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Maria de Lourdes Lima Malafaia
ALFORRIAS, UM ACORDO ENTRE GATOS E RATOS:
Um estudo de caso, São Paulo do Muriaé, leste da Zona da
Mata Mineira (1850 – 1888).
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Mestrado em História da
Universidade Severino Sombra, para
obtenção do título de Mestre em História,
orientada pelo professor Doutor Jo Jorge
Siqueira.
Vassouras/2007
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FOLHA DE APROVAÇÃO
ALFORRIAS, UM ACORDO ENTRE GATOS E RATOS:
Um estudo de caso, São Paulo do Muriaé, leste da Zona da
Mata Mineira (1850 – 1888).
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Mestrado em História da
Universidade Severino Sombra, para
obtenção do título de Mestre em História,
orientada pelo professor Doutor Jo Jorge
Siqueira.
Banca Examinadora
Presidente
1º Examinador
2º Examinador
Vassouras, RJ, /2007
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Ao meu pai, José, descansando, cidadão
de valor, honesto e justo. Embora de pouca
escolaridade, soube, através do seu exemplo,
ensinar a seus filhos os verdadeiros valores para a
construção de uma vida digna.
À minha mãe, Maria, cidadã de valor,
trabalhadora e dinâmica, também de pouca
escolaridade, mas que buscou dentro dos seus
limites, nos proporcionar o conhecimento à que não
teve acesso.
A vocês queridos, cuja melhor herança que
me deixaram, foi a educação, dedico o resultado
desse trabalho, pois vocês foram os responsáveis
por eu ter conseguido chegar até esse ponto.
Eu me orgulho de vocês.
AGRADECIMENTOS
Com certeza, não foi sozinha que consegui vencer mais essa etapa
importante de minha vida. Tantos foram os que colaboraram e sofreram durante
a realização desse projeto. Foram momentos de alegria e de angústia, mas
significativos, não apenas para o meu crescimento intelectual, mas como
também para a minha realização pessoal.
Agradeço a Deus, fonte de todo o conhecimento, fortaleza dos fracos e
consolo de todos os angustiados. Durante toda a trajetória, nas idas e vindas,
nunca me senti sozinha, pois em Ti, Senhor, sempre pude confiar.
Ao meu esposo, Marcelo, pelo companheirismo e incentivo constante e
paciência com as constantes auncias. Eu o agrado por tantas vezes
assumir funções que seriam minhas, perante aos nossos filhos e à minha mãe.
Aos meus filhos Eduardo e Bruno, aqueles que mais sofreram com tantas
ausências, agradeço pelo fato de existirem, vos são o impulso e a foa
necessária que me levaram a acreditar que a luta pelos sonhos vale a pena.
Aos meus sogros, Aninan e Arly, meus segundos pais, que além do
incentivo, também sonhavam com a realização desse projeto. Obrigado por todo
carinho.
A todos os meus familiares, que entenderam as minhas ausências, meus
agracedimentos por todo o incentivo e apoio.
A Congregão Santa Marcelina, Faculdade e Colégio, por toda a
formação educacional que recebi e, que possibilitou com que eu me tornasse
uma profissional ética, que busca, atras do conhecimento, educar os alunos
atendendo aos sinais dos tempos, conforme os ensinamentos do beato Mons.
Luis Biraghi.
Aos meus queridos alunos, pela paciência, o respeito e o carinho que me
dedicaram durante esta etapa. A minha busca do conhecimento, visa
proporcionar também, a vos melhores condões de aprimoramento intelectual
e pessoal.
Agradeço a paciência e a objetividade do professor Doutor Jo Jorge
Siqueira, que além de ter me orientado de maneira muito competente,
demonstrou-se amigo, conduzindo essa pesquisa de forma crítica e eficiente.
Professor, hoje sou um pouco do muito que me ensinou.
Aos professores do Mestrado, Miridan, Lúcia, Eduardo, Alberto Moby, que
de formas diversificadas colaboraram para o meu enriquecimento e
desenvolvimento intelectual. De maneira muito especial, a professora Ana
Moura, pelo incentivo no início da pesquisa, quando ainda existiam muitas
dúvidas. Sua ajuda foi fundamental para o desenvolvimento dessa pesquisa.
Aos amigos do mestrado, sentirei saudades de todos. Em especial, a você
Ana, que se revelou uma grande companheira, suas críticas e intervenções
foram importantes para o amadurecimento da minha pesquisa.
À amiga Rita Lazarroni pela coragem de arriscar. Seu exemplo de
persistência foi marcante.
À amiga Viria, pelo constante auxílio metodológico e incentivos
À minha amiga Goretti e sua família, que de maneira muito próxima, me
acompanhou na redação da dissertação. Com dedicão e muita paciência
esteve presente o tempo todo desta jornada.
À professora Rita Schettini, pelo carinho na leitura e corrão ortográfica.
A todos os meus amigos e colegas de trabalho, professores que como eu,
acreditam na educão e esperam atras da mesma, construir um mundo com
menos preconceitos. Obrigada pelo incentivo constante, pelas substituições
inesperadas. Sem vocês dificilmente conseguiria vencer todos os obstáculos.
Resumo
A presente pesquisa é uma análise dos padrões de cartas de alforria
encontradas na freguesia de São Paulo do Muriaé, leste da Zona da Mata Mineira, a
partir da segunda metade do século XIX (1850 – 1888).
A região passava por uma significativa expansão agro-econômica, sendo
grande produtora de café, além de vários outros produtos agrícolas.
As características do perfil dos alforriados foram analisadas mediante busca
na documentação cartorial e paroquial, através dos padrões de manumissões.
Nosso propósito será demonstrar as condições com que estas cartas de
liberdade foram concedidas e a quem elas realmente beneficiaram, se escravos e/ou
fazendeiros.
Palavras-chave: alforrias, padrões de liberdade, escravidão.
Abstract
The present research is an analysis of the enfranchisement letters found in the
Freguesia de São Paulo do Muriaé”, east of Zona da Mata in the state of Minas
Gerais, starting in the second half of the XIXth century (1850 – 1888).
The region underwent significant agroeconomic development being a great
coffee producer besides many other agricultural products.
The freed’s profile was analyzed after study of public notary’s office and
parochial documents through manumission patterns.
Our aim is to demonstrate the conditions in which these enfranchisement
letters were granted and who they really benefited, farmer and/or slaves.
Key words: enfranchisement, freedom patterns, slavery.
SUMÁRIO
Páginas
INTRODUÇÃO....................................................................................................... 11
Capítulo 1– PECULIARIDADES DE UMA REGIÃO MINEIRA NA
SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX.
......................................................................................................................
16
Mapa 1
......................................................................................................................
16
Figura 1
......................................................................................................................
26
Figura 2
......................................................................................................................
28
Tabela 1
......................................................................................................................
35
Tabela 2
......................................................................................................................
39
Tabela 3
......................................................................................................................
41
Tabela 4
......................................................................................................................
42
Tabela 5
......................................................................................................................
43
O transporte e o escoamento do café....................................................... 27
O comércio de escravos em São Paulo do Muriaé................................... 30
Capítulo 2 – A LIBERDADE POSSÍVEL................................................................ 47
Tabela 6................................................................................................................. 54
Tabela 7................................................................................................................. 56
10
Tabela 8................................................................................................................. 63
Tabela 9................................................................................................................. 66
Tabela 10............................................................................................................... 68
Tabela 11............................................................................................................... 73
Tabela 12............................................................................................................... 75
Os instrumentos legais utilizados na conquista das alforrias.................... 47
A classificação das alforrias...................................................................... 62
Capítulo 3– O LIBERTO EM SÃO PAULO DO MURIAÉ: OBSTÁCULOS E
CONQUISTAS
......................................................................................................................
78
Tabela 13
......................................................................................................................
80
Tabela 14
......................................................................................................................
84
Tabela 15
......................................................................................................................
84
Tabela 16
......................................................................................................................
87
Tabela 17
......................................................................................................................
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
......................................................................................................................
97
FONTES MANUSCRISTAS
......................................................................................................................
100
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 101
12
INTRODUÇÃO
Nosso estudo propõe, como questão fundamental, analisar os padrões das
cartas de alforria no município de São Paulo do Muriaé entre 1850 1888. O
município localizado ao leste da Zona da Mata Mineira, era agrícola e tinha no
escravo sua principal força produtiva, mantendo-se preso ao escravismo até os
últimos dias da escravidão. As cartas de liberdade eram cartas ou títulos de alforria,
documento por meio do qual os senhores legitimavam a liberdade concedida aos
seus escravos. Era um documento registrado em cartório e, com ele, o escravo
ficava livre da tutela do senhor.
1
As cartas de alforria poderiam apresentar padrões diversificados:
condicionadas, gratuitas, alforrias através de testamentos, compradas e outras.
2
Independente da forma como fora concedida, era o instrumento legal com que o
escravo conseguia liberdade.
No município de São Paulo do Muriaé, foram dois os padrões das cartas
concedidas: condicionadas e gratuitas. Nosso objetivo geral é demonstrar que a
concessão das cartas foi uma estratégia desenvolvida pelos senhores para
manterem o controle da mão-de-obra escrava nas lavouras cafeeiras. Buscaremos
ainda avaliar se as atitudes dos escravos em algum momento influenciou o
fazendeiro no ato de conceder ou não as alforrias.
A pesquisa proposta utiliza os métodos da história serial e quantitativa,
permitindo-nos uma análise sistemática e a representação dos resultados em
linguagem gráfica.
1
MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo : USP, 2004. p. 89.
2
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo : Companhia das
Letras, 2000, p.460.
11
A fonte documental utilizada para a realização do trabalho foram as cartas de
alforrias registradas nos cartório de Ofício de São Paulo do Muriaé e de
Cachoeira Alegre e as cartas registradas no livro de batismo da Paróquia de São
Paulo. As cartas de Pia ou de Batismo foram selecionadas da pesquisa realizada
pela historiadora Vitória Schettini Andrade, com um total de 36 cartas.
No livro de Notas nº. 1, pertencente ao Cartório de Ofício de São Paulo do
Muriaé, encontramos 6 cartas de liberdade. Elas foram registradas no período que
corresponde aos anos de 1862 a 1864. O livro apresenta Termo de Abertura e de
Fechamento, com um total de 60 páginas.
No livro de Notas nº. 2 do mesmo cartório, encontramos o registro de 31
cartas de liberdade correspondente ao período de 1885 a 1888. O livro não
apresenta todas as páginas: falta o termo de abertura e os registros ocorrem a partir
da página 6. As últimas páginas foram arrancadas.
No cartório de 1º Ofício de Cachoeira Alegre, distrito que pertencia, no
período estudado, À Freguesia de o Paulo do Muriaé, encontramos registradas,
no livro de nº. 13, 28 cartas. O livro não apresenta os Termos de Abertura e de
Fechamento, estando algumas cartas rasgadas; as mesmas correspondem ao
período de 1856 a 1874.
Os dados retirados dessas fontes serão analisados por período, com base
no método da hisria serial. As cartas foram agrupadas de acordo com o
padrão de cada uma conforme a década em que elas foram concedidas, pois,
individualmente, elas não apresentariam o resultado desejado e a comprovação
de nossa hipótese. Isoladas, são apenas documentos, através dos quais o
fazendeiro liberta o seu escravo. Mas, em conjunto, nos fornecem uma rie de
12
informações que demonstram a intenção dos fazendeiros em utilizar as mesmas
como um instrumento de resistência no contexto da crise do escravismo.
O recorte temporal de nossa pesquisa, inserido nos anos de 1850 a 1888,
tem um prosito. O limite é explicado pelo fim do tráfico internacional e pela
expansão ecomica do município de São Paulo do Muriaé. Com o fim do tráfico
internacional, uma das solões encontradas pelos fazendeiros foi o tfico
interprovincial, que, temporariamente solucionou o problema da mão-de-obra,
possibilitando o connuo desenvolvimento das lavouras cafeeiras.
O segundo limite corresponde à abolição da escravatura, peodo de grandes
transformações sociais e econômicas que marcaram o fim do escravismo. Durante todo
este peodo (1850 – 1888), encontramos registros das cartas de liberdade,
condicionadas e gratuitas, mas percebemos que, nas últimas cadas, as cartas
condicionadas representaram uma evolão significativa sobre as gratuitas.
Em relão ao leste da Zona da Mata Mineira, ainda existem rias lacunas a
serem estudadas. A ambiidade das cartas de alforria é um dos temas que necessita de
mais pesquisas na rego. Embora nossa pesquisa não seja inédita, nela algumas
particularidades específicas do município de São Paulo do Muriaé, como a grande
produção agcola realizada por pequenos planis, cujos estudos e pesquisas são
indispensáveis na historiografia regional.
A análise das cartas condicionadas nos permitiesclarecer a inteão que existia
entre os senhores em conceder tal privilégio aos escravos. O que a carta de alforria
representava para os fazendeiros de café e a que condição os escravos a recebiam é o
que procuraremos responder. Nosso estudo é significativo, pois permiti perceber a
resisncia local dos fazendeiros em relão ao fim da escravidão, bem como
13
compreender uma estrutura social que se rompeu com a abolição, mas que marca
profundamente, até o momento presente, as relões de nossa cidade.
A escolha dos autores, para a fundamentação teórica da pesquisa, deve-se em
particular à proposta dos mesmos para a alise da escravidão no Brasil, em particular as
cartas de alforrias. Eduardo Paiva adverte para as duas faces da alforria, para o cativo
era o sonho de liberdade, e para o senhor, o instrumento para manter o escravo
submisso e o liberto grato pelo presente.
O trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro, uma análise da
expansão agrícola no município de São Paulo do Muriaé. O município, que foi
ocupado no início do culo XIX, teve o seu desenvolvimento econômico promovido
pela expansão das lavouras cafeeiras e das lavouras de abastecimento. Esse fato é
ainda discutido por alguns historiadores que divergem com relação ao
desenvolvimento econômico da região. O auge da produção agrícola ocorre paralelo
à proibição do tráfico internacional, gerando um sério problema para os proprietários.
A importância do trabalho escravo na localidade e a dificuldade enfrentada
pelos fazendeiros para suprir a demanda de escravos com a proibição do tráfico
internacional também será motivo de análise. Apesar de ser uma área de grande
produção agrícola, na região não havia grandes plantéis de escravos e o tamanho
das propriedades era menor em relação aos vizinhos do sul (Juiz de Fora) e do
nordeste (Cachoeiro do Itapemirim).
O tráfico interprovincial, uma das solões encontradas pelos fazendeiros para
aquele momento de crise, não representou a solução para o problema da demanda. E
nesse capítulo demonstraremos a importância das ferrovias para o desenvolvimento da
região será demonstrado.
14
O segundo capítulo iniciará com um debate sobre o conceito de liberdade e
alforria. Os conceitos são polêmicos, sendo alvo de debate e interesse tanto da
historiografia nacional quanto regional. Uma análise dos caminhos que foram possíveis
ao cativo, para a conquista da liberdade através de vias legais, as vantagens e as
desvantagens que as leis abolicionistas lhes ofereceram e os padrões das cartas de
alforrias encontrados em o Paulo do Muri, serão cuidadosamente avaliados. Os
padrões serão analisados em grupo, embora haja uma alusão a casos específicos que
nos chamaram a atenção devido à condição em que a carta foi concedida.
A evolução nas concessões de alforrias será demonstrada através de tabelas
com um maior volume de cartas registradas na última década. Coincidentemente
esse período foi o de maior desenvolvimento agrícola da região.
Será traçado um paralelo entre o município de São Paulo do Muriaé e outros
municípios, observando a importância da mão-de-obra escrava em toda a região.
No terceiro capítulo, o perfil do liberto em São Paulo do Muriaé, as
possibilidades de conquistas e os obstáculos enfrentados pelos mesmos serão
discutidos. Para isso, serão utilizadas as variantes encontradas nas cartas de
alforrias: cor, sexo, idade, temporalidade da carta, condição, profissão. Por essas
variantes, perceberemos quem era o liberto, se haveria possibilidades do mesmo
sair do município, ou se ele tentaria se integrar à sociedade muriaeense.
15
Capítulo 1
PECULIARIDADES DE UMA REGIÃO MINEIRA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX.
A expansão agrícola na freguesia de São Paulo do Muriaé.
MARCHA DO CAFÉ NO SUDESTE
(Fonte: José Dantas, História do Brasil. In: MARTINS, Ana Luiza. Império do
Café: a grande lavoura no Brasil 1850-1890. 7. ed. São Paulo : Atual, 1990 p. 37.)
Trar o retrato da província de Minas Gerais no séc. XIX continua sendo alvo de
vários debates entre os pesquisadores contemporâneos, que apresentam iias
divergentes com relão ao desenvolvimento econômico e à expansão demográfica da
região. Contrariando um grupo de historiadores que defende a estagnação ecomica da
província após o surto da mineração, surge um grupo de pesquisadores, entre eles
Martins
3
, Slenes
4
e Libby
5
, que refutam a questão da decancia econômica da proncia.
3
MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista de Minas Gerais no séc. XIX. Belo Horizonte
: CEDEPLAR. Texto para discussão n. 10. ago/1982.
4
SLENES, Robert W. Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escravista em Minas
Gerais no século XIX, In Estudos econômicos V. 18, n.3 set/dez, 1998, p. 449 - 495
5
LIBBY, Douglas C. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no
século XIX. IV Anais da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 1988, p. 62.
16
Minas não se tornou uma província decadente; outras atividades
substituíram a mineração. Em toda a proncia, ocorreu uma expansão das
fronteiras, promovendo uma produção agrícola diversificada, interligada à pecuária
e às manufaturas. Segundo Libby, estas atividades transformaram a economia
mineira no séc. XIX, gerando um incremento econômico que possibilitou um
aumento populacional e a sustentação do maior plantel de escravo de todo o
império
6
.
Celso Furtado, afirma que a decadência da província e seu atrofiamento
econômico ocorreu devido à ausência de atividades diversificadas e à instalação
de uma economia diversificada.
7
Robert Slenes e Roberto Borges Martins, apesar
de concordarem com Libby em relação ao crescimento da proncia, entram em
contradição no que diz respeito à forma e à organização ecomica da mesma.
Para Robert Slenes, Minas possuía uma economia de exportação bastante
significativa, sendo que a prodão para o mercado externo superava a prodão
para o mercado interno. A expansão das fronteiras agrícolas em Minas superava
as áreas de plantation do Rio de Janeiro e São Paulo
8
. No entanto, Roberto
Borges Martins o concorda com Slenes. Para ele, as atividades de
abastecimento conviveram com a economia principal, ou seja em Minas, não
existiu uma economia exclusiva de exportão, nem mesmo quando a lavoura de
café começava a desenvolver na Zona da Mata Mineira, as atividades de
abastecimento deixaram de existir.
9
.
6
LIBBY, Douglas C. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no
século XIX . São Paulo : Brasiliense, 1988, p. 14.
7
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo : Nacional, 1970, p. 91-93.
8
SLENES, Robert W. Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escravista em Minas
Gerais no século XIX, In Estudos econômicos V. 18, n.3 set/dez, 1998, p. 449 - 495
9
LIMA, Maria do Carmo Salazar. População de Minas Gerais na segunda metade do século XIX:
novas evidências. Diamantina : X Seminário de economia mineira., 2002, p. 19
17
Douglas Cole Libby, assim como Martins, considera que é preciso rever a
historiografia mineira e as interpretações sobre o declínio da província: não resta
dúvida de que o grande sustentáculo da economia mineira do século XIX foi a
agricultura mercantil de subsistência, ou seja, a prodão de alimentos sicos
destinados, ora ao alto consumo ora ao mercado interno, dentro e fora da
proncia”.
10
Como Martins, acreditamos também que a província mineira não ficou
estagnada; uma produção agrícola diversificada ocorreu. A Zona da Mata Mineira foi
uma das áreas da província onde o crescimento econômico e demográfico expandira
a partir da segunda metade do século XIX. Não concordamos com Slenes no que se
refere à produção para a exportação. Para nós, a economia de abastecimento
desenvolveu-se paralela à economia principal.
Maria Yedda L. Linhares confirma a importância do século XIX para o
desenvolvimento econômico da província – o fim do Ciclo do Ouro” não representou
uma involução para os mineiros. “O século XIX não foi, pois, o da decadência, e sim
o da gestação de uma nação”. Em Minas Gerais, uma economia singular se
desenvolveu paralela à economia mineradora, e, como conseqüência, outras
fronteiras foram abertas e conquistadas. A Zona da Mata Mineira foi uma das
regiões da província que, notavelmente, se expandiu a partir do século XIX. A
disponibilidade de terras devolutas e a facilidade de cultivo de alimentos
transformaram essa região em uma área de atração populacional.
11
Para a caracterização da Zona da Mata Mineira, utilizaremos o critério de
regionalização da província utilizado por Martins. O historiador utiliza da leitura de
10
LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais
no século XIX. São Paulo : Brasiliense, 1998, p. 14.
11
LINHARES, Maria Yedda Leite. Metodologia da história quantitativa e perspectivas. Ouro Preto
: ANPUH, Minas Gerais, 2001, p. 21
18
documentos oficiais da época, de escritos de viajantes estrangeiros que passaram
pela província para elaborar um conceito geral do espaço que correspondia à Zona
da Mata Mineira. A Zona da Mata foi uma região onde a ocupação demográfica e
econômica ocorreu de forma lenta e constante, demonstrando esses sinais desde
o final do século XVIII.
A Zona da Mata ganhou esse nome em função da densa
floresta da mata Atlântica que ainda cobria seu território na virada do
século XVIII. Ao longo dos oitocentos, porém, essa vegetação será
derrubada para dar lugar a cafeicultura que atravessará a divisa com a
província do Rio de Janeiro. É a produção do café que faz a Zona da
Mata a região economicamente mais dinâmica da província.”
12
Segundo Carrara, antes mesmo da expansão cafeeira, a rego cultivava
produtos de abastecimento destinados aos viajantes que utilizavam o caminho novo: a
paisagem da região foi dominada até a década de 1840, pelas lavouras de milho,
feijão e cana e alguns poucos arrozais
13
.
Vasconcelos salienta que, mesmo antes do loteamento das terras, vários colonos
fixaram-se à beira deste caminho, oferecendo pousada aos viajantes neste trajeto
14
.
“A Zona da Mata situada no sudeste mineiro, a partir de 1830/40,
assistiu a um incremento da derrubada da mata Atlântica, com a prodão
de alimentos dando lugar à formão das primeiras fazendas de ca. Note-
se, contudo, que ao longo do caminho novo já existia uma rie de
propriedades com a produção de alimentos que haviam sido parcialmente
desmatadas e preparadas para a agricultura estando prontas para receber a
nova cultura que expandia pelo sudeste: o ca.
15
A Zona da Mata Mineira integrou-se às unidades produtivas agroexportadoras do
Vale do Parba através do caminho novo
16
. O mesmo abriu as possibilidades para a
colonização da rego: os viajantes e os negociantes dividiam o percurso em etapas e, ao
12
MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista de Minas Gerais no séc. XIX. Belo Horizonte
: CEDEPLAR. Texto para discussão n. 10. ago/1982.
13
CARRARA, Angelo Alves. Estrutura agrária e Capitalismo: contribuição para o estudo da
ocupação do solo e da transformação do trabalho na zona da mata mineira, século XVII e XIX. Série
Estudos, n.2, Mariana : MHED-UFOP, 1999. p. 16.
14
VASCONCELOS, Diogo de. História Média de Minas Gerais. Imprensa Oficial, Belo Horizonte,
1918. p. 39.
15
LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Expansão cafeeira, demografia e os caminhos da
liberdade em Juiz de Fora. In. 1.º Seminário de História econômica e social da Zona da Mata
Mineira. I : 2005, Juiz de Fora (MG). Anais... CES, 2005.
16
Caminho novo: trajeto construído entre a província do Rio de Janeiro e a província de Minas Gerais,
com o objetivo de escoar o ouro. Através do mesmo, o trajeto entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais
foi diminuindo em 25 dias, possibilitando maior integração entre o interior de Minas e o Rio de
Janeiro.
19
longo desse caminho, foram surgindo vilas
17
, que abasteceram os viajantes e
promoveram a ocupação demográfica.
Por volta de 1850, a economia cafeeira do Vale do Paraíba chegou ao auge. Na
Zona da Mata Mineira, rios municípios como Muriaé, Leopoldina, Juiz de Fora,
Cataguases, vincularam-se à produção cafeeira
18
como grandes produtores agrícolas.
A freguesia de São Paulo do Muriaé começou a ser desbravada no início
do século XIX com a organização de um aldeamento de índios. A região era
chamada de “áreas proibidas”, pois os índios Botocudos, Cropós, Coroados e os
temíveis Puris
19
dominavam-na tornando-a impenetrável.
São Paulo do Muriaé fica situada em um vale, cujo rio principal deu nome ao
município. O rio compreende uma bacia de 12.000 Km², abrangendo municípios mineiros
e do noroeste fluminense. Recebendo vários afluentes da área leste da Zona da Mata
mineira, o rio tem um grande percurso navegável a a foz junto ao rio Parba do Sul,
pximo ao município de Campos dos Goytacazes. A região montanhosa, juntamente
com pequenos cursos d’água, foram importantes marcos naturais de divisão de
propriedades, que, em termos de exteno, eram dias, com raras excões
20
.
A região isolada atraía aventureiros de todas as partes, até a publicão da lei de
18 de setembro de 1850, conhecida como Lei das Terras. Com a nova lei, alterou-se a
forma como as propriedades eram adquiridas. Pelo Decreto abaixo, a Coroa passou a ter
o controle das terras e essas foram transformadas em mercadorias, passando a
representar poder ecomico para aqueles que a possuíssem.
“O Decreto 1318, de 30 de janeiro de 1854, que instituiu os
Registros Paroquiais de Terras, veio regulamentar a Lei nº 601, enquanto a
lei estabelecia ser a compra a única forma de ocupão das terras
devolutas, preservando o direito dos aposseados e de detentores de títulos
17
Revista Brasileira de Geografia. Estudo regional da Zona da Mata de Minas Gerais. Ano XX, n. 1,
jan - mar, 1958, p. 26.
18
BORIS, Fausto. História do Brasil. 11. ed. São Paulo : EDUSP, 2003, p. 199.
19
Revista historiográfica muriaeense. n.2, 1979, Muriaé – MG.
20
FARIA, Maria Auxiliadora. O que ficou dos 178 anos da história de Muriaé. 1995, p. 14.
20
de sesmarias com empreendimentos agcolas instalados até aquela data, o
decreto obrigava a mediação e a reavalião de sesmarias ou legitimão
de posses, como forma de garantir os benefícios da Lei. O resultado dessas
medidas para transacionar terras, daí em diante
21
As sesmarias, originalmente concedidas nesse período,o deixaram de existir,
nossa impressão é que, nos anos de 1855 a 1857, as sesmarias originais foram
desmembradas, em sua maioria, cedendo lugar a diversos conjuntos de propriedades
menores caracterizadas nas declarações como fazendas
22
, tios.
23
.
Em São Paulo do Muriaé, houve um intenso comércio de terras devido à
fertilidade do terreno e ao desenvolvimento econômico que iniciava, tendo como
base as lavouras de mantimentos e de cana-de-açúcar.
24
Essas atividades
lucrativas geraram a valorização das terras na freguesia de São Paulo do Muriaé,
antes mesmo da expansão da lavoura cafeeira. Em Juiz de Fora, município também
localizado na Zona da Mata Mineira, a valorização das terras ocorreu a partir da
expansão da economia cafeeira
25
, levando-nos a confirmar que o café foi a
atividade principal, mas não a única outros cultivos, a exemplo da cana, foram
importantes para a valorização das terras e o enriquecimento dos proprietários.
Também, ao norte da Freguesia de São Paulo do Muriaé, na província do
Espírito Santo, a região é semelhante a São Paulo do Muriaé. Em Cachoeiro
do Itapemirim, as terras valorizaram-se independente da produção cafeeira, pois,
antes do café, o cultivo da cana de açúcar era intensivo. Para ela, a Lei das
Terras não visava destituir os latifundiários, mas regulamentar a propriedade
21
ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão à comunidade escrava, Zona da
Mata de MG, século XIX. Tese de Doutorado. USP, 1995, p. 24.
22
Fazendas: unidades produtivas situadas em terras próprias.Em Muriaé o conceito empregava-se a
propriedades com extensão superior a 300 alqueires. tios: unidades produtivas com tamanho
inferior a 100 alqueires.
23
ANDRADE, 1995, p. 36.
24
ANDRADE, 1995, p. 24.
25
CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Ao sul da História: lavradores pobres na crise do trabalho
escravo. São Paulo : Brasiliense, 1987, p. 125.
21
privada dos mesmos, pois a terra se valorizava e a mão-de-obra e a colheita
deixavam de ser garantias satisfatórias para o financiamento da produção
26
.
Em São Paulo do Muriaé, é a partir da segunda metade do século XIX
que o café passará a constituir a principal atividade econômica do Município
27
.
O clima, com média anual de 23º e uma altitude média de 420 metros foram
positivos para a cultura do ca, promovendo melhores rendimentos e
produção. Na Freguesia de o Paulo do Muriaé, a organização ecomica
seguirá os passos da proncia. Paralela à atividade principal, uma agricultura
de abastecimento continuará sendo praticada, atendendo a um mercado interno
e externo da região. Schwartz refere-se à província mineira como uma
província diferente, com uma peculiaridade que tamm caracterizou o
município de o Paulo do Muriaé.
Minas Gerais apresenta o que alguns acadêmicos
consideram anomalia: uma área de ativo desenvolvimento
econômico... a economia mista de Minas e a auto-suficiência de
suas fazendas, salientadas por diversos viajantes, levou alguns
autores a afirmar que Minas era uma região praticamente
autárquica.
28
Além da prodão de milho, arroz, feijão, os fazendeiros da região
criavam gado, animais de tração como mulas e outros animais domésticos.
Muriaé rapidamente se transformou em grande produtor de ca, ocupando o
segundo lugar na província de Minas Gerais.
29
A lavoura cafeeira espalhava-se por toda a rego, demonstrando a
importância da mesma para o crescimento e desenvolvimento do município.
Famílias das antigas regiões mineradoras deslocavam-se para as novas
regiões cafeeiras. Caratinga, Teófilo Otoni, Carangola, Muriaé, Ponte Nova,
26
ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição: O Espírito Santo (1850/1888). Rio
de Janeiro: Graal, 1984, p. 78.
27
Revista historiográfica muriaeense. n.2, 1979, Muriaé – MG, p. 3
28
SCHWARTZ, Stuart . Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo : Edusc, 2001., p. 150
29
FARIA, Maria Auxiliadora. O que ficou dos 178 anos da história de Muriaé. 1995, p. 4.
22
Conceição, Monte Santo, Viçosa, Ouro fino cobriam-se de cafezais e estradas
novas
30
.
O café transformava a paisagem da região. O que no final do século XVIII e
início do XIX foi encontrado pelos aventureiros e primeiros colonizadores
começava a ser devastado. A mata atlântica é derrubada e o caocupa o principal
espaço no cenário rural.
Segundo Souza, o incremento do mercado interno de Minas Gerais voltado
para essa economia de mantimentos e abastecimentos deve-se a dois fatores:
primeiro, à proibição de atividades agrícolas nas regiões das minas pela coroa
portuguesa e, segundo, à concentração demográfica no interior, que favoreceu o
comércio interno de mantimentos
31
. Apesar de respeitarmos a opinião de Souza, a
mesma o pode ser utilizada para toda a província. Acreditamos que a lavoura de
abastecimento e o comércio interno em São Paulo do Muri se expandiram
devido a dificuldades de acesso a outras reges produtoras e ao relevo
montanhoso da região, que a manteve isolada até a construção do caminho novo.
Martins demonstra que, enquanto a produção cafeeira declinava na
subregião sul e em antigas regiões produtoras do Vale do Paraíba, os pés de café
eram substituídos por pastagens
32
. Ubá, Muriaé, Ponte Nova, Rio Novo e
Eugenópolis surgiam como os mais importantes municípios produtores da
rubiácea.
33
Os cafezais, cujos arbustos se alinhavam em fileiras paralelas, ganhavam
espaço. Pelas áreas vizinhas, expandiam-se de forma quadrangular, seguindo as
30
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo : Editora UNESP, 1998. p. 68.
31
SOUZA, Sonia Maria de. Uma Incursão na Zona Proibida: origens da economia cafeeira na Zona
da Mata Mineira - o caso de Juiz de Fora. Juiz de Fora: Departamento de História/ICHL/UFJF. 1995,
p. 67.
32
MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Belo
Horizonte : CEDEPLAR. Texto para discussão n. 10. ago/1982.
33
COSTA, 1998, p 68 – 69.
23
linhas de maior declive. A Zona da Mata jamais conheceu cafezais muito extensos,
nada que se assemelhasse à paisagem de mar de café
34
das grandes produções
do Vale do Paraíba e do Planalto Paulista, mas aos poucos a produção se
estabeleceu. Juntamente à expansão do café, a economia de abastecimento
permanece em pleno desenvolvimento. Era uma paisagem diferente.
Linhares confirma o peso dessa agricultura de abastecimento no interior da
província. A produção agrícola era diversificada, o que promovia um crescente
comércio interno. Paralelo à produção de café, os produtos típicos da região
atendiam ao mercado externo. O modelo descrito por Linhares corresponde ao perfil
econômico da Freguesia de São Paulo do Muriaé, que sistematicamente cultivava o
café em larga escala e, ao mesmo tempo, mantinha as lavouras de abastecimento.
35
A partir de 1850, a produção do café se intensifica. Levando em
consideração que um de café demora de 3 a 4 anos para chegar ao auge de
sua produção, e que não havia, no munipio de o Paulo do Muri, nenhum
produto ou tecnologia que aumentasse a produtividade, toda a prodão
dependeria do número de pés, das condições de relevo, do clima, da terra e
principalmente da mão-de-obra empregada.
36
Em São Paulo do Muriaé, a mão-de-obra escrava era predominante. Em toda a
produção o escravo estava presente: nas lavouras de café, nas lavouras de
abastecimento, na criação de animais para o corte e transporte. O escravo era
imprescindível para a organização deste espaço agrícola que se expandia. A
influência do município de São Paulo do Muriaé intensificou-se a partir de 1855. A
34
REVISTA Brasileira de Geografia. Estudo regional da Zona da Mata de Minas Gerais. Ano XX n. 1,
jan – mar, 1958, p. 30.
35
LINHARES, Maria Yedda Leite. História do abastecimento, uma problemática em questão
(1530-1918). Brasília: Binagri, 1979, p. 27 – 29.
36
MARTINS, Ana Luiza. A grande lavoura do café: 1850 – 1890. 7. ed. São Paulo : Atual, 1990. p.9.
24
região, que até então era quase deserta, aumentava rapidamente sua população. A
necessidade de escravos era constante, seguindo o ritmo da economia cafeeira.
37
Segundo Schwartz, a produção agrícola proporcionou vantagens tanto para
os escravos quanto para os fazendeiros. Próximo às ruas do café”, eram também
cultivados produtos agrícolas de subsistência como o milho e o feijão. Os escravos
eram os elementos responsáveis por essa produção. Os fazendeiros utilizavam
desse artifício para evitar desordem entre os escravos e também para reduzir os
gastos com a manutenção dos mesmos.
Manuais de agricultores deixavam claro que o controle social também entrava
nessa equação. Conforme disseram alguns agricultores o escravo que é
proprietário não foge e nem provoca desordem”.
38
A abundância de terras cultiváveis promove um pido crescimento
econômico da região, exigindo aumento na mão-de-obra e um rápido escoamento
do produto.
De 1870 em diante, marcadamente na primeira metade dos anos de 1880, o
café assumiu importância decisiva na vida dos muriaeenses, atuando como um
grande fator mercantil
39
.
O ciclo cafeeiro provocou transformações em toda a cidade. Novos aspectos
ficam evidenciados do ponto de vista urbano, da arquitetura e da própria sociedade
em suas manifestações e costumes
40
. Organiza-se o poder administrativo e a cidade
se transforma em função de um grande desenvolvimento econômico.
O povoamento da cidade expandiu com a chegada de vários migrantes de
outras freguesias, atraídos pelo desenvolvimento econômico e, pela possibilidade de
37
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo : Editora UNESP, 1998. p. 107.
38
SCHWARTZ, Stuart . Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo : Edusc, 2001., p. 155
39
LANNA, Ana. A organização do trabalho livre na Zona da Mata Mineira, 1870 – 1920. V Anais
da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 1986, p. 95.
40
MERCADANTE, PAULO. Crônica de uma comunidade cafeeira. Carangola : o vale e o rio. Belo
Horizonte : Itatiaia, 1990, p. 17.
25
enriquecimento com as atividades comerciais, advindas do crescimento da lavoura
cafeeira.
Com uma grande produção agrícola, a Freguesia de São Paulo do Muriaé
precisava solucionar dois problemas, para que a sua economia continuasse a
expandir: o escoamento do produto e a escassez da mão-de-obra.
Figura 1 – Fonte: Acervo da Biblioteca Publica Municipal de Muriaé
41
.
Pela movimentação de pessoas, pelo número de cavalos e as escavações da rua,
percebemos que o município encontrava-se em ampla evolução econômica e
demográfica.
O transporte e o escoamento do café
41
Rua Dr. Afonso Canêdo, Muriaé, na segunda metade do século XIX.
26
A população muriaeense, que até hoje guarda tradições e costumes dos
fundadores, buscou alternativas para solucionar o problema do escoamento do café,
mas esse não foi problema exclusivo de Muriaé. Todas as áreas cafeeiras
reclamavam da deficiência das estradas e dos meios de comunicação
42
, pois, além
do produto ser transportado por terra em estradas precárias, essas atendiam em
grande parte os interesses particulares de alguns produtores. Com tais condições de
transportes, perdiam-se cargas, animais, uma vez que, apesar das precauções
tomadas pelos tropeiros, esses nem sempre conseguiam proteger toda a carga
43
. Os
tropeiros, durante vários anos, inclusive mesmo após a construção das ferrovias,
foram a única opção de transportes que ligava as cidades interioranas da Zona da
Mata Mineira ao Rio de Janeiro.
No lombo das tropas, a Mata encaminhava o açúcar, o fumo, o
toucinho e o milho. Recebe de volta o sal de Magé. Em regresso, no
arsenal havia também armas e munições, botas e ferramentas para os
homens. As sinhás encontravam veludo e seda, botinas de duraque e
artigos de luxo. Ademais, havia algodão em tecido, o chá, bugigangas
e mercadorias do Rio de Campos
44
.”
O uso de tropas foi o principal meio de transporte para todos os produtos
comercializados em São Paulo do Muriaé até o final do século XIX, quando foi
substituído pelo desenvolvimento das ferrovias. Mesmo com a chegada dessa, ele
ainda continuou a existir por longo período.
Na freguesia de São Paulo do Muriaé, o café, para atingir o Rio de Janeiro,
dependia do rio Muriaé e de tropas que percorriam uma estrada em péssimas
condições até Campos. De Campos ao Rio de Janeiro, a mercadoria seguia de
navios.
45
O trajeto era longo e boa parte da carga se perdia devido a chuvas, aos
42
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo : Editora UNESP, 1998. p. 201.
43
COSTA, 1998. p. 202.
44
MERCADANTE, Paulo. Os sertões do Leste. Estudo de uma região: Mata Mineira. Rio de
Janeiro : Zahar, 1973. p. 62
45
ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão a comunidade escrava, Zona da
Mata de MG, século XIX. Tese de Doutorado. USP, 1995, p. 86.
27
acidentes e às condições da viagem. A produção cafeeira estava aqui, como em
toda parte da província, condicionada ao frete.
A situação dos municípios do interior era grave, o que levou muitos
representantes políticos dessa região a queixar-se ao presidente da província,
mencionando que o desenvolvimento do café seria ainda mais lucrativo e maior se
fossem construídas novas estradas e se fizessem melhorias nas existentes.
Em resposta a uma circular enviada em 1853 às Câmaras
municipais e que pedia informações sobre o gênero de indústria mais
importante, a população, número de fazendas de criação, cultura,
engenhos de mineração ou de outra espécie, estado da indústria e de
seu desenvolvimento nos últimos tempos, o município de Mar de
Espanha, um dos grandes produtores de café, informava que essa
cultura se achava bastante aumentada e mais seria, não fossem as
dificuldades de transporte pela falta de boas estradas.”
46
Fonte: Acervo da Biblioteca Publica Municipal de Muriaé
47
.
São Paulo do Muriahé foi beneficiado com a chegada da Ferrovia. Esta
incrementou os negócios ampliando o comércio do café e outros produtos agrícolas.
46
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo : Editora UNESP, 1998, p. 206
47
Estação Ferroviária da Freguesia de São Paulo do Muriaé, na segunda metade do século XIX.
28
Entretanto, a solução para o problema do escoamento do café ocorreu a
partir de 1886, quando foi inaugurada a Estação Ferroviária de Leopoldina, abrindo
possibilidades para a comercialização mais rápida do produto.
Esse fato promoveu um crescimento demográfico do município e facilitou a
comunicação diária com a capital do Rio de Janeiro.
Segundo Andrade, a ferrovia mudou a paisagem de toda a região. Talvez
o fato mais importante no plano econômico tenha sido a instalação posterior da
via rrea... Os vagões substitram as antigas tropas de muares e a comunidade
passou a sofrer influência direta da cultura litorânea
48
.
Porém, os avaos tecnológicos advindos com as ferrovias não atingiram a
todas as freguesias da Zona da Mata Mineira. A malha ferroviária cresceu de
forma desordenada, por falta de um plano diretor único, seguido por diversos
governos do estado, constituição de várias pequenas empresas privadas
independentes, e por fim, o relevo, em geral, fortemente ondulado
49
.
As ferrovias não tinham capacidade de gestar um processo
de produção nova(...)” “(...) Elas consistiram antes de tudo num
aperfeiçoamento tecnogico exigido pela própria natureza de um
processo de prodão determinado e a elas pré-existentes. Mas por
um peodo inicial possibilitou que alguns lavradores em condições
melhores pudessem contar com uma facilidade que assegurava o
escoamento da produção agrícola e mercantil.
50
As novas tecnologias no plantio do café exigiam um investimento
relativamente alto, investimento que o ocorreu em o Paulo do Muriaé, pois a
capacidade de acumulação ficou reduzida devido a fatores como a expansão da
lavoura e o alto preço do escravo gerado pelo fim do tfico. Na Freguesia de São
Paulo do Muriaé, as técnicas agrícolas permaneceram bem simples e todo
48
ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão a comunidade escrava, Zona da
Mata de MG, século XIX. Tese de Doutorado. USP, 1995, p.56
49
Revista Brasileira de Geografia. Estudo regional da Zona da Mata de Minas Gerais. Ano XX, n. 1,
jan-mar, 1958, p. 31.
50
CARRARA, Angelo Alves. Estrutura e Capitalismo: contribuição para o estudo da ocupação do
solo e da transformação do trabalho na zona da mata mineira, século XVII e XIX. Série estudos, n.2,
Mariana : MHED-UFOP, 1999. p. 21.
29
aumento da produção dependia do aumento do número de escravos. Segundo
mulo Andrade,
A acumulação escravista se manifestava antes de tudo na
acumulação de escravos, expandir a produção implicava aqui na
Freguesia de São Paulo do Muriaé, em primeiro lugar, no aumento
do plantel de escravos.
51
Nas fazendas, uma parte dos escravos era destinada para a criação das
mulas, que era necessário manter um número razoável de animais de carga para
o transporte. Com as ferrovias, parte da mão-de-obra responsável pelo transporte foi
liberada para a lavoura cafeeira. O uso das ferrovias, além de reduzir o uso de
animais de carga, reduziu a perda do produto em trânsito causado por chuvas ou
outros acidentes.
52
A produção poderia ser escoada com maior segurança e rapidez. No entanto,
apesar da mão-de-obra liberada, essa não foi suficiente para atender a necessidade
dos fazendeiros. Era necessário aumentar os plantéis de escravos, buscar
alternativas para aumentar a o-de-obra, o que não era exclusivamente um
problema de São Paulo do Muriaé, mas das regiões que expandiam as atividades
agrícolas.
O comércio de escravos em São Paulo do Muriaé
Apesar das dificuldades enfrentadas pelos fazendeiros de São Paulo do
Muriaé no escoamento do café, o grande problema dos mesmos, a partir de 1850,
foi a escassez da mão-de-obra.
51
ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão a comunidade escrava, Zona da
Mata de MG, século XIX. Tese de Doutorado. USP, 1995, p. 55.
52
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo : Editora UNESP, 1998, p. 217.
30
Como explicamos anteriormente, foi a partir da segunda metade do século
XIX que ocorreu a expansão agrícola da região, período também em que ocorreu a
exaltação das idéias e ações abolicionistas.
A segunda metade do século XIX marca um período de grandes
transformações sociais, econômicas e políticas no Império Brasileiro. A pressão do
liberalismo europeu alcançou a América e juntamente com movimentos internos
criaram condições para alterar e mais tarde propiciar a decadência do regime
escravista. Segundo Conrad, essas transformações atingiram a elite urbana
brasileira do ponto de vista cultural, mas, com relação às mudanças econômicas e
sociais, a situação do país permanecia estável. No campo e nas cidades do interior,
apesar das inovações de equipamento, pouco se percebia de novo. O Brasil
continuava sendo um país essencialmente agrícola”, com os políticos e os
proprietários de terra justificando a escravatura.
53
As províncias de São Paulo, Minas e Rio de Janeiro, principalmente as duas
últimas, foram as que mais se apegaram ao sistema escravista. As camadas dos
fazendeiros mostravam-se resistentes às idéias abolicionistas no que se referiam ao
abandono da visão senhorial do mundo, como também à renúncia de valores com
elas relacionados
54
.
Em São Paulo do Muriaé, os fazendeiros resistentes ao fim do sistema
escravista buscaram alternativas para solucionar a escassez de braços na lavoura.
Este problema dos fazendeiros não era exclusivamente um problema da Freguesia
de São Paulo do Muriaé, mas das regiões onde as atividades agrícolas e cafeeira
expandiam e a mão-de-obra principal era a escrava.
53
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850 1888. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, p. 26.
54
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo : Editora UNESP, 1998, p. 442.
31
A lei de 1850 de Euzébio de Queiroz, proibindo o tráfico de escravos
africanos, gerou uma grande crise entre os fazendeiros. Interessante o que Emilia
Viotti afirma sobre a crise de abastecimento que não foi sentida em toda a província
mineira; em alguns municípios, a questão da mão-de-obra foi fundamental, e São
Paulo do Muriaé aparece em destaque.
raramente mencionava-se a necessidade de mão-de-obra
e, quando isso ocorre, é, em geral, nas áreas desfalcadas pelo êxodo
dos negros encaminhados para as zonas cafeeiras ou nas regiões em
que se vão estendendo os cafezais, como por exemplo, Muriaé, Mar de
Espanha e Rio Preto.”
55
Vilma Almada também confirma o problema da escassez da mão-de-obra na
produção cafeeira do Espírito Santo:
Apesar da expansão, a produção cafeeira do Espírito Santo,
vinculada ao mercado externo, não poderia deixar de sentir os efeitos
das crises capitalistas mundiais, agravadas no Brasil... devido ao valor
do braço escravo, crise do trabalho agrícola pela diminuição da mão-
de-obra.”
56
A ampliação dos cafezais aguçava o problema de braços para a lavoura, o
que determinou uma redistribuição demográfica na província. Nas áreas de
mineração ocorria o despovoamento e o inverso ocorria nas regiões cafeeiras.
57
O que gera uma incoerência é que a produção cafeeira alcançou maior
destaque no Leste da Zona da Mata Mineira, exatamente após o fim do tráfico. Em
São Paulo do Muriaé, uma primeira solução encontrada pelos fazendeiros para o
problema gerado com a Lei de 1850 foi o tráfico interprovincial. O tráfico interno foi
intenso na região visando atender a expansão da produção cafeeira.
A migração forçada dos escravos brasileiros, que se seguiu a
supressão do tráfico africano, começou nas plantações, fazendas e
cidades da região norte, do oeste e do extremo sul do país e terminou
com a chegada às plantações de café do Rio de Janeiro, Minas Gerais
e São Paulo. O movimento continuou em grande escala durante trinta
55
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo : Editora UNESP, 1998, p. 104.
56
ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição: O Espírito Santo (1850/1888). Rio
de Janeiro: Graal, 1984, p. 63.
57
COSTA, 1998, p. 104.
32
anos, desde 1851 até sua virtual abolição pelas legislaturas provinciais
das províncias importadoras em 1881
”58
Comercializar escravos entre as províncias tornou-se mais lucrativo do que o
antigo comércio de escravos com o continente africano. Com a proibição do tráfico
internacional, aumentou a demanda e como conseqüência o valor do cativo.
O tráfico intenso poderia ser realizado de duas ou mais formas: em uma
situação normal, o proprietário adquiria os escravos como uma compra de qualquer
outro bem, tratando diretamente com o vendedor, que poderia ser o comerciante de
escravo ou o próprio proprietário.
Uma outra forma de compra e venda era através de uma procuração. O
mercador, representando legalmente o comprador, adquiria o escravo.
59
Apesar de
arriscado, visto que sobre o comprador pesavam todos os encargos, doença, fuga,
alimentação, o mesmo se aventurava, pois o negócio continuava sendo lucrativo.
Uma rede de intermediários formou-se em substituição a antiga empresa negreira
para prover a demanda por cativos por procurações e subprocurações, burlando
impostos, o escravo era transferido para propriedades distantes, articulando o
mercado de dimensão nacional.
Martins afirma que a demanda de o-de-obra cativa ampliou o comércio de
escravos na província mineira durante o culo XIX, e que, mesmo antes do surto
cafeeiro, o corcio interprovincial já fazia parte da atividade mercantil em Minas Gerais.
Havia na Corte traficantes de porte especializados na
reexportação de africanos para Minas. Seus negócios eram valiosos,
altamente lucrativos e mais seguros que os dos negreiros oceânicos,
porque em terra não se naufraga e não há quem prenda, ou queira mal
àquele que nos faz bem.”
60
58
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850 1888. 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira , 1975., p. 64.
59
ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão a comunidade escrava, Zona da
Mata de MG, século XIX. Tese de Doutorado. USP, 1995, p. 62.
60
MARTINS, Roberto Borges. Minas e o tráfico de escravo no século XIX, outra vez. In: História e
perspectivas, Uberlândia, Minas Gerais, jul a dez/1994.
33
As escrituras de compra e venda de escravos, encontradas em Muriaé,
confirmam que o comércio de escravos era intenso. O tráfico interprovincial
sustentou, por um bom tempo, a mão-de-obra necessária à expansão agrícola.
Os escravos que aqui chegavam tinham como área de origem o noroeste da
província do Rio de Janeiro, especificamente o município de Campos, a província da
Bahia, as áreas do Jequitinhonha, Mucuri, Doce e oeste de Minas Gerais.
O tráfico interno era tão cruel quanto o antigo tráfico africano. Havia uma
procura maior por jovens e pelos mais fortes. Os homens eram numerosos nos
carregamentos, mas mulheres jovens também eram procuradas.
61
Alguns aspectos
da vida cotidiana dos escravos eram atingidos violentamente por esta nova
conjuntura. A separação dos parentes escravos, no ato da venda, compunha um dos
quadros mais dolorosos na relação senhor–escravo. Segundo Challoub, os
arquivos estão repletos de histórias de escravos, que separados de parentes e
amigos, por transações de compra e venda, varrem o mapa de alto a baixo em
busca de pessoas queridas e de um caminho de volta à sua comunidade de
origem”
62
. O respeito aos grupos familiares nas partilhas de compra e venda dos
cativos ocorrerá com a imposição legal em 1869. Os fazendeiros cientes dos
problemas que poderiam surgir com a aquisição de cativos insubmissos ou
imprestáveis, recorriam sempre a um período de experiência antes da concretização
definitiva do negócio, quando finalmente o cativo trocava de senhor
63
.
Com o fim do tráfico internacional, os escravos que chegaram a São Paulo
do Muriaé em sua maioria eram de outras províncias ou freguesias. Esses
escravos eram chamados de ladinos”, sabiam o português e estavam
61
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil, 1850 – 1888. 2. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira , 1975. p. 67.
62
CHALLOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. São Paulo : Cia das Letras, 2003, p. 48-49.
63
CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste
escravista Brasil século XIX. 3. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1998, p. 116
34
acostumados ao trabalho. Muitos possuíam informações e conhecimento das
idéias abolicionistas
64
.
Quando chegavam às fazendas, procuravam transmitir ao plantel essas
idéias, buscando encontrar estragias, mesmo no cativeiro, que facilitassem a
conquista da liberdade.
O escravo se estabelecia nas fazendas desapropriado de sua identidade
espacial. Ele era transportado e comercializado como mercadoria, apropriado
juridicamente como um bem móvel, perdendo qualquer direito sobre o seu corpo e
até mesmo sobre suas iias. Em São Paulo do Muriaé, encontramos um mero
significativo de escrituras de compra e venda de escravos a partir de 1861.
Observe a tabela abaixo:
Tabela 1
Escravos comercializados na Freguesia de São Paulo do Muriaé no período de 1861 – 1864.
Nome do escravo Sexo Cor Idade Matricula de ORIGEM Valor da compra
Maria F Parda 49anos Piranga 400$000
André M Pardo 14 anos Piranga 700$000
Margarida F Parda 16 anos Tamanduá 800$000
Francisco M Pardo 14 anos Piranga 100$000
Horácio M Pardo 15 anos Piranga 100$000
Sofia F Parda 16 anos São Sebastião 400$000
Martins M Preto 20 anos São Sebastião 1:800$000
Felícia F Parda 26 anos Tamanduá 1:300$000
Mariana F Parda 26 anos São Sebastião 900$000
Pedro M Preto 46 anos Piranga 700$000
Ambrósio M Preto 53 anos Jequitinhonha 500$000
Antônia F Preto 30 anos Jequitinhonha 450$000
Laurinda F Parda 5 anos São Sebastião 200$000
Sebastião M Pardo 20 anos Bahia 1:700$000
Francisco M Pardo 20 anos Santana 1:800$000
64
FARIA, Maria Auxiliadora. O que ficou dos 178 anos da história de Muriaé. 1995, p. 26.
35
Pedro M Preto 64 anos Santana 400$000
Sebastião M Preto 26 anos Mucuri 700$000
Antônia F Pardo 19 anos Mucuri 500$000
Conceição F Preto 29 anos São Sebastião 700$000
Madalena F Pardo 19 anos Campos dos Goytacazes 1:600$000
Sebastião M Preto 18 anos Campos dos Goytacazes 2:000$000
Sabina F Parda 24 anos São Sebastião 100$000
Domingos M Pardo 19 anos São Sebastião 1:300$000
José M Preto 40 anos Santa Rita 600$000
Balbino M Pardo 16 anos Santa Rita 1:200$000
Manoel M Pardo 15 anos Santa Rita 1:600$000
Francisco M Preto 22 anos Bahia 2:100$000
Benvindo M Pardo 16 anos Santa Rita 1:200$000
Francisco M Preto 30 anos Rio Preto 1 :200$000
Feliciana F Pardo 30 anos Rio Preto 900$000
Maria F Parda 17 anos Campos dos Goytacazes 900$000
Alzira F Parda 4 anos Rio Preto 200$000
Antônia F Parda 12 anos Campos dos Goytacazes 400$000
Fonte: Escritura de compra e venda de escravos.
65
Pela tabela, podemos observar que, no referido período, 67% dos escravos
comercializados eram crioulos e 33% eram negros. Em todas as escrituras
encontramos a matrícula de origem do escravo e o valor da compra.
As fazendas ricas em lavoura de café foram pouco a pouco povoadas por
homens e mulheres, brancos e negros que estabelecem relações antagônicas, mas
que, ao mesmo tempo, se mesclam, caracterizando toda uma sociedade. É uma
relação estabelecida a partir de sentimentos múltiplos como fidelidade, ódio,
rebeldia, solidariedade, medo.
Kátia Mattoso
66
acredita que é um jogo dialético entre adaptação,
inadaptação, ressocialização ou resistência”. Esse jogo, em um período de escassez
65
Período de 1861 a 1864. Livro de nota número dois, encontrado no Cartório de 1.º Ofício.
66
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p. 104
36
de mão-de-obra, pode promover e facilitar as ações dos escravos em busca da
liberdade, como também a dos fazendeiros em usarem a concessão de privilégios
para manterem a escravidão.
A área média das propriedades em São Paulo do Muriaé, eram de 316
alqueires; no entanto, apesar do expressivo destaque da cidade na produção
cafeeira, o número de pés de café em dia, por propriedades, era pequeno
21.300 a 50.000 pés.
67
Nos registros de 49 propriedades, encontramos um número de 588 cativos,
sendo localizado apenas um plantel com 59 cativos. A dia dos demais estava
entre 7 a 12 cativos, caracterizando uma área de pequenos plantéis
68
. Percebemos
que o tamanho das propriedades, a produção e o número de escravos por plantéis
não eram semelhantes nas regiões vizinhas.
Com relação ao número de pés cultivados, as propriedades em Juiz de Fora e
em Cachoeiro do Itapemirim superavam a produção de Muriaé, pois ambas
produziam somente o café”, enquanto Muriaé, além do café produzia outros
produtos agrícolas. Quanto ao número de escravos, os dois primeiros municípios
apresentavam número de plantéis maiores do que o de São Paulo do Muriaé.
Vilma Almada, ao catalogar o volume de escravos e pés de cafés na região
vizinha de Cachoeiro do Itapemirim, observou uma plantação superior, de 30.000 a
200.000 pés de café e uma média de escravo por plantéis de 50 indivíduos
69
.
Rômulo Andrade, em Juiz de Fora, verificou uma realidade de grandes
plantéis: temos em média, portanto, 100 escravos por unidade de produção com
67
ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão a comunidade escrava, Zona da
Mata de MG, século XIX. Tese de Doutorado. USP, 1995, p. 40-42.
68
ANDRADE, 1995, p. 48.
69
ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição: O Espírito Santo (1850/1888). Rio
de Janeiro: Graal, 1984, p. 63.
37
2.377.714 pés de café”. Ou seja, a produção em Juiz de Fora superava os dois
vizinhos citados e se assemelhava às áreas de produção tradicional
70
.
O mesmo autor relaciona ainda o tamanho da propriedade ao número de
escravos, o plantel. Eram pequenos proprietários os fazendeiros que possuíam até 9
escravos. dios, os que possuiam de 10 a 49 e grandes os com mais de 50 escravos
71
.
No entanto, o fazendeiro estava à frente de um grande empreendimento,
organizado com objetivo de obter lucros. À medida que o mercado consumidor
ampliava, abria as possibilidades para o seu enriquecimento contínuo
72
e ampliava a
necessidade de aumentar a mão-de-obra.
O trabalho escravo tinha o papel primordial na economia do período”
73
. A
posição econômica dos moradores de Muriaé estava condicionada ao número de
escravos, independente do lucro obtido com as terras
74
, o que tornava os escravos
uma mercadoria cobiçada e lucrativa.
Segundo Carlos de Almeida Bacellar
75
, entre os grandes plantéis e pequenos
existiam diferenças marcantes no que se refere à produção econômica e às relações
sociais entre escravos e senhores. Esse discurso também é confirmado por Tarcisio
Botelho
76
que, ao analisar as escravarias do norte de Minas Gerais no século XIX,
percebe que os senhores escravistas, para aumentar o número de escravos,
adotavam estratégias que incentivavam a reprodução natural entre os cativos. Em
São Paulo do Muriaé, não podemos afirmar que houve uma reprodução natural, pois
70
ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão a comunidade escrava, Zona da
Mata de MG, século XIX. Tese de Doutorado. USP, 1995, p. 152-154.
71
ANDRADE, 1995, p. 176.
72
FRANCO CARVALHO, Maria Sylvia. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed., São Paulo
: Editora UNESP, 1997.p. 202 – 203.
73
LIBBY, Douglas Cole. Trabalho escravo e capital estrangeiro no Brasil: o caso de Morro Velho.
Belo Horizonte : Itatiaia, 1984, p. 15.
74
ANDRADE, 1995, p. 61.
75
BACELLAR, Carlos de Almeida. Sobreviver na senzala: estudo da composição e continuidade
das grandes escravarias paulistas 1798 - 1818. in: História e População: estudos da América Latina.
São Paulo : USP – CEDHAL, 1990, p. 214
76
BOTELHO, Tarcísio. Famílias e escravarias: demografia e família escrava no norte de Minas
Gerais no século XIX. In: População e família. São Paulo, v. 1, n. 1, jan/jun. 1998, p. 212.
38
não temos fontes que nos comprovem essa hipótese, podendo ser motivo de uma
futura pesquisa. o comércio de escravos em Muriaé foi intenso, podendo ser
confirmado este fato no cartório de 1º ofício.
Observe a tabela abaixo:
Tabela 2
Escravos comercializados no período de 1868-1871
Nome do
escravo
Sexo Idade Matrícula de Origem Valor da compra
Sebastião M 19 Piranga 1.800$000
Antonio M 22 Piranga 1.900$000
Pedro M 21 Pomba 1.900$000
Custódio M 18 Ponte Nova 1.700$000
Ana F 24 Campos 2.000$000
Tadeu M 29 Rio Preto 1.600$000
Francisco M 31 Pomba 1.500$000
Rosa F 21 Rio Preto 2.000$000
Timóteo M 27 o Sebastião 2.000$000
Julia F 24 Campos 1.900$000
Manoel M 36 Pomba 1.600$000
Sebastião M 32 Ponte Nova 5.000$000
Maria F 17 Piranga 1.700$000
João M 19 Campos 2.000$000
Balbina F 21 (ilegível) 1.900$000
Santa F 26 Piranga 1.900$000
Livro de notas n.º 4 encontrado no Cartório de 1.º Ofício.
Quando comparamos a Tabela 1 com a tabela 2, percebemos que o valor
dos escravos aumentou significativamente, pois encontramos apenas um escravo
com valor inferior a um conto de reis; os demais m o pro elevado.
A maioria dos escravos comercializados continuava sendo homens,
confirmando a prefencia por eles para o trabalho na lavoura. 18% dos escravos
39
comerciados nesse período eram pretos e 82% eram pardos. 31% dos escravos
comercializados eram mulheres, 69% eram homens.
mulo Andrade, em sua tese de doutorado, fez um levantamento do
comércio de escravos em São Paulo do Muriaé no período de 1860 a 1887. Pelas
escrituras de compra e venda, ele confirma que 63% dos escravos da localidade
haviam sido comercializados por vias intra e interdistritais, 19% interprovinciais,
13% de negocião intermunicipais (de outras regiões de Minas), e 5% de
regiões intermunicipais da Zona da Mata Mineira
77
.
Este fato constata a importância do tráfico para o munipio, demonstrando
o comércio intenso de cativos durante o período da expansão agrícola. Nós
também concordamos com essa afirmação, pois o desenvolvimento econômico
do município provocou um aumento populacional, que refletiu no crescimento do
munipio com a construção de casa e a elevação da Vila em Munipio.
Provavelmente no período estudado, que corresponde à fase de expansão
agrícola do município, o intenso tráfico de escravos promoveu um rápido
crescimento econômico da rego, favorecendo o apenas os fazendeiros, mas
também aos comerciantes.
Localizando o censo de 1872, observamos que
Havia na Zona da Mata a maior população escrava
provincial, com 95.099 cativos, distribuídos por setenta paróquias
que compunham os onze munipios da rego, representando 26%
dos escravos da província de Minas Gerais. A população livre
correspondia a 17% do total provincial
78
.”
Tabela 3
População dos municípios da Zona da Mata de Minas Gerais em 1872.
Municípios
Número de
freguesias
População
Livre Escrava TOTAL
77
ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão a comunidade escrava, Zona da
Mata de MG, século XIX. Tese de Doutorado. USP, 1995, p. 146.
78
ANDRADE, 1995, p. 73.
40
Ponte Nova 09 49.627 7.604 57.231
Leopoldina 08 26.633 15.253 41.886
Juiz de Fora 05 23.968 14.368 38.336
Viçosa 06 30.460 6.636 37.096
Muriaé 11 27.682 6.938 34.620
Pomba 06 25.528 7.028 32.556
Ubá 06 25.311 7.149 32.460
Mar de Espanha 05 19.632 12.658 32.290
Rio Novo 03 15.838 6.957 22.795
Piranga 06 18.241 4.195 22.436
Rio Preto 05 15.746 6.313 22.059
TOTAL 70 278.666 94.097 372.763
Fonte – Rômulo Andrade
79
São Paulo do Muriaé, como observamos na tabela, destaca-se como primeiro
município em número de freguesias da Zona da Mata, sendo o quarto município em
número geral de população. Com um total de 34.620 habitantes, 27.682 (79,95%)
eram livres e 6.938 eram escravos, correspondendo a 20,04%.
Nas fazendas em São Paulo do Muriaé, o escravo fez parte de um plantel que
poderia variar de 08 até 15 indivíduos. Se fosse considerado jeitoso, passaria a
trabalhar com um escravo mais antigo. As crianças também iam para a lavoura;
eram feitas aprendizes de adultos desde a idade de oito anos, sob a vigilância do
feitor ou do próprio senhor
80
. A grande maioria dos cativos era utilizada nos serviços
agrícolas, apenas pequena parte era destinada ao trabalho doméstico. Com a
agricultura expandindo, 75% dos cativos concentravam-se nas lavouras.
81
Não encontramos registros de escravos ocupados em outras atividades além das
agrícolas e das domésticas. Havia exceções como escravos que tinham como ocio a
costura”, mas não em uma porcentagem que nos permitisse concluir a existência de um
artesanato ou mesmo de uma pequena manufatura.
79
ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão a comunidade escrava, Zona da
Mata de MG, século XIX. Tese de Doutorado. USP, 1995, p. 154.
80
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p. 117.
81
ANDRADE, 1995, p. 75.
41
Com relão à distinção entre os sexos, não havia grande diferença entre a
população escrava masculina e feminina.
A presença feminina também era marcante, com pequena predominância do
sexo masculino.
Tabela 4
Distinção da população escrava por sexo
Raças
Escravos
Homens Mulheres Total
Crioulos
3.298 3.050 6.348
Africanos
362 228 590
Total
3.660 3.278 6.938
Fonte: Recenseamento Gerais do império, 1872. Freguesia São Paulo do Muriaé.
Pela tabela acima, percebemos o predomínio da população cativa crioula,
fato que demonstra que o fim do tráfico internacional provocou o incremento do
comércio interno de escravos na Freguesia de o Paulo do Muriaé.
Os escravos procuraram encontrar estratégias para manterem sua
cultura, buscando nas suas ações e representações artísticas espo para
resistirem à escravio. O congado e a capoeira praticados atualmente em São
Paulo do Muriaé são heraas da cultura negra.
Quanto ao estado civil dos escravos, o censo confirma os dados do
arquivo paroquial. Os homens casados representavam 13,41% e as mulheres
13,78%. Os viúvos homens representavam 5,84% e as mulheres 5,55%. As
porcentagens se aproximam em relação à categoria e ao sexo, conforme
descrito na tabela abaixo.
Tabela 5
Estado civil dos escravos
42
Sexo Estado Civil
solteiro
s
vvo
s
casado
s
total
Homens 2.955 214 491 3.660
Mulhere
s
2.644 182 452 3.278
Total 5.599 396 943 6.938
Fonte: Recenseamento Gerais do império, 1872. Freguesia São Paulo do Muriaé
Os estudiosos da família escrava têm afirmado que as relações afetivas e
sociais entre escravos encontrou melhores condições para ocorrerem nas áreas de
médio e grandes plantéis.
82
No entanto, uma pesquisa recente de Vitoria Schettini,
em Muriaé, afirma que, apesar de plantéis menores, os laços familiares e a
organização de famílias mononucleadas também ocorreram aqui na Freguesia de
São Paulo do Muriaé. Alguns proprietários faziam concessões proporcionando a
alguns cativos a possibilidade de constituírem família e até mesmo de adquirirem
alguma renda.
83
Mary Karasch acrescenta que os laços familiares com muita freqüência
poderiam envolver o escravo com o senhor ou com outros homens livres. Do
relacionamento, muitas vezes surgia a possibilidade de, mais tarde, o escravo
alcançar a liberdade.
84
O fato de a rego ser de pequenos plantéis de cativos crioulos nos remete a
indagar sobre as relações afetivas entre senhores e escravos, levando-nos a acreditar
que a violência sexual era freqüente na região, e que essa possibilidade de proximidade
afetiva poderia ser uma estragia para as escravas alcançarem a alforria. Acreditamos
que o relacionamento com homens livres, forçado ou não, era uma das estratégias
82
LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Expansão cafeeira, demografia e os caminhos da
liberdade em Juiz de Fora. In. 1.º Seminário de História econômica e social da Zona da Mata
Mineira. I : 2005, Juiz de Fora (MG). Anais... CES, 2005.
83
ANDRADE, Vitória Schettini. Batismo e apadrinhamento de filhos de mães escravas, São
Paulo do Muriaé: 1852 a 1888. Dissertação de Mestrado, Vassouras : USS, 2006, p. 82.
84
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000, p. 22.
43
para o escravo obter alguns privilégios e até mesmo a alforria, fatos que veremos
com mais detalhes em um próximo capítulo. O que para os senhores era uma
diversão inconsciente, para as escravas era uma ação consciente, visto que, em uma
região agcola, havia poucas possibilidades das mesmas adquirirem capital suficiente
para poderem comprar a liberdade.
Como a região era essencialmente agrícola, havia poucas oportunidades para
os escravos conseguirem dinheiro ou recursos próprios que lhes permitissem
comprar a alforria.
O escravo na zona rural raramente conseguia acumular alguma riqueza; o
que conseguia juntar, muitas vezes, gastava nas vendas próximas às fazendas.
Galinhas, porcos, objetos de prata, café eram desviados da fazenda.
Na calada da noite, escapulindo das senzalas, entregavam os escravos o
produto do furto ao vendeiro, em troca de dinheiro ou crédito
85
.
Esses pequenos furtos poderiam ser uma das estratégias utilizadas pelo
cativo para burlar as regras impostas pelo senhor, ou mesmo demonstrar o seu
inconformismo diante da escravidão. Paulo Mercadante, em Os sertões do leste”,
demonstra que a vida na fazenda em uma região mineira ocorreu a partir de
sentimentos fortemente paternalistas. A lavoura e o pequeno número de escravos
estreitavam os laços sociais.
86
Nesse contexto, o relacionamento entre senhores e escravos processava-se em
um ambiente de acordos e concessões e também de coações: a violência e a
proximidade sexual, o despotismo, e a confraternização familiar parecem ter condições
de conviver lado a lado em um algama tenso, mas equilibrado”.
87
85
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo : Editora UNESP, 1998, p. 297.
86
MERCADANTE, Paulo. Os sertões do leste. Estudo de uma região: mata mineira. Rio de Janeiro
: Zahar, 1973, p. 71.
87
ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e paz. Casa grande e senzala e a obra de Gilberto
Freyre nos anos 30. 34. ed. Rio de Janeiro, 1994. Parte I, p. 57.
44
Na Freguesia de São Paulo do Muri, área de expansão agcola com carência
de o-de-obra, o regime de exploração e dominão foi intenso, pois o fazendeiro
utilizava de todos os recursos possíveis para manter por mais um tempo o controle
sobre essa população cativa. Certamente os escravos sofreram com as imposições dos
fazendeiros e os rigores de uma sociedade que se manteve atrelada ao escravismo a
os últimos momentos. Provavelmente ocorreram acordos que pensamos favorecer
tanto aos fazendeiros quanto aos escravos, mas certamente o valor mais alto foi pago
pelos cativos; da expreso “acordos entre gatos e ratos”.
A partir do momento em que o tfico interprovincial foi ficando mais dicil devido
ao elevado preço dos escravos, os fazendeiros encontraram nas alforrias uma
estratégia para garantir a manutenção da mão-de-obra durante o período de expansão
da lavoura. Com a promessa das alforrias, os senhores, como diz Laura de Mello e
Souza
88
, colocaram a água na fervura”, isto é, controlavam as possíveis revoltas que
os cativos pudessem organizar.
As cartas de alforrias não eram gratuitas e estavam condicionadas às
obrigações, ou seja, os cativos que as recebessem somente seriam realmente livres se
cumprissem com o que fora estabelecido previamente.
Assim sendo, os senhores fazendeiros, em um período de escassez de mão-de-
obra devido ao fim do tráfico e à elevação do preço dos escravos, utilizam dessas
cartas condicionadas para manter o escravo submisso e acomodado” ao serviço
89
.
No entanto, como Libby e Eduardo Paiva Fraa, acreditamos que, enquanto a
carta de alforria constita um mecanismo de controle social, para o escravo
representava uma conquista.
88
MELLO E SOUZA, Laura de. Coartação : problemática e episódios referentes a Minas Gerais no
século XVIII. In: __________. Norma e conflito : aspectos da História : UFMG, 1999. p. 289.
89
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p. 112.
45
A maneira como essas cartas foram concedidas em São Paulo do Muriaé,
levando os proprietários a alforriarem seus cativos em um momento de escassez de
o-de-obra, será o tema do nosso pximo capítulo. Tentaremos explicitar os padrões
das cartas de alforria que foram concedidas entre 1850 a 1888, como foram
concedidas, a quem elas favoreciam e se, realmente, através das mesmas, os escravos
encontravam possibilidades de conquistar sua liberdade.
46
Capítulo 2
A LIBERDADE POSSÍVEL
“Liberdade - essa palavra,
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!”
Cecília Meireles
Os instrumentos legais utilizados na conquista das alforrias
A possibilidade de alcançar a liberdade para o escravo significava a busca da
dignidade, da reconquista da vida. No Brasil a conquista da liberdade pelo escravo
foi resultado de uma luta intensa, diária, de fugas, de sutis adaptações ao cativeiro,
dos dispositivos legais do século XIX e da alforria
90
.
No que se refere à luta” pela liberdade, é necessário abrirmos um parêntese,
pois, durante um bom tempo, para alguns pesquisadores, os escravos eram
passivos, alheios aos movimentos ao seu redor, inconsciente da sua condição de
cativo. Essas concepções serão contestadas através de várias pesquisas, novas
obras que focalizaram os aspectos particulares da escravidão ou analisaram suas
diferenças. Clóvis Moura
91
, por exemplo, foi um dos pioneiros no estudo da rebeldia
negra, ao tratar das revoltas baianas ocorridas na primeira metade do século XIX.
Clóvis Moura não foi o único a ter essa concepção sobre o escravismo. Outros
historiadores como Sidney Challoub
92
, Douglas Cole Libby
93
, Stuart Schwartz
94
,
90
MATTOSO, tia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p. 174 a 177.
91
MOURA, Clóvis. Rebeliões da senzala. São Paulo : Zumbi, 1959.
92
CHALLOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. São Paulo : Cia das Letras, 2003.
93
LIBBY, Douglas Cole, PAIVA, Eduardo França. Escravidão no Brasil: Relações Sociais,
Acordos e Conflitos. 2. ed. São Paulo : Moderna, 2000.
94
SCHWARTZ, Stuart . Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo : Edusc, 2001.
47
Eduardo França Paiva, Mary Karasch
95
também buscaram através de suas
pesquisas comprovar que os escravos encontravam estratégias”, mesmo durante a
escravidão, para alcançarem a liberdade.
Segundo Challoub, a vioncia da escravidão o transformava os negros
em seres incapazes de ão automica, nem passivos receptores de valores
senhoriais, e nem tampouco em rebeldes valorosos e indomáveis
96
. Libby afirma
que os escravos eram realistas, pois sabiam de sua condição social: isso pode
ser um ponto aparentemente simples, mas é essencial para compreeno do
papel desempenhado por eles na história do Brasil
97
.
Mattoso analisou o universo dos negros escravos a partir de uma
abordagem complexa. A autora demonstrou o cater amguo das cartas de
alforria, que ao mesmo tempo em que ofereciam esperaas e ilues de
liberdade a homens e mulheres, colocavam o escravo em condições de
subordinão.
Na historiografia mineira, merece destaque o trabalho de Tarsio
Botelho
98
. Ele analisou as alforrias no norte da província mineira no século XIX.
Utilizou das manumissões para analisar as caractesticas dos libertos buscando
entender o significado da liberdade em uma região com pequeno
desenvolvimento econômico e as possibilidades de alcançá-la em uma região
decadente.
95
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000.
96
CHALLOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. São Paulo : Cia das Letras, 2003, p.42.
97
LIBBY, Douglas Cole. Trabalho escravo e capital estrangeiro no Brasil: o caso de Morro Velho.
Belo Horizonte : Itatiaia, 1984, p. 54.
98
BOTELHO, Tarcísio Rodrigues. As alforrias em Minas gerais no século XIX. In: Vária História,
n. 23, Belo Horizonte : UFMG, 2000.
48
Em uma região mineira de grande desenvolvimento econômico, foi
realizada por Annio Henrique Lacerda
99
uma análise semelhante à de Tarcísio
Botelho. Ele analisou as cartas de alforrias em Juiz de Fora, maior complexo
cafeeiro da província mineira no século XIX. Lacerda pesquisou os tipos de cartas
de alforrias e as possibilidades de concessão das mesmas em uma rego de
grandes planis e extensas propriedades no auge da produção cafeeira.
Douglas Cole Libby e Afonso de Alencastro Graça Filho
100
, em “Reconstruindo
a liberdade”, estudaram as alforrias e os forros na freguesia de São José do Rio das
Mortes, região central de Minas Gerais. As pesquisas dos autores ocorrem a partir
de 1870, quando as leis referentes ao elemento servil começaram a ser
promulgadas e a situação do escravo começou a ser alterada.
Stuart Schwartz
101
afirma que a alta freqüência de alforrias contribuiu para que
houvesse uma participação dos escravos entre os homens livres. Os vários autores
buscaram analisar as complexas relações sociais do escravo demonstrando que os
mesmos não eram passivos, mas lutavam pela conquista da liberdade, opondo-se à
resistência dos fazendeiros. Percebemos que a visão do escravo alienado,
inconsciente começa a ser criticada originando uma nova proposta para as
pesquisas historiográficas sobre a escravidão, abrindo um novo leque de
possibilidades dentro da historiografia brasileira.
Em Muriaé, os fazendeiros resistiram até os últimos momentos à pressão
abolicionista, mas, conforme a discussão abordada anteriormente, acreditamos que
os escravos não foram passivos ou inconscientes da sua condição, e que lutaram de
99
LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Considerações sobre as cartas de alforria registradas em
um município cafeeiro em expansão através da análise dos livros de notas cartoriais: Juiz de
Fora, zona da mata de Minas Gerais, século XIX. In: Vária História, n. 25, jul/01. Belo Horizonte :
UFMG, 2001.
100
LIBBY, Douglas Cole e GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Reconstruindo a liberdade:
alforria e forros na freguesia de São José do Rio das Mortes, 1750 a 1850. In: Vária História. N. 30,
jul, 2003.
101
SCHWARTZ, Stuart . Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo : Edusc, 2001., p. 203.
49
várias maneiras para alcançarem a liberdade. Havia no escravo o ideal de liberdade
e, como afirma Challoub, esse ideal poderia ser buscado de várias formas: através
da fuga, dos quilombos, do crime, do suicídio, da alforria e mesmo de outras
estratégias.
Para o escravo não existiam leis
102
, ou seja, tudo que viesse em seu
benefício ou ajuda dependeria do apoio de homens livres. Provavelmente, essa foi
uma das prerrogativas que reforçaram as crenças da submissão do escravo.
Todavia, existia uma forma legal através da qual o escravo conseguiria a sua
liberdade: as manumissões, mais conhecidas como cartas de alforrias.
Segundo Cvis Moura, as cartas de liberdade, ou títulos de alforrias eram
documentos por meio dos quais o senhor legitimava a liberdade concedida aos seus
escravos. Eram documentos registrados em cartórios e, com eles, o escravo ficava
livre da tutela do senhor.”
103
Segundo Mattoso, a alforria era uma prática tão antiga quanto a escravidão,
embora o uso desse dispositivo legal não fosse freqüentemente utilizado. Mello e
Souza constatou, na província mineira, que a prática da alforria era comum desde o
início do século XVIII, destacando o grande número de forros na região
mineradora.
104
A libertação de um escravo processava-se a partir de um acordo entre senhor
e escravo, muitas vezes desgastante e difícil, acordo que era definido pelo
proprietário independente da aprovação do escravo.
102
MATTOSO, tia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p. 179.
103
MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo : USP, 2004. p. 89
104
MELLO E SOUZA, Laura de. Coartação : problemática e episódios referentes a Minas Gerais no
século XVIII. In: __________. Norma e conflito : aspectos da História : UFMG, 1999. p.
50
A carta de alforria para Mary Karasch
105
era a prova da liberdade, um
documento através do qual o senhor transferia o título de propriedade para o cativo.
O documento era a “prova” da liberdade do escravo.
No período anterior a 1850, as possibilidades de o escravo alcançar a
emancipação eram restritas. Com exceção de alguns poucos manifestantes a favor
da abolição, os senhores de escravos eram irredutíveis e resistentes ao fim da
escravidão. Os escravos, que sonhavam com a possibilidade de alcançar a
liberdade, teriam de consegui-la diretamente com os seus senhores ou através de
ajuda de terceiros
106
, o que dependia muitas vezes do relacionamento pessoal entre
senhores e escravos.
Os padrões das cartas de alforria encontradas na Freguesia de São Paulo do
Muriaé eram diversificados. Algumas cartas continham informações como sexo,
idade, cor, profissão, matrícula, estado civil do cativo; outras não.
Após 1872, por determinação da Lei 2040 de 28 de setembro de 1871, as
cartas passaram a apresentar o número da matrícula do alforriado, trazendo, assim,
mais uma informação sobre o futuro liberto.
Comparando duas cartas encontradas no município de São Paulo do Muriaé,
percebemos as diferenças entre ambas no que se refere às informações sobre o
escravo.
Eu, abaixo assinado, digo affirmado, declaro que meu escravo Bento,
idade 32 anos, mais ou menos, fica gozando de sua inteira liberdade como de
ventre livre nascesse, de hora em diante como hum cidadão, com a condição
de por nove anos me servir, por isso lhe mandei passar a carta de liberdade
por livre vontade sem constrangimento algum, pedi ao Senhor Francisco
Pereira que esta carta de liberdade passasse a qual me assigno na
prezença de testemunhas São Paulo do Muriahe, onze de maio de mil
oitocentos e sessenta e dois.
Capitão Luis de Figueiredo
105
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000, p. 439.
106
KARASCH, 2000, p. 441.
51
Testemunhas: Antônio Augusto da Silva Canêdo e Antônio João
Teixeira.
107
... “Declaro que meu escravo Januário, 31 anos, pardo, solteiro, roceiro,
natural de São Sebastião e filho de Custódio fica liberto de ora em diante como
cidadão, tendo a condição de durante 10 anos prestar serviços para a minha
família. Januário gozará da liberdade de ir a vila, folgar aos domingos santos,
não podendo ser castigado se bom comportamento apresentar. Durante sua
folga poderá cultivar uma horta e um plantio de milho próximo aos cafezais.
108
A segunda carta apresenta maiores informações, algumas se referindo à
conduta que o futuro liberto deveria manter durante o período em que a sua
liberdade estivesse condicionada; na primeira, as informações são restritas à sua
idade e ao seu proprietário.
O registro da carta ocorria no cartório. O proprietário renunciava a sua
propriedade e o cativo tornava-se homem livre, segundo os textos das
manumissões, como se o fora de nascença. As cartas de liberdade, como vimos,
forneciam várias informações referentes ao proprietário e ao escravo que seria
alforriado. Em relação ao proprietário, o nome e o endereço eram suficientes. No
entanto, no que se refere à identificação do escravo, a carta era mais precisa com
vários elementos que serviam para identificar o escravo, dificultando a transferência
da carta de alforria de um cativo para outro.
Geralmente, as cartas de alforria eram individuais ou, no máximo, alforriavam
três cativos por vez. Quando as alforrias concedidas eram coletivas, elas eram mais
sucintas, com poucas explicações referentes aos mesmos.
109
A carta abaixo
representa um exemplo de alforria coletiva:
“Registro de uma carta de liberdade, com o teor seguinte, atendendo
aos bons serviços que tem prestado os seis escravos abaixo declarados, dos
quais os quatro primeiros nascidos e criados na minha casa, concedo os
seguintes benefícios:
107
Cartório do 1.º Ofício de Muriaé, livro n. 2, p. 21.
108
Cartório do 1.º Ofício Cachoeira Alegre, livro n. 13 p. 29.
109
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000, p. 441.
52
... O escravo Tiburcio 51 anos, escrava Leopoldina 40 anos, o escravo
Antônio, o escravo Américo, a escrava Margarida preta, a escrava Bárbara
preta.
A data da carta é de 2 de fevereiro de 1862.
Proprietário: Prudêncio Augusto Brandão.
Fazenda: Boa Esperança.
110
Podemos observar nessa carta que há poucas refencias aos escravos a serem
alforriados. Acreditamos que, possivelmente, poderia ser pelo número de escravos e pela
idade dos mesmos, pois, no peodo em quem a carta foi concedida, o havia muitas
exigências com relão às informações sobre o cativo, o que vem a acontecer após 1871.
Entretanto, mesmo após a concessão de carta de liberdade, existiam ainda
possibilidades do escravo perder o privilégio. De acordo com Challoub
111
, a opção de
punir o liberto com o cancelamento da carta deixava nas mãos do senhor o poder de
decisão sobre o cativo, refoando uma política de controle social, caracterizada pelas
relões pessoais estabelecidas entre senhores e escravos. Mattoso tamm confirma
este recurso utilizado pelos senhores de anular a carta de alforria, tornando o sonho de
liberdade vago, favorecendo o retorno ao cativeiro.
112
Em Muriaé, o encontramos
nenhuma carta que tenha sido anulada, ou alguma ão judicial movida pelo escravo
para obter a ratificão de sua carta.
A partir da segunda metade do culo XIX, praticamente em todas as proncias
brasileiras, os meros de alforrias aumentaram
113
. Vilma Almada destacou, em sua
pesquisa na rego vizinha de Muri, Cachoeiro do Itapemirim, que, a partir de 1871, as
conceses de alforrias expandiram, sendo muitas famílias escravas beneficiadas
simultaneamente.
114
110
Cartório do 1.º Ofício, Livro de notas n. 13, p. 11 e 12.
111
CHALLOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. São Paulo : Cia das Letras, 2003, p.139.
112
MATTOSO, tia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p. 180.
113
MATTOSO, 1990, p. 185.
114
ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição: O Espírito Santo (1850/1888). Rio
de Janeiro: Graal, 1984, p.194.
53
Em nossa pesquisa observamos, também, que as cartas de liberdade
intensificaram-se a partir de 1870, conforme tabela abaixo:
Tabela n.º 6
Concessões de alforrias em São Paulo do Muriaé – Década de 1850 a 1888
Década Alforrias Porcentagem
1850 – 1860 8 8%
1861 – 1870 16 16%
1871 – 1880 25 24%
1881 – 1888 53 52%
Total 102 100%
Fonte: Livro de notas n.º 1 e 2 do Cartório de 1.º
ofício de Muriaé, Livro de notas n.º 13 de Cachoeira
Alegre, Livros de batismo da Matriz São Paulo.
O período em que ocorreu o aumento nas concessões das cartas de alforrias
corresponde a uma fase de transição e mudanças. A pressão abolicionista era
grande e a demanda por escravos também devido ao fim do tráfico internacional e
aumento da produção agrícola. Os fazendeiros muriaeenses estavam no auge da
produção cafeeira, o que não lhes permitiria libertar os escravos no momento. No
entanto, encontramos, nesse período, o maior número de manumissões e, quanto
mais se aproximava o fim da escravidão, maior o índice de cartas concedidas.
Em nossa pesquisa observamos que a concessão de alforria foi-se
ampliando em um período em que os fazendeiros dependiam da mão-de-obra para
garantir o plantio, o cuidado e a colheita do café.
Os números de alforrias concedidas não estavam apenas relacionados às
pressões abolicionistas, nem mesmo era ato de benevolência dos fazendeiros e sim
uma estratégia utilizada pelos mesmos para garantir um número suficiente de
trabalhadores. A concessão de alforrias permitiu ao fazendeiro a escolha do tipo de
trabalhador que desejava manter em sua fazenda. O fazendeiro concedia as
alforrias observando a idade, a cor, a profissão, pois apenas o proprietário poderia
54
estabelecer quem seria beneficiado, e logicamente o maior beneficiado seria ele
próprio. As alforrias em São Paulo do Muriaé não ocorreram através de um acordo,
quando ambas as partes negociam as condições, mas eram decorrentes de uma
decisão do proprietário comunicada aos cativos. Tal fato possibilitou a manutenção
da produção de forma a manter o elemento servil em regime de força, tão vantajoso
para o senhor devido à alta lucratividade do café.
Segundo Mary Karasch, a probabilidade de alcançar a carta de liberdade era
maior nas áreas urbanas, pois havia condições para o escravo acumular recursos e
pagar pela sua própria liberdade. A alternativa para o cativo da área rural era
reduzida
115
. Provavelmente em Muriaé, uma região agrícola, a disponibilidade de
capital para a compra de alforria pelo próprio cativo era quase nula. Dessa forma, os
cativos dependiam de terceiros, ou de outros meios, para adquirirem a carta de
liberdade.
Almada, em um estudo na região agrícola de Cachoeiro do Itapemirim,
observou que uma rede de solidariedade cercava o escravo na compra de sua
alforria – padrinhos e benfeitores se mobilizavam com esse objetivo.
“...Lourenço Bernardo de Souza, na Fazenda Criméa em 20 de
fevereiro de 1870, liberta a escrava Constantina de 15 meses pela quantia de
300 mil réis, que recebeu do padrinho Bento José Martins.”
116
Mattoso observou essa rede de solidariedades na Bahia. A busca da alforria
não era uma conquista solitária, mas uma série de confabulações, promessas,
preceitos e conveniências. “Os laços de família, os vínculos de amizade e
vizinhança influem, pois, profundamente, quando é preciso contribuir ao pagamento
da alforria.”
117
Nessa situação, os parentes se unem para comprar a carta de alforria
115
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000, p.183
116
ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição: O Espírito Santo (1850/1888). Rio
de Janeiro: Graal, 1984, p.151.
117
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p.195.
55
de um ente querido, a exemplo mãe que busca de todas as formas conseguir pagar
a liberdade do filho. Em Muriaé, as crianças foram beneficiadas através do
apadrinhamento. Os padrinhos, em muitos casos, compravam a alforria da
criança.
118
Andrade
119
demonstrou que em Muriaé a superioridade dos padrinhos livres
prevalecia sobre os padrinhos escravos. A grande maioria dos padrinhos livres
poderia significar uma proteção de alguém da classe considerada superior a do
batizando. Era um meio de garantir a ascensão social e uma futura liberdade. A
tendência de escolher padrinhos entre a população livre foi facilitada pelo estreito
convívio entre livres e escravos.
Pelo volume de alforrias concedidas durante o batismo, percebemos que a
prática em conceder liberdade aos ingênuos era comum no município de São Paulo
do Muriaé, o que favoreceu a libertação de vários escravos.
Tabela n.º 7
Concessões de alforrias a adultos e ingênuos em São Paulo do Muriaé de
1850 a 1888.
Tipo Porcentagem
Adulto 65%
Ingênuos 35%
Total 100%
Fonte: Livro de notas n.º 1 e 2 do Cartório de 1.º
ofício de Muriaé, Livro de notas n.º 13 de Cachoeira
Alegre, Livros de batismo da Matriz São Paulo.
Pela tabela, observamos que 35% das manumissões foram concedidas
durante o batismo.
Quando a alforria não era obtida através da interferência de terceiros, sua
concretização dependia do fazendeiro. Era ele que propunha a concessão da carta e
118
ANDRADE, Vitória Schettini. Batismo e apadrinhamento de filhos de mães escravas, São
Paulo do Muriaé 1852 a 1888. Dissertação de Mestrado, Vassouras : USS, 2006, p. 36.
119
ANDRADE, 2006, p.41
56
as condições impostas através da mesma. Muitas vezes, as condições poderiam ser
diferentes, dependendo do relacionamento do cativo com o senhor ou do interesse
do senhor em conceder a alforria ao cativo.
Até o início de 1870, apesar da ocorrência de manumissões em períodos
anteriores a esta data, não havia uma norma que regulamentasse a concessão das
mesmas. O acordo entre as partes era permeado pelos direitos consuetudinários, ou
seja, através dos costumes. Não existia um padrão ou mesmo um procedimento que
tornasse as manumissões uniformes em todo o país. O costume de cada região
prevalecia no ato de alforriar. As alforrias dos escravos, mediante uma condição ou
indenização de preço, eram práticas cotidianas e comuns, porém não havia por
parte do Estado uma lei que garantisse que esses costumes fossem cumpridos.
A lei nº. 2040 de setembro de 1871 provocou uma alteração significativa nas
manumissões, que a lei costumeira seria substituída por uma intervenção do
Estado. Essa lei modificou a situação dos escravos, no que se refere à forma com
que as alforrias eram concedidas. A lei representou o reconhecimento legal de
vários direitos que os escravos haviam adquirido através dos costumes (a exemplo,
acumular recurso para compra da liberdade), mas que até então dependiam da
aceitação do proprietário
120
.
É interessante perceber que, a partir dessa lei, novos dispositivos foram
colocados em favor dos cativos, ou seja, a partir da lei, para concessão da liberdade,
os escravos deixaram de estar subordinados exclusivamente ao senhor. O escravo
teria a possibilidade de mover uma ação judicial exigindo o cumprimento da
manumissão.
120
CHALLOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. São Paulo : Cia das Letras, 2003, p. 108.
57
Em 1871, com a Lei do Ventre Livre, o Estado deu início a um processo de
emancipação dos cativos. A partir de alguns artigos da lei, percebemos um lento
processo de transformação na ordem escravocrata. O sistema escravista entrava em
processo de decadência. Vários fazendeiros sentiam as transformações de um
modelo que vigorou durante séculos. Os artigos da lei 2040 ampliaram as
possibilidades para os cativos alcançarem a liberdade, pois estabeleceram o
Fundo de Emancipação”, através do qual o Estado autorizou à sociedade ou
instituições o direito de levantar recursos, tendo como objetivo a compra de cartas
de liberdade para negros escravos.
Art. É permitido ao escravo, a formão de um pecúlio com o que lhe
provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do
senhor, obtiver do seu trabalho e economias. O governo providencia nos
regulamentos sobre a colocação e segurança do mesmo pecúlio.
§1º: Por morte do escravo, metade do seu pecúlio pertencerá ao njuge
sobrevivente, se o houver, e a outra metade se transmitirá aos seus herdeiros, na
forma de lei civil. Na falta de herdeiros, o pecúlio se adjudicado ao fundo de
emancipão de que trata o art. 3º.
§2°: O escravo que, por meio de seu pecúlio, obtiver meios para
indenizão de seu valor, tem direito à alforria. Se a indenização não for fixada por
acordo, o será por arbitramento. Nas vendas judiciais ou nos inventários o preço
da alforria será o da avaliação.
§3°: É, outrossim, permitido ao escravo, em favor da sua liberdade,
contratar com terceiro a prestão de futuros serviços por tempo que não exceda
de sete anos, mediante o consentimento do senhor e aprovão do juiz de órfãos.
§4°: O escravo que pertencer a condôminos, e for libertado por um destes,
te direito à sua alforria, indenizando os outros senhores da quota do valor que
lhes pertencer. Esta indenização poderá ser paga com serviços prestados por
prazo não maior de sete anos, em conformidade do parágrafo antecedente.
§5°: A alforria com a cláusula de serviços durante certo tempo o ficará
anulada pela falta de implemento da mesma cláusula, mas o liberto se compelido
a cumpri-la por meio de trabalho nos estabelecimentos públicos ou por contratos
de servos a particulares.
§6°: As alforrias, quer gratuitas, quer a tulo oneroso, serão isentas de
quaisquer direitos, emolumentos ou despesas.
§7º: Em qualquer caso de alienão ou transmissão de escravos é
proibido, sob pena de nulidade, separar os cônjuges, e os filhos menores de doze
anos, do pai ou mãe.
§8°: Se a divisão de bens entre herdeiros ou cios o comportar a
reunião de uma família, e nenhum deles preferir conservá-la sob o seu domínio,
mediante reposição da quinta parte dos outros interessados, será a mesma família
vendida e o seu produto rateado.
§9°: Fica derrogada a ordem liv., tít. 63, na parte que revoga as alforrias
por ingratidão.
121
121
FANNI, Silvana. Cataguases no século XIX. In Seminário de História Econômica e Social da
Zona da Mata Mineira. In Juiz de Fora (MG) – Anais CES, 2005. Disponível em CD-Room.
58
O artigo da lei 2040 tornou legal uma estratégia utilizada por muitos
abolicionistas, no final de 1860 e início de 1870: a compra das alforrias. Esse
costume antigo, a partir da ação do Estado, tornou-se lei. De acordo com Viotti,
várias sociedades emancipadoras empenhavam-se no período a arrecadar fundos
através de leilões, festas, para comprar a liberdade de alguns escravos. A Loja
Maçônica Amizade criou uma sociedade exclusiva para atender a esse propósito
122
.
Através do Fundo de Emancipação, o Estado concedia à sociedade o direito
de levantar recursos para comprar a liberdade de negros escravizados. Em São
Paulo do Muriaé não encontramos nenhum escravo que tenha sido beneficiado pelo
pecúlio ou Fundo de Emancipação, no entanto, a concessão de alforria através das
prestações de serviço foi freqüente.
Este mesmo artigo legalizou uma prática antiga e costumeira realizada entre
senhores e cativos: a prática da coartação, a compra da carta de alforria pelo próprio
cativo. Com a lei, o costume foi legalizado, abrindo um precedente para o escravo,
uma estratégia dentro do sistema. A alforria através do pecúlio se fazia da seguinte
forma: o escravo que desejasse comprar a sua carta entrava com o pedido no juízo
de órfãos, para a posteriori fazer no Cartório depósito integral ou parcelado que
correspondesse ao valor da manumissão de acordo com o mercado. Após a
conclusão do pagamento, o seu senhor era convocado para uma audiência na
câmara, onde lhe pagavam o valor que o escravo tinha no mercado. Feito isso, o
escravo recebia sua carta de liberdade.
A Lei do Ventre Livre, segundo Libby, não alcançou os resultados esperados.
123
Novamente a lentidão provoca uma onda de agitão entre os abolicionistas, que se
organizam com maior apoio da sociedade, iniciando uma campanha a favor da
122
COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia. 4. ed. São Paulo : Editora UNESP, 1998, p. 462.
123
LIBBY, Douglas Cole, PAIVA, Eduardo França. Escravidão no Brasil: Relações Sociais,
Acordos e Conflitos. 2. ed. São Paulo : Moderna, 2000. p. 80.
59
libertão voluntária, ou seja, a prática das alforrias concedidas pelos senhores. O
recenseamento de 1872 obrigou os proprietários a registrarem todos os cativos,
libertando os beneficiados pela lei 2040.
Os escravos foram novamente privilegiados pelo Estado, em 1884, com o
Projeto Dantas. O projeto previa a libertação dos idosos acima de sessenta anos,
sem indenização dos proprietários.
124
Esse projeto provocou um furioso debate no
parlamento brasileiro. Os fazendeiros das províncias do sudeste, ameaçados,
reagiram bravamente.
A libertação sem indenização e a obrigação de sustentar os libertos que
desejassem ficar na companhia dos senhores em troca de serviços, levaram à
queda do Projeto Dantas.
Com o objetivo de acalmar os ânimos, foi proposto por Saraiva um novo
projeto, alterando o anterior. Através do novo projeto, os fazendeiros não seriam
prejudicados, pois o mesmo instituiu a prestação de serviço após a libertação para
os menores de sessenta e cinco anos, extinguindo a obrigatoriedade de sustentar o
sexagenário
125
. Uma vitória para os fazendeiros.
Fica evidente pela lei n.º 3.270 de 28 de setembro de 1885, a Lei dos
Sexagenários, ou Lei Saraiva Cotegipe, que a idade de sessenta anos não
representou a liberdade buscada pelos cativos. Nos casos específicos de escravos
com idade acima de sessenta anos, os mesmos deveriam trabalhar até completar
sessenta e cinco anos. Os cativos com mais de sessenta e cinco anos seriam
considerados libertos, se assim desejassem, podendo prestar serviço ao senhor, se
apresentassem condições para se manter junto ao proprietário
126
.
124
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis. A lei dos sexagenários e os caminhos
da abolição no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1999, p. 32.
125
MENDONÇA, 1999, p. 37.
126
MENDONÇA, 1999, p. 40.
60
A lei concede a liberdade, mas, ao mesmo tempo, restringe o escravo a uma
condição dependente do senhor, pois, o proprietário que não quisesse ficar com o
liberto em troca de prestações de serviço, podia fazê-lo. Na verdade, os fazendeiros
utilizaram-se da lei para se livrarem dos escravos incapacitados de trabalhar.
Os fazendeiros sabiam que a abolição seria inevivel, o haveria como
sustentar por muitos anos o trabalho compulsório. No entanto, a forma escolhida pelo
Estado para libertar os cativos foi lenta, favorecendo aos fazendeiros para que os
mesmos pudessem encontrar, nas lacunas da lei, formas para manterem o regime
servil por mais um tempo. A seqüência das leis estabelecidas permitiu aos proprietários
se adequarem aos novos tempos sem grande comprometimento econômico. A intenção
dos fazendeiros era estabelecer um estágio de transição para o sistema de trabalho
livre sem causar grandes mudanças na situação sócio-econômica.
127
o havia como se determinar o fim da escravio. Enquanto isso, as alforrias
eram uma alternativa, ou seja aquilo que, do ponto de vista do senhor constituía um
mecanismo de controle sócial; para os escravos, representava uma conquista
128
”, uma
possibilidade para alcaar a liberdade.
Durante este período de crise, na Zona da Mata Mineira, em o Paulo do
Muriaé, encontramos registradas cartas de liberdade com padrões diversificados, o que
nos levou a um questionamento: por que os escravos eram emancipados em plena
expansão agrícola? O que estaria por trás da emancipão desses escravos?
Schwartz o acredita que as cartas de alforria fossem concedidas devido às
pressões abolicionistas. Para ele “havia motivos prementes em suas decisões
129
. Para
127
CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850 1888. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, p.113.
128
LIBBY, Douglas Cole, PAIVA, Eduardo França. Escravidão no Brasil: Relações Sociais,
Acordos e Conflitos. 2. ed. São Paulo : Moderna, 2000. p. 54.
129
SCHWARTZ, Stuart . Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo : Edusc, 2001., p. 197.
61
Eduardo Paiva França
130
, a alforria podia ser utilizada pelo fazendeiro para “manter a
ordem escravista e a hierarquia de privilégios, onde o topo permanecesse sendo
ocupado por brancos ricos”. Para os escravos, era o meio de abandonar o cativeiro e
conquistar a liberdade – “pela manumissão, tudo valia a pena, até mesmo fazer da vida
uma representação.
Em Muriaé, não comprovamos a afirmativa de Paiva França. A alforria
representou, em última análise, toda a hipocrisia e resistência dos fazendeiros em
evitar as mudanças sociais, mantendo o sistema inabalado até 1888. Utilizaram
esses documentos para ludibriar os cativos, adiando o máximo possível a concessão
de alforrias sem condições. Na verdade, foram poucos os escravos beneficiados
pela alforria sem cláusula; a grande maioria permaneceu atrelada ao fazendeiro até
a declaração final da escravidão.
A classificação das alforrias
Segundo Moura, podemos classificar as alforrias de várias formas
131
condicionada, pia, paga. Entretanto, essa não é a única classificação encontrada.
Outros pesquisadores estabelecem padrões e formas de selecionar as alforrias
diferentemente de Moura.
Andréa Lisly Gonçalves
132
classifica as alforrias em incondicionais, auto-
pagamento, coartação, prestações de serviço e pagamento por terceiros. Karasch
133
130
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos na Minas Gerais do século XIII : estratégias de
resistências através dos testamentos. São Paulo : AnnaBlumme, 1995. p. 107
131
MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo : USP, 2004. p 24
132
GONÇALVES, Andréa Lisly. Alforrias na Comarca de Ouro Preto (1808-1870). In: revista
População e Família. CEDAL, n. 3. p. 157-180. São Paulo : Humanitas/FFLCH, USP, 2000.
133
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000, p. 460.
62
estabeleceu cinco formas de alforrias: no leito de morte (em testamentos escritos
ou verbais) condicional, incondicional, comprada e ratificada”.
Em o Paulo do Muriaé encontramos apenas dois padrões de cartas de
alforrias: as incondicionais, concedidas a adultos e a crianças durante o batismo,
denominada alforria de pia; e as alforrias condicionadas à prestação de serviço por
tempo determinado ou até a morte do proprietário do escravo.
As alforrias incondicionais são as gratuitas. O cativo as recebia em troca de
bons serviços prestados acrescidos de amor dedicado ao dono. Não havia
concessão ou cláusula a ser cumprida. Neste padrão de alforria, encontramos o
menor número de manumissão em Muriaé, principalmente entre os adultos. Essa
forma de alforria ocorria, muitas vezes, quando o senhor queria evitar despesas com
os escravos idosos e doentes. Além dos idosos, os senhores alforriavam,
incondicionalmente, as crianças. Em certos casos, os senhores eram pais das
crianças e concediam o benefício para aliviar a consciência. Alguns senhores
também alforriavam mulheres jovens escravas, em especial as amantes e mães de
seus filhos.
134
Tabela 8
Cartas concedidas incondicionamente no período de 1850 a 1887 em São Paulo do Muriaé
Ano nome Data nasc Cor matrícula Proprietario Pai Mãe batizado
1850 – 1860
Pedro n/c n/c n/c Manoel José Bandeira n/c Theresa 24/02/1856
Paulo n/c n/c n/c Anna Maria da Silva n/c Joaquina escravo 06/03/1856
João n/c n/c n/c Francisco José Correa n/c Bernarda 24/02/1858
Feliz n/c n/c n/c João Gomes dos Santos Severino n/c 30/03/1858
Manoel n/c n/c n/c Francisco José Correa n/c Floriana 24/02/1859
João n/c n/c n/c Francisco José Correa n/c Florinda e 24/02/1860
Pedro n/c n/c n/c Francisco José Correa n/c Floriana escravo 18/04/1860
Francisco n/c n/c n/c Francisco José Correa n/c Luisa escravo 18/04/1860
1861 – 1870
Margarida 5/6/1863 n/c n/c Antônio Caetano Pinto Coelho da Cunha n/c Fabiana 29/06/1863
Antônio 30/6/1869 n/c n/c Antônio Guedes Pinto n/c Carolina 30/07/1869
Ambrósia 2/12/1869 n/c n/c Joaquim José de Ávila n/c Lourença 02/04/1870
João 18/1/1870 n/c n/c n/c n/c Maria Bernarda (liberta) 04/02/1870
Galdina 19/4/1870 n/c n/c Cap. João Pinto Monteiro. n/c Eva 24/05/1870
Severina 8/11/1870 n/c n/c Cap. João Pinto Monteiro, n/c Joana 28/11/1870
134
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000, p. 463.
63
1871 – 1880
Ignes 3/1/1871 n/c n/c
Joaquim Guintiliano dos Reis e
sua mulher D..Carlota Elisia de Lima Barros n/c Edwiges 13/02/1871
Cecília 22/11/1872 n/c n/c Dr. Antônio Augusto da Silva Canedo n/c Jucelina 15/01/1873
Guilhermina 27/9/1874 n/c n/c Antônio Teixeira de Cerqueira Luis Maria 04/10/1874
Ricarda 3/4/1875 n/c n/c José Antônio Caetano n/c Belisária 08/05/1875
Felizardo 15/4/1875 n/c n/c José Antônio Caetano n/c Julia 08/05/1875
Acácio 20/7/1875 n/c n/c Francisco Alves da Silva Pereira n/c Anastácia 20/09/1875
Delcelino 27/11/1875 n/c n/c Dr.Francisco n/c Generosa 19/12/1875
Basílio 20/5/1876 n/c n/c Vigário José Delfino César n/c Constança 26/06/1876
Olavo 13/3/1878 n/c n/c Vigário José Delfino César n/c Constança 20/03/1878
Chrystina 24/7/1878 n/c n/c Joaquim José d'Avila n/c Lorena 07/09/1878
Lourenço 5/10/1878 n/c n/c Domiciano Antônio Monteiro de Castro n/c Martha 07/12/1878
Maria 30/02/1879 n/c n/c Antônio Tiburcio Rodrigues Isaias Anna 02/03/1879
Antônio 25/10/1879 n/c n/c Vigário José Delfino César n/c Constança 03/11/1879
Eduardo 18/10/1879 n/c n/c José Antônio da Silva n/c Alexandra 18/11/1879
Virgilio 26/9/1878 n/c n/c José Pereira Peixoto Guimarães n/c Maria Antonia 19/09/1880
Virgilio 46 anos Pardo Pomba Francisco Alves da Silva Pereira n/c n/c n/c
Antonia 41 anos Parda Dores Joaquim José Dávila n/c n/c n/c
1881 - 1887
Honório 5/8/1881 n/c n/c Vigário José Delfino César n/c Constança 19/08/1881
Julia 10/12/19881 n/c n/c Modesto Fernandes da Rocha n/c Umbelina 19/02/1882
Florcena 28/12/1881 n/c n/c Francisco das Chagas da Luz n/c Generosa 08/01/1882
Olívia livre 23/5/1884 n/c n/c Francisco Alves da Silva Pereira n/c Anna 03/07/1884
Maria livre 22/3/1884 n/c n/c Modesto Fernandes da Rocha n/c Umbelina 28/10/1884
Pedro
n/c
n/c n/c Vigário José Delfino César n/c Constança 06/04/1885
João 23/6/1887 n/c n/c Deolinda Rosa da Conceição n/c Maria 17/07/1887
Ana 42 anos Parda Piranga Antônio Teixeira de Cerqueira n/c n/c n/c
Ana 21 anos Parda Ilegível Francisco Alves da Silva Pereira n/c n/c n/c
Paulo 29 anos Pardo Ilegível Antônio Caetano Pinto da Cunha n/c n/c n/c
Fonte: Livro de batismo da Paróquia de São Paulo de Muriaé.
Cartório de 1º Oficio de São Paulo do Muriaé.
Pela tabela, observamos que houve alforrias concedidas incondicionalmente em
Muriaé durante todo o peodo estudado. Essas foram constantes e em pequeno número.
Contudo, predominaram as alforrias de pia, isto é, as manumises concedidas durante o
batismo da criaa.
Encontramos apenas cinco cartas concedidas, incondicionalmente, a escravos
adultos e, em três casos, os escravos já podiam ser considerados velhos. Nas cartas em
que não constam a idade dos beneficiados, estamos julgando que os mesmos sejam
crianças, pois os dados relatados foram retirados do livro de batismo. o sabemos o
destino dos alforriados; alguns podem ter permanecido em companhia do ex-senhor,
prestando serviços de acordo com suas forças e, às vezes, remunerados.
64
Algumas cartas foram concedidas por gratio, como é o caso especial do
escravo Paulo, de 29 anos de idade, pardo: “Por ter sido criado em minha propriedade e
tendo o escravo salvado a minha vida e de meu filho em uma emboscada de morte,
querendo mostrar o quanto aprecio este ato por esta, dou a liberdade ao dito meu
escravo”.
Paulo da Silva recebeu a manumissão sem cláusula a ser cumprida.
135
Algumas cartas de alforria o de reconhecimento de paternidade: Em 1858,
Francisco José Correa, libertou o escravo João, pardo, filho natural dele e de sua escrava
Bernarda, reconheceu-o como filho e herdeiro de seus bens”.
136
Em muitos casos,
porém, a criaa se tornava livre as a morte do pai.
Kátia Mattoso chama a ateão para o fato de que “a criança gerada por obra do
senhor é livre, após a morte de seu pai. Mas, mesmo assim, é preciso que tenha sido
reconhecida.
137
O caso do escravo João, beneficiado em 1858 antes da morte de seu
pai, o que tornou possível sua liberdade e direito a seus bens, se deveu ao fato de ter
sido reconhecido.
A escrava Anna, parda, 21 anos, e sua filha Olívia receberam os benefícios da
carta incondicional. Em 1884, ambas foram alforriadas por Francisco Alves da Silva
Pereira. O proprietário declarou que a manumissão seria para mostrar o quanto apreciava
o servo da mucama. A mulata foi alforriada, gratuita e incondicionalmente, com o
sentimento de seu senhor por não poder apagar de sua vida a marca da escravio.
“Pelos bons serviços a mim prestados, e a amizade que me deu sempre
provas ser de coração e, o fingindo desde a mais tenra idade, seu zelo em
adivinhar sempre meus pensamentos, dedicão sem limites e, eu conhecendo
estas qualidades sempre a tratei como uma filha e o escrava”.
138
135
Fonte: Cartório de 1.º Ofício Cachoeira Alegre, livro de Notas n. 13, p. 14-15.
136
Fonte: _______ Livro n. 2 p. 43-44.
137
MATTOSO, tia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p. 476.
138
Fonte: Cartório do 1. Ofício. Livro de notas n. 13 Cachoeira Alegre, p. 36.
65
A carta acima o deixa duvida sobre a relação de intimidades entre senhores e
escravas e a repercuso dessas relões na concessão de alforrias.
Em Muriaé, as cartas condicionadas predominaram. Pela tabela abaixo
podemos observar que houve uma evolução constante na concessão desse tipo de
alforria em relação às alforrias incondicionais.
Tabela n.º 9
Alforrias concedidas, em Muriaé, no período de 1850- 1888.
Década
Formas
Condicional Incondicional
1850-
1860
Não encontramos
registros
8
1861-
1870
10 6
1871-
1880
9 17
1881-
1888
41 10
Fontes: Livro de Notas 1 e 2 do Cartório do Primeiro Ofício de
Muriaé e Livro de Notas n.º 13 do Cartório de Primeiro
Ofício de Cachoeira Alegre.
Livro de Batismo da Matriz São Paulo, Muriaé.
Continuando a análise da tabela, notamos que, em até 1871, as cartas
incondicionais se sobrepõem às condicionadas, e não grandes distorções entre
elas. Entretanto, na última década do escravismo, a proporção das condicionadas
aumenta significativamente em relação às incondicionais. Esse crescimento
demonstra que, no período de 1871 a 1888, as manumissões condicionadas em
Muriaé expandiram.
Segundo Mary Karasch
139
, as cartas condicionadas exigiam do escravo uma
forma de pagamento, podendo ser em prestações de serviço, por um tempo limitado
ou não. O escravo liberto pela carta condicionada continuava sendo tratado como
cativo, podendo até mesmo ser castigado. Essa forma de manumissão coagia o
139
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000, p.461-469.
66
liberto, obrigando-o a ser obediente e fiel até o prazo final da condição imposta pela
carta. O escravo aceitava as imposições dos fazendeiros, pois, se assim não o
fizesse durante o período estabelecido, poderia perder a conquista definitiva da
manumissão, e esta não seria ratificada oficialmente.
De acordo com Challoub
140
, a opção de punir o liberto com o cancelamento da
carta deixava nas mãos do senhor o poder de decisão sobre o cativo, reforçando
uma política de controle social, caracterizada pelas relações pessoais estabelecidas
entre senhores e escravos. Mattoso também confirma este recurso utilizado pelos
senhores de anular a carta de alforria, tornando o sonho de liberdade vago,
favorecendo o retorno ao cativeiro.
141
Em Muriaé, não encontramos nenhuma carta
que tenha sido anulada, ou alguma ação judicial movida pelo escravo para obter a
ratificação de sua carta.
Schuartz
142
afirma que as cartas condicionadas impunham pesadas
obrigações ao futuro liberto, pois, caso as condições não fossem cumpridas, o
proprietário poderia revogar a liberdade.
A partir da identificação das cartas condicionadas no município de São Paulo
do Muriaé, consideramos uma subdivisão das mesmas em: condicionadas à
prestação de serviço por tempo determinado, ou condicionadas por tempo
indeterminado, até a morte do proprietário ou de membros de sua família por ele
determinados.
A partir do culo XIX, as alforrias por prestações de serviço
predominaram, sendo semelhantes às alforrias por coartão; geralmente o
pagamento era condicionado a um período de trabalho. As alforrias por coartação
140
CHALLOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. São Paulo : Cia das Letras, 2003, p.139.
141
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990
142
SCHWARTZ, Stuart . Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo : Edusc, 2001., p. 213.
67
foram freqüentes a partir do século XVIII. Ida Lewcowicz
143
define a coartação
como um processo com base contratuais, através do qual o escravo comprava a
liberdade, pagando o seu valor em parcelas, dentro de um prazo.
As cartas condicionadas são aquelas que o escravo, para recebê-las, fica
condicionado a uma cláusula do documento que pode ser pagamento em dinheiro,
prestação de serviços temporários ou prestação de serviço até a morte do senhor ou
proprietário.
Este padrão de alforria, concedido mediante a condição de prestação de
serviço, foi o que predominou em São Paulo do Muriaé.
Tabela n.º 10
Cartas concedidas condicionadas à prestação de serviço, em o Paulo do
Muriaé, por tempo limitado, no período de 1861-1888
Nome
Idade
Se-
xo
Cor Profissão Matrícula Condição
1861-1870
Januário 29 M Pardo Roceiro NC
12 anos trabalhando para o
proprietário
Bento 32 M Pardo Roceiro NC
9 anos de trabalho para o
proprietário
Mariana 21 F Pardo Roceiro NC
15 anos de trabalho para o
proprietário
1871-1880
Antônio 42 M Pardo Roceiro São João 10 anos de trabalho
Pedro 39 M Preto Roceiro São João 11 anos de trabalho
Sabina 23 F Pardo Roceiro Santa Rita 9 anos de trabalho
Manoel 41 M Pardo Roceiro Mucurí 10 anos de trabalho
Ana 24 F Pardo Roceiro Norte de Minas 11 anos de trabalho
Maria 21 F Pardo Roceiro Campos de Goytacazes 12 anos de trabalho
143
LEWCOWICZ, Ida. In ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão à
comunidade escrava, Zona da Mata de MG, século XIX. Tese de Doutorado. USP, 1995, p. 117.
68
1881- 1888
Antônio 27 M Pardo Roceiro São Sebastião 10 Anos de trabalho
Januário 31 M Pardo Roceiro São Sebastião 10 Anos de trabalho
Francisco 41 M Preto Roceiro Piranga 9 Anos de trabalho
Manoel 26 M Pardo Roceiro Santa Rita 10 Anos de trabalho
Onofre 19 M Cabra Roceiro Norte de Minas 9 anos de trabalho
Sebastiana 26 F Pardo Roceiro Pomba 8 anos de trabalho
Galdina 29 F Preto Roceiro Pomba 9 anos de trabalho
Rosa 21 F Pardo Doméstico Norte de Minas 11 anos de trabalho
Ana 29 F Pardo Doméstico Leopoldina 10 anos de trabalho
Floriana 31 F Pardo Roceiro Campos 9 anos de trabalho
Madalena 27 F Pardo Roceiro Pomba 12 anos de trabalho
Onofre 39 M Pardo Carpinteiro Rio Preto 11 Anos de trabalho
Tereza 28 F Pardo Roceiro São Sebastião 10 Anos de trabalho
Anastacia 21 F Pardo Roceiro São Sebastião 11 Anos de trabalho
Perpétua 29 F Pardo Doméstica Piranga 9 Anos de trabalho
Anacleto 41 M Cabra Roceiro Piranga 10 Anos de trabalho
Antônia 42 F Preto Roceiro Pomba 10 Anos de trabalho
Margarida 40 F Cabra Roceiro Pomba 9 Anos de trabalho
Maria 39 F Pardo Doméstico Santa Rita 10 Anos de trabalho
Sebastiana 19 F Pardo Roceiro Dores 12 Anos de trabalho
João 21 M Pardo Doméstico Ilegível 11 Anos de trabalho
Generosa 29 F Pardo Roceiro Campos de Goytacazes 9 Anos de trabalho
Alda 37 F Pardo Roceiro Campos de Goytacazes 9 Anos de trabalho
Francisca 31 F Pardo Doméstico Tamanduá 9 Anos de trabalho
Pedro 39 M Preto Roceiro Piranga 10 Anos de trabalho
José 41 M Preto Roceiro Piranga 10 Anos de trabalho
Olavo 37 M Pardo Roceiro Ponte Nova 11 Anos de trabalho
Brasílio 38 M Pardo Carpinteiro Ponte Nova 9 Anos de trabalho
Bernado 41 M Pardo Roceiro Leopoldina 10 Anos de trabalho
Fidelis 40 M Pardo Roceiro Mucuri 12 Anos de trabalho
Júlia 29 F Pardo Doméstico Mucuri 11 Anos de trabalho
Belmira 42 F Preto Doméstico Tamanduá 11 Anos de trabalho
Sebastião 27 M Pardo Roceiro Campos de Goytacazes 10 anos de trabalho
Antônio 28 M Pardo Roceiro Mariana 11 anos de trabalho
69
Fonte: Cartório de 1º Ofício de Muriaé, livro de notas n. 1 e 2.
Cartório de 1º Ofício de Cachoeira Alegre, livro de notas n. 13;
Analisando a tabela acima, observamos que as cartas concedidas mediante a
condicionalidade de prestão de servo foram poucas nas primeiras décadas do nosso
estudo, pom, nos anos finais do escravismo, as alforrias condicionadas à prestão de
serviço por tempo determinado aumentaram.
O fato pode ser explicado por ser um peodo em que a escravio já se
encontrava em fase decadente, a mão-de-obra negra tornava-se escassa devido as
pressões dos abolicionistas. Atras da conceso de alforrias condicionadas, os
fazendeiros mantinham seu plantel e ainda conseguiam a submissão dos escravos, pois
o período agitado favorecia a fugas e rebeles.
Essa forma de manumissão coagia o escravo, obrigando-o a ser obediente a fim
de cumprir com o período estabelecido para a conquista definitiva da carta.
144
As condões estabelecidas nas cartas demonstram que, diante das pressões
abolicionistas, os fazendeiros resistentes buscavam nas conceses de alforrias uma
alternativa para manter a o-de-obra necessária à sua lavoura.
Em regiões vizinhas ao município de Muri, as alforrias condicionadas à
prestação de serviços também foram freqüentes.
“As a Lei do Rio Branco, perdidas as esperanças na sobrevivência do
sistema escravista, muitos proprierios procuraram, em Cachoeiro do Itapemirim,
transformar seus escravos numa espécie de servos de gleba”, como forma de
salvar pelo menos a sua geração de catástrofe que eles supunham avizinhar-se”.
145
Antônio Henrique Lacerda, nas cartas condicionadas encontradas em Juiz de
Fora, observou, tamm, que os termos das cartas deixam clara a preocupão dos
proprierios em manter, por mais um tempo, os escravos controlados.
146
Nessas duas
144
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000, p. 469.
145
ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição: O Espírito Santo (1850/1888). Rio
de Janeiro: Graal, 1984, p. 194.
146
LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Expansão cafeeira, demografia e os caminhos da liberdade em
Juiz de Fora. In. 1 Seminário de História ecomica e social da Zona da Mata Mineira. I : 2005, Juiz de
Fora (MG). Anais... CES, 2005. p. 66.
70
reges vizinhas ao munipio de São Paulo do Muriaé, os fazendeiros adotaram medidas
semelhantes no final da escravio. Ambas as reges estavam em plana expano
agrícola e utilizavam principalmente da o-de-obra escrava. Sendo assim, as alforrias
condicionadas à prestação de serviço representaram uma forma de resistência dos
fazendeiros às mudanças sócio-ecomicas que estavam acontecendo no país. Quando
o fazendeiro determinava o peodo em que o escravo deveria trabalhar para o
pagamento de sua carta, ele já estava garantindo por mais um tempo uma mão-de-obra
gratuita.
O tempo determinado para as prestações de serviços oscilava entre nove a
doze anos. Encontramos, na tabela, a carta concedida à escrava Mariana, no ano de
1862, em que o período estabelecido para a concessão da mesma era de 15
anos
147
. Apesar do longo período estabelecido na carta concedida à escrava
Mariana, a mesma conseguiu conquistar a liberdade antes da abolição em 1888. O
mesmo não ocorreu com a escrava Sebastiana que teve a sua carta condicionada a
oito anos de trabalho, o menor período encontrado. Entretanto, ela conseguiu ser
livre com a publicação da Lei Áurea.
O fazendeiro Prudêncio Augusto Brandão concedeu, simultaneamente, a um
grupo de escravos a liberdade condicionada. Observemos as principais informações
da carta:
“Registro de uma carta de liberdade com o teor seguinte atendendo
aos bons serviços que me têm prestado os sete escravos abaixo declarados,
dos quais os três primeiros nascidos e criados na minha casa, concedo-os os
seguintes benefícios.
O escravo Antônio de 27 anos de idade, pardo, roceiro, fica desde hoje
em pleno gozo de liberdade, com a condição de durante o período de 10 anos
trabalhar e obedecer.
O escravo Manoel de 26 anos, pardo, roceiro; Januário, 31 anos,
pardo, roceiro, devido ao bom comportamento me servirão por um espaço de
10 anos.
Concedo liberdade ao escravo Francisco, pardo, 41 anos, roceiro, com
condição de prestação de serviço por nove anos.
147
Fonte: Livro de notas n.º 13, p. 16-17. Cartório de 1.º Oficio Cachoeira Alegre.
71
A escrava Sebastiana parda, roceira, 26 anos, 8 anos de serviços
estipulados como condição de liberdade. A escrava Galdina parda 29 anos,
roceira, 9 anos de trabalho na lavoura.
O escravo Onofre 19 anos com a condição de durante o período de 9
anos, trabalhar e obedecer.
Após cumprir os beneficiados condições estabelecidas, estarão em
pleno gozo de perfeita liberdade, como se tivesse livres e espontânea vontade,
para as justiças do país que lhe dêens o valor e autoridade que em direito tem.
Fazenda Boa Esperança 2 de fevereiro de 1882.
Prudêncio Augusto Brandão”.
148
O proprietário alforriou sete escravos de seu plantel e, como explicitamos
anteriormente, o município tinha em dia plantéis de 7 a 12 cativos. Portanto,
embora não saibamos o número de escravos do plantel deste proprietário,
acreditamos que, caso esteja dentro da média dos proprietários, teria alforriado 58%
do seu plantel.
As alforrias concedidas em grupos, nos anos finais da escravidão, deixavam
clara a preocupação dos proprietários em garantir a mão-de-obra e a submissão do
plantel em um período de grande produção agrícola.
Se a carta de alforria condicionada à prestação de serviço era uma imposição
do proprietário ao escravo, e se esse padrão de alforria foi o predominante em
Muriaé, acreditamos que os senhores utilizaram da alforria para o seu próprio
benefício, gerando uma situação de dependência e subordinação dos libertos, que
permaneceu mesmo após a abolição da escravatura.
Isso comprova que os fazendeiros em Muri resistiram até o final da
escravidão, não abrindo concessões que facilitassem para o escravo a conquista da
liberdade.
Outro padrão de alforria encontrado em Muriaé são as cartas condicionadas à
prestação de serviço até a morte do proprietário, que se referem às manumissões
concedidas com a condição do cativo continuar a servir o seu proprietário ou a
pessoa por ele nomeada, variando de caso para caso.
148
Fonte: Livro de notas n.º 13, p. 38-39. Cartório de 1.º Oficio Cachoeira Alegre
72
As mulheres idosas, temendo a doença e a solidão, geralmente concediam a
alforria a uma escrava favorita a fim de protegê-la de seus herdeiros e incentivá-la a
cuidar delas até a morte.
149
Observe-se a carta abaixo:
“Registro de uma carta de liberdade, atendendo aos bons serviços que
tem prestado a escrava Lúcia, 49 anos, preta, asmática, fica gozando desde
hoje de plena liberdade com a condição de permanecer na minha companhia e
de minha senhora, Maria Joana Andrade até a data do meu falecimento.
Findado o prazo e o cumprimento do mesmo, a escrava Lúcia, tendo cumprido
de bom gosto e com fidelidade o seu serviço, gozará de sua liberdade como de
nascença fosse. E como de todo, atesto ser verdade tal documento que foi
passado sem constrangimento algum...”
150
As alforrias condicionadas à prestação de serviços a a morte do doador,
muitas vezes apresentavam condições irreverentes como orações pela alma do
dono, serviços para uma mulher solteira até o dia em que se casasse; uma vez
cumpridas as condições, o escravo recebia a liberdade.
151
Em Muriaé, encontramos dez cartas que apresentavam esse padrão no
período de 1864 a 1871.
Tabela n.º 11
Cartas condicionadas a prestação de serviço até a morte do proprietário ou pessoas nomeadas
Década Nome Idade cor Matrícula condição
1850 –
1860
Não encontramos registros
1861-1870
Tibúrcio 51
Pardo
Permanecer na companhia do proprietário até
a morte do mesmo.
Leopoldina 40
Pardo
Servir ao proprietário até a morte do mesmo,
após a sua morte, por espaço de 10 anos, ao
genro, o produtor Francisco de Paula Cordeiro
de Negreiros e a mulher deste.
Américo 45
Pardo
Servir ao proprietário até a morte do mesmo,
após a sua morte, ao filho, Paulo Prudêncio
Augusto Brandão, por um período de 10 anos.
Margarida 47
Preta
Servir ao proprietário até a morte do mesmo,
após a sua morte, ao filho, Lúcio José Silva e
a sua mulher Dona Maria, por um período de
10 anos.
Bárbara 41
Parda
Permanecer na companhia do proprietário e
esposa até a morte dos mesmos.
Ana 48
Pardo
Permanecer na companhia da esposa até a
sua morte.
Felício 51
Crioulo
Servir o proprietário até a sua morte.
149
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000, p.461
150
Cartório de 1º Ofício São Paulo de Muriaé, livro n. 2 p. 18.
151
KARASCH, Mary C. 2000, p. 462
73
1871 –1880
Pedro 48
Pardo Rio Preto
Servir ao proprietário até a morte do mesmo,
após a sua morte, ao sobrinho por 10 anos.
Manoel 41
Cabra Mucuri
Permanecer na companhia do proprietário até
sua morte.
Antônia 39
Parda Piranga
Permanecer na companhia do proprietário por
10 anos.
1881 - 1888
Bento 48
Pardo Piranga
Até a morte do proprietário
Bartira 47
Parda São João
Até a morte do proprietário
Lucia 49
Preta
Campos dos
Goytacazes
Até a morte do proprietário
Fonte: Cartório do 1.º Ofício de Muriaé, livro de Notas n.º 01 e 02 e Cartório de 1.º Ofício de
Cachoeira Alegre .
Pela idade dos escravos, percebemos que estes se encontravam na faixa
etária acima de 40 anos e, provavelmente, não produziriam o mesmo que os mais
jovens produziriam. As cartas de alforria foram, portanto, uma forma de manter os
beneficiados cativos e fiéis aos senhores até a morte dos mesmos, ou de ajudar um
parente querido.
Quando finalmente o prazo estabelecido da condição da carta findasse, o
escravo não teria como sobreviver fora da proteção de seu ou de outros senhores,
dependendo dos favores do mesmo até a morte.
A conquista da liberdade era sonho do escravo e a possibilidade de ser livre
fazia com que muitos cativos se sujeitassem ao senhor e a todos os seus caprichos.
Em São Paulo do Muriaé, na última década da abolição, 68,9% das alforrias
foram condicionadas à prestação de serviço, demonstrando que o senhor utilizou
deste mecanismo para regular e controlar sua escravaria. O escravo recebeu
alforria, mas foi impedido de utilizá-la pela condicionalidade da mesma.
Situação similar foi verificada na região vizinha. Almada observou que na Vila
de Cachoeiro de Itapemirim, a partir de 1872
152
, um proprietário chamado João
152
ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição: O Espírito Santo (1850/1888). Rio
de Janeiro: Graal, 1984, p. 194.
74
Rodrigues Valle deu carta de alforria a nove famílias de escravos num total de 44
pessoas, 20 homens e 24 mulheres:
“sob a única condição de os homens, todos os anos, darem uma
corrida de limpa nos pastos quando eu determinar, assim como algum dia que
seja preciso reunir o gado, ficam sujeitos à minha disposição, e as mulheres,
tirar o leite de minhas vacas, desde as nove às dez horas da manhã, não
havendo enfermidade, assim como cedo para eles uma parte de meus cafés,
terra para trabalhar, bois e carro para fazerem suas colheitas, isto é, enquanto
eu for vivo e por minha morte, não ficarão sujeitos a condição alguma”.
A situação dos fazendeiros foi a mesma do município de Muriaé e de tantos
outros. Logo após a publicação da Lei do Rio Branco, os senhores perderam as
esperanças na sobrevivência do sistema escravista por mais alguns anos e as
cartas condicionadas foram uma estratégia encontrada pelos fazendeiros para
transformar seus escravos, embora libertos, em submissos junto aos ex-senhores.
A produção cafeeira em Muriaé também seguiu os passos da produção
mineira, alcançando seu apogeu no final do século XIX. Concomitante a esse
período da expansão cafeeira houve uma evolução positiva na concessão das cartas
de alforrias.
Observe a tabela:
Tabela 12
Desenvolvimento das cartas de alforrias em São Paulo do
Muri
Peodo Porcentagem das alforrias encontradas
1850 1860
8%
1861 1870
16%
1871 1880
24%
1881 1888
52%
Total 100%
Fonte: Livros do Primeiro Ofício de Notas de Muri e Cachoeira Alegre,
Livros de Batismo da Matriz São Paulo.
Pela tabela, podemos observar que nas décadas de 70 e 80 ocorreu maior
conceso de alforrias, período que tamm corresponde à maior produção cafeeira e
logicamente maior demanda de o-de-obra.
75
Esse fato contraria uma afirmativa de Gorender
153
sobre as alforrias, que, ainda
que ampla, não corresponde às informações que encontramos nas cartas levantadas no
município de São Paulo do Muriaé. Segundo Gorender ... as alforrias eram mais
freqüentes nas fases de depreso e menos freentes nas fases de prosperidades.
154
Essa afirmativa de Gorender não se verificou em Muri. A expansão cafeeira no
município e região ocorreu entre os anos de 1850 1890, e o município se manteve
como um grande produtor a por volta de 1920, caracterizando-se como uma área de
expano econômica. A partir dos anos 70, marcadamente na primeira metade dos
anos 80, o ca assumiu imporncia decisiva na vida mineira, atuando como grande fator
mercantil”.
155
A porcentagem de alforrias no período confirma nossa hitese de que as
manumissões, em Muriaé, tiveram o objetivo de garantir a mão-de-obra em um período
de expano agcola. Os fazendeiros utilizaram das manumissões para garantirem, no
período que antecedeu à abolão, mão-de-obra para suas lavouras.
156
Essa foi a liberdade possível aos escravos em o Paulo do Muriaé. Mesmo
condicionada, o liberto a preferia a manter-se na condão de escravo. A liberdade para o
escravo estava ligada a questões do seu cotidiano, ao fim do açoite, o direito de casar,
constituir família, sem medo de ser separado dos filhos e esposa. Os libertos também
tinham direito a propriedade, chegando alguns a adquirirem escravos, fazendo parte do
grupo de proprietários da cidade.
157
A conquista da liberdade era sonho de todo o escravo, no entanto, garantir e
manter a liberdade tornou-se um problema para os libertos.
153
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 6. ed. São Paulo : Ática, 2001, p. 354-355.
154
GORENDER, 2001, p. 354
155
LANNA, Ana. A organização do trabalho livre na Zona da Mata Mineira, 1870 – 1920. V Anais
da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 1986, p. 95.
156
Revista historiográfica muriaeense. n.3, 1980, p. 49. Muriaé – MG.
157
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000, p. 475.
76
Como Challoub, acreditamos que diferentes estratégias foram utilizadas pelos
cativos para a conquista da liberdade, e que essa conquista foi uma luta
158
, uma luta tanto
para os alforriados, que pagavam com o trabalho o preço justo de sua liberdade, quanto
para os fues, criminosos, marginalizados pelo sistema.
No pximo capítulo, traçaremos o perfil dos alforriados em São Paulo do Muriaé,
idade, sexo, cor, profissão, e dos poucos fujões que se arriscaram em busca da liberdade
posvel. O rótulo de forro, alforriado ou liberto marcou o cidao, mas era prefevel
qualquer denominação a cativo.
158
CHALLOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. São Paulo : Cia das Letras, 2003, p.102.
77
Catulo 3
O LIBERTO EM SÃO PAULO DO MURI: OBSCULOS E CONQUISTAS
Para a maioria da população escrava em São Paulo do Muriaé, a chance de
alcançar a liberdade foi possível através das alforrias condicionais. Para esses
homens e mulheres não importava se somente após a morte do fazendeiro, ou
depois de servi-lo por um longo período de trabalho, seriam realmente libertos, mas
importava a possibilidade de ver concretizada a sua liberdade. Cumprida a condição,
o escravo estaria libertado.
Mas o que é ser liberto? Ser liberto é ser livre?
159
A pergunta elaborada por
Kátia Mattoso é complexa e difícil de ser respondida no contexto histórico do século
XIX, pois o conceito de liberdade não era o mesmo para brancos, negros e libertos.
Discutir o significado de liberdade, nesse período, é polêmico, pois o conceito da
palavra era heterogêneo, em se tratando de grupos sociais diferentes. E, até
mesmo, dentro de um mesmo grupo social, a liberdade era vista de forma
diferenciada. Para os proprietários favoráveis à abolição, a liberdade deveria ser
completa, independente de cláusulas e obstáculos; para os favoráveis à manutenção
da ordem escravista, a simples mudança no tratamento do escravo representava
uma condição de liberdade (a exemplo, a eliminação dos castigos corporais). Para o
cativo, era o desejo de romper com o cativeiro, que poderia ocorrer de diversas
formas: desobediência, sabotagem, fugas, suicídios e vinganças violentas. Para o
liberto, liberdade era a conquista de uma autonomia social, a possibilidade de
sobreviver em uma sociedade com valores diferentes para negros e brancos.
160
159
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p.161.
160
LIBBY, Douglas Cole, PAIVA, Eduardo França. Escravidão no Brasil: Relações Sociais,
Acordos e Conflitos. 2. ed. São Paulo : Moderna, 2000. p. 56.
78
A possibilidade de ser livre fazia com que muitos cativos se sujeitassem ao
senhor e, em várias situações, fossem até bons prestadores de serviço”. Isso não
significava que o escravo fosse passivo, sem autonomia ou poder de decisão, mas a
sociedade discriminava e era hostil aos novos elementos que tentavam integrar-se a
ela, e esta acomodação era uma estratégia para o liberto tentar ser aceito na
sociedade.
161
“Registro de uma carta de liberdade concedida ao escravo Virgílio de 46
anos de idade, pardo nascido e criado nessa propriedade, sustentado pelo meu
falecido pai e hoje pela minha pessoa, Francisco Alves da Silva Pereira. Pelos bons
serviços prestados durante a sua toda a sua vida a todos da minha família, a sua
obediência, respeito e fidelidade de hoje em diante fica sendo considerado livre
como de nascença fosse.
162
Pelas informações da carta, percebemos que Virgilio obteve sua alforria por
ter sido bom prestador de serviço e obediente”. Essa era a visão que o fazendeiro
tinha do escravo que foi libertado, entretanto, outros questionamentos poderiam ser
feitos. Por que o escravo agiu dessa forma? Tinha algum objetivo?
Para alguns autores, como Challoub
163
e Hebe Mattos
164
, muitos escravos, na
luta pela liberdade, utilizaram-se dos espaços encontrados no sistema para
conseguirem alguma vantagem mesmo no cativeiro. Sendo assim, a falsa
submissão” foi uma brecha para a busca da liberdade.
Além do mais, a possibilidade de mudanças na estrutura social de um
município no interior era pequena, pois feria os interesses tanto dos proprietários
quanto dos governantes.
“Afinal discutir a liberdade de escravos significa interferir no pacto
liberal de defesa da propriedade privada e, am disso, era a ppria
organizão das relões de trabalho que parecia estar em jogo. Ou seja, o
assunto era delicado, porque nele cintilava o perigo de desavenças ou
161
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p. 209.
162
Livro de notas n. 13. p. 41 Cartório de 1.º ofício, Cachoeira Alegre – Muriaé.
163
CHALLOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
corte. São Paulo : Cia das Letras, 2003, p. 23.
164
CASTRO, Hebe Maria Mattos de Das cores do silêncio. 1995, p.219.
79
rachas mais sérias no interior da própria classe dos proprietários e
governantes.
165
Manter a ordem e a estrutura vigente era mais cômodo e evitava conflitos
diretos com a elite local. Apesar dessa liberdade, aos nossos olhos, ter parecido
bem frágil e precária, ela era uma das únicas formas que o escravo encontrava para
se livrar do cativeiro
Tabela nº 13
Adultos alforriados em São Paulo do Muriaé em 1850 – 1888.
Padrões de Cartas Porcentagem
Condicionadas 92%
Gratuitas 8%
Total 100%
Fonte: Cartório de 1º Ofício de Cachoeira Alegre e de Muriaé.
Em Muriaé, 92% das alforrias registradas beneficiando adultos eram
condicionadas à prestão de serviço. Entendemos que as cusulas previamente
estabelecidas nas manumissões deram origem a um grupo de indivíduos que o eram
nem escravos nem homens livres. Essa situação ocorreu porque os escravos não eram
libertados imediatamente, mas dependiam do cumprimento da cusula prevista na carta
de alforria. Em contrapartida, eles tamm não eram mais escravos, sua situão era
diferente dos demais cativos que se encontravam nas fazendas. Para esse indivíduo
libertado sob condições, havia rias vantagens junto à lei. Ele estava livre dos castigos
corporais, não poderia ser vendido, alienado ou hipotecado. Seus filhos,
automaticamente, nasceriam livres, entretanto, sua liberdade total ocorreria com o
cumprimento da cláusula prevista na carta de alforria.
166
Essa situão gerava um certo
transtorno para o alforriado, que não mais se sentia escravo, mas continuava preso ao
antigo senhor.
165
CHALLOUB, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo : Cia das Letras, 2003, p.99.
166
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p.208
80
A maior ameaça para o escravo alforriado sob condição era a revogação da
carta. Era de praxe registrar a carta de alforria em cartório, o que garantiria ao
escravo o cumprimento da mesma, mas nada impedia que esse documento fosse
revogado
167
. Esse procedimento, a o ratificação da carta, era considerado ilegal
pelos tribunais até 1865, mas ele continuou sendo utilizado por vários fazendeiros
para coagirem os escravos sob essa condição
168
. Libertados sob condição e
pagando pela liberdade com trabalho prestado, os forros em São Paulo do Muriaé
ficavam um período dependentes e presos ao antigo senhor.
Apesar do município ter uma economia agrícola diversificada, cujo
destaque era a produção do café, a área urbana da cidade era restrita a função
administrativa, com algumas poucas casas comerciais, que forneciam os
chamados secos e molhados aos fazendeiros e a todo o grupo de indivíduos
que o servia e o cercava em sua propriedade.
Relações complexas e contraditórias foram desenvolvidas entre a
população forra e a população livre. Mesmo libertos, os ex-cativos tentavam
demonstrar atenção e até mesmo submissão aos ex-senhores. No caso das
mulheres, muitas se esforçavam para dar luz a filhos o só dos senhores, mas
de um branco livre. Eram tentativas de melhorar as condições materiais de vida.
Segundo Eduardo Paiva França, a possibilidade de ocupar cargos políticos, tanto
na esfera civil ou eclesiástica era vetada, embora tenham existido alguns casos
de descendentes negros livres que ocuparam alguma fuão considerada de
confiança.
169
167
MATTOSO, 1990, p. 180.
168
A possibilidade da carta de alforria ser revogada estava prevista no título 13, do livro 4, das
Ordenações Filipinas do século XVI, Código de Leis que vigorou no Brasil até 1917.
169
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos na Minas Gerais do século XIII : estratégias de
resistências através dos testamentos. São Paulo : AnnaBlumme, 1995. p. 108.
81
Libby argumenta que nessa complexa sociedade escravista sempre houve
espaço para mobilidade, na qual o liberto poderia chegar à posição de
proprietário, o que lhe garantiria uma colocão social menos discriminada.
170
A
aceitação do liberto na sociedade ocorria de forma diversificada dependendo da
localidade, da origem do alforriado, das condições demogficas e econômicas da
região. O liberto que adquiria posses tinha uma melhor aceitaçãoe era menos
discriminado.
171
Em nome de Deus, Amém, Eu José, como cristão católico
apostólico romano que sou e em qual religião nasci, na qual me
tenho conservado e espero morrer, tendo me deliberado fazer o meu
testamento, como faço de minha livre e esponnea vontade e em
perfeito juízo e saúde perfeita, declaro minhas disposões, as quais
quero que se cumpram pela maneira e forma seguinte depois da
minha morte.
Declaro que, quando eu falecer, meu corpo seja conduzido
para a matriz dessa freguesia, ficando meu enterro à disposão e
acordo de meus filhos e testamenteiro.
Declaro que as meninas nascidas de minha escrava, que foi
hoje liberta, por carta por mim passada, são minhas filhas. Ao forro
Domingos, natural de Muriaé, pelo serviço prestado em minha
propriedade concedo dois escravos: a escrava Eva Parda, e o
escravo Antônio de Nação...
172
No documento acima, verificamos um exemplo de que a mobilidade social
poderia ocorrer. Através de um testamento, um forro poderia chegar à tão cobiçada
posição de proprietário. A flexibilidade social contribuiu para que alguns forros
fossem aceitos na sociedade.
Acreditamos que, em Muriaé, o liberto passou por vários obstáculos. Apesar
da expansão econômica e demográfica da região, ele provavelmente teve poucas
oportunidades para ascender socialmente e adquirir propriedades.
170
LIBBY, Douglas Cole, PAIVA, Eduardo França. Escravidão no Brasil: Relações Sociais,
Acordos e Conflitos. 2. ed. São Paulo : Moderna, 2000. p. 54.
171
MATTOSO, tia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p. 202.
172
Cartório do 1.º Ofício Cachoeira Alegre, livro de notas n.º 2, p. 14.
82
Nas pequenas localidades, a dependência em relão aos proprierios de
terra o era apenas do escravo, forro ou liberto, mas de toda a população livre
que vivia na região. Este era um dos entraves enfrentados pelos libertos. Dessa
forma, restava-lhes buscar apoio de outro fazendeiro, ou seja, um outro protetor
que não fosse o seu antigo senhor, arriscar sair da rego em busca de trabalho,
ou permanecer junto ao seu ex-senhor.
Durante muito tempo, o liberto continuou a pertencer a um
mundo bem fechado, gravitando em torno do seu antigo senhor, que
continua a ser para ele um modelo de comportamento, um posvel
refúgio, uma espécie de bóia à qual poderá sempre agarrar-se em
caso de necessidade.
173
Apesar de todos os obstáculos, esse grupo social diferente, ou seja,
alforriado sob condão, conviveu durante um tempo significativo com a ameaça
de perder a liberdade. Administrar a posse dessa liberdade temporária
representou uma resistência física e moral. É obvio que o liberto percebia a
armadilha que o cercava, sabia do risco de morrer pobre e indefeso, mas preferia
essa liberdade à escravidão bem protegida.
174
Atras da análise das manumises registradas em Muriaé, é possível
traçar o perfil desse grupo social libertado sob condão. Quem era o forro nessa
localidade, sua idade, sexo, período em que ficou preso ao seu senhor. Em
alguns documentos, encontramos informações precisas relatadas com clareza e
uma descrição detalhada do beneficiado. Em outros documentos, faltam
informações valiosas, como filiação, origem, idade, ou seja, as cartas o eram
uniformes, as informações variavam significativamente de um documento para
outro, apesar de encontrarmos alguns elementos que se repetiam em todas as
manumissões.
Tabela n.º 14
173
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p.203.
174
MATTOSO, 1990, p. 207.
83
Distribuição das variáveis nas cartas de alforrias em São Paulo do Muriaé.
Variável Total %
1. Sexo 101 100%
2. Idade 94 92%
3. Cor 66 65%
4. Matrícula 48 47%
5. Qualificação Profissional 47 46%
6. Estado Civil NC NC
7. Filiação 36 35%
Fonte: Livros do Primeiro Ofício de Notas de Muri e Cachoeira Alegre,
Livros de Batismo da Matriz São Paulo.
Entre os elementos variáveis que foram encontrados nas cartas de alforrias, o
sexo estava expcito em 100% das cartas e a idade do beneficiado em 92%. Este fato
nos levou a concluir que o sexo e a idade foram fundamentais na conceso das
manumises. As outras varveis não apresentam a mesma porcentagem, o que nos
leva a crer que os outros elementos não foram decisíveis no ato de alforriar. Outro fato
percebido na tabela é que o estado civil dos alforriados o era indispensável e o
interferia na decisão do fazendeiro em conceder alforrias. A filiação apenas aparece
nas cartas de alforria concedidas durante o batismo; em nenhum escravo adulto
alforriado encontramos o nome do pai ou dae.
A identificação de cor o era homogênea, apresentando as seguintes
variações: pardo, criollo, preto e cabra.
Tabela 15
Distribuição das alforrias em São Paulo do Muriaé por sexo e cor.
Idade
1850 – 1860 1861 – 1870 1871 – 1880 1881 – 1888 total
%
M F M F M F M F M F M F
Crioulo NC NC 01 - - - - - 01 - 3,2 -
Pardo NC NC 05 03 04 05 14 20 23 28 74,0 82,0
Cabra NC NC - - 01 - 02 01 03 01 9,8 2,9
Preto NC NC - 01 01 - 03 04 04 05 13,0 15,1
TOTAL - - 06 04 06 05 19 25 31 34 100,
0
100,0
Fonte: Cartório de 1.º Ofício de Muriaé e Cachoeira Alegre.
84
A definição da cor no documento poderia representar maior ou menor
possibilidade de inserção do futuro liberto na sociedade, pois preferencialmente os
escravos pardos foram os beneficiados.
Dos registros de escravos comercializados encontrados em Muriaé, 67% dos
escravos eram pardos, o que colaborou para que a grande parte dos escravos
registrados fossem identificados também como pardos. O termo pardo pode ser
definido, entre outras definições, como o que tem cor escura, entre branco e o
preto, mulato.
175
Os libertos beneficiados que foram identificados como pardos
representaram a maioria da população forra, sendo 74% homens e 82% mulheres.
Provavelmente, foi esse o grupo entre os demais que conseguiu adaptar-se à
sociedade muriaeense com menor discriminação, pois a cor permitiria uma
miscigenação mais freqüente com a população livre. Esta porcentagem de pardos
beneficiados nos revela que, para concessão de alforrias, os proprietários preferiram
os pardos.
Pelas cartas, identificamos que a cor criollo tem o mesmo significado da
definição de cor parda. Acreditamos que a distinção ou identificação utilizando uma
das duas cores referiram-se a períodos e a tabeliões distintos, mas ambas eram
sinônimas.
Segundo Moura, o termo cabra não é fácil de ser definido, apresentando
vários significados e uma discordância de opiniões entre os historiadores,
“CABRA. Diz Bernardino José de Souza (1961) que é termo de
uso freqüente no Norte do Brasil, designativo do mestiço de negro e
mulato. Entretanto, não há concordância de opiniões, acerca desse tipo
de mestiço. Macedo Soares diz que o cabra é quarteirão de mulato
com negro, mulato escuro, caboclo escuro. V. Chemont diz tratar-se de
mestiço de branco e negra, logo o mesmo que mulato. Rodolfo Teófilo,
no seu grande livro Os Brilhantes, afirma que é produto do cruzamento
de índio e de africano inferior aos elementos que o formam. E
acrescenta: “O cabra é pior do que o caboclo e do que o negro. É
175
LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Expansão cafeeira, demografia e os caminhos da
liberdade em juiz de Fora. In. 1.º Seminário de História econômica e social da Zona da Mata
Mineira. I : 2005, Juiz de Fora (MG). Anais... CES, 2005
85
geralmente um indivíduo forte, de maus instintos, petulante,
sanguinário, muito diferente do mulato por lhe faltarem as maneiras e
inteligência deste. É o conhecida a índole perversa do cabra que o
povo diz ‘não há doce ruim nem cabra bom’”. Isso é confirmado em
ofício de José Félix de Azevedo ao ministro do Império, em 23 de
abril de 1825, no qual expunha as providências tomadas para manter a
ordem no Ceará: Resta agora, o Ex.mo Sr., conter o furor dos cabras,
e índios que tanto ocuparam o cuidado dos antigos governadores, o
quais ainda não há forças que o tenham podido, refrear” ... Ao cabra
não raro se chama também de pardo, fula, ou fulo, bode e cabrito,
todos, em suma, mestiços nos quais a dosagem dos “sangues
inferiores” é maior. De modo figurado essa palavra significa homem
valente, audacioso, atrevido, sinônimo de cangaceiro e bandoleiro,
ocorrendo neste sentido os termos: cabra-macho, cabra-feio, cabra-
onça, cabra-seco, cabra-topetudo, cabra-de-chifre, cabra-arranca-toco,
surunganga, guampudo, curruscuba, capuaba, negro sujo, bambambã,
corado, bala, cumba, etc. Na época das lutas pela Independência e
ainda no Primeiro Reinado, quando se trocavam veementemente
epítetos injuriosos entre brasileiros e portugueses, os brasileiros foram
alcunhados de moleques, crioulos, bodes, cabrito e cabras, (...) Enfim,
de acordo com Bernardino Jode Souza, (1961), é certo que o termo
“cabra” surgiu, em última instância, de uma tática de divisionismo
étnico dos dominadores para fragmentar a população negra conforme
as diferenças cromática e sociais. Um dos resultados dessa política foi
que os mulatos livres se afastaram da luta dos negros, e criaram, no
Rio de Janeiro, uma imprensa mulata, que reivindicava nas suas
páginas apenas os interesses daquela minoria mulata não escrava.”
176
Concluímos que a definição pela cor cabra foi mais um dos itens que levaram
à divisão da população negra, tanto livres quanto libertos, criando uma separação
entre a etnia, fortalecendo o preconceito e a discriminação.
Em Muriaé, apenas 4,6% dos alforriados eram cabras. A porcentagem de
cabras alforriados do sexo masculino foi superior a do sexo feminino. Ambos
receberam alforria condicionada à prestação de serviço. Não sabemos se a
porcentagem pequena era devido ao grupo ser pequeno entre os cativos, ou se o
fazendeiro não tinha interesse em alforriar o cabra, visto que havia muitas lendas
sobre o seu caráter e o mesmo poderia gerar revoltas e outros atos de rebeldia no
plantel e entre os forros.
Além das definições citadas para identificar cor, ainda poderiam surgir
outras definições como fula e mulato.
176
MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo : USP, 2004. p. 75
86
O termo fula foi utilizado para identificar os descendentes de um povo de
origem berbere-etiópica e de influência maometana. Os membros dessa etnia foram
encontrados entre os guardas das galés da fazenda real em Minas Gerais no século
XIX
177
. Em Muriaé, não encontramos nenhuma carta de alforria concedida a esse
grupo. Já o termo mulato tornou-se popular representando a mistura do negro com o
branco, sendo o termo mais utilizado até os dias atuais.
Todos os pretos encontrados nas cartas foram considerados africanos e os
criollos definidos como escravos nascidos no Brasil. Os libertos que eram
identificados como pretos, perfaziam 15,1% dos beneficiados. Todos os africanos
libertos receberam alforria condicionada à prestação de serviço.
A identificação da cor nas crianças que foram libertadas durante o batismo
não foi encontrada. O motivo desta falta nos documentos não fica claro. As cartas de
alforrias dos escravos adultos o as que apresentam o maior número de
informações, fato que pode ser explicado pela necessidade do controle dos
proprietários sobre o beneficiado. Em caso de uma possível fuga desse liberto
condicionado, o resgate do mesmo, diante de um número de informações maiores,
seria mais fácil de ocorrer.
Tabela 16
Distribuição das alforrias em São Paulo do Muriaé por sexo e cor.
Idade
1850 – 1860 1861 – 1870 1871 – 1880 1881 – 1888 total
%
M F M F M F M F M F M F
15 a 20 NC NC 01 01 01 01 3,2 3,0
21 a 30 NC NC 01 01 03 07 14 08 18 25,8 53,0
31 a 40 NC NC 02 01 01 06 05 09 06 29,0 18,0
41 a 50 NC NC 01 03 05 01 05 05 11 09 35,0 26,0
Acima de 50 NC NC 02 02 7,0
TOTAL 06 04 06 05 19 25 31 34 100,0 100,0
Fonte: Cartório de 1.º ofício de Muriaé e Cachoeira Alegre
177
MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo : USP, 2004. p. 163.
87
A preferência em beneficiar as mulheres com as cartas de alforria foi um fato
que se repetiu em Muriaé, confirmando a historiografia brasileira. A preponderância
feminina não ocorreu apenas em Muriaé, mas foi confirmada nas regiões vizinhas de
Cachoeiro de Itapemirim
178
e Juiz de Fora
179
.
Dos 65 registros em que o sexo dos alforriados aparece, 34 (52,3%) são
mulheres e 31 (47,7%) são homens.
As escravas além, de exercerem o trabalho braçal pesado, poderiam ser
avaliadas ao realizar o trabalho doméstico, levando vantagens sobre os homens na
conquista da alforria.
180
“Eu, Francisco Alves Pereira digo afirmado declaro que minha
escrava generosa, da cor parda, de idade 29 anos, roceira com qualidade,
filha da escrava Rita, mucama de minha propriedade e leal à minha família,
fica gozando de sua inteira liberdade, como de ventre livre nascesse, de
hora em diante com a condão de me servir com obedncia sendo fiel por
mais 9 anos de trabalho”...
181
A tabela demonstra ainda a relação entre a idade e o sexo dos alforriados no
município. Estabelecemos, como menor idade, a faixa etária entre 15 e 20 anos,
pois não encontramos documentos que identificassem escravos com menos de 15
anos sendo alforriados, com exceção dos benefícios concedidos aos ingênuos no
ato do batismo. Os escravos adultos, ou seja, em idade produtiva, receberam
benefício a partir do período de 1861, mas a maior concessão de alforrias ocorre na
última década da escravidão. Na década de 1861 a 1870, a alforria concedida ao
sexo masculino foi superior ao sexo feminino; somente a partir de 1871, as
mulheres, aqui em Muriaé, passaram a ser privilegiadas com a concessão de
alforrias superior a dos homens.
178
ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição: O Espírito Santo (1850/1888). Rio
de Janeiro: Graal, 1984, p.
179
LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Expansão cafeeira, demografia e os caminhos da
liberdade em juiz de Fora. In. 1.º Seminário de História econômica e social da Zona da Mata
Mineira. I : 2005, Juiz de Fora (MG). Anais... CES, 2005.
180
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000, p. 453.
181
Livro de notas n. 13. p. 56 Cartório de 1.º ofício, Cachoeira Alegre – Muriaé.
88
Para nós, existem algumas possíveis explicações: a Lei do Ventre Livre, de
1871, concedia liberdade para os filhos das escravas nascidas a partir daquela data,
mas não para os filhos que a mesma porventura tivesse. Se a escrava liberta tivesse
um filho que não fosse beneficiado pela Lei, ela provavelmente ficaria com o
fazendeiro mesmo recebendo a alforria. O fazendeiro poderia utilizar este recurso
para manter as escravas, mesmo que alforriadas, presas à sua propriedade.
53% das mulheres libertas encontravam-se na faixa etária que oscilava entre
21 e 30 anos. 25,8% dos homens também se encontravam nessa faixa. Foram
libertos trabalhadores que tinham condições de permanecerem na atividade agrícola
ou em outra atividade por mais um longo período, sendo provavelmente
beneficiados pelos senhores desde que permanecessem na propriedade em que se
encontravam. Das cartas de alforrias concedidas a indivíduos que se encontravam
nessa faixa etária, destacamos a do liberto Paulo, que com idade de 29 anos,
recebeu sua carta de liberdade sem cláusula ou condição. Embora reduzidas e
ainda mais restritas se consideradas em relação às demais cartas e à população do
município, as manumissões incondicionadas que se referem à fidelidade, bom
serviço, gratidão, demonstram uma preocupação do proprietário para com o seu
cativo. Em alguns desses casos, podemos, inclusive, questionar a possibilidade de
laços consangüíneos, ainda que o mesmo não seja declarado nas cartas.
O que ocorreu com o escravo Paulo foi um fato raro, pois o período era de
escassez de mão-de-obra e expansão agrícola. Nessas condições, o fazendeiro
buscava de todas as formas manter ao seu lado os escravos jovens, qualificados,
dificilmente substituíveis. A região era rural e a grande maioria de cativos estava
inserida no contexto da grande lavoura, trabalhando no serviço de eito.
Provavelmente, escravos do sexo masculino e em idade como a de Paulo não
89
seriam libertados incondicionalmente. Ele foi uma das raras exceções à regra do
município de o Paulo de Muriaé.
Em uma outra região da Zona da Mata, Cataguases, no período de 1870 a
1888, a pesquisadora Silvana Fanni conclui que o liberto, na localidade, tamm
estava em idade produtiva as pessoas em condões de trabalho superavam as
de idade avançada.
182
No município de Juiz de Fora, também na Zona da Mata
Mineira, no período de 1850 a 1888, Antônio Henrique Duarte Lacerda
183
constatou a predominância das cartas concedidas para adultos em idade de
produção.
Apesar da semelhaa entre os municípios da Zona da Mata Mineira,
havia uma diferença peculiar ao município de Muriaé. Enquanto Juiz de Fora era
uma área de grandes plantéis por propriedade, Muriaé contava com pequenos,
mas nem por isso os fazendeiros foram menos resistentes ao fim da abolão.
Pelo contrário, eles demonstraram, através das cartas de alforrias, que
buscaram resistir a todas as formas de mudança, não abrindo mão do direito
de posse sobre os cativos. Mesmo concedendo alforrias, os fazendeiros
garantiram o trabalhador necesrio à sua propriedade. Os escravos, em
Muriaé, não tiveram alternativas senão aceitar as imposições e o autoritarismo
dos fazendeiros que prevaleceram até após a proclamação da abolão.
Os libertos, em Muriaé, eram jovens e estavam em idade de produção.
Essa afirmativa, contundente, obtida através da leitura das manumissões,
contradiz o padrão estabelecido por Gorender. Segundo ele, a preferência na
concessão de manumises era para os escravos idosos e doentes, como forma
182
FANNI, Silvana. Cataguases no século XIX. In Seminário de História Econômica e Social da
Zona da Mata Mineira. In Juiz de Fora (MG) – Anais CES, 2005. Disponível em CD-Room.
183
LACERDA, Antônio Henrique Duarte. Expansão cafeeira, demografia e os caminhos da
liberdade em Juiz de Fora. In. 1.º Seminário de História econômica e social da Zona da Mata
Mineira. I : 2005, Juiz de Fora (MG). Anais... CES, 2005.
90
de livrar-se dos encargos sobre os mesmos
184
, ao contrário do verificado no
município de Muri.
Das 65 cartas de alforrias concedidas a adultos em Muriaé, dezoito não
apresentam definição ou citam a profissão do liberto; nas demais aparece apenas a
ocupação de roceiro, doméstico, carpinteiro.
Acreditamos que as cartas que não identificaram ou citaram a profissão do
liberto, poderiam ser também ligadas a uma atividade agrícola. O restrito número de
profissões que encontramos não foi surpresa, pois a principal atividade econômica
do município era a agricultura, daí não encontrarmos escravos qualificados em
outras profissões, como tecelões, ourives, etc. Esse fato não foi uma característica
comum a toda a Zona da Mata Mineira. Andrade, em Juiz de Fora, observou
registros de profissões variadas entre os cativos: profissionais manuais ou
mecânicos, lavradores, criados, jornaleiros, serviços domésticos e parteiras,
entretanto houve predominância dos lavradores.
185
59% das cartas identificavam o liberto como roceiro. Não fica evidente a
atividade que esse liberto fazia no campo, mas entendemos que tudo o que fosse
necessário à produção agrícola, o roceiro realizava. 17% dos libertos eram
domésticos. Essa afirmativa contradiz as pesquisas realizadas por Karasch,
Gorender e Mattoso com relação aos beneficiados pelas alforrias. Eles afirmam que
o escravo doméstico era mais favorecido com a possibilidade de alcançar a
liberdade, mas, em Muriaé, uma nova realidade nos foi apresentada pela análise das
manumissões. Os escravos roceiros foram beneficiados em relação aos demais. O
destino destes novos libertos provavelmente foi diferente dos pesquisados por
184
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. 6. ed. São Paulo : Ática, 2001, p. 355.
185
ANDRADE, Rômulo Garcia. Limites impostos pela escravidão à comunidade escrava, Zona
da Mata de MG, século XIX. Tese de Doutorado. USP, 1995, p. 181.
91
Karasch, Gorender e Mattoso, reforçando nossa hipótese de que as alforrias foram
instrumentos usados pelos fazendeiros em um período de crise.
Ao analisar as cartas em que a qualificação do cativo não ficou declarada,
mas que os motivos enunciados para a sua concessão permitem estabelecer um
vínculo de afetividade, constatamos que as mulheres foram mais favorecidas pelas
funções que ocupavam. Algumas delas trabalhavam diretamente com a família do
proprietário, cuidando das tarefas domésticas e dos filhos dos fazendeiros. Muitas
mulheres se beneficiaram por terem amamentado ou criado o proprietário, seus
filhos e até mesmo os netos. A escrava Antonia, 41 anos, foi alforriada pelo
proprietário Joaquim José Dávila, pelos bons serviços prestados. A carta, concedida
a esta escrava de forma incondicional, não especifica a sua profissão, mas os
motivos deixam bem claros os laços de fidelidade e aproximação da escrava com a
família do proprietário. O exemplo é uma das raras exceções de carta encontrada no
município de Muriaé.
O período estabelecido pelo proprietário para o cumprimento da condição
imposta pela carta era muito variável, de 8 até 15 anos. Entretanto, pela tabela
percebemos que preferencialmente o tempo médio estabelecido variava entre 9 e 11
anos.
Tabela 17
Período de trabalho estabelecido pelas cartas de alforria
Número de cartas 01 13 15 12 05 13 0 01
Período de Trabalho 08
anos
09
anos
10
anos
11
anos
12
anos
13
anos
14
anos
15
anos
Porcentagem de cartas 1% 22% 26% 20% 8% 22% 0% 1%
Fonte: Cartório de 1.º ofício de Muriaé e Cachoeira Alegre
Em apenas uma das cartas encontramos o tempo previsto de 08 anos, o da
liberta Sebastiana. Apesar de ser o menor tempo previsto para alcançar a sua
92
liberdade, Sebastiana provavelmente obteve definitivamente sua alforria com a
Lei Áurea, pois a data do documento da liberta era de 1882.
“Eu abaixo assinado, digo affirmado declaro que a minha escrava
Sebastiana, veinte seis anos, parda, casada com José Onofre, roceira,
natural do Pomba, fica gozando de sua inteira liberdade como de ventre livre
nascesse de hora em diante como hum cidao, com a condição de
continuar prestando seus servos por um prazo de oito anos. Por achar ela
merecedora mandei passar a carta de liberdade sem constrangimento
algum, pedi ao Senhor Modesto Fernandes da Rocha que esta carta de
liberdade passasse a qual me assgno em prezea de testemunhas.
São Paulo do Muriaé, onze de julho de mil oitocentos e oitenta e dois...
186
É pela data que concluímos que Sebastiana não foi liberta, pois apesar do
tempo estabelecido pela sua carta ser inferior ao dos demais, ela somente foi liberta
com a abolição. No entanto, encontramos três alforriados que obtiveram suas
respectivas cartas definitivas após o cumprimento da prestação de serviço ao
proprietário.
O escravo Januário, 29 anos, pardo, roceiro, obteve sua liberdade com a
condição de prestar doze anos de trabalho. Seu proprietário concedeu sua alforria
condicionada no dia doze de abril de mil oitocentos e sessenta e dois. Sendo assim,
em mil oitocentos e setenta e quatro, ou seja, quatorze anos antes da Lei Áurea, ele
estava liberto. O mesmo fato ocorreu com a escrava Mariana e o escravo Bento. O
destino destes três libertos, o que faziam, como viviam, são perguntas que com a
presente documentação não é possível responder.
Por se tratar de uma região cafeeira nova e de economia ascendente, os
fazendeiros de São Paulo do Muriaé tentavam, com esse tipo de alforria, manter os
escravos e mesmo os forros recém-libertados em suas propriedades. Acreditamos
que a maior parte dos alforriados permaneceram por muitos anos nas fazendas,
transformados em agregados aos fazendeiros, mesmo após a abolição, como
exemplifica Vilma Almada.
186
Fonte: Cartório de 1.º ofício de Muriaé. Livro de notas n.2 p.23
93
“Por tratar-se de uma rego cafeeira nova e de economia
ascendente em 1888, os efeitos da abolição o foram significativos na
província. Isso nos leva a crer que, medidas tomadas anteriormente a essa
data, no que se refere ao aproveitamento nas fazendas de café de mão-de-
obra o apenas estrangeira e de nacionais, mas também de libertos,
agiram no sentido de preparar o caminho para a abolão.
187
A historiadora Ana Lanna
188
, confirma que o fluxo de imigrantes que chegou à
Zona da Mata Mineira durante o século XIX, foi menor do que o que chegou a outras
áreas do país, principalmente na região sudeste. Com exceção da Zona da Mata, a
demanda por mão-de-obra era constante, o que levou à absorção de maior número
de trabalhadores livres. Entretanto, no município de Muriaé, acreditamos que o
número de libertos atendeu à necessidade e à exigência dos proprietários de terra.
Provavelmente esses libertos foram-se mesclando com a sociedade livre pobre,
ocupando um espaço na sociedade muriaeense, mas dependentes dos grandes
proprietários.
Os efeitos da abolição aparentemente não foram sentidos no município de
Muriaé, que continuou sua expansão agrícola até 1920. A produção cafeeira e de
outros cultivos agrícolas promoveu o crescimento da localidade até os anos 30.
189
Alguns fazendeiros destacaram-se economicamente em toda a província com
uma produção agrícola diversificada e principalmente com lavouras de café.
Com o título de alforria nas mãos, o forro passou a vivenciar sua liberdade em
um período em que as leis e as instituições abolicionistas estavam a seu favor. No
entanto, na sociedade muriaeense da última década escravista, ser forro, liberto,
alforriado, não fazia muita diferença. E, como Kátia Mattoso, acreditamos que para o
escravo trabalhar por conta própria era quase impossível.
190
187
ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e transição: O Espírito Santo (1850/1888). Rio
de Janeiro: Graal, 1984, p.187.
188
LANNA, Ana. A organização do trabalho livre na Zona da Mata Mineira, 1870 – 1920. V Anais
da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 1986, p. 116
189
Revista historiográfica muriaeense. n.2, , Muriaé – MG.
190
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p.190.
94
O alforriado que conseguia ficar nos domínios do antigo senhor acreditava
estar com o futuro garantido para ele e para seus entes queridos. O antigo senhor
continuava sendo para o liberto um ponto de referência, alguém que no futuro
poderia lhe prestar um auxílio.
As relações de dependência quase sempre eram fortalecidas pela
instituição do compadrio: Os vínculos estabelecidos entre padrinhos e afilhados
eram tão ou mais fortes que os da consangüinidade. O afilhado ajudava o
padrinho em tudo que este necessitava....
191
Legalmente para o liberto que quisesse ajudar seus parentes a adquirir a
liberdade, até 1888 a alforria era a única solão e isso poderia influenciar na
decio do mesmo em permanecer mais tempo na região.
Ao permanecer na região e dependendo do seu antigo dono, o liberto
raramente conseguia alterões em sua condição de vida.
192
Os libertos em Muri permaneceram trabalhando como meeiros ou
jornaleiros para os fazendeiros. Durante o período da colheita, poderiam viajar
pelas propriedades à procura de emprego, com o objetivo de prestar um
determinado serviço, ajudar em uma construção, carregar produtos, etc. Para ele,
era necessário buscar alternativas que o levassem a conseguir meios financeiros
para a sua sobrevivência e, quem sabe, acumular um pouco de capital na
tentativa de, no futuro, ficar independente do antigo senhor.
A população livre, pobre em sua maior parte, identificada
como mesta pelos recenseamentos da época, tornara-se
majoritária durante o século XIX, principalmente por causa da
libertação por fórmulas diversas, de escravos e seus descendentes,
garantindo sua sobrevivência, prioritariamente, explorando
191
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho Franco. Homens livres na ordem escravocrata. 4. ed.
Editora da UNESP. 1997.
192
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo :
Companhia das Letras, 2000, p. 472.
95
pequenas roças de subsisncias com o trabalho familiar em terra
alheia ou devoluta.
193
A análise da autora nos permite concluir que o liberto buscou todo o tipo de
trabalho possível para custear e manter a sua liberdade, integrando-se à sociedade
local como trabalhador braçal, meeiro e lavrador de pequenas roças cedidas pelos
proprietários locais.
A liberdade trouxe para o liberto uma satisfação moral de dignidade
recuperada, mesmo que para obtê-la ele tenha pagado com o seu trabalho ou de
outras formas.
194
As condições impostas ao liberto foram estabelecidas pelo fazendeiro que
buscava de todas as formas manter vínculos com o ex-escravo, pois este foi
moldado nos padrões que atendiam aos interesses do senhor com relação ao
trabalho, condição social e fidelidade. Mas, para o liberto, esta submissão fazia parte
de uma tática para a conquista de sua aceitação na sociedade. O que para o
fazendeiro parecia um instrumento de controle social, para o liberto era um
instrumento de luta pela liberdade e conquista de sua cidadania.
193
CASTRO, Hebe Maria Mattos de. A escravidão fora das grandes unidades exportadoras. In:
CARDOSO, Ciro Flamarion (org.) Escravidão e abolição no Brasil: Novas perspectivas. Rio de
Janeiro : Zahar, 1988, p. 31-53
194
MATTOSO, tia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. 3. ed. Editora Brasiliense, 1990, p. 212.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do estudo, podemos compreender a dinâmica social de uma região que
de ser caracterizada como uma área de grande prodão agrícola, que o vivia
apenas da monocultura do ca, mas uma agricultura diversificada, que atendia ao
mercado interno e externo da província. Essa rego, o Paulo do Muri, localizada
no leste da Zona da Mata Mineira, atingiu sua expano econômica a partir da segunda
metade do século XIX, período em que se processavam grandes transformações
sociais.
A o-de-obra escrava predominava na região e era composta de pequenos
plantéis sustentados pelo tráfico. A proibão do tráfico internacional, a partir de 1850,
gerou vários problemas para os fazendeiros, que buscaram solões para a demanda
da o-de-obra. Em um primeiro momento, os fazendeiros utilizaram do tráfico
interprovincial, mas, com as pressões abolicionistas, eles buscaram nas cartas de
alforria uma estratégia para garantir a o-de-obra escrava e reduzir as pressões
abolicionistas sobre a região.
A partir de um paralelo com outros municípios vizinhos, observamos que a
demanda de mão-de-obra não era exclusividade de São Paulo do Muriaé, mas afetava
outros grandes produtores agrícolas.
A concessão de cartas de alforrias no município de São Paulo do Muri foi
constante, entretanto concluímos que, na última década, precisamente entre os anos de
1878 a 1888, as mesmas ocorreram em maior proporção. No município foram
encontrados dois padrões de cartas de alforria, as condicionadas à prestação de
serviço e as gratuitas, que o apresentavam cusula espefica para o escravo
cumprir a fim de alcançar a tão sonhada liberdade.
97
Os cativos que foram alforriados antes de 1872 tinham suas cartas limitadas pelo
fazendeiro, pois as mesmas poderiam ser revogadas, se os libertandos o
correspondessem às expectativas dos senhores, ou seja, não poderiam ser
considerados livres.
Constatamos que, em o Paulo do Muriaé, as cartas condicionadas à
prestação de serviço foram superiores às cartas gratuitas. Tal fato demonstra que o
cativo somente alcaaria a liberdade após o cumprimento do período de trabalho
estabelecido na carta. Como os períodos variavam, muitos homens e mulheres
permaneceram cativos até a abolição da escravio. Pelos termos contidos nas cartas,
percebemos que os fazendeiros resistentes à abolição e conscientes de que o regime
escravocrata estava chegando ao fim, buscavam nas alforrias condicionadas à
prestação de serviço uma forma de manter o seu plantel submisso e continuar a
produção agrícola, sem necessariamente realizar transformões sociais.
Pelas variantes encontradas nas cartas de alforria em o Paulo do Muriaé,
percebemos que, com relação à cor, os escravos pardos e criollos foram os que mais
receberam o benefício, fato que pode ser explicado pelo grande corcio interprovincial
de escravos. Verificamos também a predilão dos senhores em alforriar o cativo do
sexo feminino, o que pode ser explicado pela possibilidade das mulheres escravas
serem utilizadas tanto no trabalho doméstico quanto na lavoura. Além do mais, a
proximidade com o senhor facilitava às mulheres manter relações íntimas com o
mesmo.
O escravo alforriado em São Paulo do Muri era jovem. Os beneficiados
encontravam-se em maioria na faixa etária de 20 a 30 anos, período de maior
aproveitamento do mesmo para o trabalho.
98
O mero de alforrias concedidas foi relativamente pequeno se considerada a
produção do município e o elevado número da populão servil, o que nos leva a crer
que o fazendeiro apenas concedia um número de alforrias que não representasse
nenhum risco ao sistema e ao seu donio.
O liberto em o Paulo do Muri teve poucas oportunidades de construir sua
indepenncia e cidadania, ficando preso ao antigo senhor devido às poucas
oportunidades de trabalho que o município oferecia. Mesmo depois de alforriado, e
considerado livre de nascea, o forro continuava sendo tratado como um elemento
servil, dependente dos favores do fazendeiro.
É comum, em Muriaé, nos dias atuais, encontrar descendentes de escravos que
permaneceram no campo, trabalhando como agregados, meeiros, servindo a rias
gerações dos proprierios de terra da região.
Elaborar uma conclusão sobre alforriaspara a área pesquisada é muito difícil,
pois o tema envolve muitos questionamentos e, para respon-los, seria necessário
correlacionar as informões contidas nas cartas com outros documentos cartoriais,
como testamentos, invenrios, etc.
É necesrio ampliar as pesquisas e as discussões sobre os afro-descendentes,
aproveitando o momento atual, pois a proposta do MEC para o ensino da história e da
cultura africana e afro-brasileira remeterá o professor a um novo foco do contexto
educacional, empreendendo e colocando em prática o que proe a Lei n. 10.639/03 de
março de 2003. Portanto, será necessário desfazer alguns equívocos e abordagens que
durante vários anos permearam as aulas de história.
O passado não pode ser abordado exclusivamente com os olhos do presente,
mas relacionado ao mesmo, pois esse um dia também foi o presente. Os personagens,
que durante muitos anos foram excluídos, farão parte da história.
99
FONTES MANUSCRITAS
Livros do Arquivo Paroquial São Paulo do Muriaé:
- 1ºa Livro de Batizados : Livres, escravos e administrados 1852 – 1863.
- 1ºb Livro de Batizados : Escravos : 1872 – 1887.
- 2º Livro de Batizados : Livre, escravos e administrados: 1863 – 1886
- 3º Livro de Batizados: livres, escravos e administrados : 1855 – 1888.
Arquivo do Cartório do 1º Ofício Cível de Muriaé:
- Livro de Notas nº 1 – Cartas de Liberdade – período de 1862 – 1864.
- Livro de notas nº 2 – Cartas de Liberdade – período de 1885 – 1888.
Arquivo do Cartório do 1º Ofício Civil de Cachoeira Alegre:
- Livro nº 13 – Cartas de liberdade – período de 1856 a 1874.
100
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