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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE DESPORTOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA
A
INDÚSTRIA CULTURAL COMO DISPOSITIVO BIOPOLÍTICO: APROXIMAÇÕES
TEÓRICAS E EMPÍRICAS SOBRE O DIAGNÓSTICO DO PRESENTE E OS MECANISMOS DE
SUBJETIVAÇÃO EM
THEODOR W. ADORNO E MICHEL FOUCAULT
BEATRIZ STAIMBACH ALBINO
FLORIANÓPOLIS
2009
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1
BEATRIZ STAIMBACH ALBINO
A
INDÚSTRIA CULTURAL COMO DISPOSITIVO BIOPOLÍTICO: APROXIMAÇÕES
TEÓRICAS E EMPÍRICAS SOBRE O DIAGNÓSTICO DO PRESENTE E OS MECANISMOS DE
SUBJETIVAÇÃO EM
THEODOR W. ADORNO E MICHEL FOUCAULT
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Educação
Física, na linha de pesquisa Teoria e Prática
Pedagógica, do Programa de Pós-Graduação em
Educação Física da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC).
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Fernandez Vaz
FLORIANÓPOLIS
2009
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2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE DESPORTOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA
A dissertação: A INDÚSTRIA CULTURAL COMO DISPOSITIVO BIOPOLÍTICO: APROXIMAÇÕES
TEÓRICAS E EMPÍRICAS SOBRE O DIAGNÓSTICO DO PRESENTE E OS MECANISMOS DE
SUBJETIVAÇÃO EM
THEODOR W. ADORNO E MICHEL FOUCAULT
Elaborada por: Beatriz Staimbach Albino
e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora, foi aceita pelo curso de Pós-
Graduação em Educação Física da Universidade Federal de Santa Catarina, como requisito
parcial à obtenção de título de
MESTRE EM EDUCAÇÃO FÍSICA
Área de Concentração: Teoria e Prática Pedagógica em Educação Física
_______________________________
Prof. Dr. Luiz Guilherme Antonacci Guglielmo
Coordenador do Mestrado em Educação Física
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________
Prof. Dr. Alexandre Fernandez Vaz (ORIENTADOR)
(Prof. do Departamento de Metodologia de Ensino e do Programa de Pós-Graduação em
Educação /
PPGE / UFSC)
_______________________________
Profª Drª Carmen Lúcia Soares
(Profª da Faculdade de Educação Física e do Programa de Pós-Graduação em Educação /
Unicamp)
_______________________________
Prof. Dr. Selvino José Assmam
(Prof. do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Ciências Humanas/ PPGIF /UFSC)
______________________________
Prof. Dr. Jaison José Bassani (Suplente)
(Prof. do Departamento de Educação Física da Universidade Federal do Paraná - UFPR)
3
AGRADECIMENTOS
Ao Alexandre Fernandez Vaz, orientador desse trabalho, por ter me guiado de modo
tão paciente e dedicado. Obrigada pela oportunidade de continuar aprendendo contigo.
Agradeço também pela atenção e carinho nas questões que ultrapassaram a escrita dessa
dissertação.
A minha família: Pai, Mãe, Vanessa e Rafinha, pela paciência, compreensão e amor.
Ao João, companheiro compreensivo, sereno, otimista, com quem pude compartilhar
os momentos de alegria e dificuldade provenientes da escrita desse trabalho. Obrigada por
estar ao meu lado.
A Pri, amiga que sempre esteve presente, dando-me, com seu jeito “iluminado” de
ser, o reconforto, carinho e estímulo. Agradeço também aos demais amigos que souberam
compreender minha ausência, e mesmo assim procuraram se manter sempre próximos.
Aos companheiros da recreação, em especial a Camila, a Jana e o Wil, e aos
funcionários do hotel, Márcia, Erion, Antônio e Josi.
Aos colegas do Núcleo de Estudos Educação e Sociedade Contemporânea, pelas
discussões que muito ajudaram no meu amadurecimento intelectual. Em especial, agradeço
a Ana Cristina Richter e Michelle Carreirão Gonçalves, pelas correções, sugestões e leitura
atenta da dissertação.
Aos colegas do PPGEF, principalmente a Gisele e aqueles que se mantiveram
próximos durante o processo de representação discente, especialmente Ricardo Rezer.
Ao CNPq, pela bolsa de onze meses concedida. Ela foi fundamental para que eu
pudesse escrever esse trabalho.
4
RESUMO
Este trabalho disserta sobre aproximações possíveis entre os pensamentos de Michel Foucault
e Theodor W. Adorno, tomando como mote de análise os diagnósticos do presente por eles
empreendidos, e que se materializam respectivamente nos conceitos de biopolítica e indústria
cultural. A pesquisa, cujo caráter é teórico, explora a problemática das estratégias de
subjetivação apontadas pelos autores, e o que essas ensejam, um controle da vida. Este se
refere à redução da subjetividade ao que é meramente biológico, e ao adentramento da lógica
econômica para o âmbito do privado. O trabalho foi dividido em três partes. Na primeira
discorre-se sobre o conceito de biopolítica em Foucault, primeiramente apontando para a
localização desse tema em seu pensamento, e em seguida expondo a “moldura” da biopolítica,
o liberalismo e o neoliberalismo, em relação com outras facetas da biopolítica indicadas por
Foucault ao longo de sua obra. Na segunda parte do trabalho, depois de uma breve explicação
sobre o conceito de indústria cultural, argumenta-se sobre sua característica de dispositivo
biopolítico, identificada na existência das massas/população como objeto de investimento
econômico, na predominância de um “controle-estimulação” que normaliza os corpos e as
condutas e que incita à realização pelo próprio indivíduo de um controle da vida, assim como
na convergência sobre o investimento na massas/população a partir das variáveis do meio.
Ainda nessa seção, apresenta-se, entre outras, as divergências sobre os efeitos neoliberais da
concorrência, em Foucault e Adorno. No último capítulo é reorganizado e reavaliado material
empírico de investigações anteriores – manuais de embelezamento feminino da década de
quarenta do século passado (Página Femina) e dos anos dois mil (Revista Boa Forma) –,
tomando-o como exemplares dos argumentos teóricos desenvolvidos, o que dá a ele certa
autonomia em relação a outras partes do texto. Nas considerações finais, ressalta-se as
proposições elaboradas ao longo do trabalho, sobretudo a sutileza e positividade das
estratégias de subjetivação e a totalização das massas ao denominador comum do meramente
biológico. Enfatiza-se a importância do desejo e do medo para a condução das condutas no
sentido de uma normalização; algo muito marcante no diagnóstico adorniano, mas que
indiretamente se apresenta na noção (ou “cultura”) de perigo e no “controle-estimulação”
descritos pelo autor francês. Em sentido complementar a essa questão, salienta-se a
compreensão do corpo como meio histórico-natural, constituindo-se como uma das variáveis
mais importantes de controle das massas. Ressalta-se ainda a importância da dinâmica da
indústria cultural, sobretudo na redução do sujeito a um dos fenômenos específicos da
população: a economicidade, ao ser o indivíduo induzido a permanecer no âmbito da
oikonomia, por meio das infinitas necessidades (de consumo) produzidas e enfaticamente
indicadas como essenciais para a existência, bem como pelo caráter de modelo que o princípio
econômico adquire para com as relações humanas. Aponta-se como novas propostas de
pesquisa, a concepção de vida no pensamento de Adorno, e a relação entre a concepção de
feminino presente em sua obra e os Estudos de Gênero.
Palavras-chave: Diagnóstico do presente – Indústria cultural – Biopolítica – Pedagogias do
corpo – Vida
5
ABSTRACT
Culture Industry as Biopolical Dispositive: Theoretical and Empirical Connections on
Diagnosis of Present and Subjetivations Shemas by Theodor W. Adorno and Michel
Foucault
This work has as aim to enterprise on some connections between Michel Foucault and
Theodor W. Adorno. The Leitmotiv is their analysis on present respective in terms of
biopolitics and culture industry. This theoretical research investigates the subjects strategies in
terms of life control and the incorporation of economical structures in private lives. The work
has three parts. In the first one the main theme is the concept of biopolitics by Foucault. First
of all, it's placed this subject in Foucault's reflexion. After that, it's showed the borders of
biopolitics, liberalism and neoliberalism as counterparts of other faces biopolitics. In the
second part of the work, after a brief enlightenment about culture industry, this is announced
as biopolitical dispositive. The mass/population is the aim of economical enterprise in context
of "control-stimulation" as a normative of bodies and behaviors. In the same section the
distinctions between Foucault and Adorno on neoliberalism are discussed. In the last chapter
it's reorganized and reanalyzed empirical data of another research on a female magazine of
ower times and of a newspapers' female supplement of 1940s as examples of the theoretical
discussion. In the conclusions, the biological axis as result of totalization comes in scene,
where desire and scare are good ways to normative conductions. As complementary question,
body (of population) is discussed as historical-natural mean, an important way of mass
control. Culture industry is also important in term of reduction of subject's reduction in the
context of population: economical sphere of consumption in human relation. New researches
about the concept of life by Adorno and on his approaches on female comparing with Gender
Studies could be developed.
Keywords: Diagnosis on Present – Culture Industry – Biopolitics – Pedagogies of Body –
Life
6
SUMÁRIO
Introdução.............................................................................................................. 7
1 Biopolítica............................................................................................................ 12
1.1 Alguns apontamentos teóricos..................................................................... 12
1.2 O diagnóstico do presente foucaultiano....................................................... 20
1.3 Naturalidade da população como regularidade e multiplicidade ................ 28
1.4 Naturalidade da população e as variáveis do meio...................................... 42
1.5 Naturalidade no desejo como “motor de ação”............................................ 43
1.6 Síntese sobre a biopolítica – limiar para tecer relações com a indústria
cultural............................................................................................................... 55
2 Indústria cultural ............................................................................................... 58
2.1 Alguns apontamentos teóricos..................................................................... 58
2.2 A indústria cultural como dispositivo biopolítico........................................ 62
2.2.1 O corpo como dispositivo por excelência........................................... 69
2.3 Pontos e contrapontos com a análise foucaultiana do neoliberalismo: o
diagnóstico da Escola de Frankfurt.................................................................... 76
3 Prescrições de embelezamento: sobre a configuração de um projeto
biopolítico de controle do feminino...................................................................... 88
3.1 Introdução.................................................................................................... 88
3.2 Sobre o controle que estimula...................................................................... 93
3.3 Para o exercício de uma autovigilância........................................................ 102
3.4 A “escolha” pela norma................................................................................ 107
Considerações finais............................................................................................... 115
Referências.............................................................................................................. 122
Anexos..................................................................................................................... 132
7
INTRODUÇÃO
Os estudos que desde algum tempo se dedicam a refletir sobre as aproximações e
distanciamentos entre as reflexões de Theodor W. Adorno e Michel Foucault têm ficado
geralmente circunscritos à análise das críticas marcantes por eles endereçadas à razão e às
formas de racionalidade (CAMARGO, 2006; MAIA, 2002; HABERMAS, 2002; HONNETH,
1993, entre outros). Em que pese a importância desses esforços, a aproximação entre essas
tradições teóricas tem desencadeado uma contenda mais ampla e que parece estar longe do
fim, delimitando outras problemáticas, como a da constituição da identidade no registro das
relações entre Adorno e o Pós-estruturalismo (DEWS, 1996), ou ainda a convergência das
assertivas do filósofo francês quanto ao poder disciplinar e a crítica sobre a reificação do
corpo em Adorno, ponderadas por um herdeiro intelectual de Habermas, Axel Honneth
(1993).
Não é casual que o corpo seja tomado como lugar e objeto da crítica à razão, uma
vez que aparece como um seu outro, ou seja, uma espécie de antípoda, em nossa tradição
ocidental, ao pensamento, já que lugar e vetor dos desejos, da fadiga, das paixões. Tanto
Foucault, na dinâmica do poder que sobre ele exercido – disciplinar e ou biopolítico – quanto
Adorno, que o interpretou no contexto de uma dialética do esclarecimento, tomaram o corpo e
suas expressões como crítica (imanente) ao contemporâneo – um tempo e uma experiência
histórica que se interessaram, como nunca antes, pelo somático.
Jürgen Habermas (2002), em seu livro O discurso filosófico da modernidade, foi um
dos primeiros a indicar aproximações entre o pensamento desses autores, não de modo direto,
mas pela similaridade nas pesadas considerações que dedica a cada um. Dentre elas encontra-
se a de que tanto Adorno quanto Foucault criticam a razão de maneira total e autônoma, ou
seja, a partir de seus próprios fundamentos – o que constituiria uma contradição em si,
autorizando-se Habermas a classificá-los como irracionalistas. Habermas (2002) ainda os
acusa de adotarem, devido à influência de Nietzsche, uma perspectiva niilista que resultaria na
ausência de alternativas para a busca de uma razão emancipadora. Esse movimento,
acompanhado de uma paradoxal pretensão de verdade e ausência de princípios normativos –
algo por si só considerado como problemático por Habermas –, e não sendo ele assumido por
nenhum dos autores criticados, reforçaria a assertiva de ausência de alternativas nos escritos
de Adorno e Foucault.
Axel Honneth (1993), por sua vez, assinala que as análises críticas a respeito da
8
violência sobre o corpo, sua perda de liberdade e exposição ao sofrimento por meio da
disciplinarização, seriam pontos de evidente aproximação, ainda que contrastantes no que se
refere aos processos de subjetivação, entre os pensamentos de Adorno e de Foucault.
Em sua
interpretação, o corpo seria, no registro desses autores, a principal vítima da racionalização da
sociedade,
1
já que deve ser subjugado e reprimido visando a sua utilidade e docilidade para o
sistema capitalista; assim como também, por meio de seu adestramento, o protagonista da
forja da subjetividade. Além disso, para Honneth (1993), “Adorno e Foucault postulam que a
universalização das exigências teóricas e morais de validade na época das Luzes forneceu, por
um lado, a base de um saber organizador tendo como objetivo assegurar a dominação e, por
outro, a superestrutura jurídica da qual resulta a ocultação da dominação.” (HONNETH,
1993, p. 176).
2
Apesar de apontarem para essas questões essenciais, Honneth (1993), assim como
também Habermas (2002), ao se lançarem sobre a tarefa de aproximar os pensamentos dos
autores alemão e francês, não atentaram para uma questão que se radicaliza hodiernamente: o
diagnóstico de um “controle-estimulação”,
3
concretizado de forma extensa pelo mercado ao
padronizar as condutas e os motivos da existência em torno de cuidados com a vida. A análise
da maneira como contemporaneamente se têm promovido uma politização dos corpos, por via
do incitamento (e não apenas da repressão) das massas a investir sobre a saúde, a sexualidade,
a seguridade social, perpassa, de alguma maneira, tanto os escritos sobre o tema da
biopolítica, feitos por Foucault (1988, 1999, 2008a, 2008b), quanto aqueles referentes à
indústria cultural, escritos por Adorno (1978; HORKHEIMER; ADORNO, 1985).
Procurando compor o debate existente, ao indicar novos pontos para a investigação
sobre as possíveis relações entre Foucault e Adorno, e ao mesmo tempo tentando avançar no
debate sobre o contemporâneo, o presente trabalho
4
procura dar continuidade a um esforço
1
Ainda que use a mesma expressão para designar um fenômeno entendido diferentemente pelos autores,
Honneth (1993, p. 175) explica que “a noção adorniana de ‘racionalização é concebida em função do modelo da
dominação da natureza, a de Foucault conforma-se mais ao modelo de controlo social.”
2
Autores brasileiros, como Maia (2002) e Camargo (2006), comentam as relações expostas por teóricos ligados à
Teoria Crítica da Sociedade, sobretudo os acima referidos (Honneth e Habermas), e pelo próprio Foucault. Maia
(2002) compõe um mapa das convergências já indicadas, dando ênfase, entre outros, aos escritos de Honneth
sobre a radicalização foucaultiana do diagnóstico dos autores da Dialética do Esclarecimento sobre a “sociedade
administrada”. Camargo (2006), destaca que, apesar das críticas de Habermas quanto à ausência de uma intenção
crítica na obra de Foucault, devido à (suposta) falta de um conteúdo normativo em sua obra, o pensamento
foucaultiano pode ser entendido como uma forma de teoria social crítica contemporânea, entre outros motivos,
pelas possibilidades de resistência e liberdade indicadas pelo filósofo francês.
3
Expressão utilizada por Foucault (2000), para explicitar uma nova configuração de domínio que não se dá pela
repressão, mas por meio do estímulo de mostrar e fazer-se desejar, desencadeando um investimento positivo
sobre o corpo.
4
Esta dissertação compõe o programa de pesquisas Teoria Crítica, Racionalidades e Educação II, dirigido por
Alexandre Fernandez Vaz e financiado pelo CNPq (Auxílio pesquisa, bolsas de produtividade em pesquisa,
9
que temos empreendido (entre outros, VAZ, 2006; ALBINO; VAZ, 2008), ao discorrer
sobre a aproximação teórica entre o pensamento desses autores a partir de um cruzamento
entre os conceitos de biopolítica e indústria cultural, visando explorar a problemática das
estratégias de subjetivação contemporâneas. Igualmente, é objetivo dessa pesquisa, descrever
os efeitos dos mecanismos de controle indicados por Foucault e Adorno, um domínio sobre a
vida,
5
e a conseqüente redução do sujeito a um exemplar da espécie. Sobre o objeto desse
domínio, a vida, vale dizer que ela significa em Foucault aquilo que compõe os fenômenos
biológicos da população, o constructo sobre o que se colocaria sua naturalidade; e,
concomitantemente, expressa o público e o privado, ou seja, o que acontece no tempo e no
espaço da existência, envolvendo as relações que cada um estabelece com as atividades que
realiza no seu cotidiano, e com os outros indivíduos com os quais convive de modo mais ou
menos constante e direto.
Em Adorno, encontra-se um sentido para a expressão “vida” que é muito similar ao
último citado no contexto das teorizações foucaultianas, mas que envolve também a idéia de
formação, a resistência na forma da experiência e do conceito (ADORNO, 1996). O outro
sentido para o conceito de vida identificado em sua obra , e esse parece não estar presente –
ao menos de modo explícito – nos escritos de Foucault, é algo como que um impulso para a
liberdade, tema sobre o qual não nos dedicaremos neste texto que aqui se introduz.
Nesse sentido, é hipótese desse trabalho, a partir do diagnóstico sobre o domínio da
vida e o modo como isso acontece, realizado tanto por Foucault quanto por Adorno, é que a
indústria cultural possa ser compreendida como um dispositivo biopolítico por excelência da
atualidade. Argumento que se fundamenta, como se discorrerá ao longo do texto, na
preocupação com a população que será consumidora dos produtos culturais e na incidência da
indústria cultural sobre o corpo, na forma, essencialmente, da perseguição aos desejos e no
controle das emoções das pessoas, processo cujo resultado é a diluição da particularidade na
generalidade do que é “biológico”. O desenvolvimento da indústria cultural, fenômeno
moderno que se inicia no entre-guerras e se acelera ao mesmo passo que o neoliberalismo, é
algo que só faz sentido ao ser executado na direção e com o consentimento, mesmo que
apenas tácito, das massas populacionais consumidoras.
apoio técnico, iniciação científica, mestrado e doutorado). Especificamente, tive uma bolsa de mestrado do
CNPq por onze meses para a realização da pesquisa.
5
Honneth (1993, p. 177) já indicara que tanto Adorno quanto Foucault “vêem manifestamente o processo
civilizacional da racionalização instrumental culminar nas organizações voltadas à dominação que têm o poder
de controlar e de regular inteiramente a vida social.” A diferença do presente trabalho com relação à análise de
Honneth está no breve delineamento do sentido de vida na obra de cada autor, assim como na compreensão do
modo como se realiza esse controle em Foucault, que na interpretação de Honneth (1993) se refere apenas aos
processos disciplinares. Um invstimento no tema da indústria cultural também está ausente na obra citada.
10
No objetivo que se propõe esse trabalho, entende-se que a aproximação das
teorizações sobre biopolítica e indústria cultural pode ser um caminho que se abra no profícuo
debate já existente entre os legados de Adorno e Foucault, ao permitir não apenas questionar e
avançar no empreendimento teórico de cada um à luz dos escritos do outro, mas também
apreender complementariedades em suas obras, sobretudo no diagnóstico do tempo hodierno.
Isso é fundamental, se considerarmos que os conceitos de indústria cultural e biopolítica
materializam a perspectiva teórico-metodológico dos autores de realizar um encontro entre
filosofia e ciências sociais, apontando, por conseguinte, para a importância de pensar sobre o
seu próprio tempo. Logo, apesar de dedicarem críticas – por sinal, como destaca Honneth
(1993), bastante semelhantes – aos ideais Iluministas, ambos autores são marcados pela
filosofia crítica de Kant, na interpretação que dela fazem quanto ao uso legítimo da razão para
se assumir uma posição de autonomia e de crítica sobre o presente, em detrimento à postura
de resignar-se ao que está dado.
6
É nesse ponto que se encontra uma aproximação, que vale
aqui ser citada, realizada pelo próprio Foucault, de sua obra com a da Escola de Frankfurt.
Assim diz ele,
acredito que a atividade filosófica concebeu um novo pólo, e esse pólo se
caracteriza pela questão, permanente e perpetuamente renovada: ‘O que
somos nós hoje?’ Este é, a meu ver, o campo da reflexão histórica sobre nós
mesmos. Kant, Fichte, Hegel, Nietzsche, Max Weber, Husserl, Heidegger, a
Escola de Frankfurt tentaram responder a essa questão. Inscrevendo-me
nessa tradição, meu objetivo é trazer respostas muito parciais e provisórias a
essa questão através da história do pensamento ou, mais precisamente,
através da análise histórica das relações entre nossas reflexões e nossas
práticas na sociedade ocidental. (FOUCAULT, 2006, p. 301).
Visando dar, de modo modesto, continuidade a esse exercício de realizar um
diagnóstico do presente, este trabalho propõe apontar para a similaridade e atualidade das
estratégias de subjetivação sobre as quais discorreram Adorno e Foucault, assim como sobre o
resultado que essas estratégias ensejam. Para tanto, o texto foi dividido em três partes. Na
primeira delas, trato do conceito de biopolítica em Foucault. Para isso, realizo alguns
apontamentos teóricos sobre como se localiza a discussão do tema no pensamento do autor,
marcando algumas de suas diferenças com relação ao poder disciplinar. Em seguida, discorro
sobre o tema da biopolítica a partir de diferentes perspectivas adotadas por Foucault, mas
tomando como índice de exposição a “moldura” da biopolítica, tal como se referiu ao
6
Sobre as afinidades entre o pensamento de Adorno, Nietzsche e Foucault, quanto aos desígnios da filosofia,
consultar interessante texto de Oswaldo Giacoia Junior (2007).
11
liberalismo e ao neoliberalismo. Encerrando o capítulo, faço uma breve síntese do que
terá sido abordado anteriormente, dando destaque aos pontos que aproximam essa parte do
pensamento foucaultiano ao de Adorno.
Na segunda parte do trabalho, depois de uma breve explicação sobre o conceito de
indústria cultural e de como ela compõe a crítica de uma dialética do esclarecimento,
argumento sobre sua característica de dispositivo biopolítico, discorrendo sobre as massas,
seu objeto de investimento, e o modo como sobre ela se investe: a partir das variáveis do
meio, sendo dado destaque à maneira como a indústria cultural se constitui como o próprio
meio, devido ao efeito de realidade que produz. Descrevo ainda o resultado desse
investimento, a saber, um controle extremo da vida e a totalização da multiplicidade sob o
denominador comum do plano biológico, enfatizando a a importância do corpo nesse
processo.
No último capítulo, reorganizo e reavalio material empírico de investigações
anteriormente realizadas – manuais de embelezamento feminino da década de quarenta do
século passado e dos anos dois mil –,
7
tomando-o como exemplares dos argumentos teóricos
desenvolvidos. Será nesse sentido, de exemplo, que aponto para a existência de um projeto
biopolítico de controle do feminino que perpassa os tempos e espaços e que se realiza por
meio de estratégias de persuasão e convencimento próprias dos esquemas da indústria
cultural. Este capítulo guarda certa autonomia em relação às outras partes do trabalho (algo
que poderia, aliás, ser dito também em relação aos capítulos todos, o que autoriza a leitura
fora da ordem exposta), repetindo, deliberadamente, argumentos antes apresentados, mas que
conferem a singularidade desse capítulo. Por fim, nas considerações finais, sintetizo as
proposições elaboradas ao longo do trabalho, dando ênfase às similaridade e divergências
identificadas quanto ao diagnóstico do presente (biopolítica e indústria cultural) de Foucault e
Adorno.
7
Parte do material que aqui se refere, foi analisado e descrito em meu trabalho de conclusão de curso e originou
o artigo: “O corpo e as técnicas sobre ele, no sentido do embelezamento: sobre os esquemas da indústria cultural
na revista Boa Forma”, publicado no v.14, n.1, 2008, da revista Movimento. A outra parte do material resultou no
artigo “’Mulher, como deves ser’: um estudo sobre a educação do corpo feminino no jornal Dia e Noite”,
publicado no ano IV, n.7, 2005, da revista Temas e Matizes, tendo sido elaborado a partir da investigação
desenvolvida durante o projeto de iniciação científica (PIBIC/UFSC/CNPq) do qual participei durante a
graduação.
12
1 BIOPOLÍTICA
1.1 ALGUNS APONTAMENTOS TEÓRICOS
Empregada pela primeira vez no ano de 1974, em uma conferência proferida na
cidade do Rio de Janeiro,
8
a expressão biopolítica é também mencionada por Foucault, entre
outras, no capítulo final do volume primeiro da História da Sexualidade e em Aula de 17 de
março de 1976 – uma espécie de síntese provisória que se abre para novas considerações que
serão desenvolvidas em momentos posteriores – do curso Em defesa da sociedade, ministrado
no Collége de France. Nesses três momentos, Foucault aborda respectivamente o nascimento
da medicina social, o desenvolvimento dos dispositivos de sexualidade do século XVII ao
XIX e a produção de um racismo de Estado, todas tecnologias de controle que se ocupam do
gerenciamento dos indivíduos como população. Essas três ocasiões são vistas, portanto, no
que apresentam em comum, como conjunto. Todas essas abordagens compartilham uma
compreensão sobre a condição de seres humanos viventes, sobre fenômenos concernentes à
certa biologia, como natalidade, mortalidade, saúde, longevidade, sobre os quais é possível
obter um saber e exercer um poder.
Essa perspectiva de análise, da biopolítica, marca um novo momento do pensamento
foucaultiano em que a ênfase das pesquisas se desloca desde a preocupação com o corpo
individual: o século XVII traz a tona uma interpretação do corpo como dócil, objeto de
manipulação, matéria plástica a ser moldável até o ponto de tornar-se útil às funções mais
diversas, por meio de ações que visam atingir o indivíduo, capacita-lo, multiplicar suas forças
em cada detalhe de suas ações. Essa “anatomia política” que Foucault por algum tempo se
dedicou a compreender por meio de suas investigações sobre o hospital, a caserna, a escola, a
oficina, compõe aquilo que o Autor denominou como “disciplinas”, conjunto de “métodos que
permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de
suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade.” (FOUCAULT, 2008, p. 118).
No sistema disciplinar há um conjunto de técnicas que visam controlar as atividades do
indivíduo em seu mais ínfimo instante.
8
A conferência é intitulada “O nascimento da medicina social” e se encontra no livro Microfísica do poder
(FOUCAULT, 2000).
13
De acordo com Foucault (2008), a disciplina é uma arte de distribuição espacial
dos indivíduos em que cada um é inserido em um espaço individualizado para bem ter o
comportamento vigiado, e assim conhecido, medido, classificado dentro de uma ordem de
méritos e deméritos. Essa distribuição de acordo com as qualidades específicas de cada um, é
o modo de não somente explorar, mas também potencializar a funcionalidade individual de
uma maneira que, combinada com as qualidades dos demais, há o aproveitamento máximo
com/na relação a/com todos. Trata-se de um processo de organização da multiplicidade pela
especialização e enquadramento do heterogêneo, que prescinde da organização de um espaço
serial e do posicionamento do indivíduo na série, estabelecendo uma rede de relações ao
distribuí-los sempre uns em comparação aos outros. Esse poder ainda se propõe a melhorar os
gestos, produzir seqüências e coordenações ótimas, por procedimentos que controlam o
desenvolvimento de uma ação. Um controle permitido pela decomposição dos gestos e dos
movimentos e sua interligação com a exigência de uma regularidade temporal: cálculo assim
do tempo para classificar cada ínfima ação como eficiente, sendo fundamental o treinamento,
o exercício, a maneira de alcançar a excelência dos movimentos, que se dão com ou sem a
manipulação concomitante de objetos.
Para o exercício desse poder, o sistema disciplinar faz uso de uma vigilância
constante e hierárquica. Cada indivíduo deve manter-se sob o olhar, não somente de um
vigilante, mas de uma “perpétua pirâmide de olhares”, ao ser o ato da observação
decomposto, especializado, igualmente assim tornado mais eficiente e funcional na mesma
medida em que os gestos são também divididos, recortados, detalhados. Desse tipo de
vigilância, o Panóptico é desenhado por Jeremy Bentham como modelo ideal a ser seguido:
distribuição da arquitetura em “unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer
imediatamente. [...] Cada um em seu lugar, está bem trancado em sua cela de onde é visto de
frente pelo vigia [...]. Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado
consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder.”
(FOUCAULT, 2008, p. 166). Esse modelo de vigilância que permite experimentar, analisar,
individualizar, caracteriza-se como generalizável em seu funcionamento, não se identificando,
portanto, com uma instituição ou aparelho, mas como um mecanismo elementar e facilmente
transferível. Por ser polivalente, “cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a
que se deve impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema panóptico poderá ser
utilizado.” (FOUCAULT, 2008, p. 170).
Um outro recurso para disciplinar os corpos, que parte do mesmo processo de
vigilância, refere-se ao investimento em tornar determinadas condutas passíveis de punição,
14
fazendo-se de um modo muito sutil (pequenas humilhações, privações, castigos,
indiferença). Tudo o que se desvia da regra, do que é estabelecido, transforma-se em objeto do
sistema disciplinar que, pelo saber acumulado sobre o organismo, estabelece um modelo ideal
adjetivado com normal. O investimento se dá na correção, realizada via intensificação do
aprendizado e na correlativa gratificação dos comportamentos e desempenhos adequados – o
que implica em permanente conhecimento para hierarquização dos indivíduos. Há, assim, um
jogo de sanções e recompensas que se estabelece em torno da norma e que “obriga a
homogeneidade; mas individualiza, permitindo medir os desvios, determinar níveis, fixar as
especificidades e tornar úteis as diferenças, ajustando-as umas às outras.” (FOUCAULT,
2008, p. 154). Para que esse controle normatizante se concretize, há o registro contínuo dos
dados individuais em sistemas cumulativos que permitem qualificar, classificar e punir cada
um. O exame apresenta-se como mecanismo de produção permanente de saber, de objetivação
por excelência, ao tomar o indivíduo em sua singularidade como objeto de descrição e análise.
Se a tecnologia de poder disciplinar caracteriza-se como uma anátomo-política do
corpo, a biopolítica incide, por sua vez, sobre as populações. De acordo com Foucault (1999),
porém, esta segunda tecnologia, que surgiu na metade do século XVIII, não exclui a primeira,
mas a embute, a integra e a utiliza como pilar para o seu próprio exercício. A técnica
disciplinar “abre caminho” para a biopolítica, “tecnologia que se instala e se dirige à
multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em corpos, mas na
medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos de conjunto
que são próprios da vida [...] Temos uma segunda configuração tomada de poder que, por sua
vez, não é individualizante, mas que é massificante.” (FOUCAULT, 1999, p. 289). Cada uma
dessas tecnologias, disciplinar e biopolítica, têm suportes e instrumentos específicos, e não se
anulam, mas se complementam, pouco deixando escapar ao controle, na medida em que agem
conjuntamente sobre o detalhe e o todo. O diagnóstico da conjunção entre disciplina e
biopolítica é denominado por Foucault como biopoder.
9
No ano de 1977, Foucault abre uma nova frente em seus estudos sobre o tema da
biopolítica, e o faz de um modo que lhe é muito característico: explorando novas perspectivas,
ampliando seu campo de análise. Ele dedica o curso de 1978 – Segurança, território e
9
Num empreendimento de diagnóstico do presente a partir do escritos foucaultianos, será feito uso nesse
trabalho da expressão “biopolítica”, por entender, assim como Farhi Neto (2007), que na obra de Foucault “em
um lugar, ‘biopoder significa mais do que ‘biopolítica’, em outro, significa o mesmo. Em um momento,
‘biopoder é o todo do qual ‘biopolítica’ é uma parte, em outro, os dois termos coincidem. [É possível] tomar a
redução do significado de ‘biopoder’, que o torna um sinônimo de ‘biopolítica’, como sinal do ganho de
importância da biopolítica, em relação à disciplina. [...] [Provável tentativa de Foucault de representar] uma
redução de sua relevância [da disciplina] no biopoder contemporâneo.” (FARHI NETO, 2007, p.105).
15
população – ao estudo do “conjunto de mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie
humana, constitui suas características biológicas, vai poder entrar numa política, numa
estratégia política, numa estratégia geral de poder.” (FOUCAULT, 2008a, p. 3). Se até então
seus escritos sobre a biopolítica estiveram circunscritos às problemáticas da medicina, da
sexualidade e do racismo, nesse curso a faceta que Foucault revela sobre o tema
10
é a dos
dispositivos de segurança, descrevendo o surgimento da noção de população (elemento
central da biopolítica) ligada à tecnologia de “polícia” e ao nascimento da reflexão sobre a
economia.
Para além da importância das tecnologias de segurança para compreensão do que é a
biopolítica e da atualidade desses mecanismos de controle – que serão descritos mais adiante
–, é essencial para a inteligibilidade dessa fase do pensamento foucaultiano, que se ocupa da
emergência da vida como problema político-econômico, a presença em seus escritos do
Estado e da economia, esta como saber central da política – ou ainda, a maneira como a
prática governamental se configura frente às problemáticas que lhe são postas em uma
conjuntura particular.
É nesse momento que seu método de diagnóstico sofre uma transposição, ou, como
ele mesmo diz, há uma espécie de radicalização da sua maneira de captar a “inteligibilidade
do real” (FOUCAULT, 2008b).
11
O que Foucault propõe é investigar o problema do Estado a
partir de um método já utilizado em suas análises anteriores, que consiste em “destacar as
relações de poder da instituição, a fim de analisá-las sob o prisma das tecnologias, destacá-las
também da função, para retomá-las numa análise estratégica e destacá-las do privilégio do
objeto, a fim de procurar ressituá-las do ponto de vista da constituição dos campos, domínios
e objetos de saber.” (FOUCAULT, 2008a, p. 159). Essa opção teórico-metodológica foi a de
apreender o saber-poder que transpassava as instituições por ele analisadas, procurando
pensá-las em sua exterioridade e generalidade, as estratégias e táticas que elas compunham e
pelas quais eram compostas; ou seja, suas tecnologias de poder, o modo como os discursos de
verdade e as práticas se imbricavam. Nessa perspectiva, Foucault realiza seus estudos sobre o
exercício do poder, compreendendo-o sempre como relacional e partindo de sua microfísica,
10
Farhi Neto (2007) aponta para a existência de cinco facetas, cinco formulações, cinco biopolíticas: poder
medical, poder racial, dispositivo de sexualidade, dispositivo de segurança e governamentalidade econômica. De
acordo com análise que faz do conceito no autor francês, Farhi Neto esclarece que “as cinco biopolíticas não são
nomes diferentes para uma mesma coisa, cada uma refere a uma prática-discursiva peculiar; tampouco são como
partes independentes de um todo, cada uma é em si mesma um todo completo.” (FARHI NETO, 2007, p. 134).
11
Por “inteligibilidade do real”, ou em história, Foucault (2008a) entende “algo que poderíamos chamar de
constituição ou composição dos efeitos.” (FOUCAULT, 2008a, p. 320).
16
12
visando apreendê-lo em seu aspecto sutil/silencioso/estratégico. No momento em que
se depara com a problemática da biopolítica, o autor pondera que a análise dos micropoderes
deve ser tomada como um “ponto de vista [ou ainda uma grade de análise], um método de
decifração que [no momento em que é inevitável se deparar com a questão do Estado,
Foucault irá considerar] válido para a escala inteira, qualquer que seja a sua grandeza.”
(FOUCAULT, 2008a, p. 258).
Foucault passa a adentrar então a questão, até esse momento merecedora de pouco
destaque, do nascimento do Estado moderno, fazendo-o a partir da problemática da reflexão
política como elemento que lhe foi constituinte, ao aplicar o método de análise dos
micropoderes, e de seu caráter relacional, a “todo um pacote de textos, de projetos, de
programas, de explicações [do pensamento econômico do século XVI ao XX.] [...]
[Reconstituindo] o funcionamento do texto, em função não das regras de formação desses
conceitos, mas dos objetivos, das estratégias a que ele obedece e das programações de ação
política que sugere.” (FOUCAULT, 2008a, p. 48) – ou seja, ele busca apreender o projeto
político-econômico que lhes perpassa. Essa opção metodológica permite fazer uma genealogia
que não tem como premissa a estatização (“apreensão” pelo Estado) das disciplinas, ou ainda
a passagem da estrutura de poder de uma instituição para outra – em que, nesse caso, o Estado
seria uma instituição, localizada em outro nível e totalizadora. Parece-lhe possível, além
disso, apreender as instabilidades e mobilidades das relações de poder e a permeabilidade do
Estado a lutas e ataques diversos. O efeito político desse empreendimento é a adoção da
perspectiva de que o poder não está no Estado, mas nas relações locais, sendo estas
compreendidas como possibilidades de ação que teriam efeitos globais (FOUCAULT, 2008a).
A problematização do Estado moderno não significou portanto centralizar as
discussões em torno dele, dando-lhe uma posição central na análise das relações de poder – o
que estabeleceria novamente que o exercício do poder é unilateral e exercido “de cima para
baixo” –, mas, sim, discorrer sobre como as “formas de poder foram progressivamente
governamentalizadas, ou seja, elaboradas, racionalizadas e centralizadas na forma ou sob a
caução das instituições do Estado.” (FOUCAULT, 1995, p. 247 – grifo nosso). Com o termo
governamentalidade, inaugurado na aula de 1º de fevereiro de 1978, Foucault denomina “as
táticas de governo que, a cada instante, permitem definir o que deve ser do âmbito do Estado e
o que não deve, o que é público o que é privado, o que é estatal e o que não é estatal.”
12
Opondo-se a teorias universais e globais, como a de existência de uma funcionalidade econômica do poder em
que o Estado seria seu detentor, Foucault compreende aquele como relacional, não havendo alguém ou uma
instituição que seria sua detentora, mas sim um exercício múltiplo de relações que são fluídas, estratégicas,
móveis e não necessariamente determinadas pelo Estado ou ainda pela lei.
17
(FOUCAULT, 2008a, p. 145). Encontram-se ainda, nessa mesma aula, definições de
governamentalidade que são complementares à já referida: 1. um conjunto de práticas
governamentais que permitem o exercício de uma forma “de poder que tem por alvo principal
a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico
essencial os dispositivos de segurança” (FOUCAULT, 2008a, p. 143); 2. uma tendência à
predominância do “governo” como forma de poder e de saber; e 3. o resultado do processo de
transformação do Estado de justiça em Estado administrativo.
13
A emergência do conceito de “governamentalidade”, assim como também de
“governo” e “artes de governar”, é uma resultante desse movimento de fazer a genealogia do
Estado moderno. Esses novos conceitos e problemáticas, utilizados daí por diante por
Foucault como ferramentas para apreender o delineamento da realidade, assim como para a
própria construção de seu pensamento, são essenciais para a compreensão dessa tecnologia de
poder com que o Autor se depara e que sintetiza diversos elementos de sua obra, a biopolítica.
14
O surgimento do Estado como campo de análise foi uma necessidade imposta por seu
objeto de estudo, pois os problemas referentes à população estarão fundamentalmente, ao
menos até o século vinte, centralizados ao nível do aparelho estatal. O Estado, para Foucault,
é vetor da problematização sobre o governo, ou ainda do desenvolvimento de uma tecnologia
geral de governo dos homens, como delineamento de um modo de conduzir a si mesmo e os
outros; nele se estabelece um “jogo” sobre a maneira de governar/conduzir e de ser
governado/conduzido.
15
É por esse motivo que Foucault dedica seis das treze aulas do curso de 1978 à
reconstituição de alguns elementos históricos da noção de governo – sugere inclusive que o
título talvez mais adequado para aquele curso fosse Segurança, população e governo, devido
a essa longa incursão que se faz necessária sobre o tema, além de sua evidente importância.
13
Senellart (2008) identifica que o conceito de governamentalidade, na obra de Foucault, “desliza
progressivamente de um sentido preciso, historicamente determinado, para um significado mais geral e abstrato.
[...] [A partir de 1979, governamentalidade passa a ser definida por Foucault como] ‘o campo estratégico de
relações de poder, no que elas têm de móvel, de transformável, de reversível.’” (SENELLART, 2008, p. 531-3).
14
Farhi Neto (2007) aponta que “a noção de governamentalidade provoca um deslocamento, uma retração, da
noção de biopolítica. Pode-se dizer que até a quarta lição do curso de 1978, a biopolítica, como dispositivo de
segurança, foi apresentada na sua máxima compleição; ela designava, de forma abrangente, a relação de poder
entre Estado e população, o governo da população pelo Estado, os dispositivos postos em prática para o governo
da população pelo Estado. Com a introdução da noção de governamentalidade, a biopolítica passa a designar um
domínio mais restrito [...]: ao quadro das relações entre medicina e política” (FARHI NETO, 2007, p. 111).
Todavia, de acordo com o mesmo autor, a racionalização das práticas do poder medical é apenas um dos
domínios da prática e da reflexão governamental, sendo que na obra foucaultiana, “num sentido amplo, a
biopolítica é a governamentalidade da população, desde que a prática refletida do governo se faça a partir dos
fenômenos próprios à população.” (FARHI NETO, 2007, p. 112).
15
Como explica Senellart, “o deslizamento do ‘poder ao ‘governo’ que se efetua no curso de 1978, não resulta
do questionamento do marco metodológico, mas de sua extensão a um novo objeto, o Estado, que não tinha seu
lugar na análise das disciplinas.” (SENELLART, 2008, p. 521-2).
18
Para tal intento utiliza como fontes os escritos sobre o poder pastoral – tecnologia de
poder de origem hebraica que tem por objeto a busca, de modo contínuo e permanente, de
uma conduta retilínea dos homens –, partindo da organização desse poder no Oriente pré-
cristão e cristão, passando pela análise da institucionalização do pastorado pela Igreja cristã e
suas especificidades, bem como pela constatação da raridade da metáfora do pastor na
literatura política clássica, até chegar enfim na transformação da pastoral das almas ao
governo político dos homens – ou ainda na entrada dessa forma de poder (o governo) no
exercício da soberania. Com a realização dessa trajetória, Foucault apresenta o poder pastoral,
sobretudo nas mutações específicas que ele sofre com o cristianismo, como chave de leitura
para a questão do governo e para a compreensão da centralidade que a vida adquire em
meados do século XVIII, pois é com a tecnologia (o governo político dos homens) que deriva
da pastoral das almas e a transforma em uma prática política calculada e refletida, que uma
racionalidade governamental nos moldes da biopolítica foi tornada possível. Isso porque, em
sua nova forma, o poder pastoral, visa não mais “dirigir o povo para a sua salvação no outro
mundo, mas, antes, assegurá-la neste mundo. E, neste contexto, a palavra salvação tem
diversos significados: saúde, bem-estar (isto é, riqueza suficiente, padrão de vida), segurança,
proteção contra acidentes.” (FOUCAULT, 1995, p. 238). Nesse novo momento, o poder
pastoral mantém a perspectiva de conduzir a totalidade e cada indivíduo em particular durante
toda a sua vida, e de exercer o conhecimento sobre as mentes, sobre seus segredos das
pessoas,
16
mas o faz de uma maneira distinta, especificamente pela multiplicação dos
objetivos e agentes do poder: a medicina, a escola, a polícia, entre outras instituições públicas.
A noção de governo, ou dito de outro modo, a maneira como se estrutura “o eventual
campo de ação dos outros” (FOUCAULT, 1995, p. 244), é o ponto de partida comum para a
compreensão do delineamento dessa racionalidade política que ainda vivemos, a qual se
ocupa de conduzir as condutas por via de inúmeras práticas de subjetivação que são
provenientes e ao mesmo tempo constituintes dessa mesma e específica racionalidade. Nela, a
população emerge como objeto, e igualmente como sujeito – “a alguém pelo controle e
dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência e autoconhecimento”
(FOUCAULT, 1995, p. 235) – em relação ao gerenciamento de sua condição biológica. Essa
sujeição, porém, não é total, pois “a ‘conduta’ é, ao mesmo tempo, o ato de ‘conduzir os
16
Esse mecanismo de consciência e autoconhecimento, “categoriza o indivíduo, marca-o em sua própria
individualidade, liga-o a sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os
outros têm que reconhecer nele. É uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos.” (FOUCAULT, 1995, p.
235).
19
outros (segundo mecanismos de coerção mais ou menos estritos) e a maneira de se
comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades.” (FOUCAULT, 1995, p. 244).
Estabelece-se um jogo interessante dentro da própria biopolítica, pois a população “aparece
como o fim e o instrumento do governo: sujeito de necessidades, de aspirações, mas também
objeto nas mãos do governo. Ela aparece como consciente, diante do governo, do que ela
quer, e também inconsciente do que a fazem fazer.” (FOUCAULT, 2008a, p. 140). Essas
relações de poder terão, portanto, uma configuração muito sutil, fluida, móvel, estratégica,
sempre cambiante e dependente da maneira como cada indivíduo conduz a si mesmo frente à
maneira como é conduzido.
O dispositivo joga um importante papel nessa configuração. Da maneira como é
empregado por Foucault, dispositivo envolve essa complexidade que enreda a questão do
governo, sendo caracterizado como o encontro das técnicas de dominação e do eu. Trata-se de
um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,
organizações arquitetônicas, decisões regulamentadas, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópica. Em suma: o dito e o não-dito (...). O dispositivo é a rede que se
pode estabelecer entre esses elementos. (FOUCAULT, 2000, p. 244).
Sendo a rede que pode se estabelecer no englobamento não apenas do dito, mas
também do não-dito, o dispositivo é o encontro estabelecido pelo sujeito entre os discursos e
as práticas, já que é este que constitui a rede. Nesse sentido, é importante descrever esses
discursos e essas práticas, suas estratégias e táticas, a partir dos objetos de análise utilizados
por Foucault e os meios que esses objetos se configuram como tecnologias de um poder
exercido pelo Estado, que é tanto individualizante quanto totalizador (FOUCAULT, 1995), e
que se exerce sobre o corpo e sobre a vida.
Na tentativa de conformar uma teia, com as facetas da biopolítica apresentadas por
Foucault, será apresentado aqui o modo como se dá a produção de um saber-poder sobre a
população, tomando como referência aquilo que o autor nomeou como moldura” da
biopolítica, o liberalismo e o neoliberalismo,
17
a análise de suas particularidades, estratégias,
objetivos e princípios, buscando delinear conjuntamente aspectos do racismo de Estado, dos
dispositivos de sexualidade, do poder medical e dos mecanismos de segurança, procurando
oferecer um contorno mais nítido do diagnóstico foucaultiano do tempo presente, mantendo
sua metodologia de não tracejar uma causa e seu efeito, mas sim a complexidade das relações.
17
Assim diz Foucault (NBP), “só depois que soubermos o que era esse regime governamental chamado
liberalismo é que poderemos, parece-me, apreender o que é a biopolítica.” (FOUCAULT, 2008b, p. 30).
20
1.2 O DIAGNÓSTICO DO PRESENTE FOUCAULTIANO
Tomando como mote de análise a “moldura” em que se dá o nascedouro da
biopolítica, Foucault (2008a) vai buscar na crítica destinada à razão de Estado – “arte de
governar”
18
vigente do século XVI até o limiar do século XVIII – o marco inicial da prática
de reflexão política, a problematização sobre aquilo que deve ou não ser estatal, o que é
público e o que é privado, enfim o que deve ser governamentalizado, deixado aos auspícios do
Estado, que vai então ganhando contornos, tomando a forma de um conceito. Esse
empreendimento foucaultiano é movido pelo interesse em compreender e apontar para o
momento em que a modernidade irá, pela primeira vez, e em meio às contraposições quanto à
arte de governar que vigorava e a conseqüente configuração da forma de governamentalidade
liberal, se deparar com a emergência da população como questão política, como objeto de
investimento frente a sua apreensão como espécie – produção de um saber que está no cerne
das relações de poder que irão se estabelecer a partir (e reforçando) essa compreensão.
O liberalismo é assim a resultante de uma reflexão econômica sobre a razão de
Estado,
19
não uma pura abstração de teóricos que idiossincraticamente a formulam. Sua
ascendência como racionalidade econômica no início do século XVIII se legitima pela
oposição à arte de governar que lhe era antecedente – movimento esse de negação que não é
exatamente uma novidade, pois as mudanças que decorreram ao longo da história são frutos
desse processo, mas que se diferencia pelo fato de ter em vista um benefício devidamente
calculado para o então insipiente Estado moderno, a partir do aprimoramento do modo como
era gerido. É preciso pontuar que essa perspectiva de “reflexão” é decorrente de uma
conjuntura em que as ações racionais, arquitetadas, estão colocadas no horizonte de
possibilidades. Esse é um modo de pensar e agir que se fortalece com a razão de Estado, por
esta ter colocado como finalidade o enriquecimento do Estado – materialização do poder do
soberano –, a partir da majoração de suas forças. A razão de Estado se caracterizada por
abandonar qualquer outra diretriz de governo, de Deus, do pai de família, do pastor, que não
tenha como fim o governo do Estado a partir de uma racionalidade que seja inerente ao seu
funcionamento, remetente a sua prosperidade a partir da distribuição de suas forças e de suas
18
Trata-se de período intermediário entre e hegemonia do pensamento em favor da manutenção do principado e
de ascendência de uma política de “governamentalidade”. Nesse momento intermediário é que então emerge a
problemática do “governo” em diferentes âmbitos, dentre eles a política (FOUCAULT, 2008a).
19
Como explica Foucault (2006), “atualmente, a expressão ‘razão de Estado’ evoca bem mais, como sabem, o
arbítrio e a violência. Porém, na época, ela era entendida como uma racionalidade própria à arte de governar os
Estados.” (FOUCAULT, 2006, p. 305).
21
técnicas internas.
20
Encontra-se aí uma teorização e aplicação prática que prescindirá da
desvinculação de um pensamento cosmoteológico que objetivava a construção de um Império,
fosse ele terreno ou divino. O Estado é compreendido como situado entre outros, em um
campo relacional de forças, não sendo por isso o Império considerado como algo possível,
21
mas devendo primar para estar em condições de concorrência com os demais Estados. A
reflexão, portanto, para o aperfeiçoamento das formulações elaboradas e aplicadas pela arte
de governar característica da razão de Estado, é que vai desembocar na formulação do
liberalismo, sendo o empreendimento desse movimento de crítica tornado possível pelas
condições objetivas e subjetivas instauradas pelo investimento racional de majoração do
Estado inaugurado já no século XVI.
Cabe assim descrever sinteticamente, e segundo Foucault, os dois principais
constructos teóricos que deram subsídios a essa reflexão política datada do início do século
XVIII, e que foram marcantes para a emergência da noção de população e seu gerenciamento,
a estatística e a economia política. Elas são produtoras e produtos das tecnologias da razão de
Estado vigente para promover sua potencialização e colocar-se em equilíbrio com os demais
Estados, sob os auspícios de duas estratégias: a tecnologia diplomático-militar e a polícia –
colocando-se a forma/prática mercantilista de governo
22
como eixo de ligação entre elas.
A tecnologia diplomático-militar serviu para constituir e manter o equilíbrio
europeu, a balança da Europa,
23
ou seja, promover a “limitação absoluta da força dos mais
fortes, equalização dos mais fortes, possibilidade de combinação dos mais fracos contra os
mais fortes.” (FOUCAULT, 2008a, p. 402), restringindo potencialmente a sobreposição de um
Estado sobre outro e ao mesmo tempo mantendo cada um sob um risco contínuo de
dominação. Para tanto se fez uso de três instrumentos: a guerra, mas no geral apenas a sua
possibilidade iminente; a diplomacia, dispositivo de relação entre os Estados; e o
estabelecimento de um dispositivo militar permanente, basicamente a profissionalização do
20
Ainda que deva respeitar algumas regras que lhe são exteriores (divinas, morais, naturais), sua gestão não é
calcada nelas, que cumprem apenas o papel de ser um impeditivo a essa nova diretriz de governo.
21
Em que pese os investimentos no século XIX de Napoleão Bonaparte nesse sentido, e os de Adolf Hitler no
século XX.
22
“O mercantilismo não é uma doutrina econômica, é muito mais, é algo bem diferente de uma doutrina
econômica. É certa organização da produção e dos circuitos comerciais de acordo com o princípio de que,
primeiro, o Estado deve se enriquecer, pela acumulação monetária; segundo, deve se fortalecer pelo crescimento
da população; terceiro, deve estar e se manter num estado de concorrência permanente com as potências
estrangeiras.” (FOUCAULT, 2008b, p. 8). É enfim “uma nova maneira de colocar os problemas do governo.”
(FOUCAULT, 2008a, p. 89).
23
Exemplo paradigmático desse empreendimento é o Tratado de Verstefália, “um tratado multilateral em que não
se liquida um litígio entre várias pessoas, mas em que a totalidade dos Estados, com exceção da Inglaterra, que
constituem esse novo conjunto que é a Europa, vai resolver seus problemas, vai resolver seu conflito”
(FOUCAULT, 2008a, p. 405).
22
homem de guerra, a aquisição e manutenção de equipamentos e o desenvolvimento de
uma reflexão tática.
24
Cada Estado devia, portanto, tentar inverter a relação de força em seu
favor, constituindo e mantendo um grande poderio militar, e ao mesmo tempo evitando o
desequilíbrio e a guerra por meio de negociações, mas também da busca constante de
informações sobre o desenvolvimento dessa tecnologia – assim como da tecnologia de polícia
– entre os demais.
Ao contrário da tecnologia diplomático-militar, que era limitada em sua ação de
fortalecimento do Estado, devido ao risco que seu desenvolvimento excessivo representava e
em respeito ao princípio de equilíbrio com os demais, a polícia por sua vez, foi uma técnica de
governo que se ocupou de fazer um bom uso das forças do Estado e manter a ordem interna,
não lhe sendo colocados impeditivos que seriam oriundos da lógica da concorrência. Seu
objetivo teria sido o de majorar as forças do Estado, utilizando como instrumento a
regulamentação
25
do mercado e da cidade, visando promover a ordenação do espaço e a
circulação de mercadorias e pessoas.
26
De modo geral a polícia se ocupa
da compra, da venda, da troca. É a regulamentação da maneira como se
pode e se deve pôr as coisas à venda, a que preço, como e em que momento.
É também a regulamentação dos produtos fabricados, é regulamentação das
artes mecânicas e, de um modo geral, dos artesanatos. Numa palavra, é todo
esse problema da troca, da circulação, da fabricação e do pôr em circulação
as mercadorias. Coexistência dos homens, circulação das mercadorias: seria
necessário complementar dizendo também circulação dos homens e das
mercadorias uns em relação aos outros. (FOUCAULT, 2008a, p. 451).
A polícia foi uma necessidade urbana e mercantil. Sua ação ao nível do detalhe, não
passando por um aparelho jurídico para se aplicar, visava regulamentar as atividades do
indivíduo em seu mais tênue grão, de modo a torná-las úteis para o Estado. Um de seus
objetivos essenciais foi zelar para que cada pessoa tivesse um ofício dentre aqueles que o
Estado necessita, mas também que fossem atendidos os princípios individuais de subsistência
e saúde, num empreendimento a administrar do modo mais eficiente possível os indivíduos
em sua multiplicidade. Identifica-se assim uma “espécie de grande sonho disciplinar que se
24
Sobre esse assunto consultar a obra Vigiar e punir (FOUCAULT, 2008).
25
Referindo-se ao Estado de polícia Foucault afirma: “Estamos num mundo do regulamento indefinido, do
regulamento permanente, do regulamento perpetuamente renovado, do regulamento cada vez mais detalhado,
mas estamos sempre no regulamento, estamos sempre nessa espécie de forma, apensar dos pesares jurídica, se
não judiciária que é a da lei ou, pelo menos, da lei em seu funcionamento móvel, permanente e detalhado, que é
o regulamento.” (FOUCAULT, 2008a, p. 458).
26
Exemplos de algumas das medidas de regulamentação do mercado são encontrados na descrição feita por
Foucault da polícia dos cereais, presente na aula de 18 de janeiro e 05 de abril de 1978. Quanto às medidas de
regulamentação da cidade, Foucault aborda o tema na aula de 11 de janeiro de 1978 (FOUCAULT, 2008a).
23
encontra por trás da polícia” (FOUCAULT, 2008a, p. 459), pois essa tem como objetivo
agir sobre cada indivíduo, de modo exaustivo, e no nível do detalhe, visando uma
individualização das multiplicidades existentes, adequando-as aos objetivos almejados. O
Estado de polícia é o mundo da disciplina generalizada. Data desse momento, o surgimento da
tecnologia de anátomo-políticas do corpo humano, que, como já descrito, se ocupou de gerir
o corpo individual.
Para que o Estado se organizasse dessa maneira, como um Estado de polícia, ou seja,
em torno de uma racionalidade que fosse inerente ao seu funcionamento, remetendo a sua
prosperidade a partir da distribuição de suas forças e de suas técnicas próprias, foi necessária
a decifração dessas forças que lhe eram constitutivas, de um conhecimento/saber sobre ele,
uma ciência de Estado.
27
Tal intento somente foi possível com o desenvolvimento da
estatística, ciência nascente nesse período, ainda muito utilizada contemporaneamente, com
finalidade de avaliação de acontecimentos e fatos sociais e cálculo de probabilidades,
previsões. Ela propiciou um conhecimento sobre o Estado e os que lhe eram concorrentes,
sendo o ponto de articulação entre a tecnologia diplomático-militar e a polícia, pois ambas
necessitavam desse tipo de conhecimento para que pudessem se desenvolver. A estatística é o
efeito e o que propiciou os subsídios para que a polícia surgisse enquanto tal, pois “a polícia,
como arte de desenvolver as forças, supõe que cada Estado identifique exatamente quais são
as suas possibilidades, as suas virtualidades. A estatística se torna necessária por causa da
polícia, mas também se torna possível por causa da polícia.” (FOUCAULT, 2008a, p. 424).
É o desenvolvimento da técnica estatística que evidencia a importância da
população como elemento fundamental do enriquecimento do Estado, devendo a polícia, pelo
uso de mecanismos disciplinares, proporcionar a multiplicação dessa grande quantidade de
pessoas que coexistem, e controlar o que ela faz e como vive para que sirva como força
produtiva. Regulamentando, entre outros, as migrações, a natalidade, as epidemias, a
educação, a escolha dos ofícios, a distribuição dos espaços na cidade, a produção de
artesanato e os meios para isso, propiciava um maior acúmulo de riquezas, devido a promoção
e administração de homens ativos e produtivos que se teria à disposição ao preço de um baixo
salário. A população é nesse momento uma coleção de súditos, que como tal estão submissos
à vontade do soberano e que têm importância enquanto são rentáveis.
27
Sob o nome de Ciência do Estado pode-se agrupar duas coisas: “por um lado, um conhecimento que tem por
objeto o Estado; não somente os recursos naturais de uma sociedade, nem o estado de sua população, mas
também o funcionamento geral de seu aparelho político. (...) por outro lado, a expressão significa também o
conjunto dos procedimentos pelos quais o Estado extraiu e acumulou conhecimentos para melhor assegurar seu
funcionamento.” (FOUCAULT, 2000 p. 81).
24
Nessa política mercantilista, a população é apenas um objeto da prática
governamental, não tendo adido ainda o caráter de “sujeito”, como em momento posterior. A
razão de Estado definiu de fato uma arte de governar em que a referência a
população estava implícita, mas, precisamente, ainda não havia entrado no
prisma reflexivo. O que vai acontecer, do início do século XVII a meados
do século XVIII, vai ser uma série de transformações graças às quais e
através das quais essa espécie de elemento central em toda a vida política,
em toda a reflexão política, e toda ciência política a partir do século XVIII,
essa noção de população vai ser elaborada (FOUCAULT, 2008a, p. 370).
Por “prisma reflexivo” Foucault se refere ao aparecimento de uma análise sobre a
prática da razão governamental em si mesma sendo, como já dito, a conjuntura própria da
razão de Estado que permite a inauguração desse processo de reflexividade sobre a arte de
governar, devido ao investimento no conhecimento dos meios para potencializar as forças do
Estado. A polícia nesse sentido, foi o elemento chave da entrada do Estado numa prática
refletida e consequentemente da descoberta da insuficiência do artificialismo da
governamentalidade vigente.
28
Essa reflexão sobre a razão de Estado, que, como se verá, lhe
acrescenta um diferente conteúdo sem modificar seus propósitos, vai dando contorno ao
liberalismo, nova forma de racionalidade, o que resulta em mutações na tecnologia de poder e
em uma formulação teórica nomeada como economia política.
Se a polícia tivera até então objetivos ilimitados, quase infinitos, devendo
regulamentar todos os âmbitos possíveis, todo e qualquer detalhe, a fim de promover a força
do Estado, a economia política por sua vez é uma reflexão sobre o modo como se organiza a
racionalidade governamental, sendo uma forma de sua autolimitação.
29
Impondo limites à
lógica interna da razão de Estado, a economia política se diferencia da teologia e do direito
que impunha limites a partir de princípios que eram externos ao Estado, como a exigência de
que se respeitassem os direitos de natureza prescritos por Deus, ou outro tipo de direito de
origem remota ou ainda estabelecido a partir do contrato com o soberano.
30
Seu ineditismo
28
Na aula de 18 de janeiro de 1978, Foucault apresenta como a problematização sobre a escassez alimentar
permite o questionamento sobre a efetividade dessa política de regulamentações diversas – entre outras, sobre a
estocagem, o preço dos cereais, o cultivo – centradas no acontecimento eventual de escassez. Esse
acontecimento eventual que as regulamentações tinham como alvo de prevenção, a se evitar a todo o custo, era
da escassez-flagelo, ou seja, fonte da revolta proveniente da disparada dos preços na cidade (FOUCAULT,
2008a).
29
É um conhecimento externo a “arte de governar”, formulado pela mudança de ênfase na análise das riquezas
para o reconhecimento da importância do sujeito-objeto da população. Apesar de referente a questões que são
próprias ao governo, é uma ciência que lhe é exterior, mas considerada como imprescindível a prática
governamental (FOUCAULT, 2008a).
30
Apesar de, posteriormente, a jurisdição se tornar um mecanismo privilegiado de controle, mas também de
reivindicação da população, tomada então como “sociedade civil”.
25
está na crítica que permitia exercer sobre o governo a respeito da adequação ou não de
suas ações aos objetivos a que se propõe, no caso, o enriquecimento do Estado.
Ao problematizar os efeitos positivos e negativos da prática governamental, a
economia política reivindica a formulação de um conhecimento científico sobre os
procedimentos próprios dessa racionalidade mercantil. Esse conhecimento se diferenciava dos
cálculos de força e diplomáticos, por ser calcado na apreensão da evidência, ou seja, da
“existência de fenômenos, de processos e de regularidades que se produzem necessariamente
em função de mecanismos inteligíveis” (FOUCAULT, 2008b, p. 21) que não podem ser
evitados e suspensos total e definitivamente.
31
A evidência é uma regra a ser respeitada pela
racionalidade governamental, pois oferecerá os subsídios para sua ação. O princípio essencial
que norteará o governo, desvelado por esse conhecimento científico, é o da existência de uma
naturalidade própria dos objetos da ação governamental e de sua prática que deve ser
explorada no exercício da governamentalidade.
Uma naturalidade das coisas mesmas que
precisa ser compreendida e fazer parte da ação governamental, ser sua correlata.
Com a descoberta dessa naturalidade, da existência de “um traçado relativamente
uniforme em função de princípios que são sempre válidos em todas as circunstâncias”
(FOUCAULT, 2008b, p. 15), vai se impor uma limitação geral à prática de governo. Trata-se
de um limite geral e interno à razão de Estado que se coloca em termos de adequação ou
inadequação. Sucesso ou fracasso que será, nos termos desse pensamento, conseqüência do
conhecimento ou desconhecimento da naturalidade dos objetos, das operações e de seus
efeitos – enfim, desse limite que a nova ratio se esmera em mais bem conhecer e que emerge
como ícone de verdade. Trata-se de um momento que “é marcado pela articulação, numa série
de práticas, de um certo tipo de discurso [sobre a naturalidade dos objetos, da prática
governamental e seus efeitos] que, de um lado, o constitui como um conjunto ligado por um
vínculo inteligível e, de outro lado, legisla e pode legislar sobre essas práticas em termos de
verdadeiro e falso.” (FOUCAULT, 2008b, p. 25). Julgamento, ou ainda delineamento desse
regime de verdade, que se dará a partir da reflexão sobre a evidência de dois fenômenos: a
regulação natural/espontânea dos preços no mercado – novo local de veridição –,
32
mas
também da evidência da naturalidade da população, da sua existência como espécie, como um
31
“Assim, por exemplo, é uma lei de natureza, explicarão os economistas, a de que a população, por exemplo, se
desloca para os salários mais elevados; é uma lei de natureza a de que uma tarifa aduaneira protetora dos altos
preços dos meios de subsistência acarreta fatalmente algo como a escassez alimentar.” (FOUCAULT, 2008b, p.
22).
32
De acordo com Foucault, “na medida em que através da troca, o mercado permite ligar a produção, a
necessidade, a oferta, a demanda, o valor, o preço, etc –, ele constitui nesse sentido um lugar de veridição, quero
dizer um lugar de verificabilidade/falsificabilidade para a prática governamental.” (FOUCAULT, 2008a, p. 45).
26
conjunto de fenômenos naturais e espontâneos. A regulamentação pautada em um cálculo
abstrato visando a majoração das forças do Estado perderá gradativamente importância frente
a esse novo princípio de racionalidade, a regulação.
Essa lógica da regulação e da emergência da evidência da naturalidade do mercado e
da população é exemplificada por Foucault a partir do fenômeno da escassez alimentar e da
prática da inoculação. Em oposição aos mercantilistas, que consideravam o problema da
escassez alimentar como flagelo,
33
os fisiocratas e teóricos da economia do século XVIII a
compreendem como um fenômeno natural, que não deve ser adjetivado como bom ou mau,
mas pensado a partir da própria “história do cereal”. Esta exigiria que se ampliasse a análise
para além dos limites do mercado – ou seja, do preço de venda do produto em função da
oferta e da procura –, alcançando a produção do cereal e seu custo, e tudo que pode acontecer
a ele devido às variações do meio natural. O que se propõe é um trabalho no próprio elemento
da realidade, em suas oscilações naturais, como a alta do preço, não agindo de modo a
impedi-la a toda medida, por meio de variadas regulamentações, mas, ao invés disso,
propiciar que um equilíbrio, uma estabilização do preço acontecesse “espontaneamente”, a
partir da supressão de medidas restritivas com relação à estocagem do cereal e sua
exportação. A “permissão” do aumento dos preços, mesmo em períodos de abundância do
cereal, acarretava a estabilização desses preços pois, como efeito natural de uma boa
remuneração dos produtores, há a extensão do cultivo, menor probabilidade de escassez
alimentar, e pela provável ainda maior abundância de cereal, também seria menor a
probabilidade de elevação de seus preços. Esta alta produziria naturalmente a sua baixa.
Realidade que se torna possível porque o comércio adquire liberdade – tanto dentro de um
país, como na relação com os demais – e o mercado assume uma escala mundial. Assim, se há
a escassez e elevação do preço do cereal, ela logo é suprimida pela injeção de cereais feitas
pelos países que possuem em grande quantidade e que buscam um melhor preço. Essa
liberdade do comércio, incentivada pelos fisiocratas, permite a estabilidade dos preços do
cereal, mas não o fim da escassez. A escassez será entendida como parte do processo de
regulação, ao invés de como flagelo; e não se terá em vista regulamentar o mercado, mas
deixar que ele regule, por meio de sua lógica (verdade), a prática governamental.
Outro fenômeno que bem exemplifica esse processo de regulação é a prática de
inoculação, que precedeu a de vacinação. Ela foi uma medida tomada a partir do século XVIII
33
“O flagelo, a escassez alimentar, tal como se concebia até então, era um fenômeno ao mesmo tempo individual
e coletivo: as pessoas passavam fome, populações inteiras passavam fome, a nação passava fome, é era preciso
isso, essa espécie de solidariedade imediata, de grande abrangência do acontecimento que constituía seu caráter
de flagelo.” (FOUCAULT, 2008a, p. 54).
27
para regular a varíola, doença endêmica, mas com correntes e intensos surtos
epidêmicos, que acometia grande quantidade de pessoas, sobretudo crianças, causando-lhes a
morte. Esta foi uma técnica que se mostrou eficaz para diminuição dos índices de
mortalidade. Preventiva e generalizável à população inteira, a inoculação foi revolucionária
para a medicina, ainda que baseada em procedimentos práticos e não em uma teoria. Assim
como no caso da escassez do cereal, a prática de inoculação procurava se apoiar no que se
entendia ser a natureza do fenômeno, para fazer com que as variáveis que lhe atingiam (a
doença e sua incidência de modo variado de acordo com idade, seqüelas, probabilidade de
morte, entre outras) provocassem a anulação da varíola. Para tanto, provocava-se nos
indivíduos a varíola por meio de sua inoculação em uma versão mais branda e que não
deveria ocasional a morte, fazendo que se prevenisse o indivíduo de futuros ataques da
doença. O conhecimento produzido pela vigilância das pessoas inoculadas, pela análise do
custo-benefício dessa prática – quantidade e risco de morte –, permitiu apreender as
eventualidades da doença, da contaminação e de sua prevenção. O que se identifica é que não
há uma resposta comum à inoculação, assim como a suscetibilidade à doença também se
mostra diferenciada, ficando o perigo de contágio variável e de acordo com a situação a que o
indivíduo é exposto ou ainda a sua faixa etária, por exemplo. Enfim, há uma multiplicidade de
fatores, mas concomitantemente há, mesmo dentro da eventualidade, uma categoria geral da
doença, um conjunto de eventos que, pensados como tal, permitem ver algo que é comum,
contínuo. Longe de tentar anular a doença em cada indivíduo, ou isola-los dos demais, a
prática de inoculação propicia a regulação do fenômeno com uma intervenção que abrange o
problema em sua generalidade, ou seja, ela não se ocupa de prevenir a morte de alguns
indivíduos que, inclusive, não sobreviverão a essa prática, mas sim de, no geral, diminuir sua
incidência.
É nesse quadro de reflexividade, de passagem de uma razão de Estado para uma
racionalidade liberal, ou ainda de uma tecnologia de regulamentação para de regulação, que a
população surge sob um olhar que a naturaliza e a apreende como “objeto técnico-político de
uma gestão e de um governo.” (FOUCAULT, 2008a, p. 92). A técnica da estatística permite
identifica-la como possuindo uma naturalidade que é específica das relações dos homens entre
si, de sua coabitação, mas também de sua condição biológica com suas próprias leis, sendo a
população compreendida como um conjunto de fenômenos naturais que devem ser regulados.
Foucault identifica três maneiras como essa naturalidade da população é formulada, tendo em
vista a produção de formas de gerenciamento dessa naturalidade: (1) naturalidade pela
regularidade de fenômenos que a compõem; (2) naturalidade dependente de variáveis do
28
meio; (3) naturalidade no desejo como “motor de ação” sob o qual todos vão agir.
1.3 NATURALIDADE DA POPULAÇÃO COMO REGULARIDADE E MULTIPLICIDADE
A naturalidade da população emerge na evidência de que a multiplicidade de
indivíduos tem como elemento comum fenômenos naturais, biológicos, concernentes à vida, à
de indivíduos que co-existem: natalidade, mortalidade, estado de saúde, incidência de doença,
degenerância, longevidade, forma de alimentação. Trata-se de
um conjunto de elementos que, de um lado, se inserem no regime geral dos
seres vivos e, de outro, apresentam uma superfície de contato para
transformações autoritárias, mas refletidas e calculadas. A dimensão pela
qual a população se insere entre outros seres vivos é a que vai aparecer e
será sancionada quando, pela primeira vez, se deixará de chamar os homens
de ‘gênero humano’ e começará a chamá-los de ‘espécie humana’. A partir
do momento que o gênero humano aparece como espécie, no campo de
determinação de todas as espécies vivas, pode-se então dizer que o homem
aparecerá em sua inserção biológica primeira (FOUCAULT, 2008a, p. 98).
Essa população, essa massa viva, é apreendida por fenômenos que evidenciam sua
naturalidade, que a caracterizam como espécie. Com esse acontecimento, de irrupção da
naturalidade da espécie dentro da artificialidade política, formularam-se novos saberes que
deram forma às tecnologias de poder de que se prescindiu para gerir a população, em que seus
fenômenos naturais acontecem, sejam eles desejáveis ou não. Trata-se do nascimento da
biopolítica, momento em que a população se torna alvo, emerge como elemento essencial para
a política. É dessa maneira que,
da idéia de que o Estado possui sua natureza e sua finalidade própria à idéia
do homem concebido como indivíduo vivo ou elemento de uma população em
relação com um meio, podemos acompanhar a intervenção crescente do
Estado na vida dos indivíduos, a importância crescente dos problemas da vida
para o poder político e o desenvolvimento de campos possíveis para as
ciências sociais e humanas, uma vez que elas consideram esses problemas do
comportamento individual no interior da população e as relações entre uma
população viva e seu meio. (FOUCAULT, 2006, p. 316).
Como dito por Foucault (2006), as ciências humanas e sociais são resultantes da
tematização do homem. Na formulação de novos saberes a respeito desse homem “vivo” e da
constituição de relações de poder em torno dele, encontra-se a pedagogia moderna, a
psicologia, a geografia, a sociologia, assim como também a medicina, a demografia, a
arquitetura, a psiquiatria, a biologia etc. Todas essas ciências são produto e produtoras de um
29
regime de verdade a respeito da população que é fundamentado e reforça esse princípio
de naturalidade, transformando e dando origem a novos discursos e práticas quanto ao sexo, a
raça, a saúde, a organização dos espaços, a segurança –todos exemplares sobre o modo como
a biopolítica opera sobre a vida da população, não sendo sem motivo que essas tecnologias
políticas tiveram sua gênese no século XVIII, e a partir dai, atravessaram o tempo e chegaram
a contemporaneidade, depois de passarem por diversas mudanças e inovações de suas
estratégias e técnicas, mas que continuam a ter como marco inicial e final a população, sua
vida (FOUCAULT, 1988, 1999, 2000, 2008a, 2008b).
Ciência paradigmática quanto à produção de conhecimento e tratamento da
população como naturalidade é a medicina. O acompanhamento do processo de nascimento da
medicina social, frente a necessidade eminente de elevar o nível de saúde da população –
visando num primeiro momento não o desenvolvimento da força de trabalho, mas estatal –,
deixa ver como a população delineou-se em alvo de observações e de controle biopolítico. A
data e local apontado por Foucault para o início da conformação da medicina como tal – antes
altamente individualista, que ganhava respaldo por curas espetaculares e pontuais e que
obtinha qualificação a partir da transmissão de receitas mais ou menos secretas –, fora o
limiar do século XVIII, no então insipiente Estado alemão. Foi nele, devido a condições
objetivas muito particulares,
34
que se inaugurou uma medicina de Estado – parte constituinte
da medicina social –, a partir do desenvolvimento de uma “polícia médica”, a qual englobava
um sistema complexo de observação e desenvolvimento de medidas de diminuição da
morbidade e natalidade; normalização da prática e do saber médico, a partir de uma
padronização de seus conhecimentos e modo de formação que deveria se dar pela clínica;
subordinação da prática médica a um poder administrativo superior por via do acúmulo, em
departamentos específicos, das informações que os médicos transmitem, os tratamentos
dispensados; o aparecimento do médico como administrador da saúde, como alguém a deter
responsabilidade/poder sobre uma região, sendo integrado assim a uma organização médica
estatal (FOUCAULT, 2000). Nesse processo, fucral importância teve o abandono da
concepção do hospital como instituição assistencialista, passando ele a assumir a função de
lugar da cura, de instrumento terapêutico. Essa função somente ganhou materialidade após o
34
O desenvolvimento originalmente na Alemanha de uma medicina de Estado é decorrente de sua configuração
como justaposição de pequenas unidades, de pseudo-estados que devido a “seus perpétuos conflitos e seus
afrontamentos, a balança de forças sempre desequilibradas e mutantes, fizeram como que eles sempre estivessem
obrigados a se medir uns aos outros, se comparar, imitar seus métodos e tentar mudar as relações de força.”
(FOUCAULT, 2000, p. 81). Junte-se a isso ainda a estagnação da economia da Alemanha no século XVII, que
acabou impulsionando o desenvolvimento de uma organização do Estado em sua forma moderna, ou seja,
norteado por uma ciência de Estado que objetivava a majoração de suas forças, por via do aperfeiçoamento de
suas técnicas e procedimentos internos.
30
hospital ter se transformado em local de inquérito, de aplicação de uma tecnologia
disciplinar e de produção de conhecimento sobre o indivíduo e sobre os fenômenos
patológicos comuns a toda a população, uma vez que as doenças, assim como as intervenções
e seus efeitos, podem nesse espaço ser medidos, controlados, mantidos sob permanente
vigilância, transformados em objeto de estatística e cálculo. É pela necessidade de ordenar
esse ambiente, muito freqüentado até então por delinqüentes, e pelo interesse militar na
eficiência no processo de cura, devido ao investimento realizado pelo treinamento dispensado
a cada indivíduo, que a estrutura hospitalar de enclausuramento é lapidada, reorganizada, de
modo a que esse espaço se conforme como complexo aparato de controle da população e de
produção e legitimação do saber-poder médico, seja pelo conhecimento testado e adquirido,
ou pelo aspecto ritual que suas práticas adquirem (FOUCAULT, 2000). Esse saber-poder, que
no espaço hospitalar encontra condições profícuas para se multiplicar e fortalecer, dará
respaldo posteriormente, por exemplo, a medidas de medicalização da família e campanhas de
higiene coletiva.
Já na França, e em momento subseqüente ao nascimento da medicina de Estado na
Alemanha, surge o que Foucault (2000) denominou de medicina urbana, propiciada pela
urgência premente que esse Estado vivia de urbanizar as cidades que cresciam em velocidade
vertiginosa e sem um ordenamento e fazendo conviver as pessoas amontoadas umas com as
outras e inclusive, não raros casos, com cadáveres que já não tinham espaço suficiente nos
locais a eles destinados. Como característica primordial da medicina urbana está a
organização do corpo urbano, a medicalização da cidade pela aplicação de métodos
aperfeiçoados do esquema político-médico da quarentena, ou seja, o exercício de uma
vigilância individual, a organização dos espaços, de modo a facilitar o registro,
esquadrinhamento, a inspeção, enfim, a realização de um olhar permanente e controlado.
Compõe esse quadro a organização das famílias em casas não compartilhadas com outras
famílias e a divisão de pais e filhos em cômodos diferenciados, se possível individuais,
visando promover a categorização da multidão e consequentemente facilitando seu controle
por meio do conhecimento quanto àqueles que estão saudáveis ou doentes. A medicina urbana
se caracteriza ainda pelo controle político-científico do meio, por atuar sobre os critérios e
práticas de salubridade a que os indivíduos estavam expostos ao agir sobre os elementos
necessários à vida comum, como água e ar. A aplicação de medidas de higiene pública
proporcionou a aproximação da medicina com ciências como a química – dando mais um
passo na direção do ganho de cientificidade para a área médica –, e permitiu moldar os
espaços da cidade, sua arquitetura, que então também moldava a população. Na construção
31
desse mosaico, grande importância possui o nascimento de um certo pânico urbano,
“característico desse cuidado, dessa inquietude político-sanitária que se forma à medida em
que se desenvolve o tecido urbano” (FOUCAULT, 2000, p. 87) e que ocasiona a participação
e reivindicação da população nessa tecnologia de controle.
A medicina social é marcada pela junção entre a medicina estatal e urbana, mas
também pela medicina da força de trabalho, desenvolvida na Inglaterra no segundo terço do
século XIX e que tem como objeto a ação sobre a parte pobre da população, que de elemento
que permitia a existência urbana por deter conhecimento ímpar sobre a cidade, até então
pouco organizada, passa a ser vista como perigo, já que se tornou uma força política capaz de
se revoltar e propensa a disseminar doenças entre as classes mais abastadas. Além disso, o
contingente pobre da população perde parte da utilidade no espaço urbano ao ser este tratado
como objeto de esquadrinhamento e, portanto suscetível de ser conhecido mais
detalhadamente. Os pobres são então alvos de medidas assistencialistas que, devido ao
desenvolvimento industrial, pretendiam majorar as forças da população, transformando-a em
mão-de-obra saudável, assim como também inofensiva a saúde da burguesia. Essa política
culmina com um serviço autoritário de controle médico da população, suscitando algumas
insurreições anti-médicas no final do século XIX e ainda hoje, ou seja, a busca por outras
maneiras de ser curado. Apesar disso,
essa fórmula da medicina social inglesa foi a que teve futuro, diferente da
medicina urbana e sobretudo da medicina de Estado. [...] a medicina social
inglesa, esta é sua originalidade, permitiu a realização de três sistemas
médicos superpostos e coexistentes; uma medicina assistencialista destinada
aos mais pobres, uma medicina administrativa encarregada de problemas
gerais como a vacinação, as epidemias, etc., e uma medicina privativa que
beneficiava quem tinha meios de pagá-la (FOUCAULT, 2000, p. 97).
Propicia assim um controle biopolítico bastante complexo e completo e que
permanece atual.
Assim como fizera a genealogia da medicina social, buscando apreender o seu
surgimento ao longo do século XVIII e XIX como uma tecnologia biopolítica, Foucault
também se dedicou ao modo como outras práticas e discursos, que no geral em algum
momento travaram um diálogo com a ciência médica – na maior parte dos casos como recurso
de legitimação quanto aos saberes gerados e poderes exercidos –, e também fomentaram a
noção de naturalidade da população e instituíram-se em torno dela. Exemplo caro ao filósofo
francês é o saber-poder sobre o sexo, instrumento-efeito da concomitante formulação de que
existe um funcionamento “natural” (entenda-se “normal”) do sexo, no qual se encontraria uma
32
espécie de “verdade” de cada um, do indivíduo, e de dispositivos de sexualidade que
pretensamente permitiriam descobrir essa natureza/verdade difícil de ser apreendida, ao
mesmo tempo em que igualmente constitui uma urdidura dessa concepção como verdadeira,
via proliferação de discursos, multiplicação de técnicas sobre o sexo e a eclosão de
sexualidades diversas.
Sobre a colocação do sexo em discurso, ela se deu primeiramente pela prática da
confissão da pastoral cristã no século XVII. Passado por um crivo da palavra, o sexo não
deveria ser mencionado sem prudência, mas sua confissão detalhada é exigida, a partir do
século seguinte, a todo bom cristão que prescinde, a bem de um exame de si mesmo, dizer de
si a outrem, descobrir seu segredo individual ao transformar em meticuloso discurso tudo o
que possa se relacionar ao jogo dos prazeres. Um modo encontrado pela pastoral cristã para
produzir e disseminar um conhecimento sobre os prazeres e consequentemente para
reorientar, modificar e até mesmo intensificar esses prazeres – seja pelo exercício do poder
que questiona, seja pela tentativa conseqüente de escapar a esse poder. Ao invés da total
censura sobre o sexo, o investimento é no fazer proliferar mais e mais discursos sobre ele,
sendo disseminados os procedimentos de confissão, a partir do protestantismo, da Contra-
Reforma, do desenvolvimento de um interesse político e econômico – sobretudo de majoração
ordenada das forças coletivas e individuais –, estendendo os domínios da confissão para a
pedagogia, a medicina, a psiquiatria, conhecimentos que passaram então a diversificar suas
formas (interrogatórios, consultas, narrativas), bem como as motivações e efeitos dela
esperados. A confissão “perdeu sua situação ritual e exclusiva: difundiu-se; foi utilizada em
toda uma série de relações: crianças e pais, alunos e pedagogos, doentes e psiquiatras,
delinqüentes e peritos” (FOUCAULT, 1988, p. 72), objetivando fazer dessas relações e dos
discursos ai produzidos, objeto de análise, cálculo, classificação, especificação, enfim uma
racionalização sobre o/do sexo.
Essa produção de discursividades quanto ao sexo teve como contraface imprescindível
para sua organização, o delineamento de condições estritas quanto ao seu pronunciamento –
por exemplo, do uso de linguajar determinado –, e desenvolvimento de certos silêncios a seu
respeito. Ao redor do sexo formulou-se toda uma aura misteriosa que o adjetivava como
segredo a ser constantemente buscado, mas que se mostra inescrutável – exigência para ser
mantido como segredo. Esse mecanismo foi responsável pela promoção artificial de toda uma
“vontade de saber” o sexo, a qual está no cerne das suscitações para que ele fosse
minuciosamente conhecido, sendo esse elemento, de dito e não-dito, de esclarecimento e
recesso, essencial à composição de uma economia específica sobre ele. Essa vontade de saber
33
é pautada na existência de uma verdade intrínseca no sexo, uma verdade que seria do
próprio sujeito, de sua essência, determinante de sua identidade, marca de sua singularidade.
O encontro dessa verdade é uma exigência da confissão. A confidência é fundamental nesse
jogo da verdade e do sexo, pois a constituição da verdade enquanto tal só é possível na
presença de outro, daquele que interroga, pois exerce um julgamento sobre o que fala. O
efeito da “verdade” pronunciada é lançado sobre esse último que, ao dizer uma verdade de si,
se constitui como assujeitado ao outro que ouve e legitima o que é dito, e como sujeito a essa
procura pela inteligibilidade individual no sexo. Desiderato fundamental dessa conjuntura é
assim a promoção do desejo do sexo, correlato à vontade de saber e aos dispositivos de
sexualidade.
Essa vontade de saber o sexo, sobre seu suposto segredo, foi fundamental para que ele
pudesse ser gerido e regulado de maneira que funcionasse segundo uma norma, um ideal,
sendo a conduta sexual da população convertida em alvo de intervenção e observação: “a taxa
de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a
freqüência das relações sexuais, a maneira de torná-las fecundas ou estéreis, o efeito do
celibato ou das interdições, a incidência das práticas contraceptivas” (FOUCAULT, 1988, p.
32), foram todos objetos de investimento na população pela biopolítica. Colocar o sexo em
discurso, suscitar um desejo sobre ele, foi a premissa para o exercício de um controle sobre a
população ao configurar conhecimentos e instrumentos de domínio que foram/são
fundamentais, assim como para que igualmente o próprio indivíduo adotasse uma atitude de
controle de si, de autovigilância de seus atos e pensamentos.
Nota-se então que o sexo não foi incessantemente reprimido por uma submissão ao
silenciamento, como se fez crer; da mesma maneira como também não houve uma restrição,
uma redução do sexo, da sexualidade às alianças conjugais legítimas. Ao invés de limitar ao
casal monogâmico a produção de discurso e de investimentos de ação, as sexualidades
periféricas – das crianças, dos loucos, dos criminosos – é que serão mais intensamente
interrogadas, uma vez entendido que a monogamia heterossexual já está minimamente
circunscrita ao que seria/deveria ser uma sexualidade regular, adequada, higiênica e normal.
No afã de descobrir as novas fontes de prazeres, e meios de obter um controle muito mais
amplo sobre os corpos e as condutas, são gestados, a partir do século XIX, dispositivos de
saturação sexual, ou seja,
uma rede de prazeres-poderes articulados segundo múltiplos pontos e com
relações transformáveis. A separação entre adultos e crianças, a polaridade
estabelecida entre o quarto dos pais e o das crianças [...], a segregação
34
relativa entre meninos e meninas, as regras estritas sobre cuidados com os bebês (amamentação
materna, higiene), a atenção concentrada na sexualidade infantil, os supostos
perigos da masturbação, a importância atribuída à puberdade, os métodos de
vigilância sugeridos aos pais, as exortações, os segredos, os medos e a
presença ao mesmo tempo valorizada e temida dos serviçais [...]
(FOUCAULT, 1988, p. 54).
Todas essas medidas, normalmente relegadas à célula familiar, vão formar uma rede
complexa com as organizações espaciais, as hierarquias, os sistemas de fiscalização das
instituições escolares e psiquiátricas. Uma rede que estabelece um jogo de prazeres e poderes
e configuram uma alta saturação sexual. A conformação perante à solicitação e implantação
de sexualidades múltiplas, periféricas, deixa ver que a sexualidade está longe, portanto, de se
restringir àquela do casal monogâmico, sendo inclusive suscitada por instituições, métodos e
estratégias múltiplas, resultando na sexualidade do lactente, do invertido, do lar, da escola, da
relação médico-paciente, pedagogo-aluno, entre outras.
A organização dessa conjuntura que não é majoritariamente de repressão, mas de
proliferação, de multiplicação dos prazeres e dos modos de apreendê-los, foi efeito-
instrumento de uma distinção entre leis naturais de matrimonialidade e regras imanentes da
sexualidade, ou ainda da distinção entre infração e perversão. As condutas sexuais desviantes,
o despropósito sexual, a partir do final do século XVIII, deixam de ser incondicionalmente
enquadrados como “contra a lei”, sendo diferenciadas as transgressões à legislação ou à moral
da família e do casamento – seduzir uma religiosa, enganar a mulher, casar com parente
próximo –, das que feriam o que seria a regularidade de um funcionamento natural do sexo –
praticar sodomia ou sadismo, violar cadáveres.
Durante o século XIX a lei da aliança cede espaço à ordem dos desejos, a
configuração de uma forma de operação do poder que não interdita, não fixa fronteiras para a
sexualidade, mas provoca suas diversas formas, conformando linhas de penetração sobre a
sexualidade e os indivíduos que são cada vez mais amplas, pois constantemente inovadas,
reformuladas, pormenorizadas, divididas, de tal maneira que sempre mais indivíduos possam
ser apreendidos, frente a uma suspeita geral de um perigo iminente, de desvios que possam
estar à espreita, presentes nos mais diversos âmbitos sociais, fazendo necessária uma análise
minuciosa e interminável. Uma sexualidade desviante pode ser descoberta na conduta e nos
corpos, já que ela lhes é determinante, é seu princípio insidioso. Ela traduz aquilo que o
indivíduo é, seja por nascença ou pelos desvios ocorridos na história de cada um. Dessa
maneira é que os comportamentos ditos “antinaturais” foram materializados nos corpos dos
homens, sendo o crescimento das perversões “um produto real da interferência de um tipo de
35
poder sobre os corpos e seus prazeres. [...] É através do isolamento, da intensificação e
da consolidação das sexualidades periféricas que as relações de poder com o sexo e o prazer
se ramificam se multiplicam, medem o corpo e penetram nas condutas” (FOUCAULT, 1988,
p. 56). Isso tudo dá forma ao que seria uma sexualidade pervertida.
A implantação de perversões múltiplas no corpo social encontra-se no cerne dessa
mutação de um mecanismo de controle calcado na onipresença da lei, para um regido
largamente pelos dispositivos de sexualidade – mas que todavia não exclui os mecanismos de
controle anterior. Nessa transfiguração, a medicina conquista um lugar de cada vez maior
destaque, em detrimento da supremacia que possuía até então a justiça para tratar dos desvios
relacionados ao sexo. Não se sabe se isso ocorreria a partir da posição de produto ou de efeito
da distinção entre leis naturais de matrimonialidade ou regras imanentes da sexualidade, mas
com certeza reforçando essa diferença, tanto ao oferecer explicações “científicas” sobre o
perverso, desse enquanto resultante dos danos ocorridos à regularidade de um funcionamento
natural da sexualidade, detentor de uma natureza desviada, assim como também pela
configuração de novos meios de exercício do poder e dos prazeres. A medicina “inventou toda
uma patologia orgânica, funcional ou mental, originárias das práticas sexuais ‘incompletas’;
classificou com desvelo todas as formas de prazeres anexos; integrou-os ao ‘desenvolvimento’
e às ‘perturbações’ do instinto; empreendeu a gestão de todos eles.” (FOUCAULT, 1988, p.
48).
Dentre outros motivos para isso está a incorporação em seus domínios da confissão e
a cientifização dessa prática – medida possível somente porque não se tem mais em vista a
produção de um discurso de verdade sobre a salvação e o pecado, mas sobre o corpo e a vida.
A escuta clínica é decorrente e propulsora da incursão da confissão no campo científico de
observação, permitindo um novo regime de decifração de sinais e sintomas, por via da
combinação estabelecida com a confissão e a prática de exame. A validação científica passa a
prescindir de uma relação particular entre médico-paciente, em que o paciente
descreve/confessa/relata e o médico ouve/pondera/decide, pois é princípio basilar que a
verdade acerca do doente, inclusive aquela que se esconde dele mesmo, somente é revelada de
modo completo pela interpretação daquele que escuta – o médico, instituído portanto, como
“dono” da verdade. Não obstante, as operações terapêuticas tornam-se dependentes dessa
verdade interpretada, produzida na relação médico-paciente, sendo as possibilidades de cura
determinadas por essa “escuta clínica” que combina confissão e exame – algo possível
justamente porque se tem como fundamento a causalidade da conduta sexual para com as
doenças, os distúrbios e as degenerâncias diversas.
36
A sciencia sexualis vai compondo, ao longo do século XIX, um complexo
dispositivo de produção de verdades sobre o sexo, a partir de uma vontade de saber sobre ele;
mas, revela também a existência de uma vontade de não-saber. Ela é identificável, por
exemplo, no enfoque dado ao que é desviante, extravagante, enfim, ao que escapa ao que seria
o sexo/a sexualidade “convencional”, e nos investimentos para que se escamoteasse a
(pretensa) verdade sobre o sexo – sendo isso inclusive, tal como dito a respeito da confissão, a
mola propulsora da procura pela produção da verdade, da constituição do sexo como objeto de
verdade e desejo. Essa escusa é proveniente de sua fidelidade aos princípios da moral, que
prescindia que o discurso científico sobre o sexo fosse permeado por credulidades e
ofuscamentos. A preponderância dos interesses morais, econômicos e políticos é evidente no
próprio descompasso existente nesse período entre a biologia da reprodução, pautada em uma
normatividade científica, e a medicina da sexualidade, regida por hipóteses variadas, servindo
a primeira apenas para envernizar, de maneira muito forçosa e até mesmo deturpada, os
imperativos sociais.
35
Foi a pretexto de dizer a verdade, porém, que a medicina da sexualidade “em todo
lado provocava medos; atribuía às menores oscilações da sexualidade uma dinastia imaginária
de males fadados a repercutirem sobre as gerações; [...] no final dos prazeres insólitos colocou
nada menos do que a morte: a dos indivíduos, a das gerações, a da espécie.” (FOUCAULT,
1988, p. 62). Dessa maneira foi estabelecendo, com respaldo científico, uma imbricada trama
entre sexualidade e destino biológico da espécie, justificando e fundamentando os “racismos”
como uma proposição verdadeira, autorizando a classificação dos indivíduos como normais
ou desviantes, ou, por outra, inofensivos ou perigosos à vida da população, por essa estar
vulnerável à transmissão para gerações futuras das doenças que atingiam o sexo de cada um.
A análise da hereditariedade, legitimando uma relação de causa e efeito, era o
alicerce sobre o qual se estruturava a teoria da “degenerância” que “explicava de que maneira
uma hereditariedade carregada de doenças diversas – orgânicas, funcionais ou psíquicas,
pouco importa – produzia, no final das contas, um perverso sexual [...]: mas explicava
também, de que modo uma perversão sexual induzia um esgotamento da descendência –
raquitismo dos filhos, esterilidade das gerações futuras.” (FOUCAULT, 1988, p. 129-130).
35
Thomas Laqueur (2001) demonstra de modo detalhado como a biologia da reprodução serviu nesse período
como artifício para legitimar a diferença sexual, fazendo uso para isso dos fatos da reprodução, mesmo que nem
sempre as “descobertas” científicas dessem embasamento concreto para isso. De acordo com o Autor, o que
aconteceu foi que “novos imperativos culturais de interpretação simplesmente apresentaram um campo maior
para se construir, ou não, uma biologia da diferença sexual.” (LAQUEUR, 2001, p. 209). As conclusões obtidas
pelos biólogos, cientistas e médicos não eram decorrentes do avanço científico, mesmo porque, como demonstra
Laqueur (2001), a evidência experimental não raras vezes era negligenciada.
37
O sexo e a fecundidade passam a ser administrados mais intensamente, via um
aumento da vigilância das condutas, do modo como cada qual exerce suas práticas, processo
possibilitado pelo esquadrinhamento dos espaços, os exames médicos intermináveis, as
campanhas de higienismo. Basicamente foram formadas “quatro grandes linhas de ataque”: a
sexualização das crianças, a histerização das mulheres, o controle da natalidade e a
psiquiatrização das perversões.
Cada uma delas foi uma maneira de compor as técnicas disciplinares com os
procedimentos reguladores. As duas primeiras se apoiaram em exigências de
regulação – sobre toda uma temática da espécie, da descendência, da saúde
coletiva – para obter efeitos ao nível da disciplina; a sexualização das
crianças foi feita sob a forma de uma campanha pela saúde da raça (a
sexualidade precoce foi apresentada, desde o século XVIII até o fim do
século XIX, como ameaça epidêmica que corre o risco de comprometer não
somente a saúde futura dos adultos, mas o futuro da sociedade e de toda a
espécie); a histerização das mulheres, que levou a uma medicalização
minuciosa de seus corpos, de seu sexo, fez-se em nome da responsabilidade
que elas teriam no que diz respeito à saúde de seus filhos, à solidez da
instituição familiar e à salvação da sociedade. Foi a relação inversa que
ocorreu quanto ao controle da natalidade e à psiquiatrização das perversões:
neste caso, a intervenção era de natureza reguladora, mas devia apoiar-se na
exigência de disciplinas e adestramentos individuais (FOUCAULT, 1988,
p.159-160).
36
A constituição do Estado moderno se deu ao passo da governamentalização dessas
práticas, sendo colocado aos seus auspícios a tarefa de pelo menos facilitar que essas ações –
seja pela medicina, pela pedagogia, ou psiquiatria – atingissem a maior parte da população, já
que isso era interessante para majoração de suas forças.
Frente a todo esse quadro de importância da população para a economia e da
construção de sua naturalidade como objeto de conhecimento e intervenção por excelência,
uma das principais tarefas estatais no século XIX passa a ser a defesa do patrimônio biológico
da população, uma posição que está intimamente ligada a uma das contrapartidas
desenvolvidas com relação ao discurso da “luta de raças”.
37
Essa análise histórica de divisão
binária da sociedade e a compreensão da existência de uma luta incessante entre duas raças
inimigas fundamentaram um historicismo político em que guerra e política estavam
36
Sobre o processo de histerização das mulheres, ver Thomas Laqueur (2001). A respeito dos controles de
natalidade e das campanhas de higiene no Brasil, como exemplo, consultar, entre outros, Muricy (1988). Sobre a
importância da Educação Física (nos séculos XIX e XX) como mecanismo de controle dos corpos e das
condutas, ver Carmen Soares (1994).
37
Nascida em diferentes épocas e lugares (Inglaterra no século XVII e França século XVIII) e contado com
distintas abordagens e principalmente distintas personagens a ocupar a posição de invasores e invadidos, desde
os primórdios da humanidade, na forma de uma raça inimiga (FOUCAULT, 1999).
38
intimamente imbricadas, e em que o Estado, em sua forma ainda insipiente, era
instrumento de contraposição de uma raça contra a outra.
Tal perspectiva, nos fins do século XVIII, se deparou com uma contra-história – um
discurso revolucionário desenvolvido a partir do pensamento burguês de primazia de uma
classe universal, que, com a emergência da noção de conflito civil, de que a Revolução
Francesa fora o ponto culminante – e sucumbira. É concomitantemente a formulação dessa
contra-história de tipo revolucionário, de uma luta de classes, e colocando-se contra ela, a
formulação que será justamente aquela que colocara sob caução do Estado o destino biológico
da sociedade e que teve como desiderato um “racismo de Estado” (FOUCAULT, 1999).
“Retomando, reciclando a forma, o alvo e a própria função do discurso sobre a luta das raças,
mas deturpando-os, esse racismo se caracterizará pelo fato de que o tema da guerra histórica –
com suas batalhas, suas invasões, suas pilhagens, suas vitórias e suas derrotas – será
substituído pelo tema biológico, pós-evolucionista, da luta pela vida.” (FOUCAULT, 1999, p.
94). Coube ao Estado, a partir de então, purificar a raça (agora entendida como existente no
singular), adequá-la a uma normalidade que é associada ao que é superior, e que precisa se
contrapor, não a outras raças, mas aos estrangeiros, transviados que se infiltraram no interior
dessa sociedade.
Esse racismo de Estado foi elemento de suma importância para a conformação de
uma racionalidade que autorizasse à sensibilidade vigente o exercício de um controle
biopolítico da população. Estabelecendo uma urdidura com os dispositivos de sexualidade, o
poder medical, a organização dos espaços arquitetônicos, com os conhecimentos advindos da
biologia, um discurso de manutenção das raças mais adaptadas, de diferenciação das espécies,
de sobrevivência do mais forte, reverbera na apreensão da população como naturalidade e
como suscetível de uma regulação a partir da evolução e seleção natural dos mais aptos,
pretensamente descendentes de uma prole saudável, pura. Largo é o investimento de
prevenção para se evitar a degenerância – tal como descrito a respeito da questão da
sexualidade –, ocupando as medidas higienistas, já pautadas em teorias de eugenismos, e os
conhecimentos do âmbito da medicina, um lugar de valor. Faz parte da composição desse
quadro a noção de anormalidade – a qual vem acompanhada das de medo e perigo –, de que é
preciso destacar a contribuição dada pela ciência psiquiátrica, responsável pelas relações que
vieram a se estabelecer entre loucura e criminalidade.
A normalização do corpo social, o empenho na purificação permanente, vai se dar,
assim, em nome da defesa da sociedade. Para tanto, como dito, prescinde da produção
permanente de toda uma noção de perigo, ou ainda, de uma cultura política, uma educação do
39
perigo para os riscos oferecidos pelas condutas desviantes, assim como igualmente para
situações diversas e cotidianas, constantemente vividas pelos indivíduos. Data do início do
século XIX,
o aparecimento da literatura policial, e do interesse jornalístico pelo crime
(...), todas as campanhas relativas à doença e à higiene (...), tudo o que
acontece também em torno da sexualidade e do medo da degeneração:
degeneração do indivíduo, da família, da raça, da espécie humana. Enfim,
por toda parte vocês vêem esse incentivo ao medo do perigo que é de certo
modo a condição, o correlato psicológico e cultural interno do liberalismo.
(FOUCAULT, 2008b, p. 90-1).
Para manipular interesses e garantir que se esteja o menos possível exposto ao
perigo, há concomitantemente a promoção de mecanismos de segurança e o gerenciamento do
perigo, por meio do incitamento não exatamente para viver a vida perigosamente, mas
experimentar essa vida, assim como o desviante, como se fosse portadora de perigos, sendo
preciso então continuamente precaver-se, assegurar-se, contra ameaças que parecem se
multiplicar a todo instante e que são incutidos silenciosamente no seio da sociedade –
sobretudo porque aparentam fazer parte do que seria próprio, natural, intrínseco à população.
Esses mecanismos de segurança têm por função o controle social e a modificação do
destino biológico da espécie por via da garantia que os processos naturais – não somente da
população, mas também econômicos, como já abordado anteriormente – e as regulações que
lhe são inerentes possam acontecer, como fora com relação a varíola, como se acreditava ser a
respeito de uma seleção natural dos mais aptos, do aumento ou diminuição da taxa de
natalidade de acordo com as disposições ambientais, da produção de discursividades acerca
do perverso, entre outras. Acreditava-se que cabia ao Estado a regulação da população, já que
essa propiciava uma seguridade aos perigos naturais intrínsecos aos fenômenos próprios da
coexistência de seres viventes e às ações arbitrárias e desastradas, como as regulamentações.
Ao invés de visar o alcance de um modelo ótimo ideal, apoiar-se na realidade desses
processos, fazendo funcionar em relação a ele outros elementos do real, de modo que, se
necessário, alguns desses fenômenos se anulassem. Fundamental instrumento para esse fim,
foi o incitamento ao exercício de constate vigilância dos corpos e das condutas, como
ocorrido, por exemplo, a respeito das práticas de onanismo entre os infantes, de que suscitou
um controle não somente daqueles, mas também das famílias, uma nova organização dos
espaços da casa, mas também da escola, produção de conhecimento por parte da medicina,
aplicação de medidas de higiene etc.
40
É característico assim desses mecanismos para o alcance de uma normalidade, a
constante ampliação de circuitos de ação, agregando elementos cada vez mais amplos, assim
como também a não valoração como bons ou ruins dos detalhes que a princípio são
considerados impertinentes, mas a atenção a sua inevitabilidade, como processos naturais, em
benefício da população como um todo; a apreensão de como as coisas vão se produzir em sua
realidade efetiva ao invés de promover ações impositivas e restritivas; a busca por maximizar
os elementos positivos e minimizar os riscos – tendo como princípio que eles nunca serão
suprimidos, o trabalho com as probabilidades que levam em conta o que pode acontecer ao ser
vivente, sendo uma das preocupações fundamentais os riscos em torno da degenerância da
espécie.
Os dispositivos de segurança apresentam-se assim como uma economia de poder
distinta dos mecanismos disciplinares. Nessa proposição de segurança, a normalidade é
composta da média da população, o que torna evidente a existência de desvios – que podem
ser mais ou menos aceitáveis. Certo nível de mortalidade, ou acometimento de doenças, tal
como a técnica estatística permitiu identificar, compõe a realidade da população, compõe a
sua normalidade, sua naturalidade. Os dispositivos de segurança se ocupam de uma operação
de normalização, em “fazer essas diferentes distribuições de normalidade funcionarem umas
em relação às outras e em fazer de sorte que as mais desfavoráveis sejam trazidas às que são
mais favoráveis.” (FOUCAULT, 2008a, p. 82-3). A norma que se vislumbra alcançar é
formulada a partir da realidade e não de uma idealização abstrata – normalização assim, em
detrimento a uma normação, mecanismo de controle disciplinar.
No entanto, essa modulação de segurança é um sistema de controle próprio da
economia liberal, mas que também se fez presente em momentos anteriores, assim como o
mecanismo legal jurídico e disciplinar são operantes nessa racionalidade governamental
específica. O que acontece é que em cada período a ênfase no mecanismo se altera e as
técnicas se aperfeiçoam, sendo esse um dos motivos que não isentaram o século XX de se
deparar com situações em que o poder soberano, de “fazer morrer”, muito em voga até o
século XVI, funcionasse em meio a tecnologia de poder biopolítico, que se caracteriza
fundamentalmente por “fazer viver” (FOUCAULT, 1999). O racismo de Estado, nesse
sentido, legitimou o exercício do poder soberano e de uma tanatopolítica em nome da
proteção da vida biológica que merecia ser preservada. Ele proporcionou à instituição estatal
potencializar e gerir a vida, mas também tira-la, frente à noção da existência de raças
biologicamente inferiores que, ao oferecerem risco de degeneração as superiores, deveriam
ser dizimadas. Assim, “quando queria fazer a guerra, como poderia articular tanto a vontade
41
de destruir o adversário quanto o risco que assumia de matar aqueles mesmos cuja a vida
ele devia, por definição, proteger, organizar, multiplicar?” (FOUCAULT, 1999, p. 308). É essa
a “saída” oferecida pelo racismo moderno, que assegura a função de morte na economia do
biopoder.
O nazismo desenvolveu até o paroxismo essa relação entre biopolítica e
tanatopolítica. Reativando a preocupação mítica em proteger a pureza do sangue e fazer
triunfar a raça, acentuou as medidas de seguridade, de regulação, e concedeu a toda uma série
de indivíduos (AS, SS...) o poder de vida e de morte, até então reservado ao Estado, mas ao
mesmo também expôs a própria “raça alemã” ao perigo absoluto e universal da morte. “O
risco de morrer, a exposição à destruição total, é um dos princípios inseridos entre os deveres
fundamentais da obediência nazista, e entre os objetivos essenciais da política. É preciso que
se chegue a um ponto tal que a população inteira seja exposta à morte” (FOUCAULT, 1999, p.
10), a bem de regenerar a própria raça.
É preciso salientar, que por tirar a vida Foucault não entende “simplesmente o
assassínio direto, mas também tudo o que pode ser assassínio indireto: o fato de expor à
morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a
expulsão, a rejeição etc” (FOUCAULT, 1999, p. 306). Nesse sentido, o racismo, ou ainda o
princípio de causar a morte (real ou simbólica) em função de uma condição biológica que não
é adequada, pode ser considerado, fazendo uma interpretação e ampliação dos escritos
foucaultianos, como um mecanismo de normalização que, em alguma medida, possui sua
atualidade, sobretudo se entendermos que a própria noção de raça é passível de ser
considerada uma idéia genérica para representar a noção de identidade frente a uma unidade
social – haja visto que a própria “luta entre raças” se deu entre grupos com línguas, tradições
e leis distintas, e não exatamente a partir de uma diferença biológica, mas ainda sim diferença,
que por certo é cambiante, de acordo com as situações históricas, políticas e econômicas
particulares. Nesse sentido, a condição biológica é passível de entendimento como uma (e
contemporânea) dentre as determinações históricas que já existiram para a representação do
anormal, contraposto necessário à constituição da noção de “eu”, de unidade.
Como se vê, a “descoberta” da naturalidade da população permitiu seu
gerenciamento pelo fomento de condições para que seus fenômenos fossem regulados a partir
deles mesmos – há o exemplo da varíola, das variações na taxa de natalidade, do controle
sobre o meio feitas pela higiene pública, da crença de uma seleção natural do mais apto, das
medidas para anular o anonismo, entre outros –, servindo essa regulação natural como
limitador interno da razão governamental, a fronteira estabelecida pela racionalidade política
42
que o século XVIII viu nascer.
1.4 NATURALIDADE DA POPULAÇÃO E AS VARIÁVEIS DO MEIO
A população se apresenta como naturalidade que é totalmente nova e que se
constitui, com relação a sua dependência com toda uma série de variáveis que são indefinidas,
abertas a elementos que, fluídos, se deslocam, se modificam pela própria relação com a
população – clima, impostos, imperativos morais, comércio, hábitos, meios de subsistência,
valores religiosos etc. Essa dependência torna-a inapreensível ao modelo de ação que era
típico do soberano. Não se trata mais de obediência ou sua recusa, pois a população emerge
como um fenômeno da natureza que não pode ser mudado como que por um decreto: ela é
“uma multiplicidade de indivíduos que são e que só existem profunda, essencial, e
biologicamente ligados à materialidade dentro da qual existem” (FOUCAULT, 2008a, p. 28),
prescindindo de ações racionalizadas, calculadas, e que atuam de modo indireto sobre ela:
fluxos da moeda no país, importações, exportações, produção, campanhas de moralização,
medidas de higiene pública, educação, medidas de convencimento, modificação do espaço
urbano – tendo em conta o que pode pretensamente acontecer e visando otimizar um estado de
vida – “fazer viver” (FOUCAULT, 1999), de uma maneira que seja exata para as necessidades
do Estado, pois uma multiplicação desenfreada da população já não é mais tão interessante,
tal como vigente no Estado de polícia, que vai sendo gradativamente deixado para trás.
Essa naturalidade da população não a torna inacessível, mas sim o campo de
intervenção pelo qual vai se procurar atingi-la é que é modificado. Não será a lei, mas o meio,
espaço em que se desenrolam os eventos provenientes das ações que se exercem de fora sobre
um ser vivo por um conjunto de dados naturais e artificiais, mas também espaço que resulta,
por um lado, das intervenções políticas e econômicas sobre a relação entre espécie e meio, e,
por outro, dos acontecimentos produzidos pela própria população. Sendo assim, “o que vai se
procurar atingir por esse meio é precisamente o ponto em que uma série de acontecimentos,
que esses indivíduos, populações e grupos produzem, interfere com acontecimentos de tipo
quase natural que se produzem ao redor deles.” (FOUCAULT, 2008a, p. 28).
38
Essa abertura, o vislumbre de controle e modificação dos processos da vida, de
38
A referência aos acontecimentos que se produzem ao redor da população como “quase naturais” se deve ao
fato de que as ações de governo se dão como se fossem uma natureza, mas também porque o próprio meio não é
a natureza em si, mas um espaço em que se combina natureza e artifício, de circulação de efeitos e causas – por
isso o meio é citado por Foucault como histórico-natural (FOUCAULT, 2008a).
43
exercer um domínio calculado sobre ela, por via da manipulação das variáveis do meio,
marca o “limiar da modernidade biológica” (FOUCAULT, 1988, p. 156), um novo modo de
relação entre história e vida, em que esta última, já não sendo mais fustigada tão intensamente
pela morte, adentra a ordem do saber e do poder. Biológico e histórico se ligam em uma
complexidade crescente, e “o homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma
espécie viva num mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida,
saúde individual e coletiva, forças que podem se modificar, e um espaço que se pode reparti-
las de um modo ótimo. Pela primeira vez na história, sem dúvida, o biológico reflete-se no
político” (FOUCAULT, 1988, p. 155).
39
O efeito histórico disso, do desenvolvimento das
tecnologias de poder centradas na vida, é o nascimento de uma sociedade normalizadora,
passível de inteligibilidade pela realização de uma “‘história dos corpos’ e da maneira como
se investiu sobre o que neles há de mais material, de mais vivo” (FOUCAULT, 1988, p. 165).
A ação assim sobre a vida perpassa o corpo – talvez compreendido como parte do meio –, em
um jogo que mistura as necessidades econômicas e a inerente capacidade da vida de contornar
as investidas de controle que se realizam sobre ela. A biopolítica é o espaço em que se
exercem os mecanismos de domínio da vida, e o modo como essa lhes escapa continuamente.
Se
o que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, entendida como as
necessidades fundamentais, a essência concreta do homem, a realização de
suas virtualidades, a plenitude do possível. [...] [O que acontece é que] a vida
como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada
contra o sistema que tentava controlá-la. Foi a vida, muito mais do que o
direito que se tornou o objeto das lutas políticas, ainda que essas últimas se
formulem através de afirmações de direito. O ‘direito’ à vida, ao corpo, à
saúde, à felicidade, à satisfação das necessidades, o ‘direito’, acima de todas
as opressões ou ‘alienações’, de encontrar o que se é e tudo o que se pode ser
(FOUCAULT, 1988, p. 158).
1.5 NATURALIDADE NO DESEJO COMO MOTOR DE AÇÃO
A naturalidade da população aparece ainda, nos escritos do século XVIII, na
invariante que permite apreender uma generalidade na multiplicidade de indivíduos, o desejo.
39
Deve-se lembrar, no entanto, que Agamben (2002) aponta a biopolítica como uma constante na história
ocidental.
44
Ele é considerado pelos fisiocratas como princípio de unicidade e motor de ação da
população; vínculo considerado espontâneo entre os indivíduos e aquilo pelo qual todos vão
agir, não sendo suscetível a uma ação direta, impositiva e de limitação. Entende-se que esse
desejo é tal que, “se o deixarmos agir, em certo limite e graças a certo número de
relacionamentos e conexões, acabará produzindo o interesse geral da população. (...)
[Configura-se assim um jogo] espontâneo e, ao mesmo tempo, regrado do desejo [que]
permitirá de fato a produção de um interesse, de algo que é interessante para a própria
população” (FOUCAULT, 2008a, p. 95). A naturalidade do interesse coletivo pelo jogo do
desejo torna a população penetrável à técnica governamental, que se ocupará de estimular o
desejo, o amor-próprio, o egoísmo individual, atentando, porém, para que os interesses
individuais não se sobreponham aos interesses coletivos, permitindo que se produza um
“benefício universal” – ou seja, efeitos considerados positivos e previsíveis, dos quais a razão
governamental poderia fazer uso para gerir a população.
Os efeitos desse espontâneo interesse coletivo foram, por um lado, o delineamento
do princípio da troca, pois a população é concomitantemente produtora e consumidora, sendo
o interesse presente na relação ai estabelecida responsável por uma regulação natural do
preço, mostrando-se útil para os objetivos estabelecidos pela prática governamental. Dessa
maneira, o interesse coletivo, frente a sua determinação como critério de utilidade, foi
limitador da prática do governo; ao mesmo tempo em que esse próprio interesse era gerido de
modo a regular os interesses no geral e da governamentalidade vigente. Para tanto se afirma e
reivindica a independência dos governados em relação aos governantes – sua liberdade.
Estimula-se que a população exerça livremente seu comportamento econômico, ou seja, o
comportamento do homem (produtor e consumidor) que tem a liberdade de agir e se
programar frente às necessidades econômicas, de modo que a troca seja útil para ambas as
partes.
Esse comportamento do homo oeconomicus tratará de ser previsto e utilizado como
fonte de racionalidade da economia. Nesse sentido, essa economicidade natural da população,
ao ser descoberta e levada em conta na análise do mercado, fará com que ela seja não somente
um objeto, mas também sujeito dessa razão governamental limitadora do poder público,
principalmente porque o âmbito do homo oeconomicus é o domínio do ingovernável, do que
não deve ser modificado diretamente, mas compreendido, sendo matriz de conhecimento da
razão liberal. Dessa maneira, todo o restante, tudo o que não era denominado como
pertencente ao campo econômico, ficava aberto ao governo. A descoberta do homo
oeconomicus é portanto um momento de inflexão no pensamento teórico-político, pois a partir
45
daí vai se primar pela segurança dessa naturalidade da população, assim como do próprio
mercado. O foco é ainda o Estado, o soberano, mas o exercício do poder de governar e o
crescimento estatal infinito passam a ser limitados internamente, por meio de novos
mecanismos, mais numerosos e complexos. Seu regime de verdade será o de governar o
menos possível, devendo o Estado fazer regulações que respeitem e assegurem as regulações
naturais do mercado e do interesse da população – numa palavra, da troca. Constituiu-se,
assim, um novo desafio à concepção jurídica do soberano, que se depara com esse elemento
limitador.
Essa racionalidade do governo mínimo, do governo frugal, é o que se chama,
segundo a interpretação de Foucault, liberalismo: uma nova forma de governo em que a
liberdade emerge como ideologia e técnica, como princípio regulador da espontaneidade e
mecânica interna dos processos econômicos, devendo ser produzida e organizada
permanentemente, já que as leis intrínsecas da realidade mesma se desenvolvem e resultam
em algo útil para todos.
40
Sendo ação e realidade entendidas como natureza, como que
constituídas por leis naturais, a liberdade foi a tecnologia de poder essencial. Substitui-se a
máxima de intervenção artificial e aleatória em benefício de um equilíbrio com os demais
Estados pelo princípio de deixar fazer (laisser-faire); deixar agir a liberdade de comércio entre
os países, pois isso resultará em uma situação econômica favorável para todos; deixar agir a
liberdade de interesse da sociedade, do homo oeconomicus, que produzirá, na relação de troca,
um preço útil para ambas as partes, produtor e consumidor.
O liberalismo possui necessidade de liberdade, ele a consome e precisa produzi-la e
organiza-la, já que a regulação se efetua apoiando-se na liberdade de cada um. Ao mesmo
tempo em que a fabrica, todavia, ocupa-se de controlar, limitar, coagir essa liberdade
estimulada, a fim de evitar situações que prejudiquem, por exemplo, a liberdade de comércio,
tal como as constituições de monopólios entre as empresas. Se for preciso, essa nova
racionalidade governamental sustentará o mercado e criará compradores, instituirá tarifas,
desenvolverá regulamentações antimonopólios. Enfim, medidas de segurança que sejam
protetoras do mercado, da liberdade de comércio, assim como do interesse coletivo – que da
mesma maneira é o interesse do alcance do preço útil, o interesse do homo oeconomicus
diante dos interesses individuais, mas também, eventualmente, proteger os interesses
40
Como explica Foucault (2008b), não se trata de se ter mais ou menos liberdade que em outro sistema político-
econômico, sobretudo porque uma aferição desse tipo não seria possível. O autor entende que “não se deve
considerar que a liberdade seja um universal que apresentaria, através do tempo, uma realização progressiva, ou
variações quantitativas, ou amputações mais ou menos graves, ocultações mais ou menos importantes. [...] A
liberdade nunca é mais que – e isso já é muito – uma relação atual entre governantes e governados”
(FOUCAULT, 2008b, p. 86).
46
individuais diante de algum abuso por parte do interesse coletivo. As intervenções
governamentais são calculadas a partir da relação entre perigo individual e coletivo –
indivíduo x população; empresa x trabalhadores; empresa particular x constituição de
monopólios; indivíduo doente x contaminação da população saudável, entre outras –visando a
segurança de processos e relações que sejam úteis para o governo. Como se vê, a produção da
liberdade não está apartada da produção da segurança contra os perigos naturalmente
intrínsecos a esse incitamento à liberdade – dos processos econômicos e do interesse da
população.
As medidas de segurança realizadas configuram uma economia de bem-estar em que
se prima pela manutenção de emprego, programas sociais para educação, diminuição da
pobreza, segregação, incidência de doenças, segurança quanto à aposentadoria, entre outras.
Uma política social na qual o intervencionismo geral, e consequentemente o bem-estar, é
tanto maior quanto o crescimento da renda estatal. Os efeitos de desigualdade tratam de ser
contrabalançados e o investimento é na relativa repartição do acesso de cada um aos bens de
consumo e na promoção de condições de crescimento e de subsistência da população.
Compõe esse quadro também as medidas de intervenção sobre aqueles problemas próprios ao
conjunto de seres viventes que coexistem: saúde, higiene, sexualidade, natalidade,
longevidade, raças, e que são geridos, tal como já abordado, pela medicina social, pelos
dispositivos de sexualidade, pela psiquiatria, pela pedagogia e outras ciências/mecanismos de
saber-poder que atuam sobre o “homem vivo”. Não se trata, porém, somente de uma proteção
externa dada ao indivíduo, mas sim de uma manipulação de interesses a partir do jogo
segurança/liberdade que se estabelece, ao ser feito um investimento no sentido de cada vez
mais estimular o indivíduo a “ser livre”, assim como também a experimentar a vida como
portadora de inúmeros perigos, aos quais é preciso estar atento e precaver-se. Ou seja, trata-se
de propiciar a cada indivíduo a existência diante de si de um “campo de possibilidades onde
diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento podem acontecer”
(FOUCAULT, 1995, p. 244), de maneira a ordenar a probabilidade, estruturar o eventual
campo de ação que é aberto ao indivíduo, visando garantir que esses fiquem expostos o menos
possível ao perigo, ao fomentar uma “cultura do perigo” e aumentar a vigilância sobre as
condutas que escapam a dita mecânica natural/normal. O liberalismo institui relações de poder
ao operar
sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos
sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia
ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede
47
absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto
eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações (FOUCAULT,
1995, p. 243).
Não há, portanto, uma ação direta e imediata sobre os indivíduos, mas sobre suas
ações possíveis, sobre um campo de possibilidades no qual se exercer sua liberdade, campo
que se constitui de modo estratégico, podendo “ser mais ou menos elaborado em função da
eficácia dos instrumentos e da certeza do resultado (maior ou menor refinamento tecnológico
no exercício do poder), ou, ainda, no custo eventual (seja do ‘custo’ econômico dos meios
utilizados, ou do custo em termos de reação constituído pelas resistências encontradas”
(FOUCAULT, 1995, p. 246-7).
Essa ação sobre ações possíveis, de que se prescinde essencialmente da liberdade
indivíduo, é também acompanhada de outra estratégia para se conduzir das condutas, um
“controle-estimulação” – expressão utilizada por Foucault (2000) para explicitar uma nova
configuração de domínio que não se dá pela repressão, mas por meio do estímulo, por
exemplo, o de mostrar e fazer-se desejar, desencadeando o investimento positivo sobre o
corpo, como é o caso da produção do desejo do indivíduo pelo sexo. Desejo que é constituído
a partir do jogo entre a idéia de que o sexo possui em si mesmo uma verdade oculta, fonte de
inteligibilidade do sujeito e sua existência, e a descoberta dessa verdade por meio da
confissão, mas de modo que ela nunca seja total. Um incitamento que ganha cores mais fortes
se considerar que os dispositivos de sexualidade surgiram para atender as demandas de auto-
afirmação da classe burguesa, via passagem de uma simbólica na qual o sangue era ícone de
prestígio aristocrático, para uma autossexualização, uma encarnação do sexo em seu próprio
corpo, que representava a distinção e supremacia dessa classe emergente sobre as demais. Por
isso o desenvolvimento de inúmeros aparatos para potencializar, cultuar, purificar o corpo –
sem dúvida uma das formas primordiais da consciência de classe. Todavia, o século XIX
assiste a uma generalização do dispositivo de sexualidade para outras classes, o que implica o
reconhecimento de um corpo e um sexo nelas. Algo que é decorrente de conflitos
provenientes da difusão de epidemias das classes pobres para as mais abastadas e a
emergência de medidas para atender as urgências de natureza econômica, como, por exemplo,
a necessidade de mão-de-obra barata e saudável frente as demandas de crescimento da
indústria. Como se vê, não se trata de auto-afirmação, mas de um dispositivo de dominação,
pois o povo vai se caracterizar como objeto e não como sujeito das ações de higiene, controle
de natalidade, cuidados com os infantes etc. Para redefinir a especificidade de sua
sexualidade, a burguesia traça como linha demarcatória uma rigorosa interdição, de modo que
“doravante, a diferenciação social não se afirmará pela qualidade ‘sexual’ do corpo, mas pela
48
intensidade da sua repressão” (FOUCAULT, 1988, p. 141). Essa medida de distinção é,
no entanto, logo acompanhada de outro elemento diferenciador: a psicanálise. Ela “assume a
tarefa de eliminar, naqueles que estão em condições de recorrer a ela, os efeitos de recalque
que a interdição pode induzir; permite-lhes articularem em discurso o desejo incestuoso”
(FOUCAULT, 1988, p. 141).
41
Um novo meio de reafirmação da burguesia, nova via de
legitimação de investimento no corpo e na vida, e de liberdade para usufruir o sexo.
Uma das conseqüências desse “jogo” segurança/liberdade são as crises de
governamentalidade decorrentes da política liberal, que promovia e ampliava as liberdades à
custa da concomitante multiplicação de mecanismos de controle e coerção, sobretudo pela
aplicação de técnicas disciplinares, de vigilância das condutas no interior das instituições,
visando ainda assegurar o processo de regulação da população e dos processos econômicos.
Mais do que o contrapeso necessário às liberdades, as intervenções coercitivas passaram a ser
o “princípio motor” do liberalismo. Utilizadas a priori para fugir da restrição de liberdade
presente no socialismo, fascismo, nacional-socialismo, as medidas intervencionistas tomadas
durante crises econômicas e políticas se propunham a manter liberdades fundamentais, como
a de trabalho e consumo, por exemplo.
42
O que começa a ser questionado é o possível
acarretamento daquilo que se queria evitar, sendo as políticas intervencionistas vistas como
ameaça de despotismo. Outros motivos da crise do dispositivo liberal de governamentalidade
referem-se ao custo para manter e promover o exercício de liberdade; a inflação dos
mecanismos compensatórios; e o risco iminente dos mecanismos produtores de liberdade ter
efeitos destrutivos contra aquilo que a produz. Dessa maneira, chega-se “à idéia de que essa
arte liberal de governar introduz, finalmente, por si mesma, ou é vítima, de dentro, do que
poderíamos chamar de crises de governamentalidade” (FOUCAULT, 2008b, p. 92-3).
Dessa crise de governamentalidade se configura uma nova programação da
governamentalidade liberal que, de acordo com Foucault, é contemporânea. Trata-se do
neoliberalismo, política econômica que emerge a partir da crítica ao intervencionismo
vigente, sobretudo a política keynesiana, muito em voga no início do século XX, e ao plano
Beveridge, uma espécie de pacto de guerra em que os Estados prometiam a seguridade social
em troca das pessoas se disporem a morrer por esse mesmo Estado. Contra essas ações de
intervenção que se multiplicam durante a segunda guerra mundial – dentre elas é possível
41
Todavia, como salienta Foucault (1988), a psicanálise se desenrola no dispositivo de sexualidade, não o
ultrapassa; além de desempenhar “vários papéis simultâneos nesse dispositivo: é mecanismo de fixação da
sexualidade como dispositivo sobre o sistema de aliança, [ao apontar o incesto como princípio universal];
coloca-se em posição adversa em relação à teoria da degenerância; funciona como elemento diferenciador na
tecnologia geral do sexo” (FOUCAULT, 1988, p. 140).
42
Foucault (2008b) cita como exemplo a política de Welfare, realizada por Roosevelt.
49
citar diversas medidas de segurança: de emprego, em relação às doenças, quanto à
aposentadoria –, é que o neoliberalismo será fundado, uma vez que de todos os lados
pairavam dúvidas e descrenças quanto ao Estado e sua política de intervenções pautadas em
um esquema de racionalidade calcado em “leis da natureza”; sendo essas intervenções
associadas ao crescimento do Estado e a gênese do nazismo.
43
Fazendo uma crítica a irracionalidade própria aos excessos de governo, a Escola de
Friburgo analisa o fenômeno do nazismo e suas intervenções exacerbadas, que teriam
culminado com um regime despótico, e que, de acordo com eles, era um obstáculo a ser
ultrapassado pela racionalidade liberal.
44
É resultante das conclusões das análises dos
ordoliberais sobre o nazismo, o delineamento de um novo regime de verdade em que se tem
como fundo o questionamento sobre se “o liberalismo vai efetivamente conseguir fazer passar
o que é seu verdadeiro objetivo, isto é, uma formalização geral dos poderes do Estado e da
organização da sociedade a partir de uma economia de mercado” (FOUCAULT, 2008b, p.
160). A preocupação eminente nesse momento era saber ainda como justificar a existência do
Estado, de um sistema jurídico, em uma organização povoada de “sujeitos econômicos”, de
homo oeconomicus, que até então são considerados como inacessíveis ao governo, pois
delimitadores de sua prática.
45
Uma das conclusões dos ordoliberais é que a economia de mercado não é destrutiva,
possuidora de defeitos intrínsecos que levam a crise de governamentalidade liberal, mas sim o
Estado que é responsável por tal situação. Nesse sentido, “a liberdade de mercado deve ser o
princípio organizador e regulador do Estado (...) [estando esse] sob vigilância do mercado e
não o mercado sob [sua] vigilância” (FOUCAULT, 2008b, p. 158-9). Ao invés assim de
governar por causa do mercado, o Estado deve governar para o mercado.
43
Foucault (2008b) critica a associação feita entre as práticas dirigistas e socialistas com a culminância do
nazismo. De acordo com ele, o Estado totalitário deve ser entendido como o resultado de uma subordinação da
autonomia do Estado em relação ao partido, ao invés do Estado administrativo levado ao extremo.
44
Como explica Foucault porém, o problema que realmente aos ordoliberais fora posto era saber como tornar
legítimo “um Estado que não existe, um Estado que é preciso conseguir legitimar, um Estado que é preciso
tornar aceitável aos olhos dos que dele mais desconfiam” (FOUCAULT, 2008b, p. 159). Problema esse fucral
para uma Alemanha que, desde a República de Weimar devido a todas as dificuldades econômicas, sobretudo de
reparação da guerra, passando pelo período do nazismo e novamente no pós-guerra, está as voltas com os
incessantes questionamentos sobre a legitimidade estatal.
45
Na tentativa de resolver esse impasse é que surge uma nova tecnologia de governamentalidade, a sociedade
civil, unidades coletivas e políticas em que o vínculo estabelecido entre os indivíduos está para além do
puramente econômico, ou seja, da relação dos homo oeconomicus. Esses são recolocados no interior da
sociedade civil para poder serem administrados e cumprem a função de transformação perpétua dessa, uma vez
que correspondem aos interesses egoístas, princípio esse de dissociação em “relação aos vínculos ativos que
serão os da compaixão, da benevolência, do amor ao próximo, do sentimento de comunidade dos indivíduos em
relação aos outros” (FOUCAULT, 2008b, p. 411). A sociedade civil encontra-se em posição de interioridade e
exterioridade ao Estado que, para justificar sua existência, contará com os governados na elaboração da lei,
sendo o fim último de todas as intervenções estatais ao invés do próprio Estado, seu enriquecimento.
50
Outra conclusão obtida por suas análises e seguindo uma evolução do
pensamento liberal, é que o essencial do mercado não está na troca, mas na concorrência.
Portanto o neoliberalismo não é uma política que cumpre o papel de contrapeso a política
econômica, sobretudo porque não tem como objetivo a equalização, a repartição do acesso de
cada um aos bens de consumo, pois presume que a diferenciação é própria a todo mecanismo
de concorrência e é positiva em si mesma. Nesse sentido, diferente das políticas de bem-estar,
que se ocupavam de corrigir os efeitos destruidores do mercado sobre a sociedade, trata-se de
“conceder a cada um uma espécie de espaço econômico que possa assumir e enfrentar os
riscos da existência” (FOUCAULT, 2008b, p. 198). Não tendo que contrabalancear a política
econômica a qualquer custo, vai caber ao indivíduo, na maior parte do tempo, proteger-se dos
riscos a partir do consumo de novos elementos de segurança – o que caracteriza o
neoliberalismo como uma política social privatizada. Nesse sentido, de elogio da
diferenciação como princípio inerente a concorrência, há o estabelecimento de uma moldura
institucional que se abstém de uma intervenção no campo econômico para modificar o estado
de concorrência, o máximo que faz é intervir para que essa concorrência seja alterada por
algum fenômeno específico, como o monopólio. A liberdade de mercado vai além do processo
de supervisão do Estado para que mercado respeitasse o princípio da troca e da equivalência.
No neoliberalismo, a concorrência plena regula as escolhas e consequentemente os preços.
Os ordoliberais criticam ainda ao laissez-faire como conseqüência política da
economia de mercado. Para eles, tal perspectiva é pautada em uma “ingenuidade naturalista”,
pois o mercado não é um dado natural, produzido espontaneamente e que o Estado deve
respeitar. A concorrência possui sim uma lógica interna, uma estrutura própria (formal e não
natural), mas essa não está dada, ela prescinde de condições, de artifícios, promovidos por
uma intervenção, vigilante e ativa; seja por meio de “ações reguladoras” – que tem como
objetivo a estabilidade dos preços visando o controle da inflação, por meio de uma política de
crédito, ao invés da manutenção do pleno emprego, ou o equilíbrio da balança –, seja por
“ações ordenadoras” – intervenção nas condições estruturais do mercado, em sua moldura, em
elementos diretamente econômicos: população, técnica, aprendizagem, educação, regime
jurídico, solo, etc. Fundamental para a organização de uma ordem da concorrência é que a
intervenção governamental seja discreta na primeira e maciça na segunda. A “concorrência é
portanto um objetivo histórico da arte governamental, não é um dado natural a respeitar”
(FOUCAULT, 2008b, 164).
Como se vê, há um descolamento em relação ao liberalismo clássico. O
neoliberalismo não se situa “sob o signo do laissez-faire, mas, ao contrário, sob o signo de
51
uma vigilância, de uma atividade, de uma intervenção permanente” (FOUCAULT,
2008b, p. 182), em que o crucial não é exatamente saber onde se deve ou não mexer, mas
como mexer, sendo ainda o alvo da vigilância diferente do regime liberal que focava na
manutenção dos processos naturais. Não há assim uma diminuição da intervenção
governamental, mas o deslocamento do ponto de aplicação das intervenções – o investimento
é nos mecanismos concorrenciais, para que esses constituam um regulador de mercado geral
da sociedade. Essa regulação econômica,
não se obtém de modo algum por meio de fenômenos de igualização, mas por
um jogo de diferenciações que é próprio de todo mecanismo de concorrência
e se estabelece através das oscilações que só cumprem a sua função e seus
efeitos reguladores contanto que, é claro, se permitam que ajam, e ajam por
meio de diferenças. Em linhas gerais, é preciso que haja pessoas que
trabalhem e outras que não trabalhem, ou que haja salários altos e salários
baixos, é preciso que os preços também subam e desçam, para que as
regulações se façam. (...) Logo, nada de igualização e, por conseguinte, de
modo mais preciso, nada de transferência de renda de uns para os outros. Mais
particularmente, uma transferência de renda é perigosa quando retirada da
parte da renda que é produtora de poupança e investimento. (...) Em linhas
gerais, trata-se simplesmente de assegurar, não a manutenção de um poder
aquisitivo, isso de forma alguma, mas de um mínimo para os que, de modo
definitivo ou passageiro, não poderiam assegurar a sua própria existência.
(FOUCAULT, 2008b, p. 194-6).
Diferente de um governo econômico, de um governo que tem como objetivo de suas
intervenções o Estado soberano, no neoliberalismo a sociedade é o alvo e o objeto dessa nova
prática governamental, devendo ser regulada com base no mercado – desse calcado não na
troca das mercadorias, mas nos mecanismos de concorrência, sendo a sociedade suscitada a
submeter-se a essa dinâmica, não recebendo assim apoio quanto aos efeitos antisociais da
concorrência, mas sendo induzida a agir de modo que não produza, ela mesma, mecanismos
anticoncorrenciais. Para tornar essa política de sociedade (Gesellschaftspolitik) viável, os
ordoliberais insistiram em dois grandes eixos: (1) a modificação da instituição jurídica e das
regras de direito para que essa estivesse de acordo com o quadro em que a sociedade é
regulada a partir e em função da economia concorrencial de mercado; e (2) a formalização da
sociedade com base no modelo da empresa.
(1) A respeito do primeiro eixo, tal proposição dos ordoliberais se sustentara pela
defesa de que o processo econômico não está dissociado de um conjunto institucional, que a
economia não é um processo mecânico e natural independente de uma moldura institucional,
mas que ambos, moldura e economia, se apóiam mutuamente. Nesse sentido, consideram que
os efeitos característicos da sociedade capitalista não se deviam a lógica do capitalismo em si
52
mesma, a qual teria abalado as antigas regras do direito e formulado outras em seu
benefício, mas ao complexo econômico-jurídico instituído em relação de reciprocidade entre
um e outro. De acordo com os ordoliberais,
o que escapa à teoria econômica, o que escapa aos economistas na análise
deles é a instituição, e devemos passar a um nível de direito econômico
consciente ao mesmo tempo pela análise histórica, que mostrará em que e
como a instituição e as regras de direito têm relações de condicionamento
recíproco com a economia, e, com isso, tomar consciência das modificações
possíveis de ser introduzidas nesse complexo econômico-jurídico.
(FOUCAULT, 2008b, p. 231).
O que os ordoliberais passam a questionar é sobre onde e como poderão introduzir
modificações que permitam que as leis do mercado sejam o princípio de regulação econômica
e social – que a formulação de uma ordem social seja consoante a uma ordem econômica. A
solução encontrada é a aplicação à economia de um Estado de Direito (Rechtsstaat ou Rule of
law).
46
As intervenções do Estado de direito na economia não tem como fim a correção de
desvios que um plano previamente traçado pelo poder público possa ter sofrido; sobretudo
porque as intervenções são “formais”, ou seja, não têm um fim particular, não servindo as leis
como medidas administrativas, que se estendem a regulamentação. Não existe um plano, ou
um fim particular, um “sujeito de saber na ordem da economia” (FOUCAULT, 2008b, p. 237),
mas sim regras fixas que estimulam a competição, mas indiferentes aos efeitos que produzem.
O Estado de direito desconhece os processos econômicos; a economia para ele é apenas um
jogo, em que a instituição judiciária formula as regras que, por já serem previamente
conhecidas pelos agentes econômicos (constituídos como empresas), lhes possibilita e exige
que sejam livres para agir dentro dessa conjuntura. O resultado desse jogo é assim
desconhecido, tanto para o Estado quanto para os indivíduos, sendo a espontaneidade dos
processos econômicos e das ações dos indivíduos o que dá forma e regula a ordem
econômica. A única intervenção do Estado nesse complexo e interligado campo é a lei, sendo
o intervencionismo judiciário cada vez mais requisitado para arbitrar os atritos decorrentes
dessa espontaneidade das ações e processos que se estimula.
46
O Estado de direito caracteriza-se por ser uma oposição ao despotismo e ao Estado de polícia; portanto
contrapõe-se ao poder soberano como determinante dos atos do poder público, em que lei e regulamentação se
caracterizem como um só e mesmo tipo de mecanismo de coerção. Nessa teoria do Estado de direito que é
gestada no fim do século XIX e início do século XX, os atos do poder público são limitados não pela vontade do
soberano, mas por leis que antecipadamente restringem o Estado – e que ao mesmo tempo legitimam seu caráter
coercitivo. Além disso, no Estado de direito, disposições legais e medidas administrativas se distinguem.
Essencial é a decorrente formulação de um sistema de direito, em que as leis, mas também as instâncias
judiciárias tornam-se um meio de arbitragem possível para as relações entre os indivíduos/cidadãos e o poder
público (FOUCAULT, 2008b).
53
(2) Nessa economia de mercado concorrencial, há uma revalorização da
unidade “empresa” como agente econômico fundamental, segundo eixo de ação dos
ordoliberais. Novo modelo em que, “o verdadeiro sujeito econômico não é o homem da troca,
não é o consumidor ou o produtor, mas a empresa, nesse regime econômico e social em que a
empresa não é simplesmente uma instituição, mas certa maneira de se comportar no campo
econômico – na forma da concorrência em função de planos e projetos, com objetivos, táticas,
etc.” (FOUCAULT, 2008b, p. 240). Em um mercado que funciona sob a lógica da
concorrência pura, a forma “empresa” multiplica-se por todo o corpo social, e transforma-se
em um poder “enformador da sociedade”, constituindo toda uma dinâmica de busca por
diferenciação em que o indivíduo deve arcar com os riscos da existência em todos os âmbitos
da vida. Esse investimento na diferenciação, a fim de manter a concorrência, não resultaria
assim em uma sociedade uniformizadora, massificada, uma “sociedade do espetáculo”, “trata-
se, ao contrário, de obter uma sociedade indexada, não na mercadoria e na uniformidade da
mercadoria, mas na multiplicidade e na diferenciação das empresas” (FOUCAULT, 2008b, p.
204).
47
Esse modelo alemão, de um Estado que constitui sua legitimidade a partir da
economia, que propõe que o Estado exista apenas o bastante, fundando para isso um mercado
livre e um sistema jurídico e judiciário pautado na veridição do mercado ao invés de no
despotismo e na regulamentação, esse Estado de direito é que se difunde como modelo de
nova racionalidade governamental para todo o mundo, sobretudo para os Estados Unidos, que
não somente radicaliza, mas também inova esse sistema. Como na Alemanha, o
neoliberalismo americano surge em meio a crítica a política keynesiana; ao plano Beveridge,
e a programas econômicos e sociais, como o New Deal; assim como pela exigência dessa
forma de racionalidade governamental para fundar o Estado. O neoliberalismo nos Estados
Unidos, todavia, tomou proporções muito maiores nesse país, ganhando o aspecto de um
problema das liberdades, transformando-se em uma espécie de foco utópico, tornou-se uma
forma/método de pensamento, uma relação entre governados e governantes, muito mais do
que uma técnica de governo. O resultado são as políticas intensas de privatizações que não
tarda a servir como novo modelo mundial.
Como principal questão colocada pelos neoliberais está a reformulação da temática
do homo oeconomicus, mais exatamente a tentativa de aplicar essa grande de inteligibilidade
do sujeito econômico para os demais âmbitos da existência, da vida dos indivíduos. Fato
47
A respeito desse ponto, ver capítulo ulterior que trata da indústria cultural como dispositivo biopolítico.
54
decorrente da compreensão de que a “alocação ótima de recursos raros para finalidades
alternativas” (FOUCAULT, 2008b, p. 367) – uma conduta econômica – é cabível a toda
conduta racional, ou tão somente sensível às modificações das variáveis do meio e que
respondem a elas a partir de certa previsibilidade, sistematicidade, economicidade. O
resultado disso é uma tentativa de aplicar uma análise economista ao não-econômico – a
relação mãe-filho,
48
pai e mãe, homem e mulher – e a integração a economia de toda uma
série de técnicas de aplicação de estímulos, de ações sobre o meio, visando o alcance de
comportamentos determinados. O homo oeconomicus passa a ser compreendido como
manipulável, ele “aparece agora como o correlativo de uma governamentalidade que vai agir
sobre o meio e modificar sistematicamente as variáveis do meio” (FOUCAULT, 2008b, p.
369). Uma concepção que serve como via para o gerenciamento da sociedade, seu
comportamento
49
em termos de consistência e inconsistências ao nível econômico, assim
como concomitantemente serve de âncora e justificativa para o exercício de uma crítica
política permanente da ação política e governamental em que as ações do poder público são
igualmente aferidas em termos de custo e benefício.
Nesse tribunal econômico a sociedade formula suas lutas políticas através de
afirmações de direito.
O ‘direito’ à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das
necessidades, o ‘direito’, acima de todas as opressões ou ‘alienações’, de
encontrar o que se é e tudo o que se pode ser, esse ‘direito’ tão
incompreensível para o sistema jurídico clássico, foi a réplica política a
todos esses novos procedimentos de poder que, por sua vez, também não
fazem parte do direito tradicional da soberania (FOUCAULT, 1988, p. 158).
48
Como salienta Foucault (2008b), “os neoliberais procuravam explicar (...) como a relação mãe-filho,
caracterizada concretamente pelo tempo que a mãe passa com o filho, pela qualidade dos cuidados que ela lhe
dedica, pelo afeto de que ela dá prova, pela vigilância com que acompanha seu desenvolvimento, sua educação,
seus progressos, não apenas escolares mas físicos, pela maneira como não só ela o alimenta, mas como ela
estiliza a alimentação e a relação alimentar que tem com ele – tudo isso constitui, para os neoliberais, um
investimento” (FOUCAULT, 2008b, 334).
49
Apesar de já ser comum relacionar o pensamento de Foucault e Hannah Arendt (2004), – entre outros, ver
Agamben (2002) e Ortega (2004) –, não deixa de impressionar a similaridade do diagnóstico da modernidade –
ou da “condição humana”, de acordo com Arendt (2004) – feita pelos autores, notável, por exemplo, nos
seguintes dizeres na autora: “Se a economia é a ciência da sociedade em suas primeiras fases, quando suas regras
de comportamento podiam ser impostas somente a determinados setores da população e a determinada parcela de
suas atividades, o surgimento das ‘ciências do comportamento’ indica claramente o estágio final dessa evolução,
quando a sociedade de massas já devorou todas as camadas da nação e a ‘conduta social’ foi promovida a
modelo de todas as áreas da vida” (ARENDT, 2004, p. 55). Por “social” Arendt (2004) compreende a ascensão
da administração caseira, os processos inerentes a vida, as necessidades, a sobrevivência, em uma palavra a
oikonomia, em detrimento ao achatamento da esfera pública. Uma “conduta social” é portanto uma conduta
“econômica” (no sentido grego) e que segue normas, por não compartilhar do princípio, próprio do espaço
público, da diferenciação. Chama assim atenção Arendt (2004), para o fato de que as ciências sociais, assim
como as “‘ciências do comportamento’, visam reduzir o homem como um todo, em todas as suas atividades, ao
nível de um animal que se comporta de maneira condicionada” (ARENDT, 2004, p. 55) – ou econômica.
55
Mas suas lutas não possuem somente essas formas, sobretudo se pensar que o
sistema de controle instituído pelo liberalismo e aperfeiçoado pelo neoliberalismo escapa em
sua maior parte as diretrizes do sistema jurídico, basta ver, por exemplo, o tipo de
investimento sobre o homo oeconomicus que se quer reconstituir: um empresário de si
mesmo, responsabilizado por sua existência, sua sobrevivência, cercado por toda uma teia de
relações em que é estimulado a produzir-se como homem de desejo, saudável, de raça pura
(ou que se encaixe em um comportamento e aparência dita normal), que busca seguridade dos
perigos que a contemporaneidade lhe oferece por via da iniciativa privada. Em meio a esse
discurso que adjetiva positivamente e institui toda uma rede de saber-poder sobre o cuidado
com a saúde e a doença, o exercício de uma sexualidade considerada adequada, o alcance de
uma seguridade financeira ao final da vida, o planejamento da quantidade de filhos que terá
baseando-se nas condições de propiciar uma educação adequada para eles, vê-se que não se
trata de “’servidão voluntária’ (poderíamos desejar ser escravos?): no centro da relação de
poder, ‘provocando-a’ incessantemente, encontra-se a recalcitrância do querer e a
intransigência da liberdade” (FOUCAULT, 1995, p. 244), que é, por via do incitamento, da
potencialização, o foco central das estratégias de controle dessa racionalidade governamental.
1.6 SÍNTESE SOBRE A BIOPOLÍTICA LIMIAR PARA TECER RELAÇÕES COM A INDÚSTRIA
CULTURAL
Após fazer esse breve diagnóstico do presente a partir de um apanhado geral daquilo
que escrevera Foucault em várias de suas obras, é profícuo pensar a respeito dos efeitos dessa
tecnologia de poder que é a biopolítica, e dos recursos utilizados para que esses efeitos fossem
possíveis. Realidade marcante da biopolítica é a totalização dos indivíduos sob o conceito de
população, a apreensão e gerenciamento de grande quantidade de pessoas a partir do que seria
seu denominador comum: a naturalidade, o que se refere ao biológico. Uma tecnologia que
não se ocupa com uma individualização, tal como nas disciplinas, ainda que seja composta
por esse tipo de controle, mas que é massificadora ao tomar o homem como “ser vivo”, como
“espécie”, e produzir meios para que essa compreensão realmente alcance e molde o concreto.
O sujeito, na perspectiva idealizada pelo Iluminismo, é reduzido a condição basal, de “vida
nua” – para usar uma expressão de Giorgio Agamben (2002) –, afastando-se em muito do que
56
seria uma vida qualificada, de autonomia, e de “maioridade”, no sentido kantiano. Em
tempo de biopolítica, o que está no centro dos investimentos econômicos (e psíquicos) são os
seres viventes; algo que se dá tanto mais é generalizada a figura do homo oeconomicus.
Representante daquilo que seria um dos fenômenos próprios à população, a economicidade, o
homo oeconomicus, sobretudo em sua forma neoliberal, é um potencializador da ação sobre os
fenômenos biológicos da população, uma vez que o modelo da empresa, de
empreendedorismo e de obtenção de um capital humano, é aplicado sobre todos os âmbitos da
vida, de maneira a determinar o modo como os corpos e as condutas devem ser investidos nos
mais diversos aspectos possíveis. Nesse sentido, a expressão vida nas teorizações de Foucault
a respeito da biopolítica, é interpretada como tendo dois significados: um que se refere ao
biológico; e outro em que significa o próprio cotidiano, as ações e momentos do dia-a-dia, ao
que é público e privado – se ainda é possível fazer essa distinção. É nesse duplo sentido da
expressão “vida” nos estudos foucaultianos, que se interpreta aqui o homo oeconomicus como
potencializador do investimento sobre a vida, em que o biológico é alvo de ações que se
realizam no molde da empresa, assim como também o público e o privado são imersos nessa
lógica. O sujeito é reduzido a um conjunto de elementos referentes à biologia/vida da espécie
No modo de politização vigente, já não mais determinado completamente pelas necessidades
estatais, mas sim pelos ditames do mercado (ou ainda do Estado a serviço do mercado), a vida
é gerida pela concorrência e pela relação de custo-benefício.
A figura do homo oeconomicus (em sua forma neoliberal) permite vislumbrar ainda
as estratégias biopolíticas contemporâneas de controle. Fazemos referência aqui aos
mecanismos de responsabilização do indivíduo; de incitamento a construção de características
únicas, singulares; do imperativo para “ser livre” e agir de forma empreendedora sobre si
mesmo; e ainda, de prescrições para os diversos âmbitos públicos e privados da vida. Mas não
se trata somente disso. Há ainda o fomento de toda uma “cultura do perigo”, em que o
indivíduo é estimulado a experimentar a vida como portadora de inúmeras ameaças a que é
preciso estar atento e precaver-se, sendo esse o parâmetro, o limite estipulado, mas velado,
para o exercício da (pretensa) liberdade. Por outro lado, existe um incessante “controle-
estimulação”, em que a liberdade, ou apenas a sua referência, cumpre uma importante função.
Parece assim que “estímulo” e “noção de perigo” são complementares no modo neoliberal de
conduzir as condutas. Nesse molde de governo de si promovido, chama a atenção o fato de
como se generaliza a característica da economicidade da população, sendo o sujeito, imerso
nessa racionalidade econômica e seus ditames de empreendedorismo, reduzido em todos os
57
sentidos ao âmbito das necessidades.
50
Dentre as demais estratégias de subjetivação identificadas como inerentes à
tecnologia de poder da biopolítica, destacam-se as ações de normalização daquilo que se
refere ao biológico, por exemplo, a saúde e o sexo, mas também as relações afetivas e o
comportamento. Mesmo que a norma não se refira mais a potência máxima identificada como
possível a um organismo, um modelo único, devendo o indivíduo adequar-se ao determinado
como ideal ou então ser excluído daquele espaço em que se encontra; na passagem de uma
“sociedade disciplinar” para uma “sociedade de controle” (DELEUZE, 1992), o indivíduo
ainda é assombrado pela necessidade de adequar-se ao estipulado como normal, apesar dessa
norma ser agora, na maior parte dos casos, resultado de uma média, da normalização se
realizar por uma ação sobre as variáveis do meio e da exclusão nem sempre ser tão explícita
como na instituição disciplinar, pelo fato do poder biopolítico não se restringir a um espaço
determinado.
Entendemos que o termo que melhor especifica o modo como opera a biopolítica
seja o de dispositivo, utilizado por Foucault (2000) para designar a rede que se estabelece
entre o dito e o não-dito, os discursos e as práticas, o meio e o indivíduo. Na interpretação e
ampliação de Agamben (2007) do uso feito por Foucault do termo, dispositivo é “cualquier
cosa que tenga de algún modo la capacidad de capturar, orientar, determinar, interceptar,
modelar, controlar y asegurar los gestos, las conductas, las opiniones y los discursos de los
seres vivientes” (AGAMBEN, 2007, p. 6). De acordo com Agamben (2007), na resultante da
relação entre seres viventes e dispositivos encontra-se o sujeito.
A partir do exposto, consideramos profícuo pensar a indústria cultural como
dispositivo biopolítico, já que utiliza diversificadas técnicas – sendo a primordial a exploração
das fraquezas do “eu” –, sobretudo aquelas concernentes à indústria do entretenimento, como
mecanismos de subjetivação destinados às massas, programado em sua origem para atingir
uma grande quantidade de pessoas e para estimular que os sujeitos que a compõem se fundem
enquanto seres viventes, intimamente ligados a dimensão biológica, ao corpo, à vida. As
aproximações então entre biopolítica e indústria cultural apresentadas nesse trabalho se
referem ao modo de exercício do poder (sutil e positivo), sendo enfatizada a similaridade das
estratégias de subjetivação, assim como do resultado, do efeito de realidade dessas, no caso o
investimento sobre a vida, no duplo sentido identificado na obra foucaultina, e a redução do
sujeito à condição basal, ao âmbito das necessidades – ou, dito de outro modo, a produção de
50
A respeito da relação entre economia e necessidades da vida, sobrevivência individual, bem como a sua
sobreposição a esfera pública, ver Arendt (2004).
58
uma falácia quanto ao sujeito idealizado pelo Iluminismo, detentor de autonomia e
liberdade.
59
2 INDÚSTRIA CULTURAL
2.1 ALGUNS APONTAMENTOS TEÓRICOS
Cunhado na década de quarenta do século passado, e desenvolvido com mais
profundidade no segundo capítulo da Dialética do Esclarecimento, o conceito de indústria
cultural foi o desiderato da crítica à cultura elaborada por Adorno, em conjunto com
Horkheimer (1985). Ele foi usado em contraposição ao termo cultura de massas, para
denominar, de modo irônico
51
, o fenômeno emergente de produção da cultura nos moldes da
“indústria”, que visa o seu consumo em detrimento de sua formação “espontânea” pelas
próprias massas (ADORNO, 1978).
De acordo com Adorno e Horkheimer (1985), a indústria cultural é um fenômeno de
dominação cultural que procura manipular o desejo explorando a fraqueza do “eu”, a fim de
produzir indivíduos conformistas com relação à realidade, porque adaptados ao consumo. É
um dos privilegiados mecanismos de dominação em nosso tempo atuando, sobretudo, por
meio da construção ideológica, de modo que não se questione a irracionalidade do sistema a
que se está submetido. Ela realiza ainda uma sutil relação entre os produtos consumidos e a
identidade, de modo que cada um é avaliado por aquilo que possui ou não.
Antes de iniciar a explicação sobre esses efeitos da indústria cultural e o
detalhamento sobre como ela se configura como um dispositivo biopolítico, é necessário
primeiramente descrever alguns aspectos da crítica com relação à fabricação de bens culturais
nos moldes da indústria, para que se compreenda sua função essencial na constituição de
subjetividades adaptadas ao consumo, pseudo-desejantes de identificação com os padrões
veiculados como ideais e, conseqüentemente, com a dinâmica de uma (falsa) centralidade da
razão na sociedade contemporânea.
No contexto do desenvolvimento liberal, a obra de arte (erudita e “popular”) foi não
51
Uma postura irônica em relação ao presente também é adotada por Foucault. De acordo com Rabinow (1999),
referindo-se ao autor francês, a ironia é a contraposição a uma postura heróica frente a situação presente –
própria de um ethos moderno, calcada na disciplinarização e no autocontrole. De acordo com Rabinow (1999),
para Foucault, “ser irônico implica em abandonar a seriedade tradicional, enquanto se preserva um ativo
compromisso com as preocupações do presente; (...) é também evitar a frivolidade manifestada quando se
abandona toda a seriedade para se dançar sobre o túmulo de Deus, do Logos, do falocentrismo, etc. (...) A
postura irônica resulta em procurar no presente aquelas práticas que oferecem a possibilidade de uma nova
maneira de agir.” (RABINOW, 1999, p. 64). Nesse sentido, talvez seja possível pensar a postura irônica como
princípio teórico-metodológico de diagnóstico do presente compartilhado por Foucault e Adorno.
60
apenas subjugada, mas já produzida sob os auspícios da lei da troca; a exigência de
definição de um valor de troca para cada bem cultural é marca da degradação de seu sentido
original de gratuidade, no caso da cultura “popular”, e de autonomia com relação à realidade,
no que se refere à cultura erudita. Esta ainda teve sua característica de inutilidade apropriada
pelo mercado a fim de lhe conferir um valor de uso superior.
52
A autonomia da obra de arte séria com relação à realidade se refere a sua falta de
“finalidade”, ou seja, a sua oposição ao trabalho, à necessidade, bem como a sua rejeição de
uma predeterminação por parte da sociedade do que ela deve ser. Além disso, “o caráter único
da construção da obra, sua falta de determinação social imediata, parece ser uma
radicalização da estrutura funcional a que todas as pessoas estão submetidas no sistema
capitalista” (FREITAS, 2003, p. 27), sendo esse traço de universalidade a condição para uma
experiência com ela. Porém, fruto do ócio, transforma-se em escárnio quanto àqueles que têm
que se submeter, e também contra os que na divisão do trabalho tiveram o privilégio de
produzir e fruir as obras de arte, já que esses sabem que são de alguma maneira expostos e
dependentes dos que vendem sua força de trabalho. Desse modo, a obra de arte séria acaba
sendo, por um lado, a expressão da “falsa universalidade” (HORKHEIMER; ADORNO,
1985, p. 127), mas é, paradoxalmente, somente essa autonomia, esse distanciamento, que
permite que se lance um olhar de negatividade sobre o mundo, como questionamento e desejo
de transcendência. Por outro lado, a obra de arte
possui sim, um vínculo forte com a sociedade, mas que não se estabelece
pela sua funcionalidade social, e sim devido ao fato de que a dinâmica
histórica da relação entre os homens, expressas em suas relações de
trabalho, reflete-se nos problemas inerentes das formas da arte
contemporânea. Adorno diz que o conteúdo social sedimenta-se na forma da
obra de arte (FREITAS, 2003, p. 25).
53
A obra de arte autêntica, apesar de ter presente em sua forma o desejo de que o
mundo fosse diferente do existente, não tem a pretensão de modificar a realidade, mas de
52
De acordo com Horkheimer e Adorno (1985), “tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na
medida em que é algo em si mesmo. O valor de uso da arte, seu ser, é considerado como um fetiche, e o fetiche,
a avaliação social que é erroneamente entendida como hierarquia das obras de arte – torna-se seu único valor de
uso, a única qualidade que elas desfrutam” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 148).
53
Como explica Jimenez (1977), a assertiva de que a forma é conteúdo (social) sedimentado remete a
compreensão de Adorno de que a forma é expressão das condições contemporâneas das forças produtivas. Ou
seja, por um lado, sendo fruto do não-trabalho, deixa ver como o homem está subjugado à divisão social do
trabalho, de maneira que “o que a arte exprime da realidade empírica é precisamente o que esta última rejeita: o
‘recalcado’” (JIMENEZ, 1977, p. 108). Por outro, ela expressa a capacidade de mudança do real, de
transcendência, por via das forças produtivas, das relações e modos de produção vigentes, ainda que de maneira
utópica. Seu antagonismo é o fator de sua autenticidade.
61
expressá-la; ainda que isso jamais seja possível de modo completo. Esse fracasso ela
assume, permitindo por isso que seja expressão de um dos mais íntimos sentimentos
humanos: o desejo nunca completamente consentido de identificação, de reconciliação com
aquela natureza de que o homem foi cindido, não com pouco sofrimento, para ser imerso na
cultura a partir do controle de suas pulsões. A obra de arte séria possibilita o reconhecimento
dessa dimensão recalcada e sua sublimação, ou seja, a elaboração e manifestação desse desejo
inconsciente de reconciliação pela produção da cultura, bem como a conscientização de que
esse desejo nunca pode ser alcançado.
Já a arte “leve” é a expressão tornada irônica da realidade devido a não liberdade de
seus fins. Ela é o passatempo, a tentativa de se opor àquilo que subjuga: o trabalho – o que
permite o ócio, condição primeira para a obra de arte séria, às classes mais abastadas. A arte
“leve” acaba por isso sendo a “má consciência social da arte séria” (HORKHEIMER;
ADORNO, 1985, p.127). A diferença entre ambas é complementar para uma expressão
verdadeira da cultura, ao permitir ver a realidade tal como ela é: permeada pela injustiça
social, contraditória, tensa, um embate interminável entre os desejos humanos e a interdição
cultural. Além disso, para Adorno (1995), o tempo livre – e dentro dele os mecanismos da
indústria cultural – não é apenas momento de dominação, mas, mesmo em sua forma atual,
um espaço também capaz de “resistir à apreensão [Erfassung] total”. (ADORNO, 1995, p.
81).
54
Com a justificativa de democratizar os bens culturais, o que exige a sua produção em
larga escala – nos moldes na indústria –, e fazendo com que, tanto a arte “leve” quanto a arte
séria sejam obedientes ao mecanismo da oferta e da procura, o que acontece é a perda da
singularidade de cada tipo de arte. Ou seja, com relação à obra de arte séria, esta adquire o
estatuto dos demais bens de consumo, a saber, de causar satisfação e de negação das
contradições sociais, enquanto perde por isso seu caráter de gratuidade. Quanto à arte “leve”,
deixa de ser irônica e passa a ser um analgésico. A indústria cultural é resultado da união entre
arte “leve” e arte séria (ADORNO, 1986; HORKHEIMER; ADORNO, 1985), com a
degradação de ambas devido ao seu uso utilitarista no interior do sistema capitalista. A
indústria cultural possui, portanto, o caráter de passatempo, de divertimento, presente na arte
54
Vale uma nota da citação completa da frase do autor: “Os interesses reais do indivíduo ainda são
suficientemente fortes para, dentro de certos limites, resistir à apreensão [Erfassung] total. Isto coincidiria com o
prognóstico social, segundo o qual, uma sociedade, cujas condições fundamentais permanecem inalteradas,
também não poderia ser totalmente integrada pela consciência. A coisa não funciona assim tão sem dificuldades,
e menos no tempo livre, que, sem dúvida, envolve as pessoas, mas, segundo seu próprio conceito, não pode fazê-
lo completamente sem que isso fosse demasiado para elas.” (ADORNO, 1995, p. 81-2).
62
“leve”; e de representação da realidade referente à arte séria.
O fato da indústria cultural se apresentar como obra de arte (séria) (ADORNO,
1986; HORKHEIMER; ADORNO, 1985), ou seja, como representante/crítica da realidade,
sendo a característica da arte “leve” a diversão, um complemento, no sentido de reforçar a sua
dinâmica (tal como será explicado em seguida), já impossibilita que ela expresse realmente o
mundo como ele é. Isso porque a tensão entre esses dois tipos de arte foi extinta, destruindo
com isso também a percepção das contradições sociais que permeiam o todo, bem como a
própria tensão (e não identificação!) entre a obra produzida e a vida cotidiana – o fracasso
assumido pela obra de arte séria, mas não pela indústria cultural. Assim, ao escamotear as
contradições, a indústria cultural torna-se ideológica (ADORNO, 1978; 1986;
HORKHEIMER; ADORNO, 1985), pois produz a falsa percepção de que a realidade é livre
do caos, sem tensões, ordenada. Em uma palavra: ela forja uma falsa reconciliação entre o
universal, o todo existente, e o particular, o indivíduo.
Será nesse sentido que a arte “leve” complementará a configuração da aparência
como realidade, pois é organizada de maneira que o indivíduo identifique-se com a dinâmica
(repetitiva) da indústria e do trabalho, apresentado como o único modo de existência possível.
Como destacam Hokheimer e Adorno (1985),
a diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio. Ela é
procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho mecanizado, para
se pôr de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao mesmo tempo, a
mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu lazer e sobre a
sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação de
mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não pode mais perceber
outra coisa senão as cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho.
O pretenso conteúdo não passa de uma fachada desbotada; o que fica
gravado é a seqüência automatizada de operações padronizadas
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 128).
Por essa pretensão que possui com relação à “diversão”, que seja útil aos interesses
do capital por meio da adaptação ao trabalho que promove, ou seja, que a diversão tenha uma
“finalidade”, é que a indústria cultural acaba por destruí-la. Ao perder o seu caráter de
gratuidade não pode por isso mais ser diversão, no sentido presente na arte “leve”, mas apenas
um mecanismo de engano quanto à realidade e suas contradições ao fazer esquecer o
sofrimento do trabalho por meio de atividades predeterminadas como “prazerosas”.
É, portanto, para mascarar a desordem e as contradições, que a indústria cultural
constitui um sistema em que suas partes são coerentes em si mesmas e com o conjunto que
compõem. No caso o cinema, as revista ilustradas, o rádio, a televisão – seus mecanismos de
63
manipulação por excelência, aliados hoje à rede mundial de computadores, a internet –,
fazem uso cada qual de um tipo de técnica para apresentar o mundo como aparência; mas “é
somente no conjunto de todos os procedimentos mutuamente afinados e contudo divergentes
quanto à técnica e ao efeito que se forma o clima da indústria cultural” (ADORNO, 1978, p.
347). A racionalidade técnica é usada para auto-afirmar das maneiras mais variadas possíveis
o seu discurso, a partir de uma manipulação da percepção em direção à unidade.
2.2 A INDÚSTRIA CULTURAL COMO DISPOSITIVO BIOPOLÍTICO
Uma das hipóteses para que a indústria cultural seja compreendida como um
dispositivo biopolítico se refere ao fato de que seus mecanismos não objetivam
especificamente a manipulação individual, mas seus veículos (rádio, televisão, revistas,
cinemas, entre outros) são planejados prioritariamente para atingir grande público, as massas
– termo utilizado pelos filósofos frankfurtianos. Entendemos que o termo “massa” pode ser
considerado como de sentido similar aquele indicado por Foucault ao de “população”, já que,
ambos apontam para a impossibilidade percebida de se ignorar a realidade desenhada pela
coexistência de elevado número de pessoas, e a conseqüente atenção despendida para a
elaboração de estratégias de subjetivação que dessem conta dessa realidade, que
ultrapassassem enfim o espaço institucional considerado insuficiente para a conjuntura social
inaugurada no século XVIII e que, guardadas as diferenças, ainda apresenta atualidade. A
indústria cultural é aqui compreendida como a configuração específica que as estratégias
biopolíticas gestadas, conforme explica Foucault, no início do período moderno, puderam
tomar no liberalismo e no neoliberalismo, principalmente pelo desenvolvimento técnico
ocorrido.
Se é possível distinguir que o conceito de “população” refere-se à coexistência de
indivíduos em um território, enquanto as “massas” não têm essa delimitação específica a
qualquer tipo de espaço, é preciso considerar que, com a centralidade adquirida pelo mercado
no controle da população, cada vez mais promove-se uma independência com relação ao
território, ou, se quiser, ao Estado em si. O que se quer destacar é a similaridade no trato da
população/massa apontado por Foucault e por Adorno em conjunto com Horkheimer, as
estratégias para o seu domínio, bem como o resultado almejado e produzido sobre a
população/massa em um sistema regido pela tecnologia biopolítica de poder, de que a
64
indústria cultural indica ser um dos mais bem acabados instrumentos.
A respeito dos mecanismos de manipulação, biopolítica e indústria cultural operam
não pela ação específica sobre cada organismo, mas sobre as variáveis do meio, sendo
possível afirmar, inclusive, que a indústria cultural se configura como o próprio meio, ao
produzir um efeito de realidade que mantêm as massas sob controle, como será especificado
em seguida. Como desiderato da indústria cultural está a totalização da multiplicidade ao
denominador comum da naturalidade, tal como a biopolítica. Dito de outro modo, a indústria
cultural conduz as condutas anulando as particularidades individuais em benefício de uma
redução do sujeito a sua naturalidade, à configuração de uma identidade que é calcada no
corpo, nos fenômenos biológicos, totalizando, massificando os sujeitos como espécie.
Sobre a configuração da indústria cultural como o próprio meio, essa é uma hipótese
que se sugere pela análise dos escritos dos filósofos frankfurtianos. De acordo com eles, a
indústria cultural produz um efeito de realidade por via do uso que faz do desenvolvimento
tecnológico, no sentido de diminuir as possibilidades de distinção entre a vida e os produtos
da indústria cultural, realizando, por conseguinte, uma adaptação objetiva e subjetiva à lógica
do trabalho/indústria/mercado. Para produzir um efeito de realidade, um encantamento eficaz
sobre os consumidores, os produtos da indústria cultural são apresentados como se fossem a
reprodução rigorosa do mundo. O desenvolvimento técnico contribui para isso, ao ser usado
para diminuir as possibilidades de distinguir a vida e o filme (hoje, a vida e a realidade
virtual). “Desde a súbita introdução do filme sonoro, a reprodução mecânica pôs-se ao inteiro
serviço desse projeto. A vida não deve mais, tendencialmente, deixar-se distinguir do filme
sonoro” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.119). Resta assim pequeno (ou nenhum)
espaço para a fantasia, a imaginação, levando o espectador a identificar de modo imediato, o
filme com a vida cotidiana – ou, apenas com a aparência dessa, ou ainda, no extremo, com o
que a vida mesma acabou por se transformar devido aos mecanismos da própria indústria
cultural.
Além da semelhança forçada que limita a imaginação e a espontaneidade, a
constituição objetiva dos produtos igualmente atua nessa direção, pois exige um desempenho
específico por parte do espectador. A velocidade com que as cenas do filme mudam de uma
para outra, requer o esforço para que o seu desenvolvimento e que sua mensagem exata não
deixe de ser percebida. A constituição objetiva dos produtos dessa maneira modifica a
capacidade de percepção da realidade, ao esperar do indivíduo um mesmo tipo de resposta.
“Ao olho cansado do espectador nada deve escapar daquilo que os especialistas excogitaram
como estímulo; ninguém tem o direito de se mostrar estúpido diante da esperteza do
65
espetáculo; é preciso acompanhar tudo e reagir com aquela presteza que o espetáculo
exibe e propaga” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.130). Se a exigência de um tipo de
atenção determinada proíbe a atividade intelectual, todavia essa dinâmica já está inculcada no
indivíduo, devido a todos os produtos da indústria cultural operarem nessa mesma direção.
Essa repetibilidade é essencial para que o caráter de aparência produzido não venha à tona e
se mostre como tal, assim como serve para moldar a própria subjetividade do indivíduo à
lógica repetitiva da indústria.
Desse modo, “inevitavelmente, cada manifestação da indústria cultural reproduz as
pessoas tais como as modelou a indústria em seu todo” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985,
p.119), pois a reprodutibilidade das mercadorias segundo padrões sempre iguais, e a
constituição objetiva dos produtos, dão forma ao real e ao próprio indivíduo, impedido da
mediação de si com o elemento de universalidade antes contido na obra de arte, uma vez que
a diferença foi subsumida, e o próprio indivíduo, sem um ponto de tensão, diluiu-se na
totalidade mecanicamente fabricada. As “massas não são, então, o fator primeiro, mas um
elemento secundário, um elemento de cálculo; acessório da maquinaria. O consumidor não é
rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer, ele não é o sujeito dessa indústria, mas seu
objeto.” (ADORNO, 1986, p. 93).
É essencial dizer que a diluição do indivíduo na totalidade se dá em troca de
pseudogratificações, proporcionadas pela previsibilidade dos produtos da indústria cultural.
Em troca da sensação de ordem, de uma pretensa reconciliação entre o universal e o
particular, é que os bens culturais vendem a promessa de alcance daquela gratificação que a
civilização solapou no ser humano, ou ainda, que restringiu ao âmbito da sublimação. Se nem
mesmo a sublimação, como meio proporcionado pela civilização para que o homem tivesse
felicidade, está mais ao alcance dele, é preciso então que a promessa da indústria cultural
permanecesse enquanto tal. Por causa disso, reprime o indivíduo, ao iludi-lo quanto à
possibilidade de satisfação que ele encontraria nos produtos culturais. O prazer da existência é
subsumido ao gozo causado pela capacidade de previsão, e a autocompreensão do indivíduo
como singularidade é anulada, juntamente com os elementos de tensão que compõem a
verdadeira realidade e que possibilitariam a distinção almejada.
É dessa maneira que o fugaz reconforto causado ao ego pela sensação de ordem, de
escamoteamento da tensão, dúvida e diferença, transforma-se em compensação à
irracionalidade do sistema capitalista (HORKHEIMER, 1991) a que o indivíduo está
submetido e, portanto, em mecanismo de dominação. Na ilusão causada pela indústria
cultural, de que faz parte a constituição objetiva dos seus produtos, o indivíduo é adaptado às
66
engrenagens do sistema, ao princípio da repetição, típica não apenas do trabalho
industrial, mas daquilo que hoje o substitui em parte, a domesticação do trabalho intelectual
rotineiro. Por outro lado, promessa de prazer pela diversão “acaba por se congelar no
aborrecimento, porquanto, para continuar a ser um prazer, não deve exigir mais esforço e, por
isso, tem de se mover rigorosamente nos trilhos gastos das associações habituais”
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 128).
O resultado dessa indistinção entre a vida cotidiana e a aparência que, veiculada
como “natural”, alça o status de realidade, é não somente a integração do indivíduo a ela por
meio de uma adaptação objetiva, mas ainda a integração pelo conformismo ao existente via
uma adaptação subjetiva. O estímulo à identificação é uma das estratégias centrais da
indústria cultural nessa direção, que explora as fraquezas de um ego fragilizado perante a
impossibilidade de internalização de uma autoridade externa, desde que a figura do pai foi
enfraquecida junto com o desenvolvimento do sistema capitalista. Na carência de um
elemento de diferenciação, à identificação só sobre um si mesmo, com um ideal que é mero
reflexo do ego, ou seja, sem alteridade. Ao invés de promover um desvio das pulsões para
algo diferente da satisfação sexual, e de sua canalização para a formação egóica, os bens
culturais, produzidos nos moldes da indústria, exploram essa tendência narcísea vinculando a
promessa de satisfação imediata ao ideal vivido pelas personagens de televisão e cinema. Se a
estrela usufrui nas telas o que seria uma felicidade ilimitada, o fato de suas representações se
parecerem muito com a vida cotidiana faz com que o indivíduo observe e espelhe o artista
com o entusiasmo de que esse fosse ele próprio, de maneira então a reproduzir o inconsciente
narcisista que anseia por alimentar o ego pelo investimento libidinal. A concretização desse
ideal, todavia não se apresenta como atingível, permanecendo o ego fragilizado e impotente.
Isso porque,
Na indústria, o indivíduo é ilusório não apenas por causa da padronização
do modo de produção. Ele só é tolerado na medida em que sua identidade
incondicional com o universal está fora de questão. Da improvisação
padronizada no jazz até os tipos originais do cinema, que têm de deixar a
franja cair sobre os olhos para serem reconhecidos como tais, o que domina
é a pseudo-individualidade. O indivíduo reduz-se a capacidade do universal
de marcar tão integralmente o contingente que ele possa ser conservado
como o mesmo. (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.144).
A tentativa de investimento narcíseo se mostra, no entanto, frustrada devido ao
princípio de realidade, que deixa ver a singularidade almejada e identificada nos “tipos
originais do cinema” e, portanto, também a satisfação que com ela seria pretensamente
67
atingida, como resumida ao seu próprio simulacro, ao ser permitida apenas enquanto
pseudoindividualidade.
Decorrente da compreensão oferecida pelo princípio de realidade, como seu
resultado perverso, está o fato que “esse princípio, então, ajusta o indivíduo à realidade, pois
seu bom senso mostra que não vale a pena se esforçar para entrar no mundo dos astros,
cabendo a satisfação de poder participar dele à distância, somente em seu imaginário.”
(PETRY, 2007, p. 34). Percebendo que é excessivamente dispendioso o esforço da
individuação e da construção de uma singularidade nos moldes prescritos pela indústria
cultural, o que resta é o conformismo, a adaptação aos padrões já estabelecidos e o usufruto
de pseudogratificações.
A adaptação objetiva e subjetiva à realidade é decorrente, portanto, do modo como a
indústria cultural mimetiza a realidade, fazendo com que o indivíduo acabe por ser integrado
ao também mimetizá-la. Dentre o que já foi escrito, é preciso salientar que o poder de
integração do indivíduo se deve não somente ao fato da ação de contrapor-se ao existente ser
dada como nula, já que tudo parece ser idêntico a tudo – o que acaba se transformando em
verdade –, mas também porque o indivíduo é propenso a deixar-se seduzir pela abdicação do
esforço da individuação. A respeito da exploração dessa característica como estratégia da
indústria cultural, vale fazer referência aos filósofos alemães:
Nos rostos dos heróis do cinema ou das pessoas privadas, confeccionados
segundo o modelo das capas de revistas, dissipa-se uma aparência na qual,
de resto, ninguém mais acredita, e o amor por esses modelos de heróis
nutre-se da secreta satisfação de estar afinal dispensado de esforço da
individualização pelo esforço (mais penoso, é verdade) da imitação
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.146)
Do esforço desesperado de individualização para a imitação das figuras de
autoridade que a indústria cultural produziu – atores, dançarinas, modelos –, substituindo
perversamente a figura paterna, é feita a exploração do impulso ao comportamento mimético,
feita em troca da fugaz sensação de existência. A mimesis, processo imemorial de
autoconservação, se reconfigura como mecanismo de adaptação quando, na produção de uma
realidade que não comporta a diferença, a imitação daqueles que são referência social parece
ser a única maneira possível de conservar-se (em termos subjetivos ou, em casos extremos,
até objetivos). Como explica Duarte (2003), “dessa forma, o procedimento que, na natureza,
garante a conservação daquelas espécies que, por sua fragilidade física, não resistiriam à força
de seus predadores, erigida no plano histórico a princípio de dominação da natureza, denota
68
um sofisticado grau de reificação que é o da sociedade tecnologicamente organizada do
capitalismo tardio” (DUARTE, 2003, p. 72), já que se configura como prolongamento da
natureza ameaçadora.
Unido a mais esse efeito da perda de uma referência de autoridade, que é a
manipulação da capacidade mimética, se encontra “a realização dos desejos conforme os
modelos que são expostos pelos produtos da indústria cultural, ou seja, a vontade passa a
desejar aquilo que se tornou ditatorialmente objeto de desejo.” (PETRY, 2007, p. 34).
Percebido o distanciamento (e ao mesmo tempo a proximidade) do “artista” na tela àquele que
está do lado de fora dela, como espectador, o investimento de cada um, como um consolo, é
no consumo dos mesmos produtos utilizados pela “celebridade”; ocorrendo, nessa associação
indireta entre a “personalidade” e o produto usado – ou ainda seu comportamento e formas
corporais –, a canalização do desejo para o que já está determinado. O que se quer, portanto,
encontra-se definido de antemão, de maneira que “a demanda ainda não foi substituída pela
simples obediência. [...] o poder da indústria cultural provém de sua identificação com a
necessidade produzida” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.128).
Por fim, como mais um elemento que contribui para a constituição da realidade
como aparência, ou vice-versa, destacam-se os esquemas e estereótipos (como por exemplo, a
dicotomia heróis e vilões) apresentados pela indústria cultural aos indivíduos. “Desde o
começo do filme já se sabe como ele termina, quem é recompensado, e, ao escutar, a música
ligeira, o ouvido treinado é perfeitamente capaz, desde os primeiros compassos, de adivinhar
o desenvolvimento do tema e sente-se feliz quanto ele tem lugar como previsto.”
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.118). Para que nada escape à moldura constituída pela
indústria cultural para apresentar o mundo aos indivíduos, porque do contrário se correria o
risco de denúncia quanto ao seu caráter de falácia, para tudo há algo determinado. Todos os
âmbitos da vida devem possuir algum esquema a ser inculcado como diretriz de compreensão
e conduta. A indústria cultural facilita assim o que ao ser humano é penoso, difícil, no caso a
mediação entre a realidade e o indivíduo, o objeto e o conceito, o total e o individual, enfim, a
constituição de si. O espaço de formação da autoconsciência é transformado em local de uma
identificação imediata com os modelos de vida veiculados. De acordo com os autores
alemães, “a função que o esquematismo kantiano ainda atribuía ao sujeito, a saber, referir de
antemão a multiplicidade sensível aos conceitos fundamentais, é tomada ao sujeito pela
indústria” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.117). Como explica Duarte (2003),
Horkheimer e Adorno se apropriam do conceito de esquematismo no
69
sentido de mostrar em que medida uma instância exterior ao sujeito, industrialmente organizada
no sentido de proporcionar rentabilidade ao capital investido, usurpa dele a
capacidade de interpretar os dados fornecidos pelos sentidos segundo
padrões que originalmente lhe eram internos (DUARTE, 2003, p. 54).
O modo como se organiza a indústria cultural restringe ao indivíduo apenas a
assimilação do que já está classificado, deduzido, conceituado pelos seus produtos, bem como
determina a capacidade de percepção da realidade, como já descrito anteriormente.
Todas essas estratégias de adaptação objetiva e subjetiva é que transformam a
cultura em adestramento. Funcionam, portanto, como meio, no mesmo sentido identificado
por Foucault (2008b) a respeito da tecnologia biopolítica. Ou seja, por ações indiretas e
calculadas para fomentar o consumo, os veículos da indústria cultural estabelecem uma
relação entre as massas e os artifícios (“quase naturais”) que estão ao redor dela. Da
combinação ocorrida entre os instrumentos tecnológicos disponíveis e o desejo de reconforto
e gozo, provoca-se uma modificação/adaptação das próprias massas, na medida em que essas
mimetizam a realidade artificialmente produzida pela indústria cultural – mas que se
apresenta como natureza/natural, ou seja, como sendo a própria realidade, escamoteando
enfim seu caráter antagônico e ideológico.
Nesse processo, o corpo pode ser, a partir da análise dos escritos de Horkheimer e
Adorno (1985), compreendido como meio – local em que se materializam os investimentos
sobre a vida, essa entendida como o modo individual de pensar e agir no mundo, os
fenômenos biológicos concernentes à população, e ainda, algo como que um impulso para a
liberdade. O corpo caracteriza-se, por conseguinte, como uma das variáveis (talvez a mais
importante) de manipulação e controle das massas. Tal compreensão se deve ao fato da
entrada da vida na história – que Foucault (1988) aponta como o “limiar da modernidade
biológica”, em que a biopolítica tem razão de ser – ser indicada pelos autores alemães como
decorrentes da própria imersão do homem primitivo na cultura, de que o controle de seu corpo
foi a condição principal.
55
Para explicar mais detalhadamente essa hipótese formulada, faz-se
necessário discorrer brevemente sobre alguns pontos da Dialética do Esclarecimento que
estão na base do conceito de indústria cultural.
55
Como explicam Horkheimer e Adorno (1985), o processo do Aufklärung não se limita aos Séculos das Luzes,
mas tem origem imemorial no contexto do desenvolvimento das práticas e noções de domínio da natureza, tanto
interna (o próprio corpo, as pulsões), como requisito civilizador e produtor da cultura, como externa, condição
essencial de sobrevivência da espécie. “Natureza” para esses frankfurtianos, quer dizer também e
simultaneamente, a esfera do mito, do não-controlável, daquilo que traz a ameaça, real ou simbólica, de
dissolução ou regressão à condição primeva, de “apenas corpo”. Paradoxalmente, a Modernidade é também um
momento de recrudescimento desse processo, justamente ao erigir o corpo como momento primordial de
expressão subjetiva.
70
2.2.1 O corpo como dispositivo por excelência
Realizando uma das críticas mais contundentes ao Aufklärung, Horkheimer e
Adorno (1985) vão apontar para o estado de dominação em que se organiza a sociedade
capitalista, como decorrente da centralidade sem precedentes adquirida pela razão e da
legitimidade em se exercer todas as ações ditas racionais, independente de seu sentido e fim
último. Para desvendar esse quadro, investem na busca daquilo que seriam as origens e o
desenvolvimento da razão ocidental, e apontam para a existência de uma matriz genealógica
comum entre mito e esclarecimento, e para a permanência de um elemento mitológico na
ciência. De acordo com os autores, foi para explicar o desconhecido, e assim livrar-se do que
se teme, que se deu, em tempos imemoriais, a constituição por parte do homem primitivo de
rituais mágicos, vários deles representados pelo corpo como suporte do movimento. Por via
do comportamento mimético (danças, usos de máscaras, sons, e outros recursos) buscou-se
uma identificação com aquilo que se supõe ser uma ameaça (comumente os fenômenos
desconhecidos da natureza), tentando aplacá-la. Trata-se, como proto-história da razão, de
colocar o mito como primeiro discurso racional e de fazer mover o corpo já sob o comando de
uma outra instância, não-corporal.
Ainda que a referência aos mitos não seja mais corrente para explicar aquilo que o
homem desconhece, a vontade de saber (esclarecimento) e o poderio que adquire, a partir da
modernidade, aquilo que é racional e científico, possui uma relação intrínseca com a
mitologia. Ao ser tomado como inquestionável, o conhecimento racional é comparável à
crença, pois ao substituir a magia pelo cálculo, e a imaginação pelo saber, manteve-se
mitológico, porque reproduz a lógica cega daquele. Além disso, da mesma maneira que o
mito, o desejo de saber/controle, que se concretiza sobremaneira por via da ciência, também
está calcado no medo daquilo que é desconhecido. De acordo com Matos (1999), “o
problemático desse desenvolvimento do pensamento (...) encontra-se na ‘solução’ levantada
para escapar ao medo. O saber que deve liberar do medo é definido como um poder no
sentido forte de domínio: é só quando os homens se tornam ‘senhores’ que eles conseguem
ficar sem medo” (MATOS, 1999, p. 111).
Partindo dessa relação imemorial entre mito e esclarecimento é que são questionadas
por Hokheimer e Adorno (1985) as premissas de liberdade do Aufklärung, o que fundamenta a
afirmação dos autores de que há uma “dialética do esclarecimento”, já que a razão tem como
elemento constitutivo e como resultado de sua ação a própria irracionalidade. Assim, a
71
“promessa iluminista de livrar o homem da tutela a que ele mesmo se expõe não pode ser
cumprida através da razão, que é um mero instrumento de autopreservação” (BENHABIB,
1996, p. 80).
Essa necessidade de controle fundamentada pelo medo e pela necessidade do ego de
autopreservação, resulta em uma configuração social (e do próprio desenvolvimento da
personalidade e da cultura) em que a técnica – o meio para melhor alcançar determinado fim –
ocupa papel central. Isso vai acontecer devido à importância adquirida pela ideologia do
progresso, expressão de poder e de auto-suficiência humana – ainda a questão do afastamento
do medo – perante a natureza. A razão servirá ao progresso, será seu instrumento. Por isso o
uso por esses autores da expressão razão instrumental e da atenção a um fetiche (como que
um encantamento, no sentido de feitiço) da técnica,
56
em que esta se basta por si mesma,
torna-se independente de seu fim, muitas vezes não necessitando ter fim algum.
Nesse quadro de centralidade da técnica visando um progresso sem limites (razão
instrumental), o corpo, que é um instrumento técnico por excelência – por ser seu controle
imprescindível para a sobrevivência do homem –, é tomado como objeto manipulável
enquanto é investido na direção de expressar a capacidade humana de dominar a natureza e de
explorá-la, fazendo-a render o máximo possível. Uma relação que somente potencializa
aquela outrora estabelecida com o corpo em tempos remotos, e que fora determinante para a
condição humana, de libertação da condição de natureza, ou seja, um estado de completa
submissão às pulsões. Algo somente possível por meio do domínio, via renúncia, da satisfação
pulsional imediata, adiada pela promessa de uma gratificação posterior, marca da civilização
(e de seu mal-estar). Para solapar o medo – e assim realizar uma espécie de emancipação em
relação a esse sentimento –, o homem primevo domina a si mesmo (sacrifício de si) e o
ambiente em que se encontra, transfigurando-se em humano já que, ao contrário dos animais,
não mais estaria de modo completo vulnerável aos impulsos corporais, sendo capaz de
engendrar mecanismos (astúcia, racionalidade, esclarecimento) para escapar aquilo que lhe
parece ameaçar.
A ciência, desde o período moderno, na tentativa de potencializar o corpo, e torná-lo,
como já dito, mais uma das expressões da capacidade humana de domínio, de progresso,
perpetuou essa relação de controle e solapamento da natureza interna, ou seja, legitimou
56
De acordo com Adorno (2003), numa relação supervalorizada com os meios em detrimento aos fins, “os
homens inclinam-se a considerar a técnica como algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria,
esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. Os meios – e a técnica é um conceito de meios dirigidos à
autoconservação da espécie humana – são fetichizados porque os fins – uma vida humana digna – encontram-se
encobertos e desconectados da consciência das pessoas.” (ADORNO, 2003, p. 132-3).
72
realizar sobre cada um o mesmo tipo de controle que aplica à natureza externa. O corpo
foi transformado em coisa morta. A ciência vê
o corpo como um mecanismo móvel, em suas articulações as diferentes
peças desse mecanismo, e na carne o simples revestimento do esqueleto.
Eles lidam com o corpo, manejam seus membros como se estes já
estivessem separados. A tradição judia conservou a aversão de medir as
pessoas com um metro, porque é do morto que se tomam as medidas – para
o caixão. É nisso que encontram prazer os manipuladores do corpo. Eles
medem o outro, sem saber, com o olhar do fabricante de caixões, e se traem
quando anunciam o resultado, dizendo, por exemplo, que a pessoa é
comprida, pequena, gorda, pesada. Eles estão interessados na doença, à
mesa já estão a espreita da morte do comensal, e seu interesse por tudo isso
é só muito superficialmente racionalizado como interesse pela saúde. [...]
Com as taxas de mortalidade, a sociedade degrada a vida a um processo
químico. (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 219).
O corpo é a própria natureza sobre a qual o indivíduo investe como se fosse um
artifício, estabelecendo uma relação de reciprocidade entre ela e o artifício e, portanto, de si
mesmo como coisa, em que é difícil fazer distinções quanto ao limite entre um e outro. É
dessa maneira que o corpo, como qualquer outro “material” ou intempérie da natureza, é
passível de ser entendido como sendo o próprio meio, no sentido definido por Foucault
(2008b), pois é apenas um outro elemento histórico-natural qualquer, manipulado para se
obter um efeito sobre as massas/população.
Para que essa hipótese do corpo como meio, como instrumento essencial de controle
sobre a vida, fique mais bem delimitada, é preciso esclarecer como o corpo é investido pelo
capitalismo tardio, como operam as estratégias para que o indivíduo mesmo o trate como
objeto manipulável, que anseie por tal relação. Isso se explica, de acordo com os autores
alemães, pela contraface do desejo de progresso, que autoriza a humilhação subterrânea do
corpo ao tomá-lo como coisa morta, processo que resulta em algo que lhe é aparentemente
oposto: a exaltação desse mesmo corpo na medida em que se vislumbra a possibilidade dele
se tornar a expressão encarnada do progresso. Para se construir um corpo atlético e/ou
saudável, ícones de prestígio e poder, é que são veiculados com tanta ênfase os métodos do
treinamento corporal e dietas (VAZ, 1999), bem como os inúmeros mecanismos de
embelezamento (ALBINO, VAZ, 2008).
57
Esse enaltecimento, entretanto, nada mais fará do que perpetuar a relação de
57
Como já anteciparam Horkheimer e Adorno (1985), “a exaltação dos fenômenos vitais, da fera loura ao navio
das ilhas do Sul, desemboca inevitavelmente no filme de sarongues, no cartaz publicitário das drágeas de
vitaminas e dos cremes para a pele, que são apenas os substitutos do objetivo imanente da publicidade: o belo e
nobre tipo humano, vale dizer, dos chefes fascistas e suas tropas.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.218).
73
reificação outrora estabelecida, pois potencializar o corpo só é possível enquanto esse é
objetivado, já que, para submetê-lo a qualquer um dos processos citados, é necessário
considerá-lo como “um outro” a ser subjugado. Somente assim, para fazê-lo suportar a dor e a
renúncia ao prazer imediato – sentir voluntariamente fome; levar o corpo até a exaustão por
meio do exercício físico; comer a partir do cálculo sobre o número de calorias e nutrientes dos
alimentos; expor-se a tratamentos de beleza em que se recebe eletro choques, entre outros.
Essa dupla relação de amor-ódio pelo corpo, é considerada por Horkheimer e Adorno (1985)
como patológica.
Na essência desse investimento sobre o corpo como meio de controle sobre a vida, é
que se encontra sua exaltação vendida pelos veículos da indústria cultural como possibilidade
de reconciliação com aquilo que foi perdido no momento imemorial de cisão entre natureza e
cultura. A promessa de reconciliação com a natureza que é vislumbrada no artista, quando
exalta os fenômenos vitais como estratégia de encontro com a perdida unidade do corpo
(Leib) e da alma, também está presente, de modo perverso, na propaganda – nazista ou não –
que utiliza essa pretensa possibilidade para, ao contrário, afastar o corpo de sua unidade
quando o potencializa/objetiva. Ela se apropria ainda da aproximação estética com o artista e
seu corpo, transformado em expressão da arte, e que deveria ser apreciado enquanto tal, e a
substitui pelo fomento de uma identificação imediata a um padrão de corpo tomado como
ideal, expressão de uma beleza única e verdadeira, ícone de poder e que, ao invés de
contemplado, deve ser almejado e alcançado pelo indivíduo. A obtenção de tal modelo
corporal, porém, como já dito, só pode ser alcançado por meio de uma submissão absoluta de
si, afastando-o assim cada vez mais do que seria o corpo vivo (Leib) tanto mais este é
transformado em apenas um corpo anatômico (Körper).
58
É pela promessa de uma reconciliação com a natureza, pela produção do desejo de
possuir uma singularidade e de promoção de uma identificação imediata com as figuras de
autoridade (ícones de beleza/poder da televisão e do cinema), que se estimula o investimento
subjetivo sobre a instância corporal.
59
Como explica Vaz (2008),
des-subjetivadas, as pessoas se tornaram não mais que o corpo, dado o
maciço investimento pulsional sobre a corporalidade que acompanhamos
contemporaneamente. Dito de outra forma trata-se de pensar a
subjetividade, o que dela restou, como coincidente com o corpo, como se
58
É nesse movimento de produção de um “nobre tipo humano” que Horkheimer e Adorno (1985) apreendem a
perpetuação do ideário fascista; o qual pode ser entendido como atualizado contemporaneamente na recorrente
veiculação pela mídia de modelos de beleza e saúde a serem seguidos.
59
A respeito das diversas estratégias utilizadas pela indústria cultural nesse sentido, ver próxima seção, e
também próximo capítulo.
74
sugere nas notas e esboços de Dialética do esclarecimento, ao se falar de um interesse pelo
corpo. É o corpo, não com possibilidade mimética e espontânea que nos
recorda a condição de natureza e indeterminação, mas como naturalidade
culturalmente desqualificada, que toma o lugar da imaginação na
investidura subjetiva. (VAZ, 2008, p. 201).
Apresentando a identidade como se estivesse materializada no corpo, o incitamento
de todos os produtos da indústria cultural é para que a busca pessoal de diferenciação se dê
pela manipulação do corpóreo. Esse ideal é tantas vezes repetido e feito de um modo que
estimula (um “controle-estimulação”, nos termos foucaultianos), por um “maciço
investimento pulsional sobre a corporalidade”, como explicado por Vaz (2008), que tal feito
acaba por se transformar em verdadeiro e desejável, mesmo que a busca por uma
singularidade a partir da conformação corporal, só possa resultar realmente em uma pseudo-
individualidade – a começar porque o corpo tem sua finitude. Ao contrário de uma
diferenciação, o que se alcança nesse processo é uma fungibilidade universal, pois por pouco
se distingue um indivíduo do outro, já que a identidade está centrada no corpo, fazendo com
que a substituibilidade não precise, e nem mais possa, ser específica. É nesse sentido que o
investimento sobre o corpo, estimulado pelos diversos mecanismos da indústria cultural,
apresenta um caráter não apenas de controle disciplinar, mas fundamentalmente de domínio
biopolítico, pois sua ação é sobre o corpo da população – os desejos e as emoções. O
resultado desse processo é a totalização das massas pela centralização da subjetividade no
corpóreo, o que há de mais comum – e cada vez mais, devido às estratégias do consumo no
sentido da padronização, mesmo quando aparentemente mostrada como diferença.
Um importante mecanismo no sentido de totalização dos indivíduos, que
complementa o aspecto já citado, é a renúncia fomentada ao excessivamente desviante. Como
em tempos imemoriais, o desconhecido é ameaçador, como a natureza quando ainda não
dominada pelo homem primitivo, ou por hora, pelo cientista. O estabelecimento de uma
norma,
60
por diversos mecanismos – culpa, exaltação, associação com o que é positivo ou
negativo socialmente, entre outros –, juntamente com o inculcamento do medo e o seu
direcionamento para “tipos” específicos, é um eficiente dispositivo para a regulação das
massas/população.
61
Quanto a esse aspecto é importante fazer referência aos escritos de
Foucault (1988, 1999, 2000, 2008a, 2008b) com relação a produção do perverso sexual, o
60
É importante assinalar que a norma aqui não se refere tanto a um modelo ideal. O processo aplicado sobre as
massas é, por sua vez, o de normalização e não de normação – típico da tecnologia de poder disciplinar –, já que
as estratégias são de ações indiretas, realizadas no meio, e que a norma é estabelecida a partir de uma média, a
qual comporta alguns desvios como elemento integrante.
61
Para maiores informações sobre os mecanismos de normalização contemporâneos, consultar seção e capítulo
subseqüentes.
75
degenerado, a histérica, o doente, a raça inferior, o mendigo. Todas essas são “figuras”
marcadas pelos fenômenos próprios da população e apresentadas por um “regime de verdade”
como desviantes, como balizas ex-negativo para o comportamento, a conformação corporal, e
até mesmo para o desejo – e portanto a concretização de identificação. O fomento de uma
noção (ou “cultura”) de perigo, de medo, ao redor de cada uma delas, é determinante para
configurar o controle biopolítico, sendo uma das estratégias primordiais da indústria cultural,
que potencializa o medo imemorial do ser humano ao que é estranho – o qual carrega a
diferença entranhada em seu corpo. Cumpre ela também a função de, pelos esquemas
veiculados, determinar o tratamento específico que deve ser dirigido a essas “figuras”, sendo
uma maneira de aplacar o medo, por já se saber de antemão como agir (e até pensar) com
relação a elas.
Vale ressaltar ainda, em sentido complementar à questão abordada no parágrafo
anterior, que a indústria cultural concretiza uma redução ao biológico de uma maneira que em
parte é distinta aquela abordada por Foucault. Refere-se aqui à potencialização – também pelo
fascismo, contra-face da indústria cultural – de uma tendência regressiva existente na cultura,
identificada e explorada pelos filósofos frankurtianos como uma dialética do esclarecimento.
De acordo com eles, como já dito em algumas passagens anteriores, o preço pago pela forja
do ego foi o enrijecimento contra a natureza (interna), a proibição dos prazeres da diluição do
“eu” no esquecimento, na satisfação imediata das pulsões. Esse processo resultou na oposição
entre o pensamento esclarecido e o mito (e também entre aquele e a mímesis), sobretudo pela
lembrança (e, portanto também ameaça de um retorno à condição de natureza) que causam a
esse prazer longínquo e primitivo, o qual, se não fosse solapado, impediria a própria
sobrevivência humana, assim como também a organização social existente, calcada sobre a
lógica do trabalho e da produção capitalista. Todavia, como comenta Jeanne M. Gagnebin:
esse recalque coletivo tem conseqüências funestas: exige um processo de
constituição subjetiva duro e violento em relação aos próprios desejos mais
‘originários’ ou ‘inconscientes’; pede a exclusão, igualmente violenta,
daqueles outros que, por sua atitude algo nômade, descompromissada,
lúdica e vagabunda, ou, simplesmente, menos clara e rigorosa, poderiam
ameaçar essa lei do trabalho e identificação forçados. (GAGNEBIN, 2006,
p. 68-9).
Dito de outra maneira, como conseqüência do recalque exigido pela civilização está
a canalização irracional da agressividade – em certa medida direcionada sobre si mesmo na
busca pelo desesperado controle das pulsões – para o objeto de recordação do que fora
76
reprimido: a natureza interna, essa instância obscura e por isso ameaçadora, que existe
em cada um. O medo inconsciente da natureza recalcada e a desapropriação da percepção dela
em si mesmo, resultam nessa repulsa pelo “outro”, e se encontra intimamente atrelada à
disposição dos indivíduos à adaptação a coletivos.
A canalização de um ódio ao desviante e o cultivo de um amor pelos iguais, é tema
exemplificado e desenvolvido de modo aprofundado no capítulo da Dialética do
Esclarecimento dedicado à problemática do anti-semitismo. Nele, os autores demonstram
como a propensão regressiva à obediência a estímulos tendencialmente biológicos encontra
sua forma completa nas alianças. É no coletivo que a percepção deturpada do exterior, de
projeção do medo interno como auto-doação do objeto, é reforçada de modo paranóico pelos
“semelhantes”. Para os autores alemães, o fascismo é a expressão mais bem acabada desse
processo de “colocar diretamente a serviço da dominação a própria rebelião da natureza
reprimida contra essa dominação” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p.172), tendo como
efeito extremo aquele que já conhecemos: os campos de concentração. O contorno mais atual
e cotidiano do caráter regressivo da cultura e da coletivização pode ser encontrado na aversão
aos homossexuais, prostitutas, obesos, negros, índios, estrangeiros, mendigos, feios, ou
qualquer outro grupo social visto como outro ou desviante.
62
Como explicam ainda Horkheimer e Adorno (1985), é no coletivo que o indivíduo
encontra um modelo rígido para se identificar e imitar, num uso perverso e alienado da
capacidade mimética, a bem de livrar-se das dificuldades que se encontram na constituição
subjetiva, mas que, realizando-se dessa maneira, aniquila suas próprias possibilidades. A
coletivização e o tratamento destinado pelo coletivo ao que não se integra, ou no próprio ritual
de iniciação, expressa assim o processo de coisificação da consciência, pois somente tratando
a si próprio como um material, dissolvendo-se como ser autodeterminado é que, por
conseguinte, se está disposto a “tratar outros como sendo uma massa amorfa.” (ADORNO,
2003, p. 129).
Como apontado no início dessa seção, o desiderato da indústria cultural é a
totalização da multiplicidade ao denominador comum da naturalidade. Ela apaga a
62
Não se pode aqui detalhar, mas vale abordar brevemente a consideração de Foucault (1999) sobre o nazismo.
De acordo com ele, este se fundamenta na constituição de um mito da raça pura, e por essa via legitima o poder
de fazer morrer, ou seja, o poder soberano, em meio a uma tecnologia de poder biopolítica e que portanto, se
propõe a fazer viver. A tanatopolítica porém, como explica o autor, é a contraface complementar à biopolítica, e
se concretiza tanto pelo exercício da morte real – de que se pode dar como um exemplo atual, a experimentação
de remédios em seres humanos que não seguem as diretrizes éticas de respeito à vida (CAPONI, 2004), quanto
da morte simbólica: “a morte política, a expulsão, a rejeição, etc” (FOUCAULT, 1999, p. 306). É importante
ainda, a generalização do poder de vida e morte para todo o corpo social, como já citado no capítulo primeiro
desse trabalho, referente ao conceito de biopolítica nos escritos de Foucault.
77
singularidade ao reduzir a construção da subjetividade ao exercício da pura
sobrevivência, da autoconservação. Reduz o sujeito enfim ao âmbito da economicidade, e o
faz por meio da canalização dos investimentos psíquicos, seja o medo ou o desejo, sobre o
corpo. Isso porque, como já dito, é o corpo que lembra a natureza que há no humano e é por
isso alvo de um amor-ódio, centro de uma promessa de reconciliação, de felicidade plena, que
é explorada pelos veículos da indústria cultural. Ela divulga o alcance de um prazer pleno
como incorporado à imagem do que seria um corpo saudável, um sexo limpo e cheio de
energia, uma beleza que expressa a pureza da raça, uma longevidade assegurada. É dessa
maneira que a indústria cultural regula as massas, pelo incitamento ao consumo de produtos e
técnicas para o alcance de uma aparência pelo menos “boa”, aceitável, em troca da promessa
de uma gratificação pelo sentimento de singularidade que enfim nunca chega, e que nem
pode, já que é estimulada a ser calcada no que há de mais basal no humano, seu corpo, sua
condição biológica. Pela promessa da individualidade ela totaliza. A indústria cultural opera
como dispositivo biopolítico, pois gerencia os fenômenos biológicos justamente ao reduzir
completamente, até a subjetividade, ao âmbito da animalidade.
2.3 PONTOS E CONTRAPONTOS COM A ANÁLISE FOUCAULTIANA DO NEOLIBERALISMO: O
DIAGNÓSTICO DA ESCOLA DE FRANKFURT
Abordamos na seção anterior como os produtos da indústria cultural e suas
estratégias de subjetivação reduzem o indivíduo à condição basal, de autoconservação, ou se
quiser, à situação de pura sobrevivência, econômica, de animalidade. O incitamento ao
consumo, a associação de produtos à identidade e a diluição da singularidade pela imitação
das figuras de poder, apresenta-se no tempo presente como a maneira central pelo que se
perpetua a lógica, apontada por Foucault, de totalização dos indivíduos pelo gerenciamento
desses como um conjunto de fenômenos biológicos.
Como já escrito ao final do capítulo sobre biopolítica, o controle sobre a vida nas
teorizações foucaultianas se dá não somente pelo gerenciamento da população pela ação sobre
os fenômenos que lhe são “próprios”, naturais, mas também pelas estratégias de controle e
manipulação das relações humanas em seu todo. De certa forma, é o que se coloca também
para Adorno (1991) quando este se refere a uma “história natural”: a tal ponto a sociedade se
reduziu e se simplificou ao nível do automatismo, que a dinâmica social se transformou
78
novamente em mito e repetição segundo a lógica cega da natureza. A generalização da
grade de inteligibilidade do homo oeconomicus ao não-econômico, permite que o
gerenciamento da população (ou sociedade) em sua forma neoliberal compreenda não
somente o que é público, mas também aquilo que talvez ainda possa se dizer privado – como
a relação mãe-filho citada na parte sobre biopolítica, apenas para ficar em um exemplo. A
forma inédita como isso se dá a partir do neoliberalismo, é fundamental para o paralelo que
aqui se quer fazer com o diagnóstico da Escola de Frankfurt sobre o tempo presente: trata-se
da responsabilização do indivíduo pelos riscos da existência e o incitamento para que esse
aplique sobre si mesmo, sua família, seu tempo, o “modelo investimento-custo-lucro”. Pelo
ideário neoliberal que se erige, sobretudo via aplicação de uma tecnologia ambiental – ou
seja, uma manipulação dos ganhos e perdas possíveis do sujeito econômico, visando
influenciar no cálculo que esse realiza anteriormente a uma ação –, todos, e
concomitantemente cada um, devem agir de maneira empreendedora, a bem de estar em
condições de concorrência no mercado. Como efeito correspondente à essa generalização da
grade de inteligibilidade do homo oeconomicus e da ação sobre as variáveis do ambiente, está
a integração à economia de toda uma série de técnicas comportamentais e de métodos que
consistem em “acarretar respostas cuja sistematicidade poderá ser notada e a partir da qual
será possível introduzir outras variáveis de comportamento” (FOUCAULT, 2008b, p. 368).
Por fim, no horizonte do neoliberalismo encontra-se para Foucault, “uma sociedade na qual
haveria otimização dos sistemas de diferença, em que o terreno ficaria livre para os processos
oscilatórios, em que haveria uma tolerância concedida aos indivíduos e às práticas
minoritárias, na qual haveria uma ação, não sobre os jogadores do jogo, mas sobre as regras
do jogo.” (FOUCAULT, 2008b, p. 354).
Partindo dessa compreensão foucaultiana do neoliberalismo, discorrer-se-á
brevemente sobre um ponto de convergência quanto ao diagnóstico descrito e aquele feito por
Horkheimer e Adorno (1985) sobre a indústria cultural. Em seguida, será apresentado um
contraponto quanto à análise dos efeitos da concorrência, que para Foucault é o da
configuração de um quadro de multiplicidade e diferenciação, típico da lógica empresarial,
enquanto para os autores alemães é justamente a conformação de uma sociedade
uniformizadora, sendo o imperativo à diferença uma das estratégias (talvez a principal) para
massificar os corpos, as condutas e, portanto, a própria subjetividade.
A maneira como a vida, no sentido acima descrito – que abarca todos os âmbitos da
existência humana –, fora moldada pela indústria cultural, é um dos temas que recebeu
atenção dos autores da Dialética do Esclarecimento, estando no centro de sua crítica à cultura.
79
Em seus escritos sobre a indústria cultural, Horkheimer e Adorno (1985) buscam
desvelar a indistinção que esta proporciona entre o particular e o universal, o modo como ela
despotencializa o sujeito a tomar, como elemento de mediação entre a sua existência e os
códigos morais de conduta e ética, um sentido que lhe seja interno. Como denúncia
fundamental dos autores, está a forma de mediação forçada que atinge justamente aquele
possível espaço de resistência (tal como eles o entendem) à ordem vigente – o espaço privado,
dos afetos, das relações desinteressadas –, sendo esse integrado tão completamente ao
princípio da utilidade que se presencia a transformação do “passeio em movimento e [d]os
alimentos em calorias (...). Com as taxas de mortalidade, a sociedade degrada a vida a um
processo químico.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 219).
A desapropriação da capacidade de se guiar por um princípio interno, em benefício
de sua substituição por uma racionalidade instrumental, é posteriormente objeto de um
estudo específico de Adorno, e que se materializa no livro Minima Moralia, do qual não é
insignificante que o subtítulo seja: reflexões a partir da vida danificada.
63
Nessa obra,
Adorno apresenta como a vida privada teve seu aspecto de imediaticidade tomado como um
instrumento pelas estratégias empregadas pelo sistema de produção, processo no qual a
cultura industrializada ocupa importante papel; mas também como o imediato, o sentido
interno da existência, é usurpado pelo sistema de dominação engendrado pelo capitalismo
tardio (DUARTE, 1997). De acordo com Adorno,
as ordenações práticas da vida, que se apresentam como se favorecessem o
homem, concorrem, na economia do lucro, para atrofiar o que é humano, e
quanto mais elas se estendem, tanto mais podam tudo o que é delicado. (...)
por trás do desmantelamento pseudodemocrático das formas de trato, da
cortesia fora de moda, da conversação sem utilidade e não sem razão
suspeita de trivialidade, por trás da aparente clarificação e transparência das
relações humanas, que não admite mais nada de indefinido, anuncia-se a
brutalidade nua e crua. A palavra direta, que sem delongas, hesitação e
reflexão diz as coisas na cara do interlocutor, já possui a forma e o timbre
do comando, que, sob fascismo, vai dos mudos aos calados. A objetividade
das relações humanas, que acaba com toda ornamentação ideológica entre
os homens, tornou-se ela própria uma ideologia para tratar os homens como
coisas. (ADORNO, 1992, p. 54).
Em outro texto, escrito posteriormente aos dois últimos citados, Adorno (1995)
explora o tema de como a centralidade da técnica, da racionalidade instrumental, promove a
63
Devido aos limites deste trabalho, não foi realizado um estudo detalhado sobre essa obra. Vale aqui a indicação
da pesquisa de Petry (2007), que se dedicou à investigação de Mínima Moralia na sua relação específica com o
tema da indústria cultural. Duarte (1997) também se debruçou sobre essa obra de Adorno e dela realizou uma
resenha, a qual tomou como guia para a escrita o tema transversal das relações particular/universal.
80
absorção do particular no universal, a partir da crítica que realiza ao tempo livre. Ao
invés de um espaço de conduta autônoma, de ações determinadas pelas próprias pessoas e,
portanto, de resistência à perspectiva social dominante e dominadora, o filósofo frankfurtiano
vai identificar o tempo livre como conjunto de atividades programadas e funcionais para a
estrutura do mercado, seja pelo consumo como fim em si mesmo, pela relação intrínseca que
estabelece com o trabalho, ou ainda pelo solapamento da criatividade e assim, da
determinação individual sobre o que fazer. O simples fato de o tempo livre estar em aparente
oposição ao trabalho, já marca seu conteúdo, que não deve lembrar em nada a produtividade,
sendo-lhe esta recordação proibida. Tal oposição é imprescindível para possibilitar a sensação
de que se está liberto de toda a opressão que o sistema capitalista exige das pessoas. Todavia,
como demonstra Adorno,
a palavra ‘hobby’ conduz ao paradoxo de que aquele estado, que se entende
como o contrário de coisificação, como reserva de vida imediata em um
sistema total completamente mediado, é, por sua vez, coisificado da mesma
maneira que a rígida delimitação entre trabalho e tempo livre. Neste
prolongam-se as formas de vida social organizada segundo o regime do
lucro (ADORNO, 1995, p. 72-3).
Além da normalização quanto à distinção entre trabalho e tempo livre, que
determina o que cabe a um e outro, esse último serve antes de tudo para restaurar a força de
trabalho, assim como ainda indiretamente incute nas pessoas as formas próprias da produção
industrial, da qual a repetição é elemento basilar. Porém, seu aspecto mais perverso talvez não
seja esse, mas sim sua estratégia de coação, que “não é, de nenhum modo, somente exterior.
Ela se liga às necessidades das pessoas sob um sistema funcional [...] [de maneira que] a
própria necessidade de liberdade é funcionalizada e reproduzida pelo comércio.” (ADORNO,
1995, p. 74). A percepção de que existe, na verdade, uma ausência de liberdade, e a
possibilidade de autodeterminação nos momentos em que se estaria pretensamente distante do
trabalho e sua lógica, é absorvida pela universalidade abstrata.
Oferecendo entretenimento aos seus consumidores a fim de lhes ocupar o tempo
livre já destituído de sentido, a televisão é um poderoso instrumento da indústria cultural no
desmantelamento do privado. Ela adentra esse espaço de modo mais efetivo e constante do
que os demais veículos da cultura de massas, com os quais estabelece uma intrincada teia para
produzir o mundo como aparência, preenchendo como que uma lacuna de sua dinâmica. Isso
se dá principalmente porque
81
aquela ‘proximidade’ fatal da televisão que também é causa do efeito supostamente comunitário
do aparelho, em torno do qual os membros da família e os amigos, que de
outra forma não saberiam o que dizer uns aos outros, se reúnem em mutismo,
não só satisfaz um desejo diante do qual nada de espiritual pode se manter que
não se transforme em propriedade, como ainda obscurece a distância real
entre as pessoas e entre as pessoas e as coisas (ADORNO, 1978, p. 350).
A essa proximidade, que tem como efeito a potencialização do sentimento de que
tudo pode ser adquirido e a reificação das relações interpessoais, se une ainda a substituição
da contemplação das imagens por sua direta absorção pelo telespectador, que propositalmente
é induzido a confundi-las com a vida mesma e a adotar os modelos de conduta transmitidos.
Os estereótipos da indústria cultural contribuem para idealizar a realidade como não contendo
fissuras. É por isso que “os estereótipos da televisão assemelham-se exteriormente, até na voz
e no dialeto, a Fulano e Sicrano, enquanto eles não só propagam refrões como o de que todos
os estrangeiros são suspeitos ou de que o êxito é o máximo que se pode esperar da vida.”
(ADORNO, 1978, p. 353) – facilitam, assim, a conformação do comportamento.
O cotidiano é invadido pela dinâmica da indústria cultural principalmente pelo fato
de a televisão se colocar como um interdito para uma relação mais íntima entre as pessoas, já
que ela toma um lugar central em suas vidas. Cumprindo a sorrateira função de passatempo, a
televisão adentra o ambiente doméstico e também aí veicula suas diretrizes com muito maior
eficiência, pois o que transmite, para se opor ao que é exigido no trabalho, a bem de não
lembrá-lo, não prescinde de uma análise, crítica, ou apreciação do telespectador. Nesse
estímulo onipresente no sentido de evitar a ação reflexiva, é que se torna possível a
exploração das relações humanas aos interesses do mercado, ao já estar inculcada como
natural, por exemplo, a “manutenção de uma atmosfera de camaradagem segundo os
princípios da ciência empresarial – atmosfera essa que toda fábrica se esforça por introduzir a
fim de aumentar a produção – coloca sob controle social o último impulso privado, justamente
na medida em que ela aparentemente torna imediatas, reprivatiza, as relações dos homens na
produção” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 141). A cultura, em seu nível de produção
industrial, resumiu-se à exploração ideológica da espontaneidade – de que o apoderamento
sobre o imediato é o efeito extremo –, e a invasão do que há de mais privado, no caso, as
relações humanas, pervertidas pelo princípio da utilidade.
Após essa breve descrição dos meandros da indústria cultural na diluição do sentido
interno e da maneira como ela adentra o que é (ou era) privado, é possível abordar o
contraponto da análise frankfurtiana quanto às estratégias e os efeitos da lógica concorrencial,
e aquela feita por Foucault sobre o mesmo fenômeno. Horkheimer e Adorno (1985) discorrem
82
ao longo do capítulo sobre a indústria cultural, dentre outras coisas, sobre os mecanismos
uniformizadores do neoliberalismo, não exatamente, portanto, o argumento que defendera o
filósofo francês. Para apresentar os argumentos daqueles, é essencial destacar primeiramente
que em suas análises “a indústria cultural preserva ainda uma parte do dinamismo advindo do
instável equilíbrio entre a oferta e a demanda em uma sociedade de mercado” (DUARTE,
2003, p. 57), típica do modelo liberal. Ela visa o ajuste da oferta às demandas a partir da
produção de necessidades, na mesma medida em que faz, de modo ideológico, parecer que
essas são naturalmente intrínsecas aos consumidores (como se o constructo do homo
oeconomicus liberal permanecesse existindo). Em torno desse princípio, a indústria cultural
normaliza ao falsear a possibilidade de escolhas, ou adaptar o indivíduo ao processo produtivo
pela repetição, e ainda na ilusão vendida de que pode concretizar a prometida liberdade.
Como explicam os autores da Escola de Frankfurt, o mecanismo da oferta e da
procura permanece muito mais atuante na superestrutura do que na esfera de produção
material. Esse mecanismo assim se estabelece em benefício da dominação das massas, que
são manipuladas para desejar o sucesso dos “bem-sucedidos”. A cultura industrializada
investe sobre o desejo, determinando-o, ao associar o consumo de seus produtos ao prestígio
social; sendo por esse motivo que “a indústria cultural abusa da consideração com relação às
massas para reiterar, firmar e reforçar a mentalidade destas, que ela toma como dada a priori e
imutável” (ADORNO, 1986, p. 93). Frente a esse diagnóstico é que os autores fazem a
seguinte assertiva com relação às “possibilidades de escolhas” oferecidas:
As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou
entre as histórias publicadas em revistas de diferentes preços, têm menos a
ver com seu conteúdo do que com sua utilidade para a classificação,
organização e computação estatística dos consumidores. Para todos algo está
previsto; para que nada escape, as distinções são acentuadas e difundidas. O
fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para
uma quantificação ainda mais completa. Cada qual deve se comportar, como
que espontaneamente, em conformidade com o seu level, previamente
caracterizado por certos sinais, e escolher a categoria dos produtos de massa
fabricada para seu tipo. Reduzidos a um simples material estatístico, os
consumidores são distribuídos nos mapas dos institutos de pesquisa (que não
se distinguem mais dos de propaganda) em grupos de rendimentos
assinalados por zonas vermelhas, verdes e azuis. O esquematismo do
procedimento mostra-se no fato de que os produtos mecanicamente
diferenciados acabam por se revelar sempre como a mesma coisa. [...] As
vantagens e desvantagens que os conhecedores discutem servem apenas para
perpetuar a ilusão da concorrência e da possibilidade de escolha
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 116).
Essa análise deixa transparecer como a escolha, e o que ela carrega de implícito, no
83
caso, o desejo de distinção, somente se concretiza de modo fictício; a exemplo do que
fica evidente no próprio uso do método estatístico – esse possui em si mesmo a
impossibilidade de apreender alguma singularidade, pois já totalizou os indivíduos ao tomá-
los como números. Logo, a diferença, num sistema regido pelas estratégias da indústria
cultural, não se apresenta como verdadeiramente possível, mas tão somente como paródia de
si mesma. A ficção configurada, no entanto, é imprescindível para que as engrenagens desse
sistema possam continuar se movendo, ainda que sem sair do lugar, pois o fetiche sobre o
produto se constitui justamente pela ilusão provocada quanto à sua característica particular.
Como se não fossem suficientes tais exemplos sobre as estratégias de massificação do tempo
presente, ressalte-se ainda que a classificação das pessoas em níveis, apenas as organiza em
torno do que é a norma, cumprindo igualmente a função de determinar exatamente o que se
deve ser, como se comportar, o que consumir; sendo os produtos, assim como o que se
estimula nas pessoas, variações da mesma coisa.
O caráter falacioso da possibilidade de escolhas somente retrata, como já dito, o
quanto a demanda corresponde ao que já foi produzido pela indústria cultural, a partir de seus
estratagemas para manipular o desejo – alguns abordados na seção anterior e posterior desse
texto. Logo, a afirmação de que a indústria cultural dá às pessoas o que elas desejam é
verdadeira, sobretudo com relação à diversão. Para que esta promova o gozo, da maneira
como se aprendeu a esperar de determinados produtos categorizados como divertidos, ela
deve exigir das pessoas apenas o que elas já estão habituadas a fazer, ou seja, uma seqüência
automatizada de ações. A “mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa em seu lazer e
sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a fabricação de mercadorias
destinadas à diversão, que esta pessoa não pode mais perceber outra coisa senão as cópias que
reproduzem o próprio processo de trabalho.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 128).
Apresentando-se como uma válvula de escape, uma “ilha” de liberdade, ao
pretensamente gratificar – o que o trabalho (também) não possibilita – pela definição do que
promove ou não o gozo – e não o prazer, como se faz crer –, o entretenimento presta-se
somente a reprimir ao invés de libertar; seja porque, “liberdade organizada é coercitiva”
(ADORNO, 1995, p. 74), ou pela promessa de liberdade e felicidade presente em cada
produto ou prática de entretenimento não se cumprir – como será abordado logo mais. Essa
situação toma proporções maiores com a transformação do entretenimento em imperativo.
Como já evidenciara Adorno (1995), “Ai de ti se não tens um ‘hobby’, se não tens ocupação
para o tempo livre! então tu és um pretensioso ou antiquado, um bicho raro, e cais em ridículo
perante a sociedade, a qual te impinge o que deve ser o teu tempo livre” (ADORNO, 1995, p.
84
74). A realização de práticas e produtos específicos assume para o indivíduo a posição de
necessidade, incitando o consumo de uma maneira que é positiva, pois “não poderia obrigar
as pessoas a comprar barracas e ‘moto-homes’, além de inúmeros utensílios auxiliares, se algo
nas pessoas não ansiasse por isso; mas, a própria necessidade de liberdade é funcionalizada e
reproduzida pelo comércio; o que elas querem lhes é mais uma vez imposto.” (ADORNO,
1995, p. 74).
A alegria e o desejo de liberdade transformam-se então em um estratagema para o
conformismo, assim como a ilusão fomentada de que as necessidades do consumidor,
previamente organizadas e definidas, poderão ser satisfeitas. Essa satisfação é proibida pela
indústria cultural de ser encontrada por meios criados pelo próprio indivíduo, pois a
criatividade é um perigo quanto pode revelar que suas promessas servem apenas para
perpetuar a resignação quanto ao cotidiano, ao sistema, à própria indústria cultural e à
realidade por ela construída. Por isso “a falta de fantasia, implantada e insistentemente
recomendada pela sociedade, deixa as pessoas desamparadas em seu tempo livre” (ADORNO,
1995, p. 77).
Retomando a análise de Foucault (2008b) sobre o neoliberalimo, quanto à
diferenciação que este exige do indivíduo devido ao princípio da concorrência que lhe é
inerente, assinala-se aqui para o fato de que estar em condições de concorrer no mercado é
possível somente quanto em primeiro plano se faça parte dele – um aspecto que parece não
deter muito a atenção do filósofo. Nesse sentido, questiona-se sobre a opção concreta de
diferenciação, ou somente sua realização de modo falacioso, como já foi abordado com
relação às possibilidades de escolha oferecidas pelo mercado, a padronização quanto às
formas de felicidade e liberdade, e a adaptação ao sistema industrial que lhe é conseqüente.
Para Horkheimer e Adorno (1985, p. 137), “as forças da sociedade já se
desenvolveram no caminho da racionalidade, a tal ponto que qualquer um poderia tornar-se
um engenheiro ou um manager, que se tornou inteiramente irracional a escolha da pessoa em
que a sociedade deve investir na formação prévia ou a confiança para o exercício dessas
funções”. A humanidade foi reduzida à função de meros empregados ou consumidores, e o ser
humano é tratado em geral, substituível de acordo com os interesses do mercado, sendo a
singularidade não uma opção realmente dada, mas a ideologia sob a qual a indústria cultural
se reveste. Em tempos de “pseudo-individualidade”, como tratado na seção anterior, “as
particularidades do eu são mercadorias monopolizadas e socialmente condicionadas, que se
fazem passar por algo de natural” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 145). O caráter
fungível do indivíduo deve ser mantido, sobretudo pelo inculcamento de que não se pode
85
perder nada: da piada ao brinde inútil pelo qual se luta, não por outra coisa senão pelo
sentimento de pertença, de que se está aproveitando todas as “chances” – do que exatamente
nem sempre é claro. Mesmo a economia e a sociedade estando organizadas na lógica da
empresa e da concorrência, a distinção esbarra no imperativo de não fugir demais à regra, pois
só têm as melhores chances aqueles que se identificam inteiramente com o princípio de
exploração do trabalho alheio. É por isso que os autores alemães não hesitaram em afirmar
que
quem resiste só pode sobreviver integrando-se. [...] A rebeldia realista torna-se
a marca registrada de quem tem uma nova idéia a trazer à atividade industrial.
[...] Quanto mais incomensurável é o abismo entre o coro e os protagonistas,
mais certamente haverá lugar entre estes para todo aquele que mostrar sua
superioridade por uma notoriedade bem planejada. Assim, também sobrevive
na indústria cultural a tendência do liberalismo a deixar caminho livre a seus
homens capazes. Abrir caminhos para esses competentes ainda é função do
mercado, que sob outros aspectos já é extensamente regulado e cuja liberdade
consistia mesmo na época de seu maior brilho – para os artistas bem como
para outros idiotas – em morrer de fome (HORKHEIMER; ADORNO, 1985,
p. 124).
A renúncia ao excessivamente desviante afasta o contato com a novidade, que de
resto deve ser instantaneamente absorvida, a fim de ser útil ao sistema e a bem de não
oferecer risco ao engodo sobre a realidade, tão minuciosamente arquitetado. O princípio que
deve permanecer é o da repetição, do sempre-mesmo, da promessa não cumprida. Com
relação à diversão, por exemplo, que oferece distração aos seus consumidores, essa é
imediatamente tornada impossível na exigência de presteza na assimilação do estímulo
programado. São as promessas mantidas enquanto tais que permitem a indústria cultural
conservar seus consumidores sob domínio; e é nesse ponto que ela se configura como
oposição à obra de arte, que mostra a satisfação em sua real forma, como algo rompido. Dessa
maneira a indústria cultural não sublima, mas reprime, ao insinuar repetidamente que
determinado produto acarretará prestígio àquele que o possui, quando na verdade a
singularidade que se alcança é apenas fictícia. Resta ao indivíduo postergar a concretização de
seu desejo, recalcá-lo, até que mais uma vez este seja canalizado para outro objeto de
consumo. Propositalmente o objeto de desejo é confundido/transformado pela indústria
cultural (via propaganda) com as/nas prescrições sobre o mesmo, devendo o consumidor ficar
enfeitiçado pelos meios, já que o fim lhe está proibido.
Na tentativa de descrever tão perfeitamente o produto até que ele se torne palpável
para quem lê seu anúncio, a propaganda se transfigura no próprio produto. Ela reduz a vida a
86
uma promessa, e o faz tão mais eficazmente quanto se configura como um instrumento
limitador da concorrência. Atualmente, apenas as grandes corporações podem fazer uso da
publicidade, devido ao alto investimento necessário – o que suscita a questionar sobre a
realidade do princípio concorrencial.
Pela urdidura da indústria cultural com o “eu”, da maneira como fora descrito até
aqui, vê-se como ela investe sobre a idealização do dever ser desejável ao indivíduo, o que é
aceitável, o que é, por fim, considerado como normal, ou ainda natural, espontâneo, e que na
verdade apresenta-se como o mesmo. Da produção da individualidade, típica da disciplina que
trabalhava no sentido de organizar a multiplicidade, a indústria cultural como dispositivo
biopolítico opera pela totalização da multiplicidade, ainda que a insinuação incessante de que
seus produtos e estereótipos ofereçam o contrário seja sua estratégia de controle mais
poderosa. No encaminhamento dessa seção para seu fim, é importante fazer um breve
comentário sobre outros modos de regulação característicos da indústria cultural: o cálculo de
probabilidade para eliminar o acaso e o desaparecimento do trágico.
Quanto à questão da eliminação do acaso, essa é uma estratégia basilar da biopolítica
no sentido de regulação da população, tal como descrevera Foucault. Em sua análise, o autor
francês atenta para o uso do cálculo estatístico na apreensão das discrepâncias e seu
reconhecimento como parte da naturalidade da população. A anomalia, ainda que
compreendida como natural e impossível de ser completamente eliminada, era investida no
sentido de anular o excessivamente irregular, tomado como algo negativo, um contra-
exemplo. Na mecânica da indústria cultural, a eliminação do acaso se realiza de maneira
invertida e paradoxal, pois se investe na promoção de um desejo quanto a ele e na
concomitante demonstração da impossibilidade de alcançá-lo. Como explicam Horkheimer e
Adorno (1985),
Na era da estatística, as massas estão muito escaldadas para se identificar com
o milionário na tela, mas muito embrutecidas para se desviar um milímetro
sequer da lei do grande número. A ideologia se esconde no cálculo de
probabilidades. A felicidade não deve chegar para todos, mas para quem tira a
sorte grande, ou melhor, para quem é designado por uma potência superior –
na maioria das vezes a própria indústria do prazer, que é incessantemente
apresentada como estando em busca dessa pessoa (HORKHEIMER;
ADORNO, 1985, p. 136).
O cálculo probabilístico cumpre a função dúbia de apresentar a possibilidade de
qualquer um ser inesperadamente o ganhador de uma fortuna, ou a nova celebridade da
televisão, que descobrira nele um talento incomparável, mas curiosamente nunca percebido
87
por ninguém, e igualmente, para bem da “estrela” ser reconhecida como tal, sua posição
de destaque deve ser sempre algo “distante”. O duplo efeito desse quadro é a adaptação, a
partir da canalização do desejo para determinadas posições e situações sociais, e de
conformismo, pois o que se supõe ser o livre desenvolvimento da dinâmica social escapa ao
controle individual.
À primeira vista, portanto, o acaso não deve ser excluído, mas cobiçado. Todavia,
como explicam os autores frankfurtianos, ele nem sequer existe, pois “a identidade do gênero
proíbe a dos casos. A indústria cultural realizou maldosamente o homem como ser genérico.
Cada um é tão-somente aquilo mediante o que pode substituir todos os outros: ele é fungível,
um mero exemplar.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 136). Por conseguinte, a própria
singularidade se evidencia como impossível e dispensável, e não se exige do espectador nada
que ele não possa dar – sobretudo porque o que ele deve desejar já está determinado. Nessa
teia constituída, o trabalho é por vezes – dependendo da circunstância – resumido à nulidade,
de maneira que a diferença entre acaso e planejamento seja tida como ínfima. “O próprio
acaso é planejado; não no sentido de atingir tal ou qual indivíduo determinado, mas no
sentido, justamente, de fazer crer que ele impere. Ele serve de álibi dos planejadores e dá
aparência de que o tecido de transações e medidas em que se transformou a vida deixaria
espaço para relações espontâneas e diretas entre os homens.” (HORKHEIMER; ADORNO,
1985, p. 137). Novamente retorna a estratégia de funcionalização do espontâneo, motor de
ação da indústria cultural, que falseia a seleção de casos específicos para representar a média,
em benefício de fazer crer na existência de algo que foge ao controle total, na capacidade de
mudança e ação, em troca de adaptar o indivíduo ao sistema, de que, no mais, ele não passa de
uma peça substituível.
Com relação ao trágico e sua transformação pela cultura industrializada em
mecanismo de regulação, isso se dá pela sua assimilação e uso de modo calculado – o que
indica sua destruição. O trágico é justamente o oposto de uma predeterminação, pois significa
originalmente a capacidade individual de confronto com o todo, com a sociedade, de que o
resultado é a constituição da singularidade, de si mesmo. Hodiernamente o trágico adquire o
caráter de destino, ao passo que as pessoas são levadas a aceitar o sofrimento como inerente à
vida. Esse não é escamoteado pela indústria cultural, mas sim inculcado como necessário para
o desenvolvimento social, para o progresso. A impossibilidade de confronto serve tacitamente
ao ajuste a uma vida ordenada. “O trágico é reduzido a ameaça de destruição de quem não
coopera [...]. O destino trágico converte-se na punição justa, na qual a estética burguesa
sempre aspirou transforma-la” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 142). As pessoas são
88
responsabilizadas não somente pelas dificuldades que acometem suas vidas, mas
igualmente a elas é exigido que encontrem uma solução – que, no mais dos casos, já está dada
e serve para reafirmar a moral vigente. Dela as pessoas procuram a todo custo compartilhar,
como também da lógica fustigante do trabalho, para serem qualificadas como “pessoas de
confiança”. É diante desse quadro que Horkheimer e Adorno (1985) afirmam que,
hoje, o trágico dissolveu-se neste nada que á a falsa identidade da sociedade e
do sujeito, cujo horror ainda se pode divisar fugidiamente na aparência nula
do trágico. [...] A própria capacidade de encontrar refúgios e subterfúgios, de
sobreviver à própria ruína, com que o trágico é superado é uma capacidade
própria da nova geração. Eles são aptos a qualquer trabalho porque o processo
de trabalho não os liga a nenhum em particular (HORKHEIMER; ADORNO,
1985, p. 144).
Após descrever brevemente alguns dos mecanismos atuais de regulação das
massas/população, vale destacar, por fim, que apesar de assinalar para a emergência do
consumo como elemento de controle, Foucault (2006b)
64
não se debruça sobre essa questão, o
que demonstra a importância fundamental da análise frankfurtiana sobre o tema, sobretudo se
pensar na radicalidade que adquirem contemporaneamente as assertivas de Horkheimer e
Adorno com relação à indústria cultural (ZUIN, 2001; VAZ, 2003; ALBINO, VAZ, 2008;
VAZ; 2008, entre outros). Ao compreender como a indústria cultural opera enquanto um
dispositivo biopolítico, emergem os modos de subjetivação que são hodiernos, ou seja, como
se dão as relações de poder, quais suas estratégicas de controle no tempo presente e qual
diagnóstico é possível fazer delas, para então pensar a partir delas.
64
De acordo com Foucault (2006a), “hoje, as pessoas não são mais enquadradas pela miséria, mas pelo
consumo. Tal como no século XIX, mesmo se é sob um outro modelo, elas continuam capturadas em um sistema
de crédito que as obriga (se compraram uma casa, móveis...) a trabalhar todo o santo dia, a fazer hora extra, a
permanecer ligadas. A televisão oferece suas imagens como objeto de consumo e impede as pessoas de fazer o
que se temia tanto, já no século XIX, ou seja, ir aos bistrôs, onde se faziam reuniões políticas, onde os
reagrupamentos parciais, locais e regionais da classe operária corriam o risco de produzir um movimento
político, talvez a possibilidade de derrubar todo esse sistema” (FOUCAULT, 2006a, p. 67). Ainda que não aponte
para o que seria uma dependência psicofisiológica com o consumo, Foucault indica a relação existente entre
consumo e controle; meios de comunicação e conformismo.
89
3 PRESCRIÇÕES DE EMBELEZAMENTO: SOBRE A CONFIGURAÇÃO DE UM PROJETO
BIOPOLÍTICO DO FEMININO
3.1 INTRODUÇÃO
Os receituários destinados ao embelezamento têm importância fundamental na
materialização dos discursos que se referem a um dever ser feminino. As prescrições para os
cuidados de si revelam as expectativas sociais específicas daqueles tempos em que foram/são
veiculadas, não somente no que se refere às condutas e às formas corporais vistas como
reprováveis, aceitáveis ou desejáveis para as mulheres, mas também oferecem indicativos
sobre a dinâmica de funcionamento e organização da sociedade ao longo dos tempos – seus
princípios, ideais, e, em especial, lugares e tempos destinados e ocupados pelas experiências
de ser mulher. Em meio às entrelinhas dos anúncios publicitários e conselhos publicados, os
manuais de beleza traduzem, especificam, promovem as representações prescritas para o
feminino, a partir de um jogo complexo e instável composto por contradições e ambigüidades
inerentes ao encontro de expectativas sociais distintas quanto a papéis, funções, modelos de
corpo e métodos de cuidado para com ele, e sutis (ou às vezes duras) resistências das
mulheres, quanto ao modo de ser que lhe foram propostos em tempos anteriores, assim como
o nascimento de novos mecanismos de domínio. Os manuais de beleza permitem descobrir
essa multiplicidade, analisá-las por diferentes perspectivas, em seus tempos e espaços
distintos, algo que se encontra ainda por explorar, em meio a tão inúmeras fontes.
65
Objetivando mais bem compreender as pedagogias dos receituários de beleza,
especificamente suas estratégias de persuasão e convencimento ao consumo de produtos e à
adequação da mulher aos modelos de beleza e comportamento prescritos – em uma palavra,
como os mecanismos de subjetivação por elas são configurados –, a pesquisa cujos resultados
aqui se apresentam investigou dois receituários destinados ao público feminino. Um deles é a
Página Feminina,
66
suplemento dominical do jornal Dia e Noite, publicado entre 1936 e
65
Vale destacar os trabalhos de Sant’Anna (1995) e Priore (2000), que partindo de diversificados registros sobre
o “gesto que embeleza” – teses, artigos, manuais de beleza, anúncios publicitários, conselhos das mais diversas
fontes – investigaram a história das transformações do corpo feminino no século XX no Brasil. Já Vigarello
(2006) narra historicamente, a partir de imagens, mas, principalmente, das palavras que são utilizadas para
descrever a beleza em cada recorte histórico por ele realizado, o que seria uma “invenção e reinvenção” da
beleza na Europa desde o Renascimento até os dias de hoje.
66
Doravante referida, neste trabalho, como Página. Ela foi publicada entre os anos de 1939 e 1941, sendo todas
90
1941 em Santa Catarina. O outro conjunto de fontes é composto pela contemporânea Boa
Forma, publicação mensal e em circulação de modo ininterrupto há cerca de vinte e três anos,
uma das revistas com maior tiragem no Brasil, vendida também no exterior.
A recorrência a estes dois conjuntos de fontes se deve aos indicativos de que esses
receituários são importantes mecanismos de politização dos corpos, instrumentos que incitam
à realização de um investimento maciço sobre o corpo e o organismo, algo que foi a partir do
século XVIII uma preocupação estatal, processo identificado e nomeado por Foucault (1999)
como biopolítica. Hoje isso talvez se apresente muito mais como uma aposta do mercado (ou
do Estado a serviço do mercado). Nesse posicionamento do corpo de modo
estratégico/rentável, visando potencializá-los no sentido de uma produtividade, os esquemas
da indústria cultural
67
têm função basilar ao produzir mecanismos de (des)subjetivação
calcados essencialmente sobre a corporalidade, promovendo por diferentes vias, sobretudo
aquelas referentes ao entretenimento, um investimento que se destina à redução da identidade
ao corpo. Considerando o caráter de “guia” que esses receituários – que se prestam em grande
medida a “entreter” a mulher – afirmam possuir,
68
pretendemos identificar possíveis
contornos de um projeto biopolítico para o feminino, passível de ser apreendido pela análise
de suas prescrições de embelezamento e de conduta e do modo como seus mecanismos de
subjetivação se assemelham, transpassando tempos e espaços.
A Boa Forma é uma cartilha que contém técnicas (dietas e séries de exercícios),
fármacos para a pele e o cabelo com fins de embelezamento do corpo e cuidados com a saúde,
e reportagens com temas de auto-ajuda. É uma revista destinada às mulheres, às expectativas
de consumo que podem ser produzidas ou que se encontram no horizonte de uma feminilidade
urbana, contemporânea, impelida à disputa no mercado afetivo masculino (as mulheres de
Boa Forma são jovens e heterossexuais). Ela organiza-se em seções específicas que se
as suas edições fotografadas e sistematizadas. O material original faz parte do acervo da Biblioteca Pública do
Estado de Santa Catarina.
67
Tomamos aqui o conceito de indústria cultural em sentido rigoroso, correspondente àquele que foi cunhado por
Horkheimer e Adorno (1985) nos anos 1940, mas desenvolvido por Adorno desde uma década antes até os anos
1960. Trata-se, portanto, de entender a indústria cultural como um conceito ao mesmo tempo crítico e irônico,
como um processo que se ocupa, do ponto de vista da organização capitalista, da produção e do consumo dos
bens culturais. Não se trata, portanto, de um “sujeito” e não pode ser reduzido ou confundido com a “mídia”.
68
Uma postura assumida e reforçada pelos manuais analisados e que aparecem de modo evidente nos dizeres da
Página: “nenhuma mulher tem o direito de desprezar este conselho” (PÁGINA..., 30/03/1941); enquanto a Boa
Forma afirma compreender as angústias, frustrações e medos da mulher, prometendo ajudá-la a superá-las por
meio das técnicas que ali veicula (GREINER, 2003, p. 8, entre outras). Essa pretensão da revista Boa Forma, de
ser um guia para a leitora, também é identificada por Andrade (2003). É preciso salientar que, ao assumir tal
função, esses receituários de beleza posicionam-se como produtores de saber, ao mesmo tempo em que acabam
por urdir complexas relações de poder.
91
dividem em: 1. Fitness; 2. Beleza; 3. Dieta e nutrição; 4. Bem-estar; e 5. Especial,
69
sendo que em certos momentos os conteúdos de cada seção misturam-se com os de outras.
Além dessas seções a Boa Forma apresenta sempre uma reportagem com a “Garota da Capa”
e outras mini-seções que veiculam conteúdos similares ao das seções fixas.
70
Foram analisados para essa pesquisa os editorais – expressão daquilo que seria a
doutrina da revista –, as chamadas de capa – local em que a exposição corporal é mais
evidente e com menos mediações, pois realizada pelo recorrente apelo à imagem de
modelos/atrizes/cantoras em vestes diminutas, fazendo entender que um corpo como aquele
deve ser exibido e na mesma medida admirado, desejado –, e reportagens específicas sobre
saúde e embelezamento. O recorte temporal foi composto pelas quatro últimas e duas
primeiras edições de cada ano a partir de setembro de 2001, completando-se o conjunto em
fevereiro de 2006.
Quanto à Página, trata-se de um manual sobre os cuidados com a aparência,
contendo ensinamentos sobre artifícios como maquilagem, vestimenta, acessórios, exercícios
físicos, além de dicas de comportamento social no espaço público e privado, informações
sobre educação dos filhos, e poesias e crônicas que exaltam o amor e a maternidade. A Página
apresentava-se como guia para as tensões vividas pelas mulheres – embelezar-se, mas sem
virar uma “bonequinha de luxo”; trabalhar, sem deixar de ser uma mãe e esposa esmerada; ser
“moderna”, mas não romper com a ordem social estabelecida; ser convencida de que a sua
submissão cumpre uma função importante para a sociedade; enfim, como um embate entre
aqueles princípios tradicionais e inovadores supracitados – e veiculava, de modo geral, as
imagens das atrizes do cinema hollywoodiano como modelos de beleza e conduta.
71
A análise
concentrou-se em edições (semanais) do ano de 1939 e em todas as que compreendem o
período de fevereiro de 1940 a dezembro de 1941 – focalizando a estação do verão, momento
em que na cidade de Florianópolis já havia uma insuspeita preocupação com a aparência das
formas e o uso de produtos e acessórios específicos para esse período do ano.
72
Afinal, é na
década de 1930 que o banho de mar começa a se firmar na Ilha de Santa Catarina e no
continente como opção de lazer, tornando-se não somente um hábito, mas também expressão
de civilidade e elegância (FERREIRA, 1998). A busca por tornar Florianópolis uma cidade
69
Em determinadas edições essas apresentam nomenclaturas diferenciadas, adquirindo em algumas delas um
tom bastante imperativo: 1. Mexa-se; 2. Fique mais bonita; 3. Acerte sua alimentação; 4. Viva melhor.
70
Como ilustração de algumas das capas da revista Boa Forma, ver Anexos A (p.133).
71
Como ilustração de algumas das Páginas Femininas analisadas, ver Anexos B (p.134).
72
Assim as mulheres são educadas pela Página: “Estamos na epoca (sic) em que se deve fazer ginastica (sic)
para modelar o corpo e torna-lo (sic) elegante para as toilettes leves de verão” (PÁGINA..., 19/10/1941).
92
urbana, evidente nos jornais da época, dentre eles o Dia e Noite,
73
protagoniza a
transformação em moda do deslocamento para as praias em período de veraneio, daqueles que
compunham a elite da cidade. Um costume que não demora a ser seguido pelas camadas
populares.
É curioso observar que nos anos 1940 se constitui o conceito de indústria cultural,
cunhado por Horkheimer e Adorno (1985) em 1947, quando da primeira edição de seu
clássico livro Dialética do esclarecimento. Imagem porta-voz da indústria cultural são
justamente o cinema e suas estrelas produzidos e disseminados a partir da já consolidada
indústria de entretenimento visual de Hollywood. De acordo com eles,
As personagens descobertas pelos caçadores de talentos e depois lançadas
em grande escala pelos estúdios são tipos ideais da nova classe média
dependente. A starlet deve simbolizar a empregada de escritório, mas de tal
sorte que, diferentemente da verdadeira, o grande vestido de noite já parece
talhado para ela. Assim, ela fixa para a espectadora, ainda mais
enfaticamente a distância entre elas. Só uma pode tirar a sorte grande, só um
pode se tornar célebre, e mesmo se todos têm a mesma possibilidade, esta é
para cada um tão mínima que é melhor riscá-la, de vez e regozijar-se com a
felicidade do outro, que poderia ser ele próprio e que, no entanto, jamais é.
(HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 136).
Sendo a indústria cinematográfica veículo privilegiado dos desígnios da indústria
cultural, tal como apontado por esses autores que presenciaram exatamente o momento de
boom de Hollywood quando viveram nas cercanias de Los Angeles, junto com outros exilados
alemães durante parte da II Guerra, destacamos a importância da análise da Página, pois
publicada naquele que parece ser o período em que a indústria cultural começa a ser gestada
no Brasil. Este receituário de embelezamento divulgou e constituiu as premissas dessa forma
de produção de necessidades de consumo, fazendo-as alcançar, ao menos potencialmente, as
senhoras e senhoritas da Ilha de Santa Catarina, distantes dos centros de civilidade e
referência na época – Rio de Janeiro e São Paulo. Data desse momento a corrente sugestão
por jornais e revistas, dentre eles a Página, para que as mulheres, na medida em que lhes
fosse possível, adotassem a aparência das estrelas do cinema e seu estilo, considerados como
modelo de vida moderno – este, aliás, fortemente pautado nas diretrizes do consumo
(FIGUEIREDO; 2007). O cinema era já na década de 1940 e na provinciana Florianópolis,
uma opção de entretenimento, haja visto que a cidade possuía três salas de projeção onde se
73
Como dito em uma das primeiras edições do jornal Dia e Noite, seu objetivo é “o de salientar os
melhoramentos de vulto que se operam no Estado, procurando amparar todas as iniciativas tomadas para o
engrandecimento da economia catarinense” (DIA..., 23/07/1936).
93
assistia westerns, comédias, romances, filmes, desenhos, traillers, diariamente e em
diferentes horários, tal como divulgava o jornal Dia e Noite.
74
Concomitantemente ao elogio das estrelas do cinema como referências de civilidade,
a Página dava avisos de cautela: “A vida não é como nas fitas cinematográficas” (PÁGINA...,
07/09/1941), ou ainda criticava aos “almofadinhas” – homens que são sabem fazer poesias,
nomeados como “parasitas sociais” –, indicando às mulheres que não se deixassem enganar
por eles, devendo escolher um que seja trabalhador e honesto. Pelo visto, temia-se que os
filmes norte-americanos acabassem por desvirtuar a ordem moral pelo novo estilo de vida
difundido que (pretensamente) preconizava uma liberdade individual muito maior. Ainda sim,
prevalecia o incentivo para que as estrelas de Hollywood fossem exemplos de conduta, moda
e beleza. Suas imagens e comportamentos eram divulgados e exaltados, seja pelos elogios que
lhes eram destinados, ou ainda pela presença massiva de fotografias de atrizes sorrindo para
as câmeras, ou com o olhar distante, perdido ao longe, verdadeiras “musas” a serem
admiradas.
Fazendo uso de uma estratégia de “controle-estimulação” (FOUCAULT, 2000), de
uma nova configuração de domínio que não se dá pela repressão, mas por meio do estímulo –
o de mostrar e fazer-se desejar –, desencadeando o investimento positivo sobre o corpo, a
indústria cinematográfica é pioneira nesse modo de controle dos corpos e das condutas que,
hodiernamente, radicalizou seus métodos de persuasão e se difundiu para outros meios de
comunicação de massa. Cumpre desse modo, assim como os instrumentos de controle que
dela derivaram, a função de dispositivo (FOUCAULT, 2000), para designar a rede que se
estabelece entre o dito e o não-dito, os discursos e as práticas. Na interpretação e ampliação
de Agamben (2007) do emprego feito pelo termo por Foucault, dispositivo é “cualquier cosa
que tenga de algún modo la capacidad de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar,
controlar y asegurar los gestos, las conductas, las opiniones y los discursos de los seres
vivientes” (AGAMBEN, 2007, p. 6). O sujeito é entendido por ele como a resultante da
relação entre seres viventes e dispositivos. Nesse sentido, consideramos profícuo pensar a
indústria cultural como dispositivo biopolítico, já que se utiliza de técnicas – sendo a
primordial a exploração das debilidades do “eu” –, para promover uma identificação imediata
e redutiva ao corpo, constituindo mecanismos nos quais o sujeito se funda como ser vivente,
intimamente ligado à dimensão biológica, à vida. A conjunção entre esses conceitos
74
Uma das chamadas do jornal se dava da seguinte forma: “A 20 Th. Century Fox apresenta um filme que é um
verdadeiro divertimento. Cenas complicadas e de uma comecidade (sic) de deixar o espectador em constante
interesse. UMA NOITE DE LOUCURAS com Jane Lang – Dick Baldwin – Lile Talbot. O mais comico (sic)
apuro de um chefe de policia” (DIA..., 02/10/1940).
94
(biopolítica e indústria cultural) oferece uma interessante constelação conceitual para os
conjuntos de fontes analisados, e para pesquisas que se interessam pela compreensão de como
se tecem as expectativas sociais sobre o corpo.
Nas próximas páginas apresentamos as estratégias sutis e positivas
75
utilizadas por
esses receituários na idealização do feminino, assinalando, na primeira seção, para o discurso
instituído de que a beleza é acessível a todas as mulheres, a centralidade dos aspectos
meritocráticos do embelezamento, as preconizações científicas e a perversão da utopia de
reconciliação com a natureza pela máscara do exercício de um controle que estimula. Na parte
seguinte do trabalho, descrevemos como a interiorização da culpa e da autovigilância, a
associação do feminino à beleza e o incitamento à exposição corporal, constituem-se como
técnicas de dominação na sociedade patriarcal. Esse movimento de normalização, que joga
com premissas de culpabilização/autovigilância e incitamento/elogio/positividade, tem como
eixo conector – e esse é o tema abordado na terceira seção – o fomento da necessidade de “ser
livre” para escolher as opções de adaptação da aparência oferecidas pelo mercado, e a
manipulação do desejo de se sentir incluído, ou por outra, do medo de não ser aceito
socialmente, alcançando as propostas elencadas pelos receituários de beleza o status de um
mecanismo de seguridade do indivíduo que parecem compor a sua economia psíquica. Ao
final, retomamos a hipótese inicial desse capítulo do trabalho e salientamos que as estratégias
descritas ao longo do texto induzem a um controle extremo da vida e reduzem a mulher à
condição “biológica” – seja pela associação da identidade ao corpo, ou pela
despolitização/desubjetivação estimulada – e como próxima da natureza, legitimando o
exercício da dominação (masculina).
3.2
SOBRE O CONTROLE QUE ESTIMULA
A beleza é para o feminino um imperativo, não sendo o descuido com a aparência
uma das possibilidades oferecidas pelos receituários de beleza analisados. Ao contrário disso,
em ambos conjuntos de fontes, a beleza é potencialmente acessível à todas, já que cada
mulher é detentora, naturalmente, de algo belo em si, sendo preciso somente conhecer e
75
Refere-se à potencialização do corpo exercida pelo indivíduo a partir da produção do desejo sobre ele
(FOUCAULT, 2000). O uso feito por Foucault desse termo ilustra sua concepção ao modo como as relações de
poder se estabelecem: não de modo repressivo, mas sim positivo.
95
salientar os pontos fortes da aparência. De acordo com a Página inclusive, a “verdadeira
beleza feminina” (PÁGINA..., 15/12/1940) só é alcançada com o conhecimento detalhado do
seu corpo – a mulher deve saber se seu pescoço é comprido ou largo demais, qual aspecto de
seu cabelo, tamanho do nariz, testa, orelhas, entre outros – e das técnicas e produtos que
valorizam o seu tipo. É preciso, “estudar a si mesma, calcular com inteligencia (sic) que
partido pode tirar de seus poucos ou muitos dotes naturais, propôr-se um tipo ideal de
melhoramento e lográ-lo mediante um trabalho paciente e constante” (PÁGINA...
01/12/1940). Discurso similar é encontrado na revista Boa Forma, que destaca a importância
da mulher reforçar “os [seus] pontos fortes” (GREINER, 2002, p. 6), propondo que seja
encontrada aquela que seja a “sua” melhor (boa) forma. Para tal, coloca-se primeiramente a
exigência de um autoconhecimento ou um reconhecimento ou uma identificação ou uma
assimilação do que seriam os “defeitos” e as “virtudes” do corpo, prescrevendo-se
ulteriormente o empenho em escamotear e valorizar devidamente cada qual. Distante de um
ideário em que a beleza é considerada um “dom” divino,
76
a dissimulação é até certo ponto
permitida e prestigiada. Esta é uma perspectiva notável já no período estadonovista,
77
e que é
maximizada hodiernamente, podendo/devendo a beleza ser construída, conquistada, merecida,
pois entendida como resultante de um investimento da mulher sobre a sua aparência. Esta
dissimulação indicada pelos receituários analisados parece ser distinta daquela depreciada nos
anos de 1920 (SANT’ANNA, 1995), pois prescinde de um conhecimento sem igual quanto ao
uso adequado a se fazer dos produtos, vestimentas, acessórios e das qualidades e defeitos que
o seu próprio corpo têm, o que acaba por conferir ao ato de dissimular um caráter de mérito.
Mais importante que a dissimulação porém, era essencial, como ressaltava a Página, que o
cabelo estivesse “em boas condições”, com brilho, sedoso, e que se realizasse exercícios e
regimes alimentares. Ou seja, o embelezamento deveria ser alcançado por via do
modelamento, ação efetiva sobre o corpo e suas formas, pois “a beleza tambem (sic), como
tudo o que pretende conservar-se inatacavel (sic) para sempre ou pelo menos por muito
tempo, deve procurar erguer-se tendo sob si os mais solidos (sic) alicerces. É claro que não
76
A esse respeito, ver Sant’Anna (1995) e Vigarello (2006). Sobre a secularização da noção de “dom” na revista
Boa Forma, ver Hammes (2007).
77
É nomeado como Estado Novo o período subseqüente ao golpe aplicado por Getúlio Vargas em novembro de
1937, estendendo-se até o ano de 1945, findando juntamente com a II Guerra Mundial. Esse foi um momento em
que o Brasil passou por um regime que, sem ser propriamente fascista, caracterizara-se por ser autoritário e de
forte cunho nacionalista, assim como de crescimento e industrialização do país. Apesar da similaridade
apresentada com os ideais nazistas e fascistas, Getúlio Vargas não se posicionou, finalmente, a favor das forças
do Eixo, mas, ao contrário, aproximou-se dos Estados Unidos – sobretudo pelas intermediações do embaixador
Oswaldo Aranha –, que se apresentava no momento como único mercado estável e exercia forte influência no
plano militar e cultural do país (CARONE, 1977).
96
basta à mulher preparar-se bem e enfeitar-se melhor ainda” (PÁGINA..., 30/03/1941).
Esse aspecto meritocrático da beleza, inseparável da responsabilização feminina, de realizar
um investimento concreto e durável sobre o corpo, vai tomando um aspecto cada vez mais
tentacular e sutil na contemporaneidade – como se verá ao logo do presente texto –, estando
entre os recursos de ação sobre si apresentados pela Boa Forma a cirurgia plástica, a
vestimenta, e os exercícios – ganhando esse último, acompanhado das dietas alimentares, um
especial destaque. Exercícios e dietas são os principais mecanismos recomendados por ambos
receituários para a potencialização do corpo (embelezamento), recebendo uma distinta
valorização porque considerados como métodos que propiciam mudanças concretas sobre o
corpóreo, dando-se, além de tudo, por via do esforço pessoal – componente capital das
pedagogias ensinadas. Na Boa Forma a proposição de exaltar exercícios e dietas é mais
evidente por estar em segundo plano, e às vezes até mesmo serem depreciadas, ações como
cirurgia e uso de artifícios, tais como roupas de enchimento, como bem destacou Hammes
(2007).
Estando o alcance da beleza conectado ao mérito de fazer-se ou não bela, pois é
necessário somente que se explore, evidencie os pontos fortes da aparência, a ausência de
cuidados com o corpo, ou ainda sua realização de modo que possa ser considerado limitado,
insuficiente, é frequentemente relacionado ao desleixo, descaso e falta de amor por si mesma.
78
Atitudes consideradas como de descuido chegam a ser categorizadas pela Boa Forma como
patológicas, devendo a baixa auto-estima ser investigada pela mulher, pois indica abatimento
físico ou moral que precisa ser extirpado, seja pelas técnicas apresentadas pela revista, tais
como “mentalizações de pensamentos positivos”, ou mesmo, ainda que mais raramente
sugerido, por tratamento médico. O apelo a esse tipo de recurso pedagógico é atual na revista
Boa Forma, algo talvez decorrente da multiplicidade de medidas de controle contemporâneas,
que responsabilizam o indivíduo quanto ao estresse que o assola.
79
A revista faz coro a esse
discurso ao incitar a mulher a estar em sintonia com o seu tempo, ao saber fazer uso racional
dos momentos dedicados ao trabalho e também ao entretenimento, caso contrário, como
resultado de sua irresponsabilidade para consigo mesma, poderá desenvolver distúrbios
psicológicos, como baixa auto-estima, processo a possivelmente desencadear algum malefício
78
Um movimento que, de acordo com Sant’Anna (1995), iniciara-se no Brasil nos anos de 1960. Já Vigarello
(2006) aponta que na Europa, no século XIX, com a possibilidade de forjar a própria beleza, construir a si
mesma, a aparência, mais do que nunca até então, é tomada como retrato da interioridade, possibilidade de
descoberta e revelação do “eu”.
79
Sobre uma crítica a respeito da mercadorização e multiplicidade dos mecanismos de responsabilização do
indivíduo aos imperativos da saúde, ver Gomes, Pich, Vaz (2006). Quanto à “culpabilização da vítima” nos
discursos de “promoção de um estilo de vida ativo”, consultar Palma et. al. (2003).
97
físico. O ponto mais radical e perverso desse discurso é a responsabilização da mulher
pela somatização de doenças, e a falta de beleza conseqüente desse processo.
Nas assertivas da Página, que ensinam a mulher a ser moderna, esse dispositivo de
controle que prescreve a relação que se deve ter com o trabalho, ainda não tomara contornos
tão sutis como no presente, mas, pelo modelo capitalista-industrial que se instaurava e que
estimulava a participação feminina no mercado de trabalho, já se observa sua formação
incipiente. A presença da mulher no mercado de trabalho é notável por assertivas como:
“Existem jovens datilógrafas, profissionais e até mesmo jovens esportivas, que, em uma hora
de atividade, destróem o paciente e perfeito trabalho realizado em sua mãos pela ‘manicure’”
(PÁGINA..., 24/11/1940); mas também de modo mais direto, pela presença de anúncios de
emprego “para uma moça de boa apresentação para cargo de confiança em escritório, sabendo
datilografar e tendo ligeiros conhecimentos de escrituração” (PÁGINA..., 01/06/1941), e
ainda pela proposta de uma mesma vaga de emprego para “ambos os sexos” (PÁGINA...,
27/04/1941).
Exemplo desse processo é a noção de lazer, presente no incentivo para que a mulher
adquirisse um passatempo – dentre os citados está a prática de embelezamento! –, fruto da
nascente preocupação em dar alguma finalidade ao tempo ocioso.
80
Exemplificam ainda a
entrada da lógica do trabalho na vida da mulher catarinense, as recomendações do uso
racionalizado das atividades domésticas, do equilíbrio entre as responsabilidades do lar e do
trabalho, a depreciação da “mulher preguiçosa”, o incentivo à prática regular de exercícios
físicos. Para que fossem seguidas, essas práticas eram largamente referidas como expressão
de civilidade e, portanto, como ícones de prestígio social e do modus vivendi da urbanidade.
Dentre os princípios de urbanidade produzidos e reproduzidos pela Página,
encontra-se a tríade saúde, beleza e felicidade. Esse último quesito, estando carregado de
enorme positividade, ao ser conjeturado à saúde e beleza, serve como distinto mecanismo de
persuasão para aplicação das técnicas recomendadas.
81
Vale assim pormenorizar como se
fazia/faz alusão a esse termo e o significado que carrega. Em determinados momentos na
Página, a felicidade, ou ainda a alegria, deve estar acima de tudo, inclusive da falta de beleza;
80
Um dos articulistas do jornal diz: “é difícil para mim compreender como há pessoas que nunca sentem
interesse por nada. [...] [E em seguida critica:] o aborrecimento e a ociosidade são os dois mais importantes
lacaios da velhice prematura” (PÁGINA..., 10/08/1941), tendo ainda influência negativa sobre as relações
sociais. Outra articulista conta as novidades da “Feira de Passatempos na Exposição feminina”, que visitou em
seu passeio a “Cincinatti” (PÁGINA..., 24/08/1941). Ela mesma, em outro momento, recomenda: “Dê sabor á
vida com um passa-tempo (sic) interessante e útil” (PÁGINA..., 31/08/1941). Como se vê, a preocupação em que
se adotasse um passatempo era corrente.
81
A alegria é citada no trabalho de Schneider; Ferreira Neto (2008) como uma característica desejável no
“homem novo”; sendo um mecanismo civilizador da década de 1930-1940.
98
em outros, serve como compensação dessa deficiência, chegando ao extremo oposto de
se afirmar que a beleza total somente é possível quanto se está alegre. Pela análise da fonte
em seu conjunto, nota-se que, se por um lado a felicidade não deve ser conturbada pela falta
de beleza, por outro, aquela é concomitantemente complementar à esta e determinante para
sua conquista. Como explica a Página¸ “a tensão para endurecer as feições dificulta a
circulação do sangue nos musculos (sic), e se isso for muito frequente (sic) eles acabam por
perder a elasticidade da juventude. Ao contrario da cara fechada e triste, o sorriso estimula a
irrigação do sangue nos musculos (sic) que lhes serve de alimento” (PÁGINA..., 16/02/1941).
A alegria é aqui associada à saúde e a beleza – qualidades sinonímias. Se a amargura
“envenena” o corpo,
82
resultando em “anomalias que enfeiam”, o mau-humor chega a ser
categorizado como anormalidade que prescinde de cuidado médico
83
– algo que em muito se
aproxima das assertivas sobre baixa auto-estima identificadas na Boa Forma, a que se fez
referência em parágrafo anterior. A prescrição de exercícios para dar “maior disposição ao
levantar” e a recomendação para apresentar bom humor diante da família e do trabalho, não
são apenas eventuais, ocupando centralidade as recomendações para que se adquira um
passatempo enquanto mecanismo de combate a melancolia e aborrecimento. Junte-se a isso
afirmativas como: “o maior encanto da mulher está no sorriso” (PÁGINA..., 08/06/1941), ou
“um rosto sorridente é uma grande garantia de sucesso, é uma garantia de felicidade”
(PÁGINA..., 06/10/1940). Se o sorriso já nesse período indica ser uma técnica, que a Página
recomenda ser exercitada ao levantar, contemporaneamente ele é expressão de felicidade e
êxito, sendo reificado como meio de forma muito mais incisiva e constante. Para ficar em
apenas um exemplo, é com naturalidade que a Boa Forma questiona à leitora: “Qual o seu
truque de alegria?” (LUBINSKI, 2004, p. 90), como se todas as mulheres tivessem algum.
Esse ideário de felicidade não se restringe somente às reportagens publicadas, mas está
materializado nas freqüentes imagens de modelos que ornamentam seus rostos com um
repetido e mecanizado sorriso. Não fosse suficiente a associação com o sucesso, em ambos os
conjuntos de fontes, a ciência presta-se a responsabilizar, culpar, convencer a mulher a adotar
uma postura de felicidade, bom humor, alegria, bons pensamentos, perante a exposição
detalhada dos malefícios e benefícios para a saúde e beleza provenientes de cada tipo de
82
Como declara determinado artigo da Página, “dizem das amarguradas que são ‘envenenadas’. A palavra não é
um epíteto caprichoso, mas uma definição científica. As amarguradas sofrem alterações nervosas que afetam aos
órgãos e essas alterações repercutem no sangue, destruindo os globulos vermelhos e tirando-lhes a capacidade
nutritiva e defensiva do organismo. O resultado é uma cútis biliosa, amarelada e com a presença de ‘grãos’ e
outras anomalias que a enfeiam.” (PÁGINA..., 01/12/1940).
83
A Página explica que “é muito frequente (sic) acordarmos com mau humor, com certo nervosismo, com
excessiva preguiça, sem que saibamos ao certo a causa. Os médicos têm estudado esta anomalia e prescrito o
remédio” (PÁGINA..., 24/11/1940).
99
comportamento. Eis mais um elemento que transfigura a felicidade em um imperativo, e
que remete de modo indireto ao cuidado com o corpo.
Impossível deixar de referenciar o papel ocupado pela ciência, não somente para
responsabilizar a leitora desses receituários, que já estariam “esclarecidas” quanto os efeitos
de suas ações sobre a aparência, assim como de seus pensamentos, mas, sobretudo, para a
legitimação dos conhecimentos a serem seguidos no interminável processo que é o
embelezamento. A formulação de uma crença no que é científico se apresenta nos escritos da
Página pela referência aos especialistas na descrição dos efeitos fisiológicos provenientes da
prática de exercícios físicos. Essas estratégias reforçam a autoridade da ciência e, repetidas na
Boa Forma, ganham cada vez mais destaque ao serem acompanhadas de novas táticas de
convencimento, como a alusão às medidas exatas e/ou tempo certo para o alcance do
emagrecimento e da fortificação do corpo, o uso dos corpos esculturais de modelos, atrizes
para legitimar o efeito dos programas de treinamentos cientificamente formulados, entre
outros.
A ciência deve servir para lapidar o corpo de modo eficiente. As técnicas vendidas
por esses manuais incitam a manipulação do corpo, de preferência até a obtenção de
contornos estabelecidos como “perfeitos”. A idéia de um corpo passível de correção, surge na
Europa em meados do século XIX (VIGARELLO, 2006), mas não sendo até os anos 1920
notada no Brasil, tal como demonstra o estudo de Sant’Anna (1995). Na Página, a
compreensão do corpo como imperfeito está na expressão “defeito”, utilizada para adjetivá-lo,
e pelos reclames para que não se deixe de “corrigi-lo”. Já na Boa Forma, essa relação com o
corpóreo se mostra com mais sutileza, mas também mordacidade, entre outros, pelo estímulo
para que, contra o corpo – local das emoções e das vontades, como, por exemplo, de fugir da
dieta e burlar a ida à academia –, seja travada uma verdadeira guerra, se quiser tornar/mantê-
lo belo. Exemplo disso é a linguagem bélica utilizada pela revista: “arsenal antifome”, “torrar
as gordurinhas”, “detonar” os quilos extras. Importante é aludir aos escritos de Horkheimer e
Adorno (1985) sobre a perversidade que perpassa essa exaltação das “belas formas”. De
acordo com eles, o fetiche pelo progresso atingiu a relação com o corpo, devendo esse ser a
expressão encarnada do poderio humano, portanto belo, e por isso ícone de plenitude e de
uma pretensa reconciliação com a natureza.
84
Esse modelo ideal de beleza porém, só pode ser
84
O desejo de reconciliação é, para os pensadores alemães, proveniente da forja da civilização, que precisou
solapar a natureza externa, mas também interna – de si mesmo –, em troca da sobrevivência e da cultura. A
utopia de reconciliação com essa natureza significaria a satisfação imediata das pulsões, da simples
sobrevivência, sem memória, e por isso sem cobranças e culpas – algo que não é possível, mas constantemente
prometido pelos veículos da indústria cultural.
100
alcançado por uma submissão do corpo, no sentido do controle extremo de suas
“paixões”, afastando-o assim cada vez mais do que seria o corpo vivo (Leib), tanto mais que
este é transformado em apenas um conjunto de peças anatômicas (Körper), já que
potencializá-lo (no que se incluem as práticas de embelezamento) só é possível enquanto esse
é objetivado, tratado como coisa que se pode manipular (HORKHEIMER; ADORNO, 1985).
Esse trato com o corpo também é percebido na Boa Forma pelo elogio ao sacrifício, que,
como destaca a editora da revista, é imprescindível para que se adquira os contornos
desejados, pois “nada vem de graça, o processo de mudar tem seu preço” (GREINER, 2003,
p.8 ). O sofrimento é necessário. Esta compreensão exige não somente suporta-lo, mas
também autoriza sua repetição sobre outro por aquele que o vive. Essa naturalização do
sofrimento encontra-se ainda em certas reportagens, normalmente de tratamentos estético, em
que há a classificação da dor, por meio de um “ranking” (HOLLO, 2002, p. 76), em três
diferentes níveis: 1. coceira ou ardor; 2. leve incômodo; e 3. dolorido. No processo de
potencialização do corpo, o sacrifício é a condição exigida para que se possa conhecê-lo e
dominá-lo, devendo ser a aceitação do sofrimento um elemento constitutivo da subjetividade.
Essa valorização do sacrifício está materializada na Página por chamadas do tipo: “Não seja
mole!” (PÁGINA..., 05/10/1941); ou quanto lembra à leitora: “depois de 20 anos não ha
beleza sem esforço” (PÁGINA..., 31/08/1941).
85
Nesse manual, o trato do corpo como objeto
é evidente também na recomendação de seu esquadrinhamento. O embelezamento deve ser
feito em territórios específicos: o rosto, principalmente as sobrancelhas, as pernas, os braços,
a voz, a pele e as mãos, com atenção especial às unhas – evidentemente as partes que estavam
mais à mostra naquele período –, sugerindo-se para cada uma dessas partes investimentos
particulares. Se essa divisão, racionalização, recorte do corpo também é evidente na Boa
Forma, não havendo, em princípio, limitação quanto às partes que se pode expor ou não, fica
a ênfase para a necessidade de “esculpir cada centímetro”, e manter “tudo no lugar”
(PENTEADO, 2003, p.50-2). Pelo discurso dessa revista, vê-se ainda a necessidade de
ultrapassar os limites de incursão no corpo, que até a década de 1940 era ocupado pela pele,
alvo de inúmeras recomendações de embelezamento. Hodiernamente ela já não é mais
fronteira, tendendo-se a atingir o que está abaixo dela, “secando” a gordura, enrijecendo os
músculos.
85
A mulher é ainda exaltada na Página por sacrificar-se em benefício dos filhos e manter a moral e os bons
costumes, e mais do que isso, o ato de sacrificar-se é considerado uma tendência da própria natureza feminina,
pois ela “sente mais fortemente que o homem a alegria de ser amada, de ter alguem (sic) a quem se possa
dedicar, a dôr (sic) da ingratidão, e sente muito mais ainda as alegrias e dôres (sic) (...) É altruísta. Sendo
altruísta, deve possuir uma moral superior à do homem e sujeitar-se a sacrifícios infinitamente maiores porque a
sua sensibilidade, o seu temperamento a isso a obriga” (PÁGINA..., 13/10/1940).
101
Essa relação de dominação com o corpo trata de ser todavia sempre
escamoteada, por exemplo, quando a Boa Forma repete, e de modo muito enfático, a idéia de
que o emagrecimento e as técnicas para adquirir músculos “não precisa[m] ser um
sofrimento” (SECCO, 2005, p. 65). Esse, porém parece ser um incentivo, ao mesmo tempo
em que se configura como um discurso falacioso, pois se realmente acontecesse dessa
maneira, talvez não fosse necessário nem sequer mencioná-lo, já que seria ele do
conhecimento de todas, e muito menos destacar repetidamente, que disciplina “não tem nada a
ver com autoflagelação” (REIS, 2006, p. 12). Outra estratégia utilizada pela revista, que
também tenta compor um ideário de realidade ao ser repetida de modo incessante, é a
promessa de reconciliação com a natureza, ao serem exaltadas as belas formas, ou por meio
de uma certa “pedagogia do natural”, identificada na revista Boa Forma (HAMMES;
ALBINO; VAZ, 2008). Nela se idealiza uma beleza que seria inata a cada mulher e, portanto
natural, de nascença, e que deve ser preservada e potencializada. Ao mesmo tempo se
estimula a busca por uma aparência que não denote artificialidade, e o uso de recursos
embelezadores que sejam “naturais”, ou pouco “artificiais”. Nesse discurso, o corpo é
considerado “puro”, não devendo ser manipulado, ou que seja tanto menos quanto possível.
Escamoteia-se assim que a própria discussão sobre o uso de técnicas “menos ou mais
invasivas” (ou “artificiais”), apenas ratifica que, de fato, o corpo é objeto de manipulação, e
que procedimentos “artificiais” e “naturais” igualam-se por objetivar o alcance de uma beleza
padronizada (HAMMES; ALBINO; VAZ, 2008).
Esse ideário presente na Boa Forma, do corpo como “puro”, e de elogio a uma
beleza (que deve ao menos parecer) “natural”, pode ser considerado uma atualização daquele
presente na Página. Nessa, a expressão “natural” representa normalidade, o que é conhecido,
mas também aquilo que nasce com a mulher – seja uma característica física ou de
personalidade –, ou por outra, é associado ainda ao que é “belo”. Por isso a leitora,
principalmente aquela que já possui mais de trinta anos, é instigada a aplicar uma maquiagem
que seja sutil, natural, que desenhe a sobrancelha “de um modo suave, imitando o que seria
natural si a natureza fosse especialista de maquilage (...) [pois] por mais cuidadosamente
maquilada que esteja uma mulher ela não será realmente atraente si no seu rosto não se notar a
condição indispensável... a de um ser humano” (PÁGINA..., 02/11/1940). O exagero deve ser
contido, o que se predica é a moderação e harmonia nos cuidados com a aparência, que se
procure apenas atenuar os defeitos, ou/e acentuar a beleza que naturalmente já se possui.
86
86
O aconselhamento à moderação também atingia aquelas referentes ao exercício físico, como se vê a seguir: “o
esporte e a ginastica (sic) são fontes de otimismo, de saude (sic) e de alegria. O mal é quando há excesso,
102
Junto a essas considerações sobre beleza e natureza, identifica-se na Página que a mulher
é instigada a imitar e manter-se próxima dos elementos do meio ambiente natural, pois, como
a natureza, seria afeita ao que é irracional e indeterminado, os sentimentos e as paixões.
Igualmente ao corpo, representante da natureza que compõe o ser humano, subentende-se que
a mulher deve ter o mesmo destino, oposto à racionalidade: conhecida e então dominada. De
acordo com Horkheimer e Adorno (1985), essa posição a que a mulher foi subjugada é
resultado da divisão social do trabalho imposta pelo homem desde os primórdios da
humanidade. Nessa divisão, à mulher não coube a produção, posição de simbólico prestígio,
que confere a quem possui tal encargo o status de “sujeito”, mas à reprodução, função
biológica, posição de natureza. Isso porque, como explicam os autores,
A mulher era menor e mais fraca, entre ela e o homem havia uma diferença
que ela não podia superar, uma diferença imposta pela natureza, a mais
vergonhosa e humilhante que é possível na sociedade dos homens. Quando a
dominação da natureza é o verdadeiro objetivo, a inferioridade biológica será
sempre o estigma por excelência, e a fraqueza impressa pela natureza a
marca incitando a violência (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 231).
Se a civilização constituiu, paradoxalmente, como seu princípio basilar a proscrição
da força bruta, mascarada como astúcia e racionalidade, o outro, a que se renega, se opõe,
para bem da constituição do próprio “eu”, esse há de ser o que se distingue por ser mais fraco.
Considerado como oposto, pois é o que se quer esquecer, já que lembra e permite identificar a
própria fragilidade, fraqueza, irracionalidade, e natureza que há em si, à mulher – mas não
somente ela, também os animais, as crianças, os povos colonizados – é destinada a posição de
outro do homem, de outro da razão, a quem deve ser dominada, ou conquistada, como aliás
pregou e prega certo romantismo. Uma posição de objeto que se confirma no pesar que
acompanha os seguintes dizeres da Página: “encontram os homens nas suas conquistas tantas
facilidades, tão pouca resistencia (sic), que eles proprios (sic) se sentem diminuidos (sic) por
não terem que ‘galgar muros’, sofre os olhares tracundos dos paes (sic) ou baterem-se pelas
suas damas! [...] [ E completa alertando:] o que se consegue sem sacrifício não tem valor”
(PÁGINA..., 21/04/1940).
Ao associar a beleza como oposto ao artifício, a Boa Forma, mas também a Página,
tomando – por exemplo – o esporte como pretexto para competições entre os sexos opostos” [...] [Citando os
feitos notáveis de campeãs olímpicas, o jornal não exita em dizer que] “o perigo está em que muitas mulheres
podem ser levadas pelo instinto de imitação e começarem a praticar esportes de uma maneira exagerada.
Nenhuma deve esquecer que antes de tudo, os homens apreciam na mulher uma perfeita saude (sic) ao par de
uma doce e tranquila (sic) feminilidade” (PÁGINA..., 07/12/1941). Como destacam Goellner (2000, 2001) e
Schpun (1997), no início do século XX as práticas corporais recomendadas às mulheres eram aquelas que não
exigissem grande desgaste físico e que reforçassem e expressassem a feminilidade da mulher.
103
incentivando a leitora a estar próxima do ambiente natural e preservar aquilo que tem de
natural, acabam por reforçar a conjunção mulher e natureza, mulher e irracionalidade. Por
meio de certo romantismo, em que a natureza e o amor representam aquilo que é bom, o
feminino, há milênios considerado como afeito aos sentimentos, deve contentar-se e constituir
sua subjetividade a partir do (pseudo)prestígio social de ser objeto de conquista do masculino.
Todavia, “por trás da admiração do homem pela beleza está emboscada a gargalhada sonora, o
escárnio desmedido, a bárbara obscenidade que o potente dirige à impotência, à morte, à
natureza” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 232). Ao se esmerar na busca pela beleza, e
se regozijar por ser esse um ícone não somente de sucesso, mas que a insere no espaço
público,
87
a mulher voluntariamente se presta a condição de dominada.
3.3 PARA O EXERCÍCIO DE UMA AUTOVIGILÂNCIA
Imprescindível instrumento de controle, notável nos dois conjuntos de fontes
selecionados, são as prescrições de comportamento para os diversos âmbitos que constituem a
vida pública e privada da mulher. Com as técnicas disponíveis no mercado – imagens
plasticamente organizadas para incitar o consumo e se apresentarem como a realidade, ao
invés de um discurso sobre ela, reportagens “informativas” sobre produtos e técnicas, frases
de auto-ajuda, matérias que pretendem deixar a mulher concatenada com os acontecimentos
da moda de todo o mundo, entre outras – é tecido um discurso sobre o que deve ser
desejável/normal para as relações a serem estabelecidas com o próprio corpo, com as tarefas
domésticas/trabalho, marido/namorado/parceiro (pois os receituários têm como norma, como
já destacado, a heterossexualidade), filhos, amigos/as, espiritualidade (seja de acordo com as
regras da igreja católica, com grande influência sobre os escritos da Página, ou modo de vida
“zen” pregado na atualidade a partir do elogio de práticas de ioga, alimentação saudável,
contato com a natureza etc.), e ainda as roupas e acessórios adequados para cada ocasião
social. As pedagogias desses receituários predicam que a mulher venha a ser uma espécie de
resultado previsto. Para além da configuração de uma norma, um modo ideal de ser, elas
incitam primordialmente que se gerencie e conforme a vida em uma mesma modulação de
empreendimento sobre si mesma. O corpo e as relações com o trabalho, mas também as
87
Sobre a importância da beleza nos anos de 1920 para a participação da mulher paulista de elite no espaço
público, ver Schpun (1997). Quanto ao caráter figurativo da mulher na Europa do século XIX, ver Perrot (1998).
104
afetivas, devem ser investidos pela mulher tal como um negócio; algo que é identificado
em ambos os manuais, entre outros, nos momentos em que prescrevem a dedicação de
atenção e carinho aos filhos e amigos/as. Como ilustração, vale transcrever um dos
ensinamentos da Página nesse sentido: “apesar de dizer-se que a amizade é um sentimento
desinteressado, é sempre bom lembrar que esta tem suas exigencias (sic) e impõe alguns
sacrifícios. Um presente oportuno, umas flôres (sic) em determinadas ocasiões, um convite,
não mais que retribuições a esse carinho e a lealdade que nos demonstram”. (PÁGINA...,
10/11/1940). Recomendações nessa mesma direção são encontradas na revista Boa Forma,
quanto afirma ser essencial que se “arrume um tempo” para as amigas, devendo a leitora
seguir as dicas oferecidas para “ajudar a manter os laços estreitos [...] [e] evitar as armadilhas
que podem pôr tudo a perder” (CONTE, 2003, p. 86-8). Essa assertiva é acompanhada pela
referência a uma “pesquisa” que “mostrou que as pessoas com maior círculo social vivem
mais do que aquelas com poucos companheiros” (CONTE, 2003, p. 87). A amizade
transforma-se em uma técnica para aumentar a longevidade.
Quanto às recomendações de cuidados com os filhos, elas são praticamente ausentes
na Boa Forma, mas muito constantes na Página. Esta incentiva os elogios à criança, pois
“todos, direta ou indiretamente, sofremos um complexo de inferioridade que nos deprime em
determinados momentos. [...] Ao calor do elogio consegue-se felicidade e tranquilidade (sic),
ao contrário a saúde moral como a física sofre algum choque. [...] [A mesma matéria, ao seu
final, realça que] o elogio é tão necessário como o dinheiro para o triunfo!” (PÁGINA...,
05/01/1941). Fica claro aqui o caráter de instrumentalização que os cuidados com o infante
devem apresentar.
88
Apreende-se, assim, como se constitui uma norma, um molde de
investimento sobre a vida que tem em vista todos os seus recônditos, conformando uma
impressão de que esse modelo produzido é a realidade mesma, ou seja, sua onipresença não
deixa perceber que esse ideário é uma produção, ao invés de algo natural, dado.
89
Para dar forma a esse projeto normativo, são fundamentais – mas não únicas – as
estratégias de interiorização da culpa, sempre associadas ao incitamento de uma
autovigilância, ao serem disponibilizados por esses manuais os conhecimentos necessários
para o domínio de si. A mulher tem à sua disposição diversificadas informações sobre os
instrumentos para controlar seu corpo de modo adequado, sendo enfatizado na Página o uso
diário, ou ao menos semanal, da balança, e o ajuste das roupas na cintura; enquanto na Boa
88
Sobre os atuais dispositivos educacionais destinados à infância, ver Ghiraldelli Jr. (1996).
89
Em última instância esse modelo socialmente produzido acaba por “transformar-se” em realidade. Sobre esse
assunto ver Horkheimer e Adorno (1985).
105
Forma o alerta é para que se administre o consumo dos alimentos a partir do número de
calorias estipulado como ideal – uma estratégia de controle muito mais minuciosa, eficiente e
constante.
Tal mecanismo, que promove a autovigilância das formas corporais, ao
disponibilizar “conhecimentos” e técnicas para tanto, também se aplica ao uso que se deve
fazer dos cosméticos, pois uma ampla gama de produtos é difundida por esses manuais –
pretensamente abarcando variadas condições econômicas, uma vez que na Boa Forma
divulga-se na mesma reportagem produtos similares, mas com grande variação de preços,
enquanto na Página faz-se referência à possibilidade de compra, mas também de elaboração
pela própria mulher de um “preparado” que terá efeitos análogos de embelezamento, ou da
confecção caseira do modelo de vestido que está na moda e ainda de objetos para decoração
do lar. Aplica-se não uma coerção, mas uma indireta culpabilização daquela que não faz uso
dos recursos/conhecimentos disponíveis, culminando novamente na responsabilização
individual por ser ou não bela – ou ainda moderna, como categoriza a Página.
Em tempos hodiernos, o controle por meio da culpabilização ganha contornos
sempre mais sutis e até afirmativos, como pelo ambíguo desencorajamento de uma cobrança
excessiva sobre si mesma. Para a Boa Forma a mulher não deve se sentir culpada se “sabotar
a dieta comendo chocolate fora de hora, [ficar sem malhar,] trabalhar demais e dar atenção de
menos aos filhos, por ficar meses sem telefonar para os amigos mais queridos”
(CAVALHEIRO, 2002, p. 85), ou cometer outros deslizes. Ao alertar, todavia, são reforçadas
indiretamente as situações que deveriam provocar culpa: um modelo de vigilância que
controla os corpos e as condutas sem prescindir em primeira instância de uma conformação
específica da arquitetura – próprio de um sistema disciplinar que se exercia de modo
exaustivo sobre cada um, como exemplificado por Foucault (2008) em sua obra Vigiar e
Punir –, mas que lança sob caução da mulher a vigilância de si mesma, uma interiorização da
necessidade de calcular economicamente todas as suas ações, pois se é exigida por isso.
O uso de mecanismos de controle das condutas por meio da culpabilização da
mulher quanto ao comportamento e cuidados com o corpo, também recorrente na década de
quarenta do século passado, não se dava porém de modo tão sutil como na atualidade. Se por
um lado eram comuns assertivas engenhosas que ensinam como é fácil e imprescindível ser
moderna, pois há informações nesses receituários dos recursos para tanto, e ainda de
exaltação, por meio de poesias, crônicas e artigos específicos, da função social valiosa e
inigualável exercida por aquela que é mãe e dona-de-casa, por outro, encontram-se também
métodos de culpabilização muito mais explícitos e incisivos, geralmente em casos que as
106
relações de gênero instituídas eram ameaças. Indicativo da presença de um receio quanto
a alteração das representações do que é o ser mulher, e que evidencia a sua existência devido
a preocupação em limitá-las, é a recorrência à associação de determinadas atitudes com o
masculino, com a depreciada possibilidade de a mulher masculinizar-se. Somente aquelas de
comportamento varonil, e que por isso, de acordo com a Página, não eram verdadeiramente
mulheres, consideravam desnecessário sentirem-se “protegida[s] por outra inteligência mais
forte e diferente da sua” (PÁGINA..., 27/10/1940).
90
Denegados eram ainda os
comportamentos próprios das mulheres modernas, classificadas como um “tipo” específico,
materialista, que não se importava com o amor, nem com os filhos, somente com a beleza e
com a diversão que obtinha com a coqueteria. Ambigüidade com relação a expressão
“moderna”, que em outros momentos é utilizada em sentido positivo, mas que nessas
situações particulares, em que o comportamento adotado parecia ameaçar a ordem
estabelecida entre os sexos, era duramente depreciada.
91
Comum era encontrar pela Página o
alerta que a mulher moderna, que segue de modo exagerado a moda – fuma, bebe, joga –,
seria objeto de diversão e chacota masculina, sendo que para noiva o homem sensato exige
outro tipo: feminina, modesta, educada, bonita e inteligente. O inculcamento do medo de não
ser alguém a que se anseie unir pelos laços do matrimônio era corrente, bem como os
imperativos para que se fosse uma “esposa indispensável”, sendo culpa sua se o marido
tivesse uma amante. Vê-se assim, que no período estadonovista, ainda eram comuns os
mecanismos de culpabilização e as prescrições de beleza e comportamento serem pautadas na
necessidade de manter o casamento e de afirmação da feminilidade.
Em Boa Forma, no entanto, e apesar dos novos contornos, como a ênfase no aspecto
da sedução em detrimento ao imperativo da união ou manutenção legal dos laços conjugais,
ainda permanece a relação de dependência da mulher para com o sexo oposto. Se por um lado
ela hoje pode exercer sua sexualidade de modo mais “livre” do que na metade do século vinte
90
De acordo com Flores (2007), embasada nos escritos de George L. Mosse, a masculinidade foi o princípio
basilar do nacionalismo e fascismo, sendo essencial, para sua afirmação, a clara definição dos papéis sociais a
serem assumidos pelos sexos. Vale aqui lembrar o viés totalitário do governo de Getúlio e do movimento
integralista, dominante na década de 1930.
91
Hime (2003) estudou a Página Feminina d’A Gazeta de São Paulo no período de 1929 a 1943, provável
modelo reproduzido em Santa Catarina, e identificou que as reportagens sobre os papéis sociais femininos
retratavam os antagonismos de sua época, havendo em muitas ocasiões uma valorização das mudanças e
conquistas das mulheres, enquanto em outras situações era tudo bastante conservador quanto à função que as
paulistanas deveriam cumprir no lar e na família. Percebe-se porém que, em relação a Página veiculada em
Santa Catarina, a d’A Gazeta, analisada por Hime (2003), divulga muito mais amplamente as atividades dos
movimentos feministas e de emancipação da mulher – informações que são escassas no receituário catarinense,
ou que emergem nos momentos em que são repreendidas pela Página –, inclusive apoiando o processo de
conquista do direito das mulheres ao voto. Algo que talvez se explique pelo fato de São Paulo ser o pólo de ações
nesse sentido no Brasil, e porque, como coloca a autora, A Gazeta não se posicionava contrariamente ao processo
de mudança da sociedade, antes compreendia-o como inevitável.
107
– e, no registro sugerido pelos frankfurtianos, sob os auspícios da indústria cultural não
só se pode, mas se deve gozar –, todavia permanece subjugada ao poderio masculino, que
determina as características do que é ou não belo – aproximando-se do ser sexy na
contemporaneidade – e os investimentos a serem feitos no corpo
92
– território primeiro da
beleza, em detrimento a características como doçura e bondade, que ainda eram apontadas
pela Página como atributos que compunham o que era visto como belo naquele período.
A partir da análise da posição da mulher na sociedade patriarcal, Horkheimer e
Adorno (1985) afirmaram que, apesar das exigências quanto ao comportamento feminino
terem se alterado na constituição da modernidade, a lógica da subordinação permanece muito
semelhante. Para eles, o que seria o agraciamento da mulher como representante da beleza, é
o mecanismo que concretizou a sua submissão “espontânea” ao mundo da dominação, pois o
prestígio adquirido somente oculta a posição de objeto sexual a que as mulheres foram
relegadas em uma sociedade regida pela força bruta. O feminino, enquanto representante da
condição de natureza e da licenciosidade, precisa transformar esses vestígios em virtude e
recato, símbolos da civilização patriarcal e, concomitantemente, de “beleza”. Hodiernamente,
como explicam os filósofos alemães, “as mulheres prisioneiras do sistema continuam a provar
pela promiscuidade a obediência à ordem existente que demonstravam antigamente pelo
recato apenas; pelo ato sexual indiscriminado, continuam a provar a rígida subordinação à
razão dominante.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 233).
Na Página é possível encontrar indicativos dessa transposição de um mecanismo de
dominação para outro, estando presentes prescrições para a manutenção do pudor como
distintivo de beleza, mas também de imperativos à exposição do corpo. Parece iniciar-se aí
um processo de subsunção da moral à estética, demarcado tamm pelo cinema, veículo
privilegiado dos desígnios da indústria cultural no período e de concretização de um ideário
de “controle-estimulação”, como já referido no início do presente texto. Já nessa época, as
restrições em expor o corpo dependiam largamente da beleza que se possuía ou não, sendo o
sentido da palavra “imoral” deslocado para a apropriação inadequada das recomendações de
beleza,
93
e da exposição de um corpo que não esteja em forma. Um imperativo que é
atualizado e potencializado contemporaneamente, quando o corpo não apenas pode, mas deve
ser mostrado, exibido, para que possa na mesma medida ser apreciado, desejado ou tão
92
Sabino (2000), em sua pesquisa em academias de musculação, aponta para a predominância entre as mulheres
de investimentos nos membros inferiores, por serem apreciados pelo masculino.
93
Esse “receio moral” de não fazer bom uso dos produtos de beleza, em detrimento ao medo de parecer libertina,
é citado por Sant’Anna (1995) como presente nos anos de 1960. Nota-se pela análise da Página que essa
configuração social é anterior a esse período.
108
somente notado, contanto que esteja adequado para isso. Algo esse que toma proporções
dramáticas em um país como o Brasil que, como bem apontou Malysse (2002, p. 133), tem o
visível como “[...] modo privilegiado de se relacionar consigo mesmo e, sobretudo, com o
outro”.
3.4 A ESCOLHA PELA NORMA
A mercadorização e coisificação do corpo, as promessas de reconciliação com a
natureza, a produção de um saber para o exercício de um domínio de si, o uso de inúmeras
técnicas para que não se perceba que a realidade é manipulada de acordo com os interesses do
capital, a invasão da lógica empreendedora no âmbito privado da vida, a exaltação da
meritocracia, a formulação de uma crença no que é científico, são alguns dos meios de
normalização pelos esquemas da indústria cultural. A simbólica do poder que se institui a
partir desses esquemas, é um importante mecanismo de manipulação das massas, estando
presente na determinação da imagem de um corpo belo como ícone de sucesso, liberdade,
felicidade, sendo este um elemento basilar na produção de identidades, sobretudo na
contemporaneidade. A mulher, de acordo com os receituários analisados, é essencialmente o
seu corpo lapidado por dietas, exercícios, cirurgias, ou outros conhecimentos fornecidos pela
indústria da beleza. Sua subjetividade indica estar calcada nas belas formas que se possui ou
não, resumindo a interioridade ao que é externo, ao que pode ser visto e avaliado
instantaneamente; por isso a repetida recomendação de um investimento maciço sobre o
corpo. Exemplar sobre a produção da identidade a partir da lapidação do corpo são as
assertivas da Boa Forma, uma perspectiva que no entanto já está presente nos escritos da
Página, quando essa alertava a mulher que “suas mãos refletem a sua personalidade, muitas
vezes com mais eloquencia (sic) do que seu rosto” (PÁGINA..., 02/03/1941). Por isso as
insistentes recomendações quanto ao cuidado com as mãos e o treino para que seus
movimentos fossem lentos e graciosos. Em outro momento, a Página prescrevia o não
escurecimento demasiado das sobrancelhas, pois isso endureceria a expressão “e torna
impossivel (sic) a uma senhora uma atitude amavel (sic) e carinhosa” (PÁGINA...,
02/11/1940). O investimento nas características estéticas para que essas representassem uma
atitude e personalidade considerada adequada – ou seja, a associação entre corpo e identidade
– era uma das grandes preocupações existentes nos anos de 1920 no Brasil (FLORES, 2007),
109
mas como visto, ainda se mostrava presente na década de 1940, e de uma maneira um
tanto diferenciada também hodiernamente, já que na Boa Forma essas associações são
encontradas e, apesar de serem muito mais sutis, são todavia mais constantes.
Como detalha Flores (2007), a concepção de que um corpo perfeito abriga um corpo
espiritual de pureza moral – uma retomada do preceito mens sana in corpore sano –,
encontra-se, entre outros, nas teorias eugenistas, de aperfeiçoamento da raça, datadas no
Brasil do início do século vinte. Era preocupação da intelligentzia brasileira
94
extirpar a
fealdade que assolava o povo. Um objetivo que esteve presente não somente no imaginário
das elites desse país, mas que também, em diferentes momentos, compôs o pensamento
político do Ocidente. De tal maneira, “a nação confundiu-se com a raça, e esta, qualificada e
classificada pela estética do corpo e do caráter do indivíduo, configurava o status do
progresso e do desenvolvimento nacional.” (FLORES, 2007, p. 64). Para salvar a nação da
doença e da degenerância, reconhecidas como causas da fealdade, investiu-se na cura dos
corpos tomados como disformes, buscando instituí-los de beleza, ao enquadrá-los em uma
estética da ordem, o que permite a Autora indicar que a compreensão do corpo como local de
veridição da identidade, se encontra em meio a uma imbricada trama constituída entre
racismo, estética e nacionalismo. Uma concepção da feiúra como doença, do corpo como
possuindo defeitos que precisam ser curados, é ainda evidente nos anos quarenta, em que os
discursos nacionalistas ganham novo fôlego.
95
Faz parte da pedagogia da Página ensinamentos como: “esteja certa de que qualquer
que seja o defeito de seus cabelos o melhor meio de curá-lo é estimulando a circulação no
couro cabeludo. O processo mais facil (sic) de consegui-lo é com a escova. Escove
vigorosamente se quiser possuir bonitos cabelos” (PÁGINA..., 13/04/1941, grifo nosso). A
conjunção entre saúde e beleza é também visível quando a Página ressalta que “durante o
verão o remédio que não deve faltar no toucador de uma mulher elegante e tratada, é um
desodorante” (PÁGINA..., 09/02/1941, grifos nossos). Se chama a atenção que o desodorante
seja um remédio, e que a mulher deva ser “tratada” – expressão largamente utilizada na
94
Flores (2007) cita ao longo de seu trabalho alguns dos intelectuais – médicos, psicólogos, escritores,
religiosos, juristas, artistas – que se debruçaram sobre o tema do melhoramento das feições do povo brasileiro:
Renato Kehl, Hernani de Irajá, Afrânio Peixoto, Gustavo Capanema, Roquette-Pinto, Alberto Torres, Oliveira
Viana, Azevedo Amaral, Francisco Campos, ente outros.
95
O modo como o discurso nacionalista tangencia as prescrições do ser mulher na década de quarenta, se
apresenta nos escritos da Página, por exemplo, pelo destaque e elogio à maternidade, ao salientar a importância
da mãe que bem educa os filhos e preserva a ordem no lar. Para ressaltar que tais atribuições são essencialmente
o meio dela contribuir com a nação, a Página tranqüiliza: “O papel da mulher na vida nacional não precisa de ser
saliente para ser importante
, [...] [uma vez que a função] invisível da mulher é ainda o mais importante na vida
de um povo” (PÁGINA..., 01/06/1941). Sobre a exaltação da mulher-mãe e mulher-cívica ver, entre outros,
Goellner (2000, 2001) e Soares (1994).
110
medicina, mas também no ramo da estética, ainda que atualmente não se faça uso do
termo dessa mesma maneira –, por outra, hodiernamente passa quase despercebida a relação
entre beleza e saúde, pois é muito mais sutil, ainda que constantemente repetida;
96
quiçá um
resultado dos intensos imperativos que estão às voltas do discurso em prol da saúde e que,
utilizando como recurso essencial o elogio moral daquele que possui um “estilo de vida ativo”
– e consequentemente a depreciação daquele que não tem –,
97
acaba se confrontando com o
ideário de que o cuidado excessivo com a aparência é supérfluo e denota uma personalidade
frágil, havendo inclusive, àqueles que possuem grande preocupação estética, a categorização
de pouco inteligentes.
Se contemporaneamente os investimentos para a constituição de uma identidade
nacional não parecem ser tão evidentes quanto no período estadonovista, no qual a forja do
corpo coletivo da nação se dava pela conformação do corpo individual, pela incorporação de
um habitus nacional,
98
sobretudo pelo esforço em direção ao embelezamento dessa nação, por
outra, a compreensão e gerenciamento dos corpos e condutas indica continuar se dando no
mesmo sentido. Dito de outro modo, desde o momento em que a preocupação com uma
identidade nacional se tornou evidente,
99
os indivíduos em seu conjunto são apreendidos e
investidos em um denominador comum: a condição biológica – uma perspectiva que
permanece e é até mesmo potencializada nos dias de hoje, como deixa ver a ampla gama de
investimentos somáticos estimulados pela revista Boa Forma.
De acordo com Foucault (1999), faz parte do investimento nesse sentido, a
configuração de um “racismo de Estado”; uma das facetas da biopolítica
100
que permitiu ao
Estado moderno – ainda em gestação no século XVIII – a incorporação e transformação do
racismo em uma tecnologia de poder, de que as teorias eugenistas são apenas a ponta de
lança; viabilizando a instituição estatal potencializar e gerir a vida, mas também tira-la, frente
96
Exemplo disso é quando a Boa Forma afirma que o uso excessivo de laxantes, além de poder causar
dependência, “pode diminuir a absorção de nutrientes e desencadear um processo de desnutrição que
compromete a saúde como um todo, [...] [sendo essa assertiva seguida por outra, que diz que as vitaminas que
podem ser perdidas devido ao uso excessivo desse medicamento são aquelas que combatem] os famosos radicais
livres e (...) [que têm] ação antienvelhecimento.” (BRITO, 2002, p.104). De modo geral o que prevalece no
projeto da revista é a promessa de beleza como um estímulo à realização de cuidados com a saúde, apontando
indiretamente que beleza e saúde são sinônimas.
97
Sobre esse assunto ver Gomes (2008), além dos já citados trabalhos de Gomes, Pich,Vaz (2006) e Palma et. al.
(2003).
98
Norbert Elias, citado por Flores (2007), “afirma que os destinos de uma nação ao longo dos séculos vêm ficar
sedimentados no habitus incorporado pelos seus membros individuais, intimamente vinculado ao processo
particular de formação do Estado submetido às instituições nacionais.” (FLORES, 2007, p. 71-2).
99
Mas não somente isso. Foucault (1988, 2008a) aponta ainda para a busca de auto afirmação da classe burguesa
por via do investimento no biológico e a descoberta da naturalidade da população, assim como dos fenômenos
econômicos, como meios de gerenciamento de ambos: população e economia.
100
Ver nota nº 10 deste trabalho (p. 12).
111
a noção da existência de raças inferiores que, ao oferecerem risco de degeneração as
superiores, deveriam ser dizimadas. Em nome da proteção da vida biológica que merecia ser
preservada, o exercício de uma tanatopolítica era (e ainda é) justificado. Se considerar que por
tirar a vida Foucault não entende “simplesmente o assassínio direto, mas também tudo o que
pode ser assassínio indireto: o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de
morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição etc” (FOUCAULT,
1999, p. 306), o racismo, ou ainda o princípio de causar a morte (real ou simbólica) em função
de uma condição biológica que não é adequada (entenda-se ai “bela”), pode ser considerado
como um mecanismo de normalização que, em alguma medida, possui sua atualidade. Vêm a
corroborar essa consideração, as assertivas de Priore (2000) e Soares (1994), de que o
fomento do desejo de possuir um corpo sarado, asséptico, que não denote marcas de
envelhecimento, permite questionar sobre a perpetuação, ou talvez uma atualização, dos
ideais higienistas e eugenistas em nossos dias por meio das exigências contínuas feitas pela
mídia de adequação a um ideal estético, ícone de perfeição – dentre os veículos que produzem
e reproduzem essa ode a beleza, ou ao menos ao embelezamento, encontra-se a revista Boa
Forma.
Voltando a seguir o pensamento de Flores (2007), ela afirma que “o aparecimento
dos conceitos de nação, nacionalismo, etnia, é acompanhado pari passu pelo aparecimento do
conceito de cidadão, forjado na idéia do indivíduo autônomo, senhor de si, responsável pela
aquisição de capacidades próprias, as quais o habilitariam para o exercício da cidadania.”
(FLORES, 2007, p. 70-1). Esse ideário que está no cerne do pensamento liberal, que
responsabiliza o indivíduo por essa correção, aperfeiçoamento, investimento no corpo, já que
o elogio à “autonomia”, à “liberdade” do cidadão, será sua bandeira ideológica – algo que
bem se percebe como presente tanto na Página quanto na revista Boa Forma quando
responsabilizam a mulher pelo investimento que realiza ou não em seu corpo. A esse princípio
que é potencializado em tempos neoliberais, é acrescida a radical valorização do princípio da
concorrência, do estímulo a (uma suposta) diferenciação, a produção de um “capital
humano.”
101
que seja singular, especial, pois isso significa ter, ao menos potencialmente, mais
condições de sucesso no mercado (de trabalho, mas também dos afetos). Permanecendo a
identidade calcada no corpo, no que é biológico, ao invés de na experiência individual, ou
ainda na retórica, essa diferenciação exigida acaba se mostrando como ilusória, seja porque o
corpo tem sua finitude, ou porque aquilo que se distingue demais corre o risco de escapar à
101
Sobre a “teoria do capital humano”, desenvolvida a partir da política neoliberal estadunidense, ver Foucault
(2008b).
112
norma, ao ideal, corre o risco de ser relegado a posição de outro, do estranho, raça
inferior, degenerado, doente, louco, o contraponto que a sociedade moderna ocidental elencou
para a forja do “eu”, já que pela percepção/construção da diferença é que se constitui e se
reconhece a individualidade.
A singularidade que o mercado propõe a cada mulher conquistar é assim apenas
aparente, já que o excessivamente distinto é depreciado. Vigora a totalização da aparência a
partir das recorrentes investidas pela mídia para ser bela, e a concomitante exigência para que,
ao mesmo tempo, cada uma busque ser individual, detentora de uma beleza única, inigualável.
Apresentada como possibilidade, essa procura faz girar a roda do consumo. Presta-se a
colocá-la em movimento, o apelo ao sistema das “estrelas”, o elogio de suas qualidades
“singulares” e conseqüentemente dos produtos que utilizam. É comum encontrar na Página,
conforme anteriormente apontado, comentários sobre o cotidiano e as receitas de beleza das
divas do cinema hollywoodiano. Contemporaneamente as detentoras dos saberes que
embelezam se multiplicaram: são atrizes/modelos/dançarinas que repetem sem cessar o
prestígio “sem igual” que possuem. Porém, como destaca Adorno (1986, p. 94), “a
individualidade mesma contribui para o fortalecimento da ideologia, na medida em que
desperta a ilusão de que o que é coisificado e mediatizado é um refúgio de imediatismo e de
vida”. A “estrela” é apenas uma variação do padrão de beleza hegemônico e os produtos que
ela usa são somente o “mesmo” apresentado como “novo” e especial. Traço da
compulsão permanente a produzir novos efeitos (que, no entanto,
permanecem ligados ao velho esquema) [que] serve apenas para aumentar,
como uma regra suplementar, o poder da tradição ao qual pretende escapar
cada efeito particular. Tudo o que vem a público está tão profundamente
marcado que nada pode surgir sem exibir de antemão os traços do jargão e
sem se credenciar à aprovação do primeiro olhar. (HORKHEIMER;
ADORNO, 1985, p. 120).
Exemplos quanto à importância que possui a novidade para a constituição de um
imaginário que prioriza o individual, juntamente com o recurso da apresentação do “velho
disfarçado de novo”, não faltam na revista Boa Forma.
102
O que vigora é a promessa de que
“agora” ou “desta vez” os resultados esperados serão obtidos. A leitora é assim condicionada a
postergar a gratificação de suas necessidades, convencida pela revista de que a satisfação
prometida será possível, desde que consuma a nova técnica de embelezamento que lhe é
102
É corrente encontrar em diferentes edições: o “power pilates”, uma aula de pilates na piscina, outra que une o
pilates com a ioga, prometendo “duplo efeito”. Há inúmeros exemplos que, na verdade, não mudam quase nada
em relação de um para o outro, mas que enfatizam que o novo método é eficiente.
113
indicada.
O incentivo à construção de uma individualidade se realiza também pela
“possibilidade de escolhas” oferecida pelos receituários. A revista Boa Forma disponibiliza
diferentes tipos de dietas, modalidades de atividade física, momentos em que é possível
praticar exercícios – no engarrafamento de trânsito, enquanto se assiste televisão, entre outros.
“O cardápio da malhação é democrático” (REIS, 2005, p. 5) diz a editora. Para aquelas que
ainda não optaram por nenhum tipo de ginástica, são oferecidos testes para que se descubra
qual a modalidade de atividade física que lhe seria mais agradável, deixando esse de ser um
empecilho (PENTEADO, 2004, p.54-9).
103
Uma prática de interpelação da mulher, similar ao “teste” veiculado pela Boa
Forma, é encontrado nos anos 1940. Um “questionário sobre beleza” contido na Página faz a
seguinte proposta à leitora: “si lhe interessa sabe-lo
(sic) responda a estas seis perguntas,
sinceramente com um SIM ou um NÃO, quando termine tire a porcentagem das respostas
sendo maior o numero dos SIM, póde
(sic) ficar certa de que é bonita. Mas, coincidindo ser na
maioria o NÃO, procure corrigir as causas para alcançar a beleza desejada” (PÁGINA...,
12/03/1939). Na verdade há seis itens (rosto, cabelos, mãos, silhueta, vestidos, personalidade),
contendo cada qual de seis a doze perguntas. Frente a tantos questionamentos deveria de ser
quase impossível que o resultado indicasse à mulher contentar-se com a sua insuficiente
beleza.
O uso dessa estratégia para que a mulher investigue se está aproveitando todas as
possibilidades disponíveis no mercado, e conjuntamente buscando sempre delinear um modo
de remediar a falta de tempo, dinheiro ou gosto da leitora, reforça a necessidade de ser feita
alguma escolha, o que acaba se tornando uma estratégia de interiorização da vigilância por
meio da culpa por não cuidar de modo constante da aparência, já que o corpo em suas partes
seria sempre passível de progresso e transformação. Produz-se a sensação de que estão
continuamente surgindo novas opções de produtos de embelezamento que, “dessa vez”, irão
resolver os problemas estéticos que atormentam a mulher, sendo preciso estar atenta. Há
opções para distintas condições financeiras, roupas, e outros quesitos para que a leitora não
somente seja o mais bela possível (o que abre uma margem de possibilidades que parece ser
quase infinita), mas também para que ela tenha um “estilo”. De acordo com a Boa Forma, a
mulher pode ser “esportista”, “supersensível”, “sereia” (GARCIA, 2003, p. 62-3), ao mesmo
tempo em que (pretensamente) pode criar seu próprio modo de ser. Tal classificação, na
103
Um exemplo desse tipo de teste pode ser encontrado na reportagem “Qual exercício combina com você?”
(PENTEADO, 2004, p.54-9).
114
verdade, só mostra que tudo deve ser estandardizado uma vez que cada uma dessas
belezas diferenciadas irá receber recomendações específicas de embelezamento. Dessa
maneira, ao se requisitar que a mulher realize uma escolha dentre as disponíveis, objetiva-se a
aproximação tanto maior quanto possível ao modelo hegemônico de beleza. A possibilidade
da leitora ter um “estilo” próprio acaba por se esfacelar, seja porque essa “opção” adquire um
tom de imperativo, ou pelo fato de que os “estilos possíveis” se restringem ao que é
veiculado. Como ensinam Horkheimer e Adorno (1985, p. 116),
Para todos algo está previsto; para que nada escape, as distinções são
acentuadas e difundidas. [...] Reduzidos a um simples material estatístico, os
consumidores são distribuídos nos mapas dos institutos de pesquisa [...] O
esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtos
mecanicamente diferenciados acabam por se revelar sempre como a mesma
coisa. [...] As vantagens e desvantagens que os conhecedores discutem
servem apenas para perpetuar a ilusão da concorrência e da possibilidade de
escolha.
A “liberdade de escolhas” é evidente já no período em que a Página foi publicada.
Como exemplo de opções dadas àquelas com recursos financeiros restritos, está, como já dito,
a confecção de “preparados” de beleza caseiros ou de coser ela mesma os vestidos
anunciados. A pretensa liberdade de escolhas era dada ainda quando a Página confortava a
mulher para que não se preocupasse com o tom do verniz que estivesse usando, se estava ou
não na moda, mas que tratasse de verificar o que lhe ia melhor (PÁGINA..., 02/03/1941).
Fundamental era a ação sobre a aparência. Nota-se já nessa época, a incipiente constituição de
um ideário de necessidade e de naturalização do uso cosmético, por meio de dizeres como:
Naturalmente que você faz uso de cosméticos nas pestanas” (PÁGINA..., 02/03/1941,
grifos nossos), ou ainda de que “Tais preparados são absolutamente necessários para certos
tipos de pele” (PÁGINA..., 06/10/1940, grifos nossos). Juntamente a tais assertivas facilmente
encontra-se já nesse momento o fomento ao consumo a partir do elogio do que era “novidade”
no mercado.
A análise dos dois manuais de beleza referidos indica a centralidade da “liberdade de
escolhas” para a (pseudo) elaboração de um “estilo” individual como dispositivo biopolítico
de controle. Um mecanismo que faz uso por um lado, da exigência de singularidade – medida
de diferenciação para se obter maior prestígio social, ou seja, de se sentir incluída –, e, por
outro, responsabiliza a mulher pela eleição de alguma das opções que lhe são oferecidas,
“normalizando” seus corpos e suas condutas, pois os “tipos” de beleza/ “estilos” são
organizados em torno de uma norma. O que se propõe à leitora da Boa Forma, não é,
115
portanto, que se enquadre exatamente ao padrão – que, a própria revista, repetidas vezes
veicula –, chegando a criticar aquelas que buscam a beleza estereotipada das modelos e
atrizes, como é notável nas seguintes frases: “Respeitar o seu tipo físico é fundamental. Se
você tem quadris largos, jamais conquistará o corpo da Gisele Bündchen [...] [e completa,]
somos bombardeados por imagens idealizadas. E o idealizado não é real” (RIBEIRO, 2005,
p.126-8). É provável que tais apelos se devam ao fato de que já se sabe de antemão que esse
não será obtido.
104
Então, o ideal é que se tente chegar nele, mas que se vença a frustração de
não consegui-lo. Como identificado pela análise, esse discurso já está na Página, e é dessa
maneira que ela alerta suas leitoras: “É possível que todas as mulheres sejam exatamente
iguais a uma ‘estrela’ de cinema? Não, não é possível. [...] Daqui se deduz que o primordial
para toda mulher é adotar uma filosofia especial e não se desesperar e amargurar-se pelo que
não pode chegar a ter” (PÁGINA...,01/12/1940). Ao invés do investimento no discurso
disciplinar, apreende-se como os receituários esmeram-se na constituição de uma norma que
comporta alguns desvios, desde que esses não sejam demasiados e que se esteja sempre
buscando embelezar-se o máximo possível.
104
Todavia, na mesma reportagem há o exemplo de uma mulher que “conseguiu recuperar o peso de antes,
voltou ao manequim 38 e hoje é feliz, embora ainda não se sinta totalmente satisfeita.” (RIBEIRO, 2005, p.126,
grifo nosso). Identifica-se ai a idéia de que há um manequim ideal, e que emagrecimento e felicidade estão
associados.
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que gostaria também de dizer, a propósito dessa função do
diagnóstico sobre o que é a atualidade, é que ela não consiste
simplesmente em caracterizar o que somos, mas, seguindo as
linhas de vulnerabilidade da atualidade, em conseguir
apreender por onde e como isso que existe hoje poderia não
ser mais o que é. E é nesse sentido que a descrição deve
sempre ser feita de acordo com essa espécie de fratura virtual,
que abre um espaço de liberdade, entendido como espaço de
liberdade concreta, ou seja, de transformação possível.
(Michel Foucault)
A natureza em si mesma não é nem boa, como queria o antigo
romantismo, nem nobre, como quer o novo. Como modelo e
objetivo, ela representa o antiespírito, a mentira e a
bestialidade. É só quanto é reconhecida tal como realmente é
que ela se torna a ânsia que a vida tem pela paz, aquela
consciência que desde o começo animou a resistência tenaz
contra os chefes e contra a coletividade. O perigo que ameaça
a prática dominante e suas alternativas inevitáveis não é a
natureza – a natureza, muito ao contrário, coincide com ela –,
mas sim o fato de recordar a natureza.
(Max Horkheimer e Theodor W. Adorno)
Lançamos-nos nas páginas anteriores sobre a tarefa de discorrer a respeito de uma
possível aproximação entre os pensamentos de Adorno e Foucault. Trata-se da similaridade
vislumbrada nos diagnósticos do presente desenhados por cada um dos autores referidos, os
quais são condensados, mais especificamente, nos conceitos-chaves de suas obras, de modo
respectivo, o de indústria cultural e biopolítica. Considerando a priori a atualidade do
pensamento desses extraordinários filósofos do século XX, este trabalho se dedicou a
trabalhar a hipótese de que a indústria cultural opera como um dispositivo biopolítico
fundamental de nosso tempo, numa perspectiva de, na descrição dos argumentos sobre essa
proposição, exercitar a perspectiva teórico-metodológica que se encontra presente na obra de
ambos: a saber, de analisar e refletir, a luz do que escreveu cada um, sobre “o que temos
sido”.
Nessa direção, apontamos ao longo do trabalho para duas convergências centrais nos
diagnósticos da biopolítica e da indústria cultural, pelas quais entendemos estar autorizados a
categorizar essa última como um dispositivo. Uma das similaridades (que possui vários
desdobramentos) refere-se aos mecanismos de controle se destinarem a grande quantidade de
pessoas que coexistem (as massas ou população), e suas estratégias de subjetivação se
117
aplicarem por via da ação sobre as variáveis do meio. A outra aproximção trata do
resultado dessas estratégias: um controle sobre a vida e a totalização da multiplicidade sob o
denominador comum do biológico.
A primeira aproximação indicada, talvez seja a mais evidente, pois aponta para o
objeto comum da biopolítica e da indústria cultural: as massas/população, são a própria razão
de ser desses fenômenos, os quais se constituem na emergência histórica-política-econômica
de gerenciamento, primeiramente por parte do Estado e depois pelo mercado, da grande
quantidade de pessoas que coexistem. Com a população já não estando circunscrita ao espaço
de um território específico, a perda de centralidade da instância estatal e o desenvolvimento
técnico ocorrido, a indústria cultural é a conformação específica que as estratégias biopolíticas
de controle puderam tomar no período neoliberal, sobretudo se considerarmos que já em sua
origem perpassa a intenção de abranger grande público.
O método pelo que hodiernamente se procura atingir/gerenciar as massas/população
apresentou-se igualmente como similar, tanto na análise de Foucault quanto de Adorno:
biopolítica e indústria cultural operam por via da ação sobre as variáveis do meio, em
detrimento a uma intervenção direta e específica sobre cada organismo. No que se refere à
indústria cultural, esta se configura como o próprio meio ao produzir um efeito de realidade
por via do uso que faz do desenvolvimento tecnológico, no sentido de diminuir as
possibilidades de distinção entre a vida e os ditos “bens culturais”. A ação que ela produz
sobre as massas se dá pela determinação da percepção do real por via da constituição objetiva
dos produtos: sua proximidade com o consumidor, a exigência de uma sensibilidade peculiar e
um desempenho específico para se captar os estímulos programados, assim como a veiculação
de esquemas e estereótipos em que são anulados os elementos de tensão da realidade, servem
como medidas para moldar a subjetividade à dinâmica repetitiva da produção. Seus produtos
agem ainda pela perpetuação da configuração da sociedade como um prolongamento da
natureza ameaçadora, ao desvincular meio de fins, o individual e o total, servindo essa
condição para a eficácia da exploração do impulso ao comportamento mimético e das
debilidades egóicas. No misto de pseudo-gratificações proporcionadas pela sensação de
ordem e reconciliação, e o princípio de realidade que estimula o consumo de produtos como
consolo pela impossibilidade real de possuir uma singularidade, a indústria cultural adapta a
subjetividade das massas, integrando-as pelo conformismo.
É pela ação nas variáveis do meio que biopolítica e indústria cultural conduzem as
condutas das massas/população no sentido de uma regulação, ou se se preferir, de
normalização. Cumpre importante função nesse sentido, a mecânica de “controle-
118
estimulação” – para fazer uso da expressão foucaultiana: modo de exercício do poder que
é sutil e positivo, e que se coloca em posição oposta a um sistema que é (explicitamente)
repressor. Dessa maneira mobiliza a adaptação de uma maneira que é “espontânea”, sendo
pouco reconhecido pelos indivíduos como um meio de manipulação e controle, e que tem
como característica a produção de “algo”: um comportamento, pensamentos positivos, uma
troca no mercado, a potencialização do corpo, o investimento sobre a saúde-beleza, o aumento
de rentabilidade no trabalho, a “manutenção de uma amizade”.
Em meio as estratégias sutis e positivas de subjetivação destinadas às
massas/população, as noções de liberdade e concorrência (ou tão somente diferenciação)
cumprem papéis centrais nos escritos de Adorno e Foucault, ainda que de maneira nem
sempre idêntica. Na compreensão comum desses autores, é essencial para que os mecanismos
contemporâneos de domínio possam operar de modo sutil e positivo, o estímulo, a disposição
de “possibilidades”, o incitamento do indivíduo a “ser livre”. Nessa estratégia neoliberal de
ação sobre as condutas, o filósofo francês identifica a manipulação do campo de
possibilidades para o exercício da “liberdade”, comumente ao serem estabelecidos pelo
mercado facilidades ou empecilhos econômicos para o comportamento desses “sujeitos
ativos”. A “liberdade” nesse sistema, aparece para Foucault como a condição prévia para o
domínio do campo de ação, e assim, consequentemente, da ação que é tornada possível (ou ao
menos mais acessível). No diagnóstico do frakfurtiano, a liberdade igualmente ocupa um
papel central, todavia Adorno apresenta e destaca seu uso ideológico, na medida em o anseio
individual pela liberdade é canalizado para o consumo de mercadorias. A materialização nos
bens de consumo como um ideal de felicidade, prazer e reconciliação com a natureza – tema
específico de Adorno – é elemento basilar da dinâmica da indústria cultural, assim como
igualmente a pretensa possibilidade de distinção social, de singularidade, prometidas pelo
mercado. Apesar das diferenças de compreensão do fenômeno, ambos os autores identificam
nesse incitamento à “liberdade” o caráter perverso de abandono e responsabilização do
indivíduo.
Com relação a noção de concorrência, ela é igualmente identificada como tendo uma
importância central no diagnóstico de ambos os autores, ao compor a conjuntura de sutileza e
positividade das estratégias de subjetivação no tempo presente. Novamente aqui nos
deparamos com uma diferença (talvez a maior) quanto ao pensamento de ambos. Para
Foucault, o princípio da concorrência e da lógica empresarial que é inerente ao
neoliberalismo, propicia (e exige) a diferenciação do indivíduo, para o bem de disputar uma
vaga do mercado. Nos escritos de Adorno sobre a indústria cultural, porém, a decorrência do
119
princípio da concorrência é a uniformidade, a massificação; algo que o autor alemão
explica ao apontar para a falácia das opções de diferenciação, uma vez que, ao ser
potencializado e instrumentalizado o desejo de distinção, concomitantemente é determinado o
que deve ser o objeto desse desejo. Junte-se a isso o poder da propaganda de fundir o produto
com a promessa que realiza, configurando-se como um instrumento limitador da
concorrência, devido ao acesso a publicidade ser restrito às condições financeiras apenas das
grandes corporações.
Como explicado ao longo do trabalho, no que se refere especificamente aos escritos
de Adorno, o desejo (ou a sua determinação) possui importância fundamental nas estratégias
de condução das condutas. Assim é também com relação a sua contraface complementar, a
suscitação (ou canalização) do medo. A indústria cultural potencializa o que seria o medo
imemorial do ser humano ao que é estranho, desconhecido, e que lembra a natureza
ameaçadora que fora reprimida em troca da forja da civilização, e o direciona para “tipos”
sociais específicos, normalmente aqueles que não se adaptam prontamente à lógica do
consumo e do trabalho. Ao contrário de funcionar como um meio de trazer à consciência a
percepção da natureza recalcada que há no próprio indivíduo, e identificada apenas no objeto
de repulsão, ela reforça a associação com figuras de autoridade (normalmente as
“celebridades” da mídia) e, pela padronização dos corpos e das condutas a partir do consumo
de produtos estimulados, delimita de modo mais exato aquele que deve cumprir a função de
“outro”. Apesar de não se encontrar explanação direta e precisa de Foucault sobre o desejo e o
medo, esses recursos aparecerem como elementos presentes na mecânica de subjetivação
liberal e neoliberal: referimo-nos à noção (ou “cultura”) de perigo e no “controle-
estimulação” identificado pelo autor.
É pela centralidade da tentativa de manipulação do desejo e do medo, mas também
pela demarcação da “entrada da vida na história”, e a maneira como se passou a investir sobre
o que o corpo possui “de mais vivo” a bem de atingir a população, que emerge em nossa
análise dos escritos de Adorno e Foucault, a compreensão do corpo como meio histórico-
natural, como uma das variáveis mais importantes de controle das massas. Como sugere
Foucault (1988), a entrada da vida na história – ou se quiser na (bio)política –, pode ser
apreendida por meio de uma “história dos corpos”, pois é nele que se investe e pelo que a
“vida” se expressa. Essa entrada da vida/corpo na história é para o frankfurtiano algo
imemorial, e marca o nascimento da cultura, quando o domínio da natureza tendencialmente
livra o homem do medo, mas também subjuga sua natureza interna. Nesse domínio de si
exigido pela civilização em troca da sobrevivência e da sublimação, o corpo é alvo de um
120
amor-ódio que resulta no seu trato como um objeto manipulável, seja ao ser ele
diretamente reprimido, ou então exaltado ao nele se vislumbrar uma promessa de
reconciliação. No investimento realizado, todavia, é impossível distinguir o corpo do artifício,
a vida da morte. Ainda sim, a investidura é sobre o desejo de reconciliação como liberdade (o
corpo da população), e consequentemente na canalização da constituição subjetiva a partir do
corpo.
O resultado dessas estratégias de subjetivação é enfim o controle sobre a vida e a
totalização das massas/população. Quanto ao conceito de vida na obra dos autores, já
abordado na introdução desse trabalho e ao longo do mesmo, refere-se nos escritos de
Foucault, de modo geral, aos fenômenos biológicos da população; e concomitantemente,
sobretudo a partir de sua incursão no tema sobre o neoliberalismo, representa o que é público
e privado. É justamente nesse último sentido citado, que o tema da vida nos escritos de
Adorno, tal como aqui o entendemos, apresenta uma similaridade com o do filósofo francês.
Para ambos os autores, o controle sobre a vida se dá pela generalização da lógica empresarial
(do homo oeconomicus neoliberal), do utilitarismo e da concorrência, de tal maneira que esta
atinge até mesmo aquelas relações que parecem estar protegidas a uma
influência/direcionamento exterior – que se demarque, no entanto, que a crítica mais dura do
frakfurtiano é a substituição do sentido individual da existência, que guia o modo de pensar e
agir, pela lógica da indústria e do mercado.
Visando atingir o trabalho, as relações afetivas, os pensamentos, o lazer, entre
outros, as promessas de liberdade e felicidade da indústria cultural são acompanhadas por
inúmeras prescrições que determinam o dever ser, cumprindo o corpo a função de objeto de
investimento por excelência. É dessa maneira que ela se concretiza, na contemporaneidade,
como uma das vias centrais para um controle sobre a vida (um dispositivo biopolítico), assim
como também de redução do sujeito aos fenômenos da população (ou à própria vida,
entendida tal como Foucault, como os fenômenos biológicos): longevidade, natalidade,
mortalidade, saúde, entre outros, a partir da ação que realiza sobre o meio (de que faz parte,
como já sabido, o corpo). Ressaltamos aqui a importância da dinâmica da indústria cultural
sobretudo na redução do sujeito a um dos fenômeno específicos da população: a
economicidade. É pelas promessas da indústria cultural que o indivíduo é levado a
permanecer no âmbito da oikonomia, pois seus veículos estão continuamente a produzir
infinitas necessidades (de consumo), essas sempre persuasivamente sugeridas como essenciais
para a existência.
Por fim, destacamos ainda, de maneira um tanto exploratória, um outro sentido
121
possível para a expressão vida em Adorno. A vida pode ser uma espécie de força
individual, uma vontade de não diluir-se no todo, de “existir”. Ela indica ser a contraface da
natureza reprimida, a oposição ao impulso de destruição reificador ocasionado pela alienação
da natureza humana e seu solapamento, se caracterizando como, talvez, um impulso para a
liberdade. Uma liberdade entendida não como contraposto à cultura, um retorno à natureza,
mas como possibilidade de não ser completamente subjugado, de determinar por si mesmo a
finalidade de suas ações.Um poder da vida, em linguagem foucaultiana. É em sentido oposto
que a indústria cultural atua: pela manipulação do desejo de reconciliação com a natureza,
falseado como sendo o estado de liberdade, ela propicia o comportamento de obediência a
estímulos protobiológicos, na medida em que recalca continuamente o desejo, e canaliza o
medo inconsciente na natureza ameaçadora contra aqueles que não se adaptam. Dessa maneira
não há espaço para o “outro”, para a diferença e a particularidade, mas apenas para a
fungibilidade, a diluição no todo.
Antes de terminar, gostaria ainda de fazer um pequeno comentário sobre a leitura do
feminino realizada na parte destinada à análise do material empírico, fazendo-o a partir das
repetidas promessas de reconciliação com a natureza, encontradas nos receituários de beleza
analisados. A exaltação do corpo “perfeito”, a produção do mito quanto ao corpo “puro”, o
elogio de uma beleza “natural”, a depreciação de métodos ditos “artificiais”, a exaltação da
liberdade de (dever) exibir o corpo, o incitamento a ação sobre a aparência, o elogio ao
“novo” ou o consumo de novas técnicas de embelezamento, o investimento em um “estilo”
pré-determinado, a classificação por meio de recomendações (científicas) específicas de
embelezamento, a necessidade de se “fazer escolhas” (entre aquelas indicadas), a idéia de
progresso e transformação interminável, o condicionamento à postergação da gratificação de
suas necessidades, a vigilância de si mesma (uma interiorização da necessidade de calcular
economicamente todas as suas ações) ou a autovigilância das formas corporais, a radical
valorização do princípio da concorrência, do estímulo a (uma suposta) diferenciação, a
depreciada possibilidade de a mulher masculinizar-se, enfim, a associação da identidade ao
corpo. Todos esses são dispositivos que reforçam a condição milenar destinada ao feminino:
próxima da natureza, dos animais, do sentimentalismo e da irracionalidade, há que ser
dominada, subjugada – ao ser mantida na condição de natureza –, ainda que, ou por isso
mesmo, em associação com a beleza. O investimento é para que a mulher permaneça assim
sob os desígnios da sociedade patriarcal e que se esmere em ocupar a posição a que foi
sorrateiramente destinada. Lembrança da natureza humana, deve representar o que é
civilizado, deve conter-se, permanecer à espera, ou até mesmo partir em busca, como
122
preconizado na atualidade, de seu conquistador – talvez não mais um marido, mas ainda
sim um homem para desejá-la. Nesses processos de subjetivação do feminino, mais uma vez,
ainda que talvez em ordem inversa, Foucault encontra Adorno: trata-se, final das contas, de
indivíduos que se desacostumam a ser sujeitos.
123
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ANEXOS
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ANEXO A – Revista Boa Forma
135
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