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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ
CAMPUS DE MARECHAL CÂNDIDO RONDON
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA
GILSON BACKES
As plantações de hortelã e as dinâmicas socioculturais da fronteira:
memórias, trajetórias e estranhamentos em Mercedes (Oeste do Paraná 1960-2009)
Marechal Cândido Rondon
2009
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1
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ
CAMPUS DE MARECHAL CÂNDIDO RONDON
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM HISTÓRIA
GILSON BACKES
As plantações de hortelã e as dinâmicas socioculturais da fronteira:
memórias, trajetórias e estranhamentos em Mercedes (Oeste do Paraná 1960-2009)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História da universidade Estadual do Oeste do Paraná
UNIOESTE como requisito para obtenção do título de Mestre
em História.
Área de Concentração: História, Poder e Práticas Sociais.
Linha de Pesquisa: Práticas Culturais e Identidades.
Orientador: Prof. Dr. Robson Laverdi.
Marechal Cândido Rondon
2009
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca da UNIOESTE – Campus de Marechal Cândido Rondon – PR., Brasil)
Backes, Gilson
B126p As plantações de hortelã e as dimicas socioculturais da fronteira:
memórias, trajetórias e estranhamentos em Mercedes (Oeste do Paraná
1960-2009) / Gilson Backes. – Marechal Cândido Rondon, 2009
155 p.
Orientador: Prof. Dr. Robson Laverdi
Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Estadual do Oeste
do Paraná, Campus de Marechal Cândido Rondon, 2009.
1. Lavouras de hortelã – Mercedes (PR). 2. Dinâmicas
socioculturais. 3. Trabalhadores – Lavouras de Hortelã -
Memórias. 4. Trajetórias sociais. I. Universidade Estadual do
Oeste do Paraná. II. Título.
CDD 21.ed. 302
981.62
333.31
CIP-NBR 12899
Ficha catalográfica elaborada por Marcia Elisa Sbaraini Leitzke CRB-9/539
Este trabalho é dedicado a todas as pessoas
que fazem cotidianamente a História do Oeste
do Paraná. Em especial as pessoas de minha
família que migraram nos primeiros anos de
ocupação da atual Mercedes. Aos meus pais
Quirino e Ilma.
3
AGRADECIMENTOS
Ao longo deste trabalho muitas pessoas, de uma maneira ou outra, contribuíram para
que alcançasse os resultados aqui registrados. Primeiramente, agradeço meus pais, Quirino e
Ilma, que mesmo não tendo a oportunidade de estudarem, sempre valorizaram minha opção
em buscar compreender mais a sociedade da qual fazemos parte. E, se o puderam colaborar
financeiramente com minha formação o incentivo sempre foi fundamental para que não
desistisse. Ao mesmo tempo, agradeço-os pelas muitas informações prestadas a respeito das
atividades com a hortelã, pois suas recordações auxiliaram-me na problematização.
Agradeço também as demais pessoas de minha família que mesmo não conseguindo
apreender minhas angústias, procuravam amenizá-las pelo ambiente familiar.
Aos meus colegas do curso de mestrado Cristiano, Jorge e Raphael - agradeço pelas
contribuições nas discussões das disciplinas, ou não exclusivamente, as quais enriqueceram a
pesquisa. Ao Jorge e Raphael pela especial amizade construída no decorrer do curso e, ainda,
ao Cristiano pela leitura atenta do trabalho final.
Aos professores da linha de pesquisa Práticas Culturais e Identidades Geni Rosa
Duarte, ri Frotscher pelas muitas sugestões e possibilidades de desenvolvimento da
pesquisa apontadas durante o curso. De maneira especial, agradeço ao professor Robson
Laverdi por ter acreditado na possibilidade deste trabalho, o medindo esforços. A ele devo
parte de minha formação. Sua seriedade e competência profissional ajudam a traduzir
resultados alcançados neste trabalho. Sou grato pelo seu respeito aos meus limites e minhas
possibilidades.
Agradeço aos professores Marcos Freire Montysuma e Davilix Schreiner, pela
leitura atenta e sugestões apontadas na banca de qualificação e também por comporem a
banca examinadora no exame final juntamente com a professora Méri Frotscher.
Enfim, agradeço a todos que de uma maneira ou outra colaboraram com informações
durante a pesquisa de campo. A secretária do Programa, Iraci, pelo tempo e atenção sempre
disponível. De modo especial agrado os meus entrevistados, que suas memórias, aqui
registradas, jamais sejam silenciadas. Obrigado.
4
Retratos
Retratos são momentos congelados
De tempos passados
São memórias
Nossas histórias
Tempos idos
Lá longe
Nos escombros da vida
No álbum de recordações
Que tocam o coração
De saudade
De dor
De amor.
Retratos amarram trança de gente
Paisagens
Personagens
Palcos do mundo
Na roda viva
Da nossa memória.
Retratos são fotografias
No papel ou na mente
Da gente
Que registram
Os instantes únicos
Do fio da vida
São espelhos que espelham a gente.
(Gladis Elfi Mohr, Mercedes/PR, mimeo, dezembro de 2006)
5
RESUMO
Esta pesquisa problematiza experiências vividas nas dinâmicas socioculturais das lavouras de
hortelã no município de Mercedes, Extremo-Oeste do Paraná, desde a década de 1960.
Buscou-se analisar, pelas trilhas da memória, as relações de trabalho, os viveres, as tensões e
estranhamentos culturais constituídos em torno desta atividade econômica, praticada por
diferentes trabalhadores que migraram para a região e nela atuaram. O estudo das memórias e
trajetórias sociais permitiu apreender uma realidade passada muito mais complexa em relação
àquela contata pela literatura memorialista e acadêmica, de fôlego hegemônico, que paira na
vida social da região. As trajerias evidenciaram que a ocupação da região não se constituiu
de forma tão planejada e consensual como tanto propalado, uma vez que muitos dos migrantes
chegaram e partiram sem portarem um sentido fixo de pertencimento. Com a chegada de
diferentes sujeitos, de lugares e tempos diversos, diferenças e conflitos socioculturais
tornaram-se latentes, na medida em que expressas em narrativas orais de entrevistados que
permaneceram naquela localidade. Esta pesquisa buscou então historicizar a formação deste
espaço de fronteira de ocupação recente, problematizando a formão de sua paisagem social,
a qual viveu intensas e profundas transformações no período. Na dinamicidade dos conflitos,
relações e tramas sociais de pertença, as memórias tornam-se primordiais para a interpretação
desta fronteira, onde as plantações de hortelã foram praticadas e, por sua vez, potencializaram
tensões múltiplas e instituíram prejuízos profundos no meio ambiente.
PALAVRAS-CHAVE
Memória; Lavouras de Hortelã; Dinâmicas socioculturais; Mercedes; Oeste do Paraná;
Fronteira
6
ABSTRACT
This research probes experiences lived in the socio-cultural dynamics of the mint plantations
in the borough of Mercedes, extreme West of Paraná, since 1960. We analyzed, by the ways
of memory, the labor relations, the ways of life, the tensions and the cultural differences
constituted around this economic activity which had been practiced through different workers
that migrated to that region and worked on there. The study of memories and social
trajectories let us to apprehend a past reality that was more complex than the one which was
told by the “memorial” and “academyliteratures; that defends hegemonic concepts or ideas,
which are part of the social life of this region. These trajectories evinced that the occupation
of the region didn’t has constituted by a planned and consensual form like it was divulged,
because the most part of the migrant workers arrived and went out without having a sense of
belonging. When different people arrived; by diverse places and times, differences and socio-
cultural conflicts became latent, as it was verified in oral telling reported by people who
remains in that region. This research sought, then, to study the historical events of the
formation of this border space with a recent occupation, probing the formation of your social
landscape, which passed by intense and deep changes in that period. In the dynamically of the
conflicts, relations and social problems of pertain, memories became primordial to the
interpretation of this frontier, where the increasing multiple tensions and instituting deep
damages to the nature.
KEY WORDS
Memory; Mint plantations; Socio-cultural dynamics; Mercedes; West of Paraná; Frontier.
7
LISTA DE
MAPAS
Mapa 01 - Municípios no âmbito de atuação da Companhia Madeireira Colonizadora
Rio Paraná S /A – Maripá.......................................................................................................11
Mapa 02 - Região Oeste do Paraná que observamos o desenvolvimento de lavouras de
hortelã..............................................................................................................................46
Mapa 03 Território do Município de Mercedes........................................................155
TABELAS
Tabela 01 - Produção de Hortelã por Microrregião no Paraná - 1970..........................13
Tabela 02 - Principais produtos agrícolas cultivados em Marechalndido Rondon em
1975 e 1976....................................................................................................................30
Tabela 03 - Principais produtos agrícolas cultivados em Marechalndido Rondon em
1977 e 1978....................................................................................................................31
Tabela 04 - Preços mínimos para a safra agrícola 1979/1980.......................................31
Tabela 05 População por Sexo e Estados de origem do município de Marechal
Cândido Rondon – Pr – 1970.........................................................................................47
Tabela 06 Taxas de crescimento anual da população 1940 – 1970 (%).....................48
Tabela 07 - Evolução do Desmatamento das Florestas Naturais no Paraná..............113
Tabela 08 Paraná: valor, número de contratos e índice de crescimento dos
financiamentos concedidos a produtores e cooperativas – período 1969/1976...........118
8
SUMÁRIO
Considerações Iniciais ...................................................................................................... 09
Capítulo I Memórias da auncia nas trajetórias de migrantes ...................... 21
Capítulo II “E ninguém, parece, sentiu saudade”: a presença do “outro nas
plantações de hortelã ...................................................................... 71
Capítulo III As plantações de hortelã e as memórias da devastação no
Oeste do Paraná ............................................................................... 107
Considerações Finais ........................................................................................................ 140
Fontes .......................................................................................................... 143
Bibliografia ....................................................................................................... 145
Anexos ...................................................................................................... 150
9
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As narrativas, memórias e histórias abordadas neste trabalho referem-se àquelas
produzidas por sujeitos que, de forma direta ou indireta, participaram do período produtivo da
hortelã no Oeste do Paraná. Os trabalhadores compartilharam suas narrativas para a produção
deste trabalho que, a grosso modo, narraram experiências que, por vezes, são
silenciadas/invisibilizadas na hisria/memória social desta região.
1
Este estudo é o resultado tecido em torno de indagações sobre a população que
compunha o então distrito de Mercedes, no município de Marechal Cândido Rondon, nas
décadas de 1960 e 1970, período em que houve uma produção considerável de hortelã em
quase toda a região. Com o fim deste tipo de atividade agrícola, a população que era
predominantemente rural diminuiu consideravelmente. Partindo desta indagação, minhas
preocupações rumaram à observação das dinâmicas sociais que se desenvolveram a partir do
declínio das lavouras de hortelã, considerando que este tipo de atividade agrícola engendrou
dinâmicas socioculturais incomuns até aquele período.
Procurando compreender as relações que se estabeleceram nestas dinâmicas, minhas
indagações iniciais foram: quem eram as pessoas que trabalhavam nas lavouras de hortelã? De
onde vieram? Como chegaram à região? Onde passaram a viver com o término destas
lavouras? Como se davam as relações de trabalho e as vivências entre diferentes grupos num
período de constante migração? Com estas questões procurei abordar o período tecendo
considerações que não estão de modo algum acabadas, mas que permitem entender algumas
dimenes de um processo contraditório das relações sociais forjadas em meio a embates
socioculturais.
1
A memória social” é entendida nesse estudo enquanto categoria de análise histórica, tomada a partir das
considerações de KHOURY, Yara Aun. “Muitas memórias, outras histórias: cultura e o sujeito na história”. In:
FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY, Yara Aun
(orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’ Água, 2004, pp. 116-138. Quando trabalhamos
com a(s) memória(as) devemos compreendê-la(s) enquanto um campo de disputas, pois elas são instituídas “e se
transformam na experiência social vivida” (p. 118). É preciso considerar, por um lado, que à história/memória da
rego Oeste do Paradeve ser dada a grande importância às “muitas memórias” que se produzem a partir das
relações sociais experimentadas cotidianamente pelas pessoas. A partir delas os sujeitos projetam-se
socialmente, afirmando lugares de pertença próprios, tanto individuais como familiares. Por outro lado, as
pessoas não se identificam com uma história que tende a hegemonizar uma memória projetada pela esfera
privada, produzida com base em documentos de instituições públicas e/ou privadas que, por sua natureza, o
envolvem determinados aspectos de convívio social como, no caso, a presença de trabalhadores não enquadrados
a certos padrões socioculturais p-estabelecidos.
10
Para compreender alguns dos elementos culturais, entendidos aqui como modos de
vida, parti da perspectiva de referencial de análise de Yara Aun Khoury quando percebe “a
cultura como expressão de todas as dimensões da vida social”.
2
Entendendo assim que modos
de vida somente existem no plural, pois a dimensão do social não se explica e se apreende a
partir do singular, mas a partir de um conjunto de relações tecidas no fazer-se cotidiano.
Com estas indagações expostas, procurei pautar a problemática deste trabalho pelo
diálogo com as narrativas orais, as quais se encaminharam para diferentes dimensões das
relações de trabalho forjadas ainda em anos anteriores a década de 1960. Um dos aspectos que
destaco de antemão foi o processo de ocupação de uma região em que havia a necessidade de
exploração dos recursos naturais como, no caso, da derrubada da mata para que, logo após,
ocorresse a prática do plantio das lavouras de hortelã. As narrativas pautavam outros
diferentes olhares para a região Oeste do Paraná, por sua vez lançado a partir do espaço de
minha vivência, o atual município de Mercedes,
3
localizado no Extremo-Oeste.
Ao falar de uma história local, compartilho das reflexões de Raphael Samuel que, ao
discutir o estudo de um determinado lugar, vila, bairro ou cidade, propõem que elementos
específicos sejam problematizados para que se tenha uma melhor apreensão da ppria
localidade e além dela. De acordo com este autor: “ao invés de considerar a localidade por si
mesma como objeto de pesquisa, o historiador podeescolher como ponto de partida algum
elemento da vida que seja, por si só, limitado tanto em tempo como em espaço, mas usado
como uma janela para o mundo”.
4
Apreendendo o exposto na leitura de Raphael Samuel, minhas considerações sobre a
região partem, a princípio, do espaço de atuação da empresa Colonizadora Rio Paraná S/A
Maripá, que se constituía na antiga Fazenda Britânia.
5
Uma área situada ao longo do Rio
Paraná entre Foz do Iguaçu e Gura, com 43 km de extensão no sentido norte-sul, e 78 km no
sentido leste-oeste.
6
Neste espaço, a colonizadora procurou impor um conjunto de regras para
ali fixar a população tida como “ideal”. A principal destas regras foi a seleção do elemento
2
KHOURY, Yara Aun. “O historiador, as fontes orais e a escrita da história”. In: MACIEL, Laura Antunes;
ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY, Yara Aun (orgs.). Outras histórias: memórias e linguagens. o
Paulo: Olho d’ Água, 2006, p. 24.
3
O atual município de Mercedes era distrito de Marechal Cândido Rondon até o início da década de 1990.
Desmembrou-se por meio de plebiscito, em que a população “optou” pela autonomia municipal. Foi instituído
com estrutura e gestão própria em 1º de janeiro de 1993.
4
SAMUEL, Raphael. “História Local e História Oral”. In: Revista Brasileira de História. V. 9, 19, o
Paulo: Marco Zero, set. 89/fev. 90, p. 229.
5
A área da antiga Fazenda Britânia, atualmente, corresponde aos municípios de Marechal Cândido Rondon,
Toledo, Quatro Pontes, Entre Rios do Oeste, Pato Bragado, Mercedes e Nova Santa Rosa.
6
SAATKAMP, Venilda. Desafios, lutas e conquistas: história de Marechal Cândido Rondon. Cascavel:
ASSOESTE, 1984, p. 38.
11
humano que, em essência, faria as terras prosperarem. As pessoas tidas como ideais seriam
agricultores dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, descendentes de imigrantes
italianos e alemães.
7
Estes, os tipos ideais, estariam comprometidos com o “desenvolvimento
do espaço devido a seus conhecimentos em atividades agrícolas. Convém destacar, a partir do
olhar o local “como uma janela para o mundo, que a população da região Oeste não era
exclusivamente, nas décadas de 1960 e 1970, do Sul, como propagado pela literatura que
procurou se hegemonizar. Tenho observado que houve um processo constante de migrações
de trabalhadores provenientes de rias regiões do país, como Minas Gerais, Bahia e mesmo
uma migração interna no próprio Paraná.
Mapa 1- Municípios localizados no âmbito de atuação da Companhia Madeireira Colonizadora Rio
Paraná S/A Maripá.
8
Observando as dinâmicas socioculturais que se processaram, quando muitos
trabalhadores chegaram à região e a viram como um campo de possibilidades, procurei lançar
um olhar diferente para a historicidade da região. Mas, é preciso deixar claro que o espaço
que inicialmente fora delimitado para o desenvolvimento da pesquisa constituiu-se num
7
SAATKAMP, Venilda. Desafios, lutas e conquistas..., op. cit. p. 43.
8
Espaço de atuação da Colonizadora Maripá, a partir de leituras sobre a região. Ver também anexo 01.
12
elemento nivelador, pois as narrativas e trajetórias dos sujeitos ultrapassaram as fronteiras
geográficas. Sobretudo, quando a constituição das experiências dos sujeitos não é algo
estanque, mas multidimensional, que está para além de fronteiras simbólicas, como a
demarcação de um lugar físico específico. Em minha apreensão empírica de campo e nas
memórias, trabalhadores diversos estiveram muito presentes neste espaço nas décadas de
1960 e 1970, participando, de uma forma ou outra, das relações constituídas e, portanto,
fazendo-se
9
sujeitos históricos participativos. Instruindo-me a um diferente olhar para a
região, num período de franca atividade das lavouras de hortelã. Com estas considerações,
ressalto que, de modo algum, busquei tomar este espaço como algo dado, mas fruto das
relações sociais dos diferentes sujeitos que os constituía.
Procurando compreender, a grosso modo, as relões sociais constituídas a partir das
lavouras de hortelã, convém primeiramente destacar que o Paraná, devido à boa fertilidade do
solo, na década de 1970 respondia com 95% da produção brasileira de óleo desta planta. Os
maiores compradores do óleo de hortelã neste período eram, conforme apontado pelo
IPARDES: França, Alemanha Ocidental e Formosa.
10
Este óleo era destinado, sobremaneira,
às indústrias de:
Farmacêutica e em diversas outras preparações industriais em geral. Na
farmacodinâmica atuam como anestésicos locais, com alívios para dores de
cabeça, como anticéptico das vias respiratórias. Na indústria de alimentação,
como aromatizantes de bolos, doces, bebidas, gomas de mascar (chicletes,
balas de hortelã, licor, pipermit, etc.). Na instria de tabacos para
aromatização e refrescamento’ de diversos tipos de cigarros, além de
numerosas outras aplicações.
11
O mercado consumidor, segundo o estudo indica, necessitava de uma produção
considerável de óleo, sendo o mesmo utilizado em diversos produtos industrializados, como
nas atividades farmacêuticas, alimentícias e, também, em perfumaria e tabaco. Na tabela da
próxima página, pode-se observar a produção de hortelã no Paraná em 1970.
A partir dos dados levantados pelo IPARDES, nota-se que o Oeste do Paraná teve uma
significativa participação na produção hortelaneira do Estado. A hortelã, que até na década de
9
O fazer-se aqui é entendido a partir da leitura de Edward Thompson, que ao analisar a formação da classe
operária inglesa destacou que ela se constitui no seu fazer-se. THOMPSON, Edward P. A formação da classe
operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Os trabalhadores com os quais dialoguei tamm se constituem no
fazer-se trabalhador, sobretudo quando migraram/migram de uma região a outra em busca de melhores
condições de sobrevivência.
10
FUNDAÇÃO IPARDES: Estudos para o desenvolvimento de atividades agrícolas e industriais integrados,
projetos especiais menta. Curitiba, 1977, p. 27. Dispovel em: www.ipardes.pr.gov.br. Acessado em
12/01/2009.
11
Jornal Informativo Copagril. Marechal Cândido Rondon, novembro de 1977, nº 14, p. 11. Acervo da unidade
sede da Cooperativa Copagril de Marechal Cândido Rondon.
13
1950 achava-se concentrada no estado de São Paulo, em 1953 é incorporada na região do
Vale do Paranapanema e, em seguida, nos vales dos rios Ivaí e Piquiri, no Paraná, com
deslocamentos contínuos para as microrregiões de Campo Mourão e Extremo-Oeste.
12
Esta
produção se manteve interligada às relações sociais que se estabeleceram entre os diferentes
sujeitos que participaram da atividade. Evocando características como estas, a região Oeste,
assim, apresentou outras tramas de compreensão e historicidade.
Tabela 1 - Produção de hortelã por microrregião no Paraná– 1970.
13
Microrregiões Produção rama (T)
Partic
produção (%)
Norte Novo de Maringá
1.875
1
Norte Novo de Apucarana
10.400
6
Norte Novíssimo Umuarama
8.340
4
Campo Mourão 136.025 72
Extremo-Oeste Paranaense 32.800 17
Fonte: D. E. E.
Sobre o passado destas relações sociais que problematizo, toma-se alguns sinais ou
pistas ativas no presente, particularmente as memórias, a partir das quais tornou-se possível
conhecer algumas peculiaridades que até o momento eram silenciadas.
14
Entendo a memória a partir da perspectiva de Pierre Nora, que afirma em seu diálogo
entre “Memória e História”:
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela
está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas
revitalizações. (...) A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido
no eterno presente.
15
Nas indagações sobre o “eterno presente” das lembranças e do recente passado da
história do Oeste do Paraná, procurei perceber a atuação dos sujeitos nas suas dinâmicas, que
as transformaram conforme suas necessidades e possibilidades. Assim, a feitura deste trabalho
se concretizou no sentido de ouvir diferentes participantes da historicidade como sujeitos
12
FUNDAÇÃO IPARDES: Estudos para o desenvolvimento de atividades agcolas..., op.cit. p. 25.
13
Idem, ibidem.
14
TOMAZI, Nelson Dacio. Norte do Paraná”: histórias e fantasmagorias. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2000,
p. 108.
15
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. o Paulo, PUC/SP,
nº10, 1993, p. 09.
14
sociais ativos. Uma gama de questões se desenhou, pois a região que acreditava conhecer
apresentou-se mediada por relações socioculturais amplas e, até o presente momento,
desconhecidas em termos de estudos acadêmicos. Para mim, foi um desafio redesenhar a
atuação dos sujeitos em suas diferentes relações narradas, primordialmente quando procurei
dialogar com as trajetórias dos mesmos. Tenho observado que, via de regra, as relações de
trabalho instituídas no campo não ocorreram de forma tranqüila, mas a partir de tensões e
rearranjos, os quais foram interpretados e apreendidos pelas e nas lembranças daqueles que
relataram suas experiências e memórias.
Nesta análise do cotidiano, procurei também trabalhar na perspectiva da memória,
enquanto uma “função decisiva no processo psicológico total”. De acordo com Ecléa Bosi,
esta é uma:
Memória [que] permite a relação do corpo presente com o passado e, ao
mesmo tempo, interfere no processo atual” das representações. Pela
memória, o passado não vem à tona das águas presentes, misturando-se
com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas
últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como
força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante,
oculta e invasora.
16
Entendendo a memória enquanto operação de socialização do e no passado, procurei
legitimar sobrevivências ao mesmo tempo através das lembranças lançadas a partir dos
sentidos das experiências. Na observação das dinâmicas populacionais e de trabalho
processualizadas na região, algumas questões pessoais têm me inquietado e colocado a
refletir, há algum tempo, sobre as plantações de hortelã. Refiro-me ao processo decorrido
com estas lavouras, a partir do qual coloquei-me a investigar o atual município de Mercedes.
Isto significa dar respaldo a questões que também vivenciei, desde criança, em meu cotidiano.
Minha experiência como morador e trabalhador do campo, por vezes como ia-fria,
possibilitou-me conhecer e conviver com migrantes do período hortelaneiro. Em conversas
entre vizinhos e também na esfera familiar, ouvia pais e avós narrando questões ocorridas
naquele período, pois os mesmos também haviam participado ativamente daquelas dinâmicas.
Partir de experiências vividas no âmbito familiar significou, neste trabalho, perceber
como as tensões e conflitos se fizeram presentes neste espaço em decorrência da produção
hortelaneira. Ao recordar hisrias de família percebo o quanto era evidente o grande número
de trabalhadores vindos de outras áreas do Brasil, e não apenas do Sul, que habitavam e
trabalhavam na região. Em uma única propriedade várias famílias residiam em casas feitas,
16
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.
46-47.
15
muitas vezes, de “pau-a-pique”, uma próxima à outra, conforme as lembranças trazidas à
tona. Constantemente, eram apontados lugares em que poderiam ou ainda podem ser
encontrados vestígios marcas residuais daquele passado de construções de casas onde
residiam trabalhadores ou mesmo restos de construções ou alambiques
17
onde se processavam
as ramas da hortelã. Neste referencial de memórias transparecem também os nomes das
famílias participantes do processo vivido. Nomes que eram de origem alemã” ou “italiana”,
mas também característicos de pessoas de outros estados, os quais são reconhecidos pelos
sulistas com o termo nortistas.
Na trilha destas questões, passei a construir o objeto desta pesquisa, o qual despontou
de uma ligação íntima entre o desejo de lembrar e o tema proposto. Na colaboração às minhas
indagações sobre a pesquisa, pensei muito no que bem destacou Maria do Pilar, que de
“surgir de uma relação íntima entre sujeito que pesquisa e o objeto pesquisado”.
18
Esta
relação, acredito ter se concretizado no trabalho de campo que desenvolvi, pois a partir daí,
outras questões me levaram à compreensão deste espaço. Principalmente, quando percebi que
a história sobre o Oeste do Paraná pode ser vista por diferentes ângulos. Trata-se de novas
perguntas feitas ao passado para procurar melhor compreendê-lo. A este diálogo ou imagem
do passado, os escritos de Walter Benjamin me ajudaram, pois destacam que:
O passado traz consigo um índice misterioso, que o impede à redenção. Pois
não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem,
nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? (...) Se assim é,
existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a
nossa.
19
Para a História, quaisquer dimenes sussurrantes não podem ser consideradas
perdidas. Na procura de algumas respostas sobre tais questionamentos a respeito do período
hortelaneiro, sabia que somente os números estatísticos, mesmo apresentando-se importantes,
não dariam conta das respostas. Trazendo somente dados estatísticos estaria silenciando
dimenes importantes do processo, como as trajetórias dos sujeitos que vivenciaram o
período. Tratar destas relações enquanto um processo histórico vivido é dar respaldo à
experiência humana, uma vez que ela não é algo externo ao ser humano, conforme Edward
Thompson pontuou na sua crítica ao pensamento de Althuser, pois as pessoas “experimentam
17
Os alambiques, também conhecidos como destiladores, eram estruturas organizadas como uma espécie de
quina, constituída por um conjunto de elementos, sendo eles: a dorna, o condensador e a caldeira, que
operavam em conformidade com a extração, por intermédio da destilação do óleo da rama da hortelã.
18
VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha; KHOURY, Yara Maria Aun. A
Pesquisa em história. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1991, p. 34.
19
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e história da cultura.
Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. o Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas v. 1), p. 223.
16
sua experiência como sentimentos e lidam com esses sentimentos na cultura, como normas,
obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidade, como valores...”.
20
A partir de leituras como as de Thompson, percebo que fui atraído pelas experiências
narradas por alguns destes trabalhadores migrantes. Estes, por sua vez, expuseram diferentes
dimenes de suas vidas enquanto sujeitos sociais, imprimidas em ambientes múltiplos e, por
vezes, conflitivos. As trajetórias dos migrantes pesquisados evocam uma maneira de ser, de
estar e de participar do espaço em estudo, elaborando e reelaborando, às suas maneiras, a
participação no processo. Discutí-las significa interpretar o passado a partir da maneira como
foi apresentado pelos sujeitos a partir de seus relatos.
Neste caminho, procurei compreender como as pessoas se organizam e se articulam
em relação a este processo de produção que, em muitos casos, é desencadeado por um sistema
de exploração e expropriação, o qual foi empurrando trabalhadores de um lugar a outro na
busca por melhores condições de sobrevivência. Notadamente, a partir dos relatos, os sujeitos
entrevistados resignificam o cotidiano vivido pelas e nas relações sociais. A experiência
vivida e narrada por cada um dos sujeitos por mim questionado apresentou uma gama de
histórias e memórias, as quais procurei apreender e problematizar. As informões colhidas
partiram de múltiplas interpretações e perspectivas da realidade, que o se esgotam a partir
destes relatos colhidos. A partir dos mesmos pude apreender uma possibilidade de
compreensão do real.
As experiências relatadas rompem com o tempo ordenado, apoiando-se em inúmeros
pontos de referência numa forma de legitimação daquilo que se buscou expressar. Na
rememoração, o narrador procurou recriar uma cadeia de episódios vividos, de um passado
que se fez presente como um elo na recordação dos fragmentos de sua vida. A este esforço do
narrador, em reconstruir uma imagem do passado orientada pelo lugar social a que es
localizado no presente, Marina Maluf observou:
O trabalho de rememoração é um ato de intervenção no caos das imagens
guardadas. E é também uma tentativa de organizar um tempo sentido e
vivido do passado, e finalmente reencontrado através de uma vontade de
lembrar ou de um fragmento que tem a força de iluminar e reunir outros
conteúdos conexos, “fingindo” abarcar toda uma vida.
21
Com relatos ordenados e/ou desordenados nas reminisncias do cotidiano lembrado,
procurei dar sentido à problematização desta pesquisa. Apropriei-me, então, destas
20
THOMPSON, Edward P.O termo ausente: experiência”. In: A miséria da teoria ou um planerio de erros
(uma crítica ao pensamento de Althusser). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 189.
21
MALUF, Marina. Ruídos da memória.o Paulo: Siciliano, 1995, p. 29.
17
reminiscências, principalmente a partir das narrativas, pois estas se constituíram, a grosso
modo, nas fontes deste trabalho. A História Oral, neste caso, foi utilizada como uma
importante metodologia de problematização e análise de historicidades. Um objeto que foi
construído e reconstruído a partir das lembranças daqueles que, na simplicidade do cotidiano
e na abertura interpessoal, se propuseram a relatar suas experiências.
As narrativas e/ou memórias que procurei analisar foram tratadas como um mosaico
complexo de experiências individuais. Estas experiências lembraram-me que o espaço de
análise não se caracterizou como homogêneo, mesmo percebendo que muitas delas
constituíram-se de modo compartilhado. Neste estudo, a visibilidade que se buscou dar ao
objeto colocou-se como resultado de sujeitos reais, que modificaram/modificam o espaço e a
si mesmos.
Na reflexão do uso das fontes orais, Alessandro Portelli chama a atenção:
A história oral e as memórias (...) o nos oferecem um esquema de
experiências comuns, mas sim um campo de possibilidades compartilhadas,
reais ou imaginárias. A dificuldade para organizar estas possibilidades em
esquemas compreensíveis e rigorosos indica que, a todo momento, na mente
das pessoas se apresentam diferentes destinos possíveis.
22
Apreender as diferentes experiências vividas pelas testemunhas que narraram sobre o
período hortelaneiro (ou não exclusivamente sobre o mesmo), requer, a partir das vivências,
observar outras expectativas em relação ao tema proposto. As narrativas marcavam outros
pontos de vista, falando de uma história que, de acordo com Ecléa Bosi: “deve reproduzir-se
de geração a geração, gerar muitas outras, cujos fios se cruzem, prolongando o original,
puxado por outros dedos”.
23
Cada sujeito que narrou procurou imprimir e construir
significados próprios, conscientes ou inconscientes, de sua maneira de ser sujeito ativo e
participante do espaço social em estudo. O ato de lembrar e/ou rememorar se estabeleceu a
partir de um conjunto de reflexões que esteve imbuída de incontáveis experiências subjetivas
recriadas num campo de significados próprios. Neste viés, Yara Aun Khoury chamou a
atenção sobre como explorar o significado histórico e da atenção que deve ser considerada a
estas experiências:
(...) nosso interesse é trabalhar a narrativa oral no movimento da história;
como uma prática social, ela tem sua própria historicidade; o narrador
constrói sua identidade, fazendo uso dos elementos de sua cultura e
22
PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas
fontes orais. Tempo. Rio de Janeiro, vol. 1, nº 2, 1996, p. 72.
23
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos..., op. cit. p. 90.
18
historicidade e recorrendo a um passado significado e resignificado no
presente, ao tempo em que expressa tendências do processo vivido.
24
O movimento da história transcreve-se com as trajetórias individuais dos sujeitos
protagonistas de seu texto narrativo. Neste ato de lembrar, alimentado pelo passado, os
sujeitos, por sua vez, expressam sentidos da existência social, falando de outras
temporalidades e espos. Pensando no movimento da história destacado por Yara Khoury,
procurei abordar as narrativas de um modo atento, buscando compreender as múltiplas
experiências, principalmente daqueles que migraram para a região Oeste nos primeiros anos
da sua ocupação como fronteira agrícola. Pude perceber que muitas das experiências
compartilhadas pelos entrevistados, constituíram-se muito antes do início do período
hortelaneiro na região. Tem-se, a partir disto, um quadro complexo e desafiador de histórias
narradas, as quais precisaram ser apreendidas para que pudesse adentrar na invenção da
experiência humana, no dizer de Regina Beatriz Guimarães Neto.
25
Estas histórias/memórias o-hegemônicas, por sua vez, apresentam-me, como tem
observado Peter Burke: forças históricas por seus pprios méritos”.
26
Alguns relatos foram
mantidos num tom coloquial, mas em todos houve recortes, num trabalho de burilação e
lapidação de modo a articulá-los à pesquisa. Como bem observou Carlo Ginzburg: “(...) o fato
de uma fonte o ser ‘objetiva não significa que seja inutilizável. (...) Mesmo uma
documentação exígua, dispersa e retinente pode, portanto, ser aproveitada”.
27
Cada
entrevistado, de forma individual, expôs a sua visão de mundo que passou a ser interpretada
no campo da diversidade social e contradições apresentadas em cada relato.
As entrevistas foram realizadas a partir de um diálogo aberto e espontâneo. De todas
as pessoas que concederam relatos, somente Dona Gladis Mohr não teve um contato mais
direto com as lavouras de hortelã. Meu interesse por suas lembranças ocorreu porque, certa
vez, afirmou que ainda permanecia em sua memória o ronco de motosserras derrubando a
mata e toda a paisagem ser destruída. Os ricos detalhes de suas lembranças podem ser
observados no decorrer do texto. Através de Dona Gladis, entrei em contato com seu pai, o
senhor Theobaldo, que também não trabalhou nas lavouras de hortelã, mas tinha um contato
24
KHOURY, Yara Aun. “Muitas memórias, outras histórias: cultura e o sujeito na história”..., op.cit. p.128.
25
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Cidades da mineração: memória e práticas culturais: Mato Grosso na
primeira metade do século XX. Cuiabá, MT: Carlini & Caniato; EdUFMT, 2006, p. 56.
26
BURKE, Peter. “História como Memória Social”. IN: BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Trad.
Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 85.
27
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição.
Tradução: Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 21 e 22.
19
próximo com trabalhadores e as lavouras quando concertava equipamentos provenientes dos
alambiques que eram utilizados para destilação de hortelã.
Neste contato direto com moradores, a partir do trabalho de campo, a pesquisa foi se
constituindo. Alguns dos entrevistados eu conhecia, como o senhor José Honorato Alves,
que havia concedido outra entrevista para a realização do meu trabalho na graduação. O
senhor Francisco Ferreira da Silva, o senhor Geraldo Alves Gonçalves e o senhor Milton José
Sehnem eu também os conhecia das relações cotidianas. Outros, porém, fui buscando
conhecer a partir de indicações das pessoas com quem havia mantido contato para ver a
possibilidade da realização de entrevistas: Adolfo Hobus, Antoniel Matos dos Santos, Azelino
Lange, Benedito Lopes Gonçalves, Gilson José Fhilippsen e Sebastião Germano Filho. Todos
os relatos analisados no decorrer do texto, exceto o do senhor Milton, foram produzidos nas
moradias dos entrevistados.
Um dos critérios utilizados na seleção de quem eu ouviria foi o de procurar pessoas de
diferentes experiências no processo. Gravei, então, entrevistas com durão variada de 20 a
50 minutos, em gravador digital, com pessoas procedentes de várias áreas do país e de
diferentes idades. Outro critério foi o de narrar a própria história de vida partindo do
questionamento do que se lembrava sobre o período das lavouras de hortelã. Dessa maneira,
não parti de um questionário pronto, pois as pessoas que narraram tiveram a livre escolha de
relatarem suas lembranças naquele momento da entrevista.
Além das narrativas utilizadas como fontes, dialoguei com algumas edições do jornal
Informativo Copagril e com uma única edição do jornal Posição. Este último foi emprestado
pelo senhor Azelino. Ainda auxiliaram-me alguns poemas de autoria de Dona Gladis Elfi
Mohr, então professora da rede pública estadual de ensino em Mercedes há muitos anos. Estes
poemas não foram publicados, compostos num caderno de anotações.
Instaurando uma cotidianidade a partir do diálogo com as fontes, organizei o trabalho
em três capítulos. O primeiro, intitulado “Memórias da ausência nas trajetórias dos
migrantes”, analisa o processo de constituição da região ocorrido com as migrações na
fronteira Oeste do Paraná. Através das narrativas, observei que trabalhadores de diferentes
regiões se fizeram presentes, apresentando-me outro espo de movimentação social ao qual
estava inserido. Se, por um lado, temos os migrantes sulistas que chegaram numa forma de
ocupação planejada, por outro, há os migrantes que vieram à região em busca de outras
possibilidades, inclusive de trabalho. As trajetórias com as quais trabalhei contemplam uma
realidade diversa daquela que se propagou através de parte da literatura dita oficial, ou
20
hegemônica. Na análise das narrativas soaram fortes as memórias do ausente. Com o sentido
de perda, os entrevistados relataram mudanças sociais e físicas ocorridas na região.
O segundo capítulo, intitulado “‘E ninguém, parece, sentiu saudade’: a presença do
‘outro’ nas plantações de hortelã”, é dedicado a pensar os estranhamentos entre diferentes
sujeitos que marcaram sua presença neste espaço. Os migrantes chegados dos estados do Rio
Grande do Sul e Santa Catarina, que adquiriram terras, por vezes auferem uma imagem de
certa inferioridade aos trabalhadores vindos de outras regiões. As diferenças socioculturais
parecem incomodar estes migrantes, pois com eloquência narraram estas diferenças, enquanto
que para os chamados de nortistas o estranhamento se constituiu na apreensão dos modos de
trabalho com a hortelã.
O terceiro capítulo, intitulado “As plantações de hortelã e as memórias da devastação
no Oeste do Paraná”, apresenta uma discussão das narrações em torno dos processos de
devastação da natureza. As dinâmicas de ocupação processualizadas na região extrapolaram o
uso dos recursos naturais. As narrativas procuraram imprimir uma consciência da ocupação
em que ocorreu a degradação de um espaço que os pprios narradores colaboraram para
modificá-lo. O estudo da região, de modo algum, apresenta suas dinâmicas definidas. Os
entrevistados, por vezes, sentem-se expropriados da paisagem desta região de fronteira e a
entendem relacionadas às plantações de hortelã de outrora.
21
CAPÍTULO I
MEMÓRIAS DA AUSÊNCIA NAS TRAJETÓRIAS DE MIGRANTES
Memórias
Debruço os olhos no horizonte
E nada a minha procura...
Levaram a mata
Em forma de castelos,
Os ipês floridos
Como rainhas de vestidos rodados.
Levaram a casa de paredes nuas
Cheias de nós, formando desenhos.
O arado, o carro de boi,
As rodas dos sonhos.
Ficaram apenas memórias
E espelhos de buscas sem fim.
Vãs procuras de mim.
(Gladis Elfi Mohr, Mercedes/PR, mimeo. Setembro de 2001)
Na apreensão das experiências constituídas no período hortelaneiro, as memórias
evocam a presença de sujeitos sociais que não mais estão presentes, pelo menos em sua
totalidade, mas daqueles que participaram do processo e, por força de circunstâncias diversas,
deixaram a região. Aqueles que permaneceram relembram o cotidiano vivido por vezes de
maneira difícil, dolorosa –, quando se tinha ainda na região tudo ou quase tudo por se fazer
para que a terra produzisse. Na derrubada da mata e na preparação do terreno, muito esforço e
energia humana foram remetidos pelos trabalhadores. As expectativas de encontrar trabalho
ou as condições de uma vida melhor fizeram com que a migração para o Oeste do Paraná se
tornasse uma constante, sobretudo a partir de meados da década de 1950.
Na escuta das trajetórias, o senhor Theobaldo Mohr, que chegou ao atual município de
Mercedes em 1956, proveniente de Taió, Santa Catarina, apresentou alguns aspectos da vinda
de sua família ao Paraná:
Olha, foi o seguinte, meu pai veio antes de nós se mudar pra cá. O meu pai
veio, então ele comprou duas chácaras e uma colônia, mas não sabia nem
onde é que ficavam. Era comprado, feito um contrato e dado um sinal,
não sei de quanto, e dmais tarde veio pra de novo. Daí já escolheu, e
foi duas chácaras mais aqui embaixo, já eram medidas daí. Aberto uma
estrada provisória assim e medido. E uma colônia foi aqui pro lado do
Belmonte [ao sul de Mercedes] naquela época. E essa colônia então, a
chácara foi agora vendido tempos atrás pra outros. Senão era, eles [os pais]
moravam ali sempre. E assim muita gente comprou sem ver as terras e sem,
quer dizer, via a região, mas não era demarcada ainda.
28
28
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr, 72 anos, concedido em 02 de agosto de 2007.
22
O significado atribuído pelo senhor Theobaldo na interpretação da trajetória da
migração trocada por sua família o colocou sem um sentido fixo no processo vivido. A
memória ressaltou os primeiros tempos da ocupação e da chegada ao lugar. Recorreu ao
tempo de antes, anterior à mudança para o Paraná, para falar do seu estabelecimento no
espaço que é a atual Mercedes. A migração ocorria sem que houvesse uma regulamentação
legal das terras, como afirmou o senhor Theobaldo não era demarcada ainda e sem
conhecimento de sua localização, não sabia nem onde é que ficavam. Mas era uma migração
orientada que colocou em mobilidade inúmeras famílias que saíram do Rio Grande do Sul e
de Santa Catarina, as quais acreditavam que o lugar de destino, o Oeste do Paraná,
possibilitaria melhores condições de vida.
A “terra prometida”
29
ainda fazia parte de um espaço que precisou ser ocupado, o qual
se articulou nas narrativas numa visão positivada sobre sua realização. Esta visão ganhou
relevo na leitura do senhor Theobaldo em justificativa ao fato de seu pai conseguir adquirir as
chamadas “colônias” que, neste caso, considera-se uma área de terra titulada a partir de uma
empresa privada de colonizão. Analisando a narrativa acima, observa-se uma sensibilidade
de distinção entre a “colônia” e a chácara. Para muitos migrantes sulinos, colônia era uma
área de dez alqueires, que era o modelo de colonização proposto pelas empresas também no
Sul. Já ao referir-se à ccara, o narrador procurou mensurar uma área menor, geralmente
localizada próxima à vila ou à cidade.
Na força subjetiva do relato, a então terra prometida pareceu ter se concretizado para a
família do senhor Theobaldo. Ele mesmo afirmou que seus pais moravam ali sempre”. A
terra desconhecida e, por vezes, prometida, foi a provedora da subsistência daqueles que
sempre ali viveram. Um lugar distante do local de saída, almejado e experimentado que
fundamenta nos signos de vivência e, no presente, das recordações instituídas no novo lugar.
Quando o pai do senhor Theobaldo migrou para a região e adquiriu terras da então
colonizadora Maripá, “não sabia onde é que ficavam”. A mata era densa e ainda não havia
sido explorada, tampouco as terras estavam demarcadas. Um “novo mundo” de expectativas
colocava-se à família do senhor Theobaldo. No momento da compra, como ressaltou no
relato, era “feito um contrato e dado um sinal. O “sinal” era uma parcela em dinheiro paga à
29
Tomo de empréstimo o termo utilizado por Regina Beatriz Guimarães Neto, a autora problematizou como a
terra fantástica da Amazônia” atraiu trabalhadores de várias regiões do ps, sobretudo da região Sul. Esse
deslocamento, muitas vezes, se projeta numa construção imaginária de uma terra prometida que alcançaria a
salvação. Este discurso ganhou foros nas mensagens propagandísticas das empresas privadas de colonizão,
quando muitos trabalhadores acreditaram no mito da ascensão socioeconômica. GUIMARÃES NETO, Regina
Beatriz. A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil contemporâneo. Cuia: UNICEN, 2002.
23
colonizadora antes mesmo de saber onde ficava a área adquirida. A compra de terras, “às
escuras”, não aconteceu somente com a família do senhor Theobaldo, como mesmo
compartilhou em sua narrativa: “e assim muita gente comprou sem ver as terras...”. Sem
conhecimento de como eram as terras na região, as famílias se colocaram pari passu numa
migração induzida, uma vez que este espaço era apresentado como próspero e com clima
favorável ao desenvolvimento das atividades agrícolas, de acordo com as propagandas das
companhias colonizadoras que atuavam no Sul.
30
As narrativas sobre a vinda das primeiras famílias de migrantes carregam o sentimento
de que elas vieram ocupar um espaço, aparentemente, desabitado. Um espaço que
“necessitava” ser explorado e modificado por eles pprios. As lembraas compartilhadas
pelo senhor Theobaldo me instigaram a saber os motivos de sua vinda. Assim ele se
expressou:
Olha, eu na época não tinha assim uma iniciativa própria. Eu mais vim
porque meus pais vieram pra cá, quando eu era novo ainda, sabe? E daí,
então a gente veio junto porque a propaganda era grande; vendedor de terra
das Companhias existiam por tudo, e assim foi levas de gente pra cá e foram
comprando as terras. E, de pouco em pouco ia se mudando pra cá. E assim
aconteceu com muita gente, não só com nós, com todos...
31
Ao compartilhar suas experiências do tempo da chegada ao Paraná, o senhor
Theobaldo articulou a vinda da família e a de outros migrantes à atuação das companhias
colonizadoras. Estas, segundo o relato, “existiam por tudo e, através do uso da propaganda,
vendiam terras na região. Notadamente, eram os representantes de empresas colonizadoras,
como a Maripá, que atuavam junto aos “colonos” do Sul com objetivos de vender e
“colonizar” as novas terras.
32
Movidos por perspectivas de ascensão socioeconômica, muitas
famílias deixaram o Rio Grande do Sul e Santa Catarina e rumaram ao Oeste do Paraná. No
centro da argumentação o senhor Theobaldo ressaltou que as famílias foram se mudando:
“pouco em pouco”. A migração não ocorreu de um dia para outro, ela foi e é caracterizada
por uma movimentação constante que desloca as famílias de acordo com a realidade social
que se molda. Para o entrevistado, o uso da “propaganda era grande” fazendo com que os
migrantes fossem, a grosso modo, convencidos a se colocarem em movimento na esperança
de ter melhores condições de vida no novo lugar, que ainda apresentava-se como
desconhecido.
30
Ver anexo 02, panfleto utilizado por corretores na venda de terras.
31
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
32
TARGANSKI, Sérgio. Rumo ao novo eldorado. Marechal Cândido Rondon, Editora Germânica, 2007, p. 25.
24
Similarmente a essa idéia do “desconhecido”, Regina B. Guimarães Neto também
retratou o processo de ocupação na Amazônia, sobretudo Mato Grosso e Rondônia, nas três
últimas décadas do século XX. A autora ainda caracterizou, através do que chamou de a “arte
de narrar”, a focalização dos primeiros moradores nos “novos lugares”. Estes proprietários,
arrendatários ou parceleiros chegaram naquela região vindos de várias partes do Brasil. Ao
mesmo tempo, chegaram os “despossuídos” de quaisquer bens, da terra e das ferramentas
estes especialmente do Nordeste. Por intermédio daquilo que, segundo ela, “guardam na
memória”, problematizou “as inúmeras histórias, as quais evocam a terra desconhecida”.
33
Nas chamadas redes da memória permaneceram os desafios de um mundo desconhecido, de
relações sociais, e também onde os mistérios da natureza, ainda tida como selvagem, estavam
por ser desvendados.
Dialogar com as memórias sobre as dinâmicas socioculturais que se processaram neste
espaço da fronteira,
34
os quais em inúmeros aspectos permanecem invisibilizados ou
desconhecidos, contrasta com memórias produzidas por empresas colonizadoras e/ou órgãos
oficiais, sobretudo quando a experiência de muitos permanece ainda silenciada. Estou falando
daqueles migrantes que vivem numa sociedade que os exclui e, ao nos debruçarmos para
ouvi-los, temos expectativas de compreender como eles se fazem sujeitos através da migração,
do trabalho e das relações de alteridade.
A constituição do espo desta pesquisa de fronteira do Oeste do Paraná também pode
ser compreendida a partir da observação da propaganda de jornais da época. O jornal Posição,
que circulou na região na década de 1970, em 1975 publicou uma matéria exclusiva sobre a
constituição de Marechal Cândido Rondon quando este comemorava 15 anos de emancipação
política. De acordo com esta matéria:
Colonos de origem alemã, provenientes de Santa Catarina e Rio Grande do
Sul, chegaram as terras férteis, planas e sem pedras, nos quais se plantando
tudo dava. É interessante notar que colônias alemãs (...) do sul, se
transferiram em parte para esta região, quase sem se misturar, delineando
perfeitamente colônia alemã em Mal. Cândido Rondon (...). A notícia da
Fundação de uma colônia alemã em terras vermelhas do Paraná do Oeste,
correu e vieram mais famílias a Marechal Cândido Rondon, que cresceu.
35
33
GUIMARÃES NETO, Regina B. “Personagens e memórias. Territórios de ocupação recente na Amazônia”.
In: CHALHOUB, Sidney, NEVES, Margarida de Souza, PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Histórias
em cousas miúdas. Capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006,
p. 08.
34
Ao falar de fronteira tomo por base o espaço deste estudo localizado no Extremo-Oeste do Paraná às margens
do rio Paraná, fronteira com a República do Paraguai. E também nas relações de alteridades instituídas pelos
diferentes sujeitos. Ver mapa 1.
35
Marechal Cândido Rondon, 1975 ano 15. Posição. Curitiba, out/nov de 1975, nº 6, p. 7. Arquivo particular
do Senhor Azelino Lange.
25
Nota-se uma exaltação à “origemdos migrantes, que fundaram uma colônia numa
região de terras férteis, planas e sem pedras”. O fato do solo ser propício a todos os tipos de
culturas agrícolas chama a atenção. Interessante perceber como a matéria jornalística
publicada em Curitiba ressalta a formação de um novo eldorado, em que se “plantando tudo
dava”. É um olhar de fora sobre Marechal Cândido Rondon que destaca e exalta o fato de as
pessoas se transferiram de um lugar para outro quase sem se misturar”. Isto é, pela matéria
jornalística procurou-se reproduzir a “colônia alemã”, da mesma forma que supostamente
haveria nos estados de origem dos migrantes.
De outro modo, o que se percebe é que se procurou reconstruir um espaço com
características idênticas ao lugar de saída de um grupo de migrantes. Na região estes
migrantes encontraram, segundo Sérgio Targanski, para além das dificuldades, as terras
vermelhas idênticas “às do Rio Grande do Sul e Santa Catarina”, e as madeiras de lei, um
clima que “também era igual, com chuvas regulares e inverno rigoroso, com frio e geadas”.
36
Como se percebe, as pessoas são destituídas de suas pertenças e “transplantadas” no Paraná.
Como as plantas de um canteiro o transferidas para um lugar onde podem continuar
desenvolvendo suas raízes. O ato de migrar não implica somente a ocupação de outro espaço.
Migrar significa construir e reconstruir outras relações no lugar de destino. É preciso construir
identificações com o jeito do novo lugar, o que pressupõe, de acordo com Jones Goettert: “a
des-identificação com o lugar deixado. Identificação e des-identificação entre, nos e dos
lugares, faz com que aquela ou aquele que migra transite sobre diferenças”.
37
A partir de e com as diferenças, o lugar foi sendo produzido e reproduzido. Com a
chegada de migrantes, aos poucos, o espaço a então considerado “sertão” ou pouco
habitado, passou por transformações
38
, num primeiro momento, relacionadas à paisagem
social do espaço. Na abordagem das questões suscitadas acima, Gilmar Arruda, em seu estudo
sobre a ocupação da região dos estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, através da
memória e da história oral problematizou a idéia de ocupação e de “progresso” existente nas
imagens da época. De acordo com o autor, tanto as cidades quanto os sertões podem ser
reconhecidos como “lugares de memória” na funcionalidade dos sentidos atribuídos as estes
36
TARGANSKI, Sérgio. Rumo ao novo Eldorado..., op. cit. p. 26.
37
GOETTERT, Jones Dari. O espaço e o vento: olhares da migração gaúcha para Mato Grosso de quem partiu e
de quem ficou. Mato Grosso do Sul: Editora da UFGD, 2008, pp. 42-43.
38
Tomo aqui de empréstimo as reflexões de Gilmar Arruda quando procurou problematizar este conceito. Para
este autor, “falar de ‘sertões’ significa, entre outras coisas, dialogar com os significados atribdos à natureza na
construção de identidades e memórias”. ARRUDA, Gilmar. Cidades e sertões: entre a história e a memória.
Bauru, SP: EDUSC, 2000, p. 18.
26
lugares. Cidades e sertões não o lugares determinados e específicos. Conforme Arruda, ao
dialogar com Pierre Nora, os lugares podem ser entendidos “como investimentos simbólicos
que, dependendo dos grupos sociais e períodos históricos mudam de significados”.
39
As imagens acerca deste espaço, neste campo de significação, são representadas pelas
lembranças de antigos moradores. A paisagem social que se desenhou no espaço em estudo
esrelacionada à idéia de um lugar que passou a ser ocupado por diferentes grupos étnicos.
Neste trabalho, procurei fazer com que suas memórias sejam parte integrante – principalmente
daqueles da atual Mercedes, que passou a ser o ponto de partida. Necessita-se destacar que o
atual município começou a constituir-se enquanto núcleo populacional em 1952, juntamente
com a vila de General Rondon (hoje o município de Marechal Cândido Rondon), ambas na
época pertencentes ao município de Toledo. Em 1960, Marechal Cândido Rondon teve sua
emancipação política e Mercedes passou a fazer parte desse município. Em 1962, a vila de
Mercedes tornou-se Distrito Administrativo e Judicrio de Marechal Cândido Rondon.
40
Esses dados possibilitam uma melhor compreensão do que estou problematizando, em
especial para se pensar sobre a hortelã.
Diante destas considerações, as transformações ocorridas no lugar, a partir da
participação de diferentes sujeitos, pareceram reatar as possibilidades de permanência dos
migrantes após chegar à região. Instigado a relatar sobre a população que encontrou ao chegar
em Mercedes, o senhor Theobaldo comentou:
Então tinham muitos desse pessoal que trabalhavam nessas áreas de medição
e as vilas, isso era aqui em Mercedes, era em Quatro Pontes, tudo tinha que
ser medido os lotes. E isso, a mata, a firma mandou mesmo, ela mesmo
pagou para derrubar o que era a vila, um patrimônio. Isso era mais ou menos
uns mil por mil metros quadrados. Isso a própria firma derrubava, deixava já
a mata derrubada e quem eram os que derrubavam eram tudo os paraguaios.
Os paraguaios eles derrubavam o mato, pagos pela companhia.
41
A recordão do senhor Theobaldo, de primeiro momento, lançou outro olhar na
participação de diferentes sujeitos sociais nesta paisagem que se constituía. Na tentativa de
apresentar quem eram os trabalhadores que aqui se encontravam, as trajetórias dissonantes
dos paraguaios aparecem associadas à paisagem social da região. O relato, num sentido
ufanista, ressaltou a necessidade que a colonizadora tinha de devastação: “a própria firma
derrubava, deixava a mata derrubada”. Cedendo certa credibilidade aos migrantes, a
39
ARRUDA, Gilmar. Cidades e sertões..., op. cit. p. 50.
40
SAATKAMP, Venilda. Desafios, lutas e conquistas: história de Marechal Cândido Rondon. Cascavel.
ASSOESTE, 1985.
41
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
27
companhia colonizadora foi quem pagou para derrubar”, principalmente os centros das
primeiras vilas, chamadas pelo senhor Theobaldo de “patrimônio. Ao mesmo tempo,
destaco que a terra valorizada naquele período era a que tinha a sua madeira explorada, com a
floresta destruída. Esta mesma terra, beneficiada, desmatada, estava pronta para ser utilizada
na produção agrícola. A agilidade da empresa na derrubada da mata atraíra mais compradores
de terras, pois estava auxiliando com a mão-de-obra para “desbravar” a região. Sobre esta
atividade exploratória, Ruy Wachowicz observou que houve o recrutamento de o-de-obra
paraguaia em alguma escala considerável:
Dos mensus paraguaios ainda muitos permaneciam na região, principalmente
nas margens do rio Paraná. Se preciso fosse, recrutar-se-iam os mesmos, no
próprio Paraguai. (...) Segundo o padre [Antonio] Patuí, os colonos não
agüentavam a dificuldade dos mosquitos. Os paraguaios agüentavam mais
facilmente. [Como diz Patuí] ‘Os paraguaios tinham pernas grossas, assim,
já inchadas’. Dessa forma, o trabalho mais pesado, mais difícil, de derrubada
da mata, e a construção da estrada entre Toledo e Porto Britânia, foram obras
dos ‘guaranis modernos’ paraguaios.
42
Conforme o autor apresenta, no processo de ocupação do Oeste do Paraná somente se
tem uma visão utilitária dos chamados paraguaios ou guaranis modernos. Recrutados para o
trabalho, estes foram considerados mais “fortes” que os colonos sulinos. Eles “aguentavam
os insetos, participando do processo de devastação da mata. É como se fosse uma espécie de
mão-de-obra sobressalente e por isso utilizada. De outro modo, cria-se uma imagem das
condições a que estavam postos os paraguaios. Faz-se a construção de uma suposta
identidade pela diferença, pois eles “tinham pernas grossas, assim, já inchadas”, resultado do
trabalho pesado praticado, na derrubada da mata e também na construção de estradas, como a
entre Toledo e Porto Britânia.
43
Trabalhadores preparados para atividades pesadas. Desse modo elaboraram-se
hierarquizações de pertencimento, conforme leitura de Venilda Saatkamp: “os trabalhadores
paraguaios pertencem a classe social mais baixa devido as suas constantes migrações”.
44
Numa forma de silenciar a participação destes trabalhadores paraguaios na região, Saatkamp
faz uma diferenciação de classe ao falar da população, o que de algum modo acabava
inferiorizando-os. A respeito destes trabalhadores, produziu-se certo estigma “como atrasados
42
WACHOWICZ, Ruy Christovam. Obrages, mensus e colonos: história do oeste-paranaense. Curitiba: Ed.
Vicentina, 1982, p. 168-169.
43
O Porto Britânia fica localizado no atual município de Pato Bragado, no Paraná.
44
SAATKAMP, Venilda. Desafios, lutas e conquistas..., op. cit. p. 85.
28
e incultos, que usavam ferramentas não-modernas”.
45
Enquanto a literatura somente constata a
presença de paraguaios como recrutados para o trabalho, nas narrativas a presença destes
trabalhadores aparece de forma contumaz. O senhor Azelino Lange, que migrou com sua
família em 1953, de Lagoa Vermelha, Rio Grande do Sul, para a região, compartilha outras
memórias sobre Marechal Cândido Rondon, narrando sobre a derrubada da mata que era feita
por:
Paraguaios que faziam empreita... Derrubavam mato, empreitavam. Ali dava
roubo e morte a rolé naquela turma de lá na época aí. Isso não tinha nada
para perder e vinham e qualquer bagunça e qualquer briga que dava para
eles, tanto fazia. Uma peixeira na cinta e... É paraguaiada ali, na época ali
era cheio, vinham empreitar porque serviço lá não tinha. Eles vinham pra cá
e fazia empreita, um meio de ganhar dinheiro...
46
No relato, observa-se uma comparação com os de , do Paraguai, com os de , do
Brasil, afirmando diferença que é constituída num campo de conflituosidade. O senhor
Azelino de algum modo estigmatizou os paraguaios que estavam na região. Estes foram
lembrados por atribuições pejorativas, diferenciando-os dos sulinos. A narrativa colocou
ainda a definição de uma imagem de superioridade em relação à paraguaiada”, quando a
“empreita” era uma forma dos mesmos ganharem dinheiro. Os paraguaios, por sua vez,
participaram da modificação da paisagem natural da região. Trabalharam a seu modo para dar
lugar ao chamado “progresso” e aos chamados pioneiros”. Por pioneirocompreende-se, a
partir da literatura sobre a região, os “desbravadores” ou primeiros ocupantes do espo. No
espaço que estou lidando, somente os migrantes sulinos que obtiveram destaque
socioeconômicoo tidos como pioneiros.
47
Aos demais, por vezes são lembrados como
portadores de valor humano inferior, como quando são lembrados na narrativa acima:
bagunceiros, ladrões, violentos, ou simplesmente esquecidos numa forma de ocultar as
memórias destes hoje ausentes.
Na problematização dos diferentes sujeitos sociais que participaram da constituão
deste espaço, percebo que não eram somente os descendentes de alemães que aqui se
encontravam. Tenho observado nas narrativas que era grande a presença de trabalhadores
oriundos do Paraguai, bem como se tem também a presença daqueles “nortistas”, sobre os
quais buscarei discutir no decorrer deste texto. Muitos destes encontravam-se na região sem
um sentido fixo, sem a propriedade da terra. Embora por vezes se procure ocultar a
45
GREGORY, Valdir. Os eurobrasileiros e o espaço colonial: migrões no oeste do Paraná (1940-70).
Cascavel: EDUNIOESTE, 2002, p. 160.
46
Relato do senhor Azelino Lange, 60 anos, concedido em 30 de março de 2008.
47
GREGORY, Valdir; VANDERLINDE, Tarcisio; MYSKIW, Marcos. Mercedes: uma história de encontros.
Marechal Cândido Rondon, Germânica, 2004.
29
participação daqueles provenientes de outras regiões, aqueles que vieram do Sul e que não
tiveram possibilidades de adquirir propriedade também não participam das memórias eleitas.
Pois muitos vieram a “procura assim de um trabalho, uma colocação”,
48
como asseverou o
senhor José Honorato Alves, procedente do estado de Santa Catarina.
A fala do senhor José apontou que nem todos os sulistas obtiveram êxito na compra de
terras. Por isso procurou uma “colocação em um espaço que, acreditou, tinha mais
possibilidades de melhorar suas condições de vida, pois o seu lugar de partida não supria as
necessidades socioeconômicas de sua família. Segundo a literatura, os trabalhadores “dos dois
Estados Sulinos” fariam a região desenvolver-se com êxito.
49
Mas, é preciso caracterizar que
isso somente foi possível a partir da presença de outros agentes que, valendo-se da força de
trabalho, colaboraram na transformação do espaço.
Nesse caminho de “desbravamento” e no desvendar das memórias, o espaço sofreu
modificações à medida que as famílias foram chegando. Como lembrou o senhor Theobaldo:
“não demorou muito tempo. Daí entrou aquela história daquela hortelã, da hortelã. Menta,
também falavam. Menta ou hortelã. E assim daí foram vários anos naquela luta de
hortelã”.
50
A hortelã, nas lembranças do entrevistado, tornou-se atividade agrícola logo nos
primeiros anos que os proprietários adquiriram as terras: “não demorou muito tempo”. A
referência ao tempo para o senhor Theobaldo está entremeado pelo ato de memoriar,
impregnado do tempo passado e presente. O relato mostrou ainda que o senhor Theobaldo se
colocou de fora do processo decorrido com as lavouras de hortelã: “aquela história daquela
hortelã”. Ele não se no processo, mas foi um período que experimentou de forma intensa,
pois foram rios anos naquela luta de hortelã”. As lavouras aparentemente apresentam-se
distantes na interpretação narrativa, mas aparecem como uma “luta” e não como uma dádiva.
E sobre esta o entrevistado marcou sua experiência colocando-se de fora da atividade que
durou alguns anos.
O senhor Theobaldo não cultivou hortelã, nem tampouco trabalhou nestas lavouras.
Todavia, a sua experiência enquanto morador do lugar constituiu-se concomitantemente ao
período hortelaneiro, a partir do qual narrou tais processos. Quando chegou com os pais a
Mercedes, foram morar numa propriedade que haviam adquirido da colonizadora. Fizeram a
derrubada da mata e plantaram milho para a criação de porcos. Segundo ele: “no início,
então, toda a atividade, assim, agrícola e econômica da região era a criação de porcos, num
48
Relato do senhor José Honorato Alves, 71 anos, concedido emde setembro de 2003.
49
SAATKAMP, Venilda. Desafios, lutas e conquistas..., op. cit. pp. 42-48.
50
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
30
sistema muito mais simples, meio rudimentar, não é igual como é hoje.
51
Outra dimensão
posta nas suas palavras, a criação de porcos como uma das atividades que os migrantes
passaram a desenvolver. Para o senhor Theobaldo, esta foi uma atividade “agrícola e
econômica” na região. Mas alertou, não é igual como é hoje”, a criação de porcos ocorria
“num sistema meio rudimentar”, contrapondo-se às técnicas de criação de porcos que estão
postas na atualidade.
A criação de porcos foi uma atividade econômica que se estendeu a uma parte da
região Oeste do Paraná. Por ocasião da comemoração do 15º aniversário de Marechal
Cândido Rondon, o jornal Posição destacou que: “de início a economia se baseou na
suinocultura e Rondon chegou a ser a capital sul americana da suinocultura. Apesar das
estradas ruins, o porco saía dali para São Paulo por via rodoviária”.
52
De início, criavam-se
porcos num sistema meio rudimentar”, como narrou o senhor Theobaldo. O sistema
“rudimentar” pode ser entendido como uma forma de justificação do entrevistado em relação
a uma produção “moderna” no presente, quando as técnicas de criação de porcos precisam
estar adequadas a um sistema mais amplo de qualidade e também de controle sanitário.
A criação de porcos é lembrada como uma das principais atividades desenvolvidas nas
décadas de 1960 e 1970 na região. Observo, assim, que a atividade com a hortelã não ocorreu
de forma homogênea, mas esteve intercalada com outras atividades. As tabelas a seguir, com
dados estatísticos organizados por Venilda Saatkamp, mostram a produção agrícola
comercializada em Marechal Cândido Rondon na década de 1970. A produção mais
considerável neste período era a soja.
Tabela 2 – Principais produtos agrícolas cultivados em Marechal Cândido Rondon em 1975 e 1976.
53
Culturas Área Plantada
Área
Mecanizada
Produção Total (T) Produção Vendida
Soja 70.000 95%
168.000
90%
Trigo 65.000 100%
27.000
100%
Milho 20.000 40%
96.000
70%
Arroz 500
1.750
10%
Hortelã 5.000
500
100%
Feijão 200
198
100%
Fonte: IBGE.
51
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
52
Marechal Cândido Rondon, 1975 ano 15. Posição. Curitiba..., op. cit.
53
Apud: SAATKAMP, Venilda. Desafios, lutas e conquistas..., op. cit. p. 121.
31
Tabela 3 – Principais produtos agrícolas cultivados em Marechal Cândido Rondon em 1977 e 1978.
54
Nº de Produtores Área Plantada (ha) Produção Total (T) Culturas
1977
1978
1977
1978
1977
1978
Soja 3.700 3.700
85.000
86.000
204.000
139.242
Trigo 3.500 3.300
75.000
75.000
112.500
78.190
Milho 1.650 2.960
10.000
8.000
40.000
18.000
Arroz 700
600
1.000
800
2.800
75
Hortelã 100 200
100
1.200 70
44
Feijão 180
180
100
100
80
60
Fonte: ACARPA.
Tabela 4 – Preços mínimos para a safra agrícola 1979/1980.
55
Produto Unidade Preço mínimo – safra79/80 Variação 79/80 – 78/79
Soja 60 kg CR$ 315,00 110.0
Milho 60 kg CR$ 185,40 71.7
Arroz 50 kg CR$ 320,00 75.8
Feijão 60 kg CR$ 612,00 65.8
Menta 1 kg CR$ 210,00 52.2
Algodão 15 kg CR$ 201,90 49.5
Fonte: Jornal Informativo Copagril.
No rol das atividades agrícolas praticadas na década de 1970, destacou-se também a
produção de hortelã. Mesmo o se apresentando como a mais significativa, estes indícios
ajudam a perceber uma significativa parcela de produtores atuando na atividade hortelaneira.
Em 1978, aproximadamente 200 produtores estavam praticando-a. Esta estatística possibilita,
também, concluir que o número de trabalhadores envolvidos com as lavouras de hortelã era
considerável, uma vez que todas as etapas da produção eram feitas de forma manual e cada
proprietário tinha várias famílias morando em suas terras, empregados em atividades com a
hortelã.
Na tabela 4 é interessante perceber a proporção de 1 kg de óleo de hortelã em relação
aos demais produtos. Quando a saca de 60 kg de soja alcançou o preço mínimo de CR$
315,00, 1 kg de óleo de hortelã na mesma safra, 1979/1980, chegou a alcançar o patamar de
54
SAATKAMP, Venilda. Desafios, lutas e conquistas..., op. cit. p. 123.
55
Preços mínimos para a safra agrícola 78/79. Informativo Copagril. Marechal Cândido Rondon, agosto de
1979, nº 18, p. 09. Acervo da unidade sede da Cooperativa Copagril, de Marechal Cândido Rondon.
32
CR$ 210,00. Através destes dados é possível perceber a valorização que as plantações de
hortelã tiveram na região. Por outro lado, ainda para perceber a importância da produção
hortelaneira, de acordo com o IPARDES, o preço do óleo da hortelã sofria constantes
oscilações, em função principalmente do comportamento do mercado internacional, e da
existência de especuladores. Em novembro de 1975, a Comissão de Financiamento da
Produção fixou em CR$ 82,50 o preço mínimo por quilo de óleo bruto de menta”.
56
Observa-se que o preço mínimo do óleo sofreu variações em virtude dos
atravessadores, que eram compradores que chegavam às propriedades, adquiriam o produto e
revendiam para as indústrias de beneficiamento por um preço mais elevado. Estas indústrias
de beneficiamento estavam instaladas em São Paulo como pode ser observado nos anexos 3 e
4. Nessa transição, o produtor acabava perdendo o valor de seu produto. Considerando o
preço do produto, no final da década de 1970, é possível presumir que a atividade hortelaneira
já estava num período de decadência e a pouca produção, então, assumindo um preço mais
elevado naquela safra.
Juntamente com estes dados estatísticos, que por si não me permitem dar
continuidade ao trabalho, o diálogo com as narrativas novamente se fez de fundamental
importância. Recorro, mais uma vez, às lembranças do senhor Theobaldo. Conforme narrou,
“já tinha um certo conhecimento da atividade como mecânico
57
e passou, então, a trabalhar
no ramo consertando motores. Como o seu trabalho foi progredindo e lhe eram destinados
muitos motores e equipamentos de alambiques de hortelã para o conserto, mudou-se para a
cidade. Com 72 anos no momento da entrevista, o senhor Theobaldo não se considerou
aposentado, pois continua trabalhando diariamente em sua oficina mecânica consertando
equipamentos agrícolas, juntamente com seus funcionários.
Interessante notar que o senhor Theobaldo não desenvolveu atividade nas lavouras,
como a maioria dos trabalhadores que vieram ao Paraná. Com conhecimento de mecânica,
como ele próprio diz, veio “morar dentro da cidade, pra continuar naquele ramo como a
gente conhecia uma boa parte”.
58
Um conhecimento que desenvolveu no campo, com o
conserto de equipamentos utilizados na agricultura e peças de alambiques. Foi no trabalho
como mecânico que passou a ter mais conhecimento sobre a atividade hortelaneira:
56
FUNDAÇÃO IPARDES Estudos para o desenvolvimento de atividades agrícolas e industriais integrados,
projetos especiais menta. Curitiba, 1977, p. 22. Dispovel em: www.ipardes.pr.gov.br. Acessado em
12/01/2009. Ver também anexo 03 e 04, nota fiscal de venda de óleo de hortelã.
57
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
58
Idem.
33
Quando eu já trabalhava aqui na cidade, que tinha oficina então aparecia
bastante... Algum objeto, alguma coisa que era proveniente de uma caldeira
ou de uma serpentina [equipamento usado no aquecimento da planta da
hortenos alambiques de destilação]. Tudo que precisava pra isso ali. Pra
conserto. Então, eu sei que a gente soldava aquelas caldeiras quando tava um
trinco [danificadas].
59
Nestas relações de trabalho que se moldaram, o oficio de mecânico fez o senhor
Theobaldo reconhecer-se e conhecer aquelas dinâmicas. O trabalho praticado em sua oficina é
marco na trama de suas lembranças. O entrevistado, numa dimensão resignificada, revelou o
campo social de sua atuão e observação das atividades com a hortelã. Numa forma de
reconstruir detalhadamente e, com voz cansada, ele expressou sua força narrativa
demonstrando como era feita a destilação da erva para a extração do óleo nos alambiques:
Então aquela caldeira era com a água e fogo. Lenha tinha sobrando. Então
dava aquela pressão de vapor. Daí pra carregar [encher a pipa do alambique]
era levado, enchido uma tina grande de material, assim de folha, quer dizer
de ferro. Folha grossa, chapa grossa. Daí, então, quando estava bem
carregado e socado aquele material ali dentro, daí se fechava em cima bem
fechado e ligava o cano do vapor, e daí abria a caldeira. Daí aquele vapor é
que cozinhava aquele produto e levava o óleo pra fora, pra baixo. Olha, ele
saía água. É que o vapor dentro com o tempo vira em água. Com aquele
calor aquele óleo sai e com a água ele desce, e daí quando desce tem uma
coisa que pega, uma lata, qualquer coisa põem debaixo. Mais era um
recipiente de vidro. Daí você via bem a separação do óleo e a água porque
era diferente. O óleo ia pro fundo e a água ia pra cima. Então, assim, e
muitos óleos, a maioria do óleo vai por cima e esse ia para o fundo. Um óleo
pesado. E daí quando eles tinham um certo prazo que ele ficava fervendo,
fica lambicando, eles falavam fica lambicando, daí quando viam que [não]
saia mais nenhum óleo, água, isso eles tinham que saber, então
desligavam a... Aquela caldeira. Fechavam a caldeira e daí tiravam o tamo
de cima e dpor um trilho, tipo um trilho de trem, mais ou menos, aquele,
aquela uma, tina eles chamavam, ele corria em cima de rodas e lá diante
tinha um guincho, ele puxava aquele negócio pra cima, aquela tina, que era
cônica, puxava pra cima, daí aquela massa daquela rama de hortelã ficava ali
e sempre colocava num jeito que ela caía tipo um barranco, um pequeno
precipício que derrubava pra baixo. Depois largavam fogo [queimava-se a
massa que sobrava] pra não acumular demais. Porque isso, quando é
lambicado, assim isso pouco tempo que estava lá fora já pegava, podia
colocar fogo queimava. Que ficava seco de tanto calor dentro [na tina
de destilação]. Daí eles guardavam aquele óleo e o comprador comprava
qualquer quantidade, se um tinha mais ou menos e... Era interessante.
60
Ao reconstituir a atividade praticada por outros trabalhadores a lembrança do senhor
Theobaldo tornou-se palavra “pensada, praticada, escrita”. Palavras que podem ser entendidas
59
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
60
Idem.
34
enquanto um “exercício de liberdade” e uma arma na luta “contra o esquecimento”.
61
Água e
fogo, dois elementos opostos que fazem parte de uma memória que se tornou palavra falada,
gravada, transcrita. No diálogo com e sobre os modos de processamento da hortelã, o senhor
Theobaldo expressou significados da sua experiência enquanto mecânico no conserto de
alambiques. As partes que compunham toda a estrutura de destilação foram lembradas: a
caldeira, a pipa, a tina, e demais peças foram recordadas com certa eloqüência. Surpreendeu a
forma como relatou o processo de destilação da planta da hortelã para obtenção do óleo. A
riqueza de detalhes submergidos pela força subjetiva da memória demonstra os sentidos
compartilhados que marcam sua vida. Uma experiência adquirida com os trabalhadores
hortelaneiros e não propriamente como um trabalhador das lavouras de hortelã. A “história
daquela hortelã” foi parte significante na sua vivência, pois redesenha a sua “iniciativa
própria”, que o levou a trabalhar como mecânico colocando-o em contato direto com outras
trajetórias e experiências.
No campo das significações relatadas a planta da hortelã era submetida a
procedimentos técnicos para a extração do óleo. Conforme também pontuaram Samuel dos
Santos e Vicente de Oliveira:
A erva cortada é depois de murcha submetida à destilação a vapor, processo
adotado para extração do óleo essencial nela existente. Esta operação é, na
prática, executada pelo próprio agricultor por meio de alambique, obtendo-se
o óleo bruto, produto final da fase agrícola.
62
Na operacionalização dos procedimentos para chegar ao produto final que é o óleo, a
atividade com a hortelã necessita também de conhecimentos. Pelos narrar os trabalhadores
compartilham suas experiências na atividade. O senhor José Honorato Alves por força das
circunstâncias em que vivia, também se fez migrante e trabalhador hortelaneiro. Em 1969,
migrou com esposa e filhos de Imaruí, Santa Catarina, a atual Mercedes. As condições
materiais postas no lugar em que vivia com a família despertaram no senhor José a vontade de
recomeçar a vida em outro lugar. Tais condições matizavam uma impossível ascensão
socioeconômica: “as terras eram poucas e não muito boas, tinha muito morro e a família era
grande”.
63
Impulsionado pelo desejo de migrar, uma vez que um de seus irmãos havia se
lançado ao Paraná, não titubeou e seguiu o caminho rumo ao Oeste. Instalado na região, o
61
GOETTERT, Jones Dari. O espaço e o vento..., op. cit, p. 79.
62
Santos, Samuel Ribeiro dos; OLIVEIRA, Vicente Gonçalves de. “Espaçamento para Menta (Mentha
Arvensis)”. In: BRAGANTIA: Boletim Técnico do Instituto Agronômico do Estado de o Paulo. Vol. 20, nº
29, Campina, julho de 1961, p. 702.
63
Relato do senhor José Honorato Alves..., relato citado.
35
senhor José teve a primeira oferta de trabalho nas lavouras de hortelã. Ele foi um daqueles que
trabalhou vários anos nas plantações. Sobre o processo de destilação do óleo, relatou:
Era interessante. Nós colocávamos a erva dentro de um apreparo que
chamava-se pipa. E dali abaixo de vapor, eno saía o óleo misturado com o
suor do calor e passava por uma tal serpentina e, ali o óleo então saía
embaixo do preparo em canos e assim o óleo frio, que separado da
água. Uma pipada, assim, quando era época boa, mesmo na época do hortelã
quando tava maduro, bem florado, ele dava uma base de quinze, dezessete
kg assim por pipada. Demorava numa base, uma pipada assim, umas duas
horas escorrendo até quando a gente conseguia tirar tudo.
64
O relato demonstra o ofício vivido pelo senhor José. Na apreensão da atividade, tanto
o senhor Jo como o senhor Theobaldo denotam que “era interessante” o processo de
destilação. Eles mesmos, por vezes, se surpreenderam com os procedimentos técnicos para a
obtenção do óleo. Água e fogo, água e óleo, o elementos presentes nestas articulações e nos
detalhes da execução do trabalho nos alambiques. O mesmo ainda parece vivo ao ser relatado
no momento da entrevista. Em outras palavras, é possível perceber o frescor de uma ação de
ontem que, há poucos momentos, foi desenvolvida na lembrança.
Mesmo com idade avançada, o senhor Theobaldo lembrou-se do início e do final em
que foram plantadas as lavouras de hortelã na região: “isso começou por [19] sessenta e
oito, e foi forte até [19] setenta e cinco, [19] setenta e seis. Daí começou a fraquejar mais, foi
baixando em virtude da mecanização da lavoura, da lavoura mecanizada.
65
Nota-se que a
memória do entrevistado situou-se na temporalidade histórica das modificações ocorridas no
campo. O desdobramento representativo de sua lembrança atuou no sentido de apontar
elementos responsáveis pelo término das lavouras de hortelã, como a utilização de máquinas
agrícolas e a prática de outros cultivares como a soja, o milho e o trigo. Segundo Sérgio
Targanski, no início da década de 1970 foram surgindo inovações no manuseio da terra,
como o surgimento de tratores e máquinas para fazer as colheitas das culturas de trigo, soja e
milho”.
66
Desse modo, as lavouras, que até então eram preparadas de forma manual, foram
incorporadas a um sistema mecanizado de produção, pelo menos algumas delas.
As narrativas demarcam uma temporalidade histórica vivida pelos trabalhadores e a
mecanização da lavoura” é posta como uma representação negativa, que modificou o
processo de produção, levando, inclusive, à extinção das lavouras de hortelã. Por outro lado, o
64
Relato do senhor José Honorato Alves..., relato citado.
65
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
66
TARGANSKI, Sérgio. Rumo ao novo eldorado..., op. cit. p. 29.
36
plantio da soja e mesmo do trigo surgiram como atividades que poderiam ser produzidas de
forma mecanizada, em larga escala de produção. Segundo o senhor Theobaldo:
Começou a entrar os primeiros tratores e aquela terra que era mais fraca,
por causa do hortelã, não tinha como renovar, porque era tudo terra bruta.
Então começou a entrar muitos tratores esteira e foram derrubando matas e
roças antigas, limpando tudo pra mecanização, pra soja e trigo,
principalmente.
67
Pela prática da atuação dos sujeitos no espaço o narrador reelabora uma realidade
determinada pelas ações do passado, resignificadas pelo lembrar. Aquele espaço que parecia
ainda ser novo necessitou ser atualizado. As “roças antigas” foram devastadas para dar lugar
a outros tipos de cultivo agrícola. Os sujeitos fazem parte do processo de transformação destas
atividades agrícolas. Eles experimentaram as situações cotidianas e pelo relato expressam um
horizonte interpretativo inscritos nas lembranças. O campo, que até meados da década de
1970 poderia ser compreendido simbolicamente como “sertão”, passa por modificações desde
a entrada dos primeiros “tratores esteira”. Este campo que passou as ser modificado numa
velocidade mais acentuada pelo processo da mecanizão. Campo este no qual as relações de
trabalho sofreram mudanças, principalmente, porque a força humana passou paulatinamente a
ser substituída por máquinas. Modificaram-se, deste modo, as relações sociais, econômicas e,
ao mesmo tempo, o meio ambiente. A terra passou a ser explorada de outra forma: o manual
foi substituído pelo mecânico, pois para o senhor Theobaldo: “não tinha como renovar”.
Os relatos atribuem à “mecanização agrícolae à entrada das máquinas no campo
como sendo elas as causas da substituição das antigas formas de trabalho. Demarcando um
chão tenso de exclusão, o senhor Benedito Lopes Gonçalves narrou: “isso começou a
destocar. E aí começou maquinário a trabalhar, foi acabando [as lavouras de hortelã].
Começou do hortelã e depois o maquinário entrou, aí foi acabando pra nós. Pra quem era o
mais fraco tinha que sair, trabalhá aonde? Não tem condições mais”.
68
Conforme o relato, o fim da atividade hortelaneira excluiu os trabalhadores pobres e
despossuídos da terra e das quinas. As lavouras foram tomadas por máquinas e os
trabalhadores, especialmente não proprietários, ficaram sem condições de existência social
naquelas dinâmicas: foi acabando pra s. Com conotação de perda, a fala do senhor
Benedito, conhecido também como seu Dito, nome que usarei no decorrer do texto,
sentenciou o fim do trabalho nas lavouras de hortelã. Ele configura sua condição existencial
frente às mudanças que nesta realidade se moldavam. Aquele trabalhador com menos
67
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
68
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves, 57 anos, concedido em 26 de abril de 2008.
37
condições, sendo destituído do espaço em que realizava atividades para a sua sobrevivência,
não tinha mais como permanecer ali: “trabalhar aonde?”.
Um silêncio se fez sentir. Uma pergunta feita pelo narrador ao seu passado que ele
próprio parece não ter conseguido responder. A procura por uma resposta no horizonte
interpretativo de suas lembranças, sem muito esperar, o fez pronunciar: “não tem mais
condições”. As mudanças nas relações de trabalho e de produção agrícola parecem desnorteá-
lo. Era preciso se “adequar” a outras atividades, em que somente o trabalho manual não era
mais possível, pois “começou maquinário a trabalhar”.
Os elementos de enfrentamento e outras resistências frente às mudanças ocorridas
naquelas relações estão muito presentes nas narrativas. As suas dinâmicas estão matizadas
com uma dimensão temporal muito forte nas trajetórias, como expressou o senhor Francisco
Ferreira da Silva:
A desvantagem que o agricultor ele deu para outras pessoas. Ele [o
proprietário de terras] tomou das pessoas [dos arrendatários], que o hortelã
ele não ia fazer. Por que ele não gosta de serviço braçal. Ele tomou por conta
disso. Mas, o hortelã ainda dá até hoje. Você quer ver roçar um mato e
plantar hortelã, que você vê. não tem até hoje por causa do agricultor.
Ele queria plantar o soja, pra fazer com o maquinário. O hortelã, a única
coisa que pode entrar no meio do hortelã é você cortando ele é... Entrar e
puxa a hortelã cortada pra lambicar. Que não tem jeito de entrar com
maquinário ali no meio o. O problema é esse. Por isso que não tem essa
planta aqui mais.
69
A mudança do sistema produtivo parece abarcar uma trama inaceitável para muitos
trabalhadores, sobretudo os não-proprietários. As atividades laborais na agricultura, que
passou do braçal para o uso de máquinas, surgem de maneira constante nas lembranças destes
trabalhadores. O proprietário de terras, para o senhor Francisco, “não gosta de serviço
braçal. Numa forma de marcar a diferença o senhor Francisco coloca o proprietário como
“elee, o trabalhador da hortelã como “nós”. A mecanização, deste modo, alterou as relações
socioeconômicas destituindo muitos dos trabalhadores não-proprietários do meio em que
viviam. De acordo com o senhor Francisco, foi uma forma utilizada pelos proprietários para
negar o arrendamento de terras aos hortelaneiros. Ele “tomou das pessoas, pois ele queria
plantar o soja”.
As relações sociais, como podem ser observadas, foram tecidas numa forma de
enfrentamento entre proprietários e não-proprietários. Uma versão carregada de sentidos
próprios se produziu na fala do senhor Francisco. Segundo ele, a monocultura da soja e o uso
de maquinários fizeram as lavouras de hortedesaparecer: “por isso que não tem essa planta
69
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva, 67 anos, concedido em 06 de abril de 2008.
38
aqui mais”. A força narrativa do senhor Francisco atuou no sentido de denunciar a pressão
exercia sobre a condição existencial de muitos trabalhadores que são excluídos deste mundo
do trabalho.
O processo decorrido com a mecanização do campo, de fato, destituiu muitos
trabalhadores das possibilidades de permanecer em atividades na terra. Uma vez que, com as
lavouras de hortelã, todas as atividades eram desempenhadas de forma braçal. Conforme
relatou o senhor Francisco: “o hortelã, a única coisa que pode entrar no meio do hortelã é
você cortando ele”. A narrativa chamou a atenção para um modelo de produção que se tinha,
na qual os trabalhadores se viam como elementos quase indispensáveis, pois estes moviam as
lavouras de hortelã. Eram eles os responsáveis por todas as etapas da produção. Com os
maquinários, o contato direto com a terra deixou de ser feito com as mãos, sendo os
trabalhadores destituídos da atividade que tinha como um ofício, permeado de saber e
conhecimento. Assim, parece decorrer uma disputa tensa quando o narrador procurou se
inserir de algum modo noutras relações de trabalho.
As formas de trabalhar a terra inserem-se, sobremaneira, em disputas forjadas nas
relações cotidianas. Isa Marta Batisti também observou, em seu estudo sobre Bela Vista
D’oeste, que: “o cultivo da hortelã ocorria em áreas desmatadas, no meio de troncos e raízes,
com o auxílio apenas da tração animal e do trabalho familiar”.
70
Ao mesmo tempo em que as
máquinas auxiliavam na produção em escala mais elevada, elas surgem como um “problema”
para os trabalhadores. As máquinas teriam acelerado as desigualdades socioeconômicas e
privado os trabalhadores braçais daquele modo de produção agrícola a que estavam
vinculados.
Outras fontes também auxiliam na compreensão do processo decorrido com as
lavouras de hortelã na região. No jornal Informativo Copagril,
71
13, de 1977, foi possível
perceber uma abordagem sobre a situação da “cultura da menta” naquele período:
Apesar do país ser um tradicional exportador de Mentol e Óleo
Desmentolado nota-se que a cultura diminuiu ano após ano, restando como
principal produtor o Estado do Paraná. Essa diminuão deve-se ao fato de
que a variedade plantada nessa rego já apresentar uma alta susceptibilidade
ao ataque de doenças, pela baixa tecnologia utilizada e também em função
da diminuição das florestas naturais. O que faz com que o agricultor
70
BATISTI, Isa Marta. A modernização da agricultura e a decadência de Bela Vista D’oeste Guaíra
1960-2000. Marechal Cândido Rondon, 2005. Trabalho acadêmico (TCC) – Geografia, UNIOESTE, p. 27.
71
A Copagril é uma Cooperativa agrícola fundada em 09 de agosto de 1970 e suas atividades iniciaram-se em 1º
de setembro do mesmo ano, num prédio alugado na Rua Dom João VI, em Marechal Cândido Rondon. A
cooperativa recebeu seus primeiros produtos num armazém inflável. Informações dispoveis em:
www.paginarural.com.br, acessado em 09/02/2009. O jornal Informativo Copagril impresso passou a circular,
principalmente entre seus associados, em março de 1976.
39
abandone a cultura, migrando ou emigrando para outras regiões e países, ou
ainda, substituindo-a por outras culturas cujos preços oscilam bem menos,
tem uma boa infraestrutura de comercialização e também uma assistência
técnica mais efetiva.
72
Através desta fonte percebe-se que a produção da hortelã se extinguiu pelas doenças e
pela falta de florestas naturais. Por outro lado, há o silenciamento sobre o processo de
mecanização suscitado pelos relatos o qual teria contribuído sobremaneira para a extinção
desta atividade. Mas, a fertilidade do solo também tornou-se um referencial para se ter uma
boa produção de hortelã, como afirmou o senhor Francisco: “você quer ver roçar um mato
e plantar hortelã. A falta de terras recém desmatadas pode ser colocada como um empecilho
para a produção. Por sua vez, o informativo ainda ressalta que se tinha uma oscilação dos
preços, fazendo com que outras “culturas” fossem produzidas. O proprietário que permaneceu
na região deu continuidade ao trabalho agrícola cultivando outros produtos, enquanto o
trabalhador o-proprietário, que não conseguiu exercer outra atividade, buscou inserir-se no
meio urbano ou migrou para outras regiões na tentativa de continuar trabalhando na terra.
As itinerâncias de trabalhadores também foram constantes neste processo, apontando
para dimensões muitas vezes desconhecidas.
73
Assim como Robson Laverdi em seu estudo,
também encontrei durante a minha pesquisa trabalhadores provenientes de lugares diferentes,
os quais se inscrevem na história do Oeste do Para.
A pesquisa de campo, especialmente num trabalho como este, proporciona muitos
encontros, ou melhor, relações sociais vividas no processo da pesquisa. Num destes, pude
conversar com o senhor Francisco Ferreira da Silva, 67 anos, com o qual dialoguei antes.
Sua vinda para o Paraná o foi para comprar terras, como ocorreu com a família do senhor
Theobaldo. O senhor Francisco veio ao Paraná em busca de trabalho. Nascido em Governador
Valadares, Minas Gerais, chegou ao Oeste em 1965 para “fazer serviço em geral. Eu não
sabia nem o quê?”.
74
Sem ter conhecimento em que iria trabalhar no Paraná, o senhor
Francisco migrou. Ele se colocou numa situação de lida com o desconhecido e a sua fala
permitiu compreender o processo de passagem de um lugar para outro, pois foi ele próprio
quem resignificou sua trajetória.
72
MATTER, Vilmar. Situação atual da cultura da menta. Informativo Copagril. Marechal Cândido Rondon,
outubro de 1977, nº 13, p. 08. Acervo do Centro de Pesquisa da Prefeitura de Marechal Cândido Rondon.
73
LAVERDI, Robson. Tempos diversos, vidas entrelaçadas: trajetórias itinerantes de trabalhadores no
extremo-oeste do Paraná. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2005. Laverdi oportunizou a leitura, pela oralidade, de
um processo social de exclusão vivido por trabalhadores itinerantes vistos como “outros” na cidade de Marechal
Cândido Rondon. De forma crítica, os relatos orais são apresentados a contrapelo” da história oficial,
mostrando que os trabalhadores podem ser protagonistas de suas próprias trajetórias.
74
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
40
Os migrantes se colocaram/colocam em movimento com expectativas de melhorarem
sua situação socioeconômica. Com iniciativa própria ou sem um sentido fixo, a migração não
se apresentou como um lugar para os trabalhadores fixarem-se, mas como um campo de
possibilidades. Isso não ocorreu somente com pessoas vindas dos estados do Sul do Brasil,
mas também de outras regiões, como o senhor Francisco. Mesmo sem saber no que iria
trabalhar:
Tanto faz! Eu vim pra topar, a não ser fazer desordem. Serviço de roça, fazer
qualquer coisa. Então eu vim pra e topei esse negócio de plantação de
hortelã, então enfrentei. Então, mas eu vim pra cá pra fazer qualquer serviço
compreendeu? Eu entrei aqui e já entrei nessa dureza. Num sabia nem o q
que era derrubada e roçada de mato, entrei nessa dureza. cheguei e já
fui derrubar mato. Derrubemos, plantemos hortelã. Fizemos muito dinheiro.
Mas tem uma coisa: a desvantagem que era tudo terra dos outros, terra dos
outros. Mais que era muito melhor que hoje, era.
75
A riqueza de detalhes do relato do senhor Francisco me comoveu. Com seu modo de
falar e o jeito simples de ser, homem da roça que por força das circunstâncias necessitou viver
na cidade, recordou sua migração em que a intenção era de “apenas” trabalhar. Resignificando
sua itinencia, questionou: “trabalhar em quê?” Sem alternativas logo respondeu: tanto
faz”. A rememoração de um fazer-se trabalhador no lugar de destino, como recordou, pareceu
ter se apresentado de forma muito dolorosa quando chegou e enfrentou a realidade que se
moldava. Ele não queria “desordem”, apenas queria “serviço de roça, fazer qualquer coisa”.
O estigma da desordem que parece outrora ter vivido foi tecido com ressentimento. Ele
deixou bem claro que não era esse seu objetivo ao vir para o Paraná. Suas experiências,
portanto, foram tecidas nas relações sociais. Ao que tudo indica, o senhor Francisco
necessitou lidar com algumas diferenças, como o fazer-se migrante do jeito do lugar, ao
buscar trabalho neste novo espaço. Por outro lado, nota-se que a possibilidade de trabalho não
estava fixa, mas instituída na itinerância, como ocorrera com muitos outros trabalhadores na
região neste período.
76
As lavouras de horte possibilitaram o necessário para a sobrevivência do senhor
Francisco e da família. Ele chegou e “topou” fazer o trabalho que lhe ofertaram. Esse ato o
colocou em consonância com o novo lugar. Ele precisou atar outras relações no novo espaço
e, a partir do trabalho, se fez sujeito no lugar de destino. Então trabalhou na derrubada da
mata e na plantação de hortelã.
75
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
76
LAVERDI, Robson. Tempos diversos, vidas entrelaçadas..., op. cit.
41
Lidar com o plantio de hortelã não foi somente fazer com que as lavouras se
desenvolvessem ou mesmo trabalhar no processo de destilação. Esta atividade foi muito mais
do que isso. Como recordou o senhor Francisco: “já entrei nessa dureza, cheguei e fui
derrubar mato. A mão-de-obra utilizada nas lavouras de hortelã também foi aproveitada”
para a devastação das matas. Era nas áreas de derrubadas de matas recentes que se plantavam
as lavouras de hortelã e isso o senhor Francisco precisou fazer também: derrubemos,
plantemos hortelã”. E foi um enfrentamento: “então enfrentei”. O desconhecido se fez
conhecido para o narrador. Ele necessitou lidar com o que o sabia, aprendeu, trabalhou e
sobreviveu. Narrou assim este seu conhecimento que se fez palavra transcrita, escrita, fez-se
como memória.
Na constituição daquelas relações de trabalho relatadas é imprescindível notar que
não foram somente os paraguaios, como percebemos anteriormente, que auxiliaram na
derrubada da mata. Os brasileiros migrantes não proprietários, os meeiros e agregados, foram
utilizados enquanto mão-de-obra na lida pesada da derrubada das florestas e limpeza da área
que serviria para as novas lavouras. Como narrou o senhor Francisco, que sempre trabalhou
na terra dos outros”, a derrubada constituiu-se numa dureza. O não ser proprietário também
pode ser compreendido como uma dureza ou um enfrentamento. Pois foi ele quem fez o mais
pesado, o “sujo”. O trabalho “duro” da derrubada emergiu ressentido em suas recordações. E
foi na posição de arrendatário que sempre trabalhou naquelas terras. Ele pareceu mensurar um
sonho não realizado, de trabalhar em terra ppria, quando sempre trabalhou para os
“outros”.
Interessante ressaltar no diálogo com as lembranças do senhor Francisco, que sua
força narrativa atuou no sentido de dar crédito a este pesquisador: vo mesmo valor,
mais outras pessoas não dão”. Uma proximidade se fez sentir entre narrador e pesquisador.
Aqui, gostaria de mensurar que a “arte de ouvir” experiências como esta fez com que
estabelecesse este plano de relação social. A importância de ouvir as pessoas relatarem suas
vivências faz com que elas se sintam importantes. É uma retomada da ppria trajetória
exposta pelo narrador.
A narrativa do senhor Francisco dá indícios do tempo de antes e do agora. Passado-
presente-passado fazem parte de suas lembranças, possibilitando a compreensão de um
espaço-movimento de processos constantes de migração. Compartilho com Yara Aun Khoury
42
quando diz que: “o trabalho com as fontes orais é um encontro entre pessoas dispostas a
dialogar sobre questões que interessam a ambas, embora de maneiras diferentes.
77
O senhor Francisco pareceu buscar transpor diferenças que estavam postas ao retornar
com indagações a mim: compreendeu?” ou “você sabe, né, Gilson?. Com certa
dinamicidade, ele atribuiu a si próprio o conhecimento em expressar sua trajetória. Sobre as
formas de expressões do entrevistado, Alessandro Portelli ajudou-me nesta compreensão:
Na busca pela diferença, não podemos nos esquecer de que também
acalentamos um sonho de compartilhar, de participar, de comunicar-nos e de
dialogar. É isso que implica o caráter dialógico da História Oral, bem como
seu trabalho de campo: a fim de sermos totalmente diferentes, precisamos
ser verdadeiramente iguais e não conseguiremos ser verdadeiramente iguais
se não formos totalmente diferentes.
78
A tranquilidade da conversa fez com que houvesse uma cumplicidade dialógica entre
entrevistado e pesquisador. A diferença é transposta através do dlogo. Um diálogo que
aproxima, explica, ensina. O narrador é possuidor do conhecimento que passou a ser
compartilhado com o pesquisador. E é no ambiente da sua própria casa, e na iniciativa da
aproximação, que o relato transpôs, se é que houve, as linhas que nos separavam. Ser igual,
mas, com algo que ao mesmo tempo diferencia. São outras perspectivas relacionais de leituras
das experiências. Assim, “o trabalho de campo é, por necessidade, um experimento em
igualdade, baseado na diferença”.
79
Ao dialogar com trajetórias como a do senhor Francisco, Portelli alerta para a atenção
que deve ser despendida ao entrevistado. s não estamos falando com fontes, “mas com
pessoas”.
80
Estas nos recebem e compartilham experiências com alguém que busca ouví-las e
interpretá-las. Ressalto que o senhor Francisco eu conhecia, mas não a sua trajetória nas
lavouras de hortelã. O trabalho de campo, assim, se fez como um grande auxiliador na
pesquisa. Foi por intermédio dele que fui conhecendo as pessoas que compartilharam suas
histórias de vida para esta pesquisa.
Na interpretação das narrativas é que temos em mão um rico material que, analisado,
ajuda a compreender o processo histórico em questão, principalmente quando essas pessoas
possuem o sonho acalentado, como bem observou Portelli: “de compartilhar, de participar, de
77
KHOURY, Yara Aun. “O historiador, as fontes orais e a escrita da história”..., op. cit. p. 43.
78
PORTELLI, Alessandro. Tentando Aprender um Pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na Hisria Oral.
Projeto História, São Paulo, 15, 1997, p. 19.
79
Idem, ibidem.
80
Idem, p.25.
43
comunicar-nos e de dialogar”.
81
Os feixes de sentido atribuídos pelos migrantes sobre as
condições de trabalho os evidenciam relações situacionais de inconformidade. O primeiro
trabalho do senhor Francisco ao chegar ao Paraná foi em áreas de:
Puro arranha-gato [espécie de erva daninha em meio à mata], que você
roçava o dia inteiro e não caía uma árvore. Você limpava os pés do mato,
é das árvores. E derrubamos de machado, não era de motosserra, era de
machado. Agora depois que queimar você pega e desgalha aquilo tudo de
machado, isso tudo pedacinho assim e põem fogo.
82
Na demarcação e afirmação da atividade das lavouras de hortelã nas áreas recém-
desmatadas o senhor Francisco prosseguiu:
tudo limpinho, vo vai colocando as mudas. Vai furando [a terra] e
pondo as mudas [de hortelã]. Quer dizer, eu lutei foi muito nisso tudo. A
coivara, [área recém desmatada com leiras de lenha], aí nós cortava de
enxada e alfanje [espécie de foice], nós cortava aquele hortelã. Ele é um
serviço bom e é sofrido né? E nós lutemos muito com isso. Aqui na beira do
Guaçu [rio], ali na Rincão [nome da fazenda pertencente ao município de
Guaíra], só eu e esse finado Borges [cunhado], pai dessa Dalva [sobrinha],
nós rocemos e derrubemos 150 alqueires, tudo pra horte(...) É igual estou
te falando: então peguemos, rocemos, derrubemos, desgalhemos e
queimemos e plantemos hortelã. Mas o hortelã, se você tem uma terra boa,
ele fica de metro de altura, Gilson.
83
Além das lembranças sobre dificuldades na derrubada da mata, o senhor Francisco
relembrou o preparo do terreno para o plantio das mudas de hortelã. Quando o terreno estiver
“tudo limpinho você vai colocando as mudas. Vai furando e pondo as mudas”. Num diálogo
aberto com a realidade social que se moldava, a narrativa individual reflete as experiências de
trabalho demonstrando significados pessoais únicos, da dimensão do vivido, que passou a ser
compartilhado. Constrói a significação do trabalho da derrubada resignificando e demarcando
o campo de sua atuação.
Interessante destacar que a entrevista torna-se um espaço de valorização dos saberes
do entrevistado. Sobretudo quando ele procurou dar uma aula sobre as formas de trabalho na
agricultura, em especial no preparo do terreno para o plantio da hortelã. Relembrou passo-a-
passo, como era feita essa atividade. Ao mesmo tempo, este é um passado que ainda, de
algum modo, lhe incomoda: hortelã, ele é um serviço bom e é sofrido, né?”. Um trabalho
bom e sofrido em um passado interpelado por elementos opostos fazem parte das experiências
do senhor Francisco. De maneira nostálgica o bom está relacionado à abundância de terras
para trabalhar e também pode ser atribuída à fertilidade dessas terras, nas quais a hortelã
81
PORTELLI, Alessandro. Tentando Aprender um Pouquinho..., op. cit. p. 19.
82
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
83
Idem.
44
ficava “de metro de altura.”.
84
E, na certificação de que eu estava compreendendo sua
trajetória, afirmou: “é igual estou te falando”. Assim, procurei conhecer aspectos que fazem
parte da construção deste cotidiano. Como advertiu Portelli: “lançar novas luz[es] sobre
áreas inexploradas da vida diária das classes não hegemônicas”.
85
Ao problematizar trajetórias como a do senhor Francisco, procurei fazer com que
reluzissem outros personagens nas cenas da história do Oeste do Paraná, uma vez que, como o
próprio afirmou: nós lutemos muito com isso”. Essa “luta” ocorreu no sentido de permanecer
e sobreviver neste lugar que se apresentou como uma possibilidade. O lugar de destino após a
migração sempre se constitui numa luta”. Para o senhor Francisco a “luta” esteve relacionada
com a atividade hortelaneira, quando o trabalho pesado estava todo ou quase todo por ser
feito. Neste sentido, a hortelã envolveu muita gente, pois:
ali na [fazenda] Rincão, era cento e cinquenta peão plantando, cento e
cinquenta peão [trabalhadores]. Ali tinha casa é por tudo quanto é lado, cada
um tinha o seu trecho, Gilson. Cada um tinha o seu trecho. Dali de perto do
Dário [ao norte do município de Mercedes] até lá, você sabe ali onde é [que
fica] a Curva da Onça, ali indo pra Santa Rita?
Gilson: Sim.
Francisco: Pois é, dali lá tudo era roça de hortelã, tudo, tudo, tudo.
86
A narrativa multidimensionou sua experiência. Em suas lembranças, o senhor
Francisco compartimentou no espaço as suas relações de trabalho com as dos demais
trabalhadores: “cada um tinha o seu trecho”. Denota-se que o campo de cultivo era vasto na
fazenda Rino onde ele trabalhou e mais “cento e cinquenta peão. Cada trabalhador tinha o
seu espaço de atuação na fazenda. Um campo demarcado para a atividade na qual “cada um
tinha o seu trecho”, mas não eram proprietários, eram somente “peão”. O expressivo número
de trabalhadores envolvidos na atividade foi recordado: “cento e cinquenta peão”. Por sua
vez, novamente me envolveu em sua narrativa, “você sabe ali onde é...?”. Um
questionamento está posto ao memoriar aquele lugar. Nos embates das forças dinâmicas, cada
entrevistado tem uma versão sobre as experiências vividas. Yara Aun Khoury ajuda a
interpretar os problemas dessa relação. Segundo a autora: “(...) estamos sempre correndo o
84
Conforme o jornal Informativo Copagril, a hortelã é uma planta herbácea, semi-perene, podendo atingir até 80
cm de altura. Seu sistema radicular é formado por numerosos rizomas que se espalham pela camada superficial
do solo, emitindo raízes das quais brotam novas plantas. Informativo Copagril. Marechal Cândido Rondon, op.
cit.
85
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História. São Paulo, PUC/SP, 14,
1997, p. 31.
86
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
45
risco de nos deixar envolver por olhares nostálgicos sobre lugares e causas perdidas, fazendo
prevalecer uma certa imobilidade na reflexão.
87
As lembranças do senhor Francisco se colocaram em movimento, no caminho em
trânsito da reflexão e do seu plano interpretativo horizontal. Elas dialogam com os espaços
geográficos e com a população que a experimentou, tal como ele, o processo hortelaneiro.
Parece que, de modo intencional, situou a fazenda Rincão, localizada no município de Guaíra.
A “Curva da Onça”, próxima a Santa Rita d’Oeste, divisa dos municípios de Nova Santa Rosa
e Terra Roxa, enquanto ele próprio se situou, nessa dinâmica interpretativa, no atual
município de Mercedes. Os espaços destas memórias que encontrei na pesquisa de campo
podem ser observadas a seguir, no mapa 2.
As lembranças, neste sentido, não são estáticas. Elas ultrapassam as fronteiras
geográficas. Apresentam-se como memórias da vastidão do território com a população que ali
se fizera presente. Como lembrado na narrativa: “tudo era roça de hortelã, tudo, tudo, tudo.
Um movimento do rememorar faz parte dos significados expressos pelo relato. O horizonte
interpretativo vem carregado do movimento da realidade socioespacial vivida e de
pertencimento a um lugar onde tudo era hortelã.
Uma perspectiva hisrica das dimensões socioculturais vividas nas lavouras de
hortelã pode ser apreendida também nos relatos de outros hortelaneiros. A respeito desta
dimensão o senhor Geraldo Alves Gonçalves expressou:
Tinha bastante essa plantação de horte por aqui. Tudo aqui tinha
hortelanzal [faz gesto com as mãos mostrando as reges onde tinha
plantação], aqui para cima, aqui no Berkenbrock [Linha Sanga Mineira],
aqui no Zequinha Alves. Ali no Fraa, ali tudo era hortelanzal. Ali para
baixo onde mora aqueles Pivato [Linha Sanga Forquilha], ali para baixo tudo
era hortena época que tinha aqui. É que ali foi o começo. do Aurino,
que morreu, o falecido Aurino, que morava no Paraguai. Ali ele tinha um
boteco na época. Então ali para baixo descendo para o Mário [na Linha
Sanga Forquilha], ali tudo era hortelanzal, naquela época.
88
As lembranças do senhor Geraldo situaram-se dentro da temporalidade da existência
das lavouras de hortelã. Pelo relato ele traça um mapa em suas memórias a partir de lugares
conhecidos, vividos por ele e que o coincidem exatamente com os nomes “oficiais”. Como
pude perceber, na produção de suas lembranças sobre este período, a percepção de que tudo
ocorreu de modo intenso, envolvendo muitos trabalhadores. Com um gesto contumaz, no
momento da entrevista, sentados pesquisador e entrevistado em um banco debaixo de árvores
87
KHOURY, Yara Aun. “Muitas memórias, outras histórias: cultura e sujeito na história”..., op. cit. p. 136.
88
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves, 49 anos, concedido em 06 de abril de 2008.
46
em frente de sua casa, o senhor Geraldo procurou fazer com que eu me localizasse
geograficamente e tomasse a consciência da dimeno do cultivo da hortelã, para perceber o
quão amplo esse processo se constituiu: “tudo era hortelanzal naquela época”. Conforme
seus referenciais de relações, levou-me a transpor as barreiras do tempo e imaginar a
paisagem constituída com as suas lavouras, sobretudo quando estas eram desenvolvidas nas
áreas recém desmatadas.
Mapa 2 – Região Oeste do Paraná, em que observamos o desenvolvimento de lavouras de hortelã.
89
As narrativas, interpretativas e instigantes, me oportunizaram pensar que os homens
não são neutros no interior da região, como afirma Armand Frémond.
90
Eles o ágeis e
esta ação faz com que produzam uma lembrança/memória do ausente, “tudo era hortelanzal”.
O senhor Geraldo narrou um espaço que tinha a hortelã, mas o existe mais. Recordou do
boteco que tinha à época e que não está mais ali. Também se lembrou do conhecido que ali
vivia e que morreu”. O espaço dos homens assim pensado, lembrado, vivido, não é um
espaço delimitado e inconsciente. São eles, como busquei interpretar, que elaboram
89
Mapa da região Oeste do Paraná onde observamos, a partir de leituras, o desenvolvimento de atividades
hortelaneiras.
90
FMONT, Armand. A Região, Espaço Vivido. Coimbra, Livraria Almedina, 1980, p. 16.
47
significados sobre os lugares, criando e resignificando suas próprias histórias. A partir destas
lembranças, consciente ou inconscientemente, elaboram e reelaboram a sua existência social
neste espaço que busca hegemonizar o único.
As trajetórias me oportunizaram um “redescobrir” a região. Uma região humanizada
em que as lembranças emitiram signos e significados da pertença comum dos homens ao
lugar. Uma vista apreendida a partir de trajetórias em suas múltipas interrelações com o
espaço. Armand Frémont ajudou-me a pensar a partir destas relações sociais:
Ora o homem não é um objeto neutro no interior da rego, como muitas
vezes se poderia julgar pela leitura de certos estudos. Apreende
desigualmente o espaço que o rodeia, emite juízos sobre os lugares, é retido
ou atraído, consciente ou inconscientemente, engana-se ou enganam-no... Do
homem à região e da região ao homem (...). O ‘espaço vivido’, em toda sua
espessura e complexidade, aparece assim como revelador das realidades
regionais; estas têm certamente componentes administrativos, históricos,
ecogicos, econômicos, mas também, e mais profundamente psicogicos
(...). Redescobrir a região é pois procurar captá-la onde ela existe, vista pelos
homens.
91
Problematizar a região a partir das trajerias é uma maneira de redescobri-la.
Assim, os sujeitos que migraram fizeram com que ela se tornasse um espaço em movimento.
O “espaço vivido” pode ser compreendido em sua amplitude por intermédio das trajetórias
narradas, modeladas, projetadas, problematizadas. A região pode ser vista como os homens
vivem-na à sua maneira, assimilando-a à sua ppria organização com meios tecnicamente
limitados e bastante diferentes consoante [a]os grupos.
92
As experiências são, assim,
construídas com a chegada de migrantes de diferentes frentes de destino incerto. Com uma
maior parcela vinda do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e da ppria migração interna
dentro do Estado, como podemos ver na tabela a seguir:
Tabela 5 – População por Sexo e Estados de origem do município de Marechal Cândido Rondon – PR
– 1970.
93
ESTADOS HOMENS MULHERES TOTAL %
Pernambuco 28
25
53
0,12
Bahia 66
45
111
0,26
Minas Gerais 282
205
487
1,13
São Paulo 139
142
281
0,65
Paraná 6.576
6.220
12.796
29,60
Espírito Santo 44
46
90
0,21
Santa Catarina 4.787
4.429
9.216
21,32
Mato Grosso 22
14
36
0,08
91
FMONT, Armand. A Região, Espaço Vivido..., op. cit. p. 16 -17.
92
Idem, p. 173.
93
Apud: SAATKAMP, Venilda. Desafios, lutas e conquistas..., op. cit. p. 88.
48
Rio Grande do Sul 10.516
9.586
20.102
46,51
Outros 33
20
53
0,12
TOTAL 22.493
20.732
43.225
100%
Reveladores, os números apresentados por Venilda Saatkamp demonstram uma
confluência diversificada de migrantes que chegaram à região naquele período. A população
não chegou exclusivamente nos anos 1970, mas em anos anteriores quando se tinha a notável
migração de catarinenses e gaúchos. Ainda, conforme Saatkamp, em 1960 a população do
distrito de Mercedes era de 1.509 pessoas; já em 1981, os dados populacionais eram de 5.752
pessoas. Neste mesmo período, a população total do município de Marechal Cândido Rondon
era de 57.629.
94
Estes dados podem ser relacionados com os da região Oeste como um todo.
Segundo o IPARDES, “o Extremo-Oeste Paranaense em 1970 respondia por 13,6% da
população rural do Paraná, com cerca de 602.914 habitantes”.
95
As taxas de crescimento anual
da população do Paraná também podem ser observadas na tabela a seguir, comparadas à
população nacional.
Tabela 6 – Taxas de crescimento anual da população 1940-1970 (%).
96
1940-1950 1950-1960 1960-1970
Paraná 5,51 7,28 4,98
Brasil 2,39 2,99 2,89
T
Fonte: FIBGE.
É possível perceber que o aumento populacional no Paraná atingiu um crescimento
acelerado, principalmente, entre as décadas de 1950 e 1960. O Oeste do Paraná também, em
especial nas três primeiras décadas de sua ocupação, passou por um processo migratório
constante, o que culminou num crescimento populacional incomum, se comparado com outras
regiões do Paraná. De acordo com o IPARDES:
Entre os anos 1950/1970, a população total do Oeste paranaense passa de
pouco mais de 16.000 para mais de 760.000 habitantes, num crescimento
não verificado em nenhum outro espaço paranaense. Nos dez anos seguintes,
1970/1980, esse crescimento se desacelera e o espaço apresenta uma taxa de
crescimento populacional de pouco mais de 2% ao ano, o que, em termos
94
SAATKAMP, Venilda. Desafios, lutas e conquistas..., op. cit. p. 91.
95
IPARDES FUNDAÇÃO ÉDISON VIEIRA: Nova configurão espacial do Paraná. Curitiba, 1983, p. 12.
Disponível em www.ipardes.pr.gov.br. Acessado em 12/01/2009.
96
Apud: IPARDES FUNDAÇÃO ÉDISON VIEIRA. O Para: economia e sociedade. Curitiba, 1981, p. 72.
Disponível em www.ipardes.pr.gov.br. Acessado em 12/01/2009.
49
absolutos representa um incremento em termos de 200 mil novos
habitantes.
97
Ao que tudo indica, em consonância com as informações colhidas no trabalho de
campo e nas próprias narrativas, a busca por novos espaços de exploração de recursos naturais
e de trabalho assumiu a centralidade desse movimento migratório. Nos lugares, muitas vezes
distantes, colocam-se as expectativas de ascensão socioeconômica. Os sentidos da migração
podem ser percebidos nas trajetórias daqueles que vieram, os quais ouviram sobre o Oeste do
Paraná ou a fronteira e, imbuídos das expectativas daquilo que se propagava, colocaram-se
em mobilidade. Para outros, a transitoriedade
98
foi se ladrilhando e o Paraná apresentou-se
como uma “opção de melhorar de vida ou obtenção de melhores condições de sobrevivência
em relação aos que estavam postos no lugar de origem.
O senhor Geraldo Alves Gonçalves, que também colaborou com muitos elementos e
questões para esta pesquisa, compartilhando comigo sua trajetória, afirmou sua
transitoriedade. Nascido em Ipoté, Minas Gerais, Geraldo saiu da casa de sua mãe aos onze
anos de idade e veio em busca de trabalho. A respeito de sua vinda ao Paraná, numlego
procurou reconstruir sua trajetória:
Então foi assim: eu vim para São Paulo, cheguei em São Paulo, o meu irmão
já era casado. Meu irmão casou com treze anos, treze, catorze anos na época.
E d eu cheguei na casa dele, vosabe que os paulista o sempre um
pouco meio nojentos assim, ? Não é como aqui, porque aqui o pessoal não
tem luxo. Mais lá já tem luxo. São Paulo tem luxo. Esse pessoal que tem um
pouquinho de dinheiro tem luxo. me colocaram para vender picolé,
arrumou [o irmão] um serviço lá para vender picolé. Ta, eu fui vender
picolé, mas o que eu fazia no dia eu comia no dia mesmo. Daí o estava
dando, eu peguei e fui vender jornal, entregar jornal. Eu ganhava uns trocos
também e sobrava um pouquinho de dinheiro ainda. O caso é que lá não
tinha como, né? Ganhava por s. venceu um dia, o mês, eu peguei
falei para o meu irmão, eu escutei Marechal Cândido Rondon... Ah!
Curitiba, Paraná, daí peguei e falei para o meu irmão: eu vou embora. Aqui
não dá pra mim! Eu quero conhece o mundo mesmo. Eu quero andar. Ele
falou não, mas fica aqui que eu vou te ensinar de pedreiro, não sei o que tem,
que ele era pedreiro. Era não, é ainda pedreiro. Você fica por aqui que eu
vou te ensinar a você a trabalha assim e assim, de repente você pode ter sua
casinha ali, você mesmo pode construir, não sei o que tem. Daí eu disse não!
Eu quero ir embora porque quero conhecer o mundo.
99
97
FUNDAÇÃO IPARDES os vários Paranás Oeste paranaense: o espaço relevante, especificidades e
diversidade. Curitiba: IPARDES, 2008, p. 16. Dispovel em www.ipardes.pr.gov.br. Acessado em 12/01/2009.
98
GOETTERT, Jones Dari. O espaço e o vento..., op. cit. A transitoriedade migratória tornou-se um conceito
central na obra de Jones, a qual é trabalhada de forma criativa a partir das falas das mulheres e homens,
trabalhadoras e trabalhadores, que se colocaram em tnsito ou deslocamento procurando definir seus lugares no
tempo e no espaço indo da região sul do país ao Mato Grosso.
99
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
50
Para o senhor Geraldo, desde a infância, a ação de migrar pareceu decisiva. As
circunstâncias vividas no lugar de origem, Minas Gerais, fizeram com que tomasse a decisão
de seguir a rota empreendida pelo irmão mais velho rumo a São Paulo. Todas as
oportunidades de trabalho que lhe foram colocadas (vender picolé, vender jornal ou trabalhar
de pedreiro) não lhe satisfizeram. Com o trabalho que desenvolvia não sobrava dinheiro
algum, pois: “o que eu fazia no dia eu comia no dia mesmo”. No centro argumentativo de sua
lembrança ficou evidente que a permanência na cidade de São Paulo também se esvaia.
Aquele lugar poderia não lhe proporcionar o futuro desejado que, ainda criança, almejava.
A situação deixou o migrante menino inconformado, fazendo com que fosse buscar
alternativas. Ele tomou a decisão de romper as barreiras de pertencimento e decidido afirmou:
“eu quero andar”. Seu irmão ainda insistiu para que ficasse. Geraldo negou. o Paulo
colocou-se para ele como um lugar estranho. Os paulistas eram meio nojentos. Segundo
ele, estranhou o povo e o jeito daquele lugar. Em São Paulo: “não é que nem aqui, que aqui o
pessoal não tem luxo. Ele não se fez sujeito do jeito do lugar chegado.
100
Estranhou São
Paulo e decidiu: “eu quero conhecer o mundo.
Daí peguei e vim para Curitiba. Daí cheguei em Curitiba, um frio danado,
que nunca tinha visto em minha vida era esse tal de frio. Nunca vi frio na
minha vida. Daí, tá... Eu peguei e cheguei em Curitiba de manhã cedo, de
manhã cedinho tinha parecia uma neve assim. Daí eu fiquei encolhidinho
assim ali sentado [na rodoviária] veio um senhor e falou assim: escuta
moleque, tu está com frio? Falei estou. Daí ele pegou um casaco dentro da
mala dele e me deu aquele casaco, isso eu não esqueço até hoje. ele
pegou, eu vesti aquele casaco, ele pediu se eu estava com fome. Eu disse
não, não estou com fome não. Então está bom. Você tem dinheiro? Eu falei:
tenho uns trocos, para se virar, para comer uma coisa por aí. Daí ele
pegou e foi embora.
101
Destarte, importa considerar que o senhor Geraldo prosseguiu com palavras
compassadas relatando a trajetória que vivera:
De repente chegou um ônibus de Curitiba a Marechal Cândido Rondon, daí
eu peguei e falei: sabe de uma coisa, eu vou conhecer esse Marechal
Cândido Rondon. saí. Quando cheguei comprei a passagem, daí fui
olhando, fui olhando, fui olhando assim porque tinha pouco estudo, tinha
que olhar bem, soletrar bem a letra para poder saber onde ia aquele ônibus.
Tá, dvi onde estava escrito Marechal Cândido Rondon, eu disse: é esse
aqui mesmo! Daí pra mim não embarcar às vezes, que estava confundido do
ônibus daí eu peguei e mostrei a passagem para o cobrador, o cobrador
falou: esse ônibus vai para Marechal Rondon, você é de lá? Eu falei não,
nunca fui, é a primeira vez que estou indo para lá.
102
100
GOETTERT, Jones Dari. O espaço e o vento..., op. cit.
101
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
102
Idem.
51
O “mundo se fez para Geraldo em sua decisão de migrar. Nota-se no relato, as
minúcias utilizadas na reconstrução da trajetória até chegar a Marechal ndido Rondon, em
1973. Mesmo com poucos estudos, necessitou soletrar bem a letra” para não se perder e
numa forma de afirmar esta sua decisão procurou dar um sentido à sua vinda: “eu quero
conhecer o mundo”. O Paraná, para ele, ganhou significado de mundo. Ele não o conhecia,
por isso encontrou outra dimensão da realidade da qual vivia em Minas Gerais e São Paulo,
por onde transitou. O migrante “moleque”, que queria conhecer o mundo e fugir das
condições socioeconômicas que se encontrava, de súbito ressaltou o primeiro estranhamento
ressentido ao chegar no Paraná, o frio: “que nunca tinha visto na minha vida era esse tal de
frio”. Um estranhamento que ficou preso à teia de suas lembraas, porque lhe causou
sofrimento, como impregnou numa imagem de sua recordão: “eu fiquei encolhidinho assim
ali sentado”. Ao mesmo tempo ressaltou as solidariedades, quando um senhor desconhecido
“pegou um casaco dentro da mala dele e me deu aquele casaco, isso eu não esqueço a
hoje”.
As primeiras impressões de Geraldo sobre o Paraná ainda foram tecidas na capital,
Curitiba. No processamento de suas recordões colocou-se em trânsito, rumo ao lugar e,
talvez, ao emprego desconhecido, para chegar a Marechal Cândido Rondon, que é a
primeira vez que estou indo lá”:
Aí eu peguei e vim. Cheguei ali na rodoviária de Rondon. Frio tamm. Frio,
frio. E eu... Tínhamos aquela malinha pequeninha do lado. Sentei ali, no
tempo que tinha aquela rodoviária velha ali. Fiquei sentadinho ali, de repente
chegou um gaúcho lá. Aí o gaúcho: Oh! Vamos morar comigo piá? Eu
pensei assim não! Um barbudão, assim, eu falei: não vou morar com esse
homem não! Vamos, vamos morar comigo, eu preciso, eu tenho duas
meninas e eu preciso de um machinho comigo. Eu olhei bem e falei: já
estou num beco sem saída. Ta, eu vou. Ele tinha uma Kombi assim: por
baixo ela era azul e por cima era branca.
103
Construindo as significações de sua trajetória, pelo relato o senhor Geraldo
demonstrou que o Oeste do Paraná era um lugar com possibilidades de fixação. Ele que
rumara ao desconhecido estava assim apreendendo os sentidos daquela migração. havia
conhecido alguém que lhe ofereceu trabalho. Num primeiro momento hesitou em aceitar a
primeira proposta que lhe foi feita. A hesitação pode ser interpretada como fruto do
estranhamento que vivera. Decidiu acompanhar aquele homem, pois interpretou que naquele
momento não tinha outra opção: estou num beco sem saída”. Para quem não conhecia
103
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
52
nada, havia conhecido um “gaúcho barbudão que lhe oferecera moradia e lhe comprara
roupas e calçados.
Dando extrema atenção ainda ao itinerário do senhor Geraldo que, pelo exercício da
memória, trouxe incorporado os significados protagonizados pela trajetória:
Aí, peguei e entrei naquela Kombi, mas estava meio ressabiado. Aí ele
pegou minha mala, olhou minha malinha, assim, dentro. Aí ele me levou lá
na loja, comprou roupas para mim, comprou roupas de frio. Calçados euo
tinha, ele comprou tudo para mim e me levou aqui para o Guavirá, como
eu falei. Ali foi onde eu falei que fiquei cinco anos. Aquele homem me
ensinou tudo: trabalhar com trator, tratar os porcos, falar um pouco em
alemão. Se eu tivesse ficado lá hoje qualquer coisa que você falasse em
alemão para mim eu sabia. Mais eu não fiquei mais tempo ali.
104
O senhor Geraldo, pelas forças das circunstâncias que se apresentaram naquele
momento, precisou fazer-se trabalhador no lugar de destino. Ele que tinha o desejo de
“conhecer o mundo” iniciava uma relação que possibilitaria a sua fixação. Pela força
marcante do relato recordou que recebera do homem que o acolhera, o que lhe faltava,
“roupas de frio e calçado”, e o homem, então, lhe ensinou a trabalhar. Aquela relão que se
iniciara, aparentemente, parecia ser movida por atos de solidariedade. Esta foi uma forma de
versar e de legitimar a sua estada junto daquela família. Assim, o trabalho na roça, na Linha
Guavirá, em Marechal Cândido Rondon, surgiu como uma “oportunidade” de se estabelecer.
Naquela propriedade familiar Geraldo aprendeu o que ainda não sabia, “trabalhar com o
trator, tratar os porcos”:
Daí eu tratava os porcos, tirava o leite, sabia tirar leite na época. Daí ia
para a ra carpir com as meninas. As meninas sempre falavam em alemão
comigo, para tratar os porcos em alemão, chamar o gado em alemão. E
recolher os ovos das galinhas, que tinha muita galinha na época. E mais,
quando ia pra roça daí também me chamavam em alemão. Mas não faltava
nada pra mim lá. Se ele [o patrão] ia para cidade, em Marechal, se ele
comprava duas balas ele comprava três. Então uma era para mim. O homem
tanto gostava de mimque Deus o livre.
105
De início, o relato deu conta da permanência do entrevistado naquele lugar
demonstrando aquelas circunstâncias vivida como uma conquista. Mas, as dimensões de sua
vivência junto à família que o acolhera extrapolam as relações de trabalho. Imbuída, por
vezes, de um caráter nostálgico, a narrativa evidenciou o estranhamento vivido nas relações
com aqueles com que foi morar. Mesmo estabelecendo-se certa afetividade é possível
perceber como demonstrou um distanciamento entre ele e o patrão, fruto, talvez, de sua
posição subalterna em relação a aquele homem”. O espaço que o senhor Geraldo descobria
104
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
105
Idem.
53
pareceu causar-lhe tantos estranhamentos. Mesmo assim, as atividades que desenvolveu no
campo, tais como tirar leite, tratar os porcos, cuidar das galinhas ou ir para a roça colocaram-
no como um agregado daquela família que o acolhera. Todo o tempo de vida transformado em
trabalho. Quando o homem “barbudão” convidou Geraldo para morar com ele, não viu apenas
um menino que necessitava de guarida. Olhou-o como o-de-obra. A partir da leitura dos
escritos de Jo de Souza Marins é possível perceber que ele era mais um trabalhador nas
teias das “forças produtivas [que] se desenvolvem mais depressa do que as relações sociais;
no capitalismo, a produção é social, mas apropriação dos resultados da produção é
privada”.
106
Mesmo junto a um pequeno proprietário, as relações de subalternidade no
trabalho extrapolaram as perspectivas de ascensão socioeconômica no lugar que se
apresentara desconhecido.
A língua alemã e os novos modos de trabalhar puseram o senhor Geraldo em
inconformidade com aquelas relações sociais vividas. Narrou que o lhe faltava nada, mas
“quando ia pra roça daí também me chamavam em alemão”. Foi preciso fazer-se trabalhador
do jeito do lugar. O ato de chamar” daqueles que o acolheram o colocou em inferioridade nas
relações de trabalho que estavam postas naquele momento. Eles chamavam e ele obedecia.
Eles mandavam e ele fazia, zelava, carpia. Era um trabalhador submetido e, ao mesmo tempo,
“expropriado da possibilidade de viver”.
107
Este papel foi desempenhado não somente por
Geraldo, mas por tantos trabalhadores. Estas não são apenas relações de trabalho, mas
também formas forjadas no campo social de lutas de fixação por melhores condições de
sobrevivência.
Na minha interpretação, o fato de ter sido agregado deu motivos para que ele deixasse
a falia para procurar trabalho em outro lugar. Ao ser indagado porque deixou o lugar, em
que a princípio lhe haviam tratado como um “filho”, assim falou: “quando eu tinha já
dezesseis, dezessete anos daí eu peguei e fugi”. Com a voz embargada, silenciou. Seu olhar
procurou no horizonte uma resposta para aquele questionamento. Um ressentimento de perda
se fez sentir. Pela lembrança ele fez reconhecer-se aquela relão de subordinação no período
em que vivera com aquela família, o qual pareceu não se justificar. A inconformidade se
buscou expressar por uma ação, impensada/pensada: a decisão de fugir ainda pareceu
injustificada. Numa propriedade que o trataram como integrante da família, fugira. Uma
vontade de independência pode ser a resposta daquela ação, uma vez que ele se colocava
106
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: HUCITEC,
1997, p. 94.
107
Idem, p. 95.
54
como um trabalhador itinerante e permanecendo naquele lugar esvaia-se o seu desejo de
“conhecer o mundo”.
Em sua trajetória pelas relações de trabalho, o senhor Geraldo já havia conquistado um
espaço, principalmente com uma condição de vida, que hoje pode percebê-la como mais
digna, em relação àquela que tinha em seu estado de origem, Minas Gerais. Porque lá, mesmo
criança, via que a perspectiva de um futuro esvaía-se: “então eu vi que não dava. Porque eu
vivia de camisinha, aquelas camisinha volta mundo [estilo], aquelas uma, calçãozinho,
descalço. Porque você não tinha como comprar um calçado.”
108
O senhor Geraldo viveu no Paraná uma realidade diferente da qual estava acostumado
em Minas Gerais. Ele quis “conhecer o mundo” e a oportunidade conseguida foi por ele
rejeitada. Novamente seguiu sua incursão quando então veio: “aqui na Forquilha (...). Eu não
conhecia hortelã. Daí ali eu comecei a plantar hortelã, colher hortelã, lambicar...”.
109
Outras
perspectivas estavam postas na itinencia do senhor Geraldo. O trabalho nas lavouras de
hortelã não deixou esvair-se em seu pertencimento ao lugar que escolhera como destino.
Outra situação de trabalho foi por ele experimentada. Novamente algo desconhecido
precisou fazer-se sabido. Mesmo não tendo conhecimento algum a respeito do cultivo da
hortelã, Geraldo observou: então eu vim parar ali [Linha Sanga Forquilha], e comecei a
plantar ali aqueles hortelanzal. E eu não sabia o que era isso, hortelã?”.
110
O primeiro efeito
da nova atividade que o senhor Geraldo iria exercer no campo foi de estranhamento. Ele
próprio questionou suas lembranças, mas o que era isso, hortelã?” Característico de sua
experiência enquanto sujeito social, o desconhecido ou estranho é parte integrante do lugar de
destino. O novo trabalho se colocou como uma condição para permanecer. Foram novas
relações produzidas junto a outros trabalhadores e o trabalho pode ser visto como um forte
elemento para a socialização no novo lugar.
Tocado pelo exercício de apreensão da nova atividade, o senhor Geraldo rearticulou
sentidos: “dele [o patrão] ia fazendo as covas de hortelã e eu ia com as mudinhas atrás.
Não era eu, eram vários. Bastante gente. é que foi produzindo hortelã, produzindo
hortelã e tal, e tal... Cortava hortelã de um, cortava de outro, cortava de outro”.
111
Na
recomposição das lembranças soam fortes as demarcações situacionais da atividade. Embora,
108
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
109
Idem.
110
Idem.
111
Idem.
55
muitas vezes, o processo fosse apresentado com naturalidade: “foi produzindo hortelã,
produzindo hortelã”, esta atividade ocorreu a partir e com a sua força de trabalho e de outros.
A narrativa ainda se articulou no seu fazer-se como trabalhador hortelaneiro entre
outros presentes naquelas lavouras: “não era eu. Eram vários. Bastante gente”. Uma
atividade praticada pela atuação dos homens no espaço. A hortelã não se produziu de maneira
natural, era preciso fazer as covas e colocar “as mudinhas”.
Interrogado sobre tais relações de trabalho instituídas nas lavouras de hortelã, o senhor
Geraldo, imbuído de um olhar nostálgico, recordou:
E era assim, todo mundo era unido. Se você tinha dois alqueires, se era vinte
peão [trabalhador], colônia, todo mundo se juntava e ia lá cortar a tua ra.
Acabava a tua roça passava para minha, da minha passava para do outro, do
outro passava... Era assim. Em dois, três dias você cortava três, quatro
alqueires de rama de hortelã. E hoje você procura gente para fazer um
serviço assim, vamos ajudar fulano? Eles não querem, ah não vou ajudar
fulano porque fulano é isso, fulano é aquilo. Então, antigamente era melhor
do que hoje.
112
No cotidiano das atividades das lavouras de hortelã todos, de alguma maneira, se
ajudavam. Exemplificando as relações situacionais que se moldavam, Geraldo concede a
mim, a ele e a um outro a propriedade de posse da lavoura, numa forma de emoldurar as
significões da ajuda entre os diferente sujeitos. Nestas relações de trabalho está posta uma
interseção entre passado e presente, na qual a solidariedade pareceu sempre soar forte:
“acabava a tua roça passava para minha, da minha passava para do outro, do outro
passava... Era assim”. Mas, e hoje? Segundo o entrevistado, hoje o se consegue algo assim:
“hoje você procura gente pra fazer um serviço... Eles não querem”. As relações de trabalho
sofreram modificões. Os trabalhadores parecem não serem mais os mesmos e as atividades
também já são outras. Assim, Geraldo interpretou aquelas relações que vivera no período
hortelaneiro: “então antigamente era melhor do que hoje”. Apesar do árduo trabalho, este foi
compreendido como um período bom: “você trabalhava de noite, trabalhava de dia, de tarde
e vai indo (...), trabalhava bastante e tinha dinheiro, hoje votrabalha muito e não tem
dinheiro”.
113
Sobre quando ocorreu a extinção das plantações de hortelã, o senhor Geraldo transpôs
a linhas imaginárias do espaço e relatou mais um pouco de sua trajetória:
Quando acabou a hortelã, eu fui dois anos para o Mato Grosso [do Sul] e
depois vim aqui para Guaíra. Daí eu estava em Guaíra, para trabalhar de
balseiro [balsa]. Daí trabalhei dois dias e duas noites. Então eu pedi para eles
112
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
113
Idem.
56
assim, quanto eles iam me pagar? Foi daí que eles falaram que era doze
cruzeiros por mês e não tem hora extra. Daí eu falei não dá. Foi aí que eu saí.
Daí eu peguei e vim embora trabalhar aqui na construção da ponte naquela
vez [ponte sobre o rio Guu, na BR 163, que liga os municípios de
Mercedes e Guaíra]. Não... Daí eu fui para o quartel, primeiro servir o
quartel lá em Iguatemi [MS]. Fiquei em Iguatemi um ano. Depois daquele
ano, eu voltei para cá e consegui entrar na ponte ali da Construtora Marna.
Que tenho até o PIS na minha carteira, até hoje eu recebo na Caixa
Econômica, ainda.
114
Entre idas e vindas, a trajetória do senhor Geraldo parece ter sido de uma itinerância
constante. Com o fim das atividades com a hortelã na região, seguiu até o Mato Grosso à
procura de trabalho. serviu o “quartel”. Depois Guaíra apresentou-se como um local com
possibilidade de trabalho, primeiro de balseiro e depois na construção de uma ponte. Mas,
suas lembraas produziram outras significações. Um dos marcos de sua trajetória é
apresentado como uma conquista ao destacar que teve sua carteira assinada e ainda recebe o
PIS na Caixa Econômica Federal.
O cotidiano contado é permeado de reelaborações construídas no momento da fala.
São as lembranças que afloram a partir da instigação da memória e que delatam aquele
cotidiano vivido como bom, apesar, muitas vezes, da transitoriedade empreendida à procura
de trabalho. O exercício da memória é, nesta tarefa, um constante vai-e-vem, o qual demanda
exercitar atos interpretativos do narrador e do pesquisador. Atos de interlocução entre as
atividades exercidas em diferentes tempos. O senhor Geraldo narrou o passado como
inacabado. E meu exercício foi o de compreender este passado, com as significações
atribuídas pelo entrevistado no presente. Sua memória, entusiasmadamente, ressaltou a hortelã
como algo que foi bom.
Dialogando com as trajetórias individuais, sobretudo relacionadas às atividades com as
plantações de hortelã, o senhor Benedito Lopes Gonçalves também compartilhou suas
lembranças. Ele é morador da localidade de Arroio Guu, situada à Oeste do município de
Mercedes. O Arroio Guu faz divisa com a localidade de Salamanca, Guaíra, e com a
República do Paraguai, sendo seu limite geográfico representado pelo Lago de Itaipu, antigo
Rio Paraná e o Rio Guu.
115
O senhor Benedito, conhecido popularmente como seu Dito,
falou de sua trajetória e o que o trouxera para a região:
Porque nós viemos para cá, geralmente nós morava na região, município de
Guaíra. Mas s morava aqui pertence para o [Rio] Guaçu mesmo, beirando
o Guaçu. Daí aqui nós fiquemos, ali do outro lado do Guaçu. Ali nós
comecemos com o hortelã e lavoura de milho e porcos, essas coisas daí.
114
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
115
Ver anexo 05, mapa do território de Mercedes.
57
Depois, s passemos para cá. nós moremos vinte e cinco anos e mais
vinte e cinco anos morando aqui na região de Mercedes, daí nós estamos
aqui.
116
Seu Dito, que morava em Arapongas, no Paraná, se fez migrante dentro do próprio
Estado. Em 1960, veio residir juntamente com seus pais e irmãos no município de Guaíra,
como ele mesmo narrou: “beirando o Guaçu”, próximo à localidade do Arroio Guaçu. Dos
50 anos que reside na região, seu Dito esclareceu que “vinte e cinco anos” moraram onde
pertence a Guaíra, e mais vinte e cinco” anos no atual município de Mercedes: “daí estamos
aqui”.
Estar aqui para o narrador tem a conotação de permanecer, resistir e enfrentar as
modificações ocorridas neste espaço. Dentre as primeiras atividades destacadas no relato, a
hortelã também surgiu com forte conotação, além da lavoura de milho e a crião de porcos,
que eram atividades praticadas próximas ao rio Guaçu. Naquele lugar: “nós comecemos com
o hortelã. Seu Dito não falou por ele próprio. Suas lembranças carregam um horizonte de
pertencimento a um grupo, num movimento enunciado, vivenciado, comunicado: “nós
viemos”, “nós morava, “nós fiquemos”, “nós comecemos”, “nós passemos”, “nós
estamos”. Com um sistema de significações “cá e lá”, Mercedes e Guaíra, a narrativa
envolveu os espaços de agora e de antes, numa rede que envolveu a família, os amigos e
demais trabalhadores. Sua lembrança, assim, transpôs as barreiras do espaço e do tempo para
dar visibilidade ao seu pertencimento ao lugar a partir das vivências:
A primeira planta que nós plantemos, nós plantemos feijão, milho. Tinha
criação de porcos, porco comum. E era assim. Daí entrou os japoneses e
começaram a incentivar nós a plantar hortelã. Nós plantemos hortelã. Daí
começou a chegar cada vez mais famílias: da Bahia e tudo quanto que é
lugar. Aí foi...
117
As primeiras atividades agrícolas praticadas pela família de seu Dito foram destinadas
à produção de alimentos de subsistência, como assim narrou: “plantemos feijão, milho e tinha
criação de porcos”. O próprio feijão, que se desenvolvera muito bem em áreas de derrubadas
recentes, dividiu espaço com a hortelã. Todavia, não foram somente as atividades de
subsistência que seu Dito e família praticaram, por que: “d entrou os japoneses e
116
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
117
Idem.
58
começaram a incentivar nós a plantar hortelã”. Ele recordou que outras pessoas os
“incentivaram” a plantar hortelã.
118
Outras dimensões sociais estavam postas: as relações étnicas. Os “japoneses”,
conforme pude perceber, eram os compradores do óleo na região. Estes eram proprietários de
empresas de comercialização do óleo destilado da hortelã que, inclusive, era destinado a
outros países.
119
Características semelhantes foram destacadas por Cláudia Cristina Boeira,
em seu estudo sobre Palotina quando observou que as empresas Brasmentol e Braswey faziam
a compra do óleo. Estas empresas, segundo ela, exportavam o óleo para países da Ásia, de
onde eram originárias as empresas.
120
Nas lembranças de seu Dito surgiram, com espontaneidade, notas sobre a vinda de
pessoas de tudo “quanto que é lugar. Estes migrantes, grosso modo, se enquadrariam noutra
categoria, que é a de arrendatários. Eles não eram proprietários de terra e, portanto,
trabalharam em terras alheias: [n]essas colônias aí, tinha colônia aí com quatro, cinco
empregados. Daí depois que terminou o hortelã foram tudo embora. Foram vendendo as
terras e acabou com tudo.”.
121
Como se pode observar, seu Dito, pelo trabalho da memória,
explicitou a denuncia das transformações das relações de trabalho que, aos poucos, foi
tomando conta da região e expulsando muitos trabalhadores de terras alheias.
Abordando também a localidade de Arroio Guu, Janete Triches estudou as
transformões ocorridas naquele espaço geográfico. Sobre a atividade hortelaneira, observou
que os “agricultores que conviveram com a cultura do hortelã afirmam que esta ocupava
grande quantidade de o-de-obra, tanto no plantio e limpeza, quanto na colheita, pois todas
essas atividades, inclusive o processo de destilação eram executados manualmente, por
pessoas oriundas da região ‘norte’ do país”.
122
A afirmação quanto à criação de empregos
percebida na literatura e nos relatos mensura formas de trabalho não assalariado. O uso de
terras férteis e virgens provocou a possibilidade dos trabalhadores produzirem hortelã; “esses
118
De acordo com Santos e Oliveira, a hortefoi introduzido por imigrantes japoneses e a sua cultura acha-
se, hoje, firmemente implantada no Brasil”. Santos, Samuel Ribeiro dos; OLIVEIRA, Vicente Gonçalves de.
“Espaçamento para Menta (Mentha Arvensis)”. In: BRAGANTIA..., op. cit. p. 701.
119
Ver anexos 03 e 04, notas fiscais de venda de hortelã. Acervo particular do senhor Quirino S. Backes.
120
BOEIRA, Cláudia Cristina. A cultura da hortelã na colonizão de Palotina 1965–1975. Marechal Cândido
Rondon, 2002. 57 p. Trabalho acadêmico (TCC) – História, UNIOESTE, p. 29 – 30. Segundo dados da pesquisa
de Boeira, a “menta arvensis”, conhecida também como “menta japonesa”, espécie com alto teor de mentol, era
usada na exploração industrial, não destacando o tipo de produto industrializado.
121
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
122
TRICHES, Janete. Organização do espaço agrícola regional. Estudo de Caso: Arroio Guaçu Mercedes.
Marechal Cândido Rondon, 1996. 69 p. Trabalho acadêmico (Monografia de Especialização em Geografia),
Unioeste, p. 29.
59
produtores de hortelã eram arrendatários que recebiam a terra in natura”.
123
Estas relações de
trabalho de modo algum podem ser descaracterizadas como uma forma de emprego, pois
mesmo trabalhando em terras alheias, caracterizou-se pela venda da força de trabalho.
124
Ao ser instigado a relatar sobre quem fazia a compra do óleo na região, seu Dito, em
um dilema com suas lembranças, relatou: “eu não lembro mais o nome da firma. Agora, os
japoneses, alguns eu lembro: tinha o Ângelo, tinha o Norberto. Todos esses compravam o
óleo. Agora os outros eu não lembro mais. Tinha muitas firmas assim compradoras. Seu Dito
não se lembrou do nome das empresas que faziam a compra do óleo na região. Mas, tocado
pelas relações, recordou o nome dos compradores: tinha o Ângelo, tinha o Norberto”. Com
uma força subjetiva, os nomes dos compradores de óleo surgiram nas lembranças, pois
fizeram parte daquele ambiente social do qual seu Dito também fazia parte. A empresa
compradora para ele talvez não tenha se colocado tão importante quanto os compradores, e
nessa interlocução narrou: “esse é o problema, que a gente não lembra”.
125
O ato de narrar, para seu Dito, coms-se numa luta na tentativa de recordar mais
sobre aquelas relações. Esforçou-se em lembrar, mas não conseguiu, apontando o
esquecimento como um problema. Gostaria de notar que é preciso compreender como
lembrou Ecléa Bosi que, “seus erros e lapsos o menos graves em suas conseqüências que as
omissões da história oficial”.
126
Na escuta de seu Dito, observei um relato entremeado pelas formas de fixão ao lugar
com a atividade das primeiras lavouras de hortelã:
Que as primeiras mudas de hortenós busquemos no [Rio] Piquiri. Era
tudo picadinho [as mudas], a raiz para fazer canteiros. Daí nós fizemos os
canteiros. Daí foi chegando gente. Quando nós cheguemos na beirada do
[Rio] Guaçu ali, o tinha um pé de pau derrubado! Nós entremos pela
picada, a esteira estava em cima e nós descemos pela picada e fizemos
acampamento ali. Debaixo do mato nós fizemos o rancho...
127
.
A narrativa possibilitou-me perceber que a atividade mais intensa de plantação de
lavouras de hortelã ocorreu próxima aos rios. Os rizomas, as mudas para iniciar uma
plantação, foram buscados pela família de seu Dito no Norte do Paraná, próximo ao rio
123
TRICHES, Janete. Organização do espaço agrícola regional..., op. cit.
124
BOEIRA, Cláudia Cristina. A cultura da hortena colonização de Palotina..., op. cit. Segundo a pesquisa,
em Palotina foi freqüente a relação arrendatário e meeiro. Este último participava das atividades com sua força
de trabalho e o proprietário – arrendatário – com os meios de produção (ferramentas e alambiques), p. 28.
125
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
126
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.
37.
127
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
60
Piquiri, divisa com o Estado de São Paulo.
128
As lavouras em que seu Dito e a família
trabalharam eram próximas ao rio Guu.
129
Sobre aquele lugar lembrou que a chegada de
trabalhadores migrantes também se fez sentir naquele período: daí foi chegando gente, da
Bahia e tudo quanto que é lugar”.
130
Ele pareceu assustar-se com a intensa chegada de outros
migrantes: daí foi chegando gente”. Ao mesmo tempo ele se colocou juntamente com o seu
grupo como desbravadores daquela “beira” do rio Guaçu: “quandos cheguemos na beirada
do [rio] Guaçu ali, não tinha um pé de pau derrubado!”. No meio da mata fizeram o “rancho
e passaram a “desbravar” as margens do rio. O trabalho nas lavouras de hortelã, neste sentido,
atraiu muitos trabalhadores de outras partes.
Observei também no relato do senhor Theobaldo os significados atribuídos a respeito
da chegada de outros trabalhadores: “quando uma coisa assim dá aquele alarme parece que o
pessoal nota isso, daí vinham com lotação, tipo pau-de-arara e vinha-se chegando cada
vez mais. Eles iam atrás do serviço”.
131
Cláudia Cristina Boeira também observou que em
Palotina “foi grande o número de pessoas que se deslocaram de várias regiões do país para
trabalharem na cultura do hortelã”.
132
Segundo ela, estes trabalhadores que chegaram eram
provenientes do “Norte do Estado e Nordeste do Brasil”.
133
Eram considerados os “nortistas”
que vinham na condição de trabalhadores e não de proprietários”.
134
As lembraas sobre as décadas de 1960 e 1970 contam a chegada de muitas famílias
à região. Um dos aspectos apontados nas narrativas foi o grande número de escolas,
principalmente as rurais. As escolas rurais, neste sentido, fizeram parte deste processo,
principalmente quando os entrevistados relatam sobre a população e, ao mesmo tempo, falam
das relações sociais processualizadas na região. Para o atendimento dos migrantes que
chegaram foram construídas 19 escolas somente no distrito de Mercedes, na década de 1970,
128
Conforme Boeira, a hortelã foi cultiva “nos Vales do Rio Ivaí e Piquiri”, depois no Oeste do Estado.
BOEIRA, Cláudia Cristina. A cultura da hortelã na colonização de Palotina..., op. cit. p. 22.
129
Conforme Saatkamp: “o Arroio Guassu [Guaçu], nasce na Serra de São Francisco próximo a cidade de
Toledo, correndo de leste a oeste, tendo como afluente na margem direita o Arroio Jaguarandi e na margem
esquerda o Lageado Itu, Sanga Cuê, Sanga Cristino, Sanga Estaporã, Sanga Piapó, Arroio Quatro Pontes, Sanga
Santa Tereza, Sanga Boa Vista, Sanga Forquilha, Lageado Mineira, Lageado da Mate, Sanga XV de Novembro e
Sanga Guaíra”. SAATKAMP, Venilda. Desafios, lutas e conquistas..., op. cit. p. 67.
130
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
131
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
132
BOEIRA, Cláudia Cristina. A cultura da hortelã na colonização de Palotina..., op. cit. p. 27.
133
Idem, p. 24.
134
Idem, p. 28.
61
sendo que muitas delas ficaram pequenas devido ao crescimento considerável da população
que ocorreu a partir do cultivo da hortelã na região.
135
Na instigação das recordações soou forte o grande número de escolas, bem como a
população que estava presente naquele período. Ao ser questionado se lembrava destas
escolas o senhor Jo Honorato Alves expressou:
Eu não posso dizer assim o quanto que tinha. Porque para você ter uma base,
como ali na Sanga Mineira a Carlos Chagas, era Carlos Chagas a escola, ali
tinha era quatro turmas de aula, tanta criança assim tinha. Aqui hoje em dia
não tem mais, a Balisa, ali também existia uma escola só me falha a
memória agora o nome daquela escola, ali tinha dois turnos tamm. Existia
outra escola em Sanga Forquilha, ali também tinha três turnos, e hoje em dia
não existe mais escolas por aqui. Acabou-se assim as escolas, os moradores
ficaram bem menos.
136
Compondo uma memória do ausente, o senhor José narrou a existência de muitas
escolas e que agora o estão mais ali. Tinha muitos moradores, mas ficaram bem menos”.
Hoje extintas, as escolas, principalmente as rurais, são matizadas pelas lembranças das
pessoas que participaram do processo relacionado à recém chegada da população. Estas
escolas e também a população estão ausentes, mas produzem-se lembranças permanentes por
aqueles que permaneceram e recordam aquelas vivências.
No entrelaçamento das narrativas, dialogarei mais um pouco com a do senhor
Theobaldo, que também recordou da vinda de muitas pessoas:
Veio muito pessoal do Norte do país. Assim do Norte mais precisamente
Bahia e Nordeste, Nordeste veio bastante e já do Centro-Oeste que pertence
a Mato Grosso não, era de... E nem de o Paulo tanto, que era um estado
bem desenvolvido, veio mais gente do Nordeste mesmo, os plantadores de
hortemais eram do Nordeste, assim da Sergipe, Alagoas, Pernambuco de
lá é que vinha mais gente.
137
Esta paisagem social em movimento é uma característica das memórias sobre o
período hortelaneiro. As pessoas vinham chegando à procura de trabalho, segundo o
entrevistado, de lugares menos desenvolvidos, que mensurou ser o Nordeste. Era uma
migração que ocorria de forma ampliada, como discutido anteriormente: vinham com
lotação”.
135
BACKES, Gilson. Escolas rurais: um modelo em extinção numa sociedade em mudança. Mercedes, PR,
1952-1997. Marechal Cândido Rondon, 2005. 64 p. trabalho acadêmico (TCC) História, UNIOESTE. Ver
anexo 06. Tabela organizada por Gilson Backes a partir do Decreto Nº 035/78 da Prefeitura Municipal de
Marechal Cândido Rondon, de 25 de abril de 1978, quando da denominação e regulamentação dos
estabelecimentos de ensino municipal, folhas 3 e 4.
136
Relato do senhor José Honorato Alves..., relato citado.
137
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
62
A vinda de pessoas de diferentes estados é um marco nas memórias dos entrevistados.
Segundo observado por Triches: “o fluxo de pessoas era significativo [no Arroio Guaçu]
contando com três empresas de transporte coletivo com rias linhas regulares”.
138
Nos
relatos, outro sentido compartilhado apareceu inscrito. Segundo seu Dito: “eram muitas
famílias! Isso tinha muitas famílias morando por aqui, nessa região aqui. Issoacabou o
hortelã, as famílias foram se retirando e pronto, isso ficou assim”.
139
Uma lembraa do ausente ficou posta na narrativa de seu Dito. Ele chegou a
comover-se ao relembrar da população que ali vivia. O período hortelaneiro, assim, marca
com ar de nostalgia a presença de muitas famílias. Por outro lado, as pessoas de repente foram
se retirando, como se fosse algo natural e “pronto, ficou assim”. Essa interpretação do
movimento, que seu Dito reelaborou, é transposta por suas experiências como morador do
lugar:
Aqui o Arroio Guu [localidade] tinha gente quase igual Mercedes, assim
de tanta gente que tinha. Tinha muita gente de fora, gente de Minas, de tudo
quanto que é lugar. Tinha gente aqui por causa do negócio da hortelã, d
não sei... Acabou o hortelã começou essas destocas, aí foram indo embora.
140
Os trabalhadores que fizeram parte do “mundo do trabalho hortelaneiro foram
embora. Seu Dito pareceu inconformado ao assistir ao processo de chegada e saída dos
trabalhadores. Um processo que molda a realidade que se coloca no seu lugar de vivência, o
esvaziamento da localidade, o Arroio Guaçu. Procurando uma explicação para as
transformações ocorridas naquele universo social, questionou: “daí não sei?. Suas
experiências no lugar e com o lugar parecem não encontrar resposta à ausência dos que ali se
encontravam, uma vez que, para ele, foi a “destoca” que levou os trabalhadores embora.
141
A necessidade que os trabalhadores têm de migrar faz com que não se estabeleçam
num único lugar. Talvez quisessem “conhecer o mundo”, como o senhor Geraldo, ou estavam
sofrendo mesmo com o processo da chamada destoca”, que seu Dito lembrou. Isto é, seu
Dito não negou os outros sujeitos que participaram das lavouras hortelaneiras, pois eles foram
e ainda continuam sendo importantes na sua existência. A coletividade na narrativa de seu
Dito ficou esclarecida quando falou que a população “foi saindo, foi saindo, alguns para
138
TRICHES, Janete. Organização do espaço agrícola regional..., op. cit. p. 31.
139
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
140
Idem.
141
De acordo com dados levantados por Triches, o Arroio Guaçu tinha na década de 1970: 1 posto de
combustível, 2 churrascarias, 1 moinho de farinha e arroz, 1 farmácia, 1 panificadora, 1 olaria, 2 oficinas, 1
borracharia e mais 18 casas comerciais prestadoras de serviços. Ainda circulavam veículos de passageiros entre
Foz do Iguaçu, Guaíra e o Mato Grosso. Em 1996, ano da pesquisa, somente havia 2 estabelecimentos
comerciais na localidade. TRICHES, Janete. Organização do espaço agrícola regional..., op. cit. p. 31 e 35.
63
cidade e outros mais para o sertão como para o Mato Grosso e aqui nós estamos até hoje na
região de Mercedes aqui”.
142
Também observei a saída da população em meu estudo sobre as
escolas rurais, pois as mesmas foram gradativamente desativadas em virtude da baixa
populacional que a região sofreu.
143
Mesmo com as transformações ocorridas neste meio, seu Dito ainda situou-se dentro
da temporalidade histórica de sua existência. Falou daqueles que deixaram a região para se
“aventurar” em outras paragens. Ele, no entanto, resistiu e permaneceu: estamos até hoje na
região de Mercedes aqui”. Ao lembrar-se daqueles que foram ele representa a sua estadia no
lugar, numa forma de não se desconectar do lugar vivido. Ao mesmo tempo, elabora-se uma
representação do Mato Grosso enquanto sero. Aquele lugar foi visto enquanto sertão, mas
com novas frentes que, de acordo com Sérgio Targanski, alimentou o mito do “eldorado”,
144
que é representado como algo desconhecido e para o qual rumaram muitos destituídos da
atividade hortelaneira na região.
A saída de trabalhadores da região também foi relatada pelo senhor Azelino Lange. De
acordo com suas lembranças: os nortistas foram sumindo. A maioria foi para o Norte:
Rondônia, Acre, Mato Grosso. Foram para cima. Todo o pessoal que estava por está
esparramado por aí, a maioria para cima e no Paraguai também”.
145
As transformões
nas relações sociais levaram os sujeitos a migrarem. Estes estão “esparramados por aí”,
foram embora, sumiram, estão ausentes. Os trabalhadores antes presentes fazem parte de uma
“memória feita espaço vivido.
146
As transformões na atividade agrícola fizeram com que os trabalhadores se
colocassem em movimento. Muitos rumaram ao Paraguai, como observado por Mirian Hermi
Zaar, “empurrados” por um sistema que visou a modernização do Brasil a qualquer preço. As
frentes de ocupação no país vizinho fizeram-se:
A partir da criação do programa "marcha al este" em 1961, com o objetivo
oficial de ocupar a fronteira leste paraguaia com campesinos paraguaios, o
processo se acelerou com a venda de imóveis rurais a latifundiários e
empresas estrangeiras. Durante as décadas de 1960 e 1970, com o apoio do
Instituto de Bienestar Rural (IBR), órgão latifundista paraguaio, algumas
destas terras de propriedade de brasileiros foram transformadas em projetos
de colonização privados, que ofereciam terras férteis e baratas aos
142
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
143
BACKES, Gilson. Escolas rurais: um modelo em extinção numa sociedade em mudaa..., op. cit.
144
TARGANSKI, Sérgio. Rumo ao novo eldorado..., op. cit. p. 31.
145
Relato do senhor Azelino Lange..., relato citado.
146
GOETTERT, Jones Dari. O espaço e o vento..., op. cit. p. 58.
64
agricultores que quisessem migrar para o leste paraguaio.
147
As memórias apontam para a saída de muitos, inclusive para o país vizinho, o
Paraguai. Lá, muitos continuaram em lavouras de hortelã. Conforme relatou o senhor Milton
José Sehnem, que imigrou para o Paraguai na década de 1970: “lá daí nós comecemos plantar
uma parte lá, e s trabalhemos muito, muito com hortelã. que era difícil”.
148
Enquanto
para alguns a hortelã caracterizou-se como “bom, para outros foi difícil, como para o senhor
Milton que continuou trabalhado com a hortelã no Paraguai. Isso me permite pensar naquilo
que advertiu Portelli, que as fontes orais nos oferecem um mosaico ou uma colcha de
retalhos.
149
Dialogando com vários fragmentos procura-se formar um todo justaposto pela
resignificação narrativa.
A busca por trabalho em outras paragens foi a ação empreendida por muitos que
tinham suas relações permeadas pelo sistema de arrendamento da terra. No Mato Grosso, no
Paraguai, ou em outro lugar, foi preciso adaptar-se a uma nova realidade socioeconômica.
Analisando o processo de constituição da localidade de Naranjal, no departamento de Alto
Paraná, no Leste do Paraguai, por trabalhadores saídos do Brasil, Valdemir Jo Sonda
observou que os trabalhadores que migraram para o Paraguai foram “empurrados” pelas:
Alterações emanadas das transformações ocasionadas pela tecnificação e
mercantilização da agricultura, facilitaram tal ingresso, no sentido de apontar
para a perspectiva de aquisição de terras férteis, a um preço bastante atrativo,
em comparação com os preços praticados no Brasil, principalmente pelos
que se viam em dificuldades de continuidade de sobrevivência no ramo
agrícola.
150
O Paraguai, conforme observado, apresentou-se como uma saída para muitos que
continuaram na terra. Lá, também, alguns tiveram a possibilidade de se tornarem pequenos
proprietários. Segundo Sonda, muitos continuaram trabalhando com a hortelã, “tendo em vista
a existência dos três requisitos essenciais para a produção de menta, a saber, a existência de
muita madeira, o solo fértil e a abundância de água”.
151
Se, no Brasil, estavam esgotadas as
reservas de madeira, utilizada nos alambiques de destilação e, principalmente a terra fértil, no
147
ZAAR, Miriam Hermi. A migração rural no oeste paranaense/Brasil: a trajetória dos “brasiguaios”. Revista
Eletrónica de Geografia y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona, nº 94, de agosto de 2001.
Disponível na internet: URL: www.ub.es/geocrit/sn-94-88.htm. Acessado em 05/01/ 2009, p. 07.
148
Relato do senhor Milton José Sehnem, 49 anos, concedido em 1º de dezembro de 2007.
149
PORTELLI, Alessandro. Tentando Aprender um Pouquinho..., op. cit.
150
SONDA, Valdemir Jo. A emigração brasileira para Naranjal Alto Parana Paraguai (1973-1995)
um estudo de caso. Niterói, 2003. 199 p. Dissertação de Mestrado em História, Universidade Federal
Fluminense, p. 86.
151
Idem, p. 131.
65
Paraguai estes componentes ainda se apresentavam em abundância no período em que estes
emigraram para aquele país.
Além da extinção das riquezas naturais indispensáveis à produção hortelaneira, a
mudança no sistema produtivo também fez com que, segundo Triches: “a produção do hortelã
progressivamente desapareceu, levando esse contingente de trabalhadores a migrar
inicialmente para o Paraguai e posteriormente para a Bolívia”.
152
O espaço em movimento se
faz sentir através de um processo imigrario que, de diferentes modos, é apresentado pela
literatura. Movimento este que também é resignificado nas lembranças:
[Aqui] não tem mais serviço. Na verdade, que agora graças a Deus que estou
hoje aposentado, ajuda um pouco senão... Essa doença minha atrapalhou
muito, está com dez anos que estou com essa doença já. Daí não tem
condições de trabalhar mais. Mas graças a Deus criei os filhos e os filhos
estão trabalhando, então está bom.
153
Mesmo sem possibilidades de trabalhar devido a problemas de saúde, seu Dito resiste
neste processo de transformação em curso. Conseguiu o benefício da aposentadoria. Uma
vitória por ele alcançada como resultado da sua resistência frente aos desafios que a vida lhe
impôs. A doença, esta é justificada pela família. Ter criado seus seis filhos, que estão
trabalhando, o coloca numa situação de conformidade com a situão vivida.
Os dramas e trajetórias vividas aquietam, principalmente, quando o passado incomoda
e o futuro parece incerto. A busca incessante pelo trabalho fez os sujeitos se aventurarem
naqueles movimentos migratórios. Lugares deixados e lugares chegados, ambos são marcas
nas lembranças.
O senhor Antoniel Matos dos Santos, 56 anos, também teve sua trajetória intricada
pelo período hortelaneiro. Nascido em Boa Nova, Bahia, o senhor Antoniel, ainda muito
jovem, iniciou sua itinerância. Interrogado sobre o motivo que o trouxera ao Oeste do Paraná,
expressou:
A primeira vez que eu vim, primeiro eu vim para São Paulo. Depois... Aí eu
vim para Maringá. Ali eu fui colher algodão, café... Depois, aí eu voltei para
o Norte de novo, que foi nos anos [mil novecentos e] sessenta e nove, [mil
novecentos e] setenta. Aí eu voltei aqui para Guaíra, e ali, quando eu cheguei
ali, o plantio era hortelã, era muito mato ainda! Aqueles anos de [mil
novecentos e] setenta e um era muito mato. Tinha muito mato e plantio de
horteainda. s continuemos plantando hortelã. Até os anos de [mil
novecentos e] setenta e oito, ainda era hortelã. depois mudou. O pessoal
começou a destocar e plantar soja. depois destocaram tudo dsoja,
trigo, milho, esses casos ali.
154
152
TRICHES, Janete. Organização do espaço agrícola regional..., op. cit. p. 30.
153
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
154
Relato do senhor Antoniel Matos dos Santos, 56 anos, concedido em 17 de maio de 2008.
66
Na recordação da itinerância, o plantio de algodão, de café e de hortelã foram
atividades desenvolvidas pelo senhor Antoniel. Ele apontou as temporalidades diferenciadas
justificadas pelo “aindanuma forma de justificar a atual realidade pelas lembranças quando:
“tinham muito mato e plantio de hortelã ainda”. O senhor Antoniel percebeu as
transformações vividas por ele no campo e procurou justificar-se. O ausente soou forte. Ele
participou de todo o processo e isso é uma marca na sua experiência pelos lugares transitados.
O migrar fez com que o senhor Antoniel vivesse, pensando com José de Souza
Martins: “em espaços geográficos diferentes, temporalidades dilaceradas pelas contradões
sociais”.
155
Ir e vir. São Paulo, Maringá e novamente o Norte do Brasil. Ele deixou sua terra
natal, Bahia, e rumou a o Paulo em busca de trabalho. Lá, em São Paulo, nas fazendas: “eu
vim colher banana em Piruíbe, São Vicente, mais como eu era de menor, as fazenda não
contrataram. eu tive de voltar de novo embora...”
156
. Fazendo-se trabalhador temporário,
procurou recriar condições de sobrevivência em outro lugar. Deslocou-se ainda muito jovem
para a colheita de banana e, neste caso, a migração temporária envolve especialmente os
jovens, muitas vezes apenas adolescentes”.
157
No primeiro momento da incursão de sua trajetória, o senhor Antoniel o Estado de
São Paulo como uma possibilidade de trabalho. Mas lá não se fixou: “porque não tinha como
trabalhar assim registrado”. A tentativa inicial de conseguir trabalho esvaiu-se. O senhor
Antoniel narrou que teve de voltar novamente para o Norte, a sua região de origem. No
entanto, mais uma vez enfrentou a itinerância para conseguir trabalho, desta vez no Paraná:
“depois eu vim, quando eu estava completando dezoito, dezessete, dezoito anos eu vim colher
café. Colher café e algodão. Isso era lá em Maringá e Apucarana, essas regiões ali”.
158
As colheitas de café e de algodão fizeram com que o senhor Antoniel se tornasse
temporário no Paraná. Uma atividade circunscrita nas dinâmicas das relações de trabalho. De
acordo com Jo de Souza Martins: “é comum a interpretação de que a migração temporária
cíclica separa os membros da família: enquanto alguns permanecem, outros migram, até para
regiões distantes, em busca de emprego, de salário, de ganhos necessários à sobrevivência da
família”.
159
155
MARTINS, José de Souza. Não há terra para plantar neste verão. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1986, p. 45.
156
Relato do senhor Antoniel Matos dos Santos... , relato citado.
157
MARTINS, José de Souza. Não há terra para plantar neste verão..., op. cit. p. 52.
158
Relato do senhor Antoniel Matos dos Santos..., relato citado.
159
MARTINS, José de Souza. Não há terra para plantar neste verão..., op. cit. p. 50.
67
O Para surgiu como uma possibilidade para o senhor Antoniel de conseguir
trabalho. Migrou jovem e sozinho. Foi um trabalhador temporário que procurou ganhar meios
para a sobrevivência dele e de sua família, que permaneceu no Norte. As lavouras cafeeiras no
Paraná necessitavam de mão-de-obra. Antoniel, então, migrou, deixou a família e após sete
dias viajando de “trem-de-ferro chegou ao Norte do Paraná, mais precisamente em Maringá,
onde trabalhou nas lavouras de café. Em sua viajem assustou-se com o número elevado de
pessoas que, naquele período, estavam migrando em busca de trabalho.
O senhor Antoniel precisou fazer-se trabalhador no lugar chegado. Primeiro trabalhou
em Maringá, e depois eu vim aqui para Guaíra, ali teve plantio de hortelã”.
160
No Paraná,
também precisou ir em busca de trabalho, pois não partia de um sentido fixo, ainda era um
itinerante. Ao ser interrogado sobre a atividade com a hortelã quando chegou em Guaíra,
reconstruiu sua interpretação:
foi o hortelã. Era mato, tudo mato. Tinha que derrubar mato com
machado, motosserra, roçava. Daí a motosserra tirando aquelas árvores mais
grossas e indo derrubando. Aí plantado a hortelã, que a hortelã só era
plantada com chuva, não com sol. Se parasse de chover agora amanhã
cedo você não podia plantar mais porque daí não pegavam [as mudas],
porque você tinha que fazer um furo assim no chão com um negócio assim,
com um pau ou senão um ferro e colocando aquelas mudinhas dentro e
pisando em cima e afirmando com o até... E se ficava aqueles
chuvisqueiros assim, aquela chuvinha ali você tinha que estar plantando, não
podia parar: Tinha que plantar a maioria com chuva e foi como eu te falei,
uns sete, oito anos só... E trabalhava à noite, o hortelã era cada noventa dias.
Cortava de dia e de noite ia lambicar, como eles falam. Jogar naquela pipa [a
rama da hortelã] e dormia pouco tempo e no outro dia tinha que trabalhar de
novo para consegui cortar tudo.
161
Num relance da memória, o senhor Antoniel pareceu assustar-se também com o que
iria viver em Guaíra: a derrubada da mata e a formação das lavouras de hortelã. Logo,
reconstruiu passo-a-passo o processo de plantio das mudas, pois “tinha que plantar a maioria
com chuva.
162
Diferente do processo de trabalho que desenvolvera nas lavouras cafeeiras, o
senhor Antoniel necessitou ajudar a preparar o terreno, a partir da derrubada da mata, e
aprender as técnicas de cultivo da horte.
No dlogo com as lembranças do senhor Antoniel, este demarcou ainda a
temporalidade de sua permanência na localidade de Salamanca, Guaíra: dos anos [mil
novecentos e] setenta e um até [mil novecentos e] noventa e cinco. Daí eu fui para São Paulo,
160
Relato do senhor Antoniel Matos dos Santos..., relato citado.
161
Idem.
162
O plantio das mudas deve ocorrer de preferência em dias encoberto e solos úmidos”. Informativo
Copagril..., op. cit.
68
fiquei dez anos em o Paulo. Não chegou bem dez anos, nove anos. Daí eu vim para cá, tem
quatro anos que moro aqui, morava aqui no Belmonte, na Linha Belmonte”.
163
A trajetória do
senhor Antoniel caracterizou-se fortemente pela busca por melhores condições de vida. e
, Paraná e São Paulo, são os marcos de sua temporalidade sócio-espacial. Ele que havia
migrado inicialmente da Bahia para São Paulo, novamente retornou à Bahia e, logo após, para
o Paraná, depois novamente a São Paulo e regressou ao Para outra vez –, tem sua trajetória
marcada pela itinerância.
Vários foram os locais nos quais o senhor Antoniel passou até a instalação definitiva
em Mercedes. De outro modo, uma vez mais se lembrou da Bahia, a terra natal, a qual parece
ser algo ainda a incomodar:
[Lá nós plantávamos] é mamona assim e talvez nem trabalhava tanto porque
era meio novo. E eu cuidava da criação dos meus pais. Eu, meus pais e meus
irmãos, a gente cuidava. E ainda tinha um armazém também de venda,
assim. Hoje em dia eles não falam armazém, não sei como é que se fala. Era
um tipo de...
Gilson: Um mercadinho?
Antoniel: Isso, um mercadinho e tinha desde arame, açúcar e todas essas
coisas, feijão, arroz, tudo, tudo misturado. O que você precisava dentro do
depósito tinha ali para vender. Eno, vivia com aquilo ali
164
.
A memória do senhor Antoniel reconstruiu um pouco daquelas relações vividas na
Bahia. A pequena mercearia de propriedade de seus pais se constituiu numa referência para
falar da infância. Além do plantio de mamona, a criação de animais, o comércio da família
constituía-se numa fonte de renda. No entanto, o senhor Antoniel não se contentou em
permanecer em seu estado de origem. A Bahia pareceu não lhe dar segurança de melhores
condições de vida. Desejou migrar e conhecer outros lugares. Ao que tudo indica em sua
trajetória, ele “queria conhecer o mundo”:
Foi no plano do Fernando Henrique Cardoso [Ministro da Fazenda] e daí nós
plantava aqui e trabalhava, como eu te falei, arrendado. Então financiava às
vezes um pouco, daí quando foi naquele período ele entrou [o presidente
Itamar Franco] e ficou com noventa dias sem a gente conseguir vender a
lavoura. Só, não tinha preço, uma hora não tinha preço e outra hora já
fechava o mercado e outra hora virou aquela revolução do URV, do URV
[plano econômico] para o dólar e ali empatou bastante. E daí deu uma meio
fracassada e eu falei... Veio um parente meu de São Paulo me convidou para
ir para lá daí eu fui junto
165
.
163
Relato do senhor Antoniel Matos dos Santos..., relato citado.
164
Idem.
165
Idem.
69
O plano econômico do então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, no
governo de Itamar Franco, desanimou o senhor Antoniel. Ele, que trabalhava de arrendatário,
estava inviabilizado de vender os produtos agrícolas que produzira, pois estes não tinham
preços. Ele enfrentou grandes dificuldades na agricultura naquele período, uma vez que, com
o plano econômico implantado, “virou aquela revolução”. Uma revolução que fez o senhor
Antoniel decidir pela migração. Ele então se colocou em trânsito, trocou o campo pela cidade
grande, migrou. Nas considerações de José de Souza Martins:
A necessidade da migração é resultado de que [o trabalhador] vive no limite
da mera subsistência. Fato que se agrava em conseqüência do cerco que o
capital lhe impõe. A deterioração dos preços dos seus excedentes agrícolas
lhe é particularmente fatal, pois reduz a sua capacidade de compra dos
artigos que complementam a sua subsistência e que não pode produzir
diretamente.
166
O senhor Antoniel necessitou recriar outras condições de sobrevivência, desta vez na
cidade. Abandonou o campo, deixou de ser trabalhador da terra arrendada para ser assalariado
de uma empresa na cidade. Bastou a visita de um parente de São Paulo e o convite. Foi para
São Paulo outra vez, agora na condição de funcionário de uma empresa de revestimento
térmico. Hoje, sua alegria é ter conhecido muitas cidades do Brasil. Durante os nove anos que
trabalhou naquela empresa, viajou por rios estados. Conforme ele: “eu conheci
praticamente todas as cidades do Brasil. Esse trabalho que estou te falando, de regulamento
térmico, era viajando no Brasil inteiro”.
167
Viajar o “Brasil inteiro, conhecer o mundo. O senhor Antoniel migrou. Retornou.
Reproduziu o seu “mundo” através da narrativa. Situou geograficamente, pelos caminhos
minuciosos das lembranças, aqueles lugares por ele transitados:
Que nem nós fomos para Manaus, ali nós ficamos noventa dias. De Manaus
nós fomos para aquela outra cidade no outro ano. Isso era obra grande que
nós ficava noventa dias, isso era obra muito grande. Aí depois foi no outro
ano isso foi em dois mil, em [19] noventa e nove aquela usina lá de Tucuruí,
do governo lá, tu já deve te ouvido, nós também trabalhamos. Fizemos o
isolamento dela. Tucuruí no Pará e as outras cidades que é as mais distantes
que nós fomos eno Rio Grande do Sul, Florianópolis, Joinvile, Blumenau,
é Rio Grande do Sul é... Outra cidade pequena que nós fomos lá. No Paraná
foi Cascavel, Curitiba... No Mato Grosso conheci Campo Grande, Cuiabá,
Dourados também, e foi assim, Rio de Janeiro a gente ia direto, Nordeste
também teve trabalho. Eno foram nove anos bem corridos.
168
166
MARTINS, José de Souza. Não há terra para plantar neste verão..., op. cit. p. 52-53.
167
Relato do senhor Antoniel Matos dos Santos..., relato citado.
168
Idem.
70
Através do próprio trabalho o senhor Antoniel conheceu muitas cidades nos “nove
anos bem corridos”. Para ele a cidade grande, principalmente São Paulo, o lhe pareceu
estranha, pois nela encontrou uma possibilidade de ascensão socioeconômica. Segundo ele:
“voltei para cá de novo porque minha família quis que eu voltasse, mas eu não queria, queria
ficar lá”.
169
Ficar em São Paulo ou voltar ao Paraná era uma decisão a ser tomada. A família
do senhor Antoniel decidiu por ele, então voltou.
Embora as possibilidades da trajetória do senhor Antoniel não terem se finalizado, ele
resolveu ficar: “agora me aposentei e acho que eu vou ficar, acredito que para sempre,
aqui, eu não vou mais ir embora”.
170
O senhor Antoniel pareceu estar decidido, voltou ao
Paraná para ficar. Aposentou-se e tomou uma decisão: “vou ficar”. No entanto, em sua última
fala transpareceu a possibilidade de uma nova migração: “acho que vou ficar”. A sua estada
em Mercedes parece não ser definitiva, uma vez que ele pode novamente colocar-se em
trânsito e conhecer outros lugares.
A síntese explicativa para muitos migrantes falarem do deslocamento e da dinâmica
sócio-econômico-demográfica é a variável do trabalho. As correntes migratórias se fazem em
lugares que proporcionam e asseguram a sobrevivência. Assim, procurei, neste capítulo,
apresentar a atividade desenvolvida a partir das lavouras de hortelã quando os trabalhadores
migraram à procura de trabalho e para consegui-lo necessitaram lidar com alguns
enfrentamentos. As trajetórias de alguns entrevistados ajudaram-me a compreender este
processo de migração que esteve imbuído pela possibilidade de trabalho no Oeste do Paraná,
envolvendo as plantações de hortelã.
Contudo, neste primeiro momento, percebi que a atividade não ocorreu de forma
homogênea, mas juntamente com outras atividades como a produção de alimentos de
subsistência, em um espaço que é, sobremaneira, marcado por uma paisagem diversificada,
tanto de produção agcola e populacional. A chegada de migrantes de várias regiões fez com
que ocorressem estranhamentos instituídos pelos modos de viver e narrar o período
hortelaneiro.
169
Relato do senhor Antoniel Matos dos Santos..., relato citado.
170
Idem.
71
CAPÍTULO II
E NINGUÉM, PARECE, SENTIU SAUDADE”:
A PRESENÇA DO “OUTRO” NAS PLANTAÇÕES DE HORTELÃ
Eles chegavam e não sabiam nem... Eles eram assim, não sei se
amanhã eu estou aqui ou estou longe. E também, a maioria não
se preocupava em fazer uma economia, ou talvez, assim,
prosperar um pouco na vida também. Não se preocupavam
também nessa área. Era assim acho que era um pessoal que
era desse tipo de vida assim.
171
O período da atividade produtiva de horteno Oeste do Paraná não se processualizou
pacificamente, sem estranhamentos e/ou conflitos. Com a inserção neste espaço de migrantes
chegados de outras regiões do Brasil, os modos de vida diferentes se conflitaram de muitas
maneiras. Cada sujeito, em suas experiências narradas, é portador de uma “bagagem cultural”
diferenciada que, na migração, passa a interagir com outros modos de vida. Modos estes que
me possibilitaram a compreensão das marcas que estes sujeitos foram imprimindo no espaço
social ao longo do processo histórico vivido.
Ao falar de bagagem cultural tomo como referência as reflexões de Robson Laverdi,
ao tratar dos trabalhadores que, em algum momento de suas trajetórias, fixam-se em um lugar.
Embora se fixando, “suas vidas nunca estiveram deslocadas das experiências da migração e
das bagagens culturais trazidas de outros lugares, tanto quanto das vivências de maior tempo
nessa região de fronteira”.
172
Levando em consideração tais experiências e a temporalidade histórica da existência
dos sujeitos entrevistados, tenho observado que um grupo que se coloca, por vezes, como
estabelecido no lugar desde o início da ocupação. Estou falando dos migrantes chegados no
início da década de 1950. Estes, provenientes ou “expulsos” de outras regiões agrícolas,
principalmente do Oeste de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, foram os primeiros
compradores de terras na região com a atuação da companhia colonizadora Maripá, que “se
empenhou em organizar o referido espaço [área denominada de Fazenda Britânia] e nele atuar
para efetuar a ocupação”.
173
171
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
172
LAVERDI, Robson. Tempos diversos, vidas entrelaçadas: trajetórias itinerantes de trabalhadores no
extremo-oeste do Paraná. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2005, p. 72.
173
GREGORY, Valdir. Os eurobrasileiros e o espaço colonial: migrações no oeste do Paraná (1940-70).
Cascavel: EDUNIOESTE, 2002, p. 109.
72
Na região, estes migrantes pequenos proprietários rurais , a partir de um sistema
planejado, efetuaram a ocupão de propriedades destinadas à produção familiar. No Sul estes
migrantes já trabalhavam em atividades agcolas que envolviam a rede familiar e no Paraná a
ocupação teve, conforme Pedro Calil Padis: “características bastante peculiares e quase
específicas”.
174
É preciso destacar que, neste período de ocupação planejada, o Oeste do
Paraná passara por uma intensa atividade de exploração dos recursos naturais,
principalmente a madeira e a erva-mate, por companhias estrangeiras que exploravam as
terras à margem esquerda do rio Paraná.
175
Estes recursos, através de ações exploratórias,
eram destinados e escoados “via Rio Paraná e Estuário do Prata para os mercados argentino
(Corrientes, Entre Rios, Posadas) e inglês”.
176
Com o processo de ocupação dos migrantes sulinos, criou-se uma identificação do
espaço como próprio de uma cultura alemã, uma vez que os migrantes proprietários eram
considerados os de “origem”. Mas, nos anos de 1950 e mais fortemente nas décadas de 1960 e
1970, período de produção hortelaneira, trabalhadores de diferentes regiões, muitos dos quais
também afro-descendentes, migraram para o Oeste do Paraná com a perspectiva de encontrar
trabalho.
Neste viés, parte da literatura memoriastica omite a presença de nortistas, caboclos,
paraguaios ou mesmo de migrantes sulistas que não obtiveram destaque no projeto planejado
de ocupação da região. A esses sujeitos atribuiu-se o papel de meros coadjuvantes e suas
experiências permanecem silenciadas, sobretudo em face de projetos como o de
germanização, como é o caso de Marechal ndido Rondon, que envolvem questões étnicas,
entre outras.
Falar de uma literatura memorialística ou de uma memória oficial requer pen-la
enquanto produto de um grupo que se apropria de uma memória e a reformula,
homogeneizando um amplo conjunto de sujeitos em suas trajetórias sociais. Assim, o termo
“história oficial” é empregado neste trabalho como aquela produzida com base em
documentos de instituições públicas e privadas que, por sua natureza, não envolvem
determinados aspectos de convívio social, como a presença de trabalhadores que extrapolam
os padrões pré-estabelecidos. A essa ou às outras memórias cumpre observar, de acordo com
Gonzalez em sua análise sobre Marechal Cândido Rondon, que:
174
PADIS, Pedro Calil. Formação de uma economia periférica: o caso paranaense. 2ª ed. Curitiba: IPARDES,
2006, p. 227.
175
LAVERDI, Robson. Tempos diversos, vidas entrelaçadas..., op. cit. p. 28.
176
GREGORY, Valdir. Os eurobrasileiros e o espaço colonial..., op. cit. p. 89.
73
A História oficial que aliceou nutriu-se de memórias cuidadosamente
selecionadas de (e para) alguns sujeitos sociais hegemônicos da cidade. Essa
memória é, portanto, o produto final de um processo político de afirmação
de lugares sociais. A construção da meria é também um processo de
disputa política. Isso porque ao fixar sua visão de mundo como a única,
oficial, seus elaboradores buscaram sobretudo estabelecer lugares sociais
nessa disputa pela hegemonia da cidade, dividindo a sociedade entre aqueles
que teriam o direito de narrar, a sua maneira e a partir de seus valores, o
processo histórico, naturalizando e perpetuando a divisão social de classes
ali existente. Em contrapartida, estabelecia também quem deveria ser
esquecido, ignorado, em suma silenciado.
177
Dizer quem tinha e tem o direito à memória foi uma forma do grupo hegemônico se
sobrepor às demais memórias. Ignorar, esquecer, silenciar são também formas de diferenciar e
representar os grupos, principalmente quando disputas políticas estão postas. O campo das
manifestações artísticas, arquitetônicas, políticas, memorialísticas e folclóricas caracterizam-
se como conflitivas por negar a presença de outros sujeitos. Um terreno de divergências
culturais se colocou para idealizar os feitos de um determinado grupo. Na perspectiva de uma
hegemonização das memórias locais, Ruy Wachowicz identificou a ocultação de outros
grupos pela Maripá, principalmente quando esta ocultação foi aplicada com objetivos
estratégicos e específicos como, no caso, a imposição de uma “ideologia racial”. Conforme
Wachowicz:
A ideologia etno-racial predominante entre os diretores da Maripá deve ter
sido a sulista, com forte conotação ao bairrismo gaúcho. Da colonização das
terras da antiga Fazenda Britânia, foram excluídos três tipos de elementos
humanos: 1- o colono, também descendente de europeus, que avançavam em
direção ao oeste pela linha sul paranaense. Em sua grande parte, era formado
de descendentes de imigrantes poloneses e ucranianos; 2- o caboclo
paranaense, filho tradicional dos sertões brasileiros, que também encontrava-
se na região em número nada desprezível; 3- olo duro, nortista, que
representava a frente cafeeira, que estava ocupando todo o norte do
Paraná.
178
De acordo com o autor, a presença de “indesejados” acarretou um flanco de exclusão
dos mesmos como pertencentes ao quadro da memória social. Os trabalhadores
“aventureiros”, que não se enquadravam no planejamento de seleção imposto pelos líderes da
colonizadora, eram, a grosso modo, excluídos do processo de ocupação. Contudo, aqueles
cujas presenças não foram possíveis de serem barradas ou mesmo foram recrutados como
mão-de-obra, serviram para trabalhar e ajudar no “desbravamento” da região, em atividades
177
GONZALEZ, Emílio. “As camadas da memória”: a produção de marcos memorialísticos na historiografia
regional do Oeste do Paraná (Marechal Cândido Rondon 1950-1990). In: Tempos Históricos. Cascavel:
Edunioeste, v. 05/05, 2004, p. 189.
178
WACHOWICZ, Ruy Christovam. Obrageros, mensus e colonos: história do oeste-paranaense. Curitiba: Ed.
Vicentina, 1982, p. 174.
74
como a extração da madeira. A partir destas considerações é que se entende que a maior parte
da literatura acadêmica ou memorialística produzida sobre o Oeste do Paraná atribui a
perspectiva colonizatória a partir da atuação da colonizadora Maripá.
179
Uma visão que deixa
claro que o espaço foi projetado para o estabelecimento dos migrantes ideais”, aqueles que
teriam conhecimento do cultivo da terra.
Analisando a literatura produzida sobre a região e, principalmente, aquela no meio
acadêmico, Robson Laverdi destaca:
É consensual nos estudos sobre ocupação da região a importância dada à
MARIPÁ, empresa privada, proveniente do Rio Grande do Sul, à qual foi
atribuída a responsabilidade da organização, planejamento e execução do
projeto de colonização do Oeste do Paraná. Tal atribuição muitas vezes é
abordada sob a forma do grande consenso firmado entre os atores
envolvidos, a comar pelo conjunto mais amplo de políticas de
nacionalização das fronteiras brasileiras, via o Estado Novo, na Marcha para
o Oeste.
180
A crítica do autor se faz pelo uso constante de fontes oficiais em alguns estudos para
abordar o processo de ocupação da região. Segundo Laverdi, estes trabalhos atuam em defesa
de um modelo, de uma memória única fundada em torno da colonização. Modelando um
sentido de dominação em seus lugares privilegiados, por um lado, e por outro, memórias
“cerzidas” lutam, relembram e sobrevivem na história social. Elas cintilam no horizonte uma
paisagem social negada.
181
A literatura memorialística então produzida corrobora, de muitos
modos, afirmando a exclusão destes outros sujeitos, uma vez que, como observou
Wachowicz:
Oberg [Kalervo] e Jabine [Thomas] afirmaram que a presença do caboclo só
seria admitida na região, como fonte de trabalho braçal barato. Mas como
essa tarefa passou a ser executada por paraguaios refugiados no Brasil, sua
presença na rego passou a ser desnecessária, o pêlo duro, nortista, foi
afastado da colonização, porque não entendia do tipo de agricultura
praticado pelo sulista. Estava acostumado com a agricultura cafeeira,
tropical. Pouco entendia da agricultura temperada de subsistência, praticada
no sul. Pelo menos em linhas gerais, esses foram os argumentos
179
Conforme Gonzalez, p. 191, na década de 1980, foram produzidos rios trabalhos defendendo uma história
oficial, os quais mais tarde serviriam como referência para pesquisas produzidas no âmbito da academia. Estes
trabalhos foram fartamente produzidos e distribuídos pelas prefeituras municipais e pelo poder ecomico e
político da região. Nessa linha, podem ser citados os livros de Ruy Wachowicz, Obrageros Mensus e Colonos:
História do Oeste do Paraná (Curitiba, 1982), Venilda Saatkamp, Desafios, lutas e conquistas: História de
Marechal Cândido Rondon (Cascavel, 1985), Oscar Silva & outros, Toledo e sua História (Toledo, 1988), e
JoAugusto Colodel, Santa Helena na História do Oeste do Para (Santa Helena, 1988) como exemplos
dessa tendência no âmbito regional. GONZALEZ, Emílio. “As camadas da memória”..., op. cit.
180
LAVERDI, Robson. Tempos diversos, vidas entrelaçadas..., p. 36.
181
Idem, p. 35.
75
apresentados pelos dirigentes, a fim de justificar a exclusão desses elementos
da colonização no interior da Fazenda Britânia.
182
Nota-se que na versão de Wachowicz, os sujeitos foram excluídos por não deterem
conhecimentos sobre as lavouras praticadas pelos sulistas. Na defesa de uma memória oficial
e apoiando-se em outros estudos, o autor destaca que não era necessária a presença de
trabalhadores paraguaios, nortistas ou os chamados pêlo duro, de acordo com justificativas
dos dirigentes da colonizadora. Estes trabalhadores, silenciados e excluídos, foram afastados
por não entender das lidas agrícolas. Caracteriza-se, assim, uma forma de negar a presença
destes sujeitos, bem como suas memórias, ao mesmo tempo em que também deixam de ter
possibilidades de obter conhecimentos das lidas agcolas praticadas pelos sulistas. Ao que
tudo indica, a presença destes trabalhadores, tanto de outras regiões e mesmo outros países
como do Paraguai, foi acentuada.
A ocupação deste espaço não se concretizou somente com os migrantes sulinos, os
quais reivindicam para si a memória da sociedade local. As memórias produzidas sobre o
espaço em estudo podem ser entendidas dentro de um campo de disputas sociais, sobretudo
quando buscam a imposição de alguns elementos culturais como hegemônicos: a língua,
vestimentas, arquitetura, festas, entre outros. Perceber a realidade circunscrita através de
traços culturais delineia a mobilidade social desencadeada também nesta região do Oeste do
Paraná, nos primeiros anos de ocupação, bem como daqueles caracterizados como não sendo
de “origem”, que participaram das plantações de hortelã. Entendo as representações sobre a
região a partir da forma como os sujeitos narram, resignificam e identificam os lugares que
ocupam neste meio social.
As experiências dos sujeitos mostraram outras dimensões do real que, ainda,
permanecem na invisibilidade, ou que sobre as mesmas se tem poucos estudos. A perspectiva
histórica de análise dessas trajerias pela História Oral, neste sentido, me apresentou um
campo de possibilidades. Ela não tem um sentido único e nem é homogênea. Mas, é carregada
de significados próprios, como observado nas falas dos entrevistados. Nesta arte de
representar e observar a história enquanto processo, Maria do Pilar adverte sobre a tarefa do
historiador:
Dessa forma, fazer história com o conhecimento e como vivência é recuperar
a ação dos diferentes grupos que nela atuam, procurando entender porque o
processo tomou um dado rumo e não outro; significa resgatar as injunções
que permitiram a concretização de uma possibilidade e não de outras.
183
182
WACHOWICZ, Ruy Christovam. Obrageros, Mensus e Colonos..., op. cit., p. 175.
183
VIEIRA, Maria do Pilar, et al. A Pesquisa em História. São Paulo: Ática, 1989, p. 11.
76
Nessa assertiva, ao analisar as narrativas percebo que elas se direcionam a outras
interpretações sobre a participação de grupos distintos no Oeste do Paraná. Não se trata de
operar a historicidade e sinalizar que ela se encontra no veio social, mas sistematizar as
informações pelos fatos narrados demonstrando como cada sujeito representa, a seu modo, a
dinâmica social e significa a experiência vivida. As memórias, assim, construídas numa rede
de relações, negam a direção única. Elas nos levam a refletir sobre a historicidade que as
compõem apresentando múltiplas interpretações do social. Cada sujeito, conforme Yara
Khoury, compartilha uma memória específica a partir das representações de “códigos,
padrões, valores e identidade”, num campo de luta e, principalmente, em oposição a uma
memória homogeneizadora. É preciso pensar a produção de uma memória no campo da
“experiência social vivida”, numa “relação presente-passado-presente”.
184
Pensando na diversidade da população que compunha este espaço e os conflitos que
muitas vezes se engendraram devido a certas diferenças socioculturais, a narrativa de Dona
Gladis Elfi Mohr apresenta características daqueles migrantes presentes na região. Ela, que
nasceu na vila de Mercedes na década de 1950, vivenciou o processo de transformação do
espaço e através do seu relato buscou interpretá-lo, focalizando as diferenças entre estes:
Eles sempre falavam mais do que a gente, eu ouvia era de nortistas né,
nortistas. Mas nem eu na época não sabia o que era nortista. Mas eu creio
que deve ser do Norte do Paraná. Porque eles vieram... Porque do Sul era
tudo alemão ou italiano que moravam aqui, então só pode ter sido de lá,
Campo Mouo talvez que lá já morava gente mais.
185
Na instigação das lembranças, a narradora procurou encontrar respostas na definição
daqueles trabalhadores: “eles sempre falavam mais do que a gente, eu ouvia era de
nortistas”. Pressente o campo social com a presença de “outros”, “eles”, a memória
representou os migrantes auferindo aos mesmos a denominação de nortistas.
186
Embora sem
conseguir definir quem eram estes, Dona Gladis dialogou com “eles”, com os seus, que viram
aqueles como “nortistas”. Na incerteza de dar uma definição à origem dos trabalhadores, ela
fez uma relação com os demais que aqui estavam: “eu creio que deve ser do Norte do
Paraná... porque do Sul era tudo alemão ou italiano que moravam aqui”. Um relato que por
ela não foi finalizado, uma frase incompleta: “gente mais...”. Suas lembranças sobre os
184
KHOURY, Yara Aun. “O historiador, as fontes orais e a escrita da história”..., op. cit. p. 38.
185
Relato de Gladis Elfi Mohr, 49 anos, concedido em 25 de julho de 2007.
186
A expressão nortista também foi reproduzida pela literatura sobre o Oeste do Paraná ao mencionar as
memórias sobre o período da hortelã. Segundo Valdir Gregory, et al., “muitos eram os chamados nortistas, que
se juntaram aos colonos do sul na época do cultivo da hortelã”.GREGORY, Valdir; VANDERLINDE, Tarcisio;
MYSKIW, Antonio Marcos. Mercedes: uma história de encontros..., op. cit. p. 76.
77
hortelaneiros o conseguiram encerrar uma definição. Mas, qual seria o significado que ela
procurou expressar? Em minhas interpretações, a partir do campo social que relatou, poderia
ser “gente mais morena ou de pele mais escura, numa diferenciação com os de
ascendência alemã ou italiana.
As lembranças fazem referências à gente do Sul e à gente do Norte. A memória, assim,
pode ser entendida como uma ligação com o passado vivido. Passado este que, de acordo com
Pierre Nora, “se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes,
particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censuras ou projeções”.
187
Alemães, italianos ou nortistas são os sujeitos sociais que muitas vezes são representados nos
relatos do período hortelaneiro. Uma memória com efeito revelador e, ao mesmo tempo, que
se liga a um campo de identidades que está posto na definição dos outros. Uma identidade na
qual nem sempre os sujeitos se reconhecem. E, em oposição aquele que narra, elabora a sua
própria identidade. Dona Gladis falou dos outros sujeitos presentes naquele meio social, que
eram aqueles que vieram para as lavouras de hortelã.
Na abordagem da presença de outros, Robson Laverdi, ao fazer um estudo sobre a
constituição do universo urbano de Marechal Cândido Rondon, buscou denotar os outros
sujeitos sociais presentes naquela sociedade. Analisando uma literatura acadêmica, Laverdi
observou uma pequena minoria de “outros” na composição social desta cidade. O autor
priorizou em seu estudo, a partir das trajetórias e itinencias, histórias orais e de vida de
depoentes nordestinos e negros, pelo fato de serem considerados uma minoria e serem
aludidos como os “outros” presentes em Marechal Cândido Rondon. Sobre estes sujeitos, em
suas análises, se construiu uma imagem de rejeição, uma vez que não se enquadravam no tipo
ideal que se preconizava.
188
O outro é visto enquanto um problema. No entanto, também pode ser visto como
aquele com modos de vida diferenciados. É nessa oposição entre o s e o eles que Dona
Gladis continuou sua narrativa:
Eu sei que teve muita gente, muitas famílias aqui. E como eu já comentei
eles gastavam, porque eles eram diferentes do alemão que é muito o
fechada, que não gasta com nada, ou pelo menos não gastavam. Eles o, o
que eles ganhavam eles gastavam, compravam bicicleta cada um. Era um
luxo ter a sua bicicleta toda bonitinha, como hoje o pessoal quer ter uma
moto eles faziam assim. E gastavam, gastava-se também em festas, gastavam
no mercado.
189
187
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, PUC/SP,
nº10, 1993, p. 09.
188
LAVERDI, Robson. Tempos diversos, vidas entrelaçadas..., op. cit. p. 19-27.
189
Relato de Gladis Elfi Mohr..., relato citado.
78
Na trama da lembrança reveladora observa-se a diferenciação produzida. Os modos de
vida foram mensurados como atos de gastar. Ganhar e não gastar: os alemães. Ganhar e
gastar: eles, os outros, os nortistas. São sinônimos atribuídos na interpretação daquela
realidade: “o que eles ganhavam eles gastavam, compravam bicicleta cada um”. Pertencer a
um grupo ou a outro eram formas de identificação naquele ambiente de sociabilidade. Dona
Gladis reelaborou uma linha de demarcação entre os sujeitos presentes naquele sistema social.
Construiu, pela forma de narrar, uma fronteira entre diferentes grupos étnicos por ela
observados. Para os antropólogos Poutignat e Streiff-Fenart, “as identidades étnicas se
mobilizam com refencia a uma alteridade (...). Ela pode ser concebida senão na fronteira
do ‘Nós’, em contato ou confrontação, ou por contraste com ‘Eles’”.
190
Reconhecer eles pela diferenciação foi o que fez Dona Gladis ao interpretar aquele
lugar e as relações sociais vividas. Na composição de sentidos atribuídos aos outros, Dona
Gladis interpretou uma fronteira existente entre os que migraram para as atividades
hortelaneiras e os proprietários de terras, ou mesmo entre aqueles que já tinham uma vida na
cidade:
Eles viviam lá no lugar deles onde trabalhavam. Vinham à cidade em alguma
festa e nas compras e tal, mas não tinham assim muito contato, tanto contato
assim entre eles e com os que moravam aqui. Tanto é que eles parece
chegaram e foram e ninguém, ninguém sabe de onde veio e para onde foi. E
ninguém, parece, sentiu saudade! Ninguém perguntou nada.
191
Intervindo nas lembraas das plantões de hortelã observa-se uma omissão das
memórias sobre os seus trabalhadores. Pelo relato, Dona Gladis determinou uma linha
divisória demonstrando a separação na alteridade do nós” em relação aos “outros”, quando
“eles” viviam afastados. Eles eram separados dos demais moradores, numa forma de negar o
impacto da presença dos mesmos na região. A lembrança, neste sentido, determinou os
migrantes como “indivíduos fronteiriços”, como aponta Jones Gottert: “que devem adaptar-se
a um novo contexto, novas normas, sobre as quais pesam variadas limitações que repercutem
na vida cotidiana”.
192
O convívio na cidade entre diferentes grupos, pelo relato, não foi nada
fácil. O preconceito parece predominar ao mensurar a presença de outros trabalhadores que
não faziam parte do campo das relações vividas pela narradora.
190
POUTIGNAT, Fhlippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: Ed. UNESP,
1998, p. 152.
191
Relato de Gladis Elfi Mohr..., relato citado.
192
GOETTERT, Jones Dari. O espaço e o vento..., op. cit. p. 52.
79
Pela narrativa busca-se entender o papel social que o próprio entrevistado constrói ao
elaborar sua interpretação da vida cotidiana. A diferenciação étnica, na base da formulação do
relato, parece justificar-se quando o trabalho parece ser o meio pelo qual os grupos poderiam
igualar-se. Para isso, os que não se identificavam pelo ethos do trabalho precisariam
acostumar-se na vida cotidiana com relações e modos de vida diferenciados. Os “outros”, pelo
relato, deveriam enquadrar-se num modelo típico, aos costumes dos migrantes sulinos. Ao
que tudo indica, isso não ocorrera. E, numa forma de naturalizar a transitoriedade destes
trabalhadores, ao destacar a presença e ausência, a entrevista apresentou o seu lugar de
pertença que era distante dos trabalhadores conhecidos como nortistas.
Os trabalhadores das plantações de hortelã estão ausentes, mas as memórias sobre eles
estão presentes. Uma memória que interpreta e questiona o cotidiano, pois de modo algum as
coisas estão dadas, mas em constante reelaboração pelas lembranças. Na análise dos relatos,
observo que o senhor Theobaldo pautou lembranças relacionadas aqueles envolvidos:
O que eles ganhavam durante a semana, no fim de semana eles tinham que ir
no comércio e gastavam quase tudo. E tinham que comprar roupas,
calçados e comida, alguma coisa que faltava. Embora que na colônia onde
eles moravam nas terras do dono da coisa [do proprierio das lavouras], eles
tinham muita coisa: tinham mandioca, batata, tudo que era coisa de comer
existia.
193
Importante ressaltar que o senhor Theobaldo vivia na cidade naquele período e sua
narrativa foi permeada de estranhamentos refletidos a partir deste ambiente. Para ele, era
estranho ver, na vila de Mercedes, os hortelaneiros gastando o que tinham ganhado durante a
semana. O modo de vida daqueles trabalhadores era diferente ao modo como o narrador vivia
bem como aqueles com quem se identificava. “Eles” não tinham a preocupação de
economizar. Todavia, é nesta senda interpretativa que se constrói os embates socioculturais
que permeiam aquele cotidiano lembrado.
Outrossim, o comércio foi destacado como o lugar para o consumo, por isso foram
apresentados como gastadores, embora necessitassem comprar os víveres no comércio local.
Ao buscar compreender os imigrantes-migrantes que ocuparam, principalmente, a região Sul
do Brasil, Giralda Seyferth observou que: “as identidades étnicas da maioria dos grupos
descendentes de imigrantes são definidas, atualmente, por critérios mais elaborados no
passado, como o ethos do trabalho, a origem comum, e por traços culturais supostamente
tradicionais dos respectivos países de origem.
194
193
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
194
SEYFERTH, Giralda. Imigração e cultura no Brasil. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1990, p.
89-90.
80
Um dos principais elementos constituintes da memória da diferença apontados nas
narrativas, bem como também destacado por Seyferth em seu estudo sobre os imigrantes
alees e italianos, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, e também japoneses em São
Paulo, é a identificação com o trabalho. A constituição de uma sociedade voltada ao trabalho
parece ser um mote identificador para muitos colonos do Sul que conseguiram atingir o status
de pequeno ou dio proprietário rural. O senhor Theobaldo, ao fazer referência aos
hortelaneiros, narrou que estes eram diferentes: “eles eram um pessoal assim, eles quando
estavam de folga eles gostavam de sentar no bar e fazer gritaria e tomar cachaça. Ali, assim,
desse tipo eles não participavam da sociedade. Eles eram separados, vamos dizer eram
isolados”.
195
Uma imagem do vivido é reconstruída a partir de uma perspectiva pessoal e relacional
com aquele ambiente. O senhor Theobaldo se situou numa interação particular, a qual pode
ser vista também como uma trama social e cultural na modelação do lugar quando os
trabalhadores “gostavam de sentar no bar e fazer gritaria e tomar cachaça. Um estigma
parece se estabelecer em relação aos hortelaneiros que foram apresentados como diferentes. A
narrativa colocou-os isolados, embora nas propriedades era a força de trabalho destes que
fazia desenvolver as lavouras.
Uma ambiência de conflitos, no dizer de Thompson,
196
parece se produzir quando da
presença dos hortelaneiros em locais públicos. Marcelo Zanatta também observou a
reconstrução de uma imagem depreciativa daqueles trabalhadores em seu estudo sobre Entre
Rios do Oeste. Segundo ele: “a presença dos ‘nortistaschegou a gerar, inclusive, alguns
conflitos. Com costumes diferentes, dos ‘sulistas’, descendentes de alemães e italianos, não se
entenderam com eles, principalmente quando se tratava de eventos sociais, bailes, festas”.
197
Costumes diferentes que geram conflitos são dimensões que estão presentes na interpretação
das relações sociais vividas pela e na diferença. Assim, segundo Zanatta, se constrói uma
imagem negativa dos “nortistas”, pois os mesmos foram referidos enquanto “tomadores de
pinga, dando a impressão de que o hábito de tomar pinga é depreciativo, e que eles vinham
para a cidade apenas em função desse hábito”.
198
Pinguços ou o, o que pode ser presumido a partir do consumo de aguardente é que
esta seria uma forma para aguentarem a dura jornada, ou mesmo como remédio para os males
195
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
196
THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
197
ZANATTA, Marcelo Rogério. O cultivo da hortelã em Entre Rios do Oeste na década de 1970. Marechal
Cândido Rondon, 2000. 23 p. Trabalho acadêmico (TCC) – História, UNIOESTES, p. 16.
198
ZANATTA, Marcelo Rogério. O cultivo da hortelã em Entre Rios do Oeste na década de 1970..., op. cit.
81
do corpo ou do espírito. Observando estas práticas de diferenciação cultural, destaco o estudo
de Sérgio Buarque de Holanda sobre a expansão geográfica do Brasil, no qual interpreta a
vida e atividades daqueles homens que participaram da “conquista” e integração do território
nacional. Em suas considerações sobre a produção de cana-de-açúcar em Cuiabá, observou a
industrialização dessa produção para o fabrico de aguardente. Enquanto que os “bandos dos
governadores” acreditavam que o consumo deste produto traria malefícios graves, o autor, a
partir da análise de suas fontes, observou o contrário:
A aguardente, fonte notória de muitos males, tamm era remédio eficaz
para quase todas as doenças. Em Cuiabá, pelo menos, teve o dom de sustar a
mortandade de escravos, curar enfermos, dar a outros boas cores, ‘que t
então tinhão-nas de defuntos’ e fazer diminuir as hidropisias e inflamações
de barrigas e pernas.
199
A pinga que os chamados “nortistas” tomavam, e que a partir do consumo os tornava
diferentes dos “sulistas”, pode ser considerada até como remédio. Um remédio que
diferenciou os costumes dos migrantes presentes na região e que os colocou fora dos padrões
pré-estabelecidos por aqueles considerados de “origem. Estar de folga, sentar no bar, fazer
gritaria e tomar cachaça foram práticas concebidas como incomuns para os de ascendência
alemã. Por isso eles “não participavam da sociedade”, eram “separados”, “isolados”, como
lembrou o senhor Theobaldo. A imagem da diferença também transpareceu ao determinar
que: “os alemães o mais de guardar sempre o dinheiro para poder comprar mais terras,
comprar outras coisas.
200
Neste ambiente relacional e permeado de tensões, os sujeitos
constroem suas identidades no espo-tempo de contato com o “outro”. A constituão das
identidades é relacional. Ela não se no vazio, mas a partir da relação com aquele
considerado diferente.
Guardar o dinheiro ou gastá-lo? São interpretações construídas na identificação e
pertencimento dos sujeitos que recordam daquelas relações vivenciadas. É partir destas
dimenes que os sujeitos, conforme Yara Khoury: “constroem territórios e referências
culturais ou deles se apropriam”.
201
Na abordagem das narrativas, o senhor Gilson Jo
Philippsen falou dos estranhamentos por ele vividos em sua infância, quando residia com os
pais na localidade de Alto Santa Fé, município de Nova Santa Rosa. Assim narrou:
Eles [os trabalhadores da hortelã] eram bastante parceiros. Então eles faziam
todas as festas deles. Aquilo era tudo, acontecia ali mesmo, no [próprio
grupo], praticamente o dinheiro que eles ganhavam com a menta eles
199
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. 2ª ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976, p. 53.
200
Relato de Gladis Elfi Mohr..., relato citado.
201
KHOURY, Yara Aun. “O historiador, as fontes orais..., op. cit. p. 42.
82
acabavam gastando ali mesmo. Finais de semana, em sábados, domingos era
festa. É... Eles tinham as crenças deles, tinham os bailinhos deles à noite, ali
em feriados. São João, esses feriados eles obedeciam rigorosamente. Final de
ano era foguetório direto, eno era uma semana de festa, de foguete.
Então, praticamente o que eles ganhavam eles acabavam gastando ali
mesmo. Não se preocupavam com luxo.
202
A narrativa do senhor Gilson José, que também dialogou com práticas de
diferenciação entre “eles” e “nós”, tocou noutros aspectos da cultura dos chamados nortistas.
Eles não foram caracterizados somente como gastadores, como observado em narrativas
anteriores. Os trabalhadores da hortelã “eram bastante parceiros” e seguiam com rigor
alguns costumes, como a crença aos santos, isso lhe causara também um estranhamento. Ao
ser entrevistado apontou aspectos vividos no cotidiano definindo aqueles enquanto um grupo:
“eles tinham as crenças deles, tinham os bailinhos deles à noite, ali em feriados”.
Apreender as relações vividas e valorizá-los enquanto sujeitos históricos requer pensar
em todas as dimensões da vida social no plano da cultura. Tal importância os relatos
proporcionam perceber, principalmente, nos significados constituídos nas dimensões da vida
social, entendido enquanto cultura, o que Yara Khoury afirma que são os modos de “projetar,
trabalhar, morar, se relacionar, se comunicar, festejar, comemorar”.
203
Apreender como os
sujeitos significam, resignificam ou interpretam as dimensões da vida social é compreender a
cultura que se forja como campo de disputas entre distintos grupos.
Em um campo tenso, os estranhamentos constituem-se como marcos para falar da
presença destes “outros”. O senhor Gilson José, que atualmente é representante de vendas de
insumos agrícolas e reside em Marechal ndido Rondon, também evidenciou a convivência
que tivera com estes trabalhadores:
A minha convivência junto com esse pessoal que era de origem, em grande
parte de origem afro-descendente, a grande maioria. E vindas da região de
um outro sistema de vida, eu acho foi um aprendizado. A gente aprendeu a
conviver com esse povo do jeito deles, da forma deles. E o que existia era
bastante confiança, tanto de um lado como do outro, porque naquela época,
até hoje continua, mas naquela época o descendente afro era visto de outra
forma, e a gente tinha uma convivência de uma forma muito natural com
eles. Com aquele núcleo era totalmente diferente das outras pessoas ali da
vila de Alto Santa Fé. Então, a gente convivia bem com eles.
204
Nas memórias que procuram diferenciar e colocar cada um destes em seu devido
lugar, o senhor Gilson Joutilizou um termo que ainda não tinha sido apontado por outras
narrativas: a expressão afro-descendente, que marca outras temporalidades da narrativa. Ela
202
Relato do senhor Gilson José Philippsen, 40 anos, concedido em 17 de maio de 2008.
203
KHOURY, Yara Aun. “O historiador, as fontes orais..., op. cit. p. 24.
204
Relato do senhor Gilson José Philippsen..., relato citado.
83
pode referir-se a um período da história colonial do Brasil quando escravos da África foram
trazidos para desenvolver o trabalho pesado. Da mesma forma como na região, a mão-de-obra
destes trabalhadores foi utilizada para as atividades o pesadas quanto a exploração das matas
a partir da derrubada. É possível ainda interpretar que o senhor Gilson procurou apagar os
conflitos ao narrar àquelas lembranças num sentido politicamente correto. Ele narrou a partir
da temporalidade histórica de sua existência quando também interpreta o campo das relações
sociais que estão postos pelas diferenças multiculturais. Na assertiva daquele momento, o
descendente de “sulinos” assim observou as relações que naquele lugar estavam estabelecidas:
“então a gente convivia bem com eles.
De outro modo, observa-se uma mudança de tom na narrativa. A confiança parecia
reger as dinâmicas entre os grupos para que houvesse uma “melhor convivência”: e o que
existia era bastante confiança, tanto de um lado como do outro”. A diferença acaba se
dissolvendo em uma confiança atemporal. As lembranças daqueles trabalhadores acabaram
minimizadas como naturais: “a gente tinha uma convivência de uma forma muito natural com
eles. Na convivência, que o senhor Gilson Jo deixou claro que foi harmoniosa, com a
confiança e a naturalidade, observa-se que aqueles trabalhadores eram portadores de outro
sistema cultural. Em suas lembranças este sistema de reconhecimento foi impresso como “um
aprendizado”.
A diferença étnica entre determinados grupos constituiu-se na dinamicidade variante
destas relações sociais. O uso de termos, como “afro-descendente”, ficou suscetível às
interpretações e redefinões, mesmo quando negada a sua importância. Neste aspecto as
Teorias da Etnicidade de Poutignat e Streiff-Fenart observaram em contraposição a idéia de
ver a etnicidade como um fato social invariante. Quanto a esta observação, ele adverte:
Em outras palavras, a etnicidade não se define como uma qualidade ou uma
propriedade ligada de maneira inerente a um determinado tipo de indivíduos
ou de grupos, mas como uma forma de organização ou um princípio de
divisão do mundo social cuja importância pode variar de acordo com as
épocas e as situações.
205
Narrar a vida social daqueles com os quais convivera na infância como de “origem
afro-descendente pode ser entendido como uma reconstrução da imagem social. Distinguir
uns dos outros a partir de características étnicas ou traços culturais é uma forma de marcar o
pertencimento a um ou a outro grupo. Na abordagem da problemática do período hortelaneiro
no Oeste do Paraná, nas décadas de 1960 e 1970, muitas memórias podem ser instigadas a
afirmar a participação de diferentes grupos. Estas diferenciações étnicas podem ser percebidas
205
POUTIGNAT, Fhlippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade..., op. cit. p. 125.
84
pela forma com que os entrevistados se utilizam para caracterizar e significar o seu pprio
mundo social. O senhor Milton José Sehnem também compartilhou suas experiências e
conflitos vividos neste período. Nascido em 1958, no atual município de Mercedes, ele falou
dos estranhamentos que vivera quando migrantes de outras regiões chegaram para as lavouras
de hortelã:
Essa gente veio para trabalhar. Talvez na terra deles não produzia mais
bem o hortelã, daí eles pegaram umas terras mais férteis, onde produzia
melhor. Desde aquela época que apareceu mais essa gente, mais nordestino,
do tempo do hortelã. Antes, quando eu era pequeno ainda, quando ia para
escola e se eu via uma pessoa meio morena eu ficava com medo e já o
queria ir nem para escola mais.
206
As lembranças do senhor Milton historicizam uma tensão particular na constituição da
diversidade populacional da região Oeste, descaracterizando esta sociedade como homogênea,
como apresentada, às vezes, pela literatura memorialista. Isso, quando se falam dos outros
migrantes que ocuparam a região e, inclusive, em Mercedes, acostumados com as lidas
agrícolas, acima de tudo, com a “vontade” de cultivarem suas terras.
207
As pessoas, sobre as
quais o senhor Milton narrou, não faziam parte do grupo com o qual ele se identificou. Ele
apresentou uma memória conflitiva, denotando uma dada “qualidade” a aqueles vistos como
“essa gente. A marca da diferença é instituída para além da cor, ela está impregnada na
expressão da linguagem que o entrevistado utilizou para demarcar o seu lugar social naquele
ambiente. Os tros físicos, portanto, pareceram ser fundamentais na definição do outro” e
de si próprio. As pessoas negras ou morenas vieram e plantaram hortelã: “desde aquela época
que apareceu mais essa gente, mais nordestino, do tempo do hortelã”.
Os relatos apresentaram outras relações sociais, não de uma sociedade que é tida como
“perfeita”, mas constituída com e a partir de estranhamentos entre diferentes. Na instigação
das lembranças do senhor Milton, o medo foi uma marca constante na relação com os
“outros”. Isso somente foi possível superar a partir do momento em que começou a trabalhar
nas lavouras de hortelã:
Para nós isso era uma farra. Ninguém olhava assim por causo da raça. Só
que tinha muitos já, então, como dizem, eram racistas, não gostavam muito.
Mas a gente nunca não tinha nada assim contra o nordestino, o mineiro, o
baiano, essa gente assim. Também era gente igual a gente. A gente se dava
bem com todos. que eles até tinham mais experiência como a gente, de
206
Relato do senhor Milton José Sehnem..., relato citado.
207
GREGORY, Valdir; VANDERLINDE, Tarcisio; MYSKIW, Antonio Marcos. Mercedes: uma história de
encontros..., op. cit. p. 50.
85
como mexer com o hortelã, porque decerto lá da terra deles conheciam. A
gente veio só conhecer aqui.
208
Os conflitos se engendraram no campo social das relações de trabalho. O senhor
Milton narrou a superação do medo que tinha destes “outros” quando desenvolveram
atividades laborais conjuntas. Ele recordou que não vivera conflitos: “a gente nunca não
tinha nada assim contra o nordestino, o mineiro, o baiano, essa gente assim. Mas, havia
outras pessoas que ele considerou como racistas, que o gostavam destes. Ainda provocou
uma exaltação a estes migrantes, pois eles tinham “mais experiência” com as lavouras de
hortelã: a gente veio conhecer aqui”. Na minha interpretação, nordestinos, mineiros ou
baianos, denotados como “essa gente”, não tinham tanto conhecimento, como foi expresso
neste relato.
Tomando um certo ar de inferioridade frente aos outros trabalhadores, a narrativa do
senhor Milton ainda se encaminhou a uma emanação de que os chamados de nortistas
detinham conhecimento sobre as lavouras de hortelã. De acordo com suas recordações, o
cultivo de hortelã era feito pelas “pessoas mais do Nordeste. Vinha essa gente mais morena,
eles eram mais acostumados, decerto para aquelas regiões antes eles plantavam,
cultivavam a menta”.
209
Esta os nortistas lembrados como os detentores do conhecimento
da lida com a hortelã – foi a diferença que se formulou nas lembraas do senhor Milton.
Um campo de tensões e conflitos parece ter se processado no Oeste do Paraná na
demarcação destes espaços. O ofício parece ser um elemento demarcador de diferenças. Se
bem lembrados da trajetória do senhor Geraldo, que veio de Minas Gerais, um trabalhador
que nunca tinha ouvido falar da hortelã e que somente veio conhecê-la aqui na região, no
momento que passou a atuar com a lavoura. Os conflitos se engendram neste campo de
relações sociais, principalmente em demandas por reconhecimento. As pessoas migradas, em
especial das regiões Norte e Nordeste, não tinham conhecimento, ainda, desse cultivo, mas
aprenderam como uma necessidade nas relações estabelecidas com aqueles que se
encontravam no lugar. Os que vieram de outras regiões não estavam ainda acostumados a
cultivarem a menta. As palavras do senhor Francisco, por sua vez foram expressas com
vigor: “então eu vim pra cá e topei esse negócio de plantação de hortelã, então enfrentei”.
210
Uma certa violência, mesmo com ares simbólicos na produção de uma memória
dinâmica, afirma-se neste processo. A construção representativa de um espaço social foi feita
208
Relato do senhor Milton José Sehnem..., relato citado.
209
Idem.
210
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
86
através do trabalho, sobretudo quando o grupo étnico predominante exalta-se enquanto
melhor, minimizando a participação dos demais. Conforme relatou o senhor Azelino Lange:
A maioria [das terras] na época eles davam para esses nortistas, para esse
povo vir ali. Derrubavam e plantavam hortelã, que era a cultura da época.
Eles vinham mesmo para mexer com o hortelã. Não sei se conheciam melhor
ou, se já a raça era mais resistente, porque não era fácil mexer com ele.
211
Um dos traços marcantes de alguns relatos é o tom depreciativo formulado por uma
síntese de diferença: “esse povo” ou “essa gente”. São estigmas usados para falar dos
“outros” que chegaram depois, uma forma de inferiorizá-los. Um povo que teria se
apresentado como mais forte, uma “raça mais resistente”, apta às atividades pesadas das
lavouras. Observa-se que o senhor Azelino impregnou no relato uma eloqüente criticidade a
vinda destes “outros” trabalhadores. O tom argumentativo que alimentou e articulou sua
narrativa não ocorreu a parti da noção étnica, mas de raça, subjugando, assim, esse povo ou
essa gente a uma racialização da diferea.
212
Pelo relato percebe-se uma forma de
inferiorização daqueles hortelaneiros, que parecem estavam subjugados a “mexer com a
hortelã”. Nesta trama interpretativa, legitima-se a posição ocupada por um grupo étnico no
espaço social a partir da noção de segregação entre os mais ou menos resistentes fisicamente.
As imagens representativas desta mobilidade social e das relações de trabalho tendem
a demonstrar significados prenhes nas experiências cotidianas dos diferentes grupos.
Procurando compreender como se dão estas relações, a antropóloga Arlene Renk, ao fazer um
estudo sobre a participação de dois diferentes grupos no Oeste de Santa Catarina, observou
como estes se representam a partir das diferenciações étnicas. O primeiro grupo havia se
estabelecido no século XIX, conhecidos como brasileiros; e o segundo grupo, os de “origem”,
italianos vindos do Rio Grande do Sul nas primeiras décadas do século XX. Traçando a
trajetória dos respectivos grupos, a antropóloga buscou compreender o que levou o primeiro
grupo a ser expropriado de seu espaço e a ser transformado em ervateiro/tarefeiro. A primeira
demarcação de fronteira que se fez sentir nas relações entre os dois grupos foi a de que a
atividade laboriosa de extração da erva-mate era ofício dos brasileiros. Na justificativa dos de
“origem”: “eles [caboclos] só sabem fazer isso”.
213
Assim, as leituras da diferença são
utilizadas na hierarquização das relações entre os grupos. Nas considerações da autora:
211
Relato do senhor Azelino Lange..., relato citado.
212
Ver a respeito do conceito de raça em: APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997.
213
RENK, Arlene. A luta da erva: um ofício étnico da nação brasileira no oeste catarinense. ed. Chapecó:
Argos, 2006, p. 11.
87
A representação de trabalho desse grupo étnico [italianos] é construída sob a
diferenciação social, na qual a etnicidade, isto é, ‘o caráter ou qualidade do
grupo étnico’, é acionada para legitimar as posições ocupadas no espaço
social. A inclusão de um e a exclusão de outro criam as fronteiras sociais e
étnicas entre os grupos envolvidos.
214
Ser um “daqui” ou um “de fora”, ou fazer parte de um ou de outro grupo, são
expressões que, por vezes, se reproduzem como naturais. Naturalizam-se quando os chamados
de nortistas “conheciam melhor” as lavouras de hortelã e por isso desenvolviam a atividade.
O pertencimento a um grupo se fez e se faz pela diferença. A representação do trabalho como
um delineador de fronteiras impõe, hierarquiza e exclui os sujeitos no meio social, atribuindo-
lhes qualidades com que muitas vezes não se reconhecem.
Matizando estas memórias de diferenciação e de estranhamento, o espaço-movimento
ou em movimento foi narrado de modo marcante por Dona Gladis. A paisagem social recriada
com a chegada de outros sujeitos provenientes de diferentes lugares causou-lhe espantos. Isso
se tornou um marco em suas lembranças:
Eu deveria ter o quê? Uns dez anos, por aí, que começou a fase da
agricultura do hortelã. Eu acho que foi então em mil novecentos e sessenta e
oito, por aí, que começou. Então começou a vir bastante gente. Eu sei que eu
morava ainda no sítio quando comou isso, porque eu lembro que quando
eu vinha para cidade nos sábados, para comprar coisas era aquela
movimentação. Isso primeiro não tinha. E foi uma fase que foi a fase do
hortelã.
215
A narrativa de Dona Gladis, na linearidade interpretativa do cultivo das lavouras de
hortelã, expressou dimensões ricas para serem problematizadas. Primeiro, descreveu o
período hortelaneiro em que “começou a vir bastante gente”. O processo de migrão fez-se
perceber de modo intenso. Por outro lado, a fase da agricultura do hortelã” surgiu como um
estranhamento vivido por ela. Orientada pela resignificação, narrou que quando foi à cidade,
ou à vila, no caso, se deparou com “aquela movimentação”. Assustou-se com o que viu. Mas,
não foi a movimentação em si que provocou estranhamento à Dona Gladis, mas o fato de
aqueles que ali se encontravam serem sujeitos alheios ao universo social que estava
acostumada. “Isso primeiro não tinha”, mas passou a ter, segundo suas lembranças, no ano
de 1968. Ela ainda foi enfática ao afirmar: “e foi uma fase que foi a fase do hortelã”.
De acordo com a entrevistada, a presea de pessoas diferentes aos grupos vindos do
Sul causou mudanças naquela paisagem social em formação. E foi neste espaço que as
relações foram tecidas. Um ambiente que se apresentou com estranhamentos e diferenciações
214
RENK, Arlene. A luta da erva..., op. cit. p. 194.
215
Relato de Dona Gladis Elfi Mohr..., relato citado.
88
nas sociabilidades. Na configuração de um espaço comum, como a este que aludi, Antonio
Arantes observou que num espaço “que é cotidianamente trilhado, vão sendo construídas
coletivamente as fronteiras simbólicas que separam, aproximam, nivelam, hierarquizam ou,
numa palavra, ordenam as categorias e os grupos sociais em suas mútuas relações”.
216
Os espaços das relações sociais podem ser assim entendidos como lugares de
memória, como marcou Nora. Os sujeitos se cruzam e se entrecruzam neste ambiente de
movimentação, de mobilidade demográfica. É a partir destes espaços que interpretam o
cotidiano vivido, resignificam-o e “formam zonas de transição”
217
entre passado e presente.
Pelo ato de narrar o espaço habitado, Dona Gladis compôs suas lembranças para dar sentido à
vida e suas experiências. Ela demonstrou as possibilidades de sustentação da memória
revelando-as como uma “voz do passado”.
218
Com estas preocupações, demonstrou um pouco
mais das mudanças no espaço de sua vivência, principalmente quando se buscava a prática de
atividades diferenciadas de produção agrícola:
Olha! Bem no início, eu ainda me lembro, teve até áreas com café. Eu me
lembro grandes áreas com café tivemos aqui. Aí aquilo parece queo
conseguiram muito efeito. Ainda dava muita geada e não tinha muita gente
para trabalhar nisso.
219
Na dimensão de outras experiências e práticas agrícolas, a atividade cafeeira esteve de
algum modo intercalada com a produção hortelaneira. Como podemos observar, as lavouras
de café também foram marcadas com forte conotação: “eu me lembro grandes áreas com café
tivemos aqui”. Esta foi uma experiência sem grandes resultados, conforme relatado, e a falta
de mão-de-obra parece ter sido o maior obstáculo. Segundo a literatura corrente, as variantes
climáticas na região dificultaram o desenvolvimento da cafeicultura. A sua produção teria
sido inviabilizada pelas fortes geadas que destruíram as plantações.
220
De acordo com Venilda
Saatkamp, a experiência cafeeira na região motivou a vinda de muitos. Esta atividade, em
virtude da fertilidade das terras, parecia ser a mais promissora na época. Todavia, ela não
trouxe os resultados esperados porque as geadas (esparsas) trouxeram prejuízos vultosos aos
216
ARANTES, Antonio A. “A Guerra dos Lugares”. In: Paisagens Paulistanas: transformações do espaço
blico. Campinas, Ed. UNICAMP, 2000, p. 106.
217
Idem, ibidem.
218
THOMSON, Alistair. “Memórias de Anzac”: colocando em prática a teoria da memória popular na Austrália.
In: Revista de História Oral. São Paulo, ABHO, nº 04, 2001, p. 85-101.
219
Relato de Dona Gladis Elfi Mohr..., relato citado.
220
GREGORY, Valdir; VANDERLINDE, Tarcisio; MYSKIW, Antonio Marcos. Mercedes: uma história de
encontros..., op. cit., p. 73. Conforme Roberto Schaufelberger, além das fortes geadas, o que influenciou
negativamente a produção de café foi “a falta de experiência dos agricultores”. SCHAUFELBERGER, Roberto.
Itaipu e as conseqüências ecomicas e sociais no distrito de Arroio Guaçu Mercedes. Marechal ndido
Rondon, 2000. 51 p. Trabalho acadêmico (TCC) – História, UNIOESTE, p. 35.
89
cafeicultores que abandonaram esta cultura”.
221
A prática de atividades agrícolas que não
deram certo foram relatas com um sentido de perda. Ocorreram geadas, a falta de experiências
dos agricultores e a falta de mão-de-obra foram obstáculos elencados na justificativa de que
não dera certo a atividade cafeeira.
As lavouras de café no Paraná também foram observadas por Nelson Dacio Tomazi
em seu estudo sobre o “Norte do Paraná”. Através do discurso “Norte do Paraná”, o autor
procurou discutir uma dada fantasmagoria propalada por ideólogos vinculados a setores
dominantes. A construção de uma idéia de região é criticada por Tomazi, a respeito dos
discursos sobre o “Norte do Paraná”, principalmente quando se fala do café e dos
personagens, trabalhadores que ficaram esquecidos. O café foi tido como o povoador daquele
espaço. As pessoas, seus desejos e conflitos desapareceram da cena histórica. Segundo o
autor:, “pouco se fala da vida das pessoas, concretas, hisricas e reais, ou seja dos homens e
das relações sociais que existiram no processo da cafeicultura e na incorporação destas terras
à produção capitalista”.
222
Umas das idéias que foi veiculada pela literatura e outros documentos analisados por
Tomazi sobre o discurso “Norte do Paraná”, foi o da fertilidade do solo propício à
cafeicultura, considerando este lugar como o “Eldorado do Paraná”.
223
Atendo-me a alguns
destes aspectos, destaco uma vez mais o estudo de Regina Beatriz Guimarães Neto, sobre o
processo de ocupação desenvolvido pela empresa colonizadora Indeco, em Alta Floresta e
Paranaíta, Mato Grosso. A autora observou os aspectos propagandísticos utilizados pela
empresa na divulgação das “longínquas terras férteis da Amazônia [que] eram trazidas para
bem perto do imaginário social do pequeno produtor
224
, principalmente, pequenos
proprietários paranaenses, os quais, “como num passe de mágica”,
225
passaram a ocupá-las.
Construiu-se, assim, uma imagem representativa daquele espaço, o que aguçou os agricultores
a se colocarem em movimento com interesse de juntar riquezas nos novos lugares. Incitados
pelo deslocamento a uma terra desconhecida e que era apresentada e representada como um
novo mundo, a terra da fartura e do “café sem geada”,
226
tornou-se uma maldição. As plantas
221
SAATKAMP, Venilda. Desafios, lutas e conquistas..., op. cit. p. 116.
222
TOMAZI, Nelson Dacio. “Norte do Paraná”: Histórias e fantasmagorias. Curitiba: Aos Quatro Ventos,
2000, p. 113.
223
Idem, p. 146.
224
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. A lenda do ouro verde..., op. cit. p. 39.
225
Idem, ibidem.
226
Idem, p. 41.
90
cresciam viçosas, mas não produziam, o que fez muitos agricultores desacreditarem na nova
fronteira agrícola.
Experiências como estas atentam que as relações sociais o são fixas num
determinado espo e não se limitam às fronteiras geográficas. No entanto, o pretendo aqui
assumir uma posição generalizada sobre a questão da espacialidade. Considero, sim, o espaço
que designo para este estudo na produção de uma espacialidade geográfica a partir das
memórias. Como observei, a atividade cafeeira não prosperou e, paulatinamente, outras
atividades agrícolas entraram no rol das lavouras da região, como a hortelã.
Nessas adversidades com diferentes atividades agrícolas, as experiências foram se
constituindo. Aos proprietários, as atividades de produção, a partir das lavouras e da criação
de animais, tornaram-se mercadorias e a subsistência foi regida pela fartura da terra,
provedora de alimentos, da qual os sujeitos, proprietários, arrendatários, enfim, todos os
participantes desta sociedade, recriaram seus modos de vida, vendendo, comprando ou
trocando a sua produção. Na problematização destas lembranças sobre a região, Dona Gladis
continuou delineando esta produção, principalmente nas pequenas propriedades:
Então, naquela época acabou ficando mesmo nestas pequenas áreas de
milho. Quem tinha um pouco de terra branca plantava arroz. Depois, um
pouco mais tarde, plantavam trigo, mas era tudo mais mesmo para o
consumo, e mandioca. Aí faziam polvilho, quem podia fazer já sempre fazia.
tinha cana[-de-açúcar], sempre uma cana para fazer melado, fazer doces.
Tinha pomar. Então ficava, criavam-se porcos para tratar, tinha vaca. Na
época, a minha mãe fazia queijos. Ela trazia, a gente lembra, eu lembro, a
gente, que a gente só precisava comprar sabonete, café,úcar se a gente o
fazia em casa e toda semana a mãe trazia para mercearia, onde se vendia
tudo, trazia isso tudo num balaio. Eu trazia num balaio os ovos e minha mãe
trazia noutro os queijos e vendia ali. um pouco mais tarde, quando a
gente, já começou um homem ou mais, passavam nas casas e pegavam todos
os finais de semanas esses produtos.
227
Observa-se, assim, como a atividade agrícola, até então praticada como de
subsistência, ganhou fôlego no incipiente comércio local, que teve sua produção intensificada
pelo fluxo populacional continuado. Dona Gladis expressou uma forma de viver no campo
que se relacionava, de algum modo, com a pequena cidade, principalmente nas relações
capitalistas que se reproduziam. Ela realçou, ao destacar as plantações de subsistência e as
pequenas atividades comerciais, que o processo da chamada modernização não se engendrou
de um dia para outro. O momento daquela produção se relacionou com “mais tarde”.
Aspectos variados são trazidos pelas lembranças. Nestas, os estranhamentos entre
grupos, como foi pontuado, caracterizou-se de forma enfática. Na apreensão das tramas da
227
Relato de Dona Gladis Elfi Mohr..., relato citado.
91
memória e na arte da produção de alimentos, seja de subsistência ou produção para
comercialização, percebeu-se que as atividades não foram restringidas exclusivamente a um
grupo. Os vindos de outras regiões do Brasil participaram de relações de trabalho que também
geraram produção. Por intermédio do comércio, o senhor Theobaldo apresentou uma relação
aparentemente amistosa com os hortelaneiros. Em seu relato observou:
E então, naquela época, o comércio para pequeno e médio [produtor], o
comércio era muito bom na época, porque existia muitas pessoas que
moravam nas próprias terras dos donos das roças do hortelã, porque ele
precisava da mão-de-obra. E, então, nos fins de semana e tudo, todos os dias
da semana sempre era um movimento. Assim, a cidade era movimentada por
causa da compra daquele pessoal que tinha bastante.
228
Apesar daqueles representados como “outroso terem as mesmas oportunidades ou
não conseguirem adquirir áreas de terra, eles estavam inseridos e eram participantes daquele
sistema de produção. Estes moravam nas próprias terras dos donos das roças do hortelã,
porque ele precisava da mão-de-obra”. No sistema em que estavam inseridos, participavam
na produção de hortelã de alimentos de subsistência, com comercialização de excedentes. Eles
fizeram com que as relações comerciais naquele núcleo populacional tomassem a forma de
movimento, de circulação de capital e mercadoria, não sofrendo, assim, as estigmatizações.
Como estes trabalhadores moravam em terras alheias, o movimento campo-cidade foi
constante no período. De acordo com o senhor Adolfo Hobus, que chegou em Mercedes em
1953, proveniente de Rio do Sul, Santa Catarina, no período do cultivo da hortelã, Mercedes
tinha um movimento constante:
Aqui em Mercedes, no tempo da hortelã, tinha dezesseis táxis aqui na vila.
Correndo para tudo que é canto. Porque aqui na Linha Paulista, Sanga
Guilherme, em baixo, Beira Rio, por tudo, Novo Rio do Sul, em baixo
era tudo hortelã. E o mineiro e o baianoo assim, enquanto eles têm
dinheiro eles não caminham, eles vão de táxi. Então era um movimento só
aqui na vila. A vila escureceu. E quando acabou a hortelã tudo isso foi
embora, isso sumiu tudo assim. Sumiu. Daí o povo entrou com esteiras e
destocando e plantando soja, trigo e milho.
229
As cenas contidas nas lembraas do senhor Adolfo colaboram na afirmação de sua
existência. Ele recordou de uma dimensão de sua vivência junto com outros trabalhadores da
hortelã e, ao mesmo tempo, destacou uma diferenciação entre sulinos, mineiros e baianos. Ao
lado dos estranhamentos vividos, novas relações se colocavam, as quais são marcantes na
narrativa, quando se precisava de muita mão-de-obra e por isso toda aquela movimentação,
228
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
229
Relato do senhor Adolfo Hobus, 68 anos, concedido em 17 de maio de 2008.
92
que se organizou e se reproduziu pelo sistema de arrendamento de terras, no qual o
arrendatário entregava parte da produção ao proprietário. É neste sistema de produção que se
empregavam trabalhadores meeiros, agregados ou mesmo diaristas. Categorias que se
difundiram a partir de acordos feitos entre proprietários de terras e trabalhadores por
intermédio da produção em escala comercial do óleo da hortelã.
Em algumas narrativas, as relações entre proprietários e não proprietários pareceu ser
muito marcante. Conforme observei no relato do senhor Francisco, somente trabalhou: “de
arrendatário, eu trabalhei de a meia com o meu patrão. Eu trabalhei de a meia. Quer
dizer, se desse vinte quilos [de óleo], por exemplo, era dez quilos meu e dez quilos dele
[patrão]”.
230
Demarcando as partes da produção, o senhor Francisco lembrou da quantia que
entregava ao patrão, uma vez que “só trabalhei de a meia”.
Situações semelhantes temos percebido no relato do senhor Antoniel que, quando
migrou para Guaíra, em 1970, trabalhou em terras arrendadas, conforme relatou: “daí
trabalhava em terras arrendadas. Eles também falavam de porcentagem, é que entregava as
vezes trinta, quarenta por cento, essas partes variavam”.
231
A atividade em terras alheias não
seguia um modelo de organização de produção que deveria ser paga ao proprietário. A parte
que cabia ao proprietário e ao arrendatário era decidida em acordos feitos entre ambos.
De acordo com o senhor Theobaldo, os sulinos necessitavam da mão-de-obra destes
outros. Eles não conseguiam, apenas com a mão-de-obra familiar, desenvolver a produção
agrícola. Por isso, existia muitas pessoas que moravam nas próprias terras dos donos das
roças do hortelã”.
232
É interessante notar que o trabalho nas propriedades era feito por
intermédio das relações dos proprietários com outros trabalhadores. A narrativa do senhor
Theobaldo ainda dilui a imagem autônoma dos proprietários, colocando-os na condição de
dependência dos demais trabalhadores na produção. Em contrapartida, estes que, de certa
forma, “moravam de favor”, eram quem derrubavam a mata, preparavam o terreno e
cultivavam a hortelã.
Rosimar Dassi, em estudo sobre a atividade hortelaneira no plano socioeconômico do
município de Palotina, observou que em áreas de 100 a 200 hectares o número de famílias
chegava a 35, desenvolvendo as mais variadas atividades na lavoura e na produção. A
quantidade de mão-de-obra, neste sentido, era considerável, pois as famílias eram bastante
numerosas. Considerando as relações entre proprietário e arrendatário, Dassi observou:
230
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
231
Relato do senhor Antoniel Matos dos Santos..., relato citado.
232
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
93
Os arrendatários deveriam pagar uma renda do produto obtido das terras,
esta renda poderia ser em dinheiro ou em espécie, conforme o combinado. A
porcentagem desta renda variava muito de caso para caso, conforme a
participação do proprietário da terra na obtenção do produto, ela poderia
variar de 10% a 70%.
233
Com base nas narrativas acima e nos dados da pesquisa de Dassi, é possível perceber
que as relações entre arrendatários e proprietários variavam quando se tratava da renda da
terra. É considerável o fato de que o cultivo da hortelã colaborou no plano dos
empreendimentos comerciais. Era na cidade que os trabalhadores faziam suas “trocas”
comerciais, a compra de alimentos e outros produtos necessários no cotidiano. Nessas
relações comerciais é que as cidades ou vilas foram vistas como lugar-movimento, conforme
narrou o senhor Adolfo acima: “tinha dezesseis táxis aqui na vila”. O processo intenso de
migração contribuiu para transformar a região o tempo todo:
Ainda daquelas mercearias da época, da época do hortelã, ainda hoje existem
algumas também ainda. Sempre ainda existem. Então sei como é que a
gente chama aquela, se era uma era assim de ouro igual era aquela borracha
na Amazônia. Ou se era um fracasso para bem ou para o mal, eu até nem
posso dizer. Mas era interessante porque havia bastante comércio assim pelo
menos ônibus, táxis, muito serviço, muito trabalho para levar pessoal até no
interior, do interior para cidade e de todo jeito tinha bastante comércio na
época.
234
Mais uma vez o espaço-movimento surge relacionado com aquele ambiente social das
transformações ocorridas. Restitui-se, assim, “uma memória que acompanha as mudanças e
também resiste às mudanças”.
235
Essa movimentação resulta da chegada dos migrantes que
vieram para o Oeste do Paraná como uma possibilidade de melhores condições de vida.
Todavia, a narrativa demonstrou uma dimensão positivada destes trabalhadores. Uma vez que
é a partir da presença dos mesmos, nas suas relações e dinâmicas sociais, que se desenvolve o
comércio na época, isto é, nas décadas de 1960 e 1970. Então, como lembrou o senhor
Theobaldo: não sei se era uma era de ouro ou se era um fracasso. Toda essa
movimentação que lembrou o confundiu. Ele não soube explicar o que foi aquele período de
produção da hortelã, a qual a ele pareceu uma era de ouro que acabou. Aquela era uma época
que tinha comércio, tinha trabalho, tinha bastante gente, mas acabou. Novamente de acordo
233
DASSI, Rosimar. Influências da produção de hortelã na capitalização do pioneiro palotinense, 1965/75.
Toledo, 1992. Trabalho acadêmico (TCC) - Ciências Econômicas, Faculdade Arnaldo Bussato, p. 16.
234
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
235
PORTELLI, Alessandro. Tentando Aprender um Pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética na História
Oral. Projeto História, São Paulo, 15, 1997, p. 33.
94
com o senhor Adolfo: “quando acabou a hortelã tudo isso foi embora, isso sumiu tudo assim.
Sumiu”.
236
O senhor Adolfo pareceu não dimensionar aquele processo de exclusão quando
encerraram as atividades ligadas à hortelã. Eles simplesmente “sumiram”. Dialogando ainda
com o fragmento das lembranças do senhor Theobaldo, observei que, desta vez, os “outros”
não foram estigmatizados, pois as relações comerciais causaram uma interdependência entre
os grupos. Estas relações podem ser compreendidas a partir do que advertiram Elias e
Scotson: “um grupo pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em
posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído”.
237
As diferenças observadas não devem, simplesmente, ser enquadradas nas
características “estabelecidos-outsiders, mas algumas relações podem ser preestabelecidas na
figuração de poder a partir de estigmatizações: estar bem instalado ou de passagem, ser
excluído ou fazer parte do grupo, ou ainda quando a vila escureceu”. São representações
formuladas no bojo das relações sociais de poder. As posições de poder são tomadas em
algumas narrativas, como na do senhor Theobaldo, que ressaltou que os hortelaneiros
estiveram simplesmente de passagem:
Eles chegavam e não sabiam nem, eles eram assim, não sei se amanhã eu
estou aqui ou estou longe. E tamm a maioria não se preocupava em fazer
uma economia ou talvez assim prosperar um pouco na vida também, não se
preocupavam também nessa área. Era assim acho que era um pessoal que já
era desse tipo de vida assim.
238
A leitura feita pelo senhor Theobaldo sobre aquelas relações sociais denota um sentido
compartilhado dos viveres destes outros para afirmar uma alteridade num lugar que pareceu se
colocar numa posição privilegiada no convívio social. Falar que estes “outros” estavam
simplesmente de passagem é uma maneira de negar a presença dos mesmos enquanto
portadores de historicidade e de afirmar a propriedade das atividades, bem como dos modos
de viver e trabalhar. As relações de poder, desse modo, se estabelecem numa inferiorização, a
qual nega os modos de vida destes outros os colocando longe do seu grupo de pertencimento.
Estar longe ou perto, hoje aqui e amanhã o sei onde, fazer uma economia e prosperar um
pouco na vida são maneiras de um grupo ver, de acordo com Elias e Scotson, o “seu poder
superior como um valor humano mais elevado”.
239
As relações de forças o medidas pelo
236
Relato do senhor Adolfo Hobus..., relato citado
237
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder de
uma pequena comunidade. Trad: Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 23.
238
Relato do senhor Theobaldo Augusto Frederico Mohr..., relato citado.
239
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os Estabelecidos e os Outsiders..., op. cit. p. 28.
95
status social, pois os trabalhadores nortistas, segundo o relato, “era um pessoal que era
desse tipo de vida assim”.
Os migrantes que vieram para as lavouras de hortelã eram temporários, não tinham a
certeza de continuar na terra porque não tinham nenhum vínculo contratual de trabalho e nem
a propriedade da terra. Por isso tornavam-se, muitas vezes, itinerantes. Entendo que foi nesta
interpretação que o senhor Theobaldo lembrou acima: eles chegavam e não sabiam nem,
eles eram assim, não sei se amanhã eu estou aqui ou estou longe. A diferença é marcada por
uma expectativa da migração que coloca muitas vezes em conflito proprietários e não-
proprietários.
As diferenças cio-culturais são marcadas pelas próprias expectativas e
possibilidades de pertença dos migrantes. De acordo também com as lembranças do senhor
Gilson José, as habitações desses trabalhadores eram provirias.
[Essas] famílias moravam em casas de madeira, bastante rústicas, com
tabuas rústicas. Caibros de pé-direito feito de madeiras roliça, coberto com
telhas de madeiras, feitas com lascas de tronco de coqueiro que eram
pregadas umas sobre as outras. O assoalho era de chão batido, praticamente
argila. A mobília deles era também bastante rústica, pouca mobília, somente
tinham o necessário.
240
As expressões de passagem e o fato de morar em casas provisórias frisa uma
marcação narrativa quando o entrevistado toma estas lembranças como marco em sua
memória para falar sobre as plantações de hortelã. As casas com pouca mobília, assoalho de
chão batido e telhas de madeira são lembranças tomadas pelos migrantes do Sul do Brasil para
se reportar às condições de vivência dos hortelaneiros vindos de outras regiões. Casas e
modos de vida rústicos impregnam um sentido de pertencimento dos nortistas, mineiros ou
baianos a condições subalternas naquelas vivências cotidianas.
Nas considerações de Regina Beatriz Guimarães Neto, em seu estudo sobre a
Amazônia, a pobreza faz com que os sujeitos migrem de um lugar a outro. São homens e
mulheres que, contando apenas com a sua força de trabalho, se inscrevem em trajetórias em
que a Amazônia apresenta-se enquanto uma paisagem sedutora que irá prover todas as
necessidades para melhorar as condições de vida. Nestas observões, os trabalhadores:
Mudam constantemente de atividade: das lavouras para extração do ouro e
diamante ou para as derrubadas de floresta, e mesmo para as grandes
fazendas e projetos industriais, num movimento oscilante. Acabam por
240
Relato do senhor Gilson José Philippsen..., relato citado.
96
formar uma força de trabalho disponível que se desloca de uma área a outra,
sempre à procura de novas terras e trabalho.
241
Os trabalhadores migrantes fazem parte de grupos sociais que se movem entre
cidades, estados ou regiões. Avassalados quase sempre pela pobreza, transitam de lugar a
lugar. Muitas vezes perdem/reelaboram suas referências sociais de pertencimento ao grupo,
interagindo com outros campos sociais por se tornarem nômades.
242
O que impressiona é o
fato destes migrantes atuarem num determinado período histórico e suas memórias
permanecerem, grosso modo, silenciadas pelos estudos de órgãos oficiais e acadêmicos. Na
emergência dessa trama, segue-se um modelo institucional de desenvolvimento apresentando
o trabalhador como uma força “necessária”, porém perigosa, que necessita de controle e
exclusão.
243
As lembranças sobre o período hortelaneiro continuam pulsando neste meio e isto me
instigou. Ao interrogar as lembranças (que para alguns entrevistados o plantio de hortelã
constituiu-se numa “luta”, para outros, o período foi definido como “bom”), elas por vezes se
colocam em um terreno sem a explicação plausível, numa fronteira entre a definição do bom e
do ruim. Outra vez o senhor Geraldo auxilia a discussão:
Então, naquela época, eu acho que o horteera muito bom. O pessoal lidar
com ele era muito bom, que era frio. Tinha muita gente que não se dava
muito. Mais eu, eu lidei bastantes anos e nunca deu uma coisa em mim. Eu
achava muito bom, era muito divertido, tinha bastante gente. Para vo
cortar, vamos supor assim um salamim [medida da lavoura utilizada pelos
hortelaneiros]. Um salamim é vinte e cinco por cinqüenta e cinco! Um
salamim. Então dava um quadro assim, dava mais ou menos uma meia
quarta, assim [área de terra]. Então, ali eu cortava aquela época com a
enxada, uma enxada grande, bem larga assim. E daí foi e inventaram aquelas
gadanhas [ferramenta]. Aquelas gadanhas grandes assim para cortar.
Antigamente, eu o cortava mais nem meio, nem meio salamim por causo
que não era, com a enxada não era bem treinado. Aí depois que eles
compraram aquelas gadanhas daí eu cortava às vezes um, dois, até três
salamim por dia, só que daí eu não rastelava, tinha que rastelar, fazer aqueles
montinhos pro caminhão ou mesmo a carroça passar no meio carregando.
244
É interessante ressaltar como o mesmo atuou para dar visibilidade aos modos de
trabalhar com a hortelã. Permeada por diversos sentidos, a narrativa procurou dar conta de
estranhamentos vividos no cotidiano de trabalho. A sensação física de friagem provocada pela
hortelã foi ressaltada como uma dificuldade, uma insalubridade que desabilitava a
241
GUIMARÃES NETO. Regina B. Vira mundo, vira mundo: trajetórias nômades. As cidades na Amazônia.
Projeto História. São Paulo: Editora da PUC, v. 27, 2003, p. 60.
242
Idem, p. 61.
243
Idem, p. 69.
244
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
97
continuidade da atividade, principalmente no processo de destilação da planta nos alambiques.
Para o senhor Geraldo isso foi algo superado, pois, com certa entonação, afirmou: eu lidei
bastante anos e nunca deu uma coisa em mim”. Mediado pelas relações com os demais, a
sensação ou frio parece ter se tornado insignificante: eu achava muito bom, era muito
divertido, tinha bastante gente”.
Uma lembrança bem próxima dessa do senhor Geraldo foi ressaltada por seu Dito,
sobre o cuidado que deveria de se ter com o óleo da hortelã: “que era um óleo, ele batia no
corpo, ele era frio e depois começava a esquentar, aquilo esquentava muito. E incomodava
onde ele caía. Então tinha que cuidar muito. Aquilo ficava tudo gelado o corpo”.
245
É
revelador como imprimem imagens das experiências vivenciadas no trabalho com a hortelã.
Aqui, denotou-se o cuidado que deveria de se ter com o próprio óleo. O produto resultante da
produção não poderia entrar em contato com a pele, pois provocaria profundas sensações de
frio, seguidas de queimaduras.
O relato do senhor Geraldo apresentou uma realidade exposta a ltiplas leituras. As
técnicas para lidar com a hortelã foram paulatinamente aperfeiçoadas, e ele precisou aprender.
Ressalta-se, então, que as lavouras de hortelã o se apresentaram como realidades dadas,
mas como um processo que foi se constituindo com ou nas experiências deles próprios.
Na teia destas memórias, é pertinente observar as indagações que ficaram postas pelo
senhor Geraldo no relato acima. O que seria o salamim” sobre o qual relatou? No mesmo
tom, ele próprio respondeu sem que houvesse uma indagação: “então dava um quadro assim,
dava mais ou menos uma quarta assim”. A expressão salamim adquire significado particular
para os hortelaneiros, pois imprime o signo de identificação deles próprios com esse tipo de
atividade. O salamim era uma medida de dimensão retangular de área plantada com hortelã de
25 por 55 metros quadrados.
246
Uma maneira de identificar a área que lhes cabia numa
lavoura articulada à produtividade enquanto meeiro ou mesmo diarista.
Os modos de trabalhar com a hortelã levaram a outros estranhamentos, segundo o
senhor Geraldo. Na medida em que foi atuando, as próprias ferramentas motivaram
dificuldades. Primeiro, utilizava-se da enxada para cortar a hortelã: “eu não cortava mais nem
meio, nem meio salamim”. Realçou que seu rendimento na produtividade era baixo. Depois,
com a utilização de outras ferramentas, como as gadanhas, a produtividade recolocou-se
notória. As lembranças reforçaram esse processo em virtude do melhoramento das técnicas de
245
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
246
Segundo o Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, ed. São Paulo, 1970, p. 275. Salamim ou celamim:
antiga medida agrária que equivalia à décima sexta parte de um alqueire ou 1.512,5 m².
98
colheita da erva. Quando se passou a utilizar as gadanhas, cortava às vezes um, dois, até três
salamim por dia”. Com a nova ferramenta, o rendimento dobrara e com isso se tinha mais
produtividade no trabalho.
As memórias sobre o período hortelaneiro, muitas vezes, dialogam com outras
discordâncias sobre aquele universo de trabalho. As linhas contraditórias da memória podem
se tornar desafiadoras para a pesquisa histórica. No movimento cotidiano das lavouras de
hortelã, o senhor Geraldo narrou outros sentidos que lhe inquietavam:
Era sofrido, sofrido. o, não era, quer dizer não era tão sofrido, o mais
sofrido era mexer com o negócio da pipa, lambicar o hortelã. Mas, para você
cortar no mato e carregar ela, não. Era uma coisa boa para fazer. O mais,
que mais era divertido, que todo mundo trabalhava bastante e tinha dinheiro.
Hoje você trabalha muito e não tem dinheiro, isso que é o problema.
247
Nas experiências do cotidiano trilhado nas lavouras, ao mesmo tempo em que diz ser
sofrido, também se opõe à própria lembrança dizendo que “não era tão sofrido”. Neste
campo, todavia, se coloca um problema na intromissão ao passado, quando ao lidar com a
memória se requer um aprendizado, o da interpretação. Na urdidura daquele cotidiano, as
experiências são tecidas/interpretadas numa atualidade vivenciada de maneira ambígua. Nas
dificuldades do presente parece diluírem-se os sofrimentos enfrentados na atividade: “hoje
você trabalha muito e não tem dinheiro, isso que é o problema”.
O sofrimento foi relacionado a algo positivo para justificar uma realidade em que se
trabalhou muito, e um futuro sem justificativas para melhorar as condições de vida que
parecem ainda incertas. No conjunto de memórias, os entrevistados, muitas vezes, entram em
conflito com as suas próprias lembranças. O passado foi reelaborado quando se buscava
atribuir ao mesmo alguns significados. Esboçando os traços não temporais de sua experiência,
mas o fragmentário, o senhor Francisco compartilhou lembranças conflitivas:
É bom. Meu Deus do céu [a hortelã] uma coisa boa! Aquilo haverá de voltar
Gilson, haverá de voltar. Um troço muito cem por cento. Então eu lutei
muito com aquilo. Lutei. Até hoje, se viesse, que eu estou velho eu tinha
coragem de lutar ainda viu Gilson. Mas, tem uma coisa, não tem
domingo, não tem dia santo, não tem nada, compreendeu? E é uma luta boa.
E eu lutava sozinho, quase sozinho, porque era muito menino [filhos] e a
mulher tinha que zelar dos meninos e eu sozinho plantando. Então, a luta foi
boa. E tem uma coisa, eu tenho saudades daquilo ainda, tenho saudades que
é um serviço bom, igual o que eu estou te falando. E tem uma coisa da
roçada até a derrubada, até plantar isso vai serviço. Mas que é bom, é.
248
247
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
248
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
99
Tocado pelo exercício de uma reflexão ressentida e dialogando com a ppria
trajetória, o senhor Francisco uma vez mais se envolveu com o pesquisador em seu enredo,
para atuar como força legitimadora de suas lembranças. A memória expressa um cotidiano
que não é dado como acabado. Há nele uma imagem daquele passado que continua a
interpelar o presente, pois novamente teria coragem de trabalhar com a hortelã. O senhor
Francisco narrou o inaceitável e, se preciso, trabalharia outra vez com a hortelã. Para ele o
trabalho com a hortelã tem significados de uma luta” boa, uma vez que se sentia
recompensado no exercício da atividade. Ele como hortelaneiro, de forma enfática relatou que
sente saudade do trabalho com a hortelã, o que contrapõem ao relato de Dona Gladis quando
afirmou não deixar saudade o tempo da hortelã. A diferença é demarcada por aquele que
trabalhou como hortelaneiro/meeiro e quem somente recordou da atividade observando de
fora. A memória, assim, reflete o campo da ação humana, quando a atividade hortelaneira foi
relatada enquanto uma luta empreendida naqueles mundos o senhor Francisco também
procurou demarcar a sua posição, em que, na atualidade, lhe incomoda a falta de trabalho.
Em suas interpelações, fez um pedido ao futuro incerto: “aquilo haverá de voltar
Gilson, haverá de voltar”. Uma atividade para ele inacabada, presa nas teias de suas
recordações, no plano de suas experiências o seu desejo é o de retorno. Sobre o mesmo sente
saudade: “eu tenho saudades daquilo ainda, tenho saudades que é um serviço bom, igual o
que eu estou te falando”.
Na amplitude de uma experiência articulada a um presente que lhe parece não fazer
sentido, o senhor Francisco organizou uma imagem presente em sua memória ao relatar: “era
uma época bonita Gilson. Naquela época, no meio do hortelã, você podia plantar melancia,
você podia plantar um milho ainda em algum trechinho. Aquela época tinha fartura e hoje o
que é que tem?
249
Intimando aquela dimensão vivida com fartura, o senhor Francisco recriou
um quadro no qual aparece refletida a terra provedora de toda a existência. Uma terra ppria
ainda sonhada por ele. Assim, não dialoga somente com o passado vivido, mas também com o
presente conflitivo, principalmente quando a falta de terra própria ainda se coloca. Desde
quando chegou ao Paraná, em 1965, sempre trabalhou em terras alheias: “era tudo terra dos
outros”. Hoje mora na cidade, é aposentado e sente necessidade de continuar mexendo na
terra. Conforme o senhor Francisco:
É o tal negócio: se ganhasse uma posição da gente trabalhar mais e mais
livre era melhor, né Gilson? Que do jeito que a gente está trabalhando, estou
trabalhando emprensado. Que eu estou velho, que eu vou fazer sessenta e
oito anos agora, no mês de agosto. Mas, tenho vontade aí de plantar três,
249
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
100
quatro alqueires de roça aí que eu aguento zelar, eo posso plantar que não
tem terra.
250
Ao narrar a necessidade de continuar na roça, o senhor Francisco parece reivindicar
uma nova posição em relação ao que vivera. Ele trabalhou toda sua vida e não conseguiu
ser proprietário, reclamando ainda uma área de terras para plantar. Diante de uma situação
extrema, viver na cidade pareceu sufocar as esperanças de continuar cultivando a terra. Um
mundo restrito se impôs ao entrevistado. A dificuldade de viver em um meio que não é seu
faz emergir um sentimento de não liberdade, de trabalhar “emprensado”, de trabalhar para os
outros. Talvez, nesta alusão ressentida, a falta de liberdade seja um dos sentidos
compartilhados por aqueles despossuídos. Num terreno conflituoso construiu uma imagem
demarcadora do espaço de sua vivência. No presente, enquanto morador da cidade, fez uma
avaliação na posição de arrendatário:
Ninguém arrenda. Então é por conta disso. É isso que eu te falo. Olha, eu
não posso plantar uma melancia, não posso plantar um pé de milho, eu o
posso plantar nada porque ninguém me dá terra para plantar. E naquela
época do horte s tinha mais ativa, mas tomaram tudo como igual eu
estou te falando. Então, o problema é esse que eles tomaram para plantar
soja, então agora cabe a posição que está aí.
251
Demarcando um chão tenso, a narrativa encaminhou-se para uma explicação de sua
atual exclusão. Quando o senhor Francisco tinha condições físicas para trabalhar conseguia
terras para plantar. Na atualidade, esvair-se a possibilidade de continuar cultivando a terra.
Assim, observa-se o desfazer-se de um trabalhador. Na narrativa transpareceu o sentimento de
alguém que não tem mais lugar no mundo em que vive. Sente-se excluído e porque foi
excluído, não obtém os meios de produção para a atual atividade agcola que é a monocultura
da soja, maquinários e implementos agrícolas. Justificando a sua condição de não conseguir
arrendar terras: “então, o problema é esse que eles tomaram para plantar soja, então agora
cabe a posição que está aí”. Os conflitos existentes na sociedade foram percebidos nas
relações de poder às quais são/estão submetidos. Quando não servem mais para o trabalho,
estão de idade avançada, sentem-se excluídos daqueles mundos onde durante muito tempo
apenas “serviram para trabalhar”.
Num diálogo articulado por sentidos próprios, o senhor Francisco expressou que desde
quando chegou ao Paraná:
Aqui em Mercedes, ali na ponte indo para Bela Vista. Eu entrei ali, Gilson,
ali na terra do Teobaldo Loffy. E esse tempo todo, eu entrei ali já derrubando
250
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
251
Idem.
101
mato e plantando hortelã, e esse tempo todo, sabe quantos anos eu morei fora
das terras do Teobaldo? Dois anos. Até hoje.
252
A recordação do tempo de trabalho no Paraná apontou a temporalidade da sua
chegada, na década de 1960. A experiência de trabalho do senhor Francisco sobre todos esses
anos no Paraná foi tecida para um proprietário de terras da região. Somente dois anos, dos 43
que vive no Oeste, não trabalhou para este proprietário. Para além das formas que se
processaram: “eu trabalhava de a meia”.
253
Uma leitura do não reconhecimento pelo serviço
prestado parece ficar ressentida.
Uma recomposição das trajetórias é expressa ao recordar do trabalho. Na articulação
destas memórias, Ecléa Bosi tem observado: “não esqueçamos que a memória parte do
presente, de um presente ávido pelo passado, cuja percepção ‘é a apropriação veemente do
que nós sabemos que não nos pertence mais’”.
254
O passado não é um tempo vazio. Ele está
repleto de imagens ou representações ideológicas que interpelam a atualidade, como
mencionou o senhor Francisco a respeito das lavouras de hortelã: “aquilo haverá de voltar,
Gilson, haverá de voltar”. Ao lembrar daquele momento foi este o apelo de um retorno do
cotidiano, que interpretou como tendo sido bom.
As memórias destes estranhamentos e tensões forjadas no mundo do trabalho, na
alusão de um passado/presente, dão visibilidade ao espaço de sujeitos reais. Estes significam
suas maneiras de serem e estarem vivendo num lugar repleto de desigualdades sociais.
Todavia, a monocultura da soja, que passou a ser cultivada com a extinção das lavouras de
hortelã, apresenta uma terra desnuda de gente, onde quase tudo é feito de forma mecânica.
No ladrilhar das lembranças, seu Dito também se fez conhecedor destas contradões
sociais, as quais imprimiu sentidos de que: “agora fica mais os fazendeiros e os
aposentados vão ficar por aqui, porque serviço não existe mais que é tudo na base do veneno,
essas coisas”.
255
Em sua leitura, seu Dito atribui significados à dinâmica social. A exclusão
daqueles que não têm mais serventia, ou mesmo dos mais jovens que não conseguem uma
posição no campo, assume uma dimensão significativa para ele. A narrativa ganhou tal
dimensão pelo fato dos mais jovens precisarem deixar o campo à procura de trabalho em
outros locais, como por exemplo, aas filhas terem que ir para Santa Catarina para
conseguirem emprego. Em sua reiteração: “eu sei que cada vez vai modificando mais, que
252
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
253
Idem.
254
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p. 20.
255
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
102
vão ficando os grandes e os pequenos são obrigados a se retirarem. Os que podem. E os que
não podem?
256
Configurando sentidos próprios na participação deste processo de exclusão,
interpretou, a partir de sua experiência, a necessidade de muitos procurarem outros lugares.
Os mundos do trabalho parecem diluírem-se com as mudanças que vão ocorrendo, as quais
podem ser entendidas como o uso de novas técnicas utilizadas nas lavouras ou na ppria
saída de grande parte da população, que faz falta ao mundo social do entrevistado.
Interessante notar que seu Dito indagou sobre aquelas relações: “e os que não podem”
se retirar? Em um ato repentino, buscou estabelecer a identificação de disputas sociais
ocorridas. As relações vão se operando no campo das resistências e os mesmos, como no caso
de seu Dito, o “obrigados a se sujeitar pela ausência de horizontes sociais alternativos”.
257
Os proprietários conseguem manter-se na terra enquanto os demais trabalhadores ou pequenos
proprietários necessitam buscar outros lugares em itinencias que se repetem, como o senhor
Francisco que, saído do campo, teve de ir para a cidade. Como bem destacou José de Souza
Martins: “há os que vão embora pra sempre, pra nunca mais. Pra esses Severinos e Marias a
estrada o tem volta: ou a mata longe ou a favela. Mas os que vão se acabando aos
poucos”.
258
Numa luta muitas vezes desesperada nas cidades, em outros estados ou no
Paraguai, a itinerância é a busca de um lugar que continua incerto.
Por diversas vezes seu Dito exaltou a sua localidade, Arroio Guaçu. Isso transpareceu
porque aquele é o seu mundo, mas o que quero pontuar é o fato de exaltar a época das
lavouras de hortelã como um período muito movimentado. A configuração social trazida
pelos trabalhadores que frequentavam a pequena vila foi matizada em suas lembranças:
Durante o final de semana se tornava bem forte porque todo mundo ia e
pagava as dívidas que devia e já fazia compra e tudo. Já comprava outra vez.
Que os armazém se viravam muito bem, ia na loja não precisava correr
longe, ia ali mesmo. Fazia compra de roupa e tudo ali.
259
A vivência naquele espaço é construída como uma imagem de aceitação ou recusa de
um condicionamento social. Esse lugar social narrado pode ser entendido enquanto “laço
psicológico do homem com o espaço”.
260
Cumpre destacar que, na narrativa de seu Dito, o
tempo de antes se tornou uma referência. Ele concedeu sentido à sua existência rememorando
e interpretando suas vivências, que surgiram resignificadas. De outro modo, um sentimento
256
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
257
THOMPSON, E.P. Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 40.
258
MARTINS, José de Souza. Não há terra para plantar neste verão..., op. cit. p. 10.
259
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
260
FRÉMONT, Armand. A Região, Espaço Vivido..., op. cit. p. 109.
103
presente na narrativa é o da perda. Com o fim da hortelã e com a diminuição da população, as
casas comerciais tiveram de fechar por não terem tantos fregueses. A recordação da
experiência apresenta uma leitura do passado: “[e] se descobrem as imagens mais
significativas do ponto de vista das pessoas que passaram pela experiência dos primeiros
tempos, relacionada a acontecimentos comuns e mesmo inusitados, que os relatos orais
retransmitem ou (re)apresentam, para constituir um passado/presente da comunidade”.
261
A
experiência-memória de um tempo partilhado e múltiplo resignifica aquele espaço.
As lembranças da movimentação nas localidades, ou pequenos povoados, parecem
fundamentais quando os entrevistados narram sobre o período hortelaneiro. Ao dialogar com
as recordões compartilhadas pelo senhor Antoniel, este se referiu ao período em que vivera
na localidade de Salamanca, interior de Guaíra, onde residiu de 1971 a 1995, mensurando um
viver cotidiano que está para além das atividades nas lavouras:
Ali era só hortelã, puro, puro hortelã. Então, tinha muitas famílias que
moravam ali. Ali vinham circos de... Aqueles circos que vem assim nas
cidades, vinham e ficavam ali semanas e semanas. Quando uma saía vinha
outros. Vinham aqueles cantores: Léo Canhoto e Robertinho e vieram
outros... Eu não me lembro mais, eram vários cantores que tinham lá, que
vieram. Daí foi acabando o horte e o pessoal foi indo embora para o
Paulo, Curitiba e outros lugares.
262
As lembranças do senhor Antoniel se reportam a outra dimensão da realidade que até o
momento não havia se apresentado à pesquisa. A época em que ocorreu a produção de hortelã,
o ambiente social e de trabalho também esteve imbricado com os espaços de práticas lúdicas.
O circo surgiu como um momento de recreação, de diversão para os trabalhadores e suas
famílias. Isso denota que os pequenos povoados e vilas tiveram um número elevado de
população, como ressaltou o senhor Antoniel: “tinha muitas famílias que moravam ali”.
Conforme expresso pelo entrevistado, até mesmo duplas caipiras se apresentavam nestes
espaços, como foi o caso de Léo Canhoto e Robertinho, dupla que na época era consagrada no
gênero musical de moda de viola.
O circo apresentava os artistas errantes que iam de um lugar a outro se apresentar ao
público. Eles provocavam uma mudança social no cotidiano pelo divertimento e
entretenimento da populão que assistia ao espetáculo. Analisando matérias jornalísticas
propagadas pela Rádio Difusora de Marechal ndido Rondon, Rosimeri Ruppenthal
261
GUIMARÃES NETO, Regina B. “Personagens e memórias. Territórios de ocupação recente na Amania”.
In: CHALHOUB, Sidney, NEVES, Margarida de Souza, PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Histórias
em Cousas Miúdas. Capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006,
p. 07.
262
Relato do senhor Antoniel Matos dos Santos..., relato citado.
104
observou que as duplas caipiras acompanhavam o circo.
263
Assim, torna-se notável que a
presença do circo na memória das pessoas, como fora relatado pelo senhor Antoniel,
distingue-se de uma perspectiva histórica. Em Marechal ndido Rondon, “a presença do
circo como elemento constitutivo desse cotidiano”
264
fragmentou uma visão idílica que se
tinha dos sujeitos estarem somente voltados ao trabalho. O cotidiano, assim narrado,
apresentou uma realidade que transcendia o espaço de trabalho e que ficou inscrito na
dinamicidade daquelas relações cotidianas.
De outro modo, as recordações, por vezes, foram impregnadas de contradições e
ambiguidades, rompendo as linhas do tempo para se fazerem presentes. O senhor Jo
Honorato Alves, que migrou com a esposa e filhos de Imaruí, Santa Catarina, em 1969, para o
atual município de Mercedes, também viveu tais conflitos. Não possuindo terra própria,
procurou terras para arrendar e a proposta que lhe fizeram foi de plantar hortelã. Ele
rememorou:
Com aquela proposta de arrendar terras, eu digo vamos fazer já o negócio, aí
nós fizemos. Então, pra mais de dois anos, seria o tempo que o hortelã
saísse. Eu cheguei em casa e falei pra mulher. Aí ela me disse assim: que
coisa, os outros plantam milho, mantimentos pra comer e nós vamos plantar
mato? Eu digo, pois é mulher, vamos experimentar. nós comecemos com
o hortelã, mas assim meio descooado, meio desanimado, assim foi nossa
lida, primeira viajem [safra] que nós fizemos com o hortelã saiu mal.
265
O próprio trabalho nas lavouras de hortelã foi um estranhamento vivido pelo senhor
José. O ensejo por melhores condições de vida fizera com que migrassem. Num movimento
de dar sentido à sua experiência, o relato delineia a questão de tomar o cultivo da hortelã
como um aprendizado. Foi uma possibilidade de trabalho que aceitara num chão tenso que
estava posto. Até mesmo sua esposa lhe indagou: e nós vamos plantar mato?. O que era
estranho para o senhor José agora foi compartilhado com a esposa. A planta, que para eles era
conhecida como “mato”, para outros era uma fonte de renda. Trabalhar com a hortelã, para o
senhor José, também foi um processo de aprendizagem: a gente não sabia, não conhecia da
lavoura, tinha ouvido os outros falar, a gente esperava muito e deu pouco. Mas, a gente
trabalhava com em Deus e em Nossa Senhora também e fomos lutando, fomos lutando”.
266
Na jornada de trabalho enfrentada pelo senhor José e família, a hortelã tornou-se um caminho
263
RUPPENTHAL, Rosimeri S. Análise sobre a memória circense. Marechal Cândido Rondon, 2003.
Monografia de conclusão de curso em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, p.
18.
264
Idem, p. 16.
265
Relato do senhor José Honorato Alves..., relato citado.
266
Idem.
105
trilhado com persistência. Dialogando ainda com a sua narrativa, expressou suas experiências
nas lavouras de hortelã. Mesmo com muitas dificuldades, manteve-se nestas relações de
trabalho, com a aquisição de um alambique para a destilação da hortelã. Nas lembranças
daquele processo:
Compramos o alambique, s começamos a trabalhar. O negócio ficou
melhor. Nós fomos trabalhando, fomos trabalhando, que nós o
trabalhava, vamos supor, assim, sete dias por semana, nós trabalhava
quatorze dias por semana porque nós virava dia e noite, porque nós tinha
uma base de uns três alqueires, o patrão tinha uma base de uns dois alqueires
e nós tinha uns, mais trinta alqueires por fora que nós lambicava pra eles. No
grosso da safra, nós trabalhava dia e noite. E à noite eu deitava, às vezes, às
quatro horas da manhã e antes do dia clarear eu saía da cama pra atender
os fregueses pra lambicar. Assim foi nossa luta e graças a Deus tudo que nós
temos aqui [casa], como tu tais vendo, foi na base do hortelã. Então,
portanto, quando se fala hoje em dia o hortelã, eu deveria de pôr minha o
para o u e tirar o meu chapéu da cabeça, sinal assim de agradecimento a
Deus por ele ter dado pra nós o que s temos hoje em dia aqui. Foi tudo na
base do hortelã, trabalhando assim de empregado que nós conseguimos
chegar onde nós estamos hoje.
267
O senhor Jodesenrolou os fios da memória e narrou a dura jornada de trabalho de tal
forma que transpareceu a mão-de-obra exigida no processo de alambicagem da hortelã: “nós
trabalhava quatorze dias por semana porque s virava dia e noite”. Durante o período da
colheita, a atividade tornava-se mais pesada: era necessário aproveitar o momento de
florescimento da hortelã e, com vários alqueires, fazer a destilação durante o dia e a noite.
Sobre a colheita da hortelã, foi escrito no jornal Informativo Copagril:
A Menta apresenta sua maior riqueza em óleo na fase do florescimento. É
nessa fase, entre início e o final do florescimento, que deve ser colhida,
deverá ser colhida até os 15 dias após o início do florescimento. Um atraso
na colheita acarretaria perdas de até 100% em função das quedas das folhas,
ou perda fisiológica de até 10%.
268
Para obter um bom rendimento era necessário respeitar o tempo da produção, que
ocorria durante o período de florescimento da planta. Respeitando tal ritmo: no grosso da
safra, nós trabalhava dia e noite”. Nesta perspectiva, as relações com a paisagem social
também ficaram postas, pois o alambique atendia a vários proprietários de lavouras de hortelã
do entorno e era preciso aproveitar o momento do florescimento. O alambique servia também
para uma espécie de locação. O trabalho atendia a vários proprietários ou trabalhadores que
possuíam lavouras que deveriam ser destiladas. Nas considerações do senhor Antoniel:
267
Relato do senhor José Honorato Alves..., relato citado.
268
Cultura da menta. Informativo Copagril. Marechal Cândido Rondon, novembro de 1977, 14, p. 11.
Acervo do Centro de Pesquisa da Prefeitura de Marechal Cândido Rondon.
106
“nessa época de colheita dormia pouco, que no outro dia tinha que trabalhar de novo para
conseguir cortar tudo”.
269
Trabalhar muito, dormir pouco. Referências narradas do trabalho pesado desenvolvido
no período hortelaneiro que se justificam pelas recordações como uma “luta boa”. As lavouras
de hortelã parecem ter exigido muito trabalho. Com exclusividade, os donos de alambiques
acumulavam uma renda a mais. Ter um alambique “representava uma fonte alternativa de
rendas, pois a alambicagem para extração de óleo era necessária e quem fosse dono desse
meio de produção tinha condições de aumentar a sua renda, cobrando em óleo pelo uso de seu
alambique”.
270
Tratam-se de relações vividas que lhes causaram estranhamentos naquele mundo, uma
vez que, a atividade das lavouras de hortelã ocorrera exclusivamente com características
artesanais. No processamento da atividade, apresentou-se a exigência de considerável mão-
de-obra em todas as etapas da produção: desde a preparação do terreno, o cultivo até o
processo de destilação da rama para a obtenção do óleo.
Na interpretação das narrativas, observo que a paisagem social modificou-se com a
presença de outros sujeitos, muitos chegados de fora e sem os padrões culturais exigidos pela
colonizadora. Aos migrados de outras regiões, que encontraram no Oeste do Paraná uma
possibilidade de trabalho, os estranhamentos enfrentados foram as próprias lutas na lida com
a hortelã. Os enfrentamentos constituíram-se em um aprendizado da atividade agrícola
desconhecida. As trajerias e experiências narradas afirmaram transformações, nas quais os
sujeitos se colocaram como protagonistas de suas próprias histórias nessa região de fronteira,
a qual experimentou mudanças na paisagem social com a chegada de outros”, de diferentes
lugares, bem como também se tem uma transformação ambiental da região quando a mata foi
devastada para dar lugar às próprias lavouras de hortelã.
269
Relato do senhor Antoniel Matos dos Santos..., relato citado.
270
BOEIRA, Cláudia Cristina. A cultura da hortelã na colonização de Palotina..., op. cit. p. 30.
107
CAPÍTULO III
AS PLANTAÇÕES DE HORTELÃ E AS MEMÓRIAS DA DEVASTAÇÃO
NO OESTE DO PARANÁ
“Hoje você não bebe uma água boa, a água é toda contaminada”.
271
Quando reuni estas narrativas emergidas de trajetórias cotidianas que se inscrevem
numa coletividade, procurei assinalar muito além de singularidades das transformações de
uma paisagem de reprodução socioeconômica. Os entrevistados, pela força narrativa,
apresentaram-se como agentes atuantes na transformação do meio ambiente no período
hortelaneiro. Na interpretação de suas lembranças e experiências procurei compreender a
dimensão histórica posta na relação do homem com a natureza. Esta interpretação percebo
como um campo de possibilidades investigativas que partem não somente de mim enquanto
pesquisador, mas como lembrou Marina Maluf, partem também do “indivíduo memorizador
[o qual] constrói paisagens e imagens que são verdadeiros campos de significado para o
lembrado”.
272
As recordações afloradas sobre o passado da fronteira de ocupação do Oeste do
Paraná, em que o cotidiano foi apresentado, muitas vezes, de maneira nostálgica, revelaram
imagens vinculadas ao processo de exploração dos recursos naturais. Na busca por melhores
condições sociais de subsistência e de existência, seus agentes praticaram a derrubada da mata
e a exploração da terra, evidenciando, inclusive, tensões diversas nas relações de trabalho. As
plantações de hortelã, na ocupação da região, estiveram articuladas a um conjunto de
atividades perpassadas por relações e conflitos sociais.
A reprodução destas relações na ambiência de fronteira esteve voltada para a atividade
exploratória numa frente de expansão, conforme ponderou José de Souza Martins,
273
que tem
em primeiro plano a “conquista” da terra destinada às atividades agrícolas. Terra esta que
deveria possibilitar a manutenção socioeconômica aos sujeitos que a estavam explorando e
que, a priori, nunca seria esgotada em suas riquezas naturais.
271
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
272
MALUF, Marina. Ruídos da memória. o Paulo: Siciliano, 1995, p. 70.
273
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: HUCITEC,
1997. Em seu estudo da frente de expansão territorial sobre a região amazônica, na degradação do outro que é
subjugado e explorado, o autor observou a fronteira como o lugar da alteridade provocado pelo encontro de
diferentes culturas em diferentes tempos onde as disputas socioculturais redefinem o território amazônico
continuamente.
108
Para efetuar a produção hortelaneira, os agentes envolvidos necessitaram processar os
espaços destinados às futuras lavouras, como recordou o senhor José Alves: era preciso
limpar a roça porque para o hortelã era melhor ter uma terra bem preparada”.
274
Observei
no relato que uma das principais características assumidas pelas plantações de hortelã era a
preparação do solo, contando então com a derrubada da mata e a limpeza do terreno.
Supostamente, ter uma terra “bem preparada” facilitaria também lidar com o plantio de
hortelã, até a colheita, quando o corte da planta era feito manualmente com gadanhas.
Tais características ajudam-me a pensar a fronteira do Oeste do Paraná, que por muito
tempo foi vista como de possibilidades ilimitadas para uns e, para outros, possibilidades
concretas de acesso à terra. Uma fronteira que é ao mesmo tempo o lugar onde transitam,
circulam e se movimentam agentes diversos em suas dinâmicas sociais. Enfim, este é um
lugar que pode ser pensado enquanto fronteira, que assume um campo de dinâmicas vivas.
Espaço onde sujeitos experimentam suas relações, recriando-as, muitas vezes, nas disputas e
tensões das relações subalternas de trabalho, que acabam alterando profundamente o meio
ambiente. Para Martins:
É isso que faz dela uma realidade singular. À primeira vista é o lugar do
encontro dos que por diferentes razões são entre si, como os índios de um
lado e os civilizados de outro; como os grandes proprierios de terra, de um
lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a
fronteira seja essencialmente, a um tempo, um lugar de descoberta do
outro e de desencontro. Não o desencontro e o conflito decorrentes das
diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada um desses grupos
humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades
históricas, pois cada um desses grupos está situado diversamente no tempo
da História.
275
A história de uma fronteira deve ser vista como produto das relações dos homens com
o meio que o cerca. Também é uma história de mudanças, transformações e devastação,
imbuídas pela sanha de descoberta de outros lugares. Nesta fronteira, se observa o encontro
com o lugar diferente, com a mata e a terra rtil a ser explorada e, sobretudo, onde se
tensionam as alteridades definidas a partir de relações visualizadas nas configurações
socioespaciais no período estudado.
As lembranças articuladas às indagações sobre o cotidiano de exploração, em que de
modo algum o meio ambiente fora conservado, denotam preocupações com as ações do
homem neste espaço. Nele, também se deu a construção de representações sobre as tensões
derivadas, mostrando diferentes modos de interpretar o lugar habitado e suas transformações.
274
Relato do senhor José Honorato Alves..., relato citado.
275
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano..., op. cit. p. 150-151.
109
Atento à temporalidade histórica presente nos relatos, dialogarei com a narrativa de
Dona Gladis, que ao ser indagada para relatar suas impressões da Mercedes de sua infância,
recordou:
Então, o que eu posso dizer é que eu conheci Mercedes quando era ainda
completamente floresta. Quando a gente ainda achava que, poxa vida, se
tivesse um pouquinho menos de mato ficaria de repente então mais bonito.
que quando depois começaram toda, quando começou a ser ceifado tudo
o que tinha de verde, todas as matas, e árvore por árvore caindo. Aí a gente
se tocou, a gente chegou numa situação que parece tinham arrancado as
coisas da gente ou um pedaço da gente.
276
Sua fala emergiu articulada a um espo transformado, assumindo primeiro o desejo
de devastação e, em seguida, de arrependimento. No redesenho da fronteira, a narrativa de
Dona Gladis fez submergir um desejo inicial incontido de destruir a floresta para deixar o
lugar mais bonito. A vio reelaborada acerca do desejo pareceu não se conformar à
medida que se constituiu uma sensação de arrependimento. Ela recordou uma Mercedes
“ainda completamente floresta”, restituindo uma paisagem em que fora “ceifado tudo o que
tinha de verde”. A destruição daquele ambiente pareceu ter sensibilizado a narradora somente
no momento em que sentiu ter “arrancado as coisas da gente ou um pedaço da gente”.
Para a entrevistada, o vazio se fez sentir, afirmando haver uma unidade entre o homem
e a natureza, principalmente quando percebeu a perda daquelas matas verdejantes.
Observações muito próximas foram proferidas por Antonio Diegues sobre a relação do
homem com o meio ambiente ao destacar que: “o homem está dentro da natureza, e essa
realidade não pode ser abolida. Ela não é um meio exterior ao qual o homem se adapta. O
homem é natureza, e a natureza, seu mundo”.
277
O percurso das transformações sofridas por aquela paisagem tematizam a lembrança
de Dona Gladis. O seu presente constitui-se repleto de imagens da infância, quando vivenciou
o processo de modificação de Mercedes. Estas imagens, ela procurou apresentá-las enquanto
arte na prática da evocação de uma memória do ausente. No poema de sua autoria, redesenhou
a ação humana na transformação de uma paisagem vista e vivida:
Banhado
Terra branca
Mancha serena e clara
Às vezes lagoa
Com bicos aéreos de patos selvagens
De quero-queros
276
Relato de Gladis Elfi Mohr..., relato citado.
277
DIEGUES, Antonio Carlos Santana. O mito moderno da natureza intocada. ed. São Paulo: HUCITEC,
2000, p. 48.
110
Às vezes arroz
Trazendo alimentos.
Um oásis
Dos povos indígenas
Da orquestra de pássaros
Sapos e grilos
Hoje é boca seca
Uma garganta escoa a água
E a cidade beija as encostas
Dessa mancha branca de terra.
278
Um campo de recordações se desenha quando, pela atividade exploratória, o homem
modificou não apenas o meio, mas o seu mundo de relações. Uma paisagem que foi vista,
vivida e transformada, todavia tornou-se memória. Uma memória que foi materializada pelo
poema. Este campo transformado, nas considerações de Frémont sobre a interpretação das
ações do homem: “surge assim como uma criação humana com dimensões mais ou menos
fixas, formas próprias, marcas de propriedade, cercas ou limites não materializados, sulcos,
alinhamentos, a terra trabalhada todos os anos, as plantas cultivadas...”.
279
O campo de recordação ilustrado pela memória é o lugar da atividade humana. Uma
memória que materializa um lugar significado por uma paisagem local. Um campo
transformado, transmutado, assume a ordem da recriação de uma paisagem. Uma arte-
memória do espo. Na dinamicidade do lego narrativo, esta prática provocou a recriação
de uma fronteira com a natureza, a partir de uma situação histórica que representava um
desejo na expansão territorial para a produção agrícola. Dona Gladis mostrou sua percepção
daquelas transformações:
Quando eu vi, quando eu tinha uns quatorze anos, quando eu vi tudo
sendo devastado. Apenas pegaram-se máquinas e simplesmente arrancaram
tudo em pouco tempo. Tinham aquelas que chamavam de destocadeiras e
faziam as destocas e arrancavam árvores inteiras. Então foi uma época
triste.
280
As lembranças nesta senda interpretativa recolocam esse tempo de destruição,
afirmando o que estava presente na cena: eu vi”. Afirmando a estranheza das mudanças
sofridas por aquele espaço e imprimindo significações tarimbadas numa temporalidade
datada, as recordões da entrevistada desenharam um quadro da natureza, que foi
paulatinamente extirpada. Um quadro composto desde a sua infância e adolescência, que
ficou emoldurado na lembrança ao recriar aquele processo. No ato da recordação fez surgir
278
Poema de autoria de Dona Gladis Elfi Mohr, mimeo., maio de 2000.
279
FRÉMONT, Armand. A Região, Espaço Vivido. Coimbra, Livraria Almedina, 1980, p. 133.
280
Relato de Gladis Elfi Mohr..., relato citado.
111
uma paisagem carregada de significados próprios, quando as máquinas se misturaram à
paisagem da floresta, transformando o espaço para a constituição do futuro tido como incerto.
O tempo que foi posto na narrativa não é um tempo vazio, mas carregado de sentidos vividos
desde a infância. Sentidos estes que são interpretados a partir de uma conexão da infância
com a vida adulta, recriados pelo lembrar. Sobre essa dimensão da interpretação, Simon
Schama considerou:
E, se a visão que uma criança tem da natureza pode comportar
lembranças, mitos e significados complexos, muito mais elaborada é a
moldura através da qual nossos olhos adultos contemplam a paisagem. Pois,
conquanto estejamos habituados a situar a natureza e a percepção humana
em dois campos distintos, na verdade elas são inseparáveis. Antes de poder
ser um repouso para os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõem-se
tanto de camadas de lembranças quanto de estratos de rochas.
281
As memórias constituem-se em imagens que podem ser compreendidas como obras da
mente. O ronco das máquinas que modificaram a paisagem, vista e elaborada a partir de uma
experiência de criança, retorna no lembrar aquele período. Uma paisagem que configurou
suas lembranças, pois ela está projetada numa transtemporalidade, conforme Milton Santos,
“juntando objetos passados e presente, [n]uma construção transversal”
282
, que recria aquele
ambiente visto e vivido, o qual passa a coexistir no momento atual. Na elaboração deste
universo de transformações, a paisagem pode ser entendida quando, de acordo com Frémont:
“suas formas constituem um universo de signos de criação coletiva, produto mas também
obra, imagem criada, recriada e recebida. Ela é, nas suas múltiplas facetas de reflexos infiéis,
o espelho do mundo”.
283
Dona Gladis narrou um espaço apreendido a partir de um conjunto de práticas que o
modificou. Nos signos de suas lembranças, o uso das máquinas dá sentido a um processo de
destruição daquele “mundo” dos homens. A paisagem ambiental foi transformada enquanto as
ferramentas foram movidas pela força humana, pelo seu controle. O ronco das quinas
parece ter acelerado as transformações no meio ambiente, que pareceu ter fugido do controle
humano, uma vez que: “arrancaram tudo em pouco tempo. Tempo considerado como “uma
época triste, de devastação, de destruição, de deixar com “um pouquinho menos de mato”
naquele lugar que passou a ser recriado pelas dinâmicas que ali se fizeram.
281
SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 16-17.
282
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 1996, p.
83.
283
FRÉMONT, Armand. A Região, Espaço Vivido..., op. cit. p. 110.
112
A significação produzida na restituição da imagem daquela ação do homem, para o
senhor Azelino, provocou outros tantos espantos. Em suas palavras:
começou a devastação, e era limpar as matas porque as lavouras de
hortelã eram fáceis de fazer, porque os tocos e os paus estavam podres. Aí as
esteiras velhas vinham, aquelas esteiras D14, aqueles baita esteirão ali, e iam
comendo o mato tudo, eles enleiravam tudo parelho, demoliam tudo. Uma
devastação que tá louco.
284
Marcantes foram as formas com as quais o senhor Azelino recriou e representou
aquele universo. O sentido metafórico de transformações sofridas pelo espo demarca o
compasso da destruição quando as grandes esteiras “devoravam” a mata, enleiravam e
demoliam tudo o que estava à frente. Este quadro do cotidiano, por mais banal que possa
parecer, foi restituído a partir de um sentido elaborado pela experiência do narrador. Situados
pela narrativa, estes signos reflexivos de ocupação daquele espaço comportam uma realidade
crítica de intervenção e apropriação da natureza. Estes signos de representatividade das
formas de modificar a paisagem podem ser compreendidos, de acordo Ecléa Bosi, como
exemplos de uma “apreensão do tempo que dependeu de uma ação passada e da presente”,
285
demonstrando como a lembrança constitui-se na natureza humana. É um tempo não
homogêneo, em que os homens agiram numa estranha racionalidade, sem preservação dos
recursos naturais. Com uma racionalidade intencional, usaram as máquinas para abrir as
terras, “ceifar” as matas. Matas que foram vistas como obstáculos no caminho dos
proprietários para poderem cultivar a terra.
As formas de apropriação dos recursos naturais para a expansão de terras agricultáveis
também foram observadas por Antonio Diegues sobre a floresta amazônica, da qual destacou:
“enquanto a floresta tropical amazônica representa para as tribos indígenas o seu habitat
conhecido e acolhedor, morada dos antepassados, para o colono vindo do sul do Brasil, ela
representa um obstáculo a ser vencido para se implantar a agricultura e a pecuária moderna,
fonte potencial de lucro”.
286
No exposto, a partir de Diegues, um antagonismo na
exploração dos recursos naturais, mas é preciso destacar que cada grupo tem o seu modo
específico de explorar e usar estes recursos. Os modos de exploração estão envolvidos nas
relações sociais, as quais se tornam a peça chave da constituição de um mosaico de memórias,
do qual cada fragmento pode vir a se tornar um elemento importante na interpretação das
dinâmicas constituídas no espaço estudado.
284
Relato do senhor Azelino Lange..., relato citado.
285
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade..., op. cit. p. 422.
286
DIEGUES, Antonio Carlos Santana. O mito moderno da natureza intocada..., op. cit., p. 64.
113
Os dados contidos na tabela a seguir procuram dar conta da destruição gradativa das
florestas nativas do Paraná. Destruição esta vinculada às atividades extrativistas de
madeireiras, extração de lenha para usos domésticos e, em alguma escala, para indústrias. E,
sobretudo, de uma forma mais ampla ligada à expansão agropecuária.
Tabela 7 - Evolução do Desmatamento das Florestas Naturais no Paraná
287
Florestas Nativas (KM²) Área Desmatada (KM²)
Ano Folhosas Araucárias
Total Estado (%)
Folhosas
Araucárias
Total Estado (%)
1895٭
94044 73780 167824
83,40 - - - -
1930 89444 39580 129024
64,10 4600 34200 38200 22,76
1937 83468 34554 118022
58,70 10575 39226 49801 29,70
1950 54610 25224 79834 39,70 39424 48556 87900 52,30
1955 47104 22032 69136 34,40 46940 51748 97688 58,61
1960 35204 20432 55636 27,70 58840 53348 112188
66,85
1965 32204 15932 48136 23,90 61840 57848 119688
71,32
1970 25410 13235 38645 19,20 68634 60545 129179
76,97
1971 - - - - - - - -
1972 - - - - - - - -
1973 15504 4628 22132
11,80 76540 69152 145692
86,81
1974 - 4336 - - - 60444 - -
1975 - - - - - - - -
1976 - - - - - - - -
1977 - 3166 - - - 70614
- -
٭Área primitiva de florestas no Paraná (ano aproximado de referência histórica).
Fonte: MAACK & PÉLLICO NETTO, CPF, IBDF. In: Inventário Florestal Nacional (IBDF, 1984).
A partir dos dados levantados, é possível perceber que nos últimos 80 anos foram
devastados 161.658 km² de florestas. Restavam, em 1977, somente 3.166 km² da espécie
araucária. Com estes dados e com os fragmentos de memórias é possível compreender como
o reveladores os modos de agir e interagir com o espaço. Um espaço que, a partir do narrar,
surgiu carregado de resignificações daqueles que experimentaram as suas modificações.
Foram as relações vividas com aquele meio que fizeram os sujeitos recordarem-se das formas
como agiram em relação à natureza. Como uma espécie de marco daquelas relações, Dona
Gladis registrou o período de ocupação do Oeste do Paraná:
287
Apud: Leão, Regina Machado. A floresta e o homem. São Paulo: IPEF/EDUSP, 2000, p. 173.
114
Então, o meu pai começou a destocar. É que a área estava, no caso a
chácara dele, estava com o mato derrubado fazia tempo. Daí tinha ainda
muitos tocos grandes. Então isso eles passavam, às vezes, semanas
queimando. Queimavam eles bem para depois terminar de destocar assim a
“muque” [com a força humana] tudo era feito.
288
Era necessário eliminar todos os resíduos que impediam o preparo da terra. Para a
limpeza das áreas, após a derrubada da mata, utilizavam o fogo numa forma de “ajustamento”
do terreno. As queimadas serviram para deixar a terra, que se tornara lavoura, livre de troncos
e galhos de árvores. As áreas devastadas “passavam às vezes semanas queimando, como
lembrado por Dona Gladis. Com recordações de sentidos próximos, também narrou o senhor
José Alves: quando s começamos a lutar com o hortelã, então a gente fazia fogueiras
daquelas lenhas e queimava para limpar a terra”.
289
Em meio às coivaras onde era produzida a hortelã o fogo foi empregado para o
preparo gradativo das lavouras, principalmente naquele período em que se acreditava que as
cinzas acumuladas aumentariam a fertilidade do solo. Como já se contrapunha à época,
observei no jornal Informativo Copagril, edição nº 23, de 1980: “o fogo é sem vida
nenhuma o mais barato e rápido processo de se limpar uma lavoura, porém, é muito
prejudicial ao solo e deve ser evitado a qualquer preço”.
290
Mesmo ser uma publicação do início da década de 1980 a matéria jornastica destaca
preocupações com as práticas agrícolas desenvolvidas em anos anteriores. Com as queimadas
ocorreu a eliminação da matéria orgânica, que sem os nutrientes naturais do solo, passou por
profundas alterações químicas, físicas e biológicas, baixando a produtividade. Esse foi um
fator preponderante para a gradativa baixa ocorrida na produção hortelaneira, pois, de acordo
com relatos, o solo pobre foi considerado um dos elementos de extinção dessa atividade na
região.
Os métodos utilizados para trabalhar a terra resultaram na modificão do ambiente
natural, no qual a cadeia de elementos da natureza (fauna e flora) se auto-sustentavam. As
árvores derrubadas viraram cinzas. Considera-se, assim, que toda esta devastação da floresta
ocorreu não somente para obtenção de uma maior área agricultável, mas para fins outros
como o uso da madeira na construção de casas e instalações de abrigo de animais, bem como
para exportação.
288
Relato de Gladis Elfi Mohr..., relato citado.
289
Relato do senhor José Honorato Alves..., relato citado.
290
Informativo Copagril. Marechal Cândido Rondon, jan. de 1980, 23, p. 09. Acervo da unidade sede da
Cooperativa Copagril, de Marechal Cândido Rondon.
115
O uso das queimadas foi também destacado por Sérgio Buarque de Holanda quando
observou que a construção de canoas, que serviam de meio de transporte fluvial, a partir do
Planalto Paulista, foi afetada pela falta de “paus de canoa”. Para cada embarcação construída
era necessária uma árvore de mais de 15 metros de altura. O número das “gigantes florestais”
foi reduzida devido à intensa exploração e construção de embarcações, como também fora
auxiliada pelo “sistema das queimadas e roças para a lavoura [que] vinha agravar ainda mais a
situação, transformando em campos gerais léguas e léguas de terrenos em redor dos sítios
povoados”.
291
Derrubadas, queimadas e destocas. De acordo com Simon Schama, “a memória não
registra apenas bucólicos piqueniques”.
292
Ela registra e faz a reconstrução de uma imagem da
fisionomia espacial transformada de maneira rápida, como fora relatado, trazendo graves
consequências ao meio ambiente. Observando o tom destas lembranças, o senhor Gilson Jo
relatou que: “a natureza e as matas foram todas queimadas. Então tinha dias aí que a noite
parecia dia. As madeiras eram enleiradas, daí o pessoal queimava, principalmente, em
épocas que não chovia. De noite era um clarão só”.
293
As atitudes abarcadas pela recordação
o desconexas se comparadas com as atuais, mas emoldura uma imagem de clarão
proporcionada pelas queimadas. As madeiras, conforme recordado, eram colocadas em leiras,
as quais passavam dias queimando até sua completa destruição. Como também observou
Giralda Seyferth, desde os primórdios da colonização as derrubadas e queimadas foram
utilizadas como técnica agrícola empregada pelos imigrantes europeus no Sul.
294
Os modos de trabalhar e preparar a terra podem ser entendidos como uma condição de
existência, uma vez que é produto dos agentes que operam tal prática. Uma “tradição”,
instituída pelo processo da migração, a qual colaborou sobremaneira para a deterioração dos
recursos naturais, como lembrou o senhor Gilson José:
Eles colocavam fogo naquelas madeiras, aquilo era queimado e o resto dos
tocos que sobravam eram jogados principalmente nas áreas baixas, onde
grande parte das nascentes foram soterradas com entulhos, com pedras, com
restos de tocos de madeiras. Aquilo ficou tudo soterrado. Então se trabalhou
o contrário de hoje. Na época, quando se tinha uma nascente de água ou uma
pequena vala, aquilo era soterrado. E hoje? Hoje se busca as nascentes de
água.
295
291
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Moões. 2ª ed. São Paulo: Alfa-Ômega, 1976, p. 38.
292
SCHAMA, Simon. Paisagem e memória..., op. cit. p. 28.
293
Relato do senhor Gilson José Philippsen..., relato citado.
294
SEYFERTH, Giralda. Imigração e cultura no Brasil..., op. cit. p. 30.
295
Relato do senhor Gilson José Philippsen..., relato citado.
116
Portador de uma linguagem articulada, de uma interpretação dos sentidos apreendidos
daquela ação de destruição dos recursos naturais, como por exemplo, das nascentes, o senhor
Gilson Jo deu indícios de uma consciência sobre a atual situação ambiental. Além de
localizar uma imagem matizada por aqueles modos de trabalhar, explicitou que o
soterramento fez desaparecer as nascentes, evidenciando atuais preocupações. Esta foi a
maneira encontrada pelos rios agentes para eliminar os restos das queimadas, como troncos
e raízes. Estes eram tidos como obstáculos para o desenvolvimento de uma área produtiva
maior. Na articulação destas relações sociais, em que o espaço foi transformado a partir da
ação do homem com o meio que o cercava, o senhor Adolfo observou:
E dentrou, devagarzinho, entrou a hortelã e a mecanização entrou quase
junto. Quando o hortelã estava assim na força que estava quase acabando daí
já a mecanização entrou junto. Daí foi destocando, e assim era fácil de
ganhar financiamento, o governo oferecia para destocar. Só que não tinha
nenhum saneamento básico, não existiu porque o pessoal aqui empurrava
dentro do [rio] Guaçu os tocos e os paus e tudo, e deveria ter controle
naquela época. Agora estamos pagando primeiro, agora estamos pagando
para isso.
296
Com um saber experimentado, o senhor Adolfo interrogou os modos de apropriação
dos atores sociais daquele meio que o cerca. Ele elaborou um discurso lembrando os modos
de habitar o lugar, no qual talvez não se reconhecia como participante e agente de suas
transformações, mas sobre o qual produziu sua inquietação.
A destruição da natureza, ocorrida em compasso acelerado e que, na interpretação do
narrador, ocorreu “devagarzinho”, é articulada a elementos que configuraram as
modificações daquele espaço. Para ele, as plantações de hortelã e a mecanização como um
todo são marcos para falar do processo agrícola ocorrido na região. Na sua narrativa, primeiro
ocorreu o desenvolvimento das lavouras de hortelã, para em seguida vir a mecanização,
configurando outra paisagem de atividade agrícola, a partir da produção da soja. O trabalho
manual e mecânico se articulam na trama narrativa que ele procurou imprimir para dar conta,
pelo relato, de demonstrar como se deram as relões dos agentes com o espo.
As lembranças assim resignificadas podem ser entendidas como reconhecimento da
atuação dos agentes de transformação de uma realidade. Esta, de acordo com Milton Santos,
“é um deslocamento visível do ser no espaço, criando uma alteração, uma modificação do
meio. Um dos resultados da ação é, pois, alterar, modificar, a situação em que se insere”.
297
A
296
Relato do senhor Adolfo Hobus..., relato citado.
297
SANTOS, Milton. A natureza do espaço..., op. cit. p. 64.
117
ação deve ser pensada enquanto processo, no qual os agentes não modificam somente o meio
que os cerca, mas mudam também a si mesmos.
A partir de um propósito de ação, tem-se um espaço que foi “destocado”, destruído,
alterado. As lembranças desta ação apresentam uma terra que sofreu com os abusos do
homem e fora agredida. Sem uma preocupação com o futuro, sem um planejamento: “não
existiu porque o pessoal aqui empurrava dentro do [rio] Guaçu os tocos e os paus e tudo, e
deveria ter controle naquela época”. Explicitando uma situação dolorosa, o senhor Adolfo
justificou uma realidade em que as plantações de hortee a mata o existem mais. A ação
do homem explorando a terra e a sua completa destruição são marcos destas recordações.
De uma maneira franca, o senhor Adolfo, portador de muitas experiências tecidas na
atividade agrícola, apontou criticamente que a destoca, a partir de meados da década de 1960,
foi facilitada, uma vez que o governo oferecia para destocar”. Sua lembrança retomou os
incentivos e concessão de créditos agrícolas aos proprietários, via o Banco do Brasil, órgão
que na época viabilizou recursos aos agricultores, para que houvesse uma maior produção
agrícola no Brasil.
298
O crédito rural foi estabelecido “pela Lei 4.829, de 1965, regulamentado
pelas diversas disposições do Manual de Crédito Rural”.
299
Com o estabelecimento deste
programa, se pretendia, de acordo com João Sayad: “que o Sistema Nacional de Crédito Rural
incentivasse a produção agcola, protegesse os pequenos produtores rurais e promovesse a
modernização da agricultura”.
300
Observando o panorama nacional da época, João Sayad
destacou, ainda, que em 1976, “para cada 1 cruzeiro de produção agrícola, foram usados
noventa centavos de crédito rural, fornecidos a taxas de 15 ou 17% ao ano”.
301
Com o desenvolvimento do sistema de crédito rural, o Paraná, segundo o IPARDES,
foi privilegiado com a liberação de um montante considerável que, no período de 1965 a
1976, chegou à margem de crescimento de 569%. A justificativa anunciada para a liberação
desse montante ao Paraná, que era considerado o estado “onde a base econômica ainda é a
agropecuária, a qual tem uma elevada participação nas exportações, tanto para o exterior
como para o mercado interno, justifica-se dessa maneira, a crescente liberação de crédito para
298
Os agricultores com os quais busquei informações durante a pesquisa de campo sobre o crédito agrícola
enfatizaram a participação do Banco do Brasil na liberação dos investimentos, mas havia mais bancos que
estavam regulamentados legalmente a participar do sistema de crédito rural, tais como: Banco Central da
República do Brasil, Banco do Brasil S.A., Banco de Crédito da Amazônia S.A., Banco do Nordeste do Brasil
S.A., Banco Nacional de Crédito Cooperativo. BRASIL. Leis, decretos etc. Legislação agria. (Org.).
CAMPANHOLE, Adriano. CAMPANHOLE, Hílton Lobo. 10ª Ed. São Paulo: Atlas, 1980, p. 427.
299
SAYAD, João. Crédito rural no Brasil: avaliação das críticas e das propostas de reforma. São Paulo:
Pioneira: Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, 1984, p. 93.
300
Idem, p. 94.
301
Idem, p. 03.
118
este Estado”.
302
O crescimento do montante disponibilizado, entre os anos de 1969 a 1976,
pode ser observado na tabela a seguir:
Tabela 8 Paraná: valor, número de contratos e índice de crescimento dos financiamentos concedidos
a produtores e cooperativas – peodo 1969/1976.
303
Anos Valor (CR$ 1,000) Índice de
crescimento (%)
Número de
contratos
Índice de
crescimento (%)
1969 3.310.966 100 187.125 100
1970 4.916.798 149 190.258 102
1971 5.317.581 161 1823.976 98
1972 7.863.447 237 192.790 103
1973 11.447.238 346 239.583 128
1974 14.700.631 444 237.308 127
1975 21.821.169 659 267.558 143
1976 22.160.701 669 278.551 149
FONTE: Banco Central do Brasil – DERUR/DIPLA/SECON.
A partir de estudos do IPARDES, observei que na cada de 1970 a região Sul tem a
maior taxa de ocupação (80,9%) devido ao intenso uso da terra, no Rio Grande do Sul
(89,0%), enquanto o Paraná (73,5%) e Santa Catarina (73,6%) ainda têm mais de um quarto
de seus territórios por ocupar”.
304
Indícios como estes auxiliam a compreender o processo de
ocupação, que de modo algum está dado, tendo em vista as dinâmicas sociopopulacionais que
se processualizam constantemente.
Percebe-se, desse modo, uma frente de expansão que passou a se organizar mais
rapidamente com a liberação de crédito agrícola. O agricultor proprietário, agora com
estímulo do governo, demonstrou o desejo de ampliação de sua produção derrubando a mata,
destocando e modificando seus modos de produzir e trabalhar a terra. O senhor Azelino, que
trabalhou juntamente com seu pai, lembrou do quadro que se desenhou a partir do momento
que receberam o financiamento:
O agricultor era incentivado. E se ele não derrubava até em cima [da
barranca] do rio ali, o Banco do Brasil, que financiava isso ali,o liberava o
302
FUNDAÇÃO IPARDES: Contribuição ao estudo do crédito rural no Paraná, CODESUL, Curitiba, 1978, p.
112. Disponível em: www.ipardes.pr.gov.br. Acessado em 12/01/2009.
303
Idem, p. 113.
304
FUNDAÇÃO IPARDES: Subdivisão, posse e uso da terra no Paraná, CODESUL, Curitiba, 1976, p. 124.
Disponível em: www.ipardes.pr.gov.br. Acessado em 12/01/2009.
119
financiamento. Eu sei que o pai derrubava aí no [rio] Arroio Fundo as matas
e empurrava tudo dentro da água. E por fim dava sempre eroo ali que
levava as madeiras. Quantas vezes que, naquela ponte do [rio] o
Francisco, as madeiras trancavam lá. Arrancou acho que umas duas ou três
vezes aquela ponte lá. Madeira, às vezes, duzentos metros, cem, duzentos
metros era pura madeira que vinha contra a ponte e trancava ali, e levava
tudo embora na época de chuvarada. Umas duas vezes arrebentou aquela
ponte. Aí fizeram uma [ponte] bem baixa que quando o rio enchia a
madeira ia por cima, e daí não pegava contra a ponte, que todo aquele peso e
a água empurrando, claro que ia arrebentar tudo.
305
Os agentes se viram atuantes no processo de ocupação e, por vezes, sentindo-se
responsáveis pelas transformações ocorridas naquele meio. Para ter acesso ao crédito agrícola
o proprietário precisava derrubar praticamente toda a mata de sua propriedade. A mata era
derrubada e lançada, com os tratores esteiras, dentro dos rios e nascentes, numa forma de
liquidar com toda a madeira. A ofensiva violenta e institucionalizada contra a natureza causou
a eroo da terra preparada para a produção agrícola e, com as enxurradas, houve até mesmo a
destruição de pontes, como recordou o senhor Azelino.
A dinâmica das relações de trabalho processualizadas nesta região denota alterações
profundas no meio ambiente. É preciso destacar que as plantações de hortelã colaboraram
diretamente com este processo. Por ser uma atividade que exigia terras férteis para a sua
prática, ocupou, em um primeiro momento, as áreas recém devastadas, sendo utilizada assim
como um mote para atividade agrícola da região. Ao mesmo tempo, a plantação de horte,
segundo o IPARDES, “indiscutivelmente é uma planta esgotante do solo”.
306
Este foi um
fator preponderante para que cada vez mais houvesse uma área maior de terras sendo aberta
para a explorão agrícola.
A participão dos governos federal e estadual no incentivo à produção agrícola marca
em que se buscava o chamado “progresso” da produção no Brasil e na região. Este tempo
permeia as recordações dos narradores, como Gilson José:
Quando estava terminando o cultivo da menta, foi na época que houve um
grande incentivo do governo federal e estadual para a mecanização e
destocas das áreas. Então, praticamente se eliminou as matas. Assim, o
banco, ele liberava grandes volumes de financiamentos para a destoca,
compra de máquinas agrícolas para poder produzir a soja e o milho. Eu
entendo hoje que na época era uma questão de produção de alimentos
mesmo, uma vez que era praticamente a região Sul que mais produzia
alimentos.
307
305
Relato do senhor Azelino Lange..., relato citado.
306
FUNDAÇÃO IPARDES: Estudos para o desenvolvimento de atividades agrícola e industriais integrados,
projetos espaciaismenta. Curitiba, 1977, p. 17. Acessado em 12/01/2009.
307
Relato do senhor Gilson José Philippsen..., relato citado.
120
Compreensivo em relão ao incentivo recebido pelos agricultores, o senhor Gilson
José assimilou o sentido da produção de grãos naquela ação desempenhada pelo governo. Sua
lembrança apareceu imbuída da defesa de um espaço considerado, segundo suas
interpretações, como o maior produtor de alimentos, numa espécie de ufanismo regional. Por
outro lado, quando analisados os relatos sobre a concessão de créditos, vê-se que a produção
hortelaneira se fixa nestas lembranças.
Se, por um lado, a destoca, incentivada a partir dos créditos agrícolas, fez aumentar a
área de terras agricultáveis, por outro, trouxe consequências sérias aos proprietários na
atualidade. Conforme pontuou o senhor Adolfo: agora tem que fazer reflorestamento, tem
que fazer tudo de novo. Naquela época era só derrubar, só derrubada”.
308
A lembrança atuou
no sentido de justificar o presente com o passado e vice-versa. A recuperação da mata parece
ser o desafio que abarca uma trama inaceitável de destruição para muitos agentes que não
compreendem o envolvimento social naquelas relações. Ao mesmo tempo em que o governo
federal concedia créditos aos agricultores, incentivando a derrubada da mata, propagava-se
também discursos de que os homens sofreriam consequências pelos atos cometidos contra a
natureza. As recordações destes discursos foram proferidas por Dona Gladis:
E comaram, naquelas épocas, alguns comentários de pessoas, como
por exemplo, tinha um pastor [Haral Malchitsky] que... Ah, não me recordo
o nome, que falava uma vez na dio dizendo que dentro de trinta anos a
gente sofreria grandes problemas com secas e tudo mais, porque estava
sendo desmatado tudo e, enfim, o homem sofreria grandes consequências
devido a isso. E a gente achava que não poderia ser ou ninguém acreditava.
E são coisas assim que me vêm na memória, agora.
309
As reminiscências que Dona Gladis utilizou para reconstituir suas lembranças estão
instituídas numa ordem cronológica dos acontecimentos. Mesmo não lembrando o nome do
pastor (que assumiu os trabalhos na comunidade Martin Luther, de Marechal Cândido
Rondon, sendo o primeiro pastor brasileiro a atuar na região a partir de 1964
310
), recordou que
o reverendo alertava em programas de rádio sobre as consequências que os homens
enfrentariam devido às derrubadas. O apelo propagado pelo pastor Haral Malchitsky pareceu
não ter causado efeitos de “conscientizaçãonos agricultores: “ninguém acreditava. Mas,
Dona Gladis ouviu, lembrou e resignificou aquele discurso. Para ela foi marcante o dizer do
pastor: “dentro de trinta anos a gente sofreria grandes problemas com secas e tudo mais”.
308
Relato do senhor Adolfo Hobus..., relato citado.
309
Relato de Gladis Elfi Mohr..., relato citado.
310
Dados obtidos junto à secretaria da Igreja Martim Luther de Marechal Cândido Rondon.
121
Uma lembrança provocada, que “veio na memória” a partir do apelo significativo e
identificável que está preso em suas experiências.
Uma vez destruída a floresta, substituída por áreas agricultáveis, as instabilidades
climáticas poderiam variar, tais como o aumento de calor, secas prolongadas, fortes geadas e
tempestades. Estas foram as preocupações do pastor Malchitsky propagadas através da rádio
Difusora e lembradas por Dona Gladis. A partir de lembranças como estas, considero que as
dinâmicas desenvolvidas com a derrubada da mata colocaram em risco de extinção todo um
equilíbrio de organismos que viviam na natureza. No momento em que ocorreu a derrubada
da mata, seguida das plantações de hortelã, todos os elementos da natureza foram postos em
risco por tais ações predatórias. Destacando estas observações, considero o que Regina
Machado Leão chamou a atenção:
Qualquer dano pode quebrar a integridade desse ciclo harmônico e provocar
uma destruão em cadeia. Secas, inundações, vendavais, ataques de aves e
insetos e aincêndios decorrentes de raios e atividades vulcânicas afetam
esse ecossistema. Essas ocorrências naturais, que dificilmente chegam a
causar a extinção de áreas florestais, podem, no entanto, ser agravadas ainda
mais pelas atividades humanas.
311
As alterações climáticas, bem como a deterioração do solo pela erosão, são sinais
reveladores da ação humana em oposão à natureza. O meio ambiente foi transformado para
dar lugar à produção agrícola e, com isso, o homem passou a sofrer consequências
ambientais/climáticas. As narrativas relacionadas procuraram dar sentidos àquelas ações, em
que a preocupação era somente explorar a terra para o desenvolvimento agrícola. Derrubar a
mata, modificar o meio natural, utilizar de todos estes recursos possíveis foram cruciais na
ocupação dessa parcela agrícola na região. Ao relatarem isso, os agentes parecem se sentir
constrangidos com aquela forma de agir. Conforme lembrou o senhor Azelino:
Eu acho que a derrubada influenciou no clima aí, porque não tem mais
mato, não tem mais nada, a natureza e o desequilíbrio, aí foi... Não sei se é,
mas todo mundo fala dessa devastação ali que mudou muito esse clima aí, e
mesmo mais quente e vento, e temporais, e coisarada, e tudo aí não tem mais
nada que ataca. Que nem para cima, os primeiros anos, para o Mato
Grosso, aquelas épocas ali que entraram uns trinta anos atrás, os primeiros
que subiram, e o meu pai foi um deles, isso lá chuva de pedra, vendaval e
granizo essas coisas ninguém conhecia. Chovia que era seis meses seca e
seis meses chuva eles falavam em cima. E hoje em dia tem temporal que
está arrebentando com tudo também. Lá também está tudo devastado, o
existe mais mato tamm, em trinta anos, foi mais rápido que aqui, aqui
ainda demorou cinquenta anos praticamente e lá, com essas esteiras e com
aqueles correntões, devastaram tudo em menos tempo.
312
311
LEÃO, Regina Machado. A Floresta e o homem. São Paulo: IPEF/EDUSP, 2000, p. 119.
312
Relato do senhor Azelino Lange..., relato citado.
122
Com a exclusiva prática de utilização do espo para a atividade agrícola, os agentes
descrevem o lugar de reconhecimento recriado pelo lembrar. A região Oeste do Paraná foi
devastada em pouco tempo. Em menos de meio século, conforme o relato do senhor Azelino,
com as esteiras os homens derrubaram as matas e as empurraram dentro dos rios. Ventos,
temporais e clima quente: “a natureza e o desequilíbrio, aí foi.... As consequências foram
sofridas em razão daquela ação de desmatamento. A peculiaridade da lembrança deu-se pela
interpretação do agir, o qual é relatado numa interligação passado/presente, destacando o
momento exato do acontecido: “ali que mudou”. Mudou o clima, mudou a paisagem tomada
pelo olhar como uma riqueza natural, quando se queria o lugar com um pouquinho menos de
mato”. As lembranças sobre o período das derrubadas e das plantações de hortelã se
caracterizam também como discursos apelativos articulados a outros referenciais. De acordo
com o senhor Adolfo:
Se naquela época eles tinham falado de cultivar as águas. Fazer saneamento
básico nas águas e botar logo quem destocava fazer curvas de nível, isso não
tinha, o pessoal destocava e vinham as enxurradas e ia tudo para os rios e
assim foi uma destruição completa. O mais que me dói isso aí, todos esses
palmitos que foram tirados e as madeiras de lei, foram tirados os mais
bonitos, o resto foi tudo estragado. Assim está hoje no Mato Grosso, para
o lado do Amazonas, ainda se isso. Isso tem ainda, essa destruição tem lá
ainda hoje.
313
Procurando dar sentido à intervenção provocada pelos agentes ao meio ambiente, o
senhor Adolfo denotou o conhecimento experimentado nas ações passadas. A partir do
sentimento de desperdício, sentiu que as águas deveriam de ser preservadas, as lavouras
deveriam ter saneamento com curvas de nível, mas o pessoal destocava e vinham as
enxurradas e ia tudo para os rios e assim foi uma destruição completa”. Mas, o sentimento
de perda ainda maior pareceu acompanhar a narrativa. O narrador sentiu-se privado dos
palmitos, que nos primeiros anos de ocupação aos milhares foram derrubados, bem como as
madeiras de lei que foram destruídas. A vio da terra devastada provocou este sentimento,
instituindo na narrativa uma retomada da antiga imagem.
No bojo da formulação do discurso de arrependimento observa-se uma relação do
ausente com o presente. Os agentes que participaram do processo de transformão do meio
ambiente, pequenos proprietários e meeiros, sentem a falta de terras e recursos naturais
abundantes no passado. Por vezes, parecem o darem conta, pelo relato, de apreender uma
dimensão resignificada e fazerem-se reconhecer no campo relacional daquele cotidiano.
313
Relato do senhor Adolfo Hobus..., relato citado.
123
A exploração indiscriminada das terras trouxe consequências graves, como
enxurradas e empobrecimento do solo. Mesmo sendo este o resultado mais facilmente
percebido, na década de 1970, como observei no jornal Informativo Copagril, que tinha suas
edições mensais e era destinado, principalmente, aos associados da cooperativa, havia certa
preocupação e um esforço de “conscientização para preservação das áreas destinadas às
atividades agrícolas. Com a atuação do Departamento Técnico da Cooperativa Copagril,
houve a implantação de terraços e curvas de nível como meio de retenção das águas das
chuvas, para evitar a erosão. A Copagril, que atua na área agropecuária, principalmente em
Marechal Cândido Rondon, onde está situada sua sede administrativa, adotou, em 1974, um
sistema de preservação que foi efetuado numa área de 400 hectares, havendo um acréscimo
nos anos seguintes: 800 hectares em 1975, 1.800 ha em 1976 e 3.800 ha em 1977
314
.
Mesmo havendo preocupações pontuais nos meados da década de 1970, pela
cooperativa, as lembranças referendam uma busca constante pela expansão agrícola. Estas
lembranças foram marcadas pelo processo de devastação, conforme relatou o senhor Adolfo:
“isso aqui derrubava, fazia tudo por conta. Derrubava tudo, destruía tudo. Agora sim, agora
qualquer metro de ipê, qualquer madeira eles conservam”.
315
Diante dos enfrentamentos e preocupações com a preservação ambiental, o senhor
Adolfo, sem rodeios, asseverou: “agora é tarde.
316
O seu lembrar foi impregnado pelas
experiências das derrubadas instituídas naquele meio de relações. Para ele, o período em que
se poderia derrubar “por conta” é uma ação consumada, que não pode mais ser restituída. É a
partir deste enfrentamento que atribuiu sentido interpretativo à realidade ambiental que se
coloca, remetendo a outros a ação empreendida ao meio ambiente. Uma ação em que outros
talvez não lhe sejam reconhecidos. Mas, há a clara preocupação na preservação de uma
possível imagem do lugar narrado, enquanto ele, como agente de atuação, se vê de fora do
processo.
A perspectiva que se tinha em relação ao processo de ocupação era de que a mata
ainda se apresentava como empecilho. Os proprietários não possuíam a “convicção” de que
ela poderia ser gradativamente destruída. Hoje parece sentirem que “arrancaram um pedaço
da gente”, como disse Dona Gladis. A lembrança do ausente parece ser ressentida ao
recordarem o desmatamento. Experimentam a auncia da mata.
314
Informativo Copagril. Marechal Cândido Rondon, nov. de 1977, nº 14, p. 07, op. cit.
315
Relato do senhor Adolfo Hobus..., relato citado.
316
Idem.
124
Imbuídas na revelação de preocupações com a natureza, as lembranças do senhor
Azelino, bem como as do senhor Adolfo, fazem referência a experiências vividas no estado do
Mato Grosso. , a floresta estaria sofrendo as sérias consequências da devastação, como
lembrou o senhor Adolfo: assim está hoje no Mato Grosso para o lado do Amazonas,
ainda se isso”.
317
Estas considerações foram tecidas por ele, a partir de suas experiências
como migrante naquela frente de expansão em seu estado, mais precisamente em Paranaíta,
no final da década de 1970. O senhor Azelino, por sua vez, recordou que, atualmente, no
Mato Grosso também tem tempestades e que lá a devastação foi mais rápida que no Oeste do
Paraná. Isso foi revelado em virtude de seu pai ser um dos primeiros a subir lá para cima,
no Mato Grosso. A memória cartográfica também procura dar conta das relações que se
estabelecem noutras regiões.
A frente de expansão foi recriada a partir das relões sociais entremeadas pelo desejo
e na reprodução capitalista, em novas áreas colocadas para ocupação. Uma fronteira que se
constitui a partir da sociabilidade com o novo espaço e na relação dos diferentes agentes.
Sobre isso, no pensamento de José de Sousa Martins:
A frente pioneira é mais que o deslocamento da população sobre territórios
novos, mais do que supunham os que empregaram essa concepção no Brasil.
A frente pioneira é também a situação espacial e social que convida ou induz
à modernização, à formulação de novas concepções de vida, à mudança
social. Ele constitui o ambiente oposto ao das reges antigas, esvaziadas de
população, rotineiras, tradicionalistas e mortas.
318
A partir do processo migratório e pelas novas relações de trabalho foi que os sujeitos
se constituíram como agentes sociais que imprimem significados a outras regiões. O senhor
Adolfo se mostrou, no momento do relato, um migrante retornado da frente de ocupação do
Mato Grosso. Este, que havia migrado para o Paraná em 1953, proveniente de Santa Catarina,
com o fim do peodo hortelaneiro migrou para o Mato Grosso, retornando posteriormente. O
Mato Grosso, na década de 1970, era propagado como um lugar pouco explorado, com muitas
terras para “desbravar” e plantar. O senhor Adolfo migrou com sua família para aquele
estado, mas retornou “por causa da firma Indeco, que não cumpriu com o que eles
prometeram. Eles falaram que podia plantar que eles iam botar beneficiadoras e depois,
no fim, não tinha nada”.
319
O senhor Adolfo, como tantos outros agricultores do Oeste do Paraná, movido pelas
propagandas de empresas privadas na venda de terras, saiu em busca de novos espos para a
317
Relato do senhor Adolfo Hobus..., relato citado.
318
MARTINS, José de Souza. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano..., op. cit. p. 153.
319
Relato do senhor Adolfo Hobus..., relato citado.
125
produção agrícola. Ao estado do Mato Grosso migrou com a família para a plantação de café
e cacau. Lá, plantou café, mas não colheu, pois não tinha a quem vender. Sentiu-se enganado,
pois no momento da colheita não havia beneficiadoras de café, “não tinha nada. No
compartilhamento das experiências da mobilidade empreendida naquele espaço, o senhor
Adolfo recordou alguns traços mais marcantes de sua vivência enquanto pequeno proprietário:
A firma Indeco prometeu tudo, que ia fazer indústria de café e tudo, cacau, e
nós plantando cacau e café. empatemos tudo o que nós ganhamos aqui,
empatemos lá. E quando o café e o cacau estavam produzindo nem uma
firma não tinha. Daí eram compradores particulares e eles ‘picavam os
olhos’, eles pagavam o que eles queriam. Então eu tinha dezesseis alqueires
de café formado, tudo carregando, roçamos tudo para baixo e fizemos
pasto.
320
O senhor Adolfo ressaltou que havia ganho muito com a plantação de hortelã no
Paraná. No Mato Grosso, perdera com a plantação de café. Teria investido tudo o que tinha, e
não havia para quem vender sua produção. Sentiu-se enganado e destruiu o cafezal, fazendo
de sua lavoura uma área de pastagem para a criação de gado. Estas relações de migração e
trabalho circunscrevem a trajetória destes agentes como o senhor Adolfo, que deixaram os
lugares onde estavam instalados e foram em busca do desconhecido. No Oeste do Paraná as
lavouras de hortelã estavam em declínio e não havia mais terras férteis para a sua produção.
No Mato Grosso, as lavouras de café estavam começando, havia terras férteis, mas não tinha
quem comprasse. e , Paraná e Mato Grosso, são referenciais nas lembranças do senhor
Adolfo para falar de suas experiências como pequeno proprietário. Assim, fez-se retornado,
não ao seu lugar de origem, mas ao seu primeiro lugar de destino. Lugar este que, de algum
modo, a hortelã significou um ponto de contato com a expectativa de ocupar outras fronteiras.
As experiências que se mesclam e se constituem nos lugares transitados e que
aparecem presas na teia das lembranças reafirmam maneiras particulares instituídas no
cotidiano. A partir do recordado, o recriadas e reelaboradas significações que inquietam os
narradores. Muitas vezes se colocam na fronteira entre as expectativas que são recriadas pelo
trabalho, principalmente, quando, a partir de vivências em diferentes lugares, procuram
constituir significados:
É coisas terrível o que acontece lá. Se tivesse sempre tudo bem organizado,
desde quando nós entremos aqui, cinquenta metros de cada lado, cem metros
de cada lado das águas preservarem, a companhia não deveria de vender
essas terras. Na Sinop mesmo é assim, o poste mesmo da água fica bem
longe da água, quem vai mais perto está invadindo lá, porque o meu filho
morava na Sinop, então mais ou menos uns sessenta metros antes de chegar
na água, que começar a ficar úmida já tinha um poste, até aqui é a terra.
320
Relato do senhor Adolfo Hobus..., relato citado.
126
Mas lá eles também não respeitam. Falta de fiscalização nessas coisas,
porque se fosse desde o começo assim era bom. Mas ninguém sabia, nem os
mais estudiosos, eles estudavam tanta coisa, mas nem isso eles o
reparavam que um dia fosse destruir tão rápido assim.
321
Emanada por uma contemplação daquela fronteira tida como perversa, entre o homem
e a natureza, a narrativa do senhor Adolfo buscou possíveis soluções para amenizar o estrago
feito ao meio ambiente. Preservar as áreas nas margens dos rios e as nascentes colaboraria na
preservação da natureza. Novamente, veio à tona uma relação com o seu atual lugar,
Mercedes, com o Mato Grosso, onde residiu seu filho. Mercedes Paraná. Sinop Mato
Grosso. São lugares distantes na localização geográfica, mas muito próximos nas recordações
do narrador. No Mato Grosso existe áreas para preservação, “mas lá eles também não
respeitam”, pois não controle pelos óros competentes, não fiscalização. Então “é
coisa terrível o que acontece lá. Mostrou-se indignado com as atitudes frente à natureza, que
nem mesmo os mais estudiosos haviam percebido “que um dia fosse destruir tão rápido
assim”. Nestas apreensões é possível perceber que o senhor Adolfo se colocou dentro da
temporalidade histórica de devastação do Oeste e daquele outro lugar de experiência, por sua
vez conectados pela crítica à sua posição política.
Procurando, talvez, sensibilizar a quem o estava ouvindo, o senhor Adolfo pronunciou
uma frase de impacto: é coisa terrível o que acontece . O significado desta frase no
fragmento de sua narrativa pode estar impregnado não somente pelo sentido de destruição da
natureza, mas também pelas relações sociais que se apresentaram, muitas vezes, de maneira
trágica nas áreas de ocupação. Leonardo Boff, ao destacar a ocupação da Amazônia pelo
processo de construção de estradas, observou que a população da região sofreu a expropriação
de maneira tgica, em nome da chamada integração da região amazônica a outras partes do
Brasil. De acordo com o autor: “expulsaram indígenas e caboclos, desmataram à vontade,
contaminaram rios e produziram grande miria e devastação ecológica”.
322
As narrativas foram elaboradas a partir de uma experiência constituída e mediada
pelas relações sociais vividas nas plantações de hortelã. A destruição da natureza narrada pelo
senhor Adolfo, tanto no Mato Grosso como no Paraná, não foi descolada da vivência com
outros participantes; estes, muitas vezes expulsos de seus lugares pelas frentes de expansão.
Procurando restituir um sentido do trabalho executado ao chegar ao Oeste do Paraná, o
senhor Geraldo, não proprietário, procedente de Minas Gerais, narrou:
321
Relato do senhor Adolfo Hobus..., relato citado.
322
BOFF, Leonardo. Ecologia grito da terra, grito dos pobres. Ática, São Paulo, 1995, p.146.
127
Nós trabalhemos muito na derrubada de mato. Então foi estragando a
natureza. E se hoje tinha aquele mato, hoje era tão lindo. Hoje não tem o
mato, mas na área da Itaipu. foram deixadas aquelas árvores, mas não
saíram sozinhas. Elas não saíram sozinhas, elas foram plantadas ali. Porque é
nativa mesma a semente que vem, ela nasce ali então ela é nativa.
323
Ao recompor o sentido de perda, que hoje não tem o mato”, o senhor Geraldo
procurou justificar o sentido de uma destruição que teve a sua colaboração. A mata nativa fora
destruída e somente restam áreas de preservação que, lembrou, não nasceram sozinhas: “elas
foram plantadas ali”. Em minha interpretação, as lembranças vieram à tona no momento da
entrevista como forma de compreender uma atividade também executada. Com certa
nostalgia, pronunciou: “e se hoje tinha aquele mato, hoje era tão lindo. A narrativa ainda
envolveu outra experiência vivida, a área de preservação da Itaipu, que segundo o senhor
Geraldo é a única mata que resta hoje: “na área da Itaipu”. Esta área de reserva que ali foi
“plantada é uma área que se justifica, conforme Warren Dean, tendo em vista duas
preocupações: “em demarcar as fronteiras de sua propriedade [a Itaipu] como para reduzir o
assoreamento de seu reservatório”.
324
A partir destas considerações, interpreto que as companhias hidrelétricas que buscam
gerão de energia com a formação de barragens não se mostraram ou não se mostram
preocupadas com as ações desenvolvidas contra o meio ambiente, mas sim fazem de tudo na
defesa dos interesses econômicos. No caso de Itaipu, faz-se pertinente considerar que ocorreu
o abarcamento de um quase total desflorestamento da área de sua atuação nesta região de
fronteira. Uma fronteira em que se viu e se vê numa brutal atrocidade destruidora da natureza,
com trabalhadores expropriados de suas terras, que precisaram colocar-se muitas vezes em
itinerâncias em outros espaços. ainda a ameaça de extinção de animais, que se viram
encurralados pelo avanço das águas do reservatório e as árvores apodrecidas nas barrancas do
rio Paraná.
Diante desta exposição, acredito que o senhor Geraldo procurou, de forma semelhante,
pontuar suas preocupações sobre a intervenção no meio ambiente com a construção da
referida barragem. Ele assumiu a defesa de um ambiente inexistente, de uma mata natural que
havia dando lugar a uma mata artificial, de árvores que “foram plantadas ali”:
Mas, antigamente, quando você olhava aquele matão bonito, matão escuro e
passarinhos cantando, e hoje você vai não escuta nenhum beija-flor gritar
ou cantar porque não tem mais mato. Ali não tem mais mato para os
323
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
324
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. Trad. Cid Knipel
Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 312.
128
passarinhos voar e cantar. É o que eu falo para você: a natureza vem da
terra, se você destrói a mata, acaba com a terra.
325
Mostrando-se conhecedor da destruição causada ao meio ambiente, o senhor Geraldo
reportou-se à ausência da mata e do cantar dos pássaros. As lembranças foram relatadas com
nostalgia quando observa a natureza destruída, onde não há mata, cantar e nem voo de
pássaros. A interpretação da natureza, a partir deste olhar sobre a devastação, foi imbuída por
sua experiência enquanto trabalhador vinculado à terra, o que o fez compreender que a
natureza já vem da terra”.
As lembranças sobre a região de fronteira foram constituídas em feixes de sentido por
semelhaas e diferenças. Os elementos evocados pelas lembranças, muitas vezes, escondem
relações socioeconômicas e socioambientais perversas para aqueles que viveram o período
hortelaneiro na região. São relações em que nem mesmo seus participantes, por vezes, se
reconhecem nela.
Observando os atritos movidos por tais preocupações ambientais na região, o jornal
Informativo Copagril, edição nº 41, de 1981, publicou matéria intitulada “Ecologia, até
onde?”, na qual procurou despertar uma certa “consciência ambiental” dos leitores,
principalmente os associados da cooperativa. Em fragmento da referida matéria pode-se
observar:
O homem, infelizmente, fez que paulatinamente tal natureza, dotada aos
cantos dos pássaros e carregado de oxigênio pela verdejante flora existentes,
fosse substituída por enormes clareiras, para dali tirar o sustento de sua
família, o que não seria nada demais. O pior de tudo é, que derrubou até a
última árvore de sua terra, esquecendo de plantar outra em seu lugar, e que
seus filhos, tamm querem viver e respirar um ar puro; não vendo esta
imensa riqueza do passado senão apenas em fotografias, ou nem isto.
326
O fragmento destaque à preocupação em construir uma dada “consciência
ambiental” da população, que apenas se preocupou em derrubar árvores, colocando-se em
face de uma natureza idílica que deveria de ter sido preservada para o bem-estar das gerações
futuras. Este fragmento permite entender o raciocínio feito pelo senhor Geraldo, de que a
natureza “já vem da terra. Da mesma terra que os homens necessitam retirar o sustento.
A mata destruída pela ação predatória, como lembrou o senhor Geraldo, causou
erosão, esgotou a fertilidade da terra e, principalmente, tirou o equilíbrio da vida de seres
vivos da floresta. O narrador demonstrou que sua consciência restabelece a relação
homem/natureza. Sem aquele matão bonito, o habitat natural das espécies ficou ameaçado.
325
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
326
Ecologia, até onde? Informativo Copagril. Marechal Cândido Rondon, ago. de 1981, nº 41, p. 08, op. cit.
129
Ainda nas lembranças das dinâmicas do fazer-se cotidiano do senhor Geraldo: “e até hoje eu
fico pensando: como é ques conseguimos fazer todo aquele serviço [de derrubada], tudo
no braço. Não existia motosserra, tudo no machado e na foice. E hoje está limpo aquilo ali,
quando vo olha assim está limpo”.
327
No escopo das relações que se desenharam nas
dinâmicas socioculturais, o senhor Geraldo pareceu se reconhecer naquele espaço. Um
trabalho praticado que o deixou perplexo frente às mudanças daquelas áreas que ajudara a
preparar. Na recordação, pareceu não conseguir apreender os sentidos atribuídos a todo o
trabalho feito somente com a força humana.
Na apreensão das recordações do trabalho, o senhor Sebastião Germano Filho narrou a
devastação da mata, na qual colaborou: “eu fiz um derrubamento de seis alqueires ali, lugar
que hoje a gente fica pensando, lugar que a gente trabalhou ali, qual é a necessidade que
tinha das pessoas desmatar uma mata, derrubar, limpar aquilo ali para plantar hortelã?”
328
.
Partindo de um olhar atualizado, as ações empreendidas na ocupação parecem incomodar
aqueles agentes quando indagados sobre as plantações de hortelã. Colocando-se como
protagonista desses procedimentos com o meio ambiente, o entrevistado pareceu não
conseguir compreender a necessidade de desmatar para a produção hortelaneira.
O senhor Sebastião, que migrou para o Oeste do Para em 1975, procedente de
Governador Valadares, Minas Gerais, recordou suas experiências, as quais lhe pareceram
também inquietar. Em sua assertiva sobre o vivido naquele lugar, interpretou as dificuldades
enfrentadas para a produção de hortelã:
O lugar muito difícil de trabalhar, que você tinha que puxar a horteaté
numa posição para chegar com um carro ou carroça para pegar. Aquilo era
morro. Puxava para cima e puxava para baixo, bastante pedra que você tinha
que trabalhar bem ali, que foi tudo aberto para plantar aquele hortelã, que
hoje podia ter toda aquela mata natural ali. Quer dizer que, inclusive você
podia fazer aquela bola [com os montes de hortelã cortada] que ela podia
rolar e não conseguia de segurar. Eu fico pensando que foi tudo derrubado
naquela sensação... Para derrubar e plantar a hortelã, coisa que não tinha
necessidade de a gente derrubar e acabar com a parte da natureza.
329
Subjugado a aquele lugar em que lhe fora ofertada a possibilidade de trabalho, o
senhor Sebastião precisou lidar com dificuldades. Relatou o trabalho desumanizante do qual
foi protagonista nesta fronteira, caracterizada por relações de trabalho que ali estavam postas.
Nas terras irregulares, com muitos declives, a mata foi toda destruída para dar lugar à
327
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
328
Relato do senhor Sebastião Germano Filho, 73 anos, concedido em 22 de novembro de 2008.
329
Idem.
130
atividade com a hortelã. A área que colaborou para o desmatamento o incomoda no sentido de
que hoje a vê como uma terra de muitos morros e pedras. Com aquelas terras teve que lidar
para dela tirar o sustento: “que você tinha que trabalhar bem ali”.
Nas áreas em declive a atividade hortelaneira exigiu o uso de maior força de trabalho,
sobre a qual o narrador, em caráter auto-reflexivo, pareceu procurar ocultar toda aquela ação:
“que não tinha necessidade de a gente derrubar e acabar com a natureza. A paisagem foi
alterada e transformada para dar lugar às lavouras de hortelã. Por outro lado, a narrativa deu a
impressão de que se confortou com a reconfiguração daquele espaço:
Hoje está tudo formado. Nos lugares que eu trabalhei está tudo formado o
mato, já tem madeira assim [gesticula com as mãos], mas a gente fica
pensando hoje como é que são as coisas, como é que pode o povo chegar e
destruir ali tudo para plantar esse produto que estava dando dinheiro mesmo?
não plantava este produto em cima de pedras, mas o resto. Até na beira de
um rrego assim era plantado, aproveitava tudo, onde tinha um pouco de
terra era plantado. Era importante mesmo.
330
Todo o processo de devastação seguido pela produção agrícola a que estava submetido
anteriormente foi superado com a renovação da natureza. Mas, o senhor Sebastião, fazendo-se
entendedor da amplitude da produção hortelaneira, denunciou o aproveitamento de todos os
espaços desmatados para a plantação, que não deixam de ser aquelas relações de reprodução
capitalista que estavam postas naquele momento. As lavouras de hortelã foram propagadas em
meio aos troncos e árvores caídas e em terras que não comportavam outras atividades naquele
período. Ao mesmo tempo em que está mergulhado na realidade das relações sobreviventes
em suas lembranças, ao recordar se descobre dentro dessas dinâmicas do tempo da hortelã.
As lembraas não evocam somente a mata original enquanto um componente da
natureza. Abarcam também os modos como os agentes apropriaram-se, sem procurar o
equilíbrio com esta mesma natureza. Procurando compreender mais destes modos, retomo a
narrativa de Dona Gladis, pois nela tenho observado o realce na recordão de que vivera os
anos mais bonitos de Mercedes. Instigado a saber qual o significado daquele dizer, assim
procurou esclarecer:
A gente tem muito mais saudades que inclusive era da infância, mas era uma
época que a gente pegava muita borboleta para vender, que tinha a nossa
borboleteria, como se chamava, e acabou depois transformando-se num,
numa empresa, numa microempresa com bastante pessoas trabalhando.
Faziam chapas [material representando figuras geométricas, sobre as quais
eram coladas borboletas] para vender e guardavam as borboletas melhores,
330
Relato do senhor Sebastião Germano Filho..., relato citado.
131
mas que não estavam estragadas para coleção. Levavam para os Estados
Unidos, Alemanha, e muitos outros países comprovam isso.
331
Ao reportar às narrativas, o período da infância quase sempre é feito com nostalgia. As
peculiaridades do relato de Dona Gladis dão conta das riquezas naturais que ali existiam. A
coleta de borboletas pareceu um marco em suas lembranças para falar da Mercedes de sua
infância. Esta atividade extrativista foi muito desenvolvida, servindo como matéria-prima
para uma fonte de negócio, até mesmo para abrir uma microempresa, como ela relatou. As
borboletas eram vistas como um meio de sobrevivência nestas relações que ali estavam se
desenvolvendo. Nas palavras de Dona Gladis: “e aí a gente lembra que a gente tinha sempre
um dinheirinho para comprar lápis, cadernos essas coisas com o dinheiro que vendia as
borboletas, porque tinham tantas”.
332
Nas recordações continuou a desenrolar os fios de sua
memória:
As borboletas, aqui mesmo no Brasil ou na região não tinham validade. Aqui
era um lugar pequeno e não usavam tanto. Mas ia para fora. Tinha lugares
que eu escutei dizer que eles faziam tetos revestidos com borboletas, já
coladas, elas eram coladas em cima de um papel mais grosso, assim com
desenhos geométricos e dependia do tamanho, tinha maiores e menores, e
essas eram encomendadas e todas bem embaladas e mandadas com avião.
333
A fauna na região era muito rica e exuberante, de acordo com Dona Gladis. E as
borboletas eram capturadas, embaladas e depois de vendidas serviam como um “produto
exótico” na decoração de habitações em outros países. Extasiada ainda com as lembranças da
beleza provocada pelas borboletas, Dona Gladis narrou:
E era a coisa mais linda porque tinha tudo que é tipo [de espécies] que se
pode imaginar tinha. Daí tinha as estradas, dos dois lados era mato, isso era
ter uma fruta no chão ou qualquer coisa que elas gostavam de comer.
Aquilo fervia disso, de borboletas, então era a fase mais linda do mundo.
334
A contemplação das imagens instituídas na infância apresentou, a partir das
borboletas, a fase mais linda do mundo”. Uma atividade que envolveu muitas pessoas, que
capturavam as espécies e as vendiam. Estas borboletas, de acordo com as recordações de
Dona Gladis, eram compradas por “biólogos e pessoas que estudavam a origem e para
cadastrar os tipos que em outros lugares não tinham e tinha aqui no Brasil.
335
Espécies
caçadas, cadastradas e pesquisadas. Dona Gladis relatou que na borboleteria “foi o meu
331
Relato de Gladis Elfi Mohr..., relato citado. As borboletas também eram usadas na confecção de cinzeiros,
quadros e no revestimento do fundo de bandejas utilizadas na cozinha.
332
Idem.
333
Idem.
334
Idem.
335
Idem.
132
primeiro emprego, então cheguei a trabalhar lá”. Uma atividade de extrativismo que foi
fonte de renda. As borboletas aos poucos foram extintas, diminuindo em número de espécies
na região. No relato de Dona Gladis:
Daí tinha gente até do Paraguai que trazia, eles traziam caixas grandes.
Tinha poucas caixas de papeo na época, mas traziam caixas grandes e
quando não tinha quase caixas, sabe aquelas malas que eram feitas de
madeira? O tipo de um bauzinho, cheio de borboletas. Sabe o que é que é
cheio que se despejava assim. Mas era borboleta, borboleta, borboleta, sabe?
Depois era tudo cuidado, daí botavam naftalina para não ser comido por
outros bichinhos.
336
Diante destas recordações, fico perplexo com o alcance daquela exploração. A
narrativa assumiu magnitude ao perguntar também a este entrevistador: “sabe aquelas malas
que eram feitas de madeira? ou, quando pronunciou: “mas era borboleta, borboleta,
borboleta, sabe?”, na tentativa de procurar compreender se eu estava apreendendo a
dimensão dos significados que estava buscando passar pela narrativa.
Os modos de apropriação dos recursos foram direcionados a diferentes maneiras de
proverem o sustento humano. Esta natureza provedora foi também recordada por seu Dito:
Naquela época caça não faltava. Tinha de tudo. Tinha anta, cateto, veado.
Tudo quanto que é bicho tinha aqui. Tinha onça, tinha muitas onças, tinha de
tudo. Foi pega uma onça e colocada numa jaula. E também elas o
atacavam porque elas tinham muito bicho para comer e não precisavam
atacar a gente. Nós mesmos vimos muitas onças pintadas e pardas. Matemos
muitos veados também que tinha aqui. Os veados vinham na porta do rancho
assim, quando nós fizemos o acampamento dentro do mato aquilo passava
na porta do rancho. Veado, paca, cutia, esses bichinhos ninguém ligava por
isso, muitas vezes ia atrás dos bichos maiores.
337
A existência farta de caça no período simultâneo ao desmatamento fez emergir uma
imagem positivada e significativa do lugar. No contar de seu Dito, os homens tiravam da
natureza, no Arroio Guaçu, o sustento, principalmente a caça, que era abundante. A imagem
da abundância de animais selvagens, nos primeiros tempos, esteve reduzida a uma
independência imediata do homem à natureza, uma vez que: “tudo quanto que é bicho tinha
aqui”. Uma mata rica e uma terra fértil foram representações propagadas daquele lugar.
A narrativa de seu Dito apresentou uma natureza, de certa forma, idílica, a partir da
qual pareceu sentir-se gratificado pela possibilidade de conseguir alimentos. Por outro lado, a
mesma natureza era portadora de perigos, como a presença de onças. Estes animais, por sua
vez, parecem ter vivido até de forma harmônica com os homens. Os perigos relacionados a
336
Relato de Gladis Elfi Mohr..., relato citado.
337
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
133
animais selvagens, como as onças, foram observados por Regina Beatriz Guimarães Neto em
estudo sobre Juína, Mato Grosso, quando destacou que em fins de 1979 as pessoas viviam
amedrontadas pela presença de onças. Segundo Regina, “das inúmeras histórias anônimas,
evocando a terra desconhecida ‘dos índios’ e animais selvagens todos ouviam dizer de
crianças que sumiam levadas pelas onças. Um grande medo pairava no ar”.
338
A natureza selvagem, muitas vezes, é representada a partir da idéia do perigo. Mas,
seu Dito narrou que as oas “não atacavam porque elas tinham muito bicho para comer e
não precisavam atacar a gente”, denotando o equilíbrio da natureza. Abarcando uma reflexão
ressentida sobre aquele cotidiano, seu Dito falou:
saudade, muita saudade do mato, meu Deus do céu. A coisa era uma
diversão boa. Para pescar mesmo era melhor que a gente descia lá no
canalão [rio Paraná]. Aquilo dava na base de uns duzentos metros para
chegar lá na água morro abaixo.
339
A pesca também era feita com fartura, pois era no chamado “canalão” que, segundo
estudos do IPARDES, era um “trecho compreendido como cañon’ abaixo dos saltos, com
águas rápidas e profundas”.
340
Eram nestas águas que seu Dito gostava de pescar. Segundo
ele: “ali dava peixe bom, aquilo pegava Jaú de vinte, trinta quilos tranquilo. Patí, Mandí,
tudo quanto que é peixe dava. Hoje em dia não mais peixe grande como antigamente, ali
foi pêgo peixe a de oitenta, oitenta e sete quilos”.
341
Articulada à destruição do meio
ambiente, seu Dito sentiu falta de toda a fartura de caça e pesca. Em sua narrativa expressou
que “ali dava peixe bom”, procurando restituir a boa vivência que tivera naquele lugar.
Realçando a descrição de uma imagem, quando se tinha uma natureza de exuberância,
seu Dito, recordando-se ainda do rio Paraná onde ia pescar, falou da transformação sofrida
pelo rio, sentindo-se, aparentemente, expropriado daquele meio: tinha aqui nesse [rio]
Guaçu cachoeiras bonitas que hoje em dia não tem mais, está tudo debaixo, que o lago de
Itaipu tampou tudo”.
342
A sua interpretação do lugar apresentou uma região devastada pela
formação do Lago de Itaipu. Na tentativa de redesenhar o quadro com as imagens belas de
338
GUIMARÃES NETO, Regina B. “Personagens e memórias. Territórios de ocupação recente na Amazônia”...,
op. cit. p. 08.
339
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado. A referência feita por seu Dito ao canalão
refere-se ao precipício que deveria ser superado para chegar até às margens do rio, chegando a alguns lugares
numa altura de mais de 190 metros.
340
FUNDAÇÃO IPARDES: Alterações ecológicas decorrentes de Itaipu. Curitiba, 1977, p. 29. Disponível em:
www.ipardes.pr.gov.br. Acessado em 12/01/ 2009.
341
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
342
Idem.
134
suas lembranças, narrou que as cachoeiras eram “bonitas”, as quais formam imagens vivas ao
recordar:
Nós morávamos aqui [no Arroio Guaçu] quando nós escuvamos as Sete
Quedas. Daqui lá, da na base de uns quarenta e seis quilômetros, mais ou
menos. Quando nós escutava as Sete Quedas roncar lá em cima, daí contava
em três dias tinha chuva, e era certo, a chuva caia. O ximo que passava
era quatro dias, a chuva caía. Como que é a natureza! O homem acabou com
a natureza e a natureza está acabando com o homem.
343
Tais elementos da natureza são articuladores de um saber que somente as pessoas que
tinham uma ligação íntima e direta com a mesma conseguiam depreendê-los. Há neste
fragmento de memória uma relação de respeito com a natureza, que se constituiu nas
barrancas dos rios Guaçu e Paraná. Ouvir o barulho das cachoeiras ou o som propagado pelas
quedas ďágua, nas Sete Quedas, em Gura, era um método utilizado pelos moradores
próximos ao rio como uma forma de previsão do tempo, se faria chuva ou sol. Seu Dito, na
tentativa de dar vazão à sua experiência, expressou: “como que é a natureza!. Ele pareceu
buscar a compreensão da amplitude do significado do som propagado pelas quedas da água no
seu cotidiano passado. Um cotidiano trilhado com a construção de um saber ecológico. Este
saber não é apenas de objetos. É a compreensão da propagação de um som emanado pelas
quedas d’água que, segundo Leonardo Boff, “é um saber de saberes, entre si relacionados”.
344
Seu Dito fez-se entendedor do “ronco das Sete Quedas e na busca de um equibrio
dinâmico e criativo procurou “aprender o manejo ou o trato da natureza obedecendo a lógica
da própria natureza ou, partindo do interior dela, potenciar o que se encontra seminalmente
dentro dela. Sempre numa perspectiva de preservação e ulterior desenvolvimento”.
345
Os saberes de seu Dito partem de um cotidiano marcado pela presença constante de
caça, pesca, matas e cachoeiras. Ao mesmo tempo, se fez entendedor de que “o homem está
acabando com a natureza e a natureza acabando com o homem”. A interpretação de seu Dito
apareceu carregada de certo desejo de liberdade de pensamento. Os seres humanos,
interpretando a realidade, devem ser vistos enquanto “agentes, cuja liberdade de decidir qual
valor atribuir às coisas e de que maneira preservar esses valores pode se estender para muito
além do atendimento de suas necessidades”.
346
343
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
344
BOFF, Leonardo. Ecologia grito da terra, grito dos pobres..., op. cit. p. 18.
345
Idem, p. 19.
346
VEIGA, José Eli da. Meio ambiente & desenvolvimento. o Paulo: Editora Senac São Paulo,ed., 2006,
p. 90.
135
Para Warren Dean, em seu estudo sobre a destruição da Mata Atlântica, uma das
maiores ações prejudiciais à mata foram os programas de desenvolvimento executados pela
construção de hidrelétricas. O autor faz sua crítica em relação à construção da, então, maior
hidrelétrica do mundo, Itaipu, que, ao longo do curso do Rio Paraná teve uma faixa de 170
quilômetros submersos, entre Foz do Iguaçu e Guaíra, com 8.519 propriedades urbanas e
rurais, as quais foram alagadas na margem brasileira. Além da diáspora de milhares de
moradores, o alagamento do rio Paraná contribuiu para a deterioração de milhares de
quilômetros de florestas, que desapareceram sob as águas da barragem. Segundo Warren
Dean, “o incrível é que se permitiu que o projeto destruísse uma das maravilhas naturais do
mundo, Sete Quedas, a magnífica catarata que muito tempo havia sido declarada parque
nacional. Com ela desapareceram as ruínas quinhentistas inexploradas da Cidade Real de
Guaíra”.
347
Sobre a destruição, seu Dito interpretou com sua visão de mundo, sem compreender os
motivos que levaram os homens a estas ões tão prejudiciais. Ele próprio, que reside às
margens do reservatório, observa e vivencia os problemas climáticos, relacionando-os com a
formação do lago de Itaipu no início da década de 1980. Segundo ele: “agora transfere para
nós aqui o calor, o sol queima, não é quente, é que queima demais. Eu acho que o reflexo da
água, isso judia muito nós aqui. Geralmente pelas quatro horas da tarde se torna pior do que
de meio-dia.
348
Seu Dito teve quase todos os anos de sua experiência tecida às margens dos
rios Guaçu e Paraná. Fazendo-se conhecedor da região, denunciou o sofrimento causado pelo
calor do sol com a formação do lago. Conforme seu Dito, o lago trouxe conseqüências graves,
como “o reflexo da água”. Demonstrando a experiência de viver naquelas margens e
amargando o calor do sol, pronunciou-se ainda mais contundentemente: “antes não era assim
não. Só dava o sol mais quente ao meio-dia. Agora não, agora as três, quatro horas é a hora
mais quente por causa do reflexo da água. Isso aí cada vez vai prejudicando mais”.
349
Os trabalhadores que viveram naquele meio perceberam e percebem as transformações
ocorridas com o ambiente a partir das ões humanas. As lembranças dos moradores
ribeirinhos ao Lago de Itaipu reconstituem um quadro de sofrimento enfrentado pelos mesmos
quando relatam o aquecimento provocado pelo reflexo do sol na água. Estas lembranças não
estão desconectadas da experiência mediada na realidade que se molda com as mudanças
347
DEAN, Warren. A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira..., op. cit. p. 310.
348
Relato do senhor Benedito Lopes Gonçalves..., relato citado.
349
Idem.
136
climáticas. Desse modo, movido pelas preocupações ambientais vinculadas no meio social, o
senhor Francisco lembrou:
Pois é, o clima mudou por conta disso [da derrubada de mato]. O clima
mudou por conta do mato, Gilson. Que era para ter quase a metade dessas
áreas de mato. Derrubaram as matas tudo. Você hoje, hoje tem lugar
que s não temos uma lenha, nós não temos uma sombra para nós
descansar.
350
O senhor Francisco manifestou uma preocupação queo está somente ligada às
atividades da derrubada da mata, na qual também colaborou, e na produção das lavouras de
hortelã. Ele procurou destacar uma realidade, na qual lhe faz falta a mata para a retirada da
lenha, que ainda necessária como combustível, e a própria sombra das árvores, para o
descanso. A narrativa delineou uma paisagem esgarçada a partir dos elementos articuladores
de sua experiência ao falar do clima. Um clima que passou a sofrer alterações paulatinas a
partir da derrubada da mata, na ampliação de um espaço para a produção agcola, sobretudo,
inicialmente, com as lavouras de hortelã. Na articulação do senhor Francisco:
E a chuva aqui mais escasso por conta disso, porque acabou a natureza. É
que nós precisamos é da natureza. Nós não passamos sem a comida, s
precisamos da natureza. E hoje você vê, este Paraná foi devastado tudo e não
plantaram a metade. E precisava devastar isso tudo?
351
Indagando os sentidos da interpretação e crítico na visão de mundo tomada por uma
posição política, o relato do senhor Francisco ganhou força maior na preocupação com a falta
de alimentos. Assumindo ares de dramaticidade, pronunciou o seu apelo contra a destruão
da mata, a qual trouxe consequências, como a escassez de chuvas. Em suas palavras: “água
nós não temos. Porque você vê, dá uma chuva nessas roças aí ó, você passa um veneno aqui
ó, e uma chuva, e essa água vai para onde? Essa água vai tudo para nossa água de nós
tomar”.
352
O narrador interpretou as modificações ocorridas a partir de sua experiência, tecida
no cotidiano demonstrando que não é neutro nestas dinâmicas socioambientais.
O senhor Francisco deu a entender certo conhecimento “ecológico ao questionar:
para onde vai a água da chuva? Ele pareceu estar preocupado com uma realidade que se
molda quando a produção agrícola requer uma quantidade considerável de agrotóxicos e com
o processo de degradação do solo nas lavouras. Mostrando-se, ao seu modo, conhecedor da
degradação ambiental e da contaminação com o uso de agrotóxicos, respondeu a sua ppria
350
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
351
Idem.
352
Idem. Ver também a tabela 6, que demonstra dados da devastação da mata em km² no Paraná.
137
indagão: “essa água vai tudo para nossa água de nós tomar”. Mediado por tais
preocupações, ele ainda asseverou:
Nós estamos tomando água envenenada aí, ó. E naquela época nós não tinha
disso. Acabava uma chuva, parava uma chuva, você ia a água estava
limpa. Agora, hoje você olha aí, porque aquela época que nós fazia esse
serviço que estou contando pra você aqui [derrubada da mata e plantação de
hortelã], parava uma chuva e você chegava nas vertentes aí a água era tudo
limpinha. E agora, hoje com essa bagunça de soja ó, hoje acabou tudo.
Nós somos tudo contaminado. Não temos saúde.
353
Denunciando uma realidade que se coloca quando a saúde não é mais a mesma do
tempo quando era jovem, o senhor Francisco fez uma relação com aquele cotidiano em que se
tinha uma melhor qualidade de vida com a água, que “era tudo limpinha”. Do mesmo modo,
produziu um relato atualizado, em consonância com discussões ambientais atuais nos meios
de comunicação, delatando a contaminação da água pela monocultura da soja. Atividade que
demanda excessivo uso de agroxicos, a qual classificou como “bagunça”, retrucando:
Hoje você não bebe uma água boa, a água é toda contaminada. Aquela época
você podia sair e falar com sua mãe: olha mãe, e banha no fogo que eu
vou lá buscar um peixe para comer. Você com cinco, seis minutos ou meia
hora você pegava aí peixe para almoçar. Hoje você vai no rio e fica o dia
inteiro e não pega nada mais, está tudo contaminado. Quer dizer que,
naquela época, nós trabalhava muito, mas tinha prazer, Gilson. Hoje os
pobres estão todos julgados, você sabe, Gilson? Igual você mesmo está
vendo porque você é novo, voé criança, em vista de mim, mas é o tal
negócio, você mesmo esalcançando isso Gilson. Vomesmo valor,
mas outras pessoas não dão. Hoje as pessoas estão trabalhando todos em
vão. De que é que adianta?
354
As lembranças do senhor Francisco têm uma marca forte daquele cotidiano passado,
que ele entende como melhor do que a atualidade. Quando chegou ao Paraná tinha fartura, as
águas não estavam contaminadas e tinha “peixe para comer”. Ele reatou os significados e
práticas na realidade específica daquele lugar, percebendo a ação de agentes em diferentes
tempos e, como um perspicaz observador, criou uma atitude de defesa e consciência de que é
necessária a conservão ambiental.
O senhor Francisco fez-se um sujeito observador das mudanças ocorridas também na
natureza. Pressionado por questões do momento presente, percebeu que a monocultura da soja
colaborou/colabora na contaminação da água: “a água é toda contaminada”. Trabalhava-se
muito e tinha prazer. E hoje?: “hoje os pobres estão todos julgados”. A falta de terras e a
353
Relato do senhor Francisco Ferreira da Silva..., relato citado.
354
Idem.
138
destruição da natureza o colocam em inconformidade com uma realidade que parece o se
aquietar.
Interpretações como esta podem ser mediadas com os sentidos históricos da produção
hortelaneira, a qual não necessitava exclusivamente do uso de agrotóxicos. Pois, como
lembrou o senhor Geraldo: “na hortelã não precisava colocar veneno por causo que aquilo já
era da natureza, terra forte aquilo não dava bicharedo”.
355
Na interpretação do narrador, a
fertilidade das terras contribuía para evitar o ataque de insetos na produção agrícola,
demonstrando um saber instituído em sua experiência com os males causados pelo uso dos
defensivos agcolas. O sentido político que permeia o discurso da perda é do exaurimento dos
recursos. As narrativas, principalmente dos não proprietários, denunciam a monocultura da
soja como responsável pela contaminação da água. O senhor Geraldo, fazendo-se conhecedor
dessa dinâmica produtiva, manifestou sua experiência:
Hoje em dia você planta soja aqui e se você não colocar veneno ele não dá
mais nada. Antigamente, você não precisava colocar veneno não. E como
que era bom na época que estava maduro, assim seco, nós cortava tudo de
foicinha assim, e aí cortava de dia e trilhava de noite. Era bacana.
356
Compreendo que aquilo que inquieta o senhor Geraldo não é somente a monocultura
da soja enquanto produção agrícola que contamina o ambiente. Suas recordões reportam-se
a um período da produção da soja quando as atividades com este produto eram feitas de forma
manual, necessitando de muitos trabalhadores. As máquinas eram utilizadas somente para
trilhar ou debulhar o produto. Ele percebeu que é a partir das novas técnicas empregadas na
produção da soja que trabalhadores como ele perderam espaço nas lavouras. Uma produção
que, segundo ele, não produz mais como antigamente. Você plantava no meio daquelas
coivaras e dava soja pra danar. O Paraná não produz mais soja como naquela época, que
era tudo no meio daquelas pauleiras que dava cada pesão de soja.
357
Mediado pelo significado inquietante da mecanização da agricultura, o senhor Geraldo
sente-se excluído da produção de soja e, numa narrativa inquiridora, pronunciou que a
produção dessa monocultura o é a mesma de quando se plantava em meio às coivaras
preparadas para o plantio da hortelã. Assim, observa atentamente os modos de trabalhar a
terra, denunciando, muitas vezes, que os novos processos de produção agrícola causaram
danos ao meio ambiente. Procurando restituir as modificações nos modos de trabalhar a terra,
355
Relato do senhor Geraldo Alves Gonçalves..., relato citado.
356
Idem.
357
Idem.
139
o senhor Adolfo foi contundente em suas recordações sobre o uso de novas técnicas de
produção:
Então, quanto mais tecnologia, mais destruição tem. Porque a destruição não
é tanto o homem que faz, é a tecnologia, tanto mais moderno como que é,
tanto mais faz. Onde que antigamente trabalhavam dez pessoas ou dez
famílias, vamos supor, hoje uma máquina faz isso. Para colher o trigo s
cortava tudo com a foicinha e hoje, tu vê, hoje está numa situação que a
máquina entra em duas ou três horas está tudo, tudo colhido, o pessoal o
suja nem a mão.
358
Os diferentes modos de produção foram lembrados como marcos de memória do
senhor Adolfo, sobretudo quando percebeu que ocorreu a expropriação dos trabalhadores com
o emprego de maquinários nas atividades agrícolas. Pareceu inquietar-se frente ao uso destas
máquinas, principalmente quando, em suas interpretações, é o moderno, em sua generalidade,
que destrói a natureza.
No decorrer da análise das fontes pude observar que o processo de transformação da
natureza ocorreu de modo relacional com as atividades de trabalho nas plantações de hortelã
na região. Todos, trabalhadores, proprietários e não proprietários, estiveram inseridos de
algum modo na destruição e transformação da natureza para dar lugar à produção agrícola em
grande escala. Esse processo o ocorreu simplesmente de fora para dentro, com a concessão
de créditos agrícolas. Ele ocorreu em conjunto com a devastação e a derrubada da mata. O
trabalhador, o proprietário, o meeiro ou o arrendatário se reconheceram como participantes da
destruição da natureza, que apenas permanece nas memórias daquele que viveram o tempo da
hortelã.
Outrossim, as narrativas teceram uma trama demonstrando que a interpretação do
vivido não se apresenta com um sentido fixo do e sobre o passado. Os olhares dispostos sobre
as relações cotidianas do período hortelaneiro compartilharam de um chão social revelador
perpassado pelos meandros das lutas, trajetórias e estranhamentos dos trabalhadores que se
fazem pertencer, por suas memórias, a este espaço da fronteira.
358
Relato do senhor Adolfo Hobus..., relato citado.
140
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante o desenvolvimento deste estudo das memórias sobre as dinâmicas
socioculturais presentes a partir das plantações de hortelã no Oeste do Paraná, em particular
em Mercedes, uma multiplicidade de queses veio à tona. Ciente da complexidade e
diversidade das hisricas relações sociais que foram sendo impressas pelas e nas dinâmicas
processualizadas cotidianamente, de modo algum este trabalho objetivou fechar conclusões.
Procurei, de alguma forma, interpretar relações tecidas à luz das indagações do tempo
presente. No diálogo feito com as narrativas orais não pretendi elaborar formulações cabais a
estas indagações, mas refletir acerca de tais preocupações numa perspectiva de encontrar
outros caminhos possíveis de interpretação articulados ao vivido pelas pessoas.
Procurei apreender, assim, a História como um campo de possibilidades nas relações
sociais constituídas enquanto portadoras de historicidade. Uma vez que, um dos desafios da
pesquisa foi o de dialogar com o ausente, ao falar de e com aqueles sujeitos que não estão
mais presentes na região lidei com os tempos idos. Nesta dimensão, coloquei em foco os
modos como os sujeitos que permanecem, trabalhadores das lavouras de hortelã ou não,
especificamente, situaram-se e interpretaram o processo de ocupação da região. Em torno
desta opção, procurei adentrar no universo das experiências que ganharam visibilidade na
trama das relações que se estabeleceram, muitas vezes, forjadas no eixo de sentidos das
alteridades e pertenças. Isso implicou pensar que a experiência não está politicamente pautada
paralelamente em relação com os outros. Mas, numa construção transversal em que o
processo de transformação da paisagem social é reelaborado pelo lembrar que não está
desconectado da realidade.
No desafio de diálogo com outros, narradores da vida dos “outros” e de si próprios, as
peculiaridades encontradas foram ltiplas. As ricas trajetórias dos sujeitos sociais, por sua
vez, me permitiram refletir sobre transformações amplas das relações experimentadas nos
mundos do trabalho e na vida social como um todo. De qualquer modo, é preciso considerar
que procurei demarcar os sentidos desse processo de ocupação, revelando que o Oeste do
Paraná, para muitos, não se instituiu ou resultou como um lugar de fixação. Mas, como um
espaço em que se observou a possibilidade de sociabilidades, as quais, para muitos, somente
se processualizaram temporariamente, pois por adversidades diversas e situações de conflito
foram “expulsos” da atividade com a terra. E, aqueles que se opuseram a esta exclusão,
resistindo de variadas formas, reelaboraram pelo lembrar como se pautaram tais
enfrentamentos.
141
As narrativas abarcaram um conjunto de atividades entremeadas entre práticas e
sentidos, as quais não se constituíram na homogeneidade, uma vez que observei pelas
narrativas um fazer-se dinâmico instituído num movimento que transcende o visual e o verbal.
Elas foram projetadas na subjetividade interpretativa de cada entrevistado, tecidas em suas
tramas de mutabilidades históricas traçadas nas vivências. Desta feita, pelas lembranças tive a
possibilidade de dialogar com os sentidos do viver dos entrevistados no espaço da fronteira,
lugar em que se elaboram e reelaboram alteridades. Estes sujeitos, protagonistas de suas
próprias hisrias, fizeram emergir outras indagões ao processo histórico da região Oeste,
traçando diversos significados às suas tramas cotidianas numa relação dialógica com o
presente/passado/presente. Uma relação mediadora da análise que sugeriu diversas
interpretações, envolvidas, sobretudo, com os modos de vida nos quais projetaram suas
expectativas e experiências instituídas muitas vezes pela itinerância migratória.
As múltiplas dimensões destes viveres foi uma empreita por vezes dolorosa para
interpretação, principalmente quando os sentidos construídos pelos entrevistados provocaram
uma ampla e desarrumada apreensão da paisagem social. Paisagem esta denunciada pelo
fazer-se da região com a participação de sujeitos diversos. As trajetórias, todavia, desnudaram
algumas faces de um tecido social, pontuando a heterogeneidade de um processo engendrado
num fazer-se dinâmico, contrapondo-se à uma literatura acadêmica e memorialista que
somente historicizou o processo pelas vias de uma dada oficialidade, de força do hegemônico.
Tornou-se então importante esmiuçar experiências tecidas nas narrativas, pois estas,
articuladas pela reflexão, deram vida à minha problemática.
As narrativas ainda me propuseram outro desafio, o de apreender a violência com que
foi explorada/devastada a região para a prática agrícola em larga escala e em curto espaço
temporal. Denunciando a amplitude das transformações no vivido, que marcaram a paisagem
natural, de modo algum este trabalho conseguiu dar conta, apenas situou novas questões.
Estas narrativas me permitiram compreender que os sujeitos não são neutros em suas ações;
pelo contrário, interpretam suas atitudes passadas num presente ávido de respostas, em que
observam a devastação que de algum modo colaboraram. Dialogar com as mudanças no meio
ambiente tendeu a apreender o fazer-se histórico da ocupação, quando a mata foi destruída
para dar lugar às práticas agcolas predatórias. Em torno dessa dimensão, procurei mapear
como as memórias ressaltaram os sentidos da transformação dessa paisagem natural e social.
Considero, portanto, que esta é a dimensão de uma problemática que foi sulcada, que precisa
de uma apreensão mais aprofundada.
142
No lapidar as lembranças fica o que significa. Ficaram fragmentos de lembranças
resignificadas e também registros de um tempo que conta o passado, o presente e, ainda,
projeta o futuro.
Por fim, almejo que este estudo dê visibilidade no debate acadêmico e, mesmo fora
dele, não de uma meria cristalizada, mas de uma memória viva e latente do período
hortelaneiro da região. Um período que foi marcado por estranhamentos e tensões, no qual
também se mostraram dimensões de uma pluralidade de dinâmicas vividas pelas/nas relações
sociais numa fronteira que se faz e refaz cotidianamente.
143
FONTES
Jornalísticas:
Posição. Curitiba, nº 6, out/nov de 1975. Acervo pessoal do senhor Azelino Lange.
Informativo Copagril. Marechal ndido Rondon, ago. de 1981, nº 41. Acervo da unidade
sede da Cooperativa Copagril de Marechal Cândido Rondon.
Informativo Copagril. Marechal Cândido Rondon, jan. de 1980, 23. Acervo da unidade
sede da Cooperativa Copagril de Marechal Cândido Rondon.
Informativo Copagril. Marechal ndido Rondon, ago. de 1979, 18. Acervo da unidade
sede da Cooperativa Copagril de Marechal Cândido Rondon.
Informativo Copagril. Marechal Cândido Rondon, out. de 1977, 13. Acervo do Centro de
Pesquisa da Prefeitura de Marechal Cândido Rondon.
Informativo Copagril. Marechal Cândido Rondon, nov. de 1977, 14. Acervo do Centro de
Pesquisa da Prefeitura de Marechal Cândido Rondon.
Orais:
Adolfo Hobus, 68 anos, agricultor aposentado. Nascido em Rio do Sul, Santa Catarina,
migrou em 1953 ao Paraná na localidade de Linha Sanga Mineira, atual município de
Mercedes. Em 1979 migrou para Panaíta, estado do Mato Grosso, retornando dois anos após
novamente à Mercedes onde reside.
Antoniel Matos dos Santos, 56 anos. Nascido em Boa Nova, Estado da Bahia, migrou em
1968 à São Paulo para trabalhar em fazendas de produção de banana. Retornou novamente a
Bahia e em 1969 migrou novamente, desta vez para Maringá, norte do Estado do Paraná. Em
1971 veio residir em Salamanca, interior do município de Guaíra para trabalhar nas lavouras
de hortelã. Em 1995 migrou para São Paulo, retornando ao Oeste do Paraná em 2005,
aposentou-se e reside na cidade de Mercedes.
Azelino Lange, 60 anos. Nascido em Lagoa Vermelha, Rio Grande do Sul, migrou para
Marechal Cândido Rondon, mais precisamente na Linha Arroio Fundo em 1953, juntamente
com seus pais e irmãos. Trabalhou na atividade hortelaneira e como professor municipal na
década de 1970. Reside na localidade de Linha Ludwig, distrito de Novo Horizonte, Marechal
Cândido Rondon. É pequeno proprietário aposentado.
Benedito Lopes Gonçalves, 57 anos, aposentado. Nascido em Arapongas, Paraná. Migrou
para a região Oeste, mais precisamente no munipio de Guaíra em 1960, juntamente com sua
família onde adquiriram uma propriedade rural próximo ao rio Guaçu onde desenvolveram a
144
produção de hortelã. Hoje, não é mais proprietário rural e reside na localidade de Arroio
Guaçu, Mercedes.
Francisco Ferreira da Silva, 67 anos. Nascido em Governador Valadares, Minas Gerais.
Migrou ao Paraná em 1965, no atual município de Mercedes próximo ao rio Guaçu.
Trabalhou sempre como arrendatário. É aposentado e reside na cidade de Mercedes, mas
continua trabalhando na roça.
Geraldo Alves Gonçalves, 49 anos. Nascido em Ipoté, Minas Gerais. Migrou para São Paulo
em 1973, onde permaneceu somente alguns meses. No mesmo ano, com apenas 11 anos de
idade, veio ao Oeste do Paraná, mais precisamente em Linha Guavirá, no município de
Marechal Cândido Rondon. Reside atualmente na localidade de Linha Gruta Mercedes e
trabalha como funcionário público no setor de serviços gerais.
Gilson José Philippsen, 40 anos. Filho de migrantes sulistas. Trabalha como representante de
vendas de insumos agrícola. Reside na cidade de Marechal Cândido Rondon.
Gladis Elfi Mohr, 49 anos. Nascida em Mercedes, Paraná, em 1958. Trabalha como
professora de língua portuguesa na rede estadual de ensino.
José Honorato Alves, 71 anos. Nascido em Imaruí, Santa Catarina, migrou com sua esposa e
filhos para Mercedes em 1969. Trabalhou como meeiro nas lavouras de hortelã. Atualmente é
pequeno proprietário rural aposentado e reside na Linha Sanga Mineira, Mercedes.
Milton Jo Sehnem, 49 anos. Nascido em Mercedes, Paraná, em 1958 onde começou a
trabalhar nas lavouras de hortelã. Em 1973, mudou-se para Colônia Laura, Alto Paraná,
Paraguai, onde continuou trabalhando com a hortelã. Reside atualmente em Fortuna, Paraguai,
desenvolvendo atividades agrícolas como pequeno agricultor. Vem constantemente visitar sua
família em Mercedes, onde se oportunizou a entrevista.
Sebastião Germano Filho, 73 anos, aposentado. Nascido em Governador Valadares, Minas
Gerais, migrou ao Oeste do Paraná em 1975, onde trabalhou com a hortelã. Reside na Linha
Cunhaporã, distrito de Porto Mendes, Marechal ndido Rondon onde possui uma pequena
propriedade rural.
Theobaldo Augusto Frederico Mohr, 72 anos. Nascido em Taió, Santa Catarina, migrou
juntamente com sua família, pais e irmãos em 1953 a Mercedes onde reside até hoje. Sempre
trabalhou como torneiro mecânico. Atualmente é aposentado, mas continua administrando sua
oficina mecânica e desenvolvendo atividades nesta área.
145
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150
ANEXOS
ANEXO 01 Planta da área Centro Ocidental da Fazenda Britânia.
Fonte: Apud: TRICHES, Janete. Organização do espaço agrícola regional. Estudo de Caso: Arroio Guaçu
Mercedes. Marechal Cândido Rondon (UNIOESTE – UEM). Monografia de Especialização em Geografia. 1996.
151
ANEXO 02– Panfleto de propaganda utilizado por corretores para venda de terras da Maripá.
Fonte: Apud: TRICHES, Janete. Organização do espaço agrícola regional. Estudo de Caso: Arroio Guaçu
Mercedes. Marechal Cândido Rondon (UNIOESTE – UEM). Monografia de Especialização em Geografia. 1996.
152
ANEXO 03 Nota fiscal de venda de óleo de hortelã.
Fonte: Acervo particular do senhor Quirino Sebastião Backes.
153
ANEXO 04 Nota fiscal de venda de óleo de hortelã.
Fonte: Acervo particular do senhor Quirino Sebastião Backes.
154
ANEXO 05 – Mapa do território de Mercedes.
Fonte: Prefeitura municipal de Mercedes.
155
ANEXO 06 Tabela das escolas pertencentes ao Distrito de Mercedes em 1978
Nome da escola Localização
Grupo Escolar Tiradentes Sede Distrital
Escola Washington Luiz Linha Sanga Guilherme
Escola Caetano Munhoz da Rocha Arroio Guaçu
Escola Maria Goretti Linha Belmonte
Escola Getúlio Vargas Linha Sanga Fruteira
Escola Vital Brasil Linha Sanga XV de Novembro
Escola Almirante Tamandaré Linha Sanga Caburé
Escola Jorge Lacerda Linha Sanga Mate
Escola Carlos Chagas Linha Sanga Mineira
Escola Antonio Carlos Linha Sanga Guaíba
Escola Ébano Pereira Linha Sanga Forquilha
Escola Princesa Isabel Linha Lageado Mineiro
Escola Visconde de Taunay Linha Sanga Alegre
Escola Cristóvão Colombo Linha Novo Rio do Sul
Escola Martin Afonso de Souza Linha São Marcos
Escola José de Alencar Três Irmãs
Escola João XXIII Linha Sanga Balisa
Escola Oswaldo Cruz Linha Nova Esperança
Escola São Luiz Linha São Luiz
Fonte: Tabela organizada por Gilson Backes a partir do Decreto Nº 035/78 da Prefeitura Municipal de Marechal
Cândido Rondon, de 25 de abril de 1978 quando da denominação e regulamentação dos estabelecimentos de
ensino municipal, folhas 3 e 4.
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