapas acumulados no decorrer
dessa trajetória, comecemos em ordem cronológica pelo dramaturgo espanhol.
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Federico García Lorca nasceu em Fuentevaqueros, povoado andaluz situado
a 20 Km de Granada, em 5 de junho de 1898 (ALBERTI,1975). Primogênito de uma
família de quatro irmãos, começou a freqüentar a escola aos quatro anos de idade, a
despeito da grave enfermidade que contraíra aos dois meses. O pequeno Lorca
costumava reunir as criadas e os irmãos mais novos para a apresentação de seu
24
LORCA, Federico García. Obras Completas. Madrid: Aguillar, 1955, p. 1634.
149
teatro de marionetes, além das imitações de missas por ele mesmo celebradas. Era
ele quem elaborava o texto, definia as personagens e desenhava os figurinos.
Os relatos de sua biografia dão conta de que desde cedo Lorca deu provas de
seu talento de encenador e dramaturgo, tendo na figura da criada Dolores não só
uma espectadora atenta, mas também uma cúmplice de seus jogos teatrais e fonte
de inspiração. De acordo com Edwards (1980), foi através dela que Lorca teve
despertado seu interesse pelo folclore dos camponeses e dos ciganos de Granada.
Com a mudança para Granada em 1909, o jovem Federico passou a
freqüentar o Colégio do Sagrado Coração de Jesus com o intuito de se preparar
para o ingresso na Universidade de Granada, experimentando a partir de então a
intensidade de uma vida cultural que mistura influências árabe, greco-romana e
cigana. Com sua entrada no Conservatório, Lorca teve aulas de piano com Don
Antonio Segura e converteu-se em talentoso pianista. Se na infância ele prendia a
atenção da família e das criadas com seus dotes de encenador, na juventude ele
reunia os amigos em prazerosas audições musicais.
Em 1919 ingressou na Universidade de Madrid, o que o fez mudar-se para a
Residência dos Estudantes, onde permaneceu por dez anos. Esse novo cenário fora
decisivo para a sua formação artística, pois lá funcionava um reconhecido centro
cultural atuante desde 1910. Na Residência, Lorca convivera com a chamada
“Geração de 27” Rafael Alberti, Juan Ramón Jiménez, Gregorio Martinez, Salvador
Dalí, Luis Buñel, entre outros nomes artisticamente relevantes. Em meio a tanta
efervescência cultural, não é de se espantar que Lorca tenha mergulhado nos
movimentos artísticos mais modernos como o Dadaísmo, o Ultraísmo e o
Surrealismo, convertendo seus companheiros em instigantes platéias para os seus
poemas. Lorca estudou Direito, Filosofia e Letras.
Sua estréia no teatro deu-se em 22 de março de 1920, em Madrid, com El
Maleficio de la Mariposa; em 1924 editou Canciones e em 1925 concluiu os escritos
de Mariana Pineda. Nos anos seguintes o dramaturgo espanhol tratou de dar
continuidade ao seu processo criativo, oferecendo ao público La Zapatera
Prodigiosa (1926), El amor de Don Perlimplín (1928) e o famoso volume de poemas
Romancero Gitano (1928). Em pouco tempo, Lorca tornou-se conhecido em seu
país e fora dele, ministrando uma série de conferências e tendo seus artigos
publicados nos mais importantes periódicos europeus e americanos.
150
Mesmo com toda fama, Lorca sentia-se deprimido e temia não sustentar
tamanho entusiasmo do público pelas suas obras seguintes. Alguns atribuem a essa
sensação de insegurança a mudança do dramaturgo para Nova York, no verão de
1929, acompanhado do amigo e ex-professor Fernando de los Rios. Para adaptar-se
a língua inglesa, Lorca se matriculou na Universidade de Columbia, mas não ficou lá
por muito tempo. Sentiu-se desorientado, pouco familiarizado com o idioma e com
os costumes, optando por mudar-se com alguns amigos para Newburg e Eden Mills,
em Vermont.
Mesmo em novo endereço sua depressão persistiu e só foi vencida quando
de seu regresso a Columbia, tempos depois, mais à vontade e participativo da vida
social de Nova York, cidade a qual começaria a desvendar, fazendo-a cenário de
suas novas empreitadas poéticas. Nesse período de extrema inspiração e dedicação
ao labor dramatúrgico, Lorca desenvolveu sua técnica, experimentou novas
possibilidades de escrever e organizar a cena, entrou em contato com outros
sentires, com novos sofreres. A beleza rústica de Granada foi contrastada com a
modernidade americana, fria e desenraizada, repleta de desigualdades, o que
aumentou em Lorca seu pessimismo diante da vida e do ser humano. Nesse período
de indiscutível crescimento pessoal e artístico nasceram as surrealistas El Publico e
Así que pasen cinco años, além do poema Poeta en Nova York. Sua aproximação
com o Surrealismo, iniciada anos antes na convivência com Dalí e Buñel, foi
influenciada pela poesia de Walt Whitman, e na primavera de 1930, nove meses
após sua chegada, Lorca deixou os Estados Unidos (EDWARDS, 1980, p. 16-17).
Seu reencontro com o mundo hispânico deu-se após a derrubada da ditadura
de Primo de Rivera em 1930. Com a chegada da República em 1931 teve início uma
série de políticas que intentaram atualizar o país, inclusive no campo da educação e
da arte. A partir disso Lorca passou a desempenhar um importante papel na cultura
nacional. Um ambicioso programa educativo foi colocado em prática pelo recém
criado Ministério da Cultura, desde a construção de escolas até a fomentação de
grupos de teatros com vertentes de integração social o Teatro Universitário
chamado de La Barraca, capitaneado por Lorca e Eduardo Ugarte e o Teatro do
Povo, dirigido por Alejandro Casona, que pretendia apresentar ao público os
clássicos textos dos dramaturgos de Espanha.
O princípio de La Barraca era o não-sedentarismo, o que permitiu aos atores
percorrer diferentes povoados, ampliando a abrangência da mensagem que
151
desejavam passar. A idéia de um “teatro com rodas” surgiu em Lorca em 1931,
após ter assistido uma montagem pouco criativa de Don Juan Tenorio. Tal frustração
despertou no dramaturgo e diretor o desejo de renovar o teatro espanhol, propondo
um teatro do povo e para o povo, sem grandes pretensões econômicas, afastado
dos desejos imediatos e vulgares do chamado teatro comercial (EDWARDS, 1980,
p. 28). Em suas próprias palavras: “Caminos nuevos hay para salvar al teatro. Todo
está en atreverse a caminar por ellos” (LORCA,1973, p. 965).
A estrutura física de La Barraca era simples e possuía capacidade para 400
pessoas. Era de fácil locomoção e transitava pelos povoados levando o trabalho de
atores ambulantes, estudantes, que representavam os grandes clássicos por meio
de uma linguagem mais acessível, devidamente atualizada e engajada na história
nacional. Dentre os autores mais montados estavam Lope de Vega e Calderón de la
Barca.
Lorca pretendia que seus atores fossem vistos pelo povo como trabalhadores,
servidores daquela gente, identificados com a sua causa, compartilhando os
mesmos anseios. Por isso, ele mesmo desenhou o uniforme da companhia, em
tecido azul, semelhante aos uniformes das fábricas, para ilustrar essa aproximação
com o mundo do trabalho e da lida diária. A equipe de La Barraca era formada por
jovens idealistas que, ao lado de seu diretor, objetivavam escapar das facilidades de
um teatro descomprometido, apolítico, comercial. Se a proposta de Lorca era salvar
o teatro espanhol, ele sabia que tal empresa só seria possível a partir do momento
em que o público reconhecesse o sentido daquilo a que assistia. Não seria suficiente
entreter as pessoas, mas também cativá-las, introduzi-las no mundo da reflexão, do
questionamento sobre si mesmas e sobre a realidade que as cercavam. Era preciso
modernizar a linguagem, torná-la mais agradável para o expectador. Ao invés do
“ultrapassado” realismo, Lorca buscava uma nova forma de dizer, de aproximar, de
despertar empatias e emoções. Os atores teriam que dar suas falas de forma clara,
sem impostação ou formalidades, dando uma modelagem aos seus sentimentos,
fazendo-os críveis aos olhos alheios.
No decorrer dos seus cinco anos de atividades, La Barraca atualizou textos
como Fuenteovejuna, aproximando a história de Lope de Vega do cenário político-
social da Espanha daqueles tempos. El burlador de Sevilla de Tirso de Molina
também ganhou nova roupagem, sendo acrescido de danças folclóricas, coros e
baladas tradicionais. O sucesso do Teatro Universitário foi tamanho que a
152
companhia de Federico García Lorca ganhou reconhecimento internacional, sendo
convidada a se apresentar na Itália e na França (BYRD,1975).
Esse período de plena produção teatral à frente de La Barraca permitiu a
Lorca desenvolver-se também como dramaturgo e diretor profissional. Estreou no
dia 8 de março de 1933, no Teatro Beatriz, Bodas de Sangre, por ele mesmo
dirigida, seguida de El amor de Don Pelimplín e La zapatera prodigiosa. Em 1934 foi
a vez de Yerma e de Doña Rosita la soltera, montagens profissionais que
carregavam o mesmo princípio cênico do seu Teatro Universitário, tendo em suas
fichas técnicas alguns amigos provenientes de La Barraca.
Apesar do sucesso de suas obras, Lorca não perdia de vista seu desejo de
superação, de redenção do teatro espanhol. Em 1933, com a ajuda de Pura Ucelay,
uma rica e conhecida dama de Madrid, Lorca inaugurou os Clubes Teatrais em
diferentes pontos das diversas cidades espanholas, intentando apresentar ao
público peças pouco aceitas no teatro comercial. Nesse mesmo momento, outro
grupo denominado de El teatro proletario cuidava também de implementar grupos
similares no país, a fim de trocar idéias e organizar representações teatrais. Em
pouco tempo, a Espanha se viu invadida por um frescor teatral que prometia renovar
a arte nacional, chegando a famosa companhia de Margarita Xirgu e Enrique Borrás
a representar no anfiteatro romano de Mérida, a obra Medeia de Sêneca e em outras
partes os clássicos Electra e Ifigenia, além dos nacionais El alcalde de Zalamea de
Calderón e La dama boba, El villano en su rincón e Fuenteovejuna, em homenagem
ao tricentenário da morte de Lope de Vega.
Decerto, a primeira metade dos anos trinta, representou para a Espanha uma
espécie de renascimento cultural, mas tão logo se estabeleceu um novo cenário
político, marcado por tensões e interdições, as promessas de revitalização se viram
ameaçadas. Devido ao excesso de trabalho, Lorca se afastou da direção de La
Barraca em 1935, deixando-a a ao encargo de um novo diretor, em meio a um
cenário de desassossego político. Em junho de 1936 concluiu La casa de Bernarda
Alba, e logo depois fez uma leitura privada do texto desaparecido La destrucción de
Sodoma. Em julho do mesmo ano estourou a Guerra Civil e em 19 ou 20 de agosto,
Lorca foi assassinado em Viznar, um pequeno povoado dos arredores de Granada.
Os relatos de sua morte dão conta de que a perseguição ao escritor teve
início em 16 de agosto, quando ele se encontrava refugiado na casa do poeta
espanhol Luis Rosales. Ele teria sido detido pelas Forças Nacionais do Governo Civil
153
a mando de Ramón Ruiz Alonso, sendo sua prisão mais uma ação violenta
empreendida pela chamada Falange Espanhola contra os Republicanos (GIBSON,
1981).
O depoimento de uma testemunha revela que Lorca e outro sentenciado
foram conduzidos até uma fonte chamada Ainadamar (origem árabe) cujo significado
em português seria Fonte das Lágrimas. Ali eles teriam sido assassinados e seus
restos mortais nunca foram encontrados. Buñel argumenta que Lorca morreu porque
era poeta numa época em que se escutava por toda parte “Morra a inteligência!”
(BUÑEL,1983).
Tal afirmação do renomado cineasta sinaliza para o espírito empreendedor e
revolucionário de Lorca, para quem
... El teatro es la poesía que se levanta del libro y se hace humana. Y al
hacerse habla y grita, llora y se desespera. El teatro necesita que los
personajes que aparezcan en la escena lleven un traje de poesía y al
mismo tiempo que se les vea los huesos, la sangre...(LORCA,1955, p.
1634)
Para Lorca, não apenas o teatro se alimenta desses símbolos
demasiadamente humanos e poéticos, traduzidos por máscaras (personas) que
apresentam e ocultam as personagens, mas essa premissa é também válida para a
vida real. A duplicidade da atuação humana é assim descrita por ele:
Los hombres, en su mayoria, tienen una vida especial que usan como
tarjeta de visita. Es la que se les conoce publicamente. (...) Pero esa
mayoria también tiene otra vida, una vida gris, agazapada, torturante,
diabólica, que trata de ocultar como un feo pecado. (LORCA apud
POSADA,1997, p. 105).
A ambigüidade do ser humano aparece na obra de Lorca como o reflexo de
sua vivência e da observação do mundo que o cerca. Disse: “(...) Mi lucha ha sido
con la máscara hasta conseguir verte desnudo” (LORCA,1978, p. 105). Ainda que
apaixonado pela beleza de Granada, Lorca não perdeu de vista as contradições do
povo andaluz. Ele ousou ser a voz dos ciganos, dos negros, dos judeus, dos pobres,
dos mouros e das mulheres, ou seja, dos despossuídos, estigmatizados e
154
perseguidos. Esses temas são recorrentes em suas entrevistas, peças e
conferências.
Considerando estes percursos biográficos verificados em Lorca, podemos
dizer que a vida do autor-empírico ajuda a explicar boa parte de sua conduta
enquanto autor-modelo. Um bom leitor do texto de teatro lorquiano não poderá
perder de vista a recorrência da temática adotada por ele, em seus ciclos de
repetições e atualizações. O universo dramatúrgico do autor de La Casa de
Bernarda Alba mantém certas regularidades e sua comunicação com contextos
histórico-culturais específicos parece irrefutável.
Para tornar mais fácil o estabelecimento de uma alternativa de leitura,
poderíamos tentar, como fizeram Josephs e Juan Caballero
25
, uma primeira
classificação do teatro de Lorca, ainda que superficial.
Do ponto de vista cronológico, por exemplo, é possível dividir em três etapas
a produção do autor: uma fase inicial que vai até 1929, caracterizada pelo teatro de
marionetes, Mariana Pineda, e pelas farsas La zapatera prodigiosa e Don Perlimplín;
uma fase intermediária, marcada pela temporada que viveu em Nova York e Cuba,
de onde resultaram El publico e Así que pasen cinco años e uma etapa de maior
apuramento literário, iniciada com seu regresso à Espanha. Dataria dessa última
fase as peças Bodas de Sangre, Yerma, Doña Rosita la Soltera e La Casa de
Bernarda Alba.
Ainda que confortável, essa divisão apresenta problemas. Acontece que em
seu processo criativo Lorca interrompe seus escritos em diversas ocasiões e retorna
a eles com o intuito de corrigir, complementar ou cortar excessos. O próprio Lorca
reconhece que seu método de criação não está preocupado com prazos e que
en escrebir tardo mucho. Me paso tres y cuatro años pensando una obra de
teatro y luego la escribo en quince días. No soy yo el autor que puede
salvar a una compañía, por muy grandes éxitos que tenga. Cinco años tardé
en hacer Bodas de Sangre. (LORCA,1973, p. 984).
Monleón (1974) sustenta que é precipitado afirmar sobre a data de
elaboração dos textos de Lorca e que, por conseguinte, considerar esse fato como
25
LORCA, Federico Garcia. La Casa de Bernarda Alba. Madrid: Cátedra, 1988. Nesta edição da
peça, Josephs e Juan Caballero oferecem uma interessante introdução à obra de Lorca, de onde foi
extraída essa tentativa de classificação cronológica de suas peças.
155
critério classificatório, torna-se arriscado. O próprio autor de Yerma assume suas
lacunas temporais, e os estudos sobre ele sinalizam para um processo muito comum
em sua trajetória dramatúrgica, onde anos depois de iniciar uma peça ele retorna
aos escritos fazendo-lhes alterações. A imprecisão que daí deriva é assim resumida
por Lorca: “Ya sabe usted mi norma: tarde, pero a tiempo” (LORCA,1955, p. 913).
Por outro lado, se optarmos por ignorar seu aspecto cronológico,
concentrando nossa análise nos textos produzidos e nos diálogos que mantêm com
a totalidade da obra do dramaturgo, perceberemos a existência de pelo menos três
constantes no decorrer de sua produção. A primeira delas nos apresenta o teatro de
Lorca como poético, ainda quando não disposto em versos, como vemos em La
Casa de Bernarda Alba. Fergusson (1973, p. 175) sugere que:
Federico García Lorca también cultivó el drama poético de una manera muy
parecida a lo que es nuestro concepto de ese género tal como Yeats y Eliot
nos enseñaron a considerarlo, pero sus obras no son <cultistas> ni de
artificiosidad emparentada con el pastiche: son teatro-poesia que vive
naturalmente en escenario moderno como en su adecuado ambiente.
Tal característica não deve nos levar à equivocada opinião de que a obra
lorquiana resume-se à poesia no teatro, mas, ao contrário, é um teatro poético,
amparado em um conceito de poesia que ultrapassa a forma e ganha diferentes
experimentações (SÁNCHEZ,1950). Nas palavras de Lorca (1955, p. 1015): “tengo
un concepto del teatro en cierta forma personal y resistente. El teatro es la poesia
que se levanta del libro y se hace humana”.
Uma segunda constante define o teatro de Lorca como experimental,
desvinculado de qualquer escola, sem antecessores nem seguidores. Sua
diversificada formação diretor, pintor, músico, poeta e dramaturgo oportunizou
um olhar diferenciado sobre as artes cênicas, mesclando em seus textos e em suas
montagens recursos advindos de campos distintos. Mesmo não se prendendo a
nenhuma escola, Lorca possui uma estética teatral consciente e em nenhum
momento escreveu peças comerciais. Ele relata: “... Los credos, las escuelas
estéticas no me preocupan. No tengo ningún interés en ser antiguo ni moderno, sino
ser yo, natural. Sé muy bien cómo se hace el teatro semiintelectual, pero eso no
tiene importância” (LORCA, 1955, p. 978).
156
A terceira constante que podemos aventar revela a unidade da matéria
temática em Lorca. Seu teatro pode ser comparado a uma árvore sustentada por
um tronco que representa seu tema central e ornamentada por galhos que ramificam
estilos diversificados. Sendo assim, é possível falar em unidade temática num
campo de diversidade estilística (LORCA, Francisco,1955).
Ruiz Ramón (1975) considera que há uma situação dramática básica que
sustenta o núcleo da dramaturgia lorquiana. As peças parecem se desenvolver a
partir de uma estruturação comum: o embate entre duas forças antagônicas o
princípio da autoridade e o princípio da liberdade, ou, por assim dizer, a ordem, a
tradição, a realidade e a coletividade de um lado e o instinto, o desejo, a imaginação
e a individualidade de outro. Expandindo esse argumento somos levados a pensar
em um duelo entre uma lei natural e uma lei social, entre instinto e cultura. A
realidade se traduz no teatro de García Lorca como uma amputação do ser. O
“outro” é sempre o estranho que está colocado em oposição ao “eu”; é aquele que
observa, que controla, que vigia a vida e exerce poder sobre a atuação do indivíduo.
Em planos secundários encontram-se as temáticas do tempo, do amor, da liberdade
e da repressão.
Confirmando o argumento precedente, Manleón (1974) concorda que há
essencialmente no texto de Lorca a relação conflituosa entre amor e liberdade: “La
infelicidad de los que aman es la manifestación más clara de la injusticia de nuestro
mundo. Tras el amor llega la muerte” (MANLEÓN, 1974, p.32).
Nadal (1970), por sua vez, argumenta que a única estética do teatro lorquiano
é o amor um amor brutalmente desafiador, mas nunca decadente. A relação entre
amor e morte é demasiadamente estreita, funciona como verso e reverso de uma
mesma realidade. É por conta do amor que a liberdade é buscada e essa busca
deságua sempre na morte. Amor e morte são, em Lorca, inseparáveis.
Sinalizadas essas três constantes, opto por seguir o estudo da obra de Lorca
pautado no que elas revelam: um teatro poético e experimental sobre um tema
único. Essa definição, todavia, não nos garante o enquadramento definitivo do autor
em um estilo literário dotado de significação. O caráter experimental do seu teatro
até hoje gera discordâncias entre os pesquisadores, sobretudo quando a tarefa é
classificar os gêneros de suas peças.
Existem tentativas, como citei no capítulo anterior, por exemplo, de enquadrar
Yerma, Bodas de Sangre e La Casa de Bernarda Alba numa suposta trilogia trágica,
157
o que diverge da classificação empreendida pelo próprio autor. Segundo Lorca,
apenas as duas primeiras se configuram tragédias, ao passo que La Casa é um
drama andaluz. Essa confusão classificatória tem origem, possivelmente, nas
semelhanças temáticas das três peças abordagem de problemas sexuais, campo
andaluz como pano de fundo para a execução das histórias, mulheres protagonistas,
além da morte como desfecho inevitável. Contudo, ao contrário de Yerma e de
Bodas de Sangre, La Casa de Bernarda Alba não possui elementos de uma tragédia
clássica não há coros, nem danças simbólicas e nenhum diálogo é versificado.
Neste trabalho, ainda que seja importante ressaltar a intenção do dramaturgo
de filiar sua última peça a um gênero por ele mesmo inventado (drama andaluz),
consideraremos La Casa de Bernarda Alba uma tragédia moderna. Tal classificação,
longe de querer subverter os endereçamentos do autor, apresenta-se coerente com
o recorte da presente pesquisa que verifica semelhanças consideráveis entre a obra
lorquiana e as tragédias de Nelson Rodrigues no que concerne à estrutura
dramatúrgica.
Mesmo que La Casa não complete a trilogia trágica de Lorca ele mesmo
nos revela isso conseguimos apontar elementos trágicos no texto. A não presença
de um coro é compensada pela atuação das criadas da casa, representantes do
pensamento social, bem como pela rápida intervenção das mulheres vestidas de
negro ao longo do velório; no lugar da danças simbólicas e das cerimônias
ritualísticas encontraremos ritos de passagem, de inclusão e exclusão e um conjunto
de relações sociais altamente pautadas na tradição e na obediência, procedimentos
ritualísticos, por excelência. Embora os diálogos não sejam versificados, a poesia
não se encontra esquecida no texto, uma vez que, como vimos mais acima, o
dramaturgo espanhol não perde de vista o ritmo, a melodia e a métrica de seus
diálogos. Repleto de alegorias, inclusive nos nomes que escolhe para os viventes da
ficção, o texto lorquiano inspira o temor e a piedade, apresentando conflitos entre
pessoas amigas numa trajetória onde a vontade humana se vê subjugada à força do
destino. No embate entre um tempo humano e o tempo divino, La Casa de Bernarda
Alba revela-se tragédia moderna, podendo levar seu leitor/ expectador à catarse.
Voltando a analogia da árvore abordada anteriormente, é possível pensar em
La Casa como a culminação de um processo de aprimoramento, como se do tronco
original que sustenta a dramaturgia lorquiana tivessem saído ramificações podadas
no decorrer do tempo. La Casa é um galho mais forte, mais desenvolvido, subtraído
158
de alguns elementos que caracterizariam excessos. Desde Bodas de Sangre Lorca
abdicou dos personagens sobrenaturais, como a Lua e a Morte, iniciando um
caminho de busca pela simplicidade. Manuel Altolaguirre (1937) comentou sobre
essa postura de Lorca, diizendo: “Federico comentaba: ‘He suprimido muchas cosas
en esta tragedia, muchas canciones fáciles, muchos romancillos y letrillas. Quiero
que mi obra teatral tenga severidad y sencillez’ ” (ALTOLAGUIRRE,1937, p.36).
Ainda que a palavra ‘tragédia’ apareça nesse relato, dando conta de uma
possível classificação empreendida por Lorca ao seu último texto dentro desse
gênero teatral, é necessário considerar que estamos trabalhando com um
depoimento de terceiros. A citação utilizada refere-se à lembrança de Altolaguirre
sobre uma conversa que teve com o dramaturgo espanhol, que não
necessariamente pode ter se referido a La Casa como tragédia. Essa insistência de
alguns estudiosos em completar a suposta trilogia trágica iniciada por Bodas de
Sangre e Yerma encontra no próprio Lorca algumas justificativas:
Bodas de Sangre es la parte primera de una trilogía dramática de la tierra
española. Estoy, precisamente estos días, trabajando en la segunda, sin
titulo aún, que he de entregar a la Xirgu. (...) La tercera está madurando
ahora dentro de mi corazón. Se titulará La destrucción de Sodoma
(LORCA,1955, p. 914).
Após a estréia de Yerma, Lorca declara: “Ahora a terminar la trilogía que
empezó con Bodas de Sangre, sigue con Yerma y acabará con La Destrucción de
Sodoma” (LORCA,1955, p. 975). Essa última peça citada várias vezes nunca foi
encontrada e Ruiz Ramón acredita que ela nem mesmo foi escrita ou concluída.
Para ele, La Casa representa o auge da dramaturgia lorquiana e não uma tentativa
de complementaridade de textos anteriores. Em suas palavras,
final y cima de una trayectoria dramatica y abertura a un modo más
desnudo, más esencial y más hondo de hacer teatro (...) debió ser la
primera del ciclo de plena madurez del dramaturgo, la primera de una más
profunda y universal dramaturgia, há venido a ser la ultima obra de Lorca,
por destino impuesto brutalmente.(RUIZ RAMÓN,1975, p. 207)
Entendida como o ápice da dramaturgia lorquiana, La Casa aposta em um
novo experimento, ainda inserido no contexto andaluz, porém mais afastado de um
159
significado místico. A ausência de versos não descaracterizou o poético de seu
“documentário fotográfico” pautado nas cores preto e branco. Sua biografia, todavia,
não teve chances de seguir mais adiante.
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(LORCA, 2005, p.
154)
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Bernarda Alba é a matriarca de uma família de cinco filhas: Angustias,
Magdalena, Amelia, Martirio e Adela. Angustias, a filha mais velha, estava de
casamento marcado com Pepe el Romano quando suas irmãs Martirio e Adela
decidiram competir pelo amor do cunhado. Uma vez estabelecido o conflito familiar
as Alba experimentaram o pulso firme de Bernarda e os segredos da família vieram
à tona, preparando o trágico desfecho.
Dialeticamente falando, temos a peça assim dividida pelo mapa marxista:
1) Tese Com a morte de Benavides, marido de Bernarda, a viúva assume a
liderança da casa, tornando-se mais severa com as filhas e criadas,
proclamando-se dona do futuro de cada uma delas. Angustias, a primogênita,
ficará noiva de Pepe el Romano;
2) Antítese A dominação imposta por Bernarda não é aceita por Adela, a
caçula, que também deseja, assim como Martírio, o noivo da irmã;
3) Síntese Os anseios de liberdade e de satisfação amorosa de Adela, após
ameaçarem a coesão social daquele agrupamento familiar, terminam por
conduzir a personagem a um desfecho trágico, restituindo o poder de
Bernarda em um novo contexto de antigas práticas.
.............................................. *..............................................
Poderíamos começar a narração da história de La Casa de Bernarda Alba,
sugerindo um retrospecto biográfico da trajetória de sua protagonista-título:
Bernarda. Contudo, antes de esboçar um perfil da personagem central, deveremos
conhecer de maneira mais íntima o cenário que lhe serve de abrigo: a casa, que no
título desta seção nos é apresentada como uma “casa de guerra” segundo
informações dispostas no terceiro ato da peça. Afinal, será dentro desse reduto de
160
vigilância e punição que Bernarda exercerá a principal função de seu trajeto cênico:
a vivência de um feminino transgressor que na falta de possibilidades para
reconhecer-se no poder, acaba por sucumbir a uma masculinização da experiência
de dominar.
Seguindo as didascálias explícitas do próprio Lorca, temos a casa assim
descrita: “habitación blanquísima (...) muros gruesos. Puertas en arco con cortinas
de yute rematadas con madroños y volantes. Sillas de anea. Cuadros con paisajes
inverosímeles de ninfas o reyes de leyenda” (LORCA, 2005, p. 33). Nesta rubrica que
abre o primeiro ato, temos dispostas as definições físicas do primeiro cenário da
peça. Trata-se do palco aonde irão se desenvolver os movimentos iniciais, uma
espécie de sala com saídas para o pátio externo, onde está ocorrendo o velório do
marido de Bernarda. Toda ação transcorre dentro da casa, não apenas neste
cenário que nos é visível, mas também em outros cômodos que nos serão revelados
por meio da descrição verbal.
No interior da residência, há um cômodo que serve de clausura à mãe de
Bernarda, Maria Josefa personagem de idade avançada, representada por uma
loucura que transita entre o cômico e o trágico. Os gritos da anciã sugerem que o
quarto que lhe serve de prisão está localizado nos fundos da casa, bem afastado da
sala principal. No decorrer da história recebemos a informação de que o local conta
com uma porta sempre bem trancada para coibir as tentativas de fuga da
personagem louca, e que os vizinhos não devem vê-la em seus transes que oscilam
entre a fúria e a debilidade. O controle sobre esse status de prisioneira pertence à
Criada e a La Poncia, ambas cumpridoras das ordens de Bernarda, como salientado
no primeiro ato:
Voz (Dentro) ¡Bernarda!
La Poncia La vieja. ¿Está bien encerrada?
Criada Con dos vueltas de llave.
La Poncia Pero debes poner también la tranca. Tienes unos dedos como
cinco ganzúas (LORCA, 2005, p. 35).
O segundo ato da peça nos oferece mais um dado referente à arquitetura da
casa, sinalizando para a presença de portas à esquerda que conduzem aos
dormitórios (LORCA, 2005, p. 85). Do quarto de Adela, simbolicamente, vê-se o que
ocorre através dos muros grossos por meio de uma janela:
161
La Poncia Ahora dan la vuelta en la esquina.
Adela Vamos a verlos por la ventana de mi cuarto.
La Poncia Tened cuidado con no entreabrirla mucho, porque son capaces
de dar un empujón para ver quién mira (LORCA, 2005, p. 107).
Considerando a trajetória rebelde de Adela, parece bastante significativa a
geografia da casa que instala justamente em seu quarto uma janela que a faz
observar o que acontece no mundo situado fora dos domínios de sua mãe. A volúpia
de liberdade que ela manifesta pode ter na existência dessa janela uma boa parcela
de justificativa.
Em outra passagem, o texto informa a existência de uma janela também no
quarto de Angustias, o que confere possibilidades de uma comunicação clandestina
pela madrugada com o seu noivo Pepe el Romano. A citação dessas vias de
contatos sorrateiros com o mundo exterior sinaliza para a dualidade tão presente no
texto entre a autoridade e a liberdade, ou entre a lei social e a lei natural, instintiva,
devastadora do pudor feminino, instauradora do conflito.
Em certo ponto do texto, no primeiro ato, a decretação da clausura na casa é
explicitada por Bernarda como condição natural para o estabelecimento da ordem e
da moral vigente:
Bernarda (...) En ocho años que dure el luto no ha de entrar en esta casa
el viento de la calle. Haceros cuenta que hemos tapiado con ladrillos
puertas y ventanas. Así pasó en casa de mi padre y en casa de mi abuelo
(LORCA, 2005, p. 52).
Tal condição de isolamento faz com que a casa seja depositária de um
intenso calor. Essa sensação funciona como uma personagem invisível que constrói
em cada uma das trajetórias uma reação diferente, às vezes de resignação, outras
de rebeldia. Assim, no segundo ato:
Amelia (A La Poncia) Abre la puerta del patio a ver si nos entra un poco el
fresco.
(La Poncia lo hace)
Martirio Esta noche pasada no me podía quedar dormida del calor.
Amelia ¡Yo tampoco!
162
Martirio Estoy deseando que llegue noviembre, los días de lluvia, la
escarcha, todo lo que no sea este verano interminable.
Magdalena Yo me levanté a refrescarme. Había un nublo negro de
tormenta y hasta cayeron algunas gotas.
La Poncia Era la una de la madrugada y salía fuego de la tierra.(...)
(LORCA, 2005, p. 87).
O luto imposto por Bernarda por meio da reclusão, converte a casa numa
verdadeira masmorra e o calor parece ser um dos algozes das prisioneiras. Ele está
presente nas falas, nos gestos e na consciência de cada uma que percebe a
inevitabilidade dos ciclos que se sucedem no decorrer das estações. O calor e o luto
se complementam. Tal como o calor, o luto é inexorável, indestrutível, eterno. Ele é
a representação de uma autoridade que não conhece cores, frescores, nem nada
que mantenha o menor diálogo com a palavra liberdade. No discurso das filhas,
ainda no segundo ato, a alegoria do calor nos é demonstrada em forma de
sofrimento punitivo:
Amelia (Acercándose) ¿Que te pasa?
Martirio Me sienta mal el calor.
Amelia ¿No es más que eso?
Martirio Estoy deseando que llegue noviembre, los días de lluvia, la
escarcha, todo lo que no sea este verano interminable.
Amelia Ya pasará y volverá outra vez (LORCA, 2005, p. 108).
Quanto mais percebem a presença desse ciclo de calor, mais elas se dão
conta do movimento circular de suas vidas. Os muros grossos da casa, as portas e
janelas trancadas lhes servem de sinal para o isolamento de suas existências, para
a impossibilidade de contemplar horizontes fora do domínio materno. A disposição
arquitetônica da casa auxilia nesse entendimento, o que facilita em alguns casos a
resignação, mas em outros acaba por despertar a insurreição das almas mais
descontentes. É o que percebemos no movimento cênico de Adela e até nas
colocações amarguradas de Angustias e Martirio.
Entretanto, o calor está longe de ser a única alegoria da casa. O controle
punitivo de Bernarda será também representado pela pureza do espaço, que deverá
dialogar com a pureza das condutas e dos sentimentos que levam à obediência filial.
Numa alusão ao status de família imaculada, a matriarca das Alba exige de cada
163
integrante da casa, sobretudo das criadas, que a limpeza e a organização do espaço
estejam impecáveis, de acordo com os seus critérios ditatoriais. Tudo precisa estar
funcionando e limpo e, para tal, cada uma deverá saber a sua função e exercê-la a
contento. Qualquer deslize nesse movimento será severamente punido, não
necessariamente por Bernarda, mas também pela própria consciência que
internalizou e naturalizou a dominação da matriarca. Por isso, no primeiro ato:
La Poncia (A voces) ¡Ya viene! (A la Criada) Limpia bien todo. Si Bernarda
no ve relucientes las cosas me arrancará los pocos pelos que me quedan.
(LORCA, 2005, p. 36).
Mesmo quando Bernarda está ausente, a sua atuação se faz perceber, seja
pelo medo que desperta nas habitantes da casa, seja pela revolta que causa em
cada uma das suas subordinadas. Os olhos de Bernarda estão em todo lugar, seus
ouvidos tudo podem escutar, até mesmo os pensamentos. A vigilância exercida pela
matriarca das Alba é o principal componente do cenário até aqui descrito.
A casa tão asseada, tão protegida dos olhares públicos, uma vez que se
traduz em impenetrável fortaleza por seus muros grossos, mantém com os visitantes
casuais um distanciamento obrigatório. Bernarda não vê com bons olhos a presença
de intrusos, mas ocasionalmente os recebe. Tal exceção na rotina da casa, contudo,
ocorre dentro de certos limites. Em ocasião da morte de Benavides, por exemplo, os
estranhos a casa não foram integrados ao espaço, mas tão somente aceitos como
inevitáveis presenças temporárias. Sobre essas pessoas La Poncia sentencia no
primeiro ato:
La Poncia - (...) Que se sienten en el suelo. Desde que murió el padre de
Bernarda no han vuelto a entrar las gentes bajo estos techos. Ella no quiere
que la vean en su domínio. ¡Maldita sea! (LORCA, 2005, p. 37).
A única via de comunicação com o pátio é uma porta que separa o espaço da
sala indevassável aos olhos dos de fora da família do único espaço
ocasionalmente público. A transição de pessoas por essa porta não é uma rotina
observável no decorrer da peça. Apenas Bernarda e as criadas costumam fazê-lo.
Contudo, Adela e Maria Josefa, mulheres transgressoras e contestadoras da
autoridade de Bernarda, manifestam o desejo de saírem por ela, estabelecendo com
164
o outro lado uma relação de sonho e liberdade. Assim, se o pátio é um território
possível para os visitantes ocasionais, para as filhas de Bernarda ele é um espaço
proibido. A descrição da casa sugere que o pátio leva ao portão e o grande temor
manifestado pela viúva de Benavides é a aproximação de suas filhas com o
ambiente externo a sua casa. Tal preocupação se manifesta na seguinte passagem
do primeiro ato:
Martirio Nos vamos a cambiar la ropa.
Bernarda Sí; pero no el pañuelo de la cabeza. (Entra Adela.). ¿Y
Angustias?
Adela (Con retintín) La he visto asomada a la redinja del portón. Los
hombres se acababan de ir.
Bernarda - ¿Y tú a qué fuiste también al portón?
Adela Me llegué a ver si habían puesto las gallinas.
Bernarda ¡Pero el duelo de los hombres habría salido ya!
Adela (Con intención) Todavía estaba un grupo parado por fuera.
Bernarda (Furiosa) ¡Angustias! ¡Angustias! (LORCA, 2005, p. 55-56).
O portão, via de comunicação com a rua, mantém no decorrer da peça a
necessária tensão estabelecida pela dualidade lorquiana já assinalada: o principio
da autoridade em constante oposição ao princípio da liberdade. A lei social que
impera nos domínios de Bernarda se vê constantemente ameaçada pela lei natural
simbolizada pela rua, bem como pela porta que dará no cercado, onde vivem, a
princípio, as galinhas e uma ovelha que no terceiro ato aparecerá no colo de Maria
Josefa, simbolizando o filho que ela, em sua loucura, acredita ter tido. É no cercado
que se darão os encontros entre Adela e Pepe el Romano e para lá também será
desferido o tiro de Bernarda contra o genro duplo. E como local privilegiado do
conflito, é justamente ali que Adela sairá desesperada ao encontro de seu amor que
suspeitava morto. De lá todos saberão do seu desfecho.
Para além desse pátio, um outro será citado na didascália que abre o terceiro
e último ato da peça. Trata-se do local onde as refeições são servidas, devidamente
distantes dos olhares externos.
Cuatro paredes blancas del patio interior de la casa de Bernarda. Es de
noche. El decorado ha de ser de una perfecta simplicidad. Las puertas
iluminadas por la luz de los interiores dan un tenue fulgor a la escena. En el
165
centro, una mesa con un quinqué, donde están comiendo Bernarda y sus
hijas. La Poncia las sirve. Prudencia está sentada a parte (LORCA, 2005, p.
135).
É significativa a informação de que uma pessoa de fora da casa esteja
presente na refeição descrita pela rubrica. Contudo, ao sermos informados da
presença de Prudencia, somos imediatamente alertados de que ela não está
sentada à mesa, mas sim à parte, o que continua a configurar o estabelecimento do
isolamento familiar em relação aos estrangeiros. A personagem externa, quando
adentra o recinto da clausura, traz informações do mundo de fora, mas numa
linguagem que corresponde aos anseios de Bernarda. Prudencia não é
transgressora, muito pelo contrário. A sua pequena atuação na cena acaba por
confirmar a força da grande Alba, além de justificar as informações sobre o
casamento de Angustias e Pepe e a repercussão que tal união está gerando no
povoado. Com essa entrada, Lorca consegue localizar a casa de Bernarda Alba num
contexto Andaluz e não em um mundo paralelo.
Por meio dessa informação, podemos pensar que a casa de muros grossos
mantém uma comunicação com o seu envoltório. As ocorrências do povoado, de sua
gente e de seus costumes, ganham a ciência das Alba por meio de La Poncia, ou
através de alguma alegoria que desperta o interesse e o conhecimento por aquilo
que ultrapassa as paredes do cenário único. Os fatos externos cumprem a função
dramática de movimentar os conflitos internos da casa e de suas personagens.
O final do segundo ato, por exemplo, é invadido por uma movimentação
sonora vinda da rua, que logo desperta o interesse das moradoras da casa. Em
pouco tempo descobrimos que a confusão é fruto de uma tentativa de linchamento
contra a filha solteira de la Librada que teve um filho e o matou, escondendo o corpo
da criança embaixo de uma pedra, por vergonha. Ocorreu que uns cachorros
encontraram a prova do crime, levando-a até a porta da mãe assassina, fazendo
com que todos do povoado descobrissem o ato ocultado. Diante da ameaça de
linchamento, as Alba clamam por castigo, menos Adela, que se compadece da sina
da mãe solteira. É provável que ela também esteja grávida, ou com medo de estar,
como podemos ver no segundo ato:
166
(Afuera se oye un grito de mujer y un gran rumor)
Adela ¡Que la dejen escapar! ¡No salgáis vosotras!
Martirio (Mirando a Adela) ¡Que pague lo que debe!
Bernarda (Bajo el arco) ¡Acabar con ella antes que lleguen los guardiãs!
¡Carbón ardiendo en el sitio de su pecado!
Adela (Tomándose el vientre) ¡No! ¡No!
Bernarda ¡Matadla! ¡Matadla! (LORCA, 2005, p. 131-132).
Todo assunto que gira em torno da transgressão da mulher esbarra no
comprometimento assumido por Bernarda de não instituir na casa o diálogo que
ameace o bom funcionamento da disciplina. Os horizontes da mulher são os limites
dos muros grossos e tudo que ocorre para além deles é pecado, erro e merece ser
punido. Muitos temas são ali proibidos. É o caso da loucura, tantas vezes
mencionada como o mal que assola Adela. Quando Angustias acusa a irmã mais
nova de louca, Martirio adverte, também no segundo ato:
Martirio No habléis de locos. Aqui es el único sitio donde no se puede
pronunciar esta palabra (LORCA, 2005, p. 93).
A loucura está diretamente ligada no discurso de Bernarda à insubordinação e
a vergonha. Por isso Maria Josefa precisa ser trancafiada, para que os vizinhos não
percebam a existência de uma louca na família. Ademais, todos os assuntos que
despertem conflitos deverão ser sufocados naquele recinto, para que a imagem de
família imaculada continue sendo preservada diante do julgo social. Para Bernarda,
um dos pilares que sustentam a lei da casa é o silêncio. Tudo precisa estar
devidamente concentrado em uma atmosfera de discrição, pois nada deverá sair da
casa e chegar aos ouvidos dos vizinhos, que estão sempre por ali, a espera de
algum escândalo, de alguma fofoca. Então, no segundo ato:
Bernarda (Entrando con su bastón.) ¡Qué escándalo es éste en mi casa e
con el silencio del peso del calor! Estarán las vecinas con el oído pegado a
los tabiques (LORCA, 2005, p. 112).
167
O silêncio exigido na casa contrasta com os gritos que nem todas conseguem
silenciar. No terceiro ato, temos:
La Poncia (...) ¿Tu ves este silencio? Pues hay una tormenta en cada
cuarto. El día que estallen nos barrerán a todas (LORCA, 2005, p. 153).
O claustro se revela como guardião do conflito, como cenário de um turbulento
processo de contestações e resignações forjadas. Todas desejam expor o
sofrimento que lhes assola, mas o desejo nem sempre corresponde à prática, pois
impera entre algumas delas o instituto do medo. Ainda assim a expectativa da
mudança encontra espaço para os devaneios do sonho, como nos é apresentado no
terceiro ato:
La Poncia A mí me gustaría cruzar el mar y dejar esta casa de guerra
(LORCA, 2005, p. 154).
Apesar de ser uma casa de mulheres,
La Poncia Son mujeres sin hombre, nada más (LORCA, 2005, p. 155). (...)
a casa de Bernarda é constantemente influenciada pela presença masculina. O
homem está presente no discurso e no silêncio, na lágrima e no sorriso, na mais
doce tristeza e na mais ocultada felicidade. A presença masculina na casa, todavia,
resume-se ao discurso. Falam, sobretudo, de Pepe el Romano, mas vez ou outra
despontam outros nomes, como o do marido falecido de Bernarda Antonio María
Benavides ou dos homens estrangeiros que conduziam Paca la Roseta em seus
momentos de luxúria, ou ainda os homens que vêm em certas épocas do ano para o
povoado, destinados a algum trabalho. A presença masculina nessas ocasiões
modifica a vida do lugar, e insinua que a sexualidade das mulheres da casa passa
por novas interpretações. A aparente resignação cede espaço a elucubrações
individuais, inconfessáveis, mas igualmente inevitáveis, como percebemos no
segundo ato:
La Poncia No hay alegría como la de los campos en esta época. Ayer de
mañana llegaron los segadores. Cuarenta o cincuenta Buenos mozos.
168
Magdalena ¿De dónde son este año?
La Poncia De muy lejos. Vinieron de los montes. ¡Alegres! ¡Como árboles
quemados! ¡Dando voces y arrojando piedras! Anoche llegó al pueblo una
mujer vestida de lentejuelas y que bailaba con un acordeón, y quince de
ellos la contrataron para llevársela al olivar. Yo los vi de lejos. El que la
contrataba era un muchacho de ojos verdes, apretado como una gavilla de
trigo (LORCA, 2005, p. 104).
A tristeza feminina é disposta contra a alegria e o prazer dos homens e para
suplantar a dor da comparação vimos no discurso a ascese da idéia de pecado. O
homem feliz é o homem transgressor, bem como a felicidade feminina pautada no
prazer é um equívoco característico das forasteiras. Os homens de fora, assim como
as mulheres estrangeiras (estranhas às mulheres do lugar) são sempre
responsabilizados por qualquer desvio de conduta. Tanto a mulher que dançava com
lantejoulas, quanto Paca la Roseta foram tomadas por homens externos ao
povoado, sendo também elas de fora.
A presença masculina nos arredores da casa também é simbolizada através
de um canto que se ouve em certo momento do segundo ato.
(Se oye un canto lejano que se va acercando)
La Poncia Son ellos. Traen unos cantos preciosos.
Amelia Ahora salen a segar.
Coro: Ya salen los segadores
En busca de las espigas
Se llevan los corazones
De las muchachas que miran
(Se oyen panderos y carrañacas. Pausa. Todas oyen en un silencio
traspasado por el sol).
Amelia ¡Y no les importa el calor!
Martirio Siegan entre llamaradas.
Adela Me gustaría poder segar para ir y venir. Así se olvida lo que nos
muerde (LORCA, 2005, p. 105-106).
Além de apontar para a liberdade do homem naquela sociedade e na
chamada “ordem natural das coisas”, essas cenas atestam para uma consciência do
169
poder masculino que dialoga com o sobrenatural. Os homens conseguem inclusive
resistir ao calor intenso, como se não o sentisse. Ser homem na cultura patriarcal é
ter o direito de ir e vir e de esquecer, durante o trabalho e no exercício da liberdade,
todos os males que lhe afligem.
Para não fugir totalmente das suas alegorias místicas, Lorca simboliza o
masculino, em sua ausente-presença, na figura de um cavalo garanhão que ronda a
casa à espreita das éguas que Bernarda cria no cercado. O cavalo dá coices contra
o muro e o ruído do seu instinto assombra as moradoras, ao mesmo tempo em que
lhes desperta desejos. Trata-se da inevitabilidade da paixão, da força do instinto que
mais cedo, ou mais tarde, tomará conta dos corações e dos corpos masculinos e
femininos, como adianta o terceiro ato:
Bernarda El caballo garañón, que está encerrado y da coces contra el
muro (LORCA, 2005, p. 137).
(...)
Adela El caballo garañón estaba en el centro del corral. ¡Blanco! Doble de
grande. Llenando todo lo oscuro
Amelia Es verdad. Daba miedo. ¡Parecía una aparición!
Adela Tiene el cielo unas estrellas como puños (LORCA, 2005, p. 146-
147).
É de suma importância observar a cor do cavalo que serve de alegoria nesta
passagem. Em toda a peça Lorca define o branco como a cor mais presente na casa
e, sempre que possível, faz questão de contrastá-la com o negro do luto
representado pela roupa e pelos leques. Há ocasiões em que ele enegrece o céu,
permitindo que no contraste entre branco e preto os sentimentos sejam revelados a
partir de uma similar dicotomia: liberdade branca x autoridade negra, felicidade
masculina branca x tristeza feminina negra, a vida é branca x a morte é negra. Na
sobrevida daquelas mulheres que convivem com a morte, seus horizontes são
inevitavelmente negros. Por isso, quando Adela ousa um vestido verde o símbolo
da esperança o destino reserva-lhe a morte império do negro. No terceiro ato,
que abriga a citada morte, a idéia de noite não vem apenas com a escuridão
habitual. É preciso criar um breu ainda mais intenso a esconder segredos e
170
desfechos trágicos. O negro da noite e a forjada pureza branca das Alba têm neste
cenário seu último e derradeiro embate, como mostra o terceiro ato:
Amelia ¡Qué noche más oscura!
Adela No se ve a dos pasos de distancia.
Martirio Una buena noche para ladrones, para el que necesite escondrijo
(LORCA, 2005, p. 146).
Com essa breve descrição dos cômodos e arredores do cenário principal,
seus elementos, cores e acessórios, reunimos informações importantes sobre a
atuação dominadora de Bernarda e seus instrumentos de exercício. Seus olhos que
tudo vigiam e que contam com outros olhares vigilantes (como os de La Poncia),
necessitam desses traços arquitetônicos passíveis à observação, tendo nas vias de
saída da casa uma constante ameaça que confere movimento a ação dramática.
As portas que dão em partes externas terminam por possibilitar a visão da rua e, por
conseguinte, atiçam a sede de liberdade das filhas-prisioneiras. A janela de Adela
sinaliza para a materialização de suas ilusões, funcionando como combustível que
alimenta seus anseios de fuga, ao passo que o cercado garante o contato tanto da
caçula, como o da avó louca, com o que resta de natureza e instinto naquele
território de regras estabelecidas arbitrariamente os animais. Em algumas
passagens este contato com os animais estabelece símbolos alegóricos capazes de
traduzir o universo interno das personagens e contrapô-los ao que há de realmente
natural e instintivo.
Diante do desenho cenográfico que cerceia a história das Alba podemos
empreender uma primeira aplicação do nosso método sociológico. Comecemos pelo
mapa marxista concebendo a casa como espaço de desenvolvimento das
relações de trabalho.
É correto afirmar que a residência das Alba mantém para com as suas
moradoras uma relação similar ao contexto fábrica/ trabalhador. A disciplina exigida
pela líder (chefe) distribui entre as suas interlocutoras (proletárias) diversas funções
que correspondem à limpeza, à arrumação, à costura, à preparação da comida.
Sobre elas recai o dever de atingir as metas, pois toda ação empreendida
(trabalho) será devidamente observada e julgada por Bernarda. Há um código
estabelecido, com regras bastante definidas e, para algumas La Poncia e Criada
171
haverá uma recompensa em forma de salário. Essas duas personagens vendem
sua força de trabalho, pois não possuem os meios de produção (a casa). As
filhas, por sua vez, em retribuição ao que produzem (obediência, insubordinação,
enxoval, outras prendas domésticas) poderão ganhar a aprovação ou a reprovação
da mãe, o que implica também numa forma de pagamento, visto que a Bernarda
pertencem os meios práticos capazes de garantir a subsistência de todas. Mesmo
Angustias, que possui a herança do pai, precisará participar desses rituais
domésticos, pois a ela não foi dado o direito de usufruir os bens herdados.
Como salientamos no capítulo anterior, consideramos a categoria ‘trabalho’
nesta tese como ‘a capacidade que o indivíduo tem de transformar a realidade a sua
volta, de forma material ou subjetiva, tratando de reunir os meios necessários para a
subsistência no plano da materialidade ou das subjetividades’. Por isso, estamos
tratando a casa e as relações observadas dentro dela como pautadas numa divisão
social do trabalho aos moldes de Marx onde, de um lado, está Bernarda
detentora dos meios de produção e do outro as filhas e as criadas vendendo
sua ‘força de trabalho’ em troca de teto, comida e outras demandas materiais ou
afetivas.
Diante da casa, podemos também recorrer ao conceito de materialismo
histórico, uma vez que arquitetonicamente o espaço é sinalizador de certo status
social abastado. A casa de muitos cômodos, com duas empregadas, criação de
animais e paredes impecavelmente brancas logo, conservadas contrasta com as
informações de um povoado sem fontes, de poços, ‘onde se bebe água com medo
de que possa estar envenenada’. A divisão entre as partes públicas (ou quase
públicas) os pátios e as partes privadas os ambientes internos (sala, quartos,
cozinha) refletem a hierarquia material estabelecida por Bernarda, para quem ‘os
pobres são feitos de uma outra substância’.
Com o mapa durkheimiano podemos enxergar a casa como a
materialização da consciência coletiva/ social, pois a disposição panóptica dos
cômodos deixa clara a função de vigilância constante sobre os desejos e aspirações
individuais. A casa e suas regras embutem em cada habitante certos procedimentos
sociais validados pela tradição, funcionando como o espaço ideal da realização da
educação moral. A ordem das coisas materiais ou não garantirá a coesão ou
despertará, à revelia da mãe, um estado de anomia.
172
A casa, de acordo com o mapa weberiano, constituiria um tipo ideal de
cárcere doméstico, lócus de uma dominação tradicional a despertar nas
enclausuradas distintos sentidos para as suas ações sociais.
Assim colocado, cumpre adicionar ao estudo sociológico da casa a idéia, já
sinalizada, de panoptismo. O termo conferido a Benthan e analisado por Foucault
no seu Vigiar e Punir é caracterizado como uma prática prisional que possibilita a
exposição do recluso em detrimento do obscurantismo próprio das masmorras. O
princípio da prisão é, pois, invertido: ao invés de recolher escondendo, o panóptico
opta pela visibilidade do encarcerado. Acompanhando o raciocínio de Foucault
temos nesse modelo de claustro uma perda imediata da privacidade do detento. Na
disposição arquitetônica de um presídio assim concebido encontraremos
na periferia, uma construção em anel; no centro uma torre; está é vazada
de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção
periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da
construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às
janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a
cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central e, em
cada cela, colocar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um
escolar (...) Em suma, o princípio da masmorra é invertido, ou antes de suas
três funções trancar, privar de luz e esconder só se conserva a primeira
e suprime-se as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia captam
melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma
armadilha (Foucault, 1983, p. 177).
Guardadas as devidas diferenças, o cenário da peça pode nos remeter a esse
tipo de arquitetura, onde os olhos atentos da matriarca e de La Poncia funcionam
como os olhos do guarda situado na torre central. Cada filha, em sua sela, é vigiada
até mesmo no plano das aspirações e a punição por qualquer espécie de desvio é
um desfecho certeiro para as infratoras.
Além de ser um espaço propenso à vigilância, a casa das Alba mantém muito
bem definidos os limites de atuação das mulheres. Estas, sempre localizadas nas
partes mais internas quarto, cozinha só podem acompanhar à distância a
predominância dos homens (e de Bernarda a mulher empossada no trono do
homem falecido, seu marido) nas partes que se comunicam com a rua sala, pátio,
173
portão. Tal divisão sexual dos espaços sociais foi tratada por Pierre Bourdieu em
seu livro A Dominação Masculina.
O citado estudo de Bourdieu (1999), resultado de uma minuciosa etnografia
da sociedade Cabila, aponta para a estruturação cultural advinda da organização
sexual das relações sociais. Tal organização encontra na família o primeiro alicerce
que estabelece as diferenças entre homem e mulher. Os papéis ocupados pelo pai e
pela mãe são mostrados desde cedo para a criança; esta aprende que existe um
espaço de atuação para o masculino e outro para o feminino. Enquanto o pai atua
no plano público na sala, na varanda, ou seja, nos lugares mais visíveis e
sociáveis da casa caberá à mãe os cômodos mais privados, mais íntimos como a
cozinha e o quintal.
Entre os sexos o trabalho também se mostrará dividido. Os homens serão
associados às atividades mais nobres, ao passo que as mulheres terão de realizar
as tarefas menos valorizadas como a colheita e o preparo dos alimentos. No
entanto, quando um mesmo trabalho é realizado pelos dois sexos, a sociedade
reconhecerá como superior a atuação masculina.
A explicação nativa para essas diferenças e a hierarquia que delas resulta,
está pautada em causas naturais. Os indivíduos possuem, segundo os Cabila,
anatomia distinta e, por serem fisicamente desiguais, são potencialmente diversos.
Entre os Cabila e Bourdieu argumenta que não só entre eles podemos falar em
uma construção social do corpo sexualizado, onde a ereção masculina e seu
movimento para o alto determina a posição superior do homem no ato sexual e, por
isso, também na sociedade. Ele é naturalmente ativo, enquanto a mulher por
necessitar da penetração do homem para cumprir sua função maior (maternidade)
é um ser habitualmente passivo. Ela possui um corpo que não conseguiria
sobreviver sozinho; sua posição inferior no intercurso carnal sinalizaria para essa
dependência. O homem, em contrapartida, possui a semente que fará sua barriga
crescer e dar a luz, logo, dependerão de uma ação masculina a continuidade da vida
e a funcionalidade da mulher.
Do que foi relatado no parágrafo anterior podemos deduzir que a dominação
masculina entre os Cabila e entre as sociedades ocidentais que conhecemos
não precisa de grandes justificativas para existir. As diferenças anatômicas e a
leitura que fizeram delas construíram uma enorme máquina simbólica que determina
os fatos da vida social a partir da aceitação universal de um corpo sexualizado e das
174
obrigações inerentes a esse corpo. Assim, homens e mulheres encontram-se presos
a um jogo de signos que deverão determinar suas posturas e seus anseios. Essas
convenções são vistas com naturalidade e são passadas através das gerações.
Dito isto, torna-se mais compreensível a autoridade exercida por Bernarda e a
conseqüente obediência das filhas. A subordinação dessas últimas ao cenário que
lhes serve de claustro encontra nessa análise proposta por Bourdieu um caminho de
significação que poderá ser de grande valia ao usarmos as coordenadas do mapa
weberiano referentes à ação social.
Uma vez desenhados os contornos do cenário e refletidas as suas
imposições, contemplemos no bosque a formação das pessoas morais para
retornar a Hegel começando pela protagonista.
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(LORCA,2005, p.
36)
Empreender uma análise sobre Bernarda Alba implica riscos gravíssimos
caracterizados pela sedutora crença na disponibilidade abundante de dados sobre
ela no decorrer do texto, como lemos nesta definição do primeiro ato, aqui utilizada
para ilustrar o título da presente seção. Lorca, ao compor sua obra, oferece nas
réplicas de todas as personagens ao menos uma informação relevante sobre a
constituição identitária de Bernarda. Também utiliza o recurso da personagem-
confidente para que a própria Bernarda fale sobre o seu sentir, seus objetivos e suas
demandas mais íntimas. Todavia, encontramos uma série de não-dizeres nas
entrelinhas de sua atuação. Podemos perceber que no silêncio e nos olhos que tudo
vêem há uma parcela significativa da identidade que se oculta ao mesmo tempo em
que se revela. Bernarda, por sua complexidade, encontra-se inscrita no cenário, nas
filhas, nas empregadas, na mãe e em si mesma.
A primeira informação que temos acerca de sua conduta dominadora nos
chega através do diálogo inicial entre a Criada e La Poncia, revelador de um domínio
que abrange todos os campos da casa, desde a comida até os destinos de suas
moradoras.
La Poncia ¡Quisiera que ahora, como no come ella, que todas nos
muriéramos de hambre! (LORCA, 2005, p. 35).
175
Na ausência de Bernarda, as empregadas tecem sobre ela uma descrição
minuciosa, alternando rancor e desprezo, ao mesmo tempo em que sinalizam para a
inevitabilidade da manutenção entre elas daquela relação de dependência. Bernarda
não é somente uma patroa, mas também um algoz. E essa condição é suportada
não apenas pelo laço econômico que interliga patrões e empregados, mas também
por questões outras que serão reveladas no decorrer da história.
La Poncia (...) ¡Mandona! ¡Dominanta! (...) (LORCA, 2005, p. 35)
O controle exercido por Bernarda, na visão de La Poncia, ultrapassa o desejo
de manutenção da ordem. A matriarca das Alba sentiria prazer em observar o
sofrimento alheio e este prazer derivaria de um exercício doentio de poder, como
insinuado no primeiro ato:
La Poncia (...) Es capaz de sentarse encima de tu corazón y ver cómo te
mueres durante un año sin que se le cierre esa sonrisa fría que lleva en su
maldita cara (...) (LORCA, 2005, p. 36).
Ao se posicionar no privilegiado campo do poder, Bernarda se consideraria
melhor que todas as outras mulheres e a sua conduta se converteria em modelo a
ser seguido por todas. Nas falas de La Poncia essa condição de referência nortearia
as demandas da casa e de suas habitantes:
La Poncia Ella, la más aseada, ella la más decente, ella, la más alta. (...)
(LORCA, 2005, p. 36).
Tais afirmações, todavia, não fazem de Bernarda verdadeiramente
considerada um baluarte da moral e dos bons costumes vigentes. O discurso nada
modesto da mãe das Alba enfrenta como conseqüência uma obediência advinda do
medo e não da crença em suas virtudes. Ademais, longe de ser uma unanimidade,
Bernarda é mal-quista pela família do falecido marido, que nem mesmo aparece no
velório. Esse afastamento por parte dos parentes de Benavides, contudo, não é
lamentado pela protagonista da peça, uma vez que o seu território familiar, como
dissemos acima, não é afeito a penetrações externas. Ao ser comunicada, no
primeiro ato, que os homens do pátio, amigos de Benavides, ofertaram certa quantia
176
em dinheiro para as despesas do funeral, a viúva não se sensibiliza com o gesto
solidário e decreta:
Bernarda Que salgan por donde han entrado. No quiero que pasen por
aqui (LORCA, 2005, p. 46)
O domínio da mulher que assumiu o papel masculino para exercer o poder
não pode ser violado pelos olhares externos que condenam a vivência da dicotomia
poder x feminino. A senhora das Alba precisa ser a única, a líder, a fonte máxima de
autoridade. A casa dela deveria ser um universo à parte, um núcleo fechado, que
nunca se abre e nunca concede inserções. Apenas as duas criadas são aceitas
naquele recinto de intimidades arbitrariamente compartilhadas. E ao serem aceitas
no sagrado reduto da família, elas possuem bem definidas as suas funções de
servir. Nenhuma abertura afetiva é considerada na relação estabelecida entre elas e
as demais moradoras, o que torna áspera a convivência e mordazes as críticas.
La Poncia, por exemplo, diz que Bernarda teve cinco filhas feias e que, se
uma delas está sendo cobiçada por um homem é devido ao dinheiro que herdou do
pai. No caso, Angustias, a pretendente de Pepe el Romano é filha do primeiro
casamento de Bernarda, do qual também resultou uma viuvez. Nenhuma das Alba,
por meio do discurso das criadas, possuiria atrativos suficientes para despertar em
um homem algum tipo de interesse sincero.
Na mesma direção, a leitura que Bernarda faz de suas criadas não prima pela
gentileza e pelo afeto. Existe uma clara consciência de classe (mapa marxista),
desencadeadora de uma clivagem indestrutível. De um lado está Bernarda a
mandar, do outro está o mundo dos servos a cumprir suas ordens, como
averiguamos no primeiro ato:
Bernarda (Para a criada) (...) No es éste tu lugar. (La Criada se va
sollozando) Los pobres so como los animales. Perece como si estuvieran
hechos de otras sustâncias (LORCA, 2005, p. 44)
....
La Poncia Contigo no se puede hablar. Tenemos o no tenemos
confianza.
Bernarda No tenemos. Me sirves y te pago. ¡Nada más! (LORCA, 2005, p.
61).
177
Essa consciência de classe e a conseqüente separação entre ricos e pobres,
dominantes e dominados, não se resume aos serviçais da casa, mas cumpre a
função de qualificar todos àqueles que pertencem, na leitura de Bernarda, ao
universo dos imorais. Quando contestada, ainda no primeiro ato, por uma das
mulheres do velório acerca dos sentimentos dos pobres, ela afirma que esses
sentimentos são esquecidos por um prato de comida.
Mujer 1 Los pobres sienten también sus penas.
Bernarda Pero las olvidan delante de un plato de garbanzos (LORCA,
2005, p. 44).
A desqualificação do indivíduo varia no discurso de Bernarda entre a classe
econômica, o gênero e a faixa etária. Os jovens, por exemplo, são proibidos de
expressar opiniões, pois as mais acertadas estão sob os domínios dos mais velhos.
Muchacha (Con timidez) Comer es necesario para vivir.
Bernarda A tu edad no se habla delante de las personas mayores
(LORCA, 2005, p. 44).
Tal postura faz com que Bernarda tenha uma leitura extremamente negativa
por parte do grupo social que cerca a casa. Ao longo da cerimônia fúnebre “as
mulheres de fora” argumentam clandestinamente:
Mujer 2 (Aparte y en baja voz). ¡Mala, más que mala!
Mujer 3 (Aparte y en baja voz) ¡Lengua de cuchilo! (p.46)
La Poncia (Entre dientes.) ¡Sarmentosa por calentura de varón! (I LORCA,
2005, p. 47).
Lorca possui pouco tempo para apresentar ao leitor essas opiniões externas
acerca da personalidade de Bernarda, uma vez que, terminada a cerimônia, as
intrusas são imediatamente mandadas embora.
Bernarda (...) ¡Andar a vuestras cuevas a criticar todo lo que habéis visto!
Ojalá tardéis muchos años en volver a pasar el arco de mi puerta (LORCA,
2005, p. 50).
178
O fato de não admitir por muito tempo a presença de estranhos em sua casa,
colabora para o entendimento de que Bernarda não considera com bons olhos as
influências que o mundo externo podem exercer sobre as suas filhas. Não só as
pessoas que vivem no povoado são desqualificadas, mas também o cenário que
lhes serve de abrigo é diminuído. Desta feita, vimos no primeiro ato:
Bernarda Es así como se tiene que hablar en neste maldito pueblo sin rio,
pueblo de pozos, donde siempre se bebe agua con el miedo de que esté
envenenada (LORCA, 2005, p. 51)
A constante tensão presente no discurso de Bernarda entre o ser e o dever
ser de suas filhas e de sua gente, caminha na direção do medo que as más
influências podem ocasionar quando o espaço público ganha demasiadamente o
espaço privado. As mazelas das mulheres que transgridem e dos homens que não
respeitam o sexo oposto acompanham as justificativas da tirana, que pauta o seu
domínio no pretenso bem estar (coesão social pelo mapa durkheimiano) daqueles
que governa. Diante das ameaças de um mundo desordenado (anômico pelo mapa
durkheimiano), de um povoado sem rios, de poços, onde a água que se bebe pode
estar envenenada, os papéis sociais ali representados precisam estar em
conformidade com a moral propagada pela instituição familiar (educação moral
pelo mapa durkheimiano). Em sua fala, ainda no primeiro ato, a atuação de
homens e mulheres conta com uma normatização assim sintetizada:
Bernarda (...) Hilo y aguja para las hembras. Látigo y mula para el varón.
Eso tiene la gente que nace con posibles (LORCA, 2005, p. 53).
A trajetória feminina é para ela um caminho solitário. Uma mulher honesta se
basta quando aceita a sua sina de cumprimento de deveres morais e religiosos.
Ainda que desejasse casar uma das herdeiras, não haveria naquele lugar homens a
altura. Afinal, as Alba, na concepção de Bernarda, são diferentes de todos do
povoado, superiores em educação e outros códigos.
Os problemas da chefe de família começam quando os códigos que supunha
bem definidos para as filhas, interiorizados e vivenciados no dia-a-dia, apresentam
discrepâncias com a atuação delas. O conflito está estabelecido em sua casa. A
partilha da herança faz de Angustias a mulher mais rica e Bernarda permanece no
179
desejo de ser a mulher mais forte; ao mesmo tempo, Adela e Martirio desejam o
noivo da irmã mais velha e este cobiça a cunhada mais nova. No auge da tensão, no
segundo ato, a mulher-fortaleza ensaia um discurso de lamento:
Bernarda ¡Silencio digo! Yo veía la tormenta venir, pero no creía que
estallara tan pronto. ¡Ay, qué pedrisco de odio habéis echado sobre mi
corazón! Pero tadavía no soy anciana y tengo cinco cadenas para vosotras
y esta casa levantada por mi padre para que no las hierbas se enteren de
mi desolación. ¡Fuera de aquí! (...) (LORCA, 2005, p. 117).
Diante do conflito, o pulso firme da Bernarda contrasta com a desolação da
mãe que vê as filhas seguindo por caminhos tortuosos. A matriarca, todavia, não se
deixa abater e recupera a condição de domínio recorrendo à casa como instrumento
de reclusão, punição e ensinamento. O que os apelos de sua voz não conseguem
consertar, os olhos de sua masmorra podem ocultar do mundo. As paredes da casa
não são apenas depositárias dos quadros, mas sim limites de atuação e telas de
vigilância. Naquele cenário panóptico nada lhe escapa, como indicam estes trechos
do terceiro ato e do segundo ato, respectivamente:
Bernarda En esta casa no hay un sí ni un no. Mi vigilancia lo puede todo
(LORCA, 2005, p.150).
La Poncia Siempre has sido lista. Has visto lo malo de las gentes a cien
leguas; muchas veces creí que adivinabas los pensamientos (LORCA,
2005, p.119).
Se Bernarda não pode convencer por meio do discurso, ela obriga por via da
autoridade. Quando seus olhos se fecham, outros olhares proporcionam relatórios.
Ela tudo comanda, pois é a dona da verdade, da forma como encontramos no
terceiro ato:
Bernarda Cada uno sabe lo que piensa por dentro. Yo no me meto en los
corazones, pero quiero buena fachada y armonía familiar. ¿Lo entiendes?
(LORCA, 2005, p. 144).
180
Ainda que pautada apenas nas aparências, a ordem da casa é uma bandeira
que ela faz questão de erguer. Sob o seu comando tudo estará bem, ainda que não
esteja de fato. Aliás, ela defende ser esse o papel da mulher no casamento: o de
maquiar os problemas, representando uma serenidade absoluta diante dos
“desmandos naturais dos homens”. Quando Angustias pede aconselhamento à mãe
sobre a desconfiança causada pelo comportamento arredio de Pepe, obtém, no
terceiro ato, a resposta que segue:
Bernarda No le debes preguntar. Y cuando te cases, menos. Habla si él
habla y míralo cuando te mire. Así no tendrás disgustos
Angustias Yo creo, madre, que él me oculta muchas cosas.
Bernarda No procures descubrirlas, no le preguntes y, desde luego, que
no te vea llorar jamás (LORCA, 2005, p. 145).
A condição da mulher seria uma premissa da tradição, da natureza e da moral
universal. Assim concebendo os horizontes possíveis ao seu sexo, Bernarda
transmite às filhas os ensinamentos “mais acertados” do seu ponto de vista - para
a assimilação desse lugar social submisso e inevitável. Diante da curiosidade
rebelde de Adela, no terceiro ato, a mãe das Alba relaciona à ordem que impõe ao
estatuto de validação dado pelo tempo.
Adela Madre: ¿Por qué cuando se corre una estrella o luce un relámpago
se dice: Santa Bárbara bendita, que en el cielo estás escrita con papel y
agua bendita?
Bernarda Los antiguos sabían muchas cosas que hemos olvidado
(LORCA, 2005, p.148).
Apesar de toda vigilância, da segurança que mantém acreditando na
competência de seu domínio, Bernarda não consegue prever a formação da
desordem derradeira, a que irá culminar no desfecho dramático da peça. Ainda que
tenha assumido o espaço do poder, que tenha masculinizado a sua experiência
enquanto mentora da família, ela mesma é uma representante do sexo que acredita
comandar com voz forte e pulso firme. As estratégias de subversão das dominadas
terminam por despistar aquele controle materno.
Como mãe, ela não enxerga o que se passa nos quartos de portas cerradas e
janelas abertas para o mundo. Não verifica também que em cada coração das filhas
181
que manipula há um silencioso experimentar de transgressões emotivas. As criadas,
mulheres de fora, todavia, vislumbram a tempestade que se arma sob os olhos
cegos daquela que acredita a tudo enxergar.
La Poncia Cuando una no puede con el mar lo más fácil es volver las
espaldas para no verlo.
Criada Es tan orgullosa que ella misma se pone una venda en los ojos
(LORCA, 2005, p. 153).
Mesmo não enxergando, ou não medindo as conseqüências do conflito
instaurado na família, Bernarda não sucumbe à tragédia. Diante do inevitável, exige
que as aparências sejam mantidas. O coração de mãe dá lugar a um processo da
racionalização culturalmente restringida aos homens. Ao lado da filha morta repousa
a construída imagem de pureza que lhe serve de pilar a manter a casa erguida.
Bernarda Yo no quiero llantos. La muerte hay que mirarla cara a cara.
¡Silencio! (A otra hija.) ¡A callar he dicho! (A otra hija.) ¡Las lágrimas cuando
estés sola! ¡Nos hundiremos todas en um mar de luto! Ella, la hija menor de
Bernarda Alba, ha muerto virgen. ¿Me habéis oído? Silencio, silencio he
dicho. ¡Silencio! (LORCA, 2005, p. 172-173).
Se optarmos pelo mapa durkheimiano com o intuito de traçar algumas
coordenadas para a atuação de Bernarda Alba, nos depararemos, de início, com os
conceitos de coesão social e anomia. Todo encaminhamento da personagem
sugere essa tensão entre o desejo de obediência e o medo da rebeldia. O pulso
firme da matriarca concorre com o enfraquecimento dos laços de solidariedade
entre ela e suas subordinadas e, nesse embate, que certamente ameaça a coesão
social, não observamos a transição de um tipo mecânico para um tipo orgânico. A
organização da casa não se transforma nem especializa as funções de cada uma
das habitantes. As filhas não se individualizam, mas sim experimentam o
rompimento dos vínculos geradores de reciprocidade. No início da trama, parece
reinar uma solidariedade mecânica, isto é, pautada na obrigação, internalizada
como prática natural, mas com o advento da transgressora Adela o aparente cenário
de harmonia começa a se desintegrar. Bernarda respira ao longo de toda ação
dramática os sinais da revolução e, inspirados por esse conceito, podemos
prosseguir no bosque com o mapa marxista.
182
Guiados por Marx, somos levados a considerar Bernarda como a
burguesia instaurada no poder que traz dentro de si, e em sua atuação, os
germens da sua própria destruição. Respaldados na dialética marxista
consideramos que o poder de Bernarda é responsável pela vontade de superação
de Adela e que, enquanto a mãe impera absoluta na casa, a filha compreende que o
domínio de uma implica a infelicidade das outras. Bernarda só não é retirada do
poder, ou seja, enquanto tese ela não é superada, porque a filha transgressora
pretende fazer a revolução sozinha e não em classe, como convém. Enquanto
tese, Bernarda propaga a ideologia da classe dominante, valendo-se da alienação
de suas filhas.
Nas diretrizes apontadas pelo mapa weberiano podemos considerar
Bernarda um tipo ideal ou arquétipo da dominação tradicional. A ela pertence a
definição de caminhos, a escolha dos meios e, sobretudo, a resistência contra a
instauração de qualquer indício de racionalidade. O desejo de poder movimenta o
seu percurso e suas ações serão sempre classificadas como ação tradicional.
Sociologicamente falando, devemos nos precaver da apressada construção
do arquétipo de vilã para Bernarda. Sua ação ditatorial dialoga com um complexo
processo de formação identitária, a partir do qual a mulher se destina à resignação e
o homem ao poder. Bernarda é levada a experimentar com a morte dos maridos um
lugar social que não foi apresentado a ela quando de sua socialização inicial. Na
ausência de instrumentos cognitivos para assimilar a nova lugarização, ela executa
o poder assumindo a violência e a autoridade como vias de exercício legítimo da
dominação. Esse processo de decodificação que faz Bernarda agir severamente,
deixando de lado os vínculos afetivos com as filhas, não configura um processo
singular, mas sim uma regra tradicionalmente imposta a todas as mulheres. Tais
regras não nascem e se estabelecem ao acaso, sendo fruto de um contínuo
processo que visa inculcar valores e normas socialmente definidas e aceitas. Dentre
os muitos mecanismos de socialização podemos eleger a educação em suas
variadas formas (formal, familiar, religiosa, comunitária) para pensarmos através
dos mapas durkheimianos as citadas filiações de gênero.
Muitos são os autores a problematizar a influência que a escola estabelece
na socialização de meninos e meninas, auxiliando a construção de homens e
mulheres aprisionados em seus papéis de gênero. Analisando o quotidiano de uma
creche italiana, por exemplo, Belotti (1987) percebe que desde muito cedo a criança
183
aprende os limites e possibilidades do seu sexo, enxergando no papel da professora
maternal a continuação da figura da mãe. Não é por acaso que essa profissional
recebe o apelido de ‘tia’ uma classificação que a aproxima do universo feminino
criado para a reprodução e para o casamento. A primeira lição da escola parece ser
esta: caberão às mulheres a educação e o cuidar das crianças. Mas isso é só o
começo. A observação da rotina da instituição escolar conduziu Belotti a mais uma
constatação: meninos e meninas são educados de maneira diferente e essa
educação dialoga com as convenções identitárias que hierarquizam os sexos.
Na disposição da sala de aula a pesquisadora observará um dado
importante: meninos e meninas encontram-se divididos em dois lados que não se
comunicam. A interpenetração dos grupos não é estimulada, e quando ocorre, é
punida com castigos e vexação pública. Há um espaço para os meninos e outro para
as meninas, não sendo permitida a quebra dessa barreira.
O horário do recreio indica mais uma prática de assimetria: enquanto os
meninos correm pelo pátio, caberá às meninas a permanência na sala de aula
aonde irão se alimentar para depois auxiliar a professora no preparo e arrumação do
lanche dos demais colegas de classe. A explicação para essa rotina tão repleta de
desigualdades parece óbvia na argumentação da professora responsável pela
turma: como os meninos são mais ativos que as meninas, eles chegarão eufóricos
do recreio, atrapalhando o andamento das atividades curriculares. Se ao chegarem
na sala o lanche já estiver posto, eles irão comer e se acalmar. As meninas, que são
naturalmente mais prestativas e mais calmas, auxiliam a manter a ordem e
aprendem, de quebra, algumas das suas funções enquanto representantes do sexo
feminino: as prendas domésticas. Nesse contexto, não causa espanto o fato
apontado pelo estudo de Belotti de que os desenhos dos meninos retratam temas
diversos, livres, criativos, ao passo em que as meninas se esmeram em reproduzir o
ambiente familiar, a casa, os afazeres típicos do seu universo. De acordo com a
pesquisadora, cada sexo está sendo educado para reconhecer e propagar essas
‘diferenças’.
Montserrat Moreno (1999), também analisando o ambiente escolar, alerta
para a influência que a linguagem exerce na consolidação das diferenças de gênero.
As palavras ‘menino’ e ‘menina’ são dotadas de signos comportamentais, indicando
os caminhos que cada sexo deverá trilhar. Por meio de uma convenção lingüística,
temos determinado que o masculino é o parâmetro a partir do qual as frases
184
deverão ser construídas com suas respectivas concordâncias, devendo abarcar os
dois sexos, ainda que gramaticalmente só se refira a um. As crianças em idade
escolar deverão aprender essa difícil lição, associando a regra gramatical às demais
situações do dia-a-dia.
Aliado à língua, temos o livro didático. Em suas páginas figuram homens
ativos e mulheres passivas, envoltas em suas atribuições domésticas, retratadas por
figuras e fotos que cristalizam a mensagem. Numa secção destinada à
representação dos sentimentos Moreno verificou as seguintes associações: o amor
é relacionado à figura de uma mulher com uma criança no colo, a amizade é
sintetizada pelo aperto de mão entre dois meninos, ao passo que o medo ganha
destaque ao mostrar uma mulher apavorada em cima de uma cadeira por causa de
um pequenino rato. No mesmo caminho encontramos os livros de História e o seu
desfile de guerras e heróis que apresentam o homem como o único agente capaz de
determinar os rumos dos acontecimentos; virilidade e heroísmo são tratados como
atributos exclusivos do masculino, negligenciando a participação de outros atores
sociais mulheres, negros e homossexuais, por exemplo. Esses são apenas alguns
indícios de uma socialização pautada na diferença que estabelece desigualdades.
Os hábitos escolares aqui descritos não estão previstos no currículo oficial, não
fazem parte do conteúdo programático das instituições de ensino. Constituem aquilo
que podemos chamar de currículo oculto
26
e sua força é tão decisiva na construção
identitária do indivíduo que o passar dos anos nem sempre consegue destruir seu
aspecto de verdade.
Contudo, ainda que as identidades sexuais encontrem na escola uma forte
aliada para a sua propagação, a discussão acerca da sexualidade é tida como
assunto tabu no currículo dos colégios. Mesmo com todas as mudanças trazidas
com o Movimento Feminista e pelas demais transformações da modernidade
identidades sexuais mais flexíveis, gravidez precoce, novas tecnologias de
reprodução, novas formas de relacionamento amoroso (sexo virtual, namoros on
line), nova configuração do mercado de trabalho os assuntos relacionados ao
direcionamento e iniciação sexuais são tidos como proibidos e relegados ao campo
da família, que nem sempre satisfaz a demanda. No estudo de Louro (1999, p. 7-34)
26
Toda a discussão acerca da escola e seu papel construtor na vida do indivíduo possui uma ampla
bibliografia concentrada na área da pedagogia e da educação. Para um maior aprofundamento do
tema, consultar Jean-Claude Forquin. Escola e Cultura As bases sociais e epistemológicas do
conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
185
podemos apreender que em meio a tantas omissões a sexualidade ainda é mais
trabalhada nos meninos, embora o condicionamento sexual feminino esteja presente
na educação das garotas. O silêncio sobre o tema é uma forma eficiente de tentar
conter o interesse delas em relação ao assunto.
Recorrendo a um estudo de Philip R.D. Corrigan denominado “The making
on what grammar school did with to and for my body”, datado de 1991, Louro irá
apontar para mais um processo de escolarização do corpo e das ações da criança.
O autor descreve uma experiência pessoal vivida em uma escola particular inglesa
Aske quando de sua entrada no ginásio. Recorda que no primeiro dia de aula os
alunos mais velhos eram incentivados a bater nos novatos, para que esses
reconhecessem desde o início que estavam entrando em um território comandado
por outros homens e que, para ter direito ao seu próprio espaço, era necessário
demonstrar força, coragem e disciplina. No ano seguinte seria a vez deles
comprovarem os seus poderes e assim sucessivamente, até que muitas gerações
aprendessem o valor da masculinidade através daquela instituição de ensino. Em
Aske, no decorrer do ano letivo, o incentivo à assimilação de uma masculinidade
hegemônica se fazia presente através dos esportes, das competições e da
legitimação da violência como meio de atingir um direito inconteste. E entre as
garotas? Quais seriam as formas de treinamento de sua identidade de gênero?
Quanto à moldura do corpo feminino Louro expõe suas experiências em uma
escola da rede pública brasileira, recordando que o condicionamento da mulher
sempre foi uma preocupação das educadoras. As meninas eram educadas para
serem passivas, gentis, castas e subservientes e qualquer ato de rebeldia deveria
ser punido severamente para que servisse de exemplo às outras.
Ainda que a socialização de Bernarda tenha se dado em tempo histórico
distinto do cenário apontado pela literatura de gênero citada acima, compreendemos
que a prática que constrói homens e mulheres como sujeitos, social e culturalmente
diferenciados, remete a um passado distante, como salienta Durkheim em seus
estudos comparativos ao longo da história. No momento em que Lorca escrevia La
Casa de Bernarda Alba as identidades de gênero passavam por uma grande
excitação contestatória. De acordo com Genevois (1991), a Espanha em 1931,
estando livre do fracassado regime do Rei Afonso XIII e esperançosa com a
instauração da república, presenciou uma significativa expansão do interesse pela
mudança de rumos na história das mulheres espanholas já que
186
com efeito, para elas, a monarquia dos Bourbon havia significado a
sujeição; a Constituição de 1876 restaurara a aliança entre o trono e o altar
e restabelecera o catolicismo como religião do Estado. Sobrepondo-se ao
Código Civil, herdeiro do Código Napoleônico, e ao Código Penal
particularmente repressivo, o catolicismo mantinha as mulheres na dupla
dependência da Igreja e da lei. Os direitos políticos eram inexistentes e a
situação cultural, apesar de registrar alguns progressos, era tal que, ainda
em 1930 se registrava uma percentagem de 44,4% de mulheres
analfabetas (em 1900, cerca de 60%). Instaurada em 1923, na seqüência
de um golpe de Estado discretamente encorajado pelo próprio rei, a
ditadura do general Miguel Primo de Rivera havia instituído duas novidades:
por um lado, um decreto de 1924 concedia unicamente às mulheres chefes
de família uma forma de direito ao voto, ao nível das municipalidades,
largamente inspirada na Itália mussoliniana; por outro lado, o ditador
decidira integrar algumas mulheres na Assembléia Consultiva. Mas a sua
queda, em janeiro de 1930, tinha implicado o regresso ao statu quo ante
(GENEVOIS,1991, p. 221).
Bernarda é, pois, uma expectadora dessas mudanças, desses retrocessos e
dessas permanências da história das mulheres espanholas e de todo o mundo.
Sua ação dramática possui fortes vínculos com esses processos de libertação e
aprisionamento e, podemos, pensar que, ao agir, ela estará refletindo um aspecto da
identidade feminina de seu tempo, muito ligada à religião para poder se libertar e
demasiadamente cercada por transgressões para poder ficar alheia aos fatos. Na
figura de Adela, Bernarda sentia os efeitos da nova história das mulheres de
Espanha.
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(LORCA,2005,
p. 94).
Se Bernarda funciona no texto como o estandarte de um feminino consciente
das obrigações de seu sexo, consciência esta pautada nos ditames sociais e na
assimilação de uma cultura sexista e misógina, Adela fulgura nas cenas como a
transgressora de todas essas construções sociais, como vemos nesta réplica do
segundo ato transposta para o título da presente seção.
A filha mais nova de Bernarda, com 20 anos de idade, já demonstra em sua
primeira aparição o caráter divergente que pauta essa relação de mãe e filha. Nesta
187
ocasião, Adela oferece um leque com flores vermelhas e verdes para Bernarda,
quando esta deseja um da cor preta, para compor o luto. O gesto aparentemente
sem importância é o primeiro sinal do conflito que se desenvolverá adiante.
Bernarda (...) Niña, dame un abanico.
Adela Tome usted. (Le da un abanico redondo com flores rojas y verdes.)
Bernarda (Arrojando el abanico al suelo.) ¿Es éste abanico que se da a
una viuda? Dame uno negro y aprende a respetar el luto de tu padre
(LORCA, 2005, p. 51-52)
Na réplica que sucede a essa cena, ainda no primeiro ato, Lorca nos
apresenta o antagonismo ainda disfarçado entre Adela e Martirio. Esta última bajula
a mãe, oferecendo o leque preto, dando o primeiro passo de uma série de
perseguições contra a caçula da família.
Neste ponto, não podemos incorrer no risco de conceber exclusivamente
Adela como uma jovem perseguida em seus anseios de liberdade. Ela também se
faz perseguidora e utiliza expedientes moralmente questionáveis para afastar a irmã
mais velha do homem que cobiça.
Bernarda (...) ¿Y Angustias?
Adela (Com retintín) La he visto asomada a la rendija del portón. Los
hombres se acababan de ir.
(...)
Bernarda ¡Pero el duelo de los hombres habría salido ya!
Adela (Con intención) Todavia estaba un grupo parado por fuera.
Bernarda (Furiosa) ¡Angustias! ¡Angustias! (LORCA, 2005, p. 55-56)
Os rompantes de intriga de Adela contrastam com a pureza dos sentimentos
manifestos nos pequenos gestos, nos comentários por vezes ingênuos, repletos de
ilusões. Após o enterro do pai, quando todas as irmãs estão de luto, Adela veste um
vestido verde e caminha até o cercado de galinhas a mostrar a roupa nova às aves
que lhe servem de companhia.
Adela Tenía mucha ilusión con el vestido. Pensaba ponérmelo el día que
vamos a comer sandias a la noria. No hubiera habido outro igual (LORCA, 2005,
p. 72).
188
Na seqüência, enquanto suas irmãs falam da beleza do vestido e do belo
corte feito por Magdalena, sugerem que Adela deve tingi-lo de preto para adequá-lo
ao luto. Tal atitude é de pronto descartada pela caçula das Alba, o que conduz
Magdalena à sugestão de que o presenteie a Angustias, pelo casamento com Pepe.
Neste momento Adela toma conhecimento do problema que terá de enfrentar pela
frente: o homem que ama, pretende, por dinheiro, casar-se com a sua irmã mais
velha. Adela não se conforma e diante do desespero vocifera contra o luto imposto
por Bernarda, desejando, na verdade, se insurgir contra o casamento de Angustias.
Adela (Rompiendo a llorar con ira) No, no me acostumbraré. Yo no quiero
estar encerrada. ¡No quiero que se me pongan las carnes como a vosotras!
¡No quiero perder mi blancura en estas habitaciones! ¡Mañana me pondré
mi vestido verde y me echaré a pasear por la calle! ¡Yo quiero salir!
(LORCA, 2005, p. 73-74).
Após o anúncio do casamento de Angustias com Pepe, Adela passa a ser o
foco de observação da casa, devido à mudança de seu comportamento. A acusação
mais presente entre as irmãs é a de que Adela está tomada por inveja pelo
casamento da mais velha, mas Angustias chega a acusá-la de loucura no segundo
ato:
Angustias Se lo noto en los ojos. Se le está poniendo mirar de loca
(LORCA, 2005, p. 93).
A construção da imagem de Adela a partir do discurso das irmãs encontra não
só em Angustias, mas também em Martirio uma negativização com intuito de
incriminar a caçula aos olhos de Bernarda. Adela, todavia, reconhece a falsidade
das irmãs e se arma contra elas. Utilizando-se da sua beleza ao que tudo indica, a
única beleza da família ela humilha Martírio no decorrer do segundo ato,
desqualificando seus dotes de conquista.
(Entran Martirio, Amelia y Magdalena)
Magdalena (A Adela) ¿Has visto los encajes?
Amelia Los de Angustias para sus sábanas de novia son preciosos.
Adela (A Martirio, que trae unos encajes) ¡¿Y éstos?
Martirio Son para mi. Para una camisa.
189
Adela (Con sarcasmo) ¡Se necesita buen humor!
Martirio (Con inteción) Para verlo yo. No necesito lucirme ante nadie
(LORCA, 2005, p. 101).
Uma vez declarado o embate entre Adela e Martirio, toda a casa estará atenta
às mudanças no comportamento da caçula. La Poncia, cumprindo o seu papel de
informante e guardiã temporária de segredos, evidenciará para as filhas de Bernarda
que Adela tem passado muito tempo trancada no quarto. Este comportamento se
mostra diretamente ligado ao anúncio do casamento de Angustias e Pepe el
Romano, o que causa uma desconfiança generalizada sobre o sentimento de inveja
que toma conta de Adela. O que nem todas ainda sabem é que no lugar de inveja, a
filha mais nova de Bernarda sente ciúmes. Enquanto o segredo não é revelado,
algumas suspeitas são lançadas em todo segundo ato:
La Poncia Ésa tiene algo. La encuentro sin sosigo, temblona, asustada,
como si tuviera una lagartija entre los pechos (LORCA, 2005, p. 86).
Enquanto La Poncia levanta hipóteses, cria intrigas e desconfianças sobre a
mudança comportamental de Adela, caberá a Martirio investir de forma mais intensa
nas perseguições contra ela direcionadas. Adela, tomada por seus instintos
passionais, reage:
Adela (Fuerte) ¡Déjame ya! ¡Durmiendo o velando no tienes por qué
meterte en lo mío! ¡Yo hago con mi cuerpo lo que me parece! (LORCA,
2005, p. 94)
(...)
Adela ¡No me mires más! Si quieres te daré mis ojos, que són frescos, y
mis espaldas para que te compongas la joroba que tienes, pero vuelve la
cabeza cuando yo pase (LORCA, 2005, p. 95).
A rebeldia de Adela cresce em dramaticidade e logo ela passa a refletir um
sentimento maior que a tristeza individual. O conflito por ela apresentado contesta
não apenas a autoridade da mãe, mas também a submissão imposta às mulheres
por uma sociedade desigual. Sem encontrar condições de enfrentar o mundo, ela
19
0
deseja a invisibilidade para agir sem estar sob a mira dos olhares controladores da
casa-panóptica. Assim, temos no segundo ato:
Adela (...) ¡Quisiera ser invisible, pasar por las habitaciones sin que me
preguntarais dónde voy! (LORCA, 2005, p. 94)
Adela (Sentándose) ¡Ay, quien pudiera salir también a los campos!
(LORCA, 2005, p. 103)
Adela Me sigue a todos os lados. A veces se asoma a mi cuarto para ver
si duermo. No me deja respirar. Y siempre: “¡Qué lástima de cara!, ¡qué
lástima de cuerpo que no va a ser para nadie!”. ¡Y eso no! ¡Mi cuerpo será
de quien yo quiera! (LORCA, 2005, p. 94)
Com essa postura rebelde e transgressora que marca a virada cênica da
personagem, Adela ganha voz de contestação e enfrenta não só a irmã, mas
também a La Poncia que ameaça contar para Bernarda sobre o romance
clandestino da caçula das Alba com Pepe el Romano.
Adela Es inútil tu consejo. Ya es tarde. No por encima de ti que eres una
criada, por encima de mi madre saltaría para apagarme este fuego que
tengo levantado por piernas y boca. ¿Que puedes decir de mi? ¿Que me
encierro en mi cuarto y no abro la puerta? ¿Que no duermo? ¡Soy más lista
que tú! Mira a ver si puedes agarrar la liebre con tus manos (LORCA, 2005,
p. 99).
Uma vez colocada como protagonista do grande conflito, Adela tomará para si
o papel de vitima e de algoz. Age por impulso, caminha na contramão do que foi
estabelecido e pressente que o desfecho da trama independe de sua vontade ou do
gosto de sua mãe. A idéia de inevitabilidade do destino, como nas tragédias, ronda a
sua fala, e ela se resigna a cumpri-lo.
Adela Trae cuatro mil bengalas amarillas y ponlas en las bardas del corral.
Nadie podrá evitar que suceda lo que tiene que suceder (ibidem).
(...)
La Poncia Yo no te puedo oír.
191
Adela ¡Pues me oirás! Te he tenido miedo. ¡Pero ya soy más fuerte que
tú! (LORCA, 2005, p. 100)
Ao mesmo tempo em que reconhece a força do destino, Adela se coloca
como sujeito do próprio desejo. Encontra uma via de exercício do prazer amoroso e
apesar do tabu da sexualidade presente na casa, ela admite ser sensual em suas
falas, como podemos observar no trecho abaixo:
Adela (...) Mirando sus ojos me perece que bebo su sangre lentamente
(LORCA, 2005, p. 100).
Apesar de ser uma mulher, condenada pela tradição a viver nos limites de
uma identidade forjada, a consciência de Adela lhe permite ensaiar grandes
transgressões. Seus olhos enxergam a dominação de Bernarda como a própria
dominação entre os sexos. A experiência do poder da mãe e a liberdade autoritária
dos homens são percebidas por ela como concessões sociais não derivadas de uma
ordem natural. Ao saber das aventuras sexuais dos homens do povoado, ela aponta:
Adela Se les perdona todo (LORCA, 2005, p.105).
Tal constatação, todavia, não retira dela as possibilidades de enfrentar o que está
escrito. Adela descobre-se, no terceiro ato, forte e capaz de emergir naquele mar de
lutos e obrigações, ainda que seja mulher.
Adela Esto no es más que el comienzo. He tenido fuerza para
adelantarme. El brío y el mérito que tú no tienes. He visto la muerte debajo
de estos techos y he salido a buscar lo que era mío, lo que me pertenecía
(LORCA, 2005, p. 162-163).
Assumindo sua paixão por Pepe, enfrenta Martirio:
Adela Ya no aguanto el horror de estos techos después de haber
probado el sabor de su boca. Seré lo que él quiera que sea. Todo el pueblo
contra mí, quemándome con sus dedos de lumbre, perseguida por las que
dicen que son decentes, y me pondré delante de todos la corona de espinas
192
que tienen las que son queridas de algún hombre casado (LORCA, 2005, p.
165).
Com esta trajetória, Adela fulgura no texto lorquiano como o avesso da
mocinha tradicional. É vitima de Bernarda, das tradições, de Martirio, de La Poncia,
mas também se faz algoz de cada uma de suas inimigas. O seu grito de liberdade
ecoa sozinho, mesmo que dentro de cada irmã haja uma voz semelhante que ainda
não encontrou coragem para ganhar o mundo dos sons.
Seguindo o mapa marxista teremos na atuação de Adela um provável indício
de formação revolucionária pautada na tomada da consciência de classe. Mas,
diferente do modelo proposto por Marx, Adela não se alia aos seus pares na
classificação econômica, não os reconhece no plano da identificação material, mas
sim no campo da opressão. O seu desejo de superação tem como coro a história
das mulheres de Espanha e o reconhecimento do feminino como categoria
subordinada historicamente aos desmandos do masculino. Adela ensaia uma vitória
sobre a alienação e, por conseguinte, tem a oportunidade de romper com a
ideologia vigente. Porém, como vimos na análise marxista, um indivíduo isolado
empobrece os seus horizontes. A força do povo oprimido somente mostrará o seu
potencial revolucionário ao nível da luta de classes, processo distante das
intenções da personagem. Pela via marxista podemos analisar o fim trágico de
Adela a partir dessa não filiação coletiva.
Pelo mapa weberiano ela estaria pautando a sua ação social a partir do
reconhecimento de sua inserção num determinado estamento a condição
feminina. Talvez tenha sido esse sentimento de pertencimento que tenha
sensibilizado Adela quando a mulher transgressora do povoado foi linchada pelo
grupo. Mas não podemos esquecer que, mesmo inserida num contexto de
emancipações coletivas, a ação de Adela possui caráter assumidamente pessoal.
Ela deseja ficar com o noivo da irmã e isso, não somente pode ser definido como um
grito de liberdade, como também sinal de luta pelo poder. Podemos definir sua ação
como racional com relação a valores, mas sabemos dos riscos de se tornar uma
ação afetiva.
Por fim, diante do bosque que pretende nos conduzir aos endereçamentos de
Adela, se utilizarmos o mapa durkheimiano nos veremos estimulados a conceber a
trajetória da personagem como resultado de um enfraquecimento dos laços de
193
solidariedade mecânica que resulta em anomia. Não causa espanto, pois, sua
opção final pelo suicídio anômico.
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(LORCA, 2005,
p. 145)
Aos 39 anos Angustias é filha mais velha de Bernarda, fruto do primeiro
casamento da matriarca das Alba e herdeira de grande parte do dinheiro que
sustenta a família. Contudo, apesar dessa lugarização privilegiada conferida pela
herança, a primogênita não escapa do domínio absoluto da mãe e se sente triste,
conforme a réplica do terceiro ato que ilustra o título da seção.
Ao lado dessa relação conflitiva, marcada por brigas e humilhações,
Angustias enfrenta a hostilidade das irmãs mais jovens e é motivo de inveja e de
ciúme por parte delas, pois além do dinheiro que possui, ainda está sendo cortejada
por Pepe el Romano.
Diante das citadas tensões, não demoram a ganhar a cena as acusações de
que Pepe pretende desposar Angustias por conta da herança, já que, na opinião das
demais, ela encontra-se velha e feia.
De fato, Angustias se difere das outras irmãs. E a mãe faz questão de
salientar essas diferenças, conduzindo a filha mais velha, por meio de seu discurso,
a um lugar simbólico desprivilegiado. A não identificação de Bernarda com Angustias
aparece na seguinte fala do terceiro ato:
Bernarda Ésa sale a sus tias; blancas y untosas que ponían ojos de
carnero al piropo de cualquier barberillo. ¡Cuánto hay que sufrir y luchar
para hacer que las personas sean decentes y no tiren al monte demasiado!
(LORCA, 2005, p. 60).
O que motivou o lamento acima foi o fato de Angustias ter usado maquiagem
no dia do enterro de seu padrasto, demonstrando, na leitura de Bernarda, sua não
intenção de guardar o luto. A própria Angustias confessa, então, não considerar
Benavides um pai, o que é prontamente repreendido pela mãe, já que ele a teria
criado como filha.
No decorrer da ação, podemos perceber em Angustias esse sentimento de
desfiliação, de não pertencimento àquela família, àquela casa, àquele povoado.
194
Angustias é uma estrangeira dentro de si mesma, não se reconhece, não se permite
sentir sequer a alegria do casamento que se aproxima. Esconde o romantismo, a
paixão que sente por Pepe, a euforia por ter conseguido o passaporte para sair da
casa que lhe serve de clausura e cenário de sofrimento. Enquanto as irmãs bordam
o seu enxoval, ela dispensa colocar as iniciais do noivo, insinuando indiferença,
sugerindo estar agindo por obrigação e não por vontade própria. O matrimônio para
ela, ao menos no discurso que profere, encontra-se ligado a uma concessão para a
liberdade fora dos domínios de Bernarda, não representando, de fato, uma
satisfação pessoal, como mostra, em diversos trechos, o segundo ato.
Angustias Afortunadamente pronto voy a salir de este infierno (LORCA,
2005, p. 86).
O relacionamento com Pepe parece pautado na objetividade. Ele quer se
casar por conta do dinheiro dela ao que indica o relato das irmãs e ela aceita o
enlace para sair de casa. As duas vontades, dotadas de interesses particulares, é
assim resumida na réplica em que Angustias conta as irmãs como foi pedida em
namoro:
Angustias (...) “Ya sabes que ando detrás de ti, necesito una mujer buena,
modosa, ¡ y ésa eres tú si me das la conformidad!” (LORCA, 2005, p. 89).
Apesar da aparente frieza, Angustias assume para as irmãs o medo que possui
frente a uma relação amorosa. Pepe foi o primeiro homem que se aproximou dela,
um homem que “¡no tiene mal tipo! (LORCA, 2005, p. 90), segundo suas palavras.
Quando el Romano falou que queria um compromisso, ela não conseguiu responder
nada uma vez que:
Angustias (...) Casi se me salía el corazón por la boca. Era la primera vez
que estaba sola de noche con un hombre (LORCA, 2005, p. 90).
Sem amigas dentro de casa, Angustias não possui confidentes, nem sequer
interlocutoras. Sua exclusão no seio daquele grupo de referência é notória e, para
não sucumbir ao ostracismo generalizado, recorre à mãe, no terceiro ato, quando
tem dúvidas sobre o casamento e sobre as boas intenções de Pepe el Romano:
195
Angustias Debía estar contenta y no lo estoy.
Bernarda Eso es lo mismo.
Angustias Muchas noches miro a Pepe con mucha fijeza y se me borra a
través de los hierros, como si lo tapara una nube de polvo de las que
levantan los rebaños (LORCA, 2005, p. 145).
Não demora para que Angustias tome consciência sobre a situação de seu
casamento com Pepe e toda a movimentação ocorrida na casa por conta desse
acontecimento. O ápice da tensão fraterna acontece quando, num dado momento do
segundo ato, a fotografia do noivo desaparece, fazendo com que Angustias suspeite
de uma das irmãs:
Angustias (Entrando furiosa en escena, de modo que haya un gran
contraste con los silêncios anteriores) ¿Dónde está el retrato de Pepe que
tenía yo debajo de mi almohada? ¿Quién de vosotras lo tiene? (LORCA,
2005, p.110-111).
Perseguida e criticada pela família a quem retribui todas as ofensas ,
Angustias é a personificação do luto que toma conta da casa e não encontra em seu
trajeto companheiras de viagem. Apesar de ser uma Alba não é como as outras: é
uma meia-irmã, pertencente a outra geração e esteticamente não enquadrada nos
padrões vigentes de beleza. Não é dali, é de outra linhagem saiu às tias. Sem uma
localização definida naquele grupo de referência, ela tenta levar o seu fardo, fazendo
jus ao seu nome.
Angustias tenta, mas não consegue, seguindo o mapa marxista, impor sua
vontade de dona dos meios de produção. Sabemos que ela detém o direito sobre
o capital, o que não corresponde a ter, efetivamente, acesso ao dinheiro. Assim, na
hierarquia daquele agrupamento humano sem consciência de classe, Angustias é
mais um indivíduo isolado, alienado, sobre quem a ideologia dominante impera.
Ao mesmo tempo, a filha mais velha se vale da racionalidade do mapa
weberiano, elegendo o matrimônio como estratégia para obtenção da liberdade.
Essa ação racional com relação a fins, todavia, pode se converter numa ação
tradicional se considerarmos o casamento de Angustias como a substituição da
196
tutela da mãe pela tutela do marido ou ação afetiva se nos convencermos de
que Angustias realmente tenha se apaixonado por Pepe.
Na perspectiva do mapa durkheimiano temos na primogênita das Alba a
assimilação eficaz de uma educação moral instituída em nome da ordem. É por
isso que, apesar do dinheiro que possui, ela não transgride na posição que ocupa na
casa e segue dominada, quando poderia, por direito, ser a dominante.
Se reconhecemos em Adela um certo pioneirismo na contestação da
tradicional identidade feminina, sendo ela uma personagem construída no decorrer
de um contexto histórico imerso em mudanças dessa natureza, acreditamos ser
Angustias o oposto desse movimento de resignificação das relações de gênero.
Enquanto a filha mais nova de Bernarda ousa experimentar o novo, o desconhecido,
o sempre proibido às pessoas do seu sexo, a primogênita permanece alheia à
história das mulheres de Espanha, fazendo-se permanência, propagando costumes
em nome de uma tradição que, entre outras coisas, lhe impõe uma vida infeliz. Isso
acontece porque
(...) a representação androcêntrica da reprodução biológica e da reprodução
social se vê investida da objetividade do senso comum, visto como senso
prático, dóxico, sobre o sentido das práticas. E as próprias mulheres
aplicam a toda realidade e, particularmente, às regras de poder em que se
vêem envolvidas esquemas de pensamentos que são produto da
incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições
fundantes da ordem simbólica. Por conseguinte, seus atos de conhecimento
são, exatamente por isso, atos de reconhecimento prático, de adesão
dóxica, crença que não tem que se pensar e se afirmar como tal e que faz,
de certo modo, a violência simbólica que ela sofre (BOURDIEU,1999, p.
45).
A construção cognitiva da figura feminina em Angustias atesta o
reconhecimento da inferioridade da mulher e garante, por via da resignação, a
reprodução de um ideário sexista onde ao homem tudo é permitido, ao passo que o
feminino se destina às interdições. Como a única imagem masculina na casa é a do
noivo que nem sequer aparece, Angustias se valerá do modelo de empoderamento
assumido pela mãe para expressar sua obediência e consentimento de tutela. Aos
39 anos ela permanece sob o domínio de Bernarda e mesmo ensaiando,
racionalmente, uma superação da dominação experimentada desde a infância,
197
utiliza novos caminhos de submissão que a farão trocar um senhor por outro,
através do casamento. Uma trajetória como essa sugere que, naquele contexto
andaluz, a soberania de Bernarda não configura fato isolado, pois é sinalizadora de
uma sociedade marcada pela subordinação das mulheres, ainda que, na ausência
do chefe de família uma outra mulher assuma o poder e a voz de comando. O
percurso cênico de Angustias pode ser resumido como ‘a trajetória de uma mulher
submetida a todo tipo de violência simbólica, chegando mesmo a apanhar da mãe
ao longo da idade adulta’.
Definir a submissão imposta às mulheres como uma violência simbólica
ajuda a compreender como a relação de dominação que é uma relação
histórica, cultural e lingüisticamente construída, é sempre afirmada como
uma diferença de natureza, radical, irredutível, universal. O essencial não é
então, opor termo a termo, uma definição histórica e uma definição biológica
da oposição masculino/feminino, mas os mecanismos que enunciam e
representam como natural, por tanto biológica, a divisão social, e, portanto
histórica, dos papéis e das funções (CHARTIER,1995, p. 42).
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(LORCA, 2005, p. 154
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Martirio tem 24 anos. Seria a filha caçula de Bernarda, caso Adela não tivesse
nascido. Caminha entre a inveja e a intriga, como vemos na definição da
personagem disposta no terceiro ato da peça que ilustra a seção; apresenta-se
como uma personagem determinada, obstinada, passional, a ponto de criar toda
uma trama capaz de prejudicar a irmã mais nova, induzindo-a ao suicídio. Sua
fragilidade de caráter coincide com uma fragilidade física simbolicamente exposta
pela cena onde Amelia pergunta à irmã, no primeiro ato, sobre os remédios que
deveria tomar. Contudo, ao executar a ação de se cuidar, garante não estar agindo
com esperanças de cura, mas simplesmente cumpre um ritual, como se fora um
relógio:
Amelia ¿Has tomado la medicina?
Martirio ¡Para lo que me va a servir!
Amelia Pero la has tomado.
Martirio Ya hago las cosas sin fe pero como un reloj.
Amelia Desde que vino el médico nuevo estás más animada.
198
Martirio Yo me siento lo mismo (LORCA, 2005, p. 62-63).
A aparente indiferença de Martirio para com as coisas do mundo do mundo
que a cerca e do seu próprio universo íntimo contrasta com os comentários acerca
da vida alheia que vez ou outra profere em tom acusatório. Martirio percebe com
perspicácia as atuações de cada ator social que entra na trama, e possui uma
consciência clara sobre as identidades de gênero.
Quando narra a história do pai de Adelaida, um homem que havia matado o
primeiro marido de sua esposa para casar-se com ela, Martirio diz que a impunidade
entre os homens é uma questão de solidariedade masculina. Os erros masculinos,
ao contrário do que acontece com as mulheres, são sempre perdoados:
Martirio Porque los hombres se tapan unos a otros las cosas de esta
índole y nadie es capaz de delatar (LORCA, 2005, p. 64).
A dor que habita todo ser humano tão presente nas peças de Lorca é
explicada por Martirio através da idéia de hereditariedade. A tristeza obedece a
ciclos constantes, passa de pai para filho, e ainda que as gerações futuras não
tenham culpa pelos erros dos antepassados, infalivelmente terão de arcar com as
conseqüências destes tropeços:
Amelia Pero Adelaida no tiene culpa de esto.
Martirio No. Pero las cosas se repiten. Yo veo que todo es una terrible
repetición. Y ella tiene el mismo sino de su madre y de su abuela, mujeres
las dos del que la engendró (LORCA, 2005, p. 64).
Existe no discurso de Martirio a idéia de um encantamento malévolo
condenando o feminino à tristeza. Ser mulher é estar em oposição constante ao
poder masculino de onde provém toda sorte de sofrimentos e provações. A
personagem parece ter experimentado esse poder desde muito cedo:
Martirio Es preferible no ver a un hombre nunca. Desde niña les tuve
miedo. Los veía en el corral uncir los bueyes y levantar los costales de trigo
entre voces y zapatos y siempre tuve miedo de crecer por temor de
encontrarme de pronto abrazada por ellos. Dios me ha hecho débil y fea y
los ha apartado definitivamente de mi (LORCA, 2005, p. 65).
199
A resistência de Martirio em relação aos homens torna-se questionável
quando sabemos do seu desejo por Pepe el Romano. Antes mesmo de cobiçar o
cunhado, ela foi cortejada por Enrique Humanes que, segundo Amelia, cogitou pedir
a mão de Martirio em casamento. No dia marcado, todavia, o rapaz não compareceu
à casa das Alba, fazendo-a acreditar que toda a história do interesse de Enrique por
ela não teria passado de boatos. O que ela não sabe é que Bernarda obrigou o
rapaz a não comparecer, por acreditar que ele não estava à altura da filha.
Talvez tenha sido essa primeira desilusão a causadora do pessimismo de
Martirio frente a uma união matrimonial. Para ela, um homem quando se aproxima
de uma mulher possui interesses escusos, quase sempre financeiros ou domésticos:
Martirio - ¡Que les importa a ellos la fealdad! A ellos les importa la tierra, las
yuntas y una perra sumisa que les dé de comer (LORCA, 2005, p. 66).
Ainda que aparentemente resignada, Martirio carrega o inconformismo da
rebeldia. De maneira velada ela compartilha as insatisfações de Adela, embora em
seu discurso critique a irmã por seus atos transgressores. Adela possui a coragem e
a transparência ausentes em Martirio e, por conta disso, termina por ser alvo de sua
inveja e de seus ciúmes. Quando La Poncia expõe a preocupação com o
comportamento estranho da filha mais nova de Bernarda, Martirio insinua no
segundo ato:
Martirio No tiene ni más ni menos que lo que tenemos todas (LORCA,
2005, p. 86).
Ao se mostrar nessa constante justaposição em relação a Adela, Martirio
revela um traço marcante de sua personalidade: ela é a sombra dessa irmã, a
acompanhante de seus passos, o reflexo de sua imagem, o desejo de ser aquilo que
a outra já é. Nas palavras de Adela, essa informação se confirma:
Adela Me sigue a todos os lados. A veces se asoma a mi cuarto para ver
si duermo. No me deja respirar. Y siempre: “¡Qué lástima de cara!, ¡qué
lástima de cuerpo que no va a ser para nadie!”. ¡Y eso no! ¡Mi cuerpo será
de quien yo quiera! (LORCA, 2005, p. 95).
200
Da mesma forma como fomos apresentados ao olhar onipresente de
Bernarda, Lorca nos oferece indícios de que a atuação de Martírio preza pelo
mesmo controle punitivo. A visão que tem acerca da atuação dos outros se resume
à vivência coletiva de uma vida equivocada, contrária a sua, tão repleta de virtudes.
Martirio se declara autônoma, alheia aos comentários a seu respeito, embora se
esmere em convencer a todos sobre a sua retidão moral.
Considerada feia pela irmã mais nova, ela argumenta que não necessita dos
olhares alheios respaldando as suas vestimentas, pois seus olhares sobre si mesma
lhe bastam. Contudo, desejaria possuir roupas íntimas da Holanda, que é o único
prazer que lhe resta, conforme relata no segundo ato:
Adela (A Martirio, que trae unos encajes) ¿Y éstos?
Martirio Son para mí. Para una camisa.
Adela (Con sarcasmo) ¡Se necesita buen humor!
Martirio (Con intención) Para verlos yo. No necesito lucirme ante nadie.
La Poncia Nadie la ve a una en camisa.
Martirio (Con intención y mirando a Adela) ¡A veces! Pero me encanta la
ropa interior. Si fuera rica la tendría de Holanda. Es unos de los pocos
gustos que me quedan (LORCA, 2005, p. 101-102).
O exercício, ainda que secreto, de uma intimidade sexual revela a
feminilidade adormecida de Martirio. Sua frieza aparente surge ao lado de um
devaneio romântico, quase erótico. Ao ensaiar esta transgressão, tão proibida
naqueles domínios da moral e dos bons costumes, Martirio abre espaço para outras
liberdades. É o que vemos no sumiço da foto de Pepe el Romano: escondida entre
as coisas de Angustias, a fotografia de seu noivo é roubada por Martirio e gera uma
grande confusão na casa. Uma vez denunciada por La Poncia a informante de
Bernarda Martirio diz ter agido por brincadeira, mas não escapa da fúria da
matriarca que lhe bate. Mais uma vez, a garota-fortaleza mostra-se fria e não chora,
alegando não querer dar a Bernarda o gosto pelo seu pranto.
O temperamento difícil e vingativo de Martirio é assim sentenciado por La
Poncia no terceiro ato:
201
La Poncia Ésa es la peor. Es un pozo de veneno. Ve que el Romano no
es para ella y hundiría el mundo si estuviera en su mano (LORCA, 2005, p.
154-155).
Apesar de desacreditada, humilhada e ressentida, Martirio reúne forças para
alcançar o seu objetivo: na impossibilidade de conquistar Pepe, ela retira Adela de
seu caminho. O que não pode ser seu não será da usurpadora. Eis o adjetivo que
melhor define a interpretação de Martirio em relação à caçula das Alba. Esta roubou-
lhe o posto de filha mais nova, nasceu mais bonita e ainda conquistou seu objeto de
cobiça amorosa. Com a morte ela pune Adela. A sua justiça encontra-se realizada.
De início, podemos empreender pelo mapa weberiano uma leitura sobre a
atuação de Martirio através do conceito de ação tradicional. Ela não mede as
conseqüências da sua ânsia de vingança, valendo-se de qualquer expediente para
conquistar o noivo da irmã. Em sua trajetória, o sentido empregado em cada ação
social que executa, dialoga com o egoísmo de uma personalidade excessivamente
individualizada, o que, no mapa durkheimiano, aponta para o enfraquecimento dos
laços de solidariedade. É a partir desta constatação que devemos enxergar
Martirio: ainda que atue em um cenário de ações coletivas, seus passos serão
sempre individuais, secretos, não preocupados com a reciprocidade. O
comportamento apresentado por ela caminha em direção ao estado de anomia e o
suicídio só não chega a se efetivar nela como uma saída, porque acomete primeiro
Adela. Com o restabelecimento da pretensa ordem imposta por Bernarda, quando
da morte da irmã mais nova, Martirio não cede espaço para o arrependimento e,
cada vez mais individual, segue sua trajetória de isolamentos. Numa alusão ao
mapa marxista encontramos em Martirio um movimento dialético a ter como tese o
noivado de Angustias com Pepe e a relação clandestina dele com Adela, gerando
uma antítese pautada nos ciúmes e na inveja por ela nutridos, levando à síntese da
subtração da irmã caçula e, muito provavelmente, ao término do noivado da irmã
mais velha.
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(LORCA, 2005, p. 38)
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Eis a voz mais presente na casa: La Poncia, 60 anos, guardiã de segredos,
depositária de humilhações, porta-voz do mundo exterior a personificação do coro
nessa tragédia moderna. Oscila entre a boa relação com as demais personagens e a
202
guerra clandestina, arquitetada sob a forma de intrigas altamente destrutivas. Ao
mesmo tempo em que é amena com uns, é intransigente e dura com outros, numa
instabilidade emotiva que lhe garante o status de personagem trágica, mas às vezes
cômica.
A relação que mantém com Bernarda é longa 30 anos e permeada de
ressentimentos, como alerta o primeiro ato:
La Poncia Treinta años lavando sus sábanas, treinta años comiendo sus
sobras, noches en vela cuando tose, días enteros mirando por la rendija
para espiar a los vecinos y llevarte el cuento; vida sin secretos una con otra,
y sin embargo, ¡maldita sea!, ¡mal dolor de clavo le pinche en los ojos!
(LORCA, 2005, p. 37-38)
As palavras duras desferidas contra a patroa não lhes impedem a
cumplicidade. Como mencionamos em outra ocasião, La Poncia funciona como os
olhos e ouvidos de Bernarda em sua ausência. É por meio dela que a matriarca
toma conhecimento de tudo que ocorre na casa e no povoado, além de funcionar
como um tipo de conselheira nos momentos de tensão. O que não significa que os
conselhos que oferece sejam seguidos pela tirânica patroa.
La Poncia Pero yo soy una buena perra: ladro cuando me lo dice y
muerdo los talones de los que piden limosna cuando ella me azuza
(LORCA, 2005, p. 38).
A subserviência mantida em relação a Bernarda é justificada pela
dependência financeira que ultrapassa o posto que ocupa na casa. Os filhos de La
Poncia também trabalham para Bernarda e dependem do dinheiro dela para
sobreviverem.
La Poncia (...) mis hijos trabajan en sus tierras y ya están los dos
casados, pero un día me hartaré (LORCA, 2005, p. 38).
Contudo, tal situação de obediência convive com o secreto desejo de
vingança. La Poncia planeja o dia do acerto de contas, do qual Bernarda não sairá
ilesa:
203
La Poncia Ese día encerraré con ella en un cuarto y la estaré escupiendo
un anõ entero. “Bernarda, por esto, por aquello, por lo otro”, hasta ponerla
como un lagarto machacado por los niños, que es lo que es ella y toda su
parentela (LORCA, 2005, p. 38)
A consciência de classe é muito clara em La Poncia. O lugar social que ela
ocupa, assim como a Criada, é por ela definido com resignação, mas também com
algum orgulho. A infelicidade que elas sentem, não é maior que a infelicidade de
Bernarda, que tem tudo:
La Poncia Nosotras tenemos nuestras manos y un hoyo en la tierra de la
verdad (LORCA, 2005, p. 39)
Com esse lema, La Poncia se vangloria dos problemas enfrentados pelas
Alba. Não há espaço para laços de afetividade. Ao contrário: tudo é humilhação e
vingança. Entre maus tratos e inimizades, todavia, La Poncia exerce a sua função.
Em seu papel de informante, La Poncia funciona como um elo de Bernarda
com o mundo exterior. É através dela que conhecemos a história de Paca la Roseta,
uma mulher que foi tomada de seu marido por homens que a colocaram sobre um
cavalo para submetê-la a caprichos sexuais. Ela teria gostado e voltado com flores
na cabeça, feliz. Essa mulher tão transgressora seria a única mulher degenerada do
povoado, na visão de Bernarda e de La Poncia, que justificam a libertinagem de
Paca pelo fato dela ser uma estrangeira. As mulheres dali não fariam isso. Os
homens que a tomaram também eram filhos de forasteiros. Os homens do povoado
não seriam capazes de ato tão imoral. Essa idéia da mulher estrangeira como
degenerada será retomada por Nelson Rodrigues em Senhora dos Afogados, com a
trajetória de D. Eduarda.
Ao esboçar essa transgressão feminina, tão indesejável naquele contexto, La
Poncia insiste com Bernarda que suas filhas devem se casar. Aqui ela assume o
papel de conselheira, mas termina por sofrer as críticas cabíveis a esse ato de
intromissão e liberdade não autorizada.
Apesar de ser a principal informante de Bernarda, a continuação de seus
olhos para uma melhor vigilância das filhas, da casa e do mundo que as cerca, La
Poncia estabelece com as demais personagens uma relação de comunicabilidade
pautada muitas vezes no bom humor e na solidariedade. A relação que estabelece
204
com as filhas de Bernarda é de natureza mais apta ao diálogo, pode-se dizer até que
ela desempenha um papel de troca de experiências, de esclarecimentos sobre o
universo feminino. Quando Angustias, por exemplo, narra a sensação estranha de
seu primeiro encontro com Pepe, La Poncia aproveita para narrar, no segundo ato,
detalhes de sua relação matrimonial e de todas as incumbências cabíveis a uma
mulher honesta:
La Poncia (...) La primera vez que mi marido Evaristo el Colorín vino e mi
ventana... ja, ja, ja.
Amelia ¿Que pasó?
La Poncia Era muy oscuro. Lo vi acercarse y al llegar me dijo: “Buenas
noches”. “Buenas noches”, le dije yo, y nos quedamos callados más de
media hora. Me corria el sudor por todo el cuerpo. Entonces Evaristo se
acercó, se acercó que se quería meter por los hierros, y dijo con voz muy
baja: “¡Ven que te tiente!” (Ríen todas) (LORCA, 2005, p. 90-91)
A despeito da autoridade de Bernarda, La Poncia se esmera na tarefa de
ensinar, a seu modo, os caminhos possíveis na vida de uma mulher para as filhas de
sua patroa:
La Poncia (...) A vosotras que sois solteras, os conviene saber de todos
modos que el hombre a los quince días de boda deja la cama por la mesa y
luego la mesa por la tabernilla, y la que no se conforma se pudre llorando
en un rincón (LORCA, 2005, p. 92).
Tamanha aproximação, contudo, não faz de La Poncia amiga das filhas de
Bernarda. Seus ensinamentos possuem intenções de intriga, de instauração de
conflitos, de apontamentos de discórdias. Esse humor tão presente em suas falas
termina por disfarçar uma mulher rancorosa e atenta aos movimentos de suas
inimigas. La Poncia está longe de ser uma mulher resignada. Mesmo submissa a
Bernarda, ela demonstra em seu discurso sobre o casamento que teve com
Evaristo, saber se impor dentro daquela relação.
Amelia Tú te conformaste.
La Poncia ¡Yo pude con él!
Martirio ¿Es verdad que le pegaste algunas veces?
La Poncia Si, y por poco le dejo torto.
205
Magdalena ¡Así debían ser todas las mujeres!
La Poncia Yo tengo la escuela de tu madre. Un día me dijo no sé qué
cosa y le maté todos los colorines con la mano del almirez. (Ríen) (LORCA,
2005, p. 92)
Esses relatos de bravura servem para criar entre ela e as demais
personagens uma atmosfera de cordialidade temporária. Ao se mostrar, acha-se no
direito de adentrar nas histórias pessoais daquelas mulheres, sendo na maior parte
das vezes criticada por isso. Tamanha crença em sua liberdade e poder de
persuasão faz com que ela seja a primeira pessoa na casa a verbalizar sobre a
relação proibida de Adela e Pepe, justificando através da idade a sua ciência acerca
do fato:
La Poncia Las viejas vemos a través de las paredes (LORCA, 2005, p.
96)
A vigilância que exerce sobre a casa e sobre a vida das filhas de Bernarda é
justificada por La Poncia como uma função social:
La Poncia Con la cabeza y las manos llenas de ojos cuando se trata de lo
que se trata (LORCA, 2005, p. 96).
La Poncia possui uma objetividade que por vezes pode ser considerada fria e
calculista. Ao descobrir a paixão de Adela por Pepe, por exemplo, a empregada das
Alba, sugere a Adela que espere o tempo passar para que, depois de casada,
Angustias morra e deixe o viúvo para se unir em matrimônio com a cunhada mais
nova. Tal postura garantiria a honra da família, a manutenção das aparências, ao
mesmo tempo em que faria satisfeita a aspiração de Adela.
La Poncia ¡No seas como los niños chicos! Deja en paz a tu hermana, y
se Pepe el Romano te gusta, te aguantas. (Adela llora.) Además, ¿quién
dice que no te puedes casar con él? Tu hermana Angustias es una enferma.
Ésa no resiste al primer parto. Es estrecha de cintura, vieja, y con mi
conocimiento te digo que se murirá. Entonces Pepe hará lo que hacen todos
los viúdos de esta tierra: se casará con la más joven, la más hermosa, y ésa
eres tú. Alimenta esa esperanza , olvídalo, lo que quieras, pero no vayas
contra la ley de Dios (LORCA, 2005, p. 97)
206
A vigilância sobre Adela é abertamente confessada:
La Poncia ¡Sombra tuya he de ser! (LORCA, 2005, p. 98)
La Poncia argumenta agir assim não por gostar delas, mas por prezar a
decência, os bons costumes.
Adela ¡Que cariño tan grande te ha entrado de pronto por mi hermana!
La Poncia No os tengo ley a ninguna, pero quiero vivir en casa decente.
¡No quiero mancharme de vieja! (LORCA, 2005, p. 98)
La Poncia desfruta de ampla liberdade verbal. Muitas vezes ultrapassa os
limites de seu papel, de sua ocupação e institui decretos sobre o agir das pessoas.
Ao escutar Amelia relatando a vida de algumas vizinhas que experimentam a
maternidade, sintetiza ainda no segundo ato:
La Poncia Ésas están mejor que vosotras. ¡Siquiera allí se ríe y se oyen
porrazos!
Martirio Pues vete a servir con ellas.
La Poncia No. ¡Ya me ha tocado en suerte este convento! (LORCA, 2005,
p. 103)
A permanência de La Poncia na casa das Alba é considerada por ela como
uma espécie de fardo. Toda mulher carrega uma espécie de cruz e a dela é a família
Alba. O texto sugere que há um segredo que liga seu passado a esse presente de
humilhações, tornando a submissão inevitável.
La Poncia ¡Y así te va a ti con esos humos!
Bernarda Los tengo porque puedo tenerlos. Y tú no los tienes porque
sabes muy bien cuál es tu origen.
La Poncia (Con odio) ¡No me lo recuerdes! Estoy ya vieja. Siempre
agradecí tu protección.
Bernarda ¡No lo parece! (LORCA, 2005, p. 121)
A guardiã dos segredos também possui em sua história muros grossos,
impenetráveis e infelizes.
207
Seguindo pelo bosque com o mapa durkheimiano nas mãos, teremos
personificada em La Poncia a idéia de educação moral que já reconhecemos em
Angustias. Porém, se a filha mais velha de Bernarda é um objeto dessa instituição
formadora, La Poncia é seu instrumento de viabilização. No discurso da governanta
da casa temos bem definidas as diferenças entre normal e patológico, sendo seu
objetivo incessante cuidar para que a coesão social seja mantida a todo custo.
No mapa weberiano enquadraremos La Poncia como executora de uma
ação tradicional que poderá, por vezes, fazer-se ação racional com relação a
valores. Os costumes da época permitem, por exemplo, que em caso de morte da
irmã mais velha, a mais nova assuma seu lugar junto ao viúvo. Tal hábito, contudo,
ganha nas réplicas de La Poncia um caráter diabólico, ao instigar Adela a desejar a
morte da irmã para somente então desposar Pepe el Romano.
No mapa marxista poderemos apreender a ação de La Poncia considerando
a sua vida material. Entenderemos que as relações de trabalho às quais se
encontra subjugada não são as mais justas, o que dificulta a transposição do reino
da necessidade para o reino da liberdade. Através do conceito de materialismo
histórico a conformação identitária da criada se justifica e o seu caminhar na peça
ganha novos sentidos.
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(LORCA, 2005, p. 53)
Aos 30 anos Magdalena nos é apresentada por La Poncia como a filha
que mais sente a morte de Antonio Maria Benavides, a mais solitária das cinco, a
mais reprimida pela mãe. Durante o velório, ao desmaiar, Magdalena sofre com a
tirania da Bernarda, que a impede de chorar, conforme mostra a passagem do
primeiro ato:
Bernarda (...) Magdalena, no llores. Si quieres llorar te metes debajo de la
cama. ¿Me has oído? (LORCA, 2005, p. 45)
Esta e outras ordens serão obedecidas por Magdalena no decorrer do texto. A
moça se esmera em cumprir a sua sina, sem grandes manifestações de rebeldia,
sem vontades transgressoras. Ao bordar o enxoval de Angustias, deixa transparecer
208
sua descrença no matrimônio, bem como a ausência do desejo de unir-se a um
homem maritalmente.
Magdalena (...) Sé que ya no me voy a casar. Prefiero llevar sacos al
molino. Todo menos estar sentada días y días dentro de esta sala oscura
(LORCA, 2005, p. 53).
Ainda que não seja adepta do casamento, Magdalena entende que seria esta
uma forma viável de escapar do controle de Bernarda. Porém, para além do domínio
da matriarca, existiria para Magdalena uma prisão ainda mais cruel para as
mulheres. Trata-se da condição feminina, um mal contra o qual nada se pode fazer:
Magdalena Malditas sean las mujeres (LORCA, 2005, p. 53).
Encarcerada na condição de sexo frágil, considerada incapaz, prisioneira na
própria casa, Magdalena nutre um sentimento nostálgico pelo passado. Vivendo no
ontem ela tenta escapar da tristeza do hoje:
Magdalena Vengo de correr las cámaras. Por andar un poco. De ver los
cuadros bordados em cañamazo de nuestra abuela, el perrito de lanas y el
negro luchando con el león que tanto nos gustaba de niñas. Aquélla era una
época más alegre. Una boda duraba diez días y no se usaban las malas
lenguas. Hoy hay más finura, las novias se ponen velo blanco como en las
poblaciones y se bebe vino de botella, pero nos pudrimos por el qué dirán
(LORCA, 2005, p. 67).
O presente revela-se um fardo para Magdalena, devendo ser vivido sem
grandes expectativas. Até mesmo as pequenas situações do dia-a-dia traduzem o
seu descaso com o ideal de felicidade e bem-estar. Quando informada por Amelia
que o cadarço de um de seus sapatos estava desamarrado, ela se resigna a dizer
que, se caísse, seria uma a menos. Esta indiferença, todavia, não retira de
Magdalena a ligação com as pessoas que a cercam, bem como não omite em seu
discurso a preocupação ou as considerações sobre os sofreres e paixões de suas
interlocutoras. No decorrer do texto aparenta sentir pena de Adela que, segundo ela,
por ser a irmã mais nova, ainda guarda ilusões sobre o amor. Tal postura solidária,
porém, não se repete quando o alvo da conversa é Angustias. Ao tratar com as
209
irmãs sobre o interesse de Pepe el Romano pela primogênita de Bernarda,
Magdalena defende a idéia de que o pretendente age por interesse financeiro e não
por paixão:
Magdalena Se viniera por el tipo de Angustias, por Angustias como mujer,
yo me alegraria; pero viene por el dinero. Aunque Angustias es nuestra
hermana, aqui estamos en família y reconocemos que está vieja, enfermiza
y que siempre há sido la que ha tenido menos mérito de todas nosostras.
Porque si con veinte años parecia un palo vestido, ¡qué será ahora que tine
cuarenta! (LORCA, 2005, p. 70).
A hostilidade desse comentário desferido contra Angustias pode ser
justificado pela insatisfação que todas mantém diante do fato de ser a filha mais
velha de Bernarda a mais rica da família. Acusando a irmã de ambiciosa, Magdalena
diz não se importar caso a primogênita fique com toda a herança.
Contraditória, ela alterna o seu discurso entre o altruísmo resignado e o
instinto combativo. Ao escutar as proezas de La Poncia em seu casamento com
Evaristo, os relatos de que ela o colocava em seu devido lugar, quando fazia algo
que a desagradava, Magdalena defende a idéia de que a mulher não deve se deixar
enganar, sendo direito seu rebelar-se contra o homem (LORCA, 2005, p. 92). Mas em
outra ocasião, ao ver a saída dos homens para o trabalho, testemunhando as
liberdades do masculino, Magdalena critica as aspirações de Adela de um dia poder
também sair pelos campos, sem dar satisfações, sem pensar em compromissos
morais. Podando as ilusões da irmã, ela afirma no segundo ato:
Magdalena (Sentándose) ¡Cada clase tiene que hacer lo suyo! (LORCA,
2005, p. 103)
A leitura que faz sobre os limites do feminino é sobriamente definida em uma
de suas réplicas mais importantes:
Magdalena Y ni nuestros ojos siquiera nos pertenecen (LORCA, 2005, p.
105)
Se até aqui verificamos a presença do feminino apto a transgredir, mesmo
com suas amarras de gênero, na atuação de Magdalena essas transgressões
210
encontraram a exposição de suas conseqüências. A lucidez da personagem a
encarcera num mundo de privações, mas não a deixa alheia aos conflitos de seu
tempo.
Numa visão propiciada pelo mapa marxista Magdalena possuiria a
consciência de classe tão comentada pelo sociólogo alemão. No entanto, ainda
que reconheça a importância do conjunto para entender a realidade, ela não ousa se
rebelar agregando adeptas para a sua causa. A personagem possui extrema clareza
sobre as imposições que lhes afetam tão profundamente a subjetividade; sabe que
estão vivendo não apenas sob o domínio da mãe, mas, sobretudo, sob o julgo de
uma sociedade misógena e desigual. Ela, todavia, não pretende fazer nada para
tentar uma superação. Há na atuação de Magdalena a identificação da
superestrutura que sobre elas atua, não individual, mas coletivamente. A
personagem se reconhece nas ações que pratica, enxerga perfeitamente a
dominação e a sua forma arbitrária de legitimidade, o que nos faz abdicar do
conceito de alienação para sintetizar seu trajeto dramatúrgico. Contudo,
paradoxalmente, a ideologia da classe dominante Bernarda e sua experiência
masculina de poder continua a exercer sobre Magdalena uma influência
devastadora. Estamos, pois, diante de uma personagem complexa que, opta pela
subserviência mesmo sabendo como e de onde provém o poder que a faz curvar.
Muito provavelmente, entre vários outros fatores subjetivos que não nos é possível
cotejar com segurança, a passividade com que Magdalena encara as relações
desiguais as quais está submetida se justifica pela necessidade de manutenção das
condições materiais de existência, já que cabe à Bernarda (a classe dominante)
disponibilizar os meios para viabilização da vida.
Decerto, estamos aqui utilizando o conceito de classes sociais de Marx não
limitando o nosso esforço classificatório à definição exata do sociólogo. Sabemos
que para ele, o conceito está diretamente ligado ao plano econômico, mas com a
devida licença metodológica já assinalada no segundo capítulo, estendemos a
noção de classe ao mesmo plano para onde destinamos o conceito de trabalho.
Talvez, com o mapa weberiano, consigamos inserir Magdalena no plano do
estamento, estando suas ações transitando entre a ação tradicional e a ação
racional com relação a valores.
211
Em Durkheim ela também seria um típico exemplo de produto de uma
educação moral bem realizada, fortemente influenciada pelos laços de
solidariedade mecânica.
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. (LORCA, 2005, p. 105)
É através do discurso de Amelia, a filha de 27 anos, que Lorca explicita em
seu texto, entre outras coisas, a dor de pertencer ao sexo feminino. A personagem,
símbolo da resignação, ilustração da dominação de Bernarda e do crivo social sobre
o comportamento e aspirações da mulher, funciona como a voz tradutora desse
sentimento de impotência perante o mundo.
Amelia mantém com as irmãs uma relação muito parecida com a que
observamos em Magdalena, sendo, todavia, menos mordaz em suas colocações.
Em sua trajetória não podemos apontar grandes movimentos dramáticos, visto que
em geral ela se caracteriza pela linearidade de ações e sentires. Contudo, suas
réplicas funcionam como fechamento de idéias, constituem sínteses importantes que
justificam tramas e conduzem o leitor/ expectador a reflexões sobre os ideais de
gênero.
Em relação ao casamento, pondera no primeiro ato:
Amelia Ya no sabe una si es mejor tener novio o no. (LORCA, 2005, p.
63)
A condição da mulher ganha no discurso de Amelia uma visão mais
abrangente, delegando à sociedade uma parcela importante sobre a infelicidade do
gênero feminino. A tristeza que observa em sua casa, para além da atuação tirânica
de Bernarda, dialogaria também com o entorno social, sendo um quadro universal
que encarcera todas as mulheres nessa vigilância constante, que poda e pune:
Amelia De todo tiene la culpa esta crítica que no nos deja vivir (LORCA,
2005, p. 63).
Colaborando com a visão de Magdalena sobre os interesses escusos de
Pepe el Romano, Amelia adere ao argumento de que Angustias não possui atrativos
outros para seduzir um homem além do seu dinheiro.
212
Amelia (...) ¡Angustias tiene el dinero de su padre, es la única rica de la
casa y por eso, ahora que nuestro padre ha muerto y ya se harán
particiones, vienen por ella! (LORCA, 2005, p. 70)
A culpa por despertar a cobiça do homem não seria de Angustias, visto que a
mulher, na leitura que faz Amelia, não teria condição de ato tão planejado. Entregue
ao destino imposto ao chamado sexo frágil, a mulher estaria a mercê desses
acontecimentos, sendo, antes de qualquer coisa, uma vítima indefesa, sem grandes
possibilidades de derrotar o inevitável. Tal pensamento pode ser comprovado nas
réplicas que seguem do primeiro e segundo atos, respectivamente:
Amelia Lo que sea de una será de todas(LORCA, 2005, p. 74).
Amelia Nacer mujer es el mayor castigo (LORCA, 2005, p.105).
Para Amélia não existe prazer na trajetória da mulher. A maternidade é vista
por ela como um trabalho pesado que condena o feminino ao sofrimento. Por isso
não deseja cuidar dos filhos de Angustias, caso nasça algum de seu matrimônio com
Pepe el Romano.
Amelia Y mucho menos cuidar niños ajenos. Mira tú cómo están las
vecinas del callejón, sacrificadas por cuatro monigotes (LORCA, 2005, p.
102).
A dor que não transborda em suas ações habita em suas falas. Serena e
resignada Amelia carrega a sua cruz, sentindo-lhe o enfado, percebendo a sua
origem e não vislumbrando caminhos alternativos para amenizar o seu peso.
As mesmas coordenadas sociológicas utilizadas para Magdalena podem ser
aplicadas no estudo de Amelia. Contudo, devemos considerar a trajetória daquela
menos melancólica do que a desta. A resignação de Amelia está inscrita na suposta
‘ordem natural das coisas’ e resulta de todos os procedimentos de diferenciação
citados anteriormente.
Historicamente, segundo Margaret Mead (1977), de modo geral, às
mulheres cabia primordialmente o exercício de tarefas nas casas ou
próximo a elas, em função das demandas criadas pela gravidez (freqüente)
213
e alimentação e cuidados dos bebês. Somou-se a isso, como decorrência, a
educação das crianças e a atenção aos idosos e doentes e, num plano mais
abstrato, a conservação de valores afetivos, familiares e tudo mais ligado ao
relacionamento privado, incluindo, é claro, sua transmissão geracional. Em
contrapartida, os homens, dada sua maior força física que até bem
pouco tempo era importante como delimitadora de funções
empenhavam-se em tarefas que pediam movimentação mais livre, até por
grandes distâncias, maior esforço físico, exposição mais direta ao perigo e
(por decorrência?) ao desenvolvimento das instituições formais, da vida
pública e dos valores que a norteiam. Isto tudo numa relação de poder bem
definida, com homens detendo a maior fatia do mesmo (ou quase todo,
segundo algumas feministas), apesar da complementaridade de papéis
(JABLONSKI,1995, p. 156).
A posição de Amelia dentro da casa insere-se no já discutido conceito
marxista de relações sociais de produção. Ela não possui os meios básicos para a
sobrevivência, devendo o seu sustento estar garantido pela matriarca. Diante dessa
dependência sem previsão de libertação, a personagem não consegue se
reinventar, ensaiando um recomeço. Como salientado em Marx, somente através do
trabalho o indivíduo poderá ser reconhecido como socialmente ativo e, na
rotinização da vida levada a cabo por Amelia não há espaço para superações. A
produção material e simbólica da família tem em Bernarda sua liderança
expressa e Amelia não chega a ser nem sequer uma operária. Sua atuação está
limitada à repetição, num ciclo de não reconhecimentos, de não indignações, de não
desejos manifestos, ou seja, de uma alienação assumidamente cultivada. O reino
da necessidade não precisa, em Amelia, ser substituído pelo reino da liberdade,
pois em nenhum dos dois ela pretende ter voz ativa. Alheia aos movimentos
familiares, indiferente às tensões que observa no comportamento das irmãs, Amelia
ilustra com clareza aquilo que Weber classificou como dominação tradicional.
Acostumada a ver o mundo como se ele sempre tivesse sido do jeito que se
apresenta, a personagem aprendeu a naturalizar as relações sociais, contando
com a reciprocidade de seus pares. O conflito que observa ao seu redor muito
tempo após este conflito ter sido deflagrado não desperta nela a vontade de
modificar a existência e, de maneira ainda tradicional segue às ordens da mãe que
pede silêncio e proíbe as lágrimas. A consciência coletiva possui total ascendência
214
sobre Amelia e, através do mapa durkheimiano reconhecemos nela a vontade de
coesão e o temor da anomia.
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(Lorca, 2005, p. 54)
Aos 80 anos, a mãe de Bernarda representa o contraponto perfeito entre a
autoridade imposta pela filha e a liberdade exigida pela neta mais nova. Sob a égide
da loucura, a anciã se permite falar, gritar, reivindicar o que nenhuma outra ousa
propor. Paga, contudo, um preço: a clausura, mas a despeito disso mentem-se firme
e jamais resignada. Ao invés de se adaptar a ausência de liberdade, Maria Josefa
ensaia planos de fuga. E de vez em quando consegue. É bastante astuta para burlar
a segurança. Nas palavras de La Poncia, no primeiro ato, uma de suas “carcereiras”:
La Poncia (...) Tiene unos dedos como cinco ganzúas (LORCA, 2005, p.
35).
Essa destreza nas mãos que lhe garante abrir a porta tão bem trancada,
dialoga com uma capacidade de contestação verbal a ameaçar o domínio de
Bernarda.
Mara Josefa - ¡Déjame salir, Bernarda! (LORCA, 2005, p. 80)
Seus insultos sempre dirigidos à filha-ditadora clamam por liberdade, exigem o
respeitar das vontades individuais. Sua força de vontade, sua personalidade
combativa e indomada são atestadas pela Criada que encontra sérias dificuldades
para mantê-la presa:
Criada Me ha custado mucho sujertala. A pesar de sus ochenta años, tu
madre es fuerte como un roble (LORCA, 2005, p. 54).
Em sua loucura, ela exerce uma liberdade não consentida às mulheres
daquela casa. Usa jóias, se enfeita, se perfuma. Em sua construção imaginativa,
pretende se casar com um homem que a espera na beira do mar.
215
Maria Josefa - ¡Quiero irme de aqui, Bernarda! A casarme a la orilla del mar,
a la orilla del mar (LORCA, 2005, p. 81)
A primeira aparição de Maria Josefa aos olhos do público se dará no final do
primeiro ato. Ela surge com flores no cabelo e no peito, sinalizando para a vaidade
que sobrevive ao tempo e que as netas não podem ter.
Maria Josefa Bernarda,¿dónde está mi mantilla? Nada de lo que tengo
quiero que sea para vosotras: ni mis anillos no mi traje negro de moaré.
Poque ninguna de vosotras se va a casar.¡Ninguna! Bernarda: ¡dame mi
gargantilla de perlas! (LORCA, 2005, p. 79)
A convivência com as demais habitantes da casa não é harmoniosa. Maria
Josefa não demonstra afeto pelas netas e também não recebe carinho delas. Está
sempre em posição de ataque em sua estratégia de defesa. Proíbe Bernarda e as
netas de se apossarem de seus pertences, argumentando que nenhuma delas vai
se casar. Ela, ao contrário se casaria com um homem que se encontra no mar,
nesse espaço tão presente em seu discurso, uma alegoria do paraíso perdido, do
cenário de maravilhas que somente seria viável bem distante daquelas terras.
Maria Josefa (...) No quiero ver a estas mujeres solteras rabiando por la
boda, haciéndose polvo el corazón, y yo me quiero ir a mi pueblo.
¡Bernarda, yo quiero un varón para casarme y para tener alegría! (LORCA,
2005, p. 80)
Na loucura de Maria Josefa a liberdade feminina é sustentada. Mas ao
sustentá-la, mantém-se atada ao matrimônio e à maternidade. Tanto que no terceiro
ato ela aparece com uma ovelha nos braços, dizendo que é seu filho.
Maria Josefa Ya sé que es una oveja. Pero ¿por qué una oveja no va a
ser un niño? Mejor es tener una oveja que no tener nada (LORCA, 2005, p.
159)
A felicidade que pretende não consegue, nem mesmo na ilusão, na farsa da
loucura, se desvencilhar do discurso reservado ao feminino: para ser feliz a mulher
precisa ser mãe.
216
Maria Josefa (...) Yo no quiero campo. Yo quiero casas, pero casas
abiertas y las vecinas acostadas en sus camas con sus ninõs chiquitos y los
hombres fuera sentados en suas sillas (LORCA, 2005, p. 160)
Com essa cena, Lorca nos mostra que nem mesmo as loucas estarão
totalmente livres dos ditames sociais dispostos ao feminino e que Maria Josefa,
ainda que transgressora, experimenta a mão forte da sociedade agindo sobre ela.
Verificando o movimento dramático que cerceia a atuação de Maria Josefa,
poderemos ficar bastante propensos a adotar, sem muito receio, o mapa
durkheimiano como o mais indicado para o entendimento da personagem. Afinal, o
seu trajeto cênico dialoga com o rompimento de todos os laços sociais que a
filiariam aos costumes da família. E assim, imersa em um estado de anomia, a mãe
de Bernarda seria a mais explícita prisioneira e a mais liberta das mulheres. Através
das palavras não contidas a expressão da rebeldia se faria presente e na ausência
dos laços de solidariedade a personagem estaria bastante à vontade para apontar
os defeitos alheios, sem máscaras, sem meias palavras, sem a obrigação dos
gestos de gentileza.
Contudo, não podemos perder de vista o fato de que a liberdade moral de
Maria Josefa é podada por seu aprisionamento físico e, como conseqüência disso,
temos poucos argumentos para falar em superação aos moldes do mapa marxista.
Maria Josefa não rompe com a alienação e, por isso, a ideologia dominante exerce
sobre ela seu efeito punitivo. Ela não produz os próprios meios de subsistência,
ficando ao encargo dos parentes suprir-lhe as demandas primordiais. Ainda que
aparentemente livre no plano da superestrutura, Maria Josefa não ocupa uma
posição privilegiada na base. Por conta disso não dispõe de autonomia. Suas ações,
pretensamente descomprometidas com a moral, configuram ações afetivas e, no
auge daquilo que seria o seu grito de independência a fuga com um homem para
um casamento feliz nas ‘orillas del mar’ adentra sem cerimônias no campo da
ação tradicional. Josefa não rompe com o ideário de matrimônio e maternidade
como sinônimo da realização feminina. O que verificamos em sua trajetória é uma
inadequação dos meios para atingir o mesmo fim a finalidade da consciência
coletiva. É apenas por essa inadequação dos meios que o rótulo de transgressora,
logo, louca, recairá sobre ela.
217
Os estudos de gênero apontam que umas da formas de retaliação da
transgressão feminina consiste na rotulação da mulher transgressora a partir do
adjetivo “louca”. Nessa direção, Maria Clementina Pereira Cunha (1989) num artigo
publicado na Revista Brasileira de História, contemplou o quadro clínico de mulheres
internadas no hospício do Juquery, na São Paulo do início do século XX, buscando
identificar os critérios utilizados pelos psiquiatras da instituição ao diagnosticar a
suposta “loucura” dessas pacientes. A partir dos dados recolhidos descobriu que
certos comportamentos “inadequados” à condição feminina servem de base para a
formulação desses diagnósticos, e que mulheres independentes, não dedicadas ao
casamento e à maternidade, são vistas por esses “profissionais” como vítimas de
uma anomalia cuja cura encontra-se na reclusão absoluta em hospícios ou hospitais
psiquiátricos.
Mais uma vez, nos deparamos com a exclusão do agente transgressor do
seio social, fato perfeitamente relevante na apresentação de Maria Josefa. A
clausura da anciã e sua adjetivação como louca dialoga com o imaginário
cristalizado de uma sociedade firmada nas assimetrias entre os sexos, onde se
(...) espera que as mulheres sejam sentimentais, fracas, gentis,
compreensivas, emotivas, excitadiças, dóceis, dependentes, submissas,
sensíveis e orientadas para a afiliação. Isso sem contar as referências
francamente pejorativas quanto às capacidades cognitivas do sexo frágil
(JABLONSKI,1995, p. 159).
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(Lorca, 2005, p. 154)
No cenário amplamente feminino de La Casa de Bernarda Alba, Lorca
apresentará ao leitor Pepe el Romano, o noivo de Angustias. O jovem de 25 anos,
segundo informações de Magdalena, é o ‘melhor tipo da região’, constituindo objeto
de desejo das moças do lugar.
Ao estudarmos Pepe, estaremos diante de um personagem invisível. A ele
não caberá nenhuma fala, mas dele teremos muitas informações. Pepe el Romano é
apresentado, adorado, disputado e temido como a presença masculina na casa de
Bernarda Alba.
Nas réplicas iniciais do texto, comenta-se que ele estava no velório do marido
de Bernarda, o que é prontamente desmentido pela matriarca, pois, segundo ela, lá
218
estava apenas a sua mãe. A insistência em ocultar a presença de Pepe repousa na
desconfiança de que ele poderá retirar, com o casamento, Angustias e sua herança
da casa de ‘muros grossos’.
A simples menção de seu nome basta para exaltar os ânimos da família, tanto
que nos é visível, desde o primeiro momento, que nenhuma mulher daquela casa
encontra-se alheia a sua influência, seja por meio de um desejo ocultado, seja por
via de uma história clandestina experimentada intensamente.
As poucas transgressões verificadas na trajetória de Angustias, por exemplo,
têm em Pepe sua fonte de inspiração. Através da janela de seu quarto, todas as
noites, ela o recebe, distante dos olhos punitivos de Bernarda e das irmãs. Os
encontros furtivos, todavia, não demoram a ser descobertos e, como esperado no
modelo panóptico, são sentenciados e castigados pela matriarca.
Porém, os encontros secretos com a noiva não garantem a Angustias a
crença no amor do pretendente. Ela o percebe distante e, sem confidentes na casa,
recorre à mãe, no terceiro ato, em uma de suas poucas cenas de desabafo:
Bernarda ¿Qué cuenta Pepe?
Angustias Yo lo encuentro distraído. Me habla siempre como pensando
en otra cosa. Si le pregunto qué le pasa, me contesta: “Los hombres
tenemos nuestras preocupaciones” (LORCA, 2005, p. 144-145).
O comportamento misterioso de Pepe não provoca alterações somente no
humor de Angustias. Suas irmãs também são influenciadas por ele e, a partir disso,
nascem os conflitos mais urgentes da família Alba. Alvo de paixões proibidas, Pepe
é assim sentenciado por La Poncia:
La Poncia No es toda la culpa de Pepe el Romano. Es verdad que el año
pasado anduvo detrás de Adela y ésta estaba loca por él, pero ella debió
estarse en su sitio y no provocarlo. Un hombre es un hombre (LORCA,
2005, p. 153-154).
Com a justificativa do gênero que tudo pode, cuja trajetória de conquistas
amorosas é uma obrigação, um dado da natureza, o masculino representado por
Pepe é exaltado e temido:
219
Maria Josefa (...) Pepe el Romano es un gigante. Todas los queréis. Pero
él os va a devorar porque vosotras sois granos de trigo (LORCA, 2005, p.
160-161).
Até mesmo seus meios reprováveis de aproximação e corte são justificados:
Martirio Ese hombre sin alma vino por otra. Tú te has atravesado.
Adela Vino por el dinero, pero sus ojos los puso siempre en mi (LORCA,
2005, p. 163).
Mesmo ausente fisicamente da cena, Pepe encontra-se impregnado no
discurso das irmãs. Alegoricamente ele é o ‘cavalo que ronda a casa’, a dar ‘coices
ameaçadores nos muros grossos’. Pepe é, em suma, o princípio e o fim das ações
de Adela.
Adela Yo soy su mujer. (A Angustias) Entérate tú y ve al corral a
decírselo. Él dominará toda esta casa. ¡Ahí fuera está, respirando como si
fuera un león! (LORCA, 2005, p. 169)
Com a participação invisível de Pepe el Romano Lorca conduz o leitor pelos
caminhos da assimetria entre os sexos. Ao mesmo tempo em que o dramaturgo
explicita o aprisionamento da mulher aos preceitos morais de uma sociedade
conservadora, ele cria um homem quase totalmente pautado na liberdade de
escolhas, que satisfaz seus desejos carnais e seus interesses econômicos a
despeito de qualquer convenção social. Ao personagem masculino é permitido
transitar entre a canalhice de possuir duas ou três mulheres e o heroísmo viril de ser
objeto de tantos desejos aflorados. Pepe não é criticado em seu comportamento
desviante, ao contrário. As mulheres que por ele se interessam é que são os alvos
das críticas.
Nas palavras de Chartier (1995), “Inscrita nas práticas e nos fatos,
organizando a realidade e o quotidiano, a diferença sexual (que é sujeição de umas
e dominação de outros), é sempre construída pelo discurso que a funda a legitima”
(p.25). E mais, “A noção de virilidade, (...) se constrói em torno de valores tais como
a agressividade, a livre iniciativa, a satisfação imediata do desejo” (MONTERO;
ALBANO, 1995, p. 111).
220
Em nosso mapa weberiano, temos em Pepe el Romano a figura do líder
carismático a cooptar adeptos para a sua causa, valendo-se de uma atmosfera
extracotidiana que lhe reserva admiração, medo, obediência e adoração
incomensurável. Se não fosse Bernarda, e a força de sua dominação tradicional,
pertenceria a Pepe o destino de cada uma daquelas mulheres. Ao construir o
representante masculino da história, Lorca contrapõe ao seu poder carismático a
desgastada imagem de uma matriarca ameaçada pelos apetites incontidos da filha
mais nova. Pepe é a causa e a conseqüência da vontade de superação de Adela.
Pelo mapa durkheimiano, encaramos Pepe e sua masculinidade avassaladora,
como a consciência coletiva agindo e se sobrepondo às consciências
individuais. O poder masculino representado por Pepe é inevitável; ele seduz,
convence, impõe o domínio e é obedecido. Configura, pela tradição, o chamado da
natureza humana a instituição do casamento e da maternidade, a transposição da
tutela feminina do campo familiar para o mercado matrimonial. Na alegoria do cavalo
que dá coices nos muros da casa, apresentando àquelas mulheres a força dos
apelos da carne, Pepe revela a sua função de desencadeador dos conflitos e
configura, de uma só vez, a perspectiva de Bem e de Mal. Se por um lado ele
representa o cumprimento do destino inevitável das mulheres o casamento , por
outro ele é a ameaça ao poder absoluto exercido por Bernarda. Afinal, casando-se
com Angustias, ele será o novo administrador de sua herança e, pelo mapa
marxista o conflito se desenha no campo do materialismo histórico.
Decerto, recai pesadamente sobre a personagem a função de contraponto
único a tantos modelos de feminilidades, a ponto de, ao final, receber a condenação
em forma de sentença de morte. Contudo, atestando a invencibilidade da força
masculina no jogo das relações de poder, Lorca preserva a vida de Pepe e transfere
sua punição para Adela. A morte da garota consolida o pessimismo lorquiano da
vitória dos mais fortes sobre os mais fracos, atestando a infelicidade gerada pelo
amor em suas tensões entre o princípio da autoridade e o princípio da liberdade.
A sobrevivência de Pepe é a vitória do masculino. Uma vitória contestável, limitada
ao plano da satisfação sexual imediata que impede a vivência subjetiva de
sentimentos desinteressados. Desde o começo os interesses financeiros de Pepe
foram evidenciados e, ao final, não sabemos realmente a natureza do sentimento
que o ligava a Adela. Por outro lado, a sobrevivência de Pepe é a derrota do
221
feminino que, diante da transgressão, paga solitariamente o preço que caberia ao
casal.
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(LORCA, 2005, p. 36)
Com 50 anos, a Criada fulgura na peça como mais uma prova do poder
ditatorial de Bernarda. Ainda que demonstre ter grande medo da patroa, faz emergir
em alguns momentos, um discurso de rebeldia. Em suas conversas com La Poncia
verificamos essas dualidades: obediência x revolta, resignação x vingança. A
ascendência de Bernarda sobre ela a atinge não só psicológica, como também
fisicamente, de acordo com a réplica do primeiro ato:
Criada Sangre en las manos tengo de fregarlo todo (LORCA, 2005, p. 36)
E como uma fera que cobiça a sua presa disfarçando o intento, a Criada alimenta
desejos escondidos que passam pela inveja, pelo ciúme e pela vingança:
Criada ¡Ya quisiera tener yo lo que ellas! (LORCA, 2005, p. 39).
Referindo-se na afirmação acima às filhas de Bernarda, a Criada assume a sua
inveja e complementa adiante que agiu no passado para mudar o seu papel dentro
daquela casa. Na fala que segue, ela insinua ter tido relação clandestina com o
marido falecido da patroa:
Criada (Rompendo a gritar) ¡Ay Antonio María Benavides, que ya no verás
estas paredes, ni comerás el pan de esta casa! Yo fui la que más te quiso
de las que te servieron. (Tirándose del cabello.) ¿Y he de vivir yo después
de haberte marchado? ¿Y he de vivir? (LORCA, 2005, p. 43).
A trajetória da personagem sinaliza para os conflitos advindos dessa condição
submissa na trama: além de ser humilhada por Bernarda, ela nutre a vontade de
possuir o que as filhas da patroa possuem, mas precisa se contentar com os restos
de comida que La Poncia lhe permite levar para a filha pequena. Ao mesmo tempo,
ela amarga a perda de Benavides que, como vimos, teve com ela algo mais que
222
uma relação trabalhista. A sua perspectiva de melhora, de liberdade, de felicidade
encontra-se, não surpreendentemente, fora daqueles domínios, num cenário onde o
poder das Alba não lhe pode a existência:
Criada Ésa es la única tierra que nos dejan a los que no tenemos
nada (LORCA, 2005, p. 39).
Situada no campo da subordinação a Criada não se resigna a somente
obedecer. Nas ocasiões em que pode exercer o poder ela o faz e é tão cruel quanto
a sua algoz. Lorca utiliza a Criada para mostrar que o oprimido, em alguns casos,
acaba por oprimir quando tem chance.
Mendiga Mujer, tú tienes quien te gane. Mi niña y yo estamos solas.
Criada También están solos los perros y viven (LORCA, 2005, p. 41).
A descrição da Criada, em alguns pontos, se assemelha ao estudo que
empreendemos sobre La Poncia. Em nossos mapas, poderemos certamente pensá-
la a partir dos conceitos marxistas de relações sociais de produção, luta de
classes, trabalho e materialismo histórico. Pelos bosques weberianos veremos
que sua ação é ação racional com relação a fins, alternando às vezes para ação
afetiva afinal, ela é vingativa, invejosa, maledicente. E, finalmente, em Durkheim
será interessante observá-la a partir da divisão do trabalho social, o que nos
oportunizará discorrer sobre as funções domésticas executadas por ela e a
formação identitária daí proveniente.
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(LORCA, 2005, p. 137)
Prudencia aparecerá apenas no terceiro ato. É uma visitante da casa de
Bernarda, que permite o leitor/ expectador conhecer o entorno daquela construção,
as pessoas que lhe servem de coadjuvantes, que instituem a lei moral, que cobram
as faltas às personagens já descritas.
A relação que aparenta ter com a matriarca das Alba caracteriza-se pela
formalidade, não sendo, todavia, totalmente desprovida de gentileza. Mesmo sendo
uma estrangeira, uma mulher de fora naquele lar de mulheres selecionadas,
223
Prudencia é tratada com cortesia, mas sem maiores intimidades. Sabemos, pelo
diálogo existente, que ela casou-se com um homem que vive preso na própria
residência, por sua vontade, já que brigara com os familiares devido a uma herança.
A este desgosto foi acrescentada uma desobediência da filha, a quem ele nunca
perdoou. A opção do marido de Prudencia pela reclusão ganhou a simpatia de
Bernarda que diz:
Bernarda Es un verdadero hombre (LORCA, 2005, p. 136)
Mesmo testemunhando a tristeza de Prudencia diante da inimizade entre pai e filha,
Bernarda expõe o seu ponto de vista, o qual não será contestado pela visitante:
Prudencia No sé qué te diga. Yo sufro por esto.
Bernarda Una hija que desobedece deja de ser la hija para convertirse en
enemiga (LORCA, 2005, p. 137).
Diante do sofrimento, Prudencia se recolhe na Igreja o horizonte possível
para a resignação feminina:
Prudencia Yo dejo que el agua corra. No me queda más consuelo que
refugiarme en la Iglesia (LORCA, 2005, p. 137).
E é na Igreja, reduto do sagrado, local de expiações, de conquista do perdão
e de vivência da penitência constante que encontraremos um paralelo entre a Casa
de Bernarda e o mundo. A redoma construída pela matriarca para esconder suas
filhas do mundo e o mundo de suas filhas se assemelha a um templo religioso,
onde as regras existem para serem cumpridas e não para serem compreendidas e
contestadas. A voz de Bernarda é a voz soberana de Deus. Não o Deus das
religiões somente, mas o deus social, o líder, a consciência coletiva. Nas vidas
construídas por Garcia Lorca percebemos os males que essa voz pode provocar,
mas também entramos em contato com as estratégias de ação e de discurso dos
interlocutores que pretendem não se submeter à mensagem de maneira passiva.
Ao discorrer sobre a influência da Igreja Católica na formação do
pensamento ocidental, Heinemann (1996) verificou no arcabouço ideológico da
instituição religiosa a existência inconteste de uma hierarquia que classifica homens
224
e mulheres por intermédio das ‘verdades’ reveladas na Bíblia. A primazia masculina
comprovada pela criação de Adão sustenta o argumento da dependência da mulher,
uma vez que, para existir, esta contou com uma costela retirada do corpo do
primeiro homem, feito à imagem e semelhança de Deus. A partir dessa ligação
original a subordinação feminina converteu-se em uma realidade propagada e o
domínio masculino ganhou status de condição sine qua non.
Além disso, no discurso da Igreja, Eva induziu Adão a cometer o primeiro
pecado, condenando todas as gerações futuras. Como seres perigosos e traiçoeiros,
deverão as demais mulheres permanecer sob a tutela do homem, submissas e
entregues aos desígnios do seu ‘senhor’.
Todavia, construída de maneira distinta, uma segunda opção de
feminilidade é colocada em cena pela Igreja. Trata-se daquela que possui a
santificada função procriadora que, a exemplo de Maria, mãe de Jesus, é
responsável pela geração da vida e pela manutenção da família. O feminino sob
esta perspectiva ganha um novo status social: deixa de ser o instrumento do pecado
o mal para adentrar no mundo da abnegação e da entrega características
primordiais da maternidade. Transposta de um modelo negativo (Eva) para uma
condição venerada (Maria), a mulher desenha um caminho que não a afasta da
tutela, nem da subserviência. Ainda que respeitada na Igreja, a figura de Nossa
Senhora ou simplesmente Maria foi concebida a partir da negação total de
qualquer ligação com a feminilidade real. Em primeiro lugar, a concepção de Jesus
foi realizada por intermédio do Espírito Santo, sem que nenhum intercurso sexual
fosse realizado entre a futura gestante e o seu respectivo marido. Ela seria mãe e
continuaria virgem; virgem, mas ainda casada. No nascimento de Jesus, temos a
segunda prova de um modelo inconcebível na vida real: ele não nasce de parto
normal, nem de cesariana, sendo mais uma vez um milagre o responsável pelo
cumprimento da trajetória de Maria. Qual seria, pois, a probabilidade de aplicação do
modelo de feminilidade venerado pela Igreja Católica na vida real? Divididas entre
as duas classificações a pecadora ou a santa caminharam (e caminham ainda)
muitas mulheres, em busca de uma realização sem viabilidade na prática. A
identidade feminina encontra-se na Igreja moldada pela resignação e pelo pudor,
sendo qualquer outra forma de vivência entregue ao pecado e ao castigo. Essa é a
realidade de um mundo
225
em que os papas e seus educadores se movem (...), as mulheres ainda não
passam de objetos a serem ignorados no processo pelo qual os celibatários
tomam medidas de proteção para manterem-se afastados (...) e nesse
esforço surrealista de mergulhar na época paradisíaca antes de Deus ter
criado Eva, em seu vôo infantil para uma espécie de útero masculino de um
mundo sem mulheres, não conseguem ter qualquer visão do mundo real, ou
seja, de um mundo repleto de homens e de mulheres, que significa um
mundo de seres humanos (HEINEMANN,1996, p. 343)
Como vimos, o contexto andaluz, tão presente nas obras lorquianas,
mantém com o ideário da Igreja católica uma forte ligação. Em diversas situações
cênicas as personagens estão rezando ou agindo amparadas por alguma regra
religiosa. Quando erram são criticadas por via de algum desses preceitos, estando a
questão da divindade vigilante e punitiva pairando sobre suas cabeças.
Os preços cobrados por essas transgressões são mostrados de forma poética
e dramática. O mundo de Bernarda é um mundo possível ainda que as suas cores
se resumam ao branco e ao negro.
Por enquanto, guardemos essas vidas em nossa memória e lembremos delas
ao adentrar nos bosques rodrigueanos. Algumas dessas trajetórias serão novamente
expostas, em novos cenários e novas tramas e, sempre que possível,
promoveremos os cruzamentos necessários entre elas. Agora, pois, saltemos duas
décadas no tempo. Os bosques de Nelson Rodrigues pedem os nossos olhares.
Caminhemos de olhos abertos, então.
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Se Lorca representa um sopro de inovação no teatro espanhol, com sua
poesia que se levanta do livro fazendo-se viva, Nelson Rodrigues segue trajetória
semelhante em importância e novidade. Na argumentação de Filho (2004), Nelson
foi uma das figuras mais importantes da segunda metade do século XX, seja pela
qualidade artística de suas obras, seja pela postura polêmica assumida nas diversas
ocasiões em que o escriba fora chamado a desnudar a sua alma de “anjo
pornográfico”.
Nelson Falcão Rodrigues nasceu em 23 de agosto de 1912 em Recife,
Pernambuco. Foi o quinto filho do casal Mario Rodrigues e Maria Esther Falcão. A
226
extensa família, que um dia somaria catorze irmãos, começou a ver a vida se
modificar em 1915, quando o deputado e jornalista Mario Rodrigues decidiu se
mudar para o Rio de Janeiro. No ano seguinte, Maria Esther, não mais agüentando
esperar que o marido chamasse a ela e aos filhos para encontrá-lo no Rio,
empenhou suas jóias e seguiu viagem até a capital do país.
A mudança da família Rodrigues para o Rio de Janeiro precisa ser aqui
contextualizada, uma vez que será a “cidade maravilhosa” o cenário principal de boa
parte da dramaturgia rodrigueana.
Durante a Era Vargas e após a Segunda Guerra Mundial o Brasil presenciou
um intenso processo de urbanização
27
e industrialização, responsáveis por múltiplas
transformações sociais e culturais, sobretudo nos grandes centros, como Rio de
Janeiro e São Paulo. No Brasil, as indústrias (como a química e a metalúrgica) se
desenvolveram em grande medida em função da Segunda Guerra, com o incentivo
do Governo Vargas, e atraíam as pessoas do campo para as cidades.
Na segunda metade do século XX era comum presenciar a mudança de
famílias do interior para as novas metrópoles no afã de conseguirem no novo espaço
melhores condições de vida e de emprego. O Rio de Janeiro, naquela época capital
da República, onde Nelson Rodrigues foi criado e onde ele escreveu durante toda a
vida, era o centro político e cultural do país desde o final do período colonial, tendo
sido o foco de reformas urbanas financiadas pelo governo federal, que visava
transformá-lo numa vitrine da civilização moderna (CAULFIELD, 2000, p. 44). O ideal
político da época buscava situar o Brasil no recém descoberto caminho da
modernização, fazendo-o experimentar as novas tecnologias propulsoras de
comodidade e avanços (telefones, bondes, máquinas industriais), não só nas
cidades, mas também nas indústrias e até mesmo no campo. Junto com a idéia de
nação, emergiu a idéia de nacionalismo, a ideologia até então mais difundida
(SKIDMORE,1969).
O Rio, cumprindo o seu papel de capital, atraía um número de profissionais
influentes em diversas áreas, principalmente no Direito. Segundo Marly Rodrigues,
em 1950 o Rio somava 2,3 milhões de habitantes, sendo 60 mil funcionários
públicos. A cidade de São Paulo, por sua vez, era um centro industrial, contando
com 2,2 milhões de pessoas nesse mesmo ano (RODRIGUES,M,1992, p. 7).
27
A urbanização está aqui se referindo ao fenômeno caracterizado pela concentração cada vez mais
densa de população em aglomerações de natureza urbana.
227
Como o próprio Nelson (1967, p. 16) narra em suas memórias, Mario
Rodrigues, seu pai, reconhecia esse status diferenciado do Rio, tanto que saiu de
sua terra natal, simplesmente porque Pernambuco teria ficado pequena demais pra
ele. No início de sua trajetória carioca, o patriarca dos Rodrigues trabalhou como
redator parlamentar do Correio da Manhã, não tendo condições de alugar uma casa
para a família nesses primeiros tempos. Ficaram, pois, hospedados na residência de
Olegário Mariano até que pudessem se mudar para a casa da Aldeia Campista,
Zona Norte da cidade, reduto das classes populares (CASTRO,1992).
Quando sua família mudou-se para o Rio de Janeiro, Nelson Rodrigues tinha
apenas quatro anos. Ele viu a cidade crescer em ritmo acelerado, testemunhou a
mudança dos costumes, comportamentos e valores. Neste tocante, expõe em suas
memórias:
Lembro-me de um vizinho perguntando:
_‘Quem não morreu na Espanhola?’ E ninguém percebeu que uma cidade
morria, que o Rio machadiano estava entre os finados. Uma outra cidade ia
nascer. Logo depois explodiu o carnaval. E foi um desabamento de usos,
costumes, valores, pudores.
(...) O comportamento do homem e da mulher até princípios de 1919 era
medieval, feudal ou que outro nome tenha. Psicologicamente, ainda não
ocorrera para nós a abertura dos portos. A mulher que ia ao ginecologista,
sentia-se, ela própria, uma adúltera.
E tudo explodiu no sábado de Carnaval. Veja bem: até sexta-feira, isto
aqui era o Rio de Machado de Assis; e, na manhã seguinte, virou o Rio de
Benjamim Costallat, ou, ainda, do Theo Filho (RODRIGUES,N.,1967, p. 74-
77).
28
No trecho acima podemos imaginar que o crescimento das cidades provocou
mudanças nas formas de pensar e de agir. Como analisou Mary Del Priore (2005), o
impacto das inovações científicas e tecnológicas modificou os hábitos do dia-a-dia e,
por conseguinte, as formas de relacionamento. De acordo com ela, “nunca, em
período anterior, tantas pessoas foram envolvidas em um tal processo de
transformação de hábitos cotidianos, convicções e percepções, influenciadas,
querendo-se ou não, pela expansão do capitalismo” (DEL PRIORE, 2005, p. 232).
28
Benjamim Costallat e Theo Filho foram escritores brasileiros que, entre as décadas de 1920 e
1940, expressaram em seus romances e crônicas as mudanças sociais e culturais ocorridas no Rio
de Janeiro devido à modernização do espaço urbano.
228
Nessa miscelânea de novidades e resistências culturais, a escrita de Nelson
ganhou em conflito, densidade e experimentos. Nosso autor viveu, desde muito
cedo, o atribulado cotidiano da imprensa, estreando em 1927, portanto com 15 anos,
como repórter policial do jornal que Mario Rodrigues havia fundado: A Manhã
(COELHO, 2004, p. 15-46). Considerado de cunho político e sensacionalista, A
Manhã ainda empregava seis irmãos de Nelson, o que deixava demasiadamente
misturada a vida profissional e pessoal daquela família, que neste mesmo ano
mudou-se para a Rua Pompéia em Copacabana.
De acordo com Cremilda Medina, o jornalismo ali praticado podia ser
classificado de “jornalismo de tribuna”, uma vez que cedia espaço para a discussão
política e emissão de opiniões. Em seguida, esse tipo de jornalismo não
necessariamente imparcial deu lugar, em meados da década de cinqüenta, a um
jornalismo pretensamente neutro e informativo (MEDINA,1988, p. 139).
Sem a obrigatoriedade de primar pelo distanciamento no labor jornalístico,
Nelson soube transformar com maestria acontecimentos banais em tragédias
terríveis. Fulguravam em suas reportagens atropelamentos, assassinatos, suicídios,
adultérios, entre outros acontecimentos desta natureza. Especializou-se em
descrever pactos de morte entre jovens namorados e crimes passionais, tão
constantes naquela época. Roberto Rodrigues, seu irmão, era o responsável pelas
ilustrações que acompanhavam as matérias. Essa relação com o jornalismo policial,
certamente, influenciou o estilo de sua ficção
29
.
Contudo, não foi apenas a obra de Nelson que se viu dialogando com a
atmosfera policial. Sua vida pessoal também fora bastante marcada por esse tipo de
ambiente, visto que foi justamente uma reportagem que ofendia a honra de uma
mulher da alta sociedade carioca que ocasionou a grande tragédia na família
Rodrigues.
Mário Rodrigues havia lançado em 21 de novembro de 1927 Crítica, um jornal
ainda mais agressivo do que A Manhã (que havia vendido por causa de dívidas). Em
1929, Crítica publicou com grande destaque, na primeira página, a notícia do
desquite de Sylvia e José Thibau Jr, casal da alta sociedade carioca, insinuando, em
tom irônico, que a razão teria sido o adultério dela com o médico da família, o que
29
Para maiores informações sobre as reportagens policiais de Nelson, consutar: RODRIGUES,
Nelson. O baú de Nelson Rodrigues: os primeiros anos de crítica e reportagem (1928-1935). São
Paulo, Cia das Letras, 2004.
229
atingia a reputação da socialite. Completava a matéria uma ilustração de Roberto
Rodrigues, que mostrava a Sr.ª Thibau e o médico. As imagens que ele desenhava
para acompanhar reportagens eram sempre provocantes e não raro mostrava
mulheres nuas. Quando soube da matéria, Sylvia Thibau foi ao jornal cobrar
satisfações de Mário Rodrigues. Na ausência deste, ela foi atendida justamente por
Roberto. Sylvia tirou um revólver de dentro da bolsa e atirou no rapaz, que ficou três
dias entre a vida e a morte, vindo a falecer. Nelson estava na redação no momento
do crime e presenciou o fato com riqueza de detalhes. A morte do irmão marcaria
sua vida e obra, conforme revela:
o meu teatro não seria como é, nem eu seria como sou, se não tivesse
sofrido na carne e na alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de
paixão o assassinato de Roberto. (...) E só eu, um dia, hei de morrer
abraçado ao grito do meu irmão Roberto (RODRIGUES, N, 1967, p. 125-
128).
Após o assassinato de Roberto toda a família Rodrigues pôs luto e Crítica
começou ampla campanha pela condenação de Sylvia, que mais tarde foi absolvida.
Discute-se até hoje
30
que um dos fatores que levaram a sua absolvição foi o fato
dela ter sido insultada moralmente pelo jornal, além de seu pertencimento a uma
classe social abastada. Se naquele momento histórico o desquite se apresentava
como uma prática condenável, imersa em conflitos que estigmatizavam a mulher aos
olhos da sociedade, o acréscimo do adultério reservava para Sylvia sorte ainda pior
mas, conforme relatou Nelson Rodrigues ao lembrar o caso, a opinião pública foi
favorável a ela, influenciando o júri (RODRIGUES, N, 1967, p. 156).
A despeito das mudanças que a vida urbana propiciava, a noção de honra da
família não só foi mantida, como ganhou maior destaque depois de 1937, com a
consolidação de Getúlio Vargas no poder. De acordo com Sueann Caulfield (2000),
com a instauração do Estado Novo, Vargas levou adiante as idéias moralistas, com
o suposto objetivo de zelar pela moral pública e pelos valores da família, vinculando-
as explicitamente à honra nacional (CAULFIELD, 2000, p. 27). Nas décadas de 1940
e 1950 o ideal de progresso foi associado à manutenção do ideal tradicional de
família, com seus preceitos moralizadores e a hierarquia nas relações de gênero.
30
A morte de Roberto foi tema do programa Linha Direta da Rede Globo de Televisão em 2007.
230
As esposas adúlteras não contavam com a mesma permissividade social
delegada aos maridos e eram severamente punidas. O bem estar do casamento no
imaginário social estava intimamente ligado ao comportamento “adequado” da
mulher que, ao transgredir, poderia ser punida pelo marido traído. O homem, com a
sua honra maculada, dispunha dos meios violentos de retratação, sendo perdoados
pelas autoridades quando utilizavam a força física para corrigir infrações femininas.
O tempo de Nelson Rodrigues foi o tempo desses traços culturais. Nos jornais
que lia e naqueles em que trabalhou, respirando diariamente a informação vinda da
rua, das casas, do mais íntimo das famílias, ele viu nascer o fio condutor de seus
esforços artísticos. A família em seu espaço secreto, o ser humano ao avesso,
personagem de manchetes policiais, entregue a sorte dos infelizes que sofrem por
amor, por solidão, ou pelas demais doenças da condição humana.
Em 1930, um ano depois da morte de Roberto, foi a vez de Mario Rodrigues
falecer. Neste mesmo ano, Nelson e os irmãos Mario Filho e Joffre, seguindo o
caminho do pai, começaram a trabalhar em O Globo.
Em 1934, aos 22 anos, a saúde de Nelson começou a mostrar-se frágil. Neste
ano ele teve a primeira de uma série de crises de tuberculose e passou 14 meses
em Campos do Jordão tentando a recuperação. Três anos depois a família
Rodrigues contabilizaria mais um óbito: Joffre Rodrigues, irmão de Nelson. Neste
mesmo 1937, quando os Rodrigues se recuperavam da miséria na qual tinham sido
lançados com a Revolução de 30, Nelson conheceu, na redação de O Globo, a
secretária Elza Bretanha, com quem se casaria mais tarde, exigindo que ela
deixasse de trabalhar, ainda que a situação financeira da família fosse preocupante.
O casamento ocorreu aos 28 anos do dramaturgo pernambucano e desta
união nasceram Joffre e Nelson. O filho de Mario Rodrigues aventurou-se, em pelo
menos, três longos romances extraconjugais. O primeiro durou dois anos e teve
como parceira Eleonor Bruno. Durante esse período Nelson manteve um pequeno
apartamento em sociedade com Pompeu de Souza em Copacabana, utilizado como
garçonnière, até o dia em que Elza bateu à porta do local promovendo uma grande
confusão.
Em seguida viveu por cinco anos ao lado de Yolanda Camejo, que nesse
período teve duas filhas e um filho, dos quais Nelson Rodrigues só reconheceu
como seu o terceiro. Contudo, catorze anos após a morte do dramaturgo, em 1994,
os três foram reconhecidos judicialmente como seus após exame de DNA feito a
231
partir do sangue das irmãs de Nelson. Sônia Rodrigues, uma das filhas do escritor
com Yolanda, relatou no livro Amor em segredo: as histórias infiéis que aprendi com
meu pai, Nelson Rodrigues, os problemas enfrentados por ela e seus irmãos devido
a conflituosa relação que tiveram com o pai (RODRIGUES,S., 2005).
Depois de Yolanda, Nelson ainda conheceu Lucia Cruz Lima, em 1961.
Casada, ela resolveu deixar o marido e voltou a morar na casa dos pais ao assumir
seu romance com Nelson, que por sua vez também decidiu se separar de Elza. Ele
levou, contudo, dois anos para efetivar a separação. Da relação com Lúcia nasceu
Daniela, uma menina cega e com problemas cerebrais. Em suas já citadas
memórias publicadas em livro em 1967, Nelson escolheu um subtítulo que
homenageava a filha: “a menina sem estrela”. Na dedicatória ele ofertava: “aos
meus filhos Joffre, Nelson e Daniela”, excluindo, assim, os filhos do relacionamento
com Yolanda, mesmo o menino, cuja paternidade ele assumira. A relação com Lucia
durou até 1970.
Nelson Rodrigues envolveu-se ainda com Helena Maria, trinta e cinco anos
mais nova do que ele, mas em 1977 retomou a união com Elza a quem fez o pedido
final: desejava que ela, quando da morte dele, gravasse o seu nome ainda em vida
na lápide com a inscrição "Unidos para além da vida e da morte. É só". O pedido do
dramaturgo foi atendido (CASTRO, 1992, p. 420).
Com este breve resumo de sua vida amorosa, podemos perceber que a
trajetória afetiva do escritor não foi das mais estáveis. A infidelidade do marido
fulgura como comportamento comum e aceitável pelas leis morais da sociedade da
época, mas Nelson não se limitou a trair. Ele separou-se de Elza e teve mais dois
relacionamentos também fadados à separação, o que nos anos 60 e 70 não era
moralmente aceito. No Brasil, a lei do divórcio só entrou em vigor em 1977, e o
desquite, que não permitia novos casamentos, era motivo de estigmatização social
(BASSANESI, 2000, p. 636).
Este Nelson Rodrigues marcado socialmente, dono de uma biografia
questionável pelos padrões da época, não transgrediu apenas na vida pessoal. Ao
lado de suas aventuras e desventuras amorosas, uma efervescente produção
artística e jornalística ganhava notoriedade, transformando o filho de Maria Esther
Falcão em ícone do teatro nacional.
Em 1942, dois anos depois do matrimônio com Elza, estreou A Mulher sem
Pecado, sua primeira peça. No ano seguinte, Zbigniew Ziembinski encenou Vestido
232
de Noiva, instaurando definitivamente o nome de Nelson Rodrigues no ponto mais
alto da dramaturgia teatral brasileira. Sobre o retumbante sucesso Nelson revela:
Com Vestido de noiva, conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdi-o,
e para sempre. Não há nesta observação nenhum amargor, nenhuma
dramaticidade. Há, simplesmente, o reconhecimento de um fato e sua
aceitação. Pois a partir de Álbum de família drama que se seguiu a
Vestido de noiva enveredei por um caminho que pode me levar a qualquer
destino, menos ao êxito. Que caminho será este? Respondo: de um teatro
que se poderia chamar assim “desagradável”. Numa palavra, estou
fazendo um “teatro desagradável”,“peças desagradáveis”. No gênero
destas, inclui (sic, devendo-se ler-se incluo ou incluí), desde logo, Álbum de
família, Anjo negro e a recente Senhora dos afogados. E por que “peças
desagradáveis”? Segundo já disse, porque são obras pestilentas, fétidas,
capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na platéia (RODRIGUES,
N.,1993, p. 37).
Em 1944 surge Suzana Flag, pseudônimo utilizado por Nelson em O Jornal
para assinar os capítulos de Meu destino é pecar. Em 1946 a peça Álbum de Família
é censurada.
Nelson Rodrigues deixou o Diário da Noite para se dedicar exclusivamente ao
teatro, o que acabou deixando-o em dificuldades financeiras por um ano inteiro, pois
a peça Valsa nº 6, monólogo estrelado por sua irmã Dulce Rodrigues, em 1950, foi
um fracasso de público (CASTRO,1992, p. 236).
Com a criação do jornal Última Hora (Rio de Janeiro), Nelson voltou aos
jornais a convite de Samuel Wainer para ser mais uma vez repórter policial. Desta
vez assinando reportagens especiais e esporádicas que ocupavam toda a
contracapa. Foram cinco reportagens em dois meses. Posteriormente escreveu para
o Última Hora o último folhetim assinado por Suzana Flag: O homem proibido
(COELHO, 2002, p. 223).
A partir de 1951 até 1961, Nelson passou a publicar no Última Hora a coluna
diária A vida como ela é..., que no primeiro mês atendia pelo título de Atirem a
primeira pedra. A idéia inicial era de que Nelson escrevesse sobre um
acontecimento trágico do dia anterior. De início, a coluna saía junto à seção de
crimes do vespertino, trazendo, inicialmente, o nome e a foto dos envolvidos. Em
pouco tempo as histórias perderam esse caráter realista, dando maior liberdade ao
233
escritor, que passou a inventá-las. O Última Hora foi um dos jornais de maior
circulação do período e a coluna A vida como ela é... era um de seus maiores
sucessos, como afirmou Nelson (1967, p. 98) posteriormente:
(...) Se as novas gerações me perguntassem o que era A Vida Como Ela
É..., diria: _‘Era sempre a história de uma infiel’. Apenas isso. E o leitor era
um fascinado. Comprava a Última Hora para conhecer a adúltera do dia.
Claro que, na minha coluna, também os homens traíam. Mas o que o
público exigia era mesmo a infidelidade feminina.
Em A vida como ela é... Nelson experimentou uma aproximação com a
linguagem coloquial do carioca, valendo-se de expressões muito comuns na época
como “batata”, “carambolas”, “não amola”, “ora pílulas”. Da mesma forma, os
diálogos curtos imitavam as falas cotidianas e as conversas entre amigos ou
parentes. Dado o sucesso dessa fórmula, Nelson Rodrigues trouxe também para o
seu teatro a linguagem coloquial de A vida como ela é..., iniciando, a partir de A
falecida, de 1954, uma nova fase na sua dramaturgia a das tragédias cariocas
(GUIDARINI,1990, p. 55-56).
De acordo com Guidarini as histórias que Nelson escrevia tornavam público o
que estava no pensamento das pessoas, daí o fascínio gerado por esse tipo de
leitura. Entretanto, ao mesmo tempo, esses contos eram associados ao proibido e
ao imoral, justamente porque relatavam comportamentos femininos desviantes, o
que nos leva a pensar que o dramaturgo perseguia uma comunicação com o público
baseada num “fluxo de consciência”, isto é, jogava com o interesse do leitor por
aquilo que era socialmente condenado, gerando uma “atração-repulsa” nos
espectadores, sobretudo nos homens (GUIDARINI,1990, p. 185). Como mostra Ruy
Castro (1992), A vida como ela é... contava com um fiel público masculino não por
intenção declarada do jornal, mas sim porque os homens da época não julgavam
pertinente que as mulheres de bem tivessem acesso aos relatos rodrigueanos sobre
heroínas propagadoras do mau exemplo (CASTRO, 1992, p. 238). Era o tipo de
história que, se lida pelas mulheres poderia ameaçar a ordem social, porque poderia
inspirar maus comportamentos, mas se lida pelos homens não.
Diante das informações precedentes não deve causar espanto o fato de que
Nelson Rodrigues converteu-se em personagem do Rio de Janeiro de sua época.
234
Castro informa que as muitas mortes dos contos iniciais de A vida como ela é...
fizeram correr na cidade o boato de que Nelson dormia num caixão de defunto e era
um sujeito devasso, libidinoso e luxurioso (CASTRO, 1992, p. 241).
Nelson viu crescer a sua fama de “tarado”, sobretudo quando Carlos Lacerda,
principal adversário de Getúlio Vargas, resolveu atacá-lo para atingir o Última Hora e
Samuel Wainer. Em suas Memórias (1967, p. 95-98) lemos:
Estou passando as estações [do rádio] e paro numa delas. Alguém estava
berrando: “O tarado Nelson Rodrigues!” Claro, era o Carlos Lacerda. (...)
Carlos Lacerda teve a paciência de selecionar trechos de um mês de minha
coluna. Com uma pinça, catava uma frase ou um episódio e o isolava de
seu ambiente e de sua justificação psicológica e dramática. O destaque
feito valorizava o extrato ao infinito. E, além do mais, ele criava suspense,
inflexionava, representava. No fim, até um ‘bom dia’ ficava obsceno.
Apesar de todo o folclore a respeito da obscenidade ou da pornografia de
suas histórias, muitos indícios demonstram que as opiniões de Nelson Rodrigues
sobre o casamento, a família e os papéis de gênero nada tinham de subversivos,
muito pelo contrário. Quando perguntado sobre qual era o seu pensamento sobre a
mulher e o homem, já em 1980, pouco tempo antes de sua morte, ele respondeu:
O meu pensamento sobre a mulher e o homem não mudou em nada. A
mulher está de uma frivolidade suicida. A mulher séria está desaparecendo,
sendo tragada pelos novos costumes. A mulher é uma Maria Antonieta. Não
é séria. Ela diz: o povo não tem pão, então coma brioche. Assim é, mais ou
menos, a maioria das mulheres. (...) Uma vez perguntei para uma grã-fina
quantas amigas dela traíam os maridos. E ela me respondeu: 90%. A
mulher devia preservar a virgindade, em vez de ficar aí pelas esquinas e
botecos se entregando a qualquer um (RODRIGUES apud MARTINS,1985,
p. 38-40)
31
.
As histórias de A vida como ela é... insinuavam como a vida não deveria ser.
O nome da coluna, elaborado pelo próprio Nelson Rodrigues, era uma ironia, uma
provocação ao leitor, pois o relatado nas histórias era justamente o contrário do que
era socialmente aceito e valorizado. Como nesses contos onde prevalece o humor
31
Entrevista de Nelson Rodrigues à Jussara Martins.
235
as situações criadas não são levadas a sério, são cômicas ou ridículas, era a norma
que acabava sendo valorizada. É o que podemos perceber quando Nelson
Rodrigues comenta a recepção do filme A dama do lotação, baseado no conto:
Para muitas pessoas, o cinema é uma maneira de se purificar. Uma vez,
numa reunião de alta sociedade, uma maravilhosa senhora, sem qualquer
sombra de pudor, me disse: “Eu era uma verdadeira Dama do Lotação.
Fazia psicanálise e nada de resolver o meu problema. Quando saiu o filme,
fui -lo. Me identifiquei tanto com a heroína que, ao final, estava de alma
lavada, inteiramente purificada.” Repito sempre que se não existisse o lado
podre em cada um de nós, não existiria, também, a indústria
cinematográfica (...). Hollywood criou as mais lindas fantasias sobre a lama
inconfessa e encantada que repousa no fundo de cada pessoa. (...) Todas
as vezes que o cinema colocar o homem diante de suas próprias abjeções,
cada um de nós sentirá o eterno que existe em suas profundezas e, aliás,
verá a própria sombra de Deus. Pois, sem Ele, todos nós não passamos de
uns canalhas (RODRIGUES apud MARTINS,1985, p. 40).
Desnudando o lado obscuro do ser humano, Nelson atiçava os
questionamentos sobre as identidades de gênero, evidenciava a hierarquia e
apontava as conseqüências das transgressões que ocorriam à surdina. Como
analisa Maria Luiza Ramos Boff (1991, p. 237):
(...) Nelson Rodrigues conseguiu perscrutar e denunciar, com suas
personagens, as diferenças individuais e a frustração feminina. Retirando-
as do contexto social que as envolvia, tratou suas características
individualmente. Pintou-as ao mundo, com ou sem correção, mas de modo
que o mundo as conhecesse e atentasse às suas peculiaridades,
valorizando-as ao fazê-las protagonistas ou personagens de destaque em
toda a sua dramaturgia.
Em suas dezessete peças, homens e mulheres ganharam a voz que nem
sempre lhes cabia na sociedade. Seu teatro desagradável não cumpriu a profecia do
fracasso que tanto alardeou em vida. Com Vestido de Noiva Nelson conheceu o
sucesso e com as peças seguintes ele se cristalizou eternamente no êxito. O autor
de Álbum de Família Senhora dos Afogados morreu em 21 de dezembro de 1980.
236
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O Teatro desagradável de Nelson Rodrigues proporcionou aos leitores e
admiradores da cena e da dramaturgia para o palco, um considerável conjunto de
textos até hoje aclamados. As peças que compõem a nossa discussão datam de
1945 (Álbum de Família) e 1947 (Senhora dos Afogados), mas a
contemporaneidade dos diálogos e da trama atesta o caráter atemporal e precursor
de sua dramaturgia. Nos citados textos fulguram personagens mergulhados em
conflitos de ordem identitária, perdidos no dever-ser inatingível, aterrorizados e
tornados aterrorizantes pela cristã idéia de pecado.
Em Álbum de família nos é apresentada a trajetória matrimonial de Jonas e
Senhorinha, primos que se casaram e tiveram 4 filhos: Guilherme, Edmundo, Nonô e
Glória. Essa última, a caçula da família, vivia em um colégio interno até ser expulsa,
na primeira cena do espetáculo, por ter sido flagrada beijando na boca a colega de
quarto Teresa. O retorno de Glória à fazenda de Jonas desencadeia uma série de
reações na família que, aos poucos, vão ganhando a ciência do leitor/ expectador.
Na citada fazenda principal cenário da trama mora Tia Rute, irmã mais velha de
Senhorinha que agencia meninas virgens para a satisfação sexual do cunhado. Uma
dessas meninas encontra-se sentindo as dores do parto no decorrer de toda a
história, sinalizando para a infidelidade pública de Jonas e a conseqüente submissão
de Senhorinha ao marido.
O retorno de Glória ao lar coincide com a chegada de Edmundo, recém
separado de Heloísa, e com a volta de Guilherme que abandonara o seminário.
Edmundo mantém uma relação de rivalidade com o pai, mas termina por acatar os
desmandos paternos a pedido da mãe por quem nutre um amor incestuoso. Já
Guilherme, mais parecido com o patriarca, revela-se apaixonado por Glória, que por
sua vez dedica um extremado interesse, também incestuoso, por Jonas. A margem
de toda trama, do lado de fora da casa, somos apresentados a Nonô, o filho que vive
sem roupa, com hábitos selvagens, expressando-se não mais com palavras, mas
sim com gritos.
Alheio aos conflitos, encontra-se um Speaker a tirar fotografias da ‘família
feliz’. De sua presença, de caráter narrativo, deriva o título da peça, numa alusão ao
conteúdo farsesco desta prática familiar: o álbum de fotos. Para cada retrato e suas
237
poses cristalizadas, Nelson nos revela a desconstrução da cena forjada, virando ao
avesso a suposta paz e harmonia daquele lar. Seu teatro desagradável problematiza
a artificialidade da imagem pública da família e contesta, no âmbito da intimidade
violada, o teor instintivo das relações e os traumas de sua tentativa de adequação às
normas vigentes.
Em um plano secundário, mas não menos importante, encontram-se Tenório
um avô que vende a neta para Jonas a fim de saciar seus caprichos sexuais;
Totinha a referida neta; Heloísa, esposa de Edmundo e uma Mulher Grávida,
adolescente abusada por Jonas, sôfrega com as dores do parto.
Deflagrando as cenas finais, Guilherme mata Glória e em seguida comete
suicídio. Edmundo também prefere a morte ao descobrir que Senhorinha entregou-
se sexualmente a Nonô, causando a sua loucura. No desfecho da obra, esposa e
marido se enfrentam e este acaba sendo baleado e morto por aquela. Restam
Eduarda e Nonô, a viver ainda que temporariamente a paixão proibida que o
Álbum não fotografou.
No texto rodrigueano, não há uma definição espacial exata para o desenrolar
da ação, que pode, muito bem, ocorrer em qualquer lugar. A fazenda de Jonas, um
poderoso proprietário de terras, serve como metáfora de um território dominado por
um único homem, algo como o conceito antropológico da horda familiar do pai
tirânico. O início da ação, datada por uma fotografia de 1900, início de século,
sugere que o mundo começa exatamente no instante em que Jonas, com o
casamento, assume o posto de chefe daquela família. As relações provenientes do
seu enlace com Senhorinha parecem anteceder a civilidade ou inauguram uma nova
moral, inspirada em tempos remotos da história da humanidade incestos,
parricídios, filicídios e outras ações instintivas domadas pela cultura moderna
ocidental.
Em nosso método dialético, inspirado no mapa marxista, temos:
1) Tese Jonas vive na fazenda com D.Senhorinha, Tia Rute, Nonô e uma
Mulher Grávida. Guilherme está no seminário, Edmundo é casado com
Heloísa e Glória estuda em um colégio interno;
2) Antítese Guilherme abandona o seminário, Edmundo separa-se de Heloísa
e Glória é expulsa do colégio. Os filhos retornam à fazenda e intensificam
suas inspirações incestuosas. Guilherme assume desejar Glória; Glória
238
revela-se apaixonada pelo pai; Edmundo diz não ter concretizado o
casamento com Heloísa por conta do amor que nutre por Senhorinha; a
matriarca, por sua vez, assume desejar Nonô e, diante desses fatos, a
autoridade de Jonas se vê profundamente ameaçada;
3) Síntese Ao descobrir que Glória ama o pai, Guilherme a mata e depois
comete suicídio; Edmundo, ao saber da relação entre sua mãe e Nonô,
também se suicida, Senhorinha tem um embate com Jonas e acaba atirando
nele; Nonô e a mãe se entregam ao desejo.
Em Senhora dos Afogados acompanharemos a história da família
Drummond, assolada pelas mortes de Dora e Clarinha, ambas por afogamento.
Misael é casado com D. Eduarda e pai de Paulo e Moema. Na casa, que fica diante
do mar, ainda mora Marianinha, a Avó louca, mãe de Misael. O Noivo de Moema
também atuará nesse cenário revelando mistérios e empreendendo mudanças no
encaminhamento dos fatos.
O ponto de partida do enredo é o velório de Clarinha, filha de Misael e D.
Eduarda, morta no dia em que os pais completavam 19 anos de casamento. A data
ainda coincide com a morte de uma prostituta do cais, que fora assassinada há
também 19 anos. Enquanto poucas pessoas rezam a morte de Clarinha, muitas
mulheres choram a partida da mulher do cais, criando uma duplicidade de
sentimentos e de intenções na trama: a morte da virgem e a morte da profana
causando profundas transformações na estrutura da família Drummond.
O tema da morte norteia as preocupações, interesses e ações da população
local e Misael é considerado o principal suspeito pelo assassinato da prostituta, que
mais tarde descobriremos se tratar da mãe do Noivo de Moema.
O assassínio ocorreu porque no dia do casamento de Misael e Eduarda a
mulher do cais, com quem Misael mantinha uma relação amorosa, o procurou
exigindo deitar-se com ele na cama da futura esposa. Para não macular seu leito
nupcial com uma mulher da vida, Misael matou a prostituta, sem saber que ela era
mãe de um filho dele (o Noivo de Moema). Desde então, as mulheres do cais
choram a sua morte, ao passo que o filho bastardo acredita na existência de uma
Ilha para onde vão as prostitutas depois de mortas.
O Noivo, meio irmão de Moema, planeja se vingar do pai/ sogro. Para tanto,
seduz D. Eduarda e a leva com ele para o prostíbulo do cais, comandado por sua
239
Avó. Ao descobrir, por intermédio de Moema, a infidelidade da mãe, Paulo mata o
Noivo da irmã e depois se entrega ao mar sugestionado de novo por Moema. Esta,
em nome do amor avassalador e incestuoso que nutre pelo pai, revela-se assassina
de Dora e Clarinha, na intenção de tornar-se a única mulher da casa, a verdadeira
Senhora dos Afogados.
A ação da peça se passa ‘perto de uma praia selvagem’, sendo o mar descrito
por Nelson como ‘um personagem invisível’. Sua influência é significativa no trajeto
cênico de Dona Marianinha que credita a ele os óbitos e as desgraças da família.
Num recurso alegórico, o dramaturgo situa esse ‘personagem invisível’ à frente do
palco, isto é, exatamente na platéia, o que nos faz associar o movimento devastador
das ondas do mar aos preceitos morais da opinião pública.
Pelo método dialético, temos:
1) Tese A família Drummond mora em uma casa diante do mar, onde, nas
redondezas, há um prostíbulo. Há, na situação cênica inicial, um duplo
lamento fúnebre: de um lado, a morte de Clarinha, filha de Eduarda e Misael;
de outro, o aniversário de falecimento de uma prostituta do cais. Moema está
noiva de um personagem designado apenas como Noivo.
2) Antítese Revela-se ao público que o Noivo de Moema é filho de Misael e da
prostituta morta. Ele decidiu se aproximar da família objetivando se vingar do
pai, por acredita ser ele o assassino de sua mãe. Moema, por sua vez,
assume amar incestuosamente Misael, colocando-se em confronto constante
com D. Eduarda.
3) Síntese O Noivo seduz D. Eduarda e a leva, como adúltera, para o
prostíbulo de sua avó; lá ele será morto por Paulo, o irmão de Moema;
Eduarda terá as mãos arrancadas por Misael e morrerá na praia, sendo todos
esses crimes incentivados por Moema que assumirá ter afogado suas irmãs
para ser a única mulher da casa. Misael morrerá e Moema, como castigo, não
mais verá sua imagem refletida no espelho. Na nova realidade, a senhora dos
afogados amargará a solidão eterna.
Diante desses dois breves resumos, propomos um passeio pelos bosques
rodrigueanos, estudando suas personagens de forma coletiva, agregadas por
critérios de semelhança.
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As personificações da paternidade elaboradas por Nelson Rodrigues nas
duas peças supracitadas, oferecem uma interessante ligação entre o comando de
uma família e as abdicações de uma subjetividade masculina. Ilustrando esta opção
rodrigueana, Courneau (1995, p. 47) expõe:
(...) ser homem significa amputar seu corpo e seu coração sem poder
chorar. Ser homem significa ser capaz de cometer violência contra seus
próprios sentimentos, contra suas próprias emoções, contra seu próprio
corpo ser capaz de esquecer que se tem um coração e um corpo.
Ao desenhar o perfil identitário de Jonas, em Álbum de Família, o dramaturgo
privilegia a descrição dos traços físicos que tenderiam a aproximar a figura do pai à
imagem de Nosso Senhor.
(...)Tipo de homem nervoso, apaixonado, boca sensual, barba em ponta.
Cabelos à Bufallo Bill, quer dizer, meio nazareno. Vaga semelhança com
Nosso Senhor (RODRIGUES,1993, p. 59).
Glória (...) Quando eu era menina, não gostava de estudar catecismo... Só
comecei a gostar me lembro perfeitamente quando vi, pela primeira vez,
um retrato de Nosso Senhor... Aquele que está ali, só que menor, claro”
(desfigurada pela emoção) Fiquei impressionada com a SEMELHANÇA!
(RODRIGUES,1993, p. 92).
Alegoricamente Jonas é o Deus da fazenda, daquele universo isolado e
representativo do mundo real, é o senhor da casa e da família, embora não tenha
seu domínio efetivamente reconhecido por todos.
Jonas (...) Eu tenho certeza de que, se eu ficasse leproso, talvez meus
filhos e minha mulher me matassem a pauladas (RODRIGUES,1993, p. 65)
Apenas Glória e Tia Rute sucumbem cegamente ao poder desse pai, ao passo que
os demais, reconhecendo-o ditador, rejeitam a sua autoridade, ou criam estratégias
para permanecerem no seio familiar disfarçando os seus anseios de autonomia. É o
241
caso de D. Senhorinha que, aparentemente submissa e resignada, transpôs o
domínio do marido, entregando-se sexualmente ao filho Nonô.
D. Senhorinha - Queres saber o nome do meu amante? O verdadeiro
nome? (...) Eu me senti tão feliz, quando você matou Teotônio. Respirei:
Nonô estava salvo! (doce) Ele enlouqueceu de felicidade, não agüentou
tanta felicidade! (RODRIGUES,1993, p. 117)
A infidelidade da mulher, ainda que tenha sido descoberta, manteve em sigilo
o nome do amante, evidenciando a perspicácia de Senhorinha e o limitado poder de
Jonas sobre as ações dos seus supostos comandados.
D.Senhorinha (insultante) Se você soubesse o nojo que eu sempre tive de
você, de todos os homens (...) Só tenho amor para meus filhos
(RODRIGUES,1993, p. 119).
Se por um lado Jonas conquistou o direito de trair a esposa sem nenhum
esforço, contando com a colaboração de Tia Rute, ele não experimenta nesses atos
de infidelidade o prazer da afetividade aliado ao sexo.
Jonas Não desejo você! (muda de tom) Nunca suportei as mulheres que
não desejo... POR ISSO DETESTEI SEMPRE MINHA MÃE E MINHAS
IRMÃS... (com sofrimento e a maior dignidade possível) Não sei, não
compreendo que um homem possa tolerar a própria mãe, a não ser que...
(RODRIGUES,1993, p. 83)
As aventuras sexuais de Jonas com meninas jovens e virgens não têm por objetivo a
satisfação de um prazer, mas sim a negação do desejo incestuoso que nutre pela
filha Glória. Por isso a filha fora mandada para um colégio interno: para que não
fosse maculada pelos desejos incontroláveis do pai.
Jonas (sombrio) Meus filhos querem-me criticar! Se soubessem o motivo
que eu tenho um grande MOTIVO para fazer o que faço - ... e coisas
piores! (RODRIGUES,1993, p. 80)
Jonas se reconhece frio e demasiadamente afeito ao sexo, pretendendo
justificar a sua condição por um fator biológico, determinante na constituição da sua
242
identidade masculina. Nesse mesmo sentido, agrega em seu discurso o filho
Guilherme, classificando-o como a continuação dessa prática inevitável que submete
grande parte dos homens aos caprichos do corpo. Adotando o gênero como
categoria de análise, argumentamos que
“As exigências viris de posse e poder, bem como ser assertivo e competitivo
sexualmente, mantém os homens presos à questão do desempenho. Os
padrões de comportamentos que os qualificam como homens se aproximam
dos exigidos para máquinas. Enquanto identificados como homem-máquina,
estes indivíduos ficam impossibilitados de problematizar a maneira como
socialmente tornaram-se homens (NOLASCO,1995
A
, p. 21)
Contudo, ao aproximar Guilherme do seu universo masculino, Jonas não
estabelece com o filho uma relação de cumplicidade, ao contrário: as semelhanças
entre os pares, neste caso, afasta-os, coloca-os em campos opostos de disputas e
medição de forças. No decorrer do texto a rivalidade entre eles se acentua ao
explicitar para o leitor/ expectador a paixão não confessada de ambos pela mesma
mulher: Glória.
Guilherme Que é que tem papai? NUM LUGAR DECENTE, PAPAI ESTARIA
NUMA JAULA. Papai até já matou gente! (RODRIGUES,1993, p. 91)
Guilherme [para Glória] Não quero que ele te veja! Vem comigo! Eu te levo
para um lugar bonito LINDO! (RODRIGUES,1993, p. 94)
Mergulhado em conflitos de naturezas diversas, Jonas tenta sobreviver em
território hostil a própria casa. Nas didascálias rodrigueanas, a fazenda de Jonas,
localizada, como vimos, no início do século, conota um universo paralelo ao mundo
real, onde apenas a família dele existe, fazendo-o o Deus supremo daqueles seres
que sofrem e desejam o seu mal.
Jonas (gritando) (...) Eu sou o PAI! O pai é sagrado, o pai é o SENHOR!
(fora de si) Agora eu vou ler a Bíblia, todos os dias, antes de jantar,
principalmente os versículos que falam da família! (RODRIGUES,1993, p.
65)
243
Apesar de contar com o apoio incondicional de Tia Rute, Jonas não vivencia
momentos de tranqüilidade. Rondando a sua atuação têm-se os gritos da mulher
grávida que sente as dores do parto:
Mulher Grávida (sempre numa voz grossa, pesada, de quem sofreu demais,
gritou demais) - ... Desgraçado! me aleijou... Te amaldiçôo... Tu vai pagar
o que me fez... (RODRIGUES,1993, p. 59)
o inconformismo de Edmundo que não aceita a forma como Jonas trata a esposa:
Edmundo (sem se dirigir diretamente ao pai) Quando eu era menino, ele
me humilhava, me batia... Uma vez eu fiquei ajoelhado em cima do milho...
(com desespero) Mas agora, não sou mais criança! (RODRIGUES,1993, p.
74)
as queixas de D. Senhorinha aliadas ao passado infiel da mesma:
D.Senhorinha (com voz perfeitamente neutra) Jonas, não suporto mais
você. (RODRIGUES,1993, p. 114)
a frieza-concorrente de Guilherme ao coração de Glória:
Guilherme Agora o seguinte: eu vim na frente, Glória chega a qualquer
momento, hoje ou amanhã, não sei. Eu queria combinar justamente uma
coisa. ELA NÃO VEM PARA AQUI!
Jonas Não vem para aqui como? ... por que?
Guilherme (veemente) Porque essa casa é indigna PORQUE VOCÊ
NÃO PODE TER CONTATO NEM COM SUA PRÓPRIA FILHA!
(exaltadíssimo) Você mancha, você emporcalha tudo a casa, os móveis,
as paredes, tudo! (RODRIGUES,1993, p. 85)
e os próprios instintos que o escravizam diante dos apelos físicos, tendo no filho
Nonô uma significação alegórica: o filho louco, ao viver desnudo do lado de fora da
casa, despiu-se dos pudores e das regras sociais que Jonas ainda não conseguiu se
libertar. Ao referir-se a ele, Jonas acusa:
244
Jonas (violentamente) Completamente doido! Só tem de humano o ódio a
mim, ao PAI! Quando sai do mato e me vê de longe, atira pedras!
(RODRIGUES,1993, p. 64)
Tal como em Lorca, temos também aqui a associação conflitiva entre o
princípio da autoridade (Jonas) e o princípio de liberdade (Nonô), não sendo igual,
todavia, o desfecho desse antagonismo: se em La Casa de Bernarda Alba, a
autoridade da matriarca subtraiu a vivência contestadora da filha Adela, em Álbum
de Família caberá a D. Senhorinha (a dominada) pôr fim à trajetória autoritária do
marido (o dominador):
Jonas - Quer? Eu deixo! Num instante! Olha é só você apertar o gatilho...
(tira o revólver com que deveria matar Guilherme. D. Senhorinha está
apavorada).
D.Senhorinha Não, Jonas, não!
Jonas Toma! Segura!
(D. Senhorinha aceita o revólver, mas é como se a arma lhe desse náusea).
Jonas (gritando) Agora, atira! (fora de si) atire! Ande esta com medo?
Pelo amor de Deus, atire!
(D. Senhorinha não se resolve, tomada de terror. Mas ouve-se, então, o
grito de Nonô, como um apelo).
D. Senhorinha Nonô me chama vou para sempre.
(D. Senhorinha puxa o gatilho duas vezes; Jonas é atingido. Cai
mortalmente ferido) (RODRIGUES,1993, p. 119)
Em direção muito similar, Nelson também desenhou com cores fortes a
paternidade de Misael, o patriarca dos Drummond em Senhora dos Afogados.
(...) Há nele qualquer coisa de profético nos olhos duros, na barba imensa e negra, nas
faces fundas. Faz pensar também numa intensa sensualidade contida
(RODRIGUES,1993, p. 274)
O provedor da família desestruturada pelas mortes trágicas das filhas Dora e
Clarinha, também carrega o fardo da frieza e do comando, percebendo atitudes
contrárias ao seu domínio dentro da própria casa. Casado com D. Eduarda, Misael
não experimenta com ela uma relação de prazer ou cumplicidade.
245
Misael Te lembras da nossa primeira noite?
(Misael pousa o copo. Aproxima-se de D. Eduarda).
D. Eduarda (com rancor) Não me lembro nem quero.
Misael Teu corpo ao longo do meu corpo. Nenhuma palavra que nos
unisse. O quarto parecendo crescer na treva, minuto a minuto... (vai
apanhar, de novo, o copo, fala olhando para ele, como se o copo o
fascinasse) Sabes por que foste minha? Por causa da família... Eu queria
de ti filhos... Só podia querer filhos... Prazer não, nenhum prazer...
(RODRIGUES,1993, p. 285)
O sexo entre eles destinou-se apenas à procriação e até o casamento deles
adveio de uma dessas obrigações morais: Misael desposou Eduarda porque não
admitia o enlace amoroso com a mulher que realmente amava a prostituta do cais,
mãe de seu filho bastardo, que ele matara no dia do casamento.
Misael (...) Matei (...) Com um machado no dia do casamento... Ela
exigiu que eu a trouxesse aqui... Queria entrar nesta casa, neste quarto...
Veio de manhã... Nunca foi tão bonita e tão meiga... deitou-se na cama da
noiva... Eu sentia que ela precisava morrer, devia morrer... Agarrei-a pelos
cabelos... (RODRIGUES,1993, p. 298)
Desde então, há 19 anos, Misael é considerado o principal suspeito do crime,
mas não o confessa. A publicização da história só vem à tona numa cerimônia em
que ele seria condecorado, pois num surto imaginativo o patriarca vê uma projeção
da mulher morta entre os convidados.
Misael (...) Eduarda, eu vi essa mulher o tempo todo. (grita) Mas eu sabia
que ela tinha morrido há muitos anos... (lento, sem excitação) Não podia
estar ali, mas estava; ninguém a via, só eu... Então, não pude continuar;
parei o discurso no meio... Fugi... Ela também saiu, veio comigo... (com
medo, mas sem rancor) Deve estar aqui me acompanhando... (olha em
torno) (RODRIGUES,1993, p. 276)
De volta a casa, ele recebe a notícia do afogamento de Clarinha e se atordoa
com a movimentação no cais: as prostitutas choram copiosamente a morte da
mulher que Misael matara há 19 anos. Diante dos fatos torna-se inevitável
rememorar o passado. As acusações contra ele vêm de todos os lados, pois todos
246
sabem que a ele compete à autoria do crime. Através do recurso do coro, Nelson
cria uma presença constante de vizinhos na casa que, em tom acusatório e irônico,
condenam as atitudes de Misael, revelando segredos e sugerindo intrigas.
Vizinho (logo que Misael aparece à porta) Olha o grande pai!
Vizinho O grande bêbado!
Vizinho Não bebe! O doutor não bebe!
Vizinho Bebe, sim!
Vizinho Não!
Vizinho Tem úlcera no duodeno!
Vizinho Mas foi ele, não foi ele?
Vizinho Quem?
Vizinho Foi ele!
Vizinho Quem matou aquela mulher?
(Vizinhos cochichando entre si.)
Vizinho Dizem que foi ele!
Vizinho Mentira! (RODRIGUES,1993, p. 274)
A presença na casa do Noivo de Moema, que mais tarde será revelado filho
bastardo de Misael com a falecida, acentua os problemas vivenciados pelo patriarca
ao empreender cobranças do passado e suscitar vinganças no presente.
Noivo (agarrando D.Eduarda pelos ombros) Seu marido foi amante de
minha mãe... Muito tempo... (vira-se, para Misael) Olhe bem para mim.
Assim. Bem no fundo dos meus olhos... Ministro... (...) Reconhece a sua
carne em mim? (...) Minha mãe escreveu uma carta na véspera de morrer
escreveu que tu querias matá-la... Confessa agora para mim e para tua
mulher... (..) confessa mataste? (RODRIGUES,1993, p. 297)
Uma vez revelada a sua identidade, o Noivo, que já seduzira D. Eduarda, leva
a mulher de Misael para um bordel, configurando o adultério da santa.
Noivo (febril) Eu queria entrar nesta casa, para pertencer à tua família,
para que uma Drummond me pertencesse... (...) Não quero tua filha, quero
tua mulher assassino! (RODRIGUES,1993, p. 298)
247
Misael, que casara com D. Eduarda para não macular a sua trajetória tendo a
seu lado uma prostituta, termina por verificar a conversão da sagrada mãe de família
numa adúltera, restando a ele somente matá-la.
Moema Minha mãe te humilhou... Neste momento, agora mesmo, ela
estará nos braços desse homem... (...) Precisas castigá-la (...) É preciso,
pai. Ela deve pagar (RODRIGUES,1993, p. 307)
Diferentemente de Jonas, Misael não sucumbe facilmente diante da perda do
poder, pois tem a seu lado a aquiescência amorosa da filha Moema, arquiteta de
todos os planos de vingança da história.
Moema (frenético) Querias, não querias? Um companheiro para teu medo
e para tua insônia? Pai, eu tirei a vida de alguém... Eu matei... Sou uma
assassina como tu! (RODRIGUES,1993, p. 303)
Se Jonas, no Álbum de Família, se sentia solitário, sem parceiros dentro da
própria casa, Misael estará sempre respaldado pelo apoio incondicional de Moema
a verdadeira Senhora dos Afogados. A parceria dos assassinos, porém, não durará
muito tempo: diante da maldição que acomete Moema, o grande pai morrerá.
Moema está imóvel diante do espelho. Então acontece o que ela deseja.
Estendendo os braços sem mãos D. Eduarda vai recuando, recuando, até
desaparecer. É a vitória de Moema. Frenética, ela correr para o pai. Senta-
se no chão. Coloca a cabeça de Misael no próprio regaço. A cabeça do
último Drummond tomba na direção da platéia. Os olhos estão abertos e
fixos. A filha nada percebe, na embriaguez do seu triunfo
(RODRIGUES,1993, p. 331)
Esses modelos paternos encontrados nas peças rodrigueanas coincidem na
formação de uma identidade masculina pautada na obrigação e não na vivência
plena da vida familiar. Ser o chefe da casa, antes de possibilitar o regozijo do
domínio, impõe limites e obrigações que eles não sabem gerenciar de forma
saudável. Como bem apontou Boechat (1995, p. 30):
248
os mitologemas, os núcleos constitutivos de todo mito, constituem
expressões imagéticas dos arquétipos, que são, em si mesmos,
incognoscíveis. O mitologema do herói que enfrenta o monstro, e
superando-o obtém a mão da princesa, expressa o drama psicológico de
homens e mulheres que heroicamente buscam superar aspectos
indiferenciados da personalidade (monstro) para uma integração do
inconsciente criativo ou anima (princesa).
Jonas e Misael anulam suas identidades em nome de um modelo idealizado
de masculinidade: eles não podem errar, não podem ser frágeis, não podem amar
suas esposas, nem confiar em seus filhos. Todos aparentam estar contra eles, são
inimigos morando dentro da própria casa, disfarçados de parentes. A única fonte de
amor que os motiva é considerada pecado: o incesto com as filhas Glória e Moema
poderiam lhes redimir a culpa, mas significariam pecado ainda mais grave aos olhos
da sociedade. Tudo isso porque
as ideologias masculinas são construções cognoscíveis e discursivas,
dominantes nas sociedades que se estruturam com bases em relações
assimétricas entre os gêneros, articuladas em forças e jogos que exibem
multiplicidade de manifestações, as quais respondem a pluralidade cultural
da espécie humana e, em sociedades de classes, se expressam de formas
diferenciadas e contraditórias (ORTIZ,1995, p. 149)
Neste contexto, caberá aos senhores da casa cederem ao apelo da tradição,
confirmando o papel social que acreditam corresponder às expectativas do grupo:
serão pais e dominadores e pagarão o preço da autoridade não conquistada, pois
imposta. Os muros brancos da casa de Bernarda Alba ergueram-se também na
fazenda e no cais...
Em nosso método de sociologização da cena poderemos empreender um
estudo desses personagens a partir do mapa weberiano e do conceito de
dominação. A ação dramática dos personagens paternos criados por Nelson
Rodrigues se valerá, sobretudo, da ascendência exercida por eles sobre as famílias,
reduto de seus poderes, de seus desmandos e desejos socialmente condenados.
Ainda que os dois pais em questão exerçam sobre as filhas um encantamento quase
carismático, a legitimidade das ações praticadas será do tipo tradicional. Vimos
que a figura do pai encontra-se em Nelson Rodrigues extremamente ligada à
249
imagem do Cristo e pela via da tradição religiosa, a autoridade desses homens se
assemelha à autoridade de Deus.
Por outro lado, explorando o bosque paterno com o mapa durkheimiano em
mãos, vimos emergir a importância desses pais para a manutenção dos laços de
solidariedade mecânica, pois sem o medo que eles despertam nos filhos e nas
esposas, a coesão social daquelas famílias já teria sucumbido a um estado de
anomia muito antes do estabelecimento do conflito.
Mesmo desacreditados, enfraquecidos na luta pela manutenção da ordem na
casa, os pais rodrigueanos, numa acepção do mapa marxista sustentam por algum
tempo a ideologia que coordena os espíritos subordinados. No plano das
superestruturas a autoridade paterna tenta propagar sua legitimidade, mas, como
toda tese estabelecida, ela traz em si os germens da sua própria destruição. Jonas e
Misael não escaparão do movimento dialético.
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Uma vez acompanhadas as trilhas seguidas por Jonas e Misael os pais
rodrigueanos das peças selecionadas podemos agora indagar sobre a vivência
identitária de suas esposas: modelos de mãe que se distanciam do tradicional papel
da mulher ao experimentarem transgressões sexuais e afetivas, amargando o alto
preço da punição social.
A matriarca do Álbum de Família, D. Senhorinha, é bem diferente da feliz e
ingênua nubente da fotografia inicial, legendada pelo Speaker.
Speaker (...) Ela, 15 risonhas primaveras. Vejam a timidez da jovem
nubente. Natural trata-se da noiva que apenas começou a ser esposa
(RODRIGUES,1993, p. 56)
Por detrás da boa esposa, da mãe zelosa, da irmã solidária, esconde-se uma
mulher de desejos não reprimidos, mas vividos com a clandestinidade dos
pecadores perspicazes, disfarçados pela imagem frágil da esposa submissa que
sucumbe à ditadura do marido.
250
D.Senhorinha Estou cansada, farta, de não falar, de esconder há tanto
tempo as coisas que eu sinto, que eu penso. Podem dizer o que quiserem.
Mas eu dei graças a Deus quando minha filha morreu!... (RODRIGUES,
1993, p. 113)
Senhorinha, a despeito da humilhação de receber em sua própria casa as
meninas que Jonas deflora, mantém com alguma dignidade a sua postura
resignada, mas nem de longe passiva. A mulher de beleza sóbria que atiça o desejo
dos homens desde a mais tenra idade, pelas informações fornecidas por Tia Rute,
conseguiu transpor as obrigações do casamento e experimentou, ainda que
sigilosamente, o prazer sexual ao lado do filho Nonô:
D. Senhorinha - Queres saber o nome do meu amante? O verdadeiro
nome? (...) Eu me senti tão feliz, quando você matou Teotônio. Respirei:
Nonô estava salvo! (doce) Ele enlouqueceu de felicidade, não agüentou
tanta felicidade! (RODRIGUES,1993, p. 117)
A idealização de homem, de satisfação com o sexo oposto, remonta em
Senhorinha ao intercurso afetivo experimentado ao lado dos filhos, em maior ou
menor proporção. Edmundo, por exemplo, ainda que não tenha se entregado
sexualmente à mãe, manteve-se fiel a esse amor platônico pela figura materna, não
se permitindo concretizar o casamento com Heloísa. Tal fidelidade é vista com
alacridade por Senhorinha, para quem o amor dos filhos homens é o único que
realmente importa.
D. Senhorinha Edmundo me escrevia bilhetes, mas tão bonitos!
Esse aqui tem esse pedaço que diz assim deixa eu ver, ah! essa
parte... “só você existe no mundo. Eu queria tanto voltar a ser o que
já fui: um feto no teu útero” (...) Linda comparação linda! Ele
sempre teve queda para escritor. (RODRIGUES,1993, p. 115)
Todavia, ao contrário dos dois Édipos da história Nonô e Edmundo
Guilherme troca o amor sexual pela mãe por um desejo incontrolável pela irmã
Glória, despertando na matriarca a idéia de rivalidade com a filha. Se Jonas mantém
essa relação de disputa e medição de forças com Guilherme, será com Glória que
251
Senhorinha experimentará a competição. A mãe zelosa se confessará inimiga da
filha e será retribuída.
D.Senhorinha (...)Podem dizer o que quiserem. Mas eu dei graças a Deus
quando minha filha morreu!... (RODRIGUES,1993, p. 113)
Glória Eu nuca disse isso a ninguém, sempre escondi, mas agora vou
dizer: não gosto de mamãe; não está em mim ela é má, sinto que ela é
capaz de matar uma pessoa. Sempre tive medo de ficar sozinha com ela!
Medo que ela me matasse! (RODRIGUES,1993, p. 92)
Em Álbum de Família a mulher traída também é sujeito de outras traições,
menos evidentes, mais discretas. Tanto que Jonas flagrou, no passado, à
infidelidade de Senhorinha com Nonô e não percebeu que o amante era o próprio
filho. Convincente, a adúltera acusou Teotônio, livrando do castigo mortal o rapaz
que desde então enlouquecera, passando a viver despido, aos gritos e uivos ao
redor da casa.
Quando a verdadeira história vem à tona por intermédio da invejosa e
vingativa Tia Rute, Senhorinha não sucumbe à ira do marido e do filho traídos.
Mesmo com o suicídio de Edmundo e com a violenta explosão de Jonas, ela
apertará o gatilho e matará o esposo, sugerindo um desfecho livre, prazeroso e
socialmente questionável ao lado do filho Nonô.
D. Senhorinha Nono me chama vou para sempre (RODRIGUES,1993,
p. 119)
A matriarca de Senhora dos Afogados, por sua vez, não vivenciou esses
prazeres clandestinos de maneira tão intensa quanto Senhorinha. D. Eduarda
encontra-se, desde o início, muito preocupada com as mortes das filhas Dora e
Clarinha, temendo o comportamento de sua rival declarada Moema a filha mais
velha.
Subjugada pelo marido Misael, Eduarda não é uma adúltera. A relação com o
filho Paulo, apesar de sugerir uma intenção de incesto, esbarra na descrição
comportamental do menino feita pelo autor: Paulo é quase feminino. Além disso, ele
se confessa apaixonado pela falecida Clarinha, a irmã afogada, investindo os seus
252
dias na insana busca pelo corpo desaparecido no mar. Como o único homem da
casa, além do marido e do filho, é o Noivo de Moema, será sobre ele que Eduarda
depositará seus anseios de realização sexual e de vingança contra o cônjuge
violento.
D.Eduarda Quando ele chega, Misael, eu sinto cheiro de mar nos meus
cabelos... E tenho vontade de cheirar meus próprios cabelos... (passa a
mão nos cabelos, numa inconsciente carícia) (RODRIGUES,1993, p. 294)
Tal como as mulheres transgressoras de La Casa de Bernarda Alba, Eduarda
é considerada uma estrangeira entre os Drummond. Acusada pela sogra, a Avó
louca, de não ser digna como as mulheres da família, Eduarda amargará a
experiência da desfiliação, não encontrando respaldo para a construção de uma
identidade aceita naquele seio familiar.
Avó (vingativa) Mas não te pareces com as outras mulheres da família...
És estrangeira... (RODRIGUES,1993, p. 262)
Além desse sentimento de não pertencimento, ela ainda amarga a vergonha
das acusações dos vizinhos sobre o marido Misael. O próprio esposo mantém acesa
nela a dúvida sobre o seu comportamento criminoso no passado, fazendo-a viver
sob a égide do medo.
Misael Sabes que me acusam... Dizem que fui eu que matei, que sou
esse assassino que nunca descobriram... Aqui nesta casa todos já falaram
sobre o crime e sobre a infâmia que dizem de mim... (RODRIGUES,1993, p.
282)
Quando a verdade sobre a morte da prostituta aparece, Eduarda confessa
sua paixão pelo Noivo da filha e foge com ele para uma vida de adultério e
prostituição.
D. Eduarda (...) vamos... leva-me pra bem longe, para onde nem o sonho
de meu marido possa me alcançar (RODRIGUES,1993, p. 300)
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D. Eduarda (...) Eu também estou me vingando... deles, todos!... Daquela
casa, e dos parentes, vivos e mortos... Do meu marido! Da minha filha! E
me vingo também de mim mesma... Me vingo da minha própria fidelidade
(...) (RODRIGUES,1993, p. 317)
Entretanto, no bordel, Eduarda será mais uma vez desfiliada, não sendo
aceita pelas prostitutas com uma delas. A personagem amarga em sua vivência da
feminilidade a localização incômoda de um não-lugar. Ela é honesta demais para ser
uma prostituta e muito transgressora para ser uma matriarca.
D.Eduarda (...) Porém, se eu morrer, quero que tu me ensines o caminho
da ilha... (...) essa ilha onde tua mãe está... Onde tua mãe vive depois de
morta...
Noivo ( acariciando-a nos cabelos) Tu não entrarias lá, não conseguirias
entrar lá... Só elas (indica as meretrizes) podem entrar... A ilha das
prostitutas mortas... (RODRIGUES,1993, p. 319-320)
Não concebendo a vida em um não-lugar, resta-lhe a morte pelas mãos do
marido.
Misael (...) Tu me dissestes para castigá-la aqui (indica as próprias mãos)
Eu te obedeci, Moema, fiz o que mandaste, e sem ódio, com um ódio que
não era meu, era teu... (ergue meio corpo, abraçado às pernas da filha) Eu
teria perdoado, juro, Deus é testemunha... (RODRIGUES,1993, p. 329).
Os modelos de feminino dispostos em Nelson Rodrigues atuam sobre a já
citada dicotomia Santa x Profana. As matriarcas das duas peças analisadas
transitam bem entre esses dois universos e, por isso, são castigadas pelo crivo
social, pela infelicidade familiar e pelas cobranças que elas mesmas se fazem,
convertendo-se em mulheres amarguradas, aparentemente submissas, e afeitas ao
que se estabelece pelo pensamento cristão como pecado/ transgressão como forma
de contestação silenciosa.
Tanto Senhorinha, quanto Eduarda, vivenciam a maternidade como
compensação da infelicidade ao lado do marido, tendo nas filhas uma via de
concorrência que pode tirar-lhes os homens que lhes restam: os filhos. Em ambas, a
254
beleza física aparece como sinalizadora da indignidade, apontando para a
inevitabilidade do pecado e do adultério. A identidade feminina presente em suas
atuações não consegue se ligar a uma vivência livre, sem passar pelo estatuto do
erro. No velho modelo “a santa x a puta” não cabe a elas o direito do trânsito livre
entre uma e outra, mas sim a localização definitiva e estigmatizada na segunda
categoria: são sempre pecadoras destinadas à punição. Essa criminalização de uma
alternativa identitária feminina é descrita por Perrot (1995, p. 181) como proporcional
ao medo que esses novos modelos de mulher despertam nos homens.
A liberdade das mulheres: eis o grande medo. Ela ameaça a ordem
patriarcal, as relações milenares entre os sexos, a paz das famílias, os
privilégios falocráticos, os papéis amorosos e a ordem da criação. Essa
nova mulher, embora tão tímida ainda, inquieta; e se tanto se escreveu
sobre ela, para ela, se lhe ofereceram novos espaços _ conferências dos
Annales na Sorbone, ou irrisórias exposições das artes da mulher_ foi, sem
dúvida, para canalizar suas energias latentes.
Em nossa abordagem, não estamos considerando Senhorinha e Eduarda,
como modelos de uma nova identidade feminina. Mas é salutar sublinhar o grau de
transgressão verificado no comportamento delas. Mesmo aprisionadas no lar,
subjugadas ao poder dos maridos, ambas mantiveram acesa a chama de suas
subjetividades. A despeito dos empecilhos, ousaram um caminho novo. Não se
emanciparam, mas deram o primeiro passo.
Diante dos modelos maternos dispostos nas peças rodrigueanas,
reconheceremos, amparados no mapa weberiano, que o sentido da ação social
por elas executada, escapa, em variadas situações, do domínio absoluto dos
maridos, conferindo possibilidades alternativas de exercício de uma sexualidade livre
da moral vigente, não apenas no campo do adultério, mas também no campo do
incesto. Tanto Senhorinha quanto Eduarda experimentaram transgressões desta
natureza e, se continuaram submissas aos maridos, esconderam deles a satisfação
experimentada com a vivência de sentimentos extraconjugais. Certamente, coube a
Senhorinha uma atuação mais intensa dessa subjetividade, pois a mulher de Jonas
concretizou o intercurso carnal com Nonô e desfrutou, platonicamente, a paixão
desmedida do filho Edmundo. D. Eduarda, por sua vez, precisou se contentar com o
desejo reprimido pelo Noivo da filha, mas, na primeira oportunidade, optou pelo
255
adultério como forma de punir o violento marido. A personagem conseguiu, ainda
que por pouco tempo, emancipar-se do marido, trocando o reduto do sacrossanto lar
pela aparente liberdade do prostíbulo. Ao efetuar a troca, todavia, entregou-se ao
domínio de um novo homem o Noivo e sua ação racional com relação a fins
converteu-se em ação tradicional ou ação afetiva.
Influenciadas pelos maridos, pelos filhos e pelos demais familiares, as
personagens não encontraram muitos caminhos para a superação da consciência
coletiva, estando suas ações, mesmo as mais transgressoras, pouco atentas às
consciências individuais. Senhorinha e Eduarda não se pertencem, agem como
movidas pela obrigação, ainda que sejam condenáveis os produtos de seus atos.
Pelo mapa durkheimiano verificamos nelas a forte ligação com seus pares por
laços de solidariedade mecânica, o que não afasta completamente de suas
trajetórias um possível estado de anomia.
Extremamente dúbias e colidentes, ligadas a casa e ao mundo externo, ao
desejo de superação e à comodidade da ordem aparente, as matriarcas se esmeram
na manutenção do status quo, submetendo-se à chefia dos maridos numa espécie
de reprodução das relações sociais de produção. Em ambas as peças elas são
sustentadas pelo homem e não manifestam intenções de mudança para além das
transgressões subjetivas já apresentadas. O fato é que, alterando um campo, o
outro se verá automaticamente alterado e, nas contradições de um movimento
dialético ainda não decodificado, santidade e perversão se encontram em um
mesmo corpo, formatando uma mesma alma.
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As trajetórias descritas até aqui certamente teriam desfechos bem diversos se
não contassem em seu percurso com as interferências decisivas de Glória e Moema.
Glória, a debutante da família de Jonas, inicia o enredo de Álbum de Família
sendo expulsa do colégio interno por sua relação homossexual com Teresa,
promovendo um alardeado retorno à casa dos pais.
Guilherme (sem se alterar) Ela e a menina mantinham correspondência...
Descobriram uma porção de bilhetinhos... (...) Andavam sempre juntas (...)
256
falavam em morrer juntas e no fim... (...) se BEIJARAM NA BOCA!
(RODRIGUES,1993, p. 84)
Com a notícia de sua volta, Senhorinha tenta impor a Jonas outro tipo de
comportamento, pois reconhece que o marido se sente na obrigação de agir melhor
na frente da filha.
D. Senhorinha (como se falasse para si mesma) Sempre que Glória está
aqui, você se comporta. Até me trata melhor, é outro. Ela é a única pessoa
no mundo que você respeita (RODRIGUES,1993, p. 66)
A mudança positiva, no entanto, é contraposta ao acirramento de outros
conflitos familiares, pois com o retorno de Glória temos também o regresso de
Guilherme do seminário, preocupado com a possibilidade de convivência entre a
irmã e o pai demasiadamente afeito aos apelos do corpo.
Guilherme (veemente) (...) essa casa é indigna PORQUE VOCÊ NÃO
PODE TER CONTATO NEM COM SUA PRÓPRIA FILHA! (exaltadíssimo)
Você mancha, você emporcalha tudo a casa, os móveis, as paredes, tudo!
(RODRIGUES,1993, p. 85)
Guilherme deseja ser o único homem a estar com Glória, pois apesar de ser
apaixonado por ela, sofreu um ferimento mutilante voluntário abdicando da sua
sexualidade.
Guilherme (...) Depois desse ACIDENTE VOLUNTÁRIO eu sou outro,
como se não pertencesse à nossa família. (mudando totalmente de tom)
Glória não pode viver nesta casa! (RODRIGUES,1993, p. 86)
Reconhece, todavia, que Glória deseja o pai, chegando a reconhecê-lo na
figura de Nosso Senhor. A menina de 15 anos, inocente em suas tendências
incestuosas, percebe o interesse do irmão e o desqualifica enquanto homem,
usando Jonas como referência. Ao mesmo tempo, ela confessa não gostar de
Senhorinha, explicitando a rivalidade com a mãe, fazendo crescer em Guilherme a
certeza de que o retorno de Glória à fazenda causaria o intercurso inevitável entre
pai e filha.
257
Glória E mesmo que seja tudo verdade... Que papai tenha pisado a
mulher... Que faça isso ou aquilo com mamãe... Que seja o demônio em
pessoa. (declina sua exaltação; doce outra vez) Mesmo assim eu gosto
dele, adoro! (RODRIGUES,1993, p. 93)
Mesmo dispondo de pouco tempo na trama, Glória revela-se a responsável
indireta pela infidelidade de Jonas. O hábito do patriarca de deflorar as meninas
virgens trazidas por Tia Rute serve de paliativo para a não posse do corpo de Glória,
por quem Jonas é perdidamente apaixonado. O desejo sexual do pai é retribuído
pela filha que confessa a Guilherme ter pensando estar beijando o pai enquanto
beijava Teresa.
Jonas (sem dar atenção a nada) Desde que Glória começou a crescer,
deu-se uma coisa interessante: quando eu beijava uma mulher, fechava os
olhos, via o rosto dela! (RODRIGUES,1993, p. 115)
Glória (...) Toda vez que a gente se beijava, eu fechava os olhos e via
direitinho a fisionomia de papai. Mas direitinho como está ali
(RODRIGUES,1993, p. 90)
Moema, a seu turno, tem o total controle sobre o enredo de Senhora dos
Afogados, uma vez que coube a ela o título de assassina da história.
A filha de Misael desejava ser a única mulher da casa para desfrutar sozinha
a atenção e o amor do pai. Primeiro afogou Dora, em seguida Clarinha, pois
intentava ser a única filha.
Moema Afoguei minhas irmãs, como se ferisse no meu próprio ser...
Afoguei as filhas que preferias e acariciavas, enquanto eu sofria na minha
solidão... (RODRIGUES,1993, p. 304)
Aconselhada pela Avó louca ela percebe que se tornou a única filha, mas não
a única mulher, restando em seu caminho a presença indigesta de D. Eduarda, a
mãe que tem mãos muito semelhantes as suas.
Avó O que importa é que és a filha única... Só tu existes...
Moema (com uma expressão de triunfo) Só eu existo!
Avó Nenhuma outra filha, nenhuma outra irmã.
258
Moema Só eu.
Avó És filha única, mas não a única mulher...
Moema (elevando a voz, com espanto) Não sou a única mulher... Nesta
casa, não sou a única mulher...
Avós Existe outra. Não eu que sou velha e doida...
Moema Não tu, que és velha e doida. Outra mulher, outra mulher, outra
mulher... (RODRIGUES,1993, p. 279)
Astuta, Moema convence Paulo que a mãe é uma adúltera induzindo o irmão
a matar o amante de Eduarda.
Moema Escuta eu mesma vi nossa mãe beijando o meu noivo... (...)
Verás com teus próprios olhos... Mas não é para tua mãe que eu quero teu
ódio... É para ele (RODRIGUES,1993, p. 309-311)
Em seguida, ela convence o mesmo Paulo a se entregar ao mar
Moema (sôfrega) Queres o mar?
Paulo (maravilhado) O mar!
(Moema acaricia-o nos cabelos; tem uma última hesitação).
Moema (doce) O mar te chama (RODRIGUES,1993, p. 326)
e induz o pai a matar a esposa sua grande rival.
Moema (fora de si) - E por que não a castigas nas mãos? (num crescendo)
As mãos são mais culpadas no amor... Pecam mais... Acariciam... O seio é
passivo; a boca apenas se deixa beijar... O ventre apenas se abandona...
mas as mãos, não... São quentes e macias... E rápidas... E sensíveis...
Correm no corpo... (RODRIGUES,1993, p. 308)
Nesse trajeto de planos arquitetados em nome de um objetivo socialmente
condenado, Moema ultrapassou a vivência de um feminino resignado, se
aproximando da força e do controle experimentados por Bernarda Alba. A sua
participação na história é decisiva para todos os personagens e igualmente cruel
com todos eles. Mesmo a Avó louca que lhe oferece ajuda na elaboração dos planos
contra Eduarda, será descartada quando não mais for útil.
259
Moema Eu lhe dava de comer e beber, mas há muitos dias que me
esqueço... E, pouco a pouco, ela foi perdendo as forças... Hoje, de manhã,
deixou de respirar... (com extremo cuidado tira a cabeça do pai do próprio
regaço e a pousa no chão) (RODRIGUES,1993, p. 330)
Moema, a senhora dos afogados, personifica o poder feminino não como
projeção de um modelo masculino, como faz Bernarda, mas sim como artifício
transgressor, doente e criminoso. Ao invés da morte que pune Glória e Adela por
seus anseios de liberdade, Moema terá como castigo por suas transgressões, de
gênero e de moral, a eterna solidão, afastada do pai que tanto ama e da própria
imagem que tanto cultua. Por meio de uma maldição ela perde o direito de refletir a
sua imagem no espelho, passando a conviver com o pesado fardo de ter mãos
idênticas às da mãe assassinada por seu intermédio.
Vendedor de pentes (aproximando-se de Moema) Nunca mais verás a
própria imagem... Nunca mais verás o próprio rosto... Nunca mais...
(RODRIGUES,1993, p. 327)
Glória e Moema, os modelos de filha criados por Nelson Rodrigues,
evidenciam em suas trajetórias uma tendência das gerações mais jovens de pautar
a ação cotidiana em critérios de contestação generalizada. No decorrer de suas
atuações elas apontaram as fragilidades da instituição familiar, ousaram criar outras
perspectivas no campo amoroso, ainda que os caminhos escolhidos tenham
dialogado com o socialmente condenável. De fato, Glória e Moema são frutos de
uma geração de mulheres não mais propensas à resignação da vida doméstica,
mas, no contexto “primitivo” produzido por Nelson, elas não teriam chances de
maiores emancipações políticas, sexuais, econômicas.
Considerando o cenário de desagregação familiar em que ambas foram
criadas, temos no mapa durkheimiano o caminho desenhado pelos conceitos de
normal e patológico. As regras sociais, garantidas pelas variadas instituições que
nos formam, são apresentadas nos dois textos como passíveis de interpretações
particulares. A autoridade dos pais não está pautada na obediência justificada e a
aceitação deste domínio por parte dos filhos acaba configurando atitude facultativa.
Sem critérios solidamente definidos, a moral não se sustenta e, por conseguinte, os
vínculos de solidariedade ficam ameaçados. Glória e Moema reformulam as noções
260
de ‘bem’ e de ‘mal’ e os fatos sociais que vivenciam obedecem a esse mosaico de
desintegrações.
Pelo mapa weberiano, todavia, mostra-se imperativo diferenciar as duas
personagens. Pois, enquanto Glória atua no campo das ações afetivas, Moema
transita entre ações dessa natureza e racional com relação a fins. É importante
ressaltar também, que diferentemente de Glória, Moema exerce ampla influência
sobre os homens da casa, por meio de uma dominação tradicional valendo-se
de supostos critérios morais ela apela para o senso de justiça do pai e do irmão,
induzindo-os a cometer os crimes que ela mesma gostaria cometer. Se Glória age
por obediência ao que sente, enxergando em Jonas um poder carismático,
Moema, a seu turno, tratará de instigar a obediência dos outros para com ela,
caminhando para a elevação da consciência individual sobre a consciência
coletiva, voltando a Durkheim.
É imperativo reconhecer, entretanto, que as duas filhas são materialmente
tuteladas e, nos arroubos de transgressão, recorrem à reprodução do cristalizado
modelo do homem provedor. Nenhuma delas pretende abrir mão da dicotomia
dominantes x dominados, pois em seus anseios mais ousados continuarão sob a
tutela dos pais, confirmando a idéia marxista da sobreposição das condições
materiais de existência sobre os demais domínios da vida.
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A essa altura do texto já temos acesso à informação de que correspondem às
mulheres rodrigueanas, sobretudo as filhas, os principais conflitos das peças
analisadas. Não obstante, não podemos perder de vista a importância
desempenhada pelos filhos.
Em Álbum de Família, a atuação de Guilherme, Edmundo e Nonô serve de
contraponto ao modelo identitário apresentado por Jonas.
Guilherme é o filho que está no seminário, preparando-se para ser padre, o
que configura uma forma de castração pelas interdições que apresenta à
sexualidade. Nele, contudo, a castração não acontece apenas no campo da
abstração, possuindo uma materialidade amplamente divulgada:
261
Guilherme Uma noite, no seminário, fazia um calor horrível. Então fiz um
ferimento mutilante o sangue ensopou os lençóis (...) Depois desse
ACIDENTE VOLUNTÁRIO eu sou outro, como se não pertencesse à nossa
família. (mudando totalmente de tom) Glória não pode viver nesta casa!
(RODRIGUES, 1993, p. 86)
Por isso, justifica, somente ele seria puro o bastante para cuidar de Glória, a irmã
por quem é apaixonado.
Mesmo a mãe, tão idolatrada pelos filhos rodrigueanos, não conta com a
confiança de Guilherme, pois ele considera que, com o casamento, Senhorinha
deixou de ser honesta.
Guilherme Nem minha mãe! É UMA MULHER CASADA, CONHECE O
AMOR NÃO É PURA. Não serve para Glória só eu, depois do
ACIDENTE! (RODRIGUES, 1993, p. 86).
Este argumento, também presente na condução do personagem Edmundo é
uma constante no texto rodrigueano, que repreende a mulher contra todo tipo de
manifestação sexual, ainda que esta se apresente dentro do casamento.
O controle sobre a sexualidade, aliás, tem na atuação de Guilherme uma
eficiente ilustração, pois ele, desde garoto, era considerado ‘frio’ pelo pai, quase
‘feminino’. Neste sentido, a castração da personagem é radical e bastante anterior
ao seu ‘acidente voluntário’. D. Senhorinha, sublinhando as palavras do marido,
relembra, com certa nostalgia, que Guilherme desde cedo admirava ‘estampa de
anjo’, remetendo o filho a uma lugarização no campo da sensibilidade tipicamente
feminina.
Porém, ainda que considerado desta forma, Guilherme vivenciou certa
cumplicidade com a figura paterna, cuidando de ‘pisar sobre o ventre de uma dessas
garotas que Jonas deflora’, intentando ‘limpar’ a casa da família das máculas de
suas aventuras extraconjugais.
Guilherme (...) Você lembra, pai da MUDA? (...) Aquela que não falava,
meio idiota estrábica!... (...) Todo mundo respeitava a muda... Ninguém
mexia com ela... (...) Nem a muda você perdoou... (...) Depois, ela pegou
gravidez. Durante as dores, veio-se arrastando QUERIA TER O FILHO
AQUI... Eu encontrei ela no meio do caminho. (...) Quando me viu, ela
262
parece que adivinhou teve medo de mim (Guilherme moda de tom,
implacável) Ainda quis fugir mas eu, então, pisei o ventre dela, dei
pontapés nos rins! ... (...) Deus é testemunha de que não me arrependo!
(Com ferocidade) Eu devia fazer a mesma coisa com essa que está aí!
(RODRIGUES, 1993, p. 79-80)
Por esse motivo, Guilherme chegou a contar com ‘certa consideração’ de Jonas que
acreditou, durante muito tempo, ser o filho mais velho ‘o único puro da família’.
Jonas (...) E eu que sentia um certo respeito por você! Que até me sentia
incomodado na sua presença! PORQUE ACHAVA VOCÊ O ÚNICO PURO
DA FAMÍLIA! (RODRIGUES, 1993, p. 77)
Interditado em sua sexualidade, observado pelos vigilantes e punitivos
olhares paternos, Guilherme não teve outra opção senão levar o seu amor
incestuoso para um desfecho trágico. Diante da impossibilidade de ter Glória em
seus braços, ele empreenderá esforços para que Jonas também não a tenha. Dessa
disputa entre pai e filho resultará o suicídio do ex-seminarista precedido pelo
assassinato de Glória.
Guilherme Pela última vez QUERES VIR COMIGO? Vem, sim, vem!
Glória Não.
Guilherme Você não será dele NUNCA!
(Puxa o revólver e atira duas vezes. Glória cai de joelhos, com as duas
mãos amparando o ventre).( RODRIGUES, 1993, p. 94)
Ao descobrir o ato filial, Jonas sairá armado de casa, desejando matar
Guilherme, mas não o encontra. A informação que recebe é a de que o filho tomou o
trem, mas em seguida nos chega a notícia de que o jovem se atirou sobre os trilhos.
Heloísa (depois de se ajoelhar diante do esquife de Edmundo e de uma
breve oração; fala com uma espécie de medo) Agora mesmo, teve na
estação um desastre horrível: um homem caiu entre dois vagões
(RODRIGUES, 1993, p. 109)
263
Edmundo foi expulso de casa três dias após seu casamento com Heloisa e,
ao retornar ao lar paterno, tempos depois, precisou se humilhar, beijando as ‘mãos
suadas’ de Jonas como prova de obediência e respeito.
Jonas (andando pela sala, de um extremo a outro) Expulsei-o daqui... Dei
na cara... Ele correu não é homem... (refere-se evidentemente a
Edmundo, que parece não sentir as palavras paternas) (...) Venha cá, um
instante. (...)Venha tomar a bênção, Edmundo! (com hedionda doçura) do
seu pai! (RODRIGUES, 1993, p. 72-74)
A tensão psicológica da relação entre pai e filho é amplamente agravada por
conta do amor desmedido que Edmundo dedica a Senhorinha, um sentimento não
confessado, mas vivido intensamente ao lado do ódio e do medo.
Edmundo Penso NUMA MULHER, o que é muito diferente! Numa só! (...)
Só tenho e só tive um amor! (...) Não digo. (para D. Senhorinha, olhando-a
bem nos olhos, baixando a voz) Talvez você saiba um dia. (RODRIGUES,
1993, p. 73)
A rivalidade entre Edmundo e Jonas é tão intensa que chega à intenção do
parricídio. Em tom confidencial, Edmundo revela à mãe que, quando criança,
pensava em matar o pai e Senhorinha, vendo no ódio do filho a chance de se livrar
do marido, incita-o ao crime.
Edmundo Seria tudo melhor se em cada família alguém matasse o pai!
(RODRIGUES, 1993, p. 76)
Edmundo (como se falasse para si mesmo) Não é de hoje desde
menino! Uma vez, eu me lembro foi depois do almoço. Tinha visitas. Ele
falou com você qualquer coisa baixo... (...) ... falou qualquer coisa. Depois
se levantou foi na frente, você acompanhou. (com sofrimento) Apesar de
eu ser garoto, compreendi. Se soubesse a raiva que eu tive, a vontade! ...
(RODRIGUES, 1993, p. 100)
Senhorinha (dominada pelos nervos) Você tem que me jurar que nunca,
nunca, tentará... ISSO! (mudando de tom, como se, apesar de tudo, a idéia
a fascinasse) Ou, se fizer, pela frente não! Ele pode-se defender! (tomando
entre as suas mãos as mãos do filho) Pelas costas está ouvindo? (...)
264
Pelas costas e tem que ser muito seguro que ele não possa reagir. Por
exemplo: QUANDO ELE ESTIVER DORMINDO... (RODRIGUES, 1993,
p.101)
O texto sugere que essa paixão incestuosa pela mãe causou a anulação
sexual de Edmundo que, mesmo casado com Heloísa, não a conheceu intimamente,
por só conseguir amar ‘apenas uma mulher’.
Heloísa (abstraindo-se) Três anos vivemos juntos (apaixonadamente)
Três anos e ele nunca está ouvindo? tocou em mim... (...) Quando
queria, e me procurava, a lembrança da ‘outra’ IMPEDIA! Então, ele me
dizia: “Heloísa, ‘Ela’ não deixa!” Me lembro que uma vez, eu fiz tudo... (...)
TUDO que uma mulher pode fazer, as coisas mais incríveis! (...) Perdi
inteiramente a vergonha, não sei. Também, eu estava! A princípio, ele ficou
assim... Mas depois a lembrança da “outra”... Me senti tão humilhada mas
tão! Engraçado é que ele achava o meu corpo bonito! (RODRIGUES, 1993,
p.110-111)
Em nome do amor que devota à mãe, Edmundo enfrenta o pai e assume não
aceitar a infidelidade que todos da casa e da cidade conhecem. O que ele não sabe
é que, mesmo Senhorinha, considerada por ele um modelo de virtude e santidade, é
tão infiel quanto Jonas, tendo se relacionado com o filho Nonô e acusado um outro
homem causando-lhe a morte para proteger o amado.
Edmundo demonstra não conhecer os bastidores daquela aglutinação
familiar, de onde ele, sempre humilhado, saiu para um casamento mal sucedido. Em
tom confidencial à mãe, Edmundo relembra os castigos e surras que recebeu de
Jonas no passado e, confirmando suas lembranças, Tia Rute cuidará de recordar a
grande briga que gerou sua expulsão do lar, tendo Edmundo ‘apanhado do pai,
como nenhum outro homem jamais apanhou’.
Tia Rute (...) Jonas é mais homem do que ele, sem comparação. Jonas
naquele dia deu nele como nunca vi nenhum homem dar tanto em outro.
Ele correu, na frente de todo mundo! (RODRIGUES, 1993, p. 67)
265
A rivalidade entre Jonas e Edmundo, mesmo acentuada no decorrer do jogo
cênico, é amortecida com a descoberta da infidelidade de Senhorinha. A idéia
acerca da mãe pura, honrada, cede espaço para o ciúme e a decepção. Edmundo
retira à mãe do altar da castidade e, ao mesmo tempo, sente-se traído, rejeitado por
não ter sido o filho escolhido para o ato transgressor. Neste momento, sem forças
para lutar contra a realidade, Edmundo passa a compreender as atitudes do pai e
vocifera contra a mãe:
Edmundo Não passa de uma fêmea! (...) Vou voltar para Heloísa! (...)
Fêmea. (RODRIGUES, 1993, p. 107)
Diante da mãe impura, tomado pela fragilidade que até então tentou disfarçar,
Edmundo se suicida. Mas antes, reflete sobre a vida que tiveram e sonha com a vida
que quer ter.
Edmundo (mudando de tom, apaixonadamente) Mãe, às vezes eu sinto
como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós,
quer dizer, você, papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a
única e primeira. (numa espécie de histeria). Então, o amor e o ódio teriam
de nascer entre nós (caindo em si) Mas não, não! (mudando de tom) Eu
acho que homem não devia sair nunca do útero materno. Devia ficar lá,
toda a vida, encolhidinho, de cabeça para baixo, ou para cima, de nádega,
não sei. (...) O céu, não depois da morte; o céu, antes do nascimento foi
teu útero... (RODRIGUES, 1993, p. 102)
Aparentemente alheio a esses discursos acerca da masculinidade e da
feminilidade, da transgressão ou do comprometimento com uma identidade
resignada, encontramos na trajetória de Nonô um masculino diferente, alternativo,
capaz de romper barreiras e chegar ao desconhecido, onde palavras e gestos por
nós decodificáveis não fazem o mínimo sentido.
Depois da experiência incestuosa com Senhorinha Nonô abdicou do espaço
da casa, das regras, dos costumes e hábitos tidos como civilizados. Passou a viver
de forma instintiva, apartado da convivência dos seus, ausente dos conflitos ali
verificados, no seio familiar.
266
Tia Rute Hoje está rodando, em torno da casa, como um cavalo doido!
(RODRIGUES, 1993, p. 59)
Em sua nova vida, Nonô dispensa a comunicação até então conhecida. Passa
a se expressar de outras formas, com outros padrões, pois possui novas demandas.
Tia Rute Eu conheço o grito dele. Aliás, não é grito, uma coisa, não sei.
Parece uivo, sei lá. Se eu fosse você, tinha vergonha! (RODRIGUES, 1993,
p. 58)
O corpo nu se adequou melhor ao espaço, tornou-se mais receptivo à chuva,
ao vento, à lama. Sem regras, ele reinventou a vida, mas não se libertou totalmente.
Vive por ali, a espreitar os seus, parecendo aguardar o momento de finalmente
partir.
D.Senhorinha Nonô é muito mais feliz do que eu sem comparação.
(sempre dolorosa) Ás vezes, eu gostaria de estar no lugar do meu filho...
(RODRIGUES, 1993, p. 59)
Edmundo (com sofrimento) Ele anda sem nada... (faz um gesto
significando despojamento de roupa) E ele tem um corpo que impressiona
até um homem quanto mais uma mulher! (RODRIGUES, 1993, p. 102)
Somado ao incesto, Nonô carrega a culpa de ter deixado um homem morrer
em seu lugar, pois quando a infidelidade de Senhorinha foi descoberta por Jonas, a
esposa adúltera, para proteger o filho, acusou Teotônio, um jornalista, que sofreu as
conseqüências pela infidelidade alheia. Esses conflitos são facilmente identificados
nas marcas do personagem que, sem nenhuma fala na peça, consegue veicular
tudo aquilo que se passa em seu íntimo.
Tal como o cavalo que ronda a casa de Bernarda, a dar coices violentos nos
muros brancos, temos em Nonô a personificação desse instinto de contestação, uma
espécie de “voz de fora”, de “grito da rua” que pretende ecoar no sacrossanto
ambiente familiar.
(...) Sala de fazenda de Jonas. Primeiro, a sala está deserta; alguém chega
à janela, por fora, e solta um grito pavoroso, não humano, um grito de besta
ferida (...) (RODRIGUES, 1993, p. 58)
267
Quando todas as máscaras estão caídas, quando não há mais lei na fazenda
de Jonas, Nonô e Senhorinha se unem na loucura (ou na sanidade reinterpretada),
sobrevivendo ao caos. Seguem rumo ao desconhecido.
Jonas (gritando) Agora, atira! (fora de si) atire! Ande esta com medo?
Pelo amor de Deus, atire!
(D. Senhorinha não se resolve, tomada de terror. Mas ouve-se, então, o
grito de Nonô, como um apelo).
D. Senhorinha Nonô me chama vou para sempre.
(D. Senhorinha puxa o gatilho duas vezes; Jonas é atingido. Cai
mortalmente ferido) (RODRIGUES, 1993, p. 119)
Tal experiência de libertação parece ter sido conquistada também por Paulo
em Senhora dos Afogados, embora numa acepção completamente diferente. O filho
de Misael e Eduarda, muito abalado pela morte de Clarinha, dedica-se em sua ação
dramática a procurar pelo corpo da irmã afogada,
Paulo (...) Eu estava no mar (...) Procurando o corpo de minha irmã (...)
(RODRIGUES, 1993, p. 269)
Se Moema nutre pelo pai um sentimento amoroso capaz de induzi-la ao crime
no intuito de subtrair qualquer figura feminina da casa, Paulo alimenta pela mãe
Eduarda devoção similar. Sua paixão platônica, porém se vê investida dos mais
ingênuos conceitos sobre a pureza e inocência maternas.
Paulo Minha mãe não se entregaria a outro homem... É tão pura, tão sem
culpa, que, às vezes, eu imagino se ela tirasse todas as roupas, ainda
assim não estaria nua, não conseguiria ficar nua! As outras mulheres, sim;
não minha mãe! ... (RODRIGUES, 1993, p. 310)
Mais uma vez a castidade materna aparece no texto rodrigueano associando
maternidade à beatitude. Tal como Edmundo creditava fidelidade à Senhorinha,
Paulo encontra-se seguro da lealdade da mãe:
268
Paulo (...) Na nossa família todas as esposas são fiéis... A fidelidade já
deixou de ser um dever é um hábito. Te será fácil cumprir um hábito de
trezentos anos (...) (RODRIGUES, 1993, p. 273)
Sua certeza acerca da fidelidade materna, porém, dá lugar à decepção da
descoberta alertada por Moema:
Moema Escuta eu mesma vi nossa mãe beijando o meu noivo... Eu vi,
eu! (...) (RODRIGUES, 1993, p. 309)
Diante da dúvida, ele decide comprovar o adultério materno e segue, com
Moema, até o bordel onde mãe foi morar. Confirmada a traição, Paulo mata o Noivo
de Moema, amante de Eduarda.
Paulo (exultante) Podia ter matado o marido e não o amante... (para a
irmã, face a face com a irmã) Não podia?... Podia ter matado nosso pai...
(indica a cadeira onde Misael está prostrado) Tão culpado o marido quanto
o amante; os dois a possuíram! (RODRIGUES, 1993, p. 324)
Tal como Edmundo, Paulo guardava pela figura da mãe uma adoração de
altar. O rapaz (também feminino na descrição de Nelson), não admitiria um
comportamento transgressor por parte daquela que deveria ser um modelo de
virtude.
Tornado assassino pela indução de Moema, Paulo continua o seu trajeto
abdicando da própria vontade, tornando-se maleável aos planos da irmã.
Convencido de que Clarinha e Eduarda esperam por ele no mar, ele segue em
direção à morte e finalmente se liberta do domínio de Moema. O mar, principal
alegoria da história, torna-se o depositário das lágrimas, mas também das
esperanças daqueles que sofrem no cais, a espera do recomeço.
Moema (sôfrega) Queres o mar?
Paulo (maravilhado) O mar!
(Moema acaricia-o nos cabelos; tem uma última hesitação).
Moema (doce) O mar te chama (RODRIGUES, 1993, p. 326)
269
A metáfora da praia, muito bem conduzida por Nelson, oferece-nos um
interessante retrato dos ideais de liberdade colocados em oposição às leis morais.
No discurso do Noivo de Moema, somos informados da existência de uma ilha
paradisíaca que recebe certas mulheres, depois da grande viagem.
Noivo (...) Se soubesses como essa ilha é linda... (esboça uma carícia)
Ah, se tu visse os ventos ajoelhados diante da ilha!... Como é doce o seu
ventre... Queria tanto que tu a conhecesses. Mas não podes ir lá, não te
deixariam entrar... (...) O mar em torno, às vezes é louro (...) Outras vezes,
verde, azul. As mulheres pisam nas espumas... E quando voltam têm nos
pés sandálias de frescor! (RODRIGUES, 1993, p. 290)
O Noivo orgulha-se pelo fato de sua mãe ser uma das habitantes da ilha, o
que desperta em todos uma curiosidade tamanha, seguida pela desconfiança de que
ele não goza de seu juízo perfeito.
Eduarda Essa ilha onde tua mãe está... Onde tua mãe vive depois de
morta...
Noivo (acariciando-a nos cabelos) Tu não entrarias lá, não conseguirias
entrar lá... Só elas (indica as meretrizes) podem entrar... A ilha das
prostitutas mortas... (RODRIGUES, 1993, p. 320)
Os vizinhos acusam o Noivo de promiscuidade, por levar em seu corpo uma
série de tatuagens com nomes de prostitutas. O prosseguir do texto informa ao leitor
que na verdade existe apenas um único nome tatuado várias vezes. Trata-se do
nome de sua mãe, assassinada por Misael há 19 anos atrás.
D.Eduarda Mostra os nomes.
Noivo Nomes?
D.Eduarda Escritos no corpo.
Noivo (despedaçando os farrapos que ainda cobrem o seu busto) Queres
ver? É só um nome. Um nome só repetido muitas vezes.
D.Eduarda De quem?
Noivo De minha mãe. (RODRIGUES, 1993, p. 299)
Uma vez revelado esse dado, ficam claros os planos de vingança do Noivo,
que se aproximou de Moema, sua meia irmã, para atingir o pai. A partir disso, a ilha
270
se converte em metáfora da recompensa após a morte para aquelas que sofreram
em vida, no caso as prostitutas.
A idealização de um feminino feliz só ganha materialidade nessa ilha, onde a
subjetividade é possível, o amor, a entrega. Nem mesmo ele, que é filho de uma das
habitantes poderá entrar nesse reino de ninfas, deixando-nos a informação de que o
masculino não encontra possibilidade de vivenciar os aspectos mais subjetivos da
vida, nem mesmo depois da morte.
Noivo Mulheres como tu não entrariam. Para lá, vão as prostitutas, depois
de mortas... As vagabundas... (RODRIGUES, 1993, p. 290)
Seduzido por seus planos de vingança, Noivo concretiza a traição de
Eduarda, maculando a santa que impediu a felicidade da prostituta. Em seguida ele
é esfaqueado e morto por Paulo, seu meio irmão, tão influenciado quanto ele pelas
idealizações maternas.
Diante desses cinco exemplos de masculino, podemos perceber que nas
peças rodrigueanas a vivência identitária para o homem dialoga com uma série de
obrigações que impedem o exercício de uma subjetividade amparada na autonomia
e nos sentimentos sinceros. Os filhos aqui analisados vivem a partir dos
condicionamentos da atuação dos pais, respondendo pelos seus erros, pautando os
seus desejos nas dívidas hereditárias. Quando esses filhos homens não concordam
com o modelo verificado na existência do pai, resolvem transgredir por meio de
mutilações físicas ou psicológica. A relação com a mãe traduz a insegurança diante
do feminino, pois desejando tocá-la teme macular sua santidade. Não sabendo
utilizar os instrumentos necessários para a vida, optam pela morte... A morte do
outro ou de si mesmos... Por suas próprias mãos ou convencendo mãos alheias.
Consultando os nossos mapas, encontraremos os filhos rodrigueanos numa
situação de eterno confronto com a figura paterna. O cerne da disputa, em linhas
gerais, é quase sempre o coração da mãe ou da irmã, estando o pai mais propenso
a conquistar a segunda, ao passo que aos filhos, geralmente, é dada a chance de
subtrair-lhe as esposas. O poder paterno, a autoridade que comanda o lar e impõe
caminhos para cada habitante, é contestado pelos filhos, mas não superado. Numa
vertente marxista poderíamos sugerir que não há superação, pois as relações
sociais de produção permanecem as mesmas. Não há indícios do trabalho dos
271
filhos, o que deixa subtendido que todos são sustentados pelo pai. O chefe da casa,
tal como o empresário capitalista, tem a todos submetidos às suas ordens e, quando
um deles decide ir contra as regras estabelecidas, é expulso do grupo.
A contraposição ideológica apresentada pelos filhos em relação aos pais não
advém da superação da alienação, muito menos da vitória sobre a ideologia
vigente. Os filhos são contrários porque são concorrentes. Pretendem disputar com
o pai o coração da mãe ou da irmã, o que não significa que a tratarão de outra
forma, caso fiquem com elas. A ideologia da dominação masculina encontra-se
destacada na atuação de Edmundo, Guilherme e Noivo, filhos muito semelhantes
aos pais Jonas e Misael. Até mesmo Paulo, descrito como ‘muito feminino’ por
Nelson, recorrerá à violência para expressar o seu amor por Eduarda e assumirá o
ideal de que mulheres honestas não devem conhecer sua sexualidade. Ao matar o
Noivo ele insinua o desejo de também matar o pai, deixando clara sua predisposição
a perpetuação da ideologia dominante.
Em outra direção, percebemos em Nonô a não filiação a esse tipo de conduta.
Na linguagem marxista ele rompe com o sistema, abre mão das beneficies da
família, da comodidade e sai em busca de uma alternativa identitária. Nonô
representa o masculino que se despe da armadura do herói e ensaia um recomeço,
a despeito da incompreensão social. Ele abdica dos códigos lingüísticos, das
conveniências, dos pudores. Não se filia a credos, escolas ou correntes de
pensamento. É um ser em mutação, reavaliando os critérios que cerceiam a noção
de indivíduo.
Pelo mapa durkheimiano podemos verificar que, a despeito dos conflitos
existentes, os vínculos de solidariedade mecânica entre pais e filhos sobrevivem.
Diante da revelação da infidelidade das mães seus objetos de desejo o apoio ao
pai aparece como forma de punição e purgação de pecados. Guilherme e Edmundo
apóiam Jonas quando descobrem a traição de Senhorinha e Paulo pondera seu
julgamento sobre Misael, considerando a impureza da mãe adquirida pelo adultério.
Apenas Noivo e Nonô demonstram se desligar da influência paterna. O primeiro
devido ao desligamento da própria sociedade como um todo, o segundo
provavelmente por não ter convivido com essa imagem masculina no decorrer da
sua formação. Abandonados pela beatitude materna, a maior parte dos filhos
analisados opta pelo suicídio. Edmundo e Paulo pelo suicídio anômico e
Guilherme pelo suicídio egoísta. Contrariando a teoria durkheimiana do
272
enfraquecimento dos laços de solidariedade como causa das mortes desta
natureza, Nonô, o filho mais apartado da casa, sobrevive.
Pela via weberiana, devemos considerar o sentido da ação social
empreendida pelos cinco personagens em questão como:
v Edmundo ação tradicional e ação racional com relação a valores;
v Guilherme ação afetiva;
v Noivo ação afetiva, ação racional com relação a fins;
v Paulo ação tradicional, ação afetiva;
v Nonô ação afetiva.
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Nas discussões empreendidas acima, deixamos de fora algumas
personagens consideradas secundárias nas peças, mas vamos agora refletir sobre
as suas participações no encaminhamento dos fatos.
Em algumas passagens de nossa análise o nome de Tia Rute fulgurou como
o grande arquiteto das intrigas do Álbum de Família, e essa associação não foi por
acaso. Tia Rute, irmã mais velha de Senhorinha, passa a vida intentando atingir a
esposa de Jonas, por ter inveja não só de sua beleza, mas também de seu
casamento. Rute, considerada absurdamente feia, é apaixonada pelo cunhado,
tendo se relacionado com ele numa ocasião em que Jonas estava bêbado. Essa
noite jamais foi esquecida, já que fora a única vez que esteve em companhia de um
homem.
Tia Rute (dolorosa, transfigurada pela recordação grata) Também foi só
uma vez. Ele estava bêbado, mas não faz mal. NENHUM HOMEM ANTES
TINHA OLHADO PRA MIM. Ninguém, nem pretos. Foi uma graça de
bêbado que fizeram comigo eu sei. Mas o fato é que FUI AMADA. Até na
boca ele me beijou, como se eu fosse uma dessas mulheres muito
desejadas. Esse homem (mudando de tom, violenta) É SEU MARIDO!
(RODRIGUES, 1993, p. 68)
273
Tal fato, gerador de uma enorme gratidão, serviu para que Rute se
submetesse a todas as vontades do amado, inclusive levar meninas de 12 a 16 anos
até a casa dele para satisfazer seus desejos sexuais.
Tia Rute (sem ouvi-lo) Por isso é que gosto dele. Sabia que tinha sido
aquela vez só que não voltaria mais, paciência. Mas como foi bom! Agora,
o que ele quiser eu faço. Quer que eu arranje moças, meninas de 13, 14, 15
anos. Só virgens, pois não! Para mim é um santo, está acabado!
(RODRIGUES, 1993, p. 68)
Com essa prática de agenciamento ela consegue não só agradar ao seu
benfeitor, como também atacar a irmã, acusada por ela de ter sido sempre mais
bonita e mais desejada pelos homens.
Tia Rute Desde menina, tive inveja de sua beleza. (em tom de acusação)
Mas ser bonita assim é até imoralidade porque nenhum homem se
aproxima de você, sem pensar em você PARA OUTRAS COISAS!
(RODRIGUES, 1993, p. 82)
Tia Rute, além disso, é a guardiã de todos os segredos da casa, o que
confere a ela grande poder dentro daquelas relações sociais pautadas no medo.
Tia Rute (...) EU CONHEÇO SEGREDOS DA FAMÍLIA! SEI por que
Guilherme e Edmundo voltaram SEI! Sei por que Nonô enlouqueceu por
que mandaram Glória para o colégio interno!... (RODRIGUES, 1993, p. 82)
Heloisa, ex-mulher de Edmundo, aparece já no final da trama, durante o
velório do marido, para confirmar a atração do filho pela mãe. Cabe a ela a
revelação de que nunca foi tocada por Edmundo, visto que este desejava guardar-se
para D. Senhorinha.
Heloísa (abstraindo-se) Três anos vivemos juntos (apaixonadamente)
Três anos e ele nunca está ouvindo? tocou em mim... (...) Quando
queria, e me procurava, a lembrança da ‘outra’ IMPEDIA! Então, ele me
dizia: “Heloísa, ‘Ela’ não deixa!” Me lembro que uma vez, eu fiz tudo... (...)
TUDO que uma mulher pode fazer, as coisas mais incríveis! (...) Perdi
inteiramente a vergonha, não sei. Também, eu estava! A princípio, ele ficou
274
assim... Mas depois a lembrança da “outra”... Me senti tão humilhada mas
tão! Engraçado é que ele achava o meu corpo bonito! (RODRIGUES, 1993,
p.110-111)
Em seu modelo identitário percebemos um feminino submisso à família que a
obrigou a contrair núpcias, proibindo-a do divórcio, mesmo não tendo sido efetivado
o enlace. A viuvez poderá lhe servir como alforria.
Heloísa Era um estranho, um desconhecido para mim sempre foi.
Só vim, porque minha família quis, pediu... (...) Papai disse que
ficava feio que podiam reparar. (RODRIGUES, 1993, p. 109).
A Mulher Grávida, Totinha e o Avô, têm suas participações ligadas à
explicitação da infidelidade de Jonas e do poder por ele exercido, servindo de
personificação da submissão dos fracos diante do dominador.
Já em Senhora dos Afogados é fundamental a presença dos vizinhos,
dispostos na cena em formato de coro. A eles Nelson reserva a voz da sociedade, o
impensável, o indizível, as verdades que ninguém fala por medo ou convenção. Eles
servirão de testemunhas, de parâmetro para medir o impacto da fala sobre o entorno
da casa, serão juízes dos pecados alheios e até cúmplices de algumas
transgressões.
Vizinho Vamos tirar o rosto!
Vizinho E colocar a máscara!
Vizinho Ótimo!
Vizinho Agora?
Vizinho Já. (RODRIGUES, 1993, p. 287)
A figura multiplicada e interventora dos vizinhos terá sua correspondência no
café do cais através da atuação das prostitutas, da Dona avó do Noivo, e dos
freqüentadores do lugar Sabiá e o Vendedor de Pentes. Caberá a eles a
revelação dos fatos ocorridos há 19 anos atrás, fundamental para justificar o desejo
de vingança do Noivo, a culpa de Misael e a infidelidade de Eduarda.
Por fim, a presença marcante da Avó louca D. Marianinha servirá de
parâmetro para identificar o não pertencimento de Eduarda à família Drummond,
275
visto que a condição de forasteira é o grande argumento da Avó para não ver com
bons olhos a presença da nora na casa.
Além disso, a alegoria do mar que leva os corpos e não os devolve, terá em
D. Marianinha uma força dramática considerável, já que caberá a ela promover um
resumo de todas as mortes ali ocorridas por intermédio das águas.
Avó Não gosta de nós. Quer levar toda a família, principalmente as
mulheres. (num sopro de voz) Basta ser uma Drummond, que ele quer logo
afogar. (recua diante do mar implacável) Um mar que não devolve os
corpos e onde os mortos não bóiam! (violenta, acusadora) Foi o mar que
chamou Clarinha (meiga, sem transição) chamou, chamou... (possessa, de
novo, e para os vizinhos que recuam) Tirem esse mar, daí, depressa!
(estendendo as mãos para os vinhos) Tirem, antes que seja tarde! Antes
que ele acabe com todas as mulheres da família! (...) Depois das mulheres,
será a vez dos homens. (...) E depois de não existir mais a família a casa!
(olha em torno, as paredes, os móveis, a escada, o teto) Então, o mar virá
aqui, levará a casa, os retratos, os espelhos! (...) Eu sei! Os mortos me
disseram... Os mortos da família... (RODRIGUES, 1993, p. 262)
Em sua loucura instituída, da mesma forma que Maria Josefa em La Casa, a
Avó de Moema conquistou o direito de expor todos os seus pensamentos, forjando
para si um feminino transgressor e viabilizado pelo estatuto da insanidade.
Será ela quem incentivará Moema a causar a morte da própria mãe, o que
não lhe garantirá a afeição da neta: Moema deixará a Avó morrer de fome.
Avó O que importa é que és a filha única... Só tu existes...
Moema (com uma expressão de triunfo) Só eu existo!
Avó Nenhuma outra filha, nenhuma outra irmã.
Moema Só eu.
Avó És filha única, mas não a única mulher...
Moema (elevando a voz, com espanto) Não sou a única mulher... Nesta
casa, não sou a única mulher...
Avós Existe outra. Não eu que sou velha e doida...
Moema Não tu, que és velha e doida. Outra mulher, outra mulher, outra
mulher... (RODRIGUES, 1993, p. 279)
....................................
Moema Eu lhe dava de comer e beber, mas há muitos dias que me
esqueço... E, pouco a pouco, ela foi perdendo as forças... Hoje, de manhã,
276
deixou de respirar... (com extremo cuidado tira a cabeça do pai do próprio
regaço e a pousa no chão) (RODRIGUES, 1993, p. 330)
Quando todos os segredos da trama estiverem esclarecidos, o leitor/
expectador será informado de que Marianinha foi a única testemunha do crime
cometido por Misael, tendo enlouquecido naquela ocasião.
Diante dessa alegoria a loucura os dramaturgos delegam às senhoras
idosas uma responsabilidade crucial: em suas réplicas não serão encontradas
apenas as elucubrações de uma mente insana, mas através delas a voz autorizada
da tradição ganhará a cena, expondo preceitos, regras e ensaios de transgressão.
Contudo, a mudança que elas poderiam processar com os seus comportamentos
desviantes fica subjugada à reprodução do socialmente estabelecido, pois outras
formas de poder continuam agindo sobre elas. Nos termos sociológicos podemos
pensar que, ainda que o papel social sofra alterações na forma de ser exercido, os
grupos de referência continuam modelando as aspirações do indivíduo, visto que o
louco o transgressor persiste, nos contextos das peças, ligado à família. Mais
uma vez a sociedade se sobrepõe ao homem que, mesmo tentando uma existência
fora dela, descobre ser significativa a força do todo sobre as partes.
As personagens citadas nesta seção, ainda que consideradas coadjuvantes
da cena principal, retratam em grande medida a poética dos dramaturgos,
preparando o leitor/ expectador para as ações dos protagonistas. O mapeamento
das suas condutas cênicas é de fundamental relevância para a compreensão da
história, pois no campo em termos antropológicos nenhum informante é passível
de desconsideração. Na sociologização da cena nenhum ator social poderá ficar de
fora do palco. Todos são platéia, elenco, diretor e enredo. Ao abrir a cortina da
cena teatral e do teatro social o olhar do pesquisador estará livre e
comprometido com a visão do todo. Ainda que esta visão seja, de fato, parcial e
temporária.
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Chegamos ao final do bosque e não sabemos por onde caminhou o leitor.
Apesar dos endereçamentos oferecidos, recomendados, abalizados por nomes de
destaque, reconhecemos a flexibilidade das coordenadas e não menosprezamos o
seu papel inovador. Nós mesmos, enquanto trabalhávamos na pesquisa, nos
desviamos da rota inicial, traçamos outras linhas de ação, que nem sequer foram
seguidas. Durante a trajetória as bifurcações instauraram dúvidas e, sem saber ao
certo para onde íamos, deixamo-nos guiar pelos ventos que por aqui sopravam.
Decerto, contamos com a liberdade consentida por Umberto Eco e,
acreditando que o conceito de obra aberta não se limita à ficção, experimentamos
(re) visitações a velhos companheiros de viagem.
Foi assim que encontramos Karl Marx e indagamos a ele sobre um meio de
se ler uma peça nada muito difícil para quem já tinha sido explorado para o mesmo
intento por Brecht. Em nossa encomenda, contudo, reviramos o seu baú de
conceitos e tiramos de lá as relações sociais de produção, a infra e a superestrutura,
a ideologia e a alienação, a dialética. Pedimos para que ele viabilizasse uma divisão
coesa das cenas, que pudesse ser aplicada a qualquer texto, em qualquer lugar, por
qualquer pessoa. Para nossa grata surpresa a idéia de tese, antítese e síntese
estava ali, alcançável, mostrando-se ideal para os nossos intentos exploratórios.
Passamos então a compreender e isso é uma opção, não uma regra que todo
texto, ao apresentar seus personagens está veiculando uma tese, uma realidade
estabelecida, para, em seguida, apresentar suas contradições, as unidades de
contrário, o nó, o empecilho, a ‘pedra no meio do caminho’ da personagem principal.
A esse momento de tensão, ou seja, à antítese, sucede um desfecho, muito
provavelmente ligado a tudo que se viveu antes, como sua síntese. Estava, pois,
assim definido o mapa marxista: uma série de coordenadas que nos estimulam a
olhar para a cena e para a personagem e perguntar: como você vive? Quem são os
seus pares? Que hábitos você tem? De quais meios você dispõe para realizar o que
deseja?
Como era de se esperar, nem todas essas perguntas foram respondidas, pois
para além da materialidade das relações que observávamos havia uma determinada
tendência à repetição, à obediência cega, à não contestação. Enquanto Marx nos
278
dizia que o oprimido é potencialmente transgressor, nós nos perguntávamos: mas
por que eles não se rebelam logo? O que faz com que eles permaneçam ocupando
esses lugares tão desfavoráveis? O sociólogo alemão, atento, nos falou sobre a
superestrutura, sobre o plano das idéias como via de justificativa para a dominação,
mas, sedentos por passeios inferenciais, caminhamos até a França e rememoramos
as palavras de Durkheim.
Tínhamos, naquela ocasião, a impressão de que nenhuma personagem age
totalmente da forma como gostaria de agir e Durkheim, já sábio desse movimento,
nos explicou que a cena é o produto de um longo processo de socialização. Alertou-
nos sobre as instituições sociais, sobre a família, a religião, a moral; afirmou que
possuímos, em condições normais, dois tipos de consciência que convivem, mais ou
menos, harmoniosamente: uma coletiva e outra individual. Chegamos, então, a
nossa resposta: a ação da personagem deriva da leitura que ela faz sobre o seu
entorno algo muito semelhante ao que Berger defendia quando tratava do grupo
de referência e da teoria dos papéis. Mas Durkheim foi além: nos apresentou aos
dois tipos de solidariedade e, por isso, passamos a compreender melhor aquilo que
une os indivíduos e aquilo que os separa. Conversamos até sobre o suicídio e
descobrimos o caráter social desse ato tão aparentemente individual. De fato, muitas
portas foram abertas por ele nesses nossos bosques, mas não ficamos totalmente
satisfeitos.
Voltamos, então, à Alemanha e pedimos auxílio a Max Weber. Dissemos que
já entendíamos as bases materiais da vida do indivíduo, que já reconhecíamos o
poder que a sociedade o todo exerce sobre as partes, mas que continuávamos
intrigados com o fato de alguns personagens conseguirem transgredir e mudar a
rota daquilo que o capitalismo e as demais instâncias da vida social planejaram para
elas. Sabiamente, Weber nos falou dos pormenores da ação social e, através das
páginas de sua sociologia compreensiva, compreendemos que o sentido empregado
na ação de cada agente, varia de acordo com o conjunto de informações societárias
de que ele dispõe. Assim, retornamos à contextualização material da cena e nos
preocupamos em justificar o porquê de algumas dominações. Neste ínterim ouvimos
falar de ação tradicional, afetiva, racional com relação a fins e a valores e ampliamos
nosso entendimento sobre a diversidade dos comportamentos apresentados.
Com os três guias ao lado, partimos para efetiva construção da estrada e
elegemos como parceiros de obra Garcia Lorca e Nelson Rodrigues. Perguntávamos
279
em algumas ocasiões: será que eles estudaram os clássicos da sociologia? A leitura
das peças fazia-nos pensar que sim. Ou será que os três sociólogos é que foram
geniais e universais em seus escritos? De alguma forma, os três mapas nos
indicaram rotas e nos municiaram com perguntas, respostas, reflexões e formas de
abordagem. Todos eles nos auxiliaram a sistematizar regras, mas não nos cegaram,
impondo limites argumentativos. Se optamos por seguir o bosque pelo caminho da
sociologia, dispensando outros atalhos ainda que os reconhecendo interessantes e
possíveis foi por acreditarmos no potencial metodológico da via sociológica, sendo
os seus clássicos suficientes para o alcance de nossos objetivos centrais. Para os
leitores adeptos de outras correntes ou epistemologias o mapa sociológico não
pretende ser o único, mas UM. Há outras saídas e bifurcações à espera de leitores-
modelo. O que fizemos foi seguir a nossa trilha, tomando cuidado para sermos
coerentes com nossos propósitos e decisões. Por isso, em La casa de Bernarda
Alba realocamos cada personagem e fizemos detalhadamente o estudo de cada
uma delas, para testarmos se, no final, elas comprovariam a filiação à consciência
coletiva que Durkheim tanto defendia. E confirmaram.
As filhas de Bernarda realmente não se pertenciam, conviviam a partir de
vínculos sólidos, pautados na tradição e no respeito inconteste à autoridade da
matriarca. Todas elas passaram por uma forte educação moral e, aquela que ousou
se rebelar, pagou o preço mais alto da ousadia anômica: o suicídio. Este, e outros
gestos, foram também pensados numa perspectiva weberiana que conduziu nossa
atenção para as formas tradicionais de legitimidade da dominação. O poder da mãe
sobre as filhas, da patroa sobre as empregadas, das empregadas sobre os mais
pobres, e dos iguais entre si, incitou-nos a contemplar o simples balançar das
árvores e, na brisa gerada, os tipos ideais foram se disponibilizando a fazer a nossa
vontade.
Aprendemos a jogar com os tipos de ação, de dominação, de relações sociais
e, já que estávamos na Alemanha de Marx, não recusamos encarar Bernarda como
o empresário capitalista a comandar seus subordinados. Ao exercício do poder
materno e à submissão das filhas somamos os conceitos de alienação e ideologia
verificados em umas e o de transgressão e revolução observados em outra.
Ao final, recebemos o texto de Lorca como perfeitamente atualizável aos
nossos tempos e não nos furtamos a contextualizar a transgressão feminina, suas
interdições e possibilidades naquele começo de século XX.
280
Em tempo similar, adentramos no documento fotográfico de Nelson Rodrigues
e o seu Álbum de Família pareceu-nos um diário de campo de algum antropólogo
de antigas civilizações. No domínio de Jonas, que também é o domínio de Bernarda,
a obediência e a vontade de libertação caminharam lado a lado, brigando,
competindo, mas não encontraram espaço para a conciliação. Mãe e filhos sofreram
diante do pai tirânico e o desfecho, para todos, não poderia ter sido pior. Novamente
falamos em dominação, em tradição, em moral, em desigualdades e em conflitos
entre iguais que se julgam diferentes e embevecidos pela complexidade dessas
relações pretensamente ‘selvagens’, ‘primitivas’ adentramos no mar que afoga e não
devolve os corpos em Senhora dos Afogados.
O modelo de família criado por Nelson, nas duas peças, parece anteceder à
civilização, mas nem por isso deixamos de reconhecer nossos traços culturais nas
cenas mais domésticas e nos momentos mais extracotidianos. A catolicidade
rodrigueana que já nos era familiar devido aos ritos de Bernarda Alba, é tão próxima
e decodifícável que nem nos espanta em demasia o luto, a inevitabilidade do
casamento, a crença no juízo final e outras formas de subordinação ao inexplicável,
ao irracional, ao imponderável. O homem e a mulher rodrigueanos são feitos da
mesma substância que nós leitores modernos, instruídos, libertos das trevas da
ignorância, como diria algum iluminista mas temos medo de assumir.
Nos últimos dois anos, para confirmar o que falamos aqui, Álbum de Família
e Senhora dos Afogados tiveram entre Rio de Janeiro e São Paulo ao menos
quatro montagens cada uma, comprovando o interesse do público pela temática
abordada e pelo formato oferecido. Seguindo a definição de obra aberta, algumas
dessas montagens ganharam a forma de musicais, de teatro do absurdo, de cena
expressionista ou espetáculo minimalista. Tantos foram os caminhos explorados
que, às vezes, nos restava a pergunta: é essa peça mesmo? Não erraram o título? A
despeito da qualidade, ou da falta dela, o importante é que os bosques foram
explorados e, em todos, os caminhos da sociologização da cena mostraram-se
viáveis.
O fazer teatral, como bem apontou Aristóteles, corresponde à vontade
humana de transpor a realidade, vivenciando-a em cenários não necessariamente
coerentes. Sob o véu do ficcional a vida ganha cores diferenciadas e os caminhos
que seguimos cenicamente podem ser modificados, revividos, abandonados, sem
que tenhamos, para isso, que pagar um alto preço.
281
Quando Umberto Eco nos apresentou sua teoria da obra aberta, ele ampliou
essa possibilidade catártica ao delegar a qualquer leitor, e não somente ao ator, o
poder de percorrer caminhos variados, colaborando com o autor inicial, atualizando
seus escritos, conferindo-lhes novos significados que são, em verdade,
interpretações de um universo de possíveis. Se o teórico italiano entendeu a ficção
como o ensaio que tentamos empreender todos os dias para aprendermos a sentir,
nesta tese argumentamos que o teatro é a nossa estréia particular, não
necessariamente publicizada, já que só necessita do texto e do leitor para acionar os
demais dispositivos de uma encenação virtual.
Diante do texto teatral nossa atuação no mundo tende a experimentar
caminhos novos e de frente para os bosques reformulamos nossos conceitos ou
confirmamos nossas verdades. Nietzsche argumentava que a primeira experiência
humana no campo das artes cênicas se dava através do sonho e é justamente esse
caráter involuntário que liga o homem ao teatro que mobilizou nossos esforços.
Começamos teatralizando a vida real para, a partir disso, sociologizar a ficção.
Dos clássicos da sociologia captamos os conceitos elementares e,
principalmente, buscamos despertar no leitor o interesse pelo ato de decodificar os
comportamentos humanos. Sem a necessidade de construir muros altos entre Marx,
Durkheim e Weber, sugerimos associá-los sempre que possível, construindo um
flexível instrumento de interpretação que ora pende para um lado, ora pende para
outro. Os mapas que desenhamos não pretendem ser excludentes, ao contrário.
Diante da cena teatral eles se complementam, discutem, procuram uma melhor
saída, sugerem atalhos ou, simplesmente, sinalizam para os benefícios do tempo de
trepidação e dos passeios inferenciais.
Sem pressa, desejamos oferecer ao estudioso do teatro e ao leitor casual, um
exercício de observação que se assemelha a um jogo de espelhos. Ao abrirmos o
livro, ou ao comprarmos o ingresso que nos levará à montagem de um espetáculo,
direcionemos nossa atenção para o não visível, para o não identificável rapidamente
na cena. Perguntemos pelos motivos escondidos, pelas vontades ocultadas,
façamos nossos diagnósticos e nossas apostas. Se tendemos a esperar da ficção
que ela nos convença através de códigos reais, reflitamos sobre esses códigos
quando os assistirmos no palco. Mas para isso, preparemos nossa bagagem, pois o
caminho é longo e exige coordenadas.
282
Ao fazermos uma viagem desta natureza, estaremos nos preparando não
apenas para a compreensão do texto de ficção, mas também para a cena que nos é
cotidiana e familiar. Afinal, se decidimos reconhecer na ficção os elementos
constituintes das relações que nos traduzem enquanto atores sociais, podemos dizer
que nosso esforço interpretativo é sintomático de uma atitude de auto-
reconhecimento. Esta potencialidade do método pode ser de grande utilidade ao
pesquisador social e ao educador que, trabalhando diretamente com indivíduos
socialmente localizados e inter-relacionados, poderão decifrar códigos, compreender
atitudes e definir procedimentos de atuação. A sociologização da cena poderá ainda,
em seu caminho inverso e complementar a teatralização do social servir de
mecanismo para o ensino da Sociologia, servindo de lócus para a transposição de
conceitos nem sempre assimiláveis de imediato pelo aluno.
Desta forma, o intento de nossas sistematizações teóricas não se limitou a
criar MAIS UMA via de abordagem do texto teatral. Acreditamos que podemos ir
além. Sociologizando a cena estaremos reunindo informações que poderão balizar
nossas observações do cotidiano real. E essa possibilidade não será de grande valia
somente para o nicho acadêmico afeito às relações sociais. Sem olvidar o
pensamento de Umberto Eco, recordaremos que a ficção funciona como uma
preparação do indivíduo para enfrentar/ experimentar o mundo. Por que, então, não
oferecer a esse jogo de espelhos elementos mais sistematizados para
compreensão?
Se a vida imita a arte e a arte imita a vida não nos resta somente a catarse.
Poderemos ganhar também, através dela, uma nova racionalidade, mais sensível,
mais atenta às demandas de um mundo novo de velhos questionamentos. E antes
que caia o pano, lembremos:
“Caminos nuevos hay para salvar al teatro. Todo está en atreverse a
caminar por ellos” (LORCA, 1973, p. 965).
283
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Saviola em The House of Bernarda Alba no Mark
Taper Forum em Los Angeles - Craig Schwartz
Photography
Pearl Theatre, New York City.
Diretor: Donald Levit - Foto
©2004 Rob Strong.
292
Phylicia Rashad in Bernarda Alba - Photo ©
Paul Kolnick
Londres - Grupo La Careta: Luisa
Blanca, Femi Mate, Aurora Lledó, Raquel
Marín, Jennifer Silvente, Puri Hurtado,
Lolita Vilá - Director de grupo: Femi Mate
Grupo: OFICCINA
MULTIMÉDIA
Origem: BRASIL / BELO
HORIZONTE Foto de Rodrigo
Troiano
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Guerreiro Vit
DIREÇÃO: Jorge Farjalla/
REALIZAÇÃO:Companhia
avision
ELENCO:
Anna Machado/ Ana Paula
Oliveira / Fabiola Fegori /
Jaqueline Sperandio/ Jorge
Farjalla/ João Paulo Garrel/
Jhonatan Oliviero/ Leandro Terra/
Lucas Valentim/ Michelle Raja/
Olívia Zisman/ Raphaela Tafuri.
295
SESC Consolação/ Álbum de Família, de
Nelson Rodrigues, protagonizado por Denise
Weinberg (na foto, abaixo, à esquerda), Cacá
Amaral (ao lado de Weinberg com Rennata
Airoldi no colo) e Ângela Barros (acima, de
óculos) e dirigido por Alexandre Reinecke.
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Teatro SESC Anchieta / adaptação e direção de Antunes Filho/ Grupo de Teatro
Macunaíma.
297
Direção: Zé Henrique de Paula - elenco: João Bourbonnais, Einat Falbel, Marcella
Piccin, Thiago Carreira, Marcelo Góes, Lourdes Giglioti, Fábio Redkowicz, Diana
Troper, Paulo Bueno, Thiago Ledier, Alexandre Meirelles, Elber
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
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