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Júlio César França Pereira
TEORIA DA LITERATURA:
ANATOMIA DE UM CONCEITO
ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS
Abril, 2006
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1
Júlio César França Pereira
TEORIA DA LITERATURA:
ANATOMIA DE UM CONCEITO
ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutor em
Letras.
Área de concentração: Literatura Comparada
Orient.: Prof. Dr. Roberto Acízelo Q. de Souza
Niterói
Instituto de Letras da UFF
Abril de 2006
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Júlio César França Pereira
TEORIA DA LITERATURA:
ANATOMIA DE UM CONCEITO
ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS
Tese de Doutoramento em Letras, defendida e aprovada na Universidade Federal Fluminense, em 28 de
abril de 2006, pela banca examinadora constituída pelos professores:
_____________________________________________
Prof. Dr. Roberto Acízelo Quelha de Souza - Orientador
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Prof. Dr. Fernando Décio Muniz
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Prof. Dr. Gustavo Bernardo Galvão Krause
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_____________________________________________
Prof. Dr. José Luís Jobim de Sales Fonseca
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________
Prof. Dr. Maria Conceição Monteiro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
3
Este trabalho só foi possível graças a
interlocutores muito especiais:
Meu orientador Roberto Acízelo de Souza,
Meus professores
Fernando Décio Muniz e José Carlos Barcellos,
Meus companheiros de doutorado
Sérgio Vieira Bugalho e Leonardo Côrtes Macário
Meus colegas do
Fórum de Pesquisadores em Literatura.
4
A hostilidade para com a teoria geralmente
significa uma oposição às teorias de outras
pessoas, além de um esquecimento da teoria
que se tem.
Terry Eagleton (2003:X)
(...) se não sei precisamente o lugar que
ocupará ou ocuparia um discurso que se sabe
nem científico, nem ficcional, sei quando nada
que advogá-lo tem o propósito de tentar romper
com a idéia que toma a ciência como detentora
da lógica.
Luiz Costa Lima (1981:207)
As descobertas envelhecem, os métodos não.
Isaías Pessotti (2001:378)
5
SUMÁRIO
RESUMO .............................................................................................................................................
06
ABSTRACT ........................................................................................................................................ 07
1 - VESTÍGIOS DE UMA CRISE ...................................................................................................... 08
1.1 - UMA DISCIPLINA, MUITAS PERSPECTIVAS ............................................................................. 08
1.1.1 -“O que é Teoria Literária?”...........................................................................................
09
1.1.2 - “Para que serve a Teoria Literária?”.............................................................................
14
1.1.3 - “Como funciona nas universidades a Teoria Literária?”..............................................
17
1.2 - SISTEMATIZANDO O PROBLEMA............................................................................................. 21
1.3 - OS ESTUDOS LITERÁRIOS ANTES DA TEORIA DA LITERATURA............................................... 28
1.4 - A ASCENSÃO DA TEORIA DA LITERATURA............................................................................. 37
1.5 - OS MANUAIS DE TEORIA DA LITERATURA .............................................................................
40
2 - OS PRECURSORES.......................................................................................................................
44
2.1 - O ENCONTRO ENTRE O FORMALISMO ESLAVO E O NEW CRITICISM ........................................ 45
2.1.1 - O conceito de Literatura para Wellek & Warren .........................................................
46
2.1.2 - Os limites dos Estudos Literários ................................................................................
56
2.1.3 - Teoria, Crítica, História ...............................................................................................
68
2.1.4 - O capítulo esquecido ................................................................................................... 74
2.1.5 - Os pontos-chave do manual de Wellek & Warren ......................................................
77
2.1.5.1 - O conceito de Literatura ....................................................................................
78
2.1.5.2 - A compreensão dos objetivos dos Estudos Literários .......................................
79
2.1.5.3 - O que é a Teoria da Literatura? .........................................................................
80
2.2 - O MANUAL DA CIÊNCIA DA LITERATURA ............................................................................. 81
2.2.1 - O conceito de Literatura em Kayser ............................................................................
82
2.2.2 - Os objetivos do estudo da Literatura ...........................................................................
84
2.2.3 - O projeto teórico de Kayser .........................................................................................
86
3 - ANOS 60 E 70: CONSTRUÇÃO OU RUÍNA? ............................................................................ 90
3.1 - O MANUAL DE AGUIAR E SILVA ............................................................................................
96
3.1.1 - A relatividade do conceito de Literatura ..................................................................... 96
3.1.2 - A Teoria da Literatura e os Estudos Literários ............................................................
100
3.2 - TEORIA, LATO SENSU ............................................................................................................. 103
4 - A ERA DAS CRÍTICAS ................................................................................................................
111
4.1 - “LITERATURA”, NA FALTA DE UM TERMO MAIS ADEQUADO ................................................. 113
4.2 - NAS MALHAS DA IDEOLOGIA .................................................................................................
118
4.3 - UMA TEORIA DOS DISCURSOS ................................................................................................
122
5 - A ERA DAS REVISÕES ...............................................................................................................
130
5.1 - UMA TEORIA DE MUITOS OBJETOS .........................................................................................
142
5.1.1 - Diversidade e complexidade ........................................................................................
143
5.1.2 - A culturalização dos Estudos Literários .....................................................................
145
5.1.3 - Uma teoria sem objeto? ...............................................................................................
146
5.2 - O QUE OS ESTUDOS LITERÁRIOS AINDA TERIAM PARA OFERECER ......................................... 151
5.2.1 - Do conceito de Literatura ...........................................................................................
151
5.2.2 - Os estudos literários e as armadilhas das dicotomias ..................................................
153
5.2.3 - Uma disciplina ambivalente ....................................................................................... 158
6 - OS MANUAIS DE TEORIA DA LITERATURA NO BRASIL .................................................. 163
6.1 - TEORIAS OITOCENTISTAS SOBREVIVENTES ............................................................................
163
6.2 - A DÉCADA DOS MANUAIS ......................................................................................................
167
6.3 - O RENASCIMENTO ................................................................................................................. 175
7 - OS TRÊS DESAFIOS DA REFLEXÃO TEÓRICA .....................................................................
179
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................ 190
6
RESUMO
A partir de uma leitura crítica que buscou compreender os conceitos de
Literatura, de Estudos Literários e de teoria formulados nos principais manuais de
Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da
disciplina, com o intuito de se projetar quais as condições para o desenvolvimento de
uma reflexão teórica sobre a Literatura em um momento histórico assinalado por
profundo relativismo nas concepções de conhecimento orientadoras das ciências
humanas.
Palavras-chave: Teoria da Literatura; Relativismo; Estudos Literários (Crítica)
7
ABSTRACT
Starting from a critical reading that aimed to understand the concepts within
Literature, Literary Studies and Literary Theory in the main handbooks, a summary of
both positive and negative aspects of the discipline was elaborated in an attempt to
project the conditions to the development of a theoretical thinking concerning Literature
in a historical moment that is marked by a deep relativism in Humanities.
8
1 - VESTÍGIOS DE UMA CRISE
1.1 – UMA DISCIPLINA, MUITAS PERSPECTIVAS
When the study of literature is under fire - as it is
nowadays - it stands more than ever in need of a
type of discourse which both objectifies and
justifies this particular scholastic endeavor
1
.
Wolfgang Iser (in New Literary History, 1983:425)
Há cerca de vinte anos atrás, a revista New Literary History realizou uma
enquete com um grupo de acadêmicos europeus e norte-americanos. Três foram as
questões formuladas: (i) Quais os objetivos e funções da Teoria
2
Literária no presente?
(ii) Quais conseqüências práticas teve a Teoria Literária em sua atividade de ensino da
Literatura e em seu trabalho de produção crítica? (iii) Quais seriam as deficiências, se
existentes, da Teoria Literária no ensino da pós-graduação? As perguntas foram
respondidas por mais de trinta scholars
3
, entre eles alguns grandes nomes dos Estudos
Literários
4
contemporâneos, tais como Terry Eagleton, Hans Ulrich Gumbrecht,
Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss, Adrian Marino e George Steiner.
Uma das primeiras impressões que se pode ter com a leitura das respostas ao
questionário é a amplitude de compreensão que o termo Literary Theory suscitava em
cada um dos professores entrevistados. Essa imprecisão semântica fruto, por um
lado, de uma série de usos históricos do termo “teoria”, e, por outro lado, da própria
1
“Quando o estudo da Literatura está sob ataque como ocorre hoje em dia torna-se mais do que
nunca necessário um tipo de discurso que tanto torne objetivo quanto justifique este esforço acadêmico
específico” [tradução minha].
2
Embora alguns autores estabeleçam diferenças conceituais entre "Teoria da Literatura" e "Teoria
Literária", não farei distinção entre os dois termos neste trabalho, por entender que, mesmo nos
específicos contextos argumentativos em que se postula a diferenciação, a alternância dos termos não
remete a disciplinas distintas, mas a diferentes modos de se entender a reflexão teórica sobre a Literatura.
3
Cinco estudantes de pós-graduação também responderam ao questionário. Como acredito que os pontos
de vista dos alunos e dos professores pressupõem diferenças importantes, e como a diferença quantitativa
entre os depoimentos era muito grande, optei por desconsiderar neste trabalho as opiniões dos alunos.
4
Adotarei neste trabalho a terminologia de Roberto Acízelo de Souza, que chamará de Estudos Literários
“ao conjunto das disciplinas que historicamente concorreram para delimitar a área de fenômenos
constituídos pela linguagem verbal elaborada” (Souza , 1987:134).
9
negligência com que os conceitos são geralmente tratados no caótico ambiente
terminológico do campo dos Estudos Literários revela-se na multiplicidade de
objetivos e de funções aventadas como pertinentes ao trabalho teórico, bem como no
caráter muitas vezes contraditório dos problemas e das qualidades da disciplina
identificados pelos acadêmicos.
As três questões formuladas pela revista funcionam, em conjunto, como um teste
da condição de existência de uma suposta disciplina chamada Literary Theory. As duas
primeiras perguntas tinham um caráter pragmático e claramente perguntavam “para
que serve a Teoria Literária?”, embora a primeira delas a interrogação pelos
objetivos e funções tenha obrigado os entrevistados a refletirem sobre a ontologia da
disciplina, a fim de responder ao questionamento implícito “o que é a Teoria
Literária?”. Já a terceira questão era explicitamente de cunho didático e institucional,
interrogando pelo desempenho efetivo da teoria como disciplina acadêmica
institucionalizada e que, como tal, precisa ser “ensinada” e “aprendida”: “como
funciona, nas universidades, a Teoria Literária?”.
Embora a enquete tenha sido realizada há vinte anos, as dificuldades, os
embaraços, as aporias e, principalmente, a falta de clareza do estatuto disciplinar da
Teoria Literária revelados pelas questões formuladas permanecem, em sua quase
totalidade, atuais. Tomando a enquete de modo heurístico, procurei então sistematizar as
respostas dadas pelos entrevistados a cada um desses núcleos temáticos, a fim de
introduzir, a título de exemplificação, o conjunto de problemas e questões com os quais
foi necessário lidar.
1.1.1 - “O que é Teoria Literária?”
The character of critical theory is not (or
should not be) dazzling or “exciting” (except in
the sense that any important new theoretical
idea or argument is exciting if it is important);
above all, its strength must lie in accuracy and
precision of formulation
5
.
John M. Ellis (ibid., 1983:416)
5
“Não é (ou não devia ser) da natureza da teoria crítica ser deslumbrante ou estimulante (a menos no
sentido em que qualquer nova idéia ou argumentação teórica, quando importante, é estimulante). A força
de uma teoria reside, sobretudo, na exatidão e na precisão com que é formulada” [tradução minha].
10
As respostas à pergunta acerca dos objetivos e funções da teoria literária revelam
o quanto se está longe de unanimidade conceitual em torno do que vem a ser Literay
Theory. Uma primeira classificação possível para as respostas seria dividi-las entre
aquelas que tomam o termo como designação dos Estudos Literários em geral
englobando além de abordagens propriamente teóricas, também trabalhos de natureza
interpretativa, histórica, analítica e críticae aquelas que a entendem como um
procedimento específico dentro do campo da investigação sobre Literatura. No primeiro
caso, a compreensão ampla de teoria literária promove um desafio a seus defensores: ter
de conjugar sistematicamente um conjunto de práticas tão diversificadas como a busca
de significados da obra, a análise formal de seus elementos de composição, a
contextualização histórica, o julgamento de valor etc., numa amplitude que abarcasse
todos os modos já empreendidos de consideração de uma obra literária. Nas atuais
condições dos Estudos Literários, um sistema conceitual desta monta embora fosse
certamente muito bem vindo... é utópico, pois exigiria a resolução de impasses
diversos hoje tidos como insuperáveis: a importância do autor para o sentido da obra, a
relação das obras literárias com o mundo, os limites da interpretação, a legitimidade do
cânone, para ficar apenas com alguns das questões mais pujantes.
Há, contudo, variantes desse entendimento lato: Michel Glowinski (ibid.:419-
420), Jerome McGann (ibid.:438) e Adrian Marino (ibid.:435-436) estão entre aqueles
que compreendem a teoria como tendo uma função sistematizadora e disciplinadora,
cabendo a ela fornecer as bases e as premissas do trabalho acadêmico, integrar as
descobertas dispersas em análises particulares e demonstrar que o estudo da Literatura
não precisa ser uma desorganizada coleção de pequenas informações sobre vários
temas. Sendo da competência da teoria a análise, a classificação e a definição de
conceitos literários básicos (cf. Marino, ibid.:435-436), ela poderia, ao unificar
interesses particulares em um contexto mais amplo, criar um espaço de comunicação e
entendimento entre os estudiosos.
Wolfgang Iser (ibid.:425) pensa nessa função sistematizadora como a garantia de
que a experiência da Literatura possa ser intersubjetivamente verificável. Embora os
teóricos possam falar em diferentes linguagens, os fundamentos de cada um poderiam
ser conhecidos graças a um sistema conceitual teórico comum. Mesmo que não se
concordasse em como se lidar com os problemas, ao menos os acadêmicos poderiam
11
compreender-se mutuamente. Tal função seria de extrema necessidade, tendo em vista
que o número de sentidos e definições de uso quase individual continua crescendo,
tornando urgente uma crítica da terminologia da área. Sem uma sistematização coerente
e bem engendrada a ser realizada pela Teoria, a Crítica e a História Literária estariam
completamente desorientadas.
Mas que tipo de teoria poderia dar conta da complexidade não do objeto
literário, mas dos Estudos Literários, a ponto de se posicionar, hierarquicamente, acima
das demais abordagens? Iser (ibid.:425) imagina que essa suposta força estruturadora,
para pretender ser uma teoria, teria que ser algo mais do que um conjunto de premissas.
Seria necessário um constante esforço de revelação e de teste de seus fundamentos,
exatamente o que distinguiria o trabalho teórico dos tipos predominantes de Crítica
Literária. Tal teoria deveria ser estruturada de modo que, tão logo passasse a falhar em
seus objetivos, fosse retificada, o que normalmente não acontece com outros
procedimentos dos Estudos Literários, muito tendentes ao dogmatismo.
O ponto de vista de Iser aproxima-o daqueles que vêem na teoria a instância de
auto-reflexão do campo de Estudos Literários. Para Hans Ulrich Gumbrecht (ibid.:422-
423) e Murray Krieger (ibid.:432-433), a pergunta primordial a ser feita é se há, de fato,
um objeto consistente chamadoliteratura” sobre o qual teorias (compreendidas como
um conjunto de conceitos) podem ser construídas. Em outras palavras, a principal
questão teórica deveria ser não o estabelecimento de “teorias”, mas a definição do
objeto de nossa disciplina. Krieger (ibid.) afirma que somente após a decisão sobre o
status disciplinar seria possível determinar as funções da teoria em relação à
interpretação, à Crítica e à História Literárias.
Em uma posição aproximada situam-se os que entendem, como Jan
Kowenhoven (ibid.:431-432), que a Teoria Literária deva ser uma instância autônoma,
concernente apenas a si própria e aos problemas que ela mesmo se propõe, a despeito de
modas, utilidades ou apelos do senso comum. Evan Watkins (ibid.:448-450) acredita
que a principal questão é justamente tentar entender como a Literatura e seu estudo
ocupam uma posição específica no conjunto de relações culturais. De modo similar,
Eugene Vance (ibid.:448) defende a função da teoria como sendo a de definir a
especificidade do texto literário como um elemento constitutivo da cultura ocidental.
12
Entre as concepções de Teoria Literária como uma prática reflexiva estão
também as de John Ellis (ibid.:416-417) e de Lionel Gossman (ibid.:420-422), que
identificam sua função e seus objetivos com os da teoria em qualquer campo: a
investigação técnica de um objeto, de sua natureza e de sua relação com outras formas
culturais, além do esclarecimento relativo a questões mais gerais de uma área de estudos
(os objetivos, a natureza de seus resultados, a conveniência das metodologias, a
natureza e prática da crítica, dos tratados e da interpretação). Como as questões centrais
de uma teoria são já bastante conhecidas, o progresso teórico é sempre lento e deve ser
feito de modo paciente, através da análise cuidadosa de conceitos, de acurados
processos de distinção, sistematização e reavaliação das linhas de argumentos mais
conhecidas na busca de incoerências lógicas. A força de uma teoria está em sua exatidão
e em suas formulações precisas e não no seu caráter atraente ou excitante que
funcionarão como hipóteses lógicas e filosóficas nas quais se basearão a análise e o
juízo, de modo o mais “científico” e descritivo possível, a fim de evitar ao máximo
qualquer tipo de julgamento ideológico.
Conceber a Teoria Literária como a realização, no campo dos Estudos Literários,
de ideais teóricos comuns à produção do conhecimento científico dá margem à geração
de uma instância metateórica que teria por objetivo questionar diretamente as condições
de existência daquele ramo da saber: “Theoretical work ought to show how and why no
one class of scholars, and no one subject (including theory) is self-justifying, self-
explanatory, and self-sustaining
6
, alerta David Bleich (ibid.:411), indicando que não se
pode naturalizar a existência da disciplina. A teoria deveria ter de pensar sua própria
condição acadêmica, seus problemas de identidade, suas funções e seus objetivos no
conjunto da sociedade, principalmente neste momento, em que a função social do
teórico/estudioso de Literatura não é clara e a própria coerência interna do corpo teórico
e de análise é problemática. É neste contexto de questionamentos que a teoria deve
encontrar seu modo de redirecionar sua atividade crítica e social, ao mesmo tempo que
administra as pressões por maior efetividade prática (cf. Neil Larsen, ibid.:433-435).
Não são poucos os que defendem que a Teoria Literária deva ter um
compromisso político. E muitos também são os sentidos possíveis para “atividade
política”. Raymond Federman (ibid.:417-418), Vida Markovic (ibid.:437-438) e David
6
“O trabalho teórico deveria mostrar como e porquê nenhum grupo de acadêmicos e nenhuma disciplina
13
Punter (ibid.:439-441), por exemplo, entendem que a teoria deve reafirmar o valor da
Literatura, legitimar sua presença e sua existência em nossa cultura como uma das mais
importantes atividades humanas. Procedendo assim, ela ofereceria um ponto de partida
para o combate contra a crise de valores, manteria viva a herança dos Estudos
Literários, ofereceria diretrizes para o estudo da Literatura e ajudaria a entender qual o
papel da Literatura no mundo contemporâneo.
O comprometimento político da teoria implica, em muitos casos, modificar as
condições de existência cultural de seu objeto, propagar valores e julgamentos,
estabelecer legitimidades e ilegitimidades, realizar exclusões, reafirmar o papel político
do intelectual. Para Watkins (ibid.:448-450) e Gossman (ibid.:420-422), não haveria
maiores problemas com esse aspecto normatizador, uma vez que é uma ilusão
positivista acreditar que se possam produzir discursos teóricos imaculados que
transcendam à ideologia. Os discursos humanos seriam sempre embebidos em desejo e
história. Teorias que se julgam puras agiriam de modo repressivo, enquanto os melhores
discursos teóricos reconheceriam que sua materialidade, longe de ser uma falha, é o que
lhes dá sentido, interesse e importância.
O engajamento tem, contudo, seus riscos. Teorias fortemente politizadas acabam
tendo pouco interesse na própria Literatura, comenta Alastair Fowler (ibid.:418-419). É
o que parece acontecer com as iniciativas que visam a aproximar a Teoria Literária do
campo dos Estudos Culturais. Muitos trabalhos nessa linha colocam-se como se
houvesse chegado a hora de os teóricos finalmente assumirem a responsabilidade pelas
conseqüências sociais de suas hipóteses e procedimentos (cf. Annette Kolodny,
ibid.:429-431), na aspiração de que assim são capazes de contribuir para a
transformação das instituições (cf. Bleich, ibid.:411-413). No juízo de Larsen (ibid.:
433-435), a Teoria Literária deveria se transformar definitivamente em teoria da
ideologia, o que só não ocorre porque ela teme abrir mão da exclusividade do campo do
literário, sem perceber que, enquanto isso, a Literatura vai-se esvaindo e, com ela, a
própria relevância da teoria.
Ainda sob a perspectiva de uma Teoria Literária que extrapole os domínios do
estudo da Literatura, há um tipo de visão Eagleton, (ibid.:415-416), Gumbrecht
(ibid.:422-423) e Watkins (ibid.:448-450) que atribui a ela a função de promover o
(inclusive a teoria) é autojustificável, auto-explicativa e auto-sustentável” [tradução minha].
14
intercâmbio dos Estudos Literários com os interesses oriundos de pesquisas ou de
disciplinas afins, como a Filosofia, a História, a Sociologia etc., integrando-a ao campo
mais vasto dos estudos das relações culturais em geral. Além dessa via interdisciplinar,
fala-se também em se abrir novos campos de investigação ou em sua substituição por
campos mais abrangentes, como no caso do projeto de Iser (ibid.:425-426), por uma
antropologia cultural da Literatura, e no de Jauss (ibid.:428-429), por uma teoria
interdisciplinar do conhecimento.
Tendo apresentado, em linhas gerais, as respostas à primeira pergunta da
enquete, passo à segunda questão, mas não sem antes fazer menção a George Steiner
(ibid.:444-445), que defendeu uma posição isolada, mas não insólita. Para ele, em
outros contextos que não o dos Estudos Literários, o termo teoria vincula categorias de
verificação e de falsificação potencial, experimentos mais ou menos controlados e
formalizações. No entanto, aplicada à Literatura e às artes, a teoria seria apenas um
empréstimo metafórico ou, pior, um caso de pretensão obscurantista. Nossos melhores
argumentos e metodologias seriam “mitologias racionais” ou “cenários discursivos”
por exemplo, uma leitura marxista ou psicanalítica de textos literários, construtos
ontológicos como os de Heidegger, mitos de sujeitos ausentes, como em Mallarmé e
seus epígonos desconstrutivistas. Tais mitologias programáticas, ainda que possuam
grande força de persuasão, não seriam teorias, em qualquer sentido confiável.
1.1.2 - “Para que serve a Teoria Literária?”
My graduate students have read Derrida before
ever encountering Husserl; they know what is
“wrong” with Northrop Frye before they can
locate his name in the card catalogue
7
.
Evan Watkins (ibid.:449)
Num esforço de sistematizar as concepções descritas no item anterior, sobre o
que seja (ou o que deveria ser) a Teoria Literária, creio que seria possível agrupá-las, de
modo generalizador, em torno de quatro linhas
8
fundamentais, a saber:
(i) uma designação genérica para Estudos Literários;
7
“Meus alunos de pós-graduação lêem Derrida antes de sequer tomarem conhecimento de Husserl; eles
sabem o que há de errado com Northrop Frye antes de serem capazes de encontrar seu nome nas fichas
catalográficas” [tradução minha].
8
Abstraio aqui a posição de George Steiner, mas sua negativa da possibilidade de existir uma Teoria
Literária permanecerá como uma hipótese a ser considerada ao longo deste trabalho.
15
(ii) uma instância sistematizadora encarregada de estabelecer um sistema de
fundamentos, conceitos e métodos que possam ser partilhados pelos estudiosos de
Literatura;
(iii) uma instância filosófica, auto-reflexiva, voltada para a ontologia de seu
objeto;
(iv) uma instância empenhada em articular e relacionar o conhecimento sobre a
Literatura com um conjunto mais amplo de questionamentos políticos, sociais e
culturais.
Neste item, procuro articular esses quatro pontos de vista básicos com as funções
da Teoria Literária apontadas nas respostas à segunda pergunta da enquete.
A posição (i) ajusta-se com a concepção lata de Teoria Literária que defende não
ser possível se falar de um texto literário sem a presença, consciente ou não, implícita
ou explícita, de um modelo de entendimento daquilo que venha a ser a Literatura
posição comum a Ellis (ibid.:416-417), Glowinski (ibid.:419-420), Gossman (ibid.:421),
Gumbrecht (ibid.:422-423), Krieger (ibid.:432-433) e Carol Jacobs (ibid.:427-428) —,
pois, nas palavras de Stanley Fish (ibid.:418), qualquer leitura de um texto literário é
uma tematização da posição teórica do leitor. Raymond Federman (ibid.:417-418) vai
ainda mais além, entendendo que o próprio autor precisa de uma teoria implícita para
escrever.
A teoria é, portanto, um elemento constitutivo da própria Literatura, o que leva
Jacobs (ibid.: 428) a identificar o ensino desta com o daquela.
Harmoniza-se com a posição (ii) uma compreensão da função da teoria como
reguladora dos Estudos Literários. Bons exemplos encontram-se em Jim Springer Borck
(ibid.414), que fala do “rigor” que a teoria imprimiu à sua atividade, Markiewicz
(ibid.:436-437), que se refere à sistematização, precisão e consciência que ela trouxe a
seu trabalho, Glowinski (ibid.:419-420), defensor de que, sem teoria, os Estudos
Literários seriam vítimas da ingenuidade, e McGann (ibid.:438), que acha impensável a
prática do trabalho acadêmico sem a aquisição de uma autoconsciência sobre as
premissas críticas e conceituais dadas pela reflexão teórica. Esta visão trata a teoria
como uma espécie de instância autocontroladora dos Estudos Literários, que forçaria o
estudioso a responder pelas conseqüências de sua prática e a procurar entender o que se
faz e por que se faz o que se faz, o que, em linhas gerais, é também a opinião de
Watkins (ibid.:448-450), Punter (ibid.:439-441) e Fish (ibid.:418). Ela criaria uma
16
ordem de valores nos Estudos Literários e os capacitaria a promover uma constante
autocrítica (cf. Ihab Hassan, ibid.:423). A teoria seria assim, comenta Iser (ibid.:425-
426), um lembrete constante para que não se perca de vista o que se pretende saber
quando se começa a estudar Literatura.
Responsável por fornecer os parâmetros dos discursos sobre a Literatura, a teoria
teria desse modo a função de dizer o que deve ser levado em conta e o que deve ser
descartado na abordagem das obras, pensa Robert Schwartz (ibid.:444), além de precisar
oferecer uma reflexão metodológica sobre modos de argumentação na Crítica Literária e
interpretações válidas, chegando mesmo ao extremo de dever propor um cânone de
descrição das obras literárias (cf. Markiewicz, ibid.:436-437).
Schwartz (ibid.:444) e McGann (ibid.:438) conferem à teoria a função de exercer
a consciência histórica necessária para se perspectivar ao máximo afirmações a respeito
do significado de um texto. É também nesse sentido que Vance (ibid.:448) entende a
Teoria Literária como responsável por encorajar o estudante a repensar a História de
Literatura e procurar depreender os modelos históricos nela inerentes.
Concordantes com a posição (iii) estão os que defendem as funções da teoria
literária para além de sua aplicabilidade imediata na leitura de textos, dada sua condição
disciplinar de instância de reflexão pura. Gossman (ibid.:420-422), Gumbrecht
(ibid.:422-423) e Ronald Paulson (ibid.:438-439) admitem que a Teoria Literária é a
filosofia dos Estudos Literários, opinião que parece ser compartilhada por Watkins
(ibid.:448-450), que viu nela a possibilidade de conciliar sua formação de filósofo com
a de estudioso da Literatura. Como plano de reflexão filosófica, a teoria estaria
relacionada com a busca de generalizações, não lhe cabendo, diz Kowenhoven
(ibid.:431-432), tratar de obras particulares, mas promover uma reflexão sobre as
regularidades observáveis nos processos literários, com o que concordam Markiewicz
(ibid.:436-437) e Schwartz (ibid.:444).
Por fim, a posição (iv), dos defensores da necessidade “expansionista” da Teoria
Literária, acolheria as concepções a respeito das funções da teoria de Bleich,
Bloomfield, Braudy, Hermeren e Iser, que seriam, de modo geral, as de ampliar nossos
modos de estudo, de revitalizar a atividade acadêmica e de permitir que se atente para
aspectos da Literatura aos quais jamais se deu atenção. Dentro dessa perspectiva,
haveria concepções de teoria que privilegiariam as possibilidades analíticas: a reflexão
17
teórica teria então por objetivo capacitar a leitura da mais ampla gama de textos,
atentando sempre para a multiplicidade e a complexidade dos processos de escrita e de
leitura em relação a seus contextos, opinião de Kolodny (ibid.:430), David Lodge
(ibid.:435) e Wallace Jackson (ibid.:426-427). A teoria seria um caminho para o livre
pensamento, uma alternativa à rigidez, ao dogmatismo e à ortodoxia de linhas de
investigação estritamente literárias (cf. Marino, ibid.:435).
1.1.3 - “Como funciona nas universidades a Teoria Literária?”
We create strange creatures with a huge head
but no body who speak a rather curious jargon
which they themselves do not always
understand
9
.
Raymond Federman (ibid.:418)
A terceira questão da enquete indagava dos professores sobre os efeitos da
Teoria Literária no ensino universitário. Grande parte das respostas apontava para as
dificuldades enfrentadas pelo ensino da teoria. Os problemas relacionados eram vastos e
iam desde a denúncia da falta de envergadura intelectual dos alunos para tratar de temas
filosóficos ou para aplicar seus conhecimentos teóricos em seu trabalho crítico Iser
(ibid.:426), Markiewicz (ibid.:437), McGann (ibid.:438) e Sullivan (ibid.:446) até a
obscuridade de certas correntes Eagleton (ibid.:416) e Markiewicz (ibid.:437).
Outros, como Kolodny (ibid.:430), replicavam que o problema não era a teoria em si,
mas seu lugar no ensino de pós-graduação. Haveria poucos cursos que reservassem
espaço para uma introdução sistemática e abrangente da multiplicidade de correntes,
escolas, teorias e debates. Marino (ibid.:436) acrescentava ainda que faltariam cursos de
história das idéias sobre Literatura, de Retórica, de Poética etc.
Através das respostas, pode-se também observar como cada uma das quatro
concepções da disciplina anteriormente descritas e as funções a elas atribuídas é
criticada sob a perspectiva de um posicionamento diverso, o que parece revelar que tais
noções de teoria não são complementares, mas mutuamente excludentes.
Da posição (i), muito genérica, depreende-se o seguinte problema: seus
defensores acreditam que o professor de Literatura pratica teoria, mesmo que não seja
ou não se considere um teórico pois haveria, segundo Kolodny (ibid.:430), uma
9
“Criamos estranhas criaturas com uma enorme cabeça mas sem corpo, que falam um jargão
18
teoria que subjaz a todo discurso sobre a Literatura , o que implica, em tais casos, a
ausência de um ensino sistemático e coerente (cf. Lodge, ibid.:435). A posição teórica
que não se percebe como tal é naturalizada e acaba não sendo ensinada como “uma”
teoria. É a partir desta crítica que se aponta para a necessidade de se organizar a
disciplina, o que poderia ser feito começando-se por um estudo histórico da mesma (cf.
Krieger, ibid.:433), pela exploração das estruturas conceituais que resultaram na
multiplicidade concreta de práticas historicamente desenvolvidas e pelo conseqüente
questionamento dos interesses ideológicos que fundam suas práticas (cf. Watkins,
ibid.:449).
Marino (ibid.:436) lembra, contudo, que, como rareiam os trabalhos de grande
fôlego, como os de René Wellek, há uma falta de obras de referências, o que tornaria o
ensino da teoria fragmentado e incompleto, razão por que certamente não seria mais
possível se falar em um curso completo de Teoria Literária. Neste contexto, Leo Braudy
(ibid.:415) defende a necessidade de se avaliar, efetivamente, que teorias têm alguma
utilidade. Assim, como acontece em outras áreas, poder-se-iam estabelecer as teorias
sobre quais todos deveriam ter algum tipo de conhecimento, ficando as demais restritas
aos especialistas naquele tópico específico.
Apesar da grande quantidade de conhecimentos e da crescente multiplicidade de
práticas críticas, a Teoria Literária raramente se pergunta pelos fatores sociais e
culturais que a conduziram a esse estado. Com uma bibliografia muito compartimentada
e em constante expansão, o estudante costuma se sentir perdido, sem saber como os
temas e as abordagens chegaram a se tornar pontos relevantes. As idéias são descartadas
tão logo começam a ser disseminadas e não é possível coordenar ou redirecionar o que
sequer foi compreendido num primeiro momento.
A teoria deveria então encarar a hipótese de que a multiplicidade de práticas
críticas não resulta da ausência de modelos metodológicos organizados aliás
existentes em um número suficiente para incrementar a confusão , mas do
desenvolvimento histórico dos Estudos Literários na universidade e da posição anômala
dos seus cultores na sociedade contemporânea, incapazes de criticar tais modelos.
Nenhuma teoria pode seguir adiante sem ser também histórica, completa Watkins
(ibid.:450).
curiosíssimo que nem sempre elas próprias entendem” [tradução minha].
19
A posição (ii) dá margem à censura de que se exige constantemente do aluno, no
ensino de correntes de teoria literária, a aplicação de modelos, rebaixando os textos a
meras ilustrações das premissas teóricas, opinião partilhada por Bleich (ibid.:411-413) e
iser (ibid.:425-426). Embora seja essencial para o ensino da pós-graduação, a teoria,
pensa gumbrecht (ibid.:422-423), deve ser dada a partir de uma discussão efetiva que
possibilite aos futuros profissionais e colegas a capacidade de pensar por conta própria.
A essa dificuldade soma-se a resistência em se permitir aos alunos a experiência com
outras correntes, que não as do professor, problema anotado por Bloomfield (ibid.:414),
Borck (ibid.:414), Krieger (ibid.:433) e Iser (ibid.:426). Uma das causas deste
embaraço, entende Kolodny (ibid.:429-431), reside no fato de os departamentos
tenderem a se fechar em torno de apenas um escola ou método.
Ainda sob a perspectiva da crítica a uma concepção de teoria como instância
sistematizadora dos Estudos Literários, Bloomfield (ibid.:413-414), Markiewicz
(ibid.:436-437) e Glowinski (ibid.:419-420) identificam os problemas do trabalho
teórico com a tendência para minimizar o particular, superestimar o geral, enveredar por
raciocínios filosóficos e sucumbir a abstrações, especulações e esquematismos. Sob o
mesmo ponto de vista, Gossman (ibid.:420-422) chega a lamentar que a teoria faça com
que os estudantes rejeitem idéias e percepções interessantes e sugestivas que não podem
ser formuladas com suficiente rigor, ou não podem ser justificadas e validadas em
termos de uma teoria abrangente. Para ele, não se pode trabalhar apenas no escopo de
uma teoria, mas se deve trabalhar também no “escuro”, onde muitas das questões mais
interessantes ocorrem.
A posição (iii) é atacada pelos que entendem que o grande problema da Teoria
Literária é, exatamente, a sua pretensão de ser um fim em si mesma e não uma
ferramenta de pesquisa que permita descobrir coisas opinião de Bleich (ibid.413),
Gossman (ibid.:422), Vance (ibid.:448), Iser (ibid.:426), Lodge (ibid.:435) e Markovic
(ibid.:438). A disciplina não seria um campo auto-suficiente de especulação e de
raciocínio dedutivo, estando por isso obrigada a se justificar em termos de seu uso. O
desprezo pela aplicabilidade, diz Bleich (ibid.:411-413), apenas reforçaria o estereótipo
do trabalho intelectual como sem objetivo e inútil, o que ocorre quando muitas correntes
teóricas, ao encorajarem os aprendizes a questionar, negar ou resistir às afirmativas
empreendidas por outros, acabam sugerindo que pensar é superior e diferente de fazer.
20
Bleich entende que qualquer idéia que surja e termine como estritamente teórica apenas
reduz o valor e a importância da teoria.
Göran Hermeren (ibid.:424) entende que a teoria é discutida isoladamente com
muita freqüência, porque a relação entre as atividades literária, teórica e acadêmica não
é explícita. Isso torna a relevância do trabalho teórico difícil de ser compreendida pelos
alunos. A grande dificuldade deles é exatamente entender as transições entre a teoria e a
interpretação, as poéticas e as descrições de obras concretas, as descrições e a
hermenêutica (cf. Glowinski, ibid.:419-420). Dissociado das outras práticas dos Estudos
Literários, o trabalho teórico arrisca-se a degenerar em meras palavras e criar uma teia
de abstrações que dizem respeito apenas ao próprio teórico, o que afasta o estudo da
Literatura de outras dimensões da cultura. E o que é pior, diz Norman Holland (ibid.:
424-425), torna a teoria insensível ao desprezo que lhe vota o senso comum.
Um grande número de acadêmicos Bloomfield (ibid.:413-414), Borck (ibid.:
414), Paulson (ibid.:438-439) e Federman (ibid:417-418) ressalta que os cursos de
Teoria Literária, ainda que importantes, não podem substituir o estudo de obras e o da
História Literária, tampouco se transformar no centro da formação de um estudante de
Literatura. O conhecimento estrito de obras teóricas, obviamente, não forma bons
professores e muito do mau uso que se faz da teoria se explicaria justamente pela falta
de conhecimento que os alunos têm dos textos literários. A solução estaria no melhor
equilíbrio entre a leitura de teoria e a de Literatura. Outros, porém, como Fowler
(ibid.:418-419) tratam o problema de modo mais radical, entendendo que aquilo que se
deve incentivar na pós-graduação é a familiaridade com a Literatura, com o contexto
histórico, com a periodização, não se devendo assim dissipar tempo com a teoria, nociva
porque incentivaria o abandono do estudo diacrônico.
A dicotomia entre texto teórico e texto literário é ironizada por Jacobs
(ibid.:427-428), para quem a suposição de que se possa optar entre Literatura e teoria,
como se fosse uma opção política e polêmica, é absurda. Escolher Literatura em
detrimento da teoria revelaria uma grande ignorância em relação ao seu objeto e ao
próprio empreendimento crítico, tanto quanto estudar Teoria Literária sem considerar a
Literatura seria, digo eu, no mínimo um nonsense. Os Estudos Literários, assim pensa
Ronald Paulson (ibid.:439), deveriam conduzir o estudante à reflexão teórica, mas
depois levá-lo de volta aos textos literários, então iluminados pela teoria.
21
Uma crítica comum à posição (iv) pode ser resumida na postura de Vance
(ibid.:448), que entende ser o problema da Teoria Literária sua natureza híbrida: não é
pura história, nem pura filosofia, nem pura antropologia, nem puro estudo de Literatura,
razão pela qual ela é freqüentemente superficial e assistemática. Krieger (ibid.:432-433)
também concorda que o grande problema da teoria seja exatamente seu fracasso em
determinar seus próprios limites.
Entre as principais causas apontadas como responsáveis pela fluidez das
fronteiras da Teoria Literária está a aceitação franqueada dos modismos, que faz com
que qualquer novidade receba prioridade em relação aos métodos clássicos. Ignora-se,
deste modo, que muitas novidades são repetições ou redescobertas, opinião de Marino
(ibid.:436) e Morton Bloomfield (ibid.:414). Esse tipo de teoria, que desconhece as
reflexões sobre as linguagens anteriores a de, por exemplo, Derrida, bem como sobre a
própria história da disciplina, incentiva tendências narcisistas de crítica e oferece meios
de se evitar os desafios apresentados pela tradição e pela necessidade da prática da
confirmação e da refutação, ponto de vista com que concordam Fowler (ibid.:419) e
Ellis (ibid.:417).
Em muitos casos, a aceitação de uma perspectiva teórica se dá pelo fascínio
produzido pelo esplendor da imprecisão grandiosa, ao invés da clareza exigida de
qualquer pesquisa teórica autêntica, referindo-se Ellis (ibid.) à pretensão de algumas
correntes de que o comentário do texto seja tão importante quanto o próprio, a ponto de
poder substituí-lo, ponto de vista também de Alvin Sullivan (ibid.:446). A dependência
existencial-temporal do último em relação ao primeiro isto é, do comentário em
relação ao texto não é apenas uma questão de lógica elementar, enfatiza Steiner
(ibid.:445), mas também de percepção moral.
1.2 - SISTEMATIZANDO O PROBLEMA
Uma análise preliminar das respostas à enquete da New Literary History pode
conduzir a uma primeira hipótese de trabalho: “Teoria da Literatura” não é uma noção
auto-evidente e muitas das discussões em torno do tema são prejudicadas pela ausência
de um acordo conceitual prévio. As compreensões muito diversificadas a respeito da
natureza, dos objetivos e das funções do trabalho teórico produzem diferenciados
22
procedimentos de produção, de divulgação e de ensino da Teoria Literária. Se, por um
lado, a multiplicidade de caminhos de abordagem da Literatura aponta, supostamente,
para a pujança e complexidade da obra literária, por outro lado, essa pletora de
possibilidades aparentemente equivalentes em suas irredutíveis especificidades conduz
os Estudos Literários a uma situação incômoda para uma disciplina institucionalizada.
Seria efetivamente uma qualidade poder se responder a uma pergunta como o que é ser
um estudioso de Literatura? de infinita maneiras, ou isso apenas revelaria o quão
pouco especializada vem se tornando essa área de estudos?
Não creio que estudiosos atuantes nesta área possam ignorar a relevância dessa
questão. Por esta razão, sempre entendi que, qualquer que fosse o caminho tomado por
meu trabalho, eu deveria manter esta pergunta em meu horizonte irrespondível, mas
de constante presença para não me permitir continuar desenvolvendo uma atividade
sem ter alguma consciência objetiva de suas finalidades. Não estou pensando em
teleologias extremas, mas apenas tentando entender como minha prática, o estudo da
Literatura, responde à minha condição humana, sobretudo, como um ser político.
É claro que reconheço a validade de respostas “afetivas” a essa questão, como
todas aquelas que entendem que nossa condição de estudiosos de Literatura já se
justificaria pelo simples fato (aliás, nada simples) de estarmos atuando como agentes de
conservação do patrimônio constituído por algumas das mais radicais e maravilhosas
aventuras do ser humano: as obras de arte literária. A melhor forma de demonstrar
gratidão a todos aqueles que permitiram que essas obras chegassem compreensíveis até
nós seria atuar também como preservadores e transmissores deste legado. Esta seria, por
si só, uma missão tão nobre quanto quixotesca: atuar como bastião de um patrimônio
cultural evanescente. Mas não é claro para mim como minha presença na Academia
contribui, efetivamente, para essa causa. A proliferação desenfreada de discursos sobre
a obra literária, a diafonia das correntes de pensamento, a exuberância das abordagens
inter, trans e meta disciplinares parecem estar muito mais se utilizando da Literatura
para falarem de outras coisas em geral, delas próprias do que propriamente
tratando da Literatura, de seus problemas e de suas qualidades.
O que poderia ser entendida como apenas uma dúvida existencial deve ser
também considerada em sua dimensão política: o que significa ser subsidiado ainda
que mal pelo estado para estudar Literatura, se transformar num especialista em
23
Literatura e depois atuar como formador de outros especialistas? Mesmo reconhecendo
não reunir as condições necessárias para fazer desta questão o problema teórico a ser
enfrentado neste trabalho, devo admitir que prosseguir falando profissionalmente de
Literatura, sem um esforço prévio de compreender essa função no que ela significa e
pode significar para meu tempo e para a sociedade em que vivo, vem se transformando
num hábito suspeito, se não fraudulento, de apenas encher de mais confusões as já
abarrotadas prateleiras dos Estudos Literários.
Tendo admitido a validade e a pertinência da pergunta “que é ser um estudioso
de Literatura?”, o próximo passo será tentar entender em que um estudioso da
Literatura se diferenciaria do leitor comum. Nossa condição de especialistas
legitimados que somos por nossa posição institucional deve implicar, suponho, o
domínio de um discurso sobre a obra literária qualitativamente diverso daquele dos
demais leitores não-especializados.
Aceito aqui como válida qualquer advertência no sentido de se negar a
pertinência de se pensar o discurso do especialista como qualitativamente superior aos
demais discursos sobre Literatura. No entanto, se aceitamos a equivalência entre eles,
deveríamos imediatamente procurar, nos cadernos de classificados, um novo ofício.
Para podermos continuar a fazer o que fazemos, precisamos ao menos acreditar, em
hipótese, que é possível um discurso e um saber sobre a Literatura dados por um
conjunto de práticas desenvolvidas no ambiente da universidade diferenciados, em
qualidade, da infinidade de discursos e de saberes possíveis sobre qualquer obra
literária.
A partir dessa assertiva hipotética o discurso e o saber do especialista são
qualitativamente diferentes dos discursos e dos saberes que podem ser produzidos sobre
uma obra literária por não-especialistas , uma outra suposição se impõe: onde estaria
o cerne desta diferença? Entre as respostas possíveis, creio que poderia situar-se no
esforço de observar a obra:
(i) não apenas naquilo que significa para mim, leitor, mas naquilo que
significa e pode significar para o conjunto dos homens;
(ii) como um documento histórico, um retrato privilegiado de uma época;
(iii) em suas similaridades com outras obras, chegando-se assim a algum tipo
de visão sistemática de fenômenos aparentemente sempre tão singulares;
24
(iv) em suas relações, diacrônicas ou sincrônicas, com o conjunto das demais
atividades humanas;
(v) como singularidade irredutível e absoluta, como algo cuja existência é
sempre um “existir para alguém”;
(vi) como artesanato textual, fruto de técnicas de produção que podem ser
catalogadas e reutilizadas para a produção de outras obras.
Estas são respostas justas e possíveis, como ainda seriam possíveis e justas
muitas outras. As seis possibilidades arroladas correspondem, efetivamente, a
realizações dos Estudos Literários ao longo da história. Cada uma delas se funda em
algum tipo de pressuposto sobre a Literatura: a obra como documento, como linguagem,
como pensamento, como objeto que se oferece aos sentidos etc. Cada uma dessas
tentativas recorta, de um mesmo campo de observação, a linguagem verbal, objetos
formais bastante diversos que vêm sendo denominados, há pelo menos duzentos anos,
com maior ou menor imprecisão, Literatura.
Chegar-se-ia assim, aparentemente, a uma solução para a questão inicial
proposta: o papel do especialista seria o de construir um discurso sobre obras literárias
fundamentado em algum pressuposto do que vem a ser a Literatura. Tal conclusão
poderia mesmo ser demonstrada, sem maiores dificuldades, de modo empírico. Bastaria
uma visada histórica para perceber que os objetos que chamamos hoje literários têm se
prestado a compreensões distintas e, por vezes, quase contraditórias, sem nenhum
prejuízo perceptível do fenômeno literário, que sobrevive e resiste para além dos
tumultuosos pensares de seus admiradores e estudiosos.
Minha segunda pergunta o que diferencia o discurso do especialista do
discurso do não-especialista? persiste, porém, sem resposta. Uma outra visada, agora
empírica, poderia nos mostrar que, num mesmo momento histórico, como o nosso,
discursos supostamente fundamentados sobre a Literatura parecem se propagar em
progressão geométrica. Se nos submetermos ao que foi postulado no parágrafo anterior
(“o papel do especialista seria o de construir um discurso sobre a Literatura
fundamentado em algum pressuposto do que vem a ser a Literatura”), não acabaríamos
obrigados a sustentar que qualquer discurso fundamentando em qualquer premissa é
igualmente legítimo? E tal concepção não deveria também aceitar discursos geralmente
tomados como não-especializados, como o do diletante que fundamenta seu discurso e
25
seu saber sobre a obra literária em, por exemplo, seu gosto individual? Não
terminaríamos igualando democraticamente, é bem verdade uma teoria do
romance ou um tratado de versificação a declarações tão peremptórias quanto
incontestáveis do tipo “gosto porque gosto”?
Para não acabar por se reconhecer que o resultado do estudo profissional da
Literatura é idêntico ao das muito mais agradáveis horas de leitura e de conversa
opiniática, deve-se admitir que a exigência simples de um discurso sobre a obra literária
fundamentado em qualquer pressuposto não é suficiente para que possamos entender o
que diferencia o saber do especialista do saber do não-especialista. Uma possível saída
estaria em admitir que devemos ser capazes de empreender uma crítica desses
fundamentos (e pseudofundamentos) dos discursos sobre a obra literária. Mas tal
empreendimento é possível na condições de pensamento do mundo atual?
O pensamento relativista, com a radicalidade que grassa hoje no meio dos
Estudos Literários, quase nos faz esquecer que estamos obrigados, em nossa existência,
a fazer escolhas e juízos. Sem algumas presunções temerárias, sem algumas certezas
operacionais, sem as pequenas decisões “autoritárias” do cotidiano, não somos sequer
capazes de atravessar uma rua. Em outras palavras, o relativismo, levado ao extremo,
paralisaria o homem numa sucessão interminável de aporias enquanto se persegue a
utópica igualdade na diferença, o provável ideal de justiça de nossos dias.
Não estou assumindo aqui uma posição pragmática, mas indicando que tomar o
relativismo como fundamento último tem autorizado comportamentos pragmáticos
diversos, muitos deles pouquíssimo afinados com as boas intenções democráticas dos
relativistas. O mundo não pára porque alguns homens têm dúvidas sobre a verdade
última das coisas e dos seres.
Os desafios de uma epistemologia relativista não podem ser tomados como
definitivamente aporéticos. A filosofia kantiana, para ficar num único e bastante
conhecido exemplo, com seu relativismo gnoseológico, mostra que a relatividade de
nosso conhecimento tudo o que conhecemos, conhecemos em função de nossa razão
pode ser, ao mesmo tempo, também a promessa e um projeto de universalidade;
afinal, todos os homens são racionais. Como não estamos dispostos a abandonar as
importantes e não poucas conquistas que uma consciência relativista tem proporcionado
ao homem, nem tampouco abrir mão de nossa capacidade crítica a potência de
26
questionar os limites e a validade de nossos pensamentos e ações , talvez devêssemos
nos dedicar seriamente a formular novos modos de pensamento que nos permitam um
contraponto crítico, de onde se possa avaliar, por exemplo, em nome de que tipo de
democracia ou em nome de que idéia de arte estão sendo proferidos discursos sobre a
obra literária. Se não formos capazes desta reflexão, continuaremos a ver, à revelia de
seus defensores, o relativismo servindo de combustível ideológico para atitudes,
comportamentos e discursos estranhos às pretensões igualitárias de suas premissas.
Entro agora no segundo questionamento derivado de minha pergunta inicial
sobre o significado de ser um estudioso da Literatura: num contexto de relativismo
cultural, quais modelos de Estudos Literários legitimamente fundamentados são
possíveis? Acredito e continuo assim no terreno das hipóteses, pois não tenho como
“provar” a superioridade desta possibilidade que a resposta a essa pergunta passa
necessariamente pelo esforço de se reelaborar um estudo metódico e sistemático da
Literatura. Para tanto, antes de mais nada, seria necessário superar a aversão, no
ambiente dos Estudos Literários, ao simples proferimento da palavra “teoria”. A
desconfiança, por parte de estudantes e de professores, em relação ao trabalho teórico é,
em parte, justificável. A forma como ele vem sendo utilizado tem se revelado por vezes
inócua, outras vezes iníqua. Na imagem precisa de Gustavo Bernardo,
A teoria se torna árida, seca, burocrática, somente quando pára de pensar
sobre si mesma, acreditando-se acima da crítica e da reflexão e se sobrepondo
totalitariamente ao método e à prática. Quando se coloca a teoria na frente do
método, ela fica se parecendo com uma chave de fenda que não encontra, na
dimensão do real, a fenda que lhe cabe, e então arranha o real até forjar a
fenda e torcer o fenômeno para onde a teoria dizia a priori que ele ia.
(Bernardo, 1999:161; grifo meu).
Em conseqüência do mau uso do trabalho teórico, a teoria vem sendo
compreendida apenas como uma tentativa fracassada de transformar o estudo da
Literatura em uma ciência nos moldes positivistas do século XIX.
O que normalmente chamamos Teoria da Literatura, com T e L maiúsculos, é,
de fato, uma realização histórica no âmbito dos Estudos Literários no século XX, que se
concretizou numa pletora de correntes cujos pressupostos são tão variados, concorrentes
e contraditórios entre si que somente com um supremo esforço de generalização podem
ser reunidas em um mesmo rótulo. Nesse sentido, a antipatia pela teoria se justifica: seu
alastramento como “abordagem” hegemônica trouxe, aos Estudos Literários, muito mais
confusão e contradições do que conhecimento e soluções para os problemas da área.
27
Uma das metas deste trabalho é, em primeiro lugar, mostrar que o que parece ter
morrido no século passado foi um determinado projeto de teoria, não a necessidade e a
pertinência do estudo metódico e sistemático da Literatura. Além disso, creio que é
estratégico demonstrar que nenhuma Teoria da Literatura pode ser tomada como
substituta ideal de todas as possíveis abordagens do objeto literário, isto é, não pode ser
considerada “uma espécie de enciclopédia do saber sobre a Literatura, que incorpora,
como meros capítulos seus, todas as demais disciplinas historicamente discerníveis
nesse setor” (Souza, 1987:102). A reflexão teórica, assim, seria uma faceta do
movimento de compreensão da Literatura, juntamente com as abordagens
interpretativas, analíticas, históricas, judicativas e prescritivas, que constituem o
conjunto das atitudes possíveis ao menos até este momento diante de objetos
literários.
Para que a teoria assuma o papel que lhe cabe no estudo especializado da
Literatura, proponho a observação de quatro princípios orientadores:
(i) O estudo da Literatura, para ser sistemático e metódico, não deve precisar
reproduzir fielmente métodos das ciências empíricas modernas ou repetir os caminhos
trilhados pelos Estudos Literários nos séculos XIX e XX, que se serviram de
metodologias importadas de outras ciências humanas e sociais, como a Antropologia, a
Sociologia, a Lingüística, a Psicanálise e a História.
(ii) A historicidade da experiência humana não pode redundar, necessariamente,
em que todo e qualquer sistema teórico esteja fadado a se realizar como absolutização
de concepções individuais ou históricas. Se o plano da experiência se revela aberto e
histórico, a teoria deverá ser aberta, para a contínua renovação de seus pressupostos
sem que isso signifique formular uma teoria para cada obra literária particular ou
abandonar princípios teóricos a cada problema que o dinamismo e a diversidade dos
processos criativos da arte venha a apresentar , e histórica por ser concebida como
uma construção de pensamento que se dá em um tempo e espaço definidos , sem ser
historicista, isto é, sem se restringir a concepções causais sobre a obra de arte.
(iii) O estudo especializado da Literatura precisa estar empenhado no
estabelecimento, aperfeiçoamento e conservação de uma linguagem conceitual
universal, com o objetivo de tornar os trabalhos teóricos inteligíveis entre si e passíveis
de serem comunicados.
28
(iv) Uma Teoria da Literatura precisa realizar, como uma de suas preocupações
axiais, uma constante reflexão sobre o papel da Literatura na existência do homem, o
que implica possuir uma dimensão filosófica cujos postulados sejam ética, lógica e
epistemologicamente coerentes.
Atender os quatro princípios orientadores ora propostos exigirá, ao longo da
reflexão que nos propomos, uma talvez utópica e certamente ambiciosa aspiração de
compromisso com um novo caminho para as ciências humanas, fundado em novos
ideais de objetividade. Acredito que um esforço em se realizar uma reflexão rigorosa
possa permitir pensar o estudo da Literatura, em condições que superem o relativismo
permissivo que tem marcado o campo de Estudos Literários nos últimos anos. É
possível imaginar que o estudo especializado da Literatura possa ser legitimado, com
suas limitações, por ser um modo de compreensão da função do estudioso da Literatura
solidário com um determinado modo de compreensão da arte, um determinado modo de
compreender o conhecimento humano, um determinado modo de compreender o
homem, enfim.
1.3 – OS ESTUDOS LITERÁRIOS ANTES DA TEORIA DA LITERATURA
Até a investigação do fenômeno literário ambicionar, a partir do século XIX, um
caráter científico, três disciplinas de cunho humanístico disputaram este campo de
estudos: a Retórica, a Poética e a Estética. As duas primeiras têm suas origens na
Antigüidade e permaneceram dominantes até pelo menos o fim do século XVIII. A
Estética só foi conceitualmente formulada como um campo autônomo em meados do
século XVIII, com a obra de Alexander Baumgarten. Originadas numa tradição
filosófica estranha à especialização das ciências, Retórica, Poética e Estética não são
facilmente separadas entre si. Roberto Acízelo de Souza aponta, contudo, para algumas
especificidades inerentes a cada disciplina, e demonstra como elas ora se relacionaram
de modo complementar e sem hierarquias, ora com oscilações de proeminência que
passaram “da Retórica à Poética e desta à Estética” (ibid.:30).
Fazendo inicialmente uma distinção entre Retórica e Poética, diz o ensaísta:
(...) a primeira se concentra em questões predominantemente técnicas acerca
da construção do discurso, enquanto a segunda é animada por um empenho
especulativo que não se confina somente ao âmbito dos recursos de seleção e
arranjo verbal, interessando-se antes pelos problemas correlativos da origem,
29
natureza e função da arte literária. Outras vezes, porém, a Poética sacrifica o
especulativo ao pragmático e normativo (o que se dá sobretudo na Baixa
Idade Média e no Classicismo moderno), com o que a preocupação
absorvente com a técnica da composição a aproxima bastante do âmbito
retórico (ibid.:49).
As origens da Retórica podem ser relacionadas a um fato político-econômico,
pois a sistematização e o ensino de técnicas oratórias atendiam a importância que a
eloqüência assumia em sociedades em que tribunais e assembléias eram os centros de
todas as decisões. Mas a fixação e o desenvolvimento da disciplina estão intimamente
relacionados à Sofística, que, muito mais do que uma técnica de manipulação da
linguagem, era um novo modo de reflexão sobre ela, e, de certo modo, representou a
fundamentação filosófica da Retórica.
Do ponto de vista da história tradicional da Filosofia, a Sofística foi relegada,
durante séculos, a um papel secundário, que não condiz, por exemplo, com a atenção
reservada a ela pelos próprios Sócrates, Platão e Aristóteles, os quais dedicaram grande
parte de seu pensamento em dialogar com sofistas. Acízelo lembra, por exemplo, que,
no tratado aristotélico de retórica, há diversos pontos convergentes com o pensamento
de sofistas: a potência catártica do discurso, o alcance filosófico da poesia, o poder da
mímesis etc. Mesmo Platão, deixando-se de lado a perspectiva moral/pedagógica de
suas críticas à poesia, não negava o imenso poder do lógos um pressuposto caro à
Sofística.
Foi justamente um sofista, Górgias, que acrescentou à codificação dos recursos
de oratória judiciária e política o gênero epidíctico. Mas, já em Aristóteles, observa-se
uma distinção ele escreveu um tratado destinado à Retórica e outro à Poética que
se faria presente em Horácio, Ovídio e ao longo do mundo antigo, até que com Tácito,
quando a oratória política e judiciária tornaram-se proibidas, reunir-se-iam as duas
disciplinas sob o nome de Eloqüência.
A Retórica adaptou-se ao Cristianismo e tornou-se, na era medieval, uma das
disciplinas do Trivium. Nesta altura, ela se encontrava unificada com a Poética, numa
disciplina que reunia arte oratória, correspondência administrativa e criação poética, até
que, em fins do século XV, ocorreu a separação entre Primeira Retórica (ou Retórica
geral) e Segunda Retórica (ou Retórica poética). A Idade Média, contudo, marcaria o
início do declínio da Retórica. Com o passar do tempo, a perda da finalidade de
instrumentalizar oradores fez com que ela passasse a se ocupar exclusivamente da
30
palavra escrita. De disciplina dominante do Trivium, ela foi perdendo sua preeminência,
primeiro para a Gramática e depois para a Dialética. No Renascimento, quando a
redescoberta da Poética, de Aristóteles, deu nova vida aos estudos da arte literária, a
Retórica encontraria espaço apenas como disciplina escolar do ensino jesuítico.
Sob a capa da Eloqüência, a Retórica havia absorvido toda a cultura da palavra e
estava diretamente relacionada à idéia de Literatura como um “bem escrever”. Seu
esvaziamento está relacionado, nos termos de Acízelo, a um movimento que começa no
século XVIII e se consuma no XIX: em primeiro lugar, a nova ordem epistemológica
que deu lugar a uma nova forma de entendimento da linguagem, sob “uma perspectiva
racionalista (Gramática de Port-Royal), referencial (empirismo) ou sensualista
(Estética)” (ibid.:51); depois, a ascensão da ideologia romântica e sua incompatibilidade
com o caráter preceptístico assumido pelas duas disciplinas humanísticas; e, por fim, a
submissão das Humanidades aos ideais cientificistas, e a ascensão da História como
disciplina-chave das novas Ciências Humanas.
Em suas últimas versões, a Retórica, então já uma decadente e ridicularizada
disciplina, resumia-se a um conjunto de classificações. Seu declínio da condição de
metalinguagem predominante foi seguido, no plano teórico, por um vazio que seria
preenchido pelo impressionismo crítico. Escritores, críticos, historiadores e filósofos,
alternando biografismo, sociologismo e psicologismo, dominaram o ambiente dos
Estudos Literários.
Por permitir partir do termo classificatório para o exemplo mas não o inverso,
do fato de língua ao nome da figura, o que caracterizaria um procedimento indutivo —,
a Retórica se aproximaria, mais do que qualquer outra investigação da Literatura, de
uma ciência empírica baseada na construção de uma teoria hipotético-dedutiva
(ibid.:32), conforme pode ser observado nas etapas caracterizadas por Acízelo:
(i) Observação dos enunciados: por exemplo, no enunciado “aurora de róseos
dedos” detectar-se-ia um fato de linguagem: a relação analógica entre “róseos dedos” e
“alongados e divergentes traços avermelhados” permitindo a substituição do termo
próprio pelo figurado.
(ii) Fixação de proposições singulares (descrições/nomeações): descrição do
fato detectado. No caso, a relação de analogia entre “róseos dedos” e “alongados e
divergentes traços avermelhados”.
31
(iii) Generalizações: a partir da observação de outros fatos semelhantes,
estabelecimento de uma proposição geral: ocorre, na linguagem, a transposição, com
base numa relação de semelhança, do nome de uma coisa para outra.
(iv) Classificação das proposições singulares: criação de um conceito (no caso
em questão, o de metáfora) a partir desta generalização.
(v) Construção de uma “teoria de nível baixo
10
: conjugação das proposições,
das classes e dos conceitos, num sistema coerente.
Estabelecida, por fim, uma teoria, ela deverá permitir novas generalizações
conjugadas a suas proposições, promover operações dedutivas que integrem a ela novos
enunciados e tornar-se um instrumento técnico de produção de enunciados por ela
classificáveis conceitualmente.
Outra disciplina clássica, a Poética, tem sua origem em obras fundadoras como
a Poética, de Aristóteles, a Ars poetica, de Horácio, e o Sobre o sublime, de Longino. A
partir do século I a.C., ocorre o já referido sincretismo com a Retórica, com o
predomínio desta sobre aquela no Septennium medieval, apenas os estudos retóricos
se fazem presentes. Será apenas no final do século XV, com a distinção entre Retórica
Geral e Retórica Poética, antes já aqui mencionada, que a Poética, então chamada de
Segunda Retórica, alcançaria o seu auge. Enquanto a Primeira Retórica ficaria
confinada ao ambiente escolar, a Poética emergiria, redescoberta no Renascimento,
como uma disciplina de pesquisa filosófico-técnico-formal que daria origem às artes
poéticas do Classicismo europeu moderno, até ter sua posição hegemônica arrebatada
pela Estética, no século XVIII. Para Roberto Acízelo de Souza, os fatores que causam a
derrocada da Poética teriam sido os mesmos que abalaram a Retórica, já aqui antes
referidos.
Outra disciplina da tradição humanística é a Estética, que se organizou
conceitualmente em 1750, com o trabalho de Alexander Baumgarten. A temática,
contudo, já era trabalhada desde a Antigüidade Clássica: uma abordagem da Literatura
que levasse em consideração o conjunto das demais artes. Correspondia a tentativa de se
estabelecer uma ciência do conhecimento sensível, a partir de uma distinção entre
10
Por “teoria de nível baixo” deve-se entender “(...) um conjunto de proposições/conceitos coerentes
entre si, apto a permitir a dedução de novas generalizações, bem como dotado da capacidade de
funcionar, isto é, dotado de alcance técnico, ainda que incapaz de desvendar a profundidade do próprio
funcionamento” (ibid.:32).
32
“coisas conhecidas” e “coisas percebidas”. A Estética era, portanto, não apenas um
estudo da arte, mas um campo de estudo epistemológico.
Há, na obra de Baumgarten, a tentativa de conceder ao sensível maior
consideração, integrando-o de algum modo às faculdades cognitivas racionais. Ao
colocar a arte “sob a jurisdição de uma ‘gnosiologia inferior’” (ibid.:54), ele reforçou
uma concepção de linguagem como transparência à sensibilidade, impulsionando a
ideologia romântica da criação artística como obra do gênio. Paradoxalmente, as
transformações de que a Estética “é simultaneamente fator e produto” (ibid.:55) são
também as razões de seu rápido declínio, a saber, a escalada da ciência que acabou por
tomar o lugar das especulações filosóficas características da Estética, e os êxitos do
Romantismo e do evolucionismo, que conferiram à História o status de modo
investigativo dominante.
A emergência dos ideais da ciência moderna, no século XVII, afetaria
profundamente os Estudos Literários. O operativismo e o substancialismo que
marcavam os estudos de Literatura de tradição clássica tornar-se-iam progressivamente
desacreditados. Retórica, Poética e Estética, como modelos de conhecimento e como
metalinguagem, ficaram incapazes de atender às novas necessidades epistemológicas e
artísticas. Por um lado, o conhecimento voltado para o artesanal ou para o especulativo
das disciplinas clássicas distanciou-se da intenção de “submeter também as realidades
sociais ao âmbito da Ciência” (ibid.:57). Por outro, a produção artística, inspirada pelos
ideais estéticos do Romantismo, escapava a uma metalinguagem desenvolvida em
função de uma produção eminentemente clássica.
Os novos pressupostos epistemológicos gerariam entendimentos diversos sobre
como abordar a Literatura: como expressão da personalidade do autor, como
representação social ou como documento histórico. Para cada uma delas, se
estabeleceria um modo investigativo próprio: o psicológico-biográfico, o sociológico e
o filológico, todos, porém, submetidos aos fundamentos filosóficos da História.
A crise do código clássico, somado à convicção romântica de ser o gosto pessoal
a instância última do juízo e à utilização dos jornais como instrumentos de divulgação
da Literatura para um público não especializado (cf. ibid.:61), gerariam antes, porém,
um período intermediário, marcado pelo impressionismo crítico, até que, sob a égide da
ciência moderna, a Literatura passará a ser tomada como um objeto a que se aplicarão
33
os métodos científicos das então incipientes Ciências Humanas. Paradoxalmente,
relegando-se uma premissa da cientificidade, o primeiro momento do cientificismo nos
Estudos Literários é marcado por um movimento de desespecialização. Sem um método
de pesquisa que lhe fosse próprio, os estudos da Literatura se caracterizaram pelo
ecletismo e pela tendência culturalista decorrente da adoção de métodos e modelos de
outras disciplinas científicas. Sem estarem ainda consolidados em nenhuma disciplina
científica e sem possuírem nenhum conhecimento especializado, apenas absorveram
quase indiscriminadamente os esforços e modelos teóricos das novas disciplinas
científicas.
A Crítica e a História Literária surgiram como a mediação entre as
especializadas e não-científicas disciplinas clássicas e a não-especializada e não-
científica crítica impressionista. Ao postularem um ideal de cientificidade e, ao mesmo
tempo, de não-especialização, elas se tornaram uma espécie de “estágio (...)
protocientífico da investigação da Literatura” (ibid.:59).
Nas semelhanças entre Crítica e História Literárias, há uma diferença conceitual
fundamental, que diz respeito à preocupação com o valor das obras. Mas o que se
designa, de fato, por Crítica Literária? O primeiro problema que se enfrenta é o fato de
o termo ter usos muito distintos em cada uma das principais línguas européias. São tão
misteriosos os motivos que levaram à expansão do termo “crítica”, quanto os que
levaram a língua inglesa a utilizar a forma criticism em francês, italiano, espanhol,
português e alemão, a forma “criticismo” e seus equivalentes referem-se ao método
epistemológico kantiano ou à limitação do sentido de kritik, em alemão, às resenhas
diárias. Acízelo entende então ser mais razoável dizer que a Crítica Literária não se
constitui como uma disciplina, mas como uma prática comentadora de obras literárias,
cujas orientações têm se transformado bastante ao longo do tempo (ibid.:85-96).
O que pode ser percebido é o maior uso da palavra, junto com “história”, em
referência a obras que se ocupam da “Literatura” a partir de fins do XVIII, em
substituição aos termos Retórica, Poética, Estética, Eloqüência. Embora correspondesse
às intenções de se criar uma “alternativa científica para o conhecimento da Literatura,
em substituição ao complexo humanístico” (ibid.:90) das disciplinas clássicas, e tivesse
chegado a designar uma suposta disciplina dos Estudos Literários, havia muito pouco de
34
“científico” na atividade crítica do século XIX, praticamente imune a qualquer tipo de
rigor metodológico e conceitual. Em geral, a Crítica Literária
(...) tendeu a identificar-se com pura emissão de impressões de leitura,
comentário ligeiro de obras literárias, no máximo servindo-se de minguadas
idéias gerais provenientes de versões ecléticas e banalizadas de certo(s)
sistema(s) de conhecimento sobre a Literatura. Assim, a Crítica Literária
acaba por tornar-se pura publicidade e/ou divulgação jornalística de obras
literárias; é ela que praticamente se confunde com o que veio a chamar-se de
impressionismo crítico (...) (ibid.:91).
Ao longo do século XIX, a crítica vai-se distanciando de se tornar uma atividade
de investigação sistematizada da Literatura e se firmando como uma prática de
publicidade de obras ou de popularização sumária de sistemas científicos, diretamente
relacionada com a sociedade industrial moderna e com o circuito de circulação de
produções culturais.
As tentativas de se conceder à Crítica Literária um espaço disciplinar próprio
nem sempre representam um empenho em repensar a possibilidade da prática em si, mas
apenas, como lembra Roberto Acízelo de Souza, implicam mais em “salvar a palavra do
que a prática crítica” (ibid.:93). Algumas tentativas de resgatá-la acabam sugerindo um
certo sentido etimológico profundo que o termo conteria, e que este sentido original se
teria corrompido, ao longo da história, por práticas críticas que não fariam jus a sua
essência. Não parece possível, contudo, se evidenciar tal sentido original pelos dados
históricos que se apresentam.
Para Roberto Acízelo de Souza, a presença de uma preocupação conceitual, que
se recusasse a se submeter a valores que lhe são estranhos, consciente da necessidade de
se ater a seu aparato instrumental e dos riscos de se contaminar ideologicamente, não
estaria no plano da crítica, mas no da Teoria da Literatura. Para o ensaísta, a palavra
crítica está inseparavelmente ligada, em nossos dias, a julgamento, valor e opinião, não
fazendo sentido pretender que ela seja “um corpo organizado de conhecimentos”
(ibid.:95), justa definição de Teoria da Literatura, ou “a consideração analítica de obras
particulares, em contínua referência a um quadro teórico inicial de base” (ibid.:95),
atividade para cuja designação há a palavra “análise”.
Contemporânea da crítica, a História de Literatura fundamenta-se no
pressuposto da cientificidade da História. A ascensão do historicismo como ponto de
vista epistemológico dominante no XIX tem algumas causas recuperáveis: (i) a
expansão do capitalismo burguês e a exigência de uma reflexão crítica sobre as
35
contradições sociais advindas, (ii) a afirmação do modelo científico físico-matemático
como norteador das ciências humanas e (iii) a ideologia estética romântica e sua
valorização do passado como série de estágios evolutivos da humanidade.
Três eram os principais modelos metodológicos adotados pela História Literária
no século XIX: o biográfico-psicológico, sociológico e o filológico.
A diretriz biográfico-psicológica, da qual Sainte-Beuve foi um dos principais
nomes, baseava-se na premissa romântica de que o gênio é a instância suprema para a
explicação da Literatura. “Neste sentido, a obra literária se definiria, antes de mais nada,
como uma linguagem que se distingue pela pregnância de uma subjetividade” (Roger,
2002:50). O historiador devia, pois, esforçar-se por reconstruir biográfica e
psicologicamente o autor, o processo criador e o conteúdo psíquico da obra. A exigência
da historicidade era respeitada através da concepção de que a “biografia é história do
indivíduo” (Souza, 1987:65).
Para se entender as diretrizes sociológicas da História de Literatura, deve-se
distinguir as Ciências Sociais o conjunto de disciplinas que se formou, no século
XIX, a partir dos trabalhos de Comte e Spencer da preocupação com grupos
humanos, presente desde o nascimento da Filosofia. (Cf. ibid.:70). O influxo da
Sociologia sobre os Estudos Literários pode ser dividido em pelo menos dois grupos:
por um lado, o grupo das posturas assumidas pela História de Literatura, cuja
modalidade de abordagem tendia a reduzir o objeto literário ao interesse sociológico,
centrando suas análises na função social do escritor, nos estudos da significação social
das obras e no entendimento da obra literária como reflexo da sociedade; por outro lado,
a posição que seria assumida, futuramente, por algumas correntes teóricas, modalidades
que partem do princípio de reconhecer a especificidade da Literatura como uma questão
de linguagem e que centrariam sua atenção nos estudos das relações entre formas
literárias e formas sociais, na análise da consubstancialidade entre estrutura de
linguagem e contexto social e na premissa de que a linguagem é uma instituição social e
a Literatura uma forma individual, estética e de inserção no plano do imaginário (Cf.
ibid.:70-77).
A História de Literatura de diretriz filológica teve em Lanson um de seus
expoentes. Mesmo antes do estabelecimento do termo “filologia” com o sentido em que
é empregado hoje, certas abordagens de textos que remontam ao século VI a.C. podem
36
ser entendidas como as primeiras investigações filológicas conhecidas: o
estabelecimento de um texto da Ilíada e da Odisséia a partir de diversas versões e uma
primeira interpretação alegórica dos cantos homéricos (ibid.:78). Já no século III a.C.,
os esforços de constituição e manutenção da Biblioteca de Alexandria fixaram
procedimentos, métodos e técnicas filológicas cuja validade alcança nossos dias.
No período pós-alexandrino e durante a Idade Média, o trabalho filológico se
confunde com a elaboração de antologias de excertos e, em muitos casos, com a
simplificação de textos. No Renascimento, a retomada do interesse pelo período
clássico ativou a necessidade de práticas capazes de reconstituir a legibilidade, física ou
contextual, dos textos antigos. Augusto Wolf pôde, desse modo, em fins do século
XVIII, estabelecer um conceito de Filologia como “Ciência que, partindo do exame de
textos escritos, coadjuvada pela Paleontologia, Arqueologia e Gramática
Comparativista, se propõe fazer a historiografia da língua, da Literatura e/ou da
totalidade da cultura documentada” (ibid.:80). A união com a Gramática
Comparativista, no século XIX, permitiu que a Filologia com seu apego à
objetividade e suas técnicas de pesquisa empírica fosse absorvida pelos Estudos
Literários
11
.
Obviamente, a neutralidade absoluta da Filologia era falaciosa. Barthes
(1970:152), no final dos anos 60, num ataque incisivo àquilo que chamava de “crítica
universitária”, acusava a Filologia de produzir discursos apoiada no “postulado da
analogia”, isto é, de sempre “colocar a obra estudada em relação com alguma coisa
outra, um alhures da Literatura”, seja esta outra coisa uma outra obra, um dado
biográfico etc.
Antes de ter seus princípios questionados de modo intransigente pelas correntes
teóricas do século XX, que postulavam a especificidade e imanência do discurso
literário, a História de Literatura recebeu um alento, com a nova concepção de história
da Escola dos Annales, que propunha substituir a “história dos fatos por uma história
dos problemas e das mentalidades” (Roger, 2002:45). Em relação ao ensino da
Literatura, a perspectiva historicista ainda se faz fortemente presente em nossos dias,
11
Por estas mesmas razões, curiosamente, a Filologia também será acolhida no âmbito da Teoria da
Literatura. A severidade no trato do documento e a metodologia rigorosa de pesquisa, apoiada na crença
sobre sua neutralidade científica, fez a Filologia compatível com os ideais da nova disciplina, tornando-se
uma espécie de preâmbulo operacional do trabalho teórico em si (cf. Souza, id.:82).
37
como pode ser observado, no ensino médio, na importância dada à periodização e aos
estilos de época, e, no ensino superior, às Literaturas nacionais.
1.4 - A ASCENSÃO DA TEORIA DA LITERATURA
O século XX será marcado, no campo dos Estudos Literários, pela ascensão e
hegemonia de um modo de abordagem da obra literária que ficará conhecido por Teoria
da Literatura
12
, surgida com o propósito de ser
(...) a primeira realização verdadeiramente científica no campo dos Estudos
Literários, na medida em que pretende dispor de um objeto claramente
constituído, de um aparato específico de conceitos, de métodos e de técnicas
analíticas, bem como de um sistema de proposições solidárias protocolares de
suas experiências (Souza, 1987:135).
Diretamente ligada às transformações operadas nas Ciências Humanas, em
especial aos novos rumos tomados pela Lingüística estruturalista e pela emergente
Psicanálise, a Teoria foi receptora, e não criadora, de conceitos que seriam decisivos
para um novo modo de compreensão do fenômeno literário, tais como
descontinuidade, estrutura, inconsciente (cf. ibid.:100). Relembre-se ainda que não
apenas as novíssimas tendências tiveram acolhida no seio da Teoria: Retórica, Poética,
por suas perspectivas especializadas e imanentistas, e a Filologia, por seu rigor
metodológico, também harmonizavam-se com os novos modelos de estudo da
Literatura.
Mas seria correto se pensar em Teoria ou em Teorias da Literatura? A dúvida
é bastante pertinente, tendo-se em vista que o campo dito teórico dos Estudos Literários
apresenta-se dividido em perspectivas “fundadas em pressupostos metodológicos não
apenas diferentes, mas francamente antagônicos e muitas vezes inconciliáveis,
mutuamente exclusivos” (ibid.:9). Isso se explicaria, em parte, pela permanência e
contínua repercussão das antigas realizações históricas dos Estudos Literários
Poética, História de Literatura, Crítica, Ciência da Literatura , que jamais perderam
12
Antes que o termo “Teoria da Literatura” dominasse a cena dos Estudos Literários no século XX,
houve tentativas de se conceber a Literatura, ainda sob a perspectiva historicista, como algo que escapa à
compreensão da razão analítica. Por essa orientação, todo o esforço metodológico possível aos Estudos
Literários residia no trabalho preliminar da Filologia. Vossler, Spitzer e Auerbach foram os principais
nomes desta suposta fase intermediária entre a história e a teoria, chamada de Ciência da Literatura.
Também por esse termo, entende-se uma denominação genérica dos estudos sistemáticos da Literatura,
muito comum em língua alemã Literaturwissenschaft (cf. ibid.:96-98).
38
inteiramente sua vigência. Mesmo sob a estrita égide da Teoria da Literatura,
encontramos ainda rótulos que individualizam orientações bastante diversas entre si, o
que geraria uma diversificação e complexidade causadora, dentre outros problemas, de
uma nomenclatura pletórica, como “um labirinto cujo plano parece alheio aos assédios
da razão” (ibid.).
O termo “Teoria da Literatura” está diretamente relacionado à publicação do
livro homônimo de René Wellek e Austin Warren, em 1949, marco histórico de um
novo modo de se propor o estudo do fenômeno literário, desvinculado dos modelos
historicistas do século anterior. Essa nova tendência não se realizou de forma única,
espraiando-se em diretrizes diversas que, no entanto, a despeito de divergências
profundas, apresentam, no entender de Roberto Acízelo, uma afinidade de pressupostos,
tais como a recusa ao historicismo e ao positivismo, a busca de rigor metodológico, o
interesse por uma abordagem intrínseca da obra literária e a compreensão da Literatura
como sendo, essencialmente, linguagem.
Há, para Acízelo, quatro centros de interesse fundamentais da Teoria da
Literatura:
(i) o texto: este seria o foco de interesse mais característico da Teoria da
Literatura. De certo modo, porém, a Retórica e algumas orientações filológicas da
História de Literatura e da Crítica Literária também têm a matéria textual como seu foco
de atenção. A diferença é que, naquela disciplina clássica, o texto era um dado
substantivo a ser conhecido analiticamente e classificado através de uma pesquisa
empírica, o que a transformou tanto num sistema hipotético-dedutivo quanto em uma
tecnologia de produção de textos. Na Filologia, o texto é um documento, um dado real,
concreto e particular, nunca interrogado por seus princípios abstratos de composição. Já
na Teoria da Literatura o texto é “um tecido verbal dotado de propriedades artísticas ou
ficcionais” (ibid.:115). A partir desse pressuposto comum, as correntes textualistas da
Teoria da Literatura diferenciaram-se em dois enfoques: uma pesquisa indutiva
orientada em função das especificidades de cada obra literária em particular, num
“contínuo confronto das generalizações com os fatos observáveis nas obras submetidas
à descrição” (ibid.:116), caso da Estilística e do New Criticism; uma pesquisa que
buscava a definição formal das propriedades abstratas da obra literária, concebendo
cada texto apenas como uma atualização destas, caracterizada pelo método dedutivo e
39
baseada na “coerência interna do sistema de suas proposições” (ibid.:116), caso do
Formalismo Russo e do Estruturalismo, por exemplo.
(ii) o psiquismo: Como as preocupações com questões relativas ao psiquismo
remontam aos mais longínquos períodos da humanidade, Acízelo propõe que se atente
para a necessidade de se distinguir entre uma região da realidade e determinado objeto
de pesquisa:
(...) ocupar-se com o psiquismo não significa encerrar-se no universo teórico
da Psicologia, do mesmo modo que a investigação da socialidade não
mobiliza automaticamente o aparato conceitual da sociologia. (ibid.: 117)
Do mesmo modo que a História de Literatura e a Crítica Literária haviam sido
receptivas à nascente Psicologia, e as disciplinas clássicas às questões genéricas do
psiquismo, a Teoria da Literatura foi receptiva à Psicanálise, seus conceitos de
inconsciente e seus sistemas simbólicos, que consideravam o elemento psíquico não
como um conteúdo com o qual a linguagem se relacione, mas “como o conjunto das
articulações inconscientes dos sistemas significantes”, que “constitui a própria instância
estrutural da linguagem” (ibid.:121).
(iii) a socialidade: Embora também seja um foco de interesse muito antigo no
campo dos Estudos Literários, será apenas no século XIX, com o influxo da Sociologia,
que se terá um estudo sistematizado dos elementos sociais relacionado à Literatura. O
modelo sociológico, contudo, não teve boa receptividade pela Teoria da Literatura, em
primeiro lugar porque a nova disciplina rejeitava a tendência de buscar em fatores
extrínsecos as considerações sobre a obra literária, e depois porque a Sociologia não se
dedicava a entender a linguagem literária considerada em si mesma. Porém, pelos
mesmos motivos que a Teoria da Literatura recusou a Psicologia mas acolheu a
Psicanálise, à recusa da Sociologia correspondeu a aceitação da Antropologia e de seus
sistemas simbólicos
(iv) os aspectos filosóficos: Roberto Acízelo entende a preocupação filosófica
na Teoria da Literatura, em especial representadas nas diretrizes fenomenológicas e
existencialistas, como os esforços de compreensão dos problemas ontológicos,
epistemológicos, éticos e lógicos da Literatura.
Cada foco de atenção texto, psiquismo, socialidade e aspectos filosóficos
foi convertido em um objeto distinto o texto literário, o psiquismo na
Literatura, a socialidade da Literatura, os aspectos filosóficos da Literatura
40
conforme os métodos e os propósitos particulares das correntes teóricas que
deles se ocuparam (cf. Souza, id.:113). Roberto Acízelo de Souza aponta dessa
forma a profunda afinidade existente entre os modelos teóricos de análise e as
concepções históricas acerca do objeto. Entende que a tendência de fazer com que,
por Teoria da Literatura, se entenda o somatório de todas as realizações históricas
dos Estudos Literários apagaria essa distinção fundamental entre campo de
observação e objeto (ibid.:102). Do fato de Retórica, Poética, História de
Literatura, Crítica Literária e Teoria da Literatura trabalharem num mesmo campo
de observação não decorre que tenham o mesmo objeto, tendo em vista que tal
objeto não é um fato que se ofereça naturalmente à observação, mas resultado de
uma construção afinada com pressupostos e métodos específicos a cada uma dessas
disciplinas.
1.5 - OS MANUAIS DE TEORIA DA LITERATURA
Uma característica dos Estudos Literários é a de se constituir como um
campo de conhecimento em que são muitas as “pertinências observáveis”,
enquanto é limitada a nossa capacidade de generalização (Souza, 1999:1). Foi
absolutamente inevitável, portanto, delimitar a pesquisa a um objeto factível que
funcionasse como amostragem válida do problema maior com o qual se pretendia
lidar. A proposta deste trabalho foi restringir seu objeto teórico geral (os Estudos
Literários) a um objeto teórico específico (o papel da reflexão teórica dentro dos
Estudos Literários contemporâneos) e, por fim, a um conjunto de objetos teóricos
empíricos os manuais de Teoria da Literatura publicados em língua portuguesa.
Por objeto teórico geral, os Estudos Literários, considero a totalidade dos
trabalhos investigativos sobre Literatura, que talvez possam ser categorizados
aproveitando-se o esquema de Antônio Soares Amora (2004:12) em seu livro
Introdução à Teoria da Literatura (1967). Procurando definir o papel da Teoria da
Literatura dentro do campo dos Estudos Literários, ele propunha uma distinção
profícua entre quatro disciplinas que se ocupam dos fatos literários: a Análise, a
Crítica, a Historiografia e a Teoria Literária. Cada uma dessas disciplinas possuiria
41
métodos, objetos e objetivos específicos e representaria tipos de comportamentos
possíveis diante da Literatura:
(i) o analítico, interessado na decomposição da obra em seus elementos
menores;
(ii) o crítico, interessado em julgar a obra, a partir de critérios artísticos,
morais ou intelectuais;
(iii) o historicista, interessado em situar a obra espaço-temporalmente;
(iv) o teórico, interessado em extrair da obra aquilo que é essencial nos
fenômenos literários.
Haveria ainda, segundo o próprio Amora, um outro comportamento
possível, o do leitor, interessado em “compreender” a obra literária. Seria
temerário afirmar que intenções de compreender a obra estão restritas ao interesse
do leitor comum e não dizem respeito às demais abordagens referidas, mas se
poderia aceitar a idéia de um quinto procedimento, o interpretativo, interessado
no(s) sentido(s) e no(s) significado(s), mas que não estaria resumido às intenções
do leitor leigo. Por fim, se fosse levada em consideração a história dos Estudos
Literários, não se poderia desconsiderar ainda uma sexta perspectiva: o
comportamento prescritivo, que visava a orientar a criação artística (por exemplo,
a Arte Poética, de Horácio, a Art Poétique, de Boileau e, em certa medida, e
naturalmente com outros objetivos e critérios, grande parte da Crítica Literária
marxista mais ortodoxa).
Este esforço de classificação interessa a este projeto por chamar a atenção
para como, desde as primeiras tentativas conhecidas de se tomar a Literatura como
objeto de problematização, os Estudos Literários vêm demonstrando tendência a se
concentrar em determinados aspectos da obra literária e a relegar a um segundo
plano os demais. Esses comportamentos desdobram-se em múltiplas possibilidades
de discursos sobre a Literatura, conforme o aspecto que receberá atenção do
estudioso os elementos que envolvem a criação, ou a recepção, ou os traços
miméticos/representacionais, ou a materialidade textual etc.
Tais focos vêm sendo trabalhados, ao longo da história, através de
procedimentos descritivos, elucidativos, valorativos, normativos, bem como têm
recebido o tratamento de metodologias provenientes de outros campos do saber,
42
tais como Filosofia, História, Antropologia, Sociologia etc. A combinação entre os
comportamentos possíveis diante da obra e os aspectos a serem considerados,
somada à proliferação de procedimentos importados de outras áreas do saber, faz
com que o termo “Estudos Literários” seja pouco mais do que uma designação
genérica que abarca uma diversidade de práticas com objetivos e resultados
radicalmente diversos entre si. Nas condições em que este trabalho foi elaborado
reconhecidamente sua limitação temporal , a complexidade deste objeto geral
obriga a uma segunda delimitação e ao estabelecimento de um objeto teórico
específico.
Dentre os variados procedimentos abarcados pela noção de Estudos
Literários, a reflexão teórica será o objeto teórico específico desta pesquisa. Tomo
como uma petição de princípio a hipótese de que o enfraquecimento das condições
de existência desta instância de pensamento e de investigação os problemas de
indefinição de seus objetivos, funções, métodos e fundamentos, comentados
anteriormente está diretamente ligado à crise dos estudos de Literatura.
Entretanto, a diversidade de abordagens que têm partilhado historicamente a
problemática “disciplina” Teoria da Literatura, faz com que o enfrentamento de tal
objeto esteja ainda além das condições de realização desta pesquisa, o que implica
a necessidade de uma terceira delimitação, a dos objetos empíricos.
Esta última delimitação se faz através de dois critérios: em primeiro lugar,
decidi limitar o âmbito de minha pesquisa aos problemas da reflexão teórica no
Brasil. Novamente, as condições de produção deste trabalho, notadamente as
limitações temporais a que os doutorandos estão submetidos no Brasil a saber, a
obrigação de concluir a pesquisa em exatos quatro anos , é a principal
responsável pela opção de restringir a investigação às obras lançadas em nosso
país. Pode-se, contudo, justificar metodologicamente tal opção, a partir de dois
argumentos:
(i) A facilidade de acesso propiciada pelos atuais meios de comunicação faz
com que não haja, no que toca à pesquisa de ponta, grande defasagem entre a
produção nacional e a estrangeira. Ater-se às obras publicadas em língua
portuguesa não implicará, portanto, uma perda significativa na qualidade dos
temas, a ponto de invalidar o mérito da pesquisa.
43
(ii) Uma meta efetiva desta pesquisa é também avaliar o caráter
institucional da Teoria da Literatura no Brasil. Como nos cursos de graduação em
Letras, os alunos efetivamente só lêem em português fato anotado por Costa
Lima (1983:2) há cerca de vinte anos atrás, o conjunto de obras em língua
portuguesa será um indicativo válido do tipo de ensino que circula em nossos
cursos superiores.
Em segundo lugar, uma outra circunscrição precisou ser empreendida: como
já foi comentado anteriormente, o campo da “teoria” é amplo, pouco especializado
e virtualmente aberto, a ponto de se tornar temerário julgar até que ponto uma obra
se propõe ou não em ser uma obra de Teoria da Literatura. Sendo assim, elegi uma
espécie de obra os manuais de teoria.
Seja pela acuidade de vários de seus postulados, seja por suas incoerências,
os manuais são elementos formidáveis para a análise dos acertos e desacertos de
um projeto histórico de reflexão teórica que “fracassará” ao longo do século XX,
tendo sido desacreditado como uma tentativa infrutífera de prender a Literatura nas
malhas do absoluto e do universal. Além disso, os manuais são índices dos
aspectos pedagógicos da disciplina: como a Teoria da Literatura é traduzida na
sala-de-aula, como ela pode se tornar acessível, sendo simples sem ser simplista. É
preciso entender, sobretudo, como, talvez à sua revelia, esses livros se
transformaram em manuais de regras para o estudo da Literatura, destino ingrato
para muitas propostas reflexivas e teóricas que acabam aprisionadas como uma
série de normas ou, nas palavras de Compagnon (2002:13), em “pequena técnica
pedagógica”.
Os capítulos 2, 3, 4 e 5 além do sexto, voltado exclusivamente aos
autores brasileiros consistirão no inventário e na descrição crítica destes
manuais em função de três perguntas: (i) qual a compreensão que cada um tem de
Literatura? (ii) Para que e como se deve estudar Literatura? (iii) Qual o papel da
teoria dentro dos Estudos Literários?
Da descrição e da crítica destes manuais chegaremos, no capítulo
conclusivo, a uma súmula da Teoria da Literatura no século XX, de suas imensas
qualidades e de seus não menores problemas, a fim de recuperar seus pontos fortes
como a resistência ao relativismo crítico historicista, por seus aspectos
44
similares com o atual relativismo crítico culturalista, e o enfrentamento de
universalismos de cunho elitista e rever seus desacertos, de modo a inventariar
as condições mínimas para a abordagem teórica do fenômeno literário na
atualidade.
45
2 OS PRECURSORES
2.1 - O ENCONTRO ENTRE O FORMALISMO ESLAVO E O NEW CRITICISM
O livro Teoria da Literatura, de René Wellek e Austin Warren, é uma obra
primordial. Escrito no final da década de 40
13
do século XX, o manual é o marco de
uma nova orientação nos Estudos Literários, ao reunir esforços de superação de um
estudo historicista da Literatura em direção a uma prática rigorosamente metódica e
voltada aos aspectos textuais da obra literária. Já nos anos 60, estava em sua terceira
edição nos Estados Unidos e na Inglaterra, e já havia sido traduzido para o espanhol,
italiano, japonês, coreano, alemão, português, hebraico e gujaráti. Recentemente, no ano
de 2003, teve sua primeira edição brasileira, mas a edição portuguesa circulou
amplamente no Brasil em décadas anteriores.
René Wellek era austríaco e havia participado como membro júnior do Círculo
Lingüístico de Praga. Tornou-se uma espécie de porta-voz de uma nova geração de
estudiosos da Literatura, que concordavam quanto à necessidade de uma posição
contrária ao factualismo positivista que se estendia pelos Estudos Literários, então ainda
dominados por orientações historicistas. Austin Warren era um dos expoentes do New
Criticism norte-americano, uma tendência de estudos de Literatura que enfatizava os
aspectos formais da obra literária, considerada como um objeto autotélico e completo
em si. Em comum, segundo os próprios escreveram no prefácio à 1
a
edição americana
13
Embora o ano de publicação da obra não seja de fácil identificação, em virtude dos problemas já
notados por Roberto Acízelo de Souza (1999:107) a tríplice datação que aparece na imprenta (1942,
1947 e 1949) , adotarei neste trabalho o ano de 1949, em razão do prefácio da edição original estar
assinada como maio de 1948, ano posterior às outras datas. Além disso, na bibliografia que aparece no
fim da 1
a
edição norte-americana, pode-se ver referência a obras publicadas em 1947 e 1948, o que
inviabilizaria a possibilidade de sua edição ser anterior a estes anos. Contra minha escolha, entretanto,
poderia pesar o prefácio à segunda edição, onde os autores se referem à publicação do capítulo extirpado
da 1
a
edição como tendo sido publicada em 1946. Acredito, porém, que Wellek se referia à publicação do
mesmo sob a forma de artigo e sob o titulo “The graduate study of literature” no periódico Sewanne
Review, o que faz com que o ano de 1949 seja o mais provável.
46
(1948), apesar da formação distinta, o compartilhamento da “posição de que os Estudos
Literários devem ser especificamente literários” (Wellek & Warren, 2003:VIII).
Note-se que nem Wellek nem Warren são “criadores” de uma nova abordagem
da obra literária, mas sua obra conjunta representou a primeira tentativa de se
sistematizar os Estudos Literários nos termos em que ficaria conhecida a Teoria da
Literatura. Mais ainda, o livro não possui a radicalidade que os trabalhos teóricos
posteriores imprimiram à disciplina, pois era orientado de modo a fazer com que se
considerasse a especificidade do texto literário sem se ignorar os aspectos contextuais
que o envolvem. História, Teoria e Critica literária, na proposta dos autores, não eram
concorrentes, mas disciplinas que se auxiliavam mutuamente no trabalho de
compreensão e sistematização da Literatura.
A leitura aqui proposta pretende ser fiel aos objetivos traçados na introdução
deste trabalho, lançando em relação ao livro as três questões metódicas propostas.
2.1.1 - O conceito de Literatura para Wellek & Warren
No segundo capítulo, “A natureza da Literatura”, assinado por Wellek, lança-se
a questão basilar dos Estudos Literários, muitas vezes discutida, freqüentemente
evitada, nunca solucionada: qual é o objeto da investigação literária, isto é, quais obras
são Literatura, quais obras não são e qual a natureza da obra literária. Wellek
inicialmente repassa as respostas costumeiras à questão: a mais genérica delas é se
considerar Literatura tudo que já foi impresso. Com esta concepção lato sensu, os
estudos da Literatura se tornariam intimamente relacionados com a história da
civilização e seriam “literários apenas no sentido em que se ocupam de matéria
impressa ou escrita, necessariamente a fonte primordial da maior parte da história”
(Wellek & Warren, 2003: 11). Transformado numa espécie de história da cultura, tal
estudo não mereceria o cunho de literário porque se apresentariam misturados na análise
da obra critérios e juízos condizentes apenas com os interesses que outras disciplinas
possuem na obra literária. Além disso, tal concepção teria o inconveniente de reforçar o
problema etimológico
14
do termo “Literatura”, diretamente relacionado à palavra escrita
14
A etimologia da palavra leva-nos à língua latina e a Quintiliano, litteratura, provavelmente de littera,
letra do alfabeto, passando pelo século XIV quando literato indicava tanto o alfabeto quanto o homem de
saber laico, como também qualquer coisa escrita com letras. O sentido de pessoa culta é conservado
durante o Renascimento e será somente entre os séculos XVII e XIX, com o advento da cultura
47
ou impressa, o que sugeriria, de modo errôneo, que as literaturas orais não fariam parte
desse conjunto.
Uma segunda definição recorrente relacionada por Wellek costuma identificar a
Literatura às grandes obras, aos livros cuja forma ou cujo tema são notadamente de
excelente qualidade. O inconveniente de tal critério é que ele seria dependente de um
juízo de valor, cuja fundamentação escaparia das fronteiras da Literatura. Além do mais,
um cânone baseado em “grande obras” não consideraria diferenças entre obras
filosóficas, científicas, históricas ou literárias, o que novamente inviabilizaria a
especificidade do termo.
Qual seria, pois, para os autores, o estatuto ontológico de uma obra de arte
literária, qual seu modo particular de existência? Wellek dedicou um capítulo à questão.
Em seu método característico de exposição, ele apresenta as respostas tradicionais à
pergunta e avalia a pertinência de cada uma delas: a primeira considera a arte literária
como um artefato, assim como a pintura ou a escultura. A essa possibilidade o autor
contrapõe o problema da Literatura oral: que espécie de materialidade ela possuiria?
Como alternativa a essa objeção, haveria a possibilidade de se considerar então toda
obra literária como uma seqüência de sons. Wellek então observa que uma seqüência de
sons é apenas a execução da obra, e não a obra em si. Ele compara a atualização oral de
uma obra com a execução de uma sinfonia, para dizer que tal concepção importaria para
os Estudos Literários um problema enfrentado pelo campo dos estudos da música: onde
estaria a existência efetiva da obra de arte na execução ou na partitura, na leitura ou
no texto impresso? Wellek ainda faz notar que supor que a existência de um poema é
restrita a sua atualização oral levaria à estranha conclusão de que ele inexistiria quando
não recitado, e que seria recriado de novo a cada leitura (ibid.: 184-5).
Uma terceira linha de reposta consiste em identificar a obra de arte literária com
a experiência do leitor. Wellek acredita que o caráter individual e idiossincrático da
experiência invalidaria a possibilidade de que ela venha a ser identificada como o modo
de existência da obra literária. Ter-se-ia de admitir, novamente, que o modo de ser do
poema é recriado a cada experiência de leitura. Seu comentário é certeiro e permanece
válido para o atual estatuto dos Estudos Literários:
romântico-burguesa, que os sentidos relacionados à imaginação e invenção, à arte e à estética passarão a
determinar as principais acepções da palavra.
48
Terminamos no ceticismo completo e chegamos à velha máxima viciosa do
de gustibus non est disputandum. Se levássemos a sério essa visão, seria
impossível explicar porque a experiência que um leitor tem de um poema
seria melhor do que a experiência de qualquer outro leitor e porque é possível
corrigir a interpretação de outro leitor. Significaria o fim definitivo de todo o
ensino de leitura que almeje elevar a compreensão e a apreciação de um texto
(ibid.:187).
Esse não será o único alerta que ele faz, ao longo do livro, sobre os perigos que o
relativismo extremo representa para os Estudos Literários. Ele defende que, por mais
interessantes que possam ser os estudos sobre a recepção de uma obra, eles não
deveriam integrar os objetivos do estudo da Literatura, pois seriam incapazes de lidar
com aspectos fundamentais da obra literária, como, por exemplo, sua estrutura e seu
valor.
Um quarto encaminhamento de resposta é propugnar que a obra literária consiste
na experiência do autor. Tal proposição envolveria pensar tanto no caráter consciente da
criação quanto no inconsciente. O primeiro caso levaria ao risco da “falácia da
intenção”, uma vez que o autor pode ser um mau “leitor” de sua obra e, além do mais,
na grande maioria dos casos, só temos acesso ao legado da obra em si:
Mesmo se possuímos testemunhos contemporâneos, na forma de uma
declaração de intenção explícita, tal declaração não tem necessariamente de
ser irrecusável para um observador moderno. As “intenções” do autor são
sempre “racionalizações”, comentários que, certamente, devem ser levados
em consideração, mas que devem ser criticados à luz de obra de arte acabada
(ibid.:189).
O segundo caso nos conduziria a um objetivo inatingível, uma vez que seria
impossível ter acesso os componentes inconscientes da criação ao menos naquela
época, quando ainda não se atribuía à psicanálise a potência que lhe seria conferida nas
décadas seguintes. Além do mais, um estudo de tal tipo atravessaria a temporalidade de
uma obra, ao remeter a experiências do passado do autor, anteriores à obra concreta.
A quinta resposta relacionaria o modo de existência da obra à sua recepção
coletiva, o que, para Wellek, seria o mesmo que dizer que “o poema reside no estado de
espírito do leitor, multiplicado ao infinito” (ibid.:192): haveria tantos poemas quanto
leitores, quantos estados de espírito. No caso de se procurar na recepção coletiva os
elementos de uma experiência comum, isto é, os pontos de interseção entre as
experiências individuais, estar-se-ia, para Wellek, empobrecendo a obra de arte
15
.
15
Ao desqualificar, nos estudos de recepção, os pontos de interseção entre as experiências de leitura por
empobrecer a possibilidade de múltiplas experiências proporcionadas pela obra literária, Wellek contradiz
49
Numa clave francamente fenomenológica
16
, Wellek postula que a condição de
experiência da obra de arte literária é similar às nossas condições de experiências
cognitivas. Embora jamais possamos conhecer um objeto em sua totalidade, não temos
como negar sua identidade de objeto. E por mais que nosso conhecimento seja precário,
sempre se pode apreender algo da “estrutura de determinação” do objeto, “que torna o
ato de cognição não um ato de invenção arbitrária ou distinção subjetiva, mas o
reconhecimento de algumas normas impostas a nós pela realidade” (ibid.:195). Como
qualquer objeto do conhecimento, a estrutura de uma obra de arte constrange a leitura
que dela é feita, ou seja, resiste, até certa medida, às imperfeições de nossas leituras:
“Um poema (...) não é uma experiência individual ou uma soma de experiências, mas
apenas uma causa potencial de experiências” (ibid.:192). Note-se que, a partir desta
concepção, é admitida a possibilidade de experiências de leituras que podem não dar
conta da estrutura de determinação da obra literária, e assim se realizarem
incorretamente.
Concebe, pois, Wellek a obra literária como uma estrutura de normas que é
apenas parcialmente realizada no ato de leitura: assim, qualquer experiência individual é
uma tentativa de apreensão desse conjunto de normas e padrões (ibid.:192). Tais
normas, contudo, não se confundem com o sentido de “norma” presente em estilos de
época ou na ética. São estruturas implícitas em cada obra de arte e se relacionam em
maior ou menor grau com os elementos da tradição literária
17
.
Dizer que a obra de arte literária é um objeto apenas acessível através da
experiência individual da leitura, mas que não se identifica por completo com nenhuma
dessas experiências, significa admitir que muitas variáveis afetam a experiência da obra
de arte. Entre elas, especialmente importante é o conhecimento de concretizações
anteriores, como críticas, interpretações, leituras particulares prévias, etc. Esses fatores
que interferem na leitura dizem respeito a uma outra característica fundamental da obra:
ela possui uma vida, no sentido de que tem uma origem no tempo, transforma-se por
seu postulado da necessidade de haver teorias generalistas para o estudo da Literatura (conforme será
discutido mais adiante). Além disso, ele vai de encontro à sua constante preocupação de conter o
subjetivismo exacerbado nas leituras das obras.
16
A formação filosófica de Wellek é de orientação fenomenológica. No campo dos estudos literários, por
exemplo, ele conhecia e endossava a teoria dos estratos de Roman Ingarden. (cf. Wellek, 2003:193).
17
Poéticas que pretendam defender a originalidade intransigente e a individualidade irredutível da obra de
arte, a ponto de pretender lhe negar qualquer vínculo com a tradição, acabam por isolá-la em algo
incomunicável ou incompreensível (ibid.:193).
50
conta das leituras que dela são feitas e pode vir a perecer, pois depende de algum
veículo ou mecanismo que possibilite sua preservação:
Como uma obra de arte passa através de um processo de evolução e ainda
preserva sua estrutura básica intacta? Podemos falar da “vida” de uma obra
de arte na história exatamente no mesmo sentido em que podemos falar de
um animal ou ser humano que continua a ser o mesmo indivíduo embora
mudando constantemente no curso de uma vida (ibid.: 199).
Wellek rejeita, porém, que o fato de a Literatura e a obra literária se
transformarem ao longo do tempo possa servir de fundamente ao argumento de que elas
não podem ser estudadas em si mesmas e que os Estudos Literários devam sucumbir ao
relativismo e ao subjetivismo:
(...) não se poderia negar que há [na Ilíada] uma substancial identidade de
“estrutura”, que permaneceu a mesma ao longo de todo o processo de
história, passando, ao mesmo tempo pelas mentes de seus leitores, críticos e
colegas artistas. Assim, o sistema de normas está se desenvolvendo e
mudando e permanecerá, em algum sentido, sempre incompleto e
imperfeitamente realizado (ibid.: 200).
A percepção da estrutura da obra, contudo, é dependente de valores. Wellek
reconhece que não é possível se compreender ou analisar uma obra sem recorrer a
algum tipo de valor que lhe é anterior: afinal, só o ato de se tornar um objeto como obra
de arte já é, em si, um ato de avaliação. Seria um erro também supor que os valores são
inerentes à estrutura da obra, o que levaria à enganosa suposição de que há uma ordem
eterna e atemporal “de ‘essências’ às quais apenas posteriormente são acrescentadas as
individualizações empíricas” (ibid.:200).
Se, por um lado, a suposição de uma escala de valores absoluta desconsidera a
interferência de julgamentos individuais no processo de leitura e avaliação de uma obra,
por outro, há a temerária posição de que todos os pontos de vista são igualmente
válidos. Wellek nega que as interpretações sejam todas equivalentes e postula que uma
“hierarquia de pontos de vista, uma crítica da compreensão das normas, está implícita
no conceito da adequação da interpretação” (ibid.:200). Ele introduz então a noção de
perspectivismo, uma proposta de síntese que “dinamize a própria escala de valores mas
não renuncie a ela como tal” (ibid.:200).
O “perspectivismo”, como denominamos tal concepção, não significa
anarquia de valores, uma glorificação do capricho individual, mas um
processo de vir a conhecer o objeto a partir de pontos de vista diferentes, que,
por sua vez, podem ser definidos e criticados. A estrutura, o signo e o valor
formam três aspectos do mesmo problema e não podem ser isolados
artificialmente (ibid.: 201).
51
Warren
18
, mais adiante, num capítulo dedicado ao tema do “valor”, ressaltará a
importância de se distinguir os termos “valorizar” e “avaliar”, este relacionado a atos de
julgamento, aquele indicativo de interesse por algo. Avaliar é, “por referência a uma
norma, pela aplicação dos critérios, pela comparação dele com outros objetos e
interesses”, estabelecer a posição hierárquica de algo (ibid.:324). Já valorizar refere-se à
quantificação do interesse que se tem por algo. No caso da Literatura, são diversas as
razões que levam os homens a valorizá-la, sendo difícil normatizar esse interesse.
Warren (idem:324-5), contudo, defende que a “natureza, a função e a avaliação da
Literatura devem necessariamente existir em correlação íntima”, isto é, deve-se
valorizar a Literatura de acordo com sua natureza
19
. Mas no que consistiria esse ser da
Literatura?
Wellek acredita que a melhor definição do termo “Literatura” se dá quando ela é
identificada “à arte da Literatura” (ibid.:14). O conjunto de normas e estruturas da obra
de arte literária se constitui como um determinado uso da língua que seria característico
da Literatura:
A língua é o material da Literatura, como a pedra ou o bronze são o da
escultura, as tintas o de pintura, os sons o da música. Devemos perceber,
porém, que a língua não é matéria inerte, como a pedra, mas é, ela própria,
uma criação do homem e, assim, carregada com a herança cultural de um
grupo lingüístico (ibid.:14).
Não sendo o material da Literatura uma matéria bruta
20
, mas um dado cultural e
complexo, Wellek precisa especificar em que consiste o uso literário da língua. As
distinções fundamentais propostas por ele são entre os usos literário, científico e
18
O manual foi composto a quatro mãos, mas os capítulos, com exceção do último da primeira edição
americana, são assinados pelos autores isoladamente. Por esta razão eu me refiro ora a um, ora a outro,
conforme a autoria da passagem em questão.
19
A atenção especial dada à necessidade de se valorizar a Literatura de acordo com sua natureza é uma
observação diretamente direcionada aos estudos que instrumentalizam a Literatura, tornando-a exemplo
de alguma outra coisa que se queira afirmar. A grande preocupação de Warren se justifica porque não há
como evitar que isso ocorra, pois “(...) as coisas podem ser mal usadas ou usadas inadequadamente, isto é,
em funções que não têm relevância central para as suas naturezas” (ibid.:326).
20
O comentário sobre a língua como material que reage ao escritor e constrange suas possibilidades de
criação reaparece no capítulo sobre as relações entre a Literatura e as demais artes: “(...) o ‘veículo’ de
uma obra de arte (...) não é meramente um obstáculo técnico a ser superado pelo artista para expressar a
sua personalidade, mas um fator pré-formado pela tradição e que tem um poderoso caráter determinante,
que molda e modifica a abordagem e a expressão do artista individual. O artista não concebe em termos
mentais gerais, mas em termos de material concreto, e o veículo concreto tem sua própria história, muitas
vezes bem diferente da de qualquer outro veículo” (ibid.:165). Ou ainda, mais adiante: “Toda obra
literária, poderíamos dizer, é meramente uma seleção extraída de uma determinada língua, do mesmo
52
cotidiano da língua. Ele descarta que a emoção ou o sentimento sejam responsáveis por
diferenciar linguagem literária e linguagem científica, mas afirma que a segunda
aspiraria a um ideal de pura denotação que a aproximasse de alguma linguagem
universal, como a matemática ou a lógica. Já a linguagem literária seria altamente
conotativa, porque se basearia, em diferentes graus, em uma língua histórica, cheia de
ambigüidades, homônimos, irracionalidades, além de também produzir significados
através da própria materialidade do signo.
Já a distinção entre as linguagens cotidiana e literária seria mais difícil. A
começar porque “linguagem cotidiana” não é um conceito simples. Não haveria como
se distinguir, em termos qualitativos, os usos cotidiano e literário da língua, mas apenas
quantitativamente, pois, no seu uso literário, os “recursos da linguagem são explorados
de modo muito mais deliberado e sistemático” (ibid.:16). Ele se vale de uma distinção
que, nos termos de Pareyson (1997), seria entre arte e artisticidade ou seja, em
qualquer objeto pode haver elementos estéticos, mas o fato de serem produzidos de
“modo artístico”, isto é, com “artisticidade”, não o tornam, necessariamente, obras de
arte. Wellek remete a Jakobson
21
embora a citação, curiosamente, não esteja
explícita em seu texto ao entender que se deva considerar como literária apenas as
obras em que a função estética é dominante. A Literatura refere-se, portanto, a obras de
arte literárias, a obras que se pretendem, pela força de sua constituição, artísticas.
A linguagem poética organiza, comprime os recursos da linguagem cotidiana
e, às vezes, até comete violência contra ela, em uma tentativa de forçar a
nossa consciência e atenção. Muitos desses recursos um escritor encontrará
formados, ou pré-formados, pelas atividades silenciosas e anônimas de
muitas gerações. Em certas literaturas altamente desenvolvidas e
especialmente em certas épocas, o poeta limita-se a usar uma convenção
estabelecida: a linguagem, por assim dizer, poetiza por ele (ibid.:17).
Intimamente ligada a uma tradição, a obra de arte literária caracterizar-se-ia
ainda, para Warren, por sempre impor uma unidade e uma ordem a seu material. A
Literatura não consiste nas partes que compõem uma obra, mas na organização desses
elementos: “O que determina se uma determinada obra é ou não literária não são os
elementos, mas a maneira como são combinados, e com que função” (ibid.:325). Esse
modo que uma obra de escultura é descrita como um bloco de mármore do qual se retiraram alguns
pedaços” (ibid.:226).
21
Embora a primeira versão em inglês do artigo “A dominante” seja de 1970, o original checo é de 1935
(cf. Jakobson, Roman. Language in literature. Cambridge: Harvard University Press, 1987. p.507). É
53
processo de criação de uma estrutura de sentidos e valores própria retiraria a obra do
mundo da realidade. O particular estatuto de referencialidade do mundo da Literatura é
um ponto fundamental para Warren:
Em uma obra de arte bem-sucedida, os materiais são completamente
assimilados na forma: o que era “mundo” transformou-se em “linguagem”.
Os “materiais” de uma obra de arte literária são, em um nível, palavras, em
outro nível, experiências do comportamento humano e, em outro, as idéias e
posturas humanas. Todos eles, inclusive a linguagem, existem fora da obra de
arte, em outros modos, mas, em um poema ou romance bem-sucedido, são
colocados em relações polifônicas pela dinâmica de próprio estético
(ibid.:329).
Uma de suas hipóteses é de que haveria dois tipos básicos de conhecimento, que
utilizariam sistemas lingüísticos diferentes: as ciências, que empregariam um modo
discursivo, e a arte, que se valeria de um representativo. A obra literária teria, contudo,
como referência um mundo ficcional, inventivo, imaginativo
22
. E com esse passo ele faz
a distinção chave entre uma classificação descritiva e uma classificação judicativa da
Literatura, elevando a ficcionalidade a um critério de distinção entre o que é e o que não
é Literatura:
Não faz nenhum mal renegar uma obra importante e influente à retórica, à
filosofia, ao panfletarismo político, todos os quais podem colocar problemas
de análise estética, de estilística e composição, similares ou idênticos aos
apresentados pela Literatura, mas onde a qualidade central da ficcionalidade
estará ausente. Essa concepção, portanto, incluirá nela todos os tipos de
ficção, mesmo o pior romance, a pior peça teatral. A classificação da arte
deve ser distinguida da avaliação (ibid.:20).
Ao diferenciar os dois juízos sobre a obra literária ser ou não ser Literatura,
ser boa ou má Literatura , Wellek tem consciência de que toda e qualquer distinção
entre Literatura e não-Literatura revela aspectos da obra literária, mas é precária por
nunca ser completamente satisfatória em si: uma obra “não é um objeto simples mas,
antes, uma organização altamente complexa, de caráter estratificado, com múltiplos
significados e relações” (ibid.:22). Muitas são acrescentará Warren no quarto
capítulo, “A função da Literatura” as possibilidades de uso e entendimento dos textos
literários. A natureza da Literatura transforma-se ao longo do tempo, o que pode ser
muito pouco provável que Wellek tendo se formado na antiga Tchecoslováquia e participado do Círculo
Lingüístico de Praga, não conhecesse o referido trabalho de Jakobson.
22
Wellek faz notar que a Literatura imaginativa não deve ser entendida estritamente como produtora de
imagens. As imagens não são essenciais para o enunciado ficcional. Mesmo a metáfora, muitas vezes
associada à essência da poesia, se faz presente ostensivamente em nossa linguagem cotidiana, na gíria e
nos provérbios (Wellek & Warren, 2003:21).
54
confirmado quando se observam momentos históricos em que não há distinção
discursiva entre Filosofia, Literatura, religião, etc. Além disso, dada a sua propriedade
de ultrapassar seu tempo e espaço históricos, novas “utilidades” e sentidos aparecem e
se somam à obra literária ao longo do tempo, e, nas palavras de Warren (ibid.:23),
quando é passado o tempo de sua atividade primordial, muitas vezes a ferramenta se
transforma em ornamento.
Wellek entra assim no terreno das discussões sobre os significados e sentidos de
uma obra de arte. Para ele, o significado total de uma obra não se restringe ao
significado que ela tem para o autor ou para seus contemporâneos, tratando-se de “um
processo de adição, isto é, a história da critica pelos seus muitos leitores em muitas
épocas” (ibid.:42). E adotando uma postura característica da Hermenêutica moderna,
conclui:
Simplesmente não é possível deixarmos de ser homens do século XX
enquanto nos ocupamos de um julgamento do passado: não podemos
esquecer as associações de nossa linguagem, das nossas posturas adquiridas,
do impacto e da importância dos últimos séculos. (...) Se conseguíssemos
realmente reconstruir o significado que Hamlet tinha para o seu público
contemporâneo, só o faríamos empobrecer. Suprimiríamos os significados
legítimos que as últimas gerações encontraram em Haml (ibid.:42).
Antecipando os problemas que ressurgiriam com força no final do século XX
sobre os limites da interpretação e da superinterpretação, Wellek faz notar que o fato de
mais e novos significados serem acrescentados à obra ao longo da história não significa
que não há “leituras errôneas, subjetivas e arbitrárias”, e portanto permanecem
necessários os critérios de distinção entre estas leituras (ibid.:42).
Warren acredita que a história da função da Literatura estaria ligada à história da
Estética, que, por sua vez, poderia ser resumida na alternância dialética horaciana entre
dulce et utile prazer e conhecimento. Menos que buscar uma solução em um dos
lados da dicotomia, o desafio seria exatamente “descrever a função da arte de uma
maneira que [se] faça justiça simultaneamente ao dulce e ao utile” (ibid.:24). Warren
entende que toda arte “seja ‘doce’ e ‘útil’ aos seus usuários adequados” (ibid.:25), isto
é, não se trata de um valor absoluto universal, mas algo relativo ao grupo social que
responde àquela expressão artística
23
. Haveria, pois, modos específicos de deleite e uso.
23
Warren cita uma conhecida passagem de T. S. Eliot, quando o poeta diz que em uma obra de
Shakespeare, “para os ouvintes mais simples há o enredo; para os mais pensativos, o personagem e o
conflito do personagem; para os mais literários, as palavras e a fraseologia; para os que têm mais
55
A questão conseqüente passa a ser então se a Literatura tem apenas uma função
(ou várias), e se essa(s) função ou funções diz(em) respeito a algo que somente a
Literatura faz ou a algo que outras atividades, além da Literatura, também fazem. Seria
a Literatura uma atividade realmente única e específica, ou “um amálgama de filosofia,
história, música e imagens que, em uma economia realmente moderna, seria
distribuído?” (ibid.:27).
A defesa da Literatura passaria por propor “que ela não é um sobrevivente
arcaico, mas uma permanência” (ibid.:30), o que implica garantir-lhe a condição de
oferecer uma experiência absolutamente singular. Essa experiência singular é entendida
de modo diverso por diferentes correntes de pensamento, como fonte de um
conhecimento ora além, ora aquém do racional. Na tradição do famoso dito aristotélico
a poesia seria mais “verdadeira” do que a História, por tratar do universal, e não do
particular , a Literatura seria algo maior do que outras formas de conhecimento.
Todas as vezes em que a Literatura e a disciplina que estruturou seu estudo no século
XIX, a História parece fragilizada diante de outros modos de saber, diz-se que ela dá
conta exatamente daquilo que escapa à Ciência e à Filosofia, como forma de resguardar
a sua importância:
(...) sentimos um temor ilógico de que, se a arte não é “verdadeira”, é uma
“mentira”, como Platão violentamente a chamou. A Literatura imaginativa é
uma “ficção”, uma “imitação da vida” artística, verbal. O oposto de “ficção”
não é “verdade” mas “fato” ou “existência no tempo e no espaço” (ibid.:30).
A verdade da Literatura, reforça Warren, não se confundiria com a verdade que
pode ser metodicamente verificada. Nos termos de uma definição redutora positivista, a
arte, obviamente, não poderia ser uma forma sequer experimental de verdade.
Wellek também considera as implicações relacionadas a se considerar a
Literatura como obra de pensamento. Novamente, ele não descarta o uso da obra
literária por outras disciplinas no caso, a Filosofia mas rejeita modelos
determinísticos de se encarar a relação entre pensamento e Literatura, como quando se
usa a obra literária como documento ou exemplo para chegar a conclusões de que as
idéias, em Literatura, são “idéias filosóficas diluídas” (ibid.:137). Sob uma perspectiva
sensibilidade musical, o ritmo; e, para os ouvintes de compreensão e sensibilidades maiores, um
significado que se revela gradualmente” (T.S. Eliot. Use of poetry. Cambridge: Harvard University Press,
1933. p. 153, apud Wellek & Warren, 2003:331).
56
literária, não faria sentido se atribuir valor a uma obra pela excelência de seu conteúdo
filosófico.
Wellek conclui afirmando que a verdade filosófica não tem valor artístico para a
obra literária. Uma poesia que supostamente conseguisse fundir imagens e conceitos em
um nível de excelência filosófica não seria, necessariamente, melhor poesia, mas apenas
um tipo de poesia. O que interessa, para um estudioso de Literatura, na relação entre
pensamento e Literatura, é estudar as idéias quando se tornam constitutivas da textura
da obra de arte, isto é, “quando deixam de ser idéias no sentido comum de conceitos e
tornam-se símbolos ou mesmo mitos” (ibid.:156).
Por fim, Warren observará, de modo arguto, que a pergunta pela função da
Literatura não é, em geral, uma questão que seja formulada pelo poeta ou pelo
apreciador da Literatura, mas quase sempre “por utilitaristas e moralistas, ou por
estadistas e filósofos, isto é, pelos representantes de outros valores especiais ou pelos
árbitros especulativos de todos os valores” (ibid.:34). Mas a resposta a essa questão
sempre acabaria sendo de responsabilidade dos poetas e dos amantes da Literatura, que
precisariam pensá-la nos termos da dimensão social e humana em que ela é colocada,
chamados, “como cidadãos moral e intelectualmente responsáveis, a dar alguma
resposta racional à comunidade” (ibid.:35). Sob tais circunstâncias, é natural que as
respostas tendam a enfatizar a utilidade em detrimento do deleite. E os Estudos
Literários refletem tal circunstância, tendo dificuldades em lidar com o específico prazer
da Literatura:
um prazer superior porque é prazer em um tipo superior de atividade, isto é, a
contemplação não aquisitiva. E a utilidade (...) da Literatura é uma seriedade
prazerosa, isto é, não é a seriedade de um dever que deve ser feito ou de uma
lição a ser aprendida mas uma seriedade estética, uma seriedade da percepção
(ibid.:26).
A complexidade da obra literária, conforme descrita por Wellek & Warren,
exige que os Estudos Literários estejam à altura da multiplicidade de aspectos que a
compõe. Os autores imaginam uma divisão em três partes: “Operações preliminares”,
“Abordagem extrínseca ao estudo da Literatura” e “Abordagem intrínseca ao estudo da
Literatura”.
57
2.1.2 - Os limites dos Estudos Literários
No primeiro capítulo da primeira parte, “A Literatura e os Estudos Literários”,
assinado por Wellek, é proposta a distinção entre o que o autor entende tratar-se de duas
atividades distintas: a Literatura, uma arte, e os Estudos Literários, “se não exatamente
uma ciência, (...) uma espécie de conhecimento ou saber” (Wellek &Warren, 2003:3). O
saber produzido pelos Estudos Literários seria cognitivamente diferenciado daquele
obtido da leitura direta da própria obra literária. Mesmo o escritor que se propusesse a
falar da Literatura, estaria submetido a um outro regime discursivo.
Ele deve traduzir a sua experiência de Literatura em termos intelectuais,
assimilá-la a um esquema coerente que tem de ser racional para ser
conhecimento. Pode ser verdade que a matéria desse estudo seja irracional ou
que, pelo menos, contenha elementos fortemente irracionais, mas nem por
isso ele estará numa posição diferente que a do historiador da pintura, do
musicólogo ou mesmo do sociólogo ou do anatomista (ibid.:3).
Uma pretensa “irracionalidade” do objeto não seria argumento suficiente para
justificar a “irracionalidade” de seu estudo. Wellek está ciente de que tal posição é
controversa e argumenta antecipadamente contra dois tipos de pensamento que
negariam o caráter cognitivo dos Estudos Literários. A primeira delas defenderia o
trabalho do estudioso da Literatura em termos de uma “segunda criação” (ibid.:3), em
que uma descrição mais ou menos analítica da obra literária substitui o ato de leitura da
obra em si. Trata-se, muito possivelmente, de uma herança da “transposição literária”,
uma espécie de subgênero literário muito comum na crítica de artes plásticas em
períodos nos quais não havia recursos tecnológicos para a reprodução visual da obra. A
atividade teve origem no século XVIII e atravessou o século XIX, tendo em Diderot,
Gautier, Deschamps, Hugo e Vigny alguns de seus cultores mais famosos (cf. Richard,
1988). Baseada na pressuposição de que o crítico é dotado de uma capacidade que o
leitor não possui este dependeria daquele para experimentar a obra em sua totalidade
, tal prática era alvo de ressalvas desde o século XIX, como transparece no
comentário mordaz de Delacroix sobre as críticas de Théophile Gautier:
Ele toma um quadro, descreve-o a seu modo, faz ele próprio um quadro
encantador, mas não fez um ato de verdadeira crítica, contanto que consiga
fazer reluzir, cintilar as expressões macarrônicas que ele acha com um prazer
às vezes convincente. (...) ele fica contente, atinge seu objetivo de escritor
curioso (...). (Delacroix, Journal, 17/06/1855, 11, 341, Ed. Joubin, apud
Richard, 1988:17).
58
No campo da Literatura, a “transposição” ainda possuía força em meados do
século XX e, a bem dizer, ainda permanece viva nos trabalhos críticos que
pretendem substituir ou superar, através de processos hermenêuticos diversos, a
experiência direta da leitura da obra. Wellek denomina “crítica criativa” esse processo
de duplicação, que ele julga desnecessário e que redunda, na melhor das hipóteses, na
“tradução de uma obra de arte em outra, geralmente inferior” (ibid.:4).
A segunda contestação enumerada por Wellek é a daqueles que argumentam que
a Literatura “não pode ser estudada. Só podemos lê-la, usufruí-la, apreciá-la” (ibid.:4).
Wellek entende que tal “ceticismo”, ao operar com dicotomia entre “estudo” e
“apreciação”, não considera corretamente o que deva ser “o estudo da Literatura,
simultaneamente ‘literário’ e ‘sistemático’” (ibid.:4). A questão consiste, portanto, em
saber como se pode tratar intelectualmente de uma arte, no caso específico, da arte
literária, sem que entrem em conflito os fatores ligados à apreciação subjetiva da obra e
aqueles relacionados aos interesses metódicos do estudo.
Uma das respostas dadas a essa pergunta foi a tentativa de se empregar os
métodos das ciências naturais ao estudo da Literatura. Wellek relaciona quatro dessas
experiências de se transferir os métodos científicos para os Estudos Literários:
(i) a emulação dos “ideais científicos de objetividade, impessoalidade e certeza”
(ibid.:4), baseada na possibilidade de se coletar fatos neutros;
(ii) um método “genético” que, por meio do estudo de antecedentes e origens, e
fundamentado no princípio científico da causalidade, estabeleceria relações
cronológicas entre os fatos;
(iii) uma variante do método genético, que explicaria os fenômenos literários em
relação a causas econômicas, sociais e políticas;
(iv) o uso de conceitos da Biologia para explicar a evolução da Literatura.
Para Wellek, tais iniciativas ou se revelaram fracassadas e conduziram seus
defensores a um profundo ceticismo, ou os deixaram confortavelmente iludidos de que
os progressos da ciência viriam, fatalmente, resolver a totalidade dos problemas dos
Estudos Literários. Mas o insucesso das tentativas de se importar os métodos das
ciências naturais não significa que eles devam ser radicalmente descartados, pois vários
elementos da metodologia científica são comuns a qualquer tipo de conhecimento
sistemático indução, dedução, análise, síntese, comparação. Os Estudos Literários
59
poderiam ser, portanto, rigorosos e metódicos, ainda que seus métodos nem sempre
coincidam com os das ciências naturais:
Apenas uma concepção muito restrita de verdade pode excluir as conquistas
das humanidades do domínio do conhecimento. Muito antes do
desenvolvimento científico moderno, a filosofia, a história, a teoria do
direito, a teologia e mesmo a filologia haviam elaborado métodos de saber.
Suas conquistas podem ter sido obscurecidas pelos triunfos teóricos e
práticos das modernas ciências físicas, mas são, não obstante, reais e
permanentes e podem, às vezes com algumas modificações, ser ressuscitadas
ou renovadas. Devemos simplesmente reconhecer que existe essa diferença
entre os métodos e objetivos das ciências naturais e das humanidades.
(ibid.:5).
A complexidade e a dificuldade da distinção entre os dois modos de
conhecimento o das ciências naturais e o das humanidades é reconhecida por
Wellek. Citando Dilthey, ele endossa a diferenciação entre explicar causalmente um
fenômeno o caso das ciências e compreendê-lo em sua significação caso das
humanidades , cujos procedimentos envolvem grande parte de subjetividade.
Referindo-se a Windelband, Wellek acrescenta que a distinção se concentraria também
na diferença entre o estabelecimento de leis gerais, por parte dos cientistas, e o trabalho
com fatos únicos e não recorrentes, no caso das humanidades:
Por que estudamos Shakespeare? Está claro que não estamos
primordialmente interessados no que ele tem em comum com todos os
homens, pois, então, poderíamos estudar qualquer outro homem; tampouco
estamos interessados no que ele tem em comum com todos os ingleses, todos
os homens do renascimento, todos os isabelinos, todos os poetas, todos os
dramaturgos, ou mesmo todos os dramaturgos isabelinos (...). Queremos,
antes, descobrir o que é peculiarmente de Shakespeare, o que torna
Shakespeare Shakespeare, e isso obviamente é um problema de
individualidade e valor (ibid.:7).
Admitir, entretanto, que os fatos humanos são realmente únicos e imprevisíveis é
admitir a impossibilidade de se falar sobre eles de algum modo que não seja meramente
descritivo. A especificidade do trabalho empírico com a Literatura residiria, pois, em
grande monta, em compreender o caráter de individualidade que atribuímos ao objeto de
estudo. Muitas e fracassadas foram as tentativas de se encontrar leis gerais para a
Literatura, mas, no maior número das vezes, “quanto mais geral, mais abstrata e,
portanto, mais vazia ela parecerá, e mais o objeto concreto da obra se esquivará a nossa
compreensão” (ibid.:8). Decorre daí uma generalizada aversão aos métodos científicos
no ambiente dos Estudos Literários.
60
As duas posições extremadas, no entender de Wellek, conduzem a enganos: por
um lado, a identificação entre o método científico das ciências naturais e o método
histórico conduz à fragilidade de leis gerais. Por outro lado, a negação da cientificidade
em favor do caráter pessoal da experiência com a Literatura e da individualidade
extrema da obra de arte sucumbe geralmente à subjetividade completa, que esquece
Que nenhuma obra de arte pode ser inteiramente “singular”, já que, se fosse,
seria completamente incompreensível. (...) Mesmo um monte de lixo (...) é
singular no sentido de que suas exatas proporções, posição e combinações
químicas não podem ser reproduzidas exatamente (ibid.:8).
Diante do desafio que o tema da relação entre o universal e o particular
representam para os estudos da Literatura, Wellek procura acomodar generalidade e
particularidade na obra literária, postulando que não se deve confundir individualidade
com particularidade e singularidade completas: “cada obra de Literatura tem as suas
características individuais mas também compartilha propriedades com outras obras de
arte” (ibid.:9). É exatamente neste ponto que a função da Teoria da Literatura se
justificaria:
A Crítica Literária e a História de Literatura tentam caracterizar a
individualidade de uma obra, de uma autor, de um período ou de uma
Literatura nacional. Mas essa caracterização só pode ser obtida em termos
universais, com base em uma Teoria Literária (ibid.:9).
Ao apontar para a necessidade de um estudo generalista e universalizante da
Literatura, Wellek procura desvincular os Estudos Literários de uma prática
estritamente voltada para a leitura, isto é, eles não se limitariam a ter como objetivo
propiciar atos individuais de leitura. Os Estudos Literários deveriam, pois, se constituir
como uma tradição suprapessoal, como um corpo crescente de conhecimento,
discernimentos e julgamentos (ibid.:9-10).
No tópico seguinte será apresentada em maiores detalhes a divisão entre Crítica,
História e Teoria Literárias proposta por Wellek. Por ora, pretendo mostrar como os
autores tentam também desarticular uma classificação dos Estudos Literários baseada
em critérios historiográficos: a divisão dos estudos da Literatura em geral, comparada
e nacional.
Começando por “Literatura Comparada”, Wellek ressalta o caráter ambíguo do
termo, uma vez que a “comparação é um método usado por toda crítica e ciência e não
descreve adequadamente, de nenhuma maneira, os procedimentos específicos do estudo
61
literário” (ibid.:46). O termo, na época, abrangia campos e problemas bastante distintos:
(i) o estudo da Literatura popular e sua entrada na chamada alta Literatura, (ii) o estudo
da Literatura oral, (iii) o estudo das relações entre duas ou mais literaturas e (iv) o
estudo da Literatura considerada em sua totalidade (mundial, geral, universal).
Sobre (i), Wellek dirá que os problemas relacionados à Literatura popular
deveriam ser assunto do Folclore, “um importante ramo do conhecimento que só em
parte se ocupa dos fatos estéticos
24
, já que estuda a civilização total de um ‘povo’ (folk),
os seus costumes e hábitos, superstições e ferramentas, assim como as suas artes”
(ibid.:47). Já em relação a (ii), Wellek defende sua inclusão no âmbito dos Estudos
Literários, postulando “uma continuidade entre Literatura oral e escrita que nunca se
interrompeu” (ibid.:48). Sobre (iii), dirá Wellek que tais estudos não consistem num
modo peculiar de estudar Literatura. A ênfase de tais estudos é em aspectos externos,
pois “dedicam-se principalmente aos ecos de uma obra-prima, como traduções e
imitações, (...) ou à pré-história de uma obra-prima, às migrações e à difusão de seus
temas e formas” (ibid.:49). Sobre (iv), Wellek entende que a dificuldade estaria em
estabelecer o que se deve entender, primeiro, por “Literatura mundial”. Ele descarta a
possibilidade de um estudo das Literaturas nacionais dos cinco continentes, por julgá-lo
“desnecessariamente grandioso” (ibid.:50), desconsidera a noção de Weltliteratur
25
de
Goethe por se tratar de um ideal ainda longe de ser alcançado e acaba optando por uma
noção eurocêntrica
26
de Literatura universal. Wellek demonstra simpatia pela idéia de
uma Literatura ocidental, o que, segundo ele, seria um ideal presente no trabalho dos
primeiros historiadores da Literatura do século XIX (os Schlegels, Sismondi, Bouterwek
e Hallam). O surto dos nacionalismos, da especialização dos estudos e o fortalecimento
de uma consciência provinciana seriam responsáveis pelo estreitamento do estudo da
Literatura em casos nacionais isolados, juntamente com o exagero da aplicação das
idéias de evolucionismo biológico na história e desenvolvimento da Literatura.
24
Atribuir ao “Folklore” a responsabilidade de estudar a Literatura popular revela como a idéia de
Literatura de Wellek não se baseia tanto em diferenciações lingüísticas, mas é extremamente dependente
de uma noção de “estética” que nunca chega a ser francamente discutida no livro. Essa é, por sinal, a
grande crítica que Costa Lima (1975) fará ao manual.
25
Nos termos de Goethe, a “Literatura mundial” (Weltliteratur) refere-se a um momento em que todas as
Literaturas estariam unificadas e a Literatura de cada nação desempenharia seu papel como em uma
sinfonia (cf. Goethe, 1994:224-228).
26
O eurocentrismo de Wellek é explícito, por exemplo, quando ele coloca a dúvida retórica de se saber se
o ossianismo seria um caso de Literatura nacional ou universal (Wellek & Warren, id:51). Ora, o
62
A posição de Wellek caracteriza-se pela defesa de um estudo da Literatura como
um todo, mesmo reconhecendo as dificuldades que tal empreitada implica. Seu
argumento de maior força é entender que seria falsa a idéia de uma Literatura nacional
contida em si mesma. Sua idéia de História de Literatura baseia-se no entendimento de
que a importância das diferenças entre as línguas no estudo da Literatura foi
superestimada, em prejuízo de uma história internacional dos temas, das formas, das
técnicas e dos gêneros. Reforçando o argumento de que os nacionalismos políticos do
século XIX exageraram a importância da diferença lingüística no estudo da Literatura,
Wellek observa a permanência da associação entre língua e Literatura nos cursos
superiores de Letras, em que há identificação entre o estudo da língua e o da Literatura
observação válida ainda hoje para o caso brasileiro. A conseqüência de tais
procedimentos no ensino norte-americano era, para Wellek (ibid.:54), a “extraordinária
falta de contato entre os estudantes de Literatura inglesa, alemã e francesa”, que
possuiriam formação muito diferenciada e que utilizariam métodos de pesquisa também
muito peculiares. A título de exemplo de como pode ser nocivo o estudo da Literatura
baseado no vernaculismo, ele cita o caso da Literatura latina, que seria fundamental para
a compreensão da Literatura inglesa medieval, além de mencionar a situação muito
freqüente de Literaturas nacionais diversas partilharem um mesmo idioma (ibid.;56).
Wellek não defende o fim dos estudos nacionais de Literatura, mas sim que o estudo das
contribuições nacionais seja o ponto de partida para a consideração de uma Literatura
universal.
Além de repensar o espaço que o estudo das Literaturas nacionais deve ter na
totalidade dos Estudos Literários, Wellek também propõe reavaliações de diversos
procedimentos característicos da área. Na segunda parte do manual, denominada
“Operações preliminares”, Wellek integra a seu modelo de Estudos Literários aquilo
que chama de tarefas preliminares da investigação literária:
(i) a compilação dos materiais (manuscritos, impressos, registros orais);
(ii) a elaboração de edições críticas (com variados níveis de complexidade, que
pode ir de processos interpretativos a trabalhos de pesquisa histórica) que ajudem a
eliminar os efeitos do tempo sobre a obra, através de anotações com explicações
lingüísticas e históricas etc.;
ossianismo sob nenhuma circunstância é um caso de Literatura universal, sendo, quando muito, de
63
(iii) o exame da autoria, autenticidade e datação dos materiais, através de
métodos paleográficos, de recensão, de crítica textual, de estilometria etc.
Reconhecendo a importância que os empreendimentos de cunho filológico-
hermenêutico a reconstrução do contexto histórico e a interpretação à luz dessa
reconstituição têm para o entendimento de obras do passado, Wellek nega, porém,
que tais estudos possam utilizar pressupostos de casualidade para orientar problemas de
descrição, análise e valoração da obra de arte literária, negando assim o que chamará de
“falácia das origens” (ibid.:83).
Wellek quer esclarecer a real importância de tais procedimentos, conferindo-lhes
a medida de sua utilidade: não são nem podem ser o objetivo final ou único dos Estudos
Literários, mas também não correspondem a atividades inúteis, isto é, tanto a
ridicularização desses procedimentos quanto sua glorificação por seu suposto grau
superior de objetividade são inadequados:
Esses estudos só merecem críticas adversas quando usurpam o lugar de
outros estudos e tornam-se uma especialidade imposta sem piedade a todo
estudante de Literatura. Foram editadas meticulosamente, com passagens
emendadas e debatidas com o maior detalhe, obras literárias que, do ponto de
vista literário ou mesmo histórico, não valem a pena ser discutidas. (...)
Como outras atividades humanas, esses exercícios muitas vezes se tornam
fins em si mesmos (ibid.:61).
Para Wellek, os procedimentos preliminares são de fundamental importância no
estudo de tradições literárias remotas, contudo, de valia relativa para o estudo de
Literaturas modernas. Sobretudo, ele entende que tais procedimentos, que poderíamos
chamar de filológicos, devem ser submetidos a critérios de disciplinas que são
colocadas em posição hierarquicamente superior: a Teoria e a História. O alvo das
críticas de Wellek era, sobretudo, o ensino superior norte-americano da época:
(...) são quase que os únicos métodos sobre os quais a maioria das faculdades
americanas fornece algum tipo de instrução sistemática. Ainda assim,
qualquer que seja a sua importância, deve-se reconhecer que esse tipo de
estudo apenas lança as fundações para uma análise e interpretação efetivas,
assim como para a explicação casual da Literatura. Eles se justificam pelo
uso que se dá aos seus resultados (ibid.:79).
A Filologia, porém, não era a maior ameaça que Wellek vislumbrava. Os
métodos mais difundidos do estudo da Literatura se baseavam em aspectos externos
27
da
Literatura européia.
27
Para Wellek, esse tipo de estudo extrínseco da Literatura, que se ocupa das relações periféricas da obra
literária e que busca uma ordem causal, não deveria ser confundido com o estudo histórico, orientado para
64
obra literária e, para os autores, não respeitavam a especificidade da Literatura. Embora
os elementos ambientais, contextuais e históricos sejam a matéria da obra de arte, o
interesse do pesquisador em Literatura deve recair sempre sobre aquilo que é específico,
individual, e que determina a condição artística da obra em questão.
Os defensores do estudo dos elementos extrínsecos da Literatura centravam o
foco de sua atenção ora na figura do autor buscando as causas da obra na biografia
ou na psicologia , ora na consideração de elementos econômicos, sociais e políticos
como condicionantes da criação literária, ou ainda no papel desempenhado por outros
campos do conhecimento como explicação causal da Literatura.
Estes estudos, que Wellek filia ao positivismo e ao pensamento científico do
século XIX, são marcados por um grau variável de aceitação do determinismo, que vai
do modesto estabelecimento de relações entre fatores externos e a obra de arte literária
até concepções fatalistas da criação artística.
(...) a explicação causal é um método muito superestimado no estudo da
Literatura e, com igual certeza, nunca pode solucionar os problemas críticos
da análise e da avaliação. Entre os diferentes métodos governados pela causa,
uma explicação da obra de arte em termos do contexto total parece preferível,
já que a redução da Literatura ao efeito de uma única causa é manifestamente
impossível (ibid.:84-85).
A afluência de métodos e disciplinas das demais ciências humanas nos Estudos
Literários, que se intensificaria ainda mais nos anos subseqüentes, era um grande
problema para Wellek & Warren. A estas disciplinas eles dedicaram toda a terceira
parte do livro, denominando-as de estudos extrínsecos de Literatura. De modo geral,
eles são classificados em três grandes grupos: (i) os estudos biográficos do autor, (ii) os
estudos de psicologia (do autor, da obra, do processo de criação
28
, da recepção) e (iii) os
estudos de caráter sociológico.
Wellek e Warren atentam para que as relações (i) e (ii) devam ser observadas
com parcimônia e reservas. Elas em geral interessam a um ponto de vista estranho ao
estudioso da Literatura, cujo interesse é da competência do historiador, do psicólogo, do
a observação das alterações temporais da arte literária, e que possui um lugar importante no modelo de
estudos literários proposto pelo autor, conforme será melhor demonstrado no tópico seguinte.
28
De modo geral, Warren admite que a Psicologia tenha alguma capacidade de esclarecer aspectos da
criação literária, mas parece duvidar de sua eficiência no plano hermenêutico e no de juízo sobre um
texto. Mesmo os esforços de crítica textual (crítica genética) que se empenham em reconstruir o processo
de criação da obra, teriam importância periférica para o exame da obra finalizada. (cf. ibid.:109). Warren
acha que não há nada suficientemente generalizado, apenas quase depoimentos individuais de criadores
65
sociólogo, do antropólogo. A obra de arte não deve ser encarada, pois, como pura auto-
expressão ou apêndice de uma individualidade, nem o autor pode ser confundido como
possuidor de certos graus de excepcionalidade (o gênio, o louco, o possuído, o dotado
de uma deficiência e de um dom compensatório etc.), o que sempre deu margens a
interpretações que viam na Literatura de um certo papel terapêutico. É fundamental,
sobretudo, entender que em todas as situações tais conclusões não têm valor crítico e
não podem ser fonte para atribuição de valor à obra.
Merece maior atenção o capítulo em que Wellek aborda as questões relativas às
relações entre Literatura e sociedade. Trata-se de uma argumentação direcionada contra
a crítica marxista e a crítica de orientação sociológica. A propalada aversão da Teoria da
Literatura às questões de representação social da obra literária parece ter origem nas
muitas reservas que os teóricos têm em relação às abordagens sociologizantes da obra
literária. Há, entretanto, uma enorme distância entre perceber que a teoria é
intensamente crítica da presença dos estudos “sociais” na Literatura e afirmar que a
teoria ignora tais aspectos. Muitos são os problemas da disciplina teoria, mas entre eles
certamente não está a aversão às questões de representação social. A teoria, ao menos
no que se refere aos momentos iniciais da formação da disciplina, é bastante atenta a
estes problemas, e acusá-la em relação a tal aspecto revela no mínimo ignorância de
seus postulados teóricos.
Por entender que essa má compreensão da Teoria da Literatura é uma das causas
de seu desprestígio, relacionei, a título de exemplificação, uma série de afirmações de
Wellek sobre o caráter social da Literatura:
(i) “A Literatura é uma instituição social que usa como veículo a linguagem,
uma criação social” (ibid.:113);
(ii) Processos literários tradicionais (os símbolos, as imagens, a métrica) têm
natureza social, isto é, são normas e convenções sociais, assim como grande número das
questões suscitadas pelos Estudos Literários é de natureza social: tradição, convenção,
normas, gêneros, mitos;
(iii) “(...) a Literatura ‘representa’ a ‘vida’, em grande medida, é uma realidade
social” (ibid.:113);
sobre o processo criativo, para ser objeto de uma teoria. Ele percebe que a Psicanálise e os conceitos de
consciente e inconsciente teriam papel importante nesse tipo de estudo.
66
(iv) O escritor é um ser social possui um determinado reconhecimento social
e obtém certas vantagens advindas deste reconhecimento;
(v) A obra literária dirige-se sempre a um público, mesmo que hipotético;
(vi) A Literatura tem uma função social e, ao longo da história, esteve ligada a
diversas instituições sociais;
(vii) O campo da Estética não se baseia em instituições sociais, mas forma, ele
próprio, uma instituição social que se relaciona com as demais.
O projeto teórico de Wellek & Warren, assim, jamais pretendeu negar o caráter
representativo e social da Literatura. O repúdio de Wellek a algumas abordagens
sociologizantes da Literatura tem como principal alvo o caráter prescritivo da crítica
marxista de então:
Os críticos marxistas não apenas estudam as relações entre Literatura e
sociedade, mas têm também a sua concepção claramente definida de como
essas relações deviam ser, tanto na presente sociedade como em uma futura
sociedade “sem classes”. Eles praticam a crítica valorativa, “judicial”,
baseada em critérios políticos e éticos, não literários. Eles nos dizem não
apenas o que eram e o que são as relações e implicações sociais da obra de
um autor deviam ter sido ou devem ser. Eles não são apenas estudiosos da
Literatura e da sociedade mas profetas do futuro, monitores, propagandistas e
têm dificuldade para manter separadas essas duas funções (ibid.:106).
Wellek (2003:131) adverte que mesmo Marx estaria ciente de quão oblíquas são
as relações entre Literatura e sociedade. Assim, defender que o autor deve expressar a
vida de seu tempo, ou exigir dele a consciência de determinadas situações sociais, ou
ainda, em diversas ocasiões, o compartilhamento de posturas ideológicas do crítico é um
critério de avaliação específico e, embora Wellek não use o termo, ideológico. A
exigência de representatividade social atende aos desígnios de uma poética
29
, mas não
pode ser considerado um componente essencialmente estético da obra literária:
29
Faço valer aqui uma útil distinção proposta por Luigi Pareyson (1997), para quem uma Poética é a
proposição, programática ou implícita, de um programa de arte, em que um dado ideal de arte é expresso.
Uma poética, portanto, expressa um dado gosto. A Estética, por outro lado, teria uma preocupação
filosófica e especulativa. Quando se toma uma proposição de uma poética, particular e histórica, como
uma assertiva estética, que precisa pretender ser geral e universal, deturpa-se “aquilo que é legítimo
quando entendido como programa de arte”, mas absurdo quando “se pretende valer como conceito de
arte” (Pareyson, 1997:15). Quando uma poética aspira a ser uma teoria estética, o que era apenas um
programa passa a sustentar uma concepção excludente de arte. Aquilo que vinha sendo proposto como
elemento inspirador de um fazer artístico é transformado no próprio princípio de seu valor. A reflexão
estética não pode se envolver numa polêmica relacionada a gostos. É claro que o filósofo é também
portador de um gosto, mas é inerente a sua prática o empenho em não permitir que seu gosto particular
fundamente os princípios de sua teoria. Para a Estética, todas as poéticas são igualmente legítimas. Não
importa ao pensamento estético de que tipo de arte se trata, importa que seja arte. A multiplicidade das
67
Há grande Literatura que possui pouquíssima ou nenhuma relevância social;
a Literatura social é apenas um tipo de Literatura e não é central na Teoria da
Literatura, a menos que sustentemos a visão de que a Literatura é,
basicamente, uma “imitação” da vida como ela é e da vida social em
particular. Mas a Literatura não é substituta para a sociologia ou para a
política. Ela tem a sua própria justificação e seu próprio objetivo (ibid.:137).
São inúmeras as possibilidades de se estudar as relações entre Literatura e
sociedade, sejam centradas na obra, no escritor, no público, nas instituições literárias em
geral. Mas mesmo uma boa sistematização dos dados levaria, na melhor das hipóteses, a
uma sociologia do escritor, da obra, da recepção ou da Literatura, mas não seria jamais
um estudo da Literatura em si mesma
30
. Para Wellek, “nenhum estudo causal pode fazer
justiça à análise, à descrição e à avaliação de uma obra literária” (ibid.:135). No estudo
das relações da Literatura com os aspectos contextuais, Wellek nega que sejam
pensadas relações de dependência ou causalidade, uma vez que o escritor e a obra tanto
são influenciados quanto influenciam seu tempo. No máximo, as condições sociais
determinam a possibilidade de certos valores, mas não concretizam os próprios valores.
Isso se comprova por não ser possível, por exemplo, se prever que formas artísticas
virão num futuro.
Ainda que não seja possível negar que certas obras literárias se ofereçam a serem
usadas como documentos
31
afinal, “a Literatura ocorre apenas em um contexto
social, como parte de uma cultura, em um meio” (ibid.:129), Wellek critica os
estudos que se centram exclusivamente no conteúdo da obra literária e que vêem na
Literatura apenas um espelho da realidade. Tais usos da obra como documento são mais
adequados aos estudiosos de temas sociais do que aos de Literatura propriamente dita,
embora também os primeiros precisem utilizar e interpretar o material literário
adequadamente.
poéticas existentes pode fomentar a existência de uma multiplicidade de teorias estéticas, mas essa
possível pluralidade não pode implicar a perda do caráter especulativo e universalista da Estética.
30
É notável, porém, a grande quantidade de exemplos e de descrições sociológicas feitas por Wellek ao
longo do manual, um indicativo de como era e é forte a presença das abordagens extrínsecas nos
estudos literários.
31
Alguns exemplos de possíveis estudos derivados desse tipo de abordagens “A relação entre senhorio
e arrendatário na ficção americana do século XIX”, “O marinheiro na ficção e no teatro inglês” ou “Os
hiberno-americanos na ficção do século XX” (cf. Wellek, 2003:127) revelaram-se uma previsão
impressionantemente acertada sobre o rumos desta vertente dos estudos literários.
68
2.1.3 - Teoria, Crítica, História
No quinto capítulo do manual, “A teoria, a crítica e a História Literária”, Wellek
começa a dar corpo a seu projeto de se estudar racionalmente a Literatura sem
submissão às ciências naturais ou à História. Para tanto, ele propõe que seja admitida a
possibilidade de que se organize um estudo sistemático e integrado da Literatura. O
capítulo, infelizmente, é o que apresenta o maior número de imprecisões e
ambigüidades, que prejudicam consideravelmente a compreensão do projeto de Wellek
e de quais seriam as funções que cada disciplina desempenharia dentro dos Estudos
Literários.
O primeiro problema é encontrado já no início do capítulo, quando Wellek se
interroga sobre qual deveria ser o termo adequado para designar o estudo da Literatura.
Ele levanta algumas possibilidades.
Literary scholarship
32
, seria inadequado porque não conteria o sentido de Crítica
Literária, uma vez que a ênfase do termo recairia nos estudos acadêmicos. Philology
seria problemático porque a noção de filologia abrange uma área de estudos cujo
interesse por textos é mais amplo do que os limites que ele pretende para a compreensão
do termo Literatura, ou ainda porque se confunde com o interesse por questões
lingüísticas ou gramático-históricas. Research é considerado inadequado, pois o autor
entende que o termo se refere a procedimentos preliminares do estudo da obra literária
(como a própria busca do corpus material), mas não denotaria claramente “as sutis
preocupações com interpretação, caracterização e avaliação que são peculiarmente
características dos Estudos Literários” (ibid.:37).
Prosseguindo, antes de eleger um melhor termo, Wellek, estranhamente,
abandona a preocupação com a definição terminológica e parte então para as distinções
internas da disciplina geral
33
(que, na falta de outra denominação, continuarei a chamar
32
Na tradução portuguesa, “erudição literária” (Wellek, s.d.:43), na brasileira, “estudos literários”
(Wellek, 2003:36). Penso que as duas traduções são inadequadas: a primeira em virtude do sentido quase
pejorativo que a palavra erudição possui hoje em dia no ambiente dos estudos literários, onde é usada
muitas vezes para indicar um conhecimento extenso mas estéril; a segunda porque no termo “estudos
literários”, atualmente, está contemplado o conjunto das práticas de estudo do objeto literário, o que não
aconteceria com o termo literacy scholarship, uma vez que Wellek reclama que o termo excluiria a crítica
literária em favor da ênfase no estudo acadêmico.
33
Wellek parece não ter muita simpatia pelo nome que deu a seu livro e que acabaria sendo adotado para
designar uma disciplina acadêmica. No prefácio à primeira edição, ele reconhece a dificuldade de se
escolher um título, e chega a sugerir que talvez fosse mais adequado Teoria da Literatura e metodologia
69
Estudos Literários): História, Crítica e Teoria. Cada uma dessas disciplinas se
distinguiria por possuir concepções distintas de Literatura, que poderiam ser divididas
em duas classificações integradas: (i) a Literatura como ordem sincrônica / a Literatura
como série diacrônica histórica e (ii) o estudo dos princípios gerais / o estudo das obras
concretas.
Wellek distingue os objetivos gerais dos Estudos Literários de tal forma que
poderíamos esquematizá-los como segue:
(i) Uma disciplina que estudasse os princípios gerais da Literatura tomada como
ordem sincrônica;
(ii) uma disciplina que estudasse os princípios gerais da Literatura tomada como
série diacrônica e histórica;
(iii) uma disciplina que estudasse as obras concretas, tomando a Literatura como
ordem sincrônica;
(iv) uma disciplina que estudasse as obras concretas, tomando a Literatura como
série diacrônica e histórica.
Encontra-se aqui um novo problema do capítulo: fica claro, por exemplo, que a
Crítica Literária seria responsável pelo objetivo (iii), mas não é muito preciso se a
História de Literatura se encarregaria de (ii) e (iv), ou se apenas de (iv). E, o que é mais
grave, Wellek fala de teoria como “estudo dos princípios da Literatura, das suas
categorias, critérios, etc.” (ibid.:37), mas não explicita se seus objetivos seriam (i) e (ii),
ou se apenas (i).
A falta de um termo geral para os estudos de Literatura e a pouca clareza na
definição dos limites das três subdisciplinas não são as únicas imprecisões do capítulo.
Mais adiante, Wellek critica quem usa o termo “Crítica Literária” abrangendo a Teoria
Literária, porque “tal uso ignora uma distinção útil” (ibid.:38), porém acha que seu
manual deverá dar conta tanto de uma teoria da Crítica Literária quanto de uma teoria
da História Literária, o que parece querer dizer que o autor subsume a História e a
Crítica Literárias na teoria. Além de uma incoerência em relação a sua própria proposta,
dos estudos literários, título que será recuperado pela recente edição brasileira da obra. Já no “Prefácio à
3
a
edição americana”, de setembro de 1962, ele se refere ao desenvolvimento de suas idéias em dois livros
posteriores: o Conceitos de crítica e o História da crítica moderna, o que parece indicar que teria perdido
o interesse pelo termo “theory of literature”, passando a se referir ao “criticism” como a totalidade dos
estudos literários. È curioso notar que, em língua inglesa, a expressão theory of literature foi quase que
completamente suplantada por literary theory.
70
tal afirmativa representa uma inadequação que já havia sido notada por Roberto Acízelo
de Souza:
(...) a Teoria da Literatura não é uma enciclopédia dos Estudos Literários,
tendente a reduzir as demais disciplinas da área a meros capítulos seus. (...)
[Ela é] uma das disciplinas desenvolvidas no âmbito dos Estudos Literários.
(...) rompendo com a opção historicista prevalente no século XIX, a Teoria da
Literatura se propôs considerar o objeto literário enquanto linguagem, aí se
encontrando tudo indica o centro de convergência das inúmeras
correntes em que se tem desdobrado (Souza, 1987:134).
Wellek afirma que a teoria deveria ser “um órganon dos métodos” e que era “a
grande necessidade da pesquisa literária hoje” (ibid.:9). Se tomada ao pé da letra, essa
afirmação obriga a se admitir que a disciplina geral dos Estudos Literários, para Wellek,
seria a Teoria da qual a História e a Crítica seriam dependentes. Isso, porém,
inviabilizaria a distinção que ele mesmo defende como fundamental, entre teoria,
história e crítica. A situação se torna ainda mais confusa se considerarmos sua definição
de crítica em um livro posterior, a História da crítica moderna:
Entenderei a palavra “crítica” em termos largos para significar não só os
juízos sobre livros e autores, individualmente considerados, a crítica “de
juízo”, a crítica prática, demonstrações de gosto literário, mas também e
principalmente o que se tem pensado a respeito dos princípios e da Teoria da
Literatura, da sua natureza, criação, função, efeitos e relações com as outras
atividades do homem, os seus gêneros, artifícios e técnicas, as suas origens e
a sua história (Wellek, 1967:15).
As profundas incongruências nas proposições de Wellek parecem nascer da
dificuldade que ele encontra em definir, simultaneamente, uma disciplina a teoria
e um conjunto de disciplinas os Estudos Literários, dos quais a teoria seria uma parte
, estabelecendo ainda as relações entre esses dois elementos. Por um lado, ele procura
introduzir a teoria entre as demais disciplinas, mas, por outro, precisa conter os excessos
das abordagens então hegemônicas a História e a Crítica. No entanto é preciso
desconsiderar tais incoerências e aproveitar o que há de mais positivo no projeto de
Wellek, a começar pela proposta de mútua dependência entre os três modos de
abordagem da obra literária:
(...) os métodos assim designados não podem ser usados isoladamente, que
estão de tal maneira entrelaçados que tornam inconcebíveis a Teoria Literária
sem a crítica ou a história, a crítica sem a teoria e a história ou a história sem
a teoria e a crítica. Obviamente, a Teoria Literária é impossível, exceto com
base em um estudo de obras literárias concretas. Não podemos chegar a
critérios, categorias e esquemas in vacuo. Inversamente, porém, nenhuma
crítica ou história é possível sem algum conjunto de questões, algum sistema
71
de conceitos, alguns pontos de referência, algumas generalizações. (...) O
processo é dialético: uma interpenetração mútua de teoria e prática (ibid.:38).
Wellek repudia toda e qualquer tentativa de se isolar os três modos de
abordagem. Ele ataca, por exemplo, o modelo de F. W. Bateson
34
, que propunha a
História Literária como empenhada em demonstrar que “A deriva de B”, trabalhando
com fatos verificáveis, enquanto que à Crítica Literária caberia a distinção “A é melhor
que B”, fundada em opiniões. O argumento de Wellek é o de que a História não lida
com fatos naturais, mas construídos, e que está cheia de juízos de valor (a escolha dos
materiais, das obras e dos autores a serem considerados etc.).
Wellek parece se referir aos juízos, nestas passagens, de modo um tanto lato,
quase como sinônimo de qualquer processo de escrutínio da razão. Seria muito mais
produtivo entender, como ele e Warren propõem em outros momentos, o juízo crítico
como compreendendo dois procedimentos distintos: o juízo ontológico (é ou não é
Literatura) e o juízo de valor (a distinção entre bom e ruim). O juízo ontológico seria,
penso eu, uma questão da Teoria, que poderia fornecer à História as condições para a
aplicação deste juízo, enquanto o juízo de valor propriamente dito estaria restrito à
Crítica. Porém, se, como Wellek defende nesta passagem, a História precisa produzir
juízos (de valor e ontológicos) para ser História, isso não estaria comprometendo
terrivelmente os objetivos da historiografia? Como se daria, efetivamente, essa
colaboração mútua, se a História precisar ser produtora e dependente de juízos e,
concomitantemente, precisar dar subsídios aos juízos da Crítica e da Teoria? Não
estaríamos de fato diante do problema da má definição entre as disciplinas, isto é, o
dilema de não saber qual o limite de um processo metodológico? A presença de juízos
de valor na História não seria indicativa justamente de má compreensão daquilo que ela
pretende ser?
O papel inadequado atribuído à história por Wellek pode ser entendido como
uma conseqüência direta do fato de seu projeto de Teoria da Literatura ser destinado a
suplantar a História de Literatura e seus métodos. Muitos dos argumentos lançados por
Wellek são destinados a criticar e mesmo desautorizar vários modos de historicismo.
Deve-se, portanto, tentar distinguir, no manual, entre um tipo de crítica, polemista,
fruto do choque entre as orientações concorrentes, História e Teoria, e uma boa crítica
34
Artigo publicado na importante revista New Criticism, Scrutiny, IV, 1935, pp. 181-5.
72
realmente perspicaz e ponderada sobre os desacertos dos historiadores no trato com a
obra literária.
Exemplo de boa crítica é a indicação que Wellek faz da pouca atenção dada pela
História de Literatura à análise e à interpretação da obra em si, em comparação com
seus esforços de contextualização: “Afinal, apenas as próprias obras justificam todo o
nosso interesse pela vida de um autor, pelo seu ambiente social e por todo o processo da
Literatura” (ibid.:177). A explicação para esse descaso ele associa às origens românticas
da historiografia literária:
A moderna História de Literatura surgiu estreitamente ligada ao movimento
romântico, que só podia subverter o sistema crítico do neoclassicismo com o
argumento relativista de que tempos diferentes exigiam padrões diferentes.
Assim, a ênfase deslocou-se da Literatura para o seu contexto histórico, que
foi usado para justificar os novos valores atribuídos à antiga Literatura
(ibid.:177).
Para Wellek, o futuro da História de Literatura seria dependente da reavaliação
de alguns de seus pressupostos românticos, de “um alargamento de perspectivas, uma
supressão de sentimentos locais e provincianos” (ibid.:53). Ele tem em mente,
especialmente, a superatenção dedicada às Literaturas nacionais em detrimento da
Literatura como um todo, conforme foi visto na seção anterior.
Outro ponto crítico levantado por Wellek contra a História de Literatura refere-
se ao fato de muitos historiadores tratarem a Literatura como apenas documento
ilustrativo de época e, por serem incapazes de escrever a história de uma arte, escrevem
histórias da civilização. Já outros, embora cientes do estatuto da obra literária e
preconizadores da Literatura como arte, parecem incapazes de escrever a história de
uma arte, e por isso escrevem coletâneas de ensaios críticos (cf. ibid.:345-6).
Como Wellek precisa integrar a História de Literatura a seu modelo de Estudos
Literários, ele precisa propor que papel ela desempenhará. Além das óbvias tarefas
ligadas à cronologia, entende ser a principal tarefa do historiador literário a descrição
das transformações da obra no tempo:
(...) uma obra de arte individual não permanece inalterada ao longo da
história. Há, com certeza, uma identidade de estrutura substancial que
permaneceu a mesma ao longo dos tempos. Mas essa estrutura é dinâmica;
ela muda ao longo de todo o processo da história, à medida que passa pelas
mentes de leitores, críticos e outros artistas. O processo de interpretação,
crítica e apreciação nunca foi completamente interrompido e é provável que
continue indefinidamente ou, pelo menos, enquanto não houver nenhuma
interrupção completa da tradição cultural (ibid.:348).
73
Mas mesmo nesta delegação de funções, Wellek é parcimonioso com a História.
Ele critica os “reconstrucionistas literários” (ibid.:39), defensores de um historicismo
que propõe deter a intrusão dos preconceitos do presente na análise e consideração de
obras do passado:
Como tais estudos não podem senão nos convencer de que períodos
diferentes nutriam concepções e convenções críticas diferentes, concluiu-se
que cada época é uma unidade contida em si mesma, expressada através do
seu próprio tipo de poesia, incomensurável com qualquer outra (ibid.:40).
Para Wellek, o relativismo crítico seria uma conseqüência inevitável dos
esforços de reconstrução histórica, com sua ênfase na sincronia da época e na
descontinuidade da história da poesia, e seria o maior responsável pela atenção
hipertrofiada dada ao papel do autor, suas intenções e seu contexto, no estudo da
Literatura.
Não é, em absoluto, verdadeiro que o estudo de reconstrução histórica esteja
fadado ao relativismo. O que vai determinar a paridade entre as épocas será uma
avaliação crítica que poderá se dar após o trabalho historiográfico, mas que não se
confunde com ele. Ao criticar o esforço da História em não ser anacrônica, isto é, ao
criticar a própria essência da pesquisa histórica, Wellek apenas revela sua dificuldade
em fazer com que a sua proposta de Teoria Literária se concilie com as demais
disciplinas que partilhariam os Estudos Literários.
Se os ataques à história são em geral exagerados e dizem respeito muito mais a
um tipo específico de historiografia literária, a crítica de Wellek ao relativismo é
bastante pertinente. Ele não faz uma defesa do absolutismo doutrinário baseado em uma
natureza humana imutável ou na universalidade da arte, mas no que chama
perspectivismo, uma postura que pretende entender a obra simultaneamente como algo
histórico e universal.
Devemos poder relacionar uma obra de arte aos valores de seu tempo e de
todos os períodos subseqüentes ao seu. Uma obra de arte é tanto “eterna”
(isto é, preserva certa identidade) como “histórica” (isto é, passa por um
processo de desenvolvimento que pode ser investigado). O relativismo reduz
a História de Literatura a uma série de fragmentos distintos e, portanto,
descontínuos, ao passo que a maioria dos absolutismos serve apenas uma
situação transitória do presente ou se baseia (como os padrões dos novos
humanistas, dos marxistas e neotomistas) em algum ideal abstrato não-
literário, injusto para com a variedade histórica da Literatura.
“Perspectivismo” significa que reconhecemos a existência de uma poesia,
uma Literatura comparável em todas as épocas, desenvolvendo-se, mudando,
74
cheia de possibilidades. A Literatura não é nem uma série de obras únicas,
sem nada em comum, nem uma série de obras encerradas em círculos
temporais (...) (ibid.:43).
Entendendo que tanto o absolutismo quanto o relativismo são posições
inadequadas, Wellek considerava, com acerto premonitório, que o relativismo era a
grande ameaça aos Estudos Literários, uma vez que já assumia uma feição “equivalente
à anarquia de valores, à renúncia da tarefa crítica” (ibid.:43). Warren (ibid.:337)
complementa dizendo que a vontade ainda também bastante atual de se reagir ao
autoritarismo real dos cânones geralmente mergulha o pensamento na “ciranda do
gosto” e no aprisionamento à máxima De gustibus non est disputandum.
Warren entendia que a vontade de se objetivar o valor literário não está
necessariamente ligada à dependência estrita a determinados cânones estéticos, fixos e
imutáveis, pois a oscilação do valor da obra literária é inerente à própria característica
do objeto. As qualidades de uma obra existem em potência e não como dados objetivos
a serem apreendidos incondicionalmente. Elas exigem condições de percepção que
podem ser alteradas ao longo do tempo. Mas a aceitação da mobilidade dos padrões de
valor tem por efeito indesejado ficarmos aprisionados à tirania do fluxo. Entre a
limitação de regras absolutas e caducas e o elogio da mudança constante e aleatória, os
autores pretendiam fazer valer duas idéias-chave: a de multivalência e a de
geracionismo. As verdadeiras obras de arte seriam multivalentes, isto é, jamais seriam
apreendidas em sua totalidade. Assim, cada geração pode “descobrir” estratos que ou
foram ignorados ou não foram bem avaliados pelas gerações que lhe antecederam. Um
outro tipo de obra de arte literária seria o daquelas que primariam por uma originalidade
extrema e que, por tal razão, ficariam sujeitas às oscilações do gosto coletivo. Warren
chamará Geracionismo a tal circunstância, em que o juízo individual sobre uma obra é
suplantado pelo gosto estético do momento histórico e social, sendo que tais momentos
se alternariam em intervalos de duração variável ao longo da história.
2.1.4 - O capítulo esquecido
O capítulo XX (The study of literature in the Graduate School) aparece apenas
na 1
a
edição americana da obra. Era o tópico único de uma quinta parte do livro,
chamada de The Academic Situation. Não chegou a ter, pois, tradução em português, já
75
que tanto a edição portuguesa quanto a brasileira se baseiam na 3
a
edição norte-
americana. Os autores optaram por retirá-lo já da segunda edição do manual, de 1956,
alegando que, pouco menos de dez anos após sua publicação, muitas das sugestões de
mudanças nele apresentadas já tinham sido implementadas em vários lugares. O
capítulo, de fato, soa datado em diversos pontos. Mas, além da curiosidade de ser o
único do livro a ser assinado por ambos os autores, apresenta importantes considerações
sobre a idéia de Estudos Literários por eles defendida. Considero importante sua leitura
sobretudo porque muitas das sugestões, que teriam sido adotadas em algumas partes do
mundo, seguem sem ser implementadas no ensino superior de Literatura no Brasil.
Em linhas gerais, pode-se dizer que o capítulo ataca a ausência de um ensino
teórico e metódico nos cursos de pós-graduação em Literatura da época, que se
encontravam divididos, segundo os autores, entre a ênfase exagerada no “método
histórico” e o franco diletantismo. Um problema que, para Wellek e Warren (1949:298),
não se restringia aos Estudos Literários, mas afetava as humanidades em geral,
mergulhadas em problemas causados por uma combinação de atitudes provincianas, de
pseudociências e de ecletismos irresponsáveis.
Os sistemas de ensino de Literatura da Europa são criticados de forma bastante
genérica. Os alemães são censurados por suas “teorias grandiosas” e suas “verborragias
pretensiosas”, que, além de não terem aplicação a nenhuma obra de arte concreta, são
caracterizadas por serem excessivamente nacionalistas e possuírem conteúdo fortemente
racial. Os franceses são atacados por produzirem pouca teoria e por evitarem questões
metodológicas. Os russos recebem uma dupla crítica: os formalistas, por terem
produzido, com a noção de Ostranenie, um novo tipo de relativismo, em que o valor de
uma obra é medido por seu grau de originalidade em relação a uma poética
anteriormente existente; já aos marxistas, sucessores dos formalistas nas academias
soviéticas, a crítica é por terem passado a compreender a Literatura por sua utilidade
social e não mais em sua especificidade literária, conforme argumentos melhor descritos
na subseção 2.1.2.
Os Estados Unidos representavam para os autores (ibid.:288) a maior esperança
de se modernizar o ensino acadêmico da Literatura, o que, em seus termos, significava
dar ao antiquado ensino filológico o seu papel subsidiário, quebrar o provincianismo
lingüístico e dos nacionalismos em geral, trazer a Literatura contemporânea para o
76
âmbito das pesquisas acadêmicas
35
, e, fundamentalmente, dar consciência metodológica
e teórica a esses estudos.
Tornar o profissional de ensino da Literatura um especialista era uma
necessidade primordial para os autores. Para tanto, a formação do professor
universitário de Literatura deveria se distanciar não apenas do historicismo e do tom
opiniático dos críticos de periódicos, mas também se diferenciar do tipo de formação
recebida pelo professor de língua. Tratava-se de uma necessidade urgente, pois a
expansão mundial das universidades gerara uma multiplicação de professores de língua
que se tornavam também encarregados de ensinar Literatura, sem possuir vocação ou
treinamento para tanto
36
:
O professor de Literatura deveria ser ele próprio um literato, assim como
sempre se esperou que um professor de filosofia fosse um filósofo e não um
mero historiador de filosofia. Não importa se como um poeta ou romancista,
ou crítico ou teórico, o professor de Literatura deveria ser alguém com
experiência em Literatura, e que a valoriza como uma arte. Em termos
comuns, ele precisa ser um apologista da Literatura
37
(ibid:290). [tradução
minha]
Já o doutoramento em Literatura não deveria consistir numa formação voltada
para uma especialidade. Um Ph.D. em Literatura deveria ser muito mais um
“Professional man of letters”, alguém que, além de conhecer a Literatura em sua língua
nativa, estivesse minimamente a par da Teoria, da História e da Crítica Literárias, e que
fosse habilitado a discutir livros em sala-de-aula com seus alunos sem necessidade de
recorrer a impressões ou simpatias pessoais (cf. Ibid:292-3). Afinal, o que se poderia
esperar de um professor de Literatura é que ele fosse capaz, com uma preparação ad hoc
adequada, de ensinar e escrever sobre qualquer autor ou período, dentro dos limites de
seu conhecimento de línguas. Para tanto ele precisaria ter um treinamento nos métodos
acadêmicos de estudo da Literatura: a habilidade de avaliar a confiabilidade das
pesquisas publicadas, a habilidade de analisar hipóteses e afirmativas de outros
pesquisadores, a habilidade de analisar um poema, um romance ou uma peça.
35
Wellek e Warren escrevem num momento em que o estudo, por exemplo, de autores contemporâneos
ainda não está plenamente estabelecido.
36
Não era apenas a formação dos professores que recebia a atenção dos autores. Wellek e Warren
(1949:286), ao compararem o ensino universitário nos Estados Unidos e na Europa, percebem a diferença
que a formação anterior dos alunos acarreta para o ensino da Literatura.
37
“The teacher of literature should himself be a literary man, as professors of philosophy are, still,
expected to be philosophers, not merely historians of philosophy. Whether a practicing poet or novelist or
a critic or theorist, he should be a man who has experienced, and who values, literature as an art. In the
traditional sense, he should be an “apologist” for literature.”.
77
Os departamentos de Literatura também precisariam sofrer mudanças
significativas. Deveriam deixar de ser organizados em função dos especialistas em
autores e passar a privilegiar especialistas em diversos métodos e abordagens. Um
departamento bem composto deveria abranger teóricos, filósofos com interesse em
Literatura, poetas, professores ligados a questões sociais e políticas, especialistas em
drama, em romance, em poesia, professores com formação voltada para as relações
entre psicologia e Literatura, entre Literatura e religião etc. Os currículos necessitariam,
obviamente, acompanhar tais mudanças, e passariam a ser compostos por cursos
voltados para a Teoria, para as abordagens específicas da Literatura (biográfica,
sociológica, ideológica), para os estudos das relações entre Literatura e outras artes,
entre Literatura e Filosofia (ibid.:294). Por fim, os departamentos de Literaturas
nacionais deveriam ser reformulados e concentrados em um grande departamento de
Literatura Geral ou Internacional, ou ainda, simplesmente, de Literatura (ibid.:296).
Por fim, Wellek e Warren lamentavam a impressionante incapacidade dos
acadêmicos em comunicarem entre si seus trabalhos em um nível razoável de abstração.
Essa falta de habilidade de comunicar, para indivíduos de outras disciplinas ou
disciplinas afins, as hipóteses e as conclusões de suas pesquisas indicavam para os
autores um lamentável rompimento entre os elos da cultura. E numa Europa
recentemente devastada pela guerra, eles lamentavam:
Muito embora o mundo não vá ser reagregado pela semiótica ou pela
Filosofia, uma singela dose de comunicação intelectual entre cientistas,
cientistas sociais e humanistas pode ajudar a manter unido o que ainda restou
(ibid.:296)
38
. [tradução minha]
2.1.5 - Os pontos-chave do manual de Wellek & Warren
Conforme minha proposta de trabalho, o Teoria da Literatura servirá, ao longo
deste trabalho, como um marco zero dos projetos de Teoria da Literatura no século XX.
Com o intuito de podermos nos remeter com clareza aos pontos-chave do modelo
teórico de Wellek e Warren, procurei explicitar e sistematizar as respostas às três
questões de minha proposição metodológica: “o que é Literatura?”, “o que são os
Estudos Literários?” e “o que é Teoria da Literatura?”.
78
2.1.5.1 - O Conceito de Literatura
(i) Wellek e Warren tomam a Literatura como uma arte. Como tal, a obra
literária possui uma particular posição ontológica. Não é real (no sentido de que não tem
uma existência física), nem exclusivamente mental (pois possui uma contrapartida
material), nem ideal (não pode ser descrita em termos lógicos, como a noção de um
triângulo). É um sistema de normas implícitas, intersubjetivas, acessíveis apenas através
de experiências individuais orientadas pela estrutura sonora de suas sentenças.
(ii) O conjunto de normas e estruturas da obra de arte literária age sobre a língua,
matéria da Literatura. A Literatura se constituiria, pois, como um determinado uso da
língua, que se distinguiria dos demais usos (científico e cotidiano), por ser altamente
conotativa e por produzir significados através da própria materialidade do signo.
(iii) A obra literária possui vida, no sentido de que tem uma origem no tempo,
transforma-se por conta das leituras que dela são feitas e lhe acrescentam sentidos, e
pode vir a perecer, pois é dependente de algum veículo ou mecanismo que possibilite
sua preservação.
(iv) A leitura de uma obra literária é um processo cognitivo sui generis, pois a
Literatura oferece uma experiência absolutamente singular, devendo ser entendida como
fonte de um conhecimento além ou aquém do racional.
(v) A obra literária é apenas parcialmente realizada no ato de leitura. Qualquer
experiência individual de leitura é uma tentativa de apreensão da estrutura de normas e
padrões da obra. A estrutura de uma obra literária constrange a leitura que dela é feita e
resiste às imperfeições de nossas leituras. Estamos sujeitos, pois, a interpretar mal ou a
não compreender as normas e a estrutura da obra de arte.
(vi) A obra literária tem como referência um mundo ficcional, inventivo,
imaginativo. A ficcionalidade é, deste modo, um critério de distinção entre o que é e o
que não é Literatura. Assim, a verdade da Literatura não se confunde com a verdade
que pode ser metodicamente verificada.
38
“Though the world will not be put together again by semiotics or even philosophy, a modest degree of
intellectual communication between scientists, social scientists, and humanists can do much to hold
together what remains.”
79
2.1.5.2 - A compreensão dos objetivos dos Estudos Literários
(i) Os Estudos Literários devem ser rigorosos e metódicos, ainda que seus
métodos nem sempre coincidam com os das ciências naturais.
(ii) O saber produzido pelos Estudos Literários deve ser cognitivamente
diferenciado daquele obtido através da leitura direta da própria obra literária.
(iii) Os Estudos Literários precisam lidar com os elementos de generalidade e de
particularidade da obra literária, estando atentos para não se confundir individualidade
com singularidade absoluta.
(iv) Teoria, Crítica e História seriam as subdisciplinas que integrariam os
Estudos Literários, e se ocupariam, respectivamente, com a investigação dos princípios
gerais da Literatura, a análise das obras concretas (tomando a Literatura como ordem
sincrônica) e a consideração das obras concretas (tomando a Literatura como série
diacrônica e histórica).
(v) Os Estudos Literários não devem ser uma prática estritamente voltada a
propiciar atos individuais de leitura, mas devem constituir-se como uma tradição
suprapessoal em constante transformação e expansão.
(vi) A Literatura deve ser estudada como um todo. Seria falsa a idéia de uma
Literatura nacional contida em si mesma. A diferença entre as línguas no estudo das
Literaturas foi superestimada, em prejuízo de uma história internacional dos temas, das
formas, das técnicas e dos gêneros. Os estudos nacionais de Literatura devem ser apenas
o ponto de partida para a consideração de uma Literatura universal, o que implicaria
abolir o provincianismo lingüístico.
(vii) Os empreendimentos de cunho filológico-hermenêutico a reconstrução
do contexto histórico e a interpretação à luz dessa reconstituição têm papel
subsidiário e não podem ser o objetivo final dos Estudos Literários.
(viii) Embora os elementos ambientais, contextuais e históricos sejam a matéria
da obra de arte, o interesse do pesquisador em Literatura deveria ser sempre sobre
aquilo que é específico, individual, e que determina a condição artística daquela obra.
Os elementos extrínsecos em geral interessam a um ponto de vista estranho ao do
80
estudioso da Literatura, de competência do historiador, do psicólogo, do sociólogo, do
antropólogo.
(ix) A afluência de métodos e disciplinas das demais ciências humanas nos
Estudos Literários gera uma atenção exagerada aos elementos extrínsecos da Literatura
e é marcada por um grau variável de aceitação do determinismo, que vai do
estabelecimento de relações entre os fatores externos e a obra de arte literária até as
concepções fatalistas da criação artística.
(x) O profissional de ensino de Literatura deve ser um especialista apenas no
sentido de possuir uma formação diferenciada do professor de língua. Deve ser alguém
com experiência em Literatura, e que a valorize como uma arte. Mas o doutoramento
em Literatura, contudo, não deveria constituir uma formação voltada para uma
especialidade. Um Ph.D. em Literatura deveria ser alguém capaz, com uma preparação
ad hoc adequada, de ensinar e escrever sobre qualquer autor ou período, dentro dos
limites de seu conhecimento de línguas, sem necessidade de recorrer a impressionismos
ou simpatias pessoais. Para tanto ele precisaria ter um treinamento nos métodos
acadêmicos de estudo da Literatura: a habilidade de avaliar a confiabilidade das
pesquisas publicadas, a habilidade de analisar hipóteses e afirmativas de outros
pesquisadores, a habilidade de analisar um poema, um romance ou uma peça.
(xi) Os departamentos de Literatura deveriam ser organizados em função dos
diversos métodos e abordagens existentes do fenômeno literário. Já os departamentos de
Literaturas nacionais deveriam ser reformulados e concentrados em grandes
departamentos de Literatura Geral ou Internacional, ou ainda, simplesmente, de
Literatura.
(xii) Os Estudos Literários devem ser organizados de forma a possibilitar que os
acadêmicos comuniquem entre si seus trabalhos em um nível razoável de abstração.
2.1.5.3 - O que é a Teoria da Literatura?
(i) A teoria é pensada por Wellek e Warren como uma disciplina universalista e
generalizante, que estuda os princípios gerais da Literatura e que, dessa forma, fornece
subsídios para a caracterização dos traços individuais de uma obra, um autor, um
81
período ou uma Literatura nacional a ser empreendida pela Crítica e pela História
Literárias.
(ii) A teoria deveria ser um órganon dos métodos e uma espécie de disciplina
geral dos Estudos Literários, da qual a História e a Crítica seriam dependentes
afirmação contraditória [em relação] a outras assertivas dos autores.
(iii) A teoria deve ser perspectivista, encontrando um meio termo entre a fixidez
do absolutismo das tradições e a fluidez do relativismo, que inviabiliza o estudo
sistemático.
(iv) A teoria deve concentrar-se nas obras de arte concretas, isto é, dedicar-se ao
texto literário em si. Para tanto, a recuperação e a atualização dos antigos métodos da
retórica, de poética ou da métrica clássicas devem ser revistos e reformulados em
termos modernos.
2.2 - O MANUAL DA CIÊNCIA DA LITERATURA
Publicado à mesma época do manual de Wellek & Warren, o Análise e
interpretação da obra literária; introdução à Ciência da Literatura” teve larga
influência nos meios universitários brasileiros. Apesar de não conter em seu título a
palavra teoria, entendo que sua inclusão como objeto deste trabalho justifica-se, em
primeiro lugar, por ter funcionado efetivamente como um manual de teoria nos cursos
de letras do Brasil e, além disso, pelo fato de que a Ciência da Literatura apresenta
muitos pontos em comum com a então nascente Teoria da Literatura.
Wolfgang Kayser morreu em 1960, ano da 6ª edição alemã de sua obra. Entre
1941 e 1946, lecionou Literatura Alemã em Portugal, onde permaneceu até 1950.
Publicou o manual em 1948, simultaneamente em língua portuguesa e alemã (Das
Sprachliche Kunstwerk era o título alemão). Segundo o próprio autor, os livros diferiam
apenas quanto aos exemplos utilizados. A 1ª edição em língua portuguesa tinha por
título Fundamentos da interpretação e da análise literária.
A versão de maior circulação no Brasil é a segunda, de 1958, baseada na 4ª
edição alemã. Trata-se de uma revisão extensa e substancial, segundo o revisor Paulo
Quintela e o próprio autor, que chega a atribuir metade da autoria ao colega português
82
(cf. Kayser, 1976:XIX). O título é alterado, e o novo subtítulo, “introdução à Ciência da
Literatura”, apenas reforça a filiação intelectual da obra.
A sua edição mais recente é a 7ª, de 1985. Entre esta e a segunda, não há
diferenças significativas, exceto por revisões de tradução e de atualização de
bibliografia, segundo o próprio Quintela.
2.2.1 - O conceito de Literatura em Kayser
Já no Prefácio à 1ª edição portuguesa, aparece um primeiro esboço de definição
conceitual de obra literária, em termos muito próximos aos de Wellek & Warren: a
Literatura é descrita como uma obra de arte cuja matéria prima é a língua (ibid.:XVII).
E as semelhanças não param por aqui. Kayser também nega que a essência da Literatura
seja a sua capacidade de representação da realidade, isto é, nenhuma obra literária deve
ser entendida, sumariamente, como um simples reflexo de qualquer outra coisa. Ainda
em termos muito semelhantes aos propostos no Teoria da Literatura, o professor
alemão reafirma a necessidade de se compreender a obra literária “como estrutura
lingüística fechada e completa em si mesma” (ibid.:XXI).
A definição de obra literária para Kayser conjuga arte e língua. Para tanto, ele
estabelece dois critérios: o primeiro deles estabelece uma distinção bastante ampla, que
parece fazer coincidir a noção de texto literário com a noção simples de texto: “(...) todo
o texto ‘literário’ (no sentido mais lato da palavra) é um conjunto estruturado de frases
fixado por símbolos” (ibid.:6). Essa primeira distinção, um tanto estranha por sua
incapacidade discriminatória, não visa a diferenciar a Literatura de outros textos, mas
apenas de conjuntos não estruturados de frases: “As frases, alinhadas umas às outras, no
texto de exercícios de uma gramática, para estudos de qualquer regra, não são um
conjunto estruturado, não são, pois um texto literário” (ibid.).
Esse grande “conjunto estruturado de frases fixado por símbolos”, acrescenta
Kayser, possui, obviamente, “um conjunto estruturado de significados”. Mas Kayser
ainda está num nível de definição que parece pretender apenas dar conta da matéria da
Literatura: a significação é uma propriedade da língua, não da Literatura. É neste ponto
que, finalmente, ele introduz o segundo critério de definição e apresenta assim aquilo
que distinguiria o texto literário dos demais textos:
83
(...) os significados das palavras já não se referem a fatos reais. Pelo
contrário, os fatos aqui adquirem qualquer coisa de estranhamente irreal, pelo
menos uma existência peculiar, absolutamente diversa da realidade. Os fatos
ou, como também diremos, a objetualidade (que, é claro, abrange também
seres humanos, sentimentos, acontecimentos) existem somente como
realidade evocada por estas frases poéticas. As frases do poema têm a
capacidade de provocar a sua própria objetualidade (ibid.:6).
Como ocorre na proposta de Wellek & Warren, o modelo de Kayser apresenta a
Literatura como uma produção textual com um estatuto particular de referencialidade: a
obra literária produziria suas próprias referências. Mas a essa delimitação, Kayser,
surpreendentemente nomeia Belas Letras
39
, e não Literatura. Trata-se de uma curiosa
introdução repentina do termo em meio a sua tentativa de delimitar o literário no
conjunto dos discursos. Ele dirá que é “legítimo afirmar que as Belas Letras são o objeto
especial da Ciência da Literatura, e que, em face dos outros textos, se apresenta como
algo de suficientemente diferenciado” (ibid.:7). Embora ele julgue suficiente a descrição
feita de Literatura ou, em seus termos, Belas Letras , sua conceituação é precária e
pouco aprofundada. Fica-se sem saber ao certo se as Belas Letras são uma parte da
Literatura ou a própria Literatura e, o que é ainda mais problemático, o porquê de uma
disciplina que se apresenta como “Ciência da Literatura” ter por objeto algo que não se
chama “Literatura”, mas “Belas Letras”...
Ainda que empregue com freqüência termos como “estrutura lingüística” e
“totalidade da obra”, elementos que diferenciariam o texto literário dos demais textos,
tais noções-chave são pouco discutidas e tornam muito frágeis os pressupostos de uma
disciplina que se pretende uma “ciência”. Mesmo a noção de Belas Letras,
abruptamente introduzida em seu processo de conceituação de obras literárias, é tão
inconsistente que Kayser praticamente a abandona ao longo do manual, e usa com muito
mais freqüência o termo “Literatura”.
39
O termo “belas letras” corresponde a uma denominação em voga especialmente no século XVIII, que
se baseava em critérios estéticos (a beleza, a sensibilidade) para distinguir certa classe de textos dos de
cunho filosófico ou científicos, pertecentes ao campo da razão (cf. Souza, 2003:6-13). Roberto Acízelo de
Souza também observa que Kayser é um dos poucos a empregar o termo, no século XX, sem o cunho
irônico e pejorativo que carrega, quando aplicado para desqualificar textos “diletantes, conservadores,
frívolos ou reacionários” (ibid.:13).
84
2.2.2 - Os objetivos do estudo da Literatura
Novamente em termos muito parecidos com os de Wellek & Warren, Kayser
observa que, na primeira metade do século XX, o estudo da Literatura, ainda que se
pretendesse uma atividade científica, centrou-se excessivamente na observação da obra
como manifestação de elementos extraliterários. Aproveitava-se a Literatura para se
chegar ao esclarecimento de fatores tais como autor, geração, corrente, ideologia, classe
social, época, a custo de tornar secundários os problemas inerentes ao fenômeno
literário. Para o autor, a obsessão dos Estudos Literários com as relações entre a obra e
aspectos extra-poéticos poderia ser explicada pelo fato de que eles atribuiriam à
“realidade” a verdadeira vida da qual a obra seria um mero reflexo (cf. ibid.:XXI).
A proposta de Kayser retoma um ideal comum tanto ao New Criticism de
Warren quanto ao Formalismo Russo tão bem conhecido por Wellek: pensar a obra
como uma estrutura lingüística auto-suficiente: “A obra de arte literária vive como tal e
em si mesma” (ibid.:430). Tal compreensão é a garantia para que o pensamento não seja
traído por um historicismo que arrastaria a obra de arte “para o redemoinho de um
relativismo psicológico ou histórico ou nacional” (ibid.:431).
Em seus termos, a principal tarefa da investigação literária é “a determinação das
forças lingüísticas criadoras, a compreensão da sua cooperação e a tentativa de tornar
transparente a totalidade da obra isolada” (ibid.:XXI). Como as formas lingüísticas do
texto literário, em sua totalidade, não diferem das demais manifestações da língua, não
deve ser objetivo da Ciência da Literatura apurar todas as formas empregadas num texto
literário. Elas só interessariam aos Estudos Literários na medida em que contribuíssem
efetivamente para a constituição da obras literárias (cf. ibid.:105). Não é claro,
infelizmente, no trabalho de Kayser, como se daria essa seleção de quais formas são
importantes para o estudo da obra literária.
Ainda que proponha a sua débil concepção de “Ciência da Literatura” como
núcleo dos Estudos Literários, Kayser garante não desconsiderar a importância da
História de Literatura, que iria ser beneficiada com as conquistas da investigação
científica. Ele comenta que, enquanto as Poéticas clássicas e iluministas eram
normativas e se baseavam na crença em um gosto único, a era moderna passou a
experimentar, com a arte, outras possibilidades “além das do deleite estético e da
85
compreensão intelectual” (ibid.:14). Baseando-se em exemplos de como nosso
julgamento sobre uma obra muda ao sabermos quando foi realizada ou quem é seu
autor, Kayser observa com acerto que novos critérios passaram a influenciar o
julgamento a obra passou a ser vista também como documento ou como expressão de
um criador. Essa transformação teria marcado o término de um período em que se
experimentava uma pura emoção estética, que acabou dando espaço à “interpretação
histórica e descritiva”, fazendo surgir a História de Literatura (cf. ibid.:16).
Kayser acredita que a Ciência e a História de Literatura, como adversárias da
normatividade da Poética Clássica, confundiram-se por um tempo. Os historiadores,
porém, teriam sucumbido a idéias românticas, como aquela que vê na obra literária o
produto de um gênio criador: “Basta consultar a maioria das histórias das Literaturas
ainda hoje representativas, para verificar que, no fundo, não são mais do que um
encadeamento de monografias sobre poetas” (ibid.:16).
Kayser discorda ainda de outros pressupostos da História de Literatura. Para ele
não há ciências nacionais da Literatura, pois “as forças que constituem a estrutura
lingüística da poesia bem como a sua forma são quase em toda a parte as mesmas”
(ibid.:XXII, grifo meu)
40
.
No que diz respeito à Filologia, Kayser sustenta posição muito próxima de
Wellek & Warren: os métodos filológicos teriam um papel subsidiário e consistiriam
num estágio preparatório dos Estudos Literários. Uma vez que a obra literária é
entendida sobretudo como “texto”, o estudo científico deve orientar-se por produtos do
trabalho filológico, tais como edições críticas, determinação de autoria, da data de
produção etc. (cf. ibid.:21). Também como os autores de Teoria da Literatura, Kayser
censura os exageros positivistas que elevavam o trabalho filológico ao objetivo final do
estudo da Literatura, e limitavam o trabalho prático à “edição crítica dos textos,
investigação das fontes e gênese das obras e (...) das circunstâncias da vida do poeta”
(ibid.:16).
Em relação à Crítica Literária, Kayser é incisivo em separar a Ciência da
Literatura da crítica que era feita em salões e nos jornais. Ele destaca a importância de
se estabelecer e fixar uma terminologia técnica que, reunindo em si o resultado da
investigação sobre a Literatura que se transmite ao longo do tempo, seria a principal
86
arma contra trabalhos “empolados” e repletos de “classificações subjetivas”, que
indicariam, já pelo estilo, “uma maneira de pensar inadequada” (cf. ibid.:41). No
próprio manual, Kayser se esforça para definir vários daqueles que chama conceitos
fundamentais da análise literária, bem como recuperar a terminologia dos antigos
tratados de versificação
41
.
2.2.3. O projeto teórico de Kayser
A sistematização das questões teóricas era exatamente o objetivo da Ciência da
Literatura (cf. ibid.:10). O manual tinha por objetivo oferecer uma iniciação a esses
problemas suscitados pelas obras literárias. Kayser defendia o estabelecimento de uma
nova concepção metodológica que conseguisse sintetizar a diversidade das análises
possíveis sobre as obras literárias.
A síntese dos métodos era dependente, contudo, do cumprimento de algumas
exigências. Em primeiro lugar, Kayser considerava fundamental atingir-se um grau
mínimo aceitável de objetividade dentro dos Estudos Literários:
O intérprete (...) nunca poderá abstrair da sua individualidade, nem da sua
época, nem da sua nacionalidade (...). Tudo isso, contudo, não destrói o
direito e a necessidade de uma apreensão tanto quanto possível objetiva dos
textos literários, nem conseguiu soterrar os impulsos para a atingir (ibid.:4).
Objetividade e cientificidade se confundem no projeto de Kayser, e ele não é
muito esclarecedor sobre os aspectos em que a Ciência da Literatura seria mais objetiva
do que as demais práticas dos Estudos Literários. O que se observa é a interferência
constante de elementos estranhos a sua proposição de se evitar a subjetividade. A título
de exemplo, remeto aos “dotes” necessários ao estudioso da Literatura, isto é, ao
conjunto de qualidades fundamentais, segundo o autor, para alguém que pretende ser
um especialista da Literatura: (i) “apreender problemas teóricos como tais” (ibid.:3), (ii)
“compreender os métodos científicos” (ibid.), (iii) aplicar, por si próprio, os métodos na
resolução de novas questões” (ibid.) e (iv) “vocação para o objeto imediato de estudo”
(ibid.:3).
40
Note-se, contudo, que o uso da palavra quase cria a lacuna que justificaria pensar-se a Literatura em
termos nacionais.
41
Paulo Quintela, tradutor da obra, reforça essa preocupação “de fixar a terminologia e o vocabulário
técnico da ciência literária”, mas buscando apoio na “nomenclatura alemã, indubitavelmente a mais
rigorosa e diferenciada” (Quintela in Kayser, 1976:XV).
87
Esse quarto requisito
42
, pouco científico, não é, para Kayser, algo acessório, mas
fundamental, pois representa exatamente aquilo que permitiria perceber “o que há de
específico na obra poética” (ibid.). Com isso, ele flexibiliza perigosamente sua noção de
ciência, ao introduzir um elemento que não pode ser transmitido racionalmente e que
aproxima o estudioso da Literatura daquele que possui um dom. E como tal qualidade
inata não pode ser medida ou avaliada, o discurso da Literatura ficaria novamente
aprisionado no plano da opinião e dos caprichos pessoais.
A vocação, no projeto de Kayser, parece se justificar apenas como um
argumento contra aqueles que acusam os estudos de arte de destruírem a sensibilidade
artística. Ele contesta o positivismo dominante e defende que os temas metafísicos
sejam reintroduzidos nos Estudos Literários:
Se o trabalho positivista da Literatura do século XIX se contentou com o
tratamento a dar às questões filológicas e aos fenômenos analíticos, e, na sua
ânsia de só avançar em terreno absolutamente seguro, deixou de lado
questões mais profundas do domínio da metafísica, tal limitação das
possibilidades duma ciência do espírito pareceu então inadmissível
(ibid.:244).
Já observei anteriormente que não é clara, na proposta de Kayser, sua exata
compreensão de qual seria a cientificidade da Ciência da Literatura. O que se sabe é que
ele a imaginava compreendida como parte de uma ciência da língua. Ao contrário do
que pensava Wellek & Warren, ele entendia que a especialização que fez acentuar a
separação entre Estudos Literários e Lingüística prejudicava a eficiência daqueles.
Especialmente a Estilística merecia sua admiração. Tomando “estilo” com o conceito
que abrangeria “a totalidade das formas lingüísticas de uma obra” (ibid.:105), ele a
considerava como a corrente de estudos que se diferenciaria da Lingüística por se
interessar pelos traços estilísticos, isto é, pela freqüência com que certos fenômenos
lingüísticos ocorreriam em uma obra. Permanece sem maiores explicações qual a
relação que haveria entre a recorrência de certas formas lingüísticas em um texto e seu
caráter de obra de arte.
Elevando o estilo à condição de “âmago da ciência e da História de Literatura”
(cf. ibid.:301), Kayser faz questão de defini-lo em contraste com a noção veiculada pelo
termo no século XIX:
42
Ao mesmo tempo que é uma condição sine qua non para a compreensão da obra literária e, portanto,
para seu estudo, a vocação corresponde também a um risco, pois conduz a um “entusiasmo” que
“ultrapassa, na maior parte das vezes, o interesse teórico” (ibid.).
88
A concepção de estilo que poderíamos denominar como antiquada é aquela
que dominava a maneira de ver do século XIX e que ainda hoje vive uma
existência, de modo algum sombria, nalguns escritos populares. No fundo
serve-lhe de base a interpretação da obra poética como algo de “fabricado”
conscientemente, algo que não passa de linguagem arrebicada e enfeitada
com determinados meios. Esses meios são as conhecidas figuras retóricas da
antiguidade. A investigação dum texto consiste, nesses casos, na mera
enumeração das figuras retóricas que nele estão contidas (ibid.:302).
A passagem acima é sintomática. Primeiro porque deixa transparecer que Kayser
está alinhado a um modo de compreensão da obra literária como algo que se produz, em
alguma medida, de modo inconsciente um ponto de vista que certamente o aproxima
de uma visão de Literatura mais romântica do que moderna. Depois, porque se percebe,
quando se observa qual é, no manual, o entendimento e o uso do termo “estilo”, que as
diferenças entre seu conceito e os anteriores não são tão profundas quanto Kayser quer
nos fazer crer, especialmente no que se refere ao forte caráter prescritivo de que o termo
se reveste no livro: “A estilística que se conserva sempre atual é o ensino do bom estilo,
ou melhor, do emprego ‘adequado’ da linguagem” (ibid.:303).
Aos poucos se revela o quanto o pensamento de Kayser é dependente de
categorias e métodos característicos de disciplinas clássicas de estudo da Literatura. As
figuras de retórica, por exemplo, recebem minuciosa atenção, embora não haja
sistematização nem atualização dos pressupostos da Retórica tradicional. Ainda que se
esforce por se livrar do componente normativo, é inegável que Kayser se orienta por
uma poética no sentido usado por Pareyson, já referido anteriormente que, em
grande medida, resiste à parte da Literatura moderna do século XX:
(…) o desregramento literário, que de resto se pode observar em todos os
países, provém em boa parte do desprezo da técnica, do ofício e, por
conseguinte da tradição. A par daquele falso conceito de poeta e de criação
literária, a rejeição de toda a sensatez é bastantes vezes produto apenas do
comodismo (ibid.:201).
Traído por sua concepção pessoal de arte, Kayser falha em transformar a Ciência
da Literatura em uma disciplina aberta para a variedade e mobilidade da Literatura.
Como agravante, a indiscutível erudição de seu autor faz com que seu manual apresente
um grande grau de dispersão no tratamento dos temas, especialmente no que toca ao
recurso a exemplificações. Ainda que Kayser relativize a importância dos exemplos em
seu livro, mais da metade do manual é voltada para exemplos, ilustrações e aplicações,
89
muitas de caráter impressionista
43
, pouco sistematizadas, e que se constituem como um
conjunto de comentários descritivos acerca de obras isoladas.
43
Como exemplo, “Obscuro (...) é mais rico em conteúdo emocional, tem mais perspectiva emocional
que escuro” (ibid.:332).
90
3 - CONSTRUÇÃO OU RUÍNA?
“(…) the absence of systematic criticism
has created a power vacuum, and all the
neighboring disciplines have moved in
44
.”
Northrop Frye (1957:12)
O Teoria da Literatura de Wellek & Warren propõe alguns fundamentos para o
estudo teórico da Literatura sem chegar aos detalhes da constituição da nova disciplina.
Além disso, seria uma expectativa injusta se esperar que um livro pudesse ter a força de
regular a prática do estudo da Literatura. Especialmente por ter como uma de suas
qualidades o fato de não ser um receituário de operações a serem aplicadas, ele não
atendia a quem esperava encontrar fórmulas objetivas para se explicar obras literárias.
Principalmente, o manual, por si só, era insuficiente para erigir e consolidar um novo
modo de estudo da Literatura. Para que a teoria se consolidasse como um campo de
estudos sistemático, era necessário que se retomasse o trabalho de Wellek e Warren de
onde eles pararam. Não foi isso, contudo, o que aconteceu.
É verdade que, nos anos seguintes ao lançamento do livro, a preocupação com a
forma da obra literária foi potencializada. Os trabalhos dos formalistas russos, de larga
importância na formação de Wellek, foram redescobertos e traduzidos.
Concomitantemente, um outro tipo de formalismo, advindo da Antropologia via estudos
lingüísticos o Estruturalismo ganha franco acesso aos Estudos Literários. Mas,
por outro lado, os “estudos extrínsecos” obtiveram força renovada, especialmente com
os desenvolvimentos da Sociologia e da nova Psicologia — a Psicanálise.
A diversidade de visões sobre a Literatura não produzia, contudo, discussões
teóricas vigorosas sobre o seu estudo em sua totalidade. Na ausência de trabalhos
amplos sobre a complexidade dos Estudos Literários, multiplicavam-se os ensaios
pontuais sobres temas muito específicos. A radicalidade das posições fazia com que a
Literatura passasse a ser algo superficial e secundária diante daquilo que realmente
91
importava: as teses que precisavam ser comprovadas e defendidas como territórios em
uma guerra, fosse a estrutura de Lévi-Strauss ou a superestrutura de Marx. A
necessidade de escolhas dicotômicas entre forma e conteúdo, consciente e inconsciente,
realidade e ficção, transformou o momento em que os fundamentos da disciplina
precisariam ser aprofundados em um diálogo entre surdos, em que temas
especificamente literários eram tratados grosseiramente como questões de opção
política.
Em 1970, perguntado pelo estado atual dos Estudos Literários, Mikhail Bakhtin
fazia uma descrição sombria do estado da disciplina:
Não há uma colocação ousada das questões gerais, (...) não há uma luta
verdadeira e sadia entre correntes científicas (…). No fundo, os Estudos
Literários ainda são uma ciência jovem, ainda não possuem métodos
elaborados e verificados na experiência como existem nas ciências naturais;
por isso a ausência de uma luta entre correntes e o temor de levantar
hipóteses ousadas acarretam necessariamente o domínio de truísmos e
chavões; destes, lamentavelmente, não há carência entre nós (Bakhtin,
2003:360).
Bakhtin era uma voz singular na época: posicionava-se simultaneamente contra
as principais correntes, por entender que todas desvinculavam a Literatura da história da
cultura, fosse por isolar a obra para estudá-la como uma estrutura autônoma, fosse para
ligá-la imediatamente a fatores socioeconômicos. De modo geral, ele considerava os
Estudos Literários ainda incapazes de lidar com um fenômeno tão “complexo e
polifacético” como a Literatura (ibid.:360-2).
O que se via, num quadro amplo, era uma concorrência de discursos sobre
aspectos isolados da Literatura, conseqüência talvez de um processo crescente de
especialização, que formava “especialistas” incapazes de pensar a Literatura e seu
estudo em sua complexidade. Quando esses estudos pontuais e específicos alcançavam
algum sucesso, seus métodos eram transformados em categorias que eram aplicadas a
exaustão em outras obras, com resultados duvidosos e por vezes calamitosos. O citado
Bakhtin é um dos que sofreram e sofrem com tal problema. Seus estudos sobre as
diversas vozes em romances de Dostoievski fizeram com que termos como dialogismo e
polifonia fossem elevados ao nível de categorias generalistas capazes de serem
“aplicadas” à Literatura como um todo.
44
“(...) a ausência de uma crítica sistemática criou um vácuo de poder que foi preenchido pelas disciplinas
vizinhas”. Tradução minha.
92
Publicado no ano 1967, em Portugal, o manual Teoria da Literatura
45
de Vítor
Manuel Aguiar e Silva é uma obra bastante representativa do estado da disciplina nas
décadas de sessenta e setenta. Sob o pretexto de permitir ao leitor o acesso aos mais
diversos modos de se estudar a obra literária, Aguiar e Silva fez um apanhado de
métodos, correntes, interpretações e projetos teóricos de estudo da Literatura, agrupados
sem nenhum critério explícito, e deu sua contribuição para que a disciplina passasse a
ser entendida como o conjunto assistemático de todos os discursos sobre a Literatura já
produzidos.
Longe de conter uma exposição metódica e coerente de uma disciplina, o
manual é muito mais um compêndio que foi absorvendo quase indiscriminadamente os
trabalhos produzidos sobre Literatura e se tornando, assim, cada vez mais extenso e
caótico
46
. Uma característica marcante do livro são as constantes modificações e
acréscimos feitos pelo autor nas sucessivas edições ao longo dos anos. As alterações
impressionam também pelo curto espaço de tempo em que ocorrem. Apenas um ano
depois do lançamento, Aguiar e Silva já comentava no prefácio à 2ª edição:
(...) alguns capítulos foram remodelados e acrescentados, tendo-se
procurado sobretudo alargar a análise consagrada aos problemas de Crítica
Literária: introduziram-se algumas páginas sobre a sociologia da Literatura,
alargou-se a exposição sobre a estilística, ampliou-se e aprofundou-se o
estudo do estruturalismo (Silva, 1979:13).
Sociologia da Literatura, Crítica Literária, estilística, estruturalismo e muitos
outros convivem lado a lado sob o maleável rótulo de “Teoria da Literatura”, sem que
sequer sejam buscadas as tentativas de hierarquização e de sistematização das
subdisciplinas que se observavam, por exemplo, no manual de Wellek & Warren. E
como o período é marcado por uma intensa produção de discursos sobre a Literatura,
progressivamente novas e diversas possibilidades iam sendo acrescentadas ao livro.
Aguiar e Silva, em 1982, justificava assim a volubilidade das edições de seu manual:
Um livro científico-didático que não se renove, com o espírito de rigor que
deve caracterizar a docência e a investigação universitárias, é um livro
45
A obra teve, em vinte anos, oito edições portuguesas: 1a edição, 1967; 2a edição, 1968; 3a edição,
1973; 4a edição, 1982; 5a edição, 1983; 6a edição, 1984; 7ª edição, 1986; 8a edição, 1987, além de uma
reimpressão em 1988. Há também uma edição brasileira, lançada em 1976, pela editora Martins Fontes,
baseada na 3ª edição portuguesa. Em espanhol, foram nove edições, a última no ano de 1996. Em 1990
foi lançada em Portugal uma versão concisa e adaptada da obra, denominada Teoria e metodologia
literárias, de caráter didático e voltada provavelmente para os cursos de graduação.
46
Na 4ª edição, o manual deixou de ser um volume único e se dividiu em dois tomos.
93
condenado à morte breve. Assim, naturalmente, reescrevemos de novo, na
sua maior parte, esta nossa obra (...) (idem,1991:Prefácio da 4a ed.).
Reescrever a obra, nos termos de Aguiar e Silva, significava em geral adicionar
novas propostas interpretativas. O manual vai assim acumulando modos de
entendimento da Literatura que permanecem em voga até que um outro o substitua. A
Teoria de Literatura se transformava assim numa seqüência contínua de modelos, que se
sucedem como camadas em um processo de sedimentação. Por vezes, no curto espaço
de um ano, o autor era influenciado pelas novidades do cenário dos Estudos Literários e
abdicava de suas antigas posições:
Nessa 5a edição do volume I, reescrevemos na sua quase totalidade o
capítulo 5. Parece-nos que os problemas da periodização literária, à medida
que se vai desagregando o paradigma formalista da Teoria da Literatura e se
vai consolidando a idéia da necessidade de combinar interdisciplinarmente a
história, a semiótica e a sociologia da Literatura, assumem uma relevância
crescente para a inteligibilidade de todos os fenômenos da semiose literária
(ibidem: Prefácio à 5a ed.).
Na passagem acima, o ano era o de 1983, e a 4ª edição havia sido lançada apenas
um ano antes! O açodamento com que os novos discursos são assimilados pelo manual
revela quão pouco autocrítica vinha se tornando a disciplina, incapaz de estabelecer
critérios sobre o que deveria e o que não deveria fazer parte de seu corpo teórico. A
passagem citada expõe o momento em que os estudos de semiótica são absorvidos pelo
manual, juntamente com novas idéias a respeito da importância da interdisciplinaridade.
É uma ocasião delicada para os Estudos Literários, que são novamente invadidos por
metodologias, objetivos e interesses advindos das ciências humanas em geral. Aguiar e
Silva, ao menos aparentemente, está atento para os problemas advindos da mistura entre
métodos e disciplinas:
Um livro científico-didático não deve ser nem um formulário reducionista,
nem um repositório heterogêneo e caótico de informações, destituído de
coerência teorética. Não deve escamotear os problemas e as dificuldades,
não deve impor ou insinuar soluções ideologizantes, não deve desorientar,
confundir ou ludibriar intelectualmente o seu leitor-aluno (ibid.:Prefácio à
4a ed., grifo meu).
Parece, entretanto, haver um abismo entre as intenções e a prática de Aguiar e
Silva. Se não se pode acusar o seu Teoria da Literatura de ser reducionista a própria
extensão da obra lhe acode em defesa , é difícil não ver em seu manual o “repositório
heterogêneo e caótico de informações, destituído de coerência teorética” a que ele se
refere. O estudo da Literatura é por ele apresentado como uma longa conversa que se
94
estende desde a Grécia Antiga até nossos dias, parecendo estar a verdade sempre com
aquele que tem a última palavra.
Esse perigoso rumo tomado pelos Estudos Literários já havia sido percebido
pelo canadense Northrop Frye, que publicou em 1957 o livro Anatomia da crítica
47
.
Embora falasse de “Crítica Literária” e não em “teoria”, ele tinha em mente uma noção
ampla de crítica, que corresponde àquilo que chamo neste trabalho Estudos Literários.
Frye (1973:23) defendia como primeiro postulado para um estudo metódico da
Literatura a necessidade de transformá-lo em um corpo de conhecimento coerente e
inteligível: até o momento, dizia ele, a cronologia era o único princípio organizador
descoberto nos Estudos Literários
48
.
Frye (id.:24) chamava de “visão ingênua” a compreensão da Literatura como
uma espécie de bibliografia enumerativa das obras literárias, “uma vasta massa ou pilha
misturada de ‘obras’ distintas”. Para ele, se a Literatura realmente se limitasse a isso,
qualquer modo de aprendizado criterioso seria realmente impossível. Para que a crítica
seja um estudo sistemático, os textos literários devem possuir alguma característica que
permita que ela seja assim. Sua hipótese era a de que a Literatura precisava poder ser
descrita como algo mais do que um amontoado de obras, assim como, da mesma forma,
as ciências naturais fundam-se na hipótese de que há algum tipo de ordem na natureza:
Crer numa ordem da natureza, contudo, é uma inferência da inteligibilidade
das ciências naturais; e se as ciências naturais chegassem a demonstrar
completamente a ordem da natureza, presumivelmente esgotariam seu tema.
Da mesma forma, a crítica, se é uma ciência, tem de ser totalmente
inteligível; mas a Literatura, como a ordem de palavras que torna a ciência
possível, é, tanto quanto sabemos, uma fonte inexaurível de novos
descobrimentos críticos, e o seria mesmo que novas obras literárias
deixassem de ser escritas (ibid.:25).
Embora admita ser o texto literário uma “fonte exaurível” de novos sentidos,
Frye também defendia ser fundamental reconhecer-se que há discursos sobre a
47
Há duas razões para que eu não tenha tomado o livro de Frye como objeto de meu trabalho. Em
primeiro lugar, uma razão formal: ele não usa o termo “teoria da literatura”, mas “crítica literária”. Além
disso, e este é o motivo principal, ele é concebido como um livro de ensaios, e não se constitui nem
pretender isso como um manual de teoria. Embora tenha pretendido que seu livro fosse uma
experimentação “sobre a possibilidade de uma vista sinóptica do escopo, teoria, princípios e técnicas da
crítica literária”, ele admite que seu projeto tem lacunas que o impediriam de ser apresentado como um
sistema ou como uma teoria (cf. Frye, 1973:11). Para Frye, ainda não era possível se distinguir a crítica
que se pretendia científica ele a chamava erudita daquela que se baseava no gosto e na oscilação
das modas nos seus termos, a crítica pública.
48
Opinião que me parece contestável, uma vez que os gêneros literários são um outro bom exemplo de
princípio organizador bastante fecundo e de longa história dentro do campo de estudos da literatura.
95
Literatura que são sem sentido e que impedem a construção de uma estrutura
sistemática de conhecimento. Mais do que reconhecer sua existência, era necessário se
livrar deles. A lista, para ele, era ampla, e incluía os comentários auto-reflexivos, os
ideológicos e os sentimentais. Em outras palavras, Frye entendia que não poderia haver
uma Crítica Literária criteriosa se ela não empreendesse uma constante autocrítica.
Frye reconhecia também que a crítica é cercada por grande variedade de
vizinhos, com os quais é necessário entrar em contato sem abrir mão de sua
independência. Embora possa parecer interessante conhecer as disciplinas aproximadas,
isso não significa que se precise emular seus métodos ou se instaurar abordagens que
interessam aos objetivos particulares dessas disciplinas. Por exemplo, seria obviamente
possível e razoável que um sociólogo queira trabalhar com textos literários, mas, ao
fazer isso, ele não atenta nem precisa atentar para os valores literários da obra. De
forma inversa, o crítico literário não deve ter obrigações com a Sociologia. Para um
teólogo, por exemplo, talvez um poema de uma religiosidade ortodoxa expresse de
modo mais satisfatório seus conteúdos do que um herético, mas isso não teria
importância para a Crítica Literária. Para o ensaísta canadense, não há qualquer ganho
quando se confundem os objetivos de duas disciplinas. E como os Estudos Literários
sofriam do “vácuo de poder” que a ausência de métodos próprios havia criado, o risco
maior era sempre o de se perder a especificidade do trabalho literário em função das
metas das demais áreas do conhecimento. Ele descrevia a Crítica Literária em um estado
de ingenuidade similar aos das ciências primitivas:
Seus materiais, as obras-primas da Literatura, ainda não são considerados
como fenômenos a serem explicados em termos de uma estrutura conceptual
que só a crítica detém (...). É tempo de a crítica saltar para nova base da qual
possa descobrir quais são as formas constitutivas ou continentes de sua
estrutura conceptual. A crítica afigura-se estar muitíssimo necessitada de um
princípio coordenador, uma hipótese central que, como a teoria da evolução
em Biologia, veja os fenômenos com os quais lida como partes de um todo
(ibid.:23).
3.1 - O MANUAL DE AGUIAR E SILVA
Contrastando com essa busca de Frye por um princípio orientador Aguiar e Silva
defendia a abertura cega aos novos modelos, alegando que o pressuposto
epistemológico fundamental de todo o ensino universitário deveria ser a consciência de
96
que não existem teorias definitivas ou imutavelmente verdadeiras. Retoma-se assim a
um tema que se ia consolidando como o problema axial da Teoria da Literatura: como
equilibrar método e diversidade, fundamentos e relatividade. O problema é onipresente
não apenas no escopo da Teoria da Literatura, mas no dos Estudos Literários e das
ciências humanas como um todo. Como se verá adiante, o manual de Aguiar e Silva não
apresenta muitas respostas a esse impasse.
3.1.1 - A relatividade do conceito de Literatura
Como o método de exposição de Aguiar e Silva se caracteriza pela sobreposição
de discursos sobre um mesmo assunto, e como seu próprio ponto de vista é
constantemente influenciado por tais discursos, não é fácil estabelecer qual o seu efetivo
posicionamento diante dos temas. Apesar dessa dificuldade, procurei aqui sintetizar sua
argumentação a respeito do conceito de Literatura, do papel dos Estudos Literários e da
teoria.
Ainda que reconheça as dificuldades inerentes ao estabelecimento de um
conceito e o fato de ser precária toda tentativa de conceituação de algo como a
Literatura, Aguiar e Silva procura tomar posição diante do polêmico tema. Inicialmente,
critica a solução adotada por autores “positivistas” que suprimiram radicalmente tais
dificuldades, acatando a sugestão etimológica do vocábulo e transformando em
Literatura todas as obras escritas em qualquer época e por qualquer povo,
“independentemente de possuírem, ou não, elementos de ordem estética” (Silva,
1991:14). Tomando a evolução etimológica e semântica do vocábulo “Literatura”, ele
situa na segunda metade do século XVIII o momento em que o termo adquire os
significados relacionados à criação artística e ao “conjunto de textos resultantes desta
atividade criadora” (ibid.:10). Novamente a Estética, como já acontecera em Wellek &
Warren, é evocada como uma espécie de muleta dos Estudos Literários. Fala-se em
nome de critérios estéticos como se a simples menção do termo “estética” fosse
suficiente para se justificar e esclarecer o uso que se está fazendo do termo Literatura,
como se fosse uma palavra mágica capaz de elucidar aqueles mesmos problemas cuja
ignorância Aguiar e Silva acusara nos positivistas: “Como é óbvio (...) apenas nos
97
interessa o [sentido] de Literatura como atividade estética, e, conseqüentemente, como
os produtos, as obras daí resultantes (Silva, 1979:16)”.
Ao considerar “óbvia” sua opção, Aguiar e Silva transforma num partis pris
aquilo que deveria ser a conclusão de um raciocínio. Sem sequer dar maiores detalhes
sob sua compreensão de atividade estética, enumera diversas compreensões de
Literatura, em autores como Aristóteles, Mukarovsky, Jakobson, Hjelmslev, Ingardem,
Zumthor etc., para, depois, optar por uma classificação lingüística da obra literária: “(...)
não será muito difícil estabelecer uma distinção entre linguagem literária e linguagem
não literária, de modo a ser possível discriminar (...) no plano ontológico (...) os
limites da Literatura” (ibid.:69).
A confiança de Aguiar e Silva na distinção lingüística parece total e, no contexto
de sua exposição, completamente injustificada. Afinal, logo em seguida, ele se eximirá
de elaborar um conceito de Literatura, justamente pela impossibilidade de se chegar aos
fatores determinantes da literariedade:
Não será possível, todavia, definir o conceito de Literatura através de uma
fórmula mais ou menos condensada em que se tenha apenas em conta uma
das qualidades assinaladas como distintivas do discurso literário. Com
efeito, dado o caráter heterogêneo da Literatura, nem a ficcionalidade, nem a
particular “ordem sobreposta” às exigência da comunicação lingüística
usual, nem a plurissignificação constituem fatores que, isoladamente,
possam definir satisfatoriamente a literariedade (ibid.:69).
Não se trata aqui de criticar a incapacidade do autor em sintetizar um conceito
de Literatura. O que faço notar são as contradições de sua exposição. Os fundamentos
de sua argumentação são invalidados por ele próprio, uma conseqüência direta da
mescla indiscriminada de pontos de vista sobre problemas literários diversos. É
compreensível que Aguiar e Silva se esforçasse para distinguir a Literatura de outras
formas textuais, mas era de se esperar que um livro de “teoria” devesse ser mais
cuidadoso no tratamento das questões-chave da disciplina.
Nas últimas edições da obra, Aguiar e Silva aumentou o grau de complexidade
de sua discussão sobre o conceito de obra literária, passando a problematizar a definição
referencial
49
de Literatura, ao tomar o argumento que postula não se poder descrevê-la
“como idéia essencialística” por não haver “nenhum denominador comum para todas as
49
“Por definição referencial ou real, entende-se a definição que explica a natureza do objeto definido e
por definição nominal, aquela que explica o significado de um termo” (Silva, 1991:40).
98
produções ‘literárias’, a não ser o uso da linguagem”, o que obrigaria a “procurar no(s)
sujeito(s) leitor(es) o fundamento do conceito [.]” (Silva, 1991:17-18).
Referindo-se a Wittgenstein, o professor português comenta que falar em
essências conduziria à ontologização de enunciados e a esquecer-se que os conceitos são
instrumentos uma vez que, quando se fala em essência, se estaria falando em termos
de uma determinada convenção lingüística, funcional apenas em um determinado jogo
de linguagem. Contudo, ele radicaliza o pensamento do filósofo austríaco, ao lhe
atribuir um ceticismo que tornaria “aleatória a fundamentação de qualquer teoria
científica” (ibid.:22-23). Em conseqüência, Aguiar e Silva, com a desenvoltura de quem
passa de Lukács a Stanley Fish no mesmo raciocínio, descarta Wittgenstein:
(...) os objetos (...) que são denominados com a mesma palavra apresentam
uma comum capacidade para serem utilizados do mesmo modo ou de modo
similar, satisfazendo ou dando uma resposta a determinados anseios, desejos
e finalidade do homem. E tal comum capacidade não pode ser totalmente
alheia à constituição dos próprios objetos (ibid.:27).
Amenizado o grau de indeterminação dos conceitos, aponta-se agora para a
possibilidade de que haja algo comum nas coisas que são referidas pelo mesmo nome.
Aguiar e Silva parece então mover-se de volta para um plano da referencialidade do
conceito:
(...) quando se pretende formular uma definição referencial ou real de
Literatura, delimitando e caracterizando os elementos constitutivos da
literariedade, o que se procura estabelecer (...) é o conjunto das propriedades
específicas da arte que se designa por Literatura (...). (idem, 1991:29-30).
Retoma assim o autor o modo de conceituação empregado nas primeiras edições.
A Literatura é uma arte, a literariedade é o conjunto de propriedades específicas da obra
de arte. Mas se incorre aqui numa confusão entre palavra e conceito. Traços de
significado da palavra Literatura são trazidos para o plano da conceituação, exigindo
que o conceito “Literatura” dê conta de todos os usos que a palavra “Literatura” tem no
senso comum. Procura-se assim um objetivo impossível: o de conciliar o termo em seu
uso cotidiano, como palavra da língua, com sua função instrumental, como conceito
50
.
O engano de se considerar a Literatura inteiramente resistente a conceitos
consiste exatamente em pretender tornar equivalentes um conceito e uma palavra do
senso comum, como pretende Aguiar e Silva: “Por um lado, é necessário considerar a
50
Voltarei ao problema dos conceitos nos estudos literários nos capítulos finais.
99
Literatura como sistema semiótico de significação e de comunicação; por outro, a
Literatura como conjunto ou soma de todas as obras ou textos literários” (ibid.:30).
Como conseqüência, chega-se sempre aos clichês aporéticos a respeito da relatividade
do conceito de Literatura:
Tem de se reconhecer, primeiramente, como inquestionável o relativismo
histórico do conceito de Literatura relativismo de que o tardio
aparecimento da designação Literatura é uma reveladora prova e, ao mesmo
tempo, uma conseqüência. Torna-se extremamente difícil, senão impossível,
estabelecer um conceito de Literatura rigorosamente delimitado intencional e
extensionalmente que apresente validade pancrônica e universal e por isso
mesmo é cientificamente desaconselhável impor dogmaticamente à
heterogeneidade das obras literárias produzidas durante cerca de vinte e cinco
séculos (ibid.:30).
Mais uma vez há uma inadequação na caracterização de um conceito. Conceituar
algo não significa normatizá-lo dogmaticamente, mas torná-lo um objeto de estudo.
Contudo, nos Estudos Literários, de forma geral, as discussões não são conceituais, mas
sobre os sentidos da palavra “Literatura”. Não é pelo fato de as obras literárias serem,
como diz Aguiar e Silva, um “sistema aberto”, ou “um conjunto aberto de textos”, ou
por se encontrarem sempre em transformação ao longo do tempo, que a busca da
conceituação deva ser descartada a priori porque inviável.
Fiel ao seu método evasivo, o autor concluirá de modo paradoxal. Dirá haver
uma “mutabilidade diacrônica e sincrônica do conceito de Literatura”, mas também dirá
acreditar na “persistência” e na “estabilidade” de alguns valores próprios dela. Resta-
lhe, pois, a solução salomônica: “um relativismo histórico mitigado que tem sempre em
conta o condicionamento histórico-cultural, mas que não exclui a existência de certas
regularidades fundamentais ou de certos fatores invariantes” (ibid.:33).
(...) as objeções e as dúvidas sobre a possibilidade de uma definição
referencial de Literatura são pertinentes sob vários aspectos, obrigam a
reexaminar com novo rigor soluções teóricas rotineiras, mas revelam-se
também, nalguns pontos muito importantes, mal fundamentadas,
teoricamente inconsistentes e empiricamente refutáveis. Se o reconhecimento
da relativa heterogeneidade diacrônica e sincrônica da Literatura constitui
uma atitude correta sob o ponto de vista teorético, dever-se-á considerar
como falsa e metodologicamente insustentável a posição dos que
hiperbolizam essa heterogeneidade ao ponto de concluírem pela
impossibilidade de se caracterizar a Literatura, a não ser através de
caracterizações de tipo pragmático-nominalista. Os conceitos abertos e as
“semelhanças de família” de Wittegenstein, instrumentos fecundos ao serviço
do relacionismo e do relativismo históricos, não podem ser nem tão ‘abertos’
que deixem de ser conceitos, nem tão heterogêneas que se convertam em
dessemelhanças, senão em antagonismos (Silva, 1991:39).
Conciliando as correntes ao propor uma espécie de ponto de fuga a ser alcançado
em futuro incerto, Aguiar e Silva não mais reafirma, nem nega, o conceito de Literatura
com o qual trabalhava nas primeiras edições de seu livro. Esse posicionamento reticente
se tornaria característico dos manuais de Teoria da Literatura, que passam a acatar a tese
relativista como razão para não enfrentar a necessidade de explicitar seu conceito
operacional de Literatura, limitando-se a discutir os problemas relacionados à
conceituação. O relativismo vencia outra batalha dentro dos Estudos Literários.
3.1.2 - A Teoria da Literatura e os Estudos Literários em Aguiar e Silva
É grande a dificuldade de se estabelecer quais as funções dos Estudos Literários
na concepção de Aguiar e Silva, sobretudo em virtude da amplitude dos temas por ele
abordados, o que é plenamente observável nos títulos dos capítulos que compunham
uma das primeiras edições, ainda em volume único: I O conceito de Literatura. A
Teoria da Literatura; II Funções da Literatura; III A criação poética; IV Gêneros
Literários; V Lírica, narrativa e drama; VI O romance; VII A periodização
literária; VIIIManeirismo e barroco; IX Classicismo e neo-classicismo; X
Rococó, pré-romantismo e romantismo; XI Origem e desenvolvimento dos modernos
estudos de história e Crítica Literárias; XII A História Literária segundo a
metodologia de G. Lanson; XIII O formalismo russo; XIV O new criticism; XV A
estilística; e XVI A problemática do estruturalismo
51
.
Desta enumeração, podem ser tiradas algumas observações relevantes. Em
primeiro lugar, o critério de sistematização dos temas é incerto: não é compreensível o
porquê de lírica, narrativa e drama constituírem um mesmo capítulo, enquanto o
romance recebe um outro isolado. O autor não apresenta nenhum argumento capaz de
explicar a razão de o romance ser uma espécie literária que necessita de um capítulo
isolado. Em edições seguintes, o capítulo sofreria modificações e se passaria a chamar
“O romance: história e sistema de um gênero literário”, elevando o romance da
condição de uma espécie narrativa a de um gênero autônomo. Um segundo ponto a se
destacar seria a enorme atenção dedicada à periodização literária e aos estilos de época,
temas muito mais pertinentes à História do que à Teoria da Literatura. Por fim, não se
pode deixar de apontar a estranheza de haver um capítulo voltado para um autor
específico de História da Literatura, Gustave Lanson, especialmente em função de uma
distinção feita pelo próprio Aguiar e Silva:
(...) determinada a natureza da obra literária, impõe-se o estudo das
possibilidades, dos fundamentos e propósitos da disciplina que nos ocupa
a Teoria da Literatura. O objeto material da Teoria da Literatura já está,
evidentemente, estabelecido a Literatura , mas torna-se necessário
discriminar o ângulo específico por que é encarado este objeto: é necessário,
em suma, determinar o objeto formal da Teoria da Literatura, o qual não
se identifica com o objeto formal da História Literária ou da Crítica
Literária, por exemplo (Silva, 1979:73, grifo meu).
Novamente, há um claro descompasso entre o discurso de Aguiar e Silva e sua
prática: em nenhum momento se definirão formalmente quais são os objetos da Crítica,
da História e da Teoria, e quais seriam os limites entre essas disciplinas. Certo é que ele
endossa, por diversas vezes, essa divisão tríplice, em termos idênticos aos de Wellek &
Warren, no que se refere à interação entre as subdisciplinas (ibid.:77). No entanto, qual
seria exatamente o papel da teoria nesse contexto, eis uma questão, aliás básica, difícil
de se esclarecer, mesmo quando o autor trata diretamente do assunto:
Acreditamos, pois, que é possível fundamentar uma Teoria da Literatura, uma
poética ou ciência geral da Literatura, que estude as estruturas genéticas do
discurso literário, as categorias estético-literárias que possibilitam e
condicionam a obra concreta e permitem a sua compreensão, que estabeleça
um conjunto de métodos suscetível de assegurar a análise rigorosa do
fenômeno literário. Negar a possibilidade de instaurar este saber no mundo
profuso e desbordante da Literatura equivale a transformar os Estudos
Literários em desconexos esforços que jamais podem adquirir o caráter e
conhecimento sistematizado (ibid.:77).
Valendo-se de seu manual, aliás, não há como imaginar que os Estudos
Literários poderiam deixar de ser uma série de “esforços desconexos”, uma vez que
nada há dito sobre como as relações entre “estruturas genéticas do discurso literário”,
“categorias estético-literárias” e o “conjunto de métodos de análise” viriam a se
transformar em um modo de conhecimento sistematizado. Efetivamente, do modelo de
Aguiar e Silva têm-se apenas três pontos que são reforçados com freqüência:
(i) a asserção óbvia de que a Teoria da Literatura não é uma disciplina de
especulação a priori (ibid.:77);
51
Em edições seguintes o autor acrescentará capítulos como “O sistema semiótico literário” e a “A
comunicação literária”.
(ii) o alerta para a necessidade de que a Teoria da Literatura deve evitar repetir a
normatividade que arruinou a Poética e a Retórica Clássicas (ibid.:78).
(iii) a defesa de uma Teoria da Literatura que se configura e que tende a ser cada
vez mais uma área interdisciplinar, em que “avultam como privilegiadas as conexões
[dela] com a Lingüística, mas também com outros ramos do saber sociologia,
psicologia, teoria da informação, matemática” (ibid.:78, grifo meu).
Concretamente, nas últimas versões da obra, o que se observa é uma
aproximação de Aguiar e Silva às idéias semióticas de Iuri Lotman.
(...) torna-se necessário analisar, primeiramente, a Literatura como sistema
semiótico e os mecanismos do funcionamento da semiose literária; em
seguida, torna-se necessário analisar a Literatura como texto literário, isto é,
como realização concreta e particular daquele sistema (Silva, 1991:40).
Tais idéias estão expostas no livro A estrutura do texto artístico, lançado em
português em 1978, apenas dois anos depois do original. Ligado aos estudos de
Semiótica, Iuri Lotman foca-se principalmente nos problemas da significação do texto
artístico. Toma a Literatura como uma das formas de arte, que, por sua vez, é um entre
outros sistemas semiológicos.
A teoria de Lotman está em sintonia com uma teoria geral da comunicação.
Tomada como uma forma de comunicação de massas, a Literatura possuiria uma
linguagem própria, uma linguagem particular que se sobreporia à linguagem natural. A
Literatura consistiria assim num sistema particular de signos e regras de combinação,
adequado para a transmissão de informações não passíveis de serem transmitidas por
outro meio.
No texto literário, “não só os limites dos signos são diferentes, mas o próprio
conceito de signo é diferente” (Lotman, 1978:55). Eles não possuem um caráter
convencional, funcionando muito mais como ícones e figuras. A própria obra literária
organiza-se como um signo: “(...) cada texto artístico é elaborado como um signo único
de um conteúdo particular construído ad hoc” (ibid.:56).
Para Lotman, o objetivo do estudo de qualquer sistema de signos é a
determinação do seu conteúdo, especialmente porque “a arte é inseparável da procura da
verdade” (ibid.:46). Assim, menos que uma Teoria da Literatura, Lotman oferece uma
hermenêutica a partir da análise da estrutura textual da obra literária, baseada
fortemente em conceito lingüísticos estruturais, como os eixos sintagmático e
paradigmático.
Não há como se dizer, entretanto, se Lotman foi a opção final de Aguiar e Silva
ou se foi apenas a última novidade dos Estudos Literários a ser acrescentada ao seu
manual.
3.2 - TEORIA, LATO SENSU
Roland Barthes, embora jamais tenha escrito um livro especificamente dedicado
à Teoria da Literatura, contribuiu de modo decisivo para os rumos tomado pela
disciplina, especialmente no Brasil, onde sua influência sobre os Estudos Literários se
faz notar até hoje. Embora as idéias por ele defendidas fossem, em larga medida,
opostas ao projeto teórico de, por exemplo, Wellek & Warren, os trabalhos sobre
Literatura produzidos por Barthes foram tomados por muitos como um discurso teórico
sobre a Literatura.
Critique et vérité, lançado na França em 1966 e com edição brasileira quatro
anos mais tarde, é um bom exemplo
52
. Trata-se de um livro polêmico, em que Barthes
sai em defesa do que chama de nova crítica ou crítica de interpretação, uma tendência
que para ele seria o resultado da influência de quatro grandes linhas de pensamento na
crítica francesa: Existencialismo, Marxismo, Psicanálise e Estruturalismo
53
.
Barthes chamará de “lansonistas” a seus adversários, identificando-os com um
modelo de Crítica Literária acadêmica de orientação historicista e confiante no rigor e
na objetividade dos métodos filológicos. O ensaísta defende a tese de que o grande
problema deste tipo de crítica é o silenciar sobre sua condição de ser, assim como as
críticas de interpretação, uma crítica ideológica índice, para ele, ou de ingenuidade
ou de má-fé.
(...) o lansonismo é ele próprio uma ideologia; ele não se contenta com exigir
a aplicação das regras objetivas de toda pesquisa científica, ele implica
convicções gerais sobre o homem, a história, a Literatura, as relações do
autor e da obra (...). É certo que os postulados filosóficos são realmente
inevitáveis; o que se pode censurar ao lansonismo não são seus partis pris
52
Optei por abordar apenas uma obra de Barthes sobre os estudos literários. Sua produção crítica é muito
diversificada e muitas vezes contraditória, e considerá-la em sua totalidade conduziria a problemas
específicos do pensamento barthesiano que extrapolam os objetivos desta tese.
53
Note-se que nenhuma dessas orientações é originária dos estudos literários.
mas sim o fato de os calar, de os cobrir com o drapeado moral do rigor e da
objetividade (Barthes, 1970:159).
Desferindo um ataque feroz aos filólogos, retratados por ele quase como idiotas
que só conseguiriam perceber o sentido literal dos textos, Barthes descreve a Literatura
como uma segunda língua, à parte da literalidade, que libertaria a leitura das regras
filológicas. A ambigüidade seria um elemento constitutivo da linguagem literária. Se, no
uso cotidiano da língua, o contexto resolve a ambigüidade, seu uso literário se
caracterizaria pela capacidade de significar mesmo fora de seu contexto (cf. ibid.:216).
Tal distinção apresenta um problema ao qual Barthes não dá a devida atenção. A
língua, e não exclusivamente a Literatura, é cheia de ambigüidades. Um enunciado da
língua cotidiana pode gerar diversos sentidos fora de seu contexto. Desta forma, seria
necessário, pois, determinar, a priori, se um enunciado é ou não literário, para estarmos
autorizados a compreendê-lo em suas múltiplas significações e não buscarmos como
os “lansonistas” a que Barthes se referia o sentido do enunciado em seu contexto. Em
outras palavras, tal distinção seria insuficiente para marcar a diferença entre enunciados
literários e não-literários.
Barthes procurava atacar os lansonistas utilizando as próprias armas de seus
adversários. Fazendo valer a relação profunda por eles defendida entre a obra, o autor e
seu momento histórico, ele se pergunta por que tal relação deixaria de existir quando se
tratava da obra e do tempo do crítico, lançando assim aquele que será um dos grandes
pressupostos de sua visão de Literatura, ao colocar no mesmo nível discursivo a crítica e
a obra de arte literária, elidindo desse modo as diferenças entre os tipos de discurso.
Embora tal procedimento tenha tido e até hoje tenha muitos seguidores, abolir a
distinção entre os discursos em nome de uma noção ampla de escritura é uma operação
questionável. Northrop Frye sustentava uma interessante posição epistemológica a
respeito da necessidade de uma distinção entre a obra literária e seu estudo. Para ele, o
fato de a Literatura ser constituída por palavras levava muitos a confundi-la com outras
práticas discursivas o que podia ser visto, por exemplo, nas bibliotecas que
catalogam a Crítica Literária como uma subdivisão da Literatura. Frye defendia que a
Literatura não devia ser tomada como um “tema” entre outros, mas como um objeto de
estudo. Os Estudos Literários estariam para a Literatura assim como a História estaria
para a ação e a Filosofia para o saber, isto é, seria uma representação discursiva de uma
atividade humana.
Os estudos sistemáticos de Literatura não produziriam, prossegue Frye, um
conhecimento imediato ou direto da Literatura, do mesmo modo que quem aprende uma
ciência natural como a Física não está aprendendo a natureza, mas as teorias físicas. Os
Estudos Literários, desta forma, conduzem ao aprendizado do conjunto de saberes sobre
a Literatura, não à obra literária em si: “(...) a dificuldade que amiúde se sente de
‘ensinar Literatura’ nasce do fato de que isso não pode ser feito: a crítica da Literatura é
tudo o que pode ser ensinado diretamente” (Frye, op.cit.:19).
Num primeiro momento, o pensamento de Barthes parece coincidir com o de
Frye, ao menos no que concerne ao problema da referencialidade:
O objeto da crítica é muito diferente; não é “o mundo”, é um discurso, o
discurso de um outro: a crítica é um discurso sobre um discurso; é uma
linguagem segunda ou metalinguagem (como diriam os lógicos). Daí decorre
que a atividade crítica deve contar com duas espécies de relações: a relação
da linguagem crítica com a linguagem do autor observado e a relação dessa
linguagem-objeto com o mundo. (Barthes, op.cit:161)
Tomando a crítica como uma metalinguagem, Barthes assume uma posição
estruturalista e toma a Literatura como um sistema de signos cujo “ser” não está na
mensagem que possa vir a conter, mas no sistema desta linguagem. Ele defende a crítica
como uma tarefa “puramente formal” e “tautológica”, em que o crítico não descobriria
nada na obra, mas, ao contrário, a cobriria com a sua (do crítico) própria linguagem (cf.
ibid.:161-2). A crítica não pode pretender esclarecer um texto literário, pois não haveria
nada mais claro do que o próprio texto. Ela pode sim engendrar um certo sentido,
derivando-o de uma forma que é a obra” (ibid.:221), como se colasse à obra uma
segunda linguagem, isto é, um novo conjunto coerente de signos.
Barthes nega que a crítica possa ser a reconstrução de uma verdade perdida ou
obscura, ou ser a procura pela verdade do outro (cf. ibid.:163). Despreza os esforços
críticos de se “respeitar a obra”, de ser “fiel à obra”, de ser preciso “atentar ao seu
sentido”. O desejo de ser verossimilhante é apontado por ele como a principal causa da
paralisação da crítica, tendo em vista que seria inviável, para o crítico, pretender falar
sobre a obra. Não haveria nada a ser dito sobre uma obra literária, a não ser que ela é
aquilo que é:
Esta tautologia não é gratuita: finge-se primeiramente acreditar que é possível
falar da Literatura, fazer dela o objeto de uma fala, mas essa fala não vai
longe, porque não há nada a dizer desse objeto senão que ele é ele mesmo. O
verossímil crítico termina, com efeito, no silêncio ou em seu substituto, a
tagarelice (ibid.:205).
Para evitar a tagarelice tautológica, só restaria ao crítico acrescentar sua própria
linguagem e suas próprias imagens às obras. Surpreendentemente, Barthes não
considera que, com isso, o crítico as esteja deformando para nelas se exprimir, mas que
estaria, na verdade, reproduzindo-a “como um signo destacado e variado, o signo das
próprias obras” (ibid.:225-6). Barthes pretende assim demolir qualquer tipo de
compreensão de Literatura que esteja ligada à idéia de que o texto é expressão de
alguma subjetividade: “(...) a crítica e a obra dizem sempre: eu sou Literatura. (...) por
suas vozes conjugadas, a Literatura nunca enuncia mais que a ausência de sujeito”
(ibid.).
Isso não significa, para o ensaísta, que a crítica esteja autorizada a dizer qualquer
coisa, ou, nos seus termos, “delirar” (ibid.:222). Mas os motivos que impediriam o
delírio não seriam aqueles que faltariam ao discurso crítico barthesiano, segundo seus
adversários “lansonistas”. Barthes se recusa a aceitar qualquer argumento baseado na
oposição entre razão e desrazão. Fazendo-se valer, novamente, da paridade por ele
postulada entre escritores e críticos, defende que o direito ao delírio é uma conquista da
Literatura desde pelo menos Lautreamont, e que a preocupação com a razão envolveria
uma esfera de preocupação alheia ao trabalho crítico. Para ele, a garantia contra as
leituras extremadas seriam os constrangimentos que a forma da obra literária impõe ao
crítico. Libertado da lógica científica, o crítico é submetido à incerta e frágil lógica do
significante.
De onde viria a validade buscada em um sistema de signos, de onde viria essa
coerência perseguida, indicada na aproximação por ele feita entre o trabalho crítico e a
reflexão lógica, quando se referia à tautologia inerente a ambos? Barthes parece
reconhecer a precariedade desta lógica. É obrigado, então, a dar um passo contraditório
em sua exposição e se aproximar de modelos de compreensão da Literatura mais
tradicionais. Ele se vale, por exemplo, daquilo que chama regra da exaustividade,
quando afirma estar o crítico obrigado a engendrar um sistema de sentido que torne a
obra inteligível em sua totalidade. Ele também recupera as figuras de linguagem, os
antigos modos de descrição da Retórica Clássica, agora atualizadas nos conceitos da
então ascendente Psicanálise: metáfora (substituição), elipse (omissão), homonímia
(condensação), metonímia (deslocamento) e antífrase (denegação) (cf. ibid.:224).
Depois de afastar, radicalmente, a crítica de qualquer tipo de estudo metódico ou
sistemático e de transformá-la num arremedo da Literatura, Barthes subitamente
condescende, ao propor uma distinção tríplice dos modos de se lidar com a Literatura: a
Ciência, a Crítica e Leitura. Tomando a obra literária como uma estrutura que contém
múltiplos sentidos, distingue, inicialmente, entre os discursos que pretenderiam dar
conta dessa totalidade de sentidos e os discursos que visariam a apenas um dentre eles:
Esses dois discursos não devem de modo algum ser confundidos, pois eles
não têm nem o mesmo objeto nem as mesmas sanções. Pode-se propor
chamar de Ciência da Literatura (ou da escritura) aquele discurso geral cujo
objeto é, não tal sentido determinado, mas a própria pluralidade dos sentidos
da obra, e Crítica Literária aquele outro discurso que assume abertamente,
às suas custas, a intenção de dar um sentido particular à obra (cf. ibid.:216,
grifo meu).
A essa diferenciação Barthes acrescenta uma outra, a que existiria entre a
atribuição de sentido imediata, feita de modo silencioso através da leitura, e aquela
mediada por uma atividade escrita, característica da Crítica Literária:
(...) sobre o sentido que a leitura dá à obra, como sobre o significado,
ninguém no mundo sabe algo, talvez porque esse sentido, sendo o desejo, se
estabelece para além do código da língua. (...) Passar da leitura à crítica é
mudar de desejo, é desejar não mais a obra mas sua própria linguagem
(ibid.:230).
A partir dessas distinções, Barthes esboça uma série de condições para a
existência de uma Ciência da Literatura. Em primeiro lugar, nega à História da
Literatura o estatuto de ciência, por faltar a ela uma preocupação acerca da natureza de
seu objeto (cf. ibid.:216). Os historiadores literários se ocupariam em demasia com os
conteúdos das obras, ao passo que uma Ciência da Literatura deveria tratar das
“condições de conteúdo”, uma vez que seus objetos não seriam “os sentidos plenos de
uma obra, mas pelo contrário o sentido vazio que os suporta a todos” (cf. ibid.:217).
Barthes tem em mente uma Ciência da Literatura baseada na Lingüística,
constituída como um “modelo hipotético de descrição” (ibid.:217), que envolveria
alguns aspectos:
(i) estabelecimento de um quadro de conceitos e esforço de afinação entre os
termos teóricos;
(ii) estabelecimento de certas regras capazes de explicar certos resultados;
(iii) pressuposição da existência no homem de uma faculdade de Literatura;
(iv) transformação das idéias de “autor” e de “obra” apenas em ponto de partida
de uma investigação que teria como objeto a linguagem: “(...) não pode existir uma
ciência de Dante, de Shakespeare ou de Racine, mas somente uma ciência do discurso”
(ibid:219);
(v) divisão entre o estudo dos elementos do nível da frase (figuras, fenômenos de
conotação, anomalias semânticas) e o estudo dos elementos superiores à frase
(estruturas narrativas, mensagem poética, textura discursiva). A esses dois focos, porém,
escaparia um resíduo que, para Barthes, seria essencial na obra: o gênio pessoal, a arte,
a humanidade.
Barthes não se aprofunda na discussão dessas condições de existência de uma
Ciência da Literatura. Revela, entretanto, que tem em mente algo como uma lingüística
do discurso, cujo objetivo não deveria ser ensinar os sentidos da obra, mas descrever os
mecanismos pelos quais os sentidos são engendrados por ela. Admite, contudo, que tal
disciplina não teria como dar conta sozinha do objeto Literatura, e que a Ciência da
Literatura precisaria se valer da História, “que lhe dirá a duração, muitas vezes imensa,
dos códigos segundos (como o código retórico), bem como da Antropologia, que
permitirá descrever por comparações e integrações sucessivas a lógica geral dos
significantes” (ibid.:220-1).
Creio não ser injusto com Barthes dizer que sua opção, ao longo de sua carreira,
foi pela Crítica e não por seu modelo de Ciência da Literatura. Sua proposta metódica
de estudo da Literatura sucumbiu ante sua idéia de Crítica como uma atividade criativa,
assistemática e engajada nos grandes modelos de pensamento da época Marxismo,
Existencialismo, Psicanálise, Estruturalismo. Devo enfatizar que Barthes jamais
considerou as profundas diferenças, por ele estabelecidas, entre ciência e crítica como
indicadoras de um prejuízo para a segunda, uma vez que esta conteria uma “ironia
barroca”, que potencializaria as formas significantes da linguagem (ibid.:228) e
exploraria aspectos que escapariam àquela.
Por vezes, tem-se a impressão de que o Barthes escritor matava
progressivamente o Barthes crítico
54
, porém, noutras vezes tem-se a impressão
54
Barthes, afinal, talvez fosse um bom escritor, mas não um bom crítico, nas palavras de Costa Lima
(1981:208): “a última fase do Barthes, a sua fase mais narcisista, em que ele passa a fazer o ‘Barthes par
lui-même’, mostra como, afinal de contas, Barthes sempre foi um espelho. E um crítico-espelho não é um
contrária, especialmente quando a Literatura passa a ser por ele descrita como uma
espécie de crítica da linguagem
55
. Em tais proposições, os críticos não se distinguem
mais do escritor, agora descrito dogmaticamente como “aquele para quem a linguagem
constitui problema, que experimenta sua profundidade, não sua instrumentalidade ou
sua beleza” (ibid.:210). Eliminando os gêneros discursivos, abolindo as diferenças entre
os escritores e obcecado por uma crença quase mística nos poderes da linguagem, tudo
o que restou, para Barthes, foi tomar a escrita como um triste solilóquio metalingüístico:
Se a crítica nova tem alguma realidade, ela consiste nisso: não na unidade de
seus métodos, ainda menos no esnobismo que, segundo se diz comodamente,
a sustenta, mas na solidão do ato crítico, doravante afirmado, longe dos álibis
da ciência ou das instituições, como um ato de plena escritura. (...) o escritor
e o crítico se reúnem na mesma condição difícil, em face do mesmo objeto: a
linguagem (ibid.:210).
Repleto de imagens, figuras e frases de efeito, o discurso barthesiano encobre as
inúmeras contradições existentes em sua argumentação. Um bom exemplo pode ser
observado quando ele descreve a atividade crítica como “uma série de atos intelectuais
profundamente engajados na existência histórica e subjetiva (...) daquele que os realiza”
(ibid.:160). Se a crítica é um ato de criação intencional e é modulada pelas condições de
vida de seu autor, por que também não o seria a obra literária, uma vez que Barthes
mesmo a igualou ao discurso crítico? Ele se vale aqui de um pressuposto com o qual ele
próprio parece não compactuar ao longo de sua vida intelectual: o de que o sentido de
um texto é, ao menos parcialmente, condicionado pelo contexto de produção. E, indo
mais além, cabe a pergunta: como a crítica pode reforçar a ausência da subjetividade da
linguagem como foi mencionado anteriormente e, ao mesmo tempo, ser o efeito
da ação de uma subjetividade?
Barthes também não consegue harmonizar sua premissa da ausência do sujeito
na Literatura com as teses da totalidade de significação da obra e com sua aceitação das
figuras de linguagem como mecanismos de produção de efeitos retóricos. De fato, é
difícil, sem supor a existência de algum tipo de consciência criadora, explicar o porquê
de haver totalidade significante apenas em obras literárias, e não, por exemplo, num
crítico, porque o que fundamentalmente o analista (ao menos em princípio) deveria ser seria aquele que
estabelece uma palavra entre o modo como ele recebe alguma coisa e aquilo que independe da recepção
dele. Ora, se a minha escrita fundamentalmente é um speculum, é um espelho da minha reação diante do
texto, então não estou falando do texto, estou falando de mim a pretexto de falar do texto” (Lima,
1981:208).
55
Barthes fazia uma analogia com a Filosofia, que seria a crítica da razão.
conjunto aleatório de palavras, ou o porquê de as figuras de linguagem serem
recorrentes e funcionais. Mas ele se trai quando, ao atacar a verossimilhança que se
exigia do crítico, afirma: “(...) o escasso filete de fala que lhe deixam [ao crítico] todas
as suas censuras só lhe permite afirmar o direito das instituições sobre os escritores
mortos” (ibid.:205). Se a ausência do sujeito é a expressão máxima tanto da crítica
como da Literatura, qual a importância dos “direitos do escritor” para invalidar a crítica
ao uso institucional que os Estudos Literários acadêmicos fariam da Literatura?
A paridade postulada entre escritores e críticos ignora a obra literária como um
ato de comunicação
56
. Em Barthes, a Literatura se transforma num produto de, por e
para a linguagem, e a tarefa crítica num jogo de linguagem em que não é clara a razão
de se precisar de uma obra literária para jogá-lo. Na encruzilhada em que se colocou,
entre a escolha da tagarelice e o silêncio, Barthes negligenciou os matizes do segundo
caminho. A busca pelo “verossímil” talvez não conduzisse necessariamente ao silêncio
absoluto, mas a uma cautela sóbria que, quem sabe, evitaria a tagarelice que a frágil
“lógica do significante” detonou nos Estudos Literários.
56
Desprezar a literatura como um ato de comunicação, isto é, não tomar o texto literário como o produto
de um outro indivíduo que tem algo a comunicar, constitui-se como um modo de individualismo extremo
cujas conseqüências éticas extrapolam os limites deste trabalho.
4 - A ERA DAS CRÍTICAS
Nos anos 80, os problemas da Teoria da Literatura alcançaram seu auge, como
ficou demonstrado no resultado da pesquisa promovida pela New Literary History
apresentado na introdução deste trabalho. Fragilizada em virtude das muito distintas
concepções sobre sua natureza e função, a teoria passou a ser objeto de interrogações
cada vez mais freqüentes a respeito de sua utilidade e relevância para os Estudos
Literários. Como os próprios teóricos da Literatura falhavam ou se eximiam de
circunscrever seu objeto de estudo, o “vácuo” criado por suas omissões e perplexidades,
de que falava Frie, passou a ser preenchido por discursos que começaram a pôr em
dúvida a legitimidade e especificidade da disciplina.
Tome-se como exemplo Para uma crítica da Teoria Literária, de Constanzo Di
Girolamo, lançado em português em 1985
57
. Baseando-se na glossemática do
dinamarquês Louis Hjelmslev, ele atacava o que chamava de falsas hipóteses, “que se
quer fazer crer serem universais” e que “são apresentadas como verdades científicas” da
Teoria da Literatura (Di Girolamo, 1985:8).
Para Girolamo, o campo da investigação literária estaria tomado por uma série
de abordagens parciais e dogmáticas comprometidas com um ideal inalcançável:
determinar as marcas específicas do texto literário. Tal tarefa seria simplesmente
irrealizável, pois seriam mutáveis, no tempo e no espaço, os elementos que os grupos
sociais identificam como literários. Seria sempre o público, em última instância, que
decidiria se um texto é ou não literário e que se disporia ou não a recebê-lo e avaliá-lo
por uma perspectiva estética.
Não haveria, portanto, naquilo que se chama Literatura, quaisquer traços que
justificassem um tratamento diferenciado em relação aos outros produtos de linguagem.
Em conseqüência, os instrumentos de trabalho de um estudioso de Literatura poderiam e
57
O original é de 1978.
deveriam ser os mesmos de um lingüista. O juízo de literariedade, por mais paradoxal
que possa parecer, não seria uma responsabilidade dos Estudos Literários, mas da
Sociologia e da história da cultura.
Di Girolamo defendia a criação de uma disciplina, a análise do texto, que estaria
para os atos de fala assim como a Lingüística está para a langue saussuriana. Tal
disciplina ignoraria o que certa época entende por literário, e trataria a Literatura cuja
“função poética não é intrínseca ao texto, mas resulta exclusivamente (...) de
mecanismos do seu funcionamento social” (ibid.:105) como um fato lingüístico
como outro qualquer.
O livro de Di Girolamo
58
é apenas um exemplo entre muitos, uma vez que a
produção de “discursos teóricos” sobre a Literatura era intensa no período muitos,
como esse, advindos de campos fora do âmbito restrito dos Estudos Literários. Já os
manuais perdiam gradativamente sua força e utilidade, uma vez que se tornava cada vez
mais inglória a tentativa de se sintetizar a miríade de produções discursivas sobre a
Literatura. No campo editorial voltado para o ensino da Literatura em nível superior,
tornaram-se freqüentes, especialmente em língua inglesa, os lançamentos de readers,
coletâneas de ensaios sobre a Literatura reunidos sob algum título que mencionasse o
termo “teoria”. O aparecimento de tais compilações reuniões de ensaios autônomos,
de autores variados, às vezes de várias épocas, sobre diversos temas ligados ao estudo
da Literatura é o sintoma de que os Estudos Literários haviam aberto mão da
necessidade de se sistematizar a disciplina Teoria da Literatura.
Um bom exemplo deste tipo de obra é Théorie de la Littérature, organizado por
Aron Kibédi Varga, lançado em 1981 na França e traduzido em Portugal no mesmo ano.
Eduardo Prado Coelho, prefaciador da versão portuguesa, apresenta-o como sucessor
dos manuais que dominaram o ensino superior da Literatura em Portugal, e supunha que
o livro viesse a substituir, em importância, os manuais de Kayser, Wellek & Warren e
Aguiar e Silva. A coletânea, porém, além de se ressentir da ausência de um princípio
organizador que bem ou mal se fazia presente nas obras que a antecederam ,
apresentava poucas novidades: retoma os antigos modos de se pensar a Literatura
Retórica, Estilística, História , os problemas das relações dos Estudos Literários com
outras disciplinas e introduz as novidades da área as teorias da recepção e semióticas.
58
A decisão de comentar o livro de Di Girolamo deve-se ao fato de o termo teoria da literatura ser
Nada que o próprio Aguiar e Silva ainda não estivesse fazendo com as contínuas
edições de seu manual.
Uma das poucas obras do período que talvez mereça a denominação de manual é
Teoria da Literatura: uma introdução, de Terry Eagleton, lançado em inglês em 1983 e
publicado em português no mesmo ano. A ressalva explica-se por ser o livro uma crítica
ao percurso histórico da teoria, combinada a uma defesa intransigente de um certo ponto
de vista sobre os Estudos Literários, mas que está longe de ser uma exposição
sistemática de uma proposta teórica de estudo da Literatura. O caráter do livro é
bastante compreensível quando se leva em consideração o estado da teoria naquele
momento a essa altura, longe de ser uma disciplina que estudava a Literatura,
tornara-se muito mais um problema a ser encarado pelos Estudos Literários.
4.1 - “LITERATURA”, NA FALTA DE UM TERMO MAIS ADEQUADO
Partindo do tradicional questionamento acerca da natureza da Literatura,
Eagleton se negará a conceituá-la, por entender que toda e qualquer compreensão de
Literatura é sempre condicionada por julgamentos de valor que extrapolam os limites
do literário. Ele admite que usa as palavras “Literatura” e “literário” apenas por não
dispor de termos mais adequados (Eagleton, 2003:15). Ainda assim, não se privará do
capítulo introdutório, comum a todos os manuais comentados até agora, em que se
discutem os problemas referentes à conceituação do objeto de estudo.
Eagleton recusa as definições que relacionam a Literatura com a ficção.
Aludindo aos problemas inerentes às frágeis fronteiras entre as noções de factual e de
ficcional, retoma um argumento recorrente nas discussões sobre o tema, o de que
haveria criação e imaginação também em obras reconhecidas como não ficcionais
filosóficas, científicas, teológicas, históricas. Teria sido somente a partir do
Romantismo que as definições de Literatura passaram a se enquadrar nessas categorias
de obras criativas e imaginativas (ibid.:24), gerando as bases da Estética moderna, mas a
pretensão de haver um objeto ou uma experiência passíveis de serem isolados e
pensados sob uma categoria como a da beleza seria um efeito da alienação da arte e
conseqüência direta de um momento histórico em que a Literatura deixava de ter uma
mencionado já no título da obra.
função óbvia. Os ideais de uma arte autônoma, portanto, não seriam nada além de uma
tentativa de defesa desesperada dos artistas contra o processo de mercantilização da
arte, através da glorificação da sua inutilidade. Em outras palavras, ele propõe que se
entenda a ligação entre arte e autonomia da imaginação como diretamente relacionada
aos efeitos do capitalismo industrial sobre os artistas (cf. ibid.:27).
Esse é o modo característico de exposição de Eagleton: misturando dados
históricos precisos, comentários político-econômicos pertinentes e uma indiscutível
habilidade retórica, ele condiciona os temas à sua perspectiva particular, e invalida
quando não ridiculariza os modos de pensar que lhe são adversos. Na situação
descrita acima, ele faz uma abordagem parcial do problema, uma vez que haveria
diversos modos de se pensar a definição de ficcional. A ficção não precisa ser,
necessária e exclusivamente, associada às idéias de obras de criatividade ou de
imaginação pode-se, por exemplo, pensá-la nos termos de Searle
59
, simplesmente
como algo ao qual não cabe uma verificação em termos de verdade e falsidade.
Para defender sua posição de que é impossível se conceituar a Literatura, o
ensaísta se apóia num argumento recorrente no âmbito dessa discussão: o de que obras
tradicionalmente entendidas como não-ficcionais foram ou são consideradas
Literatura. Eagleton, porém, evita uma pergunta inevitável e que não poderia ser
ignorada: tais obras são coerentemente avaliadas como ficcionais? E quem as avalia
assim? O silêncio sobre a questão nada mais, do que um subterfúgio que lhe facilita a
demonstração de que não é possível se estabelecer um conceito trans-histórico de
Literatura. Como já acontecera em Aguiar e Silva, a conceituação é inviabilizada por se
pretender que ela dê conta de todos os sentidos e usos que a palavra já possuiu e poderá
vir a possuir ao longo da história.
A segunda tentativa de definição rechaçada por Eagleton é aquela associada aos
trabalhos dos formalistas russos, que aventavam a hipótese de ser possível se definir a
Literatura a partir de uma perspectiva lingüística. A obra literária seria, para eles, o
resultado de um determinado uso de linguagem, um uso que transformaria ou
intensificaria a potência da linguagem comum, produzindo uma “desconformidade entre
os significantes e os significados” (ibid.:3), e que chamaria atenção para a materialidade
do texto literário. Eagleton observa com acerto que o desprezo dos formalistas pelo
59
John Searle. Speech acts: an essay in the philosophy of language. Londres: Cambridge U. P., 1969.
estudo dos conteúdos da obra de arte literária constantemente apontado por seus
detratores não representava a negação das profundas relações entre arte e realidade
social, mas indicava que não deveria caber ao trabalho crítico dar conta dessa questão.
O objeto do trabalho crítico seria os elementos literários formais, os artifícios de
composição de uma obra: som, imagens, ritmo, sintaxe, métrica, rima, técnicas
narrativas.
Noções como a de estranhamento (ou desfamiliarização) elaboradas a
partir da descrição de alguns efeitos causados pela transgressão das normas lingüísticas
por certas obras literárias são contestadas por Eagleton (idem:6). Em primeiro lugar
porque, como nem toda quebra da norma é literária, a noção de desvio seria incapaz de
funcionar como um elemento de distinção entre textos literários e não-literários. Além
disso, a idéia de desvio pressupõe, necessariamente, a existência de um padrão, porém,
algo como um grau zero da linguagem não passaria de uma formulação abstrata sem
nenhuma correspondência na realidade. A língua se realiza de modo muito distinto por
diversos grupos sociais e simplesmente não haveria nada que pudesse ser chamado de
“linguagem comum”, a partir da qual o desvio se produziria:
A idéia de que existe uma única linguagem normal, uma espécie de moeda
corrente usada igualmente por todos os membros da sociedade é uma ilusão.
(...) Até mesmo o mais ‘prosaico’ do séc. XV pode nos parecer ‘poético’ hoje
devido ao seu arcaísmo (ibid.:6-7).
Ambos os comentários são pertinentes e pouco suscetíveis à contestação.
Contudo, a argumentação do ensaísta peca novamente por simplificar em demasia o
pensamento de seus adversários. Não se pode inferir da argumentação dos formalistas
que eles acreditassem haver apenas uma linguagem comum, ou que o desvio seja algo
trans-histórico, tampouco que todo desvio é poético. Curiosa e paradoxalmente, o
próprio Eagleton entende que os formalistas estavam cientes do caráter social e histórico
das noções de norma e desvio, isto é, que eles sabiam que “o caráter ‘literário’ advinha
das relações diferenciais entre um tipo de discurso e outro, não sendo, portanto, uma
característica perene” (ibid.:7).
De modo semelhante, não é pertinente inferir que o formalismo propusesse a
identificação direta e imediata entre a literariedade, entendida como um certo uso de
linguagem, e os usos metafóricos da língua. Mas é graças ao modo superficial com que
aborda a contribuição dos formalistas aos Estudos Literários que Eagleton valendo-
se de demonstrações óbvias, como a de haver metáforas em qualquer uso de língua, e
não exclusivamente nos usos literários pode chegar a ridicularizá-los, e transformá-
los numa espécie antiquada e pitoresca de estudiosos de Literatura.
O modo apressado com que descarta algumas propostas do formalismo pode ser
explicado pela intenção de Eagleton em defender o diferencial da Literatura como sendo
um traço contextual, e não textual. Ele pensa a distinção da Literatura sobretudo em
termos de utilidade. A obra literária seria um “discurso não-pragmático” que, ao
contrário dos outros textos, não teria “nenhuma finalidade prática imediata” (ibid.:10).
Com isso, ele esclarece o porquê de não querer se imiscuir na tarefa de conceituar a
Literatura: ela não poderia ser definida de modo objetivo simplesmente porque sua
definição dependeria da maneira pela qual uma obra é lida, e não de sua natureza. E
como há muitas maneiras de se ler uma obra...
Trata-se de uma boa desculpa, mas não de um bom argumento. Confundem-se
aqui os possíveis usos de uma coisa com sua definição conceitual. Empregando aqui um
tipo de imagem aproximada às utilizadas pelo próprio Eagleton, não é porque alguém
possa ter sido atacado a enxadadas que as enxadas deverão deixar de ser definidas como
um instrumento de capinar ou de revolver a terra. Relacionar diretamente os usos
contingentes com os conceitos é entregar ao acaso das circunstâncias a possibilidade de
se refletir sobre o mundo.
Com um raciocínio muito próximo ao de Stanley Fish embora não o cite
nominalmente nesta passagem
60
Eagleton entende que qualquer texto pode ser lido
de modo pragmático ou não, isto é, pode ser lido ou não como Literatura. Endossando
John M. Ellis, ele se concentra numa idéia de obra literária como um texto não-
específico que, por alguma razão, é altamente valorizado. Literatura seria pois um
termo funcional e não ontológico (cf. ibid.:12-13).
Ocorre, porém, que, ao superestimar a importância do modo através do qual
a obra é lida, em detrimento de sua natureza, Eagleton torna misteriosa e pouco
60
Em uma passagem mais adiante, Eagleton não parece estar muito convencido dos argumentos de Fish:
“(...) não há obra literária ‘objetiva’ (...). O verdadeiro escritor é o leitor: descontente com a mera co-
participação iseriana na empresa literária, os leitores agora derrubam os padrões e se instalam no poder.
(...) a crítica é apenas uma explicação das reações experimentadas pelo leitor a uma sucessão de palavras
na página. (...) Tudo no texto (...) é produto da interpretação, e de modo algum constitui algo dotado de
uma realidade factual. Isso suscita uma indagação intrigante, qual seja saber o que Fish acredita estar
interpretando quando lê. Sua resposta a essa questão, de uma sinceridade comovente, é que não sabe
mas ele também acha que ninguém sabe” (Eagleton, 2003:117).
funcional a distinção, por ele mesmo proposta, entre discursos pragmáticos e não-
pragmáticos, uma vez que a “pragmaticidade” dos textos seria apenas um efeito
direto da escolha de uso feita pelos leitores:
O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as
pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de Literatura,
então, ao que parece, o texto será Literatura, a despeito do que o seu
autor tenha pensado (ibid.:11).
Como os julgamentos de valor interferem diretamente na compreensão de
ser ou não literária uma obra, e como, além disso, as definições de Literatura são
historicamente condicionadas, Eagleton propõe que se deve abandonar a ilusão de
que a Literatura possa ser uma categoria objetiva (no sentido de eterna e imutável):
“Qualquer coisa pode ser Literatura, e qualquer coisa que é considerada Literatura,
inalterável e inquestionavelmente, (...) pode deixar de sê-lo” (ibid.:14-15).
De fato é possível se supor, como faz Eagleton, que possa vir a haver uma
sociedade para a qual Shakespeare não seja mais relevante, e que tal condição
possa ser resultado de um enriquecimento, e não de um embrutecimento, da
espécie humana. Mas o que é devastador em tal hipótese não é admitir que, com tal
ocorrência, se estariam perdendo os cânones literários, mas que toda uma vasta
gama de experiências humanas a que as obras de Shakespeare dizem respeito teria
deixado de fazer sentido. Hipóteses radicais deste tipo, em que se lança mão da
possibilidade extrema de que, de súbito, tudo pode deixar de ser o que é, não
podem ser tomadas como uma justificativa para que se inviabilize todo e qualquer
esforço de se organizar e de se sistematizar um objeto de estudo. Isso porque
garantir a imutabilidade de seus objetos não pode ser o propósito nem a aspiração
de uma proposta teórica.
Porque históricos, os conceitos e os modelos teóricos devem ser propostos e
discutidos no âmbito de sua historicidade, o que não implica dizer que sejam
incondicionalmente relativos e que não possam ser contestados, criticados,
invalidados ou reformulados.
4.2 - NAS MALHAS DA IDEOLOGIA
Para que se compreenda melhor a noção de Literatura defendida pelo ensaísta, é
necessário entender suas concepções de Estudos Literários e de teoria. No entanto,
formular suas respostas às duas outras questões metodológicas desse trabalho requererá
procedimentos distintos dos utilizados até aqui com os outros manuais. Isso porque sua
posição é bastante distinta daquela dos autores anteriormente comentados. Tomando a
“crise no campo dos Estudos Literários” como “uma crise da definição da própria
matéria” (ibid.:294), isto é, uma crise referente à própria compreensão do objeto
“Literatura”, ele acredita, de fato, estar fazendo não uma introdução ao estudo teórico da
Literatura, mas o seu necrológio (ibid.:281).
A compreensão que Eagleton tem dos Estudos Literários está diretamente
relacionada à importância por ele atribuída aos julgamentos de valor em toda e qualquer
abordagem de uma obra de Literatura. Para o ensaísta, sempre interpretaríamos “as
obras literárias, até certo ponto, à luz de nossos próprios interesses” (ibid.:16-7). Ele
contesta a suposta isenção da descrição “objetiva” dos fatos, pois todas as afirmações
ditas factuais pressuporiam juízos que poderiam vir a ser questionados. Como não
haveria possibilidade de observações desinteressadas e como todas as afirmações são
feitas dentro de uma rede mais ou menos discreta de valores, os interesses seriam
constitutivos de nosso conhecimento, e não apenas preconceitos que o colocam em
risco” (ibid.:19). A essa estrutura de valores, muitas vezes oculta, que dá forma a nossos
julgamentos e afirmações, Eagleton chama de ideologia (cf. ibid.:20).
Em seu modelo, juízos de valor e ideologia estão intimamente ligados. Por essa
perspectiva, não faz sentido se pensar a Literatura como uma categoria “objetiva”, nem
se pode dizer que ela é um capricho da subjetividade, pois os juízos de valor
supostamente subjetivos têm uma estreita relação com as ideologias sociais (ibid.:22).
Com isso, ele conclui: “A Literatura, no sentido que herdamos da palavra, é uma
ideologia” (ibid.:30).
Se a Literatura é uma ideologia, se os Estudos Literários, como os conhecemos,
são ideológicos, que tipo de atividade crítica o autor tem em mente, que seja capaz de
dar conta de tais barreiras ideológicas e, ao mesmo tempo, fazer jus ao estatuto de
disciplina acadêmica? Ele ensaia uma descrição pouco restritiva: “Talvez a Crítica
Literária e a Teoria Literária signifiquem apenas qualquer manifestação (em certo nível
de ‘competência’, sem dúvida), sobre um objeto chamado Literatura” (ibid.:272).
Mas qual seria o “nível de competência” que transformaria uma opinião
qualquer sobre a Literatura num discurso teórico ou crítico? O ensaísta não está
inclinado àquela “euforia ecumênica” que celebra “a pluralidade dos métodos críticos”
(ibid.:272). Ele adverte que alguns métodos seriam mutuamente incompatíveis, e além
disso muitos trabalhos críticos seriam francamente avessos à qualquer tipo de método. E
na discussão gerada sobre os pressupostos de cada um, estes últimos seriam os piores
adversários, “já que o poder da ideologia sobre eles é mais acentuado em sua convicção
honesta de que fazem leituras ‘inocentes’” e de que não dependeriam de uma estrutura
de suposições ideologicamente condicionada (ibid.:273).
Eagleton crê que não há consenso capaz de harmonizar os estudiosos da
Literatura, pois conflitos como esse só podem ser resolvidos unilateralmente”
(ibid.:273). A resolução da crise passaria pela discussão de problemas que se situariam
além dos limites cobertos pelo espectro dos Estudos Literários, a começar pelo próprio
status dos profissionais da área, descritos como uma classe intermediária, que nem
conseguiria superar as ideologias nem se uniria a elas. O surgimento dos Estudos
Literários acadêmicos teria sido uma resposta ao “amadorismo elegante” da crítica
impressionista que teria procurado substituir o diletantismo por um profissionalismo
organizado e que se justificasse perante os cofres públicos (cf. ibid.:274).
Esse “profissionalismo” seria, contudo, totalmente destituído de justificativa
social. A falta de objetivos claros nos profissionais da área seria um reflexo da condição
ambígua que os Estudos Literários acadêmicos teriam no mundo atual. Se a deferência
capitalista à arte não passaria de uma hipocrisia exceto quando se trata dos altos
investimentos do mercado internacional das artes , é também uma realidade o fato de
que os Estados capitalistas ainda alocam recursos nos departamentos de humanidades
das universidades. Eagleton descreve tais departamentos, em termos obviamente
althusserianos, como uma “parte do aparelho ideológico do moderno Estado capitalista”
(ibid.:275-6) que contém uma forma de conhecimento que contradiz as prioridades
desse mesmo Estado. Entretanto, o conteúdo desse saber não representaria uma ameaça
para o Estado, porque os Estudos Literários se caracterizariam exatamente por se
constituírem como um modo de manipular tais conteúdos numa linguagem aceitável. O
que se diz, dentro dos Estudos Literários, não poria em risco o status quo, sejam
posições moderada ou radicais, porque respeitariam a uma forma específica de discurso.
Os teóricos, críticos e professores de Literatura são (...) guardiões de um
discurso (...). O discurso, em si, não tem um significado definido, (...) é antes
uma rede de significantes capaz de envolver todo um campo de significados,
objetos e práticas. Certos escritos são selecionados como mais redutíveis a
esse discurso do que outros; a eles dá-se o nome de Literatura, ou de “cânone
literário” (ibid.:277).
Em outras palavras, os Estudos Literários seriam os responsáveis pela criação e
pela administração de uma ideologia chamada Literatura, um tipo de discurso dentro do
qual os conteúdos são tratados de modo a torná-los, social e politicamente, inofensivos.
Eagleton se apóia em dois pontos nessa descrição dos Estudos Literários: não
haveria, em termos ontológicos, um objeto que possa ser chamado Literatura, e não
haveria uma técnica ou um saber que seja restrito à Literatura. Os Estudos Literários
existiriam sim, mas como um conjunto de técnicas discursivas cujo raio de ação
extrapola, em muito, as fronteiras daquilo que eles mesmos descrevem como seu objeto
a “Literatura”.
A proposta de Eagleton é a de que muitos textos situados além do espectro
coberto pelos Estudos Literários poderiam ser tão ricamente significativos quanto
aqueles ditos literários. E seria exatamente esse o grande impasse experimentado pela
área naquele momento: admitir-se ou não capaz de lidar com discursos que ela não
considera como literários. Aceitar o desafio seria perder a sua especificidade e deixar de
se denominar área de Estudos Literários. Negá-lo, por seu turno, implicaria dizer que
esses outros discursos deveriam ser analisados por outras disciplinas, pois o interesse
dos Estudos Literários se resumiria às obras literárias, “porque a Literatura é mais
valiosa e compensadora do que qualquer outro texto sobre o qual de poderia construir o
discurso crítico” (ibid.:278). Para Eagleton, essa segunda opção é falsa:
(...) muitos filmes e obras da filosofia são consideravelmente mais valiosos
do que muita coisa incluída no “cânone literário”. Não que sejam valiosos de
maneiras distintas: poderiam apresentar objetos de valor no sentido atribuído
à palavra pela crítica. Sua exclusão daquilo que é estudado ocorre não porque
não sejam “redutíveis” ao discurso: é uma questão da autoridade arbitrária da
instituição literária (ibid.:278).
A argumentação de Eagleton é absurda. Após ter abolido, em sua exposição, a
possibilidade de haver um objeto chamado Literatura, ele agora pode fundir os juízos
de valor aos juízos ontológicos e afirmar não haver diferenças entre um filme e uma
obra literária. Além do mais, a atenção dos Estudos Literários a algo que se costuma
chamar Literatura nunca foi justificada como uma declaração da superioridade desse
objeto sobre outras formas culturais, assim como não se deve supor que um médico se
especializa em cardiologia, e não em pneumologia, por achar que os pulmões não são
tão importantes quanto o coração.
A argumentação do ensaísta baseia-se no seguinte raciocínio: como a Literatura
é uma ideologia criada pelos Estudos Literários e esses são os responsáveis por atribuir
as características que pensam distinguir naquela, eles não teriam como justificar a
limitação de seu objeto afinal, eles poderiam conceber a Literatura como bem
entendessem. Isso só não ocorreria, entretanto, porque os Estudos Literários possuiriam
uma “sectária intolerância ao nível do significante” (ibid.:279). Os exemplos a que
Eagleton alude são, no mínimo, questionáveis: ele menciona que não é possível deixar
de perceber que os mesmos instrumentos estruturalistas que podem ser aplicados ao
Lost Paradise, de Milton, “podem ser aplicados ao jornal Daily Mirror” (ibid.:280).
Ora, antes de mais nada, não parece ser um problema dos Estudos Literários se seus
métodos no caso em questão, nem se trata de um método originário dos estudos de
Literatura são capazes de dar conta de outros objetos culturais, ou se são utilizados
por outras disciplinas. Além disso, talvez se devesse perguntar a Eagleton se a aplicação
de um tratado de versificação ao mesmo periódico obteria resultados tão positivos.
Eagleton pretende resolver o problema dos Estudos Literários da forma mais
sumária possível: extinguindo o problema. Ao eliminar a existência de algo que possa
ser descrito como Literatura, ele torna todas as perguntas sobre o tema vazias. Sendo a
Literatura, como um objeto específico do conhecimento, uma ilusão, acredita que seria
mais vantajoso entendê-la:
(...) como um nome que as pessoas dão, de tempos em tempos e por
diferentes razões, a certos tipos de escrita, dentro de todo um campo daquilo
que Michel Foucault chamou de “práticas discursivas”, e que se alguma coisa
deva ser objeto de estudo, este deverá ser todo o campo de práticas, e não
apenas as práticas por vezes rotuladas, de maneira um tanto obscura, de
“Literatura” (ibid.:281).
Diluída a Literatura no conjunto indiscriminado dos discursos, Eagleton pode
aspirar agora ao renascimento da antiga Retórica, uma disciplina que se dedicasse ao
estudo geral dos discursos, dos modos como eles são produzidos, dos efeitos que são
por eles gerados. Ele admira os retóricos clássicos por terem conseguido um meio termo
entre humanismo e formalismo, pois tomavam as estruturas lingüísticas sempre em
função de suas finalidades sociais.
Ela [a retórica] não se preocupava se o objeto de sua investigação era oral ou
escrito, poesia ou filosofia, ficção ou historiografia: seu horizonte era apenas
o campo da prática discursiva na sociedade como um todo, e seu interesse
particular estava em ver tais práticas como formas de poder e de desempenho
(ibid.:282).
O retorno ao campo da Retórica resgataria, segundo Eagleton, os Estudos
Literários dos modismos que tomam a Literatura por “um objeto particularmente
privilegiado”, e o “elemento ‘estético’ como algo separável dos determinantes sociais”
(ibid.:283). Uma disciplina voltada para o estudo dos discursos como um todo poderia
reunir em si os interesses das diversas correntes dos Estudos Literários: os aspectos
formais da linguagem (do estruturalismo, da semiótica, dos formalismos em geral), os
efeitos dos discursos nos leitores (das teorias da recepção), as implicações com o poder
e o desejo (da desconstrução e da psicanálise), os efeitos transformadores do discurso
(do humanismo liberal). Tal prática seria ainda superior aos atuais Estudos Literários
porque poderia justificar sua atividade em termos de utilidade, uma vez que seria uma
atividade crítica num sentido amplo, pois, para Eagleton, as críticas de caráter
estritamente formal não teriam como responder à pergunta sobre sua utilidade.
Até aqui, Eagleton apenas promoveu um deslocamento do problema. Mesmo
que o objeto dos atuais Estudos Literários passasse a ser, de súbito, as “práticas
discursivas”, não há como não se supor que, no âmbito dessa “Nova Retórica”, não
acabariam sendo recolocadas as questões a respeito das distinções entre os tipos de
discurso e reintroduzidos os problemas referentes um certo tipo de discurso outrora
chamado Literatura. Aparentemente ciente dessa fragilidade em seu argumento,
Eagleton estende seu projeto uma pouco mais além.
4.3 - UMA TEORIA DOS DISCURSOS
Eagleton postula que há dois modos de se justificar a existência de uma teoria:
(i) em termos de seu método ou (ii) em termos de seu objeto. Usa essa distinção para
novamente desqualificar a possibilidade de existência de uma Teoria da Literatura:
Qualquer tentativa de definir a Teoria Literária em termos de um método
característico está destinada ao fracasso. A Teoria Literária deve refletir a
[sic]
61
natureza da Literatura e da Crítica Literária. Mas são muitos os
métodos da Crítica Literária (...) Esses métodos nada têm de significativo em
comum. Na verdade, têm mais em comum com outras “disciplinas” (...) do
que entre si. Metodologicamente falando, a Crítica Literária é uma “não-
disciplina”. Se a Teoria Literária é uma reflexão crítica sobre a crítica, segue-
se, então, que também ela é uma não-disciplina (ibid.:271).
Eagleton faz aqui uma estranha descrição da função da teoria, como se ela fosse
dependente dos métodos da crítica. Trata-se de uma afirmação problemática e não
esclarecida ao longo de sua exposição. De qualquer modo, é bastante claro que pretende
reforçar sua perspectiva: não há como haver uma reflexão teórica sobre um objeto
instável cuja descrição depende do contexto e do uso que dele se faz.
(...) a Teoria Literária (...) é de fato apenas um ramo das ideologias sociais,
destituída de qualquer unidade ou identidade que a distinga adequadamente
da filosofia, lingüística, psicologia, do pensamento cultural e sociológico. E
segundo, no sentido de que a única esperança que ela tem de se distinguir
apegar-se a um objeto chamado Literatura está mal dirigida (ibid.:280).
Dois são os pontos fundamentais de sua argumentação. Em primeiro lugar,
defende que a teoria precede, mesmo de modo inconsciente, o trabalho analítico. A
reflexão “teórica” estabelece como se vai ler um texto, isto é, as teorias não apenas
existem como são essenciais em qualquer ato de leitura. Em segundo lugar, ele repassa
um dos objetivos de seu livro, o de mostrar que “não existe, de fato, nenhuma ‘Teoria
Literária’ no sentido de um corpo teórico que se origine da Literatura ou seja
exclusivamente aplicável a ela” (ibid.:VII). Em seus termos, isso significa que existem
sim teorias sobre os discursos, muitas até o que não existe é algo chamado
Literatura.
O fato de ser a “Teoria Literária” uma ilusão, porém, não significaria que não se
possa extrair dela muitos conceitos valiosos para um tipo totalmente diferente de prática
discursiva (ibid.:284), a “teoria dos discursos”. Construída a partir das cinzas daquela, a
“Nova Retórica” de Eagleton teria muitos pontos em comum com a Teoria da
Literatura. Procuremos acompanhar o raciocínio do autor. Quando, na conclusão do
livro, lança a questão crucial “qual a finalidade da Teoria Literária?” (ibid.:267) ,
ele primeiro esvazia a importância da teoria. Num tom irônico, argumenta que há, no
mundo, muito mais coisas importantes do que “códigos, significantes e leitores” (ibid.),
e age como se estivesse colocando a teoria em seu devido lugar numa agenda de
61
“Literary theory is supposed to reflect on the nature of literature and literary criticism” (Eagleton,
1996:7). A tradução deveria ser “(...) refletir sobre a natureza da literatura e da crítica literária.”
prioridades. O comentário, obviamente, é justo: não há por que se esperar que os
Estudos Literários pretendam ser algo além de uma prática voltada para o conhecimento
de uma atividade humana que muitos julgam valiosa. Mas Eagleton não pretende dizer
exatamente que a Teoria da Literatura é menos importante que questões como a miséria,
guerras, fome etc. Seu objetivo é relacionar, de maneira inseparável, a teoria com todas
essas grandes questões sociais e políticas: a teoria seria assim “parte da história política
e ideológica de nossa época” (ibid.:268).
Indo contra os defensores de uma teoria que trate apenas e exclusivamente da
obra literária, Eagleton argumenta que as teorias da Literatura não teriam a
especialização que se acredita que tenham:
A Teoria Literária é, em si mesma, menos um objetivo de investigação
intelectual do que uma perspectiva na qual vemos a história de nossa época.
(...) qualquer teoria relacionada com a significação, valor, linguagem,
sentimento e experiência humanos, inevitavelmente envolverá crenças mais
amplas e profundas sobre a natureza do ser e da sociedade humanos
(ibid.:268).
Para Eagleton, no fundo, as teorias literárias não falam de Literatura. E quando
pensam dela falar, o fazem por escapismo, alienação ou até mesmo má-fé. Grande parte
do livro é dedicada a essa acusação contra as correntes teóricas, em um grande esforço
de mostrar como os modos de se entender a Literatura seriam determinados por
motivações políticas, econômicas e sociais. Eagleton tem uma vasta munição contra a
Teoria da Literatura no século XX
62
:
(i) O humanismo liberal é criticado por despolitizar a obra literária, ao tratá-la
como um repositório de abstratos “valores humanos universais”, e negligenciar, como
se fossem trivialidades, os temas sociais e históricos. O humanista subestimaria
grosseiramente a capacidade transformadora da Literatura, ao isolá-la de seu contexto
social imediato: “O humanismo liberal é uma ideologia moral dos bairros elegantes,
limitada na prática, a questões altamente impessoais” (ibid.:285). A crença em que a
Literatura tornaria as pessoas melhores teria caído por terra diante da barbárie e do
horror causados, por exemplo, por nazistas leitores de Goethe
63
.
62
As correntes psicanalíticas além, obviamente, das de orientação marxista são umas das únicas
abordagens da literatura que contam com a simpatia de Eagleton. O ensaísta entende que a discussão
sobre o prazer no âmbito da Psicanálise tem grande potencial de esclarecimento dos problemas de valor
nos estudos literários (ibid.:265).
63
Eagleton parece aqui se esquecer que a mesma comparação poderia ser aplicada aos seus tão caros
ideais socialistas e comunistas, que também geraram, à revelia de muitos de seus defensores, é bem
(ii) Herdeiro da tradição humanista, o New Criticism e seu projeto de considerar
a obra literária exclusivamente em sua imanência não passariam de uma alienação
provocada pelo capitalismo industrial (ibid.:64). Centrar-se na textualidade da obra e
ignorar os aspectos periféricos a ela são vistos por Eagleton como uma receita de inércia
política e de submissão ao status quo (ibid.:68).
O New Criticism um dos pilares da Teoria da Literatura no século XX, como
vimos no segundo capítulo deste trabalho recebe de Eagleton as críticas mais duras e
descomedidas. Ele, que havia antes criticado o Humanismo por seus valores humanos
abstratos, repreende os novos críticos exatamente por terem abandonado sua raízes
humanistas e por terem tentado tecnicizar o estudo da Literatura. Para desqualificá-los,
Eagleton busca na biografia deles os termos de sua condenação:
(...) a Nova Crítica era, no fundo, um irracionalismo completo, estreitamente
associado ao dogma religioso (vários dos principais Novos Críticos
Americanos eram cristãos), e a política direitista do “sangue e solo” do
movimento agrário (ibid.:67).
Causa surpresa que uma proposta de racionalização dos Estudos Literários seja
descrita como “um irracionalismo completo”. Exatamente de que estaria falando
Eagleton? Kant, não obstante sua glorificação da razão, também seria um
“irracionalista” apenas por ser cristão? É notável como, em algumas de suas críticas,
Eagleton se amesquinha a ponto de exercer um patrulhamento das opções políticas e até
mesmo religiosas de seus adversários.
(iii) Se o New Criticism é criticado por apostar suas fichas na razão, as teorias
baseadas na fenomenologia são descritas como autoritárias e dogmáticas pelo motivo
exatamente contrário: o desprezo pela análise racional. Centrada num modelo cognitivo
intuitivo, as correntes fenomenológicas são taxadas de alienadas e de serem um sintoma
da própria crise que pretenderam superar (cf. ibid.:85). Para Eagleton, o método
fenomenológico husserliano seria acrítico, pois é destituído de avaliações: “A crítica
não é considerada uma construção (...), é uma simples recepção passiva do texto, uma
transcrição pura de suas essências mentais” (ibid.:82). Já Heiddeger, a quem Eagleton
concede o crédito de ter sido o responsável pela reintrodução dos significados históricos
e da existência concreta do mundo na critica fenomenológica, teria falhado em derrubar
a metafísica ocidental, erigindo uma outra — o Dasein (ibid.:90).
verdade, uma longa série de barbáries ao longo do século XX.
(iv) A hermenêutica também recebe críticas contundentes, especialmente as
propostas de E. D. Hirsch Jr
64
e de Gadamer. Eagleton (id.:93) entende que o modelo de
Hirsch se basearia em uma teoria pré-lingüística em que o sentido seria um ato mental
fixado pelos signos. O sentido único empobreceria o texto, pois o trabalho crítico se
resumiria ao estabelecimento de uma interpretação que baniria todas as particularidades
e “detalhes anárquicos” da obra em favor de uma única. A conclusão a que Eagleton
chega é assombrosamente paranóica: “O objetivo de todo esse policiamento é a proteção
da propriedade privada” (ibid.:95).
O esforço de Hirsch em evitar a anarquia crítica através do estabelecimento de
graus interpretativos é comparado com as intenções de regimes autoritários que são
incapazes de “justificar racionalmente os seus próprios valores dominantes” (ibid.:95).
A crítica de Eagleton parece-me abusiva, uma vez que Hirsch pensa na intenção autoral
menos como uma instância normativa arbitrária, do que como um dado mais ou menos
objetivo da obra, inscrito em sua textualidade. E talvez se devesse perguntar a Eagleton
como ele próprio lida com a totalidade de sentidos da obra, uma vez que é
extremamente resistente a leituras que não acompanhem sua perspectiva marxista
althusseriana.
Já Gadamer é criticado por depender, em seus modelos interpretativos, de uma
tradição única, fruto de “uma teoria da história grosseiramente complacente” em que a
arte se identifica com “os monumentos clássicos da alta tradição alemã” (ibid.:100).
Eagleton critica o suposto dialogismo da história proposto pelo hermeneuta, entendendo
que os interlocutores deste diálogo não têm a mesma posição (homens e mulheres, por
exemplo). O círculo hermenêutico gadameriano não passaria de um círculo fechado
entre o leitor e a obra, que refletiria “a condição fechada da instituição acadêmica da
Literatura, à qual só podem concorrer certos tipos de textos e leitores” (ibid.:110).
(v) A teoria da recepção de Iser também é criticada por sua orientação política
liberal, que pressuporia, como leitor ideal, alguém que deveria possuir exatamente as
características e as qualidades específicas do ser humano que essa leitura pretende
64
Hirsch estabelece uma profícua distinção entre os significados e o sentido de uma obra. Sem negar que
uma obra literária signifique coisas diferentes, para pessoas diferentes, para épocas diferentes, ele trata
esses diversos entendimentos como uma questão de significação, não de sentido. Esse estaria relacionado
ao autor, aquela, aos leitores. O sentido seria absoluto e imutável e resistiria às transformações históricas
(cf. E. D. Hirsch Jr. Validity in interpretation. New Haven: Yale University Press, 1967).
produzir reproduzindo, deste modo, os problemas do “vicioso” círculo hermenêutico
gadameriano.
(vi) O Estruturalismo, para o ensaísta, é uma afronta ao bom senso, pois, ao
rejeitar “o óbvio da história” em favor das estruturas profundas (ibid.:132), o método
analítico estruturalista simplesmente ignoraria o valor cultural do objeto analisado.
Referindo-se a Fredric Jameson
65
, Eagleton concorda que o estruturalismo seria um
sintoma de que a linguagem tinha-se tornado uma obsessão para a vida intelectual do
século XX. Seu caráter não histórico, sua rejeição dos conteúdos e seu nível generalista
faziam com que tudo, homens e textos, ficassem muito parecidos. Ao tentar evitar a
falácia humanista, os estruturalistas teriam caído na armadilha oposta e abolido os
sujeitos humanos (ibid.:166).
(vii) Os pós-estruturalismos teriam radicalizado o interesse estruturalista na
linguagem. Qualquer significação, neste modelo teórico de linguagem, era uma ficção.
Era necessário, então, renunciar às idéias tradicionais de que se escrevia sobre algo, para
alguém, e colocar a linguagem como “uma alternativa para os problemas sociais que nos
pressionavam” (ibid.:193).
De um modo geral, as críticas mais duras de Eagleton são voltadas àquelas
teorias que buscam o “mito acadêmico” da objetividade dos métodos e dos
procedimentos. Assim como Barthes censurava os lansonistas por esconderem sua
ideologia, Eagleton rejeita a teoria e suas técnicas, seus ideais científicos, suas buscas
por demonstrações racionais, sua obsessão pelos universais por não passarem de uma
cortina de fumaça que encobre suas raízes profundamente ideológicas. Ainda que os
teóricos, em geral, não concordem com o status quo, eles agiriam como pactuantes dos
sistemas de poder, por acreditarem que a Teoria Literária nada tem a ver com tais
assuntos, omitindo-se em relação a eles (cf. ibid.:268-9).
Sob o argumento de reagir aos antigos modos históricos e críticos de estudo da
Literatura, a moderna Teoria Literária seria uma sucessão de tentativas de se afastar da
realidade, lançando mão de “uma gama aparentemente interminável de alternativas: o
poema em si, a sociedade orgânica, as verdades eternas, a imaginação, a estrutura da
mente humana, o mito, a linguagem e assim por diante” (ibid.:270). Corresponderia,
pois, a um novo passo em um movimento que teria começado com a Estética moderna
65
Frederic Jameson. The prison-house of language; a critical account of structuralism and Russian
quando se elidiu a historicidade da arte e se fez com que obras cujas funcionalidades
históricas eram inteiramente distintas passassem a ser pensadas sob um mesmo prisma.
Eagleton quer fazer ver que há um erro de prioridades na Teoria da Literatura. A
escolha e a rejeição dos elementos teóricos deveriam estar exclusivamente ligados
àquilo que se pretende fazer, na prática, com os textos. As questões ontológicas e
metodológicas, que tanto preocupam alguns teóricos, seriam absolutamente secundárias
diante das questões que Eagleton chama de “estratégicas” em seus termos, qualquer
método ou teoria que contribua para a emancipação humana, para a produção de
‘homens melhores’ por meio da transformação socialista da sociedade, é aceitável”
(ibid.:288). Um exemplo desse tipo de modelo teórico estaria na prática do crítico
socialista que, ao tomar a Literatura em termos de ideologia ou luta de classes, não
estaria projetando seus interesses sobre as obras, porque tais questões, sendo a matéria
da história, e sendo a Literatura um fenômeno histórico, são também a matéria da
Literatura (ibid.:288).
Eagleton pode finalmente chegar ao corolário de sua teoria dos discursos. Como
todo ato crítico é, para ele, ideológico, não é possível não haver algo de prescritivo na
formulação de uma verdadeira teoria. Sem esse grau de normatividade, o discurso
teórico se transforma num falacioso modelo neutro, num modelo descritivista, cujo
limite seria a pura tautologia, ou num modelo entre infinitos, pois milhares de coisas
podem ser feitas com um texto. Toda atividade crítica deve ser, portanto, política, e, por
não haver como se dizer qual política é mais adequada para se tratar de um texto, tudo o
que resta a fazer é discutir-se, apenas e tão-somente, política.
Nesse modelo de “crítica política” do discurso, o papel dos textos que chamamos
Literatura seria incerto. Não teria mais seu status privilegiado, pois “tal dogmatismo não
tem lugar no campo do estudo cultural” (ibid.: 292). Com isso, os departamentos de
Literatura nas universidades deixariam de existir, em favor de departamentos que
deveriam combinar uma série de teorias e métodos de análise cultural, nova concepção
em cujos detalhes Eagleton não se aprofunda.
O autor perfaz assim o objetivo de seu livro, e conclui o planejado necrológio
não apenas da Teoria da Literatura, mas dos Estudos Literários como um todo. Não é
sequer possível se discutir seu modelo de Teoria Literária, simplesmente porque ele
formalism. Princeton: Princeton University Press, 1972.
inexiste como tal. O que se poderia fazer é criticar sua gritante incapacidade de refletir
sobre seus próprios fundamentos a crítica marxista e os postulados do nexo causal
entre capitalismo e práticas discursivas, surpreendentemente, não são criticados ao
longo de seu manual , bem como censurar seu dogmatismo político. Isso, porém,
significaria entrar em seu jogo e perder os rumos de uma reflexão cujo objetivo é
descrever, analisar e criticar uma disciplina que se apóia na hipótese de haver ao
contrário do que pensa Eagleton algo que pode ser chamado, metodicamente,
Literatura.
5 - A ERA DAS REVISÕES
A radical proposta de Eagleton acabar com os Estudos Literários, em proveito
de uma teoria geral dos discursos que teria por objetivo discutir, exclusivamente,
política representa, muito provavelmente, a extrema contestação à reflexão teórica
sobre a Literatura vinda de dentro de suas próprias fronteiras. O projeto apocalíptico do
autor não chegava, entretanto, a ser uma voz isolada. Era razoavelmente disseminada
uma crença de que os Estudos Literários e a Literatura, tal como concebidos até então,
haviam chegado ao fim
66
. Tome-se, por exemplo, Teoria da Literatura, de Stéphane
Santerres-Sarkany, lançado em 1990 (não há referência ao ano de publicação na edição
portuguesa), em que o estado da Teoria da Literatura é descrito como tendo alcançado
“um ponto sem retorno”:
[A Teoria da Literatura] é cada vez mais firmemente rejeitada pelos “meios
literários” os escritores e a sua roda corporativa e é abertamente
contestada “do interior” pelos seus próprios defensores. Os dois campos
questionam as suas tendências generalizantes e abstratas. As interrogações
sobre os seus antecedentes epistemológicos surgem de todos os lados. É de
recear que, não tarda muito, falemos dela no pretérito perfeito (Santerres-
Sarkany, s.d.:9).
A crise da Teoria da Literatura estaria diretamente relacionada com o
florescimento daquilo que autor chama “nova cultura letrada” o atual contexto
cultural, caracterizado pelo surgimento de técnicas de escrita e de leitura (os novos
suportes do livro, as micro e as macro tiragens), pela simbiose escrita-áudio-visual cada
vez mais intensa e, sobretudo, por uma “nova geografia literária” em que nichos
nacionais, regionais e tribais cada vez mais marcados coexistem com um mercado cada
vez mais “poliglota, internacional e cosmopolita (ibid.:12).
A “nova cultura letrada” se teria consolidado no exato momento em que a
instituição literária vivia seus derradeiros momentos de agonia, descritos pelo autor
66
Catherine Belsey (1980:30), num livro influente no ambiente de língua inglesa Critical practice
já havia falado em uma “revolução copernicana” que estaria acontecendo nos modos através dos quais os
como uma combinação de ocorrências que aboliram antigas fronteiras entre criadores e
comentadores, entre Literatura escrita e Literatura oral, entre atividade de lazer e
cognição estética, entre poesia e espetáculo, entre Literatura legítima e paraliteratura, e
deram origem a um amálgama que “romperá com uma tradição secular e desembocará
(...) num novo significado do termo ‘Literatura’” (ibid.:13). Santerres-Sarkany
demonstra um otimismo pouco fundamentado, quase ingênuo, sobre o futuro dessa nova
cultura literária que, livre do jugo da academia, funcionaria “livremente” sob os
auspícios do mercado:
O que era servil, pois dependia do ideal burguês, é agora escolhido
criteriosamente pelos interesses mais fortes, mais vastos, do mercado real e
simbólico. Anuncia-se uma cultura letrada de todos (ibid.:12).
Trata-se, sem sombra de dúvidas, da crença liberal no mercado, levada aqui ao
seu paroxismo. A euforia de Santerres-Sarkany pela nova cultura letrada surpreende
ainda pela velha novidade que é anunciada: o “novo significado do termo Literatura”
por ele apregoado nada mais é do que seu sentido pré-moderno, em que Filosofia,
História, ciências, autobiografia, biografia, memórias, testemunhos e outros modos
discursivos compartilhariam mais uma vez a complacente noção de Literatura.
Diante dessa nova, para Santerres-Sarkany, idéia de Literatura, a velha e
“exausta” Teoria Literária, obcecada por ultrapassadas questões de textualidade, deveria
ser substituída por teorias que dessem conta da ótica do leitor, que passaria a ser o foco
dominante da nova atenção teórica:
Pela força das circunstâncias, a atenção concentrou-se na leitura. (...)
Podemos supor que a evolução interior do pensamento tornou esta posição de
qualquer modo inevitável. Nem a análise centrada no autor, nem aquela que
visa à imanência textual, nem a abordagem contextual tiveram um
rendimento plenamente satisfatório. (...) A teoria viu-se encurralada contra a
parede: a pressão das mudanças tecnológicas e dos seus efeitos era visível
desde a base e não cessava de crescer (ibid.:74).
Essa nova Teoria da Literatura, agora uma “reflexão sobre a função de uma
prática cultural transformada” (ibid.150), se valeria dos pressupostos epistemológicos
defendidos por Santerres-Sarkany, para quem a ciência contemporânea não seria mais
“um saber sistemático, cumulativo e progressivo”, pois a idéia de “acumulação” de
conhecimento teria sido substituída pela de “dinâmica” (ibid.:134-5). Infelizmente, o
funcionamento dessa nova ciência fundada no dinamismo não é esclarecido pelo autor.
textos são percebidos em nossa época.
Como num toque mágico, os problemas teóricos fundamentais da disciplina se
dissolveriam diante da necessidade premente de se teorizar sobre a evidente, ao menos
para o autor, “democratização geral e radical do literário” (ibid.:14). Os antigos temas
dos Estudos Literários deveriam ser abandonados em favor das questões relativas à
cultura midiática em geral. A instituição Literatura veria, então, os processos de
legitimação passarem do “mandarinato acadêmico e universitário para as mãos das
potências econômicas e dos media em luta pelo poder simbólico" (ibid.:15).
Em tal contexto, teriam os Estudos Literários e, especificamente, a Teoria da
Literatura algum papel a desempenhar ou mesmo alguma razão para existir? A
exposição caótica do autor não permite que se chegue a maiores conclusões. Salvo
engano, pesaria sobre a “nova Teoria da Literatura” responsabilidades extraordinárias,
como a de conciliar “a unicidade inalienável do artefato, a participação cada vez mais
ativa dos públicos em expansão e a descompartimentação cultural em curso, que atinge
a barreira ciência/arte”, bem como recolocar “esta dicotomia no cadinho da verdade
quotidiana”, de modo a “aclimatar a obra escrita ao nosso planeta”, através de um
contato mais “cômodo” entre enunciatário e os diversos públicos (ibid.:150).
Não é fácil, e provavelmente não seria proveitoso, tomar a proposta de
Santerres-Sarkany como um “modelo teórico” de estudo da Literatura, ou mesmo de
qualquer outro objeto cultural, uma vez que os fundamentos, os métodos e as práticas
que constituiriam sua suposta “nova Teoria da Literatura” não são por eles discutidas.
Obras como essa que se autodenominam teóricas por observarem um certo grau de
abstração e de generalidade no tratamento de seus temas, mas que são, na realidade,
desprovidas de qualquer aspiração metodológica ou de sistematização e não apresentam
qualquer preocupação com a fundamentação de suas assertivas não eram raras no
ambiente dos Estudos Literários nos anos 90.
Ainda mais comum era a absorção de práticas analíticas advindas de outras áreas
do conhecimento da filosofia desconstrucionista de Jacques Derrida, do
genealogismo histórico de Michel Foucault, das teorias do discurso do materialismo
cultural, das teorias pós-coloniais, dos estudos feministas, das queer theories, dos
discursos das minorias. Pela segunda vez os Estudos Literários experimentavam uma
onda de importação
67
de modelos analíticos que agravaria a condição assistemática e
“indisciplinada” da Teoria da Literatura.
Foi dentro desse contexto que dois acadêmicos da Austrália, os professores de
Literatura Richard Freadman e de Filosofia Seumas Miller, publicaram conjuntamente
em 1992
68
Re-pensando a teoria; uma crítica da Teoria Literária contemporânea, uma
obra que contestava certas concepções e formas específicas da teoria nos anos 80 e 90.
O livro procura relacionar a decadência da Teoria da Literatura com a aceitação
indiscriminada de modelos teóricos vindos de diversos campos de conhecimento.
Ainda que entendam que a distinção entre teorizar sobre um objeto e fazer
comentários sobre ele tenha sido perigosamente elidida no campo dos Estudos
Literários, Freadman e Miller não pretendem negar estatuto teórico a todos os discursos
que dominam o campo da Teoria da Literatura contemporânea. Se os pressupostos
constitutivos e os fundamentos dessas práticas discursivas são, muitas vezes, implícitos,
isso não significa que elas não funcionem como “teorias”, mas apenas indicaria as
inadequações que elas apresentariam enquanto tais. Para os autores, o problema de se
buscar o embasamento dos Estudos Literários em alguma teoria “não-literária” é o risco
de se acabar por se dissolver a própria categoria Literatura
69
. Na Teoria Literária
contemporânea é comum se pôr em dúvida a validade de se pensar em um objeto como
Literatura e se hipertrofiar o poder que a reflexão teórica teria de condicionar seus
objetos, o que implica acusar a teoria de construí-los e determiná-los inteiramente
70
.
Como efeito, a diferença entre objeto e teoria muitas vezes desapareceria.
Freadman e Miller deixam claro que teorizar a respeito de algo não implica
acreditar que se possa explicar inteiramente o objeto em questão. No caso específico da
Literatura, eles admitem que ela é, sob diversos aspectos, resistente à teorização, o que
significa dizer que não é possível se exaurir, com descrições e explicações, uma obra
literária (Freadman & Miller, 1994:259). Contudo, isso não quer dizer que seja
67
A primeira onda havia trazido o estruturalismo antropológico, a psicanálise, o marxismo e a lingüística
saussuriana para o campo dos estudos literários.
68
A edição brasileira é de 1994.
69
É o caso de Eagleton em sua superdisciplina, que iguala os textos “literários” e outras formas
comunicativas, e faz com que os fenômenos literários sejam explicados causalmente em termos das
mesmas leis descritivas e prenunciadoras empregadas em relação a outros fenômenos sociais. Além de
causal, tal teoria seria altamente teleológica, pois “sua teoria e sua prática crítica são construídas para
realizar mudanças radicais e sociais” (Freadman e Miller, 1994:66-7)
70
Para Freadman e Miller, por mais dogmática que seja, uma teoria precisa ter uma concepção prévia de
seu objeto (ibid.:248), ou então se transformaria em uma teoria sobre nada.
impossível descrever as obras literárias teoricamente, indicando apenas que haveria
limites para esses procedimentos.
Por “Teoria Literária contemporânea”, os autores entendem um conjunto de
práticas intelectuais que se julgariam mais sofisticadas em termos metodológicos e mais
socialmente relevantes do que os modelos críticos anteriores (ibid.:11), por terem
politizado, de um modo progressista sem precedentes, os Estudos Literários e superado
os modelos humanistas politicamente conservadores e dependentes de um ultrapassado
conceito de Literatura. O pressuposto fundamental desses novos modelos teóricos é a
crença em que a linguagem nem reflete nem referencia alguma realidade existente, mas
a constrói. Em conseqüência, o texto literário, por um lado, seria incapaz de “apresentar
representações autênticas da realidade” e, por outro, teria “o poder de construir ou de
reproduzir relatos sobre o mundo que servem aos interesses de grupos ou classes sociais
ascendentes” (ibid.:13).
Para Freadman e Miller, esses modelos teóricos seriam menos progressistas,
política e pedagogicamente, do que se pretendem, e se valeriam de caracterizações
simplistas e caricaturais das teses humanistas. Os autores contestam haver uma
incompatibilidade entre emancipação política e humanismo ou entre trabalho teórico e
pensamento humanista (ibid.:247), e apontam como a grande contradição das teorias
contemporâneas o repúdio dos mesmos valores (humanistas) que elas pretendem
alcançar com seu esforço de se politizarem (ibid.:94).
Reunindo a Teoria Literária contemporânea sob a denominação de “anti-
humanismo construtivista”, Freadman e Miller descrevem uma série de aspectos
característicos desses modelos teóricos: a negação do poder referencial da Literatura, a
adoção de modelos descentralizados de sujeito, a negação da autoridade original do
autor, a negação do significado definido, a negação de atos de interpretação
determinados, a afirmação da pluralidade infinita de leituras, a ligação entre
interpretação e relações de poder social, a rejeição da idéia de cânone e, por fim, a
própria rejeição da categoria “Literatura” em muitos casos, a Literatura, para a teoria
contemporânea, menos que seu objeto, é sua antagonista, algo que precisa ser
denunciado por seus comprometimentos ideológicos (ibid.:13-14). Este conjunto de
traços estaria interligado ao seu pressuposto fundamental: a “priorização ontológica
absoluta da linguagem” (ibid.:49).
A supervalorização da linguagem, para os autores, seria muito mais o efeito de
“uma crença supersticiosa na magia das palavras” (ibid.:49) do que o resultado de uma
adequada reflexão, uma vez que tal convicção estaria assentada sobre três asserções
questionáveis: (i) ser a linguagem um sistema fechado e voltado sobre si mesmo, (ii) ser
a linguagem uma expressão da ideologia e (iii) ser a linguagem indeterminada e fonte de
um número também indeterminado de significados possíveis (ibid.:34).
Sobre (i), Freadman e Miller entendem que o problema estaria em se ter tomado
de modo acrítico e radical algumas doutrinas saussurianas. Para os autores, o lingüista
suíço estava longe de ser um grande filósofo da linguagem e algumas de suas
proposições, bastante influentes nos meios das teorias contemporâneas, se revelam
inconsistentes quando melhor analisadas. Tome-se, como exemplo, a tese do significado
diferencial: se os termos de uma linguagem se definissem, negativamente, pelo que não
significam, ter-se-ia, como resultante, apenas um conjunto fechado e circular de
definições, incapaz de produzir significado para qualquer um dos termos
71
(ibid.:35).
Para que a linguagem signifique é necessário admitir, pois, que ela se liga com sentidos
extralingüísticos e, conseqüentemente, admitir que ela é, ao menos parcialmente,
dependente desta realidade, e que um texto pode sim simular e incorporar aspectos do
real
72
.
Sobre (ii), os autores entendem que o principal prejuízo para os Estudos
Literários estaria na convicção de que nenhum texto pode dar acesso à realidade.
Freadman e Miller, além de fazerem uma crítica pontual às noções de ideologia
normalmente em uso por essas correntes, defendem que, se há a possibilidade de
existirem crenças e sistemas de crença fora da ideologia dominante afinal, alguns
teóricos pretendem estar fazendo a crítica dessas ideologias , então também poderia
haver textos literários que não sejam ideológicos
73
. Além do mais, se toda prática
estética é meramente ideológica é o que pensam teóricos como Terry Eagleton —,
não haveria sentido em tomar as obras de arte como objetos privilegiados de instrução
71
Isto é, num hipotético sistema de 3 termos, o sentido de A seria apenas não-B e não-C, o de B seria
não-A e não-C, e o de C, não-A e não-B, e os três termos seriam incapazes de significar qualquer coisa
para além de seu sentido negativo.
72
Conforme será visto mais adiante, o interesse dos autores é mostrar que a linguagem, em especial os
textos literários, pode produzir “representações autênticas do domínio ético” (ibid.:297).
73
Os autores interpelam também os teóricos que afirmam que tudo é ideológico na linguagem, mas que
não seriam capazes de explicar como as ideologias políticas determinam significados de termos como, por
exemplo, “círculo” e “dor” (ibid.:38).
sobre a realidade. Se os textos são apenas mercadorias, porque não tomar também
outros artefatos não-artísticos como objetos de interpretação?
Freadman e Miller também criticam o emprego da noção de “discurso” quando
usado de modo hiperbólico para se negar que seja possível ter acesso a qualquer tipo de
realidade fora da linguagem: se tudo é discurso e se todos os discursos são fictícios e
sem fundamento, conseqüentemente, tudo é fictício e sem fundamento. Nesse contexto,
as práticas discursivas são tomadas ou como produtos da ideologia pelos marxistas
ou como manifestações de poder por Michel Foucault e seus seguidores , com
argumentos que, embora se passem por científicos, nada seriam além de uma outra
crença supersticiosa na existência de uma presença malévola que está em todas as partes
a Ideologia ou o Poder (ibid.:227).
Para criticar o argumento (iii), Freadman e Miller tomam o desconstrucionismo
de Jacques Derrida como objeto de reflexão. Descrevem a desconstrução como um
modelo discursivo que se propõe a revelar e demolir o que o filósofo francês chamava
de logocentrismo, um conjunto de pressuposições metafísicas que dariam forma à
cultura ocidental. Por operar com os mesmos conceitos que pretende destruir, a prática
desconstrucionista seria cheia de incoerências os autodenominados “paradoxos da
desconstrução” , embora disfarçadas pelo estilo discursivo reconhecidamente
anárquico de seu criador:
(...) o que é incomum em relação a Derrida é essa mistura especial de jogo e
argumentação de difícil compreensão que caracteriza todos os seus textos.
Essa mistura muito favoreceu sua reputação entre os estudiosos da Literatura,
que encontram uma combinação de exotismo estilístico com um aparente
rigor conceitual adequado; ela também facilitou a passagem de idéias que são
problemáticas mas que estão suficientemente disfarçadas em engenhosidades
retóricas para parecerem irrefutáveis (ibid.:155).
A pouca clareza e as contradições características do estilo do filósofo são
entendidas, por seus seguidores, como uma evidência para a sua alegação de que toda
linguagem é “escorregadia” e tem seus significados indeterminados. Acreditar, contudo,
que a linguagem é inerente e radicalmente indeterminada, significaria admitir que
qualquer um poderia interpretar qualquer objeto de qualquer maneira (ibid.:154), uma
implicação que os desconstrucionistas não estariam dispostos a aceitar: afinal, é
somente porque a linguagem apresenta algum grau de determinação que o próprio
Derrida é capaz de produzir determinados sentidos. Se assim não fosse, ninguém
precisaria sequer se dar ao trabalho de tentar comunicar algo, uma vez que a
comunicação seria sempre um processo completamente aleatório.
Para Freadman e Miller, os desconstrucionistas analisariam os textos literários
buscando encontrar aquilo que Derrida já previra estar lá, isto é, os derridianos
produziriam leituras estereotipadas que reduziriam toda especificidade de um texto “à
mera apresentação de evidências, ao status de evidência para afirmações apriorísticas
sobre indeterminação, caráter metafórico e assim por diante” (ibid.:174). A
desconstrução, pois, não produziria leituras de obras, apenas processos de confirmação
de uma “profecia hermenêutica” (ibid.:179), que não permitiria ao texto analisado
revelar-se (ibid.:187).
A partir da tentativa de refutação dos fundamentos das teorias “anti-humanistas
construtivistas”, Freadman e Miller passam então a elaborar uma hipotética proposta de
estudo da Literatura
74
que possa ser qualificada de teórica, ainda que não emule às
ciências naturais ou às sociais. Para tanto, eles entendem ser necessário constituir um
conjunto de princípios coerentes, interligados numa estrutura abrangente e sistemática,
que possuam um vasto de campo de aplicação e que se ofereçam a uma comprovação
minuciosamente objetiva (ibid.:249).
Os autores entendem que há três tipos de procedimentos teóricos: o descritivo,
quando apenas se descreve um objeto sem pretender determiná-lo ou avaliá-lo; o
explanatório, quando se deseja explicar, em termos causais ou teleológicos, a
existência dos objetos; ou normativo, quando se recomenda, valorativamente, certas
práticas em detrimento de outras (ibid.:253-8). Grande parte das teorias literárias
contemporâneas seria, na opinião deles, de cunho normativo, no sentido de que
privilegiam uma dada interpretação das obras literárias e rechaçam terminantemente
teorias alternativas. Surpreendentemente, eles não crêem que isso seja, particularmente,
74
Freadman e Miller chegam a esboçar uma proposta teórica, que parte de uma concepção do objeto
literatura como uma forma de comunicação que envolveria alguém que comunica, alguém com quem se
comunica e algo que é comunicado. Esse algo comunicado é um texto, “um conjunto de atos de fala
estruturados de forma tal que cada texto constitui um todo unitário e, desse modo, distingue-se de todos
os outros textos e das coisas que não são textos” (ibid.:250). Tal definição distinguiria as obras literárias
de outros objetos, mas seria insuficiente para distingui-las dos demais tipos de textos. Como, na prática,
as pessoas, baseadas em critérios diversos, são capazes de identificar certos textos como literários, o
primeiro trabalho de um teórico poderia ser justamente o detalhamento e a sistematização desses critérios,
com o intuito de gerar uma base de dados iniciais de uma teoria (ibid.:251).
ruim. Eles próprios admitem defender uma teoria normativa desejam mostrar que a
Literatura está essencialmente relacionada ao domínio ético
75
.
Freadman e Miller não negam o mérito dos comprometimentos sociais que as
teorias contemporâneas advogam, nem pretendem negar os importantes avanços obtidos
pelos Estudos Literários graças a trabalhos advindos de áreas tais quais os estudos
feministas ou pós-colonialistas, mas crêem que essas discussões só podem ser resolvidas
no campo da Ética
76
. Eles querem mostrar que o relativismo cultural e a ausência de um
discurso ético estão intimamente relacionados, pois num contexto dominado pela
relatividade não há desenvolvimento moral possível, uma vez que aquilo que se torna o
“correto” é apenas o que uma sociedade diz ser: “a sociedade nunca pode estar errada, e
(...) o indivíduo a menos que ele/ela se adapte nunca pode estar certo” (ibid.:87-
8). Para Freadman e Miller, num contexto de relativismo cultural não poderia haver
nenhum tipo de desenvolvimento moral:
(...) o desenvolvimento posterior nas atitudes raciais não é moralmente
superior; a escravidão é moralmente correta para a antiga sociedade e
moralmente incorreta para a sociedade posterior, e isso é tudo que se pode
dizer a esse respeito (...). Pois se o genocídio é uma de suas práticas sociais,
então o genocídio é moralmente correto (ibid.:87).
Embora pertinentes enquanto comentários de cunho moral, a deficiência da
argumentação de Freadman e Miller está no fato de que eles acabam reproduzindo o
mesmo problema que denunciavam em grande parte da Teoria Literária contemporânea,
ao introduzirem, no plano da discussão teórica da Literatura, um outro campo de saber
(a Ética), que passa a funcionar como uma instância valorativa não apenas dos modelos
e fundamentos da reflexão teórica, mas claramente da própria noção de obra literária:
(...) é fundamental para nossa proposta que o texto possa simular e incorporar
aspectos notáveis do real; em especial, que ele possa oferecer representações
autênticas do domínio ético. Na verdade acreditamos que a Literatura está
essencialmente relacionada a esse domínio, e que seus poderes no que diz
75
Eles definem a ética como sendo “uma preocupação com a forma como se deveria viver (uma
preocupação que envolve questões inter-relacionadas sobre modos desejáveis de conduta das vidas
individuais, por um lado, e formas desejáveis de inter-relacionamento entre indivíduos, por outro)”
(ibid.:297).
76
Seja o marxismo, que substitui as questões éticas por questões de ideologia, sejam os formalismos
diversos, que defendem versar a literatura sobre nada porque também a linguagem é intransitiva, sejam
ainda os pós-estruturalismos, que vêem a literatura como uma convenção discursiva que pode revelar os
processos de construção social, as teorias literárias contemporâneas desprezariam os discursos éticos, por
considerá-los “áridos, opressivos e reacionários” (ibid.:75). Essa impaciência com o discurso ético, fruto
de uma combinação da priorização de sistemas sobre os eus individuais com um profundo descaso em
relação às explicações divergentes de mundo, seria, para Freadman e Miller, uma manifestação de
tendência subliminarmente totalitária (ibid.:20).
respeito a ele fazem dela uma forma central de investigação humana
(ibid.:297).
Tomando a Literatura a priori como um discurso ético, o projeto teórico de
Freadman e Miller incorre numa postura dogmática que como já havia acontecido
com a proposta de Terry Eagleton arrasta a discussão sobre a teoria para fora do
ambiente estrito dos Estudos Literários. Fazer da Literatura um problema político ou um
problema ético são duas variações da mesma decisão de se abrir mão de pensar a obra
literária em sua especificidade.
De modo geral, pode-se considerar o livro de Freadman e Miller como uma
reação a um cenário em que as fronteiras entre pluralidade e completa desorganização
tornaram-se perigosamente tênues. Em nome da diversidade e do relativismo, reduziu-se
o poder de autocrítica dos Estudos Literários e, num ambiente em que todos estão, a
priori, corretos, não tarda para que os discursos se igualem em suas completas ausências
de valor e significação.
O estado de crise levará Terry Eagleton, em 1996, na reedição de seu manual, a
escrever um posfácio que, ao comentar as transformações da teoria nesse período, deixa
transparecer sua insatisfação com os rumos da disciplina que ele, treze anos atrás,
propusera suprimir. Ele busca as causas dos atuais problemas dos Estudos Literários na
década de 70, descrita por ele como um período de grandes esperanças sociais, políticas e
teóricas. Naquele momento em que as universidades teriam experimentado uma maior
democratização do acesso ao ensino superior, o “tácito consenso de valores entre
professores e alunos” (Eagleton, 2003:301), de que tanto dependeriam as Humanidades,
foi irreversivelmente abalado. Tornou-se não mais possível se exigir do estudante que
colocasse de lado sua experiência pessoal e avaliasse obras a partir do ponto de vista de
um sujeito universal e descomprometido, uma vez que alunos e professores possuíam
então formações e origens completamente distintas. Na década de 80, esses jovens
herdeiros da cultura popular dos anos 60 e 70, agora professores, foram gradativamente
seduzidos por um campo de pesquisa novo, que parecia satisfazer ao mesmo tempo “a
iconoclastia antielitista de 1968” e o rigor de um modelo teórico justificado, numa
“ligação maravilhosamente econômica entre sala de aula e tempo de lazer” (ibid.:302-3).
A energia teórica da década de 70 agora se convertera, com os fracassos e
impasses das lutas políticas, em ceticismo e desilusão. O caráter totalizador dos antigos
projetos teóricos incluiria Eagleton nesse grupo a sua própria proposta? dera lugar
a “uma espécie de antiteoria: local, setorial, subjetiva, incidental, estetizada ou
autobiográfica”. As grandes questões do passado foram substituídas pelas
micropolíticas, que conduziram a discussão política a áreas até então insuspeitas, como
o corpo humano. Ironizando, o ensaísta comenta que, após ter “desconstruído tudo
quanto pudera, a teoria finalmente se tornara capaz de desconstruir-se a si mesma”
(ibid.:305-6).
Muitas foram as formas assumidas pelas teorias que dominaram os Estudos
Literários nos anos 90 o autor as denomina ora “pós-modernismos”, ora “pós-
estruturalismos”, ora “culturalismos”. Em comum, elas possuiriam a crença na verdade
como um produto da interpretação, nos fatos como construções discursivas e na
objetividade como apenas uma interpretação que conseguiu se impor. Esquecido ou
arrependido de sua própria proposta, Eagleton não vê com simpatia as teorias
culturais que dissolvem a especificidade da Literatura:
Não há o melhor ou o pior, apenas o diferente (...). A impaciência do pós-
modernismo com as avaliações estéticas convencionais assumiu uma forma
tangível nos chamados Estudos Culturais, que se desenvolveram rapidamente
ao longo da década de 1980, e que no mais das vezes se recusavam a
respeitar as distinções de valor entre o soneto e a novela de televisão
(ibid.:319).
Após desqualificarem todos os fundamentos e tornarem impossível qualquer
crítica racional, as “teorias pós-modernistas” retiraram as bases que possibilitariam a
validação de suas próprias críticas, e teriam conduzido o pensamento contemporâneo a
um impasse: já não havendo como se propor nenhuma justificativa fundamentada para
qualquer estilo de vida, restou apenas se invalidar a própria idéia de crítica,
estigmatizando-a como necessariamente ‘metafísica’, ‘transcendente’, ‘absoluta’ ou
‘fundacional’” (ibid.:321).
É nesse contexto que florescem os Estudos Culturais e os estudos pós-
colonialistas, descritos como “uma espécie de terreno baldio” onde foram lançados os
temas descartados “por uma filosofia estreitamente analítica, uma sociologia empirista e
uma ciência política positivista” (ibid.:327). Sem nenhuma unidade particular enquanto
disciplina e desconsiderando por completo as questões de todo que sempre
assombraram os teóricos da Literatura, as teorias culturais são, para Eagleton, um bem
de consumo da sociedade pós-moderna
77
, sendo altamente estetizadas e funcionando
77
Eagleton assinala que, graças a “seu esoterismo, sua sintonia com os modismos, sua singularidade e sua
como “um substituto duvidosamente moderno da atividade política, numa época em que
tal atividade tem sido, em termos gerais, difícil de exercer”. Surgidas “como uma crítica
ambiciosa de nossos modos de vida correntes”, elas estariam agora ameaçadas de
terminarem “como uma complacente consagração destes” (ibid.:326). Para Eagleton, o
culturalismo e seus temas prediletos, a alteridade e a identidade, ao incentivarem o
relativismo, passaram a defender uma espécie de “domínio imperial às avessas”
(ibid.:325).
A indeterminação disciplinar das teorias que dominam os atuais Estudos
Literários assinalaria, para Eagleton, o esgotamento de um modelo de atividade
acadêmica, e sinalizaria que nem as humanidades nem o que se costumava chamar de
teoria poderiam prosseguir existindo como antes (ibid.:327). Era o fim da esperança de
que a teoria pudesse ser uma prática voltada sobre si mesma. A impossibilidade de se
alcançar o distanciamento clínico pretendido fazia com que todo e qualquer projeto
teórico estivesse sempre fadado ao fracasso (ibid.:300).
Apesar do tom desencantado e pessimista, pode-se perceber que, em comparação
com a 1ª edição de seu manual, Eagleton amenizou suas críticas aos modelos teóricos
mais tradicionais, fundados em valores humanistas e na crença na possibilidade de
existência de valores comuns. O Humanismo, outrora violentamente atacado, é agora
criticado apenas por não perceber que a esperança em valores universais deve ser
encarada como um projeto, e não uma realidade, pois ainda não haveria condições
materiais que permitissem seu florescimento (ibid.:330). Atualmente, dez anos após
esse posfácio, quando se acessa sua página dentro do site da Universidade de
Manchester, onde atualmente é professor, pode-se ver que sua postura intolerante em
relação à teoria parece superada, uma vez que ele declara ser essa uma de suas
especialidades, e que está interessado em supervisionar pesquisas nesta área:
Como a Teoria Literária “pura” Formalismo, Semiótica, Hermenêutica,
Narratologia, Psicanálise, Teoria da Recepção, Fenomenologia e afins tem
ocupado um lugar secundário ultimamente e dado lugar a uma agenda teórica
mais “limitada”, seria bom ver ressurgir o interesse pelo tema
78
.
relativa novidade, a teoria vem obtendo um alto prestígio no mercado acadêmico” (ibid.:326).
78
‘Pure’ literary theory formalism, semiotics, hermeneutics, narratology, psychoanalysis, reception theory,
phenomenology and the like have taken something of a back seat these days to a more narrowly conceived
theoretical agenda, so it would be agreeable to see a resurgence of interest in these regions” [tradução minha] (Acesso
em 05/02/2006, http://www.arts.manchester.ac.uk/subjectareas/englishamericanstudies/academicstaff/terryeagleton/).
5.1 - UMA TEORIA DE MUITOS OBJETOS
O primeiro manual publicado em português a confrontar a realidade da Teoria da
Literatura nos anos 90 assistemática, sem objeto específico, enfraquecida em seus
conceitos e categorias é Teoria Literária: uma introdução, de Jonathan Culler,
publicado em 1997 e lançado no Brasil dois anos depois. Ele se propôs a fazer um livro
que fugisse ao padrão das introduções à Teoria Literária que a descrevem como uma
série de escolas críticas mutuamente concorrentes.
A edição brasileira merece algumas considerações. Nela há uma introdução,
assinada pelos editores, na qual duas advertências chamam a atenção. A primeira faz
menção ao fato de não haver “teoria ou crítica neutra” e que “o caminho e a posição
teórica adotados por Culler são apenas uma das opções à disposição de quem se
aventura pelo território da teoria” (in Culler, 1999:7). A segunda informa que a decisão
editorial de adicionar notas e comentários ao texto tem o objetivo de facilitar o trabalho
de leitores menos familiarizados com as referências de Culler, bem como de apontar
para outros entendimentos da teoria supostamente omitidos pelo autor.
Trata-se de um caso curioso em que os próprios editores põem em dúvida a
qualidade do livro que publicam. Eles parecem entender que o autor haveria deixado de
mencionar elementos fundamentais da disciplina e teria escrito uma obra introdutória
que apresentaria a grave deficiência de usar referências que não eram percebidas
pelo leitor. A alegação dos editores soa disparatada diante dos objetivos de Culler, que é
explícito em declarar que toma as correntes teóricas pelo muito que possuem em
comum, de modo que se possa falar em termos de uma teoria, e não de teorias. Assim,
ou a opinião dos editores brasileiros é um completo contra-senso em relação ao projeto
de Culler, ou os editores consideram o livro um total fracasso de realização. Como o
manual é fiel à proposta de seu autor, parece-me mais provável que os editores tenham
escolhido publicar uma obra que não atendia a suas expectativas.
Ao não fazer um panorama das escolas teóricas e optar por discutir as questões
fundamentais e os pontos em comum entre as escolas teóricas, Culler terá relativo
sucesso no resgate das questões fundamentais da disciplina, embora tenha dificuldades
em estabelecer o exato papel da Teoria da Literatura dentro do novo contexto dos
Estudos Culturais.
5.1.1 - Diversidade e complexidade
Segundo Culler (1999:42), aquela que deveria ser uma questão central para a
reflexão teórica a pergunta sobre o que é a Literatura parecia já não ter mais
grande importância para a teoria contemporânea, que abandonara o interesse pela
distinção entre obras literárias e não-literárias e passara a refletir sobre a Literatura
como uma categoria histórica e ideológica. A razão para se ter deixado de lado essa
questão fundamental poderia ser encontrada na importação e na mescla indiscriminada
de modelos teóricos externos aos Estudos Literários. Os teóricos das demais áreas
humanísticas não veriam utilidade na distinção entre se saber se um texto é ou não-
literário, mesmo porque as descrições de “literariedade” já produzidas são
insatisfatórias, além de apontarem para características que se faziam presentes em
outros tipos de obras a narratividade, que se faz presente nos discursos históricos
variados; as figuras retóricas, presentes em tantos outros tipos de discurso, etc.
Culler procura então redimensionar a importância da pergunta “o que é
Literatura?”, mostrando que a busca de uma definição não visa a evitar que o leitor
“confunda um romance com a História ou a mensagem num biscoito da sorte com um
poema”, mas possibilitar uma formulação teórica que tenha por objetivo promover “os
métodos críticos mais pertinentes e descartar os métodos que negligenciam os aspectos
mais básicos e distintivos da Literatura” (ibid.:47).
Tomando a pergunta sob a ótica tradicional que averigua a possibilidade de se
pensar em traços distintivos comuns a todas as obras consideradas “Literatura”, Culler
admite que, quando se observa o caráter multifacetado das obras literárias, tanto em sua
variações sincrônicas quanto em suas transformações diacrônicas, é tentador concluir
pelo relativismo e dizer que elas são tudo que uma dada sociedade trata como tais, isto
é, “um conjunto de textos que os árbitros culturais reconhecem como pertencentes à
Literatura” (ibid.:29). Entretanto, ele observa, uma conclusão deste tipo apenas
deslocaria a pergunta original, transformando-a num questionamento sobre o que faz
com que se trate algo como Literatura.
Culler retoma e critica uma imagem de John M. Ellis, endossada por Eagleton
em seu manual
79
, em que a Literatura teria o mesmo estatuto que as ervas daninhas têm
para um jardineiro. Assim como a noção de “mato” refere-se apenas àquilo que o
jardineiro não quer em seu jardim, isto é, não aponta para uma natureza em comum
entre as plantas que são assim denominadas, a Literatura também seria um conjunto de
textos considerados “literários” por alguém, mas que não possuiriam uma essência em
comum. Tal comparação, ele argumenta, novamente não eliminaria a pergunta inicial,
que se transformaria agora em “o que está envolvido em tratar as coisas como Literatura
em nossa cultura?” (ibid.:30).
O ensaísta parte então para definir seu próprio conceito de Literatura: sua
primeira proposição é a de que uma obra literária seria um produto discursivo que,
removido de seu ambiente e destacado de seus propósitos originais, ainda se ofereceria à
interpretação. Quando descontextualizada, esse tipo de obra produziria sua própria
contextualização o contexto da Literatura (ibid.:32) , onde certos princípios da
linguagem possuiriam um estatuto diferente. Por exemplo, o princípio cooperativo da
comunicação, em que se postula que se deve ser claro em qualquer ato de fala, teria sua
importância diminuída, a ponto de serem toleráveis obscuridades e irrelevâncias, pois
um leitor de Literatura presumiria que “as complicações da linguagem têm (...) um
propósito comunicativo” que exigiriam um certo esforço interpretativo (ibid.:33).
A Literatura, entretanto, seria algo mais do que apenas uma moldura que se
coloca em certo tipo de linguagem, pois, ele acredita, “nem toda sentença se tornará
literária se registrada na página como um poema”. Por outro lado, a Literatura seria
também algo mais do que um tipo especial de linguagem, uma vez que muitas obras
literárias não ostentam sua diferença em relação a outros usos de língua (ibid.:34). Eis,
portanto, o grande desafio da definição do conceito de Literatura. Aqueles elementos
que os teóricos apontam como propriedades das obras literárias, ou seus traços
distintivos a colocação da linguagem em primeiro plano, a ficção, a Literatura como
objeto estético, como prática auto-reflexiva , são, na verdade, muito mais fruto da
atenção particular dada por certos modos de estudo aos seus objetos. Tais qualidades,
entretanto, nunca conseguiram ser conceituações de Literatura, porque a linguagem
sempre resiste aos enquadramentos e “cada qualidade identificada como um traço
79
Curiosamente, Culler não cita nenhum dos dois na passagem.
importante da Literatura mostra não ser um traço definidor, já que pode ser encontrada
em ação em outros usos da linguagem” (ibid.:42). Ao longo da história, observa o autor,
foram atribuídas funções e qualidades diametralmente opostas à Literatura muitas
vezes acusada de ser um instrumento ideológico, outras incensada por ser um lugar de
resistência onde a ideologia é exposta e pode ser questionada. Tal oscilação se
explicaria pela confusão que se faz entre propriedades potenciais da obra literária e
determinados focos de atenção que realçam tais características (ibid.:45). Para Culler, os
Estudos Literários só são possíveis quando não se esquecem da complexidade e da
diversidade de seu objeto, que, “afinal de contas, é uma instituição baseada na
possibilidade de dizer o que quer que você imagine” (ibid.:46).
5.1.2 - A culturalização dos Estudos Literários
Pensando a situação dos Estudos Literários na atualidade, Culler entende que a
área foi incorporada pelos Estudos Culturais em seus termos, um projeto de se
compreender
(...) como as produções culturais operam e como as identidades culturais são
construídas e organizadas, para indivíduos e grupos, num mundo de
comunidades diversas e misturadas, de poder do Estado, indústrias da mídia e
corporações multinacionais (ibid:49).
A questão central dos Estudos Culturais, saber como somos manipulados pelas
formas culturais e como podemos agenciá-las, estaria ligada a sua dupla genealogia (o
estruturalismo francês e a Teoria Literária marxista britânica), que dera corpo a uma
mescla de análises que tomam “a cultura como uma expressão do povo” com outras que
a tomam “como imposição sobre o povo” (ibid.:50-1).
Culler, em princípio, não acredita que precise haver conflitos de interesses entre
os Estudos Culturais e os Literários. Os culturalistas não têm por que repudiar a
concepção de objeto literário proposta pelos estudos de Literatura, pois a própria origem
do culturalismo está relacionada à aplicação de técnicas de análise literária aos demais
artefatos culturais, também tratados como textos. Por outro lado, os Estudos Literários
teriam ganhado muito quando passaram a pensar a obra literária como uma prática
cultural que se relaciona com outros modos discursivos (ibid.:52). O medo de certos
literatos, de que os Estudos Culturais possam vir a matar a Literatura através do
estímulo à leitura e ao estudo de outras formas, seria infundado. Culler lembra que
acusação semelhante também fora feita contra a teoria, quando se dizia que ela afastava
os alunos das obras literárias propriamente ditas (ibid.:53).
A aversão de parte dos estudiosos da Literatura aos Estudos Culturais estaria
relacionada a uma desconfiança de que os objetos de análise dos culturalistas são
selecionados não por sua “excelência literária”, mas por sua representatividade cultural.
Teme-se que critérios como o de “politicamente correto” ou o desejo de dar a cada
minoria uma representação justa acabem desvirtuando os princípios “especificamente
literários” de escolha das obras a serem estudadas (ibid.:54). Culler contesta tal
desconfiança, argumentando que não é verdadeiro que a “excelência literária” tenha
alguma vez efetivamente determinado o que devia ser estudado. Toda seleção feita
pelos Estudos Literários sempre foi orientada pela aplicação de critérios historicamente
comprometidos com valores não-literários. Com os Estudos Culturais, o que teria
mudado foi o entendimento daquilo que se acha interessante para ser representado por
uma obra literária, bem como a própria forma dessa obra (ibid.:54). Em outras palavras,
os Estudos Culturais teriam problematizado exatamente a própria noção de excelência
literária.
Agora que os Estudos Culturais parecem ter-se tornado hegemônicos no campo
das humanidades e que muitos dos seus praticantes já não possuem uma formação
literária, o antigo interesse despertado pelas obras literárias sua complexidade como
objeto único pode estar dando lugar a um tipo de sociologia não-quantitativa e
sucumbindo definitivamente à tendência em se tratar diversas formas culturais como
sintoma de alguma situação social específica.
Essa mudança de foco, que se consolida no desprezo pela categoria Literatura e
pelo empenho em favor de uma noção ampla como a de cultura, está, como se verá
mais adiante, diretamente relacionada ao caráter peculiar da reflexão teórica na
contemporaneidade.
5.1.3 - Uma teoria sem objeto?
O campo dos Estudos Culturais é tão confusamente interdisciplinar e tão difícil
de se definir quanto a própria Teoria Literária contemporânea, e Culler quer mostrar que
ambos estão hoje intimamente relacionados: isto é, os Estudos Culturais seriam a
prática daquilo que hoje se entende por teoria (ibid.:48).
Ele comenta que o termo teoria tem atualmente um uso indiscriminado, tanto
nos Estudos Literários quanto nos culturais, e é empregado com freqüência
isoladamente nem Teoria Literária, nem teoria cultural, apenas teoria. Com razão, ele
comenta que a queixa que se faz hoje ao excesso de teoria nos Estudos Literários não
está se referindo à grande quantidade de trabalhos que reflitam sistematicamente sobre o
tema, mas à pletora de discursos sobre questões gerais cuja relação com a Literatura está
longe de ser evidente:
Teoria, nos Estudos Literários, não é uma explicação sobre a natureza da
Literatura ou sobre os métodos para seu estudo (...). É um conjunto de
reflexão e escrita cujos limites são excessivamente difíceis de definir
(ibid.:12-3).
Ele acredita que parte do problema está no próprio termo “teoria”, que, por um
lado, significaria “um conjunto estabelecido de proposições”, mas, por outro lado,
conteria usos menos específicos, vagamente aproximados à “especulação” ou a qualquer
tipo de explicação não óbvia de alguma complexidade. Citando Richard Rorty (apud
ibid.:13), Culler diz que o que se entende por teoria hoje seria um “tipo de escrita que
não é nem a avaliação dos méritos relativos das produções literárias, nem história
intelectual, nem filosofia moral, nem profecia social, mas tudo isso combinado num
novo gênero”.
De modo genérico, o termo “teoria” tem designado textos que alimentam ou
contestam reflexões fora da área de estudos onde são gerados. No caso específico dos
Estudos Literários, desde pelo menos os anos 60 o campo é receptivo a esse tipo de
reflexão teórica, que chamo aqui de teoria sem objeto, e que Culler propõe entender
como uma crítica da cultura em sentido amplo:
Teoria, nesse sentido, não é um conjunto de métodos para o estudo literário
mas um grupo ilimitado de textos sobre tudo o que existe sob o sol, dos
problemas mais técnicos de filosofia acadêmica até os modos mutáveis nos
quais se fala e se pensa sobre o corpo (...) (ibid.:13).
A análise genealógica feita por Foucault em História da sexualidade seria um
exemplo de como um trabalho no campo da História passou a ser adotado, em outros
campos do saber, como se fosse uma proposta teórica. O que era um modelo analítico
que mostrava como categorias e noções são construídas através de práticas discursivas
ganhou estatuto de uma teoria da sexualidade, apesar de estar longe de ser um conjunto
de axiomas que se pretendam universais
80
(ibid.14-17). Culler resume assim o que se
entende por teoria hoje: uma prática interdisciplinar, normalmente um discurso com
efeitos fora de sua disciplina original, de caráter analítico e especulativo, que representa
a tentativa de entender o que está envolvido naquilo que se está estudando
especificamente. Constitui-se normalmente como uma crítica ao senso comum, aos
conceitos considerados como naturais e às próprias categorias de sua própria reflexão
(ibid.:23).
Uma das características marcantes dessa “teoria” é que ela é virtualmente
infinita, pois consiste num corpus em constante expansão, graças a um processo
contínuo de novos acréscimos e de revisões. Por ser ilimitada, ela é, conseqüentemente,
impossível de se dominar, e provocaria nos indivíduos um efeito contrário ao que dela
se espera: quem estuda teoria esperando saber sobre um determinado fenômeno,
descobriria saber cada vez menos sobre ele. Culler, entretanto, parece ver com simpatia
esse efeito de atordoamento que a teoria provoca em quem resolve por ela se aventurar
e que, segundo ele próprio, seria uma das principais causas de resistência a ela. O
ensaísta endossa esse estatuto negativo da teoria, acreditando que sua justa função deva
ser exatamente a de desfazer premissas e postulados.
Culler entende haver nos Estudos Literários dois projetos teóricos possíveis: um
poético, de cunho lingüístico, que se interessaria por como os sentidos e os efeitos são
possíveis, e outro hermenêutico, voltado para a interpretação das formas (ibid.64-65).
Atualmente, o primeiro modelo teria sido amplamente suplantado pelo segundo, já que
os culturalistas não se interessam pelo funcionamento da Literatura e buscam as obras
apenas por acreditarem que elas podem dar subsídios para suas reflexões. Assim, o que
se chama hoje de escolas ou abordagens teóricas da Literatura, antes de serem modelos
de interpretação, seriam discursos que têm a tendência de dar tipos específicos de
respostas à pergunta sobre aquilo de que trata determinada obra, baseadas no que elas
consideram particularmente importante para a cultura e a sociedade:
(...) “a luta de classes” (marxismo), “a possibilidade de unificação da
experiência” (New criticism), “conflito edipiano” (psicanálise), “a contenção
de energias subversivas” (novo historicismo), “a assimetria das relações de
80
Esse tipo de trabalho, como também o método desconstrucionista de Derrida, atrairia os estudos
literários por seu caráter especulativo, que incita a se repensar as categorias fundamentais da literatura (cf.
ibid.:22).
gênero” (feminismo), “a natureza autodesconstrutivista do texto”
(desconstrução), “a oclusão do imperialismo” (teoria pós-colonial), “a matriz
heterossexual” (gay and lesbian studies) (ibid.:67).
Algumas dessas “correntes” teóricas propõem explicações para o funcionamento
da Literatura e participariam, assim, do projeto da poética , mas funcionam muito
mais como projetos hermenêuticos que “dão origem a tipos específicos de interpretação
nos quais os textos são mapeados numa linguagem-alvo”. Culler admite que, nesse
movimento, algumas vezes a resposta é previsível, mas o que seria importante no jogo
da interpretação não é tanto a resposta que se dá, mas o caminho percorrido, “o que
você faz com os detalhes do texto ao relacioná-los com sua resposta” (ibid.:67-8).
Mais uma vez, o ensaísta não acredita que esse seja um problema: ele rechaça os
defensores das teses intencionalistas que temem que abrir mão da autoridade do autor
possa conduzir o processo de interpretação a um “vale-tudo” onde qualquer obra passe a
significar qualquer coisa. Para Culler, o texto resistiria às leituras e exigiria do analista
um esforço “para convencer os outros da pertinência de sua leitura” (ibid.:68). O sentido
de uma obra não seria fundamentalmente nem o que o autor tinha em mente, nem uma
propriedade do texto, nem uma função da experiência do leitor (ibid.:69), mas algo
dinâmico que acompanha o alargamento ou a redescrição do seu contexto de leitura
algo que os discursos teóricos contemporâneos teriam explorado muito bem.
Culler não considera produtivo dividir os Estudos Literários entre os que
produzem interpretações que buscam um sentido original e os que vasculham o texto à
busca de sentidos ocultos. Entende que a busca de um sentido primordial pode muito
bem reduzir o poder de um texto, enquanto uma leitura atenta a novos significados seria
capaz de potencializar e tornar novamente atual, por suas relações com questões atuais,
um texto (ibid.:70-1). Melhor seria distinguir entre os que produzem interpretações
“reconstrutivas” por entenderem que os textos, revelados em seu funcionamento, têm
algo valioso a dizer e os que produzem interpretações “sintomáticas” que tratam o
texto como índice de algo não-textual, “fonte real de interesse, seja ela a vida psíquica
do autor ou as tensões sociais de uma época ou a homofobia da sociedade burguesa”
(ibid.:71).
O ensaísta tem consciência de que os Estudos Literários orientados por
interpretações sintomáticas, por negligenciarem a especificidade do objeto e o
tomarem claramente como um signo de outra coisa, são insatisfatórios enquanto
modelos interpretativos afinal, acredito, elas não estariam, efetivamente,
interpretando as obras, mas as instrumentalizando. Culler, contudo, também entende
que essas práticas sintomáticas podem ser úteis, porque forneceriam explicações sobre
a prática social da qual a obra funciona como exemplo.
Embora em diversas passagens do manual Culler critique os Estudos Culturais
81
,
ele parece quase sempre empenhado em mostrar que não há perdas, mas apenas
transformações, nessa nova realidade da Teoria da Literatura. Mas não consegue negar
que é muito difícil se imaginar que se possa conciliar os interesses daqueles que
pretendem entender as especificidades de funcionamento de algo chamado Literatura
com os interesses culturalistas no objeto literário a Literatura como fonte de
materiais para teorização sobre raça, gênero, sexualidade, micro e macro-políticas,
questões de construção de identidade etc. (ibid.:109). Por muitas vezes, ele mesmo
admite o quanto o culturalismo enfraquece algumas das práticas características dos
Estudos Literários, quando, por exemplo, lamenta que a poesia tenha estado em segundo
plano, por efeito de teorias que afirmam “a centralidade cultural da narrativa” (ibid.:84).
Ele tampouco é convincentemente enfático quando argumenta não haver risco de se
poder falar qualquer coisa sobre uma obra, porque o texto não aceitaria leituras
abusivas. Essa suposta “resistência” do texto tem-se mostrado muito frágil diante de
métodos hermenêuticos determinados a usar a obra literária como ilustrações de suas
concepções prévias vejam-se, por exemplo, os comentários de Freadman e Miller
sobre as análises desconstrucionistas da Literatura. Mesmo na questão do cânone,
quando assume de modo explícito a defesa do culturalismo e argumenta que os Estudos
Literários jamais elegeram suas obras através de critérios estritamente literários, ele
parece dizer, de revés, que os Estudos Culturais não estão realmente empenhados em
criticar os critérios de canonização, mas apenas desejam acrescentar mais obras de valor
duvidoso ao oscilante cânone literário.
Por fim, a visão de Culler, de que a teoria é ilimitada e que não tem por objetivo
oferecer soluções harmoniosas, mas apenas novas perspectivas de reflexão (ibid.:117), é
precária, especialmente quando se precisa pensar a Teoria da Literatura como um ramo
81
Culler tem reservas, por exemplo, quanto ao fato de as descrições culturais representarem, como
pretendem, uma intervenção política progressista, especialmente nos EUA. A aversão dos culturalistas
americanos ao elitismo dos estudos literários tradicionais não poderia ser dissociada de uma tradição
filistina” americana [,] e o desprezo pela chamada alta cultura não chegaria a ser “um gesto
politicamente radical ou de resistência” (ibid.:57).
do conhecimento. É improvável que uma disciplina possa construir alguma forma de
saber quando parece ter por objetivo único a formulação de hipóteses que se destruam
contínua e sucessivamente. Se, em suas origens, a teoria pretendeu ser uma reflexão que
permitiria falar-se da obra literária com algum rigor, ela se transformou, na descrição de
Culler, num conjunto infinito e assistemático de práticas discursivas, ora de cunho
analítico ora de cunho especulativo, sobre qualquer artefato cultural inclusive a
Literatura.
5.2 - O QUE OS ESTUDOS LITERÁRIOS AINDA TERIAM PARA OFERECER?
Lançado na França em 1998 e traduzido para o português em 2001, O demônio
da teoria; Literatura e senso comum, representa uma mudança de concepção em
relação aos manuais dos anos 80 e 90. Embora parta de um ponto muito semelhante ao
de Culler o de que o principal efeito da teoria seria a contestação contínua dos
saberes do senso comum —, Antoine Compagnon procura resgatar a importância dos
tópicos, dos procedimentos e dos conceitos específicos dos Estudos Literários, mostrar
o quanto eles podem ser produtivos e como podem sim ajudar a constituir uma
disciplina que mereça a denominação de teoria.
Fundamental na proposta do ensaísta francês é sua percepção de que a teoria se
deixou paralisar por suas próprias armadilhas teóricas ou, em muitos casos, ardis
retóricos. Ele pretende mostrar que os grandes temas enfocados pelos Estudos Literários
ao longo dos séculos permanecem atuais. Eles teriam sobrevivido mesmo aos teóricos
que acreditam que quando uma noção chega ao domínio do senso-comum ela perde sua
condição de relevância. Para Compagnon, o futuro dos Estudos Literários dependerá do
sucesso em se abandonar a propensão às reflexões radicalmente dicotômicas sobre as
questões centrais de nosso campo de estudos.
5.2.1 - Do conceito de Literatura
Após se acompanhar cinqüenta anos de manuais de teoria, todos com seu
indefectível capítulo voltado ao tema do conceito de Literatura, não chega a ser
surpreendente que já não haja grandes novidades de conteúdo na exposição de
Compagnon. Ele descreve as dificuldades relativas às definições lato e stricto sensu
as primeiras não conferem especificidade ao objeto Literatura, as segundas não
conseguem dar conta de sua variabilidade extrema e considera que grande parte do
problema estaria em não se respeitar a distinção entre o nome Literatura”, este
relativamente novo, e a coisa Literatura”. Ao não se considerar essa diferença,
surgiriam as contradições entre um ponto de vista histórico, que quer contextualizar o
conceito, e um ponto de vista lingüístico, que pretende descrever os traços
característicos do objeto. As duas perspectivas, irredutíveis entre si, conduzem sempre a
uma aporia que a teoria contemporânea “resolveria”, em geral, de modo sociológico,
apontando o conjunto dos usos do termo “Literatura” como o máximo de definição que
se pode dele extrair.
Compagnon não acata essa solução do impasse e formula uma definição de
Literatura muito próxima à de Jonathan Culler: os textos literários seriam “aqueles que
uma sociedade utiliza, sem remetê-los necessariamente a seu contexto de origem”, por
presunção de que sua pertinência não se reduziria ao contexto de sua enunciação inicial.
Conseqüentemente, é a sociedade que decidiria “se certos textos são literários fora de
seus contextos originais” (ibid.:45). Ele tem consciência de que tal conceituação é,
inevitavelmente, uma petição de princípios. Literatura é Literatura, aquilo que as
autoridades (os professores, os editores) incluem na Literatura. (...) é impossível passar
de sua extensão à sua compreensão, do cânone à essência” (ibid.:46).
Atualmente, o foco de atenção estaria sobre a extensão do conceito, e as
tentativas de se limitar sua compreensão são consideradas como uma seqüência
histórica de fracassos. A noção de Literatura tornou-se provavelmente mais ampla do
que era para a Filologia do século XIX, e recobre um conjunto de objetos que vai dos
clássicos às histórias em quadrinho. O critério dessa dilatação na extensão do conceito,
longe de ser literário ou teórico, estaria ligado ao declínio dos pressupostos humanistas
e formalistas que marcaram os primeiros anos da Teoria da Literatura, bem como à
ascensão de critérios políticos, éticos, sociais e ideológicos. Para Compagnon, o
aparecimento desses novos princípios de avaliação das obras literárias está intimamente
relacionado aos rumos que a Teoria da Literatura imprimiu aos Estudos Literários nas
últimas décadas do século passado.
5.2.2 - Os Estudos Literários e as armadilhas das dicotomias
O ponto forte da argumentação de Compagnon é sua tentativa de resgatar a
pertinência e a validade de certos conceitos e categorias dos Estudos Literários. É
particularmente produtiva sua demonstração de como noções como a de intenção do
autor ou a de mímesis constituem-se ainda em poderosos pressupostos para o campo de
estudos da Literatura, a despeito do descrédito com que foram tratadas ao longo das
últimas décadas do século XX.
A intenção do autor permaneceria sendo uma categoria válida, pois, mesmo os
seus detratores mais radicais teóricos que, como Roland Barthes, postularam a
“morte do autor” , se valeriam de noções como ironia ou sátira, que só podem ser
compreendidas a partir de uma idéia de intenção alguém diz uma coisa de modo a se
fazer compreender outra. A crença na intencionalidade estaria também intimamente
relacionada ao que Compagnon chama de procedimento essencial de pesquisa literária,
a técnica das passagens paralelas:
Quando uma passagem de um texto apresenta problema por sua dificuldade,
sua obscuridade ou sua ambigüidade, procuramos uma passagem paralela, no
mesmo texto ou num outro texto, a fim de esclarecer o sentido da passagem
problemática (ibid.:68).
Compagnon argumenta que a técnica de se usar um determinado trecho para se
explicar uma outra passagem do mesmo texto ou de um outro texto do mesmo autor
, além de ser bastante antiga e amplamente generalizada, não é objeto de muitas
controvérsias dentro dos Estudos Literários. Mesmo os teóricos defensores da falácia da
intenção não se privam de empregar o método das passagens paralelas em suas
interpretações, sem perceber que tal procedimento se baseia não apenas na pertinência,
mas principalmente na coerência da intenção do autor, sem a qual o paralelismo seria
um índice frágil demais e apenas o resultado de uma coincidência aleatória (ibid.:75).
As coerências ou as contradições que se apontam através do emprego do método
das passagens paralelas “caracterizam implicitamente o texto produzido pelo homem,
por oposição àquele que comporia um macaco datilógrafo, a erosão da água sobre um
rochedo, ou uma máquina aleatória” (ibid.:76). Trata-se, pois, de um procedimento que
visa a “explicar” um texto, partindo-se do pressuposto de que uma obra é o resultado de
uma organização deliberada e de que seus elementos de composição podem ser
descritos e tornados inteligíveis em função de um propósito que a antecede. Compagnon
argumenta francamente contra Barthes, defendendo não ser possível se tratar a
Literatura como um texto aleatório, apenas como língua em estado bruto, e propõe que
se deva entendê-la como palavra, discurso e atos de linguagem (ibid.:79). Perguntar por
aquilo que quer dizer um texto é sempre perguntar por aquilo que quer dizer o autor, ou
seja, um antiintencionalista seria, na verdade, indiferente “não só àquilo que o autor
quer dizer, mas também, e principalmente, àquilo que o texto quer dizer” (ibid.:85). Na
prática, nem mesmo os maiores adversários da intencionalidade acreditariam não haver
um propósito significativo em um texto o ensaísta cita como exemplo uma réplica de
Jacques Derrida a John Searle, quando o filósofo francês diz ao americano “Não foi isto
que eu quis dizer”, e contradiz na prática sua tese da indeterminação da linguagem
(ibid.:89-90).
Compagnon, contudo, não defende incondicionalmente as teses intencionalistas.
Fiel à sua definição de Literatura é próprio do texto literário escapar de seu contexto
de origem , ele contesta os estudos que se baseiam exclusivamente na
recontextualização da obra, e que, ao assim procederem, conduziriam um texto literário
à condição paradoxal de não-Literatura, por negarem justamente o processo que faz dele
Literatura (ibid.:82). Seu argumento é engenhoso, porém falacioso: não faz sentido se
pensar que o contexto de origem sempre restituiria o texto a um estado de não-
Literatura, pois isso significaria dizer que não se poderiam ler obras literárias de autores
nossos contemporâneos (afinal, estariam todas em seu contexto de origem...). Não
parece implicado na hipotética assertiva de ser a obra literária um texto que continua
a significar fora de seu contexto que essa mesma obra, em seu contexto original, não
possa ser considerada literária, ao não ser que se tome “contexto” numa acepção tão
restrita que se aproxime de “sentido literal”. Ao propor que a recontextualização elimina
a literariedade de um texto, Compagnon assume uma posição tão insustentável e radical
quanto algumas das teses extremas que critica ao longo do manual, e se esquece de sua
própria proposição de que a obra de arte é “eterna e histórica. Paradoxal por natureza,
irredutível a um de seus aspectos, é um documento histórico que continua a
proporcionar uma emoção estética” (ibid.:202).
Embora recuse o radicalismo de algumas teses intencionalistas, Compagnon
defende que a concepção de sentido de uma obra humana deve compreender a noção de
atividade intencional e, por conseguinte, a crença de que as palavras nela empregadas
querem dizer alguma coisa. Basear-se num texto implica “invocar um critério de
coerência e complexidade imanentes” que apenas a hipótese de uma intenção justificaria
(ibid.:94). Quando se nega a intenção do autor e se dá à obra um outro autor o leitor
faz-se dela uma outra obra. Mais que um erro interpretativo, Compagnon vê aqui
uma questão ética: “A responsabilidade crítica, frente ao sentido do autor,
principalmente se esse sentido não é aquele diante do qual nos inclinamos, depende de
um princípio ético de respeito ao outro” (ibid.:95).
Admitir a intenção como um critério concebível de se fundamentar a validade de
uma interpretação não significa defender uma identificação plena com uma
premeditação “clara e lúcida” (ibid.:79). O que o texto disse em seu contexto de
produção e o que o texto diz no do leitor hoje podem ser dados complementares e não
concorrentes. A significação de uma obra não se esgota e nem é estritamente
equivalente à sua significação para o autor e seus contemporâneos, mas é o produto de
uma acumulação de significados. Compagnon aceita a distinção feita por Hirsch entre
sentido e significação mencionada no capítulo 4 deste trabalho , e acredita que
marcar a prioridade lógica do sentido em relação à significação suprime a contradição
entre as teses intencionalistas e a existência de outras interpretações. Dizer que uma
obra é inesgotável não precisa querer dizer que ela não possua um sentido original
relacionado à intenção de seu autor: “O que é inesgotável é sua significação, sua
pertinência fora do contexto de seu surgimento” (ibid.:88).
O que fazemos do texto é uma coisa, o que o texto fazia quando nasceu é outra e
o que se vem fazendo com o texto ao longo da história é ainda uma terceira coisa: nesse
sentido, se a interpretação de um texto literário consiste, acima de tudo, na identificação
do ato de fala inicial realizado pelo autor, não significa que a interpretação se encerre
por aí: “Numerosas são as implicações e associações de detalhes que não contradizem a
intenção principal, mas cuja complexidade é (infinitamente) mais particular, e que não
são intencionais no sentido de premeditadas” (ibid.:90-91).
Outro exemplo de dicotomia nos Estudos Literários está relacionado ao tema da
mímesis. Os teóricos teriam exagerado na atenção dada às relações entre os textos e, em
conseqüência, superestimaram “as propriedades formais dos textos em detrimento de
sua função referencial” (ibid.:111). Novamente, Compagnon procura livrar-se da
“maldição do binarismo” nesse caso específico, da necessidade de se optar entre (i)
as teses que postulam a Literatura como uma representação da realidade e (ii) as que
sustentam que a Literatura só fala de Literatura , que obrigaria a escolha entre duas
posições insustentáveis. O ensaísta argumenta que os teóricos que manifestam aversão
pelas ligações entre Literatura e realidade se baseariam, geralmente, em concepções
limitadas ou ultrapassadas de referência e, em virtude de uma confusão recorrente entre
as questões de referência na língua e a escola realista em Literatura, tomariam o
realismo literário como modelo ideal de seus ataques (ibid.:126).
Além de considerarem apenas um tipo específico de crítica e de Literatura, os
anti-referencialistas, ao tomarem radicalmente a noção saussuriana de arbitrariedade do
signo
82
, teriam efetivamente substituído a realidade pela linguagem como fonte de
sentido dos textos. A língua transformou-se assim num poder absoluto e tirânico,
especialmente para aqueles teóricos que estabelecem uma íntima identificação entre
Teoria da Literatura e crítica da ideologia. Esse modelo de pensamento seria, contudo,
repleto de contradições. A possibilidade de se criticar um sistema de poder residiria no
justo fato de que a língua não pode ser simplesmente assimilada à ideologia (ibid.:125),
uma vez que é exatamente através dela que se revelariam os mecanismos ideológicos.
Além disso, qualquer acusação de ilusão referencial precisaria estar ancorada em
algum tipo de percepção de haver uma inadequação de referência, o que só seria
possível a partir da aceitação de haver alguma forma “correta” de representação. Apesar
dessas incoerências, a linguagem se converteu em uma onipotência e os Estudos
Literários passaram
(...) de uma total ausência de problematização da língua literária, de uma
confiança inocente, instrumental (...) na representação do real e na intuição
do sentido, a uma suspeição absoluta da língua e do discurso, a ponto de
excluir toda representação (ibid.:126).
Para Compagnon, reintroduzir a realidade na Literatura significa dar um passo
decisivo na direção de um regime de ponderação capaz de entender que não é pelo fato
de a Literatura falar da Literatura que ela está impedida de também falar sobre o mundo.
Afinal, seria razoável supor que, “se o ser humano desenvolveu suas faculdades de
linguagem, é para tratar de coisas que não são da ordem da linguagem” (ibid.:126-7).
82
Compagnon faz aqui as mesmas críticas de Freadman e Miller à aceitação indiscriminada de certas
doutrinas de Saussure por certos teóricos.
Após reivindicar a reintrodução de temas como “autor” e “realidade” no
conjunto de preocupações da teoria, Compagnon passa a refletir sobre o papel que a
História deve desempenhar nos Estudos Literários. Mesmo que os teóricos da Literatura
recusem os fundamentos e os métodos dos historiadores, não lhes é possível negar que
muitas das diferenças entre as obras literárias são, ao menos em parte, históricas,
tornando legítimo se indagar de qualquer teoria “como ela explica essas diferenças
históricas, como as define, como as situa” (ibid.:198).
Compagnon não acredita que a História da Literatura ou a História Literária
tenham desempenhado bem seus papéis dentro dos Estudos Literários. A primeira ele
desqualifica inteiramente, descrevendo-a como uma tentativa de síntese ou panorama
que na maioria das vezes não produz “história”, mas uma “simples sucessão de
monografias sobre os grandes escritores e os menos grandes, apresentados em ordem
cronológica” (ibid.:199-200). A segunda
83
ele entende ser ora uma disciplina ora um
método de pesquisa originados no século XIX, de fortes traços filológicos e positivistas,
através da qual a pesquisa universitária pretendeu substituir tanto a erudição quanto uma
Crítica Literária dogmática e impressionista. Tendo por hipótese central de trabalho a
proposição de que o escritor e a obra devem ser compreendidos em seu contexto
original, a História Literária se teria deixado aprisionar pelo gosto pela “explicação
genética baseada no estudo das fontes” (ibid.:200).
Mesmo o esforço da História Literária em se separar da Crítica nunca teria
chegado a ser bem sucedida, no entender de Compagnon. Em primeiro lugar, porque a
própria expressão Crítica Literária
84
sempre foi ambígua, ora significando a totalidade
dos Estudos Literários ora a parte que diz respeito aos juízos. Além disso, a confiança
dos historiadores na objetividade dos fatos que os levava à crença da cientificidade
na constatação “A deriva de B”, ao passo que a operação crítica “A é melhor que B
seria apenas um julgamento de valor baseado na subjetividade foi denunciada como
83
Ele é bastante impreciso em sua caracterização da história literária, chegando por vezes a identificá-la
erroneamente com a Filologia ou com os próprios estudos literários acadêmicos: “Por história literária
compreendo (...) um discurso que insiste nos fatores exteriores à experiência da leitura, por exemplo, na
concepção ou na transmissão das obras, ou em outros elementos que em geral não interessam ao não-
especialista. A história literária é a disciplina acadêmica que surgiu ao longo do século XIX, mais
conhecida, aliás, com o nome de filologia, scholarship, Wissenchaft, ou pesquisa” (ibid.:22).
84
Ele entende por crítica literária “um discurso sobre as obras literárias que (...) que descreve, interpreta, avalia
o sentido e o efeito que as obras exercem sobre os (bons) leitores, mas sobre leitores não necessariamente
cultos nem profissionais. A crítica aprecia, julga; procede por simpatia (ou antipatia), por identificação ou
projeção: seu lugar ideal é o salão, do qual a imprensa é uma metamorfose, não a universidade (...)” (ibid.:22).
infundada pela teoria, que contestou essa suposta polarização, enquanto sonhava ela
mesma em renunciar aos dois procedimentos.
A teoria tinha razão ao apontar que o factualismo e o objetivismo da História
Literária não podiam ser tomados de forma absoluta, pois não era tão simples quanto os
historiadores supunham pôr de lado seus próprios julgamentos para se reconstruir o
passado. Contudo, ela teria se excedido em suas críticas, quando postulou ser
irremediavelmente impossível se penetrar nas mentalidades antigas (ibid.:204), e
inviabilizou, deste modo, o próprio projeto de produção de conhecimento histórico. Em
outras palavras, se era justo alertar para que não se tomasse a descrição historiográfica
como realidade incontestável, não era pertinente encará-la como irremediável e
aprioristicamente falsa.
Expulsas pela teoria, a história e a realidade teriam retornado triunfalmente aos
Estudos Literários nas últimas décadas do século XX, sob a forma dos Cultural Studies,
do New Historicism norte-americano e dos estudos do pós-colonialismo, práticas que
seriam por muitos consideradas antiteóricas ou antiliterárias exatamente pela forte
oposição ainda existente entre teoria e história na mentalidade do campo de estudos de
Literatura. Compagnon não crê que se possa negar a elas o estatuto de teoria, mas
admite que seja razoável lhes censurar “o fato de não conseguirem estabelecer uma
ponte com a análise intrínseca” das obras literárias (ibid.:222). Essa difícil conciliação
entre os interesses dos Estudos Literários, culturais, históricos e políticos é um problema
que caberia exatamente à teoria resolver.
5.2.3 - Uma disciplina ambivalente
Compagnon faz uma distinção curiosa entre Teoria da Literatura e Teoria
Literária. Aquela seria uma espécie de metacrítica dos Estudos Literários e teria por
objetivo refletir sobre os discursos de base da crítica e da História Literária (O que é
Literatura? Qual é a relação entre Literatura e autor, entre Literatura e realidade, entre
Literatura e leitor, entre Literatura e linguagem?). Já a segunda seria a instância crítica
da primeira e deveria procurar revelar os pressupostos, códigos e convenções através
dos quais a Teoria da Literatura responde àquelas questões fundamentais dos Estudos
Literários (ibid.:24-5).
Ao longo do livro, porém, tal distinção parece ser dispensável. Compagnon não
expressa formalmente quais seriam as diferenças de métodos e de procedimentos que
permitiriam à Teoria Literária criticar a Teoria da Literatura, tampouco esclarece qual o
teor “literário” de uma reflexão que não seria exatamente dedicada às questões
relacionadas à Literatura, mas aos fundamentos e pressupostos de uma outra disciplina.
Sobretudo, ele mesmo não respeita muito sua própria distinção, e na maior parte das
vezes emprega simplesmente o termo teoria, sem explicitar se o complemento é
“literária” ou “da Literatura”.
Apesar dessas obscuridades, creio poder-se dizer que Compagnon acredita ser a
função tanto da Teoria da Literatura quanto da Teoria Literária organizar os Estudos
Literários. Ele define a teoria como uma “epistemologia” (ibid.:20), embora lhe negue o
estatuto de filosofia da Literatura, alegando que ela não teria caráter especulativo ou
abstrato, mas analítico. Trata-se de uma passagem contraditória, pois, além de as
epistemologias serem fundamentalmente filosóficas, não há nada de inadequado em ser
analítica uma filosofia, e, no fundo, Compagnon pensa a teoria como uma disciplina de
caráter filosófico, dedicada à avaliação dos pressupostos de valoração da crítica e dos
pressupostos de contextualização da História Literária.
Tendo por meta problematizar as afirmações e mostrar que todas podem ser
respondidas de diversas maneiras, Compagnon admite que a teoria seja uma disciplina
relativista, embora não pluralista. Ela se constituiria como um conjunto de doutrinas,
dogmas e ideologias que, num domínio em que a experimentação não é possível,
proliferam a ponto de haver tantas teorias quanto teóricos (ibid.:23). Entretanto, embora
sejam muitas as respostas possíveis, elas não seriam compossíveis, e se excluiriam
“mutuamente, porque não chamam de Literatura, não qualificam como literária a
mesma coisa; não visam a diferentes aspectos do mesmo objeto, mas a diferentes
objetos” (ibid.:26).
Compagnon parece ciente de que a distância entre o pluralismo e o relativismo é,
em muitos casos, apenas uma questão de grau. Diante de problemas que não podem ser
resolvidos de modo objetivo e imediato, a teoria radicalizou suas posições e passou a
eliminar os impasses da maneira mais sumária possível: tornando ilegítimas as questões
que atentassem contra o caráter relativístico do conhecimento por ela promovido. Teria
sido assim que termos de uso corrente nos Estudos Literários (Literatura, autor,
intenção, sentido, interpretação, representação, conteúdo, fundo, valor, originalidade,
história, influência, período, estilo) deixaram de ser encaradas como temas básicos e
foram lançadas ao limbo dos problemas caducos, pois formulados a partir de projetos de
saber taxados de positivistas, ideológicos, ingênuos etc.
O argumento principal de Compagnon é o de que essa fuga das questões
fundamentais intensificou o antagonismo entre a teoria e senso comum. A atração dos
teóricos pelos paradoxos como o da morte do autor ou o da indiferença da Literatura
pelo real e sua pouca disposição em ser razoável e matizar suas assertivas
corresponde ao que ele chama de o demônio da teoria, uma tendência auto-sabotadora
que seria responsável por ter mergulhado a reflexão sobre a Literatura em um
emaranhado de posições teóricas absurdas que se confrontam até perderem de vista seu
próprio objeto, a obra literária.
Aturdida diante de sua incapacidade de justificar racionalmente suas
preferências, avessa às constatações empíricas de consensos e tendo perdido a fé na
possibilidade de uma terceira via entre um objetivismo insustentável e um subjetivismo
incômodo, a teoria contemporânea clamou para si o mesmo estatuto relativo que
concedeu à Literatura. Diz Compagnon: “Não há por que pedir contas de seus
fundamentos epistemológicos nem de suas conseqüências lógicas. Assim, não há
diferença entre um ensaio de Teoria Literária e uma ficção” (ibid.:259). Mesmo um dos
únicos méritos dessa prática teórica demolidora seu poder de “abalar as idéias
preconcebidas, de sacudir a boa consciência ou a má fé da interpretação” tornou-se
uma espécie de vitória de Pirro, em que as certezas por ela produzidas “são tão
maniqueístas quanto aquelas de que era preciso se desvencilhar” (ibid:260).
Esse momento crítico experimentado pela teoria teria duas causas relacionadas
ao caráter bivalente da disciplina: além de sua radicalidade autodestrutiva, que contesta
“toda posição sensata para chegar a uma posição enfim ‘infalsificável’, pois
insustentável” (ibid.:159), ela também sofreria com a estagnação que experimenta ao ser
traduzida para as salas de aula e transformada em uma ciência de apoio à análise e à
interpretação do texto. Quando institucionalizada, a teoria transforma-se em “uma
pequena técnica pedagógica, freqüentemente tão árida quanto a explicação de texto, que
ela atacava, então, energicamente” (ibid.:13). Essa valência esquizofrênica da Teoria da
Literatura por um lado uma subversiva crítica às construções e convenções
históricas, por outro uma prática destinada a ser transformada em um pequeno método
pela Academia seria reflexo da dificuldade encontrada pelos teóricos em “preservar o
equilíbrio entre os elementos da Literatura”:
Os literatos não são adeptos do meio-termo (...): ou a intenção do autor é a
realidade da Literatura ou, então, ela é somente uma ilusão; ou a
representação da realidade é a realidade da Literatura, ou, então, ela é
somente uma ilusão; (...) ou o estilo é a realidade da Literatura ou, então, ele
é somente uma ilusão, e dizer de outra forma a mesma coisa é em realidade
dizer outra coisa (ibid.:187-8).
Qual o caminho para a superação dessa crise? Compagnon é evasivo e prega
uma espécie de agnosticismo teórico. Declara não advogar a causa de uma teoria entre
outras, nem a do senso comum, mas a de uma crítica a todas as teorias, inclusive ao
senso comum. Defende, pois, a dúvida hiperbólica diante de todo discurso sobre a
Literatura que, no fim das contas, redundaria em um constante estado de perplexidade.
Trata-se de um desfecho contraditório. Ao tomar a Teoria da Literatura como
uma epistemologia, ele realmente a descreveu como uma escola de relativismo, mas
negou-lhe a possibilidade de ser pluralista, uma vez que a necessidade de se fazer
escolhas seria inevitável. Para se estudar Literatura seria indispensável se tomar partido,
pois os métodos não se somam e o ecletismo não leva a lugar algum (ibid.:262).
Também é claro que Compagnon, ao longo do livro, posiciona-se contra ou a favor de
certas teses, e admite, numa auto-avaliação, que o fato de não ter estendido sua pesquisa
até os anos 90 talvez pudesse se dever à circunstância de que, “depois de 1975, não
tenha sido publicado nada de interessante [.]” (ibid.:262). Por que então essa súbita
contemporização em sua conclusão?
Como ocorrera antes com Jonathan Culler, Compagnon resignadamente atribui à
teoria o objetivo de “desconsertar”, “contestar” e “denunciar” as ilusões produzidas
pelos discursos sobre a Literatura, provindas da academia ou do senso comum. Mas se a
teoria for de fato apenas essa prática negativa que se esforça em demonstrar a
impossibilidade de qualquer conhecimento efetivo sobre a Literatura, ela presta então
um desserviço aos Estudos Literários. Compagnon provavelmente concorda que o
relativismo representa um mal tão grande para os Estudos Literários quanto qualquer
dogmatismo, mas o tom reticente com que conclui seu manual, abrindo mão de se
comprometer com as posições que sustentou ao longo de sua argumentação, revelam
exatamente a força que a consciência relativística exerce, em nosso tempo, sobre o
nosso campo de estudos.
6 - OS MANUAIS DE TEORIA DA LITERATURA NO BRASIL
Não deixa de ser curioso num trabalho dedicado á Teoria da Literatura haver um
capítulo que se organize a partir das idéias de nação e de cronologia, duas categorias
estritamente ligadas àquela que foi a grande adversária dos primeiros teóricos: a
História da Literatura. Entretanto, como aqui se defende que uma das maiores
qualidades da reflexão teórica é ter a consciência de seus limites e da importância de
outros enfoques para a produção do conhecimento no âmbito dos Estudos Literários,
dedico esse capítulo a relacionar cronologicamente e a comentar de maneira sucinta os
manuais de Teoria da Literatura publicados originalmente no Brasil.
O critério empregado na seleção da obras foi o mesmo utilizado com as
estrangeiras, e acabou conduzindo à confirmação de que, também em nosso país, o
nome antecedeu a coisa
85
: antes do manual fundador de Wellek e Warren, foram aqui
lançados ao menos dois livros com títulos que continham a expressão Teoria da
Literatura, embora descrevessem uma abordagem do fenômeno literário que em pouco
ou nada se assemelhava à que caracterizaria a disciplina ao longo do século XX.
6.1 - TEORIAS OITOCENTISTAS SOBREVIVENTES
O termo “Teoria da Literatura” aparece precocemente no campo de Estudos
Literários brasileiro. Em 1935, Estêvão Cruz publicou um livro denominado Teoria da
Literatura, cujo subtítulo, “para uso das escolas, e de acordo com os programas oficiais
vigentes”, já revelava o caráter da obra e seu público-alvo. Sua orientação didática e sua
fidelidade às grades curriculares da época são, por sinal, lamentadas por Jorge de Lima,
prefaciador da obra, ao comentar que, ainda assim,o livro ofereceria a possibilidade de
85
Roberto Acízelo (in Jobim, 1992) comenta que a primazia da utilização do termo deve ser dada aos
russos Alexander Portebnia e Boris Tomachevski, autores de Notas para uma teoria da literatura (1905)
e Teoria da literatura (1925), respectivamente.
“se poder conhecer e pesar quanto a Literatura de hoje é divergente dos modelos
clássicos ainda obrigados nos programas oficiais” (in Cruz, 1935:7).
O elogio do poeta é apenas protocolar. A obra é aferrada a princípios
oitocentistas dos Estudos Literários, a começar pelo problema da conceituação da
Literatura. Cruz é extremamente ambíguo em sua definição de obra literária. Embora
assuma uma definição de cunho estético “A Literatura é o conjunto das produções do
intelecto humano, faladas ou escritas, que despertam o sentimento do belo pela
perfeição da forma e pela excelência das idéias” (ibid.:13) , ele aceita os diversos
sentidos históricos em que o termo foi empregado, bem como os sentidos que se faziam
presentes à sua época, e admite que a Literatura possa ser compreendida de uma forma
mais ampla, ainda que não vá dela se ocupar ao longo do livro. Sem maiores detalhes
que justificassem a opção, o autor deixa claro que tratará não da obra literária “em toda
a sua extensão, mas só aquela que é capaz de provocar uma emoção” (ibid.). Sua única
rejeição é às definições de cunho historicista que falem em termos de “espírito do povo”
e incluam, no âmbito da Literatura, toda a produção intelectual de um país, seja poesia,
música, romance, pintura, filosofia.
A crença em valores fixos e universais fundamenta sua visão dos Estudos
Literários em seus termos, Crítica Literária. Cruz a define como a “análise das
produções do talento literário: um ato lógico que supõe o gosto (juízo estético) e
ilustração” (ibid.:88). A prática crítica seria um ato objetivo, pois a ilustração “um
conjunto de princípios que permitem determinar as virtudes essenciais ou intrínsecas da
obra literária, e transmitir a outros o resultado dessa determinação” (ibid.:89) evitaria
as idiossincrasias do gosto particular. Tais princípios, que não são explicitados pelo
autor, “ressaltariam aos olhos de todo talento crítico” e seriam responsáveis por não
permitir que o gosto pessoal se converta em obstáculo ao trabalho crítico. O caráter
normativo do manual revela-se ainda em passagens como aquela em que a arte literária
é definida como “o conjunto de preceitos segundo os quais deve ser composta a obra
literária, afim de que nos possa emocionar (...). É o meio adequado de representar o belo
literário” (ibid.:13).
Ressalve-se, porém, que, ao contrário das primeira
86
e segunda partes
87
onde o
caráter retórico/poético do livro transparece de modo mais intenso, a forma da
introdução não difere dos manuais de Teoria da Literatura que lhe seguirão, e contém,
ainda que em termos muito diversos, a mesma discussão acerca das acepções usuais do
objeto de estudo, das definições do termo, de seus limites e de suas origens.
Também em 1935, Augusto Magne publica Princípios elementares de
Literatura, cujo subtítulo é “Teoria Literária”. Trata-se de outra obra de transição entre
os modelos de Estudos Literários do XIX e do XX, fortemente influenciado pela
Retórica Clássica, o que pode ser observado pela grande atenção dada às figuras e aos
tropos, bem como pela grande atenção dispensada à Eloqüência no capítulo destinado
aos gêneros.
Nove anos após o manual de Estêvão Cruz, Antônio Soares Amora lançou o seu
Teoria da Literatura, em termos um pouco mais afastados dos modelos oitocentistas de
estudo da Literatura. Pode-se mesmo observar, nas sucessivas edições do livro, as
pequenas alterações que vão sinalizando as transformações sofridas pelos Estudos
Literários entre os anos 40 e 60 do século passado, a ponto de levar o autor a lamentar,
em certo momento, a dificuldade progressiva em se sistematizar, numa obra de cunho
escolar, a problemática literária (Amora, 1971:7).
Amora entendia não ser possível constituir uma disciplina voltada aos estudos de
Literatura em seus termos, Crítica Literária sem uma conceituação inicial de seu
objeto. Acreditava haver dois modos de se abordar essa questão: um teórico e outro
histórico (ibid.:11). De modo perspicaz entendia que era um equívoco tentar
acompanhar a evolução semântica da palavra Literatura, pois conduziria ao erro de se
confundir a história do conceito com a da palavra (ibid.:12). Ele estabelecia ainda uma
outra distinção, entre a idéia geral e abstrata contida em um conceito e a particularidade
expressa através de uma concepção:
(...) todo e qualquer artista tem sempre uma concepção da arte, isto é,
compreende e realiza a arte de determinado modo; mas muito freqüentemente
não chega a estabelecer um conceito de arte. À crítica, ou mais propriamente,
à Teoria Literária, é que tem cabido a tarefa de analisar e conceituar essas
diversas concepções (ibid.:12).
86
A primeira parte é denominada “A arte literária em sua unidade”, e é composta pelos seguintes
capítulos, todos de orientação retórica: V A invenção; VI A disposição; VII A elocução ou estilo;
VIII A linguagem; IX A linguagem literária; X A linguagem figurada e XI - A Crítica Literária
87
A segunda parte é denominada “A arte literária em sua variedade”, e é composta pelos seguintes
capítulos: XII Poesia épica; XIII Poesia lírica e dramática; XIV A didática e XV A oratória.
Seria uma ilusão se achar que um único conceito ou uma única concepção de
Literatura exista a cada momento histórico: conceitos e concepções são múltiplos,
diversificados e, muitas vezes, absolutamente incompatíveis entre si (ibid.:13). Quanto a
sua própria noção de Literatura, Amora descrevia a obras literárias como ficção: uma
forma de conhecimento em que a realidade é recriada e expressa numa supra-
realidade, que não possuiria compromissos de identidade com a realidade racional ou
sensível (ibid.:32). Ele é contundente ao defender a Literatura como representação: o
que conferiria a um texto o caráter de obra literária não seria nem a natureza da
expressão nem seus objetivos, mas a natureza do seu conteúdo.
Procurando diferenciar seu livro dos outros manuais de orientação retórica e
poética voltados ao ensino da Literatura, Amora defendia que um livro didático não
poderia consistir em simples resumos dos pontos exigidos pelo programa oficial,
destinados à memorização dos estudantes. Ele pretendia ter escrito “uma obra com a
orgânica da ciência a que serve, e destinada à consulta, ao estudo e à reflexão, a que o
estudante tem de se habituar” (ibid.:8). Trata-se de uma postura progressista, quando se
lembra que, ainda nos anos 60 do século passado, continuavam a ser lançadas obras
como Teoria Literária (1965), de Hênio Tavares, obra que, apesar do título e da data de
lançamento, chama atenção por ter sido, ao longo de sua extraordinária vitalidade
editorial
88
, absolutamente imune a todas os temas desse efervescente período da Teoria
da Literatura, sendo por completo afinada às orientações oitocentistas dos Estudos
Literários.
Em 1967, com uma obra remodelada, Introdução à Teoria da Literatura
89
,
Antônio Soares Amora abandona os termos retóricos em favor de uma concepção de
teoria mais afinada com a época. É de especial interesse a esquematização dos cinco
comportamentos possíveis diante da obra literária, a que me referi no capítulo inicial
deste trabalho, bem como sua distinção entre a “Teoria da Literatura (que é o estudo
geral da Literatura e seus problemas)” a as “outras disciplinas que também se ocupam
de fatos literários a Análise Literária, a Crítica Literária e a História Literária”
(Amora, 2004:12). Dado o grande desenvolvimento dos Estudos Literários, o autor dizia
88
A última edição de que tenho notícia é a 12ª, de 2002.
89
A última edição de que tenho notícia é a 12ª, de 2004.
já não ser possível dominá-los em seu conjunto, razão por que cada uma dessas
disciplinas exigiria uma formação especializada (ibid.:151).
Sendo uma das cinco abordagens possíveis da obra literária, a Teoria da
Literatura, embora não se confunda com as demais, pois cada uma teria seus objetivos e
métodos próprios, mantém com elas uma relação íntima. Para Amora, o trabalho teórico
visa a estabelecer generalidades a partir da observação de fenômenos literários,
constituindo-se como uma disciplina de reflexão sobre os problemas da Literatura, e não
como uma série de conceitos a serem decorados pelos que estudam a matéria (ibid.:12).
Ele defendia que, como a Literatura está em constante processo de variação, também a
teoria deveria ser uma disciplina em permanente evolução (ibid.:41). Seus métodos não
poderiam ser fixos e deveriam variar conforme a natureza da obra a ser analisada.
Amora reunia no âmbito da Teoria da Literatura todo e qualquer esforço
especulativo e generalizante sobre a Literatura, o que lhe permitia contar uma história
da teoria que começava na Grécia clássica e se estendia até o século XX, quando
após uma suposta divisão entre uma corrente de caráter cientifico e outra de caráter
filosófico Ciência da Literatura e Filosofia da Literatura teriam dado origem a uma
só disciplina, a Teoria da Literatura, uma matéria propedêutica a qualquer tipo de estudo
da Literatura (ibid.:31-35).
6.2 - A DÉCADA DOS MANUAIS
Os anos 70 são pródigos em manuais de Teoria da Literatura. Em 1971, alguns
ensaios dos formalistas russos são traduzidos para o português e lançados no Brasil sob
o título Teoria da Literatura. Na introdução, Dionísio de Oliveira Toledo anunciava
uma nova era nos Estudos Literários brasileiros, em que se substituiria a crítica
conteudística e subjetiva de autores como José Veríssimo e Otto Maria Carpeaux
por uma prática científica atenta aos aspectos formais da obra de arte literária (Dionísio
de Oliveira Toledo in Eikhenbaum, 1971:XXIV).
Dois anos depois, Leodegário Azevedo Filho organiza Teoria da Literatura,
obra que relaciona e descreve as origens e as idéias gerais de algumas das abordagens
da disciplina no século XX, em capítulos intituladas “A Nova Crítica”, “A Estilística”,
“O Formalismo Russo”, “A Semântica Estrutural”, “O grupo Tel Quel”, “A teoria do
reflexo de Lukács”, “O estruturalismo genético de Goldmann”, “A autonomia do
processo estético segundo Badiou” e “A Psico-crítica como crítica estrutural”. O
organizador apresenta o livro como um trabalho de equipe, destinado a suprir o grande
desconhecimento teórico existente entre professores e estudantes nos cursos superiores
de Letras. Ambicionava ter organizado um manual “em termos modernos” ou seja,
diferenciado de outras obras “existentes no Brasil, ou mesmo no Exterior, com idêntico
título,” que se ressentiriam da falta de atualização bibliográfica , capaz de ajudar o
“estudante que se inicia em matéria tão complexa” e se sente desorientado diante de
uma imensa bibliografia estrangeira, especialmente a de origem francesa, que se
expandia então vertiginosamente (Azevedo Filho, 1973:7-8).
Embora defendesse a pluralidade de correntes no estudo teórico da Literatura,
Azevedo Filho alertava para o risco de as múltiplas possibilidades acabarem
redundando em “confusão de métodos de leitura, tão freqüente entre nós, inclusive em
certas teses de mestrado e doutorado” (ibid.:10). Numa época em que os Estudos
Literários presenciaram uma livre convivência de jargões e pseudojargões oriundos das
muitas e concorrentes abordagens do objeto literário, ressaltava o cuidado que pedira
aos seus colaboradores quanto à clareza da exposição:
De nossa parte, tivemos cuidado extremo (pelo menos isso foi
recomendado) em evitar o bloqueio da comunicação por falha técnica do
emissor, mas sem fazer concessões à comunicação de massa, concessões
prejudiciais à linguagem especializada da obra. Por isso mesmo, não se
encontrará aqui a clareza das paredes brancas, mas a clareza de um
vocabulário técnico, utilizado por necessidade de expressão e não por
esnobismo (ibid.:9, grifo meu).
A passagem, especialmente o trecho grifado, soa como uma mea-culpa. Isso
porque o capítulo dedicado à descrição da disciplina, escrito por Antônio Sérgio
Mendonça, é, de fato, um ensaio obscuro, de exposição caótica e argumentação
incompreensível. Embora utilize um aparato terminológico inspirado em certos autores
da Filosofia e da Psicanálise é facilmente identificável a influência de Derrida,
Heidegger e Lacan, embora ele não os cite diretamente , o autor não se dá ao trabalho
de contextualizar os conceitos empregados ou de esclarecer as categorias com a quais
trabalha. Partindo de uma enigmática distinção entre a “imanentista” Teoria da
Literatura e a “transcendente” Teoria Literária, o texto é emblemático em seu caráter
esotérico, representando, com fidelidade, o alto grau de hermetismo e, por vezes, de
non-sense atingido por alguns discursos teóricos nos anos 70. Reproduzo, a título de
ilustração, dois parágrafos:
A Teoria da Literatura é, contudo, uma Teoria da Leitura. É fundamental
precisarmos que, se a Escrita já estivesse presente de maneira potencial no
objeto, o estilo seria apenas a forma particular de manifestá-la. Uma vez isto
não acontecendo (sob pena de recorrermos a uma problemática metafísica da
origem e/ou do Significado Transcendental), temos o lugar discursivo da
disciplina. Se a Escritura (texto latente, deslocado e/ou condensado) não é
reversível à Escrita (texto manifesto) abre-se o espaço para a leitura. Os
objetos situados ao nível inconsciente, daí a Escritura colocar-se como
linguagem latente, diferem-se de seus opostos, recortam-se e distinguem-
se entre si. Assim, executaremos a leitura desta diferença. Daí a importância
da Teoria da Literatura, como Teoria da Leitura da diferença literária, como
não especificidade já dada. Ou seja, se o estilo não traduz a Escritura, por
simplesmente reduplicar a Escrita (já que ambas não são reversíveis) abre-se
o espaço do teórico. Ele diz da Leitura das condições de produção do
Discurso (Antônio Sérgio Mendonça in Azevedo Filho, 1973:11).
Concluindo, pensamos que o ponto de partida para uma reflexão sobre a
Teoria da Literatura reside em a concebermos como a Teoria da Leitura que
dá conta do sentido latente em sua diferenciação como tipo de discurso
inconsciente. Para criticá-la, em seus próprios argumentos, diríamos que a
différence (polissemia de origem) é diferenciada em seus termos (ibid.:16)
Não é de se espantar que os alunos de graduação se sentissem desorientados
diante de tais textos “introdutórios” e que passassem a rejeitar a teoria, tomando-a como
um palavrório vazio e apartado de qualquer utilidade. Responsável pela duvidosa
decisão de entregar a um “combativo (...) estruturalista de orientação lacaniana” (ibid.:
9) o dever de explicar a disciplina que dava nome a seu manual, Leodegário de Azevedo
Filho que descreve o texto de Mendonça como “denso e sintético” precaveu-se
contra possíveis críticas que questionassem a linguagem utilizada no livro,
aconselhando o leitor a reler o texto e a corrigir “as possíveis falhas de sua própria
formação universitária”.
Apesar dos problemas gerados por certos discursos “teóricos” que, longe de
contribuírem para o aperfeiçoamento da Teoria da Literatura, apenas a tornavam objeto
de desconfiança ou de aversão por parte de estudantes e professores, a disciplina tinha-
se institucionalizado e se fazia presente nos cursos superiores de Letras desde uma
resolução do Conselho Federal de Educação de 1962 (cf. Souza, 1999:102). Não tardou
para que sua influência se estendesse também ao ensino médio. Em 1975, o professor
Heitor Megale lançou Elementos de Teoria Literária; ensino de 2
o
grau, destinado,
como informa o próprio subtítulo, aos alunos do desse nível. Organizado em capítulos
que poderiam ser agrupados em quatro grandes temas definições e conceitos,
versificação, gêneros literários e uma longa parte (mais da metade do volume!) dedicada
à periodização literária , o livro foi saudado pelo prefaciador, Massaud Moisés (in
Megale, 1975:s.p.), que elogia a fusão entre as novidades da Teoria Literária e “o saldo
positivo das investigações anteriores”, numa provável alusão à marcante presença no
manual de tópicos de orientação historiográfica, tais como estilos de época.
A ausência de reflexão e problematização sobre os temas e as questões da
Literatura torna o manual, efetivamente, pouco “teórico”. Argumentação, quando há, se
dá através de máximas de conteúdo dogmático, de que são exemplos: “A Literatura é
uma arte afim com outras artes, com determinadas ciências e intimamente ligada à
filosofia”; “o desenvolvimento das artes plásticas, rítmicas e cênicas é correlato ao da
Literatura” (ibid.:3). O conceito de Literatura defendido por Megale é relacionado com
arte e ficção, mas nenhuma das duas categorias é objeto de maiores esclarecimentos por
parte do autor. De forma geral, pode-se dizer que o manual é comprometido por sua
noção de Literatura por demais restrita que talvez possamos qualificar como uma
poética da expressão, em que a gênese da obra é descrita como uma inspiração provinda
de “vivência que tenha comovido mais ou menos fortemente o escritor e agitado sua
vida íntima” (ibid.:09) a ponto de levá-lo à expressão estética dessa experiência.
No mesmo ano de 1975, Eduardo Portella organizou Teoria Literária, uma
coletânea de textos autônomos, de vários autores, sobre temas relacionados aos Estudos
Literários, dividido em quatro seções: 1 - Teoria Literária, Crítica e História, 2 - Estilo e
Épocas, 3 - Gêneros e Narrativas e 4 - A nova cultura e seus signos. Não há qualquer
preocupação em se sistematizar os assuntos tratados, a ponto de haver um capítulo
dedicado à “análise da narrativa”, mas nenhum dedicado á análise de poesia, por
exemplo.
No capítulo introdutório, sintomaticamente denominado “Limites ilimitados da
Teoria Literária”, o organizador comenta a importância “repentina e peculiar” que a
Teoria Literária, ao ocupar o espaço outrora preenchido pela Poética e pela Retórica,
tinha assumido dentro dos Estudos Literários:
Podemos até afirmar, sem o receio de incorrer em qualquer deslize
mitômano, que a Teoria Literária é o núcleo e implementa, crítica e
metodologicamente, todo o sistema de ensino das Literaturas. Nenhuma
Literatura particular, no seu modo de produção universal, pode ser estudada e
ensinada sem o necessário suporte teórico (Portella, 1979:7).
Essa superdisciplina literária, embora institucionalmente autônoma, deveria
evoluir até alcançar um caráter irremediavelmente interdisciplinar, estendendo-se assim
(...) por todo o universo sem fim das diferentes práticas sociais, unindo, num
esforço conjugado de compreensão da intersubjetividade, espaços teóricos
aparentemente distantes ou refratários entre si. A Antropologia, a Lingüística,
a Psicologia, o Direito, a investigação empírica e a pesquisa teórica, dão as
mãos para levar adiante a tarefa comum de decifração do enigma do homem.
(ibid.:8)
A interdisciplinaridade era então saudada como a melhor alternativa contra a
ameaça do isolacionismo que a atenção desmedida a questões relativas à literariedade
trazia aos Estudos Literários. Essa euforia exagerada quanto ao futuro da Teoria da
Literatura já era contrabalançada, no entanto, pelo temor de que a abertura para outras
áreas pudesse significar uma “modalidade de entreguismo, redutor e suicida” que, não
respeitando as especificidades da linguagem poética (ibid.:8-9), colocasse em risco a
própria sobrevivência da disciplina.
Em 1975, Luiz Costa Lima organiza a 1ª edição de Teoria da Literatura em suas
fontes, primeiro e único reader dedicado à Teoria da Literatura lançado no Brasil. A
coletânea de ensaios de autores diversos é dividida em sete partes (Introdução geral,
Problemas gerais, A Estilística, O Formalismo Russo, O New Criticism, A análise
sociológica e O Estruturalismo), que apresentavam um panorama dos temas e das
correntes teóricas do século XX até aquele momento.
Na introdução o ensaio denominado “O labirinto e a esfinge” o
organizador discute a falta de clareza de significado do termo “Teoria da Literatura”,
mesmo entre os especialistas. A julgar pelos programas da cadeira de teoria em nossas
universidades, a teoria seria uma propedêutica ao ensino da Literatura. No entanto, tal
circunstância seria muito mais o resultado da má formação do aluno brasileiro, que
precisaria de uma disciplina introdutória às noções básicas de abordagem literária. Essa
deficiência do alunado, somada ao desconhecimento e à resistência de grande parte dos
professores ao trabalho teórico, seriam os grandes responsáveis por impedir que a
disciplina fosse uma instância de discussão de temas e conceitos, transformando-a num
corpus dogmático.
Os problemas referentes a falta de clareza das metas e objetivos da disciplina
provinham, para Costa Lima, de longa data, e já se faziam presentes no Theory of
literature de Wellek e Warren, “obra que inaugura a sistematização da Teoria da
Literatura”. Para o ensaísta, o modelo de reflexão gerado pela combinação das análises
operacionais ancoradas no Formalismo eslavo e no New Criticism saxão era fundado
numa crença quase religiosa na Estética, sem que em nenhum momento a capacidade de
objetividade e credibilidade dos princípios e critérios estéticos fosse devidamente
questionada (Lima, 1975:11). Se a teoria fosse realmente uma espécie de suma dos
Estudos Literários, o “órganon dos métodos” (Wellek & Warren, 2003:9), de onde
proviriam seus critérios validatórios? Como se descrever métodos diversos sem se
explicitar a própria posição do teórico?
Costa Lima defendia que a teoria deveria ser uma espécie de epistemologia dos
Estudos Literários, empenhada “em discutir seus critérios de coerência, validade e
verificação”, bem como em limitar “suas lacunas demonstrativas, suas contradições ou
mesmo incoerências" (ibid.:12). Essa pretensão, entretanto, seria comprometida,
segundo o autor pelo papel basilar que a Estética, com seu caráter especulativo
incompatível com um ideal de ciência, desempenhava na disciplina.
A tradição da Estética está ligada a aspectos voltados à compreensão da arte
como uma experiência cognoscitiva “inferior”, em comparação com a clareza e certeza
das apreensões lógicas. Quando a Teoria da Literatura se associa aos princípios
estéticos, aceita a indeterminação e a confusão como inerentes à arte. Costa Lima
defendia a teoria como epistemologia exatamente por estar a disciplina empenhada em
“pensar a arte além da experiência com que ela se recusa ao entendimento” (ibid.:19).
Conclui então que, sendo a Estética um a priori de grande parte dos Estudos Literários,
para a Teoria da Literatura aspirar a ser uma ciência formalizante que não opera sob o
princípio da crença, ela tem por obrigação refletir sobre seus pressupostos estéticos, ou
admitir que “que não se quer como ciência e sim como uma filosofia da Literatura”
(ibid.:16).
Em 1983, na segunda edição
90
de Teoria da Literatura em suas fontes, Costa
Lima
91
descreve no prefácio o reader como uma obra de caráter didático-informativo
“imprescindível dada a situação calamitosa do ensino de Teoria da Literatura em nossos
90
A última edição de que tenho notícia é a 3ª, de 2002.
91
Costa Lima diz que decidiu “expurgar” a introdução geral contida na 1
a
edição, “tanto por apresentar
uma visão demasiado particularizada da teoria da literatura, quanto por conter uma reflexão hoje
demasiado datada” (Lima, 1983:1). Se de fato alguns comentários sobre as correntes teóricas poderiam
soar datadas ainda nos anos 80, creio que sua reflexão sobre a relação entre Teoria da Literatura e Estética
permanece atual nos dias de hoje.
cursos de letras” (Lima, 1983:1). A “corrida de mediocridades” que caracterizaria o
ensino e a pesquisa em Literatura no Brasil (ibid.:3) se explicaria por ser virtualmente
impossível se teorizar sobre algo acerca do qual não se tem experiência o autor se
referia à falta de contato entre aluno e obra literária na realidade brasileira. Como
conseqüência, os cursos de teoria continuavam a funcionar como propedêuticas à
Literatura, sendo ou exageradamente simplistas, por transformarem os temas num
conjunto de afirmações a serem decoradas, ou incompreensíveis, por exigirem o
conhecimento de fontes às quais os alunos não teriam acesso, por, em geral, não serem
capazes de ler em outra língua
92
. Risco ainda maior a que estaria sujeita a disciplina
seria o degenerar em deformadora, “porque, não tendo tido os próprios professores uma
formação teórica efetiva, a apresentação das teorias passa[ria] a se confundir com a
apresentação de caixas de ferramentas a serem ‘aplicadas’ aos textos!” (ibid.:2).
No posfácio, Costa Lima afirma estar ciente de que sua obra não substituía a
necessidade de um manual. Ele desconfiava, contudo, de que a extensão e a
complexidade alcançadas pela Teoria da Literatura não permitiam mais a realização de
um livro que fosse, ao mesmo tempo, um “panorama atual da disciplina e um tratado
competente” (ibid.:450). Os Estudos Literários exigiriam um grau de especialização
cada vez maior e a Teoria da Literatura não mais se resumia a “orientações
esquemáticas destinadas à aplicação sobre seus respectivos objetos” (ibid.:451).
Em 1985, Rogel Samuel organizou um Manual de Teoria Literária
93
, livro
destinado aos cursos de graduação em Letras e que consiste numa reunião de ensaios
isolados de vários autores sobre temas como “Arte e sociedade”, “Gêneros literários”,
“Periodização e História Literária”, “Literatura Comparada”, “Cultura de Massa e
Cultura Popular” e “Literatura e Lingüística”. O pouco cuidado no tratamento dos temas
é explícito, por exemplo, no capítulo dedicado à Crítica Literária, dividido em
subcapítulos assinados por autores distintos sem nenhuma unidade ou sistematização
reconhecível, bem como no último capítulo, dedicado à interpretação, em que um vasto
conteúdo é compactado em míseras três páginas.
A orientação dominante no manual de Samuel, se é que podemos vislumbrar
alguma, é a descrição da Teoria da Literatura como “uma ciência em que prevalecem a
92
O problema de os alunos não serem capazes de ler em outra língua é superdimensionado por Costa
Lima. A dificuldade seria facilmente contornável, caso existissem bons livros de teoria traduzidos ou
escritos em português.
diversidade e a interdisciplinaridade” (Samuel, 1985:contracapa). No já referido
capítulo dedicado à Crítica Literária, Angélica Maria Santos Soares justifica o caráter
interdisciplinar da teoria por sua necessidade de “estar aberta às múltiplas dimensões do
seu objeto de estudo” (in Samuel, 1985:90), embora não seja explicado o porquê das
múltiplas dimensões do objeto não poderem ser tratadas por uma única disciplina. De
modo similar aos termos de Portella (1975), a equação interdisciplinaridade e
independência também é descrita como problemática, dado o risco de se perder, com a
assimilação de elementos de ciências afins, a autonomia da Teoria Literária. A autora
faz, entretanto, uma defesa intransitiva da multiplicidade dos métodos, baseada na
consciência de que nenhum procedimento crítico é capaz de esgotar a alegada riqueza
da obra literária.
Na continuidade do capítulo, os autores se revezam em comentários sobre as
correntes teóricas, alguns com um surpreendente tom de depoimento biográfico, como
na passagem transcrita abaixo, supostamente sobre as relações entre crítica e
psicanálise, assinada por Nadiá Paulo Ferreira:
Aqui estou em desafio pelo fascínio que me colocou no impasse que tento
desenrolar porque não disse “não” ao compromisso com o claro. Faz de conta
que é possível dizer algo sobre qualquer coisa para alguém compreender. E
como todo faz de conta implica numa história, começaremos por outra a
de menos um.
Era uma vez um homem que sonhava... Conheci-o à distância de meu
silêncio, pesar de, de vez em quando, nos cruzarmos em andanças. Clown,
louco e muitas outras coisas diziam dele e de sua perseverança de falar e
escrever sobre Lacan. Um pouco mais de ironia circulava de boca em boca,
nos meios literários, que além do próprio Lacan, só ele sabia o que esse
senhor escrevia. E não é que era verdade! Desviei-me de seu rumo. Lamento
esse abandono. Mas só depois, muito depois, é que me dei conta da perda em
relação ao meu desejo de conhecer o pensamento de Lacan. Nessa época
andava colada em outras bandas (in Samuel, 1985:124).
Em 1986, Roberto Acízelo de Souza publicou Teoria da Literatura
94
, uma
reflexão sobre a história da formação da disciplina, seus métodos, seus objetos e seus
conceitos. O pequeno manual é uma versão condensada do Formação da Teoria da
Literatura, lançado no ano seguinte, sobre o qual já me referi com maiores detalhes no
primeiro capítulo deste trabalho.
93
A última edição de que tenho notícia é a 14ª, de 2001.
94
A última edição de que tenho notícia é a 9ª, de 2004.
6.3 – O RENASCIMENTO
A partir do final dos anos 80 escasseou a publicação de manuais de Teoria da
Literatura no Brasil. Nesse começo de século XXI, entretanto, parece estar se
experimentando um renascimento no interesse por esse tipo de obra. Em 2002,
novamente Rogel Samuel publica o Novo manual de Teoria Literária
95
. A nova versão
é de autoria individual, mas apresenta os mesmos problemas encontrados na publicação
da década de 80 e está longe de ser um manual de teoria, pois nela o autor apenas
apresenta de modo assistemático breves "notícias", tão sumárias quanto superficiais,
sobre tópicos relacionados aos Estudos Literários e a outras áreas do saber.
Diversas proposições são obscuras, como, por exemplo, a tentativa de
estabelecer uma distinção entre “Teoria Literária” e “Teoria da Literatura”:
A Teoria Literária reúne uma coleção de ciências que alguns tratam por
“Teoria da Literatura”, outros de “Teoria Literária”. Esta distinção existe:
“Teoria Literária” se diz da teoria que nasce da prática literária, da obra, da
leitura; e “Teoria da Literatura” vê a Literatura como objeto do saber
(Samuel, 2002:7).
Ou ainda a estranha descrição lingüística de texto literário, que falha, se não pelo
simplismo, pela indefinição trazida pelo uso da expressão “outras propriedades”:
Literário é um certo texto que possui a literariedade, constituída pelas
metáforas, as metonímias, as sonoridades, os ritmos, a narratividade, a
descrição, os personagens, os símbolos, as ambigüidades e alegorias, os mitos
e outras propriedades (ibid.:7-8).
Além da pouca preocupação com os conceitos e com as definições, o manual
caracteriza-se ainda pela presença insólita de tópicos relacionados a objetos culturais
inesperados em uma obra destinada ao estudo teórico da Literatura, como o comentário
sobre um programa de televisão, no capítulo “Best-seller, cinema e TV”:
O Fantástico da Globo tem uma abertura e sete blocos principais. O
tratamento fantástico do programa decorre do fato de que, tirados dos
contextos onde se inseriam, os acontecimentos perdem os seus sentidos, sua
história, num caleidoscópio irreconhecível pelo olho da razão, um programa
de “variedades” (ibid.:110).
Por fim, a bibliografia é bastante desatualizada para um livro publicado em 2002
e apresenta omissões que não se justificam em uma obra introdutória, em que as
95
A última edição de que tenho notícia é a 3ª, de 2005.
referências cumprem o papel fundamental de facultar ao leitor o aprofundamento nos
temas de seu interesse.
No mesmo ano, Flávio Kothe lança Fundamentos da Teoria Literária. Duas
características marcantes da obra o descaso que reserva aos temas tradicionais da
Teoria da Literatura e a pouca atenção dada às obras teóricas que a antecedem
podem já ser percebidas fora do corpo do texto: no sumário, que mostra que os
capítulos, com exceção do primeiro, tratam de temas relacionados a filósofos ou a temas
filosóficos
96
, e na ausência de uma bibliografia, procedimento incomum e inadmissível
em uma obra de caráter acadêmico.
Nas poucas passagens em que se dedica a temas relativos aos Estudos Literários,
Kothe inviabiliza a questão fundamental da Teoria da Literatura por considerar
“indefinível” seu objeto. Para o autor, o questionamento “O que é a Literatura?”
conteria em si a armadilha de obrigar a se assumir o pressuposto da pergunta, isto é, a
pressuposição de que a Literatura seria algo universal e necessária (Kothe, 2002:11).
Em conseqüência, toda tentativa de “definição do ser se converte na definição de um
dever ser” (ibid.), fazendo com que a disciplina se torne uma propedêutica normativa
que legitima um cânone institucionalizado e limita seus horizontes de perquirição.
A posição de Kothe não é, entretanto, tão radical quanto parece à primeira vista.
Isso porque, mais adiante, após uma distinção entre “definição” e “conceituação”
97
, a
possibilidade de se perguntar pelo objeto da teoria torna-se novamente possível. A
acusação do autor se ameniza: os teóricos não conceituariam, mas definiriam a
Literatura, e toda definição tenderia a um idealismo que pretende “como que cortar o
processo de mutação do objeto” (ibid.:40). Ele acusa especificamente Wellek e Warren
de, ao definirem a Literatura, não levarem em consideração suas funções, embora em
nenhum momento explicite qual seria essa definição dos autores.
Ora, é óbvio que a natureza de objetos culturais no seu próprio exemplo, um
machado é dada pela função que desempenham. Mas Kothe não demonstra, em sua
96
Os capítulos são: “A natureza da obra literária” (do qual nos ocupamos mais adiante), “A estrutura
definitória idealista”, “Marxismo e desconstrução”, “Platão e o mito da caverna”, “Platão e o
Platonismo”, “Kant e o despotismo da razão”, “Hegel e a busca do absoluto”, “Hegel e o fundamento da
existência”, “Marx e o preço do poeta”, “Marx e a produção imaterial”, “Mao Tse-Tung sobre a
contradição” e “Lógica da comparação intertextual”.
97
“A definição busca ser definitiva, dizendo de uma vez por todas o que se organiza em determinado
espaço. Já o conceito é a percepção dos elementos idênticos naquilo que ao longo do espaço e do tempo
se apresenta diferenciado e diversificado” (ibid.:31).
argumentação, por que a definição de Wellek e Warren não levaria em consideração as
funções da Literatura, e em que medida aquela é incompatível com estas, bem como
não explica por que a noção de Literatura dos autores do Teoria da Literatura não é um
“conceito”, mas uma “definição”. Sem uma exposição clara dos termos contra os quais
se argumenta, a discussão sem interlocutores torna-se uma briga contra adversários
imaginários
98
.
Em 2004, Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba publica Tópicos da teoria
para investigação do discurso literário. Não se trata exatamente de um manual de
Teoria da Literatura, mas de uma reflexão, em moldes foucaultianos, que investiga, a
partir da descrição dos modelos teóricos em voga no século XX, os mecanismos de
controle do discurso presentes nos Estudos Literários.
Os discursos sobre Literatura reproduziriam os mesmos “processos de controle”
contidos nos outros modos de produção de conhecimento na modernidade. A ascensão
da Teoria Literária representaria o momento em que se passa, nos Estudos Literários, da
atenção ao sujeito criador para o material verbal da obra, e a institucionalização da
disciplina teria dado autoridade aos que, por dominarem um conjunto de técnicas,
métodos e proposições, estariam assim qualificados para falar de Literatura. Para a
autora, conceber “a linguagem literária de uma forma específica” tem por conseqüência
a “uniformização prévia do que é literário e [o] entendimento da obra como reflexo de
um pensamento teórico a priori” (Borba, 2004:40). Creio, entretanto, que em uma
disciplina tão fragmentada como a que nos ocupamos, em que a obra literária não é
descrita de “uma forma específica”, mas de modos múltiplos e concorrentes, os supostos
mecanismos de controle do discurso não podem ser comparados aos de outras
disciplinas realmente metódicas.
Em 2005, Maria Magaly Trindade Gonçalves e Zina Bellodi publicaram Teoria
da Literatura “revisitada”. Benedito Nunes, no prefácio, observa com acerto que a tese
principal do manual, ainda que implícita, é a de que a Teoria da Literatura seria uma
disciplina que se transformaria tanto ao longo do tempo que não haveria “senão várias
Teorias da Literatura” (in Gonçalves & Bellodi, 2005:9). O ponto de vista das autoras,
98
O único argumento de Kothe é o suposto reacionarismo de seus autores, em termos que lembram muito
as piores críticas de Terry Eagleton: “Austin Warren pertenceu ao new criticism americano, conhecido
por seu conservadorismo político; René Wellek saiu do seu país, a Tchecoslováquia, por causa dos
perigos da guerra e, tendo boas condições de trabalho em Yale, não morou mais lá depois que foi
instaurado o comunismo” (ibid.:19).
centrado nesse caráter diacrônico dos Estudos Literários, conduz a uma dificuldade que
é comum a todas as posições que atentam para a extrema variabilidade dos modos de se
conceber a Literatura dentro do âmbito da reflexão teórica: afinal, a Teoria da Literatura
é uma ou várias disciplinas? Se uma, caberia a qualquer manual ressaltar os pontos de
permanência e continuidade comuns a todas as correntes, tornando possível se continuar
falando em uma, e somente uma, Teoria da Literatura. Se várias, a questão conduz a um
contra-senso, pois como uma disciplina pode ser uma, a ponto de dar origem a um
manual, e várias ao mesmo tempo? Não parece ser possível tomar-se de modo histórico
a Teoria sem enfrentar esse problema.
No caso do manual em questão, a disciplina aparece mais uma vez como um
sinônimo de Estudos Literários, em que todos os procedimentos teóricos, críticos e
históricos concorreriam para o objetivo único de produzir conhecimento sobre a obra
literária. A Literatura é tomada de forma historicista, através do inventário de seus
conceitos ao longo das eras: Antigüidade, Idade Média, Renascimento, Neoclassicismo,
séculos XIX e XX. Não há no manual, efetivamente, qualquer tipo de “novidade” que o
distinga de seus predecessores, seja em relação ao conteúdo, seja no que concerne ao
tratamento dos temas.
7 OS TRÊS DESAFIOS DA REFLEXÃO TEÓRICA
Ao longo deste trabalho, tenho defendido a Teoria da Literatura como a parte
dos Estudos Literários voltada para uma reflexão sistemática, metódica e generalizante
sobre a Literatura. Há, contudo, entre as diretrizes que proponho e suas realizações
concretas ao longo da história, um enorme abismo. Como um dos maiores problemas da
disciplina é exatamente o número despropositado de modelos teóricos concorrentes, não
há sentido em se propor mais um aos inúmeros já existentes. Por essa razão empenhei-
me, através da leitura dos seus grandes manuais, na recuperação crítica do legado da
Teoria Literária, tomando os autores não como adversários os quais me coubesse
superar, mas como interlocutores que podiam apontar, tanto pelas qualidades quanto
pelas imperfeições de suas propostas, caminhos para o futuro da reflexão teórica sobre a
Literatura. Embora “simples” compêndios, eles tinham muito a dizer sobre a disciplina.
O manual de Wellek e Warren, primeiros sistematizadores da Teoria da
Literatura, legou-nos um projeto universalista e generalizante que pretendia fornecer
subsídios para o estudo da obra literária. De suas críticas à História, muitas delas
exageradas, retiramos a certeza de que não faz sentido se rechaçar, a priori, um modelo
de pensamento simplesmente porque apresenta pontos de discordância com o nosso.
Aprendemos também que a resistência ao relativismo não pode redundar numa defesa
de um absolutismo doutrinário baseado em naturezas imutáveis, risco que sempre
corremos devido a nossa tendência de tomar por universais nossas idiossincrasias.
Dos manuais de Aguiar e Silva retivemos a importância de se ter uma teoria
aberta à historicidade da Literatura e do homem, mas nos ficou também a certeza de que
essa abertura não poderia se consolidar apenas com a absorção indiscriminada de todos
os trabalhos produzidos. A autocrítica e a capacidade de avaliar continuamente seus
pressupostos deve ser, portanto, uma constante da reflexão teórica, o que implica ser
capaz de se admitir que há discursos sobre a Literatura que são incompatíveis com a
construção de uma estrutura sistemática de conhecimento. Nossa disciplina precisa ser
resistente às novas idéias, apenas adotando mudanças que realmente representem
melhores soluções aos antigos problemas.
Do livro de Terry Eagleton, ficou-nos as certezas de não haver nada de natural
nas abordagens às obras literárias e de haver sempre uma teoria implícita em qualquer
discurso sobre elas. Veio-nos também a convicção de não valerem a pena críticas
demolidoras que pretendam invalidar uma proposta seja pela excessiva simplificação de
postulados, seja por desqualificar seus autores política ou socialmente. A construção de
um saber precisa se dar através do acúmulo crítico do conhecimento e não por um
processo contínuo de reconstruções sobre escombros. O manual do crítico inglês
apontou-nos ainda a necessidade de se fazer da observação de nossos próprios
postulados o primeiro passo antes de se pretender desqualificar os alheios, além de nos
revelar que interpor questões políticas no ambiente dos Estudos Literários transforma a
discussão sobre Literatura em discussão política, eliminando assim a razão de ser de
nossa disciplina.
De Jonathan Culler ficou o proveitoso esforço de se pensar os Estudos Literários
integrados aos Culturais, embora também tenham se tornado evidentes os grandes riscos
de essa absorção acabar por dissolver a categoria Literatura. A proposta do ensaísta
norte-americano mostrou-nos também que compreender a teoria de modo intransitivo,
sem objeto, gera uma prática cujo objetivo único é a formulação de hipóteses que se
destroem contínua e sucessivamente.
Por fim, o trabalho de Antoine Compagnon nos indicou o quanto ainda são úteis
e atuais os temas tradicionais dos Estudos Literários, além de nos alertar sobre os riscos
implicados na atração dos teóricos pelas dicotomias e pelas armadilhas retóricas.
Revelou-nos também a necessidade de se superar o agnosticismo teórico, pois a cômoda
“dúvida hiperbólica” diante de todo discurso sobre a Literatura é insuficiente para uma
disciplina que segue viva em salas de aula de graduação do Brasil e de parte importante
do mundo ocidental.
Dessa súmula de quase sessenta anos de Teoria da Literatura, pude identificar
algumas causas da atual crise e quais desafios se impõem a uma disciplina voltada à
reflexão teórica sobre a obra literária na atualidade. Reconheço que talvez Costa Lima
(1983:450) tenha razão ao desconfiar que a extensão, a complexidade e a especialização
alcançadas pela Teoria Literária não permitam mais a elaboração de livros que possam
ser, simultaneamente, um manual e um “tratado competente” o que, por extensão,
significaria admitir não mais ser possível pensá-la como disciplina. Parece-me, no
entanto, que o problema persiste em não se saber exatamente do que trata a Teoria da
Literatura, e de quais são seus limites dentro dos Estudos Literários.
Se tomarmos a Literatura em seu processo mínimo um fenômeno que envolve
um ato de escrita, um texto e um ato de leitura (e seus respectivos contextos)
perceberemos que há uma multiplicidade de relações entre esses elementos que podem
ser exploradas por propósitos de pesquisa diversificados. Sem nenhuma pretensão de
exauri-las, enumero algumas, com suas respectivas possíveis linhas de estudo entre
parênteses:
(i) Se atento para a escrita, posso me concentrar nas relações entre o escritor e
sua época (biografismos), o escritor e outros artistas (estudos sociológicos do autor,
estudos de influência), o escritor e o texto (estudos do processo de criação), a escrita e o
inconsciente (estudos psicanalíticos) etc.
(ii) Se considero o texto, posso me deixar atrair pelas ligações entre o texto e a
língua (estilística), o texto e o mundo político, social e cultural (estudos sociológicos,
antropológicos e históricos da Literatura, estudos de ideologia, estudos culturais), o
texto e outros textos (estudos de intertextualidade) etc.
(iii) Se me dirijo à leitura, posso me dedicar às ligações entre leitura e texto
(estudos interpretativos), a leitura e seus contextos (estudos de recepção) etc.
De que se ocuparia exatamente a Teoria da Literatura? Da escrita, do texto, da
leitura ou dos contextos, isoladamente? Creio que não, pois não faria sentido se supor
que a reflexão teórica se ocupasse única e exclusivamente de um elemento específico da
Literatura. De todos esses elementos em conjunto? Também acredito que não, pois
então ela se confundiria com a totalidade dos Estudos Literários e sucumbiria diante da
impossibilidade de sistematizar aparatos conceituais e metodologias provindas de
inúmeros campos do saber. Da crítica a todas as linhas de estudo que se ocupam de
cada um dos aspectos da Literatura? Não seria apropriado, pois, para tanto, ela
precisaria ser uma epistemologia das Ciências Humanas, capaz de avaliar os
pressupostos de disciplinas como História, Sociologia, Antropologia, Lingüística,
Filosofia, Psicanálise etc., e já não teria nenhuma ligação específica com a Literatura em
si. De que, então, se ocuparia ela?
Em conjunto, as abordagens aos diversos aspectos da Literatura constituiriam os
Estudos Literários. Dada a grande variedade de enfoques justos e possíveis, é fácil
perceber o porquê de nosso campo de estudos ser tão diversificado e suscetível à
influência de outras áreas do saber. Afinal, é perfeitamente razoável que nos sintamos
desorientados toda vez que somos convocados a falar de uma obra literária, tendo em
vista os inúmeros aspectos interessantes e pertinentes que disputam nossa atenção. Além
disso, nos sendo possível relacionar a Literatura com virtualmente qualquer coisa e nos
sendo permitindo através dela falar sobre o mundo, é compreensível que, muitas vezes,
nos esqueçamos justamente daquilo que nos possibilitou a pensar a realidade desse
modo diferenciado. Conseqüentemente, é compreensível que os Estudos Literários
tenham se tornado tão amplos e pouco específicos ou caóticos, numa descrição mais
veemente. A Teoria da Literatura pode ser a resposta a essa crise.
Minha hipótese é de que tudo o que se pode esperar da reflexão teórica é que ela
ofereça as condições para que a Literatura possa ser estudada. Uma Teoria Literária
precisaria então ser responsável por descrever de modo generalista o objeto de estudo
“Literatura” e seus elementos constitutivos. Essas descrições devem ser abertas a
constantes reavaliações e aperfeiçoamentos, mas também precisam ser metodicamente
resistentes a propostas precipitadas que pretendam transformá-las ao sabor dos
modismos que, em geral, consistem tão-somente em “velhas novidades”. Deverão
também se relacionar de forma sistemática e constituir um modelo teórico que possa
servir de fundamentação para os Estudos Literários como um todo. Por fim, serão
capazes de fornecer os elementos a partir dos quais será possível se desqualificar
discursos que, por não respeitarem o regime constitutivo de seu objeto, não falariam da
obra literária, mas a usariam para falar de outros assuntos e, dessa forma, não
deveriam ser entendidos como pertencentes ao campo de estudos sobre a Literatura.
A implementação dessa proposta é uma utopia, pois três obstáculos se interpõem
entre esse horizonte da reflexão teórica e o estado de crise atual da Teoria da Literatura:
(i) a má compreensão de seus próprios limites, (ii) a ausência de um sistema conceitual
e (iii) o relativismo do conhecimento dominante nos Estudos Literários.
Do primeiro obstáculo já tratamos exaustivamente ao longo deste trabalho. Creio
ter ficado claro que a “Teoria da Literatura” não é uma noção auto-evidente e que as
compreensões muito diversificadas a respeito de sua natureza, de seus objetivos e de
suas funções deram e ainda dão origem a diferenciados procedimentos de produção, de
divulgação e de ensino do trabalho teórico. A multiplicidade de respostas possíveis à
pergunta “o que é a Teoria da Literatura?” constitui um sério problema para uma
disciplina institucionalizada que exige, no mínimo, uniformidade curricular. Por essa
razão, defendi ser fundamental entender que a reflexão teórica não deve se confundir
com a totalidade dos Estudos Literários, isto é, não deve se ocupar das particularidades
das obras literárias, não deve se interessar pelas múltiplas interpretações suscitadas
pelos textos literários, não deve se identificar com as relações históricas, psicológicas,
sociológicas, culturais ou políticas de obras específicas. A reflexão teórica deve se
propor pensar a obra literária exatamente pela perspectiva que escapa a essas
abordagens, isto é, como Literatura única razão de existência de uma disciplina que
não se chama “teoria dos textos” ou “teoria dos discursos” ou “teoria dos objetos
culturais produzidos com linguagem verbal”, mas Teoria da Literatura.
Sobre o segundo obstáculo, embora tenha a ele me referido ao longo do trabalho,
talvez seja preciso me estender um pouco mais. Muitas das dificuldades enfrentadas
pelos Estudos Literários são causadas por uma terminologia vasta, imprecisa e repleta
de empréstimos a modelos teóricos das mais diversificadas áreas do conhecimento. Por
essa razão, as diversas correntes que surgiram ao longo do século XX experimentaram
uma ininteligibilidade recíproca, gerada pela miríade de termos e proposições
incompatíveis e mutuamente excludentes. A ausência de uma nomenclatura tem
dificultado enormemente o entendimento mútuo entre pesquisadores e, por
conseguinte, tem prejudicado a produção de conhecimento sobre a Literatura. Termos às
vezes usados originalmente dentro de um contexto específico de pensamento
lembremos, por exemplo, a noção de Lírica na Poética de Aristóteles atravessam os
séculos absorvendo sentidos, agregando novas conotações e adquirem, por vezes, um
sentido radicalmente distinto de seu uso inicial. Como resultado, muitos dos termos
empregados atualmente nos Estudos Literários têm uma amplitude que exige um tratado
e não um verbete enciclopédico para dar conta da vasta rede de significados a eles
associados.
Tome-se, como exemplo, a noção de estilo, muito bem anotada por Antoine
Compagnon. Não sendo originalmente um termo técnico, a palavra carrega uma série de
acepções ligadas ao seu uso não-teórico. Como se não bastasse, em seu uso “técnico”
ela possui sentidos contraditórios, designando ao mesmo tempo “a diversidade infinita
dos indivíduos e a classificação regular das espécies” (Compagnon, 2001:170). Longe
de funcionar como um conceito, o termo representa uma noção complexa e ambígua
que, ao invés de “ser despojada de suas acepções anteriores à medida que adquiria
outras (...) acumulou-as e hoje pode comportá-las todas: norma, ornamento, desvio, tipo,
sintoma, cultura” (ibid.:173). Conseqüentemente, num enunciado dos Estudos
Literários, termos como estilo são incapazes de elucidar qual o sentido pretendido com
seu uso. Diante dessa falta de poder de referência dos termos e noções de nosso campo
de estudo, alguns teóricos resolvem o problema do modo mais radical e
contraproducente, isto é, desprezando a importância de se conceituar e taxando os
conceitos de redutores, normativos, ideológicos etc.
Um estudo especializado deve possuir uma linguagem técnica que seja de
domínio comum entre seus praticantes. Não é pelo fato de não se poder abarcar todos os
sentidos históricos que são carregados, por exemplo, pela palavra “literatura” que o
conceito de Literatura seja inviável. É certo que a transformação histórica dos
significados é inexorável. Também é verdadeiro que os termos podem ter diferentes
significados em sistemas conceituais diferentes. Mas o problema dos Estudos Literários
não são os sentidos dos termos em “edifícios teóricos” distintos, mas um uso abusivo e
leviano de conceitos como palavras, e vice-versa, gerando profundas dificuldades de
compreensão ou mesmo falsos problemas , causadas pela imprecisão e
obscuridade inerente aos enunciados da área.
Num campo onde o conhecimento produzido não está sujeito a experimentações,
aspirar cientificidade nos postulados da Teoria da Literatura, ao menos nos sentidos
tradicionais de ciência, é pouco mais do que uma aspiração temerária. No entanto, desde
que se abandone qualquer ilusão de positivismo lógico que suponha uma linguagem
ideal baseada no modelo da lógica formal, pode-se ter num sistema conceitual um
poderoso instrumento de produção de conhecimento
99
. A conceituação é um
procedimento fundamental da economia do discurso teórico, pois garante a estabilidade
do sentido e da referência a cada reutilização, isto é, permite “manipular os termos
significantes sem reexplicitação permanente do sentido e da referência” (Cossuta,
2001:61).
99
A fonte das afirmações que se seguem sobre “conceito” é o livro de Frédéric Cossuta (2001) Elementos para a
Por conceito, entendo um “operador textual que (...) permite categorizar o real
ou o ser integrando-os no domínio do dizível”, através da articulação entre um termo
significante, um sentido e uma referência (ibid.:50-1). A instauração de um conceito
envolve três fatores, cuja correlação deve ser fixada através dos seguintes
procedimentos:
(i) a escolha e a fixação de um termo significante, operações que não devem ser
arbitrárias e que requerem sempre algum modo de validação dessa escolha
terminológica;
(ii) a definição do sentido do termo significante, através do elenco de seus traços
discriminantes e de seus elementos diferenciados em relação aos demais conceitos.
(iii) a indicação de sua referência extra-discursiva
100
, através de exemplos e de
casos particulares.
Vale ressaltar que a fixação e a delimitação dos sentidos dos termos não
correspondem apenas a um preâmbulo da reflexão teórica, mas a uma parte fundamental
dela, em que se “reorganiza o universo da línguae se cria um “universo de significação
autônomo” (ibid.:41). Uma nova terminologia é sempre instaurada sobre um campo
nocional pré-existente, isto é, sobre um conjunto de termos palavras da língua ou
expressões semiconceituais que antecedem ao sistema conceitual que está se
implantando. Quando a terminologia de uma doutrina integra-se num todo sistemático,
constitui-se assim o campo conceitual que garantirá aos conceitos a sua área de
significação. Fora desse campo, um termo retorna à sua condição de palavra ou de
noção assistemática.
Como todo termo carrega consigo os resíduos de suas significações em outros
campos conceituais, nocionais e mesmo na língua cotidiana, muitas das dificuldades
encontradas na leitura de textos teóricos não estão relacionadas à obscuridade do que é
dito, mas ao desconhecimento do seu campo conceitual ou, o que é muito mais
comum em nossa área, à ausência de um.
Embora se desenvolva a partir do sistema conceitual que constitui, a reflexão
teórica pode e deve fazer referência a um mundo da experiência comum com seu leitor,
leitura dos textos filosóficos.
100
Cossuta (2001:44) fala em referência “extralingüística”, o que não me parece adequado. A referência de um
conceito pode ser lingüística, desde que, por exemplo, o conceito trate exatamente de elementos lingüísticos. A
referência deve, porém, apontar para algo fora do discurso em que aquele conceito é construído, ou correr o risco
do circunlóquio.
isto é, o discurso teórico precisa obrigatoriamente conter uma dimensão pedagógica e
ontológica em seu esforço de recobrir com um discurso homogêneo e coerente o campo
do real
101
. A dimensão referencial de um texto teórico tem a função de eliminar a
dicotomia entre “pensamento abstrato” e “realidade”. Os conceitos, integrados entre si,
são exatamente os instrumentos que dão forma a esta dimensão, tornando uma doutrina
capaz de tornar inteligível sua relação com o mundo não apenas os elementos da
experiência sensível, mas também o vasto plano das idéias. A função referencial
também permite que o próprio leitor se encarregue de “encontrar equivalentes parciais
concretos” para dar ao ato de denotar “seu horizonte espaço-temporal” (ibid.:76). Um
modelo teórico deverá conter dois universos denotativos de uma doutrina, o ideal,
construído pelo poder generalizador do conceito, e o concreto, constituído pelos
elementos da ordem da experiência, referidos através de casos particulares, exemplos ou
descrições.
A referencia a elementos da ordem da experiência tem pelo menos quatro
funções:
(i) didática, no sentido de facilitar a compreensão do texto e ajudar a modificar
o ponto de vista do leitor;
(ii) ontológica, no sentido de que não apenas designa o mundo, mas o torna
presente à ordem do discurso e atualiza a comprovação de estar ele ancorado no real;
(iii) heurística, no sentido que o caso particular é oferecido previamente como o
suporte cujos traços gerais serão explorados no processo de constituição do conceito;
(iv) de validação, no sentido de que apresenta referentes que confirmam as
proposições e exigem o compartilhamento, entre teórico e leitor, de um domínio de
experiência comum.
Resta lembrar que todo o processo de construção dos conceitos deve ser
explicitado, de modo a poder ser analisado e criticado, pois a reflexão teórica deve se
dar justamente através do reexame e, no caso de novas evidências factuais, da possível
redefinição de seu campo conceitual. A análise e a crítica não devem se deter apenas
nos procedimentos empregados na elaboração do sistema de conceitos, devendo
101
Note-se, porém, que o campo conceitual não visa diretamente o real, mas constrói uma representação ideal’
dele, estruturando um universo de denotação que, mediante certos procedimentos, lhes pode ser associado
(ibid.:66).
também avaliar todas as recorrências, paráfrases e transformações que ele sofre dentro
de um modelo teórico (ibid.:42).
O sucesso de um sistema conceitual está, entretanto, condicionado à superação
do terceiro obstáculo à reflexão teórica: os pressupostos relativistas que orientam grande
parte das abordagens à Literatura na atualidade. Trata-se de uma questão de resolução
mais complexa por ser sua origem externa ao âmbito da Teoria da Literatura e dos
Estudos Literários, fato que não chega a ser excepcional, dada a enorme permeabilidade
das fronteiras de nosso campo de estudos.
As idéias relativísticas estão longe de ser uma novidade nas Ciências Humanas.
No campo da Antropologia
102
, a noção de relativismo cultural foi formulada pelo
antropólogo alemão Franz Boas e está ligada a uma postura metodológica em que o
pesquisador deve suspender ou pôr de lado seus preconceitos culturais para tentar
entender crenças e comportamentos em contextos específicos. Representou, portanto,
uma contrapartida ao pensamento etnocêntrico que dominou a disciplina no século XIX.
No campo dos estudos filosóficos
103
, as idéias relativísticas remontam pelo
menos aos sofistas
104
e constituem um tema de grande força no campo da Ética o
relativismo dos valores morais e no campo da Epistemologia o relativismo do
conhecimento humano. De modo geral, a defesa da relatividade está ligada a uma
atitude de negação da possibilidade de haver algum tipo de verdade cuja validade seja
universal. Um relativista assume, portanto, que os sentidos e os valores das crenças e
comportamentos humanos não possuem uma referência absoluta e são sempre
relacionadas a contextos históricos e culturais específicos. Em conseqüência, não seria
possível se falar de características intrínsecas aos seres ou aos objetos e qualquer
proposição sobre o mundo constitui apenas um entre inúmeros modos possíveis de se
interpretá-lo.
O relativismo que grassa em nosso campo de estudo sugere que a limitação de
nossos sentidos e nossos preconceitos culturais nos impediriam de observar
objetivamente o mundo e aparenta ser uma combinação das idéias advindas da
102
As informações sobre o relativismo cultural na Antropologia foram obtidas em Salter, F.K., ed. Risky
Transactions. Trust, Kinship, and Ethnicity. New York: Berghahn, 2002.
103
As informações sobre o relativismo do conhecimento na Filosofia foram obtidas especialmente em Robert
Audi (1999) The Cambridge dictionary of Philosophy, Simon Blackburn (2005), The Oxford dictionary of
Philosophy e Richard Rorty (2000), Pragmatismo: a filosofia da criação e da mudança.
104
O famoso axioma de Protágoras de Abdera, "O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são,
enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são", é fonte de controvérsias até os dias atuais.
Antropologia e da Filosofia que teria dado nova vida às tendências relativistas já
presentes na História da Literatura contra as quais Wellek & Warren se insurgiram.
Identificar todas as portas de entrada dessas teses nos Estudos Literários exigiria um
trabalho alheio ao que se propõe aqui. Creio, porém, não ser temerário apontar ao
menos duas:
(i) via Lingüística, através da já mencionada má compreensão das teorias
saussurianas sobre o valor relacional dos elementos da língua
105
e da hipótese de Sapir-
Whorf, de que a língua “enformaria” o modo como os indivíduos vêem o mundo.
(ii) via práticas interpretativas, em especial o desconstrucionismo, os trabalhos
de Stanley Fish e Richard Rorty, que em comum defenderiam não haver leituras
melhores ou piores porque não haveria qualidades intrínsecas aos textos sequer
existiriam textos fora dos contextos de leitura.
Por se tratar de um tema de longa tradição filosófica, a bibliografia sobre o
assunto é extensa e são diversos tanto os modelos de pensamento que endossam quanto
os que contestam as teses relativistas. Entre as contestações ao relativismo, duas são
especialmente difundidas: a primeira sugere que a defesa da relatividade se auto-
refutaria, pois uma assertiva do tipo “tudo é relativo” só pode ser compreendida de
modo absoluto e seria, pois, uma comprovação de que, afinal, nem tudo é relativo. A
outra objeção sustenta que dizer que todas as opiniões diferentes estão igualmente
corretas é o mesmo que dizer que nenhuma está, uma vez que se todas as convicções
são igualmente válidas, então todas são igualmente sem valor.
Não é necessário se entrar no mérito das tréplicas dos relativistas e das contra-
tréplicas de seus adversários para se entender que o relativismo está longe de ser um
truísmo. No entanto, como a fascinação de nossa disciplina pelos temas das outras
Ciências Humanas se dá apenas em um nível superficial, desprezamos a argumentação
envolvida na discussão das teses relativistas e tomamos proposições por axiomas. Aos
que se atrevem a contestar, as denominações são variadas, mas todas de sentido infame
absolutistas, dogmáticos, essencialistas, autoritários, fundamentalistas.
Basear-se em uma epistemologia radicalmente relativista, por si só, já criaria
enormes dificuldades para uma disciplina que, em sua origem, aspirava ser capaz de
propor discursos sobre a Literatura mais objetivos do que aqueles produzidos pela
105
Conforme Capítulo 5, p. 135.
impressionista Crítica e pela relativista História. A situação só se agrava quando essas
teses relativísticas surgem apartadas de seu contexto de discussão e produzem uma
desconfiança generalizada diante de qualquer proposição de modelos metódicos e
rigorosos. Quando tomado de modo dogmático, o relativismo produz posturas céticas ou
dá ensejo a projetos pragmáticos que instrumentalizam as obras literárias e que
conduzem a discussão sobre elas para um âmbito externo aos dos estudos de Literatura.
A condição de existência de uma disciplina que possa produzir reflexão teórica
sobre a Literatura depende, pois, de nossa capacidade de produzir modelos teóricos
fundados em pressupostos não-relativistas. Voltamos assim ao ponto de partida da
Teoria da Literatura e ao projeto não-continuado de Perspectivismo, de Wellek e
Warren. Há sessenta anos, eles já consideravam, com acerto premonitório, que o
relativismo era a grande ameaça aos Estudos Literários, uma vez que já assumia uma
feição “equivalente à anarquia de valores (...) [e] à renúncia da tarefa crítica” (Wellek &
Warren, 2003:43). Sem defender um absolutismo doutrinário baseado em uma natureza
humana imutável ou na universalidade da arte, eles propunham que se devesse entender
a obra simultaneamente como algo histórico e universal: “‘Perspectivismo’ significa que
reconhecemos a existência de uma poesia, uma literatura comparável em todas as
épocas, desenvolvendo-se, mudando, cheia de possibilidades” (ibid.:43).
A busca por uma Teoria da Literatura perspectivista pode ser nossa opção contra
um relativismo tão disseminado quanto o são as aporias que origina e que nos faz
quedar perplexos, como se tivéssemos alcançado o limite extremo do nosso
pensamento: para além dessas fronteiras, haveria apenas a irracionalidade e a barbárie.
Duas possibilidades nos restam: acatarmos essa supostamente irremediável insuficiência
de nossa razão e nos tornarmos espectadores de nosso próprio fracasso, ou exigirmos da
reflexão teórica, justamente aquela que nos colocou nesse impasse, que nos indique as
saídas.
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