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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇÃO
CAMPUS DE BAURU
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO
Área de Concentração: Comunicação Midiática
Cláudio Rodrigues Coração
REPÓRTER-CRONISTA: JORNALISMO E LITERATURA NA
INTERFACE DE JOÃO ANTÔNIO COM LIMA BARRETO
BAURU
2009
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Cláudio Rodrigues Coração
REPÓRTER-CRONISTA: JORNALISMO E LITERATURA NA
INTERFACE DE JOÃO ANTÔNIO COM LIMA BARRETO
Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de Mestre em
Comunicação na Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”
Área de concentração: Comunicação Midiática, sob a orientação do Prof. Dr.
Marcelo Magalhães Bulhões.
BAURU
2009
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Cláudio Rodrigues Coração
REPÓRTER-CRONISTA: JORNALISMO E LITERATURA NA
INTERFACE DE JOÃO ANTÔNIO COM LIMA BARRETO
Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de Mestre em
Comunicação na Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”
Área de concentração: Comunicação Midiática, sob a orientação do Prof. Dr.
Marcelo Magalhães Bulhões.
Bauru, 03 de abril de 2009.
Banca Examinadora
Presidente: Prof. Dr. Marcelo Magalhães Bulhões
Instituição: Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Titular: Prof. Dr. Dimas A. Kunsch
Instituição: Faculdade Cásper Líbero (FCL)
Titular: Prof. Dr. Mauro de Souza Ventura
Instituição: Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Às musas e músicas...
Agradecimentos
Aos meus pais
Ao meu orientador, Marcelo Bulhões (com muito respeito e admiração)
Aos amigos de sempre e para sempre
Aos amigos que caminham em harmonia e sintonia
Á FAPESP
Corra e olhe o céu, que o sol vem trazer bom dia. (Cartola)
CORAÇÃO. Cláudio Rodrigues. Repórter-Cronista: Jornalismo e Literatura na interface de
João Antônio com Lima Barreto. 2009. 187 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Midiática)
– UNESP, Bauru, 2009.
Resumo
Radiografar “faixas esquecidas da sociedade”. Eis a premissa levantada pelo escritor-jornalista João
Antônio no ensaio “Corpo-a-corpo com a vida” (1975). Tal assertiva reverbera e se manifesta em
sua produção jornalística futura e funciona como uma propensa idéia de enfrentamento, de
combatividade, por parte do intelectual, escritor e jornalista brasileiro. O objetivo deste trabalho é
verificar, analisar e contextualizar o “universo” de João Antônio à luz das inquietações emolduradas
por ele e a relação com alguns paradigmas, dos quais o mais forte é Lima Barreto. Por meio da
aproximação de João Antônio com o escritor-jornalista carioca, procurou-se desenvolver, nesta
pesquisa, um percurso dos pressupostos sugeridos por ambos, em uma interface analítica. Assim,
identifica-se, neste trabalho, como Lima Barreto está presente nos textos de João Antônio nos anos
70. Focalizou-se, como referencial comparativo, a produção dos textos da coluna Corpo-a-corpo, de
João Antônio, presente no jornal carioca Última Hora (março a setembro de 1976), a fim de se
discutir e se identificar as convergências de gêneros (jornalísticos e literários), desenvolvidas por
João Antônio na “apropriação” e “leitura” do jornalista Lima Barreto. Estudou-se, por meio da
interface entre os dois autores, as manifestações da reportagem, da crônica, as funções decorrentes
da prática do jornalismo e da criação literária. Nos últimos capítulos, projetou-se o estudo das
similitudes entre João Antônio e Lima Barreto, principalmente no que se refere a um modelo de
concepção literária e crítica, como também se apresentou uma estruturação dos temas engendrados
por João Antônio em Corpo-a-corpo.
Palavras-Chaves
João Antônio – Lima Barreto – Jornalismo – Literatura – Reportagem – Crônica – Corpo-a-corpo
CORAÇÃO. Cláudio Rodrigues. Repórter-Cronista: Jornalismo e Literatura na interface de
João Antônio com Lima Barreto. 2009. XXX f. Dissertação (Mestrado em Comunicação
Midiática) – UNESP, Bauru, 2009. (TRADUZIR)
Abstract
Escrever com sangue. Eis a premissa levantada pelo escritor-jornalista João Antônio no ensaio
“Corpo-a-corpo com a vida” (1975). Tal assertiva reverbera e se manifesta em sua produção
jornalística. Funciona como uma propensa idéia de enfrentamento, de combatividade. Um texto
configurado pela insígnia da “corpo-a-corpo” detém as marcas revestidas de uma imaginação
enclausurada, apreendedora memorialística de passos, de ruídos, do tropel do mundo. Com esse
cenário desenhado, o objetivo deste trabalho é verificar, analisar e contextualizar tal “universo” à
luz das inquietações emoldurados pelo jornalista João Antônio e a relação conseguinte com alguns
paradigmas, dos quais o mais forte será Lima Barreto. Por meio da aproximação com escritor-
jornalista carioca, procurou-se desenvolver, nesta pesquisa, um percurso dos pressupostos
sugeridos. Assim, este pretende identificar como Lima Barreto percorre o texto de João Antônio
desenvolvido pelo escritor/jornalista João Antônio nos anos 70. Focalizou-se, como referencial
comparativo, a produção dos textos da coluna Corpo-a-corpo, de João Antônio, presente no jornal
carioca Última Hora (março a setembro de 1976), a fim de discutirmos e identificarmos as
convergências de gêneros na cultura midiática com a elucidação de narrativas híbridas (jornalismo e
literatura), desenvolvidas por João Antônio na “apropriação” e “leitura” do cronista Lima Barreto.
Estudou-se, por meio da interface entre os dois autores, as manifestações da reportagem, da crônica,
as funções decorrentes da prática do jornalismo e da criação literária. Nos últimos capítulos,
projetou-se o estudo das similitudes entre João Antônio e Lima Barreto, principalmente no que se
refere a um modelo de concepção literária e crítica, como também se apresentou uma estruturação
dos temas engendrados por João Antônio em Corpo-a-corpo.
Keywords
João Antônio – Lima Barreto – Jornalismo – Literatura – Reportagem – Crônica – Corpo-a-corpo
Sumário
Introdução 10
Capítulo 1. A Escrita do corpo-a-corpo 14
1.1. Escrita Embate: a proposta de um corpo-a-corpo com a vida 20
1.2. A metalinguagem 27
1.3. Marcas de enfrentamento 31
1.4. Jornalismo e Literatura 33
1.4.1. O problema da representação 34
1.4.2. Fato e Ficção 36
1.4.3. A apreensão jornalística em algumas teorias 39
1.4.4. O jornalismo é literatura? 43
1.5. Diálogos jornalístico-literários 45
1.5.1. Diálogo com o romance-reportagem 49
Capítulo 2. Repórter e/ou Cronista: empreendimentos narrativos
em Corpo-a-corpo 54
2.1. A reportagem e suas peculiaridades 59
2.2. A narração e a descrição: pulsações nas reportagens do Corpo-a-corpo 64
2.3. O cronista João Antônio em Corpo-a-corpo 75
2.4. Empreendimentos narrativos: subjetividade e ação 83
2.5. A hibridização de gêneros, a pessoa e o personagem, o perfil 88
Capítulo 3. João Antônio e Lima Barreto: apropriações, presença e leitura 93
3.1. Resistência, solidariedade e humanidade em Lima Barreto 99
3.2. Resistência e Crítica jornalística em Lima Barreto 110
3.3. Intertextualidade, leitura e apropriação: Lima Barreto e João Antônio 117
3.4. Lima Barreto presente em Corpo-a-corpo 125
Capítulo 4. O Universo do Corpo-a-corpo 134
4.1. Temas, universo e linguagem 147
4.2. Carnaval dos mortos 149
4.3. O Futebol dos pingentes e dos merdunchos 154
4.4. A música: samba, tradição e o popular 158
4.5. Ambientações: da gafieira ao singelo 163
4.6. A cidade se transforma 164
4.7. Concepção literária, jornalismo e, novamente, Lima Barreto 167
Considerações Finais 178
Referências Bibliográficas 183
Introdução
Diante da dignidade da sua obra e vida, não se sabe que reverência não lhe será
minguada, que homenagem não lhe será pobre e insuficiente. Sobre Lima, hoje
atual e hoje esquecido, distante dos nossos cursos de letras, distante das nossas
escolas de comunicação, tenho ouvido algumas coisas significativas. Uma delas,
de que não me esqueço, foram as palavras de um editor: ‘eu daria um braço para
editar as obras de Lima Barreto’ (Lima Barreto, agora de 13 de maio 1976).
A figura de Lima Barreto (1881-1922) sempre esteve presente na escrita de João
Antônio (1937-1996). Lima aparece como uma espécie de farol a guiar, ética e
esteticamente, o ato de escrever joãoantoniano. O escritor-jornalista carioca parece
representar para João Antônio um esboço elucidativo de suas próprias inquietações, de suas
propostas em torno da escrita. Lima Barreto é homenageado em todos os livros de João
Antônio, por meio de dedicatórias e lembranças. Se não bastasse isso, referências e textos
de Lima permeiam a obra joãoantoniana, como, por exemplo, o livro Calvários e Porres do
Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (1977)
1
e o perfil Romancista com alma de
bandido tímido (1996).
2
Percebe-se, pois, que o legado de Lima Barreto percorre, intensivamente, a obra de
João Antônio. A interface entre os dois autores deve e pode ser investigada à luz de seus
próprios escritos
3
. O objetivo deste trabalho é, por meio da “leitura” que João Antônio faz
da obra de Lima Barreto, identificar representações textuais, fincadas em determinado
status de vida, e a partir d explicitar uma escrita fundamentada em algumas
“preocupações”
4
. Pretende-se, portanto, entender como se dão as aproximações conteúdo
e forma - entre os dois escritores-jornalistas.
1
ANTÔNIO, João. Calvários e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1977: João Antônio “corta” e “recorta” fragmentos da obra de Lima Barreto para tecer,
por meio de “depoimento” de um “amigo” de Lima, as peripécias dele pela cidade do Rio de Janeiro.
2
In: ANTÔNIO, João. Dama do Encantado. São Paulo: Nova Alexandria, 1996.
3
Bulhões (2007): “As lutas acirradas de Lima Barreto e de Graciliano Ramos estariam aproximadas das de
João Antônio. Pode-se dizer que, ao mencionar e homenagear esses dois escritores, João Antônio faz ver
traços das obras de ambos que estariam incorporados à sua própria escrita”. (Bulhões: 2007, p.186).
4
Os temas retratados, as abordagens feitas pelos escritores-jornalistas em relação a determinados universos
temáticos.
O corpus de nosso estudo é a coluna Corpo-a-Corpo, presente no jornal carioca
Última Hora (09 de março a 27 de setembro de 1976)
5
, confeccionada por João Antônio.
Na coluna, como ilustrado na citação inicial, a constante e permanente lembrança de
Lima Barreto. Lima está presente ora em citações de sua obra, ora em referências diretas e
exaustivas.
Além de verificar a interface entre os dois escritores-jornalistas, pretende-se
identificar e discutir questões prementes que surgem de tal aproximação: (1) avaliar as
narrativas jornalísticas e literárias nos textos de João Antônio em Corpo-a-Corpo e suas
devidas ligações com os textos de Lima Barreto (produção em jornais e periódicos cariocas
de 1919); (2) investigar dois gêneros jornalísticos que aparecem como práticas narrativas
nos dois autores: a crônica e a reportagem; (3) analisar e interpretar a coluna Corpo-a-
Corpo em seus vários elementos, diagnosticar as intertextualidades que possam surgir de tal
objeto.
A fim de tecer um trabalho comparativo, dedutivo, hipotético, intertextual, far-se-á
do corpus estudado (a coluna Corpo-a-Corpo) instrumento de verificação de elementos que
pulsem e elucidem nossas hipóteses e objetivos. Somado a isso, será necessária a utilização
comparativa de dois grandes referenciais teóricos: as teorias do jornalismo e a teoria da
literatura.
É evidente que por meio desses diálogos múltiplos
6
, variados, as circunstâncias
pertinentes ao trabalho permitirão análises, também comparativas, que deverão ser
abordadas e/ou verificadas
7
. De modo que se pretende, de início, esclarecer pontos
fundamentais em relação aos assuntos presentes no trabalho, dentre os quais: (1) a função
da metalinguagem em Corpo-a-Corpo; (2) a concepção de escrita, as funções e as naturezas
(jornalísticas e literárias) e o diálogo da coluna com narrativas como o romance-
reportagem e influências exteriores como o New Journalism estadunidense.
O percurso de demarcação e análise seguirá o seguinte itinerário.
5
Material pesquisado junto ao Acervo João Antônio, da Unesp, Campus de Assis.
6
Em Pesquisa em Comunicação, Lopes diz: “A explicação ou interpretação é a segunda etapa da análise e
com ela a pesquisa atinge a condição própria de cientificidade. É a fase que envolve a teorização dos dados
empíricos adotada no início da pesquisa. O ponto de chegada retoma dialeticamente o ponto de partida,
integrando os dados numa totalidade que agora é igualmente objeto empírico e objeto teórico”. (Lopes, 2001,
p.151).
7
O contato da coluna com tendências textuais como o new journalism estadunidense e o romance-reportagem
brasileiro, bem como o advento do jogo metalingüístico em Corpo-a-Corpo.
Primeiramente, apresentar-se-á e focalizar-se-á a coluna Corpo-a-Corpo como uma
espécie de “cenário-síntese” em que se verificarão e se identificarão aspectos pulsantes do
texto de João Antônio, como, por exemplo: a incorporação de uma escrita comprometida
com códigos muito singulares, específicos, na qual a manifestação mais bem delineada é a
proposta-embate presente no ensaio Corpo-a-Corpo com a Vida (1975).
8
Por isso, será
necessária a confrontação teórica no que concerne à natureza do jornalismo e à práxis
literária, para que se possam materializar as modalidades textuais em Corpo-a-Corpo.
Em um segundo momento, pretende-se levantar uma problemática: como a
reportagem e a crônica (dois gêneros embutidos na produção jornalística) desempenham
seus papéis no texto de Corpo-a-Corpo. Assim, a investigação e a fundamentação dos
gêneros são urgentes. Pretende-se emoldurar os conceitos e verificar como tais gêneros
textuais percorrem Corpo-a-Corpo, para se identificar, por conseguinte, elementos como o
efeito da impessoalidade jornalística, a figura do repórter, a narrativa desenvolvida, o
lirismo da crônica etc. Nesse momento, não como não ligar tais modalidades textuais,
em tais condicionamentos narrativos, à obra ficcional de João Antônio, especificamente à
questão do gênero conto.
Depois de demarcações e verificações, a escrita jornalística de Lima Barreto (o elo
de comparação em relação à coluna Corpo-a-Corpo) deverá ser anunciada. O propósito é
apresentar a produção jornalística de Lima, e identificar o material conteudístico que ela
carrega: os blocos temáticos, as abordagens, mas também identificar peças narrativas que
delineariam e sedimentariam um comportamento textual altamente vinculado com “esferas
de radiografias brasileiras”
9
. Nesse sentido, será de bom tom visualizar como o jornalismo
é desempenhado em Lima. Assim, a retratação de uma realidade evidenciada por um estilo
corrosivo, bruto, visceral,
10
alicerçada, também, aos ditames da crônica e da reportagem,
permitirá traçar elementos aproximativos e distintos da produção jornalística de João
Antônio em Corpo-a-corpo.
8
In: Antônio, João. Malhação do Judas Carioca. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975.
9
João Antônio (1975): “Necessidade de que assumamos o compromisso com o fato de escrever sem nos
distanciarmos do povo e da terra (...) aquela faixa toda a que talvez se possa chamar radiografias brasileiras”.
(Antônio: 1975, p.144).
10
Resende (2004): “O povo, entendido como conjunto de cidadãos livres, englobando todas as camadas
sociais, o país e a cidade, e a cidade como espaço de inclusão dos pobres, dos negros, dos suburbanos, as
mulheres humilhadas, dos bêbados e dos loucos, foram os temas que, por toda a vida, moveram sua prática
jornalística”. (In: Barreto, Lima. Toda Crônica. Volume I, 2004, p.23).
Para esse último propósito o objeto de investigação será a produção cronista de
Lima Barreto, durante o ano de 1919, em periódicos da imprensa carioca:
O ano de 1919, por onde se inicia este segundo volume [a obra Toda Crônica
volume 2], surge como decisivo para sua vida e para a trajetória jornalística.
Lima iniciara o ano aposentado por invalidez da Secretaria da Guerra, como
conseqüência da série de internações hospitalares que sofrera. O vínculo com o
serviço público lhe impunha, inevitavelmente, constrangimentos políticos, como
revela em crônica publicada no A.B.C.: ‘Aposentado como estou, com relações
muito tênues com o Estado, sinto-me livre e feliz, podendo falar sem rebuços
sobre tudo o que julgar contrário aos interesses do país’.
11
Nota-se, no trecho acima, na fala do escritor-jornalista Lima Barreto, uma postura
representacional sobre a sociedade brasileira, um pensamento sobre a sociedade,
obedecendo a um certo bloco temático corrosivo, quando diz: “podendo falar sem rebuços
sobre tudo o que julgar contrário aos interesses do país”.
Assim, logo após se verificarem as práticas textuais e as temáticas na produção
cronística de Lima Barreto, a interface com João Antônio se posicionará em alguns
sintomas de fazer literário, dentre os quais: postura de estreitamento social; pensar e fazer
jornalístico-literário vinculados com universos de representação e tematização (os
desvalidos, a cidade, o ato de escrever, o comprometimento social).
Tanto em Corpo-a-Corpo quanto na produção periodística de Lima Barreto, notam-
se quadros de enfrentamento, de visceralidade. Quadros estes não apenas de verificação
social, mas de engajamento, cuja configuração transpassa o simples narrar e faz da idéia de
comprometimento um designativo de ação textual, a moldar não apenas o universo singular
descrito e retratado no caso, faixas sociais localizadas em setores de marginalidade, de
sufocamento urbano (como se pretende elucidar) mas também no que se refere a um
conceito de reflexão do próprio confeccionar textual.
Dessa maneira, chama a atenção a combatividade no que se relaciona a uma
propositura textual: ora de engajamento, ora de retratação dos universos abordados.
É nesse sentido que, com a identificação de nosso corpus de análise a coluna
Corpo-a-Corpo pretende-se decifrar as pistas de um mosaico representacional múltiplo
em João Antônio: a realidade apreendida pelas narrativas (jornalística, literária), o ponto de
11
Barreto, 2004, p.7
vista utilizado, as aparições discursivas da crônica e da reportagem e a ligação com a obra
de Lima Barreto.
Portanto, deve-se esmiuçar a idéia da expressão corpo-a-corpo, para que se
entendam as particularidades, as citações, as representações, as idiossincrasias da coluna
lançada no jornal Última Hora. Comecemos, então, a traçar o caminho.
Capítulo 1: A escrita do corpo-a-corpo
Pode-se salientar que a idéia de compromisso (com faixas sociais e com o texto) é
atrelada, como se verá, a uma concepção literária. Nesse sentido, o compromisso se
fundamenta em uma finalidade íntima entre escritor e escrita, sendo que o texto
desempenha uma espécie de atributo social. Silva (1976)
12
explica que o tema do
compromisso se posiciona como um ente vivificado e atuante (numa espécie de condição
imersiva com o texto), que faz do prosador comprometido um ator político-social, cujo
arsenal de comprometimento se baseia nos dados de uma união intrínseca com objetos e
quadros verificáveis, possibilitando, por conseguinte, o engajamento. Ou seja, trata-se de
uma relação com essências sociais que o elemento fraterno do comprometido carrega:
O homem, no dizer de Heidegger, não é um receptáculo, isto é, uma passividade
recolhendo dados do mundo, mas um estar-no-mundo, não no sentido espacial e
físico de estar em, mas no sentido de presença ativa, de estar em relação
fundadora, constitutiva com o mundo.
13
Desse modo, partindo da idéia de estar no mundo em sentido de presença ativa”,
tentar-se-á verificar indícios da manifestação do comprometimento em Corpo-a-Corpo. Vê-
se que já no primeiro texto da coluna, Eu mesmo (09 de março de 1976), ocorre a
apresentação do novo colunista aos leitores do Última Hora, assim como a edificação de
um escritor-jornalista combativo. Há a idéia clara, em Eu mesmo, de posicionamento
12
SILVA. Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1976.
13
Silva, 1976, p.120.
espacial (o escritor-jornalista atrás da máquina de escrever), social (a origem humilde, a
identificação com os campeões de sinuca) e ético (a propositura do ato de escrever). O
jornalista começa marcando uma posição, uma hipótese que ronda o seu nome: Sobre o
meu nome se poderão ouvir as melhores e as piores coisas. Uns costumam dizer ‘não
presta’. Outros ‘é uma boa pessoa’; coloca-se na condição de um gauche: No fundo-
fundo mesmo, não passo de um campeão de sinuca. Pobre homem, creiam”; adiante, adota
as razões de uma escrita pulsante: Escrever é um ato de coragem e humildade. Quando o
escriba não tem o que falar, melhor calar”; remonta ao passado, para reforçar a condição de
precariedade em que está imerso: Nasci pobre, filho de um transmontana emigrado e de
uma mulata”.
Devidamente apresentado, o escritor-jornalista reclama alguns propósitos, algumas
intenções e ideários e pode-se demonstrar pelas marcas enunciativas do texto “Eu mesmo”,
uma espécie de embate com práticas beletristas (“no caso de um corpo-a-corpo com o Rio
não vai adiantar o uso “mágico” de estereótipos folclóricos ou grandiloqüentes. Ficaria um
prato insosso e uma prosa chocha”) por meio de uma escrita moldada pela “paixão”, que se
fundamenta, possivelmente, na discussão do próprio texto, ou seja, da própria linguagem.
Daí, possivelmente, evidenciarem-se textos futuros da coluna Corpo-a-Corpo em que o
resgate dos sambistas esquecidos
14
, dos pingentes urbanos
15
, de autores combativos
16
, de
Lima Barreto
17
apareçam.
Trata-se, ademais, de uma propagação auto-referencial, de uma tecelagem
insinuante sobre o fazer intelectual. Evidencia-se uma preocupação, como foi
apresentado, atrelada a um mundo muito característico; sustentada por um código de
14
Ciro (18/03/1976); Ainda Noel (28/04/1976); Nosso Compadre e Profeta Nelson Cavaquinho (29/04 a
06/05/1976); Araci (23/07/1976); Araça (07/08/1976); Não sou Mulher de Olá (23/08/1976); A Dama do
Encantado (28/08/1976); Homem do Povo Ismael Silva (22 a 24/09/1976); Quem canta de graça é galo
(25/09/1976).
15
Eu mesmo (09/03/1976); Metro a Metro é o Metrô (22/03/1976); Dentro da Miniguerra do Metrô (21 a
23/04/1976); Marafona Trocando de cor na Lapa (11 a 13/09/1976).
16
Sonhar com Rei dá Leão (12 a 15/03/1976); Marítimos (14/05/1976); Um Drama de Escritor (26/05/1976);
Conversa Franca com Aguinaldo Silva (16 a 18/06/1976); Maralto (21 e 22/06/1976); Com um Autor de
Livros de Bolso (03 a 07/07/1976); Papo com Júlio César, um escritor de 20 anos (28 a 30/07/1976); Com
José Louzeiro (11 a 18/08/1976); Mais “Boom” (08 e 09/09/1976); Falando de “Maralto” (17 a 21/09/1976).
17
Ao Escritor, nada (11/03/1976); Carnaval de Sangue (16/03/1976); É o choro que vem (24/03/1976); Uma
Carta de Minas (26 e 24/03/1976); Escritor, Estivador? (18/05/1976); Lima Barreto, Agora (15/06/1976);
Carta Aberta sobre Lima Barreto (19/06/1976).
conduta deontológico, em certo sentido; condicionada a uma narrativa, eminentemente
autocitatória, envolta em suas particularidades textuais e intertextuais.
Quando, ainda em “Eu mesmo, o escritor-jornalista escreve “Estou aqui, atrás da
minha máquina, para um corpo-a-corpo com a vida, com vocês e com a cidade. Saibam
que, de todos os meus amores, o mais forte, irreversível, chamamento, sensualidade, bem
querer, ternura e paixão, ir e vir e voltar e ficar – é esta cidade mesma, o Rio que eu escolhi
e que, apesar de todos os meus defeitos, não poucos, me aceita, desenha-se um cenário de
ação por parte do escritor-jornalista e intelectual brasileiro. Nesse contexto, a apresentação
da coluna Corpo-a-Corpo insinua advertir os leitores do Última Hora que um universo
muito impactante se configurará nos textos vindouros. Há, nessa insinuação, a marcação de
uma postura (profundamente vinculada às paixões do próprio autor) de “chamamento”, de
empreendimento de “amores”, ingredientes que, para o escritor-jornalista, parecem ser
fundamentais para a decodificação, por exemplo, da “cidade mesma, o Rio que eu escolhi”,
sendo que a utilização de elementos passionais parece reforçar a idéia de aproximação do
colunista com o objeto apreendido. A expressão “estar no mundo” adquire status de
fundamentação e/ou concepção propositiva, que se coaduna a um corpus de verificação da
criação textual a ser desenvolvida pelo colunista.
Desse modo, há a discussão da própria linguagem, do labor materializável da
escrita do corpo-a-corpo. também a problematização no que se refere à estreiteza, ao
choque, ao conflito (escritor e escrita). Nesse sentido, os elementos passionais sugeridos
pelo escritor-jornalista transpassam as colocações genéricas da crônica e da reportagem, e
até, dos focos narrativos. Mas, sobretudo, e fundamentalmente, um debate de execução
metalingüística, cuja configuração se une à própria tensão textual, sobre a qual as facetas
técnicas e conceituais do jornalismo e da literatura se fazem presentes em constante
adequação.
A denominação corpo-a-corpo carrega em si várias sugestões. Trata-se,
evidentemente, de uma expressão de teor conflitivo. Insinua-se, possivelmente, como uma
idéia de incorporação, de encadeamento corpóreo, visceral, de aproximação corrosiva entre
sujeito e objeto.
Contudo, o surgimento da expressão remonta a um ano antes da produção da coluna
Corpo-a-Corpo. Remete ao ensaio-manifesto Corpo-a-corpo com vida (1975), cujo
comportamento verificaremos adiante. Antes, deve-se salientar que a expressão corpo-a-
corpo se configura em uma questão-problema: a proposta de uma escrita em embate e/ou
enfrentamento de alguns códigos e posicionamentos (sejam textuais e sociais).
Portanto, este trabalho ater-se-á na propositura do compromisso e no estreitamento
com atores sociais especificados pela coluna. Parece que o ideário do engajamento textual é
praticado e/ou sedimentado nos textos do Corpo-a-Corpo na própria ânsia em se
desenvolver um estrato de debate em relação ao jornalismo e à literatura. Por vezes, as
citações que sugerem a feitura de um comportamento ético/intelectual, por parte do
escritor-jornalista, no estado permanente de ligação com a máquina de escrever, reforçam,
em tom dialético, a execução dele (escritor-jornalista) para com a escrita, e,
conseqüentemente, a união cada vez mais íntima com o texto.
Verificam-se abaixo alguns textos da coluna que imprimem a figura de um autor
combativo, comprometido com uma representação de “realidade nacional”. Nota-se, nas
expressões adiante selecionadas, apego a um universo singular, mas, também, sugere-se
uma demarcação metalingüística no que se refere à conduta prática do desenrolar textual:
Ao Escritor, Nada (11/03/1976): “A mesma verdade [a situação editorial
brasileira], transmitida por outros autores com outra linguagem e outro
temperamento, empatam redondamente com o que digo sobre a situação do
escritor neste lado luso-afro-tupiniquim”.
Escritor, Estivador? (18/05/1976): “Detrás desta máquina, há uma torcida. Que o
autor brasileiro, além do sacrifício empregado para fazer a obra, não deve fugir
da realidade que tem também de ser o seu vencedor, já que o blico existe
em potencial”.
Joaquinho Gato (27/09/1976): “A toda confusão que a diversidade de autores
dessa efervescência possa levantar, há alguns fatos líquidos e certos: em diversas
áreas e sob estilos vários, se tenta o surgimento de uma literatura refletindo, de
dentro para fora, as tragédias de cunho rasgadamente nacional.
18
Têm-se, em Corpo-a-Corpo, instrumentos expressivos que reforçam, a todo
momento, o diálogo corrosivo com determinadas “demandas” de comprometimento. As
conversas com os também escritores-jornalistas Aguinaldo Silva e JoLouzeiro
19
ou os
escritos sobre o ato de escrever elucidam que o autor/escritor/jornalista deva atender a
alguns pressupostos, dentre os quais: “conluio” (no sentido de imersão) com esferas de
18
Antônio, 1976.
19
“Conversa Franca com Aguinaldo Silva” (16 a 18/06/1976); “Com José Louzeiro” (10 a 18/08/1976).
vidas degradadas, discussão do fazer literário, reflexão sobre a profissionalização e técnica
jornalísticas
20
.
Nesse sentido, o enfrentamento textual/social adquire, mais organizadamente, o
status de um compromisso, de um pensar constante e perene sobre a própria escrita
praticada. Se forem observados os pontos aqui colocados, verificar-se-á que a coluna
Corpo-a-Corpo estabelece, mesmo quando não toma o assunto da identificação textual
como preponderante, a idéia de encadeamento a setores marginalizados, esquecidos ou
brutalizados pela deterioração urbana, condicionados a fatores, para João Antônio,
desumanizados
21
.
Não se deve esquecer que a idéia de compromisso condiciona-se a um ato político.
Pensando-se no tocante à natureza literária, a preconização do ato comprometido é, em sua
própria configuração, um modo de engajamento e, nesse sentido, vinculado,
freqüentemente, a uma atitude política dirigida. O texto sustentado pela hipótese do
comprometimento pode desempenhar um componente político. Porém, a função do
compromisso sustenta alguns aspectos particulares, em se tratando de uma função literária.
Ou seja, o comprometimento define-se como um “estar em posse”, em ligação
extrema com o objeto apreendido. Nessa ligação deve ocorrer não estreitamento, mas
também a incorporação, a assimilação, a apropriação discursiva, propositiva do universo
apreendido, ocorrendo, assim, a sedimentação do dasein (uma relação de compromisso, de
pré-ocupação, um “existente incessatamente envolvido no mundo e conferindo a este a sua
significação”
22
)
Nesse contexto, Sartre, contextualizado por Silva (1976) no que se refere à natureza
do compromisso na confecção literária, evidencia três estágios inerentes à argumentação
literária, junto ao funcionamento que determinadas palavras autônomas” (a escrita envolta
em sua própria literariedade) desempenham e levanta questões que perfazem o agir literário
e o ligam a um exercício político e metadiscursivo. Ou seja, Sartre propõe três questões a
20
“Em Cerveja” (29/06 a 01/07/1976): “Mas que se pretendam tecnocratizar, gomalizar, engravatar o repórter
até o limite de mero apanhador de press-releases, enquanto investiga; até a condição de repetidor de lead, sub-
lead numa macaqueação de fórmulas estrangeiras enquanto escreve – tudo isso é muito vazio, é bem calhorda,
é muito joão-da-regra, é bastante relapso e suficientemente bem preguiçoso”.
21
Em “Dentro da Miniguerra do Metrô” (21 a 23/04/1976): “Pobreza de um lado e de outro dessa miniguerra.
Do que avança, para demolir as casas; do que se encolhe, à espera da derrubada. Acomodação (sofrida) dos
dois lados: onde deixa de almoçar um, almoçam mais”.
22
In: Silva: 1976, p.120.
fim de desenvolver a configuração do “compromisso” e do “engajamento” literário: o que é
escrever?; por que escrever? para quem escrever?.
Sartre diferencia, na primeira questão, o papel do prosador comprometido,
vinculado à ação narrativa: “O desígnio do prosador consiste em ‘desvelar o mundo e
singularmente o homem aos outros homens para que estes tomem, em face do objeto assim
desnudado, a sua inteira responsabilidade” (Silva: 1976, p.123).
Sobre os “porquês da escrita”, Sartre situa o prosador-designado como
autoconsciente de determinados fulcros da realidade, tais como o desvelamento, a
revelação, a detecção de problemas etc. Assim, deve haver, com o ato literário,
estreitamento das causas levantadas pelo escritor no diálogo íntimo com o objeto
apreendido, assim como com o leitor:
Toda obra literária aparece portanto como um apelo, comprometendo a liberdade
e a generosidade do leitor no processo de sua revelação: ‘escrever é fazer apelo
ao leitor para que faça passar à existência objetiva o desvelamento que
empreendi por meio da linguagem’.
23
Finalmente, Sartre discute o enderaçamento contextual da ação literária e de suas
causas, perguntando: para quem se remetem tais propósitos? Nessa relação entre emissor e
receptor ocorre, para Sartre, um debate dialético que reforça a união entre produtor de
causas e consumidores de efeitos. Isto é: por meio do debate contínuo entre emissor e
receptor, o estreitamento e o engajamento se materializam. Em outras palavras, a idéia de
compromisso passa a se configurar como uma “liberdade de intenções e ações textuais
devidamente digeridas, verificadas, apreendidas”. De modo que
Se o escrever e o ler são correlativos dialéticos do mesmo fenômeno, é
necessário que a situação assumida pelo autor não seja alheia ao leitor e que as
paixões, as esperanças e os temores, os hábitos de sensibilidade e de imaginação,
presentes na obra literária, sejam comuns ao autor e ao leitor.
24
Silva (1976), ao comentar tais propósitos, critica as demarcações categóricas de
Sartre, impingindo-as do equívoco de uma certa valoração literária. Em sua crítica, Silva
faz questão de retomar as funções da linguagem de Jakobson
25
para advertir os vários
meandros que uma escrita pode exercer, não fincando, assim, o termo comprometimento a
23
Silva, 1976, p.124.
24
Silva, 1976, p.125.
25
Referência ao texto “Lingüística e Poética”, de Roma Jakobson.
estratos estanques, a especificidades meramente sociais e políticas. Nesse sentido, a
proposta combativo-política de Sartre não é de pacífica recepção. Percebem-se, em sua
categorização, nuanças específicas em duas diretrizes: (1) quando faz as três questões-
sínteses de uma arte literária comprometida, está-se delineando a discussão do próprio ato
de escrever. Assim, tem-se uma escrita refletindo o funcionamento da própria escrita; (2) o
termo compromisso passa a ter um “sentido lógico” na tríade demarcada por Sartre, na
medida em que a relação autor-receptor é, ou deveria ser, pautada pelo encadeamento
funcional das três questões levantadas. Assim sendo, as terminologias engajamento,
aproximação, estreitamento, compromisso, adquiririam significações mais contundentes.
Resta ainda ressaltar que Sartre está evidenciando, sobretudo, a relação intrínseca do
escritor com o leitor, construída no próprio seio do texto literário, sendo que a partir desse
código de aproximação entre um autor e o público se sedimenta, implicitamente, o código
da linguagem a ser utilizado no ato da escrita, funcionando nas instâncias internas de
quaisquer textos. Eagleton (2006) observa as conseqüências das premissas sartrianas:
O estudo de Sartre propõe-se (...) a formular a pergunta “Para quem se
escreve?”, embora dentro de uma perspectiva mais histórica que “existencial”.
Ele acompanha o destino do escritor francês desde o século XVIII, quando o
estilo “clássico” estabeleceu um firme contrato, ou um quadro de pressupostos
comuns, entre o autor e o público, até a autoconsciência inata da literatura do
século XIX, inapelavelmente dirigida a uma burguesia que desprezava. Termina
com o dilema do escritor moderno “comprometido”, que não pode dirigir sua
obra nem à burguesia, nem à classe operária, nem a algum mito do “homem em
geral”.
26
Ao se observar o debate que João Antônio realiza em Corpo-a-Corpo, verificam-se,
evidentemente, enunciações acerca da sua própria escrita. Mas quais são os caracteres de
compromisso, de proposta textual, de engajamento na coluna? foi visto que ocorrem
marcas textuais preponderantes em relação à escrita, à concepção literária do
comprometimento. Porém, antes de entrar no território das marcas narrativas, deve-se
investigar mais de perto como se estruturam as idéias de embate, de enfrentamento, de
compromisso em Corpo-a-Corpo. Para isso, necessita-se identificar o significado que a
expressão corpo-a-corpo sugere.
26
Eagleton, 2006, p.127/128
A coluna Corpo-a-Corpo está vinculada a um contexto (ano de 1976). Quais os
debates existentes na sedimentação de uma escrita corrosiva, visceral em relação às
questões levantadas por ela?
Um ano antes (1975), João Antônio confeccionara um texto que, de certa maneira,
sintetiza alguns elementos de ação textual presentes na coluna do jornal Última Hora.
1.1. Escrita-embate: a proposta de um corpo-a-corpo com a vida
A crítica de João Antônio em Corpo-a-corpo com a vida (1975)
27
é direcionada aos
escritores e intelectuais brasileiros tomados pela faceta formalista e beletrista, distantes das
esferas sociais esquecidas do país. João Antônio prega que o escritor/intelectual nacional se
comporta como o autêntico ”homem da classe média”, ao esquecer as faixas de vida
nacionais, isto é, faixas sociais localizadas à margem do discurso literário e jornalístico
hegemônicos.
Dessa maneira, sustenta
o de que carecemos, em essência, é o levantamento de realidades brasileiras,
vistas de dentro para fora (...) daí saltarem dois flagrantes vergonhosos – o nosso
distanciamento de uma literatura que reflita a vida brasileira, o futebol, a
umbanda, a vida operária e fabril, o êxodo rural, a habitação, a saúde, a vida
policial, aquela faixa toda a que talvez se possa chamar radiografia brasileira.
28
Olhando com atenção o que foi dito, percebe-se que tais “radiografias” preconizadas
por João Antônio se refletem, prontamente, em sua obra literária, no amplo universo de
“faixas esquecidas” da vida brasileira, como em Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) e
Leão de Chácara (1975), nas quais os retratos dos despossuídos, marginais e “pingentes”
urbanos são narrados e relatados sob o ponto de vista de ‘dentro pra fora’.
Entretanto, compreende-se que em Corpo-a-corpo com a vida o autor propõe algo
mais abrangente à própria tarefa literária, ou seja, convida à necessidade de um
27
Em 1975, João Antônio escreveu uma espécie de manifesto-ensaio intitulado Corpo-a-corpo com a vida, no
qual lança uma proposta-problema: a configuração de uma escrita comprometida com as pulsações de uma
realidade social nacional esquecida, à margem. Tal proposta vem “intertextualizada” por uma série de fatores,
entre eles, a aproximação do ensaio com modelos e paradigmas textuais como o romance-reportagem, o New
Journalism e, principalmente, o comprometimento a uma escrita menos “brilhosa”, não beletrista.
28
Antônio, 1975, p.143.
compromisso com a vida brasileira. Daí “o futebol, a umbanda, a vida operária e fabril, o
êxodo rural, a habitação, a saúde, a vida policialsurgirem como “estilosde vida que se
confrontam com práticas literárias vistas por ele como conservadoras. , pois, para João
Antônio, a colocação de um primeiro confronto, de um primeiro embate: radiografia de
estilos de vida ‘marginais’ versus forma apriorística e pré-moldada dos beletristas. Neste
embate demarcado contra os autores beletristas, João Antônio buscará paradigmas que
reforcem seus questionamentos e inquietações. Chiappini (2000), ao citar Scliar, localiza o
universo joãoantoniano à luz das práticas literárias, culturais, intelectuais e pessoais do
autor:
Para Moacyr Scliar, João Antônio, embora fale preferencialmente de tipos e
situações muito específicos, jogadores de sinuca, leões-de-chácara, gigolôs,
prostitutas, dedos-duros, artistas decadentes, por intermédio deles “mapeia a
cultura erudita e popular de nosso país, refaz a nossa trajetória histórica”,
superpondo personagens que vão do pingente dos trens da Central do Brasil ao
mesmo pingente nos bondes do subúrbio; de um Lima Barreto e Garrincha, do
pai-de-santo baiano ao jornalista que se vende na campanha enganosa da São
Paulo para turistas, deste a Noel Rosa e Aracy de Almeida. Ainda segundo
Scliar, com certa ironia, isso tudo acaba por “formar um único, complexo e
glorioso retrato do povo brasileiro”.
29
A busca de João Antônio em seus textos é a do comprometimento com as categorias
elencadas por Scliar, sendo que o “retrato do Brasil” passa a ser construído e confeccionado
por camadas e personagens distintos da representação academicista e beletrista. Assim,
João Antônio elenca paradigmas anti-academicistas. como os escritores-jornalistas
Graciliano Ramos e Lima Barreto.
Nesse sentido, a escrita imaginada por João Antônio rompe com atos e dizeres
preestabelecidos e reforça a união do ato literário com o jornalístico na prática da escrita
comprometida e imersa socialmente. Na condição de escritor e jornalista, João Antônio
entende que a postura anti-beletrista deva se construir por meio da entrega às esferas sociais
marginalizadas, a fim de que o escritor trabalhe nos trilhos, tanto documentais quanto
ficcionais. Não à toa, os autores paradigmáticos retomados por João Antônio para o
confronto com o academicismo são escritores-jornalistas combativos como Lima Barreto e
Graciliano Ramos.
29
Chiappini, 2000, p.157.
Poder-se-ia dizer, também, que, quando João Antônio escreve um perfil de Aracy de
Almeida, Noel Rosa, a prostituta, o jogador de sinuca, a procura é a mesma: o ataque ao
mundo oficial e acadêmico, visto sob o ângulo da marginália, a qual, para ele, simboliza
certa dignidade comportamental.
em João Antônio, portanto, a preocupação do desnudamento da realidade, vista
por dentro do tecido social. Bulhões (2005) esclarece:
Trazendo o problema da linguagem do “outro” para o contexto da prosa de João
Antônio, depara-se com a linguagem “barra pesada” do marginal, do
“desqualificado” social, da “canalha” urbana. Ao fazer isso, o que se vai
perceber, sobretudo a partir do seu segundo livro, Leão de Chácara, lançado em
1975, João Antônio conseguirá em muitos textos afirmar a capacidade de atingir
uma dimensão que só a literatura alcança por, ao fazer um corte “por dentro”,
incorporar as formas de expressão do sujeito marginalizado, dando voz, sem
filtro, a uma realidade humana que se deve escutar.
30
Portanto, a honestidade intelectual, para João Antônio, adquire-se com o
entrelaçamento do escritor e sua escrita. Desse modo, o narrador, em João Antônio, assume
papel fundamental na imersão pregada no texto “Corpo-a-corpo com a Vida”. É com a
experiência do narrador-repórter que se dá a força de representação social engendrada pelo
manifesto-ensaio.
Quando o autor salienta a radiografia das faixas de vida, ou quando Scliar no
universo joãoantoniano o retrato do Brasil, é pertinente que se note a condição do narrador
no percurso textual da imersão. Chiappini (2000) salienta, no bojo da penetração social, o
conflito do narrador com a cidade apreendida:
Na marcha para cima e para baixo narrador e personagens buscam o tempo todo
não apenas espaços, mas, becos, guetos da cidade, mas uma outra cidade que não
existe, descobrindo “que a cidade deu em outra”. No caso do Rio de Janeiro, a
que se revela sobretudo na ausência das sinucas, das casas de samba, dos
botequins de antigamente, ou, no caso de São Paulo, na ausência tão presente de
Germano Matias, o sambista improvisador, leitmotiv do texto “Abraçado ao meu
Rancor” do mesmo livro.
31
Em “Corpo-a-corpo com a Vida” João Antônio analisa a função do narrador
comprometido imerso na a condição de repórter. O jornalismo, para João Antônio, tem
30
Bulhões, 2005, p.18.
31
Chiappini, 2000, p.159.
validade se for fundamentado com a prática da reportagem
32
, com o repórter como peça
decisiva na forma de escrita emancipada.
Portanto, um segundo embate que se coloca em Corpo-a-corpo com a Vida é o
enfrentamento jornalístico da realidade brasileira. A partir disso, surge o diálogo com
fenômenos textuais como o romance-reportagem brasileiro dos anos 70 e o New
Journalism estadunidense dos anos 1960.
João Antônio localiza uma tendência literária (o romance-reportagem) no
enfrentamento descritivo da realidade brasileira. Ao contextualizar escritores-jornalistas
como Antônio Torres e Ignácio de Loyola Brandão nos ventos contemporâneos de uma
nova visão textual, propagada em “Corpo-a-corpo com a Vida”, diz:
no qual o universal cabe dentro do particular, e se procura descobrir,
surpreender, flagrar, compreender a nova vida brasileira com suas contradições e
sofrimentos, imprevisões, improvisações, malemolências e descaídas, jogo de
cintura ou perna entrevada.
33
Ou seja: o autor identifica a narrativa plural dos anos 70 como uma literatura que se
norteia por meio da “radiografia nacional”, com a retomada de paradigmas textuais
realistas. Nesse sentido, a aproximação pessoal de João Antônio com as obras de Lima
Barreto e Graciliano Ramos, por exemplo, é estendida como discussão paradigmática em
relação aos textos documentais da literatura dos 1970.
Percebe-se, então, que João Antônio está delineando uma escrita construída numa
“função social” com o “universal vislumbrado pelo particular” e, de certa maneira, herdeira
das manifestações da literatura realista:
desde Cervantes, Dostoievsky, Stendhal, Balzac, Zola, o universal sempre coube
no particular pela captação e exposição da luta do homem e não de suas piruetas,
cambalhotas, firulas e filigranas mentais. Que me desculpem os “ismos”, mas no
caso brasileiro, eles não passam de preguiça, equívoco e desvio da verdadeira
atenção. E função.
34
32
Bianchin (1997): “Podemos dizer que a reportagem parte de um fato ou de fatos singulares e os aprofunda,
relaciona, contextualiza, incorporando à narrativa elementos que vão possibilitar a compreensão verticalizada
do tema no tempo e no espaço” (Bianchin, 1997, p.117).
33
Antônio, 1975, p.144.
34
Antônio, 1975, p.145.
A função a que João Antônio se refere se fundamenta, evidentemente, em uma
escrita de choque inevitável com a sociedade: “O caminho é claro e , também, por isso,
difícil sem grandes mistérios e escolas. Um corpo-a-corpo com a vida brasileira. Uma
literatura que se rale nos fatos e não que rele neles. Nisso, a sua principal missão ser a
estratificação da vida de um povo e participar da melhoria e da modificação desse povo.
Corpo-a-corpo. A briga é essa. Ou nenhuma” (Antônio, 1975, p.146).
O segundo embate se dá, portanto, com o enfrentamento e, nesse sentido, João
Antônio elucida, no ensaio, as aproximações categóricas de “briga textual”, presentes no
New Journalism e na grande reportagem e, sobretudo, reforça o papel do novo repórter na
configuração do corpo-a-corpo.
Para a consolidação de tal confronto, a união entre jornalismo e literatura é essencial
para o entendimento de “Corpo-a-corpo com a Vida”.
Cosson (2005) fala sobre as novas práticas jornalísticas e a função que
desempenhou o romance-reportagem:
Se considerarmos que é a censura o motor da existência do romance-reportagem
não precisamos nos preocupar com a mistura do jornalismo e literatura que ele
pressupõe efetivar (...) Entretanto, se tomarmos o romance-reportagem como um
tipo particular de narrativa que ultrapassa a década de 1970 (como efetivamente
ocorre) e se configura como um modo próprio de narrar, teremos que reconhecer
que o império dos fatos foi contaminado pelo jardim da imaginação.
35
Com a fala de Cosson, percebe-se que a contaminação do factual pelo “jardim da
imaginação” faz surgir um terceiro embate, presente em “Corpo-a-corpo com a Vida”: o
narrador-repórter imerso na convergência da função literária e jornalística. Isto é, o
surgimento da figura do escritor-jornalista combativo, representado, sobretudo, pela figura
do repórter.
A expressão figurativa do discurso combativo em “Corpo-a-corpo com a Vida” é a
personificação do escritor-jornalista na condição de repórter marginal a representar uma
nova condição jornalística, ou seja, uma escrita empreendida pelo enfrentamento social, por
meio de uma postura intelectual e literária anti-academicista, como já foi visto.
35
Cosson, In: Castro; Galeno, 2005, p.65.
Nesse sentido se encontra, talvez, o cerne da literatura do corpo-a-corpo, com novos
olhares e novas representações do real apreendido. Sato (2005) adverte sob a questão do
domínio do real, da representação da realidade, pelo prisma do jornalismo:
A relação entre representação e mundo representado mostra-se bastante
complicada, pois uma coisa ou um conjunto de coisas encarnam, contendo-as ou
velando-as. Em vez de revelar o real, pode-se dizer que a representação, ao dar-
lhe suporte, substitui a totalidade e a encarna, em vez de remeter a ela (...). A
vocação da notícia é representar o referente, em princípio, verificável. Ao exigir-
se do jornalista o uso da terceira pessoa que garantiria formalmente a
impessoalidade do discurso, tem-se como resultado um discurso esvaziado, que
acaba por ocultar o processo social que possibilitou a notícia.
36
Todavia, é a reportagem (não a notícia verificável) que desempenhará papel
fundamental no ideário de “Corpo-a-corpo com a Vida”, ou ainda, o repórter desempenhará
a condição de repórter-bandido: “Digamos, um bandido falando de bandidos. Corpo-a-
corpo com a vida, posse e gozo juntos, juntinhos, chupão, safanão, gemido” (Antônio,
1975, p.146).
A convergência entre jornalismo e literatura passa, evidentemente, pela prática da
reportagem, que dará urgência, no entanto, à fuga da pauta apriorística do texto
academicista/beletrista e/ou noticioso-informativo-padrão. Na reportagem idealizada por
João Antônio, o tema deve ser construído e escrito sob múltiplos pontos de vista, em
diversas óticas, de “dentro pra fora”.
Por conseguinte, retomam-se, com isso, os agentes obrigatórios para a “radiografia
brasileira”, preconizada pelo próprio autor. Como diz Bulhões (2005):
Assim, a realidade degradada de um país como o Brasil deve ser enfrentada por
dentro pelo escritor, ou seja, a partir do momento em que ele assume a vivência
dos seres degradados. João Antônio propaga, então, a idéia de um escritor-
marginal, ou um repórter-marginal, aquele que vive na carne a experiência a ser
configurada na escrita.
37
Aqui, verificam-se novamente características do enfrentamento heróico do repórter-
marginal (ou repórter-bandido) com o universo temático da obra joãoantoniana (ficcional e
jornalística). Como não lembrar dos três malandros de Malagueta, Perus e Bacanaço, do
36
Sato, In: Castro; Galeno, 2005, p.31.
37
Bulhões, 2005, p.24.
traficante Paulinho Perna Torta em Leão de Chácara e, ainda, o narrador-repórter
amargurado de Abraçado ao meu Rancor (1986)?
A figura do repórter-marginal faz surgir ingredientes novos à prática da escrita
joãoantoniana, dentre os quais a tensão e a briga, componentes obrigatórios na tentativa de
radiografar a realidade representada por indivíduos e sujeitos à margem.
Em “O Buraco é mais embaixo”
38
, texto de 1977, ou seja, dois anos após a
publicação de “Corpo-a-corpo com a Vida”, João Antônio escreve:
O escritor não pode partir para uma nova forma pronta. Ela sedada e exigida.
Será imposta pelo próprio tema tratado e jamais deixará de surpreender o
escritor. O tema passa a flagrar o desconhecimento do escritor, uma vez que o
intérprete aceita um corpo-a-corpo levado com o assunto.
39
.
Pode-se dizer, após os três embates aqui identificados, presentes em “Corpo-a-corpo
com a Vida”, que a forma não apriorística do tema travado pelo escritor-repórter solidifica
duas melhorias textuais propagadas por João Antônio: a ruptura da demarcação dogmática
entre texto jornalístico e literário e, principalmente, o enriquecimento da própria forma e da
própria escrita pela prática imersiva.
Ao final do ensaio, quando cita o crítico literário Antonio Candido, João Antônio
reforça a necessidade de experimentação, e localiza o seu Malagueta, Perus e Bacanaço
como modelo de um “Corpo-a-corpo com a Vida”, ao se colocar ele, autor na condição
de alter ego dos três protagonistas “merdunchos”, reforçando, dessa maneira, seus
propósitos, desejos e pontos de vista, isto é, o enfrentamento textual/social, o
entrelaçamento entre narrador e personagem
40
.
Não deixa de ser curioso notar a impressão que Candido faz de João Antônio, em
texto de 1996, presente em uma edição de Malagueta, Perus e Bacanaço:
João Antônio inventou uma espécie de uniformização da escrita, de tal maneira
que tanto o narrador quanto os personagens, ou seja, tanto os momentos de estilo
indireto quanto os de estilo direto, parecem brotar juntos da mesma fonte [...].
Narrador e personagem se fundem, nos seus contos, pela unificação do estilo,
38
ANTÔNIO, João. O Buraco é mais Embaixo. In: SEVERIANO, Mylton. Paixão de João Antônio. São
Paulo: Casa Amarela, 2005.
39
Antônio, 2006, p.43.
40
ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. São Paulo, Cosac & Naify, 2004.
que forma um lençol homogêneo e com isso define o mundo próprio a que
aludi.
41
Supõe-se, portanto, que a tentativa de emolduração de uma escrita tomada pelo
paradigma do enfrentamento se fundamenta, necessariamente, pela convergência entre
texto jornalístico e literário, e que em “Corpo-a-corpo com a Vida” se estabelece uma
práxis jornalística, ao enxergar o escritor tomado visceralmente pela ótica e ação de um
repórter-bandido que retrata os desassossegos sociais, ou, como define João Antônio no
texto:
Literatura de dentro para fora. Isso é pouco. Realismo crítico. É pouco. Romance-
reportagem-depoimento. Ainda é pouco. Pode ser tudo isso trançado, misturado,
dosado, conluiado, argamassado uma coisa da outra. E sebom. Perto da mosca.
A mosca é quase certo está no corpo-a-corpo com a vida. Escrever é sangrar.
Sempre, desde a Bíblia. Se não sangra é escrever?
42
.
Eis a pergunta lançada por João Antônio, síntese, talvez, dos três embates aqui
enumerados. Percebe-se, na investigação do manifesto e do termo corpo-a-corpo, um jogo
metalingüístico. A estruturação dos embates aqui elencados se manifesta em uma teia de
referências metalingüísticas. Em “Corpo-a-Corpo” nota-se a utilização de componentes
metalingüísticos no tear propositivo dos temas e na elaboração discursiva da concepção da
escrita, alicerçada por códigos do jornalismo e da literatura, como veremos a seguir.
1.2. A metalinguagem
Linguagem-objeto é um código de verificação de um determinado objeto. Já a
metalinguagem é uma linguagem falando de linguagem. É a partir de tal conceituação que
se finca a baliza explicativa em torno do funcionamento do ato metalingüístico. Assim, um
filme falando sobre o ato de filmar é um filme metalingüístico; uma peça de teatro
discutindo os pormenores da arte dramática é uma peça metalingüística; um poema
discutindo as nuanças do eu-poemático é um poema metalingüístico; uma escrita refletindo
sobre a práxis da escrita é um texto metalingüístico.
41
Candido, 2004, p.11.
42
Antônio, 1975, p.151.
Chalhub (2005), ao apontar a função metalingüística, esclarece os vários pontos de
ação e relação que a metalinguagem exerce:
A função metalingüística pode ser percebida quando, numa mensagem, é o fator
código que se faz referente, que é apontado (...). Quando o emissor e o receptor
precisam verificar se o código que utilizam é o mesmo, o discurso está
desempenhando a função de se auto-referencializar.
43
A metalinguagem opera, pois, no nível da explicação, da tradução, da verificação
investigativa da linguagem. O ato de se “auto-referenciar” sugere incorporações analíticas e
interpretativas. Nesse ponto, surgem dois atores no jogo metalingüístico: a práxis da crítica
e o desenvolvimento do atravessamento cultural, da intertextualidade.
44
Campos (1992) diz que é pela crítica, ou pelo pensamento crítico auto-verificante,
que se delineia o componente principal da matriz metalingüística. Ou seja, a crítica exerce
um papel mediador na “linguagem acerca da linguagem”. A linguagem-objeto, para
Campos, é a obra em si, sua estrutura. De modo que sua investigação é estreitamente
metalingüística. A crítica “reproduz” a obra verificando-a, descavando-a em camadas:
Crítica é metalinguagem. Metalinguagem ou linguagem sobre linguagem. O
objeto a linguagem-objeto dessa metalinguagem é a obra de arte, sistema de
signos dotados de coerência estrutural e de originalidade (...) No exercício
rigoroso de sua atividade, a crítica haverá de convocar todos aqueles
instrumentos que lhe pareçam úteis, mas não poderá jamais esquecer que a
realidade sobre a qual se volta é uma realidade de signos, de linguagem
portanto.
45
A construção de referentes ou a “confusão” cognitiva na utilização da linguagem,
em meio a uma “realidade de signos”, é fator intrínseco à modernidade, à crise” aurática
em torno do fazer literário, artístico
46
. Chalhub esclarece que as técnicas empreendidas pela
modernidade mudaram a percepção existente na produção do objeto artístico. Retomando
Walter Benjamin, Chalhub localiza o momento da crise aurática em torno da sensibilidade
apreensiva e da episteme de uma nova “consciência de linguagem”:
43
Chalhub, 2005, p.27.
44
Chalhub (2005): “A intertextualidade é uma forma de metalinguagem, onde se toma como referência uma
linguagem anterior”. (Chalhub: 2005, p.52).
45
Campos, 1992, p.11.
46
Referência ao ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, de Walter Benjamin.
Walter Benjamin, no célebre estudo “A obra de arte na época de suas técnicas de
reprodução”, indica que foram essas técnicas que mudaram a sensibilidade, a
percepção e produziram uma nova consciência de linguagem. É ele quem nos diz
da perda ou do declínio da aura do objeto artístico.
47
Ocorre, portanto, com tal problematização em torno da metalinguagem, a indicação
do narrador moderno
48
envolto em sua perda aurática. Ou seja, a metalinguagem
fundamenta-se em uma concepção de consciência e construção, enquanto a expressividade
e o sentimento são evidências de um “antigo” modo de narrar. Nesse sentido, a
metalinguagem é instrumento decisivo das “novas noções” narrativas.
Sendo assim, a metalinguagem desempenha, em seu próprio funcionamento de
investigação da linguagem, o modo inerente de apontamento do significado da natureza e
da função da própria literatura, do próprio ato de escrever.
Em um ensaio intitulado “Literatura e metalinguagem”, Barthes (1970) discute,
justamente, a configuração de uma linguagem altamente simbólica no que tange à reflexão
da literatura como uma linguagem “submetida a uma distinção lógica”.
Quando a literatura rompe com os ditames da chamada expressão inata do insight
criativo e passa a se emoldurar através da criação laboriosa da escrita, em estreito diálogo
com os “abalos” das novas formas de atividades textuais (novas configurações discursivas,
novos experimentos de linguagens), exerce, para Barthes, uma nova estrutura, ou seja, a
literatura adquire uma “consciência de fabricação”. Assume, desse modo, um caráter
metalingüístico de “tormento”.
Barthes pontua as etapas de desenvolvimento da metaliteratura: (1) em um primeiro
momento há uma consciência artesanal da fabricação literária e exemplifica na literatura de
Flaubert seu exemplo mais veemente; (2) em seguida, ocorre a escrita pensando a literatura,
ou seja, a substância do ato literário; (3) surge, depois, a preocupação com o que “se
escreve”, e “como se escreve”; cita Proust como exemplo maior desta tendência; (4) logo
após, identifica os novos sentidos da linguagem-objeto, exemplificados pelo Surrealismo;
(5) finalmente, verifica a obtenção de um “estar-ali da linguagem literária, uma espécie de
47
Chalhub, 2005, p.43.
48
Benjamin (1996): “O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa [tradicional] é o
surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa é que ele está
essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance se torna possível com a invenção da imprensa”.
(Benjamin, 1996, p.201).
brancura da escritura (mas não uma inocência): penso aqui na obra de Robbe-Grillet”.
(Barthes: 1970, p.28).
Barthes salienta, ainda, que a postura metalingüística é uma tônica da literatura do
século XX, envolta pelo sentimento de duplicidade, pela força angustiada de se expor.
Barthes identifica, portanto, a metalinguagem como um dos sustentáculos das novas
escritas contemporâneas. Ou seja, escritas evidenciadas não mais pelas marcas do
sentimento “puramente criativo”, mas imersas no jogo da própria literatura, do próprio
escrever.
Tal solidificação de uma escrita exercida pela auto-referência faz retornar à questão
do comprometimento levantada por Sartre.
Barthes, logo após elencar as tendências do comportamento metalingüístico no
século XX, remete, inevitavelmente, ao fabrico do próprio ser literário e posiciona a
metalinguagem ao elucidar a questão O que é Literatura. Assim, Barthes propõe uma
visualização “interior” no fabrico da “linguagem falando da linguagem” em contraposição
ao olhar de Sartre:
Todas essas tentativas [o desenvolvimento exemplificados da metalinguagem na
Literatura] permitirão talvez um dia definir nosso século [XX] como o dos: Que
é a Literatura? (Sartre respondeu do exterior, o que lhe uma posição literária
ambígua). E, precisamente, como essa interrogação é levada adiante, não do
exterior, mas da própria literatura, ou mais exatamente na sua margem extrema,
naquela zona assintótica onde a literatura finge destruir-se como linguagem-
objeto, daí decorre que nossa literatura é vinte anos um jogo perigoso com
sua própria morte, isto é, um modo de vivê-la.
49
Mais adiante, Barthes afirma que a sociedade e, por conseguinte, a literatura está
fechada numa espécie de impasse histórico, no qual a metalinguagem desempenha uma
função sintomática, visto motivar a referência e a discussão de um ser preocupado e, muitas
vezes, amargurado com as reminiscências do processo de criação.
Nesse contexto, a idéia de uma escrita do corpo-a-corpo, preconizada por João
Antônio, é exemplar de tais questionamentos. Entretanto, como foi salientado, além do
componente puramente literário, existe a configuração de um texto fabricado no bojo de
uma técnica e de um espaço jornalísticos (o jornal Última Hora). Com isso, haveria um
49
Barthes, 1970, p.28.
hibridismo discursivo no qual a atividade jornalística se faz presente a suscitar debates
singulares em torno da metalinguagem desenvolvida na coluna.
É importante identificar as marcas metalingüísticas presentes em João Antônio e
traçar um paralelo com o que aqui foi elucidado. Ou seja, quais são os elementos de
enfrentamento? Quais os pontos nevrálgicos de comprometimento? Como se dá, no
constante jogo metalingüístico, o ideário de uma escrita em choque no corpo-a-corpo com
a vida?
1.3. Marcas de enfrentamento
Faz-se necessária, agora, a catalogação de algumas marcas em vários textos da
coluna Corpo-a-Corpo, referentes ao comportamento metalingüístico. Ou seja, como
aparecem e como se manifestam tais características?
Desse modo, o quadro seguinte pretende sintetizar, por meio de marcas expressivas,
as intenções propagadas pelo autor/narrador da coluna no que se refere a um exercício
metalingüístico:
Eu mesmo – 09/03/1976: “Estou aqui, atrás da minha máquina, para um corpo-a-
corpo com a vida, com vocês e com a cidade”; “Se fosse para fazer pirueta
mental e procurar brilharecos de fácil conquista, acho que não estaria aqui,
agora, atrás da minha máquina”.
Ao escritor, nada – 11/03/1976: “A mesma verdade, transmitida por outros
autores com outra linguagem e outro temperamento, empatam redondamente
com o que digo sobre a situação do escritor neste lado luso-afro-tupiniquim do
mundo”.
Carnaval de sangue 16/03/1976: “Até mesmo entre os aparentemente mais
descabelados, insólitos, “inviáveis“, há uma marca acima de tudo – por mais que
o recado entre as linhas como um exercício subjacente, a imprensa nanica é
um reflexo de uma situação”.
Uma carta de Minas (I e Final) 26 e 27/03/1976: “Literariamente, aprendi a
escrever mesmo com Graciliano Ramos e todos os seus mestres clássicos.
Aprendi tudo isso descobrindo”; Vocês me perguntam sobre técnica literária e
eu acredito numa. Mas não por ela mesma e, sim, pelo que ela permite (ou venha
permitir) como aprofundamento humano”.
Escritor. Estivador? 18/05/1976: “Um escritor sozinho é um homem . o
seu fazer, enquanto tece o produto, é um fazer solitário e, quase sempre
indivisível”.
Um drama de escritor 26/05/1976: “No momento, prefiro ficar neste pé: a
situação do escritor brasileiro é tal que, quanto mais se mexe, mais fede. O diabo
é que esse fedor é necessário”.
Conversa Franca com Aguinaldo Silva (I ao Final) 16 a 18/06/1976:
“Aguinaldo Silva um escritor e um dos grandes jornalistas do momento
morou, viveu e sofreu na pele, uma Lapa dos pobres e dos pingentes urbanos,
mais humana, decadente e verdadeira”
Maralto (I e Final) – 21 e 22/06/1976: “Afinal querem bem comportar os nanicos
e o boom literário a que me referi, pela primeira vez em setembro de 75, acabou
virando geléia, angu, feijoada e qüiproquó de literatura”.
Centenas de Tampinhas (I e Final) 25 e 26/06/1976: “Colocou poetas falando,
reivindicando, se batendo pelas suas coisas. Melhor que nada, efetivamente, num
tempo em que pouco se dialoga, menos se questiona e quase tudo e aceita
acarneiradamente”.
Cerveja (I a Final) 29/06 a 01/07/1976: “Assim, nestes tempos em que os
gurus anunciam, donos da verdade, graves, doutorais e absolutos, que a
reportagem morreu, também ando meio tomado por certo sentimento nostálgico,
muito devido, certamente, aos pêlos brancos da cara e às minhas retinas
cansadas, como diria o poeta”.
Com um autor de livros de bolso (I a Final) 03 a 07/07/1976: “Encabulei com
essa coisa de José Edson Gomes escrever livros para consumo rápido”.
Uma história do Arrudas (I e Final) - 09 e 10/07/1976: “Como temos vida
cultural irregular, muita vez, o escritor ganha vez até (ou apenas) por motivos
extras – não pelos literários”.
Papo com Júlio César, um escritor de 20 anos (I a Final): 28 a 30/07/1976: “Uma
frase desse rapaz, Júlio César Monteiro Martins, me picou. Virou e mexeu,
soltou-me esta: ‘Do escritor brasileiro contemporâneo se exige, além de fôlego
de gato, quatro qualidades, no mínimo: a percepção do cego, a avidez do surdo e
a expressão do mudo’”.
Com José Louzeiro (I a Final) 11 a 18/08/1976: “Qualquer tentativa de
comparar as possibilidades oferecidas a um escritor norte-americano é uma
utopia temerária e ridícula”.
Mais “boom” (I e Final) 08 e 09/09/1976: “Escrever continua sendo brilhareco
neste país, longe de valer como uma profissão. A verdade limpa é que a
literatura aqui é feita por alguns homens para alguns grupos, espécies de grupos
de amigos”.
Falando de “Maralto” (I a Final) 17 a 21/09/1976: “A insistência no enterro da
reportagem continua. Mas esse funeral é tão prolongado que já nos leva à
desconfiança de que o morto não morreu. O que eso querendo é enterrá-lo
vivo”.
Joaquinho Gato 27/09/1976: “A toda confusão que a diversidade de autores
dessa efervescência possa levantar, há alguns fatos líquidos e certos: em diversas
áreas e sob estilos vários, se tenta o surgimento de uma literatura refletindo de
dentro para fora,a s tragédias de cunho rasgadamente nacional”.
50
Nota-se, com tais recortes, que o jogo intencional de João Antônio em Corpo-a-
Corpo é de comprometimento. Comprometimento, este, que se finca na questão da
metalinguagem. Entretanto, percebe-se, também, que as propostas oferecidas no manifesto
“Corpo-a-corpo com a Vida” permanecem na coluna. Evidencia-se, portanto, um
entrelaçamento das seguintes funções:
A preocupação anti-academicista;
O status metalingüístico.
50
Antônio, 1976.
A preocupação notada, nos trechos anteriores, em relação às condições do escritor e
da escrita nacional, proporciona uma extensão, ou seja, tal preocupação desencadeia a
configuração de blocos temáticos nos quais as reminiscências, em torno da linguagem,
permearão a construção dos textos sobre gafieira, carnaval, futebol e Lima Barreto. Em um
capítulo derradeiro, pretende-se analisar o universo da coluna. É preciso esclarecer que os
três embates desenhados pelo ensaio “Corpo-a-corpo com a Vida” voltam a permear a
coluna Corpo-a-Corpo.
Cumpre salientar que se tem, por assim dizer, a configuração de um ideário textual a
discutir as características do próprio texto, mas também a definir uma radiografia nacional
mais abarcada. Desse modo, pensando no funcionamento da linguagem, surge o poético em
tal configuração.
Se o jogo metalingüístico possibilita ao autor fazer o exercício crítico, intertextual e
auto-referencial, cabe ao texto construído se fazer narrativa. Identificar as narrativas
(jornalísticas e literárias) existentes na coluna Corpo-a-Corpo é um dos pontos essenciais
para se visualizar a manifestação de duas instâncias no texto: o jornalismo e a literatura.
É necessário entender como se manifestam os elementos da concepção literária (o
comprometimento, especificamente) desenhada por João Antônio na coluna Corpo-a-
Corpo; verificar como as finalidades do jornalismo desempenham suas particularidades nos
textos. Assim, devem-se investigar dois pólos: a natureza da literatura e o funcionamento
da atividade jornalística.
Não propondo um enfrentamento, tampouco uma confrontação entre os dois pólos,
pretende-se verificar como dois campos, aparentemente deslocados, comportam-se na
fabricação da coluna. Será necessário, então, adentrar nos meandros da técnica jornalística,
como também da conceituação do que seja um texto, predominantemente, literário.
É de suma importância tal demarcação, na medida em que há, por parte do narrador
de Corpo-a-Corpo, a sugestão de uma concepção de escrita que exerce, no debate acerca do
jornalismo e da literatura, um estatuto intertextual.
Quando ocorre o diálogo (com escritores-jornalistas, sambistas, anônimos), quando
referências, por exemplo, ao New Journalism estadunidense ou ao chamado romance-
reportagem brasileiro dos anos 70, percebe-se uma troca, uma voz jornalístico-literária em
tal interação. Ao trabalhar com elementos de verificação da realidade, ao discutir a própria
linguagem, o narrador, em Corpo-a-corpo, escapa às categorizações e sugere um íntimo
contato com o objeto observado. Nesse sentido, uma ruptura textual em que os gêneros
não se localizam tão facilmente.
1.4. Jornalismo e Literatura
Jornalismo e literatura são, aparentemente, atividades textuais descompassadas,
demarcadas por técnicas específicas, particulares. Simplificadamente, o primeiro operaria
com a apreensão da verdade; a criação literária, por sua vez, se configuraria pela matriz da
imaginação. Não seria de bom tom, entretanto, demarcar uma dualidade estratificada em
realidade versus imaginação. muito, as técnicas do jornalismo permeiam a criação
literária. Há muito, a narrativa literária percorre a atividade jornalística.
Mais do que categorizar e/ou remontar as convergências entre jornalismo e
literatura, levantar-se-ão quatro problemas básicos na polarização entre as duas entidades: a
questão da representação da realidade
51
; a captação e a apreensão do real (criação literária
e notícia jornalística
52
, respectivamente); a dualidade entre fato e ficção e a discussão em
torno da possibilidade de o jornalismo se configurar como um gênero literário.
Tais pontos são fundamentais neste trabalho, porque os quatro tópicos exercem
função efetiva na escrita joãoantoniana em Corpo-a-Corpo. Portanto, necessidade de se
verificar as distinções e semelhanças entre jornalismo e literatura.
João Antônio, em sua proposta combativo-textual, propõe algo mais estreito, em
termos de fusão e convergência, como foi ressaltado anteriormente. Porém, é prudente que
se identifiquem as naturezas das duas práticas.
51
Eagleton elucida a diversidade de digos que regem a representação literária: “Todas as obras literárias ,
em outras palavras, são “reescritas”, mesmo que inconscientemente, pelas sociedades que as lêem; na
verdade, não há releitura de uma obra que não seja também “reescritura”. Nenhuma obra, e nenhuma
avaliação atual dela, pode ser simplesmente estendida a novos grupos de pessoas sem que, nesse processo,
sofra modificações, talvez quase imperceptíveis. E essa é uma das razões pelas quais o ato de classificar algo
como literatura é extremamente instável”. (Eagleton, 2006, p.19).
52
Kunczik expõe as controvérsias em torno da dualidade estabelecida, no jornalismo (especificamente na
reportagem), entre verdade/objetividade: “o problema da objetividade na reportagem produz uma vez ou
outras vezes debates acalorados sobre a política da comunicação. Dada a imprecisão da definição do termo,
qualquer órgão editorial poderia ser acusado de falta de objetividade ou de ser incapaz de reconhecer a
verdade e transmiti-la apropriadamente”. (Kunczik, 2002, p.229).
1.4.1. O problema da representação
A idéia de representação carrega em si um “sentimento” de apreensão. O mundo
representado é, de certo modo, o mundo assimilado e percebido por um sujeito. Nesse
sentido, tem-se a representação como um discurso de decodificação de algo externo,
observável, palpável. Isso vale para o jornalismo e para a literatura. Mas é, aí, que se
problematiza a questão representacional no discurso jornalístico, ou seja, além de
evidenciar o apagamento das marcas do sujeito, o ideário do jornalismo ou da mensagem
jornalística, na era industrializada do capitalismo, é fazer do apagamento do sujeito a
configuração de um efeito, o efeito da objetividade. Kunczik relativiza a objetividade no
que se refere à sua própria materialização, ou seja, evidencia no bojo de uma
“representação”, as dicotomias presentes no fabrico das matrizes textuais jornalísticas:
A conclusão que se pode tirar dessa proposta [o critério de valoração das notícias
no filtro dos critérios de noticiabilidade] é que se pode valorizar as notícias
em relação a uma norma, a uma antecipação ilusória da realidade [grifo meu] ,
à forma como se acredita que ela possa ter sido”.
53
Dessa maneira, a realidade apreendida pelo discurso jornalístico é condicionada a
fatores de verificação plausível, de veracidade, de astúcia factual, de imparcialidade,
enquanto a literatura possui o atributo da autonomia de sua abordagem em outro pólo.
Para Sato (2005), a representação é construída narrativamente, isto é, é sedimentada
no fabrico de idéias “figuradas”, “criadas”, “subjetivas”.
54
Sato adverte que se a atividade
jornalística, muitas vezes, vocaciona a notícia como simulacro da objetividade, comete-se
um esvaziamento que oculta o processo que possibilitou a notícia”, isto é, a realidade
apreendida.
Tem-se, portanto, a representação como algo extensivo ao simples jogo da função
referencial. Os elementos estéticos e a função poética da linguagem exercem, no
jornalismo, de certo modo, uma matriz afincada na escrita literária, no entender de Sato:
53
Kunczik, 2002, p.249.
54
Aqui cabe um parêntese no que se refere à caracterização dos gêneros do discurso (pensando basicamente a
confrontação entre jornalismo e literatura). Bakhtin esclarece que “não razão para minimizar a extrema
heterogeneidade dos gêneros do discurso e a conseqüente dificuldade quando se trata de definir o caráter
genérico do enunciado. Importa, nesse ponto, levar em consideração a diferença essencial existente entre o
gênero de discurso primário (simples) e o gênero de discurso secundário (complexo)”. (Bakhtin, 2000, p.281).
A idéia de representação carrega a de substituição, de reprodução, de figuração.
A representação, ato simbólico, dá-se por meio de signos (...) pode-se ainda
afirmar que a representação constitui um fato ou fenômeno de consciência,
individual e social, que acompanha, em uma determinada sociedade, tal palavra
e tal objeto.
55
Logo, trata-se de um jogo de apreensão. Se a técnica do jornalismo exige alguns
caminhos a serem trilhados, pede algumas técnicas a serem preenchidas, não se pode negar,
todavia, que a descrição jornalística se fundamenta, em seu próprio estatuto, na
configuração de uma escrita atrelada, intensamente, aos códigos mais prementes do real, do
mundo, da sociedade, da vida. É evidente que tal figuração representativa não se baseia em
uma lógica, pura e simplesmente, objetivada.
Medina (1978) fala sobre a mensagem jornalística como uma construção vinculada
aos alicerces das transformações pela qual a atividade jornalística se confluiu e se conflui.
Para Medina, é necessário percorrer as mudanças pelas quais o conceito de mensagem
jornalística se sedimentou para entender os fluxos presentes na própria informação
jornalística.
É preciso recorrer à evolução histórica do jornalismo impresso para estabelecer
uma classificação de tendências em que a informação se processa. As
transformações do conceito de notícia, na perspectiva histórica, mostram as
várias tendências que se conjugam na imprensa brasileira contemporânea.
56
Assim, aproximando-se da conceituação de mensagem jornalística em Medina, Sato
diz que o jornalismo é construído por práticas narrativas. Nesse sentido, o relato,
possivelmente documentado e/ou verificado pelo estatuto da objetividade deixa entrever,
contudo, as marcas de uma atividade de escrita condicionada, sobremaneira, aos códigos da
ficção:
Apesar da vocação para o “real”, o relato jornalístico sempre tem contornos
ficcionais: ao causar a impressão de que o acontecimento está se desenvolvendo
no momento da leitura valoriza-se o instante em que se vive, criando a aparência
do acontecer em curso, isto é, uma ficção (...) a narrativa jornalística parece
contígua ao fato, mas, ao se transformar em notícia, o acontecimento torna-se
um texto submetido às categorias narrativas.
57
55
Sato, In: Castro; Galeno, 2005, p.30.
56
Medina, 1978, p.51.
57
Sato, In: Castro; Galeno, 2005, p.32.
1.4.2. Fato e ficção
Um dos estatutos da prática literária é a ficcionalização. O componente estético é
um atributo essencial para o desenvolvimento de uma representação literária, por vezes,
fantasiosa do real. Além de emoldurar um arsenal de simulações e intenções, a criação
estética literária estabelece, em seu próprio corpo, um efeito de descontinuidade, de
subjetividade autônoma e, sobretudo, de ruptura com o verídico em uma espécie de
fugacidade lógica do que seja “puramente real”. Contudo, Eagleton norteia que a separação
estanque dos atributos da factualidade e da ficcionalização não resolve o problema de suas
próprias manifestações, sendo que a desenvoltura (autônoma ou não) de suas próprias
marcas se edifica de maneiras diversas nas convergências e divergências assumidas durante
os anos, mudando, sobretudo, as balizas do que se poderia chamar de fato (alicerçado no
discurso jornalístico) e ficção (a “verdade artística” literária):
A distinção entre “fato” e “ficção”, portanto não parece ser muito útil, e uma das
razões para isso é que a própria distinção é muitas vezes questionável. Já se
disse, por exemplo, que a oposição que estabelecemos entre verdade “histórica”
e verdade “artística”, de modo algum, se aplica às antigas sagas irlandesas. No
inglês de fins do século XVI e princípios do século XVII, a palavra “novel” foi
usada, ao que parece, tanto para os acontecimentos reais quanto para os fictícios,
sendo que até mesmo as notícias de jornal dificilmente poderiam ser
consideradas fatuais (...). Além disso, se a “literatura” inclui muito da escrita
“fatual”, também exclui uma boa margem de ficção.
58
Embora a verossimilhança (como condicionante realista-naturalista) seja um
elemento, principalmente no texto realista-naturalista, essencial para a decodificação dos
objetos sociais, a ficção traz, em seu cerne, o advento da invenção, da criação estética
59
.
Utilizando-se as linguagens de denotação e conotação, categorizar-se-ia a arte literária
como fruto conotativo:
A linguagem literária constitui, com efeito, uma linguagem de conotação, pois o
seu plano da expressão é constituído por uma linguagem de denotação, que é o
58
Eagleton, 2006, p.2
59
Frye enumera as principais hibridizações fincadas na prosa de ficção quando analisa a integração com o
atributo “factual” da autobiografia, por exemplo: “A autobiografia é outra forma que se mescla com o
romance [como gênero ficcional] por uma série de gradações insensíveis. A maior parte das autobiografias é
inspirada por um impulso criador, e portanto ficcional, a selecionar apenas aqueles acontecimentos e
experiências da vida do escritor que vão construir uma forma integrada”. (Frye, 1973, p.301).
sistema lingüístico. Na produção do texto literário, o sistema lingüístico é
conotado (...) por outros códigos: códigos retóricos, estilísticos, técnico-
literários, ideológicos.
60
Ora, se a linguagem literária se desenvolve com os aparatos de uma falseação do
teor denotativo, referencial, não se deve esquecer, por outro lado, da verificação que a
envolve. Ou seja, ao se constituir em diversas camadas representativas, a criação literária -
especificamente a de ficção - adentra territórios sugestivos das ações verossímeis.
Nesse contexto, a ficção se sedimenta como uma prática autônoma de forte caráter
intertextual, de cunho predominantemente literário, que seu funcionamento é
condicionado pelo próprio exercer funcional da literatura, constituindo-se, pois, na
chamada literariedade
61
.
Silva retifica a terminologia ambigüidade e utiliza o conceito de plurissignificação
para se referir à natureza polissêmica da literatura, por entender que, com tal conceito, os
valores literários são mais bem demarcados. De fato, ao se separarem instrumentos, muitas
vezes, opostos, como a poesia intimista do realismo mais documental, a denominação de
Silva resolve ou, ao menos, contenta as diferenciações intrínsecas do agir literário:
Linguagem literária é plurissignificativa ou pluri-isotópica, porque nela o signo
lingüístico, os sintagmas, as frases e as seqüências transfrásicas são portadores
de múltiplas dimensões semânticas, tende para uma multivalência significativa,
fugindo da univocidade característica do discurso científico e didático e
distanciando-se marcadamente, por conseguinte, de um grau zero da
linguagem.
62
Há, portanto, um caráter multivalente que permeia a criação literária. O ato ficcional
exerce e utiliza-se dos elementos de plurissignificação (envolta na literariedade autônoma)
para subverter códigos normativos de uma realidade, diga-se, quase amorfa.
63
60
Silva, 1976, p.34.
61
Silva (1976): A ciência da literatura [para os formalistas russos] deve estudar a literariedade, isto é, o que
confere a uma obra a sua qualidade literária, aquilo que constitui o conjunto dos traços distintivos do objeto
literário. Este princípio fundamental das suas doutrinas conduziu logicamente os formalistas à tarefa de
definir os caracteres específicos do fato literário”. (Silva, 1976, p.559).
62
Silva, 1976, p.51.
63
Eagleton, contudo, contextualiza as funções presentes no seio da forma literária e em suas funções: “Os
formalistas começaram por considerar a obra literária como uma reunião mais ou menos arbitrária de
“artifícios”, e mais tarde passaram a ver esses artifícios como elementos relacionados entre si: “funções”
dentro de um sistema textual global. Os “artifícios” incluíam som, imagens, ritmo, sintaxe, métrica, rima,
técnicas narrativas; na verdade, incluíam todo o estoque de elementos literários formais; e o que todos esses
elementos tinham em comum era o seu efeito de “estranhamento” ou de “familiarização”. (Eagleton, 2006,
p.5).
Posto isto, a atividade jornalística, por outro lado, daria conta da linguagem
referencial? Abordaria o acontecimento vivificado e verificado? Em um sentido técnico, a
resposta positiva a tais questões permitiria ao trabalho jornalístico o atributo – quase
consensual de decodificação objetiva do “real”. Entretanto, o “acontecimento factual” é
regido por uma série de representações desde as técnicas jornalísticas até os anseios
ideológicos, pragmáticos e subjetivos do narrador-jornalista.
É importante frisar que a atividade jornalística se baseia em uma construção da
realidade, valorativa, pois, de uma idéia normativa de mundo, de apreensão. Ou seja, a
notícia-informação é condicionada ao vínculo da veracidade, como já foi exposto. Eis um
jogo perigoso na caracterização da natureza jornalística. O acontecimento factual é envolto,
também, em inúmeros condicionantes: a leitura de mundo, o fator empresa-jornalista-
espaço-tempo profissional, a criação angulatória da narrativa, os filtros de notícia, os
critérios de noticiabilidade.
Estabelecem-se, então, na atividade jornalística (regida por um código industrial de
pressa, de velocidade), problemas na decodificação da “verdade”, do mundo, problemas
estes de apreensão, de captação e fabrico de mensagens. Sem marcar as diferenças de
gêneros jornalísticos, é preciso dizer que o texto jornalístico em essência - é um
emaranhado heterogêneo de possibilidades. Nesse sentido, sua atividade é vinculada a um
enorme contingente de especificidades.
Verificar-se-ão algumas teorias que tentam preencher e identificar as tensões
decorridas do exercer jornalístico.
1.4.3. A apreensão jornalística em algumas teorias
A atividade jornalística é de complexo funcionamento. A mensagem informativa
causa cabal do jornalismo contemporâneo - perpassa componentes, não da “realidade
verificada diuturnamente”, mas do próprio exercer jornalístico. Medina (1978) categoriza,
nas fases de decodificação do material jornalístico (pauta, angulação, captação, narrativa e
edição), composições as mais variadas.
Medina (1978) identifica na definição do ângulo a problemática no manuseio
de três tendências na “fabricação da consciência do jornalista”: nível pessoal, nível grupal e
nível social. Tais estratificações irão permear as práticas seguintes, a saber: laboriosa
apreensão do real, captação de dados e o processo de finalização do “fato”, isto é, do
“acontecimento transformado em “notícia”. É certo, contudo, que tal normatização técnica
intrínseca à práxis jornalística sustenta-se em um emaranhado narrativo. Medina, ao
verificar os aspectos de um “ritmo narrativo”, no jornalismo, situa o texto jornalístico em
um paradigma muito próximo da criação literária (aqui entendida na
ordenação/hierarquização dos fatos/acontecimentos em informação jornalística), na medida
em que os registros da sucessão de acontecimentos – aprioristicamente angulados, captados
e editados – exercem a função de uma ação narrativa. Assim, para Medina:
É impossível tratar de ritmo narrativo na matéria jornalística sem se remeter à
experiência-mãe de formulação verbal na ficção. Se o jornalismo cresce em seu
próprio universo narrativo, ainda está muito ligado por contingências históricas à
criação literária.
64
Medina verifica, então, os comportamentos da narrativa jornalística no que tange ao
aspecto cronológico, às definições dos personagens nos centros de ação (ou linhas de
personagens etc.). Ao preencher tais códigos interpretativos, elucida que a categoria da
objetividade é balizada, muitas vezes, em vieses equivocados. A busca do jornalismo pela
“realidade mais pulsante”, mais concreta, parece evidenciar vestígios de uma observação
mais individualizada, atrelada aos ditames do nível pessoal de ação jornalística. É evidente
que a notícia como uma entidade decorrente de um comportamento jornalístico objetivo
define, constantemente, a narrativa dos acontecimentos. Medina insiste, no entanto, que, em
sua “formulação estilística”, o jornalismo apreende não só códigos da autoconsciência
subjetiva do jornalista (exercendo traços íntimos com o universo da profissão e da
sociedade), mas também abarca elementos de uma “argumentação demonstrativa”
(informativa, opinativa, “ficcional”) que faz da narração dos acontecimentos verificáveis do
cotidiano diário elo de ação de um “narrador extremamente centralizado na sua lógica
diante da vida”.
A questão do narrador no jornalismo e seu funcionamento na coluna Corpo-a-
Corpo, especificamente, será observada no Capítulo 2 deste trabalho, mas de antemão
64
Medina, 1978, p.100.
pode-se identificar aqui que a representação do “real”, de matrizes jornalísticas, é
instrumento decisivo para uma “dramatização” do universo temático presente na coluna.
A apreensão da realidade é, muitas vezes, envolta em mitos, entre eles o de que o
jornalismo é missionário de uma realidade apreendida prudentemente e representa o papel
de vigilante diuturno da democracia (o mito do quarto-poder).
Nelson Traquina (2005), na tentativa de explicar por que as notícias são como são,
evidencia algumas teorias acerca do jornalismo:
A teoria do espelho: o jornalismo funciona como um simulador da realidade social,
um termômetro observacional, que faz do próprio campo jornalístico (as regras, as técnicas)
seu motor de análise. Traquina adverte, porém:
Certamente as notícias são um produto centrado no referente, onde a invenção e
a mentira são violações das mais elementares regras jornalísticas. Assim, o
referente, ou seja, a “realidade”, não pode deixar de ser um fator determinante
do conteúdo noticioso.
65
A teoria da ação pessoal e/ou gatekeeper: o jornalista passa a filtrar os fatos.
Portanto, os acontecimentos são condicionados a fatores de critérios de noticiabilidade,
situando a seleção feita pelo jornalista como atributo essencial na decodificação do real.
Há, evidentemente, com a teoria da ação pessoal um matiz de razões subjetivas. Mesmo
que os condicionantes dos filtros do gatekeeper suponham desenvolver normas efetivas de
marcas de objetividade, a escolha do acontecimento que virará fato e, conseqüentemente,
informação valorativa, é estritamente vinculada à seleção compreensiva do real feita pelo
jornalista. Traquina salienta que tal decisão deve ser compreendida, entretanto, na interface
do gatekeeper com as “forças sociais” que influenciam a sua produção.
Teoria organizacional: as relações íntimas entre o exercer jornalístico e uma tácita
ordem empresarial são os motores de entendimento deste enfoque teórico. Traquina
estabelece uma categorização – feita pelo sociólogo norte-americano Breed – dos principais
fatores de interação social entre o jornalista, as notícias confeccionadas e a organização (a
empresa jornalística): (1) a autoridade institucional; (2) os sentimentos de obrigação e de
estima para com os superiores; (3) as aspirações de mobilidade; (4) a ausência de grupos de
lealdade em conflito; (5) o prazer da atividade; (6) as notícias como valor. Desse modo,
65
Traquina, 2005, p.149.
“segundo a teoria organizacional, o trabalho jornalístico é influenciado pelos meios de que
a organização dispõe. Assim, esta teoria aponta para a importância do fator econômico na
atividade jornalística” (p.158).
Teorias de ação política: ocorre uma “fabricação” noticiosa, condicionada a fatores
de leituras de mundo e da “realidade” vivificada. Traquina polariza dois campos de ação
política no jornalismo: um de direita, um de esquerda. Além de alinhar os jornalistas a um
processo de escolha e de seleção (como no gatekeeper), os teóricos dessa linha propõem
um estreitamento consciente com faixas sociais. Desse modo, a teoria da ação política
evidencia o aspecto ideológico do exercer jornalístico.
Teorias construcionistas: a atividade jornalística é um “contar de estórias”. Nesse
sentido, sua narratividade está intimamente ligada aos códigos de linguagens literárias. A
questão formulada pelos construcionistas é a seguinte: como suportar o devaneio dos
acontecimentos ininterruptos e infinitos da realidade por meio de uma perspectiva
jornalística? De modo que, “na perspectiva do paradigma construtivista, embora sendo
índice do real”, as notícias registram as formas literárias e as narrativas utilizadas para
enquadrar o acontecimento” (p.174).
Teoria estruturalista: pretende investigar as diversas “camadas” do fator noticioso,
seus condicionantes textuais, lingüísticos e sociais; decifrar os “fabricantes primários” do
acontecimento. Ou seja, a “construção” da notícia é fundamental para os estruturalistas,
que tal fabricação é determinada por elementos múltiplos e complexos. De modo que:
na teoria estruturalista as fontes oficiais são encaradas como um bloco unido e
uniforme; a existência de disputas entre os membros das fontes oficiais é
minizada; a estruturalista, a estrutura dos chamados “definidores primários, é
encarada de uma forma “atemporal” e “imutável”; a relação entre os chamados
“definidores primários” e os profissionais do campo jornalístico é encarada
como uma relação unidirecional: os chamados “definidores primários”
comandam a ação.
66
Teoria interacionista: investiga a relação do jornalista com os processos de
fragmentação de seu trabalho rotineiro, de sua ação profissional. Por meio dos fatores
tempo e espaço como elementos centrais da fabricação informativa, os interacionistas
entendem que a atividade jornalística é regida por determinantes “ordeiros” de apreensão e
66
Traquina, 2005, p.180.
captação de fatos. Nesse contexto, a problemática do tempo e a compressão do espaço de
ação profissional adquirem um caráter de imediaticidade no fabrico da informação. “O
ritmo do trabalho jornalístico, o valor do imediatismo, a definição do jornalismo como
relatos atuais sobre acontecimentos atuais, têm como conseqüência uma ênfase nos
acontecimentos e não nas problemáticas” (p.184).
Quando se verifica o panorama das teorias elencadas e o material de investigação da
apreensão jornalística envolta na sua própria narratividade (enlaçada ao instrumento do
referente “realidade”), nota-se que, ao contrário da criação literária, o jornalismo tem o
acontecimento plausível como cabedal estrutural. Entretanto, ao relatarem-se as
convergências entre as naturezas (jornalística e literária), percebe-se que o jornalismo situa-
se em uma esfera de verificação testemunhal da “realidade” e que a ficção submete o seu
próprio papel literário a características plurissignificativas, encaradas, sobretudo, em
materialidades expressivas, estéticas; apesar de, muitas vezes, serem verossímeis, isto é,
próximas ao que podemos entender como um documento referencial.
Portanto, as aproximações entre jornalismo e literatura são evidenciadas por
elementos de formalização verbal, textual. Alceu Amoroso Lima, em seu estudo O
Jornalismo como Gênero Literário constrói um quadro categórico em que o jornalismo
submete-se a uma finalidade literária. Lima (1990) faz, porém, algumas ressalvas
intrínsecas ao exercer jornalístico em sua categorização de gêneros.
1.4.4. O jornalismo é literatura?
Para Lima (1990) o gênero literário é um tipo de construção estética determinada
por “um conjunto de disposições interiores em que se distribuem as obras segundo suas
afinidades intrínsecas e extrínsecas” (Lima: 1990, p.33). Trata-se, logo, de uma definição
flexível, que condiciona a atividade literária a vários compartimentos, colocando-a em
dispositivos textuais e contextuais. Desse modo, Lima esclarece que o termo literatura se
configura como a “arte da palavra” e estende tal terminologia em três acepções práticas: (1)
o sentido lato, em que a literatura é “toda expressão verbal, falada ou escrita (...) é sem
dúvida uma forma de criação estética, em certas condições, geralmente, excluída de certas
concepções mais gidas da atividade literária”; (2) o sentido corrente no qual a literatura é
“a expressão verbal com ênfase nos meios de expressão”, a “palavra como valor de fim e
não apenas com valor de meio”; e (3) uma concepção literária que a circunscreve a uma
“finalidade estritamente estética” (Lima: 1990, p.35).
Após a categorização de tais acepções, Lima (1990) adverte que se a terceira
acepção for preponderante em um enquadramento metodológico, não há possibilidade de se
colocar o jornalismo como um pretendente ao posto literário, visto que a literatura como a
arte da palavra com fim puramente estético bloqueia tal adequação.
Está evidenciado que, na polarização que Lima faz entre jornalismo e literatura, o
componente estético adquire uma problemática de difícil resolução. Entretanto, o autor
admite que a literatura seja sustentada pela arte da palavra, que não deve descartar outros
fins. Com este argumento, esquematiza um quadro de referenciais orgânicos e genéricos da
atividade literária, separando a criação literária em dois pólos: o verso e a prosa.
Lima verifica, no jornalismo, uma atividade vinculada à arte da palavra
confeccionada em prosa, em que os acontecimentos factuais são desenvolvidos pelo olhar
arguto e observador do jornalista. Nesse sentido, define um quadro classificatório que situa
a atividade jornalística como uma criação literária, não no sentido puramente estético, como
foi elucidado, mas a coloca em um conceito singular de literatura: no sentido lato e no
corrente.
Desse modo, o jornalismo, para Lima, caracteriza-se, fundamentalmente, pela chave
da apreciação da realidade envolta:
O jornalismo possui quatro caracteres de especificação crescente: é uma arte
verbal; é uma arte verbal em prosa; é uma prosa de apreciação; é uma apreciação
de acontecimentos.
67
O autor salienta ainda as distinções expressivas entre a atividade jornalística restrita
ao campo factual e a criação literária envolta na “criatividade” artística da ficção:
O que faz o gênero jornalismo não é o meio da expressão, é o modo de
expressão, é a natureza da expressão. E a marca principal, como vimos, é de uma
apreciação e não uma criação em si, sob a forma de ficção, de biografia ou de
crítica. É uma certa apreciação de acontecimentos, dos fatos (...) o dia-a-dia.
68
67
Lima, 1990, p.55.
68
Lima, 1990, p.56.
Na concepção classificatória de Lima, o jornalismo se sustenta, sobretudo, pelo viés
apreciatório do cotidiano concorrido. Com essa concepção, o jornalismo se transmuta em
uma espécie de decodificador da contemporaneidade.
Entretanto, convergências marcantes entre fato e ficção, como se salientou
anteriormente, que dualizam com as proposições de Lima sobre as marcas de um certo
fazer jornalístico e, em relação aos processos de representação, evidenciam certa
fragilidade na localização rígida de um “jornalismo categorizável” tendo em vista um
funcionamento objetivo, como o quer Lima.
Em relação aos escritos da coluna Corpo-a-Corpo, duas experiências novas de fazer
textual aparecem na discussão que João Antônio faz a respeito do jornalismo. Trata-se de
duas tendências narrativas em que o elemento literário é peça decisiva no fabrico
jornalístico: o New Journalism e o romance-reportagem brasileiro dos anos 1970.
Na coluna Corpo-a-Corpo, ocorre o “diálogo” com tais tendências. Aliás, o
colunista propaga um ideário de criação jornalística muito próximo dos ditames textuais das
duas experiências.
1.5. Diálogos jornalístico-literários
A obra joãoantoniana sempre esteve permeada pelo elemento jornalístico, sendo que
características como a documentalidade do real, o forte apelo verificável e o grande
impacto impressionista percorrem os seus textos. Nos livros Malagueta, Perus e Bacanaço
(1963) e Leão de Chácara (1975) notam-se narrativas que entrecortam nuances de uma
realidade social sufocada, bruta, degradada, por vezes. Os narradores e personagens se
autoflagelam na ânsia em mudar os ditames da vida que os rodeiam. O retrato documental
de tais cenários evidencia uma abordagem fincada na experiência do conto
69
,
evidentemente. Porém, a descrição pormenorizada dos “acontecimentos narrados” é, poder-
69
Moisés (1979): O conto constitui uma fração dramática, a mais importante e a decisiva, duma continuidade
em que o passado e o futuro possuem significado menor ou nulo. Os seus protagonistas semelham apenas ter
abandonado o anonimato em que imergiam naquele “momento privilegiado”: o tempo existencial que o
precede quando muito funciona como germe ou preparativo do instante decisivo na vida dos heróis. (Moisés,
1979, p.21).
se-ia dizer, construída por uma ótica narrativa contemporânea altamente intertextualizada
com a atividade jornalística
70
.
Mas é, principalmente, com Malhação do Judas Carioca (1975) que se delineia
uma postura jornalística em João Antônio. Reunindo escritos publicados na imprensa e
crônicas sobre o cotidiano, o livro dialoga com fenômenos textuais jornalísticos. No ensaio
corpo-a-corpo com a vida, presente no livro, tal debate aparece na referência aos “novos
jornalistas” estadunidenses:
A verdade é que esse tipo de produção escrita, de aparência apenas
experimental, já chegou a produtos acabados e comestíveis; são bons e podem
ser consumidos pelo leitor de nossos dias. Exemplos? A Sangue Frio (Truman
Capote), Um Tiro na Lua (Norman Mailer), Miami e o Cerco de Chicago
(Mailer). De Mailer: ‘Os escritores profissionais não se enraivecem, eles se
vingam’.
71
Em Ô, Copacabana! (1978) ocorre uma espécie de retrato-reportagem-crônica sobre
o bairro carioca em que a experiência literária de João Antônio (sobretudo o viés contista)
adquire faceta documental-jornalística na ligação do repórter com o cronista
72
.
Tal postura de hibridização textual, afincada sobretudo na experiência da
reportagem ganha estofo a partir daí e a questão da difícil diferenciação dos gêneros
continua percorrendo obras como Dedo-Duro (1982) e Abraçado ao meu Rancor (1986).
Inclusive, o texto Abraçado ao meu Rancor é uma espécie de reflexão sobre o fazer
jornalístico. Costa (2005) verifica a discussão jornalística desenvolvida em Abraçado ao
Meu Rancor:
João Antônio percebe que a linguagem ascética dos jornais não serve para
descrever a vida das ruas, assim como seu estilo supostamente coloquial
despreza a fala do povo. Para ele, o texto jornalístico e a própria estrutura
industrial da grande imprensa, que a torna solidária com os interesses da classe
dominante, impediram essa aproximação com a realidade brasileira.
73
70
Traquina (2005): O “campo jornalístico” começou a ganhar forma nas sociedades ocidentais, durante o
século XIX, com o desenvolvimento do capitalismo e, concomitantemente, de outros processos que incluem a
industrialização, a urbanização, a educação em massa, o progresso tecnológico e a emergência da imprensa
como “mass media”. As notícias tornaram-se simultaneamente um gênero e um serviço; o jornalismo tornou-
se um negócio e um elo vital na teoria democrática; e os jornalistas ficaram empenhados num processo de
profissionalização que procurava maior autonomia e estatuto social. (Traquina, 2005, p.20).
71
Antônio, 1975, p.148.
72
Mário Lago. In: Antônio, João. Ô, Copacabana (2001): “O João Antônio ficou, repórter fuçador, escritor
com olhos rodando 360 graus, cronista candidato a torcicolo de tanto virar a cabeça em todas as direções”.
73
Costa, 2005, p.151.
A fusão entre jornalismo e literatura permanece até o fim de sua obra com a
sedimentação de escritos mais “brandos” (os matizes da crônica, essencialmente) em que o
elemento saudosista perpassa o diálogo textual. Dessa maneira, perfis do morro da Geada,
de Nelson Cavaquinho ou de Lima Barreto estabelecem uma espécie de ntese de uma
obra de forte apelo autobiográfico como em Zicartola (1991) e Dama do Encantado (1996).
Percebe-se, pois, que o jornalismo é, para João Antônio, elemento de práxis textual
e, também, de reflexão sobre sua atividade, vide em Abraçado ao meu Rancor. Essa
reflexão, outra vez metalingüística, situa o diálogo joãoantoniano em Corpo-a-Corpo com
duas tendências textuais que rodeiam a interface entre a narrativa jornalística e o
confeccionar da ficção: o New Journalism e o romance-reportagem brasileiro dos anos 70.
No texto Uma Carta de Minas (I e Final), de 26/03 e 27/03/1976, ao discutir o
estabelecimento dos quadros intelectuais (artísticos, literários e jornalísticos) no país, João
Antônio propõe uma espécie de norte, no qual o jornalismo deve estar alicerçado pelo
elemento da investigação aguda da realidade. Assim, diz:
Acho, sim, que os meios de obter informação, de ir lá, revirar a lata de lixo que é
a nossa sociedade, este sim, pode até ser um procedimento jornalístico (desde
que em suficiente profundidade). Mas os meios de fazer, não podem parar na
técnica jornalística. A não ser que ela renove, tome caminhos outros, crie e
recrie em cima do real bruto e imediato, como foi o caso do novo-jornalismo
norte-americano (Truman Capote, Mailer etc.).
74
Evidencia-se, portanto, que, ao se retratar como puro tradutor objetivo do
acontecimento, o jornalista é uma peça frágil. O jornalista-escritor salienta que a imersão
social, em seus caminhos tortuosos, é o objeto a ser percorrido pela caneta do repórter.
Assim, o modelo paradigmático do New Journalism tem profunda similaridade com o que
prega (“a não ser que ela renove, tome caminhos outros, crie e recrie em cima do real bruto
e imediato”) e, por conseguinte, sustenta os ideários de embate colocados no ensaio corpo-
a-corpo com a vida (“revirar a lata de lixo que é a nossa sociedade, este sim, pode até ser
um procedimento jornalístico”).
74
Antônio, 1976.
Como se sabe, o New Journalism
75
se pautou, intensamente, pela difícil demarcação
entre fato e ficção. Talvez, essa questão da veracidade versus ficção seja um dos elementos
mais conturbados em seu debate. Wolfe (2005), um dos “novos-jornalistas”, no ensaio O
Novo Jornalismo texto síntese dos propósitos técnicos e estilísticos do New Journalism -,
propõe quatro recursos fundamentais para a prática de um jornalismo em cima do bruto e
imediato: descrição cena a cena; diálogos inteiros; pontos de vista em terceira pessoa
múltipla; detalhamento do status de vida.
76
O último item parece dar conta de um universo maior de intenções de um “novo
jornalismo”. Tendo como pano de fundo sociedades e realidades em transformação, o status
de vida se estabelece como uma terminologia preenchida por quadros de verificação
jornalística mais extensivos. Detendo-se nos anseios dos fluxos narrativos preconizados
por Wolfe - do New Journalism, pura e simplesmente em seu jogo de contra-senso com o
acontecimento factual amorfo, não se podem entender talvez os cenários estéticos
demonstrados por escritores-jornalistas como Truman Capote, Norman Mailer, Gay Talese
etc. Desse modo, uma questão controversa nos “novos jornalistas” é a assimilação
ética/estética/estilística do naturalismo-realismo em sua configuração da realidade
apreendida.
A respeito da apropriação dos princípios textuais realistas pelos novos jornalistas,
Bulhões (2007) salienta:
Na perspectiva de Wolfe, eram necessários, portanto, escritores que operassem
como autênticos retratistas, ou seja, que trabalhassem com as ferramentas do
Realismo Social do século XIX. Wolfe reivindica um Balzac ou um Dickens
para o período. Assim, uma vez que não apareciam, no território da literatura de
meados do século XX, retratistas da concretude da vida social, como havia no
século XIX, teria ficado ao encardo dos representantes do New Journalism
colher tal matéria extraordinária, fossem eles jornalistas de profissão como
Talese e Breslin, fossem escritores aproximados da prática jornalística, como
Mailer e Capote.
77
75
Wolfe (2005): No começo dos anos 60, uma curiosa idéia nova, quente o bastante para inflamar o ego,
começou a se insinuar nos estreitos limites da statusfera das reportagens especiais. Tinha um ar de descoberta.
Essa descoberta, de início modesta, na verdade, reverencial, poderíamos dizer, era que talvez fosse possível
escrever jornalismo para ser... lido como um romance. (Wolfe, 2005, p.19).
76
Wolfe (2005): O registro desses detalhes não é mero bordado em prosa. Ele se coloca junto ao centro de
poder do realismo, assim como qualquer outro recurso da literatura. (Wolfe, 2005, p.55).
77
Bulhões, 2007, p.157.
Ainda sob a discussão entre ficção versus realidade, Resende (2002) situa a
“ficionalização” em Wolfe, e no New Journalism em conseqüência, no embaralhamento
dos discursos.
78
Ao colocar o texto de Wolfe como representante das chamada pós-
modernidade narrativa
79
, Resende equaciona o problema da difícil separação entre fato e
ficção no New Journalism, identificando as possíveis e necessárias interfaces do jornalismo
com o literário. Resende adverte, entretanto, que a matriz discursiva do New Journalism é
jornalística, mesmo quando os elementos da literariedade permeiam o confeccionar
objetivo dos fatos.
João Antônio, em “Uma Carta de Minas”, defende uma aproximação entre emissor-
relato-leitor (o estreitamento textual exemplificado pelo “detalhamento do status de vida”
proposto por Wolfe e elucidado por Resende) quando explica que deve haver uma técnica
literária que se coadune com o labor jornalístico na apreensão de uma realidade disforme,
multifacetada:
Vocês me perguntam sobre técnica literária e eu acredito numa. Mas não por ela
mesma e, sim, pelo que ela permite (ou venha a permitir) como aprofundamento
humano. O homem é o epicentro das preocupações literárias – em qualquer
época de qualquer boa literatura. E o objeto direto do escritor é o leitor. Fora daí,
qual a salvação?
80
Nesse contexto, trata-se de uma aproximação entre a assertiva de uma escrita
comprometida e matizada metalinguisticamente, auto-referencial, e a sistematização textual
preconizada por alguns paradigmas híbridos (jornalismo e literatura), dentre eles, o New
Journalism.
1.5.1. Diálogo com o romance-reportagem
78
Bakhtin pontua a natureza da diversidade nos enunciados verbais/discursivos: “Tomar como ponto de
referência apenas os gêneros primários leva irremediavelmente a trivializá-los (a trivialização extrema
representada pela lingüística behavorista). A inter-relação entre os gêneros primários e secundários de um
lado, o processo histórico de formação dos gêneros secundários de outro, eis o que esclarece a natureza do
enunciado (e, acima de tudo, o difícil problema da correlação entre língua, ideologias e visões do mundo)”.
(Bakhtin, 2000, p.282).
79
Resende (2002): No caso dos discursos jornalístico e literário, o que persiste e o que existe sob essa
perspectiva pós-moderna? Permanecem as regras que são parte de qualquer jogo; em outras palavras, as
propriedades idiossincráticas pertencentes a qualquer discurso manifestam-se, mas o que não acontece é a
legitimação dessas regras, o que, por sua vez, permitiria a sustentação classificatória dos gêneros. As cartas
são colocadas na mesa e, independentemente do que venha a ser o desfecho do jogo, é preciso não esquecer
que as cartas foram, anteriormente, várias vezes, embaralhadas. (Resende, 2002, p.35).
80
Antônio, 1976.
um impasse no termo romance-reportagem. A designação parece sugerir união
dos aspectos narrativos romanescos com a apreensão factual jornalística do repórter. O
romance-reportagem parece estar mais ligado a um centro de ação textual atrelado aos
códigos jornalísticos; moldado, no entanto, também, a esferas da tradição romanesca,
principalmente a naturalista. Trata-se de um fenômeno envolto em um cenário muito
sensível (os anos do regime ditatorial militar) em que os ingredientes temáticos
desempenham fatores de resistências a modelos hegemônicos praticados (literários e
jornalísticos)
81
.
Ferreira, em referência a J.S. Faro, identifica o fenômeno do romance-reportagem
como o resgate de uma tradição literária brasileira pulsante, “bruta”, “cortante”, “política”
82
.
Cosson ratifica o posicionamento de Ferreira quando diz que o romance-reportagem
se utiliza de um referencial narrativo oriundo de uma tradição naturalista-realista brasileira
(sobretudo o regionalismo realista dos anos 1930) e pontua que a matriz discursiva do
romance-reportagem está fincada em três fatores decisivos: (1) o bloco temático do
romance-reportagem é oriundo de um aspecto singular de envolvimento com uma
“realidade” alijada dos processos de apreensão jornalísticos. Tais temas fazem parte, nesse
contexto, de um ideário de tematização simbólica de representação nacional. Assim,
uma confecção, por mais heterogênea que possa parecer, que evidencia uma
contextualização temática discursiva; (2) a base jornalística, fincada na figura do repórter
decodificando o real, é invadida pelos aportes da imaginação. Portanto, é dessa maneira
que os aspectos de convergência entre literatura e jornalismo adquirem um status de
entidade literária, visto que o jornalismo se estabelece como um modelo de narração
81
Cosson (2005): Uma das primeiras explicações para a existência do romance-reportagem no Brasil foi a
ação da censura. Considerado como uma produção cultural específica de sua época, o romance-reportagem
seria o resultado ou o sub-produto da censura e da repressão do regime ditatorial no campo do jornalismo.
Essa origem, de cunho mais geral e por isso mesmo assimilada a uma tendência da década de 1970, toma
como ponto de partida a estreita relação temática e formal atestada na época entre literatura e jornalismo. Essa
relação íntima não se faz gratuitamente. De acordo com a crítica, o clima de jornal da literatura dos anos 1970
foi determinado pela ditadura militar. (Cosson, 2005, p.61).
82
Ferreira (2004): Para J.S. Faro (1982), apresentando interessante análise do desenvolvimento da literatura
brasileira, a emergência explosiva da ficção nos anos 70 e o comportamento dessa produção literária indicam
um “corpo a corpo” dos autores com a vida brasileira, que chega a ocupar o próprio papel da imprensa, a criar
o romance-reportagem, o testemunho, o documento. Faro liga tal desempenho diretamente a uma posição
crítica – não cooptada pelo sistema -, de denúncia e, principalmente, de resistência. (Ferreira, 2004, p.301).
estabelecido em diversos pontos de vista ficcionais; (3) Cosson estabelece, pois, a
configuração de um gênero brido o romance-reportagem marcado, evidentemente,
pela verificação da “contaminação” da reportagem pela “fantasia ficcional”, a fim de que o
preenchimento do acontecimento factual adquira angulações múltiplas.
Assim, no romance-reportagem brasileiro, herdeiro textual, em algum sentido, do
New Journalism, problematiza-se a convergência entre fato e ficção. Entretanto, a base de
apreensão dos códigos verificáveis de uma “nova narrativa literária, com tendências
jornalísticas marcantes”, é pautada pelo acontecimento, pelo fato acontecido. Tal
verificação do acontecimento é empreendida e narrada, visceralmente, porém, com
elementos ficcionais de ordenamento narrativo: a delimitação do espaço, a função das
personagens, o desempenho dos focos narrativos etc. Candido (2006), ao localizar e
identificar as marcas da literatura brasileira dos 1970 sintetiza:
Se a respeito dos escritores doa anos de 1950 falei na dificuldade em optar, no
fim da apreciação “disjuntiva”, com relação aos que avultam no decênio de 1970
pode-se falar em verdadeira legitimação da pluralidade. Não se trata mais de
coexistência pacífica das diversas modalidades de romance e conto, mas do
desdobramento destes gêneros, que na verdade deixam de ser gêneros,
incorporando técnicas e linguagens nunca dantes imaginadas dentro de suas
fronteiras. Resultam textos indefiníveis: romances que mais parecem
reportagens; contos que não se distinguem de poemas ou crônicas, semeados de
sinais e fotomontagens; autobiografias com tonalidade e técnica de romance;
narrativas que são cenas de teatro, textos feitos com a justaposição de recortes,
documentos, lembranças, reflexões de toda a sorte. A ficção recebe na carne
mais sensível o impacto do boom jornalístico moderno.
83
Ainda em relação ao processo de hibridizações no romance-reportagem, Bianchin
(1997), ao comentar o estudo de Sussekind (Tal Brasil, Qual Romance?)
84
sobre a
produção literária brasileira dos anos 1970, discute as relativizações do alcance do
romance-reportagem no que se refere à sua perspectiva textual:
A análise de Flora em nenhum momento hesita em classificar o romance-
reportagem como romance e é partir dessa perspectiva que ela o analisa, embora
também não defina que estrutura, qual o estatuto dessa narrativa que ela chama
de “ficção jornalística”. Mas diz que este novo naturalismo “dá mais ênfase à
informação do que à narração”. E nota que o romance-reportagem obedece aos
princípios jornalísticos da “novidade, clareza, contenção e desficionalização”.
83
Candido, 2006, p.253.
84
SUSSEKIN, Flora. Tal Brasil, Qual Romance?. Rio de Janeiro, Achiamé, 1984.
Como são quebradas as fronteiras entre a ficção e o jornalismo, “o que se são
notícias, informação, e não ficção.
85
A partir dessas colocações, Bianchin questiona:
Não estariam aí os indícios muito fortes de que estas narrativas não poderiam ser
analisadas apenas como romances? São os laços de técnica que unem estas
narrativas ao jornalismo? Perguntas que vão surgindo no decorrer da leitura e
que ficam sem resposta.
86
Talvez, as respostas estejam melhor delineadas nas confrontações que estabelece
Cosson. Ou seja, nem todo elemento textual que se fundamenta em um narrar “cortante” e
“realista” é advindo de uma “práxis jornalística”. Por meio da idéia de “contaminação” do
real, a convergência da literatura com o jornalismo, no romance-reportagem, evidencia um
quadro de manifestação maior, ou seja, a prática do jornalismo em outras searas
discursivas, temáticas, angulatórias etc.
Na coluna Corpo-a-Corpo, a citação direta e a conversa estabelecida com o
romance-reportagem se faz presente. Nos textos “Conversa Franca com Aguinaldo Silva”,
“Maralto”, “Mais “Boom”” e “Com José Louzeiro” ocorrem entrevistas, comentários e
debates acerca de um novo posicionamento textual: no caso, o romance-reportagem. Ao
conversar com dois representantes de tal tendência (Aguinaldo Silva e José Louzeiro
87
, por
exemplo) a preocupação de João Antônio como entrevistador-repórter é elucidar e
descrever o ideário das novas práticas textuais, bem como debater a questão do
comprometimento intelectual por parte do escritor-jornalista brasileiro.
Em “Com José Louzeiro (I a Final)”, de 11/08 a 18/08/1976, surgem as seguintes
questões empenhadas pelo entrevistador João Antônio (perguntas estas que se repetem nas
conversas com Aguinaldo Silva, José Edson Gomes etc.):
“E será possível estabelecer um laço íntimo de identificação entre sua literatura
[a de Louzeiro] com sua experiência ou vivência?”
“Como você vê o posicionamento de nosso intelectuais diante da realidade
brasileira?”
“Até que ponto o trabalho em jornal diário pode atrapalhar (ou contribuir) na
vida e produção de um escritor?”
85
Bianchin, 1997, p.74.
86
Bianchin, 1997, p.74
87
Autores dos romances-reportagem “República dos Assassinos” e “Lúcio Flávio: passageiro da agonia”,
respectivamente.
“Há um boom literário no Brasil?”
“De um lado o realismo fantástico; de outro, o romance-reportagem – vodeve
ter uma visão pessoal disso: engajamento ou alienação? Como interpreta as duas
tendências?”.
88
Nas entrelinhas das questões, principalmente da última indagação, formuladas por
João Antônio, o romance-reportagem surge como respaldo paradigmático das constatações
pontuadas pelo corpo-a-corpo com a vida. Ao conversar com tais autores, João Antônio se
alia ao ideário do romance-reportagem.
Nota-se que os fragmentos desenhados no debate com tendências textuais, no caso o
romance-reportagem e o New Journalism, surgem como reforço das escritas que
transcendem a entidade estanque do jornalismo e/ou da criação literária. Parece haver na
coluna Corpo-a-corpo a proposta de uma sociedade a ser decodificada, preenchida. Assim,
novos modelos narrativos e hibridizados são sínteses de práxis textual, na qual, ele,
escritor-jornalista, entranha-se.
Candido (2006), ao perfilar João Antônio no ensaio “A Nova Narrativa”, coloca-o
ao lado de Rubem Fonseca como representante de uma “prosa aderente a todos os níveis de
realidade” e completa:
Estes dois escritores [João Antônio e Rubem Fonseca] representam em alto nível
uma das tendências salientes do momento, que se poderia chamar de “realismo
feroz”, de que talvez tenham sido os propulsores.
89
Em se tratando de uma “prosa aderente a todos os níveis de realidade”, o ideário que
surge na coluna Corpo-a-Corpo é, como proposto em corpo-a-corpo com a vida, a postura
anti-academicista. Nas assimilações dos paradigmas levantados (romance-reportagem, New
Journalism e Lima Barreto, principalmente), a reportagem é a mola mestra do
posicionamento jornalístico, condicionada, como apresentado anteriormente, à figura do
“repórter-bandido falando de bandidos”. Bulhões sustenta que a prática da reportagem, em
João Antônio, ocorre como uma ferramenta de apreensão de seu universo específico,
corrosivo, a trabalhar com aspectos, também muito específicos, de atividade jornalística:
Operando com o documental circunstanciado, a escrita literária de João Antônio
é também jornalismo [referindo-se, especificamente a Leão de Chácara]. Trata-
88
Antônio, 1976.
89
Candido, 2006, p.255.
se, é claro, de um modo sui generis de jornalismo, pois opta por uma atitude de
imersão na realidade com a qual depara ao se contagiar com a linguagem do
excluído.
De algum modo, em todos os livros de João Antônio existe a prática da
reportagem. Muitas vezes, o repórter é lançado à rua, sem pauta e com os flancos
abertos para a vertigem e caos de uma vida pulsante.
90
A reportagem desempenha, na obra joãoantoniana, função imersiva, portanto.
Localizam-se, até aqui, algumas marcas da coluna Corpo-a-Corpo que evidenciam um
comportamento intrínseco à imersão social. Nesse sentido, a prática da reportagem exerce o
atributo do realismo feroz” (Candido), que os meios do referencial adquirem, com a
reportagem, camadas estéticas mais viscerais, mais “brutas”.
Entretanto, duas questões devem ser levantadas para a continuação do presente
trabalho: as manifestações narrativas praticadas pelo jornalista João Antônio, na coluna
Corpo-a-Corpo, e o uso dos gêneros na edificação dos seus textos.
Percebe-se que, além do advento conteudístico, o tear literário permeia a coluna
com focos narrativos múltiplos. Trata-se novamente da junção do ideário da reportagem
com outras práticas textuais, dentre as quais se destaca a crônica como elemento
sintomático em Corpo-a-Corpo.
A linguagem jornalística, na coluna, parece situar-se em uma representação da
realidade muito específica, intensamente singular, a obedecer a certos níveis e focos de
apreensão, a localizar determinados universos. Nesse sentido, a escrita jornalística
joãoantoniana, em Corpo-a-Corpo, dialoga com os atores, protagonistas e personagens de
sua obra (a ficcional, a documental). Ao reportar a cidade, o texto de Corpo-a-Corpo
verifica e identifica partícipes de um espaço – ora degradado
91
, ora saudosista.
92
Trata-se de
uma leitura a todo momento - auto-referencial, metalingüística, em que, aportes como o
mundo “folclórico” do futebol, os merdunchos, os desvalidos, os sambistas esquecidos
90
Bulhões, 2007, p.188/189.
91
Em “Dentro da miniguerra do Metrô’ (21 a 23/04/1976): Nessa miniguerra de esperas, não há mais surpresa entre as
duas partes a que vai derrubar e a que será derrubada moradores e trabalhadores das obras do Metrô têm um sinal
comum. Os que moram situam-se numa faixa de quase marginalidade – gente que vive de pequenos expedientes e
virações, velhos aposentados, tristes, enrugados, caldos, sem eira nem beira; os que trabalham são operários do Metrô
em geral, trabalhadores sem qualificação, vindos de outros Estados, meio espantados pelas dificuldades de lá e aqui
chegados sem lugar muito certo onde comer, dormir e morar.
92
Em “Os Tempos eram outros” (26/04/1976): Os saudosistas se lamentam, mas têm de aceitar que a vida mudou e a
mentalidade também. A maneira de viver nas áreas urbanas se transformou. O custo de vida encareceu, mas os duros, os
lisos, e sem dinheiro passaram a ser menos desabonados que os pobres da década de 40.
representam uma práxis textual de comprometimento e fatria. Práxis esta alicerçada por um
código utopista de reportagem e emaranhada pelo olho lírico do cronista.
Capítulo 2: Repórter e/ou Cronista: Empreendimentos Narrativos em Corpo-a-corpo
Partindo do pressuposto de que o Novo jornalismo
93
e o romance-reportagem
94
sustentam um tipo de práxis textual presente nas entrelinhas da coluna Corpo-a-corpo,
de se entender até que ponto os elementos jornalísticos são essenciais na coluna. Pode-se,
de antemão, talvez, delinear um quadro de representação ou de “conversa” com a
sociedade, em que aportes de novas narrativas oriundas dos anos 1970 sintetizam um
comportamento cortante com a realidade.
Apesar disso, uma questão se mostra pertinente na colocação dos ideários de
comprometimento desenvolvidos em Corpo-a-corpo. Que gênero é esse? Reportagem?
Crônica? Um híbrido? Plural? Assim como a diversidade dos aportes no sincretismo entre
jornalismo e literatura adquire poderes de convergência intensos como no Novo jornalismo
e no romance-reportagem, o “jornalista” João Antônio, em Corpo-a-corpo, depara-se com
as múltiplas possibilidades de textos.
Cumpre salientar que todo o processo de confecção midiática da coluna Corpo-a-
corpo se sustenta em uma práxis jornalística, evidentemente. Confeccionada em um
periódico carioca (o jornal Última Hora), e reforçada por marcas funcionais de alto teor
pessoal – como já foi visto -, deve-se preconizar que uma possível narratividade
95
se
constrói – prescritivamente falando – em uma moldura jornalística. Partindo dessa hipótese,
93
Tom Wolfe: O status do Novo Jornalismo não está de modo nenhum garantido...estimulante até...Com
alguma sorte, o novo gênero jamais será exaltado, jamais receberá uma teologia. Eu provavelmente nem devia
me dar o trabalho de defendê-lo como neste texto. Tudo o que eu queria dizer ao começar é que o Novo
Jornalismo não pode ser mais ignorado num sentido artístico. (Wolfe, 2004, p.60).
94
Rildo Cosson: Em um primeiro momento, o uso do naturalismo como estratégia narrativa é ainda uma
conseqüência do estreitamento de laços entre jornalismo e literatura. Nesse caso, o romance-reportagem é
pouco mais do que uma reportagem alongada que, ao invés de sair das páginas de um jornal, foi conduzida
para forma de um livro. Desse modo, é da técnica e da temática da reportagem que provêm a preocupação
com a objetividade, a adesão a formas da narrativa policial, a veiculação de conteúdos proibidos pela censura,
uma suposta transparência da linguagem, a denúncia social e uma certa recuperação da tradição documental
da literatura brasileira. Também é da reportagem transformada em livro que advém o caráter alegórico
assumido pelas narrativas do romance-reportagem e a tentativa de representar a realidade brasileira através da
estrutura de um jornal. Cosson (In: Castro; Galeno, 2005, p.65/66)).
95
De acordo com Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, a definição de narratividade incide sobre o estado
específico, sobre as qualidades intrínsecas dos textos narrativos, apreendidas ao nível dos seus
funcionamentos semio-dicursivos, para aquém, portanto, do estádio da análise superficial (...) a narratividade
é o fenômeno de sucessão de estados e de transformações, inscrito no discurso e responsável pela produção de
sentido. (Reis; Lopes, 2002, p.69).
o texto jornalístico desempenha um mosaico que será discursivamente expandido por um
“ente” João Antônio, é bem verdade. A narrativa que se permite verificar, primeiramente, é
a jornalística. Sodré e Ferrari (1986) definem as peculiaridades de uma narrativa de
componente jornalístico:
Mas a narrativa não é privilégio da arte ficcional. Quando o jornal diário noticia
um fato qualquer, como um atropelamento, já traz aí, em germe, uma narrativa.
O desdobramento das clássicas perguntas a que a notícia pretende responder
(quem, o quê, como quando, onde, por quê) constituirá de pleno direito uma
narrativa, não mais regida pelo imaginário, como na literatura de ficção, mas
pela realidade factual do dia-a-dia, pelos pontos rítmicos do cotidiano que,
discursivamente trabalhados, tornam-se reportagem.
96
Vê-se na definição acima uma demarcação clara entre o factual e o imaginário. Os
“pontos rítmicos do cotidiano” devem ser pontuados por uma narrativa atrelada a um
quadro de verificação enxuto, pontual, circunstancial. Um problema se coloca em tal
assertiva. Mesmo preconizando a reportagem como um gênero qualitativamente superior,
Sodré e Ferrari não salientam os atores conteudísticos básicos de uma narrativa
97
: o espaço,
o tempo e os personagens em reportagens narrativas. O jornalismo trabalha, acima de tudo,
com cenários de extrema circunstancialidade. A função referencial robustece uma narrativa
que se coaduna com olhares de apreensão muito pontuais. Quando se fala em narrativa no
jornalismo (seja na notícia, seja na reportagem
98
) é prudente que se perceba quais as forças
atuantes na confecção de uma “história”, quais elementos se presentificam em construções
orientadas por focos narrativos, quais os pontos de contato com a literatura.
Lima (1995) retoma alguns pilares do jornalismo – retratado como um campo
sistêmico da Comunicação Social elucidados pelo teórico alemão Otto Groth. Assim,
caracteriza os fundamentos jornalísticos:
96
Sodré; Ferrari, 1986, p.11
97
O termo narrativa pode ser entendido em diversas acepções: narrativa enquanto enunciado, narrativa como
conjunto de conteúdos representados por esse enunciado, narrativa como ato de os relatar (cf. Genette) e ainda
narrativa como modo, termo de uma tríade de “universais” (lírica, narrativa e drama) que, desde a
Antiguidade e não sem hesitações e oscilações, tem sido adotada por diversos teorizadores. (Reis; Lopes,
2002, p.66).
98
Segundo Lage: o conceito de notícia – em que pese o uso amplo da palavra news (notícia) em inglês – pode
ser, assim, substituído pela expressão informação jornalística. Essa expressão tem, aí, sentido peculiar, que
coincide com o de reportagem (gênero de texto) mas, eventualmente, assume a forma do que se chama de
artigo, crônica (política, desportiva) ou crítica (de artes, de espetáculos). (Lage, 2001, p.112).
Otto Groth, o teórico alemão que em muito contribuiu para o avanço dos estudos
científicos sobre jornalismo, aponta características fundamentais nos periódicos,
que são os veículos através dos quais o jornalismo, em sua versão impressa,
gráfica, exerce a sua função: a atualidade o fato que apresenta uma relação
com o momento presente -, a periodicidade a repetição regular no tempo das
diferentes edições de um periódico -, a universalidade a abordagem dos mais
diferentes campos do conhecimento humano que os periódicos realizam com
potencial teórico, pelo menos, para abranger todo o leque de conhecimentos
possíveis para a humanidade e a difusão coletiva a circulação dos periódicos
por diversificadas camadas sociais, distribuídas geográfica, cultural e
economicamente de modo heterogêneo.
99
Nota-se que a práxis jornalística amarra-se em determinados digos de conduta o
que lhe permite, por conseqüência, construir um arcabouço textual muito próprio. Ao se
admitir, desse modo, parte integrante de uma realidade contemporânea e universal, o
jornalismo se configura como uma espécie de apreendedor de conjuntos pulsantes e
“rítmicos do cotidiano” (como falam Sodré e Ferrari).
Porém, voltando ao estatuto da narratividade e, mais propriamente, ao advento da
confecção de um enredo, de uma narrativa básica do jornalismo, é de bom tom supor que
tanto no lide convencional quanto em um livro-reportagem, um roteiro de condutas
profissionais deve orientar as essências discursivas de um narrador-jornalista (desde a
confecção da pauta até a edição final). Nesse sentido, coloca-se uma confrontação básica.
Isto é, a narrativa jornalística não se desenvolve puramente como um relato estanque e
objetivado, mas conclui-se de uma construção em que marcas do narrador evidenciam
jogos abruptos de apreensão e representação. Se pensarmos em textos convergentes com a
literatura, como o Novo jornalismo e o romance-reportagem, a carga de um jogo textual
atrelado aos ditames de uma construção narrativa se torna mais veemente.
Pensar o texto jornalístico como o “espelho da realidade” pode permitir, apenas, um
reconhecimento brando dos níveis de focalização do real. Entretanto, existem inúmeros
atores no jogo de cena de um acontecimento. Hall (in: Traquina, 2005) identifica os
elementos básicos de narratividade na confecção textual jornalística:
Os jornalistas dizem: ‘Há um acontecimento; quer dizer alguma coisa. Quem
quer que lá esteja perceberá o que é que ele significa. Tiramos-lhe fotografias.
Escrevemos um relato sobre ele. Transmitimo-lo tão autenticamente quanto
possíveis através dos media, e a audiência vê-lo-á e perceberá o que aconteceu’.
E quando se afirma que as pessoas têm interesse em versões diferentes desse
99
Lima, 1995, p.20/21
acontecimento, que qualquer acontecimento pode ser construído das mais
diversas maneiras e que se pode fazê-lo significar as coisas de um modo
diferente, esta afirmação de algum modo ataca ou mina o sentido de legitimidade
profissional dos jornalistas, e estes resistem bastante à noção de que a notícia
não é um relato, mas uma construção.
100
Trata-se de uma questão de fundo de fortes conotações vividas nas atribuições do
trabalho jornalístico. Inquietações encontradas em Corpo-a-corpo
101
, em textos onde o
debate acerca do labor jornalístico ganha estofo. No trecho acima, percebe-se, claramente,
que a narrativa jornalística é confeccionada e sedimentada por substâncias espaço-
temporais vinculados com o cotidiano, ao acontecimento de todo dia. Essa vinculação
parece ser a principal distinção em relação a narrativas embutidas do teor literário, ou
imaginário (em contraponto ao real). Coimbra (1993), contudo, elucida, à luz de Jules
Gritti, uma aproximação das duas estruturas narrativas (a literária e a jornalística):
A adoção do modelo de estrutura de narração nos texto de imprensa nos traz de
volta á questão da relação do texto com o referente, com o contexto extraverbal.
A representação do real a diegese num conto, numa peça teatral, num filme,
diz Jules Gritti no ensaio “Uma narrativa de imprensa: os últimos dias de um
grande homem”, em Análise estrutural da narrativa parece diferir da
representação do real de uma narrativa de jornal, pois, enquanto a primeira
emana de uma criação de fábula, a segunda é comandada pelos acontecimentos
no seu dia-a-dia. No entanto, acrescenta Gritti, seja a ação representada ou a
ação vivida, caem todas nas mesmas categorias.
102
Essa assertiva de Coimbra sobre a narrativa jornalística, em contraponto à narrativa
literária, traz de volta a dualidade entre a referencialidade (emblematizada nos fundamentos
jornalísticos de Groth) e a literariedade. Notar-se-á, mais adiante, que tal polarização se
afinca tanto na reportagem quanto na crônica. De certa maneira, um confronto se instaura,
no entender de Coimbra. O autor busca, aliás, emoldurar em uma espécie de campo de
resistência nas expressões inerentes ao jornalismo
103
, perfis de cotejo entre duas narrativas
100
Hall, In: Traquina, 2005, p.17
101
Em Cerveja tem-se: Então, para não esquecer do passado, já que dele ninguém se livra e não há nada neste
mundo redondo para doer como um passado, sugiro aqui seja tentada observadas as limitações do nosso
tempo, a nossa falta de tempo e a inconveniência de se fazer trabalho jornalístico não estacionário uma
reportagem bem à “antiga”, muito ao gosto da saudade, como as valsas que falavam de amores. (Antônio,
29/06/1976).
102
Coimbra, 1993, p.16/17
103
Chaparro une o que seriam os “códigos inerentes” de uma atividade jornalística contemporânea, ou o que
poderiam ser: Para o jornalismo convergem as informações, as emoções, os saberes, os conflitos, as
expectativas, as notoriedades e os mitos do tempo presente. É no jornalismo, nas suas aptidões de linguagem,
(jornalística e literária). Coimbra evidencia um quadro amplo de entrega jornalística (a
reportagem como mola mestra) em que os aportes do acontecimento presenciado ou vivido
pelo repórter devam se coadunar aos códigos prementes de uma narratividade (estabelecida
na figura de um narrador-repórter). Assim, uma narrativa jornalística deverá se confluir na
junção entre a informação clara e a investigação vivificada dos acontecimentos:
De qualquer modo, é claro que a valorização do plano de expressão (da função
poética da linguagem) no Jornalismo terá de respeitar o compromisso com a
clareza, decorrente da obrigação de informar. Isto significa que, para o
Jornalismo, ao contrário do que ocorre com a Literatura, estará vetada a
produção de texto radicalmente autocentrado – sem a função referencial da
linguagem através do qual, por conseguinte, se obtenha não alguma forma de
captação do real, mas apenas efeitos expressivos tais como ritmo, rima,
sonoridade, simetria etc. Em suma, para usar uma expressão empregada por
Samira Mesquita em O enredo, o texto jornalístico nunca poderá ser “opaco”,
interpondo-se entre a leitura e os acontecimentos narrados. Ao invés disto,
deverá ser sempre transparente.
104
Por meio das discussões até aqui estabelecidas, é importante visualizar a reportagem
como o gênero jornalístico em que o acontecimento vivificado e contado por um narrador
adquire uma representação mais ampla do que a notícia. A reportagem é para João Antônio
um elemento de suma importância para a práxis jornalística. Ao advertir sua morte por
parte de “doutores da comunicação”, João Antônio envereda um posicionamento acerca do
funcionamento do texto reportivo. Quando faz as entrevistas com os escritores do romance-
reportagem
105
, ou quando busca paradigmas modelares no Novo jornalismo
106
, João
Antônio parece situar o jornalismo em uma esfera de documentalidade realista-naturalista.
que se concentram, hoje, as possibilidades mais amplas e eficazes de realizar intervenções transformadoras da
sociedade. O jornalismo tem também o fascínio do poder. E poderes alheios, dissimulados ou não, que correm
pelas vias e veias da expressão jornalística”. (Chaparro, 2001, p.19).
104
Coimbra, 1993, p.18/19
105
Cosson salienta: Reportagem disfarçada de romance, o romance-reportagem também pode nessa
recuperação do naturalismo, romance disfarçado de reportagem. Nessa segunda opção, conforme leitura bem
conhecida de Flora Sussekind, o romance-reportagem é sucessor do naturalismo do final do século XIX e do
naturalismo da década de 1930, representando um terceiro momento da estética e da ideologia naturalista no
Brasil. (Cosson, In: Castro; Galeno, 2005, p.66).
106
Wolfe contextualiza: Se se acompanha de perto o progresso do Novo Jornalismo ao longo dos anos 60, vê-
se acontecer uma coisa interessante: os jornalistas aprendendo do nada as técnicas do realismo
especialmente do tipo que se encontra em Fielding, Smollett, Balzac, Dickens e Gogol. Por meio de
experiência e erro, por “instinto” mais que pela teoria, os jornalistas começaram a descobrir os recursos que
deram ao romance realista seu poder único, conhecido entre outras coisas como seu “imediatismo”, sua
“realidade concreta”, seu “envolvimento emocional”, sua qualidade absorvente”, ou “fascinante”. (Wolfe,
2004, p.53).
A práxis jornalística, para João Antônio, se torna emancipada se for condicionada à
figura do repórter.
Tem-se, com isso, uma confrontação entre modelos narrativos jornalísticos. Há, por
parte da preconização de João Antônio, o estabelecimento de uma dualidade a respeito do
confeccionar jornalístico, isto é, uma categoria empreendida por “factualidade adestrada”
por manuais de redação; e, outra, envolvida por um quadro imersivo intenso, no caso, a
reportagem.
Em “Cerveja”, o escritor-jornalista situa a reportagem como um gênero à deriva
(marcadamente refém dos avanços pragmáticas em torno da produção jornalística
contemporânea, a partir da profissionalização avançada das redações no decorrer da
segunda metade do culo XX), para, a seguir, traçar diferenciações em relação às
representações normativas do jornalismo contemporâneo:
Houve até um ciclo de conferência, cuja principal bandeira proclamava: “A
reportagem morreu. Viva a reportagem. Bem. Acredito que pelo menos na
cabeça desses senhores, a reportagem tenha morrido considerável tempo.
Na cabeça de alguns moços que conheço, ela continua viva e, não com mais
vitalidade porque não vivemos tempo de indagação, questionamento, diálogo,
debate e investigação. Isso, é outra conversa. Mas que se pretendam
tecnocratizar, gomalizar, engravatar o repórter até o limite de mero apanhador de
press-releases, enquanto investiga; até a condição de repetidor de lead, sub-lead
numa macaqueação de fórmulas estrangeiras (e que talvez devessem ter
permanecido nas terras de origem) enquanto escreve tudo isso é muito vazio, é
bem calhorda, é muito joão-da regra, é bastante relapso e suficientemente bem
preguiçoso.
107
Percebe-se a reportagem como peça indissociável do contato com o objeto. Ou seja,
a investigação é elemento característico, aliás, intrínseco, à reportagem, no entender de
João Antônio. Ao colocar a reportagem e, por conseguinte, o repórter, como decisivos no
jogo de apreensão dos acontecimentos, João Antônio estabelece um atributo idealizado e
utopista de texto no qual a personificação do repórter combativo, sugerido em “Corpo-a-
corpo com a vida”, se materializa, desenhando uma espécie de “poética da reportagem”.
Evidencia, por outro lado, a precarização e pasteurização das regras pertinentes à narrativa
107
Antônio, 29/06 a 01/07/1976
jornalística contemporânea. Há, nessa confrontação, evidentemente, um apelo ao diálogo,
ao contato, à intimidade com a “seiva da realidade”
108
.
2.1. A reportagem e suas peculiaridades
De acordo com Lage (2001), o nascimento da reportagem se tanto pelo advento
das transformações cnicas do jornalismo quanto por uma nova maneira de apreensão do
real, sustentado, sobretudo, pela incorporação de um narrador andarilho e “reconhecedor”
das ruas. Olhando tal constatação, verifica-se que a análise estabelecida por João Antônio,
em torno da reportagem como arcabouço de ação e imersão, não se separa das matrizes do
texto da reportagem. Lage, primeiramente, identifica a reportagem, no contexto do século
XIX, como um gênero configurado nas manifestações de um novo cenário social. Ao
reformular o modo de escrita dos periódicos, os jornalistas praticariam um novo
comportamento de apreensão da realidade:
Do ponto de vista técnico, escritores de folhetins e jornalistas obrigaram-se a
reformar a modalidade escrita da língua, aproximando-os dos usos orais ou
cultivando figuras de estilo espetaculares, ora exagerando no sentimentalismo,
ora incorporando a invenção léxica e gramatical das ruas. Descobriu-se a
importância dos títulos, que são como anúncios do texto, e dos furos, ou notícias
em primeira mão.
109
Mais do que evidenciar um novo comportamento em torno da apreensão do fato
corriqueiro, Lage evidencia no cenário de um jornalismo “educador” ou
“sensacionalista”
110
as marcas textuais presentes em novos aspectos de percepção e
verificação da realidade. Quando identifica a ação jornalística, em uma narratividade no
nível da rua, ou da oralidade, o autor desenha um mapa onde um novo narrador-jornalista
desempenhará funções mais íntimas com o quadro social. Não por acaso, a partir desse
fenômeno, Lage dizer que:
108
In: BULHÕES, Marcelo. Jornalismo e Literatura em Convergência. São Paulo, Ática, 2007.
109
Lage, 2001, p.15
110
Lage orienta o momento educador e sensacionalista da reportagem: A vertente educativa se explica porque
a incorporação dos novos contingentes populacionais à sociedade industrial implicava mudanças radicais de
comportamentos e compreensão das relações humanas (...) a vertente sensacionalista justifica-se porque, para
cumprir a função sociabilizadora, educativa, devia-se atingir o público, envolvê-lo para que lesse até o fim e
se emocionasse. (Lage, 2001, p.14/15).
Repórteres passaram a ser bajulados, temidos e odiados. A reportagem colocou
em primeiro plano novos problemas, como discernir o que é privado, de
interesse individual, do que é público, de interesse coletivo; o que o Estado pode
manter em sigilo e que não pode; os limites éticos do comércio e os custos
sociais da expansão capitalista.
111
Em verdade, a reportagem passa a reproduzir novos significados sociais; funciona,
assim, como fábrica de sentido de mundo; ordena, por conseguinte, aspectos, a então,
indevassáveis, da sociedade.
Nesse bojo, o componente narrativo oriundo da reportagem, personificado no
repórter, torna-se um agente a permear as ruas, os espaços percorridos na cidade, na ânsia
em converter a realidade aos ditames de novas representações. Embora surja como
componente atrelado ao sensacionalismo ou à fetichização, a reportagem torna-se, com o
passar do tempo, o nero jornalístico que evidencia uma verossimilhança de cunho
predominantemente realista. Desse modo, o repórter é agente e também testemunha. No
nível da observação, ademais, é onde ele se localiza. O jornalista, instaurado na rua, no
diálogo com as fontes, se torna um “tradutor” de vozes sociais, dentre outras possibilidades.
O repórter trabalha, dessa maneira, com o real escapando às mãos. Essa nova maneira de
narrar coloca a informação noticiosa em um novo patamar. Ou seja, é pela verificação in
loco, ou pela pesquisa expandida, que a realidade se fundamentará (social, cultural e
economicamente).
O repórter, portanto, ao testemunhar o universo do fato, expande a informação
jornalística aos planos de uma contextualização social maior. Lage verifica tal mudança:
O fato, porém, é que a informação [com o advento da reportagem] deixou de ser
apenas ou principalmente fator de acréscimo cultural ou recreação para tornar-se
essencial à vida das pessoas. E o âmbito da informação necessária ampliou-se
muito além da capacidade individual de acesso do homem comum a outras
fontes – textos didáticos, documentos oficiais etc.
112
O jornalista ou, mais precisamente, o repórter, se configura como um narrador
envolvido com a verificação mundana, seja por meio do contato visceral, seja por realizar
pesquisas e investigações. A observação e a pesquisa fazem do repórter um ser envolto por
111
Lage, 2001, p.16/17
112
Lage, 2001, p.21
determinações altamente subjetivas e vinculado às transformações do labor textual
jornalístico, modulado por padronizações. Assim, a narrativa jornalística, estabelecida pela
reportagem, coaduna-se, estreitamente, com códigos técnicos de apreensão da informação,
de construção de histórias
113
, de acontecimentos: pauta, angulação, captação, redação,
narração e edição.
No fluxo do labor jornalístico é que o narrador-repórter se afinca como um
representante autônomo da verificação factual. Kotscho (2003) estabelece uma
indissociável união: o repórter e a cidade. É na rua que o repórter irá construir seus
objetivos, bem como lidar com eventuais improvisações. Nesse contexto, a confecção de
uma reportagem se aproxima à experiência mais vigorosa. Assim, Kotscho diz:
Com pauta ou sem pauta, lugar de repórter é na rua. É que as coisas
acontecem, a vida se transforma em notícia (...) Mesmo um assunto rotineiro
como uma enchente na cidade, por exemplo muito sol ou muita chuva serão
notícia até o fim do mundo -, pode acabar rendendo matéria assinada na primeira
página, se você já não sair da redação derrotado com aquele papo: pô, outra vez
essa mesma droga, justo comigo.
114
No entender de Kotscho, a reportagem se solidifica, impreterivelmente, no ensejo de
sua própria prática, isto é, é pelo contato do repórter com o assunto a ser coberto que se
confirma a veracidade. Dessa maneira, a notícia empreendida objetivamente se choca com a
reportagem (pensadas como gêneros jornalísticos distintos), com a proposição estabelecida
por Kotscho. Há, na reportagem, ao contrário da notícia, um endereçamento a algo
expandido. Trata-se de uma distinção entre reportagem e notícia em sentido estrito
O repórter funciona como um decodificador. A narração empreendida por ele se
mostra, intensamente, alicerçada às esferas rítmicas do cotidiano, da vida. Os
acontecimentos cobertos pelo repórter são otimizados a um grau de sugestão, em relação ao
ser decodificado, de muito mais impacto.
Contextualizando, o repórter, ao ser agente e testemunha dos aspectos verificáveis,
muitas vezes fincado no seio da rua (com suas subidas e descidas), irá descrever universos
aparentemente desconexos. O fator de inteligibilidade e/ou coerência do real se constrói, na
113
Traquina adverte que outro valor-notícia de construção é a dramatização (...). Por dramatização
entendemos o reforço dos aspectos mais críticos, o reforço do lado emocional, a natureza conflitual.
(Traquina, 2005, p.92).
114
Kotscho, 2003, p.12
reportagem, pelo sinal aberto da vivência sedimentada. Logo, desde a pauta até a edição de
uma reportagem, há um extremo fulcro de intimidade entre um narrador presente e
andarilho e suas possíveis impressões e recortes.
É evidente que o processo criativo se mostra enlaçado à práxis textual da
reportagem. Porém, há, como se viu, um ordenamento gico e técnico que faz com que o
repórter pesquise e fundamente seus propósitos (o enfoque da angulação, as fontes
escolhidas, o dead line estabelecido, a captação e os dados empíricos). Lage reforça o
caráter metodológico do trabalho do repórter:
O repórter é, portanto, mais do que um agente inteligente, tal como o descreve a
atual teoria da inteligência artificial. Além de processar dados com autonomia,
habilidade e reatividade, modela para si mesmo a realidade, com base no que
constrói sua matéria. Pode-se chamar isso de intuição, faro ou percepção. Mas
nada tem de mágico ou misterioso: é apenas uma competência humana que,
como todas as outras, pode ser aprimorada pela educação e pelo exercício.
115
Com as premissas levantadas, até agora, em torno da reportagem, impõe-se dizer
que sua estrutura lógica se modela aos liames de uma verificação pulsante da realidade,
estabelecida, conseqüentemente, com o ideário expandido de verificação dos
acontecimentos. Dessa maneira, a reportagem se mostra, grosso modo, como o gênero
jornalístico advindo de uma interpretação de vida.
Assim, se a notícia apreende um quadro de referências informativas, e as colunas de
crônica e articulistas são emolduradas pelo teor opinativo, a reportagem representa, por
vezes, o quesito do jornalismo interpretativo. O assunto é cheio de controvérsias,
evidentemente. Ao categorizar e diferenciar o jornalismo interpretativo
116
do jornalismo
investigativo, Lage busca, em uma terceira via, um modelo que resuma as diversas marcas
de que a reportagem dispõe, inclusive e, sobretudo, na aproximação com a narrativa
literária. Quando fala do jornalismo envolto pela idéia de uma precisão, retoma a
experiência dos novos-jornalistas estadunidenses:
115
Lage, 2001, p.27.28
116
Lage compara: O jornalismo interpretativo com viés de opinião contestadora teve seus momentos de maior
brilho, no século XX, na Europa, em países em que os intelectuais participam ativamente do sistema político
(...) o jornalismo interpretativo consiste, grosso modo, em um tipo de informação em que se evidenciam
conseqüência ou implicações dos dados (...) a concepção de uma reportagem investigativa pode decorrer de
várias experiências: pequenos fatos inexplicáveis ou curiosos, pistas dadas por informantes ou fontes
regulares, leituras, notícias novas ou a observação direta da realidade. (Lage, 2001, p.137/138/139).
A constatação de que o repórter não pode, ou não deve, se inocente e passivo
quanto propõe a tradição do ofício e de que a objetividade que se persegue não
pode ser atingida por inteiro da mesma forma que, em ciência, não existe
medição sem erro levou alguns jornalistas, na década de 1960, a defender a
utilização de técnicas literárias para o aprofundamento da realidade, a busca de
essências, no sentido que essa palavra tem na filosofia alemã. O movimento do
novo jornalismo, proposto, entre outros, por Jimmy Breslin e Tom Wolfe, teve
adeptos muito conhecidos, como Truman Capote e Norman Mailer.
117
Com tais constatações, evidencia-se que o jornalista-repórter é convidado à
interpretatividade, mas também é envolto pela pesquisa técnica-investigativa. Essas
características do trabalho do repórter permeiam uma forma de ver a sociedade circundante.
Nesse sentido, as peças usadas para tal empreendimento se colocam como partes de uma
narratividade singular. Ademais, a assimilação da reportagem como núcleo de
enfrentamento, de comprometimento, se coloca como um atributo intenso de jornalismo.
Como se viu, a reportagem tem, “na sua carne”, o germe de entendimento mais
íntimo com os temas radiografados. Parece haver, em Corpo-a-corpo, tanto quando a
preconização, quando ocorre a confecção do texto de reportagem, a idéia muito clara de
uma práxis alicerçada pela imersão e materializada pela corrosividade social e temática
com a qual trabalha.
Ainda no que concerne à reportagem como mola-mestra interpretativa (social,
cultural etc), Traquina (2005) localiza, em um dos modos de visualização do jornalista, a
dramatização oriunda, sobremaneira, do contato do repórter com o objeto retratado do
valor-notícia. Assim, diz que:
Outra característica da maneira de ver essa comunidade interpretativa [o estilo
jornalístico] é também a tendência para estruturar os acontecimentos em torno
dos indivíduos. As ‘estóriasde “interesse humanocentram-se em indivíduos
em situações contingentes ou em paradoxos atuais.
118
Ainda em relação ao estatuto do jornalismo interpretativo, Lima (1995), ao retomar
o estudo pioneiro realizado por Luiz Beltrão, caracteriza os preâmbulos de um jornalismo
afincado na experiência da presença, do pertencimento, da observação fundada:
117
Lage, 2001, p.140
118
Traquina, 2005, p.49
Busca [o jornalismo interpretativo] não deixar a audiência desprovida de meios
para compreender o seu tempo, as causas e origens dos fenômenos que
presencia, suas conseqüências no futuro. Vai fundamentar sua leitura da
realidade na elucidação dos aspectos que em princípio não estão muito claros.
Almeja preencher os vazios informativos, conforme a terminologia de Luiz
Beltrão.
119
Necessita-se, a partir de agora, localizar as marcas textuais internas da reportagem.
2.2. A Narração e a Descrição: pulsações nas reportagens do Corpo-a-corpo
Em O texto da reportagem impressa, Coimbra (1993) delimita as duas faces do
texto em reportagem. Para ele, a estruturação se em um nível aberto, contextual,
condicionado ao extraverbal. Em outro pólo, o texto se apresenta como organicidade de
seus elementos internos. É pela segunda face do texto (o texto interno) da reportagem que
Coimbra sedimenta três modalidades: a reportagem dissertativa, a reportagem narrativa e a
reportagem descritiva.
Tomam-se, neste trabalho, as duas últimas estruturas (narrativa e descritiva) a fim
de que se possa emoldurar um painel representativo das reportagens realizadas em Corpo-
a-corpo. Somado a isso, o pressuposto que se levanta, evidentemente, é que, em alguns
textos de Corpo-a-corpo, ocorre o processo narrativo e descritivo evidenciado na
estruturação de Coimbra.
Na reportagem narrativa ocorre um processo de demarcação temporal em que os
aportes para tal uso sugerem fatores de anterioridade e posterioridade. Assim,
A estrutura do texto da reportagem narrativa não se apóia num raciocínio
expresso. Sua característica fundamental é a de conter os fatos organizados
dentro de uma relação de anterioridade ou de posterioridade, mostrando
mudanças progressivas de estado nas pessoas ou nas coisas.
120
A partir desse enfoque surgem, no cerne da caracterização, elementos
indispensáveis em uma narrativa em prosa: a expressão do tempo, do espaço e os
119
Lima, 1995, p.25
120
Coimbra, 1993, p.44
personagens em cena. No tempo
121
estabelecem-se, no plano textual, acelerações,
retardações da narrativa por meio de recursos como saltos temporais, ou digressões
estabelecidas
122
. Além dos demarcadores de tempo, o espaço da narrativa se evidencia em
três níveis: o espaço físico, o espaço social e o espaço psicológico
123
.
Abaixo, localizar-se-ão marcas em reportagens da coluna Corpo-a-corpo
(especificadas internamente nas bases fincadas por Coimbra) com o propósito de,
evidentemente, acompanhá-lo em uma espécie de sistematização.
Em “Dentro da miniguerra do metrô”, o narrador-repórter identifica o processo de
desintegração e desapropriação de casas com o avanço das linhas do metrô carioca. No
plano interno do texto, ocorrem saltos e digressões temporais em um espaço físico e social
de precariedade. Em tal ambientação
124
, também se fundamenta um espectro psicológico, já
que se evidenciam sugestões intrínsecas aos desejos e anseios dos personagens em cena.
a notação de um narrador-repórter a percorrer o espaço demarcado em uma
narrativa. Assim, no início do texto, há a apresentação de uma primeira personagem:
Rita Soares da Silva encontra o marido à noite. Ele sai de casa, perde o
almoço, anda que anda em busca de trabalho. Gasta sapato, queima os nervos,
pensando na mudança forçada. Em compensação, ela almoço para quatro
operários do Metrô.
125
121
Reis e Lopes sustentam que o relevo do tempo como categoria narrativa decorre antes de tudo da condição
primordialmente temporal de toda a narrativa. (Reis; Lopes, 2002, p.295).
122
Coimbra elenca quatro modalidades de expressão do tempo narrativo: tempo psicológico: Não tem
correspondência com medidas temporais objetivas porque é composto por uma sucessão de estados internos,
subjetivos; (...) tempo físico: é o tempo da natureza, do cosmo. Qualquer sistema de relação entre eventos, em
qualquer ponto do Universo pode medi-lo. Nele, o presente é percebido em função do passado e do futuro;
(...) tempo cronológico: é o tempo dos calendários, portanto, um tempo socializado, público. Seu marco pode
ser um “acontecimento qualificado” qualquer; (...) tempo lingüístico: os eventos são organizados a partir de
um marco temporal instalado no texto um “agora” que (...) é apenas um eixo temporal que define o que é
passado e futuro na narrativa. (Coimbra, 1993, p.51/52).
123
Coimbra sistematiza: espaço físico: cenário natural que serve ao desenrolar da ação da movimentação das
personagens; (...) espaço social: apreende as atmosferas que reinam em certos ambientes sociais; (...) espaço
psicológico: por se constituir em função da necessidade de tornar evidente atmosferas densas, interfere no
comportamento das personagens, pertubando-as. (Coimbra, 1993, p.67/68).
124
Coimbra esclarece as semelhanças e as diferenças em relação aos conceitos de espaço e ambientação,
elucidados por outras fontes teóricas: espaço físico, espaço social e espaço psicológico compõem a variedade
de aspectos que o espaço pode assumir na narrativa. Diversas, também, são as formas pelas quais o espaço
em qualquer uma das suas variedades – é introduzido na narrativa. Iniciemos o estudo destas formas
apresentando em termo ambientação criado por Osman Lins, que, além de romancista, foi um teórico da
narrativa. O escritor, segundo Dimas, prefere reservar a palavra espaço para designar dados da realidade,
denominando ambientação de “o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na
narrativa, a noção de um determinado ambiente”. (Coimbra, 1993, p.68/69).
125
Antônio, 21 a 23/04/1976
Nota-se que, em um processo de averiguação jornalística, as “funções” do marido
de Rita são evidenciadas pela descrição de sua esposa, assim como o lugar que ela almeja
no centro da ambientação colocada, a saber: o lugar das obras das novas estações de metrô
é identificado por meio das condições dos próprios atores. Para reforçar as nuances do
espaço apreendido, o repórter parte para uma digressão em um processo de retardação da
narrativa – ao explicar, no segundo parágrafo, um reforço da apresentação espacial, e
também noticioso:
Pobreza de um lado e de outro dessa miniguerra. Do que avança, para demolir as
casas; do que se encolhe, à espera da derrubada. Acomodação (sofrida) dos dois
lados: onde deixa de almoçar um, almoçam mais quatro. Não chega a ser uma
guerra. Os moradores sabem que estão perdendo.
126
O repórter sugere uma batalha, um conflito reduzido no espaço apreendido: os
moradores à espera da demolição versus os operários em trabalho. Nessa condição de
precariedade (em ambos os pólos), estabelece-se um confronto de raiz social. Há, portanto,
em uma percepção de tempo psicológico, clara imersão de um narrador-repórter onisciente
em 3ª pessoa a empunhar seus propósitos. A retardação ocorre sempre que se instaura um
bloco de informação descritiva. Ao se pesar, porém, a interpretação de tal narrador, no
centro da ação desenvolvida, os gestos adquirem um quadro representacional maior, ou
seja, percebem-se, na narrativa, tons de denúncia à falência dos bens simbólicos do
progresso, em choque com quadros verificáveis que o repórter pontua como carências e
mazelas. Voltando a perfilar Rita, o repórter contextualiza a ação, ao reproduzir sua fala.
Ocorre aí, evidentemente, um diálogo, incorporado sobremaneira pela presença reportiva
do jornalista, bem como emoldurada pela entrevista como cnica de apreensão, acarretada
na materialização do discurso direto livre na reportagem:
Ela pensão para quatro homens das construções do Metrô, costura para fora e
vive uma espera confusa, entre medrosa e descrente:
- Isto vai cair quando? Ninguém diz nada.
127
Coloca-se uma tensão conflitiva ante um tempo incompreendido (o tempo da ação
das obras, o tempo que falta para a demolição etc). Nessa espécie de pausa narrativa,
126
Idem
127
Idem
evidencia-se uma clareação entre sumário
128
e cena
129
como códigos espaciais da ação do
repórter.
Assim, o narrador-repórter demarca, através do espaço vivificado, em torno de um
tempo conflituoso, digressões em torno das especificidades do local, assim como emoldurar
em flashes (num entendimento acelerativo da narrativa) aspectos nevrálgicos da chamada
miniguerra. Nesse contexto, a reportagem adquire um ar cinematográfico ao se configurar
constantemente solta em seus detalhamentos, sendo que o repórter prossegue mostrando o
local em outras enveredações, descrevendo as nuances explicativas:
Aquele trecho da Julio do Carmo fica nas barbas do prostíbulo mais baixo da
cidade e que alguém, letrado e importante, um dia classificou de zona limítrofe
entre a condição humana e a animal.
130
Há, na “miniguerra” estabelecida pelo repórter, uma delimitação de tons de certa
marginalidade social conflituando-se com o progresso capitalista. Essa talvez seja a grande
peça decisória nas ações presenciadas pelo narrador. Dessa maneira, o repórter-narrador irá,
em um modo de apreensão interpretativo, jornalístico, respaldar visões destoantes, nas falas
diretas dos personagens contrários e favoráveis à demolição das casas:
- Já devia ter caído há muito tempo. No dia em que resolveram fazer o Metrô no
Rio de Janeiro, deviam ter derrubado tudo isso para ninguém ter prejuízos.
Derrubavam, indenizavam os donos e pronto. Agora, fica este chove-não-
molha, nessas casas que nem é preciso demolir, que elas vão cair de podres.
131
Depois da fala, há a pontuação dos vários atores da miniguerra (o português da
Transportadora Vila Verde, os homossexuais da “casa das bichas”). Enfim, a expansão
do conflito para um arco referencial maior do lugar. Nesse processo de expansão do espaço
físico a um espaço social, o repórter salienta aspectos pretéritos à ação, evidenciando, na
narrativa, peculiaridades do processo e dos agentes da miniguerra do metrô:
128
Reis e Lopes esclarecem que por força da sua específica configuração e funções técnico-narrativas, o
sumário redunda numa notória desproporção durativa que pode ser verificada pelas diferentes dimensões
temporais da história contada e do discurso que a relata. (Reis; Lopes, 2002, p.293).
129
Reis e Lopes identificam a cena compreendida no domínio da velocidade, imprimida ao relato, a cena
constitui a tentativa mais aproximada de imitação, no discurso, da duração da história. De fato, a instauração
da cena traduz-se, antes de tudo, na reprodução do discurso das personagens, com respeito integral das suas
falas e da ordem do seu desenvolvimento. (Reis; Lopes, 2002, p.233).
130
Antônio, 21 a 23/04/1976
131
Idem
A chegada da cerca azul em torno do quarteirão coincidiu com o desemprego do
seu marido [reportando-se à moradora Ana Paula], que hoje “sai de casa bem
cedo procurando emprego e só volta, muitas vezes, sem almoçar”.
132
Ao usar as aspas, o narrador-repórter evidencia um outro tipo de fala. Os gestos
preenchidos pelas personagens adquirem facetas díspares, assim como os envolvidos na
batalha empreendida entre o progresso e a resistência. No trecho abaixo, o repórter localiza
um jovem morador do local e identifica simbologias presentes em um tempo e num
espaço, evidentemente maior do que as agruras da ciruncanstacialidade do avanço do
metrô. Por isso, a personagem esclarece uma macro-estruturração do ambiente narrado:
- Isto aqui pode estar bom para quem não tem nada a perder e aponta para
os tipos ressacados, sentados à porta do botequim.
É um português ainda moço, de 29 anos, com onze de Brasil e três anos
trabalhando naquele barzinho. Tem uma ponta de ambição indisfarçável,
inquieta, de quem espera ainda ganhar muito:
- Isto aqui afora está morto. E eu não tenho nenhum outro negócio.
Ele não fala na sinuquinha ao lado, onde nas três mesinhas o jogo rola das sete
da manhã á meia-noite, além das bebidas e tira-gostos e onde, nada mais é
necessário do que uma caixa, um chão esburacado, nenhuma luz durante o dia,
porque a casa tem cinco portas de ferro e entra sol por todos os lados haja
cerveja gelada.
133
A partir daí, o repórter abandona o tempo da miniguerra e, conseqüentemente, a
ambientação se reproduz com a força da existência indiferente ao avanço das linhas do
metrô carioca. Assim, o narrador-repórter relativiza as cenas anteriormente confeccionadas
para tecer uma espécie de conclusão narrativa. No final da reportagem, o narrador
questiona a importância dos trabalhos da linha do metrô (nota-se, que mesmo perfilando as
ruas, não se sabe muito bem onde se encontra a famigerada obra na cidade, salientando a
inefabilidade e destino da Rua Julio do Carmo, ao demonstrar, nas atitudes do seres
observados por ele, uma espécie de síntese das agruras e das miniguerras cotidianas):
Acontece que, apesar da cerca azul, as pessoas continuam passando, enchendo
os sapatos de naquele quarteirão da Rua Julio do Carmo, e o português tem a
sua grande geladeira de madeira ( de espelhos laterais) cheia de cerveja. E
132
Idem
133
Idem
aproveita tudo. Vende até cigarro a “cigarro picado”, como diz o povo do
Mangue.
134
Em outras reportagens da coluna Corpo-a-corpo, a instância do narrador-repórter
também se coaduna às experiências da observação e do contato espacial (ora perfilando
atores, ora imergindo no centro ação da apreensão jornalística).
Abaixo se encontra um quadro-resumo de expressões narrativas empreendidas por
um narrador-repórter (em demarcações espaço-temporais) nas diversas reportagens
evidenciadas em nosso estudo:
Tabela 01
Título Assunto Data Marcas narrativas do narrador-repórter
Aos 97
anos (I e
final)
Perfil de Jorge
Correia
Machado
8 e
9/04/1976
“Na rua de terra, a uns quinze minutos do centro de
Vassouras (demarcação espacial), a casa do velho
(demarcação do personagem) em couves gigantes no
lugar do jardim, dois pavimentos (processo
descritivo), foi construída por ele mesmo e tem o seu
nome (angulação da informação), homenagem da
cidade ao mais velho morador.
Nosso
compadre e
profeta
Nelson
Cavaquinho
(I a final)
Relação de
Nelson
Cavaquinho
com a cidade
e o samba
29/04 a
6/05/1976
“E até as marafonas fanadas que arrastam asas no bom
Marche (demarcação espacial), buscando algum
otário ou patrão de bebida, trinta anos de janela, caras
machucadas da vida e empetecadas de pintura,
aplaudem aos gritos quando o poeta termina e os dedos
descansam de bordões e primas (processo descritivo):
- Esse Nelson Cavaquinho é do chapéu”. (discurso
direto)
Marítimos Radiografia
do cais de
Santos pelos
olhos de duas
prostitutas
14/05/1976 “A briga acabou. Rita
Pavuna, Odete Cadilaque e os marinheiros
dinamarqueses desguiam do cabaré, procuram um
restaurante (acompanhamento dos personagens em
ação). Dão ao diabo o show musical e o strip-tease que
se anuncia para as três da manhã. A fome bateu nos
quatro” (angulação da informação).
Pôquer,
Dama e
Buraco no
sindicato
dos
Mendigos.
Características
do cordão da
Bola Preta
25/05/1976 “No salão da barbearia, manicure, engraxate, uma sala
com televisor. (demarcação espacial) Ao redor das
pilastras e nas paredes, os ventiladores giratórios”.
Mini Perfil da
prostituta
Mariazinha
Tiro a Esmo
27/05/1976 “Treze anos. Maria já se mexia bem como sambista
num bloco de Catumbi. (descrição da personagem)
Pouca roupa, sempre uma das atraentes. Os passistas
observavam. Gostavam: - Isto aqui de recheio e mulher
dentro dessa roupa”. (angulação da informação)
A Rua está
tocada
O cotidiano
dos
04/08/1976 “Na marca das cinco horas o pessoal vai saindo.
(demarcação temporal) E se toca para as casas,
134
Idem
trabalhadores
do porto
noutros cantos da cidade. menino, Gonzaga.
Marapé, Macuco. Ou Ipanema, atravessando o mar”.
(apresentação das personagens)
Araçá Perfil e
conversa com
Araci e
Almeida
07/08/1976 “Nos últimos dez anos, envelheceu um pouco esta
verdade é fotográfica. (demarcação temporal) Mais
gorda eu magra, humanamente viva e espiritualmente
ágil, Araci de Almeida reaparece e os donos da bola se
assustam”. (descrição da personagem)
Ficar no
“caritó
Os costumes
do interior
27/08/1976 “E que a cidadezinha do interior não tem outro lugar
a que se ir, se vai ao footing domingueiro. Assim, o
footing expõe virgens de todas as idades”. (angulação
da informação)
Homem do
povo
Ismael
Silva
A relação do
sambista com
o samba
22 a
24/09/1976
“Ismael Silva estava deitado em sua cama na
enfermaria coletiva do Hospital de Camboa quando
Alcebíades Barcelos chegou com a notícia:
(demarcação espacial e temporal) - Ismael. O Chico
Viola mandou dizer que 100 mil reís pelo Me faz
carinhos” se você quiser vender para ele”. (discurso
direto)
Percebe-se em todos os trechos, bem como na reportagem “Dentro da Miniguerra do
Metrô”, forte emprego de elementos descritivos. Quando se tece uma narrativa é relevante
o uso de componentes que reforcem os caracteres espaço-temporais. Além disso, as
personagens são evidenciadas por detalhes descritivos de seus aspectos físicos, sociais e
psicológicos. Pensando na estrutura de uma reportagem descritiva, Coimbra esclarece que é
muito difícil que um texto jornalístico se fundamente, pura e simplesmente, em um
compartimento de detalhes. A partir dessa premissa, o autor identifica três níveis do aparato
descritivo em uma reportagem: fragmento descritivo, bloco descritivo e uma possível
reportagem descritiva
135
.
Na descrição, a imagem desempenha uma função articuladora e funciona como
instrumento fundamental em sua égide. Assim, as percepções são aguçadas por meio das
sensações cognitivas, das agucidades auditivas, visuais e olfativas.
Em “Dentro da Miniguerra do Metrô” se notam tais detalhamentos perceptivos,
quando metaforizações de forte apelo imagético. É justamente com tal apelo que se
delineia, no texto, a configuração de uma narrativa. Trata-se de uma incorporação
(descrição e narração) de atributos da narrativa ficcional à reportagem.
135
Coimbra: Se, (...) tanto o texto narrativo como o dissertativo podem incorporar trechos descritivos, por seu
lado, o texto descritivo pode, também, ter (e, em geral, tem) trechos narrativos e trechos dissertativos.
(Coimbra, 1993, p.90).
Enquanto mulheres ressacadas fogem do sol da mansentando-se nas entradas
do botequim do número 162, ou procuram namoro com os trabalhadores da
Brahma, ali ao lado, a costureira Rita Soares da Silva, que está quatro meses
morando no número 178, tem mais de um mês (“desde que fizeram a cerca
azul”) que ganhou quatro pensionistas para comer em sua casa, todos
trabalhadores nas obras do Metrô e que vivem no alojamento dos operários.
136
Coimbra arremata as singularidades que a descrição pode exercer no texto
jornalístico, com a identificação de uma problemática: a dualidade pessoa
(fonte)/personagem:
É curioso observar que, no Jornalismo, não quando o texto trata de
pessoa/personagem se pode falar em descrição com ações. Com tudo que a
expressão contenha de aparente contradição. Também a respeito da função do
texto noticioso, em forma de pirâmide invertida, quer dizer, com os faros
retirados de sua seqüência temporal e reordenados segundo um critério
extraverbal de importância, fala-se em “descrever o fatos”. A anulação da
seqüência temporal impede, então, que se diga, como seria natural, ser função
daquele texto “narrar os fatos”.
137
Com essa fala de Coimbra, é pertinente que se localizem, portanto, diferenças em
torno de uma narrativa jornalística (emblematizada, sobretudo, pela reportagem narrativa) e
a literariedade presente na narrativa literária.
Embora se saiba que o processo de narração no jornalismo possa estar fincado na
convergência com os ditames criacionais da literatura, como foi visto anteriormente, é
prudente que se verifiquem singularidades textuais aos se reportar a entidade “narrativa” no
confronto ou na junção entre jornalismo e literatura.
Retomando o que foi apontado no primeiro capítulo, em torno das aproximações
entre jornalismo e literatura, evidencia-se o jornalismo como uma narrativa formatizada
histórica e culturalmente pela narrativa do real. Enquanto a criação literária se
instrumentaliza, fundamentalmente, na imaginação personificada pela ficção e pelos
ditames de um experimentalismo não-prescritivo, não técnico. Assim, o texto literário se
transforma em peça chave da chamada literariedade.
138
.
136
Antônio, 21 a 23/04/1976
137
Coimbra, 1993, p.163
138
Silva salienta que a ciência da literatura deve estudar a literariedade, isto é, o que confere a uma obra a sua
qualidade literária, aquilo que constitui o conjunto dos traços distintivos do objeto literário. Este princípio
fundamental das suas doutrinas conduziu logicamente os formalistas à tarefa de definir os caracteres
específicos do fato literário. (Silva, 1976, p.559).
Pensando a narrativa jornalística embutida de valores técnicos, sobretudo -,
Bulhões pontua a caracterização do texto jornalístico regido pela dita factualidade. A
impressão que o autor sugere é crucial para se identificar os liames do jornalismo como um
apreço “narrativo”, “descritivo” da realidade circundante. Apesar de tais elementos se
fincarem a especificidades sociais do jornalismo como instituição:
É claro que a construção da identidade do ofício jornalístico nos termos de uma
espécie de pacto com a realidade palpável acaba por se tornar um instrumento
persuasivo de grande poder de fogo ideológico. Não é difícil ver na ostentação
de ser o jornalismo a verdade factual transplantada” uma perigosa estratégia
discursiva e, a partir daí, desconfiar de uma longa história de ligações perigosas
entre a imprensa jornalística e o poder.
139
Reforçando a desconfiança de Bulhões e, ao mesmo tempo, confrontando o conceito
de narrativa do jornalismo, Traquina contextualiza a terminologia narrativa na polarização
com o item normativo da notícia (marca indissociável da práxis factual). Ao perfilar vários
estudiosos do jornalismo, Traquina fornece um painel em torno da discussão sobre a
narratividade no jornalismo:
Bird e Dardenne defendem que ‘considerar as notícias como narrativas não nega
o valor de as considerar como correspondentes da realidade exterior e
acrescentam que ‘as notícias enquanto abordagem narrativa não negam que as
notícias informam, claro que os leitores aprendem com as notícias’. Gaye
Tuchman sublinha o mesmo ponto quando escreve ‘dizer que uma notícia é uma
‘estória’ não é de modo algum rebaixar a notícia, nem acusá-la de ser fictícia.
Melhor, alerta-nos para o fato de a notícia, como todos os documentos blicos,
ser uma realidade construída possuidora de sua própria validade interna’.
Embora o paradigma das notícias como narrativa não signifique que as notícias
sejam ficção, questiona o conceito das notícias como espelho da realidade.
140
De certa maneira, nota-se, no trecho anterior, uma tentativa de resolução de um
impasse, ou seja, prescrever a atitude textual jornalística como uma narrativa que se
diferencie da narrativa literária. É pelo factual noticioso que Traquina sugere uma
narratividade apreensiva do real, no jornalismo. Nesse sentido, portanto, o jornalismo se
diferenciaria da literatura ao se permitir ser um texto submetido à prova de validade, de
veracidade.
139
Bulhões, 2007, p.26
140
Traquina, p.18/19
Quando se identificaram, aqui, os componentes de um gênero jornalístico, no caso,
a reportagem, verificou-se um entrelaçamento maior entre duas entidades (jornalismo e
literatura). Ao se ver a reportagem como um texto de caráter de observação, de pesquisa, de
diálogo, nota-se que o narrador-repórter é um jornalista imerso na seara da realidade, em
outro nível que não apenas o factual. Ao se deparar com o real, o jornalista-repórter narra o
acontecimento com fluxos, ingredientes e elementos da literatura em número significativo
de vezes. Isso não significa, porém, que a “realidade”, ali preenchida, se materialize em
pura literatura ou, ainda, se destrua a matriz pura e verificável da práxis jornalística
contemporânea. Ademais, é prudente salientar que as convergências entre jornalismo e
literatura em fenômenos como o romance-reportagem e Novo-jornalismo utilizam-se da
reportagem como uma espécie de guia de apreensão de uma maneira própria de narrar
141
.
Viu-se, ainda, que, em Corpo-a-corpo, ocorre não só a prática da reportagem
narrativa/descritiva (ilustrada mais detalhamente no texto “Dentro da miniguerra do
Metrô”). Há, também, uma propositura atrelada às marcas de metalinguagem e
comprometimento de reportagem como algo resolúvel no jornalismo. É pela reportagem,
segundo João Antônio, que o corpo-a-corpo com a vida se fundamentaria no jornalismo.
Localizou-se, inclusive, no texto “Cerveja”
142
, um confronto entre os aspectos da notícia
compartimentada e a reportagem como instrumento de liberdade (de angulação, de pauta,
de redação).
Em “Uma Carta de Minas”, João Antônio escancara os liames íntimos entre o
repórter e o escritor:
Não concordando, lhes direi que tenho um amigo ainda bem acordado, trinta
anos de janela de profissão, que me sustenta existir entre o escritor e o repórter
uma relação incestuosa o seu casamento total talvez gerasse um monstro e,
mesmo por isso, nunca é tentado até as conseqüências finais. Se nós pararmos
nessa coisa da técnica jornalística usual, vamos todos acabar fabricantes de
situações passageiras.
143
141
Bianchin aproxima a experiência da reportagem do contexto do romance-reportagem: O discurso
jornalístico, ao dar preferência a extrema referencialidade, ao reproduzir literalmente as falas dos
protagonistas de acontecimentos, ao usar inúmeras vezes um vocabulário mais técnico, também está buscando
essa transparência impossível ou, pelo menos, procurando eliminar qualquer indício que possa gerar
polissemia. O romance-reportagem, conseqüentemente, ao mimetizar a linguagem da reportagem, vai refletir
essa busca de transparência quando adota certos processos narrativos comuns aos discursos realista e
jornalístico. (Bianchin, 1997, p.118).
142
Presente em “Corpo-a-corpo” entre os dias 29/06 a 01/07/1976.
143
Antônio, 27/03/1976
A reportagem se mostra como um espaço de apreensão, de verificação, de imersão
maior. Assim, a narrativa construída na reportagem é, impreterivelmente, a de reportar o
acontecimento. De acordo com Lima (1995), o jornalismo e a literatura se enamoram,
justamente, com os códigos verificáveis da postura narrativa do repórter (utilizando os
atributos, por vezes, da ficção). Assim, Lima sugere uma junção, em convergências
recentes, entre aspectos da factualidade jornalística com a ficção (principalmente, no que se
refere à narração).
O jornalismo absorve assim elementos do fazer literário mas, camaleão,
transforma-os, dá-lhes um aproveitamento direcionado a outro fim. A literatura
está, até então, basicamente interessada na escrita. Mesmo quando representa o
real, através da ficção, a factualidade concreta, efetiva – de acontecimentos,
personagens e ambientes perfeitamente existentes e nominados, no espaço social
verdadeiro – não é, na maioria dos casos, o item primordial. As exceções
estariam com os livros de memórias, com as autobiografias, com os relatos de
viagem. Mas, grosso modo, não na literatura contemporânea aos primórdios
da imprensa moderna atual a necessidade do reportar, completamente factual. E
é esta tarefa, a de sair ao real para coletar dados e retratá-lo, a missão que o
jornalismo exige das formas de expressão que passa a importar na literatura,
adaptando-as, transformando-as.
144
Percebe-se, nas mais variadas visões, que a reportagem é um elemento de forte
resistência quando se pensa a precarização da profissão jornalística, e, ainda, quando se
nota a sua incorporação aos ditames de uma técnica, alicerçada na pesquisa e vislumbrada à
luz de uma coleta de dados expansiva. Somado a isso, na fala de Lima, verificam-se marcas
internas do texto da reportagem como peças decisórias na convergência com a narrativa
literária (especificamente o conto
145
).
Coimbra, ao demarcar as singularidades da reportagem narrativa, expõe as
problemáticas em torno dos limites entre a narração jornalística e a literária:
O texto literário cria novos significados para as palavras, por desautomatizá-los,
ao estabelecer relações inesperadas e estranhas entre elas. Percebe-se, assim,
que, se existe uma fronteira entre a narrativa literária e a jornalística, ela não é
144
Lima, 1995, p.138
145
Sodré e Ferrari particularizam as semelhanças e fusões entre a reportagem e o conto: A típica reportagem-
conto tem uma estrutura mais orgânica. Geralmente particulariza a ação em torno de um único personagem,
que atua durante toda a narrativa. Os dados documentais entram dissimuladamente na história e o texto
aproxima-se tanto do conto, que incorpora até fluxos de consciência dos personagens. (Sodré; Ferrari, 1986,
p.81).
facilmente demarcável. O plano da expressão do conteúdo informativo é também
valorizado no Jornalismo, em geral, e especialmente na Reportagem Narrativa.
146
Coimbra nota que a essência da informação se coaduna, também, ao contexto de
uma abordagem narrativa de coleta de dados, realizada pelo repórter. Daí, às vezes, a
dificuldade de se clarear, qualitativamente, as marcas distintivas entre factualidade e ficção.
Ao se pensar em “Dentro da miniguerra do Metrô” (aqui ilustrada), vê-se a construção de
um quadro narrativo-descritivo grandioso no qual elementos factuais permeiam a
configuração textual em uma tácita idéia definida de veracidade.
de se salientar, destarte, que as confluências entre a narrativa jornalística e a
literária se desenrolam em outro gênero, bastante sintomático: a crônica. Localizar suas
características como texto, e identificar suas funções em Corpo-a-corpo será a próxima
empreitada.
2.3. O cronista João Antônio em Corpo-a-corpo
De todos os gêneros, a crônica parece se situar mais solidamente quando se pensa a
convergência textual entre jornalismo e literatura. O seu caráter de frame lhe reverbera,
porém, posicionamentos nem sempre benfazejos, principalmente no que se refere à
recepção crítica. Entende-se que a questão do retrato “quase pueril” da crônica moderna se
alia a um espectro de representações que a coloca em ambiente de eterna contemplação,
robustecida pelo lirismo e pelo “tom poético”. Nota-se, contudo, que os componentes
usados para a sua sedimentação são fecundos e duráveis. As expressões “crônica de uma
época” ou “crônica de costumes” reverberam tal faceta de durabilidade da crônica. O
caráter de despojamento de um sujeito (o eu-cronista) alijado das marras inerentes da
notícia – em se tratando de texto jornalístico – faz do cronista o tecelão de imagens
desconcertantes do cotidiano. O cronista se estabelece, ademais, como um narrador de
detalhes escondidos.
A narração da crônica se reveste no texto periodista de sutilezas das quais a notícia e
a reportagem não conseguem captar. Desse modo, a subjetividade do narrador-cronista está
146
Coimbra, 1993, p.18
atrelada, para Marques de Melo, a um funcionamento de pulsão do dia-a-dia, em que
marcas líricas desempenham importante papel apreensivo da vida. Verifica-se que o
cronista se traveste de um jornalista “bisbilhoteiro” e observador (assim como o repórter)
que empreende críticas e opiniões juntando-as com arrebatamentos e/ou sutilezas
descritivas.
Marques de Melo pontua o material cronístico:
Ademais do lirismo que o cronista empresta ao resgate de nuanças do cotidiano,
sua matéria contém ingredientes de crítica social, donde o seu caráter é
nitidamente opinativo. É o palpite descompromissado do cronista, fazendo da
notícia do jornal o seu ponto de partida, que ao leitor a dimensão sutil dos
acontecimentos nem sempre revelada claramente pelos repórteres ou pelos
articulistas.
147
Não se pode esquecer, todavia, que tal “descompromisso” da crônica se alinha a
uma tradição de choques e rupturas, de transformações de sentido e prática jornalísticos.
Sabe-se que o espaço folhetinesco dos jornais foi um pai emblemático do cronista, como
também é conhecida a identificação da crônica como um aparato simbólico de
representação histórica pretérita (a crônica histórica). Na realidade, a crônica moderna
carrega em si marcas de suas mudanças como gênero, e sobrevive às intempéries técnicas e
profissionais do jornalismo
148
.
Entretanto, a crônica também se apresenta como um gênero de difícil categorização.
Sua matriz se afinca no ambiente jornalístico, evidentemente, porém, sua poeticidade lhe
reveste caráter literário.
Talvez, o desdém da crítica que a persegue seja fruto da visualização de seu material
como algo passageiro e circunstancial. Eis um debate em torno de seu posicionamento
como gênero e como texto. A ligação tênue entre uma função jornalística e um espírito
literário coloca, muitas vezes, a crônica em um nível baixo, desimportante, rasteiro.
147
Melo, In: Castro; Galeno, 2005, p.150
148
Antonio Candido pontua as transformações pelas quais a crônica passou: Ao longo deste percurso, foi
largando [a crônica] a intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo), para ficar
sobretudo com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se
afastou da gica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro. Creio que a fórmula
moderna, onde entra um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o
amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma. (Candido, 1995, p.15).
Antes de se entender como a crônica se sustenta no nível do “rés do chão”
149
, é
prudente que localizemos os problemas aqui sugeridos.
Essa proximidade da crônica em relação à literatura nem sempre lhe confere o
mesmo status dos gêneros literários como o romance, o conto ou o poema.
150
Estendendo a constatação evidenciada por Marques de Melo, Dimas (1974)
identifica a ambigüidade presente na crônica, ao indagar: construir-se [a crônica] na
segurança fossilizada da literatura, ou se debater no devaneio abrupto do jornalismo? Ao
pontuar a vontade de setores intelectuais no tratamento analítico da crônica, Dimas
verifica possíveis razões intrínsecas ao seu código:
A inequívoca feição financeiramente imediatista e utilitária da crônica, enquanto
meio de dilatar o orçamento do intelectual-jornalista; a adesão estreita do objeto
ao Tempo, o que lhe confere caducidade breve.
151
Nota-se um enquadramento do material cronístico às esteiras da efemeridade, bem
como um envolvimento numa práxis utilitarista. No entanto, Dimas desdobra a demarcação
em torno da “caducidade” da crônica e tece um painel representativo das facetas nas quais
ela está alicerçada. Desse modo, evidencia diferentes funções, percebidas, no mais, em seu
caráter de urgência decodificadora da cotidianeidade. É por meio de uma pulsão com o
cotidiano que a crônica se estabelece como um gênero de forte impacto documental. Nesse
contexto, Dimas polariza, ao usar as funções da linguagem de Jakobson
152
, os fatores de
tendências jornalísticas e aspectos literários:
Ora, acreditamos que resida exatamente na distinção entre as funções da
linguagem, segundo proposta jakobosiana, o nó da questão. Isto é, cumpre
considerar a primazia de uma ou outra função referencial ou poética na análise
do discurso verbal. Se diante de um texto jornalístico é óbvio que dispensaremos
maior cuidado para a sua eficiência referencial; se diante de um texto literário,
para sua eficiência de poeticidade.
153
149
expressão utilizada por Antonio Candido no ensaio “A vida ao rés-do-chão”.
150
Melo, In: Castro; Galeno, 2005, p.152
151
Dimas, 1974, p.47
152
Particularmente as funções referencial e poética.
153
Dimas, 1974, p.48
Com a localização da poeticidade como arcabouço da eficácia literária, Dimas
coloca em xeque interpretações casuístas sobre a crônica, inclusive em sua matriz de
gênero. Dimas diz que o lirismo e o despojamento da crônica são elementos de sua própria
materialização. E que, com o contato com o referencial altamente informativo, se transmuta
em um gênero de vieses extremamente complexos. É possível que se localize nessa
bifurcação entre referencialidade e poeticidade uma tendência opinativa discursiva.
Contudo, Dimas parece dizer que certa subjetividade da narração cronística se admite,
justamente, como livre, solta das amarras históricas ou folhetinescas que a sustentaram
historicamente. Na busca por uma marca de literariedade, a crônica se configura em um
gênero bipolar, difuso. Daí a sua irrascibilidade, sua ambivalência:
Através desse exame preliminar, somos levados, então a crer que o processo de
fusão dos elementos estimulantes liberta a crônica do contingente estreitamente
histórico, para empurrá-la em direção a um nível menos ou mais intenso de
literariedade; enquanto que seu apego a tais contingências, deixando facilmente
exposto o estímulo inicial, favorece o emparelhamento ou a justaposição do fato
desencadeador à opinião do cronista. E, neste caso, compromete-se a
literariedade em benefício da referencialidade.
154
A leitura de Marques de Melo se confronta com a de Dimas. Outro ponto a ser
analisado, sobre a crônica, é a personificação de seu estatuto, no sentido de desenlace
proposital com a importância sisuda. Candido, no célebre ensaio “A vida ao rés do
chão”
155
, investiga as nuances da crônica à luz de um emblema: a sua localização envolta
em um nível de ação muito estreito, muito desinteressado”. Candido crê que o cronista do
dia-a-dia fundamenta, no ato da escrita, relações de extrema singeleza com o universo que
empreende e alarga tais bases líricas no contato com um interlocutor cooptado pelo lirismo
em uma espécie de “monólogo comunicativo” intenso e, paradoxalmente, “desimportante”,
casual.
Parece às vezes que escrever crônica obriga a uma certa comunhão, produz um
ar de família que aproxima os autores da sua singularidade e das suas diferenças.
É que a crônica brasileira bem realizada participa de uma língua geral rica,
irônica, casual, ora precisa e ora vaga, amparada por um diálogo rápido e
certeiro, ou por uma espécie de monólogo comunicativo.
156
154
Dimas, 1974, p.51
155
In: Candido, 1995.
156
Candido, 1995, p.22
Na base de um despojamento, mas também no com o referencial, a crônica se
evidencia como uma espécie de comentário aguçado da realidade factual, enredada por
searas de expressividades intensas. Assim, o cronista se estabelece como um agente
hibridizador (entre poeticidade e referencialidade), pois enxerga, ou radiografa, a realidade
sobre outros prismas, outras visões. A justaposição evidenciada por Dimas entre a
poeticidade e o referencial parece se conluiar com a declaração do jornalista Marcelo
Coelho, em um ensaio de título sugestivo, “Notícias sobre a crônica”
157
:
O que se pode dizer, de uma forma bem genérica, é que a crônica se apresenta
como um texto literário dentro do jornal, e que sua função é a de ser uma espécie
de avesso, de negativo da notícia. Cada notícia procura a todo custo convencer o
leitor de que determinado fato é importante, é crucial. A crônica vai sempre
insistir na desimportância de tudo. Em cada notícia o assunto é o principal, isto
é, o jornalista está mais preocupado em transmitir a informação, em servir o seu
assunto, do que em fazer literatura. Na crônica, o assunto é o de menos, e muitas
vezes a melhor crônica é a que justamente aponta para o fato de não ter assunto
nenhum. Penso em algumas crônicas de Rubem Braga, onde nada acontece.
158
Pode-se identificar o cronista João Antônio desenredando possíveis causas
“desimportantes”. Ao se vestir com os olhos aguçados sobre a atualidade cotidiana, em
assuntos que se repetem na coluna
159
, o jornalista-escritor se envereda pelo ato cronístico,
no sentido de que sua propositura em relação às “notícias quentes” adquire outra faceta que
não a simples “notícia jornalística”. Além disso, textos que remontam a temas em torno
da metalinguagem
160
. Têm-se, portanto, intromissões cronísticas em Corpo-a-corpo em que
157
In: CASTRO, Gustavo de; GALENO, Alex. Jornalismo e Literatura: a sedução da palavra. São Paulo,
Escrituras, 2005.
158
Coelho, In: Castro; Galeno, 2005, p.156
159
“Moleque e filho bastardo” (10/03/1976), “Cabeçadas do Crioulo doido” (17/03/1976), “Ciro”
(18/03/1976), “Tesouras e engarfadas” (05/04/1976), “A Lapa acordada para morrer” (14/04/1979), “Os
tempos eram outros” (26/04/1976), “Matar a morte” (27/04/1976), “Ficou na saudade” (12/05/1976),
“Certidão de nascimento perdida” (20/05/1976), “A evitada das gentes” (21/05/1976), “Carnaval fora”
(22/05/1976), “Nosso tempo” (24/05/1976), “Pôquer, dama e buraco no sindicato dos mendigos”
(25/05/1976), “Crônica do valente torcedor” (03 a 14/06/1976), “Quindim das mulheres” (24/06/1976), “Bola
Preta (12/07/1976), “Um cordão resistente” (14/07/1976), “A passeata do primeiro grito” (26/07/1976),
“Gente de respeito” (02/08/1976), “Moçada da gafieira (03/08/1976), “A magra é certa” (05/08/1976),
“Nasce a rainha Moma” (09/08/1976), “Um código boêmio” (26/08/1976), “O botequim, essa universidade e
o dia que o pau comeu na ONU” (03 e 04/09/1976), “Jogatina no sindicato dos mendigos” (06/09/1976),
“Virgens” (10/09/1976), “Ética da gafieira” (15/09/1976), “Homens que não bebiam água” (16/09/1976).
160
“Eu mesmo(09/03/1976), “Carnaval de sangue” (16/03/1976), “Uma carta de Minas” (26 e 27/03/1976),
“Escritor, estivador?” (18/05/1976), “Um drama de escritor” (26/05/1976), “Lima Barreto, agora”
(15/06/1976), “Conversa franca com Aguinaldo Silva” (16 a 18/06/1976), “Carta aberta sobre Lima Barreto”
(19/06/1976), “Maralto” (21 e 22/06/1976), “Centenas de tampinhas” (25 e 26/06/1976), “Cerveja” (29/06 a
01/07/1976), “Com um autor de livro de bolso” (05 a 07/07/1976), “Uma história do Arrudas” (09 e
elementos de referencialidade se unem a um tempo ancestral e lírico da poeticidade
cronística.
Em “Moleque e filho bastardo”, ao tecer um texto histórico sobre a origem e as
manifestações do carnaval, arremata nuances de uma fala própria. No começo do texto
lança uma hipótese:
Mas um fato é liquido e sempre funcionou como tônica. Desde que existe,
sempre foi bastante mal comportado [o carnaval], com o tempero impertinente
de sicas barulhentas, disfarces, desmandos, máscaras, zoadas e bastante
licenciosidade.
161
Na sua conclusão, salienta:
Segundo a crônica bisbilhoteira de alguns autores, o próprio Napoleão era
homem de cair na gandaia.
162
uma dose de perfil jornalístico nisso tudo, evidentemente. Mas se quer
evidenciar, aqui, a tensividade de uma narração pontuada por aspectos rememorativos de
um passado remoto e nostálgico, de um tempo de fugacidade.Arrigucci Jr. (1987) no ensaio
“Fragmentos sobre a crônica”
163
esclarece que o tom rico, etéreo e saudosista que permeia
o texto cronístico advém, sobretudo, de uma caracterização extremamente oralizada dos
aspectos vivos e circundantes. Assim, o cronista passa a ser um narrador envolto em
ditames não apenas circunstanciais. Aliás, a pontualidade circunstancial adquire outros
invólucros.
Por exemplo, em “Lapa acordada para morrer”, o cronista remonta a um passado de
glórias boêmias ante um presente carcomido e precário. Nesse percurso, o elemento
referencial (embora não totalmente vinculado ao estrito jogo factual) surge em citações,
contextualizações e periodizações de dados do próprio bairro carioca:
10/07/1976), “papo com Júlio César, um escritor de 20 anos” (28 a 30/07/1976), “Com José Louzeiro” (12 a
18/08/1976), “Mais “boom”” (08 e 09/09/1976), “Falando de “Maralto”” (17 a 21/09/1976), “Joaquinho
Gato” (27/09/1976).
161
Antônio, 10/03/1976
162
Idem
163
In: ARRIGUCCI JR., Davi. Enigma e Comentário. São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
O último grande herói da Lapa foi o cachorro Elefante. Nos primeiros dias de
março de 67, ele se estralhaçava entre os escombros de um desabamento da Rua
dos Arcos.
164
Ou ainda:
Francisco Alves, algum tempo depois, tentou a reabilitação do bairro, num
samba famoso: A Lapa está voltando a ser Lapa, A Lapa, confirmando a
tradição, A Lapa é o ponto maior do mapa do Distrito Federal... Salve a Lapa.
165
O lirismo demarcador das passagens informacionais (dados sobre a Lapa) evidencia
um texto carregado de saudosismo nostálgico, acarretando um plano de propulsão opinativa
ou, mais precisamente, subjetiva. Esse elemento de remontagem de um “passado que não
volta mais”, em conflito com um tempo novo, instaurado e corrosivo, se mantém durante o
texto. Trata-se de uma narratividade de observação da cidade que se transmuta, que se
embrutece, acarretando-se um texto de criticidade latente, em que os ingredientes da
experiência (alicerçados pela memória saudosista do narrador) transparecem. Em “Os
tempos eram outros” ocorre a seguinte constatação crítica:
Os saudosistas se lamentam, mas têm de aceitar que a vida mudou e a
mentalidade também. A maneira de viver nas áreas urbanas se transformou. O
custo de vida encareceu, mas os duros, os lisos, e sem dinheiro passaram a ser
menos desabonados que os pobres da década de 40. mais dinheiro em
circulação e sempre sobra aquele algum da cervejinha.
166
Trata-se de incorporação, por parte do narrador, de um remanejamento irônico dos
ditos saudosistas. Ao remontar, novamente, ao processo de transformações citadinas,
evidencia um aporte de redução moral, em torno do bairro e de seus freqüentadores, em seu
discurso. Parece haver a vinculação com um tempo preenchido em um distante, saudoso e
lírico espaço, com seus objetos e códigos valorativos específicos.
Dessa maneira, mantendo a crônica no plano do desprendimento e do “baixo”
argumento, o cronista, em Corpo-a-corpo reconhece espaços degradados ou saturados pela
assimilação do progresso e novas ordens (o mundo da gafieira, o cordão bola preta, os
sambistas, o futebol).
164
Antônio, 14/04/1976
165
Idem
166
Antônio, 26/04/1976
Arrigucci Jr. lembra também a tentativa do narrador-cronista em recriar o espaço
longínquo da infância. Trata-se de outro elemento em que o tempo se mostra fundamental.
Nesse contexto, a crônica se cultiva de melancolia e ironia, por vezes, por se permitir
atribuída da busca de sugestões emocionais, passionais, ajustando a poeticidade na ligação
com o clima novidadeiro da referencialidade.
Nota-se, nos textos confeccionados por João Antônio em Corpo-a-corpo, uma idéia
de lirismo sobreposta, incondicionalmente, à idéia do próprio labor textual. A tematização
das crônicas (de tom saudosista) obedece a uma radiografia espaço-temporal: a
ambientação da “cidade que deu em outra” (expressão canonizada na obra Abraçado ao
meu Rancor, de 1986), em um tempo que não mais existe (os espaços coletivos do samba,
da gafieira, a comunhão nas ruas). A opção, nos textos de marcas cronísticas, é elucidar ao
leitor, num bate-papo informal e desatrevido, a situação contemporânea. Nesse sentido, a
definição de avesso da notícia” ganha sentido fortemente opinativo. A ambivalência da
crônica permite ao jornalista João Antônio entrever a cidade e o tempo circundante com
radiografias de um observador contemplativo, rico e irônico. Em “Nosso tempo” essas
marcas são muito visíveis:
A rua não é mais um local de conflito, susto, temores. É Também uma fonte
de prejuízos para os usuários de arrecadação de impostos para o poder público.
Nossa cidade pode reclamar de tudo. Mas de uma carência esta cidade de São
Sebastião não sofre. Há buracos ás pampas.
Á noite, quando se devia dormir (ou encostar os ossos para o dia seguinte) os
britadores aproveitam a falta de movimento das ruas e comem em dobro.
Acabou-se o que era doce. Acabou-se o tempo de lazer, o tempo de brinquedo, o
tempo de relaxar.
167
Há, também, uma matriz de imersão nos problemas. Se não se nota o percurso de
um repórter a esmiuçar o calor da testemunhação dos acontecimentos, a focalização de
tempo e espaço se normaliza, sobremaneira, nos textos cronísticos, com os aspectos de uma
reportagem narrativa (cf. Coimbra). Isso se dá pela clara absorção, na coluna, de complexas
imbricações de gênero. Posto isso, além da crônica e da reportagem, notam-se
167
Antônio, 24/05/1976
incorporações de outros gêneros jornalísticos (a entrevista, o comentário) e literários (o
conto
168
, fundamentalmente).
Pensando a crônica, por exemplo, como uma escrita condicionada à feição
estritamente jornalística, poder-se-ia atrelá-la a aspectos de uma esquematização também
temporal que, em certo sentido, se problematiza, em termos narrativos, com os matizes
estruturais do conto, por exemplo. Nesse contexto, a crônica, como um gênero híbrido,
episódico, em sua essência, permitiria um atributo jornalístico narrativo de reportagem.
Jorge de (1997) identifica a crônica inserida em multi-referencialidades, em sua
configuração como gênero. Assim, aproxima a organicidade de seu material como resíduo
jornalístico em contato com o texto literário:
Sendo a crônica uma soma de jornalismo e literatura (daí a imagem do narrador-
repórter), dirige-se a uma classe que tem preferência pelo jornal em que ela é
publicada (só depois é que irá ou não integrar uma coletânea, geralmente
organizada pelo próprio cronista), o que significa uma espécie de censura ou,
pelo menos, de limitação.
169
entende, pois, que a crônica se materializa, funcionalmente, como um estamento
jornalístico, na medida em que a velocidade do fluxo de apreensão da realidade abrupta,
fugidia, é também o embasamento de sua configuração como gênero narrativo. Desse
modo, a crônica, em sua eventual circunstancialidade, referencial, jornalística e reportiva,
se evidencia como rica e reflexiva. Para Sá, é por meio dessa circunstancialidade lírica e
reflexiva que a crônica interessa à literatura.
2.4. Empreendimentos narrativos – subjetividade e ação
É evidente que a questão narrativa é essencial em Corpo-a-corpo. Há, nas várias
manifestações narrativas (reportagens, crônicas), elementos ora de ação, ora de
subjetividade. Pensando o ponto de vista narrativo em deslocamentos perceptivos da
168
Massaud Moisés identifica os componentes da unidade dramática do conto: O conto é, do ângulo
dramático, unívoco, univalente. Num parêntese, cabe dizer que sentido encerram as palavras “drama”,
“dramático” e cognatos. Devem ser entendidos como conflito, ação conflituosa etc. O drama nasce quando se
realiza o impacto de duas ou mais personagens, ou de uma personagem com suas ambições e desejos
contraditórios. (Moisés, 1979, p.20).
169
Sá, 1991, p.7/8
realidade, observam-se vozes que interpretam determinadas conjecturas, determinados
anseios. Nesse sentido, em Corpo-a-corpo, há instâncias focais narrativas demarcadas, aqui
e ali, por uma forte desenvoltura de intersubjetividade, de contato em relação a específicos
objetos. Assim, ora o narrador está centrado em seu pensamento, a obedecer a um
funcionamento metalingüístico de discurso, ora está reportando algo em uma espécie de
radiografia (em pessoa) de algo observável, e, finalmente, alia-se em uma espécie de
cronista de costumes, circunstacialidades e pessoas.
Entendendo tais manifestações como um quadro sintético mas não menos valioso
da coluna, é importante notar que algumas marcações narrativas, estabelecidas nos focos
narrativos, se evidenciam no texto joãoantonioniano no Última Hora. Assim, tem-se,
primeiramente, a necessidade de exponenciar um narrador em pessoa auto-reportativo,
em uma medida de conduta intensivamente jornalística, referencial, mas também
metalingüística.
Em “Ao Escritor, nada”, o autor se incorpora ao próprio relato numa espécie de
simbiose entre o assunto tratado (a denúncia à precarização do escritor no Brasil) e sua
experiência pessoal. Funcionando como um decodificador das causas de sua vociferação, o
narrador apropria-se, sobretudo, da subjetividade para emoldurar uma crítica ao mundo
circundante e observável. Desse modo, surgem no texto as seguintes marcas enunciadoras
em primeira pessoa (de um sujeito actante incorporado à escrita desenvolvida):
Quando digo que aqui na República das Bruzundangas o escritor está mais longe
da profissionalização do que da Lua ou Mercúrio e, que afinal vivemos num país
em que quase todos ganham com o trabalho do escritor, menos ele, levo o nome
de exagerado.
Mas estamos em plena Bruzundanga e tudo isso não é nenhuma novidade. Não
mudamos um só milímetro.
170
Outras experiências narrativas que se colocam na coluna são as da onisciência,
presentes em textos marcados pela experiência da reportagem; como também, em
subjetividades singulares, demonstradas pelo texto cronístico.
Entretanto, na demarcação que Coimbra faz das categorizações tipológicas de
Norman Friedman, incorporadas no estudo de Chiapini
171
, a reportagem narrativa se
170
Antônio, 11/03/1976
171
CHIAPPINI, Ligia. O Foco Narrativo. São Paulo, Ática, 2006.
apropria de elementos de testemunhação em pessoa (o narrador-testemunha); de
protagonismo (narrador-protagonista) e de onisciência em pessoa (“é o modo de narrar
de quem não somente conhece todos os acontecimentos mas até mesmo os pensamentos das
personagens”).
É evidente que, por meio da apropriação que Coimbra faz das categorias elucidadas
por Chiapini, ocorre um processo de assimilação das marcas narrativas enunciatárias, no
jornalismo, já que, de certo modo, ocorre, na maioria dos textos, um processo de
sincretismo de fórmulas. Nesse sentido, é fácil notar incorporações de difícil resolução,
como, por exemplo, entre a reportagem e o conto, ou entre a crônica e a reportagem, e
ainda a presença de matrizes opinativos, jornalisticamente falando. Como a coluna se
orienta pela prescrição jornalística, a evidenciação, nem sempre de fácil resolução, de
determinados pontos de vista estanques, possibilita afirmar que um processo de
hibridização, instaurado em marcas de enfrentamento preconizadas por um sujeito
evidenciado na experiência do confronto e do comprometimento (a empreender debates,
entrevistas
172
) e também a radiografar a cidade e os espaços carcomidos e precarizados (a
cidade do Rio de Janeiro, na maioria dos textos). Dessa maneira, um tipo de modo
dramático se instaura. Trata-se, não necessariamente, de um modelo narrativo, moldurado,
essencialmente, numa configuração espaço-temporal intensamente demarcada. Coloca-se,
aqui, a cena dramática como elemento decisivo de assimilação por parte dos narradores em
Corpo-a-corpo. Coimbra, quando caracteriza o uso do modo dramático em terceira pessoa
no jornalismo, sugere uma bifurcação entre o componente informativo e a composição
acional de personagens.
O narrador se limita a informar o que as personagens fazem e o que falam. O
texto se compõem de uma sucessão de cenas. É o mais utilizado no Jornalismo.
173
Em “Mini”, ao radiografar a prostituta-mirim Mariazinha Tiro a Esmo, o narrador se
incorpora num jogo de apreensão sui generis, na medida em que notamos a presença dele
no centro da ação, em uma espécie de apropriação marcativa do cenário que ele desenvolve
e narra. Colocando a pesquisa jornalística como instrumento de verificação da realidade
172
Com Aguinaldo Silva, com José Louzeiro, com Zé Edson Gomes, com Julio César Martins.
173
Coimbra, 1993, p.47
apreendida, percebe-se, na construção alicerçada pelo código de cena, a configuração de
vários comportamentos angulatórios do narrador. Nesse ponto de vista, reproduz, em tom
de montagem, as falas da menina, pontuadas por elementos de dados sobre a retratada,
configurando-a como uma personagem não meramente “entrevistada”, atrelando-a, ao que
se sugeriria no jornalismo, à técnica da conversa com a fonte.
Treze anos. Maria já se mexia bem como sambista num bloco de Catumbi.
Pouca roupa, sempre uma das atraentes. Os passistas observavam. Gostavam:
- isto aqui de recheio de mulher dentro dessa roupa.
174
A partir daí, o narrador demarca dois espaços-tempo no texto (um, histórico, a
contar a origem da retratada; outro, ao localizá-la nos arredores de Copacabana, em pontos
de prostituição). Ocorre, por vezes, um distanciamento entre narrador e personagem,
quando se salta do diálogo oculto empreendido pelos dois a uma espécie de digressão
explicativo-informativa da condição sócio-cultural da personagem, como no trecho a
seguir:
Se mariazinha Tiro a Esmo perceber que está causando pena, baixa os olhos.
Mas tem um repente. Rele, incisiva. Encara: - Que que é, ô bicho? Ainda não viu
gente assim, não é?. Aos nove anos fez o primeiro crime: meteu giletes no
escorregador de uns meninos que a surravam. Aos onze teve uma alegria das
grandes: conheceu uma dona da vida que a ensinou a fumar, a usar garfo, a usar
soutien.
175
Percebe-se em “Mini”, como em “Dentro da Miniguerra do Metrô”, o narrador
envolto no quadro de ação
176
da própria informação empreendida em um processo de prática
jornalística de averiguação informativa. Dessa maneira, quando Jorge de pontua que a
faceta de um cronista se alicerça na visualização de um tipo específico de narrador, ou seja,
um narrador repórter, é óbvio notarmos que tal deslocamento, pura e simplesmente, torna-
se problemático. Porém, evidencia-se uma preconização, ao que se verifica, presente em
Corpo-a-corpo. Ou seja, por parte do cronista, assim como pelo repórter, uma tentativa
174
Antônio, 27/05/1976
175
Idem
176
Ao classificarem a reportagem de ação, Sodré e Ferrari afirmam: é o relato mais ou menos movimentado,
que começa sempre pelo fato mais atraente, para ir descendo aos poucos na exposição dos detalhes. O
importante, nessas reportagens, é o desenrolar dos acontecimentos de maneira enunciante, próxima ao leitor,
que fica envolvido com a visualização das cenas, como num filme. (Sodré; Ferrari, 1986, p.52).
de contribuição de marcas identitárias de um sujeito, de um ente jornalista. Nesse sentido,
tanto pela subjetividade da crônica, quanto pela ão desenvolvida pela reportagem, a
expressão corpo-a-corpo, reforçaria alguns ideários a serem preenchidos, captados por
gêneros textuais como a crônica (em sua especificidade lírica) e a reportagem (em seu
procedimento narrativo).
Em relação à subjetividade evidenciada pela matriz cronística, é prudente que
saibamos que seu caráter primeiro é a absorção numa esfera de representação maior; com
personagens, espaço e tempo, reforçando, por exemplo, uma unidade tensiva, como o
conto. Bender e Laurito (1993) esclarecem as especificidades narrativas da crônica,
questionando e levantando algumas problemáticas:
Ora, no caso da crônica, em que autores contemporâneos geralmente assinam
suas matérias, a quem estão se referindo quando dizem “eu”? É sempre verdade
o que senuma crônica? O “eu” de Rubem Braga é sempre ele, Rubem Braga?
O cronista, o narrador e o escritor que assina são a mesma pessoa? As próprias
matérias apresentam a variedade de casos que podem tentar responder a essa
questão.
177
Vê-se, mesmo com a pluralidade de possibilidades estilísticas, que a crônica se
instaura, também, por uma subjetividade permeadora de elementos referenciais
(aproximando-a da reportagem) e estéticos (revestidos de matizes literários). Moisés
(1979), ao demonstrar os fundamentos da manifestação cronística, esclarece alguns pontos:
Na crônica, o foco narrativo situa-se invariavelmente na primeira pessoa do
singular; mesmo quando o “não-eu” avulta por encerrar um acontecimento de
monta, o “eu” está presente de forma direta ou na transmissão do acontecimento
segundo sua visão pessoal.
178
Moisés também salienta que
A crônica oscila, pois, entre a reportagem e a Literatura, entre o relato
impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, e a recriação do
cotidiano por meio da fantasia. No primeiro caso, a crônica envelhece
rapidamente e permanece aquém do território literário: na verdade, a senescência
precoce ou tardia de uma crônica decorre de seus débitos para com o jornalismo
stricto sensu.
179
177
Bender; Laurito, 1993, p.51
178
Moisés, 1979, p.245
179
Moisés, 1979, p.247
Quando há, em Corpo-a-corpo, a rememoração empreendida pelo cronista, ou pelo
diálogo, ocorre a tentativa de verificação e vivificação do cotidiano, reforçando as marcas
identitárias e temáticas. De um lado, têm-se materiais de uma cidade viva, preenchida por
um ponto de vista de observação documental (“Mini”, “Dentro da miniguerra do metrô”).
Por outro, uma rememoração paradoxalmente melancólica e alegre na decodificação das
transformações pela qual a cidade e os comportamentos contemporâneos passam (Araci de
Almeida, as gafieiras, os textos metalinguísticos sobre o ato da escrita etc).
Ainda em relação à questão da apreensão do tempo (pelo narrador) é importante
verificar o que Arrigucci Jr. diz sobre a representação paradigmática da crônica, como um
texto fincado intensamente de gestos humanos mais vivos; ou, aproximando-se da
terminologia de Candido: ao rés-do-chão:
São vários os significados da palavra crônica. Todos, porém, implicam a noção
de tempo, presente no próprio termo, que procede do grego chronos. Um leitor
atual pode não se dar conta desse vínculo de origem que faz dela uma forma do
tempo e da memória, um meio de representação temporal dos eventos passados,
um registro da vida escoada. Mas a crônica sempre tece a continuidade do gesto
humano na tela do tempo. Lembrar é escrever: trata-se de um relato em
permanente relação com o tempo, de onde tira, como memória escrita, sua
matéria principal, o que fica do vivido uma definição que se poderia aplicar
igualmente ao discurso da História, a que um dia ela deu lugar.
180
Partindo das colocações de Arrigucci Jr, é sintomático identificar a relação de
apreensão temporal, na terminologia que a crônica sugere. Em Corpo-a-corpo dez
textos consecutivos intitulados “Crônica do Valente Torcedor”. Em todos os textos há o
relato de um tempo “escoado” em torno das representações e rememorações do mundo do
futebol. Poder-se-ia, de antemão, aceitar a terminologia que o título das matérias sugere, ou
seja, assimilar tais textos como simplesmente crônicas.
No entanto, como bem notaram Sá e Moisés, uma ligação quase umbilical do
viés cronístico com as especificidades do jornalismo, sobretudo com a reportagem. Na série
de textos “Crônica do Valente Torcedor” ocorre, quase que resumidamente, muitos pontos
aqui salientados. Assim, a experiência temática de suas linhas sugere e/ou mostram
180
Arrigucci Jr., 1987, p.51
imbricações entre reportagem e crônica, em um sentido de junção de experiências
narrativas.
No trecho a seguir, uma narração empreendida por fortes traços imagéticos adquire
pulsação como materialização digressiva, contemplativa. Em todo o trecho, percebe-se o
forte lastro descritivo/narrativo, mas também se verifica um narrador envolto na
determinação apriorística do título (crônica do valente torcedor): “no fundo, trata-se de uma
crônica, de valentes torcedores”:
Uma hora antes da missa no gramado do Mineirão, Dom Serafim Fernandes de
Araújo, bispo auxiliar de Belo Horizonte, está preparado. Na soitana preta,
mas alto que baixo, é relativamente jovem. Não vai rezar apenas missa, fará
também batizado no campo. E dois anjinhos negros, magros, caminham
carregados de velas para o portão central do estádio:
- Que é isso, gente?
- Coisa de Dom Serafim. Vai ter missa antes do jogo.
-É. Mas não adianta trazer anjo. O Atlético não ganha nem com a ajuda de Deus.
Mas se traz e se leva de um tudo, desde que se trate de torcer. Anjos, demônios e
até urubus. Levam-se crianças ou mandam-se urubus. É um fogo cerrado.
181
2.5. A hibridização de gêneros, a pessoa e o personagem, o perfil
Uma problemática se instaura sobre certas narratividades em Corpo-a-corpo,
principalmente no que concerne a uma demarcação entre reportagem e crônica. Por mais
que esses gêneros permeiem os textos, a questão da narratividade se embaralha,
impreterivelmente, nas experiências literárias e jornalísticas. Ou seja, ao se categorizar
pólos situados em certa rigidez, perde-se o anseio de evidenciar possíveis confrontos e
junções de narrativas. Pode-se salientar, no entanto, que a separação de gêneros na
literatura não obedece à mesma faceta do jornalismo, que nesta atividade, os gêneros se
agrupam e se delimitam (em torno das entidades informativas, interpretativas e opinativas)
com motivações mercadológicas, operacionais e técnicas
182
. Naquela, os gêneros obtêm
estatuto de essência autônoma da linguagem. Ou seja, ao se evidenciar as demarcações
181
Antônio, 03 a 14/06/1976
182
Uma das questões mais remotas e controversas da teoria da literatura diz respeito à discussão sobre os
gêneros. Os estudos de jornalismo, embora mais recentes que os literários, sofrem também com isso (...) o que
pode ser proveitoso é ensaiar uma reflexão sobre o cruzamento dos dados da literatura com os do jornalismo,
debruçando-se sobre a possibilidade de certas conexões e convergências reconhecíveis de gêneros
provenientes das duas realizações. (Bulhões, 2007, p.35).
entre a lírica, o épico, e o drama
183
, percebe-se, no fio condutor histórico, uma tentativa de
ruptura das amarras, sendo que os gêneros passam a exercer vivências textuais
(imbricações, inclusive) coadunadas a certas intensividades estéticas, não-dogmáticas,
apadronizadas.
184
Bulhões demarca algumas diferenças em relação à questão dos gêneros
no jornalismo e na literatura:
Pode-se afirmar que o percurso da questão de gêneros no jornalismo parece ter
se dado em caminho oposto à literatura. Enquanto na literatura, como se viu, a
trajetória histórica conduziu à superação do caráter normativo, com a negação de
regras e prescrições, no caso do jornalismo, exigências profissionais e
mercadológicas acabaram por sedimentar a delimitação de padrões expressivos e
estilísticos.
185
Mais à frente, Bulhões pontua o problema da narratividade em torno da
convergência entre jornalismo e literatura, resumindo algumas distinções que percorrem a
idéia de apreensão do real:
Um ponto essencial da confluência de gêneros do jornalismo e da literatura, sem
dúvida, atende pelo nome de narratividade. Produzir textos narrativos, ou seja,
que contam uma seqüência de eventos que se sucedem no tempo, é algo que
inclui tanto a vivência literária quanto a jornalística (...). Aliás, não é por acaso
que narrar, narrador, narrativa derivam de narro, vocábulo latino que significa
“dar a conhecer” (...). Pode-se, por exemplo, lembrar que tanto a literatura como
o jornalismo atuam como expedientes de conhecimento de mundo, sendo que a
experiência literária parece preferir o mundo por meio da prática imaginativa e
alegórica, a qual não é necessariamente menos “verdadeira” que a alternativa
jornalística.
186
Viu-se que fatores narrativos como o tempo, o espaço e o ponto de vista adquirem
estatutos distintos quando eles se sedimentam em universos de factualidade ou
ficcionalidade, sendo difícil verificar o que de fato foi vivificado por um repórter ou por um
cronista.
Quando o jornalista perfila determinada pessoa, por exemplo, ou quando evidencia
determinado indivíduo no centro dos acontecimentos da reportagem, uma determinação
183
O conceito de gênero literário tem sofrido múltiplas variações históricas desde a antiguidade helênica até
aos nossos dias e permanece como um dos mais árduos problemas da estética literária. (Silva, 1976, p.205).
184
Cabe aqui lembrar, novamente, da diferenciação que Bakhtin estabelece entre as manifestações verbais dos
gêneros dos discursos (revestidos das transformações dos códigos ideológicos e intertextuais) em Estética da
criação verbal. São Paulo, 2000.
185
Bulhões, 2007, p.39
186
Bulhões, 2007, p.40
pode surgir de tal bifurcação: a pessoa entrevistada (definida aprioristicamente pela pauta)
passa a ser personagem da narrativa empreendida pelo jornalista. Em “Uma carta de
minas”, João Antônio elucida os limites de uma “tradução” jornalística em relação à
elucidação intensiva de um objeto, ali, condicionado a um personagem, na atividade
jornalística:
Traduzir uma personagem não significa usar gravador, máquina fotográfica e
outros embelecos (desculpem: equipamentos...) tecnológicos. Talvez se traduza
melhor evitando os tais recursos mecânicos, elétricos ou automáticos. Traduzir é
ir ao fundo, é maquinar, é ruminar, é sofrer as essências de um personagem
com os sem tecnalidades de meios industriais de captação. Isso de sofrer as
essências de um personagem, o gravador e o computador não aprenderam a
fazer, não.
187
Trata-se de uma preconização antitecnicista, sendo que a experiência jornalística
deve estar amarrada a elementos de apreensão que, não necessariamente, desenvolvam
códigos demarcados em torno de fontes, entrevistas etc. Vê-se que tal preconização,
ademais, une-se à lógica que João Antônio estabelece em toda a coluna Corpo-a-corpo,
campeando uma essência jornalística dinâmica e corrosiva, em que a reportagem é uma
espécie de emblema paradigmático.
Nesse contexto, em torno da discussão da personagem no texto jornalístico,
Coimbra estabelece uma apropriação das categorizações do personagem da ficção
188
e
estende as denominações da ‘personagem redonda’ e ‘personagem plana’ ao interesse
específico da reportagem narrativa. Assim conceitua:
Personagem referencial: remete a um sentido pleno e fixo, imobilizado por uma
cultura. Sua apreensão e seu conhecimento dependem do grau de participação do
leitor nessa cultura;
Personagem anáfora: só pode ser completamente apreendida dentro do texto, ou,
mais especificamente, na rede de relações que os elementos do texto mantém
entre si;
187
Antônio, 26 a 27/03/1976
188
Candido localiza as distinções entre pessoa e personagem: a diferença profunda entre a realidade e as
objectualidades puramente intencionais – imaginárias ou não, de um escrito, quadro, foto, apresentação teatral
etc. – reside no fato de que as últimas nunca alcançam a determinação completa da primeira. As pessoas reais,
assim como todos os objetos reais, são totalmente determinados, apresentando-se como unidades concretas,
integradas de uma infinidade de predicados, dos quais somente alguns podem ser “colhidos” e “retirados” por
meio de operações cognitivas especiais. (Candido, 2000, p.32).
Figurante: ocupa uma lugar claramente subalterno, distanciado e passivo em
relação aos incidentes narrados.
189
Entretanto, reportagens, de tom narrativo/descritivo, em que as personagens são
colocadas em outra instância, ou seja, o protagonistas de sua história. Aí, o jornalista
apreende todo um arsenal de simbologias
190
para emoldurar, através de contextualizações e
observações, um painel físico, social e psicológico do retratado. Assim, a personagem
ganha uma voz multifacetada, evidenciada pela sua própria experiência, e mediada pelo
olhar clínico do jornalista (sempre oculto, mas sempre presente). Trata-se do perfil
jornalístico, uma reportagem costurada pelos elementos da entrevista (subentendidos) em
que a característica de sua configuração é, justamente, o desnudamento de uma pessoa,
dentro de certas singularidades. Ao contrário da personagem abarcada em uma narrativa de
ação (como no conto ou na reportagem narrativa), no perfil, a personagem é colocada em
destaque único e inequívoco.
Em torno da discussão do papel do repórter na apreensão da personagem perfilada,
Sodré e Ferrari salientam a imersão singular da reportagem de perfil no que se refere ao
compartilhamento e à intimidade de experiências e comportamentos entre ambos (perfilado
e repórter):
Em jornalismo, perfil significa enfoque na pessoa seja uma celebridade, seja
um tipo popular, mas sempre o focalizado é protagonista de uma história: sua
própria vida. Diante desse herói (ou anti-herói) o repórter tem, via de regra, dois
tipos de comportamento: ou mantém-se distante, deixando que o focalizado se
pronuncie, ou compartilha com ele um determinado momento e passa ao leitor
essa experiência.
191
Em Corpo-a-corpo ocorrem, evidentemente, várias experiências textuais alicerçadas
no perfil (de famosos e anônimos) nas quais a observação do narrador se mostra presente.
No trecho a seguir, extraído de “Aos 97 anos”, percebe-se a aproximação do repórter com a
personagem, num momento descrito de evidenciação íntima da narrativa:
189
Coimbra, 1993, p.73/74
190
Ao longo de um texto de perfil, seja ele extenso ou curto, diferentes traços, qualidades e características são
atribuídos a uma personagem. A personagem é, diz-se em teoria narrativa, caracterizada. (Coimbra, 1993,
p.103).
191
Sodré; Ferrari, 1986, p.126
Essas novidades chegam ao mais velho, Jorge Correia Machado, suas mãos não
tremem e ainda continua comendo de tudo, dormindo ás seis e meia da tarde e
acordando às quatro da manhã. Ele as recebe com olhar prateado e úmido,
sem brilho: - Tudo isso anda mudado tanto que não dá mais para entender.
192
A observação íntima do repórter, em relação ao perfilado, também se nota em
“Nosso compadre o profeta Nelson Cavaquinho”:
Nelson não pára. O Compadre é um poeta sem remissão e um vira-Rio
fascinante, podendo ser encontradiço nos becos e muquinfos mais estranhos
desta cidade (...) ele, sua cor azeitonada, seus cabelos brancos, rugas, violão
tocado na vertical, mangueirice (...), voz rouca e empastada.
193
Os perfis empreendidos em Corpo-a-corpo não se diferenciam das propostas tácitas
que envolvem as reportagens, os textos metanarrativos e as crônicas, tais quais: marcas de
enfrentamento e de comprometimento com códigos pulsantes da cidade, representações
sociais de país muito calcada na experiência anti-beletrista do autor. Percebe-se, sopros e
sugestões de referências, de temas, de códigos, de presenças paradigmáticas.
Nesse turbilhão de experiências narrativas, evidenciado pela imersão e pela
rememoração (ação e subjetividade crítica encarnadas), verifica-se uma escrita que, como
se notou no primeiro capítulo, se materializa altamente fincada na intertextualidade. Figuras
e emblemas saltam à vista, nesse entrosamento de gêneros e vozes. O emblema mais
intenso e modelar é o escritor e jornalista Lima Barreto.
192
Antônio, 08 a 09/04/1976
193
Antônio, 29/04 a 06/05/1976
Capítulo 3: João Antônio e Lima Barreto: apropriações, presença e leitura
Quando se desenha a aproximação entre João Antônio e Lima Barreto, não como
omitir interpenetrações entre eles. Em uma espécie de apropriação de posicionamentos
éticos e temáticos, na prática da escrita, a intimidade de um (no caso João Antônio) para
com o outro (Lima Barreto) se reveste de algo vivo.
Numa espécie de “leitura”, portanto, de atitude textual, João Antônio tece em sua
obra um espaço de consagração da figura de Lima. Parece haver, nessa confluência, uma
interpretação, uma compreensão de sua própria escrita, atrelada a uma simbologia que
representa um alcance maior. Lima Barreto é uma referência presente em todos os livros de
João Antônio (em suas respectivas homenagens), mas que, em alguns casos, posiciona-se
num estreito campo de contato paradigmático.
Há, evidentemente, na escrita de João Antônio uma proposta rebarbativa de troca,
de diálogo com outras fontes. Na prática pulsante de uma escrita atrelada aos códigos mais
veementes de uma ordem capitalista torpe, Lima Barreto parece representar, para João
Antônio, um sustentáculo de resistência, de valor ético. Nesse sentido, a assertiva que se
coloca é de uma escrita potencialmente emoldurada pela ordem corrosiva e intencional de
um sujeito “escritor-jornalista” a obedecer a um determinado papel, a uma determinada
função, a desenhar um abrupto comportamento.
Assim, na configuração de um cenário joãoantoniano (muito calcado em seu
universo temático), Lima Barreto surge como luz, como paradigma. Logo, com a
apropriação pulsante de seus ideais, o texto joãoantoniano deixa plasmar algo inevitável em
suas buscas e apreensões, antevendo, nas figuras de narradores e personagens,
representações de uma realidade absolutamente condicionada à carcomida cidade e aos seus
pingentes urbanos.
Nesse jogo de apropriação de Lima Barreto, nota-se a assimilação por parte de um
“eu” João Antônio, sendo que a emolduração de cenários se robustece, justamente, com a
presença de Lima, principalmente no que tange às inquietações sobre as conjunturas
nacionais. uma delimitação clara no tocante às vozes presentes no caldo social
apreendido. Em Corpo-a-corpo a corruptela de diálogos, os textos sobre o samba, sobre a
menina “Mariazinha Tiro a esmo”, sobre os torcedores de futebol, sobre a “miniguerra do
metrô’, reforçam não aparatos presentes na obra joãoantoniana, mas também
vislumbram entes desamparados e alijados do processo de pertencimento urbano, muito
próximos, pois, das marcas desenvolvidas por Lima Barreto em seus textos. Ora, nessa
propensão de uma escrita corrosiva, comprometida e imersiva, o discurso de um (Lima) se
configura como mosaico de significações para outro (João Antônio).
Desse modo, a produção de sentido que se delineia em Corpo-a-corpo (ou, grosso
modo, na obra joãoantoniana em geral) é o reforço de uma subjetividade regente de
diversas vozes desvalidas, marginalizadas. É por essa gica que João Antônio materializa
uma espécie de quadro social íntimo e singular (o mundo das rodas de sinuca, a marginalia,
os atores urbanos, a violência citadina, os códigos brutos das relações humanas).
Baccega (2000)
194
, explicando as junções verbais (a palavra) presentes na feitura do
componente social (discurso), esclarece o quadro ao qual a subjetividade se alicerça:
Quando falamos em subjetividade, não podemos perder de vista que ela é
formada a partir de materialidade constituída pela manifestação dos vários
discursos, instituindo um eu plural, o qual, por sua vez, manifestará, num
movimento espiralado, sua reelaboração desses discursos, utilizando-se, para
isso, da matéria-prima com a qual os discursos os que ele “recebeue os que
ele elaborou se formaram: as palavras, os signos da sociedade em que esses
discursos circulam.
195
A “reelaboração” dos discursos no movimento de apreensão de vozes, na sociedade,
situa-se numa matriz de correlação, de interação, de relação sedimentada em determinada
cotidianeidade. Nesse sentido, a apropriação de Lima Barreto por João Antônio parece se
persuadir de desenlaces a partir de um matiz subjetivo, altamente personal.
Nesse contexto, a produção de sentido na reelaboração das vozes, das citações, das
bases modelares em qualquer apropriação se coaduna a um processo de intertextualidade,
de verificação, de re-siginificação do produto elaborado. Não à toa, Baccega (2000) salienta
que o processo de intertextualidades discursivas não ocorre tão somente no plano verbal:
É verdade que no interior da sociedade as relações não se estabelecem e se
mantém com a linguagem verbal. Qualquer “comunicação” está grávida de
determinações sociológicas e manifesta-se no vários campos semiológicos. Mas
194
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso. São Paulo, Ática, 2000.
195
Baccega, 2000, p.23
é a palavra que acompanha, comenta, permite a compreensão das elaborações de
todos esses campos semiológicos. Todos eles se banham na palavra.
196
Há, evidentemente, um atributo essencial para se entender a clivagem entre a
palavra transfigurada e o discurso, ou seja, a etapa discursiva se materializa em um nível
superior à assimilação e à fluência da palavra. Ora, os textos que se interpenetram se
configuram de um “enamoramento” verbal, a assimilar os meandros de um mapa social
pulsante e significativo, sendo que o discurso se torna autônomo à medida que os
sustentáculos da interação verbal se solidificam.
Para melhor situar alguns conceitos textuais, Barros (1999)
197
explica as diferenças
entre interação verbal e intertextualidade, à luz do pensamento de Bakhtin. Assim, diz:
Concebe-se o dialogismo como espaço interacional entre o eu e o tu ou entre o
eu e o outro, no texto. Explicam-se as freqüentes referências que faz Bakhtin ao
papel do “outro” na constituição do sentido ou sua insistência em afirmar que
nenhuma palavra é nossa, mas traz em si a perspectiva de uma outra voz.
198
Mais à frente, comenta o conceito de intertextualidade em Bakhtin:
Outro aspecto do dialogismo a ser considerado é o do diálogo entre os muitos
textos da cultura, que se instala no interior de cada texto e o define. Esse sentido
de dialogismo [a intertextualidade] é mais explorado e conhecido e até mesmo
apontado como o princípio que costura o conjunto das investigações de Bakhtin.
199
Cumpre lembrar que as delimitações em torno do conceito do dialogismo baktiniano
de interação verbal ou de intertextualidade se estabelecem como componentes básicos em
torno da apropriação dos textos da cultura. Como Baccega salientou anteriormente, a
subjetividade de um ente (escritor, narrador) põe as nuances da confrontação entre um eu
estabelecido e um outro espelhado. No caso da referência de João Antônio, em relação a
Lima Barreto, esse contato se torna ainda mais complexo, devido à hibridização de gêneros,
de estilos ou de temas.
196
Baccega, 2000, p.37
197
In: BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz. Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São
Paulo, Edusp, 1999.
198
Barros, In: Barros; Fiorin, 1999, p.3
199
Barros, In: Barros; Fiorin, 1999, p.4
Pode-se falar de uma intertextualidade sempre presente, visto que por parte de
narradores, e do próprio sujeito João Antônio (representado pela produção jornalística,
principalmente) uma práxis cotidiana envolta na representação sugestiva do que seja o
comprometimento literário, ou a posição sobre o jornalismo, ou a radiografia de
marginalizados e, ainda, a tenra busca de retratações sócio-culturais, como no caso do
futebol, do samba etc.
Lima Barreto parece se situar como luz candente, a presenciar e guiar seus passos.
Nesse contexto, a intertextualidade salta aos olhos, porque se estabelece como um elo não
apenas citatório, mas significativo.
O intertexto entre Lima e João Antônio se aproxima das determinações teóricas de
Bakhtin em torno das interações de vozes, enunciações e falas, pois os textos se confluem
numa experiência não somente discursiva, mas também se emoldura na vibrante
especificidade da tensão social, evidenciada, sobremaneira, pelos anseios ideológicos.
Nesse sentido, parece haver na “leitura” de Lima Barreto um elo de extrema singeleza em
torno da capacidade de se visualizar um comprometimento. Bakhtin (1988)
200
pontua as
particularidades da interação verbal ao discriminar o sentido de apropriação e uso dos bens
intertextuais, fincando suas balizas em torno da questão do compromisso:
No curso do processo de dominar o material [intertextualidade, dialogismo e
polifonia], de submetê-lo, de transformá-lo em meio obediente, da expressão, o
conteúdo da atividade verbal a exprimir muda de natureza e é forçado a um certo
compromisso .
201
É importante salientar que, nesse tocante, a prática literária é envolvida por uma
miríade de funções. A configuração de um estatuto de verificação da realidade é peça chave
da verossimilhança literária, nas suas mais diversas representações. Voltando às matrizes
do pensamento em torno do funcionamento da literatura, percebe-se a mimese como um
processo interpretativo do real. Talvez essa seja a marca decisória em torno da captação do
real, pelo discurso literário.
Desse modo, cabe ao escritor escolher o repertório de ação ao qual se compromete.
Dentro de alguns estamentos, mais ou menos rígidos, o escritor, no ato da escrita, depara-se
200
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 1988.
201
Bakhtin, 1988, p.111
como um número imenso de utilitários e ferramentas. Fazer uso de tal instrumental deve ser
o seu estabelecimento de ação.
Barthes (1970)
202
, no ensaio Escritores e Escreventes”, demarca a atividade
literária como uma prática estritamente vinculada às propensas idiossincrasias sociais.
Colocando a práxis literária como uma entrega ao próprio objeto, Barthes na
subjetividade, ditada normativamente por alguns códigos, é bem verdade, a materialização
do ato da escrita a envolver processos de sentido em torno da palavra. Destarte, poder-se-ia
aproximar tais conceituações em torno da função literária ao que preconiza Bakhtin, no que
se refere a um intenso debate discursivo nos textos culturais (a escrita literária, mas também
a jornalística) como exemplos bem resolvidos nesse sentido.
Barthes evidencia a atividade do escritor em uma válvula de escape mais radical.
Assim, pontua as questões da idéia de comprometimento alicerçadas por Sartre e presente
no primeiro capítulo deste trabalho:
A atividade do escritor comporta dois tipos de normas: normas técnicas (de
composição, de gênero, de escritura) e normas artesanais (de lavor, de paciência,
de correção, de perfeição). O paradoxo é que como o material se torna de forma
seu próprio fim, a literatura é no fundo uma atividade tautológica (...) o escritor é
um homem que absorve radicalmente o porquê do mundo num como escrever.
203
O discurso literário, coadunado à práxis social e intertextual subjetiva do próprio
agente do processo (o escritor, o eu, o narrador) torna-se também funcional, e estreitamente
intencional, na medida em que demarca um leque de apropriações e tensões muito
específicas.
Baccega sintetiza as especificidades da prática literária como processo de
assimilação da realidade, tecendo e advertindo, novamente, sobre as questões das diversas
vozes e textos agindo na tensividade discursiva e verbal:
Também o discurso literário resulta do processo de conhecimento, mediado pela
linguagem verbal. Como sabemos, o resultado desse conhecimento nunca será
exatamente o objeto ou ação existente na realidade. Não o puro reflexo, não
a pia fotográfica. O mesmo objeto do conhecimento, a mesma realidade
202
In: BARTHES, Roland. São Paulo, Perspectiva, 1970.
203
Barthes, 1970, p.33
podeapresentar-se de modos diversos, para indivíduos/sujeitos diferentes, de
acordo com seus sistemas de referências.
204
Pensando no que diz Baccega e contextualizando tais proposições à aproximação
textual estabelecida por João Antônio em relação a Lima Barreto, não deixa de ser
interessante notar uma representação em torno do escritor-jornalista carioca, em certo
sentido. Isto é, tanto o percurso interpretativo que Lima Barreto faz do seu tempo (os anos
da primeira república), como o arco enorme de personagens envolvidos em uma certa
precarização social abarcam os “merdunchos” da obra joãoantoniana. Assim, Lima Barreto
é orientado a um estabelecimento modelar de prática literária. No tocante à função literária
como idéia de estreitamento ou de compromisso social, tal junção se torna ainda mais
nevrálgica, mais propositadamente corrosiva.
Sevcenko (1995)
205
localiza e identifica os atores sociais agindo no seio dos anos da
proclamação da República até os estertores dos anos 20 do século XX. Ao traçar um painel
das divisões estabelecidas na estrutura social da República, Sevcenko coloca dois
paradigmas para traçar alguns pólos de enfrentamento da sociedade brasileira, partindo da
premissa de que a questão da segregação e do esfacelamento ético se mostra veemente.
Desse modo, Sevcenko escancara, ao confrontar os ditames do rumo histórico com as
literaturas produzidas no período, a condição de extrema desumanidade do país. Para
empreender tal percurso, vê nas figuras de Euclides da Cunha e de Lima Barreto os
modelos mais bem definidos na captação, tanto da fugacidade do novo tempo, como das
profundas marcas de violência e alijamento social ali estabelecidos.
O autor esclarece que é por meio da atividade literária que alguns pressupostos e
posicionamentos se tornam vibrantes. Se em Euclides da Cunha, o conhecimento e a
intelectualidade se tornam peças decisórias no modo de enxergar o país em suas profundas
cisões (tendo no episódio de Canudos, o seu exemplo mais devastador); em Lima Barreto
uma espécie de escrita sedimentada na própria condição do homem Afonso Henriques
de lima Barreto. Ou seja, mais do que a propositura de uma escrita marcadamente
autobiográfica, em Lima, todo o processo de cisão e polarização estabelecido pelos ares da
Primeira República se tornam marcantes. Com isso, uma pretensa “redenção” na escrita de
204
Baccega, 2000, p.73
205
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo, Brasiliense, 1995.
Lima se faz síntese compreensiva do Brasil no início do século XX. Para Sevcenko, um
choque ético presente no seio da sociedade brasileira, sobretudo e, principalmente, no Rio
de Janeiro. O autor polariza o cenário de uma pretensa belle époque com o contingente do
chamado inferno social; rivaliza a vida literária e jornalística com os anseios e condições do
escritor nacional. Sevcenko vê na figura de Euclides e, sobretudo, na de Lima, a
representação das forças sociais em mutação. Nesse sentido, os textos de Lima ganham
estofo em tal conflagração ao se configurarem como peças de enfrentamento. Entender
como se fundamenta a escrita de Lima Barreto para, depois, visualizar-se a apropriação e a
leitura intertextual em João Antônio (mas especificamente em Corpo-a-corpo) serão os
motes de nosso percurso.
3.1. Resistência, Solidariedade e Humanidade em Lima Barreto
Em um cenário de profunda transformação, a literatura ousa dizer e compreender as
esfaceladas relações sociais que se avizinham com a proclamação da república em 1889.
Eis a hipótese lançada por Sevcenko. A partir da política de encilhamento empreendida
pelo ministro Rui Barbosa, na gestão de Deodoro da Fonseca, o Brasil e, mais
especificamente, o Rio de Janeiro, se apresentam ao mundo. Nessa configuração, poder-se-
ia dizer, atrevida, do Brasil a novos ares e modos de vida, a sociedade brasileira se
transforma de maneira intensa.
Sevcenko identifica as tensões, degolas e movimentações políticas no período. Os
atores do momento anterior, impreterivelmente os da monarquia, são vilipendiados ante a
uma nova ordem que se instaura: “moderna”, liberal.
Com uma alta emissão de moeda para setores muito específicos da sociedade, a
configuração de uma elite intelectual e cultural se coaduna a um intenso processo de ordem
social citadina e de repressão a indivíduos localizados nas bordas da cidade. Assim, nessa
forma pulsante de um novo quadro urbano que nasce, o Rio de Janeiro também se mostra
faceiro em suas vestimentas. Ademais, a ordem de funcionamento estatal obedece,
intensamente, à nova face que se estabelece no Rio e no país, ou seja, desenha-se um
cenário de fragmentação e de polarizações sociais.
206
E é justamente no tocante à polarização que Sevcenko evidencia os paralelos
acima de tudo paradoxais sociais dos anos da primeira república. Os comportamentos em
conflito se permeiam, portanto, no novo cenário. Em consonância a isso, surgem eventos
como a “liga do feio”, coordenada pelo escritor e jornalista Luis Edmundo, ou a “liga da
defesa estética”, empreendida por Coelho Neto.
207
Percebe-se que o choque conflitual que se delineia na cidade em uma aparente
máscara de pacificidade intensifica-se ainda mais com as aberturas de vias citadinas, e
nas repressões pontuadas em movimentos operários ainda ingênuos na organização política
(orientados sobretudo por um jacobinismo esnobe, arrivista e xenófobo).
Delimita-se na sociedade brasileira, pois, a formação de uma elite (financeira e
também intelectual, condicionada por emblemas como a art noveau e a belle époque
européia) que substitui pausadamente a instância do modelo rural escravagista do período
monárquico.
Sevcenko esclarece que é justamente nessa transição social de valores e de
emblemas que um novo agente se mostra inteiro, alertando o surgimento de uma grande
massa de desvalidos do processo da nova ordem capitalista. O autor esclarece, ademais, a
configuração de uma espécie de escória urbana que se abrigará nos recônditos da cidade,
percorrendo e preenchendo setores afastados como morros e setores distantes dos marcos
pontuais estabelecidos – que se configurarão, para o autor, no espectro do inferno social
208
.
Colocadas várias demarcações e polarizações, conclui-se, com o pressuposto
levantado por Sevcenko, que experiências literárias desenvolvidas no período se
206
Por trás dessas recriminações, estava o anseio de reservar a porção mais central da cidade, ao redor da
nova avenida, para a “concorrência elegante e chic”, ou pelo menos modelar por esse padrão todos ou tudo
que por ali passasse ou se instalasse. As barracas e quiosques que exasperam público e cronistas são os que se
localizam “no perímetro central da cidade”. As favelas que aterrorizam são visíveis da avenida Central.
(Sevcenko, 1995, p.34).
207
In: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo, Brasiliense, 1995.
208
O plano geral da cidade, de relevo acidentado e repontado de áreas pantanosas, constituía obstáculo
permanente à edificação de prédios e residências, que desde pelo menos 1882 não acompanhavam a demanda
sempre crescente dos habitantes. A insalubridade da capital, foco endêmico de varíola, tuberculose, malária,
febre tifóide, lepra, ecarlatina e sobretudo da terrível febre amarela (...) carência de moradia e alojamentos,
falta de condições sanitárias, moléstias (alto número de mortalidade), carestia, fome, baixos salários,
desemprego, miséria: eis os frutos mais acres desse crescimento fabuloso e que cabia à parte maior e mais
humilde da população provar. (Sevcenko, 1995, p.52).
alicerçariam aos ditames da tensão social. Dessa maneira, a escrita de Lima Barreto é
sustentada como uma práxis atrelada até às vísceras com eixos do chamado inferno social.
Antes de se verificar como se nota tal percepção da escrita de Lima em relação ao
momento da primeira república, Sevcenko situa o intelectual brasileiro à luz de impasses e
inquietações de um novo tempo, de uma nova era. Assim, possíveis engajamentos
progressistas por parte dos intelectuais e escritores com as chamadas “grandes reformas”
redentoras (a abolição, a república e a democracia) funcionam muito mais como uma
prática conservadora, conciliatória. Parece haver, por parte dos setores intelectuais, e
também dos da imprensa, uma impotência, ou ainda, um descompasso em relação às novas
ordens sociais (os conflitos e as segregações urbanas).
Desse modo, verifica-se uma outra polarização: de um lado, escritores inseridos
intensamente na vida literária brasileira sob os auspícios estéticos de uma belle époque
nacional; de outro, a ordenação de um processo de miserabilidade presente nas marcas da
precarização social, e também intelectual. De acordo com Sevcenko, um desconforto
anímico que move suas histórias, seus personagens, seus narradores, ou seja, um
descompasso angustiado e “dolorido” em relação ao mundo que se instaura. Nota-se o
estabelecimento de um novo tipo de intelectual brasileiro, a propor no corte da própria
existência, ou na carne de seus contatos mais íntimos, a reificação de uma compreensão
social. Nesse sentido, há, evidentemente, a fragmentação sintomática da intelectualidade
brasileira, oriunda das novas transformações sociais, a visualizar uma espécie de
diminuição violenta dos ideários românticos em face de contornos possivelmente
expressionistas e/ou altamente verossímeis da sociedade que surge. Nesse compasso de
dualidades e antíteses sociais, o jornalismo
209
desempenha papel importante, na medida em
que é um instrumento que define a tecnologia e media as relações sociais. À frente,
verificar-se-á que, também na prática jornalística, Lima Barreto empreende seus escritos
críticos, satíricos e reverberados pela idéia de tensividade entre uma ‘vida social alta’ e um
‘inferno social’, como preconiza Nicolau Sevcenko.
209
A nova grande força que absorveu quase toda a atividade intelectual nesse período foi sem dúvida o
jornalismo. Crescendo emparelhado com o processo de mercantilização na cidade, o jornalismo invadiu
impassível territórios até então intocados e zelosmente defendidos. Os jornalistas, ditadores das novas modas
e dos novos hábitos, chegavam a desafiar e a vencer a própria Igreja na disputa pelo controle das
consciências. (Sevcenko, 1995, p.99).
Apropriando-se da expressão “república das Bruzundangas” (um obra satírica de
Lima Barreto)
210
, Sevcenko traça um painel representativo da escrita de Lima Barreto.
Desse modo, localiza na função crítica, no tom expressionista, no combate à ordem vigente
e na hipotética idéia de “compreensão do real” as particularidades intrínsecas de sua
linguagem. A partir dessas constatações, enumera as características advindas de seus textos:
O real assim construído perderia o aspecto frio e insensível que a rotina do
cotidiano lhe assinala provocando a anuência indiferente dos indivíduos, para
mostrar-se em toda a crueza da sua nudez repentina. Através desse método
contundente, o autor podia transmitir direta e rapidamente aos seus leitores a sua
concepção e o seu sentimento relativo aos eventos que o circundavam. Forçava-
os assim a uma tomada de posição e uma reação voluntária, na proporção do
estímulo emitido. A função crítica, combatente e ativista ressalta por demais
evidente dos textos de Lima Barreto.
211
Nesse intenso processo, poder-se-ia dizer, de comprometimento literário, uma gama
de personagens é emoldurada: alguns escusos, outros de uma singularidade marcadamente
biográfica, mas todos eles caracterizados em certa condição arquetípica. Na obra de Lima
Barreto, têm-se ambientes também emoldurados por uma carga de representação pulsante, a
permear seus personagens em arcabouços temáticos. Assim, surgem espaços ora
desnivelados, ora citadinos, ou ainda sufocados pela própria temática da “ironia da dor”,
presentificada pelo escritor-jornalista. Pontuando a caricatura e a ironia num amplo leque
de desenvolvimento dos gêneros, Lima Barreto empreende o romance, o conto e a crônica
como análises históricas, reflexões sobre a cultura, anotações relativizadas com a
circunstancialidade contemporânea.
Em sua obra, visualizam-se críticas ao emburrecimento mistificação), à
frivolidade burguesa, ao poder político constituído, às regras e práticas sociais, e,
principalmente, ou mais intensamente, ao mundo beletrista e míope da literatura e do
jornalismo.
Ocorre, a partir desse mosaico intencional, a identificação com seres à margem,
localizados, ao que se percebe, às nuances do inferno social. Com isso, os textos de Lima
Barreto pontuam e elucidam as tensões e polarizações sociais da cidade em mutação:
210
BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. Porto Alegre, LP&M, 1998.
211
Sevcenko, 1995, p.162
Espalhada por toda a sua obra, mas presente em especial no Isaías Caminha, no
Policarpo Quaresma, no Gonzaga de e em contos como “O homem que sabia
javanês”, “Um e o outro” e “O moleque”, está a sua invectiva implacável contra
todos os símbolos de distinção que, aparecendo com a sociedade republicana ou
sobrevivendo dentro dela indevidamente, minavam os pretensos propósitos
democráticos do regime, estabelecendo níveis de discriminação que permeavam
até mesmo as pequenas relações banais do cotidiano. Lima Barreto, em sua obra,
chega a montar todo um acervo desses símbolos, delimitando a sua área de
prestígio e poder no interior do mundo social da primeira república.
212
Há, nessa busca intensiva dos níveis do cotidiano, uma assimilação
“amarguradamente autobiográfica”. No embate “no interior cotidiano do mundo social”,
uma posição desconfiada em relação ao progresso, ao velho travestido de novo”. Nesse
sentido, sua escrita se cultiva em uma configuração de solidariedade. Essa é a síntese do
pressuposto levantado por Sevcenko em torno da relação da linguagem de Lima com os
auspícios representacionais da primeira república. Assim, a escrita de Lima Barreto se
sustenta como uma espécie de resistência aos novos modelos sócio-culturais:
A reação de Lima Barreto diante de todo esse panorama era cabal, porém
adstrita ao espaço da mais completa independência. Ele recusava qualquer
espécie de alinhamento ou categorização que lhe restringisse a mais completa
autonomia de pensamento ou que classificasse os seres humanos em grupos
diferenciados por qualquer critério.
213
A realidade transmitida em sua obra não representa a radiografia dos processos da
beleza e dos avanços econômicos e culturais da Primeira República, e sim a degradação, o
conflito e a pulsação do ideário de enfrentamento.
Voltando aos pressupostos orientativos do escritor (cf. Barthes (1970)), nota-se a
estrutura de uma literatura empreendida por uma missão específica, mas não menos
incisiva. Sevcenko crê numa espécie de confronto categórico, portanto, a partir dessa
conjectura. Sintetiza as missões em torno da escrita e identifica a literatura como causa
primeira, como essência compreensiva do real e, conseqüentemente, da existência humana
(a matizar os elementos de conflito, de luta e de dor) na busca de um estatuto de
solidariedade. A escrita de Lima Barreto representa, pois, uma literatura fincada em si
própria, ou seja, redentora de si mesma, como conclui Sevcenko. Ao buscar em Lima
212
Sevcenko, 1995, p.179
213
Sevcenko, 1995, p.189
Barreto a fonte do questionamento sobre o próprio ato literário, tem-se uma espécie de
discussão metalingüística:
Sem destruir a literatura, ao contrário, mantendo-a viva e revigorando-a, os dois
escritores [Euclides da Cunha e Lima Barreto] conseguiram que a sua eficiência
como recurso de comunicação se amplificasse múltiplas vezes. Ela [a literatura]
assim realizava aquele sortilégio a que se referia Lima Barreto: “a arte literária
se apresenta como um verdadeiro poder de contágio que a faz facilmente passar
de simples capricho individual para traço de união, em força de ligação entre os
homens” (...) a literatura não representava um meio para a redenção do autor
[lima Barreto] e seus irmãos, ela representava a própria redenção em si mesma.
Eis a razão pela qual Leonardo Flores [personagem do romance Clara dos
Anjos] podia suspirar ao fim, plenamente satisfeito consigo e com a sua
realização: “porque cumpri o meu dever, executei a minha missão: fui poeta”.
214
De novo, tem-se a prefiguração de um atrelamento entre um comprometimento, em
torno da escrita literária, com o processo de discussão metalingüística, como se viu no
primeiro capítulo, em alguns textos da coluna Corpo-a-corpo, de João Antônio. É evidente,
porém, que a simples constatação dessa outra aproximação entre Lima Barreto e João
Antônio não elucida, ou não permite elucidar, por inteiro, as facetas presentes numa escrita
altamente vinculada com o inferno social, utilizando-se os termos de Sevcenko.
A idéia de solidariedade preconizada por Sevcenko, bem como a utilização de uma
paridade com atores iguais, faz surgir, no bojo da análise textual, uma série de componentes
argumentativos (metalingüísticos, críticos) em torno das práticas literárias. Com isso,
edifica-se uma escrita de múltiplas representações de vozes. É por meio dessas
configurações acerca dos processos de interpenetração de vozes (narradores e personagens)
que a escrita se estabelece como “redentora de si mesma”. O processo de solidariedade
empreendido por Lima Barreto é um artifício de junção altamente “humanizador” dos
elementos nos quais está fincado. Aliás, a idéia de enfrentamento entre duas representações
literárias dos primeiros anos do século XX (uma, altamente beletrista, outra condicionada
na própria precariedade) reforça os dilemas de uma constante tensão.
Ao se verificar o ensaio “Corpo-a-corpo com a vida” (1975), percebe-se a
reclamação a algo muito íntimo com a sociedade brasileira. Então, os personagens
paradigmáticos de Lima Barreto (Isaías Caminha, Ricardo Coração dos Outros, Clara dos
Anjos, Policarpo Quaresma, o poeta Leonardo Flores etc.) elucidam uma representação
214
Sevcenko, 1995, p.233
sócio-cultural de nossos quadros éticos, mas também representa, à luz do estudo de
Sevcenko, e à baila dos conceitos funcionais da literatura
215
um ambiente nervoso de
resistência: aos poderes estabelecidos, a uma ordem não muito bem digerida, a cenários
insalubres de uma certa - como se viu - precarização intelectual.
É nesse contexto, portanto, que se delineia em Lima Barreto a solidariedade com a
idéia clara de formação. Seus textos parecem vislumbrar uma representação social ou
compreensão do real, para ficar nas terminologias de Sevcenko altamente realista,
verossímil, sendo que seus predicados também se permeiam no choque com o universo
abordado. Assim, com possíveis dualidades e oxímoros, Lima empreende a noção de
compromisso e solidariedade, por se atrelar ao próprio ato da escrita ou na discussão
crítica dele – e permitir-se missionário, denunciativo e solidário.
Em relação à discussão entre a abordagem estruturalista ou funcional da literatura,
Candido (2002), no ensaio a “Literatura e a formação do homem”
216
, situa a literatura no
seio da vida mais íntima, e busca o sentido de profundidade “humanizadora” ou solidária
em relação a ela à própria vida:
Paradoxos, portanto, de todo lado, mostrando o conflito entre a idéia
convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais)
e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada
complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem
edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que
chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver.
217
É importante salientar, contudo, que o processo de emancipação humanizadora, ou
de redenção literária, se faz com seus aspectos intrínsecos. Nesses termos, portanto, a idéia
de resistência, presentes nas escritas de Lima Barreto e João Antônio, surge de uma outra
polarização, ou de um outro intertexto: o confronto e a oponência de um eu contra um
“outro”.
215
É relativamente moderna a consciência teorética da validade intrínseca e, conseqüentemente, da autonomia
da literatura, isto é, a consciência de a literatura – como qualquer outra arte – possuir os seus valores próprios,
de constituir uma atividade independente e específica que não necessita, para legitimar a sua existência, de se
colocar ao serviço da polis, da moral, da filosofia etc. (Silva, 1976, p.82).
216
In: Textos de Intervenção. Seleção, Apresentação e Notas de Vinícius Dantas. São Paulo, Duas Cidade; 34,
2002.
217
Candido, 2002, p.84/85
Segundo Bosi (2002)
218
, a idéia de resistência está calcada em um código ético.
Entretanto, o autor salienta que a resistência se coaduna, na narrativa, por se configurar
como estética, legitimando as marcas em torno da própria configuração literária.
219
A partir
desses posicionamentos, Bosi categoriza dois tipos de resistência em torno da configuração
narrativa: a “narrativa de resistência como tema” e a “narrativa de resistência como
processo inerente à própria escrita”.
Ao se verificar a produção de Lima Barreto e de João Antônio poder-se-ia
salientar que seus textos carregam nuances das duas especificações de Bosi. Há, porém,
uma certa delimitação lógica em torno de tais classificações. A “resistência como tema”
estaria atrelada a momentos específicos das tensões sociais e políticas contemporâneas
220
e
a “resistência como processos inerente à própria escrita” estaria situada nos momentos de
ruptura e tensões vanguardísticas nos limiares do século XIX e começo do século XX
221
.
Embora ambas se estabeleçam como processos indissociáveis da modernidade, Bosi
ressalta que, para se entender a configuração da escrita de resistência, deve-se reparar nos
valores praticados nos focos narrativos.
222
Ou seja, é pela idéia de valor literário (sua individualização e coletivização), das
marcas figurativas e expressivas do “eu” (narrador), e da temática empreendida que se
determinam as dicotomias pertinentes em torno da resistência. Assim, Bosi sustenta que
Há momentos coletivos em que o élan revolucionário polariza e comove tanto os
homens de ação como os criadores de ficção. E há momentos, mas numerosos e
longos, que prevalece a descontinuidade da vida social sobre o toque de reunir,
ocorrendo então uma dispersão e diferenciação aguda dos papéis sociais. Neste
218
BOSI, Alfredo. Literatura e Resistência. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
219
Resistência é um conceito originariamente ético, e não estético. O seu sentido mais profundo apela para a
força da vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor a força própria à força alheia. O
cognato próximo é in/sistir, o antônimo familiar de de/sistir (...) no fazer-se concreto e multiplamente
determinado da existência pessoal, fios subterrâneos poderosos amarram as pulsões e os signos, os desejos e
as imagens, os projetos políticos e as teorias, as ações e os conceitos. (Bosi, 2002, p.118/119).
220
O termo Resistência e suas aproximações com os termos “cultura”, “arte”, narrativa” foram pensados e
formulados no período que corre, aproximadamente, entre 1930 e 1950, quando numerosos intelectuais se
engajaram no combate ao fascismo, ao nazismo e às suas formas aparentadas, o franquismo e o salazarismo.
(Bosi, 2002, p.125).
221
Chega um momento em que a tensão eu/mundo se exprime mediante uma perspectiva crítica, imanente à
escrita, o que torna o romance não mais uma variante literária da rotina social, mas o seu avesso; logo, o
oposto do discurso ideológico do homem médio. (Bosi, 2002, p.130).
222
A translação de sentido da esfera ética para a estética é possível, e deu resultados notáveis, quando o
narrador se põe a explorar uma força catalisadora da vida em sociedade: os seus valores. À força desse í
não podem subtrair-se os escritores enquanto fazem parte do tecido vivo de qualquer cultura. (Bosi, 2002,
p.120).
caso, o artista da palavra pode desenvolver, solitária e independentemente, a sua
resistência aos antivalores do meio. Será o “coração oposto ao mundo” do poeta.
223
O exemplo mais emblemático, na obra de Lima Barreto, do “coração que se opõe ao
mundo” é em Recordações do Escrivão Isaías Caminha
224
. O narrador Caminha traça as
memórias de sua atividade jornalística ao mesmo tempo em que problematiza os espaços e
as singularidades de tal tarefa, fazendo uma espécie de périplo no tempo, doloroso e cruel.
Estando na condição de um narrador em primeira pessoa, empreendendo sua escrita em
Caxambu, Isaías Caminha rememora seu passado na condição de um “eu” amargurado com
o turbilhão de referências que sua experiência lhe deu. Assim, surgem, na clareação desse
tempo, algo fugidio, cantos de sua própria existência, dos seus percursos éticos.
A partir dos motes narrativos empreendidos em Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, Bosi identifica e analisa, em “Figuras do Eu nas Recordações de Isaías Caminha”
as várias manifestações do sujeito no romance.
Primeiramente, Bosi esclarece que sempre bifurcações éticas permeando o agir
de Caminha, na medida em que sua condição de mulato, pobre e interiorano o sufoca ante
os arremedos emblemáticos da cidade grande (no caso, a capital com suas avenidas, seus
códigos de conduta etc). Portanto, é por meio de dualidades que Bosi estabelece as
figurações de identidades “incomodadas” com o processo de fluxo contínuo da vida. Não
deixa de ser curioso notar que, no percurso de análise que tece Bosi, tanto a radiografia do
mundo literário do Rio de Janeiro como, evidentemente, os espaços da prática jornalística
são devassados com agudeza infortúnia, representando o narrador numa espécie de
epicentro descompassado com o cenário que visualiza. Partindo dessa premissa de
dualidades em torno do “eu”, no começo do romance tem-se a o desenho de um “eu
enfurnado” pelas idéias de triunfo na capital federal, chocando-se com um “eu mortificado”
pela sombra ignorante da mãe e, por conseqüência, da vida interiorana. A possível visão,
cumpre ressaltar, de Caminha, ante os percalços de suas experiências de vida se coaduna,
de certa maneira, a uma dilatação das miragens de um possível êxito capitalista, bem como
a antevisão de um cenário cosmopolita, moderno e livre do Rio de Janeiro. Nos trechos
223
Bosi, 2002, p.125
224
BARRETO, Lima. Recordações do Escrivão Isaías Caminha. São Paulo, Brasiliense, 1971.
abaixo, extraídos do romance, percebe-se, claramente, a presença da vida indomável
capitalista lhe sugerindo prospecções futuras:
Ouvia uma tentadora sibila falar-me, a toda a hora e a todo instante, na minha
glória futura. Agia desordenadamente e sentia a incoerência dos meus atos, mas
esperava que o preenchimento final do meu destino me explicasse cabalmente.
(Barreto, 1971, p.29).
Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais, quantos privilégios, este título
[doutor] dava! Podia ter dois e mais empregos apesar da Constituição; teria
direito à prisão especial e não precisava saber nada.
225
Ao mesmo tempo em que parece antever o processo de precarização social que se
evidenciará, à frente, como um beco sem saída, nota-se uma outra polarização nas
perspectivas de Caminha. Tem-se a configuração, com a chegada no Rio e o convívio de
Caminha com os colegas de jornalismo, confronto entre um “eu desejoso” de prestígio
social e de grandeza intelectual e a materialização de uma espécie de “eu reprimido” pelo
cotidiano nada idílico de suas aspirações anteriores. Esse desencanto se traveste, com
extrema força, na principal temática do livro, ou seja, a delimitação de um quadro social
específico (o convívio com o mundo jornalístico e a vida literária) numa espécie de
caricatura observativa de seus códigos, de seus valores. A partir desse enfoque, percebe-se
que as categorizações no tocante à resistência, empreendidas por Bosi, sustentam os dois
arcos de suas intenções, ou seja, por Caminha ser um jornalista profundamente amargurado,
a condição, em uma espécie de metanarrativa interna, de se evidenciar as marcas mais
escondidas da profissão, seus vícios mais insanos, ao mesmo tempo em que se vocifera uma
voz crítica em relação ao status quo.
Nesse ponto, Bosi admite ser complexa a demarcação entre o “eu” de Isaías e o “eu”
de Lima:
O tom e o andamento lembram os diários íntimos de romântica memória: Lima
vinha redigindo o seu nos mesmos anos em que compunha Recordações. O
movimento peculiar a esse gênero é a seqüência de registros de fatos e
digressões psicológicas nas quais o narrador faz ressoar cada episódio no seu
próprio eu. A certa altura, a fronteira entre ficção e a análise torna-se móvel,
difícil de fixar.
226
225
Barreto, 1971, p.35
226
Bosi, 2002, p.197
Em torno dessa dificuldade em se verificar as distinções entre o “eu de Caminha” e
o “eu de Lima”, desenha-se uma outra polaridade. Ou seja, em certos momentos do
romance confunde-se a distinção de um “eu-narrador satírico” do mundo das redações dos
jornais com seus personagens estereotipados com um “eu-descritivo” dos flashes do
cotidiano da vida social carioca (a boemia, os salões, as redações). É evidente que uma
outra problemática presente, é bom que se diga, na própria materialização vívida de
Caminha. Ao enveredar pelo mundo do jornalismo e se deparar com os esfacelamentos
morais de compadrio e promiscuidades da Primeira República, Lima Barreto fornece um
painel crítico, mas ao mesmo tempo desolador da sociedade brasileira e de suas
instituições. Bosi pontua uma outra dualidade, pois: um “eu crítico” se debatendo com um
“eu resignado”:
E outro lado da sua educação pelo jornal: aquele degrau, baixo embora, que
ele conseguira subir na hierarquia da empresa, basta para satisfazer às suas
carências imediatas além de enfuná-lo como uma hora de vaidade quando é visto
como “o jornalista”, e até “doutor”, no meio suburbano que ele ainda freqüenta
por injunções econômicas. (Bosi, 2002, p.197).
Perceberemos, mais à frente, aproximações desse amargor entre crítica e resignação
(na figura do narrador Caminha) por parte do narrador de “Abraçado ao meu Rancor”, de
João Antônio. A idéia de “literatura como missão” desenhada por Sevcenko, e praticada a
seu ver, por Lima, evidencia-se pela idéia de aproximação com seres alijados do processo
de expansão e modernização capitalista da Primeira República. Nesse contexto, o narrador
Caminha se perde em seus próprios atos, mas caminha por uma cidade também incômoda,
como se pudesse fotografar as mazelas de tais empreendimentos. São vários os momentos
do romance em que ocorre uma espécie de flanerie nervosa pelos becos e recônditos da
cidade. ainda, a todo o momento, a condição estigmatizada da cor, bem como o
empreendimento do convívio social e a participação e inserção ao mundo intelectual.
Mundo intelectual este mediado sobremaneira pelo jornalismo (seja do ponto de vista da
profissão, seja do ponto de vista das relações dos atributos jornalísticos à vida política e
cultural). Numa espécie de descompasso, portanto, entre a sua condição, sobre o que
projeta e sobre o que vê, Recordações do Escrivão Isaías Caminha se torna incômodo por,
justamente, ordenar um questionamento de denúncia, de ironia e de crítica ao mundo da
literatura e do jornalismo. Nos trechos abaixo, notam-se, respectivamente, o amargor no
processo de “revivamento” memorialístico, e as elucidações do narrador a respeito das
entidades jornalismo e literatura:
Os meus desejos de vingança fazem-me agora sorrir e não sei por que, do fundo
da minha memória, com essas recordações todas, chega-me também a imagem
de uma pesada carroça, com um grande lajedo suspenso por fortes correntes de
ferro, vagarosamente arrastada sobre o calçamento de granito, por uma junta de
bois enormes, que o carreteiro fazia andar com gritos e ferroadas desapiedadas.
227
Eu não sou literato, detesto com toda a paixão essa espécie de animal. O que
observei neles, no tempo em que estive na redação do O Globo, foi o bastante
para não os amar, os imitar.
228
[na voz do personagem Plínio de Andrade]: A imprensa! Que quadrilha! Fiquem
vocês sabendo que, se o Barba-Roxa ressuscitasse, agora com os nossos velozes
cruzadores e formidáveis couraçados, poderia dar plena expansão à sua
atividade se se fizesse jornalista.
229
A crítica é endereçada a comportamentos beletristas, como salientou Sevcenko, em
que contundentes bofetadas no jornalismo e na literatura do país são feitas. No caso
específico de Caminha, ocorre um distanciamento do mundo das letras e das redações, pelo
próprio advento da memorialização, porém, há uma empatia alicerçada nos desejos da
juventude por prosperidade e na ânsia de se “libertar” de sua frágil condição de outsider, de
marginalizado. Bosi clareia, pois, uma última polarização: um “eu cooptado” tencionando
com um “eu reflexivo” (talvez a personificação mais inteira do indivíduo que narra a
história em Caxambu)
Em todo esse leque de assimilações e apropriações de certa desumanidade (ou de
humanidade sofrida), do estigma do negro, ocorre, para Bosi, a materialização de nossas
piores mazelas:
Essa cooptação do “mulatinho” pelo Globo, onde se acotovelam os subidos na
vida, não é menos efetiva do que a lucidez intermitente, e forma com esta um par
desafinado mas nem por isso menos representativo do nosso drama social.
230
227
Barreto, 1971, p.68
228
Barreto, 1971, p.78
229
Barreto, 1971, p.96
230
Bosi, 2002, p.200
3.2. Resistência e crítica jornalística em Lima Barreto
O mundo relatado em Recordações do Escrivão Isaías Caminha evidencia a crítica
às aspirações do jornalismo praticado no país, no período das primeiras décadas do século
XX. Lima Barreto foi um dos mais importantes colaboradores dos periódicos nacionais,
tendo seus textos publicados desde veículos pequenos até revistas e jornais de grande
monta. Beatriz Rezende e Rachel Valença organizaram, recentemente, o compêndio de
todos os textos publicados em jornais pelo escritor-jornalista
231
. As pesquisadoras afirmam
que a produção jornalística de Lima é tão robusta e significativa quanto a ficcional, e
reforçam o pressuposto de que a temática e/ou o estilo de sua escrita de denúncia estariam
fundamentados em apreensões muito específicas da sociedade brasileira de então
(orientados, assim, pela prática jornalística). Sendo o ano de 1919 o mais produtivo
232
e,
impreterivelmente, o mais significativo em termos de produção e também de certa
maturidade intelectual toma-se como exemplo comparativo, neste trabalho, a elucidação
dos pontos de resistência, ambientação e a temática presentes na escrita comprometida de
Lima Barreto.
Aliás, acreditamos que esse caminho deva ser percorrido para resolver a questão em
torno das preconizações evidenciadas nos momentos anteriores, isto é, de que um dos
atributos da prosa de Lima é justamente o pensamento em torno da literatura e do
jornalismo. É importante acrescentar que, de certo modo, como em Corpo-a-corpo, ocorre
no momento das produções verificadas uma espécie de tomada de posição social”, em
relação a posturas de matizes beletristas. É evidente que os pontos ressaltados por
Sevcenko, em relação à critica mais contundente aos costumes nacionais, se evidenciam em
crônicas, comentários e tipos de reportagem em que assuntos tão pontuais e tão
tragicamente ancestrais como o assassinato de mulheres, a questão agrária, o futebol etc,
surgem como emblemas. É prudente salientar aqui, mesmo sem uma visualização mais
231
O povo, entendido como conjunto de cidadãos livres, englobando todas as camadas sociais, o país e a
cidade, e a cidade como espaço de inclusão dos pobres, dos negros, dos suburbanos, das mulheres
humilhadas, dos bêbados e dos loucos, foram os temas que, por toda a vida, moveram sua prática jornalística.
(Resende; Valença. In: Barreto, 2004, p.23).
232
A esta altura da vida, por sua presença constante em diversos periódicos e pela originalidade de seus
textos, onde é capaz de unir a crítica mais acirrada ao humor, Lima Barreto era considerado um cronista
que merecia atenção entre a gente de imprensa e intelectuais críticos da Primeira República. (Resende;
Valença. In: Barreto, 2004, p.16).
intensa, que se emoldura, na produção jornalística de Lima, uma forma própria de denúncia
e engajamento das questões levantadas, sendo que a delimitação em torno da discussão
sobre literatura e jornalismo ganha significações maiores. Em “Quem será, afinal” (ABC,
25/01/1919), Lima Barreto pontua as idiossincrasias do mundo das letras e confronta sua
pretensa “loucura”
233
com as precariedades em torno da burocracia estatal, dos modos de
vida na cidade e da prática rasteira da produção intelectual. aposentado do ministério da
guerra, evidencia uma espécie de desabafo:
Os parcos níqueis que a minha aposentadoria rende dar-me-ão com o que viver,
sem ser preciso normalmente escrever pelinescas biografias de figurões, para
comprar um par de botinas.
234
Há, por parte do jornalista, a edificação de uma briga, ao se chocar com as
normalidades do poder e da intelectualidade vigentes:
Esperava desde muito estes dias de completa liberdade, de independência quase
total, para dizer da minha pobreza a franca verdade aos poderosos e ricos que,
assim, se fizeram por toda sorte de maneiras, honestas e desonestas.
235
A partir da apresentação de sua condição, um tanto alijada dos processos de
participação cultural, evidencia-se uma série de marcadores expressivos de inquietação:
“situação burocrática”, “minha indignação”, “desses fariseus”, “sou tomado por doido”. A
temática que o jornalista parece empreender é, necessariamente, uma luta anti-beletrista:
Compreendo perfeitamente esse estado de espírito policial ou costumeiro, à vista
da carestia de vida e da necessidade em que está o literato que quer ter fama de
não dizer nada, andar bem vestido e fazer parte da corte de algum
Cunhambemba político.
236
Com tal colocação em relação à prática da vida literária nacional, o texto utiliza-se
de vozes oriundas do contato irônico do narrador, quando evidencia:
233
Em dezembro de 1918, é considerado inválido para o serviço público, em conseqüência das múltiplas
internações. Aposentado do serviço público, mesmo tendo o parco salário ainda mais reduzido, sente-se,
enfim, desobrigado de qualquer obediência ao sistema ou da necessidade de ocultar publicamente suas
opiniões. (Resende; Valença, In: Barreto, 2004, p.15).
234
Barreto, 2004, p.450
235
Idem
236
Barreto, 2004, p.452
- Este Barreto é louco! Dizem que escreve alguma cousa engraçada...” (...) não
me aborreceria com essas considerações a meu respeito se elas não envolvessem
duas cousas: a loucura e a calúnia à literatura.
237
Ou seja, ao mesmo tempo em que se choca com a prática literária vigente, preconiza
uma defesa intransigente da literatura. Trata-se, ao que se mostra, de uma demarcação em
torno de sua condição mais íntima (o problema com o alcoolismo, com a loucura) para, a
partir daí, tecer uma espécie de desabafo áspero à política (“poderosos são governados
pelas suas próprias vontades”), reforçar seu estamento de pingente (“meus parentes são sem
valimento e os meus amigos são fracos”), tentar expurgar sua frágil existência, numa
figuração subjetiva muito próxima do eu ressentido” de Isaías Caminha (“mar de goas
íntimas em que bacejo”, “respeitem minha desgraça”). Depois de empreender farpas a
instituições como a Igreja e o poder militar, estabelece a questão crucial da coluna, ao se
perguntar:
- Quem será o maluco? Quem será, afinal?
Não há nada como rir-se por último.
238
É importante dizer que a rebeldia praticada por Lima Barreto se liga à vida cultural
e literária do Brasil, no início do século XX. No mais, a escrita se faz em confronto com
práticas literárias canonizadas, de certa maneira. Todo o torpor empreendido em “Quem
será, afinal?”, uma espécie de grito de revolta com os quadros estabelecidos, ilustra-se em
sua prosa de ficção (a indomável exegeta nacionalista do Major Quaresma, a personificação
da beleza literária no poeta Leonardo Flores, em Clara dos Anjos, ou ainda, e mais
satiricamente, a representação da casta literata como em Bruzundangas (os samoeidas)).
Voltando à decodificação da resistência em Lima Barreto, é de suma importância ressaltar
que a oponência possivelmente se em alguns pontos essenciais. De acordo com Osman
Lins (1976)
239
Os seus pontos de referência, segundo indicam as alusões feitas em várias
oportunidades e a sua prosa mesma, são Machado de Assis e Coelho Neto. Neste
237
Idem
238
Barreto, 2004, p.455
239
LINS, Osman. Lima Barreto e o Espaço Romanesco. São Paulo, Ática, 1976.
último, o “culto ao dicionário” tem o ar de uma evasão, um modo hábil de
conquistar o aplauso benévolo “dos grandes burgueses embotados em dinheiro.
240
Em outro momento, Lins identifica a cisão entre duas escritas opostas:
Jamais incide [a prosa de Lima Barreto] no oco ornamentalismo de seu
contemporâneo Coelho Neto, contra quem seguidamente arremete: O Senhor
Coelho Neto é o sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio
intelectual”. “Não posso compreender que a literatura consista no culto ao
dicionário”.
241
De novo, a literatura. Tal entidade surge forte na maioria dos casos, a reforçar,
inclusive, o processo de ambientação, no qual seus personagens estão imersos. Osman Lins,
em uma espécie de proposição metodológica e ensaística, busca na prosa de Barreto uma
baliza interpretativa das mazelas pessoais e biográficas que percorrem sua escrita.
242
Em “Problema Vital” (Revista Contemporânea, 22/2/1919), Lima Barreto fala
novamente do fazer literário. Entretanto, uma mudança de foco, e seu texto funciona
como uma espécie de crítica literária de uma obra seminal de Monteiro Lobato, para traçar
um diálogo muito representativo.
O Senhor Monteiro Lobato com o seu livro Urupês veio demonstrar isso
[independência e autonomia literárias]. Não quem não o tenha lido aqui e não
quem o admire. Não foi preciso fazer barulho de jornais para o seu livro ser
lido. Há um contágio para as boas obras que se impõem por simpatia.
243
Quando demonstra a força de representação popular em Monteiro Lobato, presente
no livro Urupês ou quando discorda das entrelinhas colocadas pelo escritor paulista no que
concerne à higienização dos meios rurais, Lima esclarece, mais do que a discussão em
torno dos problemas fundiários nacionais (principal mote ético do livro de Lobato):
240
Lins, 1976, p.18
241
Lins, 1976, p.17
242
O estudo de uma determinada personagem será sempre incompleto se também não for investigada a sua
caracterização. Isto é: os meios, os processos, a técnica empregada pelo ficcionista no sentido de dar
existência à personagem. (Lins, 1976, p.77).
243
Barreto, 2004, p.456
Precisamos combater o regímen capitalista na agricultura, dividir a propriedade
agrícola, dar a propriedade da terra ao que efetivamente cava a terra e planta e
não ao doutor vagabundo e parasita, que vive na “Casa Grande” ou no Rio ou
em São Paulo. Já é tempo de fazermos isto e é isto que eu chamaria o “Problema
Vital”.
244
Rivalizando com a questão higienizadora , presente nas entrelinhas de Urupês, Lima
Barreto diagnostica uma simbologia bem maior e mais complexa: a concentração de terras.
Nessa conversa desmedida com Monteiro Lobato, desenha-se um espaço de diálogos, numa
espécie de conluio estabelecido pela corrente ética que os persegue.
Onde está o remédio, Monteiro Lobato? Creio que procurar meios e modos de
fazer desaparecer a “fazenda”.
245
A identificação no aspecto literário surge na análise temática de Urupês:
O seu livro é uma maravilha nesse sentido, mas o é também em outro, quando
nos mostra o pensador dos nosso problemas sociais, quando nos revela, ao pintar
a desgraça das nossas gentes roceiras, a sua grande simpatia por elas. Ele não as
embeleza, ele não as falsifica; fá-las tal e qual.
246
Em Lima Barreto, a crítica à falsificação, à mistificação, ao beletrismo são
componentes de forte teor elucidativo. Como na prosa memorialística empreendida em
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, o jornalismo também se finca como estrato de
verificação do ato da escrita, da práxis literária.
A técnica jornalística do período permitiu a Lima, com a confecção de suas
crônicas, um papel significativo de divulgação de sua obra. Portanto, a produção livresca de
Lima dialoga com as crônicas e escritos em jornal, representando facetas pulsantes de sua
preconização em torno da literatura e da vida social. É evidente, porém, que tal prática nem
sempre é facilmente passsiva ou dócil, havendo a crítica dirigida às precariedades do
mundo do jornal, que naquele momento significa um importante, senão, talvez, o mais
importante, veículo de mediação social e cultural, como salienta Sevcenko.
Nesse contexto, a ampla prosa jornalística (crônicas, críticas, reportagens) de Lima
Barreto sintetiza, de algum modo, as características de resistência e solidariedade, posto
244
Barreto, 2004, p.458
245
Barreto, 2004, p.456
246
Barreto, 2004, p.457
que a atividade jornalística permite ao escritor desvelar as nuances mais esquizofrênicas da
sociedade em transformação, bem como sugerir, dentro do próprio espaço da produção
intelectual brasileira, a disputa entre dois mundos instaurados, ou pelo menos, de visões
distintas em relação aos processos de incorporações e convívios culturais.Ao enveredar as
transformações técnicas oriundas do processo de modernização da empresa capitalista e da
urbanização brasileira (sobretudo, o Rio de Janeiro), Sussekind
247
evidencia “uma nova
técnica” de representação dos níveis da rua, da cidade, da realidade que se determina
pulsante naquele instante. Assim, diz:
Ao lado da tentativa de aproximar a escrita literária da linguagem jornalística, de
capturar a velocidade da movimentação mecânica ou a “fiel reprodução da vida”
das imagens obtidas pela fotografia e pelo cinematógrafo, de figurar a impressão
de aceleração na passagem do tempo que se acentuara desde os anos 80 do
século passado, houve outros confrontos menos miméticos entre forma literária e
artefatos técnicos modernos.
248
Mesmo envolto no que se poderia rotular como “fotografia de uma época”, a obra
de Lima Barreto, sobretudo a produção jornalística, mostra-se também interpretativa e
argumentativa, na medida em que desfoca os níveis de representação apenas velozes.
Muitas das inquietações em relação à modernidade, e do amargor estabelecido pelo
“jornalista” Lima Barreto, surgem da tensão entre o “avanço vertiginoso do mundo urbano”
e os desníveis e segregações sociais pós-regime escravagista.
Então, nas resistências e solidariedades empreendidas por Lima Barreto, uma
análise crítica e áspera ao próprio universo jornalístico. Em “As pequenas revistas”
(26/4/1919), diz:
Nessa questão de publicidade periódica, então, nós, brasileiros, até hoje não nos
podemos emancipar de certas crenças de cinqüenta anos passados (...) ora,
acontece que os quotidianos respeitáveis têm mais que fazer do que se preocupar
com sonhos e outras maluquices (...) entretanto, até hoje, uma grande revista não
se pôde manter no Rio e as pequenas que aparecem têm de levar uma vida
precária e contrafeita, pois o público não as compra e não as toma sério.
249
247
SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de Letras. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
248
Sussekind, 2000, p.89/90
249
Barreto, 2004, p.505
Para Candido (2006)
250
, no ensaio “Os olhos, a barca e o espelho”, a condição
biográfica de Lima Barreto, em seus escritos romanescos advém, justamente, de sua
produção periodística e íntima
251
, na medida em que aplica os componentes pessoais e
biográficos que empreende em sua ficção. Nesse sentido, o fazer jornalístico de Lima
Barreto está atrelado ao componente constitutivo de “espírito” sobre o qual falava
Sevcenko:
Essas “questões particulares” expostas com “espírito geral” exprimem o ritmo
profundo da escrita de Lima Barreto, a sua passagem constante da
particularidade individual para a generalidade da elaboração romanesca (e vice-
versa), que importa numa espécie de concepção do homem e do mundo, a partir
de um modo singular de ver e sentir.
252
A sujeição identitária de Lima Barreto às mulheres, aos pingentes, às massas
operárias ou ao amplo leque de atores dos subúrbios é explorada nos diários íntimos e nos
textos jornalísticos, numa concepção altamente vinculada às pertinências de sua obra
contística ou romanesca. De acordo com Candido
Para Lima Barreto a literatura devia ter alguns requisitos indispensáveis. Antes
de mais nada, ser sincera, isto é, transmitir diretamente o sentimento e as idéias
do escritor, da maneira mais clara e simples possível.
253
Nesta concepção empenhada, devido às circunstâncias de sua vida, que justapõe os
problemas pessoais com os códigos sociais mais veementes, a análise dos textos
jornalísticos e íntimos evidencia, para Candido, a busca pulsante, na prosa de Lima, em
relação ao empenho no ato da escrita e da idéia fundadora de literatura:
A literatura, encarada como vida na qual a pessoa se realiza, parece então
substituto de sentimentos e experiências, e este lado subjetivo não se destaca de
outro, que é o seu efeito e o seu papel fundamental: estabelecer comunicações
entre os homens.
254
250
In: CANDIDO, Antonio. A Educação pela noite. Rio de Janeiro, Ouro sobre azul, 2006.
251
A análise dos escritos pessoais contribui para esclarecer isto [as circunstâncias biográficas], mostrando
inclusive de que maneira o interesse dos seus romances pode estar em material às vezes pouco elaborado
ficcionalmente, mas cabível enquanto testemunho, reflexão, impressão de cunho individual ou intuito social.
(Candido, 2006, p.47/48).
252
Candido, 2006, p.59
253
Candido, 2006, p.47
254
Candido, 2006, p.48
É por meio da constatação de Candido, que se podem identificar “As escoras
sabichonas” (4/1919), com a polarização simples e exata de seu entendimento de literatura
e verificar a crítica à nomeação do doutor Aluísio de Castro à Academia Brasileira de
Letras, quando pontua todo o texto com referências irônicas aos letrados, ao proferir:
“medalhão”, “Jose Bonifácio do Largo de São Francisco”. “Ah, as letras! Todos as
desdenham e todos querem a glória que elas dão”, para no fim resumir sua opinião sobre a
nomeação de Castro: “Todas essas reflexões [acerca do mundo das letras] nos chegam para
dar notícia do recebimento do Senhor Aluísio no albergue intelectual da Praia da Lapa.
Nós, verdadeiramente, não lhe lemos o discurso, nem o de seu paraninfo”. (Barreto, 2004,
p.512).
Partindo da preconização que Candido estabelece sobre a concepção de escrita em
Lima Barreto e utilizando-se do que até aqui foi mostrado em torno da produção de Lima,
cabe agora enfrentar tais posicionamentos textuais e emblemas identificados na obra (e na
vida) do escritor e jornalista carioca em João Antônio (no percurso de sua obra e, mais
especificamente, no corpus Corpo-a-corpo).
3.3. Intertextualidade, leitura e apropriação: Lima Barreto em João Antônio
Não como negar as confluências entre João Antônio e Lima Barreto. de se
frisar, primeiramente, que o jornalismo estabelece, em ambos, uma espécie de modalização
das diversas instâncias em conflitos. É pelo jornalismo, no mais, que parece se configurar
uma espécie de anti-cânone crítico, metalinístico. Quando no texto “Corpo-a-corpo com
a vida”, João Antônio preconiza uma escrita de alto teor de enfrentamento, identifica que
tais condicionamentos de embate haveriam de ser preenchidos pela pena do jornalismo.
Nesse diálogo entre a linguagem jornalística e a criação literária, a partir de um
determinado momento (mais precisamente no desenrolar da segunda metade do século
XIX), criou-se, por meio do jornalismo, uma ferramenta de verificação da realidade,
materializada na interface que ocorre entre Lima Barreto e João Antônio. Quando, segundo
Candido, o componente biográfico se reconhece nas páginas de diários e textos jornalísticos
de Lima Barreto, o que se configura é, evidentemente, uma outra percepção em torno da
realidade. Portanto, em sua escrita mais do que um empreendimento técnico, sendo que
o jornalismo se evidencia como uma mola propulsora de documentalidade do real. No
entanto, seu funcionamento no seio contemporâneo é problemático, é instável, por vezes.
Quando Lima empreende o percurso da memória do narrador Caminha, o que se verifica é
um profundo mal estar na cisão entre o lúdico e o trágico. A partir disso, o que se
demonstra é um retrato cruel da prática jornalística. Quando a própria escrita se veste de
sentimentos de humanização latentes, como se viu, a sua sedimentação se torna presente,
evidentemente. Ornellas (2008)
255
identifica e evidencia os aspectos da crítica ao universo
do jornalismo em João Antônio (na leitura que faz de Lima Barreto), ao mesmo tempo em
que se delineia um profundo sentimento de fraternidade no tocante ao desenvolvimento de
uma escrita comprometida com os setores que ambos apreendem:
Assim como se verificam em Lima Barreto perfis de personagens sucintos e
profundos, em que se representam fatores psicológicos em paralelo às descrições
das características físicas, também em João Antônio localiza-se essa mesma
perspectiva. Na literatura do escritor paulistano, a frase curta é um elemento
utilizado freqüentemente, que gera um efeito de sentido plurissignificativo e até
mesmo de musicalidade, sobrepondo-se intensamente ao simples perfil
jornalístico.
256
Em “Abraçado ao meu Rancor” (2001)
257
, o narrador em primeira pessoa é também
jornalista. Em uma espécie de caminho tortuoso que traça entre um lado cosmopolita da
cidade a sua morada mais recôndita da infância (Morro da Geada, em Presidente Altino, no
município de Osasco), nota-se uma quebra, como se a cidade pela qual flana não carregasse
mais em si mesma, o sentimento da contemplação. “A cidade que deu em outra” é
assustadoramente caótica, envolvida em embelecos da contemporaneidade. Assim,
elementos tão característicos da obra joãoantoniana como a sinuca, o mundinho
pecaminoso do samba (personificado na presença-ausência de Germano Mathias) se
coaduna com a sua condição de jornalista amargurado pela profissão e pela distância que
mantém de seus lares (o mundo da classe média em Pinheiros versus Osasco). Assim, a
crítica dura ao modus operandi do jornalismo aparece como síntese de todo o percurso que
255
In: OLIVEIRA, Ana Maria Domingues de; ORNELLAS, Clara Ávila; SILVA, Telma Maciel da. Papéis
de Escritor. Unesp, Assis, 2008.
256
Ornellas, In: Oliveira; Ornellas; Silva, 2008, p.55
257
In: ANTÔNIO, João. Abraçado ao meu Rancor. São Paulo: Cosac Naify, 2001.
é feito (o périplo nos trens do subúrbio, o processo de degradação das zonas férreas da
cidade, a localização da miserabilidade). A casa da mãe e da avó, no local de sua origem,
(Morro da Geada, presidente Altino, em Osasco) funciona como um cume de alta montanha
a ser conquistado:
Vou descer em Altino, encaro o compromisso. Luto. Apertando, aperto
empurrando, cara fechada, crispo a boca, não peço licença, uso cotovelos e
joelhos. Quando me livro, resfolego como um bicho. Piso o pedregulho úmido
da estação, calado como os outros, cato a passagem de nível, ganho as ruas
esburacadas, de terra, onde água poluída se empoça esverdeada no meio-fio.
258
É evidente que nesse fio de rememoração e movimentação do narrador, a cidade se
transmuta em outra:
Trem é escuro, sujo, fede. Não posso, aqui apertado entre fartum, suores, bodum,
passar sem irritação e uma coisa me faz olhar esses homens, mulheres, meninos,
meninas de cabeça baixa. Fora daqui, por mais que me besuntem de
importâncias, fique conhecido ou tenha ares coloridos, um quê me bate e rebate.
Foi desta fuligem que saí. E é minha gente.
259
Assim como em Recordações do Escrivão Isaías Caminha, no conto-reportagem
“Abraçado ao meu Rancor” ocorre a personificação do um “eu-jornalista” cooptado
260
,
amarguradamente, pelos processos de funcionamento do mundo técnico das grandes
redações, envoltas no processo de emancipação e expansão industrial, colocando este “eu-
jornalista” como um ser desprovido de ideários, de sonhos, de esperanças. O narrador-
jornalista e andarilho de “Abraçado ao meu Rancor” (em uma espécie de desconstrução de
sua própria função, quando cobre um coquetel de dinamismo do turismo em São Paulo)
empreende uma luta desgarrada, numa espécie de continuação de imagens, situações
narrativas, elementos temáticos de obras como Casa de Loucos (1976), Malhação do Judas
Carioca (1975) , Ô, Copacabana! (1978) e na coluna Corpo-a-corpo (1976).
258
Antônio, 2001, p.124
259
Antônio, 2001, p.123
260
João Antônio percebe que a linguagem ascética dos jornais não serve para descrever a vida das ruas, assim
como seu estilo supostamente coloquial despreza a fala do povo. Para ele, o texto jornalístico e a própria
estrutura industrial da grande imprensa, que a torna solidária com os interesses da classe dominante,
impediriam essa aproximação com a realidade brasileira. Desmascarando o radicalismo chique da esquerda
festiva, dizia que, em comparação aos jogadores profissionais, os jornalistas seriam (maus) blefadores.
(Costa, 2005, p.151).
No ensaio “Um boêmio entre duas cidades”, Bosi vê, no percurso do narrador
amargurado, uma ligação umbilical com o “pingente Lima Barreto” ao dizer:
João Antônio revive o perfil do boêmio amargo e clarividente que teve nas letras
brasileiras o exemplo ardido de Lima Barreto. Mestiço, pobre, suburbano,
noctívago, etílico, anarquista ou quase, homem da escrita e do jornal: quantas
afinidades guardadas nas entranhas da memória (...) como no criador de
Policarpo Quaresma, também nesta última prosa de João Antônio [“Abraçado ao
meu Rancor”] as imagens de ontem ressurgem animadas por um frêmito que
muda até a saudade em sentimento de protesto.
261
Percebe-se em “Abraçado ao meu Rancor” uma aproximação de fundo
paradigmático em relação a Lima, mais especificamente com o narrador Isaías Caminha.
Quando se verifica uma concepção em torno da literatura em Lima Barreto, parafraseando
as palavras de Candido, conclui-se que tal empreendimento é marcadamente presente em
João Antônio, como uma espécie de configuração, ao seu modo, de uma propositura de
escrita. Lima Barreto representa não apenas um elo perdido e citatório, mas funciona como
um componente intertextual. Tais elementos se presenciam, significativamente, no debate
que João Antônio empreende em torno da literatura, na coluna Corpo-a-corpo. Assim, as
temáticas do Lima Barreto jornalista
262
exercem elementos aproximativos na confecção da
coluna.
Nota-se, pois, que há elementos difusos, e outros claros, de aproximação entre a
prosa de João Antônio e de Lima Barreto. de se ressaltar, repetidamente, porém, que a
idéia da busca de referenciais por vezes marcados por componentes realista-naturalistas
de uma tradição literária – paradigmáticos em torno de uma escrita altamente personificada,
anti-academicista, se configura também com esse tom, evidenciando, assim, um profundo
jogo de apreensão da vida e da obra de Lima. É desse modo que Lima parece percorrer a
obra joãoantoniana: como emblema, como molde, como paradigma.
Em “Romancista com alma de bandido tímido”
263
, João Antônio faz uma espécie de
análise literária da obra de Lima Barreto, como se quisesse justificar a importância do autor
na literatura brasileira e, ao mesmo tempo, evidenciar os elementos presentes de sua escrita
261
Bosi, 2002, p.239/240
262
Nas páginas de seus livros, Lima Barreto exibiria os bastidores do jornalismo e dos sistemas de compadrio
que fazia triunfar as mediocridades literárias, numa espécie de seleção natural invertida pelo espírito de corpo,
usando e abusando da influência da imprensa na opinião pública. (Costa, 2005, p.59).
263
In: ANTÔNIO, João. Dama do Encantado. São Paulo, Nova Alexandria, 1996.
como síntese de sua própria prosa. Assim, evidencia as características que, de certa
maneira, moldam sua apropriação. João Antônio caracteriza Lima com os componentes a
seguir:
Retrato de uma época: “prefiro dizer que Lima fotografou uma caricatura, a própria
primeira república” (Antônio, 1996, p.87);
O jornalismo: “foi o primeiro questionador, entre nós, de todo o chamado quarto
poder, a imprensa, principalmente em Recordações do Escrivão Isaías Caminha
leitura obrigatória a todos os que estudam comunicação neste país”. (Antônio, 1996,
p.88);
A precarização intelectual: “aos que o atacam argumentando ausência de
originalidade, incorreção gramatical ou péssimo acabamento de fatura literária,
recomendo a leitura do conto “O moleque” e do próprio romance Vida e Morte de
M.J. Gonzaga de Sá”. (Antônio, 1996, p.88);
A vida literária: “Lima Barreto continua sendo um dos casos de perseguição e
brutalidade da censura e da arbitrariedade na literatura brasileira”. (Antônio, 1996,
p.88);
A fauna de personagens representativos da vida pública nacional: “Constituiu
personagens proféticos da falência da nossa chamada República; os políticos como
os de Numa e Ninfa ou o ministro Financeiro Felixhimino bem Karpatoso, de
Bruzundangas, estão aí, vivos e vivaços, mandando e desmandando no Brasil de
hoje, patrioteiros, parlapatões e sem se dar conta de que a linguagem e não
estilo – pode ser o homem”. (Antônio, 1996, p.88);
O estilo e a linguagem: “a simplicidade levada ao extremo por Lima Barreto (...)
será capaz de dar dimensões de obra-prima, em qualquer literatura”. (Antônio,
1996, p.88);
A crítica social presente: “foi o primeiro a denunciar com argumentação concreta e
vívida a necessidade de uma reforma agrária no Brasil”. (Antônio, 1996, p.89);
O hibridismo entre jornalismo e literatura: “jornalista e escritor se confundiam num
todo de cumplicidade e garra comunicativo, direto “vergastava os costumes numa
linguagem despojada e inconformista””. (Antônio, 1996, p.89);
O alcoolismo, a sua própria condição: “Lima Barreto lavrou: “O que estraga o
Brasil não é a cachaça, não. É a burrice, meu caro””. (Antônio, 1996, p.89).
Tais elementos analíticos percorrem, intransigentemente, a obra de João Antônio.
Desenha-se, assim, uma propositura de linguagem, de fazer literário e de tarefa jornalística.
Usando o termo de Prado (1999)
264
, Lima Barreto surge como um personagem de João
Antônio. É evidente que tal leitura se mostra orientativa, de certa maneira, obsessivamente
estudada como um filtro de intenções e apropriações.
Nesse sentido, a personificação de Lima Barreto na prosa e nos textos de João
Antônio ganha um estatuto atrelado aos seus temas, tão reveladores: os merdunchos, os
processos de esfacelamento da intelectualidade e da sociedade, a ferocidade e a violência
no ambiente urbano. Numa espécie de crítica a um novo “bovarismo”, João Antônio
prefigura, nas inquietações de Lima Barreto, uma literatura que passa a ter sentido de
enfrentamento, de resistência.
É evidente que tal caminho não será percorrido, pura e unicamente, com a presença
de Lima. Entretanto, essa parece ser a presença mais emblemática no que se refere a um
processo de estreitamento e luta com o próprio texto, e, consequentemente, com o exercício
da linguagem e do estilo. Nesse aspecto, até mesmo a junção entre a criação literária e a
caneta jornalística suporta significações outras. Uma escrita empreendida pelo “corpo-a-
corpo com vidade ser implementada pelas pistas de um percurso de imersão social,
comprometida em referências múltiplas da radiografia social. Ao retomar os paradigmas
levantados por Lima na primeira república para os difíceis e conturbados anos 1970 , João
Antônio demarca a questão da segregação espacial no seio da cidade.
Desse modo, as andanças de Lima e de seus personagens sugere um aspecto de
enfrentamento solitário e destemido ante a cidade que muda de código Nesse sentido, um
texto como Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto (1977)
265
situa a personificação de duas entidades que deveriam ser descobertas: o homem Lima
Barreto é um ser totalmente atrelado a condição de sua obra e de seus personagens. Para
fazer uma conclusiva desse pressuposto, João Antônio, em uma montagem, utiliza-se da
264
PRADO, Antonio Arnoni. Lima Barreto personagem de João Antônio. Campinas, Unicamp, 1999.
265
ANTÔNIO, João. Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1977.
mediação de um personagem supostamente histórico (Carlos Alberto Nóbrega Cunha),
homem que conviveu com Lima Barreto em internações e em “porres” nos cafés.
A idéia básica dessa “edição cinematográfica” é verificar como o processo de cisão
e de percurso na cidade se evidenciam no percurso de um autor no nível da rua. Por meio
dos cortes empreendidos percebe-se uma união documental dos aspectos de vida do escritor
rememorados pelo narrador “inventado” Nóbrega e de sua obra, evidenciando,
sobretudo, a aproximação dos níveis humanos e pessoais de Lima, numa espécie de
demarcação simbólica.
Nesse calvário de “matriz cristã”
266
, os porres se atrelam a condição de pingente, ou
seja, um ser que se transmuta “dependurado” de um a outro lado da cidade. Nos trechos a
seguir, percebe-se uma espécie de complementação narrativa, ao mesmo tempo em que se
desenha a separação social da cidade percorrida por Lima, quando João Antônio corta as
falas de Nóbrega e mostra as evidências de tal desagregação, desenhando uma cidade
vislumbrada por ares europeus e outra escancarada no cogito de “inferno social” (cf.
Sevcenko (1995)), por trechos concebidos da obra de Lima Barreto:
A maioria era do Catete [grupo de amigos de Lima], Cidade Nova ou bairros
como Anta Alexandrina, o Cristóvão. Itapagipe, Itapiru, Rio Comprido,
Matoso. E não poucos eram de Niterói, vindo de lá atravessando a Baía. Maioria
morava em bairros acessíveis por bondes elétricos. Lima ia de trem, que
apanhava na Central, descia em Todos os Santos e de lá tocava até Inhaúma:
[corte] “o subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as
fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua
situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à
procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma coisa (...) nessa
horas, as estações se enchem, e os trens, descem cheios”. [trecho de Clara dos
Anjos].
267
“A gente que o esperava no Beco do Rosário era suburbana. Modestos, alguns
funcionários públicos, que vegetavam nas frisas mais baixas das carreiras
burocráticas por insuficiência de instrução, embora não de inteligência:
[corte]: “Admirava-me que essa gente pudesse viver, lutando contra a fome,
contra a moléstia e contra a civilização; que tivesse energia para viver cercada de
tantos males, de tantas privações e dificuldades”. [trecho de Recordações do
Escrivão Isaías Caminha].
268
266
In: ESTEVES, Antonio R. Circulando pelas margens. Assis, Unesp, 2008.
267
Antonio, 1977, p.30/31
268
Antonio, 1977, p. 35/36
No ensaio “Circulando pelas margens”, Esteves (2008) na aproximação entre
João Antônio e Lima Barreto e, mais especificamente, na montagem realizada em Calvário
e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto o reforço de uma concepção social
de literatura. Eis o mote intencional, cuja sugestão é, para Esteves, o modelo que guia a
montagem feita entre o “depoimento” de Nóbrega e os trechos da obra de Lima Barreto:
É evidente que, para os objetivos do montador cinematográfico que João
Antônio pretende imitar, é importante que o parágrafo com o qual ele fecha o
livro seja conclusivo [rodapé] e ao mesmo tempo defenda uma função social
para a literatura.
269
Esteves identifica no percurso de Lima Barreto, costurado por João Antônio, a visão
do sofrimento dos pingentes no processo de desagregação e precariedade de cenários
urbanos, numa espécie de assimilação de códigos que se repetem e se deslocam no intenso
jogo de cisão entre o centro e a periferia (impossível não lembrar, novamente, do narrador
de “Abraçado ao meu Rancor”). Desse modo, ocorre a “institucionalização” de Lima
Barreto como representante das dualidades e distinções das ambientações da obra e das
preocupações joãoantonianas:
A via crucis proposta por João Antônio, mais que um caminho de salvação
através do sofrimento, é a repetição de um espetáculo inútil, uma eterna
procissão de bêbados, fora da qual sempre estamos prestes a ser lançados. O
pingente, no entre lugar entre dentro e o fora, como aqueles passageiros
dependurados nos bondes do tempo de Lima Barreto, ou dos trens do subúrbio
do tempo de João Antônio ou de seu leitor, está sempre prestes a cair. E nessa
viagem que tenta levá-los do centro á periferia, ou da periferia ao centro,
mantém-se numa espécie de limbo eterno do sistema; pré-capitalista, dos tempos
da República das Bruzundangas. (Esteves, 2008, p.69).
Prado (1999) sustenta que mais do que evidenciar as aproximações entre João
Antônio e Lima Barreto pelos detalhes da temática e da linguagem de se entender os
processos de aproximação e cisão justamente no que as obras (de ambos) têm a oferecer.
Prado levanta a questão, assim como Candido (2006), de que as crônicas jornalísticas de
Lima representam a reprodução fundamental de tipos e frações humanas, no início do
século passado. Esta é a primeira empreitada de Prado rumo à caracterização que faz da
269
Esteves, In: Oliveira; Ornellas; Silva, 2008, p.67
condição “bêbada e pingente” de Lima a um processo de identificação da obra
joãoantoniana. Assim, Prado diz:
Se é inegável, nesse conjunto [a localização do cotidiano sofrido e dos subúrbios
em Lima] uma espécie de roteiro temático descoberto por João Antônio na
crônica e no conto de lima Barreto, não é menos verdade malgrado o corte
desigual da elocução reaparecem degradadas no que tem de anedótico e de
suburbano nas histórias dos heróis anônimos de João Antônio, em particular nos
tipos que ele recolhe das transformações da cidade devastada pela especulação
do capital para situá-los no lo extremo de um passado ideal que os alimenta
enquanto artífices de sua própria inutilidade, como é o caso da arte ingênua e
socialmente irrelevante dos malogrados parceiros Malagueta, Perus e Bacanaço.
No traçado da crônica de Lima Barreto, João Antônio descobre um tratamento
melancólico do subúrbio e, neste, o sarcasmo sempre pronto a atiçar a crueza da
luta de classes para pôr em evidência a sobrevivência difícil dos destituídos,
esquadrinhados a fundo nas galerias da miséria.
270
Além dessa união, a discussão sobre a concepção literária ganha estofo em cima,
justamente, das questões empreendidas e vivificadas pelos “tipos esquadrinhados” da vida
social. Nesse sentido, surgiu como essencial o ideário do périplo, da andança, dos
percursos. Nesse processo de assimilação da vida urbana que Lima Barreto constrói, há, na
escrita de João Antônio, um aspecto de cisão entre dois pólos, como bem notou Prado.
Encontra-se, assim, a matriz que une, cabalmente, os dois escritores-jornalistas, a
saber: a postura - a partir da retumbante preconização dos pingentes, suburbanos e tipos
desgarrados - combativa, reforçando o tom de debate acerca da literatura e do jornalismo
presentes na coluna Corpo-a-corpo, do jornal Última Hora.
3.4. Lima Barreto presente em Corpo-a-corpo
A preocupação com uma certa combatividade conflui, em João Antônio, na coluna
Corpo-a-corpo, significativamente, para uma proposição de posicionamento literário. Tanto
em João Antônio quanto em Lima Barreto, ressalta Prado, ocorre uma pulsação com
“espécies de animais” (referindo-se aos párias e marginalizados sociais) que percorrem seus
textos em sangue, suor e lágrimas. Essa pulsação intrínseca sustenta um arcabouço de
intenções maiores.
270
Prado, 1999, p.152
Ora, a interpretação que João Antônio faz de Lima Barreto, em Corpo-a-corpo,
funciona não apenas como uma justaposição das quimeras em torno da literatura. É
justamente por uma postura marcada pelo posicionamento crítico ao homem das letras e aos
“doutores da comunicação” que se estabelece uma miríade de representações e
apropriações.
Ora, a apropriação que João Antônio faz dos emblemas e dos tipos de Lima Barreto,
em sua obra, percorre um caminho de estreito contato intertextual, no que se refere não
mais a uma subjetividade alicerçada no individualismo, menos ainda em um objetivismo
pragmático a uma emancipação de marcas ideológicas e de sentido. É em uma atividade
de aproximação de alguns ideários (a organização da cidade, dos tipos urbanos, do
progresso vertiginoso, das condições precárias da existência pessoal e, principalmente, do
ato da crítica ao rebuscamento literário) que o texto se torna diálogo
Parece haver na obsessão da interface entre João Antônio e Lima Barreto uma
característica de prática transformadora. A presença constante da caracterização de um
cotidiano envolto em uma ambientação de valores morais precários evidencia um conflito
inerente ao próprio processo de cisão de personagens e narradores para com a história
pessoal de suas vidas. Nesse sentido, os narradores de Recordações do Escrivão Isaías
Caminha e “Abraçado ao meu rancor”, se mostram inteiramente imersos em um processo
de perturbadora ordem rítmica da memória, ao mesmo tempo em que empreendem seus
pitos a uma ordem estabelecida pela tarefa jornalística.
O embate, já salientado e confrontado no primeiro capítulo, entre jornalismo e
literatura fornece um arsenal de discussões em torno de como a prosa e a escrita servem
como processos de desumanização ou humanização da produção textual. Os exemplos em
Lima e em João Antônio corroboram a tese de que uma espécie de busca valorativa de
compromisso social por parte da literatura. Assim, suas condições literárias são levadas ao
nível da solidariedade com faixas de vida sociais, na medida em que tal atrelamento se
finca, evidentemente, com o processo da própria práxis literária empreendida. Eis, pois, um
outro mote de aproximação [a solidariedade] entre João Antônio e Lima Barreto. Prado
salienta:
A essa atitude perante o mundo [a retratação de seres marginalizados]
corresponde, tanto em Lima Barreto como em João Antônio, o que se pode
chamar de aversão pelo literato. Lima Barreto confessa no prefácio ao Isaías
Caminha ter verdadeiro horror a “essa espécie de animal” que é o literato, que
não deve jamais ser confundido com o verdadeiro escritor. O escritor, para ele, é
o intelectual que escreve para a libertação dos oprimidos através da
solidariedade capaz de aprimorar os sentimentos humanos e assim melhorar a
convivência entre os homens. João Antônio acreditava que escrever era um
sacrifício em favor dos deserdados, quando não dos próprios marginais:
“escrever é sangrar sempre”, nos diz ele, um verdadeiro corpo-a-corpo com a
vida.
271
No texto “Ao escritor, nada”, João Antônio salienta, incondicionalmente, a posição
do escritor nacional em confronto com o funcionamento das esferas literárias nacionais,
impulsionadas pela literatura árida e beletrista. Na demarcação que faz da dificuldade de
publicação, da “máfia” dos interesses editoriais, da possível falência de um público leitor,
localiza uma diversidade de problemas oriundos de tal condição, ao mesmo tempo em que
profere impropérios a uma cultura estabelecida, oficial, acadêmica, numa espécie de
rememoração conflitiva das inquietações de Lima Barreto. Logo após identificar a
dificuldade pela qual passa o escritor Bernardo Elis, arremata com a lembrança de Lima:
Mas estamos em plena Bruzundanga e tudo isso [a precarização do escritor
brasileiro] não é nenhuma novidade. Não mudamos um milímetro. Como
Leonardo Flores, um dos personagens de um dos maiores escritores deste país,
Lima Barreto, ainda escritores brasileiros publicando primeiro o seu livro lá
fora (vide Zero, romance de Ignácio Loyola Brandão) e produzindo coisas que
dão dinheiro e glória a muitos ou a alguns.
272
Há, ao que se nota, uma tentativa de radiografar o chamado “boom” literário da
nova ficção brasileira dos anos 1970, aproximando-a de modelos anteriores, em que o
suporte em Lima Barreto parece ser o exemplo de resistência mais bem resolvido. Se em
“Corpo-a-corpo com a vida”, João Antônio sintetizava algumas preocupações acerca do
jornalismo, principalmente na figuração de um repórter imersivo, quando identifica alguns
exemplos das novas empreitadas textuais dos anos 1970 (nova literatura, romance verdade,
romance-reportagem) há um posicionamento literário e jornalístico.
Nesse contexto, em “Um carnaval de sangue”, ao perfilar as dificuldades da
“imprensa nanica”
273
no Brasil, e de suas experiências em veículos alternativos no país, o
jornalista associa a desventura dos jornalistas afincados na imprensa alternativa dos anos de
271
Prado, 1999, p.156
272
Antonio, 11/03/1976
273
In: BELLUCCO, Hugo Alexandre de Lemos. Um cronista da Imprensa Nanica, Assis, Unesp, 2008.
1970 (Pasquim, Ex, Movimento) como simulacros de um personagem maior, exemplificado
em Lima Barreto:
Digamos, um visionário, mais ou menos á semelhança de um Policarpo
Quaresma do muito considerado Afonso Henriques de Lima Barreto.
274
A partir daí, estende a discussão para a carência nas doações de sangue, às vésperas
do carnaval, montando um mosaico das difíceis condições contemporâneas, em que Lima
Barreto surge como um guia, um resumidor dos quadros no qual todos estão imersos, em
uma apropriação caricatural de país, como nas Bruzundangas do escritor-jornalista carioca:
Tais intrincadas “coincidências”, entre o herege e virulento Rettamozo cabeludo
e feio, e o espírito de disciplina da campanha oficial, asséptico, prudente e
planificado [pela doação de sangue], me levam à humilde conclusão que estou
diante de mais um capítulo da República das Bruzundangas, do meu admirado
Lima Barreto, aquele que bem, deixemos isso pra lá... trata dos heróis da
Bruzundangas.
Bem. Mas uma agravante. O livro de lima foi escrito em 1917 e nós estamos
em 1976. E, em tempo: segundo o “pequeno dicionário Brasileiro de língua
portuguesa”, bruzundanga ou burundanga é um brasileirismo que significa
“palavreado confuso; algavaria; mixórdia; trapalhada; cozinhado mal feito, sujo
ou repugnante”.
275
Em “É o choro que vem”, uma rememoração dos tempos em que a música
popular surge como um adereço de interpretação da sociedade brasileira. Somado a isso,
uma espécie de insígnia no que concerne ao enfrentamento de um mundo “antigo” a duelar
com os códigos da indústria cultural mais explícita. Nesse quadro de evidenciação de um
modo de vida muito específico (o chorinho, seus cantadores etc), o emblema de Lima
Barreto surge, invariavelmente, como sustentáculo da preservação do tradicional ante o
moderno.
Nesse sentido de ação, logo no início da coluna, não menos que a figura de
Policarpo Quaresma vem a ser o modelo de confronto que o autor estabelece entre um
mundo cultural vinculado a estrangeirismos como o rock roll, o filme underground, a
música pop, o realismo fantástico, e um outro atrelado a um processo de resistência
extensivo, no caso, a reminiscência de músicos e tempos de outrora:
274
Antônio, 18/03/1976
275
Idem
Além de Policarpo Quaresma, que defendia radicalmente a coisa nacional e que,
de defesa em defesa, acabou diante de um pelotão de fuzilamento numa das
revoluções do começo do século e que, no final da vida, perguntava qual o
sentido de toda a sua luta, há alguns brasileiros que perseguem a memória
nacional.
276
Ora, parece haver então um posicionamento muito claro. Além da solidariedade
posta em prática por um status de vida, muito específico social e culturalmente, no
processo de apropriação de Lima Barreto, como no caso de Triste Fim de Policarpo
Quaresma, um cenário de longiquidade em relação ao bem simbólico estabelecido no
ambiente da cidade. Nesse sentido, no processo de identificação com os seres da margem,
em João Antônio, há, segundo Prado, um processo de assimilação de linguagem muito mais
intenso, que o estilo propagado por ele estende os bens valorativos de Lima e evidencia,
na sua carne, um desprezo, fazendo surgir em João Antônio a personificação do
merduncho, do virador, do resistente aos processos de ares civilizatórios da etapa derradeira
do século XX.
No trecho abaixo, Prado evidencia a “herança” de Lima em João Antônio no que se
refere aos inevitáveis périplos, calvários:
Isso [a solidariedade] explica que, provado, nas últimas instâncias do abandono,
o solidarismo dos pobres de lima Barreto reapareça em João Antônio com força
redobrada. É verdade que em alguns momentos o lirismo bloqueia a frieza
escrachada de alguns tipos de João Antônio, como na cena em que o velho
Malagueta, farejado por um vira-lata numa rua de terra batida, reflete no destino
do cão e conclui resignado que o pobre farejador do lixo também não passava,
como ele próprio, de “um virador, um sofredor, um de chinelo”, - num gesto
que lembra as inquietações de Lima Barreto com o seu próprio destino, que ele
reconhecia muito próximo da sorte dos cachorros da Barra [rodapé carrocinha
Lima Barreto], uma tarde em que adormece na praia e acorda cercado por uma
família que por ali passava.
277
A reinvenção da linguagem dos excluídos é o exemplo mais bem acabado da
repetição de registros em ambos. É evidente que os emblemas postos pelos jornalistas
errantes em Recordações do Escrivão Isaías Caminha e “Abraçado ao meu rancor”
reaparecerem a todo o momento como sustentáculos depositados no percurso que seus
narradores-personagnes empreendem. Parece haver em tais percursos a idéia síntese de
276
Antônio, 24/03/1976
277
Prado, 1999, p.159
deslocamento da cidade em mutação e do alicerçamento solidário a uma massa
desorientada no processo de civilização. Prado, como foi colocado, sustenta que o processo
de apropriação da fala ou do íntimo contato com o pária social reforça, estilisticamente, a
demarcação ruidosa e intensa em relação à linguagem (desses mesmos indivíduos). Em
“Uma Carta de Minas”, uma espécie de explicação do uso e re-utilização dos fazeres
jornalísticos e literários na confecção de um texto que reforce, pelo ideário de apreensão da
realidade mais cortante, emblematizada em Lima Barreto, os processos de resistência e
imersão na realidade, sendo que exemplos fincados em textos como “Malagueta, perus e
Bacanaço” e “Paulinho perna torta” sustentam tais ações:
Sobre o problema da linguagem, sustento o seguinte: o texto de “malagueta,
perus e bacanaço” ou de “Paulinho perna torta”, por exemplo, se sustenta
porque tem, além da gíria, da fala popular, da coisa catada na fonte, quente,
uma composição de gravidade clássica. Essa historiada de linguagem
jornalística, e conversa de medíocres. Exemplo? Afonso Henriques de lima
Barreto. Ele se valeu do processo jornalístico e até aí, bem. Mas no momento da
realização, de meter no papel, usava um artesanato literário, no melhor sentido.
Exemplos? Tudo o que o mulato escreveu. O gosto pela realidade, aquilo a que
chamo de corpo-a-corpo com a vida já é outra história. Lima olhava para ver
tudo ao seu redor, dter sido, até hoje, o maior ou único escritor dos subúrbios
cariocas. Para começo de conversa, um dos poucos que morava lá, no Rio
esquecido, no “refúgio dos infelizes”. Mas na hora de fazer, fazia com toda a
envergadura cultural clássica. Os seus detratores, ainda hoje, se referem a ele
como um indivíduo de curto lastro cultural.
278
Trata-se de uma orientação singular do trabalho jornalístico, em que a captação da
torrente de fatos é farejada por um processo de apreensão imersiva. uma espécie de
marcação de uma poética, tanto da reportagem, quando do ato literário expandido, no
hibridismo joãoantoniano, a reforçar as inquietações sempre modelares presentes em
Lima Barreto.
Em “Lima Barreto, agora”, no perfil analítico que faz de Lima, João Antônio elenca
uma série de fatores que permeia as condutas presentes na discussão de compromisso social
da escrita, das temáticas levantadas, e do universo que Lima alinha como emblema. Assim,
tais elementos são evidenciados:
A condição primeira de Lima: “O mulato nasceu num dia de encabulação, uma
sexta-feira treze, e se estivesse vivo iria para os 95 anos”;
278
Prado, 1999, p.160
O esquecimento de sua obra, a associação com os pingentes, a condição literária:
“Mas o esquecimento a que está atirada sua produção, me cansa. Dos calvários e
porres desse grande pingente suburbano, urbano, brasileiro e universal é possível
extrair tanta coisa, que encabulo (...) um Rio suburbano ainda gora, como naquele
tempo, esquecido; de uma arraia miúda carioca de que talvez nunca mais se tenha
tido notícia com tal vigor, coerência, paixão e humanismo na literatura desse
país”.
A dualidade entre a precarização intelectual e os detentores do poder: “o nosso
de vaidade que se basta com títulos, fardões e medalhadas; os nossos pobres e
ingênuos artistas populares, usados, manipulados e que acabam chupando o dedo e
sozinhos, como o poeta Leonardo Flores e o modinheiro Ricardo coração dos
outros”;
O choque anti-beletrista: “O diabo é que já tivemos um Lima Barreto. E, quando em
quando, temos que engolir isso, apesar de todos os nossos álibis e “ismos””.
Em Carta Aberta sobre Lima Barreto”, João Antônio (ao reproduzir carta de um leitor
do Última Hora) discute a tarefa jornalística, no exemplo de Lima Barreto, na assimilação
que faz de Recordações do Escrivão Isaías Caminha. De novo, trata-se de uma espécie de
manifesto sobre uma práxis de fazer jornalístico (como em um “corpo-a-corpo com a vida”
ou “Uma Carta de minas”) no qual Lima Barreto se mostra como componente forçosamente
essencial:
Pois bem, como você [do leitor para João Antônio] vê, sou antigo leitor de jornal
e não de última hora [uma referência satírica ao veículo em que escreve João
Antônio, o jornal Última Hora]. Na verdade escrevi alguns artiguinhos no
tempo do Samuel Wainer [fundados do Última Hora] (não sei se agora esse
nome está proibido, como o de Lima Barreto no Correio da manhã, que faliu). E
é isso, justamente, neste papo, que pretendo enfatizar. (desculpe o termo
ministerial).
279
Depois da carta do leito H. pereira da Silva, João Antônio sintetiza as colocações
evidenciadas pelo interlocutor, reforçando a “falta” que Lima faz no quadro da cultura
nacional.
279
Antônio, 17/05/1976
Algumas diferenças em relação a Lima Barreto surgem. Ou seja, na escrita de João
Antônio, parece haver a configuração de linguagem altamente expressiva, uma transposição
de Lima Barreto, numa espécie de resgate argumentativo da importância de Lima como
base de uma concepção identitária de literatura e jornalismo comprometidos com um
“corpo-a-corpo com a vida” brasileira.
Prado evidencia a “leitura” de João Antônio, em relação a Lima:
As águas se separam e o mapa dos temas de Lima Barreto vai sendo claramente
transposto para um contexto que os transfigura, distanciando já não apenas as
personagens e a atmosfera em que elas se movem, mas especialmente o tom e a
perspectiva do relato, para não falar da forma e do próprio argumento, em João
Antônio cada vez mais colados às tensões da linguagem, que passa então a
circular, como notou Antonio Candido, por todos os veis da realidade
socialmente degradada, acelerando o fluxo do monólogo, expandindo a gíria e
abolindo de modo radical as diferenças entre o falado e o escrito.
280
Em “Mais boom””, ao conversar com o escrito Júlio César Monteiro Martins, João
Antônio novamente busca em Lima Barreto a clarificação em torno da chamada expansão
do romance-reportagem, e localiza as mazelas presentes nas décadas que os separam
(romance-reportagem e Lima), no que tange a um funcionamento alicerçado com
normatizações presentes na obra Bruzundangas, de Lima Barreto:
Meu amigo Júlio César Monteiro Martins, que ontem me questionou o tal
“boom literário, está precisando ler um livro, mais conhecido como
Bruzundangas ou Nota sobre a República das Bruzundangas, do meu admirado e
(ainda) hoje esquecido Afonso Henriques de Lima Barreto (...). Nesse livro vivo,
onde os fenômenos são relatados com clareza, coragem e um estimável poder de
antecipação, explicam-se coisas que ocorrem hoje, decorridos sessenta anos. A
literatura, claro, faz parte de um todo e, conforme Lima, a uma malemolência
sestrosa e a impostura bruzundungueira o ocorria com a literatura. Pois, a
Bruzundanga era uma descarada capital de facilitação e do exagero.
281
Ao “receitar” Lima Barreto a Júlio César, João Antônio anuncia um modelo a ser
seguido. um sestro que os une, em que o componente de uma práxis literária anti-
beletrista, como se viu, demonstra-se vinculada, inclusive, às questões personais, sobretudo
a origem suburbana e pobre de ambos, bem como aos ditames do pingente urbano ,
apropriado da vida e da obra de Lima Barreto como um ser dependurado em suas válvulas
280
Prado, 1999, p.161
281
Antônio, 08 a 09/09/1976
de escape na via citadina. Evidencia-se, além disso, o componente da matriz da loucura e
do álcool em Lima Barreto, como um emblema de forte função em João Antônio
282
, nos
seus personagens sem eira nem beira.
Nesse sentido, como salienta Prado:
Daqui a razão para que Lima Barreto, nas mãos de João Antônio, se converta
numa espécie de seus anti-heróis e a perspectiva de sua ficção seja sempre a
perspectiva dos excluídos. Aqui, mais do que propriamente uma afinidade
eletiva, Lima Barreto acaba se transformando em personagem de João Antônio,
nascendo daí a obsessão e a reverência intelectual pelo escritor que ele próprio
confessou que gostaria de ter sido. Calvário e porres do pingente..., sob este
aspecto, é a construção literária dessa personagem que mescla biografia e
transcrição temática, o retrato do homem e um roteiro de obra, num contraponto
que alterna o depoimento, a intuição e a seleção crítica.
283
É na “perspectiva dos excluídos” que parece haver o estabelecimento de uma
representação de Lima Barreto em João Antônio. Viu-se, somado a isso, que nos trechos
referenciais a Lima Barreto em Corpo-a-corpo a discussão da literatura surge como
elemento sintomático das contendas levantadas. Tal “afinidade eletiva” entre Lima Barreto
e João Antônio se afinca em uma generosidade de relato social, em que a admiração de
João Antônio desenha-se como um condicionante dos processos de resistência de
manifestação maior, ou seja, a atribuição de um modo de vida mais amplo, alicerçado no
universo joãoantoniano, “a partir da qual Lima Barreto permanece como um emblema de
injustiçado solitário que a vida pôs à margem” (Prado, 1999, p.164). Identificar e analisar
as marcas conteudísticas, temas e representações de uma vida à margem”, em Corpo-a-
corpo, será o derradeiro objetivo deste trabalho.
282
Jogado assim no meio dos deserdados, o Lima Barreto de João Antônio tem no vício do álcool a virtude do
marginalizado que se preza, bebe e paga os pileques dos mais pobres. (Prado, 1999, p.164).
283
Prado, 1999, p.163
Capítulo 4: O universo do Corpo-a-corpo
Quando enveredamos por ambientações singulares (como os universos temáticos de
João Antônio e Lima Barreto), propendemos a uma análise interpretativa, comparativa. Se
notarmos a confluência entre os discursos empreendidos na obra de ambos, verificaremos
que João Antônio poderia ser apresentado como um escritor da escória, herdeiro, de certo
modo, dos temas e do universo de Lima Barreto; no que diz respeito a suas entregas
fraternas, poder-se-ia pensar numa escrita altamente vinculada com seres em constante
choque com a ordem estabelecida das coisas. Se, ao retornar Lima Barreto, a configuração
de um inferno social passa a ter um significado maior, viu-se, no capítulo anterior, que o
emblema em Lima antevê nuances temáticas aproximativas, numa esfera de fervilhão de
tensões. Essa aproximação com Lima Barreto parece ser o componente essencial para se
entender a escrita de João Antônio.
Portanto, a idéia de uma escrita emoldurada em uma concepção, atrelada a quadros
verificáveis da literatura e do jornalismo (emblematicamente vislumbrados no ensaio
“Corpo-a-corpo com a vida”), reforçaria um espectro de representação maior, quando se
notam etapas íntimas do texto, pelas quais a homogeneização da escrita de João Antônio
ou mesmo, a identificação de um universo – evidencia os rimos de uma escrita híbrida.
Em Corpo-a-corpo o projeto de escrita estabelecido por João Antônio se afinca,
naturalmente, a outras searas, que não a matriz jornalística. Não podemos, então,
vislumbrar a escrita e os propósitos do ideário joãoantoniano à luz de um condicionamento
estanque. A coluna do Última Hora, docemente alcunhada de Corpo-a-corpomais do que
se referir ao ensaio do ano anterior, publicado no livro “Malhação do Judas Carioca”,
preconiza o estabelecimento de uma práxis, que permite sim a um escritor envolto
com as regras do jornalismo pulsante desempenhar um estilo de escrita que penetre e
referende as inquietações de um projeto literário, ou menos pretensiosamente, de uma
concepção de escrita.
É evidente que tal concepção vem alicerçada por uma diversidade de códigos.
Portanto, a pretensão do capítulo derradeiro deste trabalho é evidenciar e identificar que, no
texto empreendido, nota-se, aqui e ali, e também numa visão de mosaico, a sedimentação
de temáticas oriundas, ao que se percebe, por determinadas marcações. Nossa intenção,
pois, condiciona-se a um apontamento não apenas categorizável, embora tal
empreendimento se mostre necessário interpretativo de como o universo da coluna
Corpo-a-corpo resplandece um tipo de comportamento, de localização de etapas prementes
da obra de João Antônio como um todo.
No último texto da coluna, “Joaquinho Gato”, de 27/09/1976, ao reportar a morte do
contista Juarez Barroso, o jornalista empreende uma síntese demarcativa dos processos
enveredados pela coluna até aquela data. O texto se mostra impulsionado, no mais, pelo
relato de carência, de arrebatamento, de desconforto social. Tais componentes são, mais do
que facetas da segmentação jornalística, sintomas envoltos nas discussões empreendidas
pela coluna até aquela data. Assim, a morte de Juarez Barroso representará uma insígnia da
precariedade em veis desastrosos do quadro intelectual nacional. O texto, então, torna-se
resumidor dos assuntos trabalhados por João Antônio. Com isso, faz surgir as idéias
repetidas e condicionadas anteriormente. Juarez Barroso é apresentado como um
representante oriundo das inquietações do período (anos 1960-1970), em que a idéia do
híbrido (o estudioso da música popular, ao mesmo tempo cronista, jornalista) se apresenta
como síntese, pela qual o envolvimento dos setores de tratamento popular (no caso de
Juarez Barroso, o mundo do samba) corrobora para a identificação das “radiografias
sociais”, vislumbradas por João Antônio:
Mais do que exatamente o cronista, o excelente jornalista, o conhecedor de
música popular, o amigo de tanta gente de samba e choro, Juarez Barroso foi um
contista peculiar em meio a uma massa de produção literária que já gerou vários
nomes que vão de boom até angu, geléia e feijoada.
284
O jornalista caracteriza, nesse contexto, Juarez Barroso como participante de um
momento condicionado ao que se chamou de nova narrativa de ficção, de realismo feroz, de
um novo naturalismo e, mais emblematicamente, de romance-reportagem. Em tal
heterogeneidade de alcunhas em torno de um fenômeno editorial, em que aportes textuais
se aprumam de técnicas jornalísticas, o que se evidencia como nevrálgico é que a discussão
em torno das apropriações do mundo samba, da literatura e do jornalismo vem alicerçada
por uma representação de concepção literária. Paradigmas surgem e brotam na discussão
que João Antônio vem empreendendo (dos anos 1970 à década de 80 adentro). Portanto, ao
284
Antônio, 27/09/1976
se comportar e veremos isso como um mediador não de quadros alternativos da
chamada imprensa nanica do “boom literário” que se instala nos anos 1970, ver-se-á que
João Antônio tentará dar significado a uma escrita plural. Era evidente, pois, que a
ordenação de tais demandas confluísse em uma espécie de devaneio de marcas textuais, nas
quais sua obra ficcional passasse a dialogar. Em “Joaquinho Gato”, o jornalista diz:
Dessas características, prefiro assinalar a diversidade: o trabalho do senhor
Ignácio de Loyola Brandão não tem nada a ver com o de Moacyr Scliar, que
nada tem a ver com o de Wander Pirolli, que nada tem a ver com o de Raduam
Nassar, que nada tem a ver com o de Caio Fernando Abreu, que nada tem a ver
com o de Deonísio da Silva ou Roberto Drummond. Enfim, águas diferentes.
285
Percebe-se nessa pequena enumeração, por exemplo, a localização de um escritor
vinculado a uma tradição de cunho predominantemente literário, a identificação de um
“boom literário” e verificação que a produção livresca e editorial adquire no Brasil daquele
período.
Há, portanto, um outro tipo de olhar, a partir dos emblemas parajornalísticos e,
emolduradamente, marcados pela idéia do hibridismo textual, ou seja, João Antônio
vislumbra e identifica uma nova escrita – mais densa, mais violenta, mais atrelada a
elementos realista-naturalistas refletindo a famigerada “radiografia de esferas esquecidas
da sociedade”. Nesse contexto, a presença sempre pulsante nas citações e nas
apropriações, como se viu de Lima Barreto reforça a discussão da diversidade,
evidentemente. Mas mais do que isso, a focalização do chamado romance-reportagem
brasileiro dos anos 70 obedece, segundo João Antônio, uma possibilidade de alinhavar
outros quadros verificáveis. É nessa perspectiva que se entende a metadiscussão
estabelecida pelo autor-jornalista. Aliás, é a partir desses questionamentos temáticos do
boom literário dos anos 1970 que se materializa, na literatura brasileira, uma clarificação do
“inferno social”, tornando-a mais nítida, mais documentada, ademais:
A toda confusão que a diversidade de autores dessa efervescência possa levantar,
alguns fatos líquidos e certos: em diversas áreas e sob estilos vários, se tenta
o surgimento de uma literatura refletindo, de dentro pra fora, as tragédias de
cunho rasgadamente nacional.
286
285
Antônio, 27/09/1976
286
Idem
Assim, vinculado aos propósitos ou a um novo tipo de literatura de tradição realista,
João Antônio na produção de Juarez Barroso um elo das escritas empreendidas no
Brasil, as quais se vinculam com as esferas de outro entendimento que não o meramente
beletrista, ou com o asséptico cheiro de uma ordem canônica e oficialesca. Dessa maneira,
a propositura tão cara de uma hibridização de teores jornalístico-literários, atrelados aos
ensejos de uma diversidade de estilo, é demonstrado, ao que se sugere, em uma
metadiscussão em torno do ato literário. Nesse sentido, o texto sobre Juarez Barroso,
homenageado no derradeiro texto de Corpo-a-corpo, evidencia uma análise intensa tanto da
produção literária nacional, quanto da representação de outros seres, outras histórias, outros
tons (estilísticos e documentais). Desse modo, o contista Juarez Barroso se entrelaça, na
visão analítica de João Antônio, ao cenário oriundo de uma literatura comprometida com
algumas demandas sociais. Nessa análise, o atrelamento a um nome como Graciliano
Ramos só evidencia o sintoma realizado por João Antônio:
Juarez Barroso voltava ao conto em plena forma, ainda mais inteiriço do que em
“Mundinha Panchico” e o Resto do pessoal”. Dificilmente se poderá, neste seu
novo livro, um conto com ponto mais alto. Todos os trabalhos m força e garra
dignos de representar o flagrante de um momento de previsões negras, dentro de
nossas realidades. Cururu, para dar um exemplo, é página inesquecível, de
fôlego e pulso, encontrável na grande literatura de Graciliano Ramos. Tenho
para mim que já pertence ao nosso patrimônio literário pelo que retém de
imperecível como realidade brasileira descarnada e alto padrão estético.
287
Acreditamos que no texto “Joaquinho Gato” é sugerido um caminho de caráter
interpretativo, a partir das nuances estabelecidas com a análise empreendida por João
Antônio. Assim, quando ele fala, novamente, de uma “realidade brasileira descarnada”, é
preciso demonstrar, então, quais os pontos, temas e identificações estão presentes em
Corpo-a-corpo.
Tem-se, assim, personificada pelos textos de cunho marcadamente analíticos como
esse, a dificuldade de se estabelecer um modelo rígido das manifestações dos gêneros e
subgêneros (principalmente os jornalísticos). Porém, como se viu no capítulo, o
endereçamento dos textos obedece a uma demarcação entre textos cronísticos, de matriz
287
Idem
crítica e os empreendidos pela noção narrativa de reportagem, em que supostos vínculos
com o conto se fazem presente.
É importante salientar que no embaralhamento de gêneros se esconde, talvez, a
principal característica de Corpo-a-corpo. Ou seja, a personificação de um repórter ou de
um cronista, por vezes, cede espaço a um jornalista metadiscursivo e crítico a empreender
textos de teor marcadamente analíticos.
Portanto, visualiza-se uma junção de castas de gênero em que a idéia de
atravessamento ou de hibridismo se mistura aos próprios temas tratados na coluna.
Dessa maneira, o propósito analítico da coluna passa, impreterivelmente, pelo
contexto basilar do romance-reportagem, pela discussão literária e jornalística, sendo que a
sedimentação de um universo, de uma ambientação, mostra-se levemente conectada à
própria e sempre presente personificação de enfrentamento, de entrega, de
representação imersiva da realidade. Nesse contexto, a idéia de uma “poética da
reportagem” se mistura aos componentes raivosamente manifestados no ensaio de 1975
(“Corpo-a-corpo com a vida”).
A partir dessas explicações- necessárias e obrigatórias alguns temas se
desprendem, saltam aos olhos, confluindo-se num elo bastante representativo de uma
escrita vinculada com os “ideários” da pulsão joãoantoniana. Assim, mostraremos os
seguintes blocos temáticos identificados na coluna:
Carnaval;
Futebol;
Música popular;
Ambientações populares;
A Cidade;
A tríade jornalismo, literatura e Lima Barreto.
Antes de se visualizar como esses temas são desenvolvidos por João Antônio, na
coluna, é necessária a apreensão das marcas intrínsecas de sua escrita. Aguiar (2000)
identifica a escrita de João Antônio como síntese de labores estéticos e, conseqüentemente,
híbridos no processo de apreensão da realidade. É de suma importância tal análise, pois
permite verificar a escrita joãoantoniana não meramente atrelada à concepção jornalístico-
literária pura e simplesmente, mas evidenciada em uma espécie de radiografia sociedade
brasileira. Assim, Aguiar identifica, no embaralhamento de vozes e de neros
engendrados, a edificação de uma função de escrita, a égide de um universo, de uma idéia
de sociedade e de mundo:
Um Brasil construído pela busca de uma adequação entre o valor estético, a
forma, que aqui inclui uma visão sobre o gênero escolhido, o conto ou no último
caso a reportagem com laivos de crônica, e a função da literatura. Este Brasil
assim decomposto, analisado e recomposto, é retrato, é raiz e é também
projeto.
288
É quase um senso comum dizer, a partir do que afirma Aguiar, que a escrita de João
Antônio esteja alicerçada aos setores da marginalidade e dos processos de miserabilidade
social. Antes de tudo, a urbanidade e seus demonstrativos devem ser analisados como uma
narrativa condicionada, evidentemente, por uma entrega narrativa de imersão, mas que
também especifique a humanidade desses possíveis dejetos sociais. Em Corpo-a-corpo
ocorre, como frisa Aguiar, uma busca de acoplamento do autor com sua obra, seus códigos,
suas preconizações. É necessário ressaltar, portanto, que a inseparabilidade entre o universo
“descarnado” e desnudado e a postura crítica que empreende faz do escritor-jornalista João
Antônio um propagador comprometido (daí, a questão da função literária verificada mais
prontamente) com alguns nichos por ele radiografados. Nesse sentido, a visualização de um
universo joãoantoniano deve ser ratificada nestes componentes aqui elencados. É pertinente
dizer, contudo, que o processo de assimilação de uma escrita nervosa, poeticamente
sugerida na idéia de uma corpo-a-corpo com a realidade, no atributo do enfrentamento,
estabelece-se, justamente, na apreensão inequívoca dos temas, com conseqüentes atropelos
de inquietação, de amargor, no mais. O crítico Fábio Lucas (1999) reflete como se
estabelece um mosaico representativo de “um universo joãoantoniano”:
A linguagem de João Antônio se revela perfeitamente afinada com a vivacidade
e o colorido de suas histórias, empolgantes quase sempre. O universo da
malandragem , que se espelha por bares, sinucas, bocas de fumo e cafuas, a sua
ética, os seus contatos com a periferia pobre e trabalhadora ou com os segmentos
mais corruptos da polícia, os dramas dos soldados na caserna, os namoros de
288
Aguiar, In: Chiappini; Dimas; Zilly, 2000, p.154
pessoas humildes e desempregadas, eis o território humano de que João Antônio
extrai o melhor de sua ficção.
289
A apreensão de um universo joãoantoniano não se fixa, todavia, apenas no espaço
de sua ficção. A partir de Malhação do Judas Carioca (1975), a obra de João Antônio
condiciona-se a um atributo de matriz documental, em que os mesmos aportes de
verificação de uma fatia específica da sociedade passam a desempenhar o mesmo olhar
facetado, sustentado basicamente por uma miríade de deslocamentos de pobreza, de
marginalidade. E é justamente em Malhação do Judas Carioca que a idéia de uma escrita
atrelada a um componente jornalístico ganha estofo, sedimenta-se como símbolo, como
concepção (sobretudo no ensaio “Corpo-a-corpo com a vida”).
Trata-se de uma propensão de fundo marcadamente situado no hibridismo, na
medida em que os elementos de uma nova narrativa literária no Brasil, evidenciada
sobremaneira pela feitura do romance-reportagem associado a um boom literário,
materializam-se.
A visão empreendida também por uma práxis jornalística faz com que a prosa de
João Antônio se reverta não da matriz contística, mas na junção dos elementos da ficção
com o jornalismo. Trata-se, entretanto, de um tipo específico de jornalismo. Como se viu
no capítulo, nas nuances demarcadas entre o comentário personificado numa
subjetividade crítica, na crônica aprumada pelo lírico saudosista, ou na práxis da
reportagem desenvolta, a coluna Corpo-a-corpo se insere, logo, no quadro contextual
vinculado a uma experiência jornalístico-literária.
Quando autores como Antonio Candido, ou Flora Sussekind, ou até mesmo Rildo
Cosson fincam esse momento do boom literário dos anos 1970 como um espaço e um
tempo de experiências atreladas a um novo condicionamento, tem-se um esfacelamento da
idéia da ordenação de gêneros. Nesse sentido, um eventual processo de ruptura de gêneros
se acomoda num outro estatuto, como se demonstra na obra de João Antônio, ou seja, pelo
processo de hibridização entre o ficcional e o documental. Daí, possivelmente, em “Corpo-
a-corpo com a vida”, a reportagem representar esse enfoque de discussão em torno da
escrita. Estabelece-se, pois, a configuração do labor da reportagem como uma mola mestra
da esfera rítmica do cotidiano. Nesse processo de continuidade narrativa e representativa de
289
Lucas, 1999, p.91.
fatias esquecidas da sociedade, o elemento da fabricação textual recebe um funcionamento
de ordem eminentemente jornalístico, sendo que sua propensão discursiva se fundamenta
nas esferas de cisão, mas também de junção de paradigmas.
Trata-se de uma personificação endereçada ao seu próprio universo, como diz
Lucas, específico da ficção. Diz João Antônio no ensaio “Corpo-a-corpo com a vida”:
Daí, subitamente, até como citação e até como epígrafe, o novo gênero (ou seu
plural) trataria o futebol, o jogador, o repórter, o esporte, a polícia, a
habitação, a saúde, o bordel, tal qual ele é. Assim: de bandido para bandido.
290
Com isso, desenha-se um ordenamento de temas – tão profícuos e emblemáticos em
sua ficção – condicionados agora a um novo fazer. Nesse contexto, a enumeração de
quadros representados pela idéia de um repórter imersivo se coaduna em Malhação do
Judas Carioca nos seguintes casos: “Mariazinha Tiro a Esmo”, “Galeria Alaska”, “Cais”,
“Sinuca”, “Malhação do Judas Carioca” e “É uma Revolução”.
A experiência documental de João Antônio, como procuramos demonstrar no 1º
capítulo, percorre a sua obra em movimentos cada vez mais atrelados ao hibridismo dos
gêneros. Ademais, os espaços e ambientações de seu universo se robustecem das
experiências estabelecidas, evidentemente, no cenário urbano. A localização dos cenários
inseridos em um caldo de marginalidade se demonstra cada vez mais vertiginosa nesse
sentido.
Assim, em Ô, Copacabana! (1978), Copacabana é retratada como uma terra
devastada, e seus elementos sociais instaurados na polarização entre o ar cosmopolita e um
cenário que se avizinha aterrador e, ao mesmo tempo, situado na proximidade entre morro e
asfalto numa evidenciação do lance topográfico do Rio de Janeiro, como um processo de
conflito e aqui a geral idéia de enfrentamento e resistência inserida na presença de Lima
Barreto – ganham significação de violência.
Com isso, a degradação evidenciada pelo universo de João Antônio, ao demonstrar
um cenário contemporâneo moldado pela experiência feroz do cotidiano, é a mesma que
coloca em xeque os lances de uma violência coadunada com a transformação, os novos
comportamentos, as condutas de enfrentamento. Os temas sugeridos em “Corpo-a-corpo
290
Antônio, 1975, p.148
com a vida” podem ser manifestados, portanto, com certa fúria no processo de
apreensão. Daí, a personificação do repórter também marginal. Se verificarmos as
narrativas empreendidas pela literatura de ficção dos anos 70 (a obra de JoLouzeiro, de
Aguinaldo Silva, de Renato Tapajós, de Fernando Gabeira, de Rubem Fonseca, de Caio
Fernando Abreu, de Antônio Torres, de Antônio Callado), e nas experiências da reportagem
levadas ao livro, notaremos um profundo “conluio” de temas cortantes, nos quais a
violência e a degradação dos cenários urbanos evidenciam um novo patamar de aspecto e
feição. É importante salientar, porém, que quando se fala do cenário urbano, a idéia de
precarização se mostra atrelada à figura da margem, da desqualificação, do processo de
abandono. É evidente que nesse cenário de conflitos contemporâneos a cidade (como
estatuto, como ambiente) se mostra decadente, alijada, mas também inserida no choque de
classes, no profundo abismo de entidades. Esse enfrentamento no seio de uma sociedade
polarizada se estabelece nos textos de João Antônio. Em Ô, Copacabana!, como havíamos
dito, o bairro carioca se mostra desfigurado justamente no que se refere à paradoxal idéia da
beleza ofiacialesca e quase mítica que o envolve, a rivalizá-lo com um processo de
decadência, que força uma luz de apreensão muito clara, em que há a personificação de um
narrador ligado intimamente nesse processo de flagelo:
Copa injuriada, mal lambida, prejudicada, velha antes do tempo, mijada e cagada
pelos cachorros, marafona fanada, os letreiros das fachadas de tuas lojas ficando
passados, marafona muquirana, muquira, lambona, estuprada, matas cachorro a
grito e jacaré a beliscão, haja-te Deus, pasto de energúmenos, caxinguenta
outrora linda, atopetada de carros e viventes aonde não agüenta e diz chega.
És a que nos resta.
291
Nota-se, com isso, a cidade abrupta dos leões de chácaras, a cidade envolta na
caguetagem noturna sorrateira de Peteleco (em Dedo-Duro - 1982), da cidade do
menino franzino de “Frio”, da cidade preenchida e percorrida pelos três merdunchos
(Malagueta, Perus e Bacanaço - 1963) na noite paulistana. Todos esses seres,
resumidamente, enveredam-se por périplos de uma matriz temática evidenciada pela
miserabilidade, sobretudo do pingente urbano e do merduncho social. Aqui, a referência
quase urgente aos espaços percorridos e descritos por Lima Barreto, no início do século
291
Antônio, 2001, p.118.
XX, mostra-se presente na mesma configuração de seres sedimentados em calvário e porres
mundanos e citadinos.
A partir desse mosaico de interpenetração de sinais na união entre o jornalístico e o
literário em João Antônio é que se devem visualizar os temas elencados em sua obra.
Voltando à questão da práxis jornalística, é preciso ressaltar que um texto como
“Abraçado ao meu Rancor” reforça, num momento posterior (1986), um profundo abalo
pelo qual passa a atividade periodística e a “condição merduncha” do jornalista. O narrador,
quando empreende sua andança do Anhagabaú ao Morro da Geada, em Osasco, conflui-se
no périplo dos trens, nas mazelas que vê, na cidade que foge de suas mãos, em uma
projeção de um estabelecimento da própria condição de pingente:
Presilhado, aos solavancos, aos cotovelões. Sou empurrado e espremido para
dentro do trem e entro debaixo de encontrão. Na tropelia, um pensamento. A
palavra vagão, proibida aos jornais pelos órgãos oficiais, deve ser usada para
transporte de carga ou animais. Assim, que culpa terão os jornalistas com uma
ditadura no lobo, além dos patrões? Alguns, mais afoitos ou rebeldes, estão
comendo processos na cadeia.
292
Reforçando o processo de incorporação do jornalismo na ficção joãoantoniana, e
percorrendo também o caminho contrário, notamos que esta preocupação valorativa em
torno de uma concepção atrelada à idéia de compromisso com setores marginalizados
desempenha em sua obra um sentimento de desfacelamento da atividade jornalística como
um labor decadente que, ele, João Antônio, mas também os narradores (o jornalista de
“Abraçado ao meu rancor”, principalmente) se entregam. Dez anos antes da publicação de
Abraçado ao meu Rancor, esse posicionamento de queda técnica e intelectual do
jornalismo é evidenciado no texto “O seqüestrado inconveniente”, em Corpo-a-corpo:
A imprensa conseguiu, segundo um morador local, “transformar em carne de
vaca um assunto sério [o desaparecimento de um menino chamado Carlinhos]
que tratava do desaparecimento e risco de vida de um garoto de dez anos”.
Jornais, revistas e canais de televisão gritaram pelo menos três vezes estas três
coisas terríveis: Carlinhos morto – Mataram outro Carlinhos – Contrabando
matou Carlinhos. Os alegres e atentos rapazes com suas máquinas e acuidades
alimentaram-se durante meses do caso Carlinhos. E conseguiram contribuir com
nada. Ninguém sequer escreveu uma palavra sobre as mães apavoradas
acompanhando seus filhos às escolas, depois do sumiço do menino.
293
292
Antônio, 2001, p.118.
293
Antônio, 02/09/1976
É evidente que nesse processo de crítica da deterioração da função jornalística se
evidencie a construção figurativa e temática de Corpo-a-corpo, como elencamos
anteriormente, no quadro sintético dos assuntos tratados na coluna.
Além disso, o retrato social desenvolvido na coluna Corpo-a-corpo não dialoga
com outros textos e outras facetas emblemáticas (o caso mais gritante, o de Lima Barreto),
mas também se mostra indissociável do mundo do futebol, da música popular, do samba, da
cidade etc. Ao permitir radiografar um amplo leque do universo da malandragem, do tempo
fugidio, da cidade, tais personagens (os freqüentadores de gafieira, os preservadores do
Cordão Bola Preta, os torcedores de futebol etc) se mostram coadunados a um processo de
humanização
294
em que a idéia de uma escrita se evidencia como portadora de sutilezas
marcantes. Bulhões adverte e indaga:
Pela temática de degradação e “baixeza”, extraída do submundo urbano,
impingiu-se na obra de João Antônio o rótulo de marginal. Nesse ponto,
considerar o universo da sordidez e da marginalidade na obra de João Antônio
pode conduzir á recolocação de um problema muitas vezes debatido pela
crítica que se constitui um verdadeiro dilema para o escritor. Ele assim se
anuncia: como dar voz “ao outro”. Como caracterizar aquele ser, personagem da
ficção, cujo universo, inclusive o de sua linguagem, é distinto do mundo do
escritor?
295
O problema levantado por Bulhões evidencia a averiguação e a associação do
próprio universo de João Antônio. Por exemplo, em “Abraçado ao meu Rancor”
296
, ou em
textos como “Paulo Melado do Chapéu Mangueira Serralha” (presente em Dedo-Duro, de
1982), notam-se desconsolos e desassossegos de narradores envoltos nos ditamos da
deslocação espacial das cidades, ou de tempos evidenciados pelas mudanças, cujos seres
294
“A Literatura propriamente dita é uma das modalidades que funcionam como resposta a essa necessidade
universal, cujas fórmulas mais humildes e espontâneas de satisfação talvez sejam as coisas como a anedota,
adivinha, o trocadilho” (Candido, 2002, p.80)
295
Bulhões, 2005, p.17/18
296
“Trata-se de um exílio, à medida que a personagem palmilha antigas emoções e parte do centro para a
periferia, ou seja, do autêntico sepultado no passado para o inautêntico vivenciado agora. E é curioso que seu
demorado percurso visa a encontrar a avó e o antigo lar do subúrbio, núcleo da identidade da personagem e da
sua conciliação com o mundo. A personagem tem diante de si outra São Paulo, outro tempo”. (Lucas, 1999,
p.98).
“marginais” não se tateiam, não se inserem
297
. Em Corpo-a-corpo essa idéia temática (de
um tempo e de uma cidade que mudam) aparece como símbolo também da linguagem
apreendida. A problemática que Bulhões levanta se perfaz de um ideário, no qual a
linguagem desempenha um papel fundamental em João Antônio, como bem salienta
Cabello (1988):
A obra de João Antônio poderá ser citada como um exemplo de texto escrito que
se aproxima da língua falada, devendo, pois, ser colocada no outro extremo do
eixo binário para ser observada do ponto vista contrário. A presença de gíria na
obra de João Antônio a aproxima da linguagem espontânea e descontraída,
própria do registro oral da ngua. Esse poderá funcionar como um ponto
motivador aliado à curiosidade, que aguça o espírito humano, de desvendar a
significação da gíria do “signo de classe” que envolve a obra.
298
As imbricações de linguagem estão emolduradas por uma possível escolha
discursiva, por parte do escritor (aqui mais entendido e vislumbrado como autor mesmo)
conectado também à construção do espaço identitário a outros elementos (jornalísticos,
intertextuais, culturais). Trata-se, na configuração de Corpo-a-corpo, de um cenário
também associado com a força expressiva da linguagem, evidentemente, mas que se
evidencia pelo conceito de debate (principalmente no que se refere à proposição em torno
do jornalismo e da literatura) em que as entrevistas materializadas por um jornalista João
Antônio se mostram intensas.
Ornellas (2008) esclarece, quando visualiza João Antônio como um leitor, em suas
perspectivas fincadas em Lima Barreto, como ocorrem os modelos de focalização
empreendidos na demarcação presente em sua escrita, por conseqüência:
A obra de Lima Barreto entra no percurso da vocalização universal contribuindo
com elementos de uma literatura de denúncia das discriminações sociais, racial,
literária e, principalmente, combatendo os lugares estabelecidos dentro da
sociedade. Ao falar do próprio lugar de exclusão, sua literatura cria aspectos até
mesmo de certa brutalidade e declarada militância em favor do “pingente”
social. Essa busca de representação das mazelas de sua sociedade, parece se
justificar na ótica de um autor consciente de que não poderia ser de outra
maneira, pois ele sentia na pele as dores da convivência com as implicações
sociais.
299
297
Em “A Lapa acordada para morrer”, tem-se: “Um paradoxo, entretanto. Seu nascimento, indiscutivelmente
nobre, teve o acompanhamento de uma primeira dentição bem ingênua. Apesar de uma juventude aloprada”.
(Antônio, 14/04/1976).
298
Cabello, 1988, p.8
299
Ornellas, In: Oliveira; Ornellas; Silva, 2008, p.48.
Tal trecho é sintomático para se visualizar que os blocos temáticos em João Antônio
são também construídos com a inquietação do processo criativo, ao se permitir moldado das
humanidades que a própria concepção de escrita reforça, evidencia.
A construção temática em João Antônio passa necessariamente por diálogos
empreendidos com uma carga de conversa pujante o que acontece quando se vislumbra o
romance-reportagem, o new journalism etc.). É nesse sentido que Ornellas elenca a figura
das leituras empreendidas por João Antônio em sua biblioteca pessoal (presente no Acervo
João Antônio, da Unesp de Assis), vislumbrando em Lima Barreto o exemplo, como vimos
no capítulo, mais bem resolvido nesse processo de apropriação e assimilação de
simbologias.
Nesse ponto, três pontos saltam à vista numa tentativa de estabelecer marcas macro
estilísticas em João Antônio: a clarificação da marginalidade personificada pela idéia de
merduncho, a vida cooptada pelos costumes e pela competividade atroz do capitalismo
contemporâneo e, finalmente, os pingentes urbanos situados como paradigmas mais
representativos da vida social brasileira.
Chiappini (2000) explana que o merduncho
300
é uma instituição vinculada à própria
esfinge da cidade, que a condição de precarização e de pobreza de setores da sociedade
se mostram dentro de uma representação de mudanças dentre os quais o Brasil se
fundamenta e se esvai. Para Chiappini, os merdunchos representam o centro da obra
joãoantoniana por serem despojados da urbanidade com a qual deparam. Assim, em Corpo-
a-corpo, os trabalhadores alijados do processo de mudança da cidade (“Os tempos eram
outros”), os trabalhadores do Porto (“Marítimos”), a menina prostituta das ruas do Rio de
Janeiro (“Mini”) situam-se no aparato desconcertante de desalojamento. São seres
desalojados da condição de vitimização a que estão inseridos no ambiente urbano.
Entretanto, na escrita de João Antônio, os papéis de tais personagens se locupletam
da questão da evidenciação de suas vozes. Na perspectiva, portanto, de lúmpens é que se
300
“Essa gente ganha um poder dramático, a partir de sua figura física, da magreza, da palidez, do
envelhecimento precoce. Entende? Não bem os bandidos, não são bem os marginais, são bem uns pé-de-
chinelos, o pé-rapado, o zé-mané, o eira-sem-beira, o merduncho – aqui no Rio, se usa esta expressão
merduncho. Quer dizer, é um depreciativo quase afetivo de um merda, merda-merda; então, em vez de um
bosta-bosta, o cara diz – “é um merduncho”. (Antônio, 1976, p.55).
desenha a retratação de tais seres merdunchos. É por meio destas manifestações que eles se
mostram. Chiappini questiona, a partir disso, situações temáticas recortadas:
Ligada à questão dos tipos, ambientes, situações temáticas que o escritor recorta
e ao ponto de vista que adota, está a questão de saber em que gênero ele escreve:
o que faz o escritor-repórter: conto, reportagem, crônica? Tudo isso misturado?
Ou nessa mistura já despontam outros gêneros literários? E para preencher quais
necessidades? A obra de João Antônio é relativamente pequena, fragmentária e
obsessiva, na medida em que os mesmos tipos e expressões voltam de um livro a
outro, retrabalhados, como num jogo que se repete a cada vez como novo estilo
ou novas regras.
301
Como se percebe, a questão da hibridização de neros não é simplesmente um
mero deslocamento de marcas. Trata-se, sim, de um exercício de apropriação, no qual os
merdunchos e os tipos focalizados atendem a determinadas funções. Funções estas de
difíceis demarcações. Quando se verifica a questão do gênero perfil, por exemplo,
aproximações na descrição de pessoas (como se demonstrou no capítulo), se tornam
problemáticas. As idiossincrasias demonstradas no processo de incorporação de
merdunchos, ou de tipos urbanos, se evidenciam num mosaico verossímil, realístico.
Peguemos os casos de Nelson Cavaquinho (compositor vinculado às vísceras com o mundo
simbólico do samba) e da prostituta-mirim Mariazinha Tiro a Esmo. O primeiro é um
sambista e compositor relativamente conhecido, uma figura pública já incorporada no
processo de assimilação de veracidade pelo leitor. A segunda personagem (a prostituta
mirim Mariazinha Tiro a Esmo) situa-se num espaço de percepção oriundo, evidentemente,
da rua, esta tão visceral ambientação joãoantoniana. Entretanto, ao diagnosticar os seus
códigos de conduta, pelo perfil, suas marcas não são totalmente orientadas a um processo
de pura informação. Mais do que evidenciar as características em torno do labor jornalístico
empreendido no texto é necessário salientar que o perfil feito de Mariazinha obedece ao
mesmo padrão empreendido em Nelson, ou seja, um texto narrativo que se vale da instância
da reportagem como percepção, como práxis.
Assim, quando Chiappini questiona a dificuldade de clarificação temática a partir do
processo de hibridização de gêneros, uma assertiva deve estar calcada aprioristicamente, ou
seja, a de que o universo joãoantoniano se mostra reaporoveitável, intertextual e que, na
301
Chiappini, In: Chiappini; Dimas; Zilly, 2000, p.160
reapropriação e na auto-referência explícitas os temas se vislumbram com mais perenidade,
mais astúcia.
4.1. Temas, universo e linguagem
Cabe salientar que a escrita e as temáticas desenvolvidas na coluna se mostram
harmonizadas por um processo maior, sugerindo uma representação de país mais gritante.
Nesse sentido, mais do que evidenciar um passeio por algumas instâncias, João Antônio
empreende em Corpo-a-corpo uma continuação de marcas anteriormente localizadas em
sua obra contística (especificamente Malagueta, Perus e Bacanaço e Leão de Chácara), no
que se refere à absorção do “realismo feroz” caracterizado por Antonio Candido. Como
foi citado, tal concepção empreendida por João Antônio, na feitura da coluna, se vincula a
uma práxis oriunda de um método demarcativo maior, ou seja, ligar o universo temático
ou , ao menos, permitir ligar às idéias de concepção e de função literárias. Nesse sentido,
a pujante assimilação de um mundo cortante e visceral passa necessariamente pela
incorporação do jornalismo, mas também pela linguagem como sustentáculo indissociável,
como na sua ficção. Assim, o texto documental de João Antônio se aproxima de outras
representações, em um processo de hibridização intertextual, em que as marcas da coluna
se evidenciam fortes, alvissareiras.
Zilly (2000) identifica o comprometimento de João Antônio, ao situar o papel da
malandragem em sua obra salienta que:
O “realismo feroz” que Antonio Candido viu em João Antônio, o compromisso
com a representação dos aspectos mais chocantes, feios, injustos, brutais da
realidade sociopolítica, com a confecção de um retrato sem retoque, parece não
deixar muita margem à malandragem irreverente e lúdica, mas mesmo assim
elementos dela existem na sua obra.
302
É curioso notar na fala de Zilly um apelo a uma polarização, a nosso ver, essencial
na demarcação analítica de Corpo-a-corpo: de um lado, a descrição corrosiva de um
aparato de violência cruel na qual a verificação da sociedade situa-se em um cenário de
pessimismo e amargor, talvez confrontando a visão de Aguiar (2000) em relação ao
302
Zilly, In: Chiappini; Dimas; Zilly, 2000, p.183/184
estabelecimento de uma “deseducação do leitor”. De outro lado, a entidade de um quadro
lúdico de marcas muito próximas da crônica como gênero, em que assuntos ligados a um
quadro despojado e “desimportante” situam, ao rés do chão, os comportamentos intrínsecos
destas mesmas marcas.
Voltando, porém, ao que Zilly sugere, a malandragem em João Antônio é um
veículo para a reflexão do próprio país. Nessa perspectiva, Zilly levanta seus pressupostos:
a) ele [João Antônio] desvenda o caráter desse mito [o da malandragem], a não
existência da malandragem no sentido de uma folclorização da pobreza, no
sentido de que o favelado seria pobre mas feliz, pois graças à sua inventividade,
ao seu jeitinho ele se viraria, ele quebraria o galho.
303
As rusgas da vida urbana condicionam os atores do “jogo” joãoantoniano em uma
cortante sobrevivência na cidade. É por esse prisma que o universo de Corpo-a-corpo
assemelha-se aos códigos brutos de sua obra, pois evidencia os níveis mais duradouros da
ânsia da sobrevivência. Os modelos estabelecidos por sambistas, torcedores de futebol e
toda uma fauna de tipos urbanos, vivendo nas condições da baixa expectativa, expõem,
demasiadamente, os planos de uma observação da malandragem em doses diversas. Tem-
se, assim, a edificação de empreendimentos da malandragem alicerçados na própria
conduta dos atores em Corpo-a-corpo.
b) ele mostra que a malandragem do samba é uma ilusão porque as condições de
vida do malandro são muito duras, que a sua vida não é tão alegre assim, que
não há espaço para a malandragem como forma de vida.
304
Em Corpo-a-corpo, sambistas são seres desalojados. Distantes, pois, do que se
poderia chamar de uma mediação pautada pelas indústrias do entretenimento. A dureza
preconizada por João Antônio em relação aos sambistas se estabelece como um
componente de forte resplandecência pessoal, e a propensão de vincular a imagem de uma
austeridade “calejada” nos importantes artistas das ruas faz com que Nelson Cavaquinho,
Araci de Almeida, Ismael Silva, Ciro Monteiro sejam também “pingentes”, dependurados
no desassossego social e emoldurados por uma melancolia nostálgica. Como os redutos da
303
Idem, p.191
304
Idem, p.192
chamada malandragem se esvaem, tais seres perambulam errantes numa cidade desprovida
dos códigos de outrora.
c) num terceiro passo João Antônio evoca com saudade os anos dourados da
malandragem do samba carioca, lamenta a decadência da Lapa, resgata em parte
o mito, valorizando as suas componentes utópicas, a fantasia de uma vida sem
opressões e coerções, sem trabalho duro, sem monotonia, sem as chateações
caseiras, sem as renúncias sexuais inevitáveis em qualquer sociedade civilizada,
um Brasil alegre, humano, conciliado entre as classes, que todas se encontrariam
no prazer de sambarem juntas.
Ao verificar o esfacelamento de algumas marcas, João Antônio estabelece
importantes divisões: a Lapa, o Mangue, os sambistas, o futebol, o Carnaval de antes versus
as regras norteadoras do agora, cujas condutas são alcunhadas pelo jornalista-escritor, como
imorais, na medida em que evidenciam um aparato tecnológico no meio das ruínas do
passado idílico e, conseqüentemente, ético, revestido de uma moralidade peculiar, atrelada
aos códigos da brutalidade e da malandragem. É evidente que com essa divisão, a redução
“civilizada” de uma sociedade que ganha cada vez mais os ares do progresso e da limpeza
(o avanço das linhas do metrô, a higienização das rodas de samba e dos bares) se choca
com o tempo que era condicionado nas normas da sobrevivência. De modo que viver, ou
sobreviver, às margens da “civilidade” seria muito mais problemático.
A partir das proposições de Zilly, é importante notar como tais temas se desenrolam
em Corpo-a-corpo.
4.2. Carnaval dos mortos
Na explanação de suas inquietações, a música e as manifestações populares
desempenharão um papel importante em Corpo-a-corpo. No caso do carnaval, o conceito
de uma festa pagã envolta em sugestões sexuais sedimenta um sentido de pulsação das
relações sociais. A festa do Carnaval surge como uma entidade de libertação, de entrega.
Ao mesmo tempo em que traça o histórico da festa retomando seu processo de absorção à
sociedade dos tempos antigos à atualidade -, situa, numa espécie de mortificação do
carnaval carioca, uma dualidade conflituosa, ou seja, de um lado a instância de um antídoto
dionisíaco, de outro, uma forma de repressão a este estabelecimento.
Em “Moleque e filho bastardo”, de 10/03/1976, lê-se:
Mas um fato é líquido e sempre funcionou como tônica. Desde que existe,
sempre foi bastante mal comportado, com o tempero impertinente de músicas
barulhentas, disfarces, desmandos, máscaras zoadas e bastante licenciosidade.
305
Assim, o Carnaval surge, evidentemente, como uma festa pagã a rivalizar com
alguns códigos sociais, dentre os quais, o mais significativo seria a Igreja:
Refletia um legítimo espírito pagão e a Igreja Católica jamais adotou esse filho
bastardo. Tolerou-o, ás vezes, e, na impossibilidade de evitá-lo, regularizou-o.
306
A partir daí há uma retomada do uso da festa pelos gregos e romanos, passando pelo
processo de incorporação da festa pela Europa ocidental, sendo que a assimilação aos
tempos de Napoleão sugeriria a festa conectada com o espírito bravio do líder francês,
atrelando a figura mítica de Bonaparte aos devaneios de um jogo de prazer e “gandaia”.
Assim, o filho bastardo da Igreja Católica se materializaria no revolucionário e bacante
Napoleão uma associação quase inevitável. Nessa aproximação, desenha-se o Carnaval
como uma prática valorativa dos prazeres, em contraste com potenciais esferas de
repressão:
Segundo a crônica bisbilhoteira de alguns autores, o próprio Napoleão era
homem de cair na gandaia. E integralmente. Mascarou-se mais uma vez e
claramente demonstrava apreciar não especificamente os prazeres carnavalescos,
mas os imprevistos e surpresas que escondiam por detrás das alegres
mascaradas.
307
Em “Sonhar com Rei leão”, de 12 a 15/03/1976, ao retratar a vitória da escola de
samba Beija-Flor de Nilópolis naquele ano, com o samba-enredo sobre o jogo do bicho,
evidencia a clarificação da pequena contravenção de matriz predominantemente carioca
para salientar as respectivas instalações de uma possível malandragem prazerosa (cf.Zilly).
Nesse contexto, a vitória do carnaval pela Beija-Flor com o tema do jogo do bicho
evidencia um processo de cisão entre dois espaços da cidade do Rio de Janeiro:
305
Antônio, 10/03/1976
306
Idem
307
Idem
A franqueza, a ótica rude e suburbana, quase marginal, com que Neguinho
[intérprete de samba da Beija-Flor] a brincadeira do bicho e do samba
(atenção, sabidos: o ludo, não é isso?) sempre de mãos dadas é, neste pobre
entender, um dos momentos mais fortes em que a essência dessa coisa se samba
já se viu auto-retratada.
308
Percebe-se uma união entre a temática do jogo do bicho e o fazer do próprio samba,
num processo de irmandade demonstrado pelo samba-enredo e pela fraternidade
evidenciada no canto feito por Neguinho. Nessa assimilação, o jogo do bicho é mais de que
um tema de carnaval. Representa, aliás, um veículo de resistência, de enfrentamento. Na
reflexão sobre a importância do jogo na esfera desprovida do Rio de Janeiro, João Antônio
proclama o mote do samba da Beija-Flor, para evidenciar, numa espécie de rememoração
insalubre do cenário fluminense, a eminência modelar de Lima Barreto:
Tomávamos comprimido o tempo todo. Para dormir, para acordar, para comer e
para dormir de novo. Os mais vivos fingiam, o comprimido ficava debaixo da
língua e escondíamos. Nas manhãs, eu arrancava a camiseta e ficava lendo,
debaixo do sol, alguma bruzundanga de Lima Barreto. Corria o ano de 71 e eu
me aferrava de amores pela obra do mulato tão suburbano, tão Central do Brasil,
tão Zona Norte e tão nacional. Se me cansava, tocava para a terapêutica
ocupacional, jogava baralho, sinuquinha, levava uns papos. Era hora ainda da
fezinha no jogo do bicho.
309
Como um ente a personificar a topografia desnivelada do Rio de Janeiro (entre
aslfato e morro), o jogo do bicho surge rebocado à figura de Lima Barreto, por exemplo. É
evidente que o termo bruzundanga passa pela ilegalidade na qual o jogo do bicho está
inserido. Em uma marcação cronística (de um tempo e de um espaço carioca), a nivelação
do jogo do bicho a um tema de carnaval cunhado pela Beija-Flor se situa no
desprendimento e na lógica do jogo, de tal modo que o jogo do bicho é irmão do baralho,
da sinuca, dos “leros” dos bares. É nessa seara discursiva que se estabelece um elo entre a
idéia de segregação da cidade, emoldurada, sobretudo, pelo pingente urbano, e as facetas
dionisíacas do jogo, do prazer, do canto, da música.
308
Antônio, 12 a 15/03/1976
309
Idem
Chiappini ressalta que o “jogo da vida” (a sinuca solitária, o desnivelamento social)
se coaduna com a busca de um quadro ético das proposições temáticas evidenciadas pelo
autor-jornalista. Assim, a autora salienta que:
O presente é cada vez mais negro. O Brasil moderno, cada vez mais velho. E o
povo, ao contrário do que pensa Alfredo Bosi [referência ao ensaio “Um boêmio
entre duas cidades”], cada vez mais triste. Não é um “povo alegre porque
sofrido”, tal mensagem cristã não para ler em João Antônio. No trem da
central o pingente joga a vida para exorcizar a morte, mas sabe que não para
cantar samba nessa hora. E, quando canta, canta triste.
310
Ora, assim se tem o pingente e o jogo acoplados em um mesmo espaço, em um
mesmo arcabouço simbólico. Desse modo, o jogo do bicho radiografado pela Beija Flor se
sustenta como um símbolo atrelado ao mundo dos merdunchos, dos pobres. Na leitura de
João Antônio, em relação aos processos empreendidos pelo samba-enredo da escola de
samba, a idéia de jogo preconizada por Chiappini, como um advento de contato com as
esferas da precariedade social urbana, adquire um estatuto de fratria, tão próprio das
inquietudes e da dificuldade da escrita nacional em radiografar as quimeras sociais
contemporâneas. Nesse contexto, o texto reverbera o seguinte quadro:
O bicho é das lavadeiras, das empregadinhas domésticas, dos zé-manés do
lambuzado, das marias-judias sem eira nem beira, dos engraxates, dos contínuos
de repartição blica, dos empregados miúdos, do cara que só tem dez pratas no
bolso e anda de ônibus, dos migrantes da construção civil, dos garis, dos
favelados em geral, dos pingentes urbanos e dos marginalizados que se
penduram e se agarram à cidade do Rio de Janeiro. Este é o bicho.
311
Percebe-se que, nesse processo de assimilação a uma “causa pingente”, o carnaval
evidenciado pela baixada fluminense, com o tema do jogo do bicho, sugere uma
incorporação dramática das condições dos pingentes urbanos. Como Chiappini bem
ressaltou, a questão do pingente está intimamente ligada à questão do périplo, dos calvários,
dos desníveis citadinos. Nesse sentido, é necessária a contextualização do carnaval como
festa pagã, cara ao bom gosto” da classe média e emblemática para os participantes das
comunidades suburbanas e favelas do Rio de Janeiro. A desconstrução da malandragem de
João Antônio evidenciada por Zilly emoldura um quadro de polarização entre cenários
310
Chiappini, In: Chiappini; Dimas; Zilly, 2000, p.172
311
Antônio, 12 a 15/02/1976
assépticos, representados principalmente pela classe média, a duelar com os pingentes. A
inquestionável contravenção, o pequeno crime, em nada difere do processo de
sobrevivência na grande cidade. Ou seja, é justamente nesse processo de sobrevivência que
as marcas de uma escrita ligada aos níveis de função se evidenciam. É nesse sentido que em
“Um nome para pular”, de 15/04/1976, o autor reforça um espírito de despojamento na
focalização de seus personagens na urbe carioca e evidencia o Carnaval como um espaço de
aprimoramento dos processos de vivência, fincando-o, sobretudo como um espaço de
cultura popular. Desse modo, elucida o ritmo da cotidianeidade como sustentáculo do
processo de vivência no dia-a-dia, sendo que o Carnaval representa o instante da fuga:
Mas é claro que o carioca não toma conhecimento de nada disso [o histórico
folclórico do Carnaval]. O Carnaval para ele começa a acontecer uns oito meses
antes de fevereiro. Pular três dias é lado oficial e, muita vez, o melhor
aconteceu antes.
312
É na esfera da rua, portanto, que o Carnaval deve ser apreendido. Em “Carnaval
Grosso”, de 25/03/1976, há, no “histórico” e no depoimento do português Julio Dantas a
respeito do processo de incorporação cultural do carnaval pelos portugueses, uma espécie
de retomada de nossa condição de colonizado para evidenciar que singularidades como
nação evidenciaram a configuração de uma festa viva e sensual, deslocada dos padrões
“chiques”, e não associada a setores da elite cultural. A partir daí, descreve um
“aburguesamento” da festa:
Ninguém reclama do carnaval decadente de agora, exilado das ruas para dentro
dos salões, um Sábado gordo com menor movimento que um sábado normal, as
pessoas saindo às ruas procurando ver alguma coisa e vendo só a cara ansiosa do
vizinho. Afinal, todos saíram para ver alguma coisa acontecer. Acontece bem
pouco. Mas já foi pior.
313
Não “sentido” na festa carnavalesca sem o sentimento de intimidade corporal,
sexual, condicionado à junção de corpos no seio da rua. A reclamação do cronista passa,
evidentemente, por um fulcro de tensões. O carnaval deve, portanto, ser festejado, e o é
pelo escritor-jornalista, com a propositura de uma instituição vinculada às leis de conduta
312
Antônio, 15/04/1976
313
Antônio, 25/03/1976
dos jogos do bicho, vinculada às pulsações (ou radiografia delas) dos pingentes, em uma
legitimidade da questão pulsante e vívida mas também conflituosa da cidade. Portanto,
em “Certidão de nascimento perdida”, João Antônio tenta buscar na raiz da festa o
significado que propõe o Carnaval: incandescente, sensual, participativo, dionisíaco:
O carnaval nasceu nas festas alegres de Ísis (a lua, mulher de Osíris) e de Ápis
(boi sagrado) no seio do paganismo egípcio. O carnaval nasceu entre os hebreus
bíblicos. O carnaval nasceu nas saturnais, lupercais e nas bacanais das noites
doidas de Roma.
314
Perseguindo o mote da dificuldade da origem, demarca:
O carnaval não nasceu na Antiguidade e, sim, na Idade Média. O Carnaval
nasceu com os gregos, nas festas de Dionísio.
315
Na dificuldade de encontrar o nascimento perdido, vocifera:
Nada mais coerente com o festejo adoidado. Para que perturbou tanto e foi tão
aluado, melhor que se esquecesse da idade.
316
4.3. O Futebol dos pingentes e dos merdunchos
O jogo se evidencia novamente na escrita joãoantoniana. O futebol se corporifica
como síntese das dificuldades e périplos de seres também sofríveis, também errantes (sejam
os jogadores, sejam os torcedores). Se verificarmos a obra de João Antônio, veremos
narradores “chapuletados” pela idéia de fazer de uma tampinha (o conto “A afinação da arte
de chutar tampinhas”), uma bola, sendo que o jogo de várzea se coaduna a uma melancolia
por parte do narrador. Podemos ver um árbitro de futebol submerso aos olhares
“assassinos” de torcedores brigões (o personagem Jacarandá em vários contos de Abraçado
ao meu Rancor). Perceberemos que um Atlético e Cruzeiro enche uma cidade (a
reportagem “É uma revolução”) dos arredores e do tempo do espetáculo de sutilezas e
314
Antônio, 20/05/1976
315
Idem
316
Idem
tensões. uma espécie de homenagem a um furor de resistência bandida e mal-educada
do futebol, representada por Almir Pernambuquinho (perfilado em Casa de Loucos).
O futebol em João Antônio é o jogo dos miseráveis. Se verificarmos a observação
que Lima Barreto, anos antes, faz do esporte, percebe-se uma mudança fundamental. Se
antes havia uma propensa participação dandi em seus quadros
317
, no cenário fatigoso do
pós tri-campeonato de 1970, o futebol brasileiro se mostra tênue, romântico, miserável, a
cometer “presepadas” com seus atores. Nesse sentido, um jogador como Fio Maravilha é
perfilado como um anti-herói, anti-gladiador moderno, vítima do processo de
mercantilização do futebol (que depois dos anos 70 se intensificou), vítima de sua própria
desinformação. Noticiando o evento do processo de Fio a Jorge Ben
318
, João Antônio
demonstra que o ocaso do futebol está intimamente ligado a sua própria absorção, ao seu
próprio funcionamento, em “Cabeçadas do Crioulo Doido”:
A situação de Fio, no fundo muito ao gosto dos cartolas, reconfirma que jogador
de futebol continua sendo objeto, instrumento, veículo e não pessoa. Usado
folcloricamente enquanto convinha à cartolagem, tido e havido como uma
espécie de móveis e utensílios do Flamengo, Fio se prestou a tudo. Foi Fio
Maravilha quando jogou bem, foi Crioulo Doido quando jogou mal e foi até
astrólogo de programa da madrugada no rádio.
319
Mais à frente, arremata:
Porque ninguém mais tem nada com isso [o ostracismo de Fio Maravilha].
Querem que Fio se dane, como uma laranja que já chuparam ou um caroço de
azeitona, inútil, incômodo, lixo.
320
Segundo Corrêa (2008), ao analisar as confluências do futebol na escrita
joãoantoniana, demonstra:
João Antônio procurou destacar durante a sua carreira como escritor e repórter a
importância do esporte [o futebol] porque é através dele que, simbolicamente, a
317
Em Sobre o football (15/08/1918), Lima Barreto profere: “Esta minha mania de seguir cousas de football
estava a fornecer-me tão estranhas sensações que resolvi abandoná-la. Deixei de ler as seções esportivas e
passei para as mundanas e para as notícias de aniversário. Mas, parece que havia algum gênio mau que queria,
com as histórias de football, dar-me tenebrosas apreensões”. (Barreto, 2004, p.373/374).
318
Fio Maravilha havia processado o cantor e compositor Jorge Ben pela “imagem exposta na canção-
homenagem “Fio Maravilha”.
319
Antônio, 17/03/1976
320
Idem
população brasileira apresenta-se única, na sua diversidade racial; manifesta-se
numa linguagem, na sua multiplicidade vocabular e revela-se singular, na
pluralidade de anseios, medos, prazeres, enfim, permanece unânime diante da
vida, no momento de atuação de seu time em campo.
321
Na ‘pluralidade de anseios’ vislumbrada por Corrêa, João Antônio tece em Corpo-
a-corpo uma seqüência de dez textos (de 03 a 14/06/1976), intitulados “Crônica do Valente
torcedor” em que muitas marcas analíticas em torno do esporte surgem como montagens.
Muito dos textos empreendidos nesta série são incorporados, refeitos em momentos
anteriores e posteriores de sua obra (são os casos de textos como “Mariazinha Tiro a
Esmo” e da “Galeria Alaska”, por exemplo). Portanto, numa espécie de mosaico da
participação do torcedor na “arquibancada da vida”, as personagens são valentes, na medida
em que suas dores e seus anseios se mostram pulsantes. O torcedor é antes de tudo um
pingente, pois vive alocado entre a condição da paixão e do sufoco de vilipendiamento. O
próprio ato de torcer é um sentimento de anulação e, paradoxalmente, de participação. Os
torcedores são valentes porque são “irracionais”, sendo que desta condição poucos estão
livres, no caldo de convívio social. João Antônio explica:
Assim como aquele que diz dormir como um justo, torcedor de futebol algum
admite a sua condição de irracional. De si para si e principalmente para os
outros todo torcedor é um valente intrépido, justo nas medidas, comedido e
limpo nos juízos e firme em sua convicção.
322
Nesse contexto, os torcedores surgem como cúmplices das caneladas éticas de um
Almir Pernambuquinho, do despreparo evidenciado de um Fio Maravilha. Empreendem,
como o narrador de “Afinação da arte de chutar tampinhas”, a arte de chutar quimeras no
chão do asfalto e das provocações de torcidas nos guetos, nos bares. Assim, o torcedor do
Flamengo é mostrado, em seu momento de dor, a perambular como um merduncho, como
um pingente melancólico na descrição de uma cidade noturna acinzentada:
A iluminação fraca da rua o pegava mal e mal, andava tudo deserto e ele ia
muito sozinho lá com o seu sonho. E queixo no peito. De repente deve ter
suspirado fundo antes e rasgou. Ele largou para ninguém um grito arrastado,
vindo de dentro e que demorou, meio tristeza e meio desespero. Rindo, forrando,
doendo:
321
Corrêa, In: Oliveira; Ornellas; Silva, 2008, p.137
322
Antônio, 03 a 14/06/1976
- Mengoooooo!
323
A descrição das atitudes dos torcedores conflui às suas linguagens, aos seus
comportamentos de vida ante o anseio de suas locupletações, de seus códigos de força, de
suas tensões. Nesse sentido, o goleiro cruzeirense Raul, ídolo das mulheres e meninas
mineiras, é colocado no centro do gramado como um representante do quadro de pingentes
que o vigiam: assim como Jacarandá é, de certa maneira, vilipendiado pelos torcedores,
Raul também o é, pelos incautos oposicionistas do Cruzeiro. É nesse sentido de
averiguação descritiva que João Antônio reforça o tom da aproximação do perfil com a
definição do espaço dos jogos e das arquibancadas:
Famoso pelas suas defesas de penalidades máximas contra o Atlético, ele as
praticou no momento exato em que um verdadeiro coro o expicaçava com um
xingamento vexatório:
- Van-der-léa! Van-der-léa! Van-der-léa!
324
Nota-se a assimilação da linguagem ao específico mundo do futebol. O xingamento
do torcedor rivaliza, evidentemente, com o atributo de beleza (de Raul). Assim, é evidente
que o futebol em João Antônio também é norteado como uma concepção de vida, de
posicionamento ético, ademais.
Ante a beleza e robustez de Raul, jogadores esquecidos são abordados num processo
de precarização e esfacelamento desumano nas relações capitalistas e mercantilistas do
futebol (Roberto Batata, Fio Maravilha, Almir Pernambuquinho). Nesse sentido, os
jogadores abandonados com mais de 30 anos são também seres despojados de sentido.
Alijados de suas próprias condições.
Trata-se, no mais, de um processo de desintegração, de efemeridade. O futebol
parece representar um cenário oco e vazio, onde só a dor parece se locar. O prazer de suas
condicionantes só é preenchido (assim como a festa do Carnaval) se for devidamente
presenciado. Os emblemas da representação do valente torcedor, nesse sentido, são
elucidados pela ótica das massas arrebatadas e sofridas (principalmente Corinthians,
Flamengo, Galo mineiro). É muito sintomático, a partir dessa colocação, entender porque
João Antônio opõe o futebol burocrático da Copa de 1974 à fúria desproporcional e
323
Idem
324
Idem
radicalmente irracional de um torcedor que quer propor um jogo de mandinga, de sorte, de
paixão ao esquadrão canarinho (referência ao torcedor que queria enviar, por correio, um
urubu à Alemanha para levar sorte ao selecionado brasileiro). A beleza e o humor de Raul
se chocam com os “merdunchos torcedores”, e o próprio estabelecimento do futebol como
algo altaneiro, brioso, varonil.
Uma espécie de dor melancólica percorre os valentes torcedores, permitindo-lhes
um sopro de humanidade; daí, possivelmente, as balizas de teor descritivo funcionarem na
radiografia empreendida desse mundo tão específico que, assim como o carnaval, se reveste
de amálgamas de pertencimento, de conduta grupal. Os torcedores de João Antônio são
atores, pois, da incomodada plenitude frágil de suas vidas: o esporte do futebol como
veículo de quedas, sentidos e périplos urbanos, com a personificação de uma entidade
nacional lutadora e sofredora:
Ao resgatar, literariamente, a prática esportiva [do futebol] como uma das
tradições que, conforme ele mesmo afirma, são imprescindíveis à memória de
um povo, o autor [João Antônio] recupera nossa cultura popular num
“compromisso sério com o fato social, com o povo e a terra”.
325
4.4. A música: samba, tradição e o popular
A dimensão da música popular brasileira, em Corpo-a-corpo, situa-se numa esfera
de tradição. Assim, o samba e suas principais personagens são vistos como entes de pureza
nos quadros de tensão da contemporaneidade. O samba sugere um tempo de rememoração,
de um passado que a cidade ainda não pontuou. Se a música representa para a obra de João
Antônio um patamar desses olhares, é justamente nesta representação que se estrutura um
pensar sobre a cultura popular, sendo o samba um emblema, por ser oriundo das zonas
limítrofes do Rio de Janeiro, mas também de São Paulo, especificamente do morro da
Geada em Osasco. Em um “vai e vem de apreensões”, o samba é uma entidade adstrita a
setores envoltos em certa resistência, em certa marginalidade, ou seja, o próprio périplo
entre morro e asfalto sugere tais retumbantes visões.
Além disso, os músicos e os ritmos de outrora (principalmente o chorinho e suas
variantes) são evidenciados como momentos de fraternidade em meio a um caos urbano. O
325
Corrêa, In: Oliveira; Ornellas; Silva, 2008, p.150
samba representa uma cisão com o tropel sem filtro da urbanidade mais atormentada. Se
pensarmos na prática musical como baliza de observações contemplativas, elucidaremos
com maior parcimônia a música popular representada em João Antônio.
Os elementos biográficos pululam aqui e ali numa espécie de reconstrução das
experiências boêmias do pai, um chorão convicto
326
. Essa junção do ambiente musical com
as vicissitudes da boêmia permite endereçar a música inserida num espaço de sufocamento
urbano, e, conseqüentemente, vinculado aos merdunchos da noite, da cidade. Os sambistas
se mostram em sua plena integralidade se inseridos no cenário abrupto dos bares. Este
cenário demarcado evidencia, ao que se mostra, os seres dependurados em suas frágeis
condições. Quando perfila o sambista Ciro Monteiro, em “Ciro”, por exemplo, João
Antônio diz:
O Bar pardellas, na Rua Santa Luzia, sempre reuniu grande parte dos bebedores
e boêmios que apreciam uísque. Na Santa Luzia, como antigamente na Rua São
José, o Pardellas era meio uisqueria nos fundos e meio mercearia na entrada. Foi
um dos QGs avançados de Ciro Monteiro, na Zona Centro, como o Campinho
era o ponto predileto de Formigão. Ali, Ciro passava alguns atestados, baseado
naturalmente em experiência de mais de trinta anos.
327
A prerrogativa da inserção do samba no seio da cidade, em cenários meio que
escondidos ou quase, sustenta a máxima “o samba agoniza, mas não morre”, de Nelson
Sargento, ao figurar o passado, como vimos no trecho acima, como um tempo de
incorporação. Nos anos 1970, o samba “agoniza” com as retomadas de junções entre uma
tradição oriunda dos processos de incorporação da música popular estrangeira (jovem
guarda, tropicalismo) com uma tradição recente de bases elitistas como a bossa nova.
Mesmo incorporado a estas pré-figurações (principalmente a Bossa Nova), o samba vai
se reconstruir como fenômeno de décadas posteriores, incorporando, de certo modo, os
mesmos matizes das baladas e dos ritmos universais pop da indústria cultural. Nesse
sentido, os sambistas estão imersos num quadro de transição temporal, de transição e
326
“Uma tarde, já boca da noite, a gente num alpendre da Lapa-de-cima e a primeira estrela da tarde espetou
aquele céu. Pedi com olhos para que ela me desse sorte. Os homens tocaram um número, ganharam uns
aplausos e foram para a sala beber. Muita gente na roda e na assistência. Descansaram os pinhos no sofá.
Deviam estar servindo café, devia haver bolo. Havia o retinir de xícaras, colheres, alguma voz feminina. Mas
eu estava de olhos firmes naquilo”. (Antônio, 2003, p.92).
327
Antônio, 18/03/1976
comportamentos sustentados pela dualidade entre o velho e o novo. João Antônio, aliás,
sustenta as razões de descompasso na transformação que se depreende:
O Ciro dos últimos dez anos teve uma superioridade. Num tempo em que as
pessoas passaram a adotar um empostado comportamento sentimental. O
Formigão não sentia vergonha de assumir a sua pieguice, o seu ar de
choramingas. Paradoxo. Foi um dos poucos da Velha Guarda a adotar as
transformações do samba com dignidade.
328
A polarização entre um velho e prosaico tempo de dignidade se choca com
transformações inseridas no seio da cultura de massa ao evidenciar o confronto da
entidade chorinho com os emblemas dos novos tempos. Neste processo de assimilação,
destila com ironia:
É dentro desse cenário maravilhoso que vamos sendo obrigados a viver,
enquanto os sabidos e quiquiriquis de fora nos deitam regras, loas e modas e a
gente, se não é forte, vai ficando cada vez mais humilde no seu canto, pensando
que não sabe nada. Os mais fracos, certamente, ainda devem agradecer a Deus
por poderem continuar vivos num mundo de soul, hambúrguer, scotchs, e um
sem-fim de produtos e embelecos de cada vez mais difícil pronúncia.
329
Tal constatação de um cenário envolto pelo clean, pela domesticação, se polariza
com os ambientes encardidos da cidade, envolvidos em outros códigos de conduta. Nesse
sentido, em “Ainda Noel”, a vida e a obra de Noel Rosa evidenciam uma marcação muito
próxima das dualidades da fase industrial da cultura de massa, ante um tempo ainda não
“maculado” pelas junções sincréticas de uma indústria cultural avassaladora e frenética.
Assim, como vincula os torcedores (de carnaval e de futebol) a um espectro demarcado da
cidade, João Antônio reitera o universo do poeta da vila” como um norte, adentrado à
miríade merduncha de sua obra:
No final, o que se tem é um quadro dos amarrotados deste mundo e pingentes
que são os pobres do Rio de Janeiro 75% da população da cidade enfiada no
Rio esquecido, a Zona Norte, favelas trepando nos morros ou mesmo na linha
horizontal, conjuntos habitacionais piores do que favelas (vide Cidade de Deus e
Kennedy), enfim, um cenário de mazelas em que as tragédias suburbanas se
tornaram rotina e amor-e-morte andam sempre de braços dados.
330
328
Idem
329
Idem
330
Antônio, 28/04/1976
Nessa apreensão, dos sicos dos sambas e de suas representações, o sambista se
liga à cidade, também na condição de pingente. Nesse contexto, o emblemático Nelson
Cavaquinho é posto no plano da rua, em “Nosso Compadre e profeta Nelson Cavaquinho”,
no qual o perfilado se mostra andarilho e “profeta” marrento das condições precárias da
cidade, conversando com o narrador-repórter que o acompanha nas enveredadas da cidade
adentro. Nelson é identificado como um anjo-demônio da noite, a percorrer com violões e
copos os bares e vielas. Essa idéia de epopéia rítmica na noite, tão impactante na escrita de
João Antônio, estabelece-se aqui como uma alternância entre os desejos do personagem
Nelson (representado como o samba essencial) e o ritmo nervoso do caminhar. Assim, o
narrador joga Nelson Cavaquinho no centro da platéia merduncha, em algum bar dentro da
cidade carioca, reproduzindo suas falas no discurso direto:
- Esse Nélson Cavaquinho é do chapéu.
São criaturas decentes essas marafonas arruinadas:
- O coroa é bacana demais.
331
O tom muda mais à frente, e a exposição de uma entrevista descritiva se mostra
presente. Nessa conversa empreendida, o narrador expõe as falas adocicadas de sentido no
perfilado, quando demonstra seus anseios em relação ao samba e à vida:
- Eu me arrependo e não ter feito maia pela Neli, minha companheira e pelo
meu caçula, o Nélson Luis (...)
- Quando senti a sica pela primeira vez, atei uns barbantes nas buas para
tirar sons (...)
- O drama, meu compadre, era no fim de semana, no sábado, para entregar o
dinheiro em casa.
Nelson se atrela também ao Rio esquecido, sustentado na boemia desgarrada,
vociferado contra os males entrouchados do capitalismo tardio, incorporado a valores
estrangeiros. Aliás, quando Cartola funda com Dona Zica o bar, restaurante e ponto de
encontro de artistas na Zona Sul carioca (o Zicartola), parece haver um desprendimento
nocivo dos verdadeiros processos de assimilação do mundo do samba, e de seu
componente estético. Nesse contexto, a absorção de tempos higieniza” os botequins,
331
Antônio, 29/04 a 06/05/1976
numa espécie de frenesi ético, por parte do autor, que o tempo remoto parece estar
alicerçado tanto pela pueril idéia do prosaico, como também revestido pela sujeira e
violência necessárias. Dando voz a Nelson Cavaquinho, sustenta:
Confessa [Nelson Cavaquinho] hoje que não estava entendendo mais o Zicartola,
onde os bacanas da Zona Sul o procuravam para assuntos estranhos como:
estrutura do samba, filosofia implícita e cara de conscientização. Queriam esses
corpos estranhos todos no contexto das letras de compadre.E, para ele, que
escreve letra de samba em papel de embrulho, a conversa era esquisita.
332
O samba é visto como um dispositivo anti-beletrista: os homens “sabidos e
embelecados” da Zona Sul, na tentativa de coadunar o samba a seus propósitos de
categorização, em contraste com o samba escrito em embrulho de pão. Nesse debate que se
propõe, a figura de Nelson Cavaquinho se mostra altaneira. É prudente visualizarmos, aqui,
que tal processo de empreendimento de luta é travado contra o academicismo. Aliás, ao
comentar os estudos de José Ramos Tinhorão sobre a história da música popular brasileira,
João Antônio legitima o discurso purista do estudioso de música, pelo resgate das
condições da origem da música brasileira ao plano da rua, nas suas manifestações mais
“originais”, longe, pois, das regras empreendidas pela indústria cultural (do disco, de
shows), a partir, sobretudo, da segunda metade do século XX. Assim, ao conversar com
Tinhorão, em “Tinhorão e as ruas”, coloca-o como um escriba rompido com os costumes
contemporâneos:
fato de escrever sobre Tinhorão é meio passo para ficar queimado. Uma
barra pouco leve, convenhamos. Agora o perigoso mesmo, o arriscado, é o gajo
confessar que leu e que aprendeu alguma coisa com isso.
333
A mesma empreitada feita para Nelson Cavaquinho e, de certo modo, a Tinhorão
reaparece em Araci de Almeida. Presente constante em sua obra, João Antônio na
principal intérprete de Noel Rosa uma figura marcante e paradigmática do samba. O que se
nota, nos perfis de Araci, é que ela consegue apreender tanto os “ares bucólicos” do Rio de
Janeiro de Noel, como evidenciar as transformações da cidade e dos costumes. Sua
332
Idem
333
Antônio, 15/07/1976
concretude desbocada e sua figura iconoclasta reforçam tais constatações. Em “A Dama do
Encantado”, Araci aparece na densidade do cotidiano mais livre, mais enxuto:
Assim como viaja de repente, sem avisar ninguém e até esquecendo
compromissos, Araci não troca nada pela feira, e tranqüilamente esquece,
durante horas, que a estão esperando, enquanto escolhe verduras na feira-livre do
Encantado. Na volta, ela explica, rindo:
-É, compadre, eu gosto de fazer feira. Lá em casa se come muita verdura fresca e
eu mesma é que vou às bancas escolher. Quando não viajo e estou no Encantado,
não perco uma feira. Eu tenho boa mão para escolher, meu filho. Dia de feira
para mim é sagrado, hein.
334
Como se percebe, a construção ou a vinculação do samba ao estabelecimento de
certo despojamento da “malandragem” é desconstruída em João Antônio por um atributo de
junção estética (entre Araci e o escritor-jornalista nacional). Assim, o debate que tece entre
Tinhorão, Nelson Cavaquinho, é o mote de verificação de uma música brasileira ligada,
sobremaneira, à rua, condicionada ao pertencimento e à participação, chamariz de uma
idéia de “povo”. Tal componente é essencial para se perceber um universo unívoco em João
Antônio. No texto “Homem do povo Ismael Silva”, estas demarcações estão mais do que
presentes:
Ainda hoje é possível surpreendê-lo inteiro, escovado, mulato e pobre, senhor
(apesar de arrastar as pernas doentes) vagando botequins da Avenida Gomes
Freire, na Lapa, quase centro do Rio de Janeiro. E mantendo a sua pose. Um
patrimônio da música popular brasileira, cidadão do Estácio de Sá, detentor da
primeira Cartola dourada.
335
Ismael Silva é uma espécie de síntese da dor e do “ser” sambista nos 1970.
Deslocado de suas raízes mais avultadas, vilipendiado no passar do tempo, perambula entre
bares, sustentado pela auréola de significação e incorporado como merduncho. É ingênuo
em sua fortaleza de intenções, é pássaro de vôo curto, com asas podadas.
4.5. Ambientações: da gafieira ao singelo
334
Antônio, 28/08/1976
335
Antônio, 22 a 24/09/1976
Quando Zilly preconiza uma desconstrução da malandragem por meio da
personificação e da junção de João Antônio aos códigos da música, percebe-se um processo
de humanização dos universos apreendidos.
Nesse sentido, a gafieira, o Cordão da bola preta (“Tesouras e Engarfadas”, de
03/04/1976, “Ficou na saudade”, de 12/05/1976, “Pôquer, Dama e Buraco no Sindicato dos
Mendigos”, de 25/05/1976, “Quindim das Mulheres”, de 24/06/1976, “Bola Preta”, de
12/07/1976, “Um Cordão resistente”, de 14/07/1976, “A Passeado do Primeiro Grito”, de
26/07/1976, Gente de Respeito”, de 02/08/1976, “Moçada da Gafieira”, de 03/08/1976,
“Nasce a Rainha Moma”, de 09/08/1976, “Um Código Boêmio”, de 26/08/1976, “Jogatina
no Sindicato dos Mendigos”, de 06/09/1976, “Ética da Gafieira”, de 15/09/1976), cenários
brandos (“Aos 97 anos”, de 08 e 09/04/1976, “Túmulo do Amor”, de 28 a 31/05/1976,
“Ficar no Caritó”, de 27/08/1976, “Virgens”, de 10/09/1976), violentos (“Marítimos”, de
14/05/1976, “Mini”, de 27/05/1976, “A Rua está tocada”, de 04/08/1976) são adocicados ao
gosto do freguês. Nota-se, em tais textos, uma expansão do momento descritivo e narrativo,
e a exposição de conflitos e ambientes.
É evidente que os cenários são emoldurados pelo conceito de musicalidade (no caso,
a gafieira e o Cordão da Bola Preta) e vinculados aos textos de furor” do ambiente urbano
a exporem lugares ensejados de certa puerilidade, no ambientes rurais e interioranos (como
em “Virgens”, e “Ficar no Caritó”). Sabemos que este universo também se avizinha na obra
de João Antônio, desde o seu Malagueta, Perus e Bacanaço. A violência ou a retratação
carcomida da escória das ruas ou dos trabalhadores do porto, por exemplo, evidencia que o
mote da ambientação se mostra tênue e lúgubre, como representante de condicionamentos e
de focalizações maiores. O espaço, para João Antônio, dever ser descrito e, por ventura,
narrado, pela incorporação das idéias basilares de conflito e de tensão, emoldurado e
alinhado por entrevistado e personagem, na mais evidente junção híbrida entre o estatuto do
trabalho do repórter e a matriz narrativa da ficção contística.
Portanto, ao situar ambientes desconexos, ou distintos, em Corpo-a-corpo, tem-se a
impressão de uma amálgama que os une e a constatação de cenários pertencentes a um
mundo em que as esferas de representação do belo materializam-se de outro modo, com
mais intensificação. Ou seja, a repetida menção ao Cordão da Bola Preta e à gafieira
evidencia quadros de comportamentos escondidos à semelhança dos seres merdunchos do
Cais, como a menina-prostituta Mariazinha Tiro a Esmo, como as mulheres virgens do
interior, como o senhor idoso. Trata-se de personagens áridos, desconexos a um outro tipo
de vida, pertencentes a um tempo prosaico. São pares nesse sentido, dos torcedores de
futebol e de sambistas como Ismael Silva e Araci de Almeida.
4.6. A cidade se transforma
Silveira Júnior (2007) sustenta que, em Corpo-a-corpo, a idéia de um urbanismo se
traveste de poeticidade, como também evidencia nuances da ruptura entre o opressor e o
oprimido. Sustenta que
É possível que um Corpo-a-corpo literário não valha tanto em terra onde as
letras, as ciências e a política vivam amolecidos pelo engodo do
supercapitalismo, desvalidos de um destino legítimo. Mas, ora, ao escritor resta
escrever, embora nada lhe responda àquilo que reclama.
336
Percebe-se que uma necessária e instantânea vinculação com os estertores do
inferno social desenvolvido na tese de Sevcenko (“Literatura como missão”) sobre a
literatura missional de Lima Barreto no início do século XX. Chiappini
337
se aproxima às
idéias de Silveira Junior quando ressalta que a escrita de João Antônio é identificada,
justamente, no entrelaçamento de vozes, e de subidas e descidas na cidade vertiginosa em
mutação, ou seja, a cidade que mudou e muda constantemente.
No entender de Chippini, nota-se um intenso condicionamento de João Antônio a
ser uma espécie de narrador da cidade; como uma instituição, no entender, por exemplo, de
Tânia Macedo, no prefácio de uma edição recente de Leão de Chácara.
338
É evidente que o
cenário urbano como monta de representação é visto desde sempre como um espaço de
mazelas da contemporaneidade. Antonio Candido, quando situa a “nova narrativa” exercida
336
Silveira Junior, 2007, p.37
337
In: Chiappini; Dimas; Zilly, 2000
338
“O que se pode dizer com segurança é que João Antônio afirma-se definitivamente como o contista da
cidade (seja ela São Paulo, Rio de Janeiro ou Amsterdã), explorando os significados das vivências urbanas,
ressaltando a falta de vínculos reais e a extrema violência que permeiam a vida nas urbes modernas. E por
isso seus personagens são seres condenados à solidão e ao isolamento, ainda que busquem desesperadamente
o contato e alguma solidariedade”. (In: Antônio, 2002, p.7/8).
de uma pluralidade intensa, em João Antônio, e em outros autores contemporâneos, os
representantes de seres alijados e ou escondidos.
É preciso salientar que a matriz jornalística exerce, nesse contexto, um modo de
apreensão da cidade, ao se permitir documental, e no vínculo que se estabelece com a
ficção joãoantoniana, adquire uma carga de ferocidade. Não à toa Silveira Júnior sustentar
que em Corpo-a-corpo ocorre a seguinte vinculação:
Seu projeto [em Corpo-a-corpo] deixa entrever uma dupla articulação: a
constituição da memória de algumas práticas populares de um Rio de Janeiro
então recente e a atualização da perspectiva que abre a essas práticas no contesto
de uma nova cidade, atraída pelas superficialidades do consumo. O Carnaval (ou
o samba), o jogo do bicho e o futebol são os temas predominantes, brincadeiras,
jogos populares que insistentemente participam do retorno nostálgico de João
Antônio ao tempo perdido. Parecem a seus olhos a manifestação mais plena da
vibração de um coletivo, da convivência alegre e humilde das diferenças num
plano cultural de traços múltiplos que constituem o Rio de Janeiro.
339
Partindo da assertiva de Silveira Júnior, verificamos em “Metro a metro – é o
metrô”, a crítica do desenvolvimento citadino. Nesse sentido, a expansão do metrô é
inimiga da cidade como ambiente de poesia e de ação. A cidade reprime e é reprimida:
Derrubam-se as tradições de um fecha-nunca maravilhoso, marcado, cuja
tipicidade era única na cidade: histórias de estudantes de várias gerações que
misturam artistas, trabalhadores da noite, boêmios, jornalistas, escritores,
jogadores de sinuca, garçons, mulheres bonitas, famosas ou boêmias.
340
A cidade joãoantoniana principalmente à noite se mostra dionisíaca, sendo que
de dia o processo de expansão se mostra tenso e violento, a demarcar a expansão do metrô
em um cenário de guerra. Como vimos no 2º capítulo, a transformação da cidade evidencia,
claramente, os processos de assimilação da ordem e do progresso, com o deslocamento
intenso da marginalidade.
A cidade se mostra, em Corpo-a-corpo, corroída pelas veias percorridas pelos
merdunchos, pelos malandros, pelos coitados. A cidade, pesando na ambientação mais
premente em João Antônio, é, ao mesmo tempo, válvula de escape às intempéries de
sobrevivência, como também cenário das transformações intensas da própria
339
Silveira Júnior, 2007, p.49
340
Antônio, 22/03/1976
marginalidade, da malandragem e da boêmia. Assim, em Corpo-a-corpo, cenários como o
Mangue
341
, a Lapa
342
são distintivos emblemas da cidade “que deu em outra” como o
tempo dos sambistas, do futebol erigido com paixão, dos torcedores encardidos às mesas de
bares. Em uma demarcação nua e crua de tais condicionamentos, Silveira nior demonstra
que o cenário urbano em Corpo-a-corpo é de paixão:
João Antônio é o porta-voz das minorias pobres. Coexiste nelas em ato de
radical passionalidade. Uma personagem sua não é a representação de uma
pessoa ou um tipo; mas em si mesma a confluência de uma existência gregária
(...). Dessa forma surgem verdadeiros heróis urbanos, o signo de uma possível
redenção ou a presentificação de uma liberdade só concretizável porque vivida
numa condição sempre periférica e informal em relação ao mais efetivo
maquinário da cidade. Parece-me ser a defesa ou a preservação do território em
que se inscrevem esses modos de vida que objetiva o autor, quando mapeia
aspectos da vida social da cidade do Rio de Janeiro na coluna do jornal Última
Hora, “Corpo-a-corpo”.
343
Reforçando o que diz Silveira Júnior, em Os tempos eram outros(26/04/1976),
João Antônio opõe a cidade de outrora com a conjuntura presente:
A proliferação de clubes pela cidade terá sido uma das causas da morte da
gafieira como diversão do povo-povo. O crescimento da população, a
conseqüente febre da construção civil e a valorização dos terrenos foram
derrubando os casarões e os sobrados. As que sobreviveram se
descaracterizaram: invadiram-nas os rapazes e moças da classe média em busca
de divertimento pitoresco, cultura popular. E nenhuma delas é fiel a suas
origens, como certificam e dão fé velhos boêmios, músicos e dançarinos.
344
341
Em “O mangue é inédito”: “Esse lado do rio, que até Noel Rosa cantou num samba admirável, o X do
Problema, mesmo a um passo do fim manteve aceso um fio de resistência. Quero dizer, o mangue sempre
desafiou tudo o que se disse, escreveu, pintou ou cantou sobre ele. Ninguém jamais o abarcou de todo,
prendeu o seu espírito, captou-lhe tudo – aparência e essência”. (Antônio, 05/04/1976).
342
Em “A lapa acordada para morrer”: “Famosa por sua boêmia, vida livre, rosário de cabarés, clubes de jogo,
blitzen policiais, império, reinado e república da malandragem carioca, paraíso dos sabidos e calvário dos
otários, mostruário de mulheres famosas, centro da vida política do País em certa faixa da idade republicana,
morada de um poeta bem comportado (Manuel Bandeira, ao lado do Beco das Carmelitas) e de um pintor
famoso no mundo (Portinari, no atelier da Rua Teotônio Regadas), palco de tempos heróicos e de homens de
valor em diversos setores, a bem dizer, a Lapa principiou o seu mau comportamento no finzinho do
oitocentismo e apenas entre 1910-15 é que se fez famosa como uma espécie de perdida na noite”. (Antônio,
14/04/1976).
343
Silveira Júnior, 2007, p.49
344
Antônio, 26/04/1976
Como se percebe, a cidade de João Antônio é emoldurada pela referência dos
sintomas de degradação, de sufocamento. Desse modo, a idéia de esfacelamento urbano é
fixa. Presenteia um atributo de mudança, de doloroso processo de apreensão.
345
.
A cidade de João Antônio não é preenchida pelo tratamento público. É por isso que
as pessoas vitimizadas pela expansão do metrô ou as personagens da Lapa deteriorada são
peças frágeis na emblematização da cidade carcomida a um passo da morte simbólica da
solidariedade, da visão rítmica e participativa de povo. Mesmo, aparentemente, revestida de
certa ingenuidade, a proposição joãontoniana de um passado glorioso, e de um presente
sofrível, se determina, como frisa Bonassi
346
, por uma espécie de vinculação a um Brasil e,
mais especificamente, a uma cidade idealizada, projetada, sendo que a condição de
perenidade se vincula à questão de vivência, ou de sobrevivência, para ficarmos nos
caminhos empreendidos pelos merdunchos e pingentes urbanos.
Magri (2008) salienta que esta propensão de representação “carnal” do universo
joãoantoniano se perfaz pela representação da realidade nacional:
A questão da reivindicação da verdade e a necessidade de se tocar nos aspectos
da realidade brasileira como elementos fundamentais da escrita estão, assim,
mais em relação ainda com a apresentação do que com a representação de uma
realidade vivida pelo autor e por seus leitores.
347
Entretanto, a professora sustenta adiante que:
Para alcançar o homem seria preciso sair da literatura, destruí-la, produzir vida,
corpo. O paradoxo está colocado em que, enquanto escritura, o texto que João
Antônio escreve ainda e sempre é representação.
348
4.7. Concepção literária, jornalismo e, novamente, Lima Barreto
345
“Os contos de João Antônio partem da radical afirmação da humanidade daqueles a quem a aceitação
como “normal” do “socialmente anormal” nega a própria condição humana. Pode-se assim deseducar o leitor
dessa aceitação condenada e dar início à formação de uma nova consciência. João Antônio detém-se nesse
impacto e abdica, felizmente, de uma literatura catequética”. (Aguiar, In: Chiappini; Dimas; Zilly, 2000,
p.155).
346
Bonassi, In: Chiappini; Dimas; Zilly, 2000.
347
Magri, In: Oliveira; Ornellas; Silva, 2008, p.93
348
Idem
O “corpo-a-corpo com a vida”, ou as idéias lançadas pelo manifesto-ensaio,
presente em “Malhação do Judas Carioca”, são prerrogativas importantes para se apanhar
no que é desenvolvido, posteriormente, na coluna Corpo-a-corpo, do jornal Última Hora.
Destarte, os temas empreendidos (samba, carnaval, lugares de ação coletiva, futebol,
cidade) se transmutam em uma idéia de solidariedade na qual os componentes da obra de
João Antônio - como um todo - aparecem de maneira ordenada, funcionando, desse modo,
como uma espécie de síntese.
Como frisa Magri, há a propensão de uma escrita evidenciada pela ligação corpórea,
revestida da “carne” como sintoma de apreensão intensa da realidade. Como vimos no
capítulo, a crônica e a reportagem desempenham seus papéis (aqui entendido, sobretudo,
em nível de demarcação de gêneros) de forma a explicitar a concepção de escrita algo
poética que João Antônio propaga. Tal concepção vem alicerçada pela solidariedade aos
pingentes, mas também evidenciada por um quadro de imersão, em que a reportagem se
mostra fundamental.
É de se supor, portanto, que nesse quadro de leitura de um mundo, ou de uma ação
intencional, surjam textos sobre a escrita, sobre a literatura, sobre o jornalismo, em que
algumas premissas se configuram: a criação de uma espécie de poética em torno da idéia de
imersão e de solidariedade a setores específicos (merdunchos, malandros, pingentes), pela
qual a reportagem funcionará como mote de apreensão de um contato social intenso e
corrosivo. Poder-se-ia dizer que tal concepção de literatura se conecta a uma postura de
raízes antibeletristas, anticanônicas. Como vimos neste trabalho, uma propensão de
matriz metalingüística, na qual o comprometimento como função literária passa a
desempenhar forte conotação de enfrentamento, de resistência. Outro ponto que surge dos
textos de Corpo-a-corpo é a presença de paradigmas no debate que João Antônio
empreende, na busca de um norte para a configuração e também na radiografia de uma
espécie de conduta literária (entendida como concepção), na qual Lima Barreto aparece
como emblema.
Em “Eu mesmo” (já elucidado anteriormente), ao se apresentar aos leitores do
Última Hora, diz:
Estou aqui, atrás da minha máquina, para um corpo-a-corpo com a vida, com
vocês e com a cidade. Saibam que, de todos os meus amores, o mais forte,
irreversível, chamamento, sensualidade, bem querer, ternura e paixão, ir e vir e
voltar a ficar é esta cidade mesma, o Rio que eu escolhi e que, apesar de todos
os meus defeitos, não poucos, me aceita.
349
Como salienta Magri, a literatura impregnada na carne passa por um processo de
entrega em que os componentes de estreitamento social são demarcados no próprio ato da
escrita, numa espécie de quebra de rédeas pontuais, nas quais a literatura, de certo modo,
haveria de ser “assassinada”, em virtude de uma nova configuração, de uma apresentação
visceral em torno da realidade, e, conseqüentemente, como a esfera de pulsação social,
adquiriria uma estatura de empreendimento visceral.
Em “ao Escritor, nada”, João Antônio demonstra o processo de precarização do
escritor nacional e cita vários escritores “abandonados” (entre eles Bernardo Élis e Juarez
Barroso):
Expor a verdade de que nossos distribuidores estão inteiramente desmoralizados,
aponto de serem chamados de mafiosos e qualificações equivalentes: falar que
temos em todo o território brasileiro, para cem milhões de habitantes, o número
de quinhentas livrarias e, destas, apenas quatrocentas estão gabaritadas a
pagarem as faturas que assinam – aí, sou um azedo pessimista.
350
João Antônio estende a denúncia da precarização literária às praias do jornalismo.
Enxerga na atividade jornalística do período marcas de um discurso inodoro, alicerçado
pelos códigos brutos da profissão; com isso, demarca os pontos de contatos entre um
jornalismo absorto por assimilações estrangeiras e outro, naquele momento, atrelado a
quadros raivosos, como a imprensa alternativa (a chamada imprensa nanica
351
). Em “uma
Carta de Minas”, João Antônio demarca os dois lados da questão. Primeiramente,
incorporando o jornalista Lima Barreto, fala da condição intrínseca do escritor nacional,
apropriando-se de uma leitura de caráter marginal:
Certamente esses sabidos não tiveram a oportunidade de ler o inventário do
escritor [Lima Barreto] e sequer correr os olhos na “Limana”, que o autor
349
Antônio, 09/03/1976
350
Antônio, 11/03/1976
351
A inserção de João Antônio na imprensa nanica confunde-se visceralmente com sua prática literária
naqueles anos, no plano de atuação pública como escritor e na fatura de seus textos. Essa confluência faz-se
principalmente por dentro dos jornais mencionados em “Aviso aos Nanicos”, quando o tipo de imprensa ali
praticado apresentava-se como um novo campo de intervenção e um problema de peso na experiência de João
Antônio”. (Bellucco, In: Oliveira; Ornellas; Silva, 2008, p.71).
relacionou em 1917 e onde se encontravam livros e publicações, em várias
línguas, que subiam à casa de mais de um milhar de títulos e que formava, em
várias línguas, um cabedal respeitável para a época. Ainda mais de surpreender
quando se pensa que o dono da Limana” era pobre, mulato, não passava de
amanuense de ministério público, tanto que morava em Todos os santos, onde
fez o registro de sua biblioteca. Nós não desconhecemos, que ninguém aqui é
criança, que o elemento clássico transfere dignidade, sobriedade, seriedade à
cena mais moleque ou “povo”. Sem ele, não teria feito o que hoje chama de
“clássico velhaco” e que é o meu conto “Malagueta, Perus e Bacanaço”.
352
uma propensão do jornalista em apreender os quadros da realidade preconizada
por Lima. A produção jornalística de João Antônio e sua trajetória na imprensa
353
demonstram uma espécie de repetição do rumo de Lima Barreto, do mesmo endereçamento.
Nesse sentido, a expressão “imprensa nanica”, com a própria idéia da imersão proposta na
expressão corpo-a-corpo, admite fazer da escrita híbrida (jornalismo e literatura) uma
válvula de escape. É evidente que, a partir dessas assertivas e ações, a cnica funcional da
redação jornalística dos manuais não deve ser apreendida, pois não funcionaria, ou não
conseguiria, preencher as demandas de incorporação da realidade, não possuindo, desse
modo, o caráter de imersão:
Se s pararmos nessa coisa da técnica jornalística usual, vamos todos acabar
fabricantes de situações passageiras. É o ponto-de-vista que emite, até para o
próprio jornalismo corrente, uma linha de laboratório (no caso, os nanicos
PASQUIM, EX, SCAPS, O BICHO etc.) aonde certas experiências, antes de
chegarem ao uso geral, estabelecido, consagrado.
354
A experiência evidenciada no trecho anterior é que a concepção dita, a todo o
momento na coluna, um círculo que dificilmente se fecha, sendo que a escrita é acionada e
é refletida a todo instante. Parece haver, nesse contexto, uma propensa assimilação de
trabalho corpóreo.
O que se mostra é o esboço de uma poética atrelada em mão dupla com os
universos temáticos que o escritor-jornalista almeja. Nesse sentido, a concepção de uma
352
Antônio, 26 e 27/03/1976
353
“Como não conseguiu viver apenas do seu trabalho literário, João Antônio se via obrigado a militar
profissionalmente na imprensa brasileira. É necessário frisar que ele começou a sua carreira de escritor muito
cedo e que a profissão de jornalista foi uma atividade paralela ao mundo das letras”. (Azevedo Filho, 2002,
p.17/18).
354
Idem
escrita literária ou jornalística também se torna tema, e alguns paradigmas se tornam
personagens, como é o caso de Lima Barreto.
355
Em “Escritor. Estivador?”, o próprio titulo sugere a idéia de enfrentamento. O
“escrever é sangrar sempre”
356
ganha aqui um estatuto de heroísmo e ao mesmo tempo –
de carência. O escritor nacional é caracterizado também como um pingente, como um
merduncho: “um escritor sozinho é um homem só”, “um trabalho de estiva mental”, “um
vendedor como vendedor de cebolas e batatas”. A luta do escritor-estivador é com setores
falsamente intelectuais, mas que controlam e difundem a produção cultural no país,
restando ao escritor a condição solitária e o namoro” com a máquina de escrever. No
entanto, João Antônio propõe:
Aqui, atrás desta máquina, é impossível não tomar uns ares de relativo otimismo
[a citar escritores da literatura dos anos 1970]. Afinal, são autores brasileiros e a
gente precisa deixar de ser tão humilde, encolhido zé-mané. A humildade dever
ser qualidade maior de papas, reis, ditadores e homens poderosos. Para gente que
consegue fazer literatura depois de um dia de trabalho, roubando tempo de lazer,
matando feriados e domingos, a humildade não é a melhor indicação.
357
Em “Um Drama de Escritor”, por exemplo, volta à questão do ostracismo do
escritor Bernardo Elis, evidenciando um quadro de carência nacional, numa espécie de
negação do país à literatura e aos seus escritores:
Essa perspectiva de cenário pouco maravilhoso causaria espécie a qualquer
escriba da praça. Afinal, diante de um desabafo de tal força, ficava uma pergunta
sobrepairando se um acadêmico enfrenta tais precariedades, o que será dos
escribas, como este aqui, que não têm condições nem de pertencer à Academia
Caxiense de Letras?
358
Quando se coloca em uma posição de maldito, de precário, de merduncho, João
Antônio se evidencia e se apropria como um resistente. Ou seja, se o escritor ou o
jornalista deve empreender um corpo-a-corpo com a vida, tal delimitação deve ser
355
“Um primeiro veio de convergência possível poderia estar na disponibilidade ideológica para o conflito,
que define, tanto em Lima Barreto quanto em João Antônio, não apenas a definição do espaço do texto, mas
particularmente os modos de elocução do argumento”. (Prado, 1999, p.148).
356
Expressão utilizada no ensaio “Corpo-a-corpo com a vida”, de 1975
357
Antônio, 18/05/1976
358
Antônio, 26/05/1976
vislumbrada à luz de um jogo, de uma briga. Assim, no trecho seguinte, a figura de Lima
Barreto é construída sobre a égide do merduncho, do pingente.
359
:
Um homem de caráter paga por isso.E, no caso de Lima Barreto, pagou durante
a vida e pagou depois de morto. Escrever como e o que escrevia naquele
tempo significavam restrições e nome no index dos jornais, mesmo o autor
tivesse debaixo da terra.
360
João Antônio une na figura de Lima uma enumeração de marcas que sua escrita,
certamente, possui:
Todo espaço é pouco, num momento assim brasileiro, para conferir as façanhas
do talentoso, raçudo, combativo, entrosado, valente, pioneiro sua obra até hoje
é uma porrada, seca e rente, na nossa apatia, malemolência, calhordice, omissão,
indiferença, farisaísmo, relapsia e cacaqueação dos modelos estrangeiros.
361
O momento do corpo-a-corpo é um momento de apreensão, portanto. Sustenta uma
preconização literária pela busca inquietante que almeja. Nesse sentido, como se viu no
capítulo, emblemas, como o romance-reportagem (ou a nova narrativa dos 1970),
evidenciam um lugar de debate em torno das inquietações que coloca. Dessa maneira, um
entrevistador João Antônio empreenderá uma série de perguntas a escritores e jornalistas
que confirmam naquele momento um confronto com a apatia a qual se refere no trecho
anterior. No quadro abaixo, verifiquemos como perguntas se direcionam em múltiplas
visões, mas que se permitem unificadoras:
Tabela 02
Textos entrevistado pergunta Resposta (trecho) Tema
“Conversa Franca
com Aguinaldo
Silva”, de 16 a
18/06/1976
Aguinaldo
Silva
Como você
seu trabalho, no
momento porque
passa a literatura
Desde que publiquei meu
primeiro livro, Redenção
para Job, em 1962, venho
me preocupando não em
Concepção
de Escrita
359
O subúrbio, o malandro, o pobre, o vagabundo, a prostituta e o louco (Casa de Loucos é quase uma
releitura do Cemitério dos Vivos) mudam aqui o sinal de sua convergência para figurar num outro contexto
o contexto em que passam a valer menos como um roteiro temático para a estrutura das imagens ficcionais na
obra de João Antônio (dianóia) e muito mais como motivos associados de uma alusão simbólica à presença
militante da obra de Lima Barreto (ethos), reiterada a cada passo nas dedicatórias e nos registros de
homenagem”. (Prado, 1999, p.162/163).
360
Antônio, 26/05/1976
361
Idem
brasileira (boom,
literatura
testemunhal,
etc)?
como obras-primas da
literatura, mas sim, em
testemunhar, em participar,
em de alguma forma atuar,
como o meu trabalho dentro
do tempo em que vivo.
“Conversa Franca
com Aguinaldo
Silva”, de 16 a
18/06/1976
Aguinaldo
Silva
Como você o
posicionamento
de nossos
intelectuais
diante da
realidade
brasileira?
O problema é que nossos
intelectuais sempre chegam
à realidade brasileira através
de uma formação cultural
que pouco tem a ver com o
nosso povo
Anti-academicismo
“Conversa Franca
com Aguinaldo
Silva”, de 16 a
18/06/1976
Aguinaldo
Silva
Jornalista
conhecido,
tarimbado, com
uma folha de
serviços que não
é de se jogar
fora. Até que
ponto o trabalho
em jornal diário
pode atrapalhar a
criação de um
escritor?
O trabalho em jornal diário
não atrapalha a minha
criação de escritor, no
sentido em que ele me
permite jogar diretamente
com a matéria viva, com os
acontecimentos, e esse
material sobre o qual se
fundamenta a minha ficção.
Jornalismo x
literatura
“Com um autor de
livro de bolsos”,
de 03 a
07/07/1976
José Edson
Gomes
Você abandonou
o jornalismo.
Você virou as
costas para a
literatura. Como
foi que voltou a
escrever?
Aproximadamente um ano
depois de ter abandonado o
jornalismo e cerca de três de
ter abandonado a literatura,
descobri por acaso o livro
de bolso brasileiro, melhor
chamado de “bolsilivro”
Concepção de Escrita
“Papo com Júlio
César, um escritor
de 20 anos”, de 28
a 30/07/1976
Júlio sar
Monteiro
Martins
Como você o
seu trabalho no
momento porque
passa a literatura
brasileira?
É um trabalho meio troncho
que, acredito, vai sair de
revesguete dessa melação
toda.
Concepção de escrita
“Papo com Júlio
César, um escritor
de 20 anos”, de 28
a 30/07/1976
Julio sar
Monteiro
Martins
Como você o
posicionamento
de nossos
intelectuais
diante da
realidade
brasileira?
Eu não acredito, a princípio,
nessa divisão:
intelectuais/mão
intelectuais. Que não é
intelectual é o quê? Esta
história não me convence
Anti-academicismo
“Papo com Júlio
César, um escritor
de 20 anos”, de 28
a 30/07/1976
Júlio sar
Monteiro
Martins
movimento
de “marginais”
(mimeografados
etc). Como você
vê tudo isso?
A literatura “marginal” no
Brasil sempre esteve ligada
aos chamados movimento
de contracultura (...)
mostrando que o fenômeno
abrangeu a criação de um
modo global
Concepção de Escrita
movimento de
“marginais”
(mimeografados
etc). Como você
vê tudo isso?
Júlio sar
Monteiro
Martins
De um lado o
realismo
fantástico; de
outro, o
romance-
reportagem
Você deve ter
uma visão
pessoal disso:
engajamento ou
alienação? Como
interpretar as
duas tendências?
um certo radicalismo na
maior parte das análises
sobre isso. O texto é bom se
diz o que precisa ser dito e é
bem compreendido, não
importa se realismo crítico,
conto-reportagem, realismo
fantástico/mágico/maravilho
so
Concepção de Escrita
“Com José
Louzeiro”, de 09 a
18/08/1976
José
Louzeiro
Jornalista
tarimbado,
conhecido, com
uma folha de
serviços que não
é de se jogar
fora. Até que
ponto o trabalho
em jornal diário
atrapalha (ou
O jornalismo para o escritor
é uma rama de dois gumes.
Tudo que sei em termos de
vida, aprendi nas mesas de
jornal. (...) Sofrendo com o
s que morreram no
cumprimento de tarefas
aparentemente sem
importância.
Jornalismo x
literatura
contribui) na
vida e produção
de um escritor?
“Com José
Louzeiro”, de 09 a
18/08/1976
José
Louzeiro
E as condições
para um escritor
no País? Estamos
perto ou distante
da
profissionalizaçã
o?
A profissionalização do
escritor só depende dele.
Será profissional quando os
livros que produzir
consigam despertar o
interesse do público
Profissionalização
“Com José
Louzeiro”, de 09 a
18/08/1976
José
Louzeiro
De um lado o
realismo
fantástico; de
outro, o
romance-
reportagem
Você deve ter
uma visão
pessoal disso:
engajamento ou
alienação? Como
interpretar as
duas tendências?
Cada um de nós, autores,
deve ser antes de tudo um
pesquisador. Os que
conseguirem descobrir
caminhos “nunca antes
navegados”, esses são
autênticos.
Concepção de escrita
“Falando de
Maralto”, de 17 a
21/09/1976
Luiz Carlos
de Souza
Como você a
reportagem
levada à
condição de
livro?
Acho uma coisa muito boa,
porque o livro, apesar da
pouca tiragem sempre é
mais palpável que o jornal
do dia-a-dia.
Jornalismo x
literatura
“Falando de
Maralto”, de 17 a
21/09/1976
Luiz Carlos
de Souza
Como jornalista,
tem algum
recado para os
estudantes de
comunicação?
Tenho. Acho que eles
devem insistir em cultivar a
sensibilidade apesar do dia-
a-dia do jornal ser muito
desensibilizador (...) mas é
preciso insistir e manter a
sensibilidade, mesmo que o
jornal a sugue
Concepção de escrita
Percebe-se, nos textos, uma retomada da pergunta chave empreendida por João do
Rio (em seu Momento Literário
362
) –, bem como a demarcação do romance-reportagem dos
anos 1970 em dualidade com as tendências de uma narrativa mágica, “fantasiosa” do
real.
363
Nas respostas dos escritores-jornalistas ao entrevistador João Antônio, o jornalismo
parece se coadunar a uma práxis literária, em que as marcas preconizadas por João Antônio
parecem se aproximar das preocupações estampadas, pelos entrevistados, em torno da
profissão, do processo criativo e da dualidade/convergência entre jornalismo e literatura.
Assim, o boom literário dos 1970 é visto como um estabelecimento de ação corrosiva da
escrita, na qual jornalismo e literatura se colocam em interface.
Assim, o chamado romance-reportagem surge como um emblema literário, mas
também jornalístico
364
. O jornalismo se liga com outros textos da coluna como cenários de
disposições de sua própria prática. Nota-se que João Antônio busca entender e,
necessariamente, demonstrar como o jornalismo e literatura podem ser indissociáveis.
Além disso, uma nova narrativa (de tendências e marcas hibridizadas) é
demonstrada em sugestões, nas quais a polarização mais rígida numa observação realista (o
romance-reportagem) se choca com outra de teor imaginativo (o chamado realismo
mágico). Na resposta dos escritores-jornalistas, a configuração de um quadro categórico
das funções desse novo empreendimento narrativo, onde jornalismo e literatura se
enamoram.
Em outros textos como “Centenas de Tampinhas” (25 a 26/06/1976) e Cerveja”
(29 a 30/06/1976), a união entre jornalismo e literatura se mostra e se confirma mais
362
RIO, João do. O Momento Literário. Curitiba, Criar Edições, 2006.
363
No prefácio de uma recente edição de O Momento Literário tem-se uma enumeração das questões
proferidas por João do Rio: “A primeira indagava sobre as influências literárias recebidas e, a segunda, pedia
que o autor declinasse qual de suas obras preferia. A terceira e a quarta se ocupavam do “momento atual” da
literatura brasileira, solicitando opinião sobre tendências literárias em conflito e centros literários estaduais
em formação. Por fim, a quinta levantava uma questão que até hoje circula entre os que escrevem: o
jornalismo é um bem ou um mal para a arte literária”.
364
“Literatura de olho no jornalismo, o novo naturalismo mais ênfase à informação do que à narração. O
romance-reportagem obedece aos princípios jornalísticos da novidade, da clareza, contenção e
desficionalização. Normalmente o que se fez nos anos Setenta foi retomar casos policiais que obtiveram
sucesso na imprensa e tratá-los numa reportagem mais extensa que a do jornal. A ela se deu o nome de
romance-reportagem. E não é de se estranhar que os autores de maior sucesso nessa linha (José Louzeiro,
João Antônio, Aguinaldo Silva) sejam todos jornalistas”. (Sussekind, 1984, p.174/175).
devidamente organizada. Em tais textos, ocorre uma extensão à conversa empreendida com
os escritores-jornalistas. Neles, a literatura e o jornalismo são demonstrados como
chamarizes da briga carnal com a própria literatura e o próprio jornalismo.
Portanto, não como não se desprender dos narradores desalojados de
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, e “Abraçado ao meu Rancor”,
de João Antônio. A ojeriza ao literato, como artífice de uma escrita unida às esferas de
poder, é entendida em outro aspecto, principalmente no tocante à especialização galopante
da profissão
365
(o jornalista como um escritor remunerado a empreender textos “retos” e
padronizados).
Em “Mais Boom”, ao responder uma carta do escritor e jornalista Julio César
Monteiro Martins, João Antônio o quadro de funções e contextos da literatura
documental e do jornalismo dos anos 1970 apropriando-se da expressividade da República
das Bruzundangas, reforçando a questão da marginalidade do escritor-jornalista nacional a
reiterando a de carência e de sobrevivência pingente:
E, como este ainda é o país da Bruzundanga, aqui é oito ou oitenta e, segundo a
caixinha mágica também chamada televisão, é oito ou oitocentos. Ou o escritor
brasileiro é congelado uma dezena de anos, na Sibéria literária ou é envolvido,
folclorizado e vira mito nas águas e ondas da badalação (...) Escrever continua
sendo brilhareco neste País, longe de valer como uma profissão. A verdade
limpa é que a literatura aqui ainda é feita por alguns homens para alguns grupos,
espécie de clube de amigos. E, meu jovem Julio César, quem arredar o dessa
realidade já estará no terreno movediço da pura fantasia. Deus nos livre e guarde
e toda a casa do senhor nos salve!
366
A partir do debate sobre o ato literário, com o respaldo de uma crítica amarga dos
quadros de verificação do escritor e da escrita nacional, João Antônio empreende, na coluna
Corpo-a-corpo, uma pulsação nervosa sobre a função intelectual, procurando, a partir
disso, um diagnóstico das situações sociais ensejadas, justamente, na pulsação da escrita.
Desse modo, explora debates em torno da política editorial, da precariedade do escritor
nacional; desenvolve quadros nada otimistas, assim como o faz em textos sobre o
jornalismo.
365
“Há claramente uma identidade de projeto entre a ficção e o jornalismo produzidos por autores
modernistas e realistas, embora a ruptura literária com o passado tenha se dado entre os anos 20 e 30 e a
jornalística sido sistematizada apenas nos anos 50. O inimigo era comum: a literatice, o beletrismo, o
penduricalho, o adjetivo”. (Costa, 2005, p.99/100).
366
Antônio, 08 e 09/09/1976
Por mais que se desenhe um quadro plural, fluido e heterogêneo de temas, viu-se
aqui que suas esferas são representativas, sendo que o desenvolvimento dos temas obedece
a certa lógica, ou seja, o conteúdo da coluna se alicerça à retratação da cidade, onde os
atores, em várias instâncias, fazem saltar significados de alijamento, carestia e violência.
Percebe-se, pois, ora, o olhar empreendido pela esfera do lirismo subjetivo da crônica, ora,
a pulsação de um narrador-repórter onisciente, ora o plano de uma metadiscursividade ,
embasada na questão do diálogo intertextual e crítico, em torno da literatura e do
jornalismo.
Considerações Finais
A coluna Corpo-a-corpo estampa as fraturas do pensamento nacional
contemporâneo, pois se mostra vinculada a conjecturas de cunho estético e profissional que
rondam a atividade jornalística e literária. O escritor e/ou o jornalista brasileiro dos anos
1970 em diante é um ser envolto pela ambigüidade. Ambigüidade esta travestida de
diversas facetas. Se o ambiente da redação é apenas um espaço de ação inodora, ou,
desenfreadamente caótico, as forças que atuam no contexto sócio-político-cultural
escancaram também as suas ambigüidades, sobre as quais os jornalistas-escritores são
arrebatados.
A expressão Corpo-a-corpo, alcunhada pelo escritor e jornalista João Antônio,
evidencia este estado de tensões, pois vaticina a sedimentação de pautas mais estendidas do
jornalismo aos anseios de uma concepção intelectual mais abarcada. O grito proposto por
João Antônio é muitas vezes desconfortável, por propagar, em suas intenções temáticas,
seres oriundos do não-protagonismo das forças de atuação do cenário cultural brasileiro. O
momento de Corpo-a-corpo (1976) é de revisão de condutas, em várias acepções, em
vários estágios: o jornalista se sente parte integrante de lutas contra-hegemônicas (às vezes
claras, outras vezes não). A libertação, pois, da caneta jornalística passa pelo debate acerca
dos métodos utilizados para a edificação de um tipo de jornalismo que reflita as pulsações
preponderantes de um período específico, no caso, os anos 1970, seus atores e personagens.
É evidente, também, que a preconização de um ‘corpo-a-corpo’ com a vida
brasileira sintetiza-se justamente na vinculação de setores outsiders urbanos à propagação
de um ideário de pulsão criativa, em um processo de marcas profundas de auto-
referencialização. A obra joãoantoniana se incorpora e se remonta a todo instante, na
coluna, porque o corpo-a-corpo também se sustenta pelos invólucros de uma desmedida
reapropriação (de sua obra e de outros escritores).
Além de um “método de escrita”, que pretende formar o tema como uma condição
definida pela entrega e pela imersão, João Antônio lança os métodos” de uma insígnia,
talvez, libertária. Nesse sentido, o “método”, ou a proposta joãoantoniana, é um
antimétodo, na medida em que escancara a combatividade presente no discurso
empreendido, ao mesmo tempo em que rompe com as delimitações pré-estabelecidas de
conduta (jornalística e literária).
Com isso, a perplexidade do momento radiografado por João Antônio em Corpo-a-
corpo é a perplexidade em torno do próprio fabrico criativo, em uma espécie de tratado
ininterrupto sobre os processos de concepção e também das temáticas levantadas. A
reportagem, em uma esfera jornalística, mostra-se abastecida, portanto, de um componente
fratricida de luta, ou seja, a reportagem é o motor de ajuste das suas proposições. É pela
perspectiva e pela perplexidade de um ser repórter” que o jornalismo idealizado por João
Antônio, em Corpo-a-corpo, passa a significar algo expandido a outras searas que não
apenas a amorfa representação de quadro verificáveis e plausíveis do jornalismo
contemporâneo. A desconstrução do mito da objetividade empreendida por João Antônio se
vincularia ao que o jornalista Faerman
367
chamaria de abstração e formação do repórter, ou
seja: quais seriam os quinhões discursivos utilizados para a devida ordem das coisas, na
construção da reportagem sob um determinado viés, obedecendo a uma determinada
narratividade, vinculada a um enredo? João Antônio, à luz de uma formação própria, de
uma abstração própria da realidade, propõe, em Corpo-a-corpo, um código anti-
academicista, em que o idealismo de uma escrita imersiva esteja ligada às aspirações e
radiografias de um universo: universo este revestido das marcas da miserabilidade social,
das carências urbanas estampadas por um processo de industrialização perverso e
vilipendiador da cultura prosaica. Assim, o saudosismo nas páginas de Corpo-a-corpo é
também o desenho de uma “nostalgia da modernidade”, pois coloca o narrador nas
instâncias mais abruptas de mudanças ocorridas: em sua projeção como escritor-jornalista-
intelectual, e na cidade que o circunda. Portanto, o repórter é o narrador que deverá
percorrer as reentrâncias do cenário desolador de nossos dias para empreender, com um
toque “fraterno”, a explanação de nossos vícios, de nossas dores, de nossas lembranças e
saudades. Para isso, é preciso subverter a ordem lógica da pauta, da redação, da angulação e
edição jornalísticas, como também romper o fino tom da literatura oficial.
Assim, as pessoas retratadas em Corpo-a-corpo se transformam em personagens,
não numa mera marcação categórica da técnica jornalística, mas porque são revestidas de
367
FAERMAN, Marcos. As palavras aprisionadas. In: BARROS FILHO, Omar L. de. Versus: Páginas da
Utopia. Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2007.
uma “realidade” muito própria, não menos “verdadeira”. O jornalismo preconizado por
João Antônio é o jornalismo das intenções propostas na própria investigação, na própria
pesquisa, mas também no corpo-a-corpo intuitivo do repórter. O jornalismo é um método
de trabalho, mas também é uma instância de criação estética, revestida de marcas próprias
infindáveis, inesgotáveis.
A adestração da reportagem como um gênero categórico específico é um fenômeno
contemporâneo, contra o qual João Antônio se rebela. A expansão dos cursos de
Comunicação Social no Brasil, a partir dos anos 1970, reforça ainda mais as dualidades
estampadas em alguns ideais de gênero. Parece, novamente, haver uma discussão intrínseca
sobre o papel e a função do jornalista, mas também sobre o alcance dos textos jornalísticos
e literários. João Antônio se choca com os códigos deontológicos da profissão, assim como
se choca com a aspiração comedida de setores burgueses da intelectualidade brasileira,
atrelados a um processo de legitimação corporativista. Desse modo, surgem das páginas de
Corpo-a-corpo um mal estar perante as políticas editoriais, às novas configurações
empresariais jornalísticas.
Pretendíamos, pois, com este trabalho, evidenciar analiticamente tais
questionamentos, empreendidos por João Antônio, na interface paradigmática mantida em
relação a Lima Barreto. A obsessiva apropriação de um escritor-jornalista pelo outro
reforça a propensão do estabelecimento de um anticódigo de conduta jornalístico-literário.
Desse modo, mais do que assimilar os modelos e os personagens estampados na obra de
Lima, João Antônio se apropria de tais referências no quadro das tensões pontuadas nos
anos 1970, mais especificamente no debate quase diário que empreende nas páginas do
jornal carioca Última Hora. Aliás, o jogo intertextual em relação a Lima é também o
suporte para a prática de um labor metalinguístico de texto, visto que João Antônio
evidencia a proposição de uma concepção literária na luta que trava com o próprio texto, no
qual monta e remonta as possíveis funções da literatura e do jornalismo.
Além da propagação ética de João Antônio, Corpo-a-corpo carrega em si textos
diversos em que a heterogeneidade de possibilidades ou a hibridização de gêneros se
mostram, muitas vezes, como tarefas de verificação não simplórias, por parte de qualquer
pesquisador. No entanto, pode-se delinear, na análise feita, que os narradores que
percorrem a coluna se revestem da conduta imersiva do repórter, em determinadas ocasiões.
Em outras, o eu-cronista se mostra presente como um ente de decodificação das sutilezas,
ironias e radiografias do cotidiano. É evidente que no jogo de trocas e interpenetrações de
gêneros, as personagens se mostram em determinadas esferas de ação como seres tão
próprios em suas lutas quanto o narrador.
O debate que João Antônio estabelece com outros escritores-jornalistas identifica
ou pretende identificar - um fenômeno de retomada de certas “matrizes naturalistas”, em
que o romance-reportagem se configuraria como um espaço de conduta de prática
jornalística, e de nova configuração de gênero e espaço literário. Vimos que a incorporação
de valores textuais como o New journalism ou o boom do realismo fantástico latino-
americano das décadas de 1960/1970 surgem como emblemas jornalístico-literários (a
convergirem e a rivalizarem com o fenômeno documental do romance-reportagem,
respectivamente).
O repórter-cronista de Corpo-a-corpo é um narrador livre de categorizações, na
medida em que nuances escancaradas de uma união de estilos permite a João Antônio
evidenciar, com todas as letras, a convergência entre jornalismo e literatura. Ou seja, a
discussão que faz sobre uma concepção literária avançada no paradigma ético e estético de
Lima Barreto une possíveis pontos descosturados entre jornalismo e literatura. A análise
pessimista do quadro ético intelectual-artístico dos anos 1970 é o sintoma tácito de uma
retomada aos valores promulgados por Lima Barreto, em que fenômenos textuais como o
romance-reportagem se desencadeariam como legítimos representantes dos envolvimentos
entre duas práticas ora antagônicas, ora confluídas: o jornalismo e a literatura.
A emergência de se circular obras e textos abarcados pela ficção realista do período
coloca o jornalista-escritor no centro de um debate polêmico e corrosivo: como um cão
perdido (como anota Ciro Marcondes Filho
368
), revelado pelo pessimismo decorrente do
esfacelamento possivelmente ético de nossas relações intelectuais. Talvez, por isso mesmo,
o amargor ante a profissão de jornalista, de escritor marginalizado, perante o “patrocínio do
368
“A juventude que ingressa na profissão encontra hoje uma situação de dupla perplexidade. De um lado, um
campo profissional extremamente mutante, incerto, movediço, tanto do ponto de vista da própria identidade
do jornalismo quanto das possibilidades futuras de “uma profissão que não existe”. É uma especialização em
profunda mudança, sem que se veja com muita clareza os rumos que serão seguidos nas próximas décadas. De
outro lado, sua própria perplexidade, inerentes aos que buscam a profissão, geralmente um certo tipo de
jovens que vivem a contradição de ter um ideal e não poder realizá-lo, de aspirarem uma profissão mais
reconhecida e não tolerarem segui-la, de serem excessivamente independentes para a burocracia e
escassamente disciplinados para o aprofundamento”. (Marcondes Filho, 2002, p.54/55).
apadrinhamento” dos intelectuais sejam a tônica dos textos da coluna. Não à toa, os
narradores de Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, e Abraçado ao
meu Rancor, de João Antônio, se aproximarem intensamente.
Lima Barreto é, então, o grande tema de Corpo-a-corpo. Posto como um emblema,
um norte, Lima Barreto e sua respectiva simbologia parecem direcionar as fatias de vida,
radiografadas e promulgadas por João Antônio, com o revestimento da idéia de resistência,
no cenário urbano, principalmente o carioca. Assim, sambistas, torcedores e jogadores de
futebol mostram-se entregues à cidade. Conseguimos perceber, nos vários níveis dessa
cidade pós-industrial de João Antônio, as precariedades, os périplos e as andanças
efetivadas, sob o prisma do repórter inserido ou do cronista serelepe. Nesse sentido, na
categorização dos blocos demarcados, neste trabalho, expôs-se a enorme ligação entre o
que é promulgado é o que é evidenciado. Evidências de lances dolorosos, no mais.
O “método” do jornalista, a criação do artista, o entendimento do que seja
“puramente” literatura, ou “austero” jornalismo permearam o trabalho, tanto na discussão
das diferenças e similitudes entre duas instâncias, como na deliberação classificatória dos
gêneros (fundamentalmente, reportagem e crônica). Porém, acreditamos que o que se
evidencia mais fortemente em Corpo-a-corpo é a preconização de um caminho alternativo
de teoria e prática textual tão caro aos escritores contemporâneos (no retrato das vidas
urbanas das grandes cidades) e tão frágil aos jornalistas da nova geração (imbuídos numa
luta ambígua e inglória entre a adaptação e a pesquisa social). No saudosismo e na crítica
ao novo, Corpo-a-corpo sugere algo original, ou, contraditoriamente velho, em emblemas
tão fortes como Araci de Almeida, Graciliano Ramos, Nelson Cavaquinho, José Ramos
Tinhorão, Almir Pernambuquinho etc.
Tais emblemas são lançados sob a égide do enfrentamento, na qual Lima Barreto é o
seu exemplo mais rotundo. Ao terminar, reiteramos que as observações feitas neste trabalho
propõem um debate não estanque sobre os assuntos tratados, não encerrando quaisquer
possibilidades de interpretação. Acreditamos, também, que são necessárias a visualização e
a planificação de novos olhares a respeito do jornalismo e de sua prática. O “namoro” com
a literatura é apenas um exemplo, dentre muitos, de um corpo-a-corpo.
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Seleção de Matinas Suzuki Jr. sfácio de Joaquim Ferreira dos Santos. São Paulo,
Companhia das Letras, 2004. Coleção Jornalismo Literário.
ANEXO
Coluna Corpo-a-Corpo
Autor dos textos: João Antônio Ferreira Filho
Fonte da Pesquisa: Acervo João Antônio, Unesp/Assis
Periódico pesquisado: Jornal Última Hora
Local da publicação: Rio de Janeiro/RJ
01. Eu Mesmo (09/03/1976)
Palavras-Chaves: escritor, apresentação, Lima Barreto
02. Moleque e Filho Bastardo (10/03/1976)
Palavras-Chaves: carnaval, crônica, cristianismo
03. Ao Escritor nada (11/03/1976)
Palavras-Chaves: literatura, política editorial, Lima Barreto
04. Sonhar com Rei dá Leão (12 a 15/03/1976)
Palavras-Chaves: Carnaval, Rio de Janeiro. Jogo do Bicho
05. Carnaval de Sangue (16/03/1976)
Palavras-Chaves: Jornalismo, Lima Barreto, violência
06. Cabeçadas do Crioulo Doido (17/03/1976)
Palavras-Chaves: Fio Maravilha, crônica, futebol
07. Ciro (18/03/1976)
Palavras-Chaves: Ciro Monteiro, Rio de Janeiro, samba
08. Metro a metro – é o metrô (22/03/1976)
Palavras-Chaves: metrô, cidade, crítica
09. É o choro que vem (24/03/1976)
Palavras-Chaves: Lima Barreto, chorinho, crítica
10. Carnaval Grosso (25/03/1979)
Palavras-Chaves: Carnaval, Júlio Dantas, crítica
11. Uma Carta de Minas (26 e 27/03/1976)
Palavras-Chaves: jornalismo, literatura, Minas Gerais
12. Tesouras e engarfadas (03/04/1976)
Palavras-Chaves: gafieira, descrição espacial, boemia
13. O Mangue é inédito (05/04/1976)
Palavras-Chaves: Mangue, cidade, malandragem
14. Aos 97 anos (08 e 09/04/1976)
Palavras-Chaves: Jorge Correia Machado, descrição, reportagem
15. A Lapa acordada para morrer (14/04/1976)
Palavras-Chaves: Lapa, cidade, Rio de Janeiro
16. Um nome para pular (15/04/1976)
Palavras-Chaves: Carnaval, História, Nice
17. Dentro da Miniguerra do metrô (21 a 23/04/1976)
Palavras-Chaves: Reportagem, pingentes, cidade
18. Os tempos eram outros (26/04/1976)
Palavras-Chaves: gafieira, cidade, saudosismo
19. Matar a morte (27/04/1976)
Palavras-Chaves: morte, crônica, História
20. Ainda Noel (28/04/1976)
Palavras-Chaves: Noel Rosa, samba, música popular
21. Nosso compadre e profeta Nelson Cavaquinho (29/04 a 06/05/1976)
Palavras-Chaves: Nelson Cavaquinho, cidade, samba
22. Ficou na saudade (12/05/1976)
Palavras-Chaves: gafieira, cidade, saudosismo
23. Marítimos (14/05/1976)
Palavras-Chaves: Cais, Rita Pavuna, Odete Cadilaque
24. Talento só. Juízo só (17/05/1976)
Palavras-Chaves: Trotsky, literatura, suicídio
25. Escritor. Estivador? (18/05/1976)
Palavras-Chaves: Lima Barreto, literatura, jornalismo
26. Certidão de Nascimento perdida (20/05/1976)
Palavras-Chaves: carnaval, cidade, crônica
27. A evitada das gentes (21/05/1976)
Palavras-Chaves: morte, História, cotidiano
28. Carnaval lá fora (22/05/1976)
Palavras-Chaves: carnaval, cidade, História
29. Nosso tempo (24/05/1976)
Palavras-Chaves: cidade, crítica, saudosismo
30. Pôquer, Dama e Buraco no Sindicato dos Mendigos (25/05/1976)
Palavras-Chaves: Bola Preta, reportagem, gafieira
31. Um drama de escritor (26/05/1976)
Palavras-Chaves: literatura, Bernardo Elis, política editorial
32. Mini (27/05/1976)
Palavras-Chaves: Mariazinha Tiro a Esmo, cidade, violência
33. Túmulo do Amor (28
a 31/05/1976)
Palavras-Chaves: casamento, entrevista, cotidiano
34. Crônica do valente torcedor (03 a 14/06/1976)
Palavras-Chaves: torcedores, futebol, cidades
35. Lima Barreto, agora (15/06/1976)
Palavras-Chaves: Lima Barreto, literatura, jornalismo
36. Conversa franca com Aguinaldo Silva (16 a 18/06/1976)
Palavras-Chaves: Aguinaldo Silva, literatura, jornalismo
37. Carta aberta sobre Lima Barreto (19/06/1976)
Palavras-Chaves: Lima Barreto, jornalismo, literatura
38. Maralto (21 e 22/06/1976)
Palavras-Chaves: Luiz Carlos de Souza, jornalismo, literatura
39. Centenas de Tampinhas (25 e 26/06/1976)
Palavras-Chaves: Minas Gerais, jornalismo, literatura
40. Quindim das mulheres (24/06/1976)
Palavras-Chaves: Bola Preta, reportagem, crônica
41. Cerveja (29/06 a 01/07/1976)
Palavras-Chaves: jornalismo, literatura, reportagem
42. Com um autor de livros de bolso (03 a 07/07/1976)
Palavras-Chaves: José Edson Gomes, literatura, jornalismo
43. Uma História dos Arrudas (09 e 10/07/1976)
Palavras-Chaves: Manoel Lobato, literatura, jornalismo
44. Bola Preta (12/07/1976)
Palavras-Chaves: Bola Preta, cidade, Rio de Janeiro
45. Um Cordão resistente (14/07/1976)
Palavras-Chaves: Bola Preta, gafieira, cidade
46. Tinhorão e as ruas (15/07/1976)
Palavras-Chaves: José Ramos Tinhorão, música popular, crítica
47. Valentes torcedores (16/07/1976)
Palavras-Chaves: futebol, torcedores, cidade
48. Araci (23/07/1976)
Palavras-Chaves: Araci de Almeida, samba, entrevista
49. A passeata do primeiro grito (26/07/1976)
Palavras-Chaves: Bola Preta, cidade, gafieira
50. Ainda Tinhorão (24/07/1976)
Palavras-Chaves: José Ramos Tinhorão, música popular, crítica
51. Papo com Julio César, um escritor de 20 anos (28 a 30/07/1976)
Palavras-Chaves: literatura, jornalismo, Julio César Monteiro Martins
52. Gente de respeito (02/08/1976)
Palavras-Chaves: gafieira, cidade, tipos urbanos
53. Moçada da gafieira (03/08/1976)
Palavras-Chaves: gafieira, Bola Preta, boemia
54. A rua está tocada (04/08/1976)
Palavras-Chaves: Cais, descrição espacial, violência
55. A magra é certa (05/08/1976)
Palavras-Chaves: morte, História, cotidiano
56. Carlinhos volta (06/08/1976)
Palavras-Chaves: seqüestro, reportagem, Carlinhos
57. Araçá (07/08/1976)
Palavras-Chaves: Araci de Almeida, samba, entrevista
58. Nasce a rainha Moma (09/08/1976)
Palavras-Chaves: Bola Preta, crônica, reportagem
59. Com José Louzeiro (12 a 18/08/1976)
Palavras-Chaves: José Louzeiro, literatura, jornalismo
60. Incômodo Carlinhos (19/08/1976)
Palavras-Chaves: seqüestro, reportagem, crítica
61. Dentro da caixinha mágica (20/08/1976)
Palavras-Chaves: televisão, Lima Barreto, literatura
62. Não sou mulher de Olá (23/08/1976)
Palavras-Chaves: Araci de Almeida, samba, entrevista
63. Morre Juarez Barroso (25/08/1976)
Palavras-Chaves: Juarez Barroso, morte, crônica
64. Um código boêmio (26/08/1976)
Palavras-Chaves: Bola Preta, gafieira, boemia
65. Ficar no Caritó (27/08/1976)
Palavras-Chaves: interior, footing, reportagem
66. A Dama do Encantado (28/08/1976)
Palavras-Chaves: Araci de Almeida, samba, entrevista
67. O seqüestrado inconveniente (31/08 s 02/09/1976)
Palavras-Chaves: Carlinhos, reportagem, seqüestro
68. O botequim, essa universidade e o dia que o pau comeu na ONU (03 e 04/09/1976)
Palavras-Chaves: Mario Quintana, literatura, crônica
69. Jogatina no Sindicato dos Mendigos (06/09/1976)
Palavras-Chaves: Bola Preta, gafieira, cidade
70. Mais Boom (08 e 09/09/1976)
Palavras-Chaves: Lima Barreto, jornalismo, literatura
71. Virgens (10/09/1976)
Palavras-Chaves: interior, virgindade, footing
72. Marafona trocando de cor na Lapa (11 a 13/09/1976)
Palavras-Chaves: Lapa, cidade, malandragem
73. Viver muitas vezes (14/09/1976)
Palavras-Chaves: morte, crônica, reportagem
74. Ética na gafieira (15/09/1976)
Palavras-Chaves: gafieira, reportagem, crônica
75. Homens que não bebiam água (16/09/1976)
Palavras-Chaves: Bola Preta, gafieira, boemia
76. Falando de Maralto (17 a 21/09/1976)
Palavras-Chaves: jornalismo, literatura, Maralto
77. Homem do povo Ismael Silva (22 a 24/09/1976)
Palavras-Chaves: Ismael Silva, samba, música popular
78. Quem canta de graça é galo (25/09/1976)
Palavras-Chaves: Araci de Almeida, samba, entrevista
79. Joaquinho Gato (27/09/1976)
Palavras-Chaves: literatura, jornalismo, Juarez Barroso
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