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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS
COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM LETRAS
Isabel Osório Tubino Do Coutto
Discursos Sobre o Amor:
o risco-zero na relação com a alteridade
Orientadora:
Professora Doutora Mariluci Novaes
Niterói
2008
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2
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS INSTITUTO DE LETRAS
COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DOUTORADO EM LETRAS
Isabel Osório Tubino Do Coutto
DISCURSOS SOBRE O AMOR:
O RISCO-ZERO NA RELAÇÃO COM A ALTERIDADE
Tese apresentada ao Departamento de Pós-
Graduação do Instituto de Letras da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito final para obtenção do título de
Doutora em Estudos Lingüísticos sob a
orientação da Professora Doutora Mariluci
Novaes.
Universidade Federal Fluminense
Niterói
2008
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ISABEL OSÓRIO TUBINO DO COUTTO
DISCURSOS SOBRE O AMOR:
O RISCO-ZERO NA RELAÇÃO COM A ALTERIDADE
Tese apresentada ao Departamento de Pós-
Graduação do Instituto de Letras da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito final para obtenção do título de
Doutora em Estudos Lingüísticos sob a
orientação da Professora Doutora Mariluci
Novaes.
Aprovada em agosto de 2008.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Mariluci Novaes Orientadora (UFF)
__________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Márcia Alla Pietroluongo (UFRJ)
__________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Angela Cavalcanti Bernardes (UFF)
__________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Rosane Santos Mauro Monnerat (UFF)
__________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira (UFF)
__________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Jacques de Moraes (UFRJ)
__________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Renata Ciampone Mancini (UFF)
Niterói
2008
4
Para minha família primeira a origem:
A Mário Delgado Tubino, pouco riso e poucas palavras,
mas a presença segura, a certeza, a responsabilidade,
a realidade, o raciocínio, o exemplo, a eterna saudade...
Pai querido, que me deixou a paixão pelos livros.
À Beatriz Osório Tubino, a leveza e a alegria,
a simplicidade e o sentimento. Música e arte.
Sonho e poesia. Doce companhia, sempre bela.
Mãe amada, com quem aprendo todo dia a amar a vida.
À Iria Tubino de Carvalho, irmã minha, querida,
que tão cedo partiu desta vida - tão descontente!
Espero que você seja feliz aí no céu, eternamente,
enquanto eu aqui guardo o amor que nunca disse...
À Olga Maria Tubino de Mattos, a reserva, o silêncio,
a fé na vida e a capacidade de doação. O bom conselho,
o equilíbrio e a dedicação. Quanto se diz no silêncio e
nas entrelinhas? Quanto ainda por dizer, todos os dias?
À Solange Tubino Schuindt, companheira de vida, leal, amiga.
Você é a terra, eu sou o fogo. Você é o feijão, eu sou o sonho...
Aprendemos tanto, uma com a outra,
secamos nossas lágrimas, sorrimos e vamos em frente...
Para a família que eu criei meu chão:
Ao Ricardo, o abraço forte, a mão firme.
O riso, o choro, o medo, a certeza, o risco.
A transparência, verdadeira essência da troca cotidiana.
O meu melhor e o meu pior: o meu amor.
Ao Conrado, faísca, fagulha, ardor constante, vida.
A sagacidade, o humor inteligente, a casa cheia.
Vozes, música, computador, risos, calor.
O amor que tento segurar e não sei como...
À Carla, deliciosa presença em minha vida,
Meu presente-surpresa, minha esperança, meu rumo.
Que fiz eu para ser merecedora
dessa luz tão intensa no meu mundo?
5
AGRADECIMENTOS
À Mariluci, que desde a especialização abriu espaço na sua vida para me receber: em
casa, no computador, nas salas da UFF e até na hora do chope e da coca zero. A você,
muito mais que orientadora, minha admiração, meu carinho e minha eterna gratidão
por ter tornado possível que eu chegasse até aqui.
Aos professores da UFF, pelo muito que aprendi durante esse percurso, em especial à
Professora Rosane Monnerat, tão dedicada e atenciosa desde a época do mestrado, e
que, mais uma vez, gentilmente, aceitou participar da banca.
Às Professoras Angela Bernardes e Márcia Pietroluongo, não somente pelas valiosas
sugestões na qualificação, mas também por integrarem a banca final, fazendo parte da
minha história. Aliás, a Professora Márcia pela terceira vez...
Aos funcionários da UFF, principalmente à Nelma, pela gentileza e boa-vontade com
que sempre fui atendida.
Aos meus alunos que tão carinhosamente cederam as redações que enriquecem este
trabalho e nos enchem de esperanças...
À querida Vanda e ao nosso amigo Jorge, pelo inestimável apoio. Sem vocês eu não
teria conseguido, não há palavras que possam demonstrar meu reconhecimento.
À Cláudia Akamine, sempre doce e prestativa, pela preciosa ajuda com as traduções.
À Luciana, querida, que me possibilitou dar os primeiros passos.
À Liz, pelas orações, pelo ombro amigo e pela risada contagiante.
À Shirlei Victorino, também doutoranda, pelos livros, pela presença amiga, as longas
conversas, a leitura atenta, a escuta, a troca, os conselhos, a opinião valiosa de quem
sabe o que diz.
À Micheline, companheira de doutorado e de orientação, pelas afetuosas palavras de
ânimo durante a caminhada e nas vezes em que pensei em desistir.
À Solange, pelo “escritório” que me deixou montar em sua casa.
Ao Conrado pela ajuda com a digitação e impressão.
À Maria. Sempre.
6
Ela une todas as coisas
Como eu poderia explicar
Um doce mistério de rio
Com a transparência de um mar?
Ela une todas as coisas
Quantos elementos vão lá...
Sentimento fundo de água
Com toda leveza do ar
Ela está em todas as coisas
Até no vazio que me dá
Quando vejo a tarde cair
E ela não está
Talvez ela saiba de cor
Tudo que eu preciso sentir
Pedra preciosa de olhar!
Ela só precisa existir
Para me completar
Ela une o mar
Com o meu olhar
Ela só precisa existir
Pra me completar
Ela une as quatro estações
Une dois caminhos num só
Sempre que eu me vejo perdido
Une amigos ao meu redor
Ela está em todas as coisas
Até no vazio que me dá
Quando vejo a tarde cair
E ela não está
Talvez ela saiba de cor
Tudo que eu preciso sentir
Pedra preciosa de olhar!
Ela só precisa existir
Para me completar
Ela une o mar
Com o meu olhar
Ela só precisa existir
Pra me completar
Une o meu viver
Com o seu viver
Ela só precisa existir
Para me completar
(Jorge Vercilo)
7
SUMÁRIO
RESUMO ........................................................................................................ 08
ABSTRACT ............................................................................................................ 09
INTRODUÇÃO .............................................................................................. 10
Capítulo 1 O AMOR NA AGENDA DO HOMEM CONTEMPORÂNEO ....... 22
1.1 - O Homem Contemporâneo ....................................................................... 24
1.2 – O Papel da Mídia no Cumprimento da Agenda do Homem
Contemporâneo ........................................................................................ 40
Capítulo 2 DOIS DISCURSOS SOBRE O AMOR .............................................. 69
2.1 - O Amor e Sua Química ........................................................................... 76
2.2 – O Amor e as Expectativas Culturais ...................................................... 108
Capítulo 3 A IMPOSSIBILIDADE DO RISCO-ZERO NO AMOR ................. 144
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 169
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 174
ANEXOS ................................................................................................................. 181
8
RESUMO
Esta tese trata dos discursos sobre o amor na contemporaneidade, quando
a auto-identidade se traduz em um projeto pessoal reflexivamente organizado.
Impelido a conduzir sua trajetória pessoal, o homem contemporâneo parece
construir uma agenda para si, com a obrigatoriedade de ser feliz em todos os
segmentos de sua existência. O amor seria um item a mais, aparecendo como
elemento principal, com a tarefa de trazer sentido e satisfação à vida cotidiana.
Nesse processo, o futuro é continuamente ponderado e o homem sofre com a
aferição dos riscos que precisa eliminar. A mídia surge como elemento fundamental
nessa dinâmica, uma vez que é a mediadora entre o homem e a informação, a
detentora do saber, capaz de criar a realidade. Através dela, são observadas duas
vertentes discursivas que pretendem justificar o amor de duas formas: biológica e
culturalmente. Mas que homem é esse que recebe duas perspectivas tão distintas
concomitantemente? Para responder a essa questão são observadas redações
escolares de adolescentes do 9º ano do ensino fundamental, que refletem em suas
palavras o comportamento e as expectativas amorosas de uma época marcada
pela informação e pelo narcisismo. Os discursos sobre o amor na atualidade
apontam para a existência de um homem amedrontado que procura a auto-
preservação a qualquer custo, mas que quer amar. Eis então o grande paradoxo da
contemporaneidade: amar sem correr riscos.
Palavras-chave: discurso amor sujeito contemporâneo - psicanálise
9
ABSTRACT
This doctoral thesis is about love discourses in modern times, when self-
identity melts into a personal project reflectively organized. Impelled to conduct his
personal trajectory, the modern man seems to build an agenda for himself, with an
obligatory feeling, that he has to be happy in all his existence segments. Love would
be one more item, viewed as the main element, which has as its main goal to bring
meaning and satisfaction to daily life. In this process, the future is continually thought
over and man suffers when he has to decide on the risks he needs to eliminate. The
media appear as a key element in this process, once they are the mediator between
man and information, they are the one that possesses the knowledge, capable of
creating reality. Through the means of communication, we observe two discursive
paths which intend to classify love in two categories: biologic and culturally. But who
is man who receives two distinct perspectives at the same time? To answer this
question, we analyzed nine graders’ compositions, these essays are a reflexion of the
behavior and love expectancies of a time marked by narcissism. The love discourses
in modern times point at the existence of a fearful man who searches for self-
preservation at any cost, but who at the same time, wants to experience love. So,
that’s the great paradox of modern times: to love without taking any risks.
Key words: discourse love modern subject psychoanalysis
10
INTRODUÇÃO
Os estudos dos discursos sobre o amor, iniciados por ocasião da Dissertação
de Mestrado (O Amor em Palavras o discurso amoroso em questão, dissertação
inédita, UFF, 2003), são retomados nesta tese a partir da relação do homem
contemporâneo com o desejo de amar e ser amado. Aparentemente há duas vertentes
discursivas que propõem soluções para os sucessos e fracassos na conquista amorosa:
uma de ordem biológica o amor seria determinado por substâncias químicas
produzidas no cérebro e outra, de ordem cultural o amor e seus efeitos são
determinados por injunções ideológicas de controle numa sociedade do espetáculo.
O tema faz parte de nosso Zeitgeist espírito de nossa época -, uma época em
que o homem contemporâneo quer soluções rápidas para o sofrimento psíquico
inerente à falta ou à própria experiência amorosa. Para atender a essa demanda de
respostas, proliferam na mídia em geral, e em particular na mídia impressa, artigos e
livros que trazem para o leitor a ilusão de que os sofrimentos derivados das relações
amorosas são determinados por fatores externos aos sujeitos (seja pela desordem
química cerebral, seja pelas crenças determinantes de como se ama), sujeitos de
linguagem que têm de se haver com suas escolhas libidinais e suportar as
conseqüências de seus desejos frente ao outro. O homem contemporâneo não quer
sofrer.
Na ocasião da dissertação, através da análise de produções textuais de alunos
de 7ª e 8ª séries do ensino fundamental de uma escola pública de Niterói, Rio de
Janeiro, privilegiei o viés das crenças e das formações discursivas que se
materializavam culturalmente, e associavam o amor à dor, à abnegação, à morte, à
possessividade, à insanidade, entre outras imagens, e o incumbiam de uma difícil e
impossível tarefa: promover a felicidade humana. Apoiada pelos verbetes
11
apresentados por Barthes sobre o amor em seu Fragmentos de um Discurso Amoroso
(2000) e pelos diálogos de O Banquete, de Platão (1999), procurei mostrar nos textos
dos alunos a repetição de figuras e imagens que se vinculavam ao amor, fazendo do
discurso amoroso um discurso gasto e repetitivo que, cheio de lugares-comuns,
constituía-se de idealização e de desejo, e se consolidava num imaginário
socialmente compartilhado.
Naquela ocasião, concluí que os adolescentes, embora com pouca vivência,
deixavam transparecer em seus textos a contradição que cerca os discursos sobre o
amor. O amor, enquanto produto da prática social discursiva, atravessou diversas
épocas até chegar ao momento atual: excessivamente divulgado, incentivado e
procurado. Na banalidade das relações amorosas atuais, o ideal romântico repete-se
somente como uma voz de fundo, mas não pode mais fazer eco. Palavras como
sublimação, renúncia e abnegação perdem-se e não fazem o menor sentido numa
sociedade marcada pela tecnologia, pelo consumo, pela agilidade, pela exposição e
mobilização. Abrir mão do quê? Para quê?
Ao produzirem seus textos, os alunos mantinham os ideais do amor
romântico, como, por exemplo, a idéia de que o sujeito enamorado fica fora do seu
juízo normal, a idéia do amor associado à loucura:
“A pessoa que ama de verdade é capaz de fazer qualquer
coisa para conquistar a pessoa amada, até mesmo uma loucura”.
(Viviane, 7ª série, 13 anos).
“A paixão para muitos é loucura porque é uma coisa que
acontece tão rápido e às vezes termina tão rápido, mas também é
uma coisa que acontece rápido e pouco a pouco se torna um grande
e lindo amor”. (Dayane, 7ª série, 13 anos).
Ou então, o ideal do amor romântico transformado em casamento, na
preservação da instituição familiar como célula da sociedade, uma meta, um objetivo
de vida que, após alcançado, faria dele um homem totalmente realizado:
“... tem uma pessoa que um dia eu encontrarei e me casarei com
essa pessoa. (...) Quando eu encontra esse meu amor eu sei que vou
12
ser um homem muito feliz e até posso casar e ter uma grande
família e quando esse dia chega eu já posso morrer em paz”.
(Francisco, 7ª série, 13 anos).
Na presente tese, também são apresentadas redações de alunos da 8ª série,
porém a proposta do trabalho desenvolvido em sala foi diferente. Apesar de os mesmos
textos da época da dissertação de mestrado terem servido de motivação para as
produções textuais, outras leituras foram feitas. Além disso, nas produções finais os
alunos já tinham conhecimento da minha pesquisa. Discutiram sobre o que poderia,
afinal, determinar nossa maneira de amar e procuraram colocar-se em seus textos.
O homem contemporâneo, ou da chamada alta modernidade, conforme as
análises do sociólogo inglês Anthony Giddens (2002), tem uma agenda a ser cumprida:
nascer, crescer, estudar, trabalhar, casar, ter filhos, envelhecer e morrer feliz, realizado.
As expectativas do aluno Francisco em muito se assemelham às características que
Giddens aponta. As instituições modernas e as transformações pelas quais passaram
afetaram diretamente a individualidade humana. O homem contemporâneo estabelece
metas e objetivos - praticamente um roteiro de vida que pretende conduzir com
sucesso. Paradoxalmente, entretanto, esbarra na fragilidade de valores que se
decompõem diariamente na desvinculação com a tradição. Pretende-se reflexivo e
capaz de ser o condutor de sua própria vida, mas a cada novo projeto os “mecanismos
de desencaixe” reformulam sistemas preestabelecidos, modificando drasticamente a
relação tempo-espaço e interferindo em seus projetos pessoais. Na prática, significa
que se Francisco tem como meta absoluta de sua felicidade em vida o casamento e a
constituição de um lar, e se as estatísticas comprovam que os casamentos estão cada
vez menos duradouros, ele terá de reformular seus valores e rever seus projetos de vida
diante de uma possível separação. Isso sem falar que seus ideais são puramente
individualistas, em seus projetos não há lugar para o coletivo nem para o social.
“O eu é visto como um projeto reflexivo, pelo qual o indivíduo é
responsável. [...] Somos não o que somos, mas o que fazemos de nós
mesmos”. (GIDDENS, 2002: 74).
13
As transformações que acontecem em toda e qualquer parte do mundo afetam,
direta ou indiretamente, a vida dos indivíduos, que são expostos, acima de tudo, pelo
desenvolvimento de tecnologias de informação e de meios de comunicação que
permitem estreitar e intensificar as relações entre pessoas e países. Sendo assim, a
configuração atual do mundo globalizado está marcada especialmente por um
expressivo fluxo de informações, cujas facilidades de acesso reconfiguram as noções
de tempo e espaço, interferindo na vida de grupos sociais, coletivamente, e de seus
membros, individualmente. Talvez Francisco já tenha mudado de planos desde que
escreveu sua redação, talvez nem pense mais em casamento, mas suas palavras
registraram seu desejo naquele momento, o desejo de encontrar uma pessoa (especial?
/ predestinada? / a cara-metade?) o que coloca o amor como um objetivo a ser
conquistado na vida. É exatamente dessa maneira que Giddens justifica o amor em
nossos dias, como uma das metas desse homem contemporâneo que, cercado de
dúvidas, precisa ter acesso a todo tipo de informação e possibilidade de aquisição. O
amor seria um bem de consumo, como qualquer outro.
Em tempos de consumo e narcisismo, quando as pessoas se transformam em
objetos consumíveis, sobrevivem vozes de um passado distante que insistem em
delegar ao amor a possibilidade de realização plena ao ser humano. Acreditar no amor
dessa maneira seria simplesmente um engodo. Primeiro, porque em seu vocabulário
herdado do romantismo, o amor traz consigo a idéia de doação e renúncia, que
certamente não se encaixam nos dias de hoje. Segundo, e principalmente, porque
conflito, insatisfação e incompletude são características inerentes ao sujeito. De acordo
com Sócrates (O Banquete) Eros representa o amor pelo corpo do outro e pelo “bem”,
amor pelo discurso verdadeiro e o amor que se pretende possuir e perpetuar. Eros é, em
sua essência, portanto, uma falta. Para a Psicanálise, é exatamente essa falta que nos
permite desejar. O objeto (desejado) é sempre inatingível, algo que o sujeito não
possui, uma ausência que instiga a premência do desejo. Sob a influência de Eros, os
sujeitos debatem-se entre a presença e a ausência do objeto, numa tensão permanente
que os transforma em eternos seres desejantes e insatisfeitos.
De acordo com Freud, os indivíduos conseguem viver de maneira civilizada
porque renunciam à satisfação pulsional. No entanto, para suportar sua frustração, o
sujeito precisa ser recompensado de alguma forma. Hoje, diante da oferta de tantas
possibilidades de consumo, expostas em vitrines e por toda a máquina midiática,
14
objetos comuns são transformados em formas substitutivas de satisfação. E em todos os
lados o que mais se explora é a sexualidade e a possibilidade de felicidade idealizada
pela realização amorosa.
“O amor está no ar” é o título da reportagem de Heloísa Marra, no Caderno Ela,
O Globo, de 10 de março de 2007. O amor aparecia em destaque, uma vez que era o
tema central dos cursos oferecidos, na ocasião, pela Casa do Saber, no Rio de Janeiro, e
também o enredo da produção do cineasta Guel Arraes, numa refilmagem
contemporânea de “Tristão e Isolda”. O tema em destaque no encarte de um dos jornais
de maior circulação era a constatação de que precisava: o amor continua despertando o
interesse humano, na ficção ou na realidade. Um dos ministrantes dos cursos da Casa
do Saber, o professor Auterives Maciel (título do curso: O Amor no Ocidente),
apresentava no curso a saga do amor no Ocidente, desde o pensamento grego (O
Banquete), passando pelo amor cortês, na Idade Média, pelo Romantismo e seu
declínio, até o momento presente, quando se refere aos relacionamentos atuais como
efêmeros e esvaziados. Ele faz o seguinte comentário sobre o amor no momento atual:
“Com os ideais em crise, as relações amorosas estão mais
rápidas do que nunca. O gesto de amar, que seria de doação, é coisa
rara. Hoje o que vale é: o que eu devo fazer para ser amado, o que o
outro deve fazer para ser digno do meu amor. A tolerância na relação
amorosa, poder apreciar o outro como diferença, está sumindo. As
pessoas querem sempre recompensa. Você ama para ter relações
sexuais ou para ascender socialmente. Tem sempre uma meta. Amar
por amar está a cada dia mais cafona diz”. (Maciel in: MARRA,
2007: 4).
Outro aspecto importante que a reportagem apresenta é a informação de que,
no semestre anterior, dos cinqüenta e três cursos oferecidos pela Casa do Saber, o
mais procurado havia sido “Amor, afeto e paixão, segundo Spinoza, Nietzche e
Winnicott”, ministrado pelo professor André Martins. O curso apresentava uma
abordagem sobre o amor sustentada pela Filosofia e pela Psicanálise, na qual o
professor procurava desconstruir a idéia platônica da “outra metade da laranja”,
porque, segundo ele, essa idéia gera o sofrimento humano, já que as pessoas
idealizam encontrar o “encaixe perfeito”.
15
Diante de tantos textos circulando e de tanto interesse pelo amor, percebi que
seria possível continuar estudando o assunto. E, se hoje escrevo a presente tese na
primeira pessoa do singular, certamente não o faço por arrogância ou pretensão, mas
porque as reflexões que aqui faço são fruto de uma inquietação e interpretação
pessoal. O uso da primeira pessoa do plural poderia levar a crer que há um consenso
sobre as questões levantadas. Antes disso, embora procure a seguir dar sustentação ao
trabalho através de exemplos e de conhecimento teórico, pretendo deixar claro que é
uma forma subjetiva de perceber discursos sobre o amor e de como se apresentam
nos tempos atuais.
Nunca se falou tanto de amor. Nunca foram vistas tantas imagens da
felicidade amorosa e do prazer. Imagens vendidas, espalhadas em outdoors, nas
telenovelas, nos sites, nos filmes. Os profissionais de marketing em qualquer
campanha promocional, seja qual for o produto a ser divulgado, servem-se do ideal
amoroso, em diferentes abordagens, com o intuito de despertar o desejo do
consumidor. O desejo, que não se satisfaz, é o combustível utilizado para conduzir os
indivíduos em suas buscas infinitas de realização, especialmente no que diz respeito
ao amor. No Brasil, na realidade diária dos folhetins televisivos, ele é o tema central
de todos os enredos. Mesmo fora da tela, quando revistas (como a Caras, Contigo,
Quem, entre outras) sustentam-se pela veiculação maciça de imagens que
representam, na vida real (real?), o ideal de felicidade de inúmeros artistas. Angélicas
e Lucianos Hucks, sempre sorridentes, mostrando sua casa, seu bebê, sua felicidade.
A idealização de uma fórmula de felicidade inexistente, um espetáculo apresentado à
população brasileira, que, curiosamente, alimenta-se desses sonhos, ao mesmo tempo
em que (re)alimenta, continuamente, a máquina que a sustenta. Em tempos de
consumo, continua valendo a velha lei da oferta e da procura.
O momento presente aparece denominado de muitas maneiras na bibliografia
consultada - Hipermodernidade, Alta Modernidade, Pós-Modernidade, Pós-Humano,
Cibercultura, Era Digital e por aí em diante. Parece que no momento atual,
independente do nome que lhe dêem, o homem delegou ao amor o lugar de “tábua de
salvação”. O amor, que ainda circula envolto pelas expressões gastas da literatura
romântica, reafirmando idéias de um tempo tão distante, surge, ao mesmo tempo, em
cenas de sexo que vão ao ar cada vez mais cedo. E, nos intervalos entre os folhetins
televisivos, as propagandas contradizem nossa herança idealizada, mostrando modelos
16
sem camisa tirando as calças jeans, sugerindo uma relação amorosa rápida e
descompromissada, a satisfação do instinto sexual, o desejo que o jeans despertou e
que pode ser satisfeito. Cervejas tão “gostosas” que se comparam a mulheres. “A boa”,
slogan utilizado pela Antártica para promover a bebida preferida dos brasileiros, é a
cerveja e ao mesmo tempo a modelo e atriz Juliana Paes. Mulheres e bebidas bens de
consumo. Mas, certamente, isso não é novidade. Há muito as campanhas de
automóveis utilizam belas mulheres ao lado de veículos. Desde os anos 60, as imagens
das mulheres foram desvinculadas, paulatinamente, dos refrigeradores e dos
liquidificadores (que eram igualmente bens de consumo, mas ainda aliavam a imagem
da mulher ao lar, como mãe e dona-de-casa) para apresentarem-se mais voltadas a
despertar o interesse masculino: futebol, cerveja, carro e mulher. Por que, então,
contraditoriamente, o discurso amoroso se sustenta com palavras gastas e repetitivas, se
há muito já foi adotado um novo modelo comportamental?
No viés de contradição do discurso sobre o amor, como objeto de crenças e
valores, a ciência hoje ocupa lugar e papel de destaque, como detentora do saber e de
todas as respostas. Vale o que é empírico. Qualquer hipótese deve ser comprovada.
Tudo pode ser quimicamente tratado. Proliferam medicamentos que apostam na cura
dos mais variados males, de diferentes causas. E que lugar a ciência reservou ao amor?
A Revista National Geographic de fevereiro de 2006, por exemplo, trazia na capa a
seguinte manchete: A Química do Amor Por que amamos? E logo nas primeiras
páginas da reportagem já se podia perceber a intenção do redator: apresentar o amor
como sintoma ou efeito biológico. O amor enquanto resultado de elementos químicos
corporais que pouco ou nada tem a ver com comportamento, meio social, crença ou
emoção, mas a conseqüência metabólica de substâncias químicas em maior ou menor
quantidade.
As substâncias no cérebro que desencadeiam o romance são
bem diferentes das que favorecem o apego de longo prazo, segundo as
últimas pesquisas. Assim começamos a entender o que é essa coisa
chamada AMOR. (SLATER, 2006).
A pesquisadora consultada, a antropóloga americana Helen Fisher, foi
entrevistada não somente pela Revista National Geographic, mas por outras, como a
17
Revista Aventuras na História de maio de 2006, em cuja capa apareciam os dizeres:
“Uma História do Amor Descubra por que esse sentimento influencia a
humanidade desde as civilizações mais antigas. E como ele mudou o mundo”
1
para
despertar o interesse pela reportagem “Todos Dizem Eu Te Amo”, de Lia Hama, nas
páginas internas. A revista publicada pelo jornal O Globo aos domingos, de 11 de
junho de 2006, chamava a atenção dos leitores com sua manchete na capa: “A
Química do Cupido - Cientistas desvendam como a paixão comanda o cérebro”, e a
reportagem, “A Biologia do Amor”, assinada por Roberta Jansen, também
apresentava depoimentos de Fisher e a indicação de seu livro. E mais: quando a
palavra é “amor”, o Google nos oferece inúmeros artigos e, em sua maioria, o nome
da antropóloga está presente.
Reconhecida pela mídia como cientista capacitada para apresentar
depoimentos quando o assunto é o amor e sua química, elegi sua obra Por que
Amamos a natureza e a química do amor romântico (Ed. Record, 2006) como um
dos objetos de análise para o presente trabalho. Em contrapartida, com o olhar
aguçado, assisti a algumas edições do programa Café Filosófico, apresentado pela TV
Cultura, nos quais psicanalistas e psiquiatras brasileiros consagrados defendiam uma
determinada tese sobre o amor: Sexualidade, com Flávio Gikovate; A Paixão Vista
pelo Enamorado, com Jurandir Freire Costa; e Casamentos Sucessivos, com Maria
Rita Kehl. Os três psicanalistas, embora apresentem alguns pontos divergentes em
suas teses, são unânimes ao apontar os conflitos que envolvem o sujeito
contemporâneo e que convergem na angústia de suas queixas na prática cotidiana de
seus consultórios.
Mesmo diante de toda a facilidade que as novas tecnologias oferecem ao
sujeito, ainda existe dor e sofrimento. É quase sempre o amor o desencadeador do
conflito humano, na diversidade das relações afetivas. O homem sonha e sofre. Esses
programas da TV Cultura não serão analisados nesta tese, cito-os apenas como fonte
inspiradora, pois serviram para que eu pudesse observar uma outra tendência para se
enfocar o amor. Uma tendência que se sustenta culturalmente e que determina
padrões comportamentais. Além de diversos textos em revistas e jornais, crônicas e
reportagens, outro programa da TV Cultura foi importante nessa pesquisa seletiva. O
1
Após apresentar o amor através dos tempos, havia, na seqüência, o “Post-scriptum”, que citava o
livro Contra o Amor Uma Polêmica, e trazia uma entrevista com a autora, Laura Kipnis.
18
“Roda Viva”, de novembro de 2006, apresentou um debate com jornalistas e
psicanalistas, tendo ao centro a escritora Laura Kipnis, autora do livro Contra o Amor
uma Polêmica (2005). No livro, escrito num tom intencionalmente irônico, Kipnis
coloca-se “contra o amor” porque acredita existir uma força, um poder maior que
condiciona os indivíduos à busca da felicidade amorosa. Condicionados, os
indivíduos são quase que coagidos a sair em busca de sua “cara-metade”, ou de sua
“alma gêmea”, o que para a autora não passa de uma armadilha, já que nenhum ser
humano pode preencher totalmente as necessidades do outro. Ao conduzir seu texto,
convoca o leitor a identificar-se em variadas situações: casados, solteiros, adúlteros,
todos, de alguma forma, são vítimas dessa “armadilha” a “tirania” da felicidade
amorosa.
Essa pesquisa prévia deixou-me a certeza de que o amor, como fonte de
pesquisa, não se esgota. O que é dito sobre ele? Que discursos sobre o amor chegam
às mãos, aos ouvidos e aos olhos do sujeito contemporâneo? O tema mostra-se
perfeitamente relevante e atual quando é possível observar nas prateleiras das
livrarias conviverem harmônica e simultaneamente duas obras cujas abordagens se
diferem, sendo ambas sucesso de vendas. Por que Amamos A natureza e a química
do amor romântico, de Helen Fisher (2006) e Contra o Amor uma polêmica, de
Laura Kipnis (2005).
A princípio pensei em utilizar como objeto de análise artigos e reportagens de
determinadas revistas ou jornais de grande circulação, mas o trabalho com redações
de alunos para a dissertação de mestrado havia sido muito rico e prazeroso, o que me
levou a observá-los com cuidadosa atenção para ver se poderiam representar o
indivíduo contemporâneo e sua maneira de pensar e agir com relação ao amor. O
primeiro fato a despertar meu interesse foi o hábito de escreverem em sua agenda,
não apenas como planejamento das tarefas a serem desenvolvidas, mas como grande
aliada e testemunha silenciosa de suas vivências. Os adolescentes, em especial as
meninas, utilizam suas agendas como diário e nela colocam livremente suas emoções.
Observei que os meninos, embora não coloquem adesivos como as meninas, nem
mensagens carinhosas de colegas, fazem de sua agenda, e mais freqüentemente de
seu caderno, uso semelhante, com rabiscos, desenhos e confissões íntimas. Seria
maravilhoso ter acesso a essas agendas e cadernos para transformá-los em objetos de
análise, mas duvido muito que os entregassem à professora. De minha parte, também,
19
por questões éticas e respeito à intimidade secreta de cada um, fiz meu planejamento
para trabalhar com as redações produzidas em sala de aula. O segundo fato é que o
amor é o tema preferido da grande maioria, sobre o qual quase sempre discorrem
livremente e com certa facilidade. Por último, concluí que, embora tão jovens, meus
alunos estariam aptos a representar o homem contemporâneo, afinal são o reflexo do
que vivenciam e experimentam através das gerações anteriores e estão no centro de
toda essa dinâmica social, bombardeados diariamente com informações, sons e
imagens.
Como professora de Língua Portuguesa e de Redação de três turmas de 8ª série
(9º ano do ensino fundamental), com seis tempos de aulas semanais em cada uma delas,
tive oportunidade de trabalhar o tema “amor” nas aulas de redação, culminando com as
produções textuais no segundo semestre de 2007. As primeiras redações foram
inspiradas nos mesmos textos das turmas de 2001: primeiro os alunos deveriam
apresentar uma definição para o amor (motivação: texto de Raquel de Queirós, Amor,
In: Castro, 2000: 27-29) e, num segundo momento, suas expectativas amorosas, o que
esperam da pessoa que amam ou que vão amar um dia (motivação: texto de Flávio
Gikovate Uma Nova Maneira de Encarar o Amor, In: Castro, 2000: 32-33). Até
então, os alunos nada sabiam sobre minha pesquisa. Antes da produção do terceiro
texto, levei para a sala de aula os dois livros que me serviram de ponto de partida e lhes
apresentei as idéias de Fisher e de Kipnis. Conversamos muito sobre o que determina
nossa maneira de amar, se amamos hoje como antigamente, se todos os seres humanos
amam da mesma forma em qualquer lugar no mundo, se o amor está ligado ao nosso
corpo e/ou à nossa mente. Lancei algumas perguntas, mas procurei somente escutá-los,
deixando que trocassem suas opiniões para depois colocá-las no papel.
As redações que compõem o corpora foram aqui reproduzidas sem nenhum
tipo de correção, para evitar que as idéias trabalhadas naquele momento, com textos e
discussões, pudessem ser “contaminadas” por qualquer tipo de interferência. Do total
de 308 redações produzidas nas salas de aula, apenas 52o citadas. Encontram-se
reproduzidas no Anexo, na seqüência em que aparecem, juntamente com as três citadas
nesta Introdução, as quais faziam parte da Dissertação de Mestrado. Nesses textos,
proponho-me a observar as duas tendências principais sobre o amor que percebo na
atualidade. Essas tendências, o amor como sentimento natural/biológico e o amor
cultural na sociedade do espetáculo, certamente não são novas. Talvez o que haja de
20
novo seja o fato de ocuparem o mesmo lugar no tempo e no espaço, atendendo a um
homem que acolhe concomitantemente as duas perspectivas.
Cercando-se de todo tipo de informação, o homem atual ainda aposta suas
fichas no amor. Ainda acredita ser ele o responsável pela sua felicidade. O amor, que
conserva seu status social de sentimento maior, aparece na mídia tanto sob um aspecto
como de outro. E esta talvez seja a chave para que se possa compreender a variedade de
textos de diferentes enfoques que satisfazem ao mesmo homem na atualidade: a mídia,
que se propõe a trazer ao homem contemporâneo respostas para as mais variadas
perguntas, mesmo que sejam paradoxais e incompatíveis, mas que poderão trazer-lhe
alguma forma de conforto para tantas dúvidas e angústias.
Os textos que circulam sobre o amor parecem fragmentados, dividem-se entre o
inatingível e o facilmente solucionável. O primeiro marcado historicamente pelo
legado romântico que, transformado, atualiza-se no ideológico social diário, e o
segundo, calcado na ciência e na biologia, deixa vislumbrar uma importante marca da
necessidade humana na contemporaneidade - quando tudo pode e deve ser
cientificamente comprovado. Esses textos só podem circular, no entanto, porque há
uma máquina que sustenta essa circulação.
No primeiro capítulo, pretendo situar o homem em seu momento histórico
atual. O homem contemporâneo, cercado de tecnologia e informação, senhor de si, é o
condutor de sua própria vida. A mídia tem importância substancial como ferramenta
que serve aos propósitos desse homem sedento de soluções práticas cotidianas, dentre
as quais o amor aparece como um item a mais nas exigências de sua agenda.
Ao abordar a mídia e a maneira como o homem contemporâneo é afetado por
ela, discorrerei, no segundo capítulo, sobre duas tendências discursivas fortes presentes
na atualidade que procuram justificar o amor. Através da mídia, o amor pode ser
justificado como efeito químico/biológico, conseqüência da ação de determinadas
substâncias presentes no cérebro. Da mesma forma, circulam textos que justificam o
comportamento amoroso atual como resultado de todo o aprendizado humano ao longo
da história, e o amor, assim compreendido, define-se como conjunto de práticas
culturalmente assimiladas, vinculado, portanto, à temporalidade, ao social e ao
ideológico. No segundo capítulo, apresento fragmentos das obras das duas autoras
americanas (Fisher e Kipnis) como principais representantes dessas duas tendências
21
discursivas, procurando perceber nos textos dos alunos de que maneira essas
representações se materializam.
Estranhamente, essas duas possibilidades de justificar o amor não se conflitam,
ao contrário, dividem pacificamente o espaço midiático alternada e concomitantemente.
Essa convivência harmônica, contudo, aponta uma outra questão: que sujeito é esse que
precisa de tanta informação, que faz tantas perguntas, e ao mesmo tempo se satisfaz
com respostas tão distintas? No terceiro capítulo, procuro apresentar os conflitos do
sujeito na contemporaneidade e sua estranha maneira de amar. Ao que parece, para o
homem contemporâneo o amor está enraizado em sua própria individualidade e o
sujeito é sempre agente e paciente numa relação de mão única. O outro só tem valor na
medida em que satisfaz seus desejos e atende às suas expectativas de sucesso e
felicidade programadas em sua agenda. Como acredita ser o ator principal em sua
trajetória de vida, coloca a felicidade amorosa como algo a ser conquistado ou
adquirido e atribui a si mesmo o mérito quando tem suas expectativas atendidas.
Entretanto, quando suas expectativas são frustradas, credita o fracasso a fatores que
fogem ao seu próprio controle, como a ação de determinadas substâncias químicas
cerebrais em desequilíbrio e/ou em conseqüência de injunções culturais que o culpam
por não ter agido de acordo com as demandas sociais.
22
CAPÍTULO 1 - O AMOR NA AGENDA DO HOMEM CONTEMPORÂNEO
Não se pode deixar de lado a importância do estabelecimento de vínculos nas
relações humanas. O homem se constitui sempre a partir do outro. Toda a teoria
freudiana está respaldada na elaboração de um esquema analítico que aborda o
indivíduo na constituição de sua alteridade.
No entanto, o momento atual apresenta características próprias que não podem
deixar de ser mencionadas. Tantas transformações na vida social cotidiana trouxeram
profundas e irreversíveis mudanças nas atividades pessoais. O indivíduo, hoje,
percebe-se como construtor e narrador de sua própria trajetória de vida, atribuindo a
si mesmo o controle de seu presente na tentativa de “colonizar” seu futuro.
As teorias aqui apresentadas são convergentes quando atribuem ao momento
atual a característica de ser o tempo da sensibilidade, das sensações. Hoje,
desamparado diante de uma gigantesca crise de referências, o indivíduo propõe-se a
encontrar no outro o amparo através do emocional, numa troca que lhe permita
compartilhar sensações e assim acredita resgatar o sentido do que chamamos de
humano. Por isso, ainda, a valorização do amor, e cada vez mais em tempos de
individualização e narcisismo.
23
Mas se pretendo abordar o amor, como defini-lo? Amor romântico? Paixão?
Sexualidade? Não há como negar que a palavra tenha se vulgarizado, banalizada na
pluralidade dos relacionamentos da atualidade. Escolho, então, a definição do amor
segundo o sociólogo polonês Zygmunt Bauman que, a meu ver, melhor define a
realidade das experiências afetivas na contemporaneidade:
“Pode-se supor (mas será uma suposição fundamentada) que
em nossa época cresce rapidamente o número de pessoas que tendem a
chamar de amor mais de uma de suas experiências de vida, que não
garantiriam que o amor que atualmente vivenciam é o último e que têm
a expectativa de viver outras experiências como essa no futuro. Não
devemos nos surpreender se essa suposição se mostrar correta. Afinal,
a definição romântica do amor como ‘até que a morte nos separe’ es
decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo de
vida útil em função da radical alteração das estruturas de parentesco
às quais costumava servir e de onde extraía seu vigor e sua
valorização. Mas o desaparecimento dessa noção significa,
inevitavelmente, a facilitação dos testes pelos quais uma experiência
deve passar para ser chamada de ‘amor’. Em vez de haver mais
pessoas atingindo mais vezes os elevados padrões do amor, esses
padrões foram baixados. Como resultado, o conjunto de experiências
às quais nos referimos com a palavra amor expandiu-se muito. Noites
avulsas de sexo são referidas pelo codinome de fazer amor”.
(BAUMAN, 2003: 19).
A seguir, neste primeiro capítulo, pretendo delinear o perfil do homem
contemporâneo, suas preocupações, suas angústias e suas responsabilidades. Em se
tratando de contemporaneidade e de tantos recursos tecnológicos existentes, abordarei
também a importância, a influência e a ação da mídia na vida humana.
24
1.1 – O Homem Contemporâneo
Vivemos num mundo ágil, de muita informação e acessos fáceis e imediatos.
De acordo com o sociólogo inglês Anthony Giddens, a chegada ao século XXI
apresenta novo modelo institucional que afeta diretamente o homem (cf. Giddens,
2002). Novos modelos de identidade são construídos, porém o indivíduo não é
passivo e inerte, ao contrário, interage diante de tantas ofertas que a
contemporaneidade lhe oferece. Curiosamente, apesar de tanta informação disponível,
o momento presente se caracteriza muito mais pela dúvida do que pela precisão do
conhecimento racional. A dúvida que a todo momento quer respostas. Teses
formuladas por um novo homem: questionador, em dúvida quanto a tudo que o cerca
e quanto a sua própria existência. Assim, vive-se hoje em constante mutação.
Conceitos que se renovam, proposições que são desconstruídas e substituídas
rapidamente.
A identidade do homem contemporâneo é construída a partir de um exercício
constante e permanente de reflexividade, consideradas especialmente as amplas
possibilidades que lhe são apresentadas sucessivamente, o que o conduz a fazer
determinadas escolhas diante da diversidade de opções “lógicas” e “comprovadas” de
que dispõe. Porém, ao deparar-se com a alteração constante dessas “lógicas”, também
ele altera seu pensamento e suas crenças, substituindo-os por novos conceitos
disponíveis.
“Além de sua reflexividade institucional, a vida social moderna
é caracterizada por profundos processos de reorganização do tempo e
do espaço, associados à expansão de mecanismos de desencaixe
mecanismos que deslocam as relações sociais de seus lugares
específicos, recombinando-as através de grandes distâncias no tempo e
no espaço. A reorganização do tempo e do espaço, somada aos
mecanismos de desencaixe, radicaliza e globaliza traços institucionais
preestabelecidos da modernidade; e atua na transformação do
conteúdo e da natureza da vida social cotidiana”. (GIDDENS, 2002:
10).
25
Se a mídia disponibiliza textos sobre os mais variados temas ao homem da
contemporaneidade, é porque este, enquanto leitor, caracteriza-se por uma avidez que
se renova, criando assim um círculo vicioso. Giddens esclarece que esta época
encontra-se caracterizada pela interconexão entre dois pólos de interlocução, calcados
na extensionalidade e na intencionalidade: influências globalizantes de um lado e do
outro as disposições pessoais. Essa interação dialética entre o global e o local, que
paulatinamente conduz a tradição à desvalorização, leva os indivíduos a
reorganizarem seu estilo de vida, sua maneira de ser e de estar no mundo e, acima de
tudo, de relacionar-se. Na tentativa, então, de identificar-se, o indivíduo
contemporâneo gerencia sua própria vida - planejada e organizada reflexivamente, e
esta é uma das características fundamentais da estruturação da auto-identidade na
atualidade.
“O projeto reflexivo do eu, que consiste em manter narrativas
biográficas coerentes, embora continuamente revisadas, tem lugar no
contexto de múltipla escolha filtrada por sistemas abstratos. Na vida
social moderna, a noção de estilo de vida assume um significado
particular. Quanto mais a tradição perde seu domínio, e quanto mais a
vida diária é reconstituída em termos do jogo dialético entre o local e o
global, tanto mais os indivíduos são forçados a escolher um estilo de
vida a partir de uma diversidade de opções”. (GIDDENS, 2002: 12-
13).
Hoje, a reflexividade institucional é um dos motores da modernidade e se
caracteriza pela ação midiática sistemática, com espaço próprio e relativamente
autônomo. O uso sistemático da informação através de formas híbridas vigentes tende
a transformar a realidade vivida sucessivamente. As formas interativas presentes
agora funcionam como reflexo que se torna real. A ação midiática pode criar a
realidade, a partir de signos e de simulacros.
Se a linguagem humana é a mediadora de toda e qualquer experiência e é o
que nos permite pensar, existir, comunicar e fazer história, a imprensa, de acordo com
seu papel em cada momento e lugar e conforme os recursos tecnológicos de que se
utiliza, vai testemunhar e determinar o “espírito da época”. Historicamente, os
26
veículos de comunicação foram sendo substituídos conforme a tecnologia e a
eficiência dos mais recentes. As novas tecnologias existentes, como varreduras
cerebrais
2
, começaram a fazer parte do cotidiano das pessoas e gradativamente as
variações e as possibilidades de utilização foram se estendendo. Mapear o cérebro de
indivíduos apaixonados é uma possibilidade recente em termos tecnológicos, mas não
chega a causar estranhamento depois das experiências de clonagem e tantas outras no
campo da genética, por exemplo. Contudo, Fisher (2006) não consegue se livrar das
velhas referências à literatura universal (conforme a pesquisa de Fisher a ser tratada
com mais detalhes, no capítulo 2).
A mídia é mediadora da experiência, uma vez que é capaz de criar a realidade,
ou o sentido de realidade, e, dessa maneira, interfere no pensamento, no sentimento e
no comportamento humano “... a influência de acontecimentos distantes sobre
eventos próximos, e sobre as intimidades do eu, se torna cada vez mais comum”
(Giddens, 2002:12).
A informação, portanto, é dispositivo fundamental para o homem, cuja vida
em sociedade está pautada pela racionalidade e pela individualidade. O acesso à
informação é o que vai promover uma certa estabilidade em um tempo marcado pela
instabilidade de valores e de idéias.
O exercício reflexivo oferece ao indivíduo o amparo diante da fragilidade de
tudo o que o cerca, considerados os mecanismos de desencaixe e a reorganização
sucessiva do tempo e do espaço. Como a informação chega através dos meios de
comunicação, é importante entender que também eles passaram por constantes e
severas transformações e se tornaram cada vez mais eficazes para servirem ao homem
na busca da informação segura.
2
Cf. entrevista com neurocientista LENT/UFRJ, cuja argumentação pode servir de contraponto à análise de
Fisher.“[...]As chamadas neuro-tecnologias, que são as técnicas de mapeamento cerebral, de desenvolvimento de
drogas ou implantação de chips que alteram o comportamento humano, sempre estiveram restritas à medicina para
o tratamento e a prevenção de doenças. No entanto, elas passaram a ser usadas no cotidiano das pessoas sem que
exista um questionamento ético sobre o assunto. [...] Contudo, não há regras nem limites éticos para lidar com o
assunto”. (PINHEIRO, 2006).
27
Aliás, a preocupação atual não é somente a de ter informação segura. A mídia
presta serviço ao trazer informações diversas investidas de credibilidade, mas há uma
grande preocupação com segurança, de uma forma geral. O homem procura proteger-
se numa época de oportunidades e riscos.
Ao caracterizar o momento atual como de risco, Giddens aponta um indicativo
marcante da atualidade. Na verdade, em comparação com as gerações passadas, tem-
se muito mais segurança, devido às condições de higiene e saneamento, vacinas,
medicamentos cada vez mais eficazes e tudo mais. Embora o contexto atual tenha
trazido ao homem outros perigos (o trânsito mata milhares de pessoas anualmente, há
maior índice de criminalidade e violência urbana, o desequilíbrio ecológico constitui-
se como uma ameaça premente, alimentos adulterados e contaminados com
fertilizantes químicos etc.), as estatísticas comprovam que a expectativa de vida
aumentou muito e que as novas descobertas e as medidas profiláticas garantem menos
riscos que no passado. Por que, então, Giddens caracteriza o momento atual como de
oportunidades e riscos? Para ele, diante de tanta informação, o homem sofre com o
que pode vir a acontecer. O momento presente caracteriza-se pela ação humana
voltada ao futuro a ser construído. O homem, através de sua ação individual ou das
instituições socialmente organizadas, pretende promover a “colonização do futuro”,
de maneira a evitar riscos, através do “monitoramento reflexivo do risco”.
“A questão não é que a vida cotidiana seja hoje inerentemente
mais arriscada do que em épocas anteriores. É que, nas condições da
modernidade, tanto para leigos quanto para os peritos em campos
específicos, pensar em termos de risco e estimativas de risco é um
exercício quase que permanente, e seu caráter é em parte
imponderável”. (GIDDENS, 2002: 117).
Conhecido por caracterizar o momento presente como “modernidade líquida”,
Bauman explica que o medo que atinge a humanidade hoje é um medo secundário,
que não tem origem em causas concretas (o que possibilitaria ao homem seu
enfrentamento), mas uma sensação de insegurança permanente oriunda da
suscetibilidade ao perigo. (cf. Bauman, 2008).
28
O medo na atualidade está presente em toda parte e pode ser de naturezas
diferentes (os que ameaçam o corpo e as propriedades ou os que ameaçam a ordem
social, por exemplo), mas isso não significa que o homem viva apavorado e acuado.
O que caracteriza o comportamento contemporâneo é a capacidade de criar
subterfúgios a fim de evitar qualquer eventualidade. Dispositivos inventados e
reinventados oferecidos no comércio e amplamente divulgados, prontos a injetar nos
indivíduos uma confortável sensação de segurança. Vendem-se seguros de toda
espécie, e dessa maneira, diante de tanta vulnerabilidade, os indivíduos optam pela
“aparência de proteção”.
“A solução atual significa que, em primeiro lugar (na prática, o
único), é do domínio da proteção que alguém hoje deseja e luta por
eliminar o “destino”. É nesse domínio que se luta pelo controle, o
controle total e contínuo esperando desesperançadamente possuir, ou
adquirir, habilidades e recursos suficientes para alcançá-lo, de modo
que a tarefa acabe se revelando realista e cedo ou tarde compense o
investimento”. (BAUMAN, 2008: 180).
Fica evidente aqui a interseção entre os pensamentos de Giddens e Bauman,
na medida em que apresentam o indivíduo da atualidade preocupado em controlar seu
destino e monitorar os riscos à espreita.
Porém, a velocidade com que as coisas se transformam na atualidade
repetidamente aniquila a sensação de confiança e estabilidade. Num cenário de
certezas instáveis e escorregadias (“líquidas”), portanto, os indivíduos agarram-se ao
que podem: informação, muita informação, tecnologia e um plano de vida a ser
cumprido, cuja palavra de ordem é ‘proteger-se’.
Fortemente marcada pelas modificações espaço-temporais, a
contemporaneidade afasta dos indivíduos cada vez mais a sensação de proteção,
aumentando suas incertezas e medos. Social em sua essência, o ser humano precisa
sentir-se parte de um grupo e especialmente de um lugar, um espaço de
reconhecimento para situar-se no mundo. Contudo, as pessoas parecem caminhar para
um espaço cada vez mais inabitável: o “não-lugar”, um espaço “inqualificável”.
29
Ao chamar de não-lugares os espaços que não criam identidade singular
nem relação, a não ser solidão e semelhança”, o antropólogo francês Marc Augé
(1994) já mostrava inquietação com as características da “supermodernidade”,
marcada a partir de três figuras de excesso: a factual (tempo), a espacial (espaço) e a
individualização das referências. A primeira estaria vinculada aos fatos no tempo,
especialmente a partir do século XX quando as guerras e os sistemas totalitaristas
promoveram nos indivíduos uma sensação de fragilidade tão grande que acabaram
por causar a descrença nas grandes narrativas e nos sistemas de interpretação, como
nos regimes de governo e na soberania dos Estados. A segunda figura de excesso é a
própria noção de espaço que se renova pela utilização de transportes cada vez mais
velozes, pela comunicação em tempo simultâneo com imagens e textos e, assim em
conjunto, promove profundas modificações espaço-temporais na vida humana,
principalmente nos centros urbanos, onde as pessoas habitam cada vez mais os “não-
lugares”.
“Os não-lugares são tanto as instalações necessárias à
circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos
rodoviários, aeroportos...) quanto os próprios meios de transporte e os
grandes centros comerciais [...]. Não-lugares por oposição à noção
sociológica de lugar, àquela de cultura localizada no tempo e no
espaço”. (AUGÉ, 1994).
O terceiro aspecto está centrado no próprio homem e se caracteriza pelo
processo de individualização das referências. Cada vez mais as histórias individuais
são explicitamente referidas pela história social, em contrapartida, os pontos de
identificação coletiva são cada vez mais instáveis.
O conceito de “não-lugar”, portanto, não pode ser vinculado à história, pois
esta, na contemporaneidade, está reduzida à informação; nem à identidade, que se
limita hoje a uma referência numérica, seja o número da identidade do indivíduo, do
seu passaporte ou do seu cartão de crédito; nem à relação, uma vez que a alteridade se
constitui na espetacularização (a supremacia da imagem). O “não-lugar” demanda um
usuário, um consumidor que se utiliza de espaços transitórios. É o espaço do
anonimato, capaz de transformar os indivíduos em seres de passagem em seu próprio
30
habitat. Sempre em trânsito, em circulação, aumentam as dificuldades de os
indivíduos criarem vínculos.
Para Augé, portanto, a identidade individual não pode ser dissociada da
identidade coletiva, uma vez que toda representação do indivíduo é, necessariamente,
uma representação do vínculo social. A grande questão é: de que maneira as
coletividades podem (e devem) pensar a identidade e a relação de acordo com as
diferentes formas de identidade (a coletividade em si, o indivíduo na coletividade e o
indivíduo de maneira singular, suas diferenças na alteridade)?
Ao analisar as relações entre o homem e o seu grupo social, Augé já apontava
para uma sociedade em conflito, vítima da “crise do espaço” e da “crise da
alteridade”. Obviamente é uma análise cujo olhar se foca na antropologia, mas a
preocupação com essas “crises” encontra, cada vez mais, repercussão em outras áreas
do pensamento, como na psicanálise.
O psicanalista e psiquiatra francês Charles Melman, fundador da Association
Lacanienne Internationale, não apenas concorda com essas características do homem
contemporâneo, mas também apresenta um outro fator relevante: a necessidade do
gozo. Ao que parece, o homem delega ao consumo e à informação a tarefa de
identificá-lo, mas antes de tudo, coloca seu interesse naquilo que pode lhe dar
satisfação e prazer e afasta de si o menor sinal de descontentamento. No livro O
Homem sem Gravidade gozar a qualquer preço (2003) a contemporaneidade é
mostrada como “nova economia psíquica”, cuja análise é apresentada através de uma
entrevista feita a Melman pelo psicanalista belga Jean Pierre Lebrun, que assina o
prefácio.
O ponto principal é uma enorme crise de referências, cuja marca principal é a
vitória do gozo sobre o desejo. O consumo ilimitado, conseqüência de uma economia
liberal, promove no indivíduo o interesse extremado em sua própria subjetividade.
Colocam-se para longe, portanto, as limitações, as dores, as dificuldades e,
especialmente, o vínculo com o outro. É preciso assegurar-se de que não haverá
riscos para seu gozo e satisfação. Confrontar-se ou trocar experiências deixa qualquer
pessoa vulnerável e exposta a perigos.
“Constatamos as dificuldades dos sujeitos de hoje em dia de
dispor de balizas tanto para tornar mais claras as tomadas de decisões
31
quanto para analisar as situações com as quais se defrontam. Seriam
surpreendentes, num mundo caracterizado pela violência, tanto na
escola quanto na Cidade, por uma nova atitude diante da morte
(eutanásia, decadência dos ritos...) , a demanda do transexual, os
acasos dos direitos da criança, as obrigações, até mesmo os diktats do
econômico, as adições de todos os tipos, a emergência de sintomas
inéditos (anorexia masculina, crianças hiperativas...), a tirania do
consenso, a crença nas soluções autoritárias, a transparência a
qualquer preço, o peso do midiático, a inflação da imagem, o
endereçamento ao direito e à justiça como “paus para toda obra” da
vida em sociedade, as reivindicações das vítimas de todo gênero, a
alienação no virtual (jogos eletrônicos, Internet...), a exigência do risco
zero (grifo meu), etc.?”. (LEBRUN, no prefácio de Melman, 2003: 10).
O mais preocupante não são as simples modificações sociais, mas os efeitos
produzidos por essa crise de referências gigantesca que opera tanto em nível
individual quanto coletivo. As mudanças assentadas em uma economia liberal sem
precedentes na história promovem a existência de um indivíduo voltado somente a si,
cuja subjetividade o coloca acima do legado de gerações anteriores, com as quais
parece pouco importar-se, e em relação às quais se vê superior, uma vez que tem o
domínio da informação e da tecnologia para ser o senhor e condutor de seu próprio
“destino”. A nova economia psíquica fundamenta-se, em princípio, em uma nova
moral da atualidade que tudo permite ao indivíduo se o objetivo maior é sua própria
felicidade e seu sucesso.
No entanto, quando a questão é afeto e relacionamento amoroso, o desprezo
pelo outro e o interesse excessivo por si mesmo deixam transparecer a lógica do
“risco zero”, que na prática não significa abrir mão de amar, mas querer amar sem
sofrer. É a necessidade de proteção. Na tentativa de resolver suas questões pulsionais,
o indivíduo contemporâneo se esquece de que manter o foco em si mesmo numa
relação afetiva é acreditar no amor sob uma perspectiva unilateral, na qual o outro
pouco ou nada conta. Talvez esse seja o grande paradoxo da atualidade: o amor
pressupõe a presença do outro (o que implica troca, doação, atenção mútuas), mas o
homem contemporâneo desenvolveu uma habilidade individualista excessiva que o
32
impede de amar além da superficialidade. Sair de si mesmo é uma tarefa de esforço
supremo, para a qual, antes de tomar qualquer decisão, precisará avaliar, ponderar,
refletir sobre vantagens e desvantagens e certificar-se de não estar correndo riscos
quando pode evitá-los. Para tanto, serve-se de informação.
A sociedade contemporânea legitima o prazer e caracteriza-se principalmente
pelo desenvolvimento do individualismo. A legitimação do prazer trouxe aos
indivíduos a paixão por si mesmos. A paixão por governar-se a si mesmo, pela
autonomia individual na vida familiar, na vida sexual e até mesmo no que diz respeito
à religião e à política. Ao contrário do que se preconizava nas décadas de 60 e 70 do
século XX, receosamente, a respeito da massificação e do consumo exacerbado,
parece que o futuro será marcado pelas emoções. Embora o consumo excessivo seja
uma realidade, em vez da busca desenfreada por produtos, as próximas gerações
estarão em busca de emoções (cf. Lipovetsky, em entrevista a UOL Moda):
“Na minha opinião, o luxo supremo foi esse sul-africano (Mark
Shutleworth), que gastou US$ 20 milhões para passar dez dias numa
estação espacial (em 2002). Hoje, creio que o grande luxo é alguém
gastar uma soma considerável unicamente por sensações. Não resta
nada, não há nem mesmo um produto, ele fez algo exclusivamente para
sentir. É um luxo emocional extremo, mas evidentemente nada
democrático (risos). É um luxo de milionário e creio que emblemático
porque acredito que o futuro do luxo é esse: termos cada vez mais
emoções substituindo produtos”. (Lipovetsky in: VASONE, 2005).
Para o filósofo francês Gilles Lipovetsky, o homem contemporâneo
apresenta-se fragilizado diante do mundo, uma vez que tem menos proteção coletiva,
das instituições, e precisa ser o responsável por si mesmo. As imposições de uma vida
em sociedade tornam-se cada vez mais opressoras diante das exigências do tempo e
do consumo, daí o alto índice de suicídios, depressão, ansiedade e consumo de
medicamentos. O panorama que ora se apresenta pode ser um indicativo de que o
século XXI será marcado pelos conflitos subjetivos, os conflitos internos desse novo
homem.
33
Em uma outra entrevista mais recente, concedida ao jornalista Luciano
Suassuna, Revista Istoé de 23 de maio de 2007, o pensador comenta seu mais novo
livro, A Sociedade da Decepção (Editora Manole), no qual se refere ao momento
atual como o de grande decepção da humanidade, uma vez que a democracia e o
consumo trouxeram consigo a ilusão de que os desejos poderiam ser realizados. No
entanto, a globalização aumenta a sensação de insatisfação, porque deixa à mostra as
desigualdades sociais e destrói qualquer ilusão no campo das ideologias políticas,
uma vez que não há mais lugar para esperanças revolucionárias.
Ao concluir a entrevista, entretanto, o filósofo não atribui ao consumo, de
forma generalizada, a causa da decepção de nossa sociedade, mas sim ao consumo
cultural, veiculado especialmente pela imagem e pela ilusão criada de modelos
espetaculares que se espalham, incutindo a idealização em metas individuais ou
coletivas de felicidade e satisfação que, na verdade, só podem transformar-se na
decepção da impossibilidade. A mais violenta de todas essas frustrações é no campo
afetivo, uma vez que a valorização do individualismo acarreta o fracasso na maioria
das relações humanas na atualidade.
“O consumo cultural é o que decepciona. Veja, por exemplo, a
televisão. Ela é feita para ser um espetáculo, mas se você fica zapeando
é porque o espetáculo não o satisfaz. O zapping é uma permanente
decepção. (...) A decepção mais forte, mais intensa, a mais cruel é a
que você tem com as pessoas. Então se engana quem culpa o consumo
pela infelicidade. O que dá frustração é a individualização do mundo, é
a relação com os outros e consigo mesmo”. (Lipovetsky in:
SUASSUNA, 2007).
Quando levanta a questão do consumo cultural, Lipovetsky nos conduz a
pensar nas relações amorosas atuais. Se o indivíduo da contemporaneidade ama
unilateralmente e cria expectativas em relação àquele que pode vir a ser o objeto de
seu afeto, certamente espera encontrar no outro características culturalmente
apreciadas. De fato, não é o amor que está em jogo, mas o consumo de determinados
signos privilegiados culturalmente: bom emprego, boa posição social, carro do ano,
34
ou seja, os indicativos de sucesso do outro que podem representar benefícios para si
mesmo.
Em tempos de crises referenciais, o homem da atualidade promove sua
identificação sempre a partir do outro, mas não em relação ao que ele sente ou pensa,
mas o que o outro tem e o que ele pode vir a ter também. Dessa forma são projetadas
as imagens compartilhadas consumidas consensualmente e a sociedade valoriza cada
vez mais o espetáculo.
As entrevistas de Lipovetsky, apresentadas pela mídia em momentos distintos,
porém próximos, reafirmam a insatisfação humana ao mesmo tempo em que dão
suporte à permanência de discursos que aparentemente possam acenar com soluções.
Se a maior dor hoje é a causada pela insatisfação no campo das relações afetivas, a
mesma mídia, que incita os indivíduos ao desejo quando pulveriza imagens e signos
da felicidade amorosa, tenta também apresentar soluções e, dessa maneira, o amor
pode apresentar-se justificado pelos discursos derivados da biologia ou da sociologia.
Caracterizada pela valorização do gozo, do prazer, das sensações e
paradoxalmente infeliz, a sociedade atual pode ser o cenário ideal onde o discurso do
amor biologizante ou biologizado (daí o sucesso de Fisher) encontre terreno fértil
para germinar. Mas esse discurso pode se sustentar sozinho? Bastará ao homem
moderno identificar as áreas cerebrais afetadas num relacionamento amoroso? Isso
resolverá seus conflitos e suas inquietações?
É preciso, antes, observar as instâncias de produção e de recepção para pensar
na relação entre mídia/leitor. Quem é o indivíduo, por exemplo, que vai à livraria e
compra “Por que amamos A natureza e a química do amor romântico”, de Helen
Fisher? Se é o homem reflexivo, interessado em situar-se no seu tempo e saber sobre
tudo o que o cerca, como afirma Giddens, então a mídia, enquanto instância de
produção, deve assegurar-se de que dispõe de um determinado saber que lhe dará a
garantia de autoridade e assim lhe possibilitará ganhar a confiança do receptor para
informar. E quem é o leitor de “Contra o Amor uma polêmica”, de Laura Kipnis?
Alguém que é instigado pela curiosidade gerada pelo uso da palavra “contra” no caso
do bem maior e inquestionável “amor”? Alguém que se “encaixa” em uma das
situações apresentadas no livro, ou seja, em uma das experiências afetivas descritas?
Da mesma forma, é o homem contemporâneo tentando desesperadamente
compreender o que sente ou por que sofre.
35
Embora sua proposta seja diferente, sem o compromisso de apresentar
definições ou soluções, o texto de Kipnis igualmente respalda-se nos pressupostos do
contrato de comunicação. Partindo da premissa de que é quase impossível alguém não
se encaixar em uma das situações amorosas descritas, Kipnis atrai o leitor e o convida
primeiro a identificar-se, depois a rir de suas experiências afetivas e de seu próprio
tempo.
O amor passou a ser visto como solução para todos os problemas do homem
da contemporaneidade e assim passou a fazer parte de sua agenda. Mas esse tipo de
expectativa acaba por gerar insatisfações em qualquer relacionamento mais
duradouro, especialmente no casamento. O resultado só pode ser ansiedade, estresse,
depressão.
O amor no casamento e o amor como garantia de felicidade é uma “invenção”
moderna. Antes, não havia tanta ilusão com relação à durabilidade do estado de
apaixonamento. “Romeu e Julieta não é uma história feliz, é uma tragédia. O mito do
amor romântico que leva ao casamento e à felicidade é uma invenção do século
XVIII”. (Kipnis in: SCHELP, 2004).
Se antes as pessoas sofriam porque não tinham o direito de escolher seus
pares, hoje sofrem porque tomaram para si a tarefa de serem elas mesmas as
responsáveis por sua felicidade amorosa. Instigado por cobranças sociais cada vez
maiores, o indivíduo vê aumentar sua expectativa de encontrar a pessoa “ideal” e toda
a tentativa frustrada acaba por levá-lo a considerar-se infeliz e incapaz de amar.
Kipnis tenta inverter esse pensamento: e se a incapacidade de cumprir as promessas
de felicidade não seja do indivíduo, mas do casamento?
Impelido a administrar com êxito todos os segmentos de sua própria
existência, o homem atribui ao amor um peso acima das demais obrigações em sua
lista, uma vez que a ele está vinculada a idéia de seu objetivo maior: a conquista da
felicidade (plena). A identidade individual tende a ser definida como a de um ser em
movimento, uma vez que o homem é afetado por um número excessivo de
informações e, dessa forma, vai construindo e reconstruindo conceitos e valores,
crenças e atitudes.
Diante do exercício reflexivo constante, entretanto, a narrativa da auto-
identidade constitui-se de maneira frágil, consideradas especialmente a rapidez com
que as situações e as idéias são transformadas e a fragmentação das instituições.
36
Todo esse cenário afeta o indivíduo em sua intimidade e não são pequenos os
impactos em sua vida pessoal. Fatores importantes decorrentes das transformações
ocorridas desde meados do século passado alteraram para sempre os relacionamentos
amorosos. A emancipação feminina, por exemplo, reconfigurou os moldes familiares
uma vez que a mulher passou a atuar no lar e fora dele. Da mesma forma, a pílula
anticoncepcional e as novas tecnologias reprodutivas possibilitaram a autonomia
sexual feminina. Conseqüentemente, a idéia de reprodução desvinculou-se do
casamento.
Em decorrência de todo esse processo, no entanto, na sociedade
contemporânea os indivíduos idealizam uma nova forma de relacionamento, através
das “relações puras”.
“De importância chave aqui é o surgimento da ‘relação
pura’ como protótipo das novas esferas da vida pessoal. Uma relação
pura é uma relação em que os critérios externos se dissolveram: ela
existe somente pela retribuição que a ela própria pode dar. No contexto
da relação pura, a confiança só pode ser mobilizada por um processo
de mútua revelação. A confiança, em outras palavras, não pode mais
ancorar-se por definição em critérios externos à própria relação
como os critérios de parentesco, dever social ou obrigação tradicional.
Como a auto-identidade, com que se relaciona de perto, a relação pura
tem que ser reflexivamente controlada a longo prazo, contra o pano de
fundo de transições e transformações externas”. (GIDDENS, 2002: 13-
14).
A Revista Cláudia (Ed. Abril) apresenta em uma de suas últimas páginas,
mensalmente, a seção “Mulheres Alteradas”, assinada pela cartunista argentina
Maitena. Na edição de março/2008, despertou-me a atenção a maneira divertida como
eram apresentadas as características da contemporaneidade.
Reproduzo a seguir “Algumas mudanças dos últimos 25 anos”:
37
38
As ilustrações apresentam características gerais: a facilidade com que as
crianças e os adolescentes “dominam” um computador, a “alienação” dos jovens que
não se interessam por política e que são extremamente consumistas, bem como a
facilidade de comunicação (mas agora não-presencial, com e-mails, torpedos e fax), a
confusa distinção de identidades culturais em tempos de globalização, e a aspiração,
em tempos de espetacularização, de ser alguém famoso (e jovem). Gostaria, no
entanto, de chamar a atenção para dois aspectos importantes no que diz respeito às
relações amorosas: os jovens das décadas de 60 e 70 do século passado, que tanto
lutaram por liberdade sexual, distinguem-se dos de hoje, ameaçados pela AIDS e
outras doenças sexualmente transmissíveis, encontrando igualmente restrições ao
prazer sexual. Isso vem ao encontro do pensamento de Bauman quanto aos “medos
líquidos” de nossa sociedade. Só que o medo de amar não se restringe às doenças,
mas também ao medo de relacionar-se e de se mostrar ao outro. O outro aspecto está
relacionado à mudança do pensamento e do comportamento feminino quanto às suas
aspirações amorosas: as mulheres não sonham mais em encontrar um marido e formar
um lar, agora procuram encontrar um grande amor, o homem de sua vida, a pessoa
ideal. Baseando-me no que Giddens chama de “relações puras” eu só não sei se é
correto afirmar (conforme Maitena) que seja uma ilusão puramente feminina, mas me
arrisco a chamar de ilusão (assim como Kipnis) a expectativa de atribuir a um
indivíduo em especial (imperfeito como qualquer pessoa) toda a carga da felicidade e
realização amorosa com que se sonha. Uma relação assim, “pura”, com intensidade
total, cumplicidade total, sinceridade total... só pode terminar em frustração e, mais
adiante, em troca, substituição. É uma busca permanente e incessante, assim como a
sensação de fracasso que a acompanha.
Os novos relacionamentos
3
são agora pautados na confiança e igualdade
sexual e emocional entre os envolvidos (pelo menos, são assim idealizados). Os
casamentos passam a ser sustentados não por vínculos externos, mas pelo
compromisso que os parceiros se propõem a assumir.
É uma nova forma de amor que tem se tornado o parâmetro para os novos
relacionamentos, pautados na confiança e na intensidade emocional dos amantes. As
relações “puras” pressupõem o compromisso, a sinceridade, a confiança, mas o que
3
De acordo com Giddens, a relação pura não se restringe às relações amorosas, mas se estende aos
vínculos de amizade e entre pais e filhos. Na presente tese, contudo, pretendo ater o interesse nos
relacionamentos afetivos que envolvem homens e mulheres em um vínculo de sexualidade.
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está em jogo é a verdade compartilhada, uma vez que elas se inscrevem nos laços de
intimidade que dizem respeito e se limitam aos parceiros envolvidos. Esses novos
formatos não impossibilitam a convivência com o ideal romântico tradicional.
Embora as novas relações apresentem um “contrato” diferente, os novos e os antigos
modelos coabitam o mesmo espaço.
O ponto fundamental dos vínculos emocionais da atualidade é o papel das
escolhas na definição das relações amorosas. Decidir a forma de conduzir sua vida
afetiva é tarefa pessoal e, portanto, o indivíduo é o responsável pelo relacionamento
que constrói o que pode ser bom ou ruim.
Embora muitos autores considerem apenas os aspectos negativos dessa busca
excessiva pela emoção e pela intensidade da paixão, há aspectos positivos a serem
considerados. Apesar de as pessoas se frustrarem na maioria das vezes em suas
tentativas de construir um relacionamento “puro”, o que há por trás é o desejo latente
de relacionar-se intensa e verdadeiramente e, assim, sobreviver num mundo de tantas
demandas e de tanta instabilidade. A seguir, exemplos de como os adolescentes
esperam um dia viver uma relação-pura:
[1] “Espero que o amor me traga felicidade, que eu consiga
viver bem com a pessoa que eu amo. Consiga fazê-la feliz e que ela
me faça feliz também. Esse sentimento mais profundo que existe,
espero compartilhar por toda vida com carinho, filhos e ficar com
ela o resto da minha vida. Não vou dizer que o amor só me trouxe
felicidade, pois estaria mentindo, mas posso dizer que foi uma das
melhores coisas da minha vida, até hoje. A pessoa que mais amo é a
que me faz mais feliz, é com ela que eu conto quando preciso, é nela
que eu confio, é ela que eu ajudo e dou todo o apoio necessário e é
com ela que eu quero ficar para sempre”. (Thaís, 805, 14 anos).
[2] “Espero da pessoa que eu amo que ela retribua esse amor
que eu lhe conceder, que seja sempre honesta e sincera porque no
amor, a verdade deve sempre prevalecer. Muitas pessoas amam,
poucas são amadas, porque ser amado é um privilégio para poucos.
O amor quando verdadeiro, transforma tudo na nossa vida em um
40
mundo de fantasias. Supera todas as barreiras e dificuldades da
vida. Vence batalhas, supera obstáculos”. (Jefferson, 805, 15 anos).
A essência do desejo pode ser muito positiva no que tem de preservação do
humano e de aposta no amor. A confiança no outro, o afeto, a certeza do amor
verdadeiro é uma imagem que seduz, pois conduz a um cenário aconchegante e
seguro um homem frágil, amedrontado, carente e desprotegido. O ponto negativo é
que diante de cada relacionamento fracassado o indivíduo aumenta suas expectativas
no que está por vir, idealizando relações melhores a cada “troca”, e o que se vê é a
banalização amorosa, afinal não se pode perder de vista que é um tempo de excessos.
“É portanto um equívoco entender a ‘procura contemporânea
da intimidade’, como muitos têm feito, apenas como uma reação
negativa a um universo mais impessoal e distante. A absorção em
relações puras certamente pode ser muitas vezes um modo de defesa
contra um mundo exterior envolvente mas tais relações são
inteiramente permeadas por influências transmitidas pela mídia
provenientes de sistemas sociais mais amplos, e geralmente organizam
de maneira ativa as influências na esfera de tais relações”.
(GIDDENS, 2002: 14).
O homem contemporâneo precisa de informação para assumir as
responsabilidades, que não são poucas, em sua vida. Os relacionamentos afetivos são
sucessivamente propagados, exibidos e dissecados pela mídia. Imagens e textos
diversos que chegam às mãos do consumidor-leitor que, apressadamente, lê, observa,
analisa, mas só absorve se for do seu real e momentâneo interesse.
1.2 O Papel da Mídia na Agenda do Homem Contemporâneo
A mídia (entendida aqui como conjunto organizacional que gera e
disponibiliza informação, através dos meios de comunicação existentes,
especialmente a TV e a imprensa escrita e televisiva, e as tecnologias digitais de
informação) há muito vem ocupando um lugar central na vida do indivíduo
41
contemporâneo, instalando-se soberanamente como um dos principais elementos
capazes de induzir a novas tendências comportamentais, afetando o homem em sua
individualidade e em sua vida social. Cada sociedade foi afetada diretamente pelos
meios de comunicação de que dispunha, em cada época. Servindo-se de diversos
veículos de comunicação, a mídia chega aos nossos dias tendo ao seu dispor amplas
redes digitais. As informações veiculadas, considerando-se obviamente cada situação
e abrangência, atingem números cada vez maiores de indivíduos em espaços de
tempo cada vez menores. Dessa forma, trabalha não apenas com a informação,
afetando diretamente o pensamento humano, mas também com a emoção e é capaz
de induzir ao surgimento de novos modelos comportamentais. São novas situações
socioculturais que surgem sem que se perceba, na rapidez com que nossos
computadores são acessados.
O termo “mídia” descende do vocábulo latino media (plural de medium), que
em português significa “meios”. Embora tenha sua origem na nossa língua ancestral,
a palavra entrou para o português através da língua inglesa (mass media), com a
acepção de “meios de comunicação”. Desde os anos 90, o termo vem sendo
largamente utilizado, especialmente em estudos multidisciplinares no campo das
ciências sociais, nos quais quase sempre lhe é atribuído o sentido de imprensa,
grande imprensa, jornalismo, meio de comunicação ou veículo. Na verdade, não
existe uma definição única e consensual para o termo. Cada área de interesse o
define de acordo com sua perspectiva, mas o que costuma prevalecer é o sentido de
conjunto de meios de comunicação. A comunicação midiatizada, portanto, no mundo
capitalista, detém linguagens, estratégias e características próprias, constituindo-se
como uma certa forma de “poder” na atualidade.
Charaudeau (2006) salienta a importância de se definir o termo “mídia” como
suporte organizacional de veiculação de informação e comunicação que, como parte
integrante da sociedade, atende a determinados fins e a eles se submete. Tomadas
como “empresas de fabricar informação”, as mídias constituem-se no conjunto de
práticas discursivas de interesses variados, veiculados pela chamada “máquina
midiática”. Vários são os veículos que difundem discursos de informação na
sociedade. Tal atividade de linguagem, afirma Charaudeau, deve ser cautelosamente
estudada, considerando-se o reconhecimento identitário que propicia aos indivíduos
em suas práticas sociais.
42
O lingüista russo Mikhail Bakhtin é uma referência segura no que se refere
aos estudos da enunciação e gêneros de discurso. Sobre gêneros, o filósofo da
linguagem esclarece que a cada situação lingüística os interlocutores se colocam em
formas-padrão relativamente estáveis de um enunciado, sempre em harmonia com
determinadas formas definidas pelo contexto social.
“A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na
escolha de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada
pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por
considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta
da comunicação, pela composição pessoal dos seus participantes,
etc.”. (BAKHTIN, 1992: 282).
De acordo com a posição de produção em relação à recepção, os gêneros
textuais dividem-se em dois grupos: os primários (voltados ao uso cotidiano da
linguagem e que podem ser controlados diretamente na situação discursiva: diálogos,
cartas, bilhetes, e-mails); e os secundários (geralmente textos escritos, regidos pela
norma culta, e nos quais não acontece o imediatismo do gênero primário: romance,
teatro, discurso científico).
De acordo com Charaudeau, a distinção bakhtiana possui um caráter
operatório e permite que as reflexões se expandam para a questão de atos de
linguagem (além do textual). Tal classificação baseia-se nas condições de interação
da relação dialógica, espontâneas ou institucionais, e ainda na variação entre textos
dialógicos ou monológicos, que consideram a situação de troca, se há condição de
resposta, ou não (comunicação presencial e não-presencial, oralidade e
escrituralidade). (cf. Charaudeau, 2006: 205).
Os gêneros discursivos são produtos das relações sociais e todo o processo de
produção vincula-se às funções que desempenham enquanto formas de interação. Os
modos de organização do discurso e dos enunciados são sempre decorrentes de uma
situação social específica, e por isso são de extrema importância na análise do
comportamento social. De Bakhtin até hoje há muita polêmica com relação à
classificação dos gêneros, mesmo porque os diferentes textos que circulam (em
diferentes meios, com diferentes recursos, em diferentes situações) formam um
43
emaranhado que muitas vezes impossibilita marcar com precisão os limites entre uma
e outra categoria para efeito de análise.
Os gêneros de informação baseiam-se no princípio da intencionalidade,
levando em consideração a quem se destinam para definição do modo de organização
discursivo. A mídia, em sua posição de enunciação, desdobra-se entre uma instância
de informação, um mundo a comentar e uma instância consumidora. Três desafios
estão sempre contidos no processo de elaboração de qualquer gênero informativo:
visibilidade, inteligibilidade e espetacularização. (cf. Charaudeau, 2006: 212).
A visibilidade requer do enunciador a capacidade de chamar a atenção do
receptor de maneira rápida e eficiente, a fim de fazê-lo “consumir” a notícia, a
informação (“efeito de anúncio”). A inteligibilidade vincula-se à elaboração textual
propriamente, de modo a trabalhar a encenação verbal (linguagem escrita), visual
(imagens, ícones) e auditiva (fala e sons). Nesse processo a notícia é “hierarquizada”
de acordo com a maneira de ser divulgada: acontecimento relatado, comentado ou
provocado, para que seu conteúdo seja acessível ao leitor. É a necessidade de chegar
ao receptor e fazer-se compreender. Por último, o desafio da espetacularização faz
com que essas encenações sejam trabalhadas de modo a despertarem o interesse e/ou
a emoção.
No caso específico de textos escritos divulgados em jornais e revistas, esses
três desafios aliam-se para que se atinja o objetivo maior: a persuasão.
No Brasil, os primeiros estudos sobre gêneros jornalísticos foram
apresentados por Luiz Beltrão, com a publicação da trilogia: Imprensa Informativa,
de 1969, Jornalismo Interpretativo, de 1976, e Jornalismo Opinativo, de 1980.
Dentre a categoria de jornalismo informativo, cujo objetivo é informar, estão: a
notícia, a reportagem, histórias de interesse humano e informações pela imagem. O
jornalismo interpretativo, que se propõe a explicar os fatos, refere-se a reportagens
em profundidade. E, por fim, o jornalismo opinativo, com vistas a orientar o leitor,
materializa-se em editoriais, artigos, crônicas, opiniões ilustradas e opiniões do leitor.
Sobre os gêneros jornalísticos, Denise Maria Rodrigues de Santana (em
Pauliukonis e Gavazzi, 2003) apresenta as definições de alguns autores: “...formas
que buscam o jornalista para se expressar, (...) formas jornalístico-literárias porque
seu objetivo é o relato da informação e não necessariamente o prazer estético”
(Gargurevich); “... formas de expressão jornalística se definem pelo ‘estilo’ e
44
assumem expressão própria pela obrigação de tornar a leitura interessante e
motivadora” (Dovifat); “... as diferenças entre os gêneros surgem das
correspondências dos textos que os jornalistas escrevem em relação às inclinações e
aos gostos do público (...), pressupõe o uso de todos os recursos expressivos e vitais,
próprios e adequados para expressar a variadíssima gama do acontecer diário”
(Foliet).
Segundo Santana, o processo de produção de textos jornalísticos caracteriza-
se principalmente pela rapidez e pela atualidade, mas antes de qualquer análise é
preciso determinar o veículo utilizado para a transmissão da informação.
Na esteira de Beltrão, aprofundando-se especialmente nos estudos sobre
jornalismo opinativo, o pesquisador José Marques de Melo tem vasta produção
acadêmica sobre os gêneros jornalísticos brasileiros, fundamentando-se nos
pressupostos teóricos do Círculo de Bakhtin. Santana destaca seu pensamento:
“Desta maneira, o jornalismo é concebido como um processo
social que se articula a partir da relação (periódica/oportuna)entre
organizações formais (editoras/emissoras) e coletividades (públicos
receptores) através de canais de difusão (jornal / revista / rádio /
televisão / cinema) que asseguram a transmissão de informações
(atuais) em função de interesses e expectativas (universos culturais
ideológicos)”. (Melo apud Santana in: Pauliukonis e Gavazzi, 2003).
De acordo com o exposto, os textos apresentados nesta tese estariam divididos
em jornalísticos, no caso dos pertencentes ao universo da imprensa (reportagens em
profundidade publicadas em jornais e revistas), e não-ficcionais, no caso dos dois
livros selecionados para exemplificação das duas vertentes discursivas (Kipnis e
Fisher). Todos possuem em comum a argumentação, uma vez que têm por objetivo
convencer, persuadir ou influenciar o leitor sobre determinado assunto.
Os textos argumentativos respaldam-se em dois elementos principais: a
exposição do raciocínio e a evidência de provas (cf. Garcia, 1982). A condução do
pensamento, baseado na lógica e na coerência, faz com que o leitor seja levado a
formar uma opinião. Para tanto, o autor utiliza-se de “provas”, que podem ser dados
estatísticos, testemunhos, imagens, exemplos ou o fato propriamente.
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A maioria das reportagens citadas neste trabalho respalda-se ou faz alusão à
Fisher, o que se justificaria pelo fato de sua obra apresentar testemunhos, estatísticas
e uma pesquisa de caráter científico com utilização de varreduras cerebrais.
Todos esses dados sobre argumentação e especialmente os textos jornalísticos
são válidos quando são abordadas as questões de gêneros de discurso. Mas será que
há necessidade real de convencimento quando se vive em uma época de tantas
variedades de interesses e quando foi dado à mídia o lugar de saber?
Ao que parece, por trás do interesse de convencer, característica inerente aos
textos argumentativos, há na verdade o interesse de vender. O leitor é convencido,
antes da leitura sobre qualquer assunto, a comprar o jornal, o livro, a revista como um
produto qualquer: uma pasta de dentes, um sapato, um notebook.
Talvez por isso, a mídia “venda” idéias, valores, objetos e pessoas, todos
elementos nivelados como peças de um jogo de objetivo específico. Isso só acontece
porque o homem contemporâneo necessita de informações cada vez mais atualizadas,
e aos poucos a mídia foi ocupando um lugar que antes era das instituições, como a
igreja, a família, a escola. Ela detém o papel social fundamental de formadora de
opinião e de valores.
“Os casamentos abundam na nossa melhor imprensa
ilustrada: grandes casamentos (o filho do marechal Juin e a filha de
um inspetor das Finanças, a filha do duque de Castries e o barão
Vitrolles), casamentos de amor (Miss Europa 53 e o seu amigo de
infância), casamentos (futuros) de vedetes (Marlon Brando e Josiane
Mariani, Raf Vallone e Michele Morgan). Naturalmente, estes
casamentos não são todos enfocados na mesma fase, visto que a sua
virtude mitológica não é a mesma”. (BARTHES, 1980: 36).
As manifestações culturais constituem a representação burguesa do homem e
de sua relação com o mundo. Um dos elementos principais para que se possa
compreender essa representação é a ação midiática sistematizada, principal
responsável pela espetacularização do cotidiano. Ao apresentar a divulgação de
diversos casamentos na imprensa, o pensador francês exemplifica esse processo,
materializado através da difusão de representações coletivas, que se tornam
46
gradativamente parte de um universo consensual, partilhado, unindo os grupos
sociais e seus indivíduos de acordo com uma certa moral, uma determinada conduta
política, sua expressão artística e lingüística e assim se constitui enquanto cultura.
Cria-se uma idéia de universalidade, de coesão, de consentimento geral, tendo como
ponto de interseção um signo qualquer. A partir de um signo é construído, então, um
mito, fruto de uma cadeia semiológica, quando acontece a substituição deste (o signo
primeiro), que serve de significante, por um signo outro (segundo) e passa a ter outro
valor significativo.
Convém juntar ao exemplo de Barthes parte de uma reportagem (A Ciência
do Amor Por que precisamos de um romance para sobreviver), assinada pela
jornalista Mônica Tarantino, que tornarei a comentar mais adiante.
“PAIXÃO Fast-food Por que os relacionamentos das
celebridades costumam durar tão pouco tempo”. (TARANTINO,
2008).
Com esse título, tão sugestivo, a paixão é comparada a uma rápida refeição
que pode ser feita em qualquer lanchonete com copos e pratos descartáveis. O texto
esclarece que a vida amorosa de celebridades e atores costuma ser mais interessante
que a das personagens que vivem na ficção. Junto ao texto estão expostas imagens de
atores famosos e as pessoas com quem já se relacionaram: Rodrigo Santoro, Adriane
Galisteu, Luana Piovani, Dado Dolabella, Débora Secco, entre outros. São pessoas
que se mantêm em constante evidência através da mídia, menos por seus talentos e
mais pela instabilidade e pouca duração de seus relacionamentos, pela variedade de
parceiros ou pelos escândalos explorados pela indústria da “fofoca”. Na verdade, tais
celebridades usam e ao mesmo tempo são usadas pela máquina midiática, afinal, não
é à toa que esse tipo de imprensa e os paparazzi sobrevivem em toda parte do
mundo. A imagem exposta das pessoas públicas oscila entre a admiração, que as
transforma em mitos, e a crítica pejorativa, sempre pronta a explorar as
“escorregadas” dos ídolos em sua vida íntima.
Barthes (1980) esclarece que “o mito é uma fala, (...) um sistema de
comunicação, uma mensagem, (...) um modo de significação”. O mito utiliza-se de
diferentes linguagens (língua, imagem, objeto, rito etc.) e atua por apropriação. É
47
uma forma de discurso, uma vez que a partir de associações os novos significados
acontecem, sempre carregados de ideologia.
As narrativas tradicionais são formas de linguagem e podem transformar-se
em mito a partir de modos de significação, dos quais depende a relação de
equivalência entre significante e significado. É preciso, antes, salientar que o mito
tem o poder de transformar história em natureza, dada sua capacidade de apresentar
como “fato” aquilo que, na verdade, é um “valor”. Quando tem em suas mãos
revistas e jornais que expõem relacionamentos amorosos de personalidades famosas
do meio artístico e cultural (ícones e mitos de nossa contemporaneidade), o leitor
toma como “fatos” ou “verdades” o que não passa de uma simulação da realidade (a
simulação da beleza, da perfeição, da riqueza, da felicidade, do amor, do sucesso
etc.). É como se a imagem provocasse no leitor naturalmente o conceito e assim o
significante criasse o significado.
As personagens míticas produzidas pela máquina midiática são arquétipos, ou
seja, a soma de aspirações coletivas, conscientes ou inconscientes, que se tornam
mitos exatamente porque estão em conformidade com os ideais do imaginário de
uma determinada época ou lugar. A sociedade contemporânea, voltada ao consumo e
à auto-realização, constitui-se como terreno fértil onde toda sorte de mitos podem
germinar: Se me contento aqui com um esboço sincrônico dos mitos
contemporâneos, é por uma razão objetiva: a nossa sociedade é o campo
privilegiado das significações míticas”. (Barthes, 1980: 158).
De acordo com o sociólogo francês Jean Baudrillard, a contemporaneidade se
caracteriza pela produção de uma outra realidade, na qual o excesso de consumo
coloca o objeto em primeiro plano. Em O Sistema dos Objetos (tese de 1967,
orientada por Barthes), Baudrillard analisava um código de conduta social que ditava
uma nova ordem na decoração dos ambientes familiares, em que os objetos
passavam a ocupar lugar de acordo com as exigências da “moda”, e a memória
afetiva que caracterizava a arrumação das casas aos poucos ia perdendo valor. Este é
um ponto fundamental para o pensador, uma vez que a partir da entrada do consumo
nos lares, como determinante do que cercaria os indivíduos em sua intimidade,
surgia a imposição do design, a supremacia do objeto em relação ao homem e sua
história pessoal. A partir daí o autor começa a estender seu interesse pela atuação da
48
informação na sociedade, pois para ele a mídia cria a realidade: cria os modelos que
ditam as regras.
Segundo essa lógica, o “hiper-real” é criado através de “pseudo-
acontecimentos”, artefatos criados a partir da manipulação da informação de acordo
com os recursos da mais alta tecnologia. Sua crítica mais acirrada é que a sucessão
de representações cria um jogo de aparências de imensas proporções, do qual a
linguagem é o mais forte elemento, mas que não tem referentes além de si mesma. É
o desaparecimento do referente: “... a simulação não é a de (...) uma substância. Ela
é a geração pelos modelos, de um real sem origem, nem realidade: um hiper-real”.
(Baudrillard apud Rocha, 2005: 125).
Estamos todos, portanto, vivenciando o extermínio da realidade, literal e
metaforicamente falando. A criação do virtual, a espetacularização do mundo através
da ação midiática e de tanta tecnologia e consumo, forjam uma simulação da
realidade, que passa a ser tratada como realidade de fato, porque a origem se perdeu
no meio de tanta repetição e reformulação.
“... Podemos retornar ao ponto em que a linha da História foi
quebrada e nos projetar para o outro lado do espelho? Podemos
sobreviver às metástases do Real da mesma forma como sobrevivemos
à morte de Deus? Devemos nos dedicar à sobrevivência ou ao
renascimento? Eu gostaria de dar uma resposta, mas promessas de
futuro seguem a mesma trilha das lembranças do passado: elas
desaparecem junto com o próprio princípio de realidade. Pois a
realidade é apenas um conceito, ou um princípio, e por realidade quero
dizer todo o sistema de valores conectado com este princípio. (...) Não
há real sem estes elementos, sem uma configuração objetiva do
discurso. E o seu desaparecimento é o deslocamento de toda essa
constelação”. (BAUDRILLARD, 2001a: 69).
Para Charaudeau, as novas tecnologias de informação, utilizando-se de
numerosos e diferentes recursos, põem em prática o contrato comunicacional que
permeia qualquer atividade linguageira. Os suportes midiáticos não se utilizam das
mesmas regras de funcionamento e, portanto, devem ser consideradas as suas
49
especificidades para uma análise correta. Aqui, interessa-nos a observação de textos
escritos divulgados pela imprensa, como no caso dos artigos publicados em jornais e
em revistas de caráter não-científico e, especialmente, as duas traduções para o
português de textos da indústria editorial, os livros já citados (Kipnis e Fisher).
Os estudos de Charaudeau encontram suas raízes nos fundamentos
bakhtinianos, que concebem a linguagem fundamentalmente como interativa e
ideológica, dada sua natureza histórica e social.
Entre 1928 e 1929, no Círculo de Bakhtin, surgia o termo “dialogismo” para
expressar o “sistema de signos” que promove a permanente interação entre as
estruturas significantes de um determinado campo histórico e social. O homem é um
ser fundamentalmente social, falante, que se mostra e se constitui através dos textos
que produz. O discurso nasce de uma situação pragmática, extraverbal,
contextualizada historicamente e só assim os sentidos são construídos.
O dialogismo é constitutivo da linguagem. É na troca de palavras que se dá a
relação entre interlocutores, mas os significados são apreendidos de acordo com a
instância maior da qual os indivíduos fazem parte, entrando em jogo então a
presença de diversas vozes, outras, como princípio da atividade lingüística. É na vida
em sociedade que as palavras e os pensamentos se inscrevem, criando “verdades”,
“mitos”, “realidades”, “consensos”, através das várias vozes existentes, num diálogo
constante entre o homem e seu tempo, entre o homem e o seu passado, entre o
homem e o já-dito e só assim, a partir de então, pode surgir um novo dizer, em um
processo de criação que se dá na apropriação de interdiscursos. Dialogismo,
portanto, é polifonia.
Sendo assim, os enunciados fazem parte de um todo maior e não podem ser
desvinculados dos contextos em que são produzidos e nos quais está presente o valor
ideológico dos signos. A ideologia aqui deve ser compreendida como noção de valor,
socialmente compartilhada, depreendida do próprio ser humano, dentro do processo
semiótico de interação das vozes sociais.
O dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem que determina e afeta
as relações entre interlocutores, e que apresenta quatro aspectos fundamentais.
O primeiro aspecto relaciona-se ao fato de que a interação entre
interlocutores é essencial para que haja comunicação, é, portanto, o princípio
fundador da linguagem. Outro aspecto estabelece a relação entre pessoas e sentidos e
50
determina que a significação seja construída na interação dos textos pelos indivíduos,
entrando em jogo, portanto, ideologia, historicidade, temporalidade. O terceiro
aspecto considera que a intersubjetividade está acima da subjetividade. Este aspecto
na verdade reforça o segundo, uma vez que ratifica o caráter essencialmente
dialógico da linguagem e do sentido, que só pode ser estabelecido socialmente. A
consciência individual é construída socialmente, é o conjunto de discursos que
atravessam o indivíduo durante toda sua existência. O quarto aspecto é a dupla noção
de sociabilidade e entende o indivíduo falante em duplo processo sua relação com
o outro, no ato de fala, e, simultaneamente, sua relação com a sociedade. Os
pressupostos teóricos de Bakhtin e Charaudeau são indispensáveis para nossa
reflexão sobre a mídia na atualidade, considerando as questões relativas à enunciação
e a relação entre interlocutores.
A polifonia, por exemplo, estabelece o caráter continuamente mutável e
renovável do signo, cujo sentido se estabelece nas relações intersubjetivas. Claro está
que a alteridade é fator determinante na teoria bakhtiniana. A reflexão sobre discurso
não permite que se deixe de fora o enunciado, que deve ser sempre visto como uma
resposta a outros significados. O homem é um ser de resposta, uma vez que a
experiência individual se desenvolve em consonância com (ou a partir de)
enunciados individuais dos outros.
“Assim como o corpo se forma originalmente dentro do corpo
materno, a consciência do ser humano desperta na consciência do
outro”. (BAKHTIN, 1992: 378).
Como se dá a comunicação na relação entre homem contemporâneo e mídia?
Os signos (palavras), enquanto material de semiotização do pensamento, são os
responsáveis pela mediação na relação entre o homem e sua realidade. Os
enunciados (mídia) pressupõem a responsividade de um receptor (homem
contemporâneo). A intersubjetividade, por sua vez, determina que o conjunto social,
estabelecido culturalmente, deve ser superior às subjetividades individuais. Que
respostas podem ser dadas, então, por esse homem que se alimenta da informação de
forma pragmática e, individualista, coloca seus interesses e seus objetivos acima do
coletivo?
51
A mídia, por sua vez, abastece as comunidades com informação, mas será
que há dialogicidade efetiva entre os interesses dos leitores e a informação
divulgada?
Vejamos: numa extremidade encontra-se o homem e sua necessidade de
informação para cumprimento da agenda. Reflexivamente, ele se abastece das
informações que julga importantes para seus objetivos e o que sobra é desprezado.
Se o leitor está passando por um problema de ordem emocional, por exemplo, pode
procurar nas revistas e nos livros textos que o auxiliem a solucionar ou a
compreender a desordem momentânea de sua vida. Dessa maneira, pode vir a
encontrar textos que lhe apresentem como resposta (à pergunta implícita) que a
sensação de euforia da paixão é causada por uma determinada substância química
(que pode até vir a ser encontrada em certo medicamento). Pode ser também que
esse homem encontre nos signos culturais o motivo pelo qual não consegue uma
namorada (as estatísticas podem, por exemplo, esclarecer que as mulheres, na faixa
etária em que ele procura, preferem homens musculosos e atléticos).
No outro extremo, está a mídia (enunciador) a serviço desse
receptor/consumidor, cercada de recursos dos quais se utiliza (ethos
4
) para tentar
ganhar a credibilidade e a adesão de seu interlocutor através dos textos que produz
(mensagem/argumentação) e faz circular em grande escala.
Por trás do consumidor desses textos, há o interesse pessoal, as obrigações
cotidianas, o lazer, as metas limitadas a um universo particular. Por trás da produção
há o ideológico aliado ao econômico, textos que são escritos com o objetivo de
vendagem (lucro). Mas os textos continuam a ser produzidos, assuntos que se
repetem e que continuam a ser distribuídos, cujo retorno chega à indústria editorial
através das seções do tipo “cartas do leitor” ou, de maneira concreta e segura, pela
garantia numérica da tiragem de vendas. Os textos, no entanto, continuam a ser
“jogados” no mercado, absorvidos por uns e não por outros, uma vez que é o
interesse subjetivo [desvinculado de um (mídia) e de outro (leitor)] que determina o
processo seletivo. A comunicação entre os interlocutores acontece de fato? Seria essa
relação dialógica ou monológica? Essas intersubjetividades se (inter) relacionam?
4
O termo ethos tem sua origem na retórica aristotélica, contudo a acepção que aqui interessa
vincula-se especificamente à Análise do Discurso e diz respeito à construção de uma imagem de si
através de todo e qualquer discurso. Pathos, coloca-se em relação a ethos e representa o receptor, o
interlocutor, o “auditório” a ser convencido/persuadido. (cf. Maingueneau).
52
Se os sentidos são construídos a partir da mediação entre alteridades e se a
intersubjetividade é a soma do individual e do coletivo na formação de uma memória
e de uma historicidade, então, que sociedade estamos formando sustentada por
interesses próprios e tendo como pano de fundo um gigantesco mercado?
“É fundamental que esses dois indivíduos estejam socialmente
organizados, que formem um grupo (uma unidade social): só assim um
sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não só
nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a
partir do meio ideológico e social (...) a consciência individual não é o
arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do
edifício social dos signos ideológicos”. (BAKHTIN, 1986: 35-36).
Num momento em que impera o consumo e quando as informações chegam
tão rapidamente e com tanta eficiência, é fácil entender como a mídia ocupa hoje
lugar de “saber”, servindo-se de estratégias argumentativas que reforçam sua
manutenção nesse “lugar”. A mídia, portanto, cumpre seu papel na medida em que
pode oferecer novas possibilidades de informação ao homem contemporâneo que,
mesmo investido da vontade de alcançar o sucesso, sente-se insatisfeito e se volta
cada vez mais à voraz tarefa de consumidor de textos midiáticos.
Sem perder de vista que todo dizer remete a uma memória, é importante
compreendermos por que os discursos que são originados na ciência (na biologia, na
medicina) adquirem socialmente um valor de prestígio para o cumprimento da
agenda contemporânea. Uma vez que o fracasso no amor pode ser resolvido com a
ingestão de certas substâncias, então o sucesso amoroso depende do próprio homem.
Se para conquistar uma mulher ele precisa estar de acordo com os padrões (estéticos,
comportamentais ou econômicos) estatisticamente determinados, logo a felicidade
amorosa depende de sua própria ação. Cabe ao homem apenas decidir se entra em
uma farmácia ou em uma academia.
Duas inter-relações se articulam simultaneamente no processo significativo:
entre os espaços interno e externo de produção de sentido e entre os dois espaços
enunciativos, de produção (mídia) e de interpretação (leitor), interpostos por uma
“avaliação”. Quem produz o quê? Para quem?
53
A mídia, que se pretende informativa, tem intenção de atingir o público e
para isso precisa de estratégias argumentativas. Como a mídia em si mesma também
é formada por um conjunto de indivíduos contemporâneos, que se cercam de
cuidados para alcançar os objetivos de sua intencionalidade, ela também é resultado
desse processo de mão-dupla. Afeta e é afetada. É formadora de opinião ao mesmo
tempo em que atende a um homem que quer opinar.
Todo ato de linguagem se fundamenta, antes de tudo, na relação entre
indivíduos que se reconhecem como interlocutores, num contrato de comunicação
que estabelecem entre si. Aceito o contrato, é necessário haver um propósito que
sustente as intenções comunicativas, salientando, todavia, que nada garante que tais
intenções sejam reconhecidas (ilusão de transparência da linguagem). Não é com
facilidade que os sentidos circulam. Muitos fracassos ocorrem nas mais variadas
situações comunicativas, exatamente porque o outro, o interlocutor, não é o duplo do
locutor, aquele a quem ele pensava/pretendia se dirigir.
Outro elemento fundamental do ato de linguagem é o reconhecimento
recíproco dos parceiros na situação comunicativa. Quando não se tem esse
conhecimento prévio, é necessário construí-lo, considerando os índices relacionais e
os índices éticos que sustentam as “máscaras sociais” (códigos de polidez). No caso
específico da mídia, levando-se em conta obviamente o veículo (jornais escritos e
telejornais, por exemplo) a questão ética vincula-se ao “politicamente correto”,
exigindo do produtor certos cuidados para não ferir minorias, credos, grupos sociais
e evitando o comprometimento claro. Assim, a mídia faz circular textos
aparentemente neutros, nos quais, em sua maioria, são evitados juízos de valor, e
que, supostamente, divulgam informações respaldadas por dados específicos de
comprovação e de sustentação.
Charaudeau esclarece que a atividade argumentativa sustenta-se em duas
perspectivas: demonstrativa e persuasiva. A perspectiva demonstrativa ampara-se no
raciocínio lógico e assim determina a organização e a diretriz lógica do discurso. Já a
persuasiva deve escorar-se em estratégias argumentativas para chegar ao destinatário
e convencê-lo sobre alguma coisa. Para atingir seu objetivo, a argumentação serve-se
de três elementos fundamentais: a proposta sobre o mundo (o argumento, a
asserção), o argumentador (enunciador que escolhe um determinado ponto de vista
54
para enunciar sobre o argumento) e o alvo (destinatário, que pode ser convencido ou
não sobre algo).
Sempre considerando que é uma argumentação restrita ao objetivo do texto e
ao veículo em que ele circula, pois o indivíduo contemporâneo já introjetou o
reconhecimento da mídia como fonte de informação e por isso não será preciso
persuadi-lo, apenas levá-lo a comprar.
É a partir e por causa da linguagem que os indivíduos fazem história e se
constituem culturalmente, criando e sustentando valores que se mantêm vinculados a
uma memória que só se produz enquanto resultado de práticas discursivas. Daí a
influência inegável da mídia sobre o comportamento social humano, especialmente
em tempos de tecnologia e informação, quando ela promove a mediação da
experiência.
Ao apresentar as transformações culturais que marcaram o século XX e que
são decisivas para que se possa compreender os primeiros anos do século XXI, a
professora brasileira Lucia Santaella (PUC/SP) sugere alguns cuidados com o uso da
palavra mídia. Mesmo que o jornal, o rádio e o computador estejam dentro de um
mesmo campo significativo o midiático - não podem ser considerados de maneira
generalizada. São meios de comunicação, obviamente, mas com especificidades que
devem ser observadas.
Segundo Santaella (2003), a cultura digital não é conseqüência imediata da
cultura de massa, mas o resultado de um processo no qual entram em jogo os modos
de produção, de distribuição e de consumo de informações. Esse processo, que a
autora denomina “cultura das mídias”, foi decisivo, no Brasil, nos anos 80, quando
começaram a surgir equipamentos que propiciavam o consumo de informações de
forma transitória. As diferentes formas de linguagens misturavam-se nos meios de
comunicação, caracterizando um hibridismo que viria a consolidar-se decisivamente
na era digitalizada.
As fotocópias, os videocassetes e aparelhos para gravação de vídeos e a
proliferação de videolocadoras, que disponibilizavam filmes cada vez mais recentes
para serem assistidos em casa, começavam a modificar o comportamento dos
indivíduos diante do consumo massivo. Era a possibilidade de escolha, o consumo
relativamente individualizado dentro da multiplicidade gigantesca de ofertas. Outros
recursos somaram-se a esses futuramente nesse processo, como o DVD, o Ipod e a
55
TV a cabo, acentuando uma das mais fortes tendências que caracterizam o sujeito na
atualidade: o individualismo.
“São esses processos comunicativos que considero como
constitutivos de uma cultura das mídias. Foram eles que nos
arrancaram da inércia da recepção de mensagens impostas de fora e
nos treinaram para a busca da informação e do entretenimento que
desejamos encontrar. Por isso mesmo, foram esses meios e os
processos de recepção que eles engendram que prepararam a
sensibilidade dos usuários para a chegada dos meios digitais, cuja
marca principal está na busca dispersa, alinear, fragmentada, mas
certamente uma busca individualizada da mensagem e da informação”.
(SANTAELLA, 2003: 15-16).
A sociedade contemporânea encontra-se regida pela midiatização, uma vez
que a exposição sistemática à informação redescreve as relações entre os homens e
entre os homens e as instituições sociais, transformando a própria consciência
humana e afetando diretamente o “self”, é a subjetividade sob o impacto de uma
nova ordem cultural.
Já que a informação circula em diversos meios, é dado ao homem o direito de
escolha, no que se refere ao acesso e ao veículo a ser utilizado. A possibilidade de
individualização constitui-se como uma das marcas de nossa temporalidade e pode
justificar, em parte, o fato de duas vinculações discursivas sobre o amor coabitarem
o mesmo universo midiático.
E se aqui opto por analisar os textos de alunos adolescentes é exatamente
porque eles exemplificam um certo zeitgeist sobre o amor, afinal são
“bombardeados” pelo tema através de diversos meios e assim formam suas opiniões.
A era digital trouxe consigo uma enxurrada de novos termos que,
paulatinamente, passaram a fazer parte do nosso vocabulário. A palavra “hipertexto”,
por exemplo, conforme as explicações de Santaella, surgiu nos anos 70, mas a idéia é
anterior a esse período. Em essência, significa um texto com amplas possibilidades,
que pode ser configurado sem seqüencialidade, utilizando-se de recursos variados, e
que oferece ao leitor escolhas diferenciadas. O espaço virtual redefine conceitos,
56
como o de texto, por exemplo, porque entra em jogo a relação interativa que
relativiza a idéia de um texto fixo. Há uma dialogicidade que promove uma abertura
maior e uma certa fragilidade cercando tudo que neste universo circula.
De acordo com Giddens, a evolução da imprensa é de relevante papel na
separação entre espaço e lugar, entretanto, esse processo só passou a ser considerado
um fenômeno global com o estreitamento entre mídia impressa e eletrônica. Diante
desse fenômeno, o sociólogo salienta que há uma tendência hoje, na mídia, de
apresentar os fatos e as informações de um jeito que denomina “efeito colagem”,
sem apresentar propriamente narrativas desenvolvidas, mas outras formas de
narrativas, com itens diversos que são apresentados simultaneamente e assim
assimilados, exatamente porque o momento atual reformulou as noções espaciais e
temporais. O homem contemporâneo pode dispor, num mesmo veículo, de
informações diferentes e de naturezas diversas, provenientes dos mais variados
lugares. Obviamente não estamos falando de textos desconexos, mas de hibridismo e
de textos que não seguem necessariamente uma determinada seqüencialidade ou
lógica.
“Como modalidades de reorganização do tempo e do espaço, as
semelhanças entre os meios impressos e os eletrônicos são mais
importantes que suas diferenças na constituição das instituições
modernas. E isso vale para as duas características básicas da
experiência transmitida pela mídia nas condições da modernidade.
Uma delas é o efeito colagem. (...) A página de jornal e o guia de
programação da televisão são exemplos igualmente significativos do
efeito colagem. O desaparecimento de narrativas e até, talvez, a
separação dos signos em relação aos referentes, como querem alguns,
marcam esse feito? Certamente não. Uma colagem não é, por
definição, uma narrativa; mas a coexistência de itens diferentes nos
meios de comunicação de massa não representa uma confusão caótica
de signos. Antes, as “histórias” separadas que são exibidas lado a lado
expressam ordenamentos típicos da conseqüencialidade de um
ambiente espaço-temporal transformado, do qual a predominância do
lugar praticamente se evaporou. Não se somam numa única narrativa,
57
mas dependem de unidades de pensamento e de consciência, as quais
de certa forma elas também expressam”. (GIDDENS, 2002: 31).
O efeito colagem pode ser compreendido, então, como hipertexto e é uma das
principais características dos novos formatos em que os textos circulam na
atualidade. Desse modo se constitui a contemporaneidade: um mosaico de textos
híbridos, espalhados em uma gigantesca rede, fáceis de ser assimilados, servidos a
cada indivíduo diante de seu monitor. Se assim esses textos circulam é porque há
leitores que os lêem. Emissores e destinatários trafegam sempre em vias de mão
dupla.
De fato, as formas tradicionais de representação da realidade adaptaram-se às
novas (a virtualidade, a interatividade e o espaço simulativo) e não há mais como
desvincular o homem e a sua relação tempo-espaço-agenda. Os compromissos
devem ser cumpridos, os objetivos atingidos, mas não se pode perder tempo. É
preciso observar os obstáculos que impedem ou dificultam o sucesso amoroso (entre
outros) e buscar rapidamente uma solução.
Falar de hipertextos e de internet pode parecer sem sentido quando se
pretende analisar textos publicados em revistas e livros, entretanto, é importante
situar o homem contemporâneo em sua realidade de vida. Estamos falando de um
homem que lê livros, mas que pode cercar-se de diversas outras informações, até
mesmo sobre o livro lido, através da internet. Os livros hoje não detêm, sozinhos, a
tarefa de trazer informação e conhecimento. O saber é dado de forma diversificada.
Os adolescentes brasileiros também têm ao seu dispor toda a sorte de recursos
midiáticos. Ainda que a maior parte dos estudantes matriculados em escolas públicas
seja de nível sócio-econômico baixo e não possua computadores em seus lares, eles
têm acesso à internet, através da própria escola (biblioteca virtual), casas de parentes
e amigos ou enquanto freqüentadores de “lan houses”.
Por esse motivo, os alunos da Escola Estadual de Ensino Fundamental
Henrique Lage (FAETEC/CETEP Barreto, Niterói) manifestam-se sobre o amor e
apresentam pontos de interseção dignos de serem aqui registrados, mesmo que não
tenham lido os livros de Fisher e Kipnis e desconheçam as reportagens aqui citadas.
Os fragmentos a seguir comprovam as filiações aos discursos que tendem a explicar
58
o amor, bem como demonstram a importância da mídia na vida desses adolescentes e
como eles têm acesso a todo tipo de informação.
[3] “... Se pensarmos bem ele acaba sendo biológico quando
vemos uma pessoa que gostamos, e o coração dispara ou até mesmo
sentimos uma atração física, entretanto até mesmo quando alguma
amiga fica dizendo sobre aquela tal pessoa e você acaba se deixando
levar. Convivemos com amigas namorando e acabamos conhecendo
pessoas novas na internet, entre outros e aprendemos de um jeito
ou de outro vivendo em sociedade”. (Thalita, 803, 14 anos).
[4] “... Tenho muita coisa pra fazer e só me apaixonei
verdadeiramente 1 vez, ela estudava aqui, era linda, mas o que
tinha de beleza, faltava em inteligência, ai já viu ne! Ela saiu da
escola. Nunca mais a vi, só falo com ela pelo Orkut. O resto é só
zuação, não quero nada a serio com ninguém mas quem sabe um
dia”. (Moisés, 803, 16 anos).
[5] “Eu acho que o amor é muito aprendido por muitas coisas,
principalmente pela televisão, também aprendemos pelas histórias
que as pessoas falam, a história de nossos pais, as pessoas também
são muito influenciadas por muitas músicas falando sobre o amor,
também são muito influenciadas pela historia do amor a primeira
vista, eu posso falar muito bem desse porque meu amor foi a
primeira vista”. (Jorge Juliano, 803, 15 anos).
[6] “Mas como diz Rogério Flauzino (Jota Quest) ‘o amor é o
calor que aquece a alma’. E o amor não é cego somente olha por
outros ângulos, além do físico existe o mesmo pulsar que dois
corações se tornam um”. (Rodolfo, 803, 15 anos).
É necessário reforçar que ninguém enuncia a partir do nada. Antes de cada
dizer circulam vários outros, decorrentes e transformados a partir de outros, do
59
passado, o que se constitui na Memória ou Interdiscurso, precedente inevitável de
qualquer dizer. Mesmo diante de jornais e revistas, com a informação impressa, é
clara a transformação que a era digital causou. Toda a aceleração e o impacto da
agilidade e da imagem, com ícones espalhados em hipertextos, modificou para
sempre o perfil do leitor na atualidade. Altera-se, assim, definitivamente, o modo
como o receptor se coloca diante de um texto. Modificam-se suas expectativas, bem
como se ampliam as possibilidades de interpretações.
De acordo com Charaudeau (2006: 221-222), a reportagem jornalística
procura explicar um fenômeno social ou político ao apresentá-lo ao leitor. Um
“fenômeno social” constitui-se em uma série de fatos ocorridos no espaço público e
que desperta o interesse geral. Trata-se de um acontecimento qualquer que
desencadeia uma certa desordem social que venha a afetar os indivíduos. Quando
acontece, portanto, o fato não representa mais uma “novidade”, pois já é do
conhecimento de muitos antes de ser divulgado pela imprensa. Por isso, ao contrário
do que muitas vezes se pensa, a função jornalística não é exatamente a de apresentar
um determinado fato inédito, mas sim a de explicar o fenômeno social ou político à
população. A explicação faz-se necessária levando-se em consideração a desordem
causada pelo fenômeno. A desorganização, a ruptura na ordem natural das coisas,
gera um desconforto que precisa ser elucidado.
A reportagem “A ciência do amor por que precisamos de um romance para
sobreviver”, já citada na página 46, divide-se em várias partes: inicialmente propõe-
se a explicar as causas físicas do amor, depois justifica como as pessoas que têm
vínculos afetivos mais duradouros vivem melhor, apresentando testemunhos de
alguns casais, e ainda cita a constante mudança de parceiros no meio artístico (a
reportagem será retomada no capítulo 2). Em um trecho da reportagem são
apresentados casos de “desorganização”, a “ruptura” no bem-estar proporcionado
pelo amor. Sob o título “Relações Perigosas Quando o amor desmedido vira
doença e o apaixonado precisa de tratamento”, a jornalista Claudia Jordão apresenta
alguns exemplos interessantes.
Ele foi manipulado, enganado e roubado em R$ 18 mil pela
namorada. Mesmo assim queria casar com ela. O jornalista Maurício
Santini, 44 anos, é exemplo de quem amou a pessoa errada, da pior
60
maneira. Mas engana-se quem pensa que histórias como essa são
raras. Pelo contrário, casos semelhantes em que a auto-estima do
apaixonado vai pelo ralo são corriqueiros em consultórios
psiquiátricos e em grupos de ajuda, como o MADA (Mulheres que
amam demais anônimas), presente em 11 estados brasileiros”. (Jordão
in TARANTINO, 2008: 51).
A insatisfação no amor também gera notícia, a mídia explora tanto os casos
de felicidade quanto os de infelicidade e assim o leitor se espelha e se identifica com
um caso ou outro.
A pesquisadora Helen Fisher, que mapeou o cérebro de pessoas apaixonadas
(como veremos no capítulo 2), também apresenta casos de fracassos amorosos. Ela
cita, nas páginas 197 e 198 de seu livro, o exemplo de Bárbara, que havia sido
examinada quando estava no auge de sua paixão por Michael e era feliz. Segundo a
autora, naquela ocasião, “seus olhos dançavam, ela ria com doçura e tinha saído da
mesa de fMRI com graça e entusiasmo, cheia de otimismo”. Porém, após cinco
meses de relacionamento, o namorado a deixara e Fisher encontrou-a arruinada, mais
magra, com os cabelos desalinhados, referindo-se a si mesma como: “infeliz”, sua
“auto-estima estava morta”, “meus pensamentos sempre voltam para o Michael...
Tenho um monte de infelicidade no peito”.
Convidada por Fisher, Bárbara aceitou fazer um novo mapeamento agora que
se encontrava em sofrimento, mas depois desistiu, abandonou o experimento e se
mostrou zangada com a pesquisadora. Sentia o que o psicólogo Reid Meloy (citado
por Fisher) chama de “raiva do abandono”. O amor misturado ao ódio causado pelo
abandono confundia-se no comportamento de Bárbara e a fazia atacar as pessoas que
estavam mais próximas.
Nas tramas dos folhetins televisivos os conflitos amorosos também são
expostos diariamente. Aguinaldo Silva, autor da última novela encerrada, que foi ao
ar em horário nobre (Duas Caras, Rede Globo), declarou que tem por hábito juntar
recortes de jornais com notícias que depois aproveita na ficção, como no caso de um
homem (interpretado pelo ator Herson Capri) morto no meio de uma apresentação
circense, vítima de uma “bala perdida”, ao lado de sua amante (a atriz Renata
Sorrah). A trama central da novela é a história de uma moça rica e inexperiente
61
(interpretada pela atriz Marjorie Estiano) que perde os pais e na mesma época se
apaixona por um desconhecido (Dalton Vigh). A herdeira, ingenuamente, casa-se,
assina documentos que conferem ao marido plenos poderes sobre seus bens e, logo
após a lua-de-mel, é roubada por ele, que vai embora, faz uma cirurgia plástica e
assume outra identidade. O golpe foi inspirado em casos reais publicados, bem como
a cirurgia plástica e a mudança de identidade.
Casos reais de crimes passionais são freqüentemente explorados em
programas televisivos, que costumam até mesmo usar atores para fazer a
reconstituição, e em toda imprensa, de maneira geral.
Quanto ao gênero textual jornalístico, a teoria indica que os acontecimentos
devem ser relatados sob um ponto de vista distanciado e global (princípio de
objetivação). O princípio de inteligibilidade também precisa ser respeitado, sendo
assim, a reportagem deve apresentar uma tese, um questionamento a respeito do
fenômeno apresentado, seja ele de ordem política ou social.
Na tentativa de comprovar essa “neutralidade”, os artigos citados na presente
tese apresentam depoimentos, entrevistas e exemplos da vida em comum de alguns
casais. São estratégias argumentativas que reforçam o ponto de vista a ser defendido,
mesmo que sob a aparência de neutralidade.
As expectativas do leitor voltam-se ao relato mais próximo possível da
realidade do acontecimento, em que haja maior imparcialidade capaz de dar
credibilidade ao texto. A validade da explicação será assegurada de acordo com a
habilidade do autor ao apresentar uma reconstituição elaborada com investigações e
testemunhos detalhadamente apresentados.
Seja qual for a estratégia utilizada, é certo que os textos procuram garantir
veracidade ao leitor. Este último, por sua vez, transfere à mídia a responsabilidade de
apresentar as respostas e as explicações para os fenômenos sociais que vivencia.
Para ser reconhecida em seu estatuto de comunicante, a mídia alia-se a
determinados domínios de saber que podem dar sustentação ao seu dizer,
respaldando-se com o intuito de não ser criticada ou desqualificada. Dessa maneira,
fica garantido o seu direito à palavra.
A cada projeto de fala é atribuída uma pertinência intencional, legitimada por
um estatuto de poder, que permite enunciar; bem como por um saber fazer, que torna
aceitáveis os enunciados no mundo - pertinentes, lógicos, críveis. Charaudeau (1996)
62
esclarece que há três condições básicas para o direito à fala: reconhecimento do
saber, reconhecimento do poder, reconhecimento do saber fazer.
O reconhecimento do saber caracteriza-se pelo conjunto de práticas
discursivas e representações sobre essas práticas que formam uma significação
consensual. Essa significação consensual constitui-se num referencial, tornando
possível a produção de outros enunciados. Constituem-se como “verdades” que são
compartilhadas socialmente. Mesmo que de “verdadeiras” não tenham nada, são
definidas comunitariamente e, assim, acreditadas.
“É assim que é necessário entender nosso discurso de
verdades e de crenças: discursos como contratos de
produção/reconhecimento construídos por consensos, que permitem a
cada um dos interlocutores tomar posição, isto é, proceder a uma
operação de validação”. (CHARAUDEAU, 1996: 27).
O reconhecimento do poder é o que garante a legitimidade sócio-institucional
em situações comunicativas. São atribuídos aos dizeres, conforme o lugar de quem
enuncia, estatutos de verdade e de autoridade (ou não). A mídia, enquanto conjunto
de práticas discursivas, ocupa hoje, de maneira generalizada, um lugar de autoridade.
Ela atende a esse novo homem reflexivo, que procura respostas rápidas sobre os mais
variados temas - filosóficos, científicos, religiosos, econômicos, esotéricos, estéticos,
afetivos, dentre outros.
O interessante é que a mídia permitiu-se ocupar o lugar que antes era
destinado à ciência. Muitos veículos fazem circular textos cujo teor se fundamenta
em pesquisas pertinentes a um determinado campo científico. Entrevistas com
determinados teóricos com vasta produção científica são apresentadas na mídia e
reduzem a poucas páginas o trabalho de anos de dedicação a um determinado
assunto. E as conclusões, algumas vezes apresentadas levianamente, podem criar no
leitor a ilusão da aquisição do conhecimento, em tempo recorde, de um saber
específico. Para compreendermos melhor este fenômeno, convém observar a
distinção que Charaudeau faz entre discurso informativo e discurso científico.
De acordo com o autor, informação é simplesmente enunciação. Portanto,
linguagem. Portanto, discurso. Ao construir um saber, a informação vincula-se a um
63
determinado campo de conhecimento e se define a partir de uma situação específica
de enunciação, para que, então, seja posta em funcionamento. Mesmo que não exista
garantia nenhuma quanto à receptividade do destinatário da informação, no que diz
respeito à sua aceitação ou adesão ou mesmo à sua compreensão, o enunciador
cerca-se de elementos que possibilitem atingir a um determinado objetivo. Sendo
assim, arma-se de estratégias que permitam ao seu dizer uma argumentação
consistente, segura e convincente.
O sentido sempre é construído numa determinada situação social, entrando
em jogo as visões de mundo, crenças e vivências dos indivíduos envolvidos. O
sentido nunca é dado antecipadamente, mas é o resultado de um duplo processo de
semiotização: de transformação e de transação. A informação, isto é, o ato de
informar, cabe perfeitamente nesse processo, uma vez que, para informar, o
enunciador precisa descrever (identificar/qualificar fatos), contar (reportar
acontecimentos) e explicar (fornecer as causas desses fatos e acontecimentos).
Respaldado por esse processo, o enunciador constrói um discurso
aparentemente coeso, que, veiculado, produz valor de verdade ou efeito de verdade.
Valor e efeito de verdade devem ser compreendidos como distintos, embora em
ambos esteja implícita a noção de “crença” e a noção de “verdade”.
A noção de verdade, no mundo ocidental, sustenta-se consensualmente na
fundamentação histórica, científica e epistêmica de conceitos. O valor de verdade
estaria vinculado a uma instrumentação científica que o predetermina, exterior ao
homem que, paradoxalmente, é quem o constrói. Pode ser definido como um
conjunto argumentativo eficaz que se sustenta na habilidade de saber dizer e saber
comentar o mundo, e se alicerça culturalmente. Baseia-se fundamentalmente na
evidenciação dos fatos.
O efeito de verdade seria muito mais uma interpretação subjetiva, quando o
indivíduo toma como verdade aquilo que lhe foi apresentado. Relaciona-se à pessoa
humana, suas crenças, suas experiências e expectativas, vinculando-se,
principalmente, às suas convicções pessoais.
“O efeito de verdade não existe, pois, fora de um dispositivo
enunciativo de influência psicossocial, no qual cada um dos parceiros
da troca verbal tenta fazer com que o outro dê sua adesão a seu
64
universo de pensamento e de verdade. O que está em causa aqui não é
tanto a busca de uma verdade em si, mas a busca de ‘credibilidade’,
isto é, aquilo que determina o ‘direito à palavra’ dos seres que
comunicam, e as condições de validade da palavra emitida”.
(CHARAUDEAU, 2006: 48-49).
Charaudeau salienta a distinção entre o discurso informativo e o discurso
científico, embora ambos sejam respaldados em “provas”. O discurso informativo é
amparado por uma prova que se sustenta pela constatação, pelo testemunho e pelos
relatos de reconstituição de fatos. O discurso científico, entretanto, depende de
demonstração racional para sua comprovação. Dado seu caráter tecnicista, é
desaconselhável ser desenvolvido num discurso informativo, que tende a atingir um
número maior e mais variado de indivíduos, nem sempre aptos a compreendê-lo. O
discurso científico parte do pressuposto de que seu interlocutor dispõe de algum tipo
de conhecimento prévio que o prepara para sua compreensão e aceitação. O discurso
informativo, ao contrário, traz em si o objetivo de levar ao destinatário um
determinado conhecimento, ignorando, entretanto, devido à heterogeneidade de seus
interlocutores, seus saberes, seus interesses e suas emoções.
O discurso informativo, portanto, relaciona-se estreitamente com o
imaginário do saber e com o imaginário do poder, considerando-se que sua tarefa
principal é levar um determinado saber a quem o ignora. Para tanto, é necessário ter
aptidão para transmitir esse saber e estar devidamente legitimado para repassá-lo
(saber/poder dizer/poder de dizer).
Todos estes aspectos devem ser levados em conta na análise de textos
midiáticos informativos, sem perder de vista que a verdade não está no discurso
(nem na enunciação, nem no enunciado) a verdade está no efeito que o discurso
produz.
Esses são pontos fundamentais nesta tese, pois os textos que discorrem sobre
o amor nas duas perspectivas distintas são tomados como informativos, já que
procuram “descrever”, “contar” e “explicar” o sentimento amoroso e o
comportamento dos indivíduos enamorados. Mesmo sob óticas diferentes, os textos
analisados voltam-se a um público heterogêneo, que não precisa ter nenhum
65
conhecimento prévio específico sobre o assunto. São os textos que oferecem ao leitor
o tema, os questionamentos e as respostas, criando, assim, efeito de verdade.
Mas será que os efeitos de verdade são suficientes para satisfazerem ao
homem na tarefa de cumprir as exigências de sua agenda?
Segundo Giddens, a reflexividade do eu é uma atividade contínua, o que
significa que os indivíduos voltam a interrogar-se a intervalos regulares sobre sua
situação no mundo. A narrativa pessoal a que se propõe cada pessoa, no entanto, pela
própria aceleração da vida cotidiana não tem como acontecer de maneira
aprofundada, além disso a multiplicidade de temas que surgem e são abordados a
todo instante pelos diferentes meios de comunicação, contribuem para que os efeitos
de verdade sejam tomados como verdades irrefutáveis (pelo menos até o surgimento
de um conceito mais moderno).
O reconhecimento do saber fazer é a credibilidade assegurada numa situação
comunicativa. Não basta o reconhecimento de ‘saber’ e de ´poder´, estes são
importantes, mas insuficientes, é necessário o reconhecimento da competência.
“... o projeto de fala é o resultado de um ato conjunto, que se
faz num movimento de vai-e-vem constante entre o espaço externo e
interno da cena comunicativa. É na aptidão em saber ligar esses dois
espaços e seus componentes que pode ser julgado o Saber Fazer do
sujeito e que pode ser reconhecida sua competência enquanto sujeito
tendo um projeto de fala. É o que lhe dará credibilidade, sem a qual,
não obstante toda legitimidade que possua pelo Saber ou pelo Poder,
ele não será entendido, e não lhe será reconhecido, de fato, o direito à
palavra”. (CHARAUDEAU, 1996: 29-30)
É importante ressaltar que a mídia estabelece objetivos específicos em seu(s)
projeto(s) de fala, os quais alicerçam objetivos comunicativos. Esses objetivos visam
a atingir o outro, de alguma forma, e conseguir sua adesão, através de uma ordem ou
de uma sugestão, dependendo se o produtor possui poder de autoridade ou não. Entra
em jogo a capacidade de fazer fazer ou fazer dizer alguma coisa ao receptor. Os
projetos de fala de caráter informativo, por sua vez, baseiam-se na transmissão de
“saber”. A mídia faz saber alguma coisa ao leitor/ouvinte. Esse objetivo é sustentado
66
pelo princípio da novidade, ou seja, parte-se do princípio que o interlocutor
desconhece o que está sendo informado. Noutras vezes, o que se pretende é a
persuasão, não apenas a aceitação do outro, mas seu convencimento, sua crença.
Assim, a mídia faz crer alguma coisa ao seu leitor/ouvinte. Entram em jogo,
obviamente, os princípios da lógica e da verossimilhança de propósitos, e não pode
haver contradição, nem motivos para desconfiança. Quando se quer sedutora, a mídia
tenta agradar o público e, desencadeando emoções e sensações, busca sua adesão
através do fazer prazer.
Na relação entre autor/leitor ou falante/ouvinte na chamada máquina
midiática, há, obviamente, os dois lados a serem considerados instância de
produção e a de recepção. A primeira sustenta-se tanto como fornecedora de
informação (fazer saber) quanto como desencadeadora do desejo de consumir as
informações que veicula. A recepção mostra seu interesse e induz, direta ou
indiretamente, a instância de produção a alimentá-la de acordo com seu desejo de
consumir determinadas informações.
Não se pode, contudo, considerar simplesmente a transmissão de saber. Na
verdade, os saberes são construídos a partir de um certo saber (outro) que torna
possível uma nova concepção. As informações e os acontecimentos são
constantemente confrontados e são produzidas representações, as quais nem sempre
coincidem com as representações dos receptores. Dessa maneira, a idéia de um
receptor facilmente manipulável deve ser desconsiderada, uma vez que a não
garantia da receptividade deixa transparecer uma certa dificuldade ao produtor de
uma enunciação segura e sedutora. A instância produtora, portanto, alterna-se entre o
papel de organizadora do conjunto do sistema de produção (lugar externo) e entre o
papel de organizadora da enunciação discursiva da informação. A instância
receptora, por sua vez, acumula as funções de destinatário (ponto de vista interno à
instância midiática) e de receptor enquanto consumidor (ponto de vista externo). (cf.
Charaudeau, 2006).
“Além disso, como para todo estudo do discurso, é necessário
levar em conta que os atores de um determinado contrato de
comunicação agem em parte através de atos, segundo determinados
critérios de coerência, e em parte através de palavras construindo,
67
paralelamente, representações de suas ações e de suas palavras, às
quais atribuem valores. Essas representações não coincidem
necessariamente com as práticas, mas acabam por influir nelas,
produzindo um mecanismo dialético entre práticas e representações,
através do qual se constrói a significação psicossocial do contrato. Isso
nos obriga a levar em conta tanto os discursos de justificativa,
produzidos pelos profissionais das mídias sobre seu modo de fazer,
quanto às características do funcionamento da máquina midiática em
si”. (CHARAUDEAU, 2006: 73).
O saber, que hoje se vincula à mídia e mais especialmente à atividade
jornalística, articula-se entre os homens e à realidade cotidiana retratada. Os mass
media não podem ser ignorados porque deles é a tarefa ininterrupta de tradução e
recriação dos acontecimentos no mundo. Os saberes são construídos e se alicerçam
conforme a realidade cotidiana dos indivíduos em suas comunidades, porém hoje, as
novas variáveis tecnológicas acabam por transformar drástica e velozmente a vida
das pessoas de comunidades diferentes e distantes. Alargam-se os limites e
estreitam-se as identidades.
Assim, os acontecimentos são divulgados e compartilhados através da
atividade discursiva que os meios de comunicação colocam em prática. O resultado é
a construção da realidade social. Entretanto, o princípio da comunicação determina
que haja sempre dois pólos interlocutores: emissor e receptor. A realidade construída
pela máquina midiática tem um poder extremo na realidade cotidiana e os receptores
só podem ser “ouvidos” (percebidos) através da audiência, do volume de vendas e
tiragens. Nesse sentido, a notícia se adapta ao momento, os temas se repetem nos
mais variados veículos, e a atividade jornalística constitui-se quase que
soberanamente como formadora de opinião e criadora da realidade social.
Vale questionar até que ponto se estende o poder do emissor e que papel
desempenha o receptor nesse processo. Principalmente se aqui está em destaque a
questão do homem contemporâneo e o cumprimento de sua agenda. Em se tratando
de agenda, convém retomar um termo antigo, da década de 70, quando os estudos
norte-americanos sobre gênero jornalístico se referiam à agenda-setting. Tratava-se
do ajustamento da agenda, ou seja, dos assuntos que deveriam estar em pauta, e as
68
pessoas elaboravam seus conhecimentos e os temas de suas conversas a partir
daquilo que os meios de comunicação consideravam importante veicular ou tirar de
circulação. Talvez seja leviano afirmar que a mídia detém a capacidade de
influenciar tão fortemente os leitores e ouvintes sobre suas ações, mas não se pode
negar que ela seja a responsável pelos temas que coloca em evidência em
determinados períodos de tempo nas sociedades.
69
CAPITULO 2 DOIS DISCURSOS SOBRE O AMOR
O homem contemporâneo lê, ouve, informa-se e também fala muito sobre
tudo o que o cerca. Não há assuntos que não possam ser abordados, não há mais
pudores nem tabus, não há limites para o dizer e/ou para o mostrar. Mas esse excesso
pode sinalizar uma eloqüência frívola, uma “fala” tola, prolixa, retumbante e
repetitiva, que, por sua vez, opõe-se a uma “escuta” ou “leitura” rápida, descuidada e
pouco interessada.
Abordar os discursos sobre o amor na contemporaneidade certamente não é
tarefa das mais fáceis, uma vez que há tantas publicações sobre o tema. Investida da
tarefa de observar a diversidade de textos que falam do amor e que são acessíveis às
pessoas hoje, fiz uma pesquisa prévia em livrarias, bibliotecas, bancas de jornais e
revistas, conversas com amigos e através da internet. Comecei pelo processo de
seleção de artigos publicados em revistas de grande circulação, voltadas ao público
adulto e ao leitor brasileiro de classe média, como no caso das revistas: Veja (Editora
Abril), Época (Editora Globo), Istoé (Editora Três), e a Revista O Globo, encarte do
jornal aos domingos. Outras reportagens foram surgindo ao longo da pesquisa, uma
vez que meu olhar já estava voltado a esse fim.
Quanto aos livros, era necessário fazer a distinção entre os que me serviriam
como suporte teórico e os voltados ao público de maneira geral, informativos, para,
através destes últimos, perceber pelo menos uma parte da variedade de abordagens
sobre o tema a que o leitor contemporâneo brasileiro está exposto. Muitos
despertaram meu interesse, como: Enquanto o Amor não Vem (Sextante, 1999), de
Iyanla Vanzant, situado nas prateleiras de auto-ajuda (“em busca de si e do amor que
se deseja”), cujos dizeres na capa apresentavam um argumento e tanto “400.000
livros vendidos no Brasil”. Com título semelhante, “Enquanto Meu Amor não Vem”
(Saraiva, 1998), de Isabel Vieira (e outros), apresentava uma excelente narrativa
70
destinada ao público infanto-juvenil. Cheguei a pensar em adotá-lo para trabalhar
com meus alunos, mas, infelizmente, não foi possível porque estava esgotado.
(Depois desisti de procurar um livro voltado apenas ao público adolescente, porque
pretendia delinear o perfil do homem contemporâneo como um todo). Destaco aqui
um fragmento da contracapa: “Enquanto meu amor não vem, estou aqui, pensando
nele. Pensando não, imaginando. A gente só pensa em quem conhece, e eu nunca vi
esse meu amor, nem de muito longe” (...) “Nenhum outro tema foi tão recorrente na
literatura e em outras artes como o ideal do grande amor; atravessou continentes e
séculos e continua nos encantando com sua força Eros e Psique, Tristão e Isolda,
Romeu e Julieta... Cada um o busca à sua maneira, porém não é difícil perceber que,
por mais individual que seja essa busca, nela reside sempre o mesmo sublime
mistério que atravessa todos os tempos”.
Indicado como literatura de “psicologia geral”, Ressonância: a nova química
do amor (Rocco, 1994), de Bárbara Miller Fishman e Laurie Ashner, apresentava-se
como uma tentativa de explicar o amor e auxiliar o leitor a encontrar a felicidade
amorosa através do equilíbrio entre individualidade e intimidade. Outro livro
interessante seria Amor na Internet quando o virtual cai na real (Record, 2002). O
texto é a narrativa da jornalista Alice Sampaio que “passou um ano e meio em salas
de bate-papo e sites de encontros para tentar descobrir como funciona o namoro na
rede e o que pensam as pessoas que freqüentam esses ambientes virtuais”. Ela
“selecionou 17 histórias e descreveu cada uma sem poupar os detalhes mais picantes.
Inclui dicas para namorar na internet e os melhores sites de encontros”.
Como Sobreviver à Perda de um Amor (Sextante, 2005) apresenta em sua
capa as seguintes informações em destaque: “Um dos livros mais recomendados por
psicólogos a seus clientes (The New York Times)” e “Mais de três milhões de
exemplares vendidos em todo o mundo”. Catalogado como livro de psicologia geral,
o livro (de Harold Bloomfield, MD., Peter McWilliams e Melba Cogrove, PhD.) “...
apresenta estratégias simples, úteis e inspiradoras para superar a dor de uma perda
seja a morte de uma pessoa querida, o fim de um relacionamento amoroso, a perda
da juventude, da saúde, de um emprego ou de um ideal”.
Na mesma linha de auto-ajuda, Será que a Gente Combina?: Descubra se seu
amor vai dar certo (Sextante, 2006), os autores, Allan e Bárbara Pease, prometem
auxiliar os leitores a encontrar a felicidade amorosa. “Com mais de 20 testes e
71
questionários, o livro esclarece alguns pontos que mais causam desentendimentos
entre homens e mulheres, como o sexo, o romantismo, a sogra, a mentira e a falta de
comunicação”.
Em O Carrasco do Amor e outras histórias sobre psicoterapia (Ediouro,
2007), o autor, Irvin D. Yalom, mistura psicoterapia e ficção ao narrar as histórias de
10 pacientes que procuram soluções para seus problemas cotidianos: solidão,
depressão, obsessões amorosas e desprezo.
Semelhante à linha de Helen Fisher, há também A Natureza do Amor:
conhecendo os sentimentos para vivê-los melhor (Atheneu, 2008), cuja autora, Dra.
Donatella Marazziti, psiquiatra italiana envolvida com pesquisas e trabalhos focados
nos sentimentos do amor e suas implicações na saúde e transtornos mentais, é citada
na bibliografia de Fisher (Marazziti, D. et al. Alteration of the platelet serotonin
transporter in romantic love, 1999).
Havia muitos outros, mas cito apenas esses porque cheguei a pensar em
utilizá-los na pesquisa e ficaria muito cansativo apresentar aqui uma imensa listagem
bibliográfica. O que eu percebia, no entanto, é que os textos, em sua maioria,
dividiam-se entre os que pretendiam confortar e aconselhar o leitor para conduzi-lo à
felicidade amorosa e os que tinham a intenção de explicar o amor como um
fenômeno passível de ser estudado, de maneira “científica”, como fenômeno sócio-
cultural ou como fenômeno biológico. Muitos dos que foram logo descartados
adotavam uma ótica religiosa sobre o assunto, alguns até mesmo esotéricos.
Dentre tantos, acabei selecionando Por que amamos a natureza e a química
do amor romântico (Record, 2006) porque se tratava de uma publicação recente, cuja
proposta de explicar o amor “romântico” cientificamente através do mapeamento
cerebral estava em total harmonia com as características do homem contemporâneo
apontadas por Giddens. Além disso, a obra e a autora eram sucessivamente citadas
em várias reportagens.
A National Geographic, por exemplo, em sua edição de fevereiro de 2006,
dedicava grande número de suas páginas à sua reportagem de capa “A Química do
Amor Por que nos Apaixonamos”.
A reportagem começava com a narrativa de uma mulher sobre o dia do seu
casamento. Os noivos, na casa dos trinta anos, não haviam se casado com a idéia do
“para sempre”, mas com os pés na realidade, afinal era um casal que já mantinha um
72
relacionamento íntimo e, conscientemente, havia feito uma escolha. Depois de narrar
a comemoração das bodas e o início da vida em comum, ela analisava o momento
atual:
“Que fique bem claro: ainda amo meu marido. Não há
homem que eu mais deseje. Mas é difícil sustentar o romantismo no
cotidiano juncado de migalhas em que nossa vida se transformou. Os
laços que unem se esgarçaram com o atrito do dinheiro, das hipotecas,
dos filhos, esses diabretes que de algum modo apertam o nó enquanto
enfraquecem as fibras. Benjamin e eu não temos tempo para vinho
gelado e salmão. E as banheiras de casa sempre têm patinhos de
borracha. Se tudo isso parece uma desgraça, não é. Meu casamento é
como uma peça de roupa confortável; até as brigas têm algo de
aconchegante, tão familiar que posso chamar de lar. E no entanto...”.
(SLATER, 2006: 39).
Após a narrativa, a reportagem tenta trazer algo de científico para justificar as
dificuldades que envolvem amor e casamento. A partir do testemunho dessa esposa,
há a citação do livro de Helen Fisher e quase todo o texto da reportagem é a
reprodução e o relato de sua pesquisa e de suas conclusões.
“A antropóloga Helen Fisher, 60 anos, (...) dedicou boa parte
de sua carreira ao estudo dos trajetos bioquímicos do amor em todas
as suas manifestações: luxúria, romance, apego, como eles crescem e
declinam. (...) Um dos principais trabalhos de Helen na década
passada foi examinar o amor, literalmente, com a ajuda de imagens por
ressonância magnética. Helen e seus colegas Arthur Aron e Lucy
Brown recrutaram voluntários que tinham estado ‘perdidamente
apaixonados’ por sete meses em média”. (idem)
Na capa da revista O Globo de domingo, 11 de junho de 2006, aparecia: “A
Química do Cupido Cientistas desvendam como a paixão comanda o cérebro”.
73
Era mais uma reportagem que pretendia explicar o amor através da ciência e, para
tanto, servia-se igualmente da pesquisa da antropóloga Helen Fisher.
A BIOLOGIA DO AMOR A química cerebral da paixão é
uma poderosa arma da evolução voltada para a perpetuação dos genes
humanos, revelam cientistas. (...): _ O amor se desenvolveu por uma
razão extremamente importante, sustenta a antropóloga Helen Fisher,
responsável pelo maior e mais completo estudo sobre o tema já
realizado até hoje, cujos resultados estão no recém-lançado ‘Por que
Amamos’ (Ed. Record). _ Ele nos permite canalizar a energia
reprodutiva em uma pessoa de cada vez. (...) Para a cientista, o amor
romântico definitivamente não é um fenômeno cultural, criado há
apenas alguns séculos. Em seus estudos mais recentes, Fisher e sua
equipe da Universidade de Rutgers, nos EUA, escanearam o cérebro de
32 apaixonados e constataram a existência de circuitos muito
específicos relacionados à paixão, à luxúria e a ligações de longo
prazo”. (JANSEN, 2006: 22).
A revista Aventuras na História (Editora Abril), de maio de 2006, também
escolheu o amor para sua reportagem de capa: “Uma História do Amor Descubra
por que esse sentimento influencia a humanidade desde as civilizações mais
antigas. E como ele mudou o mundo”.
Sem se voltar ao caráter “científico”, a reportagem se propõe a mostrar a
trajetória do amor e as mudanças de comportamento ocorridas ao longo da história.
Nos cantos das páginas há ilustrações de filmes, livros, pinturas e esculturas que
comprovam tais mudanças de comportamento.
“Completamente desconectado da família e até do sexo, de que
sobreviverá o amor? Para Helen Fisher, em seu mais recente livro,
‘Por que amamos’, o amor continua e continuará vivo alimentando-se
de sua capacidade de mudar e se adaptar. “Ele conta com 6 bilhões de
aliados que não desistem de procurá-lo e de exaltá-lo”, diz ela. Da
mesma forma que os antigos egípcios faziam. No fundo, no fundo, a
74
sensação é de que, nos assuntos do coração, as coisas mudam. Mas
permanecem no mesmo lugar”. (HAMA, 2006: 34).
Todas as reportagens, por mais que pretendessem mostrar o amor do ponto de
vista biológico, acabavam trazendo palavras que nos remetem ao humano, ao
comportamental, ao social e ao emocional, como é o caso da esposa (National
Geographic) que relata sentir-se segura em um relacionamento sólido e, ao mesmo
tempo, diz que não há mais tempo para vinhos gelados.
A revista Aventuras na História faz uma alusão também à professora Laura
Kipnis, para quem, de alguma forma, os relacionamentos acabam até por atrapalhar o
amor. Além de citar suas idéias e seu livro, a revista apresenta, na seqüência, uma
entrevista com Kipnis, que acabou ficando em evidência exatamente por levantar
questões consideradas “intocáveis”, como a vilania do amor.
Em “Os Brasileiros Acreditam no Amor? Pesquisadores vasculham o
comportamento amoroso no Brasil para saber se somos românticos” (Revista O
Globo, 27/11/05) os jornalistas recorrem à historiadora Mary Del Priore e a
psicanalistas para avaliar o comportamento amoroso dos brasileiros e a busca pelo
romantismo na atualidade. Na página 24, há uma referência à Kipnis e sua obra
polêmica:
Mais na berlinda ainda fica o romantismo no livro polêmico e
bem-humorado ‘Contra o Amor’, da professora de Comunicações da
Universidade de Northwestern Laura Kipnis, recém-lançado pela
Record. Nele, Laura garante que as expectativas e o modelo
encontrado para o casamento levam a vida do casal ao fim. _ O modelo
romântico cria expectativas frustradas, muita decepção. Escolhemos a
forma mais repressora para nos relacionarmos diz Laura”.
(MARINHO, A.; INTRATOR, S., 2005: 24)
Sem a pretensão de apresentar soluções, como é comum na maioria dos livros
de auto-ajuda, Kipnis levanta questões, com um texto instigante e provocativo. Por
isso, pareceu-me ideal para servir de contraponto à abordagem científica sobre o
75
amor. Como já informei na Introdução, o fato de ter assistido ao Roda Viva da TV
Cultura e ter considerado interessantes suas idéias e a maneira como as defendeu
diante de jornalistas e psicanalistas brasileiros reforçou minha escolha.
Sendo assim, as reportagens citadas na Introdução, publicadas nas Revistas
National Geographic, O Globo e Aventuras na História, serviram como textos
motivadores da pesquisa juntamente com os livros Por que amamos, da americana
Helen Fisher e Contra o Amor, da também americana Laura Kipnis. A partir deles
foi possível perceber a existência de duas formas discursivas de representação do
amor na mídia: como efeito biológico, químico, e como fruto de injunções sociais,
vinculadas especialmente à ideologia do amor romântico, mas que ganha hoje
contornos diferentes.
O motivo principal que me fez optar pelas duas autoras em especial, como já
esclareci, foi o fato de ambas estarem em evidência na mídia no momento em que
começava a selecionar o material para a análise. Como meu interesse estava voltado
à observação do homem contemporâneo e sua maneira de definir e vivenciar o amor,
considerando principalmente os princípios teóricos de Giddens e o perfil reflexivo do
homem atual, despertou-me a atenção o fato de as duas autoras, em termos gerais,
atribuírem “unilateralmente” ao indivíduo a responsabilidade pelo sucesso (ou
fracasso) em seus relacionamentos amorosos.
Esse é um ponto fundamental nesta tese, na qual levanto a questão de que
talvez a insatisfação, a depressão e a frustração (amorosa) humana estejam
vinculadas ao fato de o homem contemporâneo em sua vaidade narcísea obrigar-se a
arcar e considerar-se capaz de cumprir com todas as exigências de sua agenda
pessoal. Se está em sua agenda, então é item a ser cumprido, mas a realização em
todos os aspectos da vida é uma obrigação penosa e impossível de ser concretizada,
ainda mais no campo amoroso, quando o cumprimento deixa de ser uma
incumbência individual, já que envolve o outro e será, portanto, sempre imprevisível.
Obviamente há outras abordagens, mas optei por essas duas tendências que
percebo conviverem na atualidade uma corrente que defende o amor como efeito
de determinadas substâncias químicas no corpo humano e outra que entende o amor
como conseqüência comportamental que se justifica culturalmente. Dois olhares,
duas perspectivas que convivem e que estão presentes na mídia simultaneamente.
76
2.1 . O Amor e Sua Química
Sob o título “Não é mais ficção”, a Revista Veja (27/09/2006) publicou em
suas primeiras páginas uma entrevista com o neurocientista Roberto Lent, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na introdução, a jornalista Daniela Pinheiro
dizia:
“Está em curso uma revolução silenciosa da qual poucos se
deram conta. As chamadas neuro-tecnologias, que são as técnicas de
mapeamento cerebral, de desenvolvimento de drogas ou implantação
de chips que alteram o comportamento humano, sempre estiveram
restritas à medicina para o tratamento e a prevenção de doenças. No
entanto, elas passaram a ser usadas no cotidiano das pessoas sem que
exista um questionamento ético sobre o assunto. Empresas testam o
gosto de um refrigerante com base nas reações de prazer no cérebro de
um individuo. Estúdios cinematográficos monitoram o cérebro humano
para saber quais cenas de um filme são mais excitantes e merecem
fazer parte do trailer. Nos tribunais o uso da neuroimagem como
detector de mentiras é tido como uma grande promessa. Contudo, não
há regras nem limites éticos para lidar com o assunto. É o que alerta o
cientista Roberto Lent”. (PINHEIRO, 2006: 10).
Imediatamente fiz a relação entre os procedimentos similares, apresentados
na pesquisa de Fisher, com relação ao amor. Obviamente, em tempos de tanta
informação e reflexividade, o amor não poderia ficar imune a tanta tecnologia.
As reflexões apresentadas no capítulo anterior sobre mídia e
contemporaneidade são relevantes para que se possa analisar as duas representações
discursivas destacadas nesta tese. É preciso compreender as imposições às quais a
mídia se submete para enunciar, bem como, na outra ponta, os aspectos relacionados
ao leitor.
A primeira filiação discursiva sobre o amor a ser aqui analisada é a que
apresenta o amor como efeito químico-biológico.
77
O trabalho de Fisher parte do processo de seleção inicial, no qual as pessoas
se apresentavam como “apaixonadas” para que os cientistas pudessem desenvolver a
experiência.
Na verdade, o texto de Fisher desperta especial interesse exatamente porque
apresenta sua pesquisa como inovadora. Apoiada por uma equipe de neurocientistas,
que se propuseram a analisar as reações de pessoas apaixonadas por meio de
aparelhos de ressonância magnética, ela consegue comprovar o que já supunha: áreas
específicas do cérebro reagem em decorrência do aumento da corrente sangüínea que
caracteriza a paixão. Na interseção de seus estudos com outros, transdisciplinares,
Fisher chega à conclusão de que o amor (romântico) é inerente ao ser humano,
instalado ao longo de milhões de anos de evolução da espécie.
Esse amparo na ciência vem ao encontro das demandas do homem
contemporâneo, visto que há uma clara relativização tempo-espaço (cf. Giddens,
2002), e o que parecia um futuro distante acaba por tornar-se uma realidade: o amor
já pode ser comprovado e estudado cientificamente. As pessoas ainda não parecem
conscientes da preocupação que deveriam ter com esse tipo de prática porque ainda
não perceberam que já é uma tecnologia disponível e não mais coisa de filme de
ficção científica. Na entrevista citada, Lent afirma também que, mais que
preocupadas com a ciência, as pessoas deveriam estar atentas ao uso indiscriminado
das técnicas de mapeamento cerebral, uma vez que essas técnicas podem trazer
conseqüências imprevistas. É indiscutível, para ele, que seja um avanço, contudo
alguns cuidados devem ser tomados no que diz respeito às questões éticas. Quem
teria acesso aos laudos dos mapeamentos?
“... que escola receberia tranqüilamente um adolescente que
apresentasse um marcador cerebral indicando predisposição para se
tornar um psicopata? Além disso, há um debate ainda mais
complicado: quem deveria ter acesso a essas informações? A família?
O paciente? A escola? O empregador?”. (PINHEIRO, 2006).
A acessibilidade a tudo na contemporaneidade traz para os indivíduos novas
e sérias preocupações. Valores que se transformam e novas situações conflitantes
78
trazem à tona questionamentos que envolvem ética, moralidade e conscientização, e
que não podem deixar de ser avaliados.
Lent defende seu ponto de vista ratificando que quando se trata de cérebro
estamos diante do que é mais humano e individual nas pessoas. Cabe aos cientistas,
portanto, investigar, pesquisar e desenvolver essas tecnologias, mas sem deixar de
informar a população sobre elas, para que a sociedade possa definir os limites éticos
de sua atuação.
“Não há problema ético quando se desenvolve uma técnica
para tratar uma doença neurológica ou psiquiátrica. O problema ético
surge com a possibilidade de utilizá-la para aprimorar o que é normal,
uniformizar o que é diverso, enfim, mudar a natureza humana”. (idem).
Pode ser que o livro “Por que amamos a natureza e a química do amor
romântico” tenha se tornado um best seller tão rapidamente exatamente por trazer a
última palavra em tecnologia e neurociência. A questão é saber em que medida tais
pesquisas podem representar riscos para o homem contemporâneo.
Eleito, neste trabalho, como principal objeto de análise para observação da
filiação discursiva que coloca o amor como efeito químico-biológico, o livro de
Helen Fisher apresenta em sua introdução alguns paradoxos que relativizam a aposta
em se considerar o amor como resultado de substâncias químicas:
“Acredito que o amor romântico seja uma das três redes
cerebrais primordiais que evoluíram para orientar o acasalamento e a
reprodução. A luxúria, o anseio por recompensa sexual, surgiu para
motivar nossos ancestrais a procurar por união sexual com
praticamente qualquer parceiro. O amor romântico, a exaltação e
obsessão de ´estar apaixonado´, capacitou-os a concentrar a atenção
da corte em um só indivíduo de cada vez, conservando portanto o
tempo e a energia preciosos do acasalamento. E a ligação homem-
mulher, a sensação de calma, paz e segurança que com freqüência se
tem com um parceiro de longo prazo, evoluiu para motivar nossos
ancestrais a amar este parceiro por tempo suficiente para criar juntos
79
seus descendentes. Em resumo, o amor romântico está profundamente
incrustado na arquitetura e na química do cérebro humano”. (FISHER,
2006: 12).
No livro (capa, contracapa, introdução), o leitor é levado a crer que a autora
pretende enunciar de um certo lugar o da ciência para falar de amor. Entretanto,
como podemos observar no fragmento acima, o verbo “acreditar”, na primeira
pessoa do presente do indicativo, aciona a idéia de subjetividade e de crença e vem
exatamente na contramão da idéia de cientificidade. Já as palavras “acasalamento” e
“reprodução”, provavelmente escolhidas por pertencerem ao universo da biologia,
remetem à idéia de “vida animal”. Mas como somos animais “racionais” entram as
palavras: “três redes cerebrais primordiais”, pertencentes ao universo
antropológico, que procuram trazer cientificidade ao texto. Só que não é exatamente
o que se vê quando são apresentadas mais suposições do que propriamente
constatações ou comprovações. Ao concluir esse fragmento, contudo, a autora nos
faz uma afirmação: a de que o amor romântico tem lugar garantido na química do
cérebro humano.
Cabe aqui uma pergunta: o que é, afinal, o amor romântico? Como
transformar em material científico um conceito que se sustenta por um período
histórico e literário? O que seria o amor romântico senão uma interpretação prévia de
uma conduta amorosa relativa a um passado remoto?
O psicanalista Jurandir Freire Costa (1999) defende um interessante ponto de
vista com relação ao uso da expressão “amor romântico”, assim como apresenta
reflexões valiosas sobre o comportamento amoroso dos indivíduos na atualidade.
Tais reflexões serão apresentadas a seguir (item 2.2) quando voltarei o olhar para o
discurso sobre o amor que se sustenta culturalmente.
Fisher explica como iniciou o processo de pesquisas e testes para tentar
descobrir de que maneira funciona a química do amor romântico.
“Para investigar isto, resolvi fazer uso da mais recente
tecnologia de varredura do cérebro, conhecida como ressonância
magnética funcional (fMRI), para tentar registrar a atividade cerebral
de homens e mulheres que acabaram de se apaixonar loucamente. Para
80
esta importante parte de minha pesquisa, fui agraciada por minha
ligação com dois colegas excepcionalmente preparados, a Dra. Lucy L.
Brown, neurocientista do Albert Einstein College of Medicine, e o Dr.
Arthur Aron, psicólogo pesquisador da Universidade do Estado de
Nova York em Stony Brook (SUNY). Debra Mashek, então doutoranda
em psicologia na mesma universidade, Greg Strong, outro aluno de
pós-graduação da SUNY e o Dr. Haifang Li, um radiologista da SUNY
Stone Brook, todos talentosos, também tiveram uma participação
fundamental”. (FISHER, 200 :12)
De acordo com as teorias da comunicação de Charaudeau, Helen Fisher,
antes de iniciar seu texto, apresenta seu projeto de fala e respalda seu dizer em
elementos que podem lhe dar a devida confiabilidade. Para tanto, apresenta uma
equipe de médicos e pesquisadores americanos, “excepcionalmente preparados” e
“talentosos”, todos solidamente vinculados a uma universidade, o que, de acordo
com o senso comum, indica estudo, saber, conhecimento, dedicação, seriedade.
Estabelece, assim, um contrato inicial de comunicação com o leitor, e embora não
seja médica (é uma antropóloga, pertencente, portanto, à gama das ciências ditas
humanas) coloca-se no direito de enunciar sobre assuntos pertinentes ao universo da
medicina e da bioquímica. A autora procura deixar claro ao leitor por que tem seu
direito à palavra garantido: ao mostrar os nomes e atribuições de cada membro da
equipe de pesquisadores, atribui a si mesma a competência para discorrer sobre a
natureza e a química do amor (romântico).
A autora termina a introdução, prometendo: É hora de considerar
seriamente (grifo meu) a pergunta de Shakespeare: O que é o amor?. Inicia, então,
o primeiro capítulo, mas, em vez de serem apresentadas as explicações “sérias” (ou
científicas) para o amor, novamente a autora articula seu texto valendo-se da
literatura e utiliza fragmentos de obras consagradas e o exemplo da emoção
vivenciada e relatada por personagens da literatura universal.
Fica clara a intenção de sensibilizar o leitor e ganhar sua adesão exatamente
por acionar sua identificação a partir da emoção das personagens.
81
“Quantos homens e mulheres amaram-se em todas as épocas
que antecederam a mim e a você? Quantos dos seus sonhos foram
realizados; quantas de suas paixões desperdiçadas? Com freqüência,
quando caminho ou me sento para meditar, maravilho-me com todos os
casos de amor que este planeta absorveu. Felizmente, homens e
mulheres de todo o mundo nos deixaram muitas provas de sua vida
romântica”. (FISHER, 2006: 16).
Os fragmentos que falam de amor e dor buscam a proximidade entre
autor/leitor, o que fica mais evidente ainda na maneira como a autora se dirige ao
leitor (mim e você). Institui o tu-interlocutor, que é envolvido numa estratégia nítida
de persuasão, na qual a autora se mostra como pessoa comum ao mesmo tempo em
que personagens e deuses hindus “falam” do amor em narrativas, lendas,
depoimentos. Se o sentimento amoroso é comum a todo ser humano, que leitor
estaria fora da relação eu-locutor / tu-interlocutor? Está assinado, então, o contrato
de comunicação. Mas seria interessante pensarmos nos dois contratantes Quem
fala? Para quem?
De um lado temos o eu-locutor: um texto que promete funcionar como
discurso científico, mas que na verdade é informativo, na medida em que pode ser
lido e compreendido por qualquer leitor, independente de ter um conhecimento
prévio ou específico sobre o tema. Coloco o livro de Fisher como “mídia”, uma vez
que é um elemento pertencente a um conjunto de práticas discursivas da chamada
máquina midiática, cujos textos circulam livremente, atingindo a um público
numeroso e heterogêneo. Esse tipo de texto funciona como desencadeador de
“efeitos de verdade”. Tecido de clichês e expressões melodramáticas, muito mais
que apresentar um novo e cientifico olhar sobre o amor, o texto reforça idéias já
acimentadas na construção coletiva da memória discursiva que ampara o amor.
Do outro lado temos o tu-interlocutor: o homem contemporâneo, “reflexivo”,
ávido por esse tipo de literatura, pronto para assimilar seu conteúdo e compreender,
afinal, o que sente. A partir de tal leitura terá um conhecimento a mais, específico,
que lhe permitirá melhorar sua qualidade de vida ou até mesmo ser o condutor dos
próprios sentimentos. Tem como meta atingir a realização dos objetivos que
estabelece para si e gerir sua vida da melhor forma toda a tecnologia e todo tipo de
82
informação estão ao seu alcance para este fim. Organiza sua vida como organiza sua
agenda e se programa para escrever sua própria história de sucesso e felicidade. E o
que o amor tem a ver com isso? A realização amorosa é uma das condições para sua
felicidade, assim como o sucesso profissional, os cuidados com o corpo e a mente,
morar e comer bem e assim por diante.
A ação de substâncias químicas no cérebro desencadeia determinadas reações
e sensações corporais no indivíduo apaixonado que dizem respeito apenas ao seu
próprio organismo. Já as citações literárias apresentadas falam de experiências
amorosas e reações compartilhadas, vivenciadas a dois. Parece paradoxal, portanto,
avaliar as reações de forma unilateral (corpo e sensações / sexo) e, a seguir,
apresentar depoimentos e citações respaldadas no campo ideológico (mente e
sentimento / enlevo, sublimação, doação, admiração) que tanto se difere do
biológico.
Nos fragmentos das redações a seguir tento evidenciar esse “roteiro” de vida
estabelecido. Os adolescentes (interlocutores da máquina midiática) já dão
testemunho de seus projetos de vida. Mais interessante ainda é observar que, para
alguns, a felicidade amorosa depende de uma ação pessoal, ou seja, tomar para si a
tarefa de conquistar a felicidade amorosa. Esta é uma forma unilateral de encarar a
experiência afetiva.
[7] “Eu espero que o amor me faça feliz todos os dias, espero que
o amor me dê uma grande família e um melhor modo de vida. [...]
Eu espero que o amor faça que eu na minha velhice, não fique
sozinho, que morra com pelo menos uma pessoa perto”. (Emerson,
803, 15 anos).
[8] “Espero que no futuro esse namoro se torne um casamento
ou não, sei lá só Deus sabe mas a minha vontade que esse namoro
vá para frente, e que tenha um ótimo futuro, porque eu acho que
ele é o menino perfeito para mim, eu gosto dele como eu nunca
gostei de outro menino , eu sinto no meu íntimo que com ele é
diferente”. (Ana Cláudia, 803, 14 anos).
83
O agendamento de vida de Emerson vai muito além de um futuro próximo,
vai até a velhice e depois à morte. Mas o amor deve fazê-lo feliz todos os dias e lhe
dar uma grande família. A importância do amor em seus projetos está no fato de que
representa um melhor modo de vida. Ele não descreve uma mulher, uma
companheira, não nos dá nenhuma dica de como seria sua amada, mas somente o
papel que desempenharia em sua existência: o de alguém que permaneceria ao seu
lado e não o deixaria morrer sozinho.
Ana Claudia espera que o casamento perpetue a felicidade que sente agora. É
a confirmação das teorias da reflexividade de Giddens, cuja narrativa do eu é
contínua e revista a determinados espaços de tempo. Estou feliz? Está valendo a
pena? Devo continuar ou desistir desse relacionamento? Claro que é o texto de uma
menina de 14 anos e o amor que sente agora (diferente de todos em sua “longa”
experiência de vida) é o que ela gostaria de levar adiante.
[9] “Eu acho que para formar um bom amor, estas duas pessoas
tem que se amar, gostar das mesmas coisas, etc. Mas também tem
vezes que para se formar um amor, eles se conhecem desde criança,
um implica com o outro até chegar um dia em que os dois se beijam.
Depois disso tudo ele pode ser melhor (em alguns casos) quando um
da presente para o outro de 1 mês, 6 meses e um ano, pode ser que
termine entre estes anos, mas pode ser que dure 25 anos (bodas de
prata) e 50 anos (bodas de ouro). Isso ocorre porque há amor entre
eles”. (Luiz Felipe, 803, 14 anos).
[10] “O amor é um sentimento muito lindo que eu tenho orgulho
de sentir por ele. Não me importo que ele seja mais velho e nem dele
ser o ex- da minha melhor amiga, mas foi ele que veio a mim. Sei que
sou uma tola de ter esperança de ter um futuro com ele, mais no
coração agente não manda. Durmo e sonho como seria o nosso futuro
eu ainda nova ele um coroa responsa”. (Daniela, 803, 14 anos).
Luiz Felipe idealiza um relacionamento amoroso em pequenos detalhes: o
início (“formar”), o primeiro beijo e os presentes nas datas comemorativas em que os
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apaixonados estiverem juntos. O tempo de duração da união representa a existência
do amor. Mas como é um indivíduo da contemporaneidade, convive com a realidade
de relacionamentos que não duram, afinal, “pode ser que termine entre estes anos”. É
como se ele dissesse nas entrelinhas, “tudo bem, e daí?”. Mas ele aposta na
interatividade, na possibilidade de um relacionamento que não dependa apenas de
sua ação individual, mas de troca, dos mesmos gostos, de parceria. O tempo entra
como fator determinante para o sucesso da relação, e até mesmo podemos falar em
consumo, afinal a cada comemoração deve haver troca de presentes... Mas o mais
interessante é que ele não fala em formar uma família, não fala em filhos nem em
casamento propriamente ele idealiza “formar um bom amor”, a duração do amor é
que determina a existência de um casamento (uma união), bodas de prata ou de ouro.
Daniela, por sua vez, sonha (embora seja “uma tola de ter esperança”) ter um
futuro com seu amado, alguém mais velho, que ela imagina um “coroa responsa”, ou
seja, um homem mais velho e responsável, daqui a alguns anos. Diz que se acha tola,
mas na verdade acredita nesse amor unilateral, tanto que imagina um futuro ao lado
desse rapaz mais velho que ela. Era o antigo namorado de sua amiga, mas veio até
ela, o que lhe dá o direito de agir e ir adiante, sonhar e colocar em prática sua
idealização. É um projeto presente em sua agenda pessoal, independente de ele
querer ou não.
Fisher, na qualidade de eu-locutor, esclarece que um dos seus passos iniciais
foi fazer uma pesquisa a respeito do amor romântico através do que ela denomina
“literatura psicológica”.
“Para entender o que realmente leva a esta profunda
experiência humana, investiguei a literatura psicológica sobre o amor
romântico, selecionando aquelas características, sintomas ou
problemas físicos que foram repetidamente mencionados”. (FISHER,
2006: 18).
Essa pesquisa prévia levou-a a elaborar um questionário que foi distribuído
entre homens e mulheres na Universidade de Rutgers, em Nova Jersey, e na
Universidade de Tóquio, com o objetivo de constatar se as características do amor
romântico são universais.
85
“A pesquisa começava: ´Este questionário trata de
´estar amando´, as sensações de estar enfeitiçado, apaixonado, ou ter
uma forte atração romântica por alguém. Se você não está atualmente
´amando´ alguém, mas se sentiu muito apaixonado por alguém no
passado, por favor responda às perguntas com essa pessoa em mente´.
Os participantes eram depois indagados sobe várias questões
demográficas, idade, situação financeira, etnia, orientação sexual e
estado civil. Também perguntei sobre seus casos de amor. Entre as
perguntas: ´Quanto tempo você ficou apaixonado?´ ´Qual o percentual
diário, em média, que você pensa nesta pessoa?´ E ´Você às vezes se
sente como se seus sentimentos estivessem fora de seu controle?´.
Depois vinha o corpo do questionário. [...] Continha 54 afirmativas,
como: ‘Tenho mais energia quando estou com _____´. ´Meu coração
dispara quando ouço a voz de ______ ao telefone´. E ´Quando estou
em aula/no trabalho, minha mente vagueia para _______´”. (FISHER,
2006: 19).
.
O questionário iniciava com a identificação do participante, que deveria
colocar a data de seu nascimento e circular se pertencia ao sexo masculino ou
feminino. Depois das perguntas relativas ao amor (e ao amado), vinha uma outra
parte para identificação, na qual a pessoa deveria revelar sua ocupação, renda anual
de sua família de origem, renda anual atual, nacionalidade, nacionalidade dos pais e
dos avós, religião, grupo étnico e, finalmente, deveria circular um número entre 1 e
7, que melhor refletisse sua orientação sexual (o número 1 significava 100%
homossexual e o número 7, significava 100% heterossexual).
Dados numéricos, estatísticas e comprovações são elementos necessários em
qualquer pesquisa em nosso mundo reflexivo.
“Começamos com a premissa de que ser humano é saber, quase
sempre, em termos de uma descrição ou outra, tanto o que se está
fazendo como por que se está fazendo”. (GIDDENS, 2002: 39).
86
Toda a ação humana é caracterizada pela consciência reflexiva que justifica
as ações e os sentimentos. O indivíduo precisa monitorar continuamente sua vida,
seus projetos, suas atividades, de maneira a compreender as razões do seu
comportamento, para seguir adiante na condução de seu ‘destino’.
A consciência prática diante do cotidiano e o sentido de pertencimento a um
grupo promovem no indivíduo uma sensação de estabilidade, de “segurança
ontológica”. Por isso, é importante determinar a que grupo pertence cada indivíduo
que colaborou na pesquisa de Fisher: saber sua origem, seu nível sócio-econômico,
sua fé, sua cor e escolaridade. É preciso selecionar, rotular, especificar. E cada
participante, por sua vez, precisa saber a que grupo pertence, precisa ser capaz de
identificar-se para estar no mundo.
O sentido de realidade é construído tacitamente pela coletividade e nela se
escora, o que demonstra ao mesmo tempo, e paradoxalmente, a força e a fragilidade
da realidade compartilhada. Novamente, o pensamento de Giddens encontra eco no
de Baudrillard (simulacros) e no de Bauman (medos, amores, sociedades líquidas).
“O que torna uma resposta ‘apropriada’ ou ‘aceitável’ precisa
de um referencial compartilhado não-demonstrado e indemonstrável
da realidade”. (GIDDENS, 2002: 40).
A realidade compartilhada também cria sentidos no campo da afetividade. Há
uma orientação que se reproduz culturalmente com relação ao amor, vinculada a uma
memória compartilhada, da qual fazem parte dizeres e comportamentos.
Na verdade, o questionário de Fisher conduz os participantes não apenas a se
perceberem como elementos de um determinado grupo que os define, mas também a
fazerem uma análise interna de suas emoções.
Nas redações analisadas pude perceber muitas interseções entre as perguntas
do questionário de Fisher e a descrição das emoções e sensações por parte dos
adolescentes quando escrevem sobre o amor.
[11] “O amor é inexplicável. Acontece da forma mas imprópria
nos momentos mais inesperados e inesquecíveis. Que nos assola e
nos pertuba é chato! Mais nunca mais você quer se disfazer dele.
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Ele nos laça, nos põe de joelho à quem amamos. Fazemos o que a
pessoa o que quiser. Seremos escravos eternos deste sentimento que
destrói a nossa cabeça para reconstruir nosso coração. Choramos,
gritamos, pensamos, tudo de bom e ruim. Mas, apesar de tudo você
se sente bem, só de vê-la todo dia. Só de falar com ela todo dia. Só
de ser amigo dela”. (Bryam, 805, 14 anos).
Mesmo sem ter conhecimento do questionário, o aluno parece “responder” a
algumas das questões constantes nele. Por exemplo, a questão S4 da primeira parte
do questionário: “S4. Quando você está apaixonado, você sente como se estivesse
emocionalmente fora de controle?” (Fisher, p. 274). Para Bryam, o amor “perturba”
e é até mesmo “chato”, na medida em que nos “laça” e “escraviza”, colocando-nos
“de joelho” e à disposição da pessoa amada (“fazemos o que a pessoa quiser”).
Perdemos totalmente o controle quando “choramos, gritamos, pensamos tudo de bom
e ruim”, mas, apesar de tudo, “nunca mais você quer se desfazer dele”. Este
pensamento também está em harmonia com a questão número 26, da segunda parte
do questionário, em que o voluntário deve marcar um número, de 1 a 7, que
estabeleça seu grau de concordância ou discordância em relação à afirmativa: “26.
Eu nunca desisto de amar ________, mesmo quando as coisas ficam ruins” (Fisher,
p. 281). Da mesma forma, a questão 49 da segunda parte também está de acordo com
o pensamento de Bryam ao afirmar que não podemos fugir ao encantamento
amoroso quando somos arrebatados, uma vez que o amor nos “assola”, “perturba”,
“nos laça” e nos “põe de joelhos”, sem que possamos escapar. “49. Apaixonar-se não
foi opção minha; eu fui fisgado/a.” (Fisher, p. 286).
As questões 1 e 14, da segunda parte do questionário, parecem igualmente
respondidas pela aluna Thais. “1. Quando estou apaixonado, mal consigo dormir
porque fico pensando em _____________”. (Fisher, p. 276). “14. Todo dia, a última
pessoa em quem eu penso antes de dormir é _________”. (Fisher, p. 278).
[12] Amar é pensar no outro quando acorda, mas também
quando vai dormir”. (Thaís, 805, 14 anos).
88
A redação da aluna Luiza Helena também parece pronta a responder várias
das questões elaboradas por Helen Fisher e sua equipe.
[13] O amor chega de repente, deixando tudo em volta de nós
como um conto de fadas, mas ele às vezes fica sem pé e cabeça. As
vezes erramos por inocência, o amor é maluco mais é tudo na vida
Ele faz você deixar de acreditar em todos os seus amigos e só
confiar nessa pessoa. O amor é um sentimento forte, que às vezes
machuca, outras vezes nos faz ficar feliz com apenas um sorriso.
Com apenas um beijo tudo que está em volta vira mágica. Por
apenas inocência não correspondemos as pessoas que nos amam. O
amor é simplesmente imortal!”. (Luiza Helena, 805, 16 anos).
Claramente a aluna relaciona o amor aos contos de fadas, ao irreal, à fantasia,
à magia e à falta de controle, uma forma de irracionalidade, já que “é tudo na vida”,
mas é “maluco”.
[14] “É uma forma de expressar o sentimento com uma pessoa,
você pode amar de várias formas, pela amizade e por outras
coisas... mas se você ama e é correspondido lute por essa pessoa que
um dia ela vai se entregar a paixão, e se você não corresponde ao
amor dos outros ame sem fronteiras pois essa pessoa pode gostar
muito de você. Amar... hum o que eu posso dizer, eu acho que amar
é todo sentimento puro que há no coração, porque o amor é um
sentimento bonito e raro de se ver. Quando for se encontrar com
seu amor bote sua roupa mais bonita, bote seu melhor perfume,
passeie ao lado dela porque só isso importa quando se está
apaixonado”. (Luan, 805, 15 anos).
Luan deixa claro em seu texto que está disposto a “tomar as rédeas” quando o
assunto é o amor, por isso ele acredita que mesmo que não seja correspondido
quando ama deve lutar pelo amor porque “um dia ela vai se entregar a paixão”. E se
acontecer o inverso, se for amado e não amar, deve aceitar o amor sem nenhum
89
constrangimento (“sem fronteiras”), pois o fato de ser amado pode trazer-lhe
benefícios. O amor, em ambos os casos, está no topo de suas prioridades, afinal é
“raro de se ver” e vale a pena sair a sua procura: doando-se a quem ele ama mesmo
sem ser correspondido, ou recebendo o amor de quem o ama, apesar de ser-lhe
indiferente. Amar a qualquer preço parece estar nas entrelinhas.
Ao mesmo tempo em que procura dados para fundamentar cientificamente
sua pesquisa, Fisher a todo momento recorre a uma memória discursiva que sustenta
o amor e reforça as formações ideológicas sobre ele. Como nas palavras de Pablo, a
seguir, que define o amor como “raro, inexplicável e confuso”, um sentimento que
nos faz “delirar”, uma “alucinação” que nos transforma em “tolos”.
[15] “... ele é um sentimento muito complicado quase inexplicável
realmente confuso. Amor é uma sensação rara que nos muda, nos
transforma em tolos, nos faz delirar, amar é gostar de uma pessoa
mais do que a si mesmo, amor também pode ser definido como
vilão quando nos ilude por uma pessoa que não nos ama. Voltando
a explicar amor é vontade irresistível de sempre estar com a pessoa
amada. Bem, amor é confusão, é um quebra cabeça, é simplismente
alucinação”. (Pablo, 804, 14 anos).
A aluna Ana Cláudia também parece concordar com a antropóloga quanto ao
fato de o amor ser um sentimento universal, mágico e incontrolável:
[16] “É a melhor coisa do mundo, ele nos faz sentir uma pessoa
melhor, nos faz pensar em coisas malucas, fazer loucuras e querer
esta com a pessoa amada o tempo todo. É sentir um frio na barriga,
sentir o coração acelerar, as pernas trêmulas, nossa é se sentir nas
nuvens. É como se o tempo parasse, é uma sensação inesplicável
que só quem ama pode sentir. Mais nem tudo são flores, as vezes
tem brigas e até separações que nos fazem sofrer muito, chorar sem
parar e até pensar que o mundo virou de cabeça para baixo e
quando resolvidas nos faz ficar radiantes, parece que o coração vai
sair pela boca. É tão bom amar e ser amado, um amor
90
correspondido é a melhor coisa do mundo. Tem também o primeiro
amor que é uma coisa linda, mágica, maravilhoso, é aquele que nos
marca para sempre. O primeiro beijo é muito legal nos faz sentir
mais maduras, mais adultas enfim se sentir mulher e não mais
menina. O amor é como uma brincadeira a dois, que tem que saber
jogar e respeitar bem as regras e nunca pensar em ganhar ou
perder e sim em empatar com o outro. O amor é um sentimento
bom que qualquer pessoa pode sentir em qualquer lugar, qualquer
idade, qualquer raça ou qualquer cor”. (Ana Cláudia, 803, 14 anos).
Os textos dos alunos evidenciam as idéias sustentadas socialmente quando
está em jogo a definição do sentimento amoroso. Nas definições as reações físicas
misturam-se ao ideológico, ao simbólico. A intenção aqui é observar a semelhança
entre as conclusões de Helen Fisher e as definições de amor dos adolescentes.
Mas seria seguro afirmar, por exemplo, que “Estar apaixonado é universal à
humanidade; faz parte da natureza humana” com base em um questionário
distribuído apenas em dois pontos do planeta, duas universidades? Quais os critérios
considerados para a elaboração das questões? Não seriam, talvez, questões que por si
só já induziriam o leitor a uma determinada resposta, esperada de antemão?
Talvez a proposta em si esteja em harmonia com o projeto de fala da autora,
na medida em que montou seu texto voltado a um determinado público: pessoas que
amam, sofrem, identificam-se com personagens da literatura (do cinema, talvez,
também) e compram livros que podem levá-las a encontrar algum conforto ou
alguma explicação para determinados sentimentos e sensações. Ou seja: o livro pode
ser lido por qualquer um. Encaixa-se perfeitamente nos interesses do projeto de vida
de um “eu” contemporâneo, na medida em que aposta no monitoramento individual
de cada existência.
A intenção de escrever de forma “leve” e próxima do leitor deixa clara a
estratégia argumentativa de persuasão. Tal estratégia vincula-se a uma idealização
prévia da constituição do tu-interlocutor (pathos), que (pre)determina um
comportamento específico do locutor para ter seu dizer por ele aceito (ethos). De que
maneira o enunciador deve se colocar para enunciar (melhor)?
91
De acordo com Maingueneau (2002), ethos apresenta sua natureza na retórica
aristotélica e nas novas abordagens que o conceito passou a adquirir ao ser
incorporado pela linha francesa de Análise do Discurso. Na retórica antiga, a
demonstração por ethos consistia nas propriedades utilizadas pelo orador para causar
boa impressão de si ao auditório, para dar uma imagem de si capaz de convencer
esse auditório e ganhar sua confiança, através do modo como construía seu discurso.
Tais propriedades estavam relacionadas ao tom de voz, facilidade de comunicação,
seleção lexical e argumentos, gestos, mímicas, sorrisos, olhares, postura etc.. Nesta
acepção, ethos está ligado à própria enunciação e não a um saber extradiscursivo
sobre o locutor. Não é a sua história ou a sua experiência que lhe garante a
confiabilidade, mas a sua habilidade na construção do ethos enquanto efeito
discursivo.
“Esse é o tipo de fenômeno que, como desdobramento da
retórica tradicional, podemos chamar de ethos: por meio da
enunciação, revela-se a personalidade do enunciador. Roland Barthes
salientou a característica essencial desse ethos: ‘São os traços de
caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importa sua
sinceridade) para causar boa impressão: são os ares que assume ao se
apresentar. [...] O orador enuncia uma informação, e ao mesmo tempo
diz: eu sou isto, eu não sou aquilo´. Desse modo, a eficácia do ethos se
deve ao fato de que ele envolve de alguma forma a enunciação, sem
estar explícito no enunciado”. Grifos meus. (MAINGUENEAU, 2002:
97-98).
Esse ethos faz-se presente tanto nos enunciados escritos quanto nos orais. O
orador que se dirige a uma platéia pode dispor de outros recursos além das palavras
para dar estatuto de verdade ao seu dizer: gestos, expressões faciais, entonação de
voz, vestimentas. Nos textos escritos, pode-se garantir o direito à palavra não só
pelas escolhas lexicais, mas o próprio veículo de transmissão entra em questão
quando se quer confiabilidade e credibilidade. A noção de autoridade e competência
é aceita pelo leitor que constrói uma representação a respeito do enunciador. À
medida que o leitor entra nesse “jogo”, isto é, quando aceita a idéia de
92
confiabilidade, competência e autoridade que o enunciador tenta passar-lhe para dar
estatuto de verdade ou efeito de verdade ao seu dizer, então, o leitor passa a
desempenhar o papel de “fiador” no contrato comunicativo. Ao procurar criar uma
imagem de confiança que respalde seu dizer, numa relação interativa, o emissor
igualmente constrói uma imagem (idealizada) de seu receptor (pathos).
O texto da antropóloga Helen Fisher não está nas livrarias por acaso. Muito
pelo contrário, há um público para o qual ele foi previamente pensado antes de ser
escrito. Um público que, por sua vez, já estava ali, pronto para recebê-lo e que,
engendrado no ethos discursivo, deixa-se persuadir nas artimanhas do processo
comunicativo. Mas que garantias há nesse processo de receptividade? Que tipo de
receptor é o indivíduo da contemporaneidade?
A mídia tem papel preponderante nesse processo, uma vez que viabiliza
campanhas promocionais que veiculam produtos de qualquer natureza, como livros.
Amplamente divulgados, em programas televisivos de entrevistas, em reportagens
impressas ou nos links acessados através da internet, o livro e o nome de Helen
Fisher surgem rapidamente quando o tema é “amor”. Imagens do livro e da autora
circulam igualmente num fluxo informativo dinâmico que acaba por assegurar-lhe o
direito à palavra. A mídia ajuda a construir o ethos que permite sucesso (de vendas) à
autora e à editora.
Uma outra reportagem trouxe à tona as mais recentes descobertas da ciência
sobre o amor. A Revista Istoé nº 1996, de 06/02/2008, apresentava na capa o
seguinte título: “A Ciência do Amor Por que precisamos de um romance para
sobreviver”. Nesse texto, o nome de Fisher não é citado, mas sim o do pesquisador
brasileiro Ricardo Monezi (PUC/SP) e dos cientistas Charles Wysocki (Monell
Chemical Senses Center/EUA) e Gordon Gallup (Universidade de Albany/EUA).
Diante das sensações comumente citadas quando o assunto é a paixão e o
corpo humano, a reportagem salienta o fato de que agora é de interesse da
neurociência o funcionamento do cérebro quando estamos apaixonados.
“Os cientistas estão se esforçando para explicar, por exemplo,
os processos que desencadeiam uma revolução bioquímica no
organismo de homens e mulheres a partir de um simples olhar e quais
as diferenças entre a paixão e o amor. O que se quer é entender por
93
que amamos, como amamos e quais as repercussões que esse
sentimento apresenta para a mente e o corpo”. (TARANTINO, 2008:
45).
De maneira geral, o conteúdo da reportagem muito se assemelha ao texto de
Fisher: a necessidade de sobrevivência da espécie humana, a atuação conjunta dos
sentidos (olfato, visão, paladar, tato e audição) para garantir a seleção do parceiro
ideal para fins reprodutivos e as substâncias liberadas pelo cérebro, como a
serotonina, a ocitocina e a dopamina. Também há pontos de interseção com a
reportagem da National Geographic sobre a euforia da paixão, as reações no homem
e na mulher durante o ato sexual, e as vantagens de uma relação duradoura. O ponto
principal é justificar os aspectos físicos que possibilitam surgimento do amor.
“... muito antes de se encantar com um rosto bonito ou uma boa
conversa, ele ou ela foram estimulados por outros fatores sem saber. O
cheiro é um deles. Não se trata de ser atraído pelo perfume da moda,
mas por um conjunto de moléculas exaladas pela pele chamadas
feromônios. Essas substâncias despertam reações de atração ou de
rejeição, dependendo de cada um. Ou seja, o mesmo cheiro funciona
como um ímã para um e como um repelente para outro”. (idem: 46).
Embora esteja amparado em uma linguagem voltada ao biológico, o texto não
tem como escapar das armadilhas dos consensos culturais, por isso, há afirmações do
tipo: Está provado que o casamento faz bem à saúde. Mas estar casado exige
entrega, renúncia e convívio com as diferenças”. Assim, todos os aspectos físicos
que envolvem o amor vêm acompanhados de argumentos que valorizam a vida a
dois.
Pesquisas afirmam que os solteiros sofrem mais de doenças
mentais, respiratórias, cardiovasculares, câncer e tem maiores taxas de
suicídio” [...] “Um relatório do Centro de Prevenção e Controle de
Doenças dos Estados Unidos afirma que os solteiros, viúvos e
divorciados são mais propensos a fumar e beber muito”.(idem: 49).
94
Sob o título “A Genética da Paixão A ciência começa a desvendar um
dos mistérios do comportamento humano: a escolha do parceiro amoroso” a
revista Veja (21/05/2008) apresentou as últimas pesquisas sobre o amor e novamente
Helen Fisher foi convocada a dar seu depoimento.
“Quanto mais se estudam os genes, mais se atribuem a eles um
papel decisivo na escolha de nossos parceiros amorosos. A
antropóloga e pesquisadora americana Helen Fisher, da Universidade
de Rutgers, de Nova Jersey, considerada uma das maiores autoridades
em comportamento amoroso, avaliza essa teoria e está prestes a lançar
um livro sobre ela”. (LIMA, 2008: 88).
De acordo com o texto da jornalista Roberta de Abreu Lima, Fisher, em sua
mais nova pesquisa, relaciona as características de comportamento à predominância
de determinados tipos de hormônios e neurotransmissores no organismo. O sistema
endócrino controla a produção dessas substâncias cuja função é a de determinar as
características genéticas de cada pessoa.
Segundo Fisher, existem quatro tipos de personalidade: 1) os exploradores
(com predominância de dopamina); 2) os construtores (com predominância de
serotonina); 3) os negociadores (com predominância de estrógeno); e os 4) diretores
(com predominância de testosterona). Na verdade, todas as pessoas trazem em si
características dos quatro tipos, mas há a predominância de um sobre os outros.
A reportagem esclarecia que para chegar a esse resultado Fisher contou com
a participação de 20.000 assinantes de uma agência de namoro americana que
responderam a um questionário através da internet. O questionário encontrava-se
reproduzido nas páginas 88 e 89 da revista sob os dizeres: “Veja qual o seu tipo
ideal no teste preparado por Helen para VEJA, na página ao lado”.
[17] “Para mim tudo depende do organismo, pois quando a
pessoa chega perto de você mas nem conhece ela o que acontece?
Você pode sentir ou não uma atração por ela, tudo depende do seu
organismo. Quantas vezes eu já vi pela rua uma mulher bonita com
95
um homem feio. Você acha que ela ficou com ele por quê? Porque
sentiu alguma atração por ele através do seu organismo. Por
exemplo: Quando você fica ancioso por alguém é liberada uma
substância no cérebro chamada morfina que deicha você elétrico
esperando essa pessoa. Esse é o meu argumento sobre esse
assunto”. (Luan, 805, 15 anos).
Luan recebe com naturalidade as informações sobre como o amor acontece
através da ação de substâncias químicas no cérebro e relata de maneira muito pessoal
esse processo: confuso diante de tantos nomes novos (dopamina, serotonina...),
explica que é a “morfina” a responsável pela sensação de euforia (“eletricidade”) do
amor.
Retomando Giddens e a reflexividade do homem contemporâneo e Bauman e
o “medo líquido”, as reportagens apresentadas parecem sob medida aos novos
tempos: respaldam-se na cientificidade para demonstrar as reações biológicas nas
pessoas apaixonadas ao mesmo tempo em que alertam para o perigo da solidão. Mais
um medo a ser superado, afinal, como a primeira reportagem afirma, quem tem um
parceiro vive mais e melhor. Mas aí, o ser humano tropeça em outro problema: o
medo de relacionar-se, e a expectativa, egoísta, de que o outro venha para completá-
lo.
Até agora foram observados a introdução e os dois primeiros capítulos do
livro de Fisher. Na seqüência, no terceiro capítulo de Por que amamos (após
discorrer longamente e com muitos detalhes sobre a procriação no mundo animal, no
segundo capítulo - “Magnetismo animal: o amor entre os animais), Fisher
finalmente inicia seu trabalho com monitoramento cerebral para poder apresentar ao
leitor as explicações prometidas sobre o amor.
“Como você sabe, passei a acreditar que o amor romântico é
um sentimento humano universal, produzido por substâncias químicas
específicas e redes do cérebro. Mas que substâncias e redes,
exatamente? Decidida a lançar alguma luz sobre esta magia que pode
enlouquecer o mais são dos homens, lancei um projeto múltiplo em
1996 para recolher dados significativos sobre a química e os circuitos
96
cerebrais do amor romântico. Presumi que muitas substâncias
químicas devem estar envolvidas de uma forma ou de outra. Mas
concentrei minha investigação na dopamina e na norepinefrina, bem
como numa substância cerebral relacionada, a serotonina.Voltei-me
para a natureza destas substâncias químicas por dois motivos: a
atração que os animais sentem por parceiros específicos está
relacionada com níveis elevados de dopamina e/ou norepinefrina no
cérebro. Mais importante, todas as três substâncias produzem muitas
das sensações da paixão romântica humana”. (FISHER, 2006: 75-76).
Exaustivamente a autora recorre às formações discursivas relativas à
universalidade do amor e sua incontrolabilidade, conforme já visto anteriormente, e
agora novamente no fragmento acima. O uso recorrente de modalizadores no
fragmento deixa transparecer um certo cuidado para apenas sugerir probabilidades
no que se refere à pesquisa. Assim, destacamos no fragmento expressões como: “...
esta magia que pode enlouquecer o mais são dos homens”, “Presumi que muitas
substâncias químicas devem estar envolvidas...”. A expressão “paixão romântica
humana” também é incompatível numa seqüência textual na qual são descritos
acasalamentos de animais (no capitulo anterior) aos quais a autora faz uma alusão
clara ao referir-se às substâncias químicas envolvidas no amor. A incompatibilidade
se dá exatamente na junção do “romântico” (termo impregnado de historicidade) ao
“animal”.
Fisher esclarece, a seguir, os efeitos de determinadas substâncias químicas no
cérebro. A dopamina, por exemplo, provoca a atenção voltada a um ponto específico,
a motivação voltada a um determinado objeto ou objetivo. Seria a responsável pela
atenção exclusiva ao objeto do afeto da pessoa apaixonada, e o que determina uma
seleção, uma escolha ao se eleger uma pessoa dentre tantas. Nesse ponto, a autora
compara a existência da dopamina em humanos e em arganazes do campo
5
.
“Essencial para o amor romântico é a preferência do amante
pelo amado. Como você se lembra do Capítulo 2, entre os aganazes-do-
campo este favoritismo está associado a um nível mais alto de
5
Arganaz = s. m. (zool.) espécie de rato silvestre. (cf. Dicionário O Globo, 1996).
97
dopamina em regiões específicas do cérebro. E não é um salto de
lógica sugerir que, se a dopamina está associada com a preferência
por um parceiro nos arganazes-do-campo, ela pode ter importância na
preferência das pessoas. Como você se lembra, todos os mamíferos têm
basicamente a mesma maquinaria cerebral, embora variem o tamanho,
a forma e o lugar de determinadas partes do cérebro”. (FISHER, 2006:
76-77).
Altas concentrações de dopamina são também responsáveis pela alegria, pela
euforia, o que leva a autora a concluir que o êxtase amoroso também está
relacionado à presença desta substância química no cérebro humano. Estariam
igualmente justificadas as sensações comuns aos apaixonados, conforme a análise
dos dados computados pelo questionário que precedeu a pesquisa. Seriam essas
sensações: insônia, perda de apetite, respiração acelerada, “coração aos saltos”,
hiperatividade, aumento de energia, tremores, ansiedade e até mesmo o medo.
Segundo a autora, a dopamina é também a responsável pela sensação de dependência
e ansiedade que caracteriza uma pessoa viciada.
“O envolvimento da dopamina pode até explicar por que os
homens e mulheres apaixonados tornam-se tão dependentes de seu
relacionamento amoroso e por que eles anseiam por união emocional
com o amado. A dependência e o anseio são os sintomas do vício e
todos os principais vícios estão associados com níveis elevados de
dopamina. Será que o amor romântico é um vício? Sim; acho que é
uma dependência jubilosa quando o amor de alguém é retribuído, um
anseio doloroso, triste e com freqüência destrutivo quando o amor é
rejeitado”. (idem: 77).
O impulso sexual é também comandado pela quantidade de dopamina no
cérebro, uma vez que seu aumento estimula os níveis de testosterona, que é o
hormônio do apetite sexual. No caso da ameaça de um rompimento, quando o
apaixonado pressente o perigo iminente numa relação afetiva, é a dopamina que lhe
dá estímulo para tentar a reconciliação e a reconquista, uma vez que quando algum
98
tipo de recompensa é protelada, quando a sensação de prazer não vem, o cérebro é
realimentado automaticamente pelas células que produzem a dopamina, aumentando
sua rede cerebral o que corresponde a um poder maior de concentração para
conseguir a recompensa ou o prazer negado, o que, nas palavras da autora, resume-se
à seguinte conclusão: “Dopamina, teu nome é persistência”.
[18] “O amor é uma alucinação, mas se manter na realidade que
é o problema. Meu 1º. e único amor me enlouquece quando chego
perto dela. Parece que estou em cima do sol, pois o calor é tão
intenso que vem de baixo para cima”. (Leandro, 803, 14 anos).
Outra substância, a norepinefrina, que se deriva da dopamina, atua junto com
esta para manter o estado de elevado estímulo do sujeito apaixonado. Os efeitos
causados por ela são muito variados e relacionam-se às partes ativadas pela
norepinefrina no cérebro: insônia, perda de apetite, euforia e energia excessiva, que,
de acordo com a pesquisadora, são algumas das características básicas do amor
“romântico”. É uma substância importante também no que diz respeito ao aumento
da memória, o que justificaria a motivação do sujeito enamorado para lembrar-se de
datas e detalhes específicos relativos ao objeto de sua afeição e à história com ele
vivenciada.
[19] “Amar é ter respeito pelo próximo, é quando se sente um
calorzinho dentro do peito, é querer estar sempre junto não
importa os obstáculos”. (Joice, 803, 14 anos).
[20] “Amar?! Ah... Amor, um sentimento sobrenatural, anormal,
sem explicação. Só quem sente sabe o que é amar. Amar é a
impaciência de esperar o seu amor”. (Thalita, 805, 15 anos).
[21] “O amor é um instinto que sentimos quando encontramos a
pessoa que amamos, sentimos uma estranha sensação que nos força
a procurá-la, encontrar o amor verdadeiro que também é a outra
metade, quando encontramos nos sentimos completos. Sempre
99
quando nosso instinto manda sentimos essa vontade de encontrar
quando encontramos sentimos uma sensação dentro de nós.
Começamos a suar, coração bater mais forte e mais rápido. E
quando encontramos a pessoa certa, sentimos vontade de estar
sempre ao lado dela”. (Guilherme, 803, 15 anos).
Antes de prosseguir, é importante lembrar que na terceira etapa da produção
dos textos os alunos foram informados sobre a pesquisa que eu estava realizando e
da qual seus textos fariam parte. Os livros de Fisher e de Kipnis foram manuseados
nas salas de aula e tentei explicar-lhes, oralmente, as idéias de cada autora.
Empolgaram-se em suas tentativas de explicar o amor e discutiram entre si qual seria
a melhor ou a mais correta perspectiva. Depois desse debate, solicitei que
escrevessem um texto e que escolhessem um dos títulos a seguir: 1) O amor é o
resultado de substâncias químicas no organismo? É biológico? Amor é instinto? 2) O
amor é aprendido culturalmente? Aprendemos a amar na vida em sociedade? 3)
Concordo com as duas teorias porque... 4) Não concordo com nenhuma das teorias
porque...
[22] “Eu concordo com a Helen Fisher. Eu acho que o amor é um
sentimento que nos faz pensar em uma pessoa sempre, é atender o
telefone esperando que seja a pessoa, é chorar sem motivo. Essas
são coisas que mexem com o nosso organismo, uma necessidade,
que por mais que se negue, todos amam ou todos irão amar. Por
mais que saiba, ama mesmo assim. É inexplicável a saudade
quando a pessoa não está perto. Isso é biológico. O sofrimento com
a ausência da pessoa é biológico. A reação que temos quando vemos
a pessoa amada é biológico, diferente de tudo que você já sentiu. A
cada encontro, um sentimento diferente, estranho, uma adrenalina.
O amor muda nossos sentimentos, nosso modo de pensar, muda
nossa vida, não tem como explicar. O amor é biológico, é instinto. O
amor nos deixa perdido no tempo e no espaço. Isso é o amor”.
(Josiane, 805, 15 anos).
100
[23] “O amor é biológico sim! Desde o momento em que vemos a
pessoa que amamos você sente aquele arrepio. Mas essa pessoa
pode te decepcionar muito. Tem gente que não reconhece o esforço
que fazemos pra ficar com ela, e simplesmente nem nota esse
arrepio”. (Tamyres, 805, 13 anos).
[24] “O amor faz parte da vida em sociedade, aprendemos a amar
através do tempo, na sociedade, pois todos dizem que devemos
amar. O amor também é criado por substância que faz com que as
pessoas amem. O amor pode ser uma necessidade do ser vivo, é o
prazer do homem em sentir o coração bater mais forte e da mão
molhada. A sociedade fala muito sobre o amor, eu acho que para ter
amor deve haver paz na sociedade e na alma porque a paz também
precisa da ciência”. (Gabrielle, 804, 15 anos).
Segundo Helen Fisher, a característica mais forte do indivíduo apaixonado é
a de manter o pensamento concentrado no ser amado durante quase a totalidade do
tempo em que está acordado. É quase uma obsessão, por isso Fisher relaciona a
paixão romântica ao distúrbio obsessivo-compulsivo (também conhecido como
TOC, transtorno obsessivo compulsivo) cujo tratamento médico é feito através de
drogas que inibem a recaptação seletiva de serotonina (SSRI, selective serotonin
reptake inhibitors) como o Prozac ou o Zoloft, medicamentos que aumentam os
níveis de serotonina no cérebro.
Antes de apresentar o subtítulo “Examinando o cérebro apaixonado”, na
pagina 81, a autora procura justificativas para possíveis questionamentos a sua
pesquisa, informando que sua teoria é bastante complicada, uma vez que efeitos
diversos podem ser produzidos a partir de diferentes doses das substâncias citadas e
de acordo com cada região cerebral. Igualmente, deve ser considerado o fato de que
as substâncias, combinadas entre si, promovem reações diferentes, e essas
combinações também podem ocorrer de várias maneiras, uma vez que cada
substância afeta diretamente nossos sistemas corporais e circuitos cerebrais,
provocando reações em cadeia. Isso sem falar, a autora continua sua argumentação,
que o amor romântico apaixonado assume diversas formas e provoca reações
101
diferentes conforme cada indivíduo e em cada fase do relacionamento. Fatos como
ser amado reciprocamente ou ser rejeitado podem alterar os resultados da pesquisa. E
conclui sua defesa prévia afirmando que “este ardor mental é causado por níveis
elevados de dopamina ou norepinefrina, ou ambas, bem como por níveis menores de
serotonina. Essas substâncias formam a espinha dorsal do amor romântico
obsessivo e apaixonado”. (Fisher, 2006: 81).
Sabendo que a dopamina, a norepinefrina e a serotonina aparecem em maior
quantidade em determinadas regiões cerebrais, Fisher iniciou de fato sua pesquisa,
apoiada pelo neurocientista Greg Simpson, do Albert Einstein College of Medicine.
Foram então entregues aos voluntários fotos das pessoas amadas e fotos de pessoas
conhecidas, mas que não tinham nenhum vinculo afetivo mais forte com eles, fotos
“neutras”, como a autora prefere chamá-las. O aparelho utilizado, o fMRI, é um
aparelho de ressonância magnética funcional, que registra imagens instantâneas do
cérebro, marcando seu fluxo sangüíneo. O trabalho, iniciado em 1996 com quatro
participantes jovens, dois homens e duas mulheres, precisou ser interrompido devido
ao fato de que o parceiro de Fisher no experimento, Simpson, precisou retirar-se por
motivos profissionais. O trabalho foi reiniciado mais tarde com uma neurocientista,
Lucy Brown, também do Albert Einstein College of Medicine. Posteriormente, um
psicólogo passou a fazer parte da equipe, Art Aron, da Universidade Estadual de
Nova York, juntamente com Deb Mashek, então estudante de pós-graduação do
departamento de psicologia da mesma universidade.
Durante a atividade de pesquisa, para que os voluntários não
“contaminassem” o pensamento após olhar o enamorado na foto, era mostrada uma
imagem enorme de um número qualquer e eles deveriam contar mentalmente, de trás
para frente, de sete em sete, a partir desse numero. Assim, quando olhavam para a
foto “neutra”, já haviam “limpado o pensamento” com essa “tarefa de distração”.
Entretanto, antes de lançar-se à tarefa de mostrar as fotos a um número maior de
voluntários, a pesquisadora queria ter certeza de que a imagem causaria um efeito
mais forte, com resposta cerebral mais clara, do que um cheiro, uma carta de amor
ou uma lembrança qualquer. Criou então um experimento, ao qual deu o nome de
“amorômetro”.
Diversos cartazes foram espalhados para os alunos de psicologia do campus
da SUNY, Stone Brook, nos quais eram convocados homens e mulheres que
102
estivessem apaixonados: “Você acaba de se apaixonar loucamente”? As palavras
“acaba” e “loucamente”, colocadas propositadamente, pretendiam atrair pessoas
intensamente apaixonadas, num estagio tal de apaixonamento em que não
conseguissem comer, dormir ou pensar em outra coisa que não fosse o objeto de sua
paixão. A tarefa de selecionar os voluntários ficou por conta de Deb Mashek, que
dentre tantos, escolheu aqueles “que pareciam genuinamente apaixonados”.
Receberam, então, um questionário “projetado para dar insights sobre a
personalidade, os sentimentos em relação ao amado e a duração, intensidade e
situação do caso de amor”. Cada um deveria retornar ao laboratório trazendo algo
que os remetesse ao amado, trouxeram então fotos, perfumes, e-mails, cartas,
cartões, músicas gravadas, lembranças escritas. “Eles os levavam como flores de
vidro”, afirma a autora, para destacar o valor que tais objetos tinham para aquelas
pessoas.
Sentados diante de monitores de computadores, os voluntários viam a
imagem de um ícone semelhante a um termômetro vertical e recebiam um controle
giratório com o qual deveriam “aumentar o mercúrio do termômetro”, caso o
soltassem, voltaria ao zero, e assim foi inventado o “amorômetro”, segundo as
explicações da autora. Os participantes olhavam a foto da pessoa amada, depois uma
foto de uma outra pessoa “neutra”, depois uma foto da natureza. O segundo passo era
ler uma carta ou cartão da pessoa amada, depois um parágrafo de um livro de
estatística. Depois foi a vez do estímulo através do olfato, e era apresentado um
aroma que os fazia lembrar-se da pessoa amada e depois somente água com um
pouco de álcool. Depois, o estímulo voltava-se a rememorar momentos prazerosos
vividos com a pessoa amada e depois lembrar-se de uma tarefa cotidiana simples,
como a última vez em que lavou os cabelos. Na seqüência, ouviam uma música
significativa para o casal e, em seguida, ouviam uma música cantada por
personagens de um programa de televisão infantil (Vila Sésamo). Finalmente, os
participantes deveriam imaginar uma situação futura prazerosa com a pessoa amada
e, logo após, a tarefa de escovar os dentes. Cada estimulação era intercalada com a
tarefa de “distração” já citada, na qual deveriam pensar em um número alto qualquer
para, em seguida, contar mentalmente de trás para frente, de sete em sete. Cada
participante, devidamente estimulado, deveria a cada momento girar o botão do
103
“amorômetro”, de maneira que ficasse registrada a intensidade de seus sentimentos
no que diz respeito à paixão romântica. E, após este teste, a autora conclui:
“... os sentimentos de amor romântico intenso eram incitados
quase igualmente por fotos, músicas e lembranças do amado”. [...] Eu
não me surpreendi que as fotos evocassem a paixão romântica. Afinal,
a maioria de nós tem uma foto de nosso amor verdadeiro em nossa
mesa. Alem disso, como você se lembra, esta reação visceral a imagens
visuais tem uma explicação antropológica. Os seres humanos
evoluíram de ancestrais que viviam em árvores e precisavam de uma
visão excepcional para sobreviver muito acima do chão. Aqueles que
enxergavam mal devem ter avaliado mal onde estavam penduradas as
frutas e flores, depois erraram o alvo quando saltaram de um galho a
outro, caíram e quebraram as pernas. Com o resultado, todos os
primatas superiores têm grandes regiões do cérebro dedicadas à
percepção e à integração de estímulos visuais. Na verdade, por
décadas os psicólogos enfatizaram o importante papel da aparência no
estímulo das sensações da atração amorosa”. (FISHER, 2006: 85-86).
A autora procura manter uma proximidade com o leitor ao incluir-se entre as
pessoas que se apaixonam (“a maioria de nós tem”) e garante a eficiência de seu
próprio invento (o amorômetro) ao ressaltar a importância de estímulos na evolução
humana, especialmente os visuais.
Novamente os cartazes com os dizeres “Você acaba de se apaixonar
loucamente?” foram espalhados na mesma universidade. Mas agora, critérios “mais
rigorosos” foram utilizados na seleção dos participantes para a ressonância
magnética. Não poderiam participar, por exemplo, os que tivessem metal na cabeça,
como piercing na língua, lábios, nariz ou coroas nos dentes, porque poderia afetar o
magneto do aparelho de fMRI. Também foram eliminados os que estivessem fazendo
uso de qualquer medicamento antidepressivo que pudesse alterartar a fisiologia
cerebral, ou ainda os que sofressem de claustrofobia e pessoas canhotas, pois,
segundo a autora, o uso das mãos pode afetar a organização cerebral e sua intenção
era padronizar o máximo possível essa amostragem.
104
Cada voluntário foi entrevistado pessoalmente por Fisher, respondendo às
perguntas: “Há quanto tempo está apaixonado?”, “Que porcentagem do dia e da
noite você pensa em seu amado?”. Para a autora, a segunda questão era a mais
importante, por acreditar que o pensamento obsessivo seja uma das características
mais marcantes da paixão romântica. Procurou, então, selecionar principalmente os
que se mostravam mais “apaixonados”, os que pensavam na pessoa amada por mais
tempo durante o dia, os que “rissem e suspirassem mais do que o normal durante a
entrevista, aqueles que podiam se lembrar dos menores detalhes de seus namorados e
os que pareciam sinceramente estar ansiando pelo amado, na verdade desejando-o
ardentemente”. Cada um trouxe uma foto da pessoa amada e outra de uma pessoa
qualquer, quase sempre um colega de escola ou da universidade. Foram, então,
esclarecidos sobre a pesquisa em si, bem como quanto ao uso do aparelho de
ressonância magnética.
A equipe de cientistas procurou instalar os participantes o mais
confortavelmente possível no aparelho de ressonância, deitados com travesseiros nos
pés e um travesseiro mais rígido sob a cabeça, que os mantivessem imóveis durante
todo o procedimento. Inclinado sobre os olhos, era colocado um espelho que lhes
permitia ver o que estava colocado fora do aparelho. Na tela, então, eram colocadas
as fotografias da pessoa amada, depois um número alto, para a tarefa de “distração”
e, finalmente, uma foto “neutra”, depois, outra vez um número para “distração” da
mente. O procedimento era repetido por seis vezes, possibilitando analisar em torno
de cento e quarenta e quatro imagens de regiões diferentes do cérebro. Foram
examinados, nessa primeira fase, vinte homens e mulheres que viviam um momento
jubiloso de paixão romântica. O procedimento foi repetido depois com mais vinte,
mas que viviam uma outra situação, os que sofriam por causa de um rompimento e
haviam sido rejeitados. O trabalho seguinte da equipe foi o de organizar as fotos dos
cérebros em seqüência para observar as reações ocorridas: regiões ativadas do
cérebro em amarelo brilhante e laranja profundo.
De acordo com as explicações de Fisher, o cérebro é composto de regiões
com funções específicas que se comunicam com as outras partes através dos
neurônios. Os neurônios produzem, armazenam e distribuem neurotransmissores de
diferentes tipos, sendo alguns responsáveis pela sintetização da dopamina, da
105
norepinefrina e/ou serotomina. Através de estímulos elétricos, os neurotransmissores
são impulsionados de uma célula a outra.
Apesar de existirem cerca de dez trilhões de sinapses entre células nervosas
no cérebro humano, cada neurônio se comunica somente com outro específico, e
assim são formadas as redes neurais que conectam partes específicas do cérebro
capazes de integrar o pensamento humano, as lembranças, as sensações, as emoções
e as motivações. O aparelho de fMRI utilizado na pesquisa limitava-se a mostrar a
atividade do fluxo sangüíneo em regiões específicas do cérebro, entretanto,
considerando-se o fato de que os cientistas têm conhecimento de que tipo de nervos
são conectados em determinadas regiões cerebrais, é possível deduzir que
substâncias cerebrais são ativadas nessa atividade.
A autora segue, assim, em seu projeto de fala, procurando garantir ao leitor a
seriedade de seu trabalho, ao mesmo tempo em que, didaticamente, procura
esclarecer o funcionamento cerebral, de forma a ser compreendido por qualquer
pessoa. Em sua argumentação teórica, descreve o funcionamento do núcleo caudado
(uma parte central, grande, do cérebro, em forma de C) ao qual atribui a maior
descoberta na pesquisa. Essa parte é primitiva, é uma região que evoluiu bem antes
de os mamíferos proliferarem, em torno de 65 milhões de anos atrás. De acordo com
a pesquisa, algumas partes da extremidade e do corpo do núcleo caudado ativam-se
no momento em que se vê a foto da pessoa amada. É esta a região do cérebro que
comanda os movimentos corporais e, mais recentemente, descobriu-se que é também
grande responsável pelo “sistema de recompensa” do cérebro, a rede mental que
possibilita ao sujeito a excitação, as sensações de prazer e a motivação para
conquistar recompensas. Além de nos levar a “preferir” alguma coisa, o núcleo
caudado está também associado à nossa capacidade de atenção e concentração.
Fisher afirma mais adiante que, como já supunha, o amor romântico estaria
associado a níveis elevados de dopamina e/ou norepinefrina. A área tegmentar
ventral (ATV), responsável por uma parte do circuito da recompensa, é também a
parte principal onde as células sintetizam a dopamina, distribuindo-a, em seguida,
em outras regiões do cérebro, inclusive no núcleo caudado. Essa atividade cerebral
de irrigação gera atenção concentrada, energia, e a motivação necessária para a busca
da “recompensa”, sensações de alegria e até mesmo de determinadas manias. “O
106
núcleo caudado com sua sobrecarga de dopamina deve ser a fornalha do amor
romântico humano”. (Fisher, 2006: 99).
[25] “Amor é prazer, algo muito importante que você sente de
outra pessoa. Não tem como explicar, porque cada pessoa sente
algo diferente. Em algum lugar do mundo as pessoas sentem amor
como se fosse presídio, que quando se casam a pessoa num faz mais
nada, a não ser ficarem grudados”. (Luiz Felipe, 803, 14 anos).
Em sua intenção de encontrar uma justificativa para o sentimento amoroso,
Fisher acreditava, antes, que o amor era um conjunto de emoções relacionadas,
capazes de despertar alegria e desespero. Em sua pesquisa inicial, percebeu que os
psicólogos fazem uma distinção entre emoção e motivação, o que envolve os
sistemas cerebrais e sua orientação para o planejamento e a tentativa de realização de
um desejo ou uma necessidade específica. Sua visão do amor, portanto, diferenciava-
se da de seu colega de equipe, Art Aron, que considerava o amor romântico não
como uma emoção simplesmente, mas como “um sistema de motivação projetado
para permitir às pessoas construir e manter um relacionamento íntimo com um
parceiro de acasalamento preferido. No início da pesquisa, estavam, pois, diante
de duas hipóteses principais sobre o amor: 1) seria a reação a determinadas
substâncias cerebrais como a dopamina e/ou norepinefrina ou outros
neurotransmissores; ou 2) seria um sistema de motivação?
“No final, nossos resultados sugeriram que as duas hipóteses
estão corretas. O amor romântico parece estar associado com a
dopamina. E porque esta paixão emana do núcleo caudado, há o
envolvimento da motivação e dos comportamentos orientados para os
objetivos. De fato, estas descobertas me levaram a passar a uma
consideração mais ampla: Passei a acreditar que o amor romântico é
um sistema de motivação primário no cérebro em resumo, um
impulso humano fundamental para o acasalamento. (FISHER, 2006:
101-102).
107
Um impulso pode ser compreendido como um determinado estado neural que
propicia a orientação para a satisfação de uma necessidade biológica para
sobrevivência ou reprodução. São muitos os impulsos humanos, como a sede, a
fome, a necessidade de respirar ou de tomar sol. Alguns podem ser redirecionados ou
até mesmo sufocados com o passar do tempo e com um certo esforço, como o
impulso sexual, a fome e o instinto materno. Entretanto, Fisher afirma que, como um
impulso, a paixão romântica é persistente e difícil de ser ignorada, uma vez que se
foca num ponto específico, que é o objeto amado, assim como a fome, que foca sua
atenção na comida. O amor romântico estaria, portanto, condicionado a diversas
emoções, e o comportamento do indivíduo dependeria de diversos fatores como a
satisfação ou a frustração desse impulso.
“Muito importante, todos os impulsos básicos estão associados
com elevados níveis de dopamina central. O mesmo acontece com o
amor romântico. E como todos os outros impulsos, o amor romântico é
uma necessidade, um anseio. Precisamos de comida. Precisamos de
água. Precisamos de calor. E o amante sente a necessidade do amado.
Platão estava certo mais de dois mil anos atrás. O Deus do Amor vive
em estado de necessidade”. (idem: 103).
Assim, a antropóloga chega a uma definição final sobre o amor romântico: é
um impulso, uma necessidade.
Entretanto, nas páginas finais acrescenta que os cientistas estão apenas em
um processo inicial de tantas descobertas que ainda estão por vir. Muitas questões
permanecem sem respostas, como o que exatamente determina a exclusividade
sexual do indivíduo apaixonado e das funções cerebrais envolvidas e sua anatomia.
Mesmo que a ciência evolua em suas pesquisas a ponto de responder a todas essas
questões, outras permanecerão sem respostas, principalmente as que dizem respeito à
ética e ao envolvimento com o outro.
A pesquisa sobre o circuito cerebral do amor romântico
também levanta questões mais amplas. Deveriam os médicos tratar
quem persegue e maltrata o cônjuge com remédios que mudem a
108
função cerebral? Deveriam advogados, juízes e legisladores considerar
quimicamente incapacitados os que cometem crimes passionais?
Deveriam as leis do divórcio acomodar nossa tendência humana a
deixar uniões infelizes? Quanto mais aprendemos sobre a biologia do
romance (e da luxúria e da ligação), mais eu acredito que um dia
apreciaremos o papel da cultura e da experiência na orientação do
comportamento humano _ e mais precisaremos nos voltar para aquelas
muitas questões complexas de ética e responsabilidade”. (FISHER,
2006: 270-271).
Na conclusão, Fisher deixa transparecer sua preocupação com as questões
éticas que envolvem esse tipo de pesquisa, exatamente como Lent. Embora a
proposta inicial da autora tenha sido a de comprovar a química do amor romântico,
suas conclusões finais apontam muito mais para os efeitos químicos que acontecem
subordinados às manifestações de ordem cultural, emocional, social.
Obviamente, os aspectos biológicos são de suma importância e as pesquisas
nesse sentido devem continuar a acontecer e a serem incentivadas em todos os
países. Não se pode, contudo, desconsiderar os aspectos de formação da
personalidade de cada indivíduo, o que significa levar em conta as preciosas
contribuições de Freud e de tantos outros grandes pensadores das ciências humanas e
sociais.
2.2. O Amor e as Expectativas Culturais
Quando analisa os relacionamentos afetivos na atualidade e os conflitos
humanos decorrentes da frustração amorosa, a escritora americana Laura Kipnis
define o amor como uma força misteriosa, cujo poder afeta diretamente nossos
pensamentos e ações cotidianas. Seu livro não se pretende científico e não promete
respostas, propõe apenas algumas reflexões, na maioria das vezes de forma
irreverente, sobre os vínculos amorosos na atualidade. Inegavelmente, sua proposta
está em conformidade com as teorias de Giddens sobre o homem contemporâneo e
109
sua necessidade de refletir sobre todos os aspectos de sua vida. O amor entra aqui
como um ponto de inquietação, um item difícil de ser realizado a contento.
O discurso amoroso, como diz Barthes (2000), traz em si tantas vozes, e de
tantas épocas, que se transformou, assim, numa afirmação. É um discurso construído
socialmente e remete a um passado tão distante que é impossível delimitar sua
origem, forma ou substância. Como discurso, entretanto, mantém-se em curso, em
idas e vindas - passado e presente que se mesclam formando um todo (fragmentado).
Como se constitui, entretanto, esse discurso? Sua matéria é a própria narrativa
humana. Em seu Fragmentos de um Discurso Amoroso, Barthes não procura
definição para o amor, mas apresenta, em verbetes, o que é dito sobre ele. Esses
dizeres são retirados da literatura, de autores diversos, de conversas com amigos ou
mesmo de suas experiências pessoais.
“No texto, o fading
6
das vozes é uma coisa boa; as vozes da
narrativa vão, vêm, se apagam, se sobrepõem; não se sabe quem fala;
aquilo fala, é só: a imagem desaparece, fica só a linguagem. Mas o
outro não é um texto, é uma imagem, una e coalescente; se a voz se
perde, é a imagem toda que se enfraquece (o amor é monológico,
maníaco; o texto é heterológico, perverso)”. (BARTHES, 2000: 163).
Sempre que se quer escrever ou falar sobre o amor, o que se encontram são
narrativas, dispersas, coerentes ou não, mas narrativas. Fica evidenciado porque,
mesmo numa tentativa de trazer elucidações teóricas de ordem científica sobre o
amor, Helen Fisher (como vimos anteriormente) acaba esbarrando no “clichê”, seja
através da citação exaustiva de textos literários, ou na repetição de formações
discursivas, presentes em todo o livro. Narrativas tecidas culturalmente e que fazem,
uma vez mais, do discurso amoroso, uma afirmação.
É consensual que a cultura ocidental teve sua origem na chamada Grécia
Antiga, clássica, centrada no homem e na retórica. O homem construía suas
narrativas, das quais faziam parte simples mortais e seres mitológicos que se
6
Fading: Experiência dolorosa segundo a qual o ser amado parece se afastar de todo contacto, sem que essa
indiferença enigmática seja dirigida contra o sujeito apaixonado ou proferida em benefício seja do mundo, seja de
um rival”. (Barthes, 2000: 163).
110
fundiam e justificavam a vida e os conflitos existencialistas. O homem buscava a
imortalidade, através da glória ou do saber. Histórias contadas e recontadas, desde
uma época em que ainda não havia a escrita. Discursos que nos constituem,
consolidados culturalmente.
De acordo com Lázaro (1996), o conceito atual de cultura está fundamentado
basicamente na remodelação social a partir da Revolução Industrial. No mundo
ocidental, a Revolução Industrial transformou não apenas as formas de produção,
mas também as relações trabalhistas e sociais, promovendo uma forte segmentação
entre a tradição da atividade econômica voltada à produção e ao consumo como
modeladores das organizações sociais. A partir de então começa a ocorrer uma
mudança de mentalidade, na qual se insere a idéia de mercado, trabalho, propriedade
e lucratividade.
“A idéia de cultura vai acompanhar, ora positivamente, ora
negativamente, a idéia de civilização. No entanto, a idéia de civilização
não a palavra era antiga e, desde os romanos com os termos ‘civis’
e ‘civitas’ indicava a absorção dos homens por uma organização
social, traduzida na participação em um Estado realizado. Com os
românticos, porém, o termo ‘civilização’ receberá a significação de
algo exterior, realização material, cabendo então ao termo ‘cultura’
designar o processo de desenvolvimento íntimo. Mais tarde, ‘cultura’
vai incorporar novos significados de tal forma que o conceito torna-se
tanto esse processo íntimo, especializado nas agências da vida
intelectual e das artes, como também vai designar modos de vida
totais”. (LÁZARO, 1996: 204).
Se o termo cultura traz em si a possibilidade de acepções distintas, no que se
refere à atualidade globalizada
7
, ele apresenta uma característica inquestionável: é o
divisor de águas entre nações ricas e pobres. Na realidade ocidental da nova era
tecnológica, impõem-se os valores culturais das nações ricas.
7
Não pretendo me ater aqui às questões relativas à globalização por entender que seria um viés extenso que
desviaria o rumo da tese, entretanto é preciso compreender o momento atual e o apelo dominante de progresso e
modernidade, impulsionado pelo capitalismo. Os aspectos econômicos não serão aqui aprofundados, mas
precisam ser citados como motores propulsores que afetam os aspectos políticos, sociais e culturais.
111
A globalização cultural, portanto, é um fenômeno decorrente dos fenômenos
econômicos, tecnológicos e de comunicação. As nações são afetadas de várias
maneiras: a necessidade da construção de uma identidade nacional em resposta ao
impacto da globalização, a construção de uma identidade individual centrada em
novos conceitos de cidadania e novas políticas culturais que possam atender à nação
e ao cidadão.
Em qualquer conceituação encontrada sobre o termo “cultura” sempre há
incutida a idéia do humano. Refere-se ao ambiente, ao meio, ao social, à tradição e à
civilização, mas considerando sempre o homem como ponto de partida. Vinculado
ao meio, sustentado por valores institucionais sociais, o ser humano aprende a viver
no meio onde nasce e aprende a transformá-lo.
“Uma definição breve e útil é: a cultura é a parte do ambiente
que é feita pelo homem. Implícito nisto está o reconhecimento de que a
vida humana é vivida num contexto duplo, o habitat natural e seu
ambiente social. A definição também implica que a cultura é bem mais
do que um fenômeno biológico. Ela inclui todos os elementos do legado
humano maduro que foi adquirido através do seu grupo pela
aprendizagem consciente, ou, num nível algo diferente, por processos
de condicionamento técnicas de várias espécies, sociais ou
institucionais, crenças, modos padronizados de conduta. A cultura,
enfim, pode ser contrastada com os materiais brutos, interiores ou
exteriores, dos quais ela deriva. Recursos apresentados pelo mundo
natural são formatados para vir ao encontro de necessidades
existentes”. (SANTAELLA, 2004: 31).
Na acepção que aqui interessa, cultura abrange o homem em sociedade, os
modos de subsistência, as práticas econômicas, o conjunto de valores, os consensos e
as ideologias que perpassam por todo o percurso humano em sua trajetória evolutiva.
Observar o homem culturalmente significa estar atento a um certo padrão social,
marcado especialmente hoje pela expansão do capitalismo, incentivado pela noção
de progresso desde o século XIX.
112
A civilização grega antiga valorizava o homem - seu saber, sua oratória, seu
poder de persuasão e sua capacidade argumentativa e narrativa valores e ética. O
progresso, gradativamente, vinculou o conhecimento à experimentação e, com o
avanço da medicina, o próprio homem tornou-se objeto de estudo. Muitos conceitos
centrados na tradição foram substituídos pelos possíveis de ser comprovados.
Tecnologia, farmacologia, terapias de todos os tipos disponíveis a um homem cada
vez mais em conflito entre as novas perspectivas e a segurança e o conforto que a
tradição de antigos conceitos e valores proporcionava.
O amor sempre esteve em destaque em todas as sociedades, desde as mais
remotas civilizações. O casamento, o comportamento amoroso, os interesses e
sentimentos envolvidos tiveram que encontrar respaldo nas tribos, comunidades,
sociedades. Seja através da religião ou da legislação, o amor sempre foi objeto de
interesse humano, principalmente porque a ele está vinculado o nascimento - os
filhos, as gerações vindouras: o futuro de toda civilização.
Não é possível, pela História, determinar as sensações ou as emoções de cada
indivíduo, nas civilizações antigas. A História pode dar conta dos registros de
matrimônios, dos hábitos sociais, de como as famílias orientavam as moças e os
rapazes para escolha dos cônjuges, como eram os rituais, as festas, a atitude dos mais
velhos, as roupas, as casas e seus leitos matrimoniais; contudo, o sentimento só pode
ser descrito através de narrativas humanas, as quais, subjetivas, só podem dar
testemunhos parciais e imprecisos. Até que ponto sinceras? Até que ponto criativas?
Documento ou literatura? Fato ou ficção? Arte ou realidade? As narrativas são
sempre interpretações de indivíduos narradores a linguagem é sempre
representativa. Simbólica. No campo escorregadio das palavras, deparamo-nos, uma
vez mais, com o discurso.
A historiadora brasileira Mary Del Priore (2005) diz que o amor não é igual
em todas as épocas, pois é sempre uma escolha, determinada socialmente e dentro de
limitações culturais. Certamente, o amor não acontece hoje como acontecia entre os
brasileiros da época do Brasil colonial, por exemplo. Houve mudanças consideráveis
de lá pra cá, que transformaram o pensamento e o comportamento dos indivíduos.
“Desde a década de 1970, numerosas transformações
ocorridas no campo dos costumes e da vida privada, não deixam
113
dúvidas quanto ao assunto. A pílula e as discussões sobre o aborto, o
feminismo e os movimentos de minorias, a progressão das uniões
livres, os corpos nus expostos na mídia e na propaganda, enfim, a
liberação da palavra e do olhar mudaram a vida das pessoas e sua
maneira de ver o amor. Tal movimento de emancipação de corpos e de
espíritos inscreve-se, contudo, na História. Ele começou nas últimas
décadas do século XIX, quando as idéias do casamento por amor e da
sexualidade realizada se tornaram um dos pilares da felicidade
conjugal”. (DEL PRIORE, 2005: 13).
O amor no Brasil, assim como em todo o mundo, percorreu um longo
caminho cheio de percalços. Uma jornada longa desde a proibição do prazer, as
limitações e os tabus, até o direito ao prazer. Mas talvez esse direito hoje seja mais
uma imposição do que uma escolha. O momento atual parece incitar os indivíduos ao
prazer, trazendo o sofrimento para quem não o encontra.
Para Del Priore, o homem atual pretende viver exclusivamente com o que
sobrou do amor romântico, o que condenaria qualquer casal a uma relação breve e
conturbada. Transformados e adaptados a uma nova moralidade, os sujeitos na
atualidade pretendem somar ao ideal amoroso toda a promessa de satisfação: afeto,
segurança, fidelidade e liberdade. As imposições à felicidade plena e à liberdade
sexual, tal como se apresentam hoje, podem representar um desafio e até mesmo um
empecilho para os jovens, uma vez que o consumo excessivo supervalorizou o amor
ao mesmo tempo em que o vulgarizou. A idéia de liberdade e prazer constante pode
gerar vítimas de uma solidão cruel, causada pelo próprio homem que acaba perdendo
por querer tudo ao mesmo tempo.
“... o amor e o prazer tornaram-se obrigatórios. Hoje, o
interdito inverteu-se. Impôs-se a ditadura do orgasmo. O erotismo
entrou no território da proeza e o prazer tão longamente reprimido
tornou-se prioridade absoluta, quase esmagando o casamento e o
sentimento. Passou-se do afrodisíaco à base de plantas para o sexo
com receita médica, graças aos famosos remédios para disfunção
114
erétil. Passou-se da dominação patriarcal à liberação da mulher”.
(DEL PRIORE, 2005: 319).
Se hoje a imagem é fundamental, devemos contextualizar a informação
vinculada ao “espetáculo midiático”, conforme já apregoava na década de 60 o
cineasta e pensador francês Guy Debord (1997), chamando a atenção para a inércia
do homem, que se colocava como espectador diante da mídia e da veiculação
esmagadora de imagens. Para ele, a “sociedade do espetáculo” seria a vitória
suprema do capitalismo sobre o mundo, de maneira total e definitiva. Essa sociedade
do espetáculo, sustentada na imagem e no poder ilimitado da mídia, viria a redefinir
o Ocidente na atualidade. Suas reflexões acerca das sociedades após o advento da
mídia tornam-se cada vez mais atualizadas, na medida em que adivinhavam um
homem fragmentado, dividido entre realidade e espetáculo, um homem fragilizado
diante de um mundo cada vez mais ágil, e, consequentemente, superficial.
“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação
social entre pessoas, mediada por imagens”. (DEBORD, 1997: 14).
Na atualidade, portanto, a mídia cria e sustenta narrativas que, ligadas à
imagem, promovem a identificação de um sujeito que se pretende reflexivo, mas
antes de qualquer coisa, é um consumidor. A tela, seja a do cinema, da televisão ou
do monitor do computador, devolve ao expectador imagens nas quais ele se vê.
Narrativas e uma variedade de conflitos espalhados num hipertexto na dimensão de
um verdadeiro espetáculo global.
É exatamente como se estivesse conduzindo um espetáculo, diante de uma
platéia, que a escritora Laura Kipnis se coloca para se dirigir ao leitor no seu Contra
o Amor uma polêmica. Sem prometer respostas ou soluções para o conturbado
tema dos relacionamentos amorosos, cria imagens, ironiza, e traz à torna o ponto
principal de seu texto: a tirania da felicidade amorosa.
Em vez de iniciar o livro com a tradicional “introdução” ou “apresentação”,
Kipnis apresenta o primeiro título: “Advertência ao Leitor”, onde se lê:
115
“Apertem os cintos, por favor: estamos prestes a enfrentar
contradições. O tema é o amor, e as coisas podem ficar turbulentas”.
(KIPNIS, 2005: 9).
Assim, utiliza a metáfora de um vôo perigoso e se propõe a enfrentar a
turbulência de ir contra o consenso universal de que o amor é o melhor e mais bonito
sentimento humano. Mas para ela, em síntese, o amor não é o responsável pela
felicidade humana, mas pelo sofrimento. Não porque acredite que o amor
inevitavelmente acarrete dor, mas porque há uma voz, muito anterior, que ecoa e
exige a realização amorosa plena e satisfatória, com um determinado parceiro, por
toda a existência do indivíduo, calcada na fidelidade, na reciprocidade, no prazer, na
alegria, no companheirismo, na formação de uma família e tudo mais. Essa perfeição
num relacionamento amoroso, idealizada, só pode conduzir as pessoas ao
sofrimento.
[26] “... Eu não sei ainda muito bem o que é o amor e nem como
se deve amar mais penso que amar é como pensar em uma pessoa
casar e nunca se separar”. (Luís Otávio, 804, 15 anos).
[27] “O que eu espero do amor. Espero primeiro que ele venha de
verdade, sincero. Que ele traga o que eu preciso. Que me realize.
Que me complete. Se um dia eu amar alguém e essa pessoa me
corresponder, quero que esse afeto jamais morra. Espero que me
faça sentir algo inesplicável. Que me faça alegre por nada, pelo
simples fato de ser amor...” (Fernanda, 804, 15 anos).
[28] “Espero que ele seja compreensivo, amoroso, amigo, que me
note. E que faça coisas bonitas para me fazer feliz. Não espero que
seja perfeito, até porque, nenhum ser da terra é perfeito. Mas bem
que podia ser quase a perfeição, não precisa ser o mais bonito, mas
o mais legal de todos, pelo menos comigo, tem que ser simpático e
feliz. Pode ser rico ou não, e daí, o que importa mesmo é o amor
116
que vai sentir por mim, é o carinho que vai me dar, para ficarmos
juntos para sempre”. (Laís, 804, 14 anos).
[29] “Espero que me traga uma pessoa que goste de mim, que
seja verdadeira, humilde, amorosa e muitas outras qualidades.
Espero que o amor me faça ficar feliz. Espero que o amor me faça
ser um cara de sorte para encontrar a pessoa que corresponda
meus sentimentos espero muitas coisas do amor mas a maior delas é
que eu seja feliz junto com a pessoa amada”. (Luciano, 804, 15
anos).
[30] “Eu quero amar e ser amada eu espero no futuro não só um
amor de mãe ou de pai, mas um amor de verdade, também não só
um amor de adolescente mas um amor de mulher. Muitas pessoas
acham que só por sermos adolescentes não sabemos o que é amor,
porém podemos não saber o que é amor de homem e mulher, ainda.
Mesmo assim quero sentir pelo o menos uma vez o amor. Casar e
ficar para o resto da vida”. (Gabrielle, 804, 15 anos).
Nesses textos os alunos deveriam escrever sobre suas expectativas em relação
ao amor ou à pessoa amada. Confirmam-se claramente as suposições de Kipnis em
relação ao que o indivíduo espera encontrar numa relação amorosa: felicidade,
companheirismo num estado permanente de euforia, garantido pelo casamento (a
união duradoura e/ou para sempre), capaz de perpetuar o sentimento em toda sua
intensidade. A aluna Laís, parece sintetizar o pensamento da escritora americana ao
desejar a “quase perfeição” do amado. Primeiro ela nega (“Não espero que seja
perfeito”), mas depois expõe claramente o seu desejo: “Mas bem que podia ser quase
a perfeição”.
Os textos reforçam o vínculo entre amor e felicidade, e a vontade de ser
“completado” de alguma forma pelo ser amado para sempre “Que ele traga o que
eu preciso. Que me realize. Que me complete”(Fernanda); “para ficarmos juntos para
sempre” (Laís); “Casar e ficar para o resto da vida” (Gabrielle); “... é que eu seja
feliz junto com a pessoa amada” (Luciano); “casar e nunca se separar” (Luís Otávio);
117
“quero que esse afeto jamais morra” (Fernanda). O amor revestido da aura de
sentimento supremo, de total enlevo e felicidade plena para quem o sente: “Que me
faça alegre por nada, pelo simples fato de ser amor” (Fernanda).
Antes de prosseguir com as idéias de Kipnis, porém, talvez seja importante
destacar que na dedicatória do livro há um fato curioso: a autora dedica o livro a
William Shakespeare e seus sonetos, referindo-se ao dramaturgo inglês como “o
único genitor”. Interessante que ambas as obras (de Fisher e de Kipnis) façam alusão
a Shakespeare e logo de início, antes de apresentarem seus pontos de vista sobre o
amor. No interdiscurso amoroso, jamais seria possível deixar de lado o criador de
Romeu e Julieta? Seria ele, por esse motivo, “o único genitor”?
Kipnis define o amor como “uma força misteriosa e dominadora” e pergunta
quem poderia se colocar contra ele. Refere-se ao amor como uma forma de
recrutamento em massa, um poder tão opressor que exatamente por seu aspecto belo
e sedutor pode ser o maior controlador das sociedades atuais imperceptível, mas
onipresente, enraizado nos anseios mais profundos de qualquer indivíduo.
As teorias de Debord, que afirmava que o cinema teve tanta importância na
sociedade moderna que os indivíduos entraram na tela e de lá não mais saíram,
propiciaram gradativamente a identificação das narrativas da sétima arte e se
confundem hoje com ideais de vida e projeções de romances, casamentos, uniões
estáveis. Antes as sociedades valorizavam o literal, o literário, mas a imagem entrou
em cena com a força apelativa e definitiva de sua imediatez.
[31] “Para uns o amor é lindo, como novelas e cinemas. O amor é
se apaixonar de se tremer as pernas quando você vê a pessoa
amada”. (Fábio, 803, 16 anos).
[32] “É aprendido culturalmente mais por causa da mídia, dos
cinemas, filmes. Ficar apaixonado vendo um filme romântico,
mesmo você não querendo ver o filme, para mim, é normal.
Acontece como menos se espera”. (Leandro, 803, 14 anos).
[33] “É sentir que você entrou na melhor fase da vida? É
compartilhar cada momento da vida com a pessoa amada. Depois
118
recordar como se fosse um filme com uma trilha-sonora chamada
de Nossa Música?”. (Pérola Madeleine, 805, 15 anos).
[34] “O amor alegria, loucura ou morte é difícil de especificar
por exemplo: você amar uma pessoa e ser correspondido, mas
ainda tem mais olha esse outro: amar alguém e não ser
correspondido você pode ficar completamente louco, e por último:
você pode amar alguém que já é amado ou casado e por isso tem
muitas chances de acontecer uma tragédia. Há novelas que falam
sobre o amor como uma dádiva e outras nem tanto, mas eu prefiro
a minha respiração, os batimentos cardíacos que toma o controle de
você totalmente e se você não agüentar a pressão peita por ele, ai
chega a parte da loucura e depois a da morte. Enfim é isso que eu
acho do amor”. (Rogeer, 803, 16 anos).
Os trechos das redações aqui apresentados parecem sustentar essa hipótese do
espetáculo, como se o amor estivesse sempre em evidência, numa atuação, numa
performance diante do público, com direito até a trilha sonora.
Kipnis continua como apresentadora de um espetáculo e vai convocando seus
interlocutores: “Os adúlteros na sala poderiam se levantar, por favor?”. E, em
seguida, enumera os que chama de adúlteros: esposas trapaceiras, maridos
namoradores e parceiros domésticos desgarrados, do passado, do presente e do
futuro, sem deixar de lado os que fantasiam uma possível traição ou os que fizeram o
papel de “outro” num triângulo amoroso. Ironicamente, inclui também a esposa
eternamente desconfiada, em constante estado de alerta sobre o cônjuge, e o detetive
do marido. Mas não considera adultério uma rápida escapada, ou uma simples noite
de sexo, e sim um vínculo maior com outra pessoa, o que implicaria mentiras,
desculpas, estratégias diversas para vivenciar uma relação amorosa e, ao mesmo
tempo, manter os laços matrimoniais. A esse respeito, faz uma interessante reflexão
sobre a sociedade americana atual:
“Vivemos em uma época sexualmente interessante, o que
significa uma cultura que consegue ser ao mesmo tempo
119
hipersexualizada e conservar suas escoras puritanas em proporções
exatamente iguais. Estima-se que a porcentagem de pessoas casadas
que escapuliram pelo menos uma vez varia de 20% a 70%, o que
significa que você pode escolher a estatística que quiser para sustentar
a posição que preferir adotar sobre a predominância desses atos’.
(KIPNIS, 2005: 20).
Ao ironizar a fidelidade amorosa, a autora ironiza também a atual tendência a
estatísticas, nossa cultura “numerizada”, como se a incidência de acontecimentos em
maior ou menor número pudessem esclarecer todos os questionamentos de nossa
existência. Em todo o livro, Kipnis é enfática ao afirmar que procura restringir-se à
realidade da sociedade norte-americana, mas ao considerar o momento atual como
sexualmente interessante, recai sobre um certo consenso entre a maioria dos
pensadores da atualidade: as relações afetivas contemporâneas são pontos de
conexão entre as principais características da contemporaneidade, na junção entre o
econômico e o cultural. Nesse cenário é comum a veiculação de termos como “sexy”
e “hiper”, numa comprovação clara da exploração da sexualidade como elemento de
conexão entre interesses variados e que não se limitam ao universo norte-americano.
Sexy e hiper confirmam a tendência à exposição do homem e de tudo que o cerca,
como diria Debord.
Fundem-se, curiosamente, discursos econômicos e culturais. Na interseção de
todos: a mídia sempre pronta para ser acionada. Bem intencionada ou não,
inegavelmente vantajosa sob muitos aspectos nos dias que correm, é ela que está no
centro e detém o poder da informação e da veiculação. Obviamente seria impossível
pensar em retroceder do ponto a que se chegou. A agilidade, a presteza, a precisão e
toda a tecnologia disponível seguramente oferecem ganhos aos indivíduos na
contemporaneidade. Só não se pode deixar de lado a capacidade de “olhar de fora”,
para que se possa pensar, sempre calcados na Análise do Discurso, que não existe
neutralidade e que um dizer sempre silencia outro possível. E ainda: que no silêncio
ou na repetição há sempre uma inquietação.
Colocar-se “contra o amor” e pretender, deliberadamente, fazer polêmica,
pode ser um contraponto a ser avaliado na perspectiva cultural atual, considerando as
relações sociais, de trabalho e de poder, em oposição à perspectiva de justificá-lo
120
biologicamente. Sem perder de vista, contudo, que ambas as abordagens são
representações claras de nosso tempo: a reflexidade enquanto elemento de
reformulações individuais (e organizacionais) constantes e a cientificidade centrada
muito mais na dúvida e na insegurança do que propriamente na metodologia
demonstrativa. (cf. Giddens, 2002: 26).
Retomando Giddens (2002) e Lázaro (1996), que justificam a existência da
atual cultura globalizada e centrada no capitalismo a partir da Revolução Industrial,
seria interessante apresentar os pontos que Kipnis utiliza para polemizar elementos
fundamentais da atualidade como amor-trabalho-lazer.
Na seqüência, em sua enunciação em forma teatral, Kipnis, convoca seus
próximos destinatários:
“Adúlteros, agora vocês podem se sentar. Levantem-se todos
que têm Bons Relacionamentos”. (KIPNIS, 2005: 25).
Mas o que seriam “bons relacionamentos”? Ela explica: fazer (e querer fazer)
sexo com seu parceiro mais que uma vez a cada três meses, quem sabe até com
“alguma variação na coreografia”; não considerar a monogamia uma forma de
privação da liberdade; a fidelidade conjugal estaria garantida sem a necessidade de
cobranças do tipo “quem era ao telefone?”. Finalmente, Kipnis esclarece que um
bom relacionamento seria aquele que não precisaria “ser trabalhado”, uma vez que
o amor deveria ser, como se espera, a felicidade que vai além do desejo. Em resumo:
se é preciso “ser trabalhado”, é sinal de que alguma coisa não vai bem.
“Um estado de monogamia “feliz” seria definido como um
estado em que você não tem de trabalhar para mantê-lo. Afinal, a
exigência de felicidade além da duração do desejo não parece trabalho
ou trabalho como é atualmente configurado para tantos de nós,
servos da economia global: alienado, rotinizado, enfraquecido, e não
uma coisa que você escolheria fazer se realmente tivesse opções nesta
questão?”. (KIPNIS, 2005: 26).
121
Se os bons relacionamentos devem ser constantemente “trabalhados”, como
ensinam os livros de auto-ajuda, as terapias de casais ou a maioria das revistas
femininas, Kipnis lança uma pergunta interessante:
“Trabalho, trabalho, trabalho: dado todo o esforço que é
exigido, qual é a diferença entre trabalho e ‘depois do trabalho’?
Trabalho/casa, escritório/cama: alguma vez você não foi regido pelo
relógio de ponto?”. (idem: 26)
Na visão Eros/erotismo, o desejo e o prazer deveriam estar mais relacionados
à idéia de alegria, brincadeira e fantasia, o que, teoricamente, seria uma oposição à
idéia de trabalho. Contudo, a autora reflete que, especialmente na realidade norte-
americana, as noções de trabalho e lazer fundiram-se de tal maneira que os
indivíduos habituaram-se ao desprazer até nos momentos de lazer. Cita o exemplo da
era do fitness, quando é preciso “trabalhar” os músculos e “levantar peso” nas
academias. Lazer? Ou trabalho?
Os computadores em muitos lares de classe média representam facilidade e
prazer ou mais tempo de trabalho além da permanência no escritório?
O capitalismo, como sistema vitorioso no contexto mundial, agora forte e
confortavelmente instalado na era digitalizada e com tudo o que ela disponibiliza,
acentua as diferenças sociais e redimensiona a noção de tempo. Iludido inicialmente
pela idéia de que a máquina lhe daria mais tempo e qualidade de vida, o homem da
atualidade encontra-se perplexo, confuso, cansado, sem saber distinguir sua jornada
real de trabalho.
No Brasil, por exemplo, as disparidades sociais aumentaram, e muito, a
violência nas grandes cidades, o que contribuiu ainda mais para que as novas
gerações, da classe média, gastem seu tempo de lazer diante da TV a cabo, dos vídeo
games, dos DVDs ou dos computadores, entre jogos e amizades virtuais. Famílias
confinadas em condomínios, pais que controlam os horários dos filhos através dos
seus celulares. Quanto mais as novas tecnologias facilitam contatos (não presenciais)
e estreitam distâncias, mais individualistas as pessoas se tornam.
122
Quanto à questão da força e da imposição do trabalho no mundo globalizado,
da desvalorização do humano e das desigualdades sociais, Kipnis coloca uma nota de
rodapé que penso ser importante reproduzir:
“Observe que os sociólogos cunharam uma expressão um
tanto irônica para as populações que não trabalham os
desempregados, as classes dependentes da Previdência, os idosos, ou
os criminosos presumivelmente querendo refletir como eles são vistos
pela sociedade. A expressão é ‘lixo social’”. (KIPNIS, 2005: 27)
Quem não trabalha, não produz e não gera lucro não pode ter lugar quando as
palavras de ordem são: trabalho, produção, informação, rapidez, marketing, lucro. A
nomeação pejorativa nivela idosos e criminosos. Na prática discursiva, sabemos que
as palavras criam efeitos de sentido, cristalizando formações discursivas e formações
ideológicas. Que valor se dá à tradição quando idosos são “lixo social” como
criminosos?
Na abordagem que faz sobre o amor, Kipnis vai muito além das questões
afetivas do amor-paixão. Há um ruído de fundo: vozes que ressoam e induzem a
amar, a conquistar, a procurar a pessoa ideal, a acreditar no destino, a manter os
relacionamentos, a seduzir, e a atingir o orgasmo. Como se fosse possível, inclusive,
manter-se em estado permanente de paixão. Quem conseguiria viver assim? Na
aparente ingenuidade dos artigos e livros de auto-ajuda, há uma imperatividade
quase cruel que a mídia disponibiliza para leitores/consumidores de todas as idades.
Kipnis, então, pergunta uma vez mais:
“Como não admirar um sistema que engole todas as
alternativas com tanta eficácia que pode tornar admirável uma coisa
tão abjeta como “trabalhar por amor”? Bater o ponto de entrada,
bater o de saída; tentar arrebatar amor dos chefes quando não está
atarefado nas minas da domesticidade ou será o contrário?”. (idem:
29).
Vejamos como os alunos reproduzem essas idéias:
123
[35] “Espero que ele me ame como eu vou amá-lo que sinta o que
sinto por ele que saiba me amar e me respeitar que seja fiel a mim e
que mostre o sentimento puro que é o amor, que me mostre o
verdadeiro motivo desse sentimento tão bonito e ao mesmo tempo
tão inesplicável. Que não deixe o amor se tornar ódio, que não deixe
o amor acabar e se transformar em outro tipo de sentimento”.
(Débora Cristina, 803, 15 anos).
Nas palavras de Débora, o amor é colocado como sentimento “puro” e, uma
vez mais, “inexplicável”. O final do texto parece uma outra forma de dizer o que
Kipnis afirma: trabalhar por amor, ou trabalhar o amor. Não deixar o amor se
transformar em ódio, não deixar o amor acabar pressupõe um esforço de ambas as
partes. Os apaixonados devem, entende-se, lutar ou trabalhar para que o amor não
termine.
[36] “... duas pessoas tem que esta ligadas intimamente e
dispostos a lutar pelo amor. Mas não tornar esse amor forçado,
pois ninguém é obrigado a amar outra pessoa. Porém pode se
esforçar para aprender a amar alguém. E com essa aprendizagem
tornar o relacionamento cada vez melhor”. (Thaiana, 804, 16 anos).
A aluna Thaiana é da mesma opinião: os apaixonados devem estar “dispostos
a lutar”. E apesar de a aluna acreditar que ninguém é obrigado a amar outra pessoa,
ela também acredita que o amor pode ser aprendido ou aperfeiçoado, já que “essa
aprendizagem” pode tornar o relacionamento “cada vez melhor”.
[37] “Amor é tudo de bom quando se é correspondido, quando
vem de dois corações o mesmo sentimento, com pureza e
sinceridade. Amor é ter paciência, é compreender, e nem sempre
discutir, é abrir mão de algo quando necessário para satisfazer o
próximo, é viver em harmonia sem deixar que um domine o outro,
124
é ter consciência de seus atos e se entregar por inteiro”. (Cássia,
805, 14 anos).
O texto da aluna Cássia apresenta os requisitos necessários para se
“trabalhar” um relacionamento e garantir assim a felicidade amorosa: paciência,
compreensão, abrir mão e nem sempre discutir, o que significa, em outras palavras,
uma tarefa árdua que não parece nada prazerosa, mas que, em contrapartida,
recompensará o amante esforçado ao final de sua dedicação.
O sociólogo polonês Zigmunt Bauman salienta em suas obras que todo esse
processo de aceleração na contemporaneidade tende a beneficiar apenas uma parte
minoritária do planeta. Ao completar 80 anos, em plena atividade intelectual, por
ocasião do lançamento de dois livros publicados no Brasil (Ed. Zahar) o autor
comentava, em entrevista, aspectos importantes da atualidade (cf. Conde, 2007).
Coincidentemente, em um desses livros (Vidas Desperdiçadas), Bauman
chama a atenção para o que Kipnis havia colocado em sua nota de rodapé. Parece
que, daqui para frente, a sociedade será cada vez mais seletiva e cruel com os
excluídos, o ‘lixo humano’, isto é as pessoas que não têm serventia socialmente e
que podem ser descartáveis. Essas pessoas, que o autor prefere denominar de
“refugadas”, serão em número cada vez maior, alerta o sociólogo, numa decorrência
óbvia do processo cada vez mais ágil de modernização tecnológica e midiática, o
que, na prática, significa o capitalismo generalizado, acentuando as diferenças e a
substituição do homem pela máquina. Numa sociedade cada vez mais excludente,
quem não se faz necessário, quem não produz, não gera lucro e não presta serviço,
tende a ser considerado “refugo”. Como as nações poderão dar conta dessa parte da
população? Todo esse processo promove nos indivíduos uma crise de identidade de
proporções imensuráveis, que estará presente nas suas relações de trabalho e,
principalmente nos relacionamentos amorosos, como já prenunciava em Amor
Líquido (2003).
“Não tendo ligações indissolúveis e definitivas (...) o cidadão
de nossa líquida sociedade moderna e seus atuais sucessores são
obrigados a amarrar um ao outro, por iniciativa, habilidades e
dedicação próprias, os laços que porventura pretendam usar com o
125
restante da humanidade. Desligados, precisam conectar-se... Nenhuma
das conexões que venham a preencher a lacuna deixada pelos vínculos
ausentes ou obsoletos tem, contudo, a garantia da permanência. De
qualquer modo, eles só precisam ser frouxamente atados, para que
possam ser outra vez desfeitos, sem grandes delongas, quando os
cenários mudarem o que, na modernidade líquida, decerto ocorrerá
repetidas vezes”. (BAUMAN, 2003: 7).
Dessa maneira, Bauman começa a esclarecer seu ponto de vista sobre os
relacionamentos na atualidade, quando a individualização é cada vez mais
valorizada. Mesmo que esse processo não se dê de maneira clara e transparente, ele
está presente na fragilidade das relações afetivas contemporâneas. Se os cenários se
transformam tão rapidamente, relacionamentos duradouros podem ser “facas de dois
gumes”. Seria conveniente, mesmo, conservá-los? “Trabalhá-los” (conforme
Kipnis)? Que garantias pode haver quanto ao retorno nesse tipo de investimento?
O homem contemporâneo tem pressa para “resolver” todos os seus
problemas, tem que superar obstáculos rapidamente e atingir seus objetivos a
contento. Homem e mulher têm seus próprios interesses e expectativas em um tempo
acelerado que exige de cada um uma identidade, um lugar, uma meta: é preciso “ser
alguma coisa” no mundo e, conscientemente, agir de acordo com a lógica de quem
pretende ser responsável pelo próprio “destino”. Assim, os vínculos humanos, cada
vez mais fracos, respaldam-se em duas individualidades que colocam na balança a
relação “custo-benefício”.
“Quanto de renúncia ao desejo a sociedade exige de nós em
comparação com o nível de recompensa que ela proporciona?”.
(KIPNIS, 2005: 40).
Não seria, então, mais conveniente, deixar os laços “frouxos”, o que
permitiria uma facilidade maior no caso de querer voltar atrás e desatá-los?
Há uma ambigüidade marcante nos projetos de relacionamentos afetivos da
atualidade, pois ao mesmo tempo em que os indivíduos se transformam em peças
nessa gigantesca globalização, atribui-se ao amor a possibilidade de defini-los
126
enquanto seres humanos. Acredita-se que o amor detenha a tarefa de humanizar,
aculturar e diferenciar as pessoas. Talvez uma das palavras mais veiculadas hoje,
geralmente no imperativo, seja: relacionar-se. Mas, ao mesmo tempo em que o
homem contemporâneo quer e busca alguém com quem possa se relacionar, mantém
os laços frouxos, por egoísmo, ou por desconfiança, ou por medo ou, talvez, ainda,
porque a mudança de cenário, mais adiante, possa surpreendê-lo com melhores
ofertas. “Para sempre”, “eternamente”, “permanentemente” parecem palavras
assustadoras na mobilidade atual. Contraditoriamente, entretanto, o amor é o motor,
o combustível humano. Nas palavras de Bauman (2004: 9): “Relacionamento é o
assunto mais quente do momento, e aparentemente o único jogo que vale a pena,
apesar de seus óbvios riscos”.
Na atualidade, mais que nunca, o homem teme o próprio homem. Se, para
Freud, era necessário o controle libidinal, a repressão das pulsões, para formar
civilizações, hoje, acuado pelo medo, que produz uma insegurança generalizada em
qualquer sociedade, o ser humano confia apenas em si mesmo e não entende por que
tem um preço a pagar. A experiência de sociabilidade reduz-se ao núcleo familiar,
que também passa por muitas transformações.
As inquietações de se viver em uma sociedade de risco geram cidadãos
preocupados excessivamente consigo mesmos. Por esse motivo, Giddens afirma que
o risco está diretamente ligado à necessidade de planejamento de vida no âmbito do
que pode ser controlado. O risco institucionalizado exige das pessoas a avaliação e o
cálculo de cada ação, é preciso “filtrar” o que pode e não pode ser feito, o que deve
ou não deve ser dito. Diante de sua capacidade e da obrigatoriedade de agir sobre o
mundo, o ser humano pode ser considerado vítima da lógica da dominação que ora
se inverte: é dominado pelo objeto, apesar de acreditar que seja o dominante
(racional). É seu dever contornar todos os fenômenos naturais e sociais para dominar
o próprio destino.
Filtrar é a tarefa do casulo protetor, mas não há clara linha de
demarcação a ser traçada entre uma confiança ‘bem fundada’ em
eventos presentes e futuros e uma confiança menos segura; esse fato é
intrínseco à natureza da confiança, como fenômeno que ‘põe a
ignorância entre parênteses’. A manipulação deliberada e
127
freqüentemente criativa dessa linha de demarcação é uma das
principais inspirações de formas cultivadas de assumir os riscos. Onde
não puder ser explorada para gerar emoções e excitação, porém, essa
linha continua sendo um foco de ansiedades”. (GIDDENS, 2002: 168-
169).
Quanto mais os indivíduos se protegem, quanto mais procuram sentir-se
seguros, mais o medo se instala, gerando inquietação. Fazer seguro de vida, blindar o
automóvel, aprender artes marciais nada mais significa senão a reafirmação da
desordem e da insegurança.
muitos riscos, porém, impossíveis de ser estimados, o que conduz o
indivíduo a caminhar rumo ao desconhecido e que o faz lidar com a possibilidade do
erro. É o caso dos relacionamentos amorosos, nos quais o sentido de segurança é
limitado, já que não se pode prever as atitudes do outro nem há garantias quanto à
confiabilidade dos sentimentos alheios. Para evitar riscos, o melhor é recusar a
experiência da alteridade. Não que as pessoas deixem de se relacionar, mas não
deixam de se proteger.
A pressão de ser o único responsável por sua própria realização tende a
estimular nos indivíduos o egoísmo e o egocentrismo aliados a uma ação defensiva
constante, em que a entrada do outro só é possível na medida em que possa
significar satisfação. A atitude defensiva é o reflexo de seu próprio pensamento,
uma vez que vê o outro como a si mesmo, ou seja, preocupado exclusivamente
consigo mesmo e voltado aos seus interesses pessoais.
“Podemos ver aqui uma base poderosa da inquietação
emocional, particularmente quando considerada contra o pano de
fundo de riscos de alta conseqüência. A perda de pontos fixos de
referência derivada do desenvolvimento de sistemas internamente
referidos cria uma inquietação emocional que os indivíduos nunca
conseguem superar inteiramente”. (GIDDENS, 2002: 172).
Um dos maiores dilemas que afetam o homem contemporâneo é a relação
paradoxal entre unificação e fragmentação. Giddens afirma que ao mesmo tempo em
128
que une, a modernidade também fragmenta. A unificação acontece na esfera pessoal,
vincula-se à necessidade de proteção e à exigência de manter o foco em si mesmo de
modo que ao construir sua auto-identidade o indivíduo possa sentir-se seguro diante
de tantas mudanças em tão pouco tempo.
A fragmentação está por todos os lados e opera na vastidão de possibilidades
que se apresentam ao indivíduo por uma série de canais e fontes variadas. A
diversificação de contextos impõe aos indivíduos a necessidade de interagir ou de
agir apropriadamente a cada situação vivenciada. “Quando o indivíduo sai de um
encontro e entra em outro, sensivelmente ajusta a ‘apresentação do eu’ em relação
ao que lhe for demandado na situação em questão”. (Giddens, 2002: 176).
O indivíduo contemporâneo é um ser plural. Diante da diversidade, é
impelido a encontrar um sentido para sua existência pessoal. É preciso ser alguma
coisa, construir sua própria história, dominar a natureza, calcular riscos e ter nas
mãos o controle de sua vida. Mas o cenário em que essa construção da identidade
acontece é marcado pela desagregação: valores e princípios sucessivamente alterados
num espaço que permite a convivência entre o novo e o mesmo. Mudança e
continuísmo afetam decisivamente o homem que se acredita senhor de seu destino,
mas que na verdade age de acordo com as demandas sociais. Sua identidade é
formada a partir do outro e, assim, torna-se aquilo que o outro acredita que ele seja.
Por isso o momento atual é de efemeridade e hedonismo. Seja qual for o
projeto em que esteja envolvido, o indivíduo precisa sentir-se parte integrante de um
grupo, mesmo que temporariamente. A necessidade de pertencer e de partilhar
sentimentos e sensações o faz existir através do outro e encontrar satisfação e uma
certa estabilidade na alteridade.
De acordo com as postulações de Freud, é na alteridade que se inaugura o
percurso de um sujeito social. As narrativas humanas são sempre decorrentes de
outras narrativas, anteriores, e os seres humanos estão ligados entre si pela história
de seus grupos e de suas sociedades. Todo discurso enunciado torna possível a
enunciação de um outro. Os laços sociais permitem ao indivíduo enunciar seu
próprio discurso e assim forjar sua singularidade, a partir do simbólico. É sempre na
relação com a alteridade que o indivíduo se constitui enquanto sujeito. O outro é,
portanto, a anterioridade fundadora que permitirá ao homem fundar-se em sua
interioridade.
129
Nas sociedades contemporâneas há a valorização do pessoal, os projetos são
individuais, particulares e não coletivos. As experiências de sucesso ou de fracasso
resultam da ação individual, o que significa a formação de uma cultura narcísea e o
enfraquecimento dos laços sociais.
O outro não promove a interiorização, mas a superficialidade, o indivíduo se
identifica com o que vê no outro, com aquilo que ele põe à mostra. É a identidade
forjada na espetacularização. A relação com o outro só é satisfatória e só pode
acontecer na medida em que não trouxer desordem ou tensões decorrentes da
diferença. Antes disso, o outro serve ao indivíduo como elemento desencadeador de
uma experiência auto-reveladora. Por isso a idealização das ‘relações-puras’, presente
no imaginário das relações afetivas hoje. Na verdade, o que o indivíduo pretende é a
busca do mesmo, de si mesmo, e a recusa do diferente.
[38] “Eu espero que ele me ame da mesma forma que eu o amo,
que ele me respeite, que me dê carinho, que seja sincero, leal,
amigo. Eu espero que ele retribua sempre o mesmo carinho que eu
tenho com ele. Eu sei que nada é para sempre, mas que dure o
necessário, onde a gente seja sincero um com o outro, enquanto
existir amor que não haja falsidade e nem traição. Onde um
complete o outro sem medo de arriscar”. (Laísla, 805, 14 anos).
O texto de Laísla é um claro exemplo da idealização de uma relação-pura.
Quando enumera as qualidades que pretende encontrar na pessoa amada ela enfatiza
todo o tempo a reciprocidade. O amor (do outro) deve existir para completá-la e para
fazê-la feliz. Mesmo afirmando que não deve haver medo de arriscar, ela quer
assegurar-se de não correr riscos, pois seu amado deve ser fiel enquanto houver amor.
O amor, em suas palavras, soa como reflexo da estima que sente por si mesma.
O amor é visto como uma relação em que deve, obrigatoriamente, haver
satisfação emocional no contato com o outro. A falta dessa satisfação seria um
sintoma de que o amor está no fim. Como a capacidade de atingir a satisfação na
intimidade com o outro faz parte do projeto reflexivo do eu contemporâneo, o
autodomínio vem a ser uma das condições necessárias mais importantes.
130
O corpo entra nesse processo como elemento que permite ao homem avaliar o
sucesso de uma relação amorosa. A atração, o prazer, e a permanência do desejo são
determinantes para a realização amorosa. O controle rotineiro do corpo é igualmente
uma das marcas da contemporaneidade, afinal o ser humano é sexuado e é o corpo
que lhe possibilita sentir prazer e dor. A preocupação excessiva com alimentação,
vestimenta, exercícios físicos, medicamentos confirma a atual tendência a valorizar o
corpo humano. De acordo com Giddens, a questão do corpo encontra-se
particularmente vinculada ao nome de Foucault, filósofo que analisou o corpo em
relação a mecanismos de poder.
Foucault (1997) em seus estudos sobre a sexualidade não vê o homem como
tradicionalmente havia sido colocado: vítima do Estado soberano e da Lei que
reprime o sexo. Para ele, a sexualidade do homem ocidental não sofreu, nos últimos
três séculos, uma grande repressão, mas, ao contrário, o sexo foi colocado numa rede
de discurso que o incitava a revelar-se. As sociedades ocidentais falavam, e muito,
sobre sexo. Não significa que não havia interdição, mas esta não se restringiria a ser o
único objeto de estudo que possibilitaria entender o percurso da sexualidade humana
nas sociedades a partir da Idade Moderna.
“Mais do que essa incidência econômica, o que me parece
essencial é a existência, em nossa época, de um discurso onde o sexo, a
revelação da verdade, a inversão da lei do mundo, o anúncio de um
novo dia e a promessa de uma certa felicidade, estão ligados entre si. É
o sexo, atualmente, que serve de suporte dessa velha forma, tão
familiar e importante no Ocidente, a forma da pregação”.
(FOUCAULT, 1997: 13).
De acordo com Foucault, na sociedade, em geral, há a onipresença do poder,
que não se detém em um ponto específico, mas se alicerça devido às desigualdades
na correlação de forças existentes, por isso questiona a “hipótese repressiva”, uma
vez que não entende o poder como uma força única capaz de definir todas as
possibilidades e restrições sociais.
O poder parte de vários lugares na sociedade e afeta os indivíduos
indiscriminadamente, através de dispositivos: conjuntos de práticas discursivas e não
131
discursivas que, articuladamente, respaldados pelos saberes disponíveis (ciência,
filosofia etc.) assujeitam os indivíduos socialmente. “O dito” é, portanto, um
dispositivo de poder. As práticas não discursivas o não dito materializam-se
igualmente em dispositivos formadores de instituições, regulamentações, leis,
medidas administrativas que têm por finalidade o controle dos indivíduos e de seus
corpos. Os dispositivos podem materializar-se tacitamente ou em discursos
verbalizados, constituindo-se em teorias ou práticas que acabam por “normalizar” a
vida dos indivíduos e, conseqüentemente, todo o corpo social, formando cidadãos
necessários à sociedade.
O dispositivo da sexualidade está nas mais variadas relações de poder que
constituem a sociedade nas relações entre pais e filhos, homens e mulheres, médicos
e pacientes, professores e alunos, empregador e empregado, produtor e consumidor,
governo e povo, entre outras. A sexualidade deve ser compreendida, então, não como
o único, mas como um dos elementos mais eficazes de controle sobre o sujeito e a
sociedade. De acordo com Foucault, nesses três últimos séculos, os interditos e as
formas repressoras que silenciavam o sexo, atribuindo-lhe o lugar de “pecado” e de
“erro”, transformaram-se em uma enorme prolixidade discursiva na biologia, na
medicina, na psiquiatria, na psicologia, na moral, na crítica política. Essa prolixidade
é igualmente uma forma de poder, que prega a incitação ao discurso e ao prazer.
“A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo
histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com
dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos
corpos, a intensidade dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação
dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências,
encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de
saber e de poder”. (FOUCAULT, 1997: 100).
As relações de sexo deram lugar na sociedade ao dispositivo de aliança e ao
dispositivo de sexualidade. O primeiro determinado através de um poder punitivo,
coercivo e excludente, é regido pela lei que institui matrimônios, divórcios,
transmissão de nomes e de bens. Como interdito, sua função é universal e repressiva
e se fundamenta na concepção jurídico-discursiva do poder. O segundo é
132
conseqüência histórico-política e se caracteriza por uma troca constante de domínios
e das formas de controle. O dispositivo de sexualidade está focado no corpo (que
produz e consome). Enquanto o dispositivo de aliança preocupa-se com a família, os
laços constituídos socialmente e principalmente com a reprodução, o dispositivo de
sexualidade volta-se ao corpo em si, como objeto de saber/prazer e nas relações de
poder, ignorando sua função de reprodução.
Por essa distinção, Foucault rejeita a hipótese repressiva, considerando que a
sexualidade humana vem sendo discutida unicamente pela concepção jurídico-
discursiva nas sociedades ocidentais. Em sua análise, abandona esta concepção e
prefere analisar a sexualidade a partir da noção de dispositivo de poder que
normaliza a sociedade e se institui como verdade. Tais dispositivos solidificam-se
nas estruturas sociais e estão presentes nos discursos religiosos, pedagógicos,
terapêuticos, médicos, jurídicos e em muitos outros. A partir do século XVIII,
surgiram novos procedimentos, heterogêneos, na verdade mecanismos de poder que
já começavam a trazer à tona discursos que abordavam o homem vivo, seu corpo,
sua vida; discursos estes não mais sustentados pelo direito, mas pela técnica; não
mais pela lei, mas pela norma; não mais pelo castigo, mas pelo controle. A lei, antes,
era clara, impositiva, corretiva, notória. A norma, agora, muitas vezes é preventiva,
implícita, dissimulada, mas, nem por isso, menos impositiva.
Pela hipótese repressiva, seria claro observar os mecanismos de intervenção e
interdição: o poder repressor (da sexualidade) estaria presente em todo lugar e em
qualquer situação. É fácil identificar um poder limitador centrado na lei e sustentado
pelas instituições jurídicas. Quando, porém, há uma série de dispositivos que,
aliados, formam uma rede interditora, os modos de opressão, assujeitamento e
submissão ficam disfarçados e perceptíveis através do comportamento subserviente
dos indivíduos que obedecem sem saber exatamente a quê. Obviamente, Foucault
não desconsidera totalmente a repressão da lei, mas chama a atenção para as
imposições do dispositivo de sexualidade, que não são menos severas e cerceadoras.
O que há, então, é uma rede discursiva de saber/poder que regula e determina a
sexualidade humana.
Giddens (1992) faz uma análise diferente entre sexualidade e poder e afirma
que o último nada realiza, sustentando que a sexualidade não poderia ter sido criada
pelo poder.
133
“A sexualidade não foi criada pelo ‘poder’, do mesmo modo
que a difusão da sexualidade, pelo menos em um caminho direto, não é
o resultado da sua importância central para esse ‘poder’. Na minha
opinião, não existe biopoder, pelo menos no sentido genérico em que
Foucault o concebe. Em vez disso, podemos distinguir várias
seqüências de transformação organizacional e pessoal no
desenvolvimento das sociedades modernas. O desenvolvimento
administrativo das instituições modernas deveria ser separado da
socialização da natureza e da reprodução processos fundamentais e
diretamente relacionados à sexualidade, mas não para serem
analisados à maneira sugerida por Foucault. Estes, por sua vez, devem
ser distinguidos do projeto reflexivo do eu e das inovações da vida
pessoal a ele vinculadas”. (GIDDENS, 1992: 191).
Embora discorde de Foucault quanto à existência de um ‘biopoder’, Giddens
concorda que há uma proliferação de discursos sustentados pela ciência que se
engendram nas organizações modernas, tornando-se onipresentes. O livro de Fisher é
um exemplo concreto desse fato. Contudo, não se pode retirar do sexo seu caráter
procriador, mesmo que a contracepção moderna acene com a possibilidade do prazer
como fim em si mesmo, este seria seu impulso original, conforme defende Giddens.
Antes da possibilidade do contraceptivo, a sexualidade esteve voltada para a
reprodução ou para a ars erótica e para as mulheres havia somente duas opções:
ser pura ou impura.
Hoje, as decisões são individualizadas e a sexualidade uma escolha e uma
possibilidade nas relações afetivas que misturam a idéia do amor erótico e do amor
romântico, heranças adaptadas às perspectivas de uma atualidade menos voltada à
tradição e à moralidade. Em sua abordagem sobre o amor, Giddens o vincula ao
sexo, e acrescenta que hoje homens e mulheres são atores de uma realidade na qual a
atividade sexual é cada vez mais intensa porque, na verdade, constitui-se em uma
busca constante do inatingível.
134
“A atividade sexual está propensa a ser acompanhada daquele
‘vazio’, aquela busca por uma sensação sempre ilusória de realização,
que afeta ambos os sexos, embora de maneiras diferentes. Para muitos
homens, esta é uma busca incansável para superar os sentimentos de
inadequação que ferem tão profundamente o menininho que deve
renunciar à sua mãe. Para as mulheres, muito mais importante é
aquela ‘busca do romance’ com o pai desejado, mas inacessível.
Entretanto, em ambos os casos, há uma ânsia de amor”. (GIDDENS,
1992: 194).
Na cultura moderna a sexualidade funde-se ao amor instigando os indivíduos
a buscar a realização afetiva. Talvez essa preocupação acirrada seja decorrente do
processo em que o sexo e o amor foram colocados, pouco a pouco, como
mercadoria. Há um apelo generalizado que impulsiona a falar sobre sexo/amor e a
conseguir o prazer através dele.
Assim também é a imposição da felicidade através da realização amorosa,
que se tornou consensual, conforme afirma Kipnis. Eis o grande dilema do homem
na atualidade: a necessidade de relacionar-se intimamente com alguém, numa relação
que conjugue confiança, prazer e realização e, ao mesmo tempo, o desejo de manter-
se independente, senhor de sua autonomia. Relacionamentos longos, pautados na
sinceridade e na confiança, impreterivelmente caem na rotina e na comodidade
segura da afetuosidade mútua, sem maiores emoções e sem a inquietação e a
variação que a incitação ao prazer sugere. A estabilidade também significa apertar os
laços, prender-se, mostrar-se, fragilizar-se, depender de alguém e ao mesmo tempo
tornar-se necessário. Certamente são idéias assustadoras para quem vive mergulhado
em sua própria imagem.
Ao mesmo tempo em que condena a opressão amorosa na atualidade, Kipnis
parece igualmente afetada por ela. A seguir, destaco alguns fragmentos da entrevista
publicada pela Revista Aventuras na História, de maio de 2006.
A.H. - Você acredita em monogamia? K - Se você tem o
desejo de dormir apenas com uma pessoa, então você encontra a forma
ideal de monogamia. Mas se você tem que ‘trabalhar’ pela monogamia,
135
se você não tem vontade de ser monogâmico, então essa situação se
torna repressora. (...)A.H. - Se o casamento é tão ruim, por que as
pessoas insistem tanto em se casar? K - As pessoas são otimistas. Há
algo de utópico em torno do amor. A idéia de se fundir com outra
pessoa, de se sentir completa, pode ser a coisa mais prazerosa que
existe. (...) A.H. - Acredita no amor? K - Sim. Definitivamente”.
(HAMA, 2006: 34).
As palavras de Kipnis deixam claro que ela acredita na intensidade de um
relacionamento quando o desejo acontece naturalmente, sem que haja necessidade de
os envolvidos ‘trabalharem’ de alguma forma para continuarem juntos. Parece haver
nas entrelinhas a crença na possibilidade de um estado constante de paixão. Apesar
de questionar os relacionamentos e a forma de controle que os cônjuges utilizam um
em relação ao outro, a autora justifica a manutenção do casamento na
contemporaneidade como uma forma prazerosa de fundir-se a quem se ama.
Casamento e prazer aliam-se em suas palavras e ela termina a entrevista afirmando
acreditar de forma definitiva no amor.
[39] “Espero um amor verdadeiro; respeito, alegria, compreensão,
carinho. Espero que ela não coloque um par de chifre em minha
cabeça, sendo fiel assim como eu sou, espero continua a ser
surpreendido com o que ela faz por mim e espero passar por
momentos inesquecíveis com ela enquanto estivermos juntos”.
(Charles, 803, 16 anos).
[40] “Minha expectativa é de encontrar uma garota que seja
inteligente, bem sucedida, independente, que seja festeira, goste de
sair e principalmente que combine comigo principalmente no modo
agir, pensar e ser. Procuro claro a garota perfeita para mim, eu
acho que a encontrarei mais não ficarei com ela, pois tenho certeza
que ela não ficará comigo porque também acho que ela está
procurando o homem perfeito. Então procuro viver a vida cada dia
que um dia eu a encontrarei”. (Bruno, 803, 15 anos).
136
Charles e Bruno reafirmam a capacidade de amar intensamente e de encontrar
a felicidade plena em uma pessoa especial, “perfeita” e capaz de “surpreendê-los”
de alguma forma. Idealizam, dessa forma, uma “relação-pura”, intensa e verdadeira
enquanto durar. Thalita, por sua ver, no texto a seguir, parece ficar incomodada com
o sofrimento das meninas na adolescência. Embora se declare apaixonada por um
menino que mora longe, não pretende sofrer ou se “abalar” por causa desse amor, até
porque nem ele nem ela parecem abrir mão do prazer de um relacionamento, afinal
ambos estão namorando outras pessoas. Se houver uma possibilidade futura de os
dois virem a se relacionar, ótimo, afinal “o mundo dá muitas voltas”, mas se não
houver, ótimo também, pois ninguém vai sofrer por isso.
[41] “No meu modo de pensar as meninas na adolescência sofrem
muito com o amor, se apaixonam rápido e muitas acabam sofrendo
e se iludindo. Eu por exemplo amo muito um menino mas não posso
esperar nada dele pois ele mora longe e eu nunca tive o prazer de
conhecê-lo pessoalmente, mas mesmo assim ele diz que me ama e
que eu sou a mulher da vida dele. Agora não vou me abalar muito
menos ficar sofrendo vou viver a minha vida, até porque eu estou
namorando e ele também então se for para ser será, até porque o
mundo dá voltas e muitas oportunidades virão e irei esperá-las”.
(Thalita, 803, 14 anos).
Todas as ações vividas na atualidade inserem-se na dinâmica da prática da
permuta. Em qualquer atividade que venha a desempenhar o indivíduo é levado a
refletir sobre a relação investimento-retorno. Se pretende trocar de emprego, ou de
carro, ou fazer uma viagem coloca na balança a relação custo-benefício para tomar
qualquer decisão. O amor não foge, portanto, a essa prática, mesmo que esteja
camuflado sob os clichês dos dizeres que costumam envolvê-lo, apresenta-se ao
novo homem igualmente como produto a ser pesado, avaliado e consumido.
Segundo o sociólogo inglês Colin Campbell (Universidade de
York/Londres), elementos que seriam aparentemente incompatíveis, como
romantismo e consumo, apresentam-se, na atualidade, estreitamente ligados. O
137
“romântico”, que seria um termo vinculado ao “romance” ligado à imaginação e
distante da experiência sobrevive hoje na ação cotidiana dos indivíduos em sua
prática de seleção, compra e utilização de utensílios e serviços diversos, promovendo
a proximidade entre idéias aparentemente contrastantes. Segundo o sociólogo, o
fenômeno moderno que possibilita a união dessas duas idéias opostas é a
propaganda, principal combustível da máquina midiática. Em abordagens distintas e
variadas, em sua totalidade os anunciantes exploram o “romance” nos apelos
publicitários, trabalhando com o desejo humano e procurando atingir os indivíduos
em suas carências e insatisfações.
Campbell (2001) esclarece que o próprio conceito de Romantismo é confuso
e vago, contraditório até mesmo para os pensadores da época. Primordialmente, o
Romantismo se fundamenta por um desejo eternamente insatisfeito, um sentimento
de irresolução, ambivalência e uma melancólica nostalgia que se sustenta pela
promessa de uma felicidade que nunca se alcança. A satisfação do romântico
encontra-se, portanto, na própria insatisfação. A relação do homem com seus
semelhantes ou com a natureza fazia-se através dos sentimentos. Quanto menos
definidos e distantes da razão melhores seriam esses sentimentos. Os românticos
consideravam o mundo uma emanação divina e o corpo o local de aprisionamento do
espírito, este último sua ligação com Deus. O espírito aprisionado significava a causa
maior do sofrimento humano, uma vez que o homem apresentava-se distanciado de
Deus pela vida terrena, por isso o romântico conservava uma melancolia e uma
tristeza profunda e, para aproximar-se do sagrado, rejeitava os prazeres mundanos. O
amor mais belo, portanto, seria o que mais se assemelhasse ao divino e espiritual,
privado dos prazeres da carne.
As redações a seguir apresentam muitas dessas características do
romantismo: sublimação, o verdadeiro amor é o espiritual, aquele que se assemelha
ao amor do criador pela criatura, a felicidade amorosa é inalcançável.
[42] “Amor é uma palavra que se escreve com 4 letras, mas todos
sabem o que é amor? Todos amam mãe ama... pai ama... filho ama.
Mas tem gente que faz prova de amor. Mas nenhuma se compara a
de Jesus que deu a sua vida por nós na cruz, sem pedi nada em
138
troca; amor é um sentimento bonito que temos para compartilha
com quem amamos”. (Gabrielle, 804, 15 anos).
[43] “O verdadeiro amor está além das aparências, além das
posses. Está no interior do coração, concentrado no seu, no meu, no
nosso “eu”. Está no fundo do grande oceano de qualidades mais
profundas do que a beleza exterior”. (Thaís, 803, 14 anos).
[44] “Amar é aprender a gostar incansavelmente do outro de
quem se ama. É sentir-se leve mesmo tendo um duro dia de
trabalho. É se ausentar de todos e a todos e viajar sem sair do lugar
para um mundo particular, unicamente seu, para alcançar a
inalcansavel felicidade de amar e sentir-se amado. É o inexplicável
desejo de querer este ser sem nexo, de reencontrar a sua metade
perdida para fundir-se de novo neste ser singular. É ver a beleza
em pequenos gestos alheios”. (Letícia, 803, 15 anos).
Ao esmiuçar as características do período romântico, Campbell observa que
já no final do século XVIII havia uma propensão ao consumo e o luxo era
valorizado. A moda e a obediência a determinadas tendências já influenciavam as
pessoas naquela época, de uma maneira bastante semelhante aos nossos dias. A idéia
de que somente a nobreza consumia nesse período histórico é desconstruída pelo
autor quando esclarece que a “classe média”, já no início do século XIX, como
conseqüência da Revolução Industrial e do Calvinismo, iniciava um movimento que
viria a afetar fortemente a economia da época.
A tese de Campbell é a de que a propaganda, a mídia e todo o consumo
existente não se utilizam das idéias do Romantismo para tentar “vender” produtos e
comportamentos aos indivíduos na sociedade contemporânea. Para ele, o movimento
é inverso: o Romantismo já trazia em si o consumo, e nossa prática consumista na
verdade é uma conseqüência daquele período que, equivocadamente, supúnhamos
envolto numa aura de parcimônia e sobriedade.
139
“No entanto, a suposição que tem prevalecido largamente, entre
os cientistas sociais e, na verdade, entre acadêmicos e intelectuais em
geral, vem sendo a de que são os anunciantes que escolheram fazer uso
desse material, numa tentativa de promover os produtores que eles
representam e, conseqüentemente, de que, na relação assim
considerada, as crenças, aspirações e atitudes ‘românticas’ sejam
postas a funcionar no interesse de uma ‘sociedade de consumo’. Essa
concepção é desafiada (embora não excluída) nas páginas que se
seguem, onde se sustenta que deve ser levada a sério a relação inversa,
na qual se considera o ingrediente ‘romântico’ da cultura como
havendo tido um papel fundamental no desenvolvimento do próprio
consumismo moderno; na verdade, desde que o consumo pode
determinar a procura e o abastecimento da procura, podia-se sustentar
que o próprio romantismo desempenhou papel decisivo ao facilitar a
Revolução Industrial e, por essa razão, o caráter da economia
moderna”. (CAMPBELL, 2001: 10).
A esse respeito é importante citar o psicanalista Jurandir Freire Costa (1999)
quando esclarece a respeito das “verdades” que circulam em torno do que se diz
sobre o amor. Tais verdades nada mais são que aquilo que a Análise do Discurso
denomina de formação discursiva (FD)
8
e que, para Freire Costa, no que se refere ao
discurso amoroso, são três principais: 1) o amor é um sentimento universal e
natural, presente em todas as épocas e culturas; 2) o amor é um sentimento surdo à
´voz da razão’ e incontrolável pela força da vontade e 3) o amor é a condição sine
qua non da máxima felicidade a que podemos aspirar”.
De acordo com o psicanalista, o amor nada mais é senão uma crença
emocional, inventada culturalmente e, como tal, pode ser revisto e reavaliado. Tais
considerações respaldam-se em sua prática psicanalítica e no sofrimento que as
pessoas comumente relatam diante dos “fracassos” em suas relações amorosas. Para
ele, as pessoas sofrem exatamente porque idealizam o amor de acordo com o legado
do romantismo, que chega até nós ainda hoje através da literatura, do cinema e da
8
“A formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada ou seja, a partir de uma
posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada determina o que pode e deve ser dito”. (Orlandi, 2000:
43).
140
televisão. Essas narrativas são releituras constantes de um mesmo ideal (amoroso) e
chegam de maneira já interpretada. Entretanto, não há garantias de que aquele
sentimento vivido por heróis e heroínas dos romances tenha de fato existido um dia.
Menos ainda de que seja um sentimento tão intenso que por si só já justificaria uma
existência pelo qual valeria viver apenas um único momento maravilhoso e sem o
qual a vida não valeria a pena. Esses eram ideais do amor romântico. Será que esse
tipo de amor caberia nos dias de hoje? As relações amorosas hoje se moldariam a
esse amor-doação, amor-resignação, amor-dor? Será que a humanidade realmente já
amou assim um dia ou apenas “falou” sobre o amor dessa forma e assim o definiu?
Não há como saber. Da mesma forma, não se pode vincular a idéia da felicidade à
realização amorosa, algo que não depende de uma só pessoa. Conceitos subjetivos,
como o de felicidade, tendem a se tornar ainda mais confusos quando envolvem mais
de uma pessoa. Mais que isso: felicidade, realização, satisfação são conceitos que a
psicanálise relaciona à impossibilidade, amparada pelos conceitos de castração,
fantasma e recalque. As satisfações (pulsionais) funcionam como paliativos que
promovem o prazer parcial e momentâneo, mas que certamente jamais será
definitivo.
Para dar sustentação a sua teoria, Freire Costa vai, aos poucos, refletindo a
respeito dessas três formações discursivas principais sobre o amor. Dizer que o amor
é um sentimento universal e natural baseia-se na experiência humana geral de
vivenciar o amor enquanto sentimento que envolve atração e paixão numa relação
entre duas pessoas. Se é vivido e experimentado por todos, então é da natureza
humana e tudo o que o negasse seria antinatural e desumano. As pessoas estão
acostumadas a aceitar alguns conceitos que o senso comum sustenta, sem, contudo,
questioná-los. Os dizeres que envolvem o amor, em geral, pertencem a esse tipo de
aceitação coletiva daquilo que “é-assim-sempre-foi-assim-e-pronto”. O psicanalista,
entretanto, afirma que o ser humano aprende a amar. Os apaixonados comportam-se
de maneira diferente de acordo com a época e o lugar onde vivem. O amor é,
portanto, efeito de práticas e crenças sociais.
Na verdade, esse raciocínio faz parte do aprendizado das
“intuições indubitáveis” sobre nossos sentimentos. Aprender a
valorizar o amor como um bem desejável é aprender, ao mesmo tempo,
141
a não duvidar de sua universalidade e de sua naturalidade. Só que a
idéia da naturalidade e universalidade da experiência amorosa nada
tem de evidente por si mesma. Quando dizemos que o amor é universal,
estamos dizendo que sabemos reconhecer experiências emocionais
passadas semelhantes ou identidades com experiências amorosas
presentes. Mas a capacidade para reconhecer semelhanças ou
diferenças em fatos afastados no tempo e no espaço é ensinada e
aprendida como qualquer outra. Quem nos ensina que o amor de
Helena por Páris, de Romeu por Julieta, de Cleópatra por Marco
Antônio, de Tristão por Isolda é igual ao amor que sentimos, já
selecionou previamente, nos fatos passados, o que deve ser identificado
com os traços relevantes dos amores atuais”´. (FREIRE COSTA,
1999: 13).
Seria o amor, realmente, um sentimento surdo à voz da razão e incontrolável
pela força da vontade? Para o autor, esse tipo de afirmação só serve para reforçar
ainda mais a exaltação amorosa típica do romantismo. O raciocínio estaria sempre
pronto a “perder” numa luta entre razão e emoção? Todos os sujeitos apaixonados
permanecem num estado tal de desorganização mental, que seria sempre levado pelo
impulso passional? A racionalidade é incompatível com a paixão? Pouco a pouco,
Freire Costa desconstrói essas idéias, salientado que as pessoas escolhem o objeto de
afeto geralmente dentro de um certo perfil ou padrão social semelhante. Quando uma
outra escolha é feita, não significa que não se tenha consciência da diferença, apenas
admite-se essa variação, o que não quer dizer que somente emoção e impulso tenham
sido os responsáveis por essa escolha.
A racionalidade está tão presente no ato de amar quanto as
mais impetuosas paixões. Amar é deixar-se levar pelo impulso
passional incoercível mas sabendo ´quem´ ou ´o que´ pode e deve ser
eleito como objeto de amor. A imagem do amor transgressor e livre de
amarras é mais uma peça do ideário romântico destinada a ocultar a
evidência de que os amantes, socialmente falando, são, na maioria,
sensatos, obedientes, conformistas e conservadores. Sentimo-nos
142
atraídos sexual e afetivamente por certas pessoas, mas raras vezes essa
atração contraria os gostos e preconceitos de classe,´raça’, religião ou
posição econômico-social que limitam o rol dos que ´merecem ser
amados´ Na retórica do romantismo, o amor é fiel apenas à sua
própria espontaneidade. A realidade social e psicológica dos sujeitos
diz outra coisa. O amor é seletivo como qualquer outra emoção
presente em códigos de interação e vinculação interpessoais”. (idem:
1999: 17).
Quanto à questão do amor como condição suprema para a felicidade plena, o
psicanalista afirma que esta é a mais preocupante das afirmações que se faz sobre o
amor. Pode ser perigoso vincular a felicidade à realização amorosa quando não há
garantias de que se possa ser afetivamente realizado. Relacionamentos envolvem
duas pessoas. Como assegurar a felicidade de uma pessoa naquilo que resvala para o
outro?
Quando surgiu na Europa, o amor romântico estava em harmonia com os
ideais e o pensamento de uma burguesia transformadora. O amor romântico acenava
como possibilidade de manter o equilíbrio entre o desejo de felicidade pessoal e a
manutenção dos vínculos e normas sociais para a vida em coletividade.
Na contemporaneidade, a propagação do amor promoveu seu gradativo
desgaste. A facilidade com que os relacionamentos se iniciam, tornam-se
intensamente íntimos e terminam não pode encontrar afinidade com um tempo que
valorizava a sublimação. Banalizado, o amor se transforma em barganha, é a troca
possível entre duas individualidades que se encontram.
As considerações de Freire Costa e Campbell, embora se distanciem em
alguns pontos, são igualmente aceitáveis e relevantes. Se o consumo teve sua origem
no romantismo e foi sucessivamente modificado até servir como inspiração para as
campanhas publicitárias da atualidade, ou se, ao contrário, os tempos excessivamente
consumistas de hoje procuram na linguagem do amor romântico os ideais capazes de
despertar o desejo; tanto faz.
O fato é que de qualquer maneira o amor chega ao indivíduo contemporâneo
como a razão de sua própria existência. O amor é o foco principal, o elo que liga o
indivíduo contemporâneo aos ideais “nobres” do passado, numa tentativa, talvez
143
ainda possível, de resgatar o humano em tempos de violência, frivolidade,
individualismo, incerteza e indiferença.
Considerando a premissa freudiana segundo a qual a renúncia à satisfação
pulsional (condição para fundamentação da vida em sociedade) só pode ser tolerada
se a civilização oferecer satisfações substitutivas às pulsões recalcadas, faz-se
necessário analisar os discursos sobre o amor na atualidade que, de uma forma ou de
outra, transformam-no na ilusão de produto consumível. Amor, sexo, afeto, desejo
são bens de consumo excessivamente expostos num tempo em que são criados novos
padrões de comportamento sexual e amoroso, os quais desconsideram a dimensão
fantasmagórica do sujeito.
144
CAPÍTULO 3 - A IMPOSSIBILIDADE DO RISCO-ZERO NO AMOR
Até aqui tentei delinear o panorama social da atualidade e a identidade dos
indivíduos que dela fazem parte porque pensar o homem significa considerar o
quanto ele é afetado simbolicamente, pela ideologia e pela história, para que
aconteça o processo de individualização.
Hoje, o homem se situa entre direitos e deveres vinculados à democracia
vigente, que por sua vez está subordinada ao capitalismo. Mais que isso, entretanto,
faz-se necessário analisar as dimensões sociopsicológicas do mundo contemporâneo.
A psicanálise, de maneira geral, vem constatando uma acentuada tendência à
formação de personalidades narcisistas onde a cultura é sucessivamente afetada pelas
organizações sociais, pelo consumo, pela tecnologia e pela mídia.
Em sua análise sobre os amores líquidos da atualidade, Bauman (2004) abre o
terceiro capítulo fazendo uma referência a Freud e a invocação de “amar o próximo
como a si mesmo” (mandamento bíblico que ele retoma no Mal Estar na
Civilização) como princípio fundamental que possibilita a vida em sociedade. No
entanto, o que parecia não fazer sentido nem mesmo às gerações anteriores torna-se
totalmente incabível nos dias de hoje, quando a civilização preceitua o interesse
pessoal acima de tudo e a busca da felicidade a qualquer preço.
A idéia de amar o próximo, independente de quem seja (um estranho
qualquer, morador de uma cidade ocidental populosa) parece uma exigência absurda,
até porque nenhum indivíduo anda pelas ruas recebendo demonstrações de afeto
indiscriminadamente. Por que amar pessoas que me são indiferentes? Pior: se a
sociedade do “medo líquido” não inspira nem ao menos confiança no próximo, como
pensar em amor quando todos se cercam de dispositivos de segurança para viver em
coletividade? Amar alguém só faz sentido na medida em que esse alguém apresenta
145
pontos de semelhança com o próprio indivíduo. Através do outro, na verdade, o que
se coloca em prática é o amor por si mesmo.
“Assim, indaga Freud, ‘qual é o objetivo de um preceito
enunciado de modo tão solene se seu cumprimento não pode ser
recomendado como algo razoável?’. Somos tentados a concluir, contra
o bom senso, que o ‘amor ao próximo’ é ‘um mandamento que na
verdade se justifica pelo fato de que nada mais contraria fortemente a
natureza original do homem’. Quanto menor a probabilidade de uma
norma ser obedecida, maior a obstinação com que tenderá a ser
reafirmada. E a obrigação de amar o próximo talvez tenha menos
possibilidade de ser obedecida do que qualquer outra”. (BAUMAN,
2004: 98).
De acordo com o psicanalista brasileiro Joel Birman (2001), o que Freud
preconizava no seu Mal-estar na Civilização era o estatuto do sujeito no mundo
moderno”. O texto freudiano pode ser considerado como uma crítica psicanalítica à
modernidade, sua versão da condição “trágica do sujeito no mundo moderno”.
“Nesses termos, a interpretação de Freud da modernidade seria
o contraponto psicanalítico daquilo que foi também desenvolvido por
autores situados em horizontes teóricos diferentes. Assim, pela
retomada sistemática da filosofia de Nietzche, Heidegger caracterizou
a modernidade pela figura da morte de Deus. Da mesma forma, Weber
considerou que o que marcaria a modernidade seria o
desencantamento do mundo, o esvaziamento dos deuses e a
racionalização crescente da existência forjada pelo discurso da
ciência”. (BIRMAN, 2001: 17-18).
Antes, o indivíduo construía sua identidade a partir de si mesmo, refletindo
sobre sua existência pessoal e em sua relação com o outro: família, instituições,
sociedade. Entravam nesse jogo suas reflexões mais íntimas para tentar definir-se
enquanto sujeito de sua própria história, percorrendo um caminho que esbarrava
146
no(s) outro(s), mas que essencialmente marcava-se por sua interioridade. Na
atualidade, de maneira oposta, ocorre a fragmentação da subjetividade. Embora o
sujeito da contemporaneidade seja extremamente individualista, ele, na verdade,
constrói sua subjetividade a partir do outro. Procura atender antes de tudo a si
mesmo, porém, o valor de sua satisfação depende de fatores exteriores a si o que o
outro valoriza é o que importa. É, portanto, uma subjetividade que se respalda na
exterioridade, uma vez que se sustenta nos valores estéticos determinados pelo senso
comum.
Por isso, estão corretas as tendências a caracterizar o momento atual como
narcisista e voltado ao espetáculo, pois o sujeito contemporâneo habituou-se a
conviver com imagens nas quais vê o outro e a si mesmo. Há uma grande variedade
de espelhos espalhados por toda parte, reproduzindo valores imediatistas e
rapidamente assimiláveis, que a ação midiática prontifica-se a dar sustentação,
levando as pessoas cada vez mais a buscarem a aprovação através da repercussão de
suas atitudes em sociedade, ou seja, as impressões que pode vir a causar no outro.
Prioriza-se, assim, a satisfação não apenas da necessidade, mas da ostentação e da
promoção social. Vale a satisfação das demandas.
Convidado a participar de um seminário no Rio de Janeiro e aproveitando a
ocasião para o lançamento de seu último livro (A Prática Psicanalítica Hoje), Charles
Melman foi recentemente entrevistado pelo jornalista Ronaldo Soares (Veja,
23/04/08).
Conhecido por sua análise da “nova economia psíquica”, Melman constata o
desaparecimento da instituição familiar na contemporaneidade e avalia as
conseqüências que tal fato pode acarretar para a sociedade. A dissolução do grupo
familiar significa o rompimento com o modelo tradicional, no qual o menino
encontrava na figura do pai ao mesmo tempo um modelo a ser seguido e um rival
que o impulsionava à competição e à busca pelo prazer sexual; e a menina via no pai
a necessidade de completar-se. O enfraquecimento e quase anulação da figura
paterna no novo modelo familiar, democrático e igualitário, está formando uma
geração desinteressada e desestimulada a lutar por qualquer coisa, seja pelo sucesso,
por um ideal de vida ou mesmo pelo prazer sexual.
147
“Fico surpreso quando constato que, se há uma clientela
interessada e engajada na psicanálise hoje em dia, é a dos jovens dos
18 aos 30 anos. Eles não procuram o psicanalista pelo fato de
reprimirem seus desejos, mas porque não sabem o que desejam. É uma
situação totalmente original em relação a Freud. Antes, a pessoa
recorria à psicanálise porque não ousava realizar seus desejos. Hoje,
principalmente no caso dos jovens, é por não saber o que desejar. Isso
acontece porque nossos jovens foram criados em condições que
promovem a busca rápida do prazer máximo e sem obrigações. O
problema é que nossa forma de lidar com o desejo produz situações de
dificuldade para os jovens. Isso os leva ao divã”.(Melman in:
SOARES, 2008: 92).
É fato que a juventude hoje vive um tempo de liberdade e apelo sexual, mas,
na prática, isso não representa a existência de uma geração que resolveu seus
problemas, já que o que ocorre é a busca do prazer desvinculado de compromisso,
um prazer temporário, comparável a qualquer outro entretenimento como assistir a
um filme, tomar um drinque, ouvir música ou dançar. Aproveitar sem envolvimento,
desfrutar sem compromisso ou responsabilidade é o ponto fundamental da nova
economia psíquica.
O desejo pertence à ordem simbólica e não implica uma relação com objetos
concretos, mas com o fantasma ou fantasia. Vincula-se a uma falta, ao objeto
perdido, recalcado no inconsciente. Confundido, o sujeito sai em busca desse objeto
obscuro, não-sabido, que um dia foi fonte de prazer e, que nessa busca, vai sendo
substituído, transformado, aos poucos, em gozo.
Os elementos substitutivos constituem-se em demanda, cuja satisfação
promove uma sensação de prazer temporária, mas que não se mantém por muito
tempo. A demanda é sempre por outra coisa e pode ser interpretada como um
engodo, uma vez que sua satisfação representa suprir algo que o sujeito ignora: a
falta constitutiva. A satisfação do desejo é sempre adiada, nunca possível. O sujeito
volta sempre a desejar.
A sociedade moderna transforma seus indivíduos em objetos e refuta
qualquer tipo de culpa ou responsabilidade. Quanto mais se insere na lógica
148
narcísica, mais afugenta o fantasma do inconsciente, o desejo. A contemporaneidade
não suporta a falta, quer a fartura e a abundância. Não quer o fracasso, só o sucesso e
a felicidade. Os que estão à margem desse panorama são sistematicamente ignorados
e colocados como vítimas, olhados e ouvidos muito raramente, quase sempre por
algum tipo de interesse individual.
De acordo com Roudinesco (2006), existem duas formas de narcisismo. O
narcisismo primário é caracterizado na primeira fase do indivíduo, quando a criança
se vê como objeto de amor único e ainda não reconhece os objetos externos. É um
estado precedente à constituição do “eu”, quando o que ocorre, na verdade, é a
constituição do “ideal do eu”. O narcisismo secundário caracteriza-se pela entrada
dos objetos do mundo externo na constituição do indivíduo. O narcisismo (primário
e secundário) nada mais é senão uma defesa do indivíduo em resposta às pulsões que
provocam seu sofrimento.
Fugir da dor, procurar burlar o sofrimento de alguma forma é lícito e
saudável a qualquer indivíduo, o que pode ser perigoso, no entanto, é a atual
tendência de alterar o narcisismo, transformando-o em culto de si. O homem de hoje
está desiludido com a figura de autoridade, que se encontra totalmente esvaziada, e
busca em si mesmo as respostas para sua existência, mas fechado nesse hermetismo
egoísta, submerge num vazio cada vez maior.
“A questão do culto de si diz respeito (...) mais precisamente ao
surgimento, durante o último quarto de século, nos Estados Unidos
essencialmente, de uma cultura do narcisismo ou culto de um arquivo
de si, que põe em primeiro plano uma visão da sociedade fundada na
superestimação da figura imaginária de um sujeito desprovido de
sentido histórico, atemporal, sem passado nem futuro; um sujeito
limitado ao claustro de sua imagem no espelho: vaivém entre o
narcisismo primário e o narcisismo secundário”. (ROUDINESCO,
2006: 51).
O culto de si pode ser compreendido nessa nova sociedade como a
substituição do mito de Édipo (falta/castração) pelo mito de Narciso
(imagem/espetacularização).
149
Vivendo em cidades cada vez mais populosas, em apartamentos cada vez
menores e servindo-se de inúmeras tecnologias que dão suporte ao individualismo e
à solidão, o sujeito contemporâneo tenta superar a angústia e a melancolia nas
promessas que a mídia, o comércio e a ciência fazem de inúmeras terapias e na
valorização de sua própria imagem. Ocorre, porém, que o sujeito narcisista,
mergulhado em sua própria imagem e fascinado pelo amor de si mesmo, “não pode
aceitar nem a velhice, nem a transmissão genealógica, nem a identificação com o
sucesso do outro”. (Roudinesco, 2006: 51-52).
Trata-se, portanto, de um sujeito infantilizado, incapaz de lidar com seu
fracasso ou com o sucesso do outro. Frustra-se facilmente diante de qualquer
dificuldade e ao mesmo tempo é profundamente invejoso.
Os dois mitos, Édipo e Narciso, trazem si elementos trágicos devido a seus
desfechos. Édipo fica cego: fura os próprios olhos ao saber que havia cometido
incesto e assassinado o pai. Narciso suicida-se: mergulha em sua própria imagem ao
perceber que estivera sempre enamorado de si mesmo. Há, no entanto, uma diferença
primordial entre os dois: de acordo com a teoria freudiana, Édipo é um mito heróico
que liberta a sociedade do poder patriarcal. Seu heroísmo está no fato de ter sido um
mártir que possibilitou a libertação do domínio patriarcal às gerações futuras. A
atitude de Narciso, ao contrário, nada tem de heróica: egoísta, acaba com a própria
vida sem deixar nenhum tipo de benefício com sua atitude.
A sociedade atual é caracterizada como narcísea por psicanalistas e
sociólogos exatamente porque o que vai nortear o comportamento humano é o
exagerado culto de si mesmo, a individualidade, a agilidade, o consumo e as diversas
terapias voltadas à cura dos mais variados males. No Brasil, conforme o modelo
norte-americano, essas terapias têm conquistado adeptos de variados setores da
sociedade, respaldadas por textos que são veiculados largamente e que “vendem” a
imagem de seriedade, comprometimento e qualidade, uma vez que trazem em si uma
certa garantia de cientificidade. Assim, o comportamento que busca a “auto-estima”
(narcisismo) é valorizado nas sociedades ocidentais contemporâneas, pois encontra
eco em uma economia dominante, capitalista, que se fortalece no desejo humano:
cosméticos, cirurgias reparadoras, tratamentos estéticos, livros de auto-ajuda,
aparelhos para a prática de exercícios físicos etc.
150
A mídia disponibiliza meios para explorar as insatisfações e carências
humanas. Toda a tecnologia de última geração é utilizada para criar comportamentos
e difundir valores sociais. O ideal de felicidade é capaz de transformar qualquer
objeto em necessidade. São as armadilhas do consumo. Iludido, o sujeito deixa-se
conduzir por uma torrente globalizada que dita comportamentos e impõe produtos,
apagando valores e até mesmo subvertendo-os algumas vezes. Assim são criados
padrões de identificação, inatingíveis para a grande maioria, que sustentam status e
acentuam as diferenças sociais: os que podem e os que não podem satisfazer seu
“sonho de consumo”.
Modelos coletivos hegemônicos são impostos e veiculados e se tornam
perigosos na medida em que podem substituir, ou até mesmo eliminar, as
características que marcam a singularidade de cada indivíduo ou de cada grupo
social (suas origens, crenças e outras inerentes a sua cultura). As ilusões criadas pelo
consumo são perigosas naquilo que apresentam de tirania disfarçada pelo véu do
desejo e na medida em que podem ser manipuladoras: qualquer sujeito pode ser
transformado em objeto de consumo e os valores sociais de felicidade transformados
em necessidades narcíseas de sobrevivência.
As campanhas publicitárias operam no psiquismo uma regressão do registro
do desejo para o da necessidade e qualquer objeto de desejo transforma-se em objeto
de necessidade. Entretanto, depois de adquirido, nenhum objeto de necessidade será
capaz de cumprir as promessas feitas: a realização de um desejo. A mídia utiliza-se
da satisfação pulsional e do narcisismo, cria slogans, argumenta, cria imagens,
ícones, representações que iludem o sujeito com a possibilidade de eliminação da
“falta”.
As promessas veiculadas, entretanto, não se limitam ao consumo de objetos
concretos. Novelas, filmes, clipes musicais, humorísticos, reality shows, programas
de rádio, revistas e jornais também são capazes de “vender” imagens de felicidade,
infelicidade, certo, errado, novo, ultrapassado, chique, brega, bonito, feio e assim por
diante.
A noção de castração é o que fundamenta as teorias psicanalíticas, centradas
no sujeito e suas primeiras impressões no mundo, ou seja, na relação maternidade-
paternidade. Para Freud, a relação do sujeito com a mãe será determinante sobre
como ele vai lidar futuramente com as pulsões sexuais. Já o pai, com sua entrada,
151
promove um corte que propiciará ao indivíduo inserir-se no mundo simbolicamente.
Quem introduz o pai para a criança, no entanto, é a mãe. É a partir da designação do
pai, por parte da mãe, que a criança será por ela introduzida no mundo e, dessa
forma, poderá viver em sociedade. O pai é a representação do interdito e só passa a
existir para a criança quando a mãe assim o define, por isso não precisa ser
exatamente o pai biológico, mas aquele pela mãe apresentado.
[45] “O amor é um sentimento que temos, nós seres humanos,
desde o ventre da nossa mãe. Mesmo desconhecendo quem nos dá
alimento, abrigo; amamos. Esse amor que faz cometer loucuras é
um instinto de todo ser humano. Todos nós amamos, nem que seja
um cachorro, um gato, a mãe, o pai, o namorado. O amor é uma
dividade de Deus, que amou todos nós, antes de amarmos a Ele”.
(Thalita, 805, 15 anos).
Assim se justifica o permanente desejo humano. Privados desde cedo do
prazer pleno, os sujeitos partem insatisfeitos em busca de algo que preencha e
substitua essa falta. É uma atividade constante em que se tenta aplacar os desejos
que, na verdade, são fruto de uma ausência a falta que leva a desejar.
[46] “Desde quando agente nasce, já amamos tudo e todos,
crescemos e vamos amando todas as pessoas ao nosso redor. Mais
todos nós sabemos e esperamos um amor sincero e verdadeiro
futuramente. Aquele que nos pode oferecer carinho, muito amor,
felicidades e muito mais. Aquela pessoa que você pode contar para
tudo, dividir tristezas e alegrias, que te ajude sempre que preciso.
Briga, as vezes, mais nada que quebre a afinidade entre nós, e que
sempre possamos viver em harmonia e felicidade. Com problemas
sim, mais nada que com o tempo e a paciência e união não resolva.
Para um dia não podemos dizer estamos felizes, mais sim somos
felizes”. (Cássia, 805, 14 anos).
152
O desejo é o combustível responsável por acionar o motor humano que,
abastecido, é impulsionado ao prazer. Para a psicanálise, no entanto, buscar o prazer
é um movimento que inevitavelmente conduzirá à dor e à frustração, uma vez que,
de acordo com o princípio da castração, não há desejo que possa ser jamais satisfeito.
“Na teoria da psicanálise não hesitamos em supor que o curso
tomado pelos eventos mentais está automaticamente regulado pelo
princípio de prazer, ou seja, acreditamos que o curso desses eventos é
invariavelmente colocado em movimento por uma tensão desagradável
e que toma uma direção tal, que seu resultado final coincide com uma
redução dessa tensão, isto é, com uma evitação de desprazer ou uma
produção de prazer”. (FREUD, 1969a.: 17).
O princípio de prazer é estabelecido em oposição ao desprazer, como se o
desprazer representasse o aumento na quantidade de excitação e o prazer a
diminuição. A tensão acontece entre a instabilidade e a estabilidade e o princípio de
prazer torna-se decorrência do princípio da constância, da falta de conflito, daquilo
que traz conforto e segurança. Entretanto, em se tratando de uma região obscura da
mente, não há garantias de que o percurso do sujeito seja sempre em direção ao
prazer. Como o sujeito é constituído de consciente e inconsciente, e há um superego
que o reprime constantemente, pode ser que ele ande em círculos, num fenômeno
clínico instintivo, denominado por Freud como “compulsão à repetição” e que, ao
invés de conduzi-lo ao prazer estável, pode levá-lo a distanciar-se da sensação de
conforto e segurança. Nesse percurso em sentido contrário, o indivíduo cai e recai
reincidentemente no desconforto da insegurança, como podemos observar a seguir
nas palavras de Taíssa, que não sabe explicar exatamente o que quer, afinal ela
espera até mesmo “um amor não correspondido” e diante das respostas evasivas de
seu amado, continua a esperar e a desejar uma relação que não a satisfaz.
[47] “Da pessoa que eu amo, não sei muito bem o que eu espero.
Às vezes espero ser amada outras já espero um amor não
correspondido, muitas vezes quando converso com quem amo,
pergunto se a pessoa gosta de mim da mesma forma que eu gosto
153
dela, mas nem sempre recebo uma resposta que me agrada pois
nem sempre nosso amor é correspondido, muitas das vezes
sofremos por pessoas que não sabem nos dar valor, só sabem nos
machucar, mas mesmo assim vamos atrás delas para tentar uma
relação, quando conseguimos ficamos superfelizes, mas depois
vemos que nada valeu a pena porque aquela pessoa só estava ao
nosso lado por pena”. (Taíssa, 805, 14 anos).
A proposta freudiana de um “mais além do princípio do prazer” se
fundamenta na constituição de um sujeito intimamente interpelado por forças
antagônicas: desprazer versus prazer, aumento versus diminuição (da excitação),
instabilidade versus estabilidade. Entram também na questão os princípios de Eros
(prazer) e Thanatos (morte), que conduzem o sujeito a cair na “armadilha” da
repetição em sua busca pelo objeto (de prazer/desejo) inacessível. Thanatos,
princípio estruturante designado por pulsão de morte, provoca no sujeito um mal-
estar cuja “tendência” é fazê-lo buscar o princípio do prazer (Eros), o que pressupõe
um caminho para evitação da dor. Esse mal-estar é intrínseco ao sujeito e não pode
ser eliminado porque tem sua origem na castração, que é constitutiva do sujeito.
[48] “Porque o amor não pode ser definido nem como químicos
ou orgânicos etc. O amor é uma coisa que nasce de você quando
você está bem com uma pessoa que gosta quando encontra uma
pessoa, que se encaixa com a pessoa que você chamaria de ‘pessoa
ideal’ para se conviver, para amar, ter filhos e que te compriende
como mais ninguém, que te conheça como jamais uma pessoa te
conheceu, esse sim seria o verdadeiro amor”. (Leonardo, 803, 15
anos).
[49] “Espero que haja dor e sofrimento, pois isto me ensinará a
cuidar daquilo que quero preservar para sempre. Espero um amor
exclusivo sem parênteses e nem páginas escondidas, um amor
verdadeiro que seja bem limpo e conservado como a neve. Espero
um amor distinto, surpreendente que haja correção de um ao outro
154
quando estivermos errados e elogios quando estivermos certos.
Espero que demore o tempo necessário para que eu possa
amadurecer até aprender a lidar com algo que ainda não sei o que é
pois amor não é paixão”. (Rodolfo, 803, 15 anos).
Os textos de Leonardo e Rodolfo apresentam pontos de semelhança que
posso identificar com a psicanálise para definir o amor. É uma coisa “que nasce de
você”, mas que exige do sujeito um certo esforço e sacrifício “que haja dor e
sofrimento, pois isto me ensinará a cuidar daquilo que quero preservar para sempre”.
Nas palavras de Rodolfo, parece haver um preço a ser pago, pois a partir da dor e do
sofrimento a pessoa ama e aprende a conservar o objeto de seu afeto. O amor
depende do amadurecimento de um sujeito que precisa aprender a lidar com algo
desconhecido (algo que surge a partir da perda ou do medo de perder) e, portanto,
como diz Leonardo, não pode ser definido como químico ou orgânico, mas depende
de encontrar alguém com quem se identifique para conviver e formar uma família _
o amor estaria no conhecimento mútuo, construído reciprocamente.
Na verdade, ao inserir-se socialmente, o sujeito vive essa tensão constante
mediada pelos princípios de vida (Eros) e morte (Thanatos). Eros representa a vida e
os instintos sexuais, é governado pelo princípio do prazer e assim impulsiona o
homem a superar as repressões e a obter satisfação, através de atividades lúdicas.
Thanatos representa a morte e os instintos de auto-preservação, é regido pelo
princípio da realidade e conduz o sujeito a adiar o prazer e a preocupar-se com
segurança e estabilidade (trabalhar, pagar as contas, fazer o seguro da casa e do
automóvel, pagar a previdência social).
Este estado conflituoso permanente impulsiona o sujeito a lutar pela sua
liberdade e felicidade, pois para viver em sociedade o princípio do prazer deve ser
suplantado pelo princípio de realidade.
[50] “Eu espero que essa pessoa me perdoe por tudo que eu fiz de
mal, de tudo. Espero que com o tempo ele goste de mim como eu
gosto dele, eu longe dele não sei mais viver, todo dia choro graças
ao sofrimento que eu causei, e o sofrimento que ele está causando
em mim, espero que ele nunca me esqueça porque para mim ele é
155
inesquecível. Não só eu sei o quanto o amo, mais toda a escola sabe
do meu arrependimento em ter traído ele, em ter feito ele sofrer. Só
quero que ele saiba que eu o amo mais que tudo, e que sem ele não
dá mais”. (Luiza Helena, 805, 15 anos).
O texto de Luiza Helena mostra dor, tristeza, arrependimento e a espera de
recuperar o amor perdido. Parece que a “infelicidade” é conseqüência de sua própria
atitude, ou seja, ela já tinha a felicidade nas mãos, mas jogou fora quando por algum
motivo veio a trair o namorado. Mas confessar ao amado seu amor e arrependimento
não é o suficiente, é preciso comprovar isso através da adesão do grupo, afinal “toda
a escola sabe” que ela o ama e que se arrependeu por tê-lo traído. A dor individual e
isolada não pode ser confirmada, é preciso mostrá-la, deixá-la exposta para assegurar
a sinceridade de suas palavras.
Historicamente, a sexualidade e o prazer vêm sendo cerceados por tabus e
proibições. Contudo, a partir do século XX, a espetacularização da sensualidade e do
prazer possibilitou uma gradativa mudança dos costumes sociais.
O narcisismo não significa simplesmente o egoísmo de uma sociedade
consumista, mas uma dificuldade humana generalizada de integrar-se à realidade da
vida social. Isto sempre ocorreu, mas é muito mais difícil para o homem
contemporâneo abrir mão do prazer e do consumo diante de tantas ofertas a que se
vê exposto. Na verdade, essa busca interminável pela satisfação individualizada
promove uma outra forma de dominação social. O hedonismo, portanto, não
significa a liberdade sonhada pelas gerações anteriores, mas uma outra forma de
controle.
Na contemporaneidade, é com facilidade que as satisfações são alcançadas,
mas a elas segue-se sempre um sentimento de frustração, pois o sujeito sempre volta
a sentir falta. Por isso, a busca pela felicidade representa esbarrar com o sofrimento a
qualquer momento, o que é sempre difícil de ser suportado. Muito mais fácil que a
tal “felicidade” é apostar na substituição do inalcançável por objetos ao alcance das
mãos, e o princípio da realidade é colocado em prática: a sujeição das pulsões ao
mundo da realidade e do possível. O medo do fracasso e da frustração permanece em
todas as situações, especialmente nas relações amorosas. Na prática, a construção da
subjetividade se depara com a ausência de limites, o que acarreta uma crise de
156
alteridade, a crise de um em relação ao outro, em suma, uma crise de ausência de
referenciais.
Por isso, para Melman (2003) o sujeito contemporâneo não pode ser
comparado ao sujeito analisado por Freud. Não há mais o sujeito do limite, do
inconsciente, que se manifestava em seus sonhos, seus lapsos, seus atos falhos. O
sujeito edipiano, da castração, que se vê privado de seu objeto de desejo e precisa
aprender a viver e a superar essa falta, inexiste, segundo o psicanalista francês, na
sociedade ocidental moderna. Afetado por uma enxurrada de informações, de
tecnologias e novos formatos nas relações afetivas e institucionais, além de viver
situações limítrofes diárias em decorrência da violência nas grandes metrópoles, o
sujeito da atualidade torna-se indiferente e se sente esvaziado de ideais e de motivos
que o levem a despender tempo e dedicação demais a uma determinada causa. A
satisfação dos desejos, mesmo que efêmera, é o que tem importância e a palavra de
ordem é “gozar”.
Se para Freud há o recalcamento sexual, originário e constituinte, o incômodo
que o sujeito esconde; a grande questão lançada por Melman na atualidade é se
“ainda há lugar para o inconsciente neste novo dispositivo cultural?”. (Melman,
2002: 8).
Antigamente, o sexual não era exibido, antes disso, era envolto numa aura de
proibição, mistério e pecado. O pudor fundamentava o que era significado (libido).
De acordo com Melman, a grande inquietação que Freud deixou foi quando disse
que se poderia falar sobre qualquer coisa, mas na realidade o que havia por trás era
sempre uma questão voltada à sexualidade humana, uma vez que o sexual seria o
elemento organizador de todo o significado.
“Nesse mal-estar na cultura, do qual Freud falava, o que
operava era sempre o limite. Havia o mundo das representações, onde
o sexo era escondido, dissimulado pelo pudor, e então havia este limite,
que seria necessário transpor para se ter acesso ao gozo sexual”.
(MELMAN: 2002: 14).
O sujeito não pode tolerar suas frustrações sexuais. Na tentativa de burlar este
desconforto, cria substitutivos que acabam por levá-lo ao sofrimento também. Freud
157
sustenta que a civilização é a principal responsável pela infelicidade de seus
indivíduos, uma vez que lhes é imposto um preço alto para que dela possam fazer
parte.
O indivíduo é definido socialmente por uma série de exigências e renúncias
pulsionais. Muitos são capazes de tolerar os limites impostos à sua sexualidade sem
adoecer (sublimação), outros, entretanto, consideram o preço muito alto e acabam
adoecendo ou cedendo a outros impulsos como forma de transgredir esse
cerceamento.
Não se pode, contudo, atribuir apenas à civilização a causa de todo
sofrimento humano, já que existe a pulsão de morte que é inata ao indivíduo,
componente do sofrimento psíquico. A renúncia à satisfação pulsional traz em si um
sofrimento que só pode ser suportado se houver alguma forma de compensação. Para
que a transformação do gozo em desejo ocorra é necessário que o Outro (a
civilização) garanta acesso e continuidade às satisfações substitutivas, caso contrário
poderá haver descontentamento permanente. Sem esquecer que tais satisfações
substitutivas são sempre parciais e produzem no indivíduo uma insatisfação
constante, difícil de ser superada _ por isso é um “mal estar”.
Que saída haveria então para o sujeito contemporâneo? Interpelado pela
mídia e vítima do consumo e da própria tecnologia, apresenta-se sem apoio, uma vez
que não existe mais o sagrado nem o científico. Em que poderá amparar-se? É
importante refletir sobre o que Melman pensa a esse respeito:
“... só podemos nos referir ao que Lacan propôs à nossa
reflexão ao nos dizer que ‘o sujeito do inconsciente é o sujeito da
ciência’. Ao mesmo tempo, aparece que os psicanalistas têm
participação na ciência. Não estou certo de que avaliamos sempre o
lado decisivo dessa formulação. Por quê? Porque, para Freud, o
sujeito do inconsciente é o sujeito da religião. E o lugar que ele atribui
ao complexo de Édipo nos mostra de que maneira, para ele, a
existência de um sujeito no inconsciente é inteiramente determinada
pela relação com o pai. Na medida em que o pai é então lido como
aquele que está na origem da insatisfação, o percurso do sujeito vai se
organizar como uma tentativa de acertar as contas com esse pai. Eis
158
por que Lacan dirá que Freud, no final das contas, tenta salvar o pai,
fazer dele o determinante tanto de nossa existência quanto do que
agencia nosso desejo”. (MELMAN, 2003: 134).
Daí a aceitação dos discursos que justificam o amor através de experiências
científicas, como o de Fisher. A ciência pode apresentar-se ao sujeito como uma
referência segura, respaldada em comprovações, assegurando-lhe menos riscos em
tempos de medo de diversas naturezas, especialmente o de amar.
Para a psicanálise há sempre a falta e a insatisfação porque o sujeito se
constitui a partir do outro: o eu se constrói à imagem do semelhante e de sua própria
imagem devolvida pelo espelho (Estádio do Espelho). Ao relacionar-se com o outro,
na verdade o sujeito mergulha em sua própria imagem refletida, que será a matriz de
suas identificações e, conseqüentemente, frustrações. O olhar do outro devolve sua
própria imagem. O bebê olha para a mãe na tentativa de encontrar aprovação.
A psicanálise desnaturaliza o organismo biológico quando concerne à
linguagem o estatuto de fundamentadora da análise. A prática analítica é a colocação
à prova dos efeitos dessa desnaturalização de um organismo pela linguagem. As
pulsões aparecem organizadas sob uma seqüência gramatical, na qual o “desejo”
encontra-se articulado por um fantasma que desafia o sujeito e seu interlocutor,
violando seu pudor pela busca de um objeto. O lugar onde o desejo adquire voz é o
inconsciente.
Mas será que desejar significa temer? O desejo seria um medo a mais a ser
superado na instabilidade da vida contemporânea?
[51] “Todos nós precisamos amar, essa necessidade de carinho e
afeto é construída devido a atração de duas pessoas. O amor nos faz
ter vontade de querer estar sempre perto de quem amamos, de
sentir o cheirinho dela, sentir saudade e um forte aperto no peito
quando está longe. Amar também nos faz sentir medo de perder
quem amamos”. (Thaiana, 804, 16 anos).
Os objetos do mundo humano são apenas substitutos do verdadeiro objeto
que alimenta o desejo, mas que é velado ao sujeito conhecer e é sempre inatingível,
159
como uma miragem. Assim o sujeito concebe a idéia de felicidade: uma falta de
representação imaginária, algo que sempre lhe é negado, e que o impede de atingir o
prazer absoluto.
O ponto principal que aqui coloco em evidência é a exigência do prazer, a
obrigação de viver em estado de permanente satisfação. Tais características
desenham um perfil severamente egocêntrico e imaturo dos sujeitos na atualidade.
Um perfil que marca a conduta amorosa hoje. A imposição que se coloca não é a da
fidelidade, por exemplo, não se deve mais ser “fiel até a morte”, ao contrário, deve-
se deixar os “laços frouxos” (Bauman) e ser fiel, isso sim, à tirania do prazer, do
gozo e da felicidade. Os objetos já adquiridos podem ser substituídos a qualquer
momento pelos que se tem em vista. Diante dessa dinâmica acelerada os objetos são
apresentados sucessivamente, o que significa que o conceito de fidelidade relativiza-
se e se transforma a cada nova situação.
Freud já apresentava o gozo como uma espécie de procura incansável e
interminável do ser humano. O homem traz em si a tendência à satisfação ilimitada
do gozo, mas a satisfação plena funcionaria muito mais como uma armadilha, pois
seria impossível ao homem viver assim, em sociedade, num estado permanente de
prazer e júbilo.
“... uma satisfação irrestrita de todas as necessidades nos é
apresentada como método mais tentador de conduzir nossas vidas:
isso, porém, significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando
logo seu próprio castigo”. (FREUD, 1969b.)
A fidelidade exclusiva à satisfação irrestrita de qualquer desejo e a total
ausência de limites podem conduzir ao aprisionamento do indivíduo em suas
próprias pulsões. É preciso compreender que a busca pela felicidade, como se vê,
transforma-se em um fardo para o ser humano.
Viver em civilização significa, portanto, abrir mão do gozo irrestrito, o que
se faz através do processo de amadurecimento individual, que atribui ao sujeito uma
identidade cultural, de acordo com o tempo e o espaço em que vive. Somente a vida
em civilização pode apresentar ao sujeito o caminho para não se deixar dominar pela
escravidão às pulsões.
160
Na atualidade, entretanto, o que se vê é o apelo excessivo para que sejam
ignoradas as imposições contrárias ao gozo, o que acarreta outra forma de
assujeitamento: a busca pela satisfação permanente escraviza o sujeito
contemporâneo, que, sem referências, encontra-se em crise em relação a si mesmo e
ao outro.
Na realidade da civilização ocidental globalizada, o outro aparece nebuloso e
confuso, espalhado e fragmentado em formas substituíveis e consumíveis de
representação. Assim, na dificuldade de identificar-se enquanto sujeito, o indivíduo
escora-se em falsos referenciais, procurando outras formas para substituir suas
carências.
Com o intuito de compreender o homem da atualidade e seus conflitos, a
psicanalista e lingüista Julia Kristeva abre a introdução de seu livro As Novas
Doenças da Alma com a seguinte pergunta:
“Você tem alma? Essa pergunta filosófica, teológica ou
simplesmente incongruente encerra hoje uma nova dimensão.
Confrontada aos neurolépticos, à aeróbica e ao massacre da mídia, a
alma ainda existe?”. (KRISTEVA, 2002: 9).
A questão soa similar à de Melman (se ainda haveria lugar para o
inconsciente hoje).
Desde a sua origem, a medicina sempre promoveu uma cisão entre a mente e
o corpo, embora, com o passar do tempo, tenha reconhecido que havia alguma
ligação entre as patologias e a “alma” ou a “mente”. Dores, sofrimentos, emoções,
que de alguma forma afetavam o funcionamento do corpo humano, significavam
uma incógnita e um desafio e, aos poucos, a idéia das doenças somáticas passaram a
fazer parte do universo da medicina. Tomando emprestado o radical grego, entra na
história da humanidade a “psique” e as ciências que dela se ocuparam para melhor
compreensão dos conflitos humanos. Contudo, a ligação entre mente e corpo ainda
se constitui como área turbulenta entre as ciências, visto que é relativamente recente
o fato de a psiquiatria ter passado a ser considerada como uma especialidade médica.
Após tantas dificuldades, instalou-se a psicanálise sobre as teorias freudianas
que buscavam alento para os conflitos humanos, postulando, primordialmente, a
161
existência de um “aparelho psíquico”, que não poderia existir fora do corpo
biológico e sujeito, portanto, ao seu funcionamento. Trazendo reflexões que viriam a
transformar o pensamento humano e mudariam decisivamente a História, Freud
apresenta ao mundo o inconsciente e a transferência; contudo, as indagações
humanas sobre a alma e seus conflitos permanecem até hoje, independente das
evoluções tecnológicas e mesmo depois de tantas descobertas e depois de tantas
releituras sobre sua obra.
Ao refletir sobre as novas patologias na atualidade, Kristeva questiona se
ainda haveria lugar para a “alma” num tempo em que pouco parece importar o que é
fundamentalmente humano. Em princípio, o sujeito se constitui a partir de sua
relação com o outro, a identificação de cada indivíduo falante se dá na representação
diante de outro ser falante. É através da linguagem e de sua relação com o outro que
o sujeito se define, mas se o sujeito contemporâneo ignora o outro e mergulha num
universo essencialmente individualista, sua forma de identificação modifica-se e o
espaço limitado de si mesmo torna-se insuficiente para significar-se. Ele, na verdade,
convive com muitas pessoas, tem numerosos relacionamentos amorosos, mas sua
relação com o outro é quase sempre “líquida”, superficial, descompromissada e
voltada a interesses próprios.
“Portanto, uma constatação se impõe: pressionados pelo
estresse, impacientes por ganhar e gastar, por desfrutar e morrer, os
homens e mulheres de hoje economizam essa representação de sua
experiência a que chamamos vida psíquica. O ato e seu avesso, o
abandono, substituem a interpretação do sentido. (...) Umbilicado
sobre seu quanto-a-mim, o homem moderno é um narcisista, talvez
cruel, mas sem remorso. O sofrimento o prende ao corpo ele
somatiza. Quando se queixa, é para melhor comprazer-se na queixa,
que ele deseja sem saída. Se não está deprimido, empolga-se com
objetos menores e desvalorizados, num prazer perverso que não
conhece satisfação”. (KRISTEVA, 2002: 14).
Se antes a divisão entre mente e corpo era insuficiente para o tratamento dos
males que afetavam os indivíduos, na atualidade a farmacologia se propõe a tratar
162
qualquer tipo de problema, afetivo ou físico. Como se o corpo viesse aos poucos
“roubando” o espaço da alma, e o indivíduo da atualidade se satisfaz com recursos
outros que, lentamente, vão apagando sua interioridade mais profunda. Imagens,
informações, máquinas que promovem a valorização apenas daquilo que é externo e
acessível. Os sonhos podem ser concretizados na próxima loja, estreitam-se os
limites entre o impossível e o possível.
Mas se é assim, por que o conflito? Se não é possível perceber “a alma” e se
tudo pode ser conquistado com certa facilidade, então como se justificam os
questionamentos e as frustrações? De acordo com a psicanalista, as novas patologias
de ordem psicológica chegam aos consultórios em grande número e numa velocidade
assustadora, fato que impõe uma prática psicanalítica diferenciada e novos estudos
para atender a essa nova demanda. O “super-homem”, como Kristeva se refere ao
homem atual, apresenta-se cercado de problemas em seus relacionamentos amorosos
e sexuais, com dificuldades para se expressar e com sintomas somáticos que exigem,
ainda, uma nova terminologia para dar conta das novas terapias. O ponto de
interseção em todos os sintomas que lotam os consultórios psicanalíticos é a
dificuldade de representar.
“Em que pese às diferenças dessas novas sintomatologias, há,
unindo-as, um denominador comum: a dificuldade de representar. Quer
tome a forma do mutismo psíquico, quer experimente diversos sinais
sentidos como ‘vazios’ ou ‘artificiais’, essa carência da representação
psíquica entrava a vida sensorial, sexual, intelectual, e pode prejudicar
o próprio funcionamento biológico. Pede-se então ao psicanalista, sob
formas disfarçadas, que restaure a vida psíquica para permitir ao
corpo falante uma vida melhor. Serão esses novos pacientes produzidos
pela vida moderna, que agrava as condições familiares e as
dificuldades infantis de cada um, transformando-as em sintomas de
uma época?”. (KRISTEVA, 2002: 15-16).
Zeitgeist: se existe o “espírito de cada tempo”, este seria o da morte do
espírito (alma)? As novas doenças da alma conduzem cada vez mais sujeitos aos
consultórios porque, talvez, na verdade, só precisem ser ouvidos. Troca-se dinheiro
163
por tempo, o tempo em que se aguça a audição para vozes que se libertam e
retornam. Para a psicanálise, portanto, a tarefa se faz dupla: ouvir e fazer cada
indivíduo ouvir a si mesmo. Mas o que ecoa e o que se faz ouvir é uma sonoridade
fortemente polifônica. Mas será que o som que sai e retorna não é a voz do sujeito
junto a tantas outras vozes, iguais, em uníssono? Não seriam várias vozes e um só
dizer?
O sujeito contemporâneo, doente, caracteriza-se especialmente como
narcisista e voltado ao espetáculo. Toma a si mesmo como referência, ele é o ponto
de partida e o de chegada, e tudo o que o cerca funciona como espetáculo a ser
assistido ou representado. Tais características, entretanto, colocam-se em oposição
ao princípio básico psicanalítico: a escuta e, a partir dela, a desconstrução do eu. O
percurso psicanalítico prevê a retomada do sujeito do desejo. A desconstrução do
sujeito é feita pelo inconsciente (pulsões, desejo) que se manifesta através da fala.
Somente depois da desconstrução, pode-se chegar a sua reconstrução. Ora, ao que
parece, a sociedade do espetáculo é o terreno propício para a má interpretação dos
princípios psicanalíticos. Em vez da desconstrução do “eu”, feita a partir da
percepção das pulsões, o que se prega, em larga escala, é apenas e somente a
satisfação do desejo (de demandas). Na superficialidade do que se apresenta como
necessário, substituem-se desejos por objetos comuns de consumo e os sujeitos
contemporâneos enredam-se nas armadilhas da propaganda e do espetáculo. Vozes
que incitam ao prazer. É exatamente sobre o que Freud alertara há tanto tempo: a
satisfação pura dos desejos pode ser extremamente perigosa ao indivíduo, uma vez
que, de acordo com a teoria da castração, só podemos chegar a formas
representativas de satisfação, mas jamais à satisfação plena. Constitui-se, assim, um
novo modelo de subjetividade voltado ao indivíduo e suas pulsões. Sujeitos narcíseos
que encontram condições adequadas de sobrevivência em seu habitat natural: a
sociedade do espetáculo.
Como se vê, o sujeito contemporâneo vive um impasse e uma mentira: parece
que tem ao alcance das mãos a possibilidade de satisfação de todo e qualquer desejo.
O gozo e o prazer parecem-lhe direitos garantidos e dos quais não deve abrir mão.
Ignora, entretanto, que a satisfação plena é um engodo e que sua busca pelo prazer
será uma trajetória sem fim. O gozo e o prazer, dessa maneira, só podem escravizá-lo
e, assim, transformam-se em dor.
164
O narcisismo não deve ser compreendido como egoísmo simplesmente, mas
sobretudo, como incapacidade de o indivíduo integrar-se à realidade que o cerca, o
que significa, quase sempre, ser incapaz de fazer concessões. Para viver em
sociedade, o indivíduo precisa dominar seus instintos básicos e abrir mão da
satisfação integral de suas necessidades (objetivo primário). Só assim é possível
viver em coletividade, é o preço a ser pago para a constituição da civilização. O
tributo é alto, é sempre uma forma de repressão, a tensão constante pela liberdade e
felicidade humanas. Para viver em sociedade o individuo precisa sublimar o gozo,
por isso os princípios de prazer e de realidade vivem em permanente contraste.
O hedonismo, na verdade, não significa somente o prazer, mas o
individualismo. Sendo assim, a contemporaneidade organiza-se sobre o mito de
Narciso (antagonista de Eros). Apaixonado por si e por sua própria beleza, ele
desconsiderava o afeto dos outros e realimentava-se do prazer de si mesmo e da
admiração dos que estavam ao seu redor. Como causava paixões e sofrimentos e
mostrava-se indiferente e insensível, incapaz de amar, Narciso foi castigado por
Afrodite, deusa grega do amor e da beleza, que fez com se apaixonasse por sua
própria imagem refletida em um lago, afogando-se quando buscava encontrar a si
mesmo. O mito de Narciso traz em si o conflito e a dificuldade humanos de
integração na vida social e da repressão ao prazer.
Na vida em sociedade, o prazer é reprimido, mas retorna de outra maneira,
através de formas substitutivas, ou seja, na satisfação de prazeres compensatórios
que acabam por induzir a novos valores que são forjados socialmente, cuja premissa
se dá através do consumo e da imagem. Vale o que se pode ter ou aparentar. O que
se vê na atualidade é uma tendência para a formação de personalidades narcisistas,
em decorrência de todo o processo de veiculação de informação, no qual a
transmissão da cultura se faz pelo monopólio da mídia. As imagens espalhadas, em
outdoors, na televisão, no cinema, nos monitores, nos jornais ou nas revistas, nada
mais são para os indivíduos senão espelhos, nos quais se vêem e se apaixonam pela
própria imagem.
Retomando a análise de Kristeva do mundo contemporâneo e das novas
doenças da alma, deve-se pensar sobre as condições atuais da vida em sociedade e do
severo agravamento da doença psicológica no que ela denomina “sociedade da
performance e do estresse”. Para a psicanalista, o grande desafio da psicanálise na
165
atualidade é a libertação da alma, que se encontra presa no engodo das facilidades e
prazeres enaltecidos e veiculados por todos os lados. O apelo ao gozo e o prazer, ao
contrário do que sempre se esperou, ocasionou o aprisionamento da alma na
obrigatoriedade opressora da satisfação. À psicanálise, agora, impõe-se a
necessidade de tratar dos indivíduos doentes, tendo a sua frente o desafio de lidar
com questões éticas em seu percurso. Mas dentre todos os desafios que se
apresentam agora e que tendem a se agravar no futuro, dois detêm sua atenção.
“Dois grandes confrontos, em minha opinião, aguardam a
psicanálise de amanhã quanto ao problema de organização e de
permanência do psiquismo. O primeiro é sua competição com as
neurociências: ‘o comprimido ou a palavra’, sendo esta desde já a
questão do ser ou não ser. O segundo é a prova à qual a psicanálise é
submetida pelo desejo de ‘não saber’, que se junta à aparente
facilidade oferecida pela farmacologia, e que caracteriza o narcisismo
negativo do homem moderno”. (KRISTEVA, 2002: 39-40).
Está posta a questão da alma e sua permanência na contemporaneidade.
Haverá a permanência do psiquismo diante das ofertas das neurociências? Já que a
farmacologia se compromete a tratar e a solucionar cada vez mais as angústias e os
dissabores humanos, que caminho restará aos psicanalistas em sua prática
profissional para que possam “ouvir” sujeitos que na realidade preferem se alienar,
fazendo uso de determinados medicamentos que acabam por promover o
apagamento do inconsciente?
Não há como retroceder. Os avanços em todas as áreas do conhecimento
humano, tecnológico ou biológico, afetam decisivamente a vida das pessoas. Aos
psicanalistas cabe aproveitar da melhor forma as novas possibilidades, adaptando a
análise aos novos recursos disponíveis.
“O assalto das neurociências não destrói a psicanálise, mas nos
convida a reatualizar a noção freudiana de pulsão: articulação entre o
‘soma’ e a ‘psique’, entre a biologia e a representação”. (idem: 40).
166
Há, entretanto, a crença de que o amor pode desfazer esse mal-estar e através
dele seria possível o encontro entre os pares. Na verdade, o amor funcionaria como
um sintoma, através do qual o sujeito procura no outro o que falta em si mesmo. O
objeto de desejo é sempre constituído sobre uma ausência. Desejamos aquilo
(aquele/aquela) que não temos o objeto perdido, uma falta.
As escolhas amorosas atuais têm como cenário o tecnicismo, o consumo,
muitas telas e muitas imagens. Sendo assim, não podem ficar distantes nem imunes
aos apelos de uma nova visão da sexualidade, que prioriza o prazer e a voracidade da
conquista, respaldados pela agilidade da informação e pela facilidade do acesso. O
tempo do amor é outro. Tanto no que se refere ao momento atual, quanto à duração
das relações amorosas.
“Somos os únicos, no reino animal, cuja possibilidade de
realização sexual é organizada por uma dissimetria, já que a escolha
do objeto não é regulamentada por uma identificação dos traços
característicos do parceiro, parceiro do sexo oposto, ou por odores
específicos, mas pela perda, pela renúncia ao objeto amado. É preciso
essa disfunção para que, no ser falante, o sexual possa se cumprir
(...)”. (MELMAN, 2003: 21).
A relação do sujeito com o mundo, com o outro e com sua própria identidade
acontece a partir de sua incompletude. A perda estabelece um limite capaz de manter
seu desejo e sua vitalidade.
A função do pai que, segundo Freud, era impor o limite a ser transposto
encontra-se hoje modificada e desvalorizada. A nova economia psíquica marca a
tentativa de liberação de um homem que procura evitar os impasses dais leis e das
obrigações que sempre o assujeitaram. Mas esse homem sem gravidade, que poderia
ser considerado livre das leis gravitacionais que o prendem ao solo (metáfora de
Melman), na verdade gira em volta do objeto do gozo, que passa a orientar toda a sua
existência.
O objeto (do desejo) parece então deslocado do inconsciente para qualquer
lugar a que se tenha acesso, no campo da realidade. O desejo transforma-se
167
facilmente em demanda, quando se privilegia o gozo do objeto em detrimento do
gozo fálico.
Nas relações afetivas contemporâneas o que prevalece é o gozo e a falta de
compromisso, especialmente entre os jovens. No entanto, Melman esclarece que há
um paradoxo nessa busca desenfreada pelo prazer, pois os jovens queixam-se da
dificuldade que encontram para desenvolver plenamente sua vida sexual. O prazer
sexual tornou-se tão fácil que se confunde com qualquer outra atividade de lazer
temporária, sem vínculos e sem maiores responsabilidades. Não há custo, não há
envolvimento, não há trabalho, não há esforço. Conseqüentemente, também não há a
valorização daquilo que se consegue tão facilmente. O sexo repetitivo torna-se
tedioso, mesmo que os parceiros se renovem e que se renovem os cenários e as
situações. O prazer é imediato e intenso, sem limites ou restrições.
“A idéia é aproveitar sem se engajar, mas isso impõe uma
questão: eles aproveitam plenamente? Esse é o fenômeno que chamei
de nova economia psíquica. Ele é fundado sobre o princípio da busca
imediata de prazer máximo, sem restrições. Esses momentos de prazer,
que proporcionam uma satisfação profunda, são vividos, mas não
organizam a existência, nem o futuro. Ou seja, a existência é feita de
uma sucessão de momentos sem nenhuma projeção no futuro, de
momentos que podem desaparecer porque não terão continuidade”.
(Melman in SOARES, 2008: 93).
O hedonismo sem rédeas praticado pelo novo homem desconsidera a
economia psíquica centrada no objeto perdido e a transforma em nova economia,
organizada de maneira oposta, centrada no objeto possível e na aquisição até o fim,
até o esgotamento, pelo gozo. Os sujeitos das novas sociedades, portanto,
identificam-se pela comunhão do gozo, que pode se dar através de um determinado
produto ou de um estilo, mas sempre sem limitação ou restrição. A identidade dos
sujeitos desvincula-se do que significava no passado e por isso não tem mais como
referente a língua, ou um ancestral, ou um ideal, mas o que está acessível e pode
oferecer satisfação. O sujeito da contemporaneidade transforma-se, assim, em um
168
consumidor que se adapta às ofertas promovidas pela ação midiática, através da
publicidade ou do jornalismo.
[52] “Eu espero que o meu amor seja maravilhoso, um amor
repleto de felicidade que seja uma pessoa amigável companheira e
muito sensual. O meu amor vai ser para a vida toda, para toda e
pro resto da eternidade eu vou amá-la para sempre, com o meu
grande amor pretendo casar ter muitos filhos e fazer muito amor
semanal. Pretendo que meu amor tenha todas as qualidades e é
claro defeitos, eu quero que seja minha alma gêmea minha cara
metade quero que seja a razão do meu viver. O amor não pode
haver desavenças nem traição tem que ser como foce uma partida
de futebol 11 contra 11 sem cartão vermelho um amor sincero e
puro”. (Fábio, 804, 16 anos).
O texto de Fábio confirma a tendência atual de valorização do gozo, afinal ele
quer se casar com uma mulher sensual que lhe desperte o desejo de fazer muito amor
semanalmente. Mais que isso, entretanto, suas palavras deixam vislumbrar o desejo
de uma relação sincera (uma relação-pura) em que o outro é a cara-metade, a alma-
gêmea, a razão do seu viver; ou seja uma relação de confiança total, como um
contrato, um acordo, ou como em sua própria metáfora: uma partida de futebol, com
os times jogando em harmonia, sem brigas, sem traição, e na qual haja obediência às
regras para que ninguém tenha que ser expulso com cartão vermelho. Para sempre?
O que fica latente entre o hedonismo generalizado e os discursos que
continuam a colocar o amor como uma obrigação a ser conquistada (a condição
máxima da felicidade) é a insatisfação humana. Quanto mais se fala em prazer e
quanto mais ele é imposto, mais os indivíduos parecem sofrer com os fracassos
amorosos.
De qualquer maneira, o que se vê nas redações dos alunos aqui apresentadas,
cada vez mais, é a crença no amor, no compromisso leal e verdadeiro. O desejo de
relacionar-se representa para o sujeito contemporâneo um caminho, uma saída, a
possibilidade de encontrar respostas para suas angústias na alteridade.
169
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A contemporaneidade apresenta-se às sociedades e a seus indivíduos como
um momento de grande impacto na organização das formas de poder e de controle,
da ciência, da cultura e das relações humanas em geral. Os novos modelos
comportamentais promoveram o surgimento de subjetividades fundadas na
autonomia, na responsabilidade, na flexibilidade e na pluralidade de funções.
Quando não há estabilidade, as subjetividades são forjadas na instabilidade, no
plano do escorregadio e do incerto - do “líquido”. Sendo assim, o homem
contemporâneo precisa criar subterfúgios para sentir-se estável, seguro, amparado
de alguma forma.
Diante da enorme crise de referências que ora se apresenta, o homem, mais
do que nunca, delega ao amor a função de defini-lo, na tentativa de, através dele,
resgatar o sentido de sua existência.
Mergulhado no cotidiano líquido e excessivamente impulsionado por uma
sucessão de estímulos, o ser humano não pode parar: é preciso ganhar, gastar,
ostentar, saber, conhecer, visitar, sentir... As pessoas são levadas por um estilo de
vida marcado pela auto-programação e pelo interesse individualizado,
distanciando-se cada vez mais das representações e do vínculo com o outro.
O corpo emerge como força representativa: através da valorização da beleza
(cosméticos, cirurgias, moda, musculação) e através das queixas de dores de origem
física ou psíquica, que podem ser tratadas pela indústria farmacológica, ou também
através do gozo. O corpo do outro acena como possibilidade de afeto, é um refúgio -
nele existe a chance de esquecer a dor, na troca de sensações. O próprio corpo
também entra nesse jogo, é preciso conhecê-lo, saber seus limites e ter cuidados
específicos com a saúde: dietas alimentares, exercícios físicos, medicamentos...
170
Afinal, ciência e tecnologia atuam lado a lado a serviço do eu reflexivo, que tem
direito a fazer escolhas relativas a seu corpo biológico.
O amor surge de todos os lados, em discursos que valorizam a estética, a
necessidade de relacionar-se, a obrigatoriedade do prazer, a imposição de ser feliz. O
planejamento de vida reflexivamente organizado, característica mais marcante da
atualidade, pressupõe cursos de ação, metas a serem alcançadas, mas a cada situação
os riscos devem ser avaliados e evitados. É preciso amar, mas o risco deve ser zero.
Os discursos sobre o amor proliferam na contemporaneidade, atendendo a um
sujeito empreendedor que em sua inter-relação com outros sujeitos tece redes de
valores, crenças e convicções, de modo a estabelecer normas para a vida em
coletividade. As leis sociais e a informação representam uma certa segurança em
tempos de tanta transformação diante de um mundo cada vez mais acelerado. O
homem tem dúvidas, sente medo e necessita de proteção.
O conhecimento significa um terreno seguro por onde andar, por isso o amor
aparece justificado através do discurso da ciência (médica/biológica), da filosofia, da
literatura, da história, da sociologia, da antropologia e da psicanálise. Esses discursos
circulam na atualidade através da mídia, que hoje detém a tarefa de trazer
informação a indivíduos cada vez mais céticos em decorrência do exercício
permanente de reflexividade. Mais que isso, a mídia promove a mediação da
experiência, criando o próprio sentido de realidade. Palavras e imagens formam uma
cadeia ininterrupta de significantes que geram significados. Surgem assim os efeitos
de verdade, as crenças, os consensos, os mitos, os simulacros.
A força da economia desde a Revolução Industrial culmina, nos dias de hoje,
na supremacia do capitalismo, impulsionando os indivíduos ao trabalho exaustivo
em busca do lucro e dos bens materiais, que são sucessivamente substituídos. Nessa
dinâmica, as relações afetivas são prejudicadas. Não é fácil estabelecer vínculos e os
contatos passam a ser não-presenciais em situações cada vez mais numerosas.
Prevalece a lógica da auto-conservação, na qual a individualidade é preservada a um
alto custo e passa a ser auto-referida.
O panorama econômico da atualidade, portanto, traz como conseqüência a
cultura do narcisismo, com a formação de personalidades centradas em si mesmas.
Freud apresenta o narcisismo como um conceito de suma importância para a
psicanálise, postulando como a subjetividade passa a ser uma instância psíquica
171
também passível de receber investimento libidinal, o que na prática significa a
possibilidade de erotização do próprio eu.
O narcisismo funciona como elemento unificador do despedaçamento
causado pelas pulsões parciais. Através dele torna-se possível, mais tarde, o sujeito
fazer uma escolha amorosa. A criação de vínculos, no entanto, significa uma ameaça
para o sujeito, pois o investimento libidinal implica troca, doação, e o medo do
esvaziamento fica latente.
O medo de expor-se e de depender do outro leva o sujeito a refugiar-se em si
mesmo. Todavia, não se pode encontrar satisfação libidinal sem a presença do outro.
Se o sujeito não investe no outro, por medo, insegurança ou egoísmo, os objetos
deixam de existir e ele passa a se considerar o centro do mundo.
Os discursos sobre o amor aqui analisados (Kipnis e Fisher) parecem seguir a
lógica narcísea de que o sujeito basta a si mesmo para tudo. As duas representações
discursivas (amor biológico / amor cultural) apontam para soluções que dependem
da ação do indivíduo em suas questões libidinais.
Compreender o funcionamento do corpo do indivíduo apaixonado a partir da
ação de determinadas substâncias pode significar o afastamento da responsabilidade
e da necessidade de investimento pessoal nas relações afetivas. Da mesma forma, as
injunções sociais presentes em uma gigantesca profusão de imagens nesta sociedade
do espetáculo geram ideais padronizados que se constituem em consumo
exacerbado, sem consistência simbólica. Dessa maneira, a felicidade pode estar na
compra de uma casa, ou de um carro ou de uma promoção no trabalho. Essa
padronização é um engodo, pois o investimento para se conseguir esse tipo de
sucesso acaba desviando o sujeito do foco nas inter-relações, contribuindo para a
difusão do narcisismo nas sociedades ocidentais contemporâneas, na medida em que
esse tipo de comportamento promove o fechamento do sujeito em si mesmo e a
rejeição da experiência da alteridade.
Certamente as transformações que marcaram de forma tão decisiva o século
XX e o início do século XXI não nos deixam dúvidas de que o homem mudou muito
desde Freud, mas a psicanálise ainda pode ser uma forma de aplacar o sofrimento
humano, trazendo conforto, procurando respostas e novas formas de compreensão do
psiquismo.
172
Diante da produção social de subjetividades e das conseqüentes formas de
manifestação do sofrimento psíquico, a contemporaneidade apresenta-se
especialmente marcada pela dificuldade de se estabelecer vínculos e pela obstinação
de realização de projetos de vida que ocupam os indivíduos em tempo integral. A
ciência é convocada para a tarefa de, interdisciplinarmente, explicar o padecimento
psíquico e apontar formas de solucioná-lo.
O amor, alicerçado em discurso, apresenta-se então ao homem
contemporâneo como uma saída, uma possibilidade de esquecer a dor no encontro
com o outro, mas um encontro que se limita ao prazer.
Claro está que o amor implica sempre uma dualidade. Se para
Lacan/Platão/Sócrates amar é “dar o que não se tem”, o que o torna possível e
atraente é justamente a tentativa de amar, o esforço entre duas diferenças para chegar
ao inatingível, que se acredita possível.
A contemporaneidade, entretanto, inverte essa ordem, uma vez que acredita
na ação unilateral de um indivíduo para amar. A ordem civilizatória determina que o
homem tenha que amar o outro “como a si mesmo”, mas o narcisismo transforma
essa máxima em “amar a si mesmo”.
Observar o homem instigado pela necessidade do gozo a qualquer preço e
fechado no hermetismo de sua individualidade leva-nos a repensar as perguntas de
Melman e Kristeva: Ainda há lugar para o inconsciente? A alma ainda existe?
Não me atrevo a responder.
Mas quando leio as redações dos meus alunos e os vejo apostando na
felicidade amorosa plena, com seus corações acelerados e a expectativa de toda uma
vida pela frente, prefiro acreditar, como Giddens, que não pode ser tão ruim assim,
em tempos de consumo e individualismo, sonhar com uma “relação-pura”, simétrica,
reciprocamente sincera e intensa.
Afinal, mesmo que essa crença signifique uma enorme sobrecarga para a
integridade do eu e essa tensão da expectativa possa acarretar decepção e frustração
futuras, ela representa, acima de tudo, a possibilidade de investimento no humano,
no emocional, na alteridade.
O que eu espero do amor
173
[27] “Espero primeiro que ele venha de verdade, sincero. Que ele
traga o que eu preciso. Que me realize. Que me complete. Se um dia
eu amar alguém, e essa pessoa me corresponder, quero que esse
afeto jamais morra. Espero que me faça sentir algo inesplicável.
Que me faça alegre por nada, pelo simples fato de ser amor. Que
seja como vento. Mesmo depois de passar e acabar deixa sempre
rastros de sua passagem. Que não seja ilusão. Que não seja
interesses. Que seja um risco a se correr, mas um risco seguro. Na
verdade o que eu espero do amor É TUDO! Tudo o que de melhor
me possa oferecer”. (Fernanda, 804, 14 anos).
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