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João Paulo Martins
Política e História no Reformismo Ilustrado pombalino
(1750-1777)
Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de História
2008
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João Paulo Martins
Política e História no Reformismo Ilustrado pombalino
(1750-1777)
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em História da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal de Minas Gerais,
como exigência parcial para obtenção do
grau de mestre.
Área de concentração: História e Culturas
Políticas
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta.
Belo Horizonte
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de História
2008
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Dissertação de Mestrado defendida e aprovada em 29 de setembro de
2008, pela banca examinadora constituída pelos professores:
_______________________________________
Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta
(UFMG – Orientador)
_______________________________________
Prof. Dr. Mauro Lúcio Leitão Condé
(UFMG)
_______________________________________
Prof. Dr. Marco Antônio Silveira
(UFOP)
_______________________________________
Profa. Dra. Íris Kantor
(USP)
A meus pais, seu Manoel e dona
Maria, que sempre me
ensinaram com as palavras
simples de toda a verdadeira
sabedoria.
Agradecimentos
Primeiramente, quero agradecer a meus pais, Manoel e Maria das Graças, por todo
apoio e compreensão nas dificuldades, e por todo ânimo e satisfação com que sempre
receberam minhas vitórias. Nunca mediram esforços para que eu trilhasse o caminho que
escolhi, a eles dedico este trabalho. Muito obrigado! Registro também o agradecimento às
minhas irmãs, Vânia e Vanilda, sempre prestativas em me socorrer quando as dificuldades
do trabalho surgiam.
Sou imensamente grato ao Professor Doutor Luiz Carlos Villalta. Os assuntos lusos
me foram apresentados por ele ainda na graduação, quando me tornei um apaixonado pelo
tema e pude propor este trabalho. Ao Villalta devo as sábias orientações, normalmente
perpassadas de animados e jocosos comentários, que tornaram maior a minha admiração por
sua pessoa, pois, além do mestre, ganhei um amigo. Desde a iniciação científica, Villalta
dedicou-se a me apresentar os caminhos que precisava conhecer e a não me deixar
desanimar com os percalços. Além disso, suas orientações coletivas me proporcionaram
novas amizades, a Turma do Cordão de São Francisco, a quem também registro o
agradecimento pelas tardes tão cultas e engraçadas que passamos.
Aos amigos de graduação e mestrado Luana, Lucas, Stener, Guilherme e Chico fica
um sincero agradecimento, sempre companheiros e prontos para ajudar, principalmente com
as necessidades que surgiram depois da minha mudança para Ouro Preto. Agradecimento
especial ao Gustavo, grande amigo, que me cedeu seus préstimos de tradutor, e à Simone,
sereníssima amiga, que, em meio às tribulações de seu trabalho, encontrou tempo,
dedicação e carinho para me ouvir, me animar e se dedicar à leitura e revisão desta
dissertação. Muitíssimo obrigado!
Devo um grande agradecimento ao Prof. Dr. Marco Antônio Silveira (UFOP), cuja
leitura, críticas e sugestões feitas ao meu texto de qualificação enriqueceram sobremaneira
as análises aqui desenvolvidas. Quero também agradecer à Jaci, da Biblioteca Pública Luiz
de Bessa, amiga desde os meus tempos de estagiário no setor de referência da biblioteca, e
que intermediou o meu pedido para um maior tempo de consulta aos livros da coleção de
Obras Raras e para a fotografia de alguns textos. Aos amigos da Secretaria de Cultura e
Turismo de Ouro Preto, especialmente à pequena comunidade de historiadores existente,
com Sandra, Sueli, Sidnéa, Marcia e Helenice, fica um profundo agradecimento pela forma
amigável com que fui recebido, por me apresentarem os caminhos sinuosos de nossa antiga
Vila Rica e por estarem sempre dispostas a me ouvir falar de Pombal.
Por fim, mas com o meu carinho maior, agradeço à Sabrina, querida companheira
que nestes últimos anos acompanhou todas as angústias e aflições, bem como todas as
minhas alegrias. Nunca me deixou esquecer que algo maior que qualquer parágrafo bem
escrito ou qualquer fonte desencavada. À Sabrina, o meu mais amoroso obrigado!
RESUMO:
Política e História no Reformismo Ilustrado pombalino (1750-1777)
Esta dissertação pretende analisar as relações entre o pensamento político e as concepções de
história no Reformismo Ilustrado português, durante o consulado de Sebastião José de Carvalho
e Melo, o Marquês de Pombal, no reinado de D. José I (1750-1777). Parte-se da idéia de que as
práticas e pensamentos políticos possuem uma relação direta com as concepções de história,
sendo que nos momentos em que uma revisão das práticas e fundamentações políticas são
também revistas as visões de história vigentes. O pombalismo significou uma profunda reforma
da política lusa, tanto na prática quanto em suas teorizações. Tem-se como hipótese que as
práticas e pensamentos políticos do pombalismo representaram também uma revio das
conceões de história vigentes em Portugal. É apresentado, primeiramente, um quadro das
conceões históricas e políticas portuguesas na Idade Moderna, em se que destacam o
pensamento corporativista escolástico e as crenças messiânicas e/ou milenaristas.
Posteriormente, são analisadas as influências que a Ilustração exerceu sobre a cultura
portuguesa na primeira metade do século XVIII e como alguns pensadores ilustrados
portugueses criticaram a cultura e a política portuguesa de então. Por fim, mostra-se como,
durante o reinado de D. José I, houve uma prática política com medidas de cunho ilustrado,
adaptadas à realidade portuguesa, acompanhadas de uma fundamentação trica. Nesta
fundamentação, principalmente com os textos da Dedução Cronológica e Analítica e da
Relação Abreviada, foram atribuídos novos sentidos a episódios e momentos históricos
portugueses, além de serem utilizadas concepções ilustradas de história, como as idéias de
“linha” eprogresso”. Também foi revista a legitimidade histórica da colonização portuguesa.
ABSTRACT:
Politics and History in the pombaline Enlightened Reformism (1750-1777)
The present dissertation intends to analyze the relations between the political thinking and the
conceptions of history in the Portuguese Enlightened Reformism, during the consulship of
Sebastião José de Carvalho e Melo, the Marquis of Pombal, under the ruling of D. José I (1750-
1777). The main idea is that political practices and political thinking are strictly connected to the
conceptions of history, so that during moments of revision of political practices and political
bases occurs also a revision of the conceptions of history that were in effect. The pombalismo
meant a profound political reform in Portugal, in practices as much as in its theorizations. The
hypothesis in work is that the pombalismo’s political practices and political thinking represented
also a revision of conceptions concerning history that were in effect in Portugal. It is presented,
in the first place, a picture of the Portuguese conceptions of history and politics in the Modern
Age, when the scholastic corporative thinking and messianic and/or millennium beliefs had
special place. Afterwards, it will be analyzed the influences exerted by the Enlightenment over
the Portuguese culture in the first half of the XVIII
th
century and how enlightened Portuguese
thinkers criticized the contemporaneous Portuguese culture and politics. Finally, it will be
shown how the political practice was enforced with enlightened measures during the reign of D.
José I, adapted to Portugal’s reality, and followed by a theoretical substantiation. In such
substantiation, especially in the texts of Dedução Cronológica e Analítica and Relação
Abreviada, new meanings were ascribed to Portuguese historical episodes and moments, besides
using enlightened historical conceptions, such as the ideas of line” and “progress”. It was also
revised the historical legitimacy of the Portuguese colonization.
SUMÁRIO
Introdução 1
Pensamentos acerca da história na Idade Moderna 6
Concepções poticas na Idade Moderna 14
Política e história na Ilustração 22
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história 29
1.1 A fundação, o mito e a história providencial 30
1.2 Centralização política, corporativismo e história 42
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos 60
2.1 Ilustração portuguesa e conformação do ideário
pombalino: Verney, Ribeiro Sanches e D. Luís da Cunha 71
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo 89
3.1 O pombalismo e a refutação do
providencialismo histórico e do corporativismo escolástico 106
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo 116
4.1 Historiografia em Portugal nos setecentos:
a Academia Real de História Portuguesa 116
4.2 Pombalismo, história e colonização 126
4.3 A Dedução Cronológica e Analítica: regalismo e história ilustrada 139
Conclusões 164
Fontes e referências bibliográficas 169
Fontes 169
Referências bibliográficas 170
Introdução
No terceiro quartel do século XVIII, mais precisamente durante os anos do
reinado de D. JoI (1750-1777), Portugal passou por uma intensa reforma em suas
práticas poticas, que se estendeu sobre a legislação, a justiça, a cultura e a economia.
Desenvolveram-se reformas na administração, nas possessões coloniais, na educação,
no direito e nas relações entre, de um lado, a Coroa e, de outro, a nobreza e a Igreja,
outros principais focos de poder. O período ficou particularmente associado às ações e
reformas de seu ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e, depois,
Marquês de Pombal. Por isso mesmo, é comumente referido na história portuguesa
como período pombalino.
Deve-se, no entanto, considerar que Carvalho e Melo não agiu sozinho e nem foi
um espécie de “mente privilegiada” que projetou a reforma política do Reino fora de
qualquer contexto histórico, tanto português quanto europeu. Homens como Antônio
Pereira de Figueiredo, José de Seabra da Silva e Frei Manuel do Cenáculo estiveram
diretamente ligados à governação pombalina e à produção de textos que embasavam
suas reformas. Além desses, podem-se incluir outros que atuaram em posições
estratégicas do governo sob orientação pombalina, como o irmão de Pombal, Mendonça
Furtado, governador do Maranhão, que teve importante papel na execução do Tratado
de Limites e na criação de companhias privilegiadas de comércio; e Gomes Freire de
Andrade, também representante português no Tratado de Limites (nos limites sul, na
Colônia de Sacramento), dentre outros. Considera-se, ainda, que o reforço dos aparatos
de ação política da Coroa e a centralização do poder, principais marcas do período
josefino, se tornam compreensíveis tendo-se em conta o enfraquecimento do Estado
durante os últimos anos do governo de D. João V (1705-1750), e os processos poticos
e intelectuais da primeira metade do século XVIII, período em que Carvalho e Melo não
foi o único a pensar em novas ações para se recuperar a grandeza que Portugal tivera no
tempo dos Descobrimentos. A própria indicação do futuro Marquês de Pombal para o
ministério a D. José foi feita por outro político português, o diplomata ilustrado D. Luís
da Cunha, que também defendia profundas reformas na potica lusitana.
Para efeito desta dissertação, o termo pombalismo será utilizado como o conjunto
de práticas e idéias políticas do terceiro quartel do século XVIII, sem que se depreenda
Introdução
2
desse uso uma perspectiva histórica individualista, segundo a qual Carvalho e Melo
seria concentrador e responsável por todas as iias e ações do peodo.
O pombalismo, prática potica reformista e centralizadora, desenvolveu um
conjunto de idéias para seu próprio suporte. Por trás das reformas pombalinas, estava
um conteúdo ideológico-potico ilustrado, que constituía uma ruptura com as práticas e
pensamentos poticos portugueses vigentes até então. O objetivo desta dissertação é
analisar os termos e idéias com os quais as formulações do ideário potico pombalino
constituíram essa ruptura com a potica portuguesa anterior, tida como tradicional. A
proposta é entender as relações entre o pensamento político pombalino e a visão de
história por ele desenvolvida. Tem-se como hipótese que a interpretação da história
portuguesa desenvolvida dentro do pombalismo possuía uma relação direta com suas
concepções políticas e constituía, também, uma ruptura com as vies de história até
então vigentes.
As práticas poticas pombalinas, mesmo que muito motivadas pelas condições
políticas e econômicas do momento, receberam um embasamento teórico, apreensível
em seu discurso potico. Dessa forma, o pombalismo constituiu um ideário potico e,
como tal, possuiu sua linguagem. As linguagens poticas, conforme ensina Pocock,
podem ser criadas mediante um diálogo de termos e idéias com as linguagens que lhe
são anteriores ou coevas. Segundo ele,
O autor [de um texto político] habita um mundo historicamente determinado, que é
apreensível somente por meios disponíveis graças a uma série de linguagens
historicamente constituídas. Os modos de discurso disponíveis dão-lhe as intenções
que ele pode ter, ao proporcionar-lhe os únicos meios de que ele poderá efetuá-las
1
.
Dessa maneira, para se compreender um enunciado político, é necessário se conhecer qual
linguagem o autor está, ou pode estar utilizando; e quais o os interlocutores desse
enunciado, seus antagonistas e mesmo aquelas matrizes de pensamento que o confirmam.
O objetivo é não reputar a um texto, ou a um autor, um sentido que ele não teria
nem podido cogitar, por estar fora de seu contexto, mesmo lingüístico. Para isso, deve-
se procurar saber o que o autor estava fazendo” quando escrevia, ou seja, em que
questões estava envolvido, com quem ou com quais textos dialogava. Com isso, é
possível saber-se qual era a linguagem (ou linguagens) potica por ele utilizada e como
ela se relaciona com seus enunciados
2
.
1
POCOCK, J. G. A. Introdução: O Estado da Arte. In: Linguagens do Ideário Político. São Paulo:
Edusp, 2003, pp. 27-28.
2
Ibidem, p. 28
Introdução
3
A hipótese aqui defendida é de que as questões específicas do momento de
ascensão de Pombal ao poder e o modelo político que pretendeu construir e praticar
motivaram o desenvolvimento de uma nova linguagem potica no universo português.
Essa linguagem pombalina, por sua vez, pode ser compreendida conhecendo-se os
seus interlocutores. As fontes do pombalismo costumam ser claras ao apontarem “com
quem” estavam falando, ou melhor, aqueles que refutavam: os pensamentos messiânico-
milenaristas e corporativista escolástico, que se unificavam, nos textos pombalinos, nas
ações e discursos jesuíticos. Assim, para se entender o que dizem os textos pombalinos,
é necessário se ter claro o que dizem as linguagens e iias às quais eles se opõem.
Entretanto, deve-se ter em conta que o pombalismo, cujo discurso se pretende ilustrado
e modernizador, compartilhava conceitos caros ao corporativismo escolástico, um de
seus antagonistas. Esse aspecto é importante, pois, como nos ensina Skinner
3
, para que
um discurso inovador seja legítimo, numa determinada comunidade, ele deve falar a
língua desta comunidade. Portanto, a crítica ao pensamento corporativo e a construção
de uma nova opção política e de pensamento encontram o limite da linguagem que pode
ser bastante distendida, porém não rompida, sob risco do discurso cair no vácuo. É
possível identificar alguns traços de permanência nesse processo de transição, como o
catolicismo e o monarquismo, que se faziam presentes tanto nos autores do
corporativismo escolástico quanto no pombalismo. Mesmo no período pombalino, com
sua empreitada para o afastamento do poder religioso do âmbito temporal e a submissão
daquele a este, os discursos o deixaram de ser vincadamente católicos. Isto pode ser
interpretado pelo limite que uma linguagem potica, secularmente associada à teologia,
possui ao tentar introduzir algo novo. Os textos políticos, e mesmo históricos, possuíam
também um forte teor jurídico, lembrando-se que, no Antigo Regime português, as
práticas da justiça e da potica não se diferenciavam. Esse é outro aspecto importante
das linguagens poticas, pois, alguns profissionais, como clérigos e juristas, quando se
institucionalizaram no poder, influenciaram com seus termos o discurso potico
4
, assim,
o vinho novo costuma ser primeiramente despejado em velhas garrafas
5
.
O estudo das linguagens poticas durante o período pombalino leva, portanto, a se
entenderem as rupturas promovidas pelos autores do pombalismo, dentro de um quadro
3
SKINNER, Quentin. Introdução. In: As fundações do pensamento político moderno.. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
4
POCOCK, J. G. A. O Conceito de Linguagem e o tier d’Historien: Algumas Considerações sobre a
Prática. In: Linguagens do Ideário Político. op.cit., p. 68.
5
Ibidem, p. 76.
Introdução
4
maior de permanências de conceitos e concepções acerca da sociedade, da potica e da
história. Pretende-se abordar tal processo na história do pensamento político português,
observando, por um lado, os elementos “modernos”, ou seja, a presença de autores e
idéias dos séculos XVII e XVIII e de escritos de ilustrados portugueses, que
influenciaram as formulações do pombalismo; e, por outro, as continuidades: as
linguagens políticas contras as quais a prática política pombalina se insurgiu,
destacando-se as matrizes corporativa escolástica e messiânico-milenarista.
Os enunciados do pombalismo se manifestaram de diversas formas, em textos
históricos, poticos, leis e editais, tratados jurídicos e até mesmo na poesia e no teatro.
A emissão desses “atos de fala” respondeu, em muitos casos, a questões políticas
circunstanciais e não propriamente a uma planificação governamental. O teor dos
discursos também não foi o mesmo, pois se percebe uma radicalização tanto prática
quanto discursiva do absolutismo e do regalismo ao final da cada de 1760. Por esse
motivo, procurar-se-á compreender as condições de produção e divulgação dos textos
analisados e qual o papel que desempenharam na construção do ideário pombalino.
Construção que comportou, em alguns momentos, contradições, caso se olhe para esses
textos procurando uma lógica e uma coerência estática, desvinculada das lutas poticas
concretas em que se inseriram.
As fontes primordiais deste trabalho são os principais textos de cunho histórico
produzidos pelo pombalismo, a Relação Abreviada (1757), cuja autoria é atribuída ao
próprio Sebastião Jo de Carvalho e Melo, que narra os episódios da Guerra
Guaranítica ocorrida na tentativa de execução do Tratado de Madri, do ponto de vista do
pombalismo; e a Dedução Cronológica e Analítica (1767), que saiu com a autoria de
José de Seabra da Sylva, mas que foi uma obra conjunta dos homens ligados à
governação pombalina, em cuja composição participou, dentre outros, o próprio
Carvalho e Melo. A Dedução é o principal texto do anti-jesuitismo pombalino e
demonstra tanto as razões da expulsão dos jesuítas do Império português, quanto a
justificação do modelo político pombalino e a deslegitimação da governação “pré-
pombalina”, de um ponto de vista histórico, narrando-se a história portuguesa desde a
chegada da Companhia de Jesus em Portugal até a sua expulsão, em 1759, já no reinado
de D. José I (1750-1777).
Compreende-se que muitas idéias, propostas e reformas pombalinas tiveram uma
repercussão social limitada em seu próprio tempo. O alcance das reformas educacionais,
por exemplo, no que tange à instituição das aulas régias, teve um efeito mais abrangente
Introdução
5
em períodos posteriores. Os conceitos e iias propostos pelo pombalismo também
tiveram o papel de promoverem disputas e discussões acerca dos modelos poticos para
além do tempo do reinado josefino, também influenciando em interpretações históricas
posteriores. O objetivo central deste trabalho é analisar a proposição das reformas pelo
pombalismo e como procurou legitimá-las em seu discurso, sem se atentar para
responder se o discurso pombalino se legitimou ou não socialmente, ou seja, qual a
dimensão da circulação e apropriação das idéias do pombalismo na sociedade lusitana,
pois isto seria outro trabalho.
Considerando-se a grande importância que os contextos sociais, poticos,
filoficos e lingüísticos possuem para se compreender a produção de um texto político,
o se deve perder de vista ao mesmo tempo que, caso se parta do contexto para se
entender o texto, de uma forma rígida e necessária, corre-se também o risco de se
produzir o mero enquadramento dos textos. Estes são convertidos em efeitos. Quando
muito, são reflexos que exprimem tal ou qual aspecto do social”
6
. Adotando-se essa
metodologia, “o texto exprime, reflete, vê (saudável ou míope) um dado que lhe é
externo. O que, no texto, não cabe em tal modelo é apresentado como desvio, portanto
desprezível, ou – quando muitocausa da ineficácia do texto”
7
.
Assim, concordando com Renato Janine Ribeiro, propõe-se “uma mudança de
enfoque: em vez de pensar o que o texto retrata, ou como ele retrata uma realidade ou
problema, pensar o que ele concebe. Qual é a sua visada”
8
. Na análise de um texto
político deve-se entender que ele
persegue uma estratégia e, por isso, é fundamental conhecer quem ele define
como leitor. Em outras palavras, um texto não é reflexo, porém arma. Um
pensador político não procura refletir o seu tempo e sociedade; quer produzir
efeitos. E estes ele visa através de sua arma específica, o texto
9
.
Dessa forma, é necessário perceber quais os conceitos ele utiliza, isto é, com quem o
texto concorda e quais os termos, grupos sociais e pensamentos que ele desqualifica, ou
seja, contra quem ele se afirma. Assim, chega-se a uma melhor compreensão da riqueza
do texto e de seu papel na luta potica, além de se aproximar dos efeitos que ele pode
produzir, o que não significa que ele seja lido e apropriado dessa forma. A apreensão
6
RIBEIRO, Renato Janine. A Filosofia Política na História. In: Ao leitor sem medo. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999, p. 344.
7
Idem. (Itálico no original).
8
Ibidem, p. 346.
9
Ibidem, p. 347. (Itálico no original).
Introdução
6
dessa leitura e a apropriação, como se disse, são objetos de um outro questionamento,
que não tem espaço neste trabalho.
Os marcos temporais deste trabalho definem-se em função do período em que
Sebastião José de Carvalho e Melo foi ministro no reinado de D. José I (1750-1777),
assumindo uma posição de frente no governo português, o que foi reconhecido pelos
próprios homens daquele tempo. A potica e o ideário pombalinos sofreram uma certa
inflexão com a morte de D. José, em 1777, e a conseqüente subida de D. Maria I ao
trono, havendo com ela a exclusão de Pombal do foco da cena potica portuguesa.
Todavia, vários temas das discussões políticas empreendidas pelo pombalismo
continuaram em tela.
De acordo com a metodologia proposta, as fontes pombalinas estudadas serão
colocadas em diálogo com as idéias e concepções políticas e históricas então vigentes
em Portugal, o que permite que sejam também analisadas algumas fontes significativas
das matrizes corporativista e messiânico-milenarista do pensamento português,
anteriores a esse marco temporal.
Pensamentos acerca da história na Idade Moderna
A história moderna do Ocidente marca algumas rupturas, lentas transições e
permanências no pensamento e nas práticas poticas, religiosas, econômicas, etc., em
relação aos costumes medievais. Entretanto, o estabelecimento de linhas comuns a todos
os espaços do Ocidente moderno não é cabível, por desconsiderar as especificidades e
as cores locais de suas histórias. As constituições dos Estados modernos e das modernas
noções de história são indissociáveis e fazem parte da lenta transição que percorreu os
séculos da Idade Moderna. Portugal participou deste processo sofrendo influências
externas, mas imprimiu, em cada ponto desse processo, aspectos caros à sua
constituição.
A idéia de uma modernidade na Idade Moderna é bem diferente do que se entende
por modernidade nos tempos atuais ou mesmo no século XIX. Conforme mostra Falcon,
rias épocas se conceberam como “modernas” em relação aos tempos anteriores,
modernus significa de hoje, o que indica, antes de tudo, que se está falando de um
tempo que se concebe como diferente do anterior. Entretanto, a iia de “moderno”
abriga ainda outro sentido, o de uma época qualitativamente superior àquela que veio
antes, e, assim, chega-se a um terceiro sentido, que é um desdobramento dos dois
Introdução
7
anteriores: “moderno” é o período que se concebe como novo por contraste com a Idade
Média
10
.
As modernas rupturas perceptíveis em relação ao período medieval tangem
aspectos diferentes como a política, a economia, as visões de mundo ou
mundividências, a ciência e a religião. Trata-se de campos que, dependendo do enfoque
do historiador, podem adquirir uma relevância maior em relação aos outros, de forma
que o se pode estabelecer, em absoluto, um tema que defina o caráter moderno destes
séculos. Também não é cabível expandir as mesmas rupturas para todo o Ocidente, pois
houve espaços que, por suas características históricas, o conheceram, ao mesmo
tempo, os mesmos processos. Além disso, devem-se considerar também as diferenças
sociais do alcance das mudanças, ou seja, os meios eclesiásticos, nobiliárquicos,
campesinos e citadinos, por exemplo, mesmo dentro de um mesmo reino, sofreram de
maneiras diversas o choque das novidades e o conforto da imobilidade.
A Era Moderna passou, pois, por algumas crises no pensamento. Várias
descobertas colocaram à tona questionamentos sobre os conceitos vigentes, de forma
que podemos falar em uma ampla querela entre antigos e modernos, que foi muito além
dos debates que tiveram lugar na Academia Francesa. Nesta dissertação, consideram-se
os questionamentos tangentes à concepção do tempo hisrico e à política no Portugal
da Idade Moderna. Dentro da perspectiva a ser desenvolvida a seguir, concebem-se
estes dois aspectos como inter-relacionados, sendo que tais relações variaram no tempo
e no espaço, havendo também soluções paralelas e/ou conflitantes concomitantemente.
As relações entre idéias de história e concepções políticas já foram objeto de
rios estudos históricos. Pocock, por exemplo, teorizando a respeito destas relações,
define que:
História em todos os sentidos do termo, a não ser uns poucos de natureza algo
esotérica é tempo público. Isto é, tempo vivenciado pelo indivíduo, como ser
público consciente de uma estrutura de instituições públicas nas quais, e atras
das quais, os acontecimentos, os processos e as transformações ocorreram para a
sociedade da qual ele percebe ser parte
11
.
10
FALCON, F.J.C. Moderno e Modernidade. In: FALCON, Francisco J. Calazans; RODRIGUES,
Antonio Edmilson M. Tempos modernos: ensaios de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000, pp. 226-227. Le Goff também apresenta diversos contextos em que as categorias de
“antigo” e “moderno” foram utilizadas e as variadas finalidades das mobilizações desses conceitos. Ver
LE GOFF, Jacques. “Antigo/Moderno”. In: História e memória. Campinas: Ed.UNICAMP, 1996, pp.
167-202.
11
POCOCK, J. G. A. Modalidades do tempo político e do tempo histórico na Inglaterra do início do
século XVIII. In: Linguagens do Ideário Político. op. cit., p. 127.
Introdução
8
Seguindo ainda a análise do historiador inglês, entende-se que o tempo blico, ao
contrário do que é experienciado no privado, deve ser “concebido como um mundo
institucionalizado e formalizado”, o que conduz à “institucionalização da experiência
social e dos modos de apreendê-la
12
. Assim, afirma Pocock:
Dizer que história é tempo público”, portanto, é dizer que indivíduos que vêem a
si mesmos como seres públicos vêem a sociedade como organizada em e por uma
rie de estruturas, tanto institucionais quanto conceituais, nas quais e através das
quais eles apreendem as coisas como coisas que acontecem à sociedade e a eles
mesmos, e que lhes fornecem meios para diferenciar e organizar as coisas que
assim apreendem. É por isso que o arcaico ditado que afirma que história é
política do passado” tem mais significado do que estamos dispostos a reconhecer, é
também por isso que a história da historiografia é, em o grande medida, parte da
história do discurso político
13
.
Se o discurso histórico de um tempo, ou a forma como seus homens compreendem
a si próprios como membros de uma sociedade no tempo, informa-nos sobremaneira a
respeito das concepções poticas dessa sociedade estudada, é possível que os momentos
de transição ou rupturas entre diferentes iias de história sejam também ocasiões de
transição e rupturas entre as formulações políticas, sem que se entenda uma
anterioridade entre uma e outra, mas um processo mútuo. Dessa forma, um momento de
intensos questionamentos e de formulações de novos saberes, conceitos e práticas, como
foram os séculos da Idade Moderna, gerou rupturas e novas formatações entre o tempo
público e a política.
Durante a Idade Moderna, deu-se uma modificação de sentido secularizante nas
teorizações poticas e na compreensão da história. Sem que a religiosidade fosse
absolutamente excluída da compreensão do mundo e do papel do homem nesse mundo,
a metafísica foi, aos poucos, sendo excluída do entendimento do tempo público e, cada
vez mais, restringida às confissões privadas.
No mundo ocidental, a união entre Estado e Igreja se deu no Império Romano. Ao
assumir o cristianismo como religião oficial, o Império justificava de uma maneira
teológica sua expansão e a submissão que impunha a povos não-romanos
14
. Aliavam-se,
assim, as práticas poticas e religiosas, pois a expansão romana era a manifestação da
salvação eterna que só se daria por meio da conversão dos povos à religião cristã.
A assimilação romana do tempo cristão constituiu uma profunda ruptura com a
concepção grega do tempo e da história, tanto pela sacralização do tempo, quanto pela
12
Idem.
13
Idem.
14
REIS, JoCarlos. História da história: civilização ocidental e sentido histórico. In: História & Teoria:
historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005, p. 19.
Introdução
9
própria inserção dos eventos no tempo. A iia grega de um tempo clico, associado
aos movimentos da natureza, tinha como conseqüência que os eventos isolados jamais
ensinariam algo novo ou essencial, a não ser comprovarem os ritmos cíclicos, o retorno
e o recomeço. A narração de eventos históricos singulares, atos heróicos, palavras e
ações importantes se justificaria por dar perenidade a estes atos, para que não fossem
esquecidos. De certa forma, inscrevendo-os na própria natureza, mas de maneira alguma
a alterando significativamente, pois o seu ritmo clico não sofreria mudanças e
continuava sendo mais importante que qualquer evento singular
15
.
O cristianismo ordenou historicamente o mundo. Deus não se revelou imediata e
completamente, sua revelação se dá no tempo, daí que
Os livros sagrados do judaísmo e do cristianismo não eram somente oráculos, ou
mandamentos, ou narrações ticas e ainda menos meditações metafísicas. Eram
antes de tudo livros de história. Eles empregavam certo número de acontecimentos
cronológicos, uns ticos, outros mais históricos, mas uns e outros carregados de
sentido sagrado
16
.
Entende-se, assim, a dificultosa empreitada de humanistas cristãos que, concebendo
toda a história como revelações de Deus, procuraram reagrupar todos os relatos esparsos
do helenismo, de Roma, e toda a humanidade para além de Israel num projeto de ntese
nunca dantes pensado. Procurou-se “evangelizar” a “história para trás” sincronizando a
Bíblia e as histórias dos povos antigos
17
.
Diferentemente da concepção antiga, não existiam histórias particulares para o
cristianismo medieval. Haveria uma cronologia universal que poderia sincronizar todas
as histórias e as integraria num único sentido, o sentido da salvação. Assim, os eventos
políticos adquiriam importância na medida em que pudessem ser inseridos nesta
história soteriológica. Os acontecimentos que não diziam respeito à salvação, ou de uma
outra forma, à manifestação da Provincia, diziam respeito ao saeculum, e eram tidos
como banais
18
. Para Santo Agostinho, por exemplo, os eventos políticos tinham uma
importância menor, funcionando apenas como um depositório de exemplos. O que
realmente importava, aos seus olhos, eram os eventos únicos, isto é, os religiosos a
morte de Cristo e sua ressurreição – e que levariam à salvação, verdadeiro fim do
15
ARENDT, Hannah. O conceito de história Antigo e Moderno. In: Entre o Passado e o Futuro. São
Paulo: Perspectiva, 1972, p. 99; ARIÈS, Phlilippe. A atitude diante da história: na Idade Média. In: O
Tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989, pp. 93-94.
16
ARIÈS, Phlilippe. op. cit., p. 102.
17
Ibidem, p. 103.
18
BIGNOTTO, Newton. O círculo e a linha. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 181.
Introdução
10
homem no tempo
19
. Nessa perspectiva, uma vez que a potica seria temporal, ela se
acabaria e o traria a salvação.
No pensamento cristão romano e medieval, a história, os eventos políticos e
mundanos eram inferiorizados. Se eles possuíam alguma importância, era simplesmente
como um repositório de exemplos, pois, num nível inferior à linha histórica divina, a
história secular era cíclica; citando Hannah Arendt:
a história permanece um repositório de exemplos, e a localização do evento no
tempo, dentro do curso secular da história, continua sem importância. A história
secular se repete, e a única história na qual eventos únicos e irrepetíveis têm lugar
se inicia com Adão e termina com o nascimento e a morte de Cristo. Daí em diante
poderes seculares ascendem e declinam como no passado e ascenderão e declinarão
até o fim do mundo, mas nenhuma verdade fundamentalmente nova será jamais
novamente revelada por tais eventos mundanos, e os cristãos não devem atribuir
importância particular a eles. (...) Para o cristão, assim como para o romano, a
importância de eventos seculares está no fato de possuírem o caráter de exemplos
que provavelmente repetir-se-ão de modo que a ação possa seguir certos modelos
padronizados
20
.
Até mesmo a queda de Roma, a “cidade Eterna”, foi uma prova de que não haveria nada
de eterno no culo. No temporal tudo se corrói, somente o divino é eterno e é o que
importa.
Essa separação agostiniana entre o temporal e o religioso, entretanto, não foi
seguida tão à risca, pois houve uma verdadeira união do Império Romano com os
cristãos, criando-se a Igreja Romana, e a potica foi investida de um sentido religioso e
soteriológico. A importante questão que uniu a Igreja e o Império foi, segundo Pocock,
a da realização da justiça, pois se ela o era suficiente para a salvação, constituía ao
menos um meio necessário para tanto e emanava de Cristo. Mesmo que se sustente que
a Igreja era o meio dessa manifestação, os homens viviam numa civitas terrena, sob um
governo político, que realizava a justa. Assim, os governantes, como realizadores da
justiça, eram representantes de Cristo no século
21
. Associavam-se, assim, os preceitos
políticos aos morais e religiosos.
Do ponto de vista da compreensão histórica, dessa união resultou a assimilação
política da linha escatológica judaico-cristã de interpretação da história, ou seja, a
história se desenvolveria em direção a um fim último conhecido, a salvação, e, ao
mesmo tempo, à vitória romana. A compreensão das ações poticas se daria de uma
19
ARENDT, Hannah. op. cit., p. 99; POCOCK, J. G. A. A Liberdade Religiosa e a Dessacralização da
Política. In: Linguagens do Ideário Político. op. cit., p. 403.
20
ARENDT, Hannah. op. cit. p. 99.
21
POCOCK, J. G. A. A Liberdade Religiosa e a Dessacralização da Política. op. cit., p. 403.
Introdução
11
forma religiosa, pois a história, garantida providencialmente por Deus, se encaminharia
naquele sentido
22
. Tal concepção sobreviveu durante a Idade Média, o que permite
dizer, com Gusdorf, que, nesse período, a história, “é apenas uma espécie de teologia
aplicada”
23
.
O providencialismo consiste, pois, na união das dimensões divina e temporal,
sendo esta última incluída na “economia da salvação”. Ao contrário da separação
agostiniana entre a cidade de Deus e a cidade dos homens, em que esta última não
possui nada de divino, posto que é fruto da imperfeição dos homens decaídos e, desta
forma, não pode levar à salvação, o providencialismo sincroniza os tempos de Deus e
dos homens, dando uma dignidade especial às instituições humanas ao inseri-las na
história sagrada. Assim, existiria apenas uma história, em que as ações humanas
seguiriam o norte, garantido por Deus, da universalização da palavra divina e da
consolidação do cristianismo
24
. Os homens deveriam, então, em suas ações, garantir o
cumprimento da promessa divina e, quando não o fizessem, Deus agiria, Ele próprio, na
história punindo as atitudes contrárias à moral e ao sentido da salvação, ou beneficiando
aqueles que agissem conforme Seus preceitos. Daí interpretações históricas
providencialistas, como a de Salviano a respeito da queda de Roma sob os bárbaros
Deus fez os romanos terem por mestres um povo covarde para mostrar que as
conquistas são frutos das virtudes e não da força, para mostrar a força divina ante a
soberba humana, da mesma forma que havia feito no dilúvio. Outro exemplo, posterior,
é de Joseph de Maistre que interpretou a Revolução Francesa como uma vingança
divina
25
.
No espaço ibérico têm-se vários exemplos de interpretação providencialista da
história, como a queda de D. Rodrigo, último rei visigodo, sob os árabes. Para os
homens da época, a derrota se explicava pelas ofensas a Deus cometidas na Corte
visitica, principalmente a violação sofrida pela filha do conde D. Julián, que era
educada. Não se chegou a um consenso sobre o culpado, sendo acusados o rei Rodrigo e
Witiza, membro de um clã rival ao do rei. Independentemente do responsável pela
violação, a culpa era de todos, os ambiciosos pelo poder e suas disputas
26
. Em Portugal,
22
REIS, José Carlos. op. cit. p. 19.
23
GUSDORF, Georges. L’éveil du sens historique. In: Introduction aux Sciences Humaines. Paris:
Editons Ophrys, 1974, p.186. Ver também: ARIÈS, Phlilippe. op. cit. p. 106.
24
BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e Artifício: iberismo e barroco na formação americana. Belo
Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2000, p. 161.
25
ARIÈS, Phlilippe. op. cit. p. 107.
26
BARBOZA FILHO, Rubem. op. cit. p. 111.
Introdução
12
houve rios casos de interpretação semelhante, como algumas a respeito da
Restauração de Portugal, de 1640, o que será analisado no Capítulo 1.
Esse ambiente de transcenncia da história e da política foi lentamente alterado
durante os séculos da Idade Moderna, o que permite falar que uma das marcas de
ruptura desta época é a secularização. Para Pocock, a dessacralização da política foi
possível quando os problemas da relão entre justiça e redenção espiritual deixaram de
fazer sentido, isto é, quando os problemas relativos à salvação puderam “ser relegados à
esfera do julgamento privado, da opinião privada e da liberdade privada, quando aqueles
que os levavam a sério tiveram de reconhecer que eles não faziam parte dos assuntos
públicos”; assim, a dessacralização da potica foi o restabelecimento da separação
entre potica e salvação
27
. Dessa forma, o Estado deveria cuidar de todos os assuntos
que não dissessem respeito à salvação, cessando, pois, as interdições religiosas às suas
ações. Colocado dessa maneira, têm-se o resultado final – e ideal – de um processo mais
lento e complexo, pois passa pelo desenvolvimento de noções como indivíduo, ação
individual e de ambientes blico e privado, e, sabe-se que historicamente, tal processo
o foi tão simples.
Jean Delumeau vê, na construção de utopias na Idade Moderna, principalmente
naquelas do século XVIII, uma laicização dos milenarismos. Embora ressalte algumas
diferenças fundamentais entre escritos milenaristas e utópicos, como a ausência de uma
noção de queda inicial da humanidade nas utopias, afirma, como elo fundamental entre
as obras desses dois tipos, a noção de um espaço de felicidade futura, por
subentenderem esperanças. A importante diferença, que dá um sentido laicizado às
utopias, é que, ao contrário dos milenarismos, a esperança utópica não se baseia na
construção divina do mundo melhor, nem na nostalgia de uma idade de ouro perdida,
mas, sim, no “melhoramento graças a uma organização voluntarista”, de ação humana, e
num espaço idealizado que tinha como base a reflexão sobre os problemas cotidianos do
autor da utopia
28
. Aqui, então, as ações humanas passavam a ter valor, passavam a ser
capazes de produzirem algo novo na história. Sem que se relegasse o divino ou a
salvação a um plano irrelevante para os diversos indivíduos, a metafísica deixou de ser
o sentido último dos homens no mundo. Tal ruptura ocorreu juntamente com a
27
POCOCK, J. G. A. A Liberdade Religiosa e a Dessacralização da Política. op. cit. p. 404.
28
DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma história do paraíso. São Paulo: Companhia das Letras,
1997, p. 257.
Introdução
13
emergência de um pensamento mais mundano; com a valorização dos prazeres terrenos,
o profano aumentou seu espaço em relão ao sagrado.
A imutabilidade dos homens no tempo é uma noção importante que penetrou na
Época Moderna e, ao fim dessa, já possuía outros termos, mais próximos da nossa
noção de hisria. Durante a Idade Média, os homens não sentiam nenhuma necessidade
de particularizar historicamente os acontecimentos narrados. Ao invés de conceberem-
se como diferentes, sentiam, na verdade, uma solidariedade com os homens passados
29
.
Segundo Koselleck, os homens do início da Idade Moderna não se viam como
diferentes daqueles da Antiidade, isso fazia com que noções como guerra”, “honra”,
conhecimento etc. fossem interpretadas pelos homens modernos como inticas às
suas, independentemente do período a que se referissem
30
. Apenas por volta do final do
século XVIII que as leituras históricas tornam-se “historicizadas”, individualizadas
historicamente.
Para que se concebesse a iia de uma historia magistra vitae, foi fundamental
que existisse essa noção de que os homens são os mesmos no tempo e de que os eventos
históricos tendem a se repetir, senão seria impossível se admitir que um fato passado
pudesse instruir a ação de alguém no presente, ou mesmo predizer algo sobre o futuro
31
.
Confirmando a fórmula da história como fonte de exemplos, conforme já indicado
anteriormente.
O processo que levou ao desenvolvimento da moderna idéia de história, além da
recusa da metafísica, teve, como correlato, a valorização do mundano, do homem, de
suas capacidades e de suas ações. Dessa forma, a experiência humana deixou de ser
vista como repetitiva para se individualizar. A capacidade do homem de criar algo novo
na história, de modificar o que acontece no temporal, até então algo visto como
impossível, uma vez aceita, modificou as vigentes concepções de história, gerando
também outras formas de entendimento do político.
29
“O homem do século XIII representa para si mesmo Carlos Magno, Constantino e Alexandre sob os
aspectos e com a psicologia do cavaleiro de seu tempo (...) Se não particularizam é porque não sentem
necessidade disto. Sentem mais a solidariedade dos tempos do que as suas diferenças: é a sua maneira de
estar diante da história”. ARIÈS, Phlilippe. op. cit. p. 106.
30
KOSELLECK, Reinhart. O futuro passado dos tempos modernos. In: Futuro Passado: contribuição à
semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 22.
31
KOSELLECK, Reinhart. Historia Magistra Vitae: Sobre a dissolução do tropos na história moderna
em movimento. In: Futuro Passado. op. cit., pp. 41-60. Aqui, Koselleck afirma que, ao longo de dois mil
anos, a história teve um papel de escola, “um cadinho contendo experiências alheias”, onde “se podia
aprender a ser sábio e prudente sem incorrer em grandes erros”.
Introdução
14
Para Bossuet, no século XVII, a história é a fonte de conhecimento para a ação no
político, o que subentende a idéia de que o homem pode aprender a partir de exemplos
alheios, afinal os preceitos que regem a ação humana seriam imutáveis:
Se a história fosse inútil aos outros homens, seria preciso -la para os príncipes.
Não há melhor meio de lhes ensinar o que podem as paixões e os interesses, os
tempos e as conjunturas, os bons e os maus conselhos. As histórias não o
compostas senão por ações que os ocupam, e tudo nelas parece ser feito para seu
uso. Se a experiência é necessária aos príncipes para adquirir aquela prudência que
leva a reinar bem, não nada mais útil para a sua instrução que acrescentar aos
exemplos dos séculos passados as experiências por ele adquiridas todos os dias
32
.
O que garantiria a imutabilidade da história e da potica seria, para Bossuet, o
caráter divino das leis que as regiam, citando sua Politique:
leis fundamentais que não se podem mudar; é mesmo muito perigoso mudar
sem necessidade aquelas que o são. É principalmente sobre essas leis
fundamentais que está escrito que as violando “abalam-se todos os fundamentos da
terra”: após o que não resta mais que a queda dos impérios. Em geral, as leis o
são leis se não têm alguma coisa de inviolável. Para marcar a sua solidez e sua
firmeza, Moisés ordena “que elas sejam escritas clara e visivelmente sobre as
pedras”. (...) Perde-se a veneração pelas leis quando se as mudar tão
freqüentemente. É então que as nações parecem cambalear como que transtornadas
e embriagadas, assim como falam os profetas. O espírito de vertigem as possui e
sua queda é inevitável, “porque os povos têm violado as leis, mudado o direito
público e rompido os pactos mais solenes”. Este é o estado de um doente
perturbado que não sabe para onde vai
33
.
Dentro desse pensamento, a história teria também um desenvolvimento moral, de
acordo com o qual floresceriam os bons príncipes e seus reinos; e fracassariam os maus,
os que desrespeitam os divinos princípios que deveriam reger suas ações
34
.
Concepções políticas na Idade Moderna
Assim como acontece com a história, é impossível se pensar na potica da Idade
Moderna de uma forma dissociada do pensamento teológico e dos poderes eclesiásticos.
A constituição dos Estados nacionais e a afirmação de seus poderes seculares passaram
32
BOSSUET. Discours sur l’histoire universelle. apud LOPES, Marcos Antônio. O Político na
Modernidade: Moral e Virtude nos espelhos de príncipes da Idade Clássica (1640-1700). São Paulo:
Edições Loyola, 1997, p.77.
33
BOSSUET. Politique tirée des propres parole de l’Écriture Sainte. apud LOPES, Marcos Antônio. op.
cit., pp. 79-80.
34
Comentando os historiadores do século XVII, Paul Hazard diz que, para eles, “(...) a história é uma
escola de moral, um tribunal soberano, um teatro para os bons príncipes, um cadafalso para os maus.
Ensina a conhecer os caracteres, porque é ‘uma anatomia das ações humanas’”. HAZARD, Paul. Crise da
Consciência Européia. Lopes. Lisboa: Edições Cosmos, 1971, p. 35.
Introdução
15
por diversos conflitos com o poder religioso exercido pelo papa, levando durante esse
processo a teorizações de cunho teológico.
A Igreja Romana exercia um poder supranacional no Ocidente europeu. Com a
desagregação do Império, ela se tornou a única manifestação de poder com este alcance,
absorvendo os dois gdios, temporal e religioso, concebendo-se como imune a poderes
seculares locais e mesmo aos das igrejas locais. Durante o período de formação e
afirmação do Sacro Império Romano-Germânico, esta relação entre as forças do
Imperium e do Sacerdotium era justamente o oposto, quando os imperadores submetiam
o poder papal. Entretanto, as novas conjugações entre esses dois poderes fizeram crescer
o poder da Cúria romana, e o Sumo Pontífice passou a requerer para si prerrogativas
temporais de alcance geral no universo cristão, como depor os imperadores e dissolver
o juramento de fidelidade dos vassalos feito aos príncipes que se tornam ‘tiranos’”
35
.
Além de, no âmbito do poder eclesiástico, o papa ser o único responsável pela
convocação de sínodos gerais e de depor e absolver bispos
36
.
Acerca da fundamentação das relações entre o poder religioso e temporal, foram
produzidas rias obras que refletiram também sobre a legitimidade e origem dos
poderes temporais, no que se podem ver delineados alguns pontos importantes das
teorias dos Estados modernos. S. Tomás de Aquino, no século XIII, formulou uma
teoria do poder temporal dentro de um ambiente cultural eminentemente teológico,
procurando vincular os poderes do saeculum ao plano divino. A escolástica tomista se
apropriou de conceitos poticos aristotélicos e os cristianizou, construindo uma base
divina para todos os poderes da respublica, ou seja, Deus é a causa primeira de todo o
poder humano. Para a formatação desta arquitetura de poder, S. Tomás formulou uma
hierarquia de leis que regeriam a humanidade. Da “lei eterna”, pela qual age o próprio
Deus, derivaria a “lei divina”, dada aos homens pelas Escrituras; seguia-se a “lei
natural”, inscrita por Deus nos corações dos homens e, desta, surgiria a “lei humana” ou
direito positivo”, que é a parte modificável dessa hierarquia e que orienta as relações
entre os homens
37
. Em última instância, os homens, mesmo que não tivessem conhecido
a “verdade revelada” por meio das Escrituras, seriam orientados pelos mesmos
princípios designados por Deus através da “lei natural”.
35
TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restaurão. Coimbra: Biblioteca da
Universidade, 1982, vol. 2, p. 9.
36
Idem.
37
SKINNER, Quentin. O ressurgimento do tomismo. In: As fundações do pensamento político moderno.
op. cit., p. 426; e TORGAL, Luís Reis. op. cit., vol. 2, pp. 6-7.
Introdução
16
A esfera humana é, em S. Tomás, subordinada à divina, e a instituição da
comunitas civitatis ou respublica depende do “ser social” do homem, que seria sua
condição natural, conceito herdado de Aristóteles. Entretanto, para o tomismo, essa
natureza se confunde com a “lei eterna” e o conhecimento que todos os homens têm
dela através da “lei natural”. Para a concepção escolástica, o poder político é legítimo e
tem sua fonte última em Deus. No entanto, entre Deus e o soberano existe a mediação
da sociedade: através de um pacto social”, os indivíduos ab-rogam seus direitos em
favor do governante como forma de assegurar a manutenção de toda a sociedade. A
república instituída pelo pacto é tida como um “corpo místico”, cujo fim é o “bem
comum”
38
. Semelhantemente, para Aristóteles, os homens buscam a vida na polis para
viverem em felicidade ou bem-estar
39
. Mas o “bem comum” tomista, embora tenha um
sentido temporal e se manifeste por um bem-estar material, “só se compreende tendo em
conta os fins eternos do homem”
40
. Ao contrário da visão agostiniana, para S. Tomás,
o Estado terreno e a Cidade de Deus já não são pólos opostos; relacionam-se e
completam-se um ao outro
41
. Muito embora, ele defina os espaços das jurisdições
humana e divina: caberia à república o bem-estar material do homem, enquanto o bem-
estar eterno – a salvão, fim último do homem –, à Igreja.
O poder civil teria, então, uma finalidade ética, a de garantir a realização do bem-
comum que se manifestaria no cumprimento da lei natural e, por conseqüência, da lei
divina. A desobediência a este princípio constituiria a tirania, única situação em que S.
Tomás admite a resistência ativa ao poder do soberano, mas apenas em última instância
e sem conceder legitimidade ao tiranicídio.
Desta forma, S. Tomás cria uma separação entre as esferas de poder temporal e
religioso, mas subordinando o primeiro ao segundo, possibilitando uma ação legítima
do poder religioso sobre o temporal, inclusive com a deposição de governos que
desagradassem os interesses do papado
42
.
As delimitações de poder entre os dois gládios continuaram sendo objeto de
reflexões, e dentro da própria Igreja nasceu uma importante doutrina na contestação do
elevado alcance do poder papal sobre a cristandade, o conciliarismo. Formulada, no
38
TORGAL, Luís Reis. op. cit., vol. 2, p. 7.
39
GOMES, Rodrigo Elias Caetano. As Letras da Tradição: O Tratado de Direito Natural de Tomás
Antônio Gonzaga e as Linguagens Políticas na Época Pombalina (1750-1772). 2004. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em História, p. 21.
40
TORGAL, Luís Reis. op. cit., vol. 2, p. 7.
41
CASSIRER, Ernst. O Mito do Estado. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, p. 133.
42
TORGAL, Luís Reis. op. cit., vol. 2, p. 8.
Introdução
17
século XII, por Huguccio e seus discípulos, a doutrina conciliarista visava defender a
cristandade, ou a própria Igreja, da possibilidade de heresia ou do mau governo de um
papa. Segundo a doutrina, um concílio convocado e formado por cardeais seria superior
ao papa e teria o poder de julgá-lo. O poder da Igreja estaria no seu corpo, no seu
concílio, sendo que o papa não seria maior que a representação de seus membros o
concílio –, que seria a mediação humana deste poder
43
. A doutrina de Huguccio não
chegou a ter especial relevância no momento de sua formulação, pelo contrário, o poder
temporal do papa continuou a crescer durante os culos XIII e XIV. Entretanto, no
contexto do Grande Cisma, quando a Igreja chegou a ter três papas exigindo o
reconhecimento de seu poder, o Concílio de Constança, reunido em 1414, “destituiu
dois dos pretendentes ao pontificado, obrigou um terceiro a abdicar de suas pretensões e
elegeu um quarto, Martinho V, vigário de Cristo
44
.
O conciliarismo, em seus desenvolvimentos com teóricos como Francesco
Zabarella (1360-1417), Pierre d’Ailly (1350-1420) e Jean Gerson (1363-1429),
formulou importantes picos para a contestação do supremo poder papal, ao fincar
posição de que o poder do papa reside no corpo da Igreja. O concílio seria o
representante desse corpo eclesiástico e exerceria a mediação entre este poder e o papa,
seu representante. Além disso, estabelece que o poder do papa deve ser exercido com
vistas à realização do bem comum. Aqueles que se opunham ao poder do concílio e
defendiam a Cúria romana ficaram conhecidos como papistas ou curialistas.
Outra linha de contestação do poder papal centrou-se no questionamento da
legitimidade de seu poder temporal. No final do século XIII, Dante escreveu sua obra
De Monarquia, em que defendia que os reinos temporal e espiritualm a mesma
dignidade, já que ambos derivam da vontade de Deus. Para o autor, influenciado pela
obra de S. Tomás, a vida humana possuía duas finalidades: a felicidade na vida terrena e
a felicidade na vida eterna, sendo que a primeira seria orientada pelo imperador e a
segunda pelo Sumo Pontífice. Assim, o poder dos papas deveria dirigir-se apenas à
salvação das almas, seu donio estender-se-ia sobre a Christianitas, enquanto a
Humanitas seguiria a orientação do poder secular, que possuía um fim em si mesmo
45
.
43
GOMES, Rodrigo Elias Caetano. op. cit., pp. 27-29.
44
Ibidem, p. 29.
45
BARBOZA FILHO, Rubem. op. cit., p. 199. Para Cassirer, o tratado de Dante, naquele momento,
elevou o Estado “ao seu mais alto nível. o era justificado, mas também enaltecido e glorificado.
Entretanto, para a época, a concepção dogmática católica de que o Estado nasce do pecado original e da
queda do homem, confirmada por Santo Agostinho e outros padres, criava uma situação em que “o
Estado podia justificar-se em certa medida, mas nunca podia considerar-se belo. Não podia conceber-se
Introdução
18
O contexto em que Dante desenvolveu seu pensamento político era o da afirmação
do poder das cidades italianas frente às pretensões temporais do poder papal. Na sua
solução, as cidades italianas deveriam vincular-se ao imperador, ao Sacro Império
Romano-Germânico, como forma de se livrarem da influência secular do papa.
Entretanto, essa construção não satisfazia inteiramente as pretensões das cidades que
compunham o Regnum Italicum. Outro italiano, Marsílio de Pádua, na Baixa Idade
Média, desenvolveu em outros termos a questão da separação dos poderes secular e
religioso, principalmente em sua obra Defensor Pacis (1324). Para Marsílio, o
Sacerdotium, poder religioso exercido pela Igreja e sua hierarquia eclesiástica, não teria
origem divina. A Igreja teria se apropriado do poder coativo do Império e demais
poderes temporais, inclusive de sua estrutura hierárquica, transformando o papa em algo
semelhante ao imperador ou a um príncipe. Essa mudança foi uma traição à natureza
cristã. A Igreja é aqui concebida como um “corpo stico e infalível de fiéis
diretamente iluminados pelo Espírito Santo em suas deliberações”
46
, aspecto em que
antecipa as reflexões de Lutero. Seguindo o paduano, a estrutura hierárquica da Igreja,
constituída através dos séculos, deveria ser destituída em favor do povo, dos fiéis, a
verdadeira Cidade de Deus
47
.
Desconstruída a fundamentação do poder temporal da Igreja, Marsílio reflete
sobre a origem e fundamentação dos poderes seculares. Para ele, ao contrário de Santo
Tomás, não existiria uma lei natural de origem divina que orientaria o estabelecimento
de leis positivas, ou a prática potica dentro das esferas de poder temporal. Ele defendia
a soberania popular. Afirmava que as cidades, “governadas por povos livres, [constituir-
se-iam] em príncipes de si mesmas”
48
, e que a fonte da lei seria o povo, ou sua parte
preponderante, reunido em assembléia, exprimindo oralmente sua vontade
49
. Outro
ponto em que Marsílio rompe com o tomismo refere-se à possibilidade de eleição e
deposição de um soberano. Enquanto para o Doutor Anlico, o povo, ao transferir seu
poder para uma autoridade, fica obrigado a obedecer-lhe, sendo que a possibilidade de
revolta e deposição é justificada em último caso, para Marsílio, o povo mantém por
como puro e imaculado; porque trazia consigo permanentemente o estigma de sua origem”. CASSIRER,
Ernst. op. cit., pp. 125-127.
46
BARBOZA FILHO, Rubem. op. cit., p. 200.
47
Idem.
48
Ibidem, p. 199.
49
GOMES, Rodrigo Elias Caetano. op. cit. p. 31.
Introdução
19
todo tempo a soberania que apenas “empresta” à autoridade
50
, uma construção política
de teor bastante moderno.
Foi em torno das discussões sobre o alcance dos poderes eclesiástico e temporal, e
do confronto entre seus interesses, que se desenvolveram os embriões dos Estados
modernos. As monarquias européias conformaram-se em duas frentes: externamente,
fragmentando o poder temporal supranacional do papa, e, internamente, buscando
centralizar em torno da Coroa os poderes internos, dissolvendo laços comunitários
locais e reprimindo certas práticas e costumes enraizados localmente. Medidas desse
tipo podem ser exemplificadas pelas orientações dadas aos reis pelos legistas no sentido
de limitarem as jurisdições eclesiásticas, circunscrevendo-as à administração dos
sacramentos, formação de clero, etc., e impedindo a circulação de documentos papais
sem o beneplácito régio
51
. Internamente, a repressão a práticas mágicas e feitiçaria, bem
como a outras práticas religiosas campesinas teve um sentido menos religioso que
político, colocando-se o controle dos costumes sob padres preferencialmente ligados a
Igrejas nacionais. Houve também uma tenncia a se impedir o uso de justiças locais,
privadas ou comunitárias, como a vingança, paralelamente a uma sofisticação do
aparato institucional no Estado monárquico com vistas a uniformizar a vida social.
Estabelecendo uma justiça em âmbito nacional, que regeria toda a sociedade pela
burocracia e legislação do Estado
52
.
O esquema enunciado acima, ressaltando o enfraquecimento dos poderes locais e a
absorção progressiva da ordem potica por parte do poder central, anuncia a
constituição das monarquias absolutas. O processo de fortalecimento das Coroas
suscitou, em alguns casos, como o francês, violentos combates contra os senhorios
locais, que defendiam a manutenção da ordem fragmentada de origem medieval. A
resistência exercida por estes poderes locais, na Fronda, por exemplo, explica este
confronto e o investimento da Coroa francesa na construção de uma burocracia que
garantisse seus interesses.
Entretanto este não é um modelo a ser aplicado a todos os Estados da Europa
conformados no período. A constituição das monarquias ibéricas, e mais
especificamente portuguesa, possui nuances que limitam a atuação do poder real na
tomada de decisões, como será visto no Capítulo 1. Deve-se ressaltar ainda que a
50
BARBOZA FILHO, Rubem. op. cit. p. 201.
51
TORGAL, Luís Reis. op. cit. p. 10.
52
LOPES, Marcos Antônio. O Absolutismo: Política e Sociedade na Europa Moderna. São Paulo:
Brasiliense, 1996, pp. 20-23.
Introdução
20
execução de um poder de tipo absolutista, em um período em que o sistema burocrático
se encontrava em formação, possuiu sérios limites. O alcance do poder central tendeu a
se enfraquecer conforme se afastava para pólos distantes, devido a dificuldades de
fiscalização, comunicação, formação uniforme de funcionários etc.
Mesmo com a expansão do alcance dos poderes seculares frente ao papado, a
fundamentação dos direitos e fins do governo temporal não se apartou dos argumentos
teológicos, e grandespensadores poticos” do período tinham sua origem no meio
religioso, ou mesmo produziam suas formulações a partir da instituição eclesiástica.
No início do século XVI, na Universidade de Paris, começou-se a se desenvolver
uma recuperação das idéias tomistas, que ficou posteriormente conhecida como
Segunda Escolástica ou Neo-tomismo. O ressurgimento do tomismo teve particular
importância em Portugal e Espanha, países onde a ação reformista católica fincou
fortemente suas raízes e onde escreveram os seus principais teóricos
53
. Os termos da
Segunda Escolástica e sua compreensão da política e da história serão discutidos no
Capítulo 1.
Aos poucos, o pensamento potico moderno foi se afastando das formulações
teológicas e das relações estabelecidas entre os campos moral e potico. Maquiavel, no
século XVI, discutia a potica e ações dos príncipes em termos totalmente apartados da
moral e da religião, desenvolvendo a razão de estado. Ao invés de procurar os preceitos
ideais e imutáveis que deveriam reger a prática potica, Maquiavel procurava conhecer
os homens tais como são, acreditando que o governante, a partir desse conhecimento,
deveria desenvolver a sua prática potica, e não a partir de preceitos apriorísticos
54
.
As teorias poticas do contrato social e do direito natural moderno desenvolvidas
no século XVII também procuraram entender, legitimar e conhecer os fins do poder
político com conceitos independentes da religião. Isso não significa que autores como
Hobbes, Locke, Grotius e outros fossem irreligiosos, apenas entendiam que a
compreensão do político tinha outros fins terrenos, diferentes da salvação religiosa
55
.
Com os autores fundadores do contratualismo moderno, inseriu-se um novo
aspecto na ruptura com o pensamento político até então vigente, bem como com a idéia
de história que lhe subjazia. Para Marcelo Jasmin, o contratualismo moderno se
53
SKINNER, Quentin. O ressurgimento do tomismo. op. cit., p. 414.
54
JASMIN, Marcelo Gantus. Maquiavel, a História e a Crítica da Razão Humanista. In: Racionalidade e
História na Teoria Política. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, pp. 17-31; BIGNOTTO, Newton.
Maquiavel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
55
CASSIRER, Ernst. O Mito do Estado. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, pp. 180-183.
Introdução
21
pretendeu mais realista, recusando os preceitos ideais trans-históricos da boa política
(aqueles que supõem uma igualdade dos homens no tempo) e ambicionando alcançar a
realidade do homem para fundamentar sua posição, mas com a recusa à empiria, o
recurso à história, posto que seus acontecimentos seriam irracionais
56
. O raciocínio
acerca do potico, para o contratualismo, recusa a história, o conhecimento de
fenômenos passados, como fonte de conhecimento para se pensar e agir politicamente.
Mesmo que se possua a memória de muitas coisas, a ação baseada nessa experiência
necessita de uma presunção de repetição, ou seja, que o segundo evento seja de fato
acompanhado das mesmas circunstâncias envolvidas na primeira ocorrência o que só
poderá ser verificado posteriormente à realização do evento”. Assim, é um
conhecimento que pode servir a “homens em atuação em circunstâncias históricas, o
pode ser a base para o estabelecimento dos critérios de legitimidade da ordem política
que exige total certeza”
57
. Nesta, deve-se seguir o conhecimento advindo das
conseqüências lógicas, que são racionalmente necessárias, e não contingenciais, como
as empíricas. É um raciocínio filofico, que parte das premissas às conseqüências.
No pensamento político contratualista, a construção da ordem potica é fruto dos
homens em ação e de suas opções e, dessa forma, ela pode ser alterada de acordo com
sua vontade e necessidade. Essa perspectiva voluntarista considera que o homem,
baseando-se em sua razão, pode alterar a potica, agir na história, romper com os
costumes e criar algo novo no domínio temporal. Está-se, aqui, numa perspectiva bem
diferente daquela de Bossuet, e que foi a principal no mundo ocidental durante vários
séculos. O divino continua a existir, mas deixa de ser o elemento fundamental a se
seguir nos assuntos públicos. A salvação da alma passa a ser assunto privado.
No século XVIII, os pensadores ilustrados discutiram essas questões em torno da
origem, fundamento e finalidade do poder político. Foram herdeiros de várias
56
JASMIN, Marcelo Gantus. Contratualismo: Recusa e Negação da História. In: Racionalidade e
História na Teoria Política. op. cit., p. 36. Para Cassirer, embora Grotius e Hobbes discordassem em
relação a alguns pressupostos teóricos e interrogações políticas, eles “seguiam a mesma via de
pensamento e de argumentação. O método que seguiam não era histórico e psicológico, mas dedutivo e
analítico. Derivavam os seus princípios políticos da natureza do homem e da natureza do Estado (...). A
vida social do homem não é uma simples massa de fatos incoerentes e desordenados. Baseia-se em juízos
que possuem a mesma validade objetiva e são capazes da mesma firme demonstração que qualquer
proposição matemática. Pois não dependem de observações empíricas acidentais; têm o caráter de
verdades universais e eternas”. CASSIRER, Ernst. op. cit., p. 182. Sobre esse aspecto, ver também:
HESPANHA, Antônio Manuel. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia. Publicações Europa-
América, 1998.
57
JASMIN, Marcelo Gantus. Contratualismo: Recusa e Negação da História. op. cit. p. 39.
Introdução
22
formulações do direito natural e do contratualismo do século XVII, mas inseriram novos
termos à discussão, principalmente nas relações entre política e história.
Política e história na Ilustração
A secularização ou mesmo a recusa da metafísica nas compreensões do tempo, do
pensamento político e das próprias relações políticas que passaram a se desenvolver
durante a Época Moderna, foi um processo que se agudizou sob as Luzes, no século
XVIII. Na Ilustração houve uma acentuada crença na razão: a defesa dos pensadores de
que o homem era capaz de conhecer a natureza ao seu redor, e, a partir desse
conhecimento, construir uma nova sociedade. Haveria, pois, o progresso e a
emancipação do homem pelo homem. A metafísica se distanciaria das relações
humanas, e mesmo em assuntos religiosos, o homem moderno, reformado, exige para si
próprio o conhecimento do Deus e a interpretação de Suas palavras, recusando a
autoridade que não reconhece, ou que não tenha sido por si próprio estabelecida
58
. Esta
importante transição gerou novas interpretações acerca do processo histórico. Se a
provincia divina, suas leis e o necessário fim dos tempos, com o retorno de Cristo, a
salvação e condenação eterna dos homens, não o mais aceitos, pelo menos não mais
de uma forma unânime, a história providencial cede espaço para outra, que valoriza a
razão e ações dos homens no decurso histórico.
O pensamento ilustrado, ao criticar a ordem potica social e intelectual do Antigo
Regime, apontou novas soluções para se compreender e fazer, isto é, escrever a história.
As narrativas históricas de guerras e feitos heróicos de reis e nobres, no campo da
história profana, e os textos eclesiásticos, com uma interpretação religiosa da história,
no campo da história sagrada, campos que não raramente se entrecruzavam,
correspondiam à ordem estabelecida em que clero e nobreza ocupavam os mais altos
estamentos sociais; assim, história e organização sócio-política caminhavam juntas. Ao
realizar suas críticas a esta organização social e política do Antigo Regime, os
ilustrados, alguns de forma mais radical, outros com uma abordagem mais reformista,
conceberam novas formas de interpretar e produzir a história. Assim, o pensamento
acerca da história sofreu profundas alterações em sua forma de compreensão moderna.
Segundo Cassirer, o século XVIII
58
Cf. REIS, José Carlos. op. cit., pp. 22-35.
Introdução
23
considera que os problemas da natureza e os da história formam uma unidade
incapaz de desfazer-se arbitrariamente a fim de tratar à parte de cada uma das
frações. Ela pretende abordar uns e outros com o mesmo equipamento intelectual,
aplicar à natureza e à história a mesma espécie de problemática, o mesmo todo
universal da razão
59
.
O primeiro desafio da história para atingir tal tratamento, continua este autor, seria
desvencilhar-se da influência da teologia, que, naquele momento, também começava
a se dedicar mais à analise histórica de seus dogmas, mediante a crítica erudita que
emergia. Contudo, deve-se considerar que se desvencilhar da teologia, ou mesmo
naturalizar a história, o foi o procedimento adotado por todos os ilustrados, nem em
todos os lugares. Tal questão tem implicações poticas relevantes, e o seu tratamento
em espaços como a península Ibérica foi bastante cauteloso, às vezes eliminado ou
reduzido a discussões em círculos fechados.
Embora houvesse “filosofias da históriaanteriores ao século XVIII, a expressão
surgiu nesse momento com Voltaire
60
. A criação do novo, direito agora adquirido pelos
homens na história, na forma desenvolvida pela filosofia da história ilustrada, seguiria
um rumo linear, o do progresso
61
. Os homens do século XVIII não mais se viam
como idênticos aos da Idade Média ou da Antiguidade, nem mesmo àqueles de seu
tempo, mas que possuíam, de acordo com suas vies, modos selvagens”
62
.
Concebiam-se num momento de esclarecimento, que seria contínuo e deveria ser
aprofundado pela ão do pprio homem. Através do uso de sua razão, o homem
deveria estar em contínuo processo de aperfeiçoamento.
Ilustrados, como Montesquieu e Voltaire, acreditavam que se os homens ainda não
seguiam as leis morais universais como a natureza segue as suas, era devido à limitação
ainda da razão humana, que fazia com que os homens não seguissem as leis por eles
mesmos criadas. Esperavam “um progresso do conhecimento desse estado de coisas
para uma nova ordem do mundo da vontade, uma nova orientação geral da história
política e social da humanidade
63
. Acreditava-se ser possível conhecer as “forças
59
CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. Campinas: Editora UNICAMP, 1997, p. 270. As
primeiras manifestações da idéia de progresso deram-se em torno das descobertas científicas e do modelo
newtoniano, que, aplaudido pelos ilustrados, possibilitou “confiança na razão e a idéia de que o mundo
físico, moral e social é governado por leis”. LE GOFF, Jacques. “Progresso/Reação”. In: Idem. op. cit., p.
245.
60
SOUZA, Maria das Graças de. Voltaire: História e Civilização. In: Ilustração e História: o pensamento
sobre história no Iluminismo francês. São Paulo: Discurso Editorial, 2001, p. 117.
61
Idem. Introdução. In: Ibidem, p. 23.
62
Idem. A história iluminista e a colonização. In: Ibidem, pp. 211-215.
63
CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. op. cit., p. 288. (Itálico no original).
Introdução
24
motrizes” da história, que conduziriam à filosofia da história, daí os homens poderiam
organizar os princípios sociais e ter segurança em relação ao futuro
64
.
Voltaire, em suas empreitadas historiográficas, desejava ver toda a vida interior
das sociedades em sua marcha e o conjunto de transformações a que tiveram que se
submeter antes de alcançarem o conhecimento e a verdadeira autoconsciência que
acreditava estar ocorrendo naquele momento. Para o autor, a “revelação”, o desabrochar
da razão, sempre ocupou o cerne do homem, mas permaneceu escondida pelos
costumes. A história contaria a visibilidade progressiva da razão. À história não
competiria provar a existência ou origem da razão, mas mostrá-la manifestando-se no
curso do tempo, revelando-se de um modo cada vez mais puro e perfeito e, de forma
empírico-real, descobrir a lei escondida no fluxo e na confusão dos fenômenos. Para
Voltaire, a história “não é um fim mas um meio, um instrumento de educação e de
instrução do espírito humano. Longe de se contentar em examinar e investigar, Voltaire
exige e antecipa com veemência o conteúdo de suas exigências”
65
. A história
voltaireana preferia a compreensão sociológica à eterna “descrição das disputas poticas
e religiosas das nações, suas guerras e suas batalhas”
66
. Almejava conhecer o “espírito
das épocas, daí seu esforço na descrição da cultura, das artes, da economia e da política.
Para ele, épocas históricas, como o “século de Luís XIV”, ou o de “Pedro, o Grande”,
mostraram o desenvolvimento do espírito humano, sua mais alta capacidade
67
, épocas
em que a infâmia superstições e fanatismo foi deixada de lado, em prol da razão e
do esclarecimento humano. A cultura de seu tempo mostrava os progressos realizados
pelo espírito humano. No Essai sur les moeurs, Voltaire afirmava:
Pelo quadro que traçamos da Europa, desde o tempo de Carlos Magno até os
nossos dias, é fácil verificar que esta parte do mundo é incomparavelmente mais
populosa, mais civilizada, mais rica, mais esclarecida do que antes, e que é
mesmo muito superior ao que era o Império Romano, se excetuarmos a Itália
68
.
Nessa perspectiva, Voltaire repudiava o providencialismo histórico de Bossuet,
bem como a utilização da Bíblia como relato histórico. Primeiramente, porque ela se
64
Idem.
65
Ibidem, p. 296.
66
Ibidem, p. 298.
67
Voltaire escreveu duas obras dedicadas a esses personagens, O Século de Luís XIV e a História da
Rússia sob Pedro, o Grande. Em sua perspectiva, “ambos os monarcas teriam contribuído para que seus
povos se tornassem mais polidos, mais cultos e menos bárbaros do que seus ancestrais”. SOUZA, Maria
das Graças de. Voltaire: História e Civilização. op. cit., p. 115.
68
VOLTAIRE. Essai sur les moeurs. apud LE GOFF, Jacques. “Progresso/Reação”. op. cit., p. 250.
Introdução
25
referia apenas a “quatro ou cinco povos, e sobretudo da pequena nação judia”
69
, sendo
assim, seu relato não poderia ser expandido para toda a Europa ou demais continentes.
Um outro motivo seria porque desconsiderava aquilo que, para ele, seria o objeto do
historiador: mostrar o aprimoramento dos costumes e o abandono das práticas e
conhecimentos bárbaros, e a ação humana nesses desenvolvimentos.
Para Koselleck, assim como as guerras civis religiosas propiciaram o
estabelecimento do Absolutismo, foi este regime que, no século XVIII, propiciou o
desenvolvimento da crítica ilustrada
70
. A alteração da ordem social foi transformada em
doutrina e necessidade histórica. Numa perspectiva filofica racional e terrena, não
mais escatológica ou salvacionista:
O insondável plano divino de salvação transforma-se em um segredo mantido
pelos planejadores da filosofia da história. Ao darem este passo, os iluminados
conquistam uma certeza especial: o plano de salvação divina é secularizado na
filosofia da história racional. Mas o plano é ao mesmo tempo a filosofia da
história, que garante o curso dos eventos, de agora em diante planejados. A
filosofia do progresso fornecia a certeza não religiosa ou racional, mas
especificamente histórico-filosófica de que o plano político indireto se
realizaria; inversamente, o planejamento racional e moral determinava o
progresso da história. O ato da vontade já continha a garantia de que o plano teria
êxito
71
.
O mesmo Koselleck admite, entretanto, que, em determinados momentos e
espaços, a crítica ilustrada, com vistas à transformação da ordem social e construção
necessária do progresso, utilizou-se de formas hisricas que associavam o tempo
futuro, novo e a ser construído pelos homens, com formas históricas de um passado
idealizado. A crença maçônica de que a liberdade humana no futuro, com cidadãos
morais e a construção de uma soberania supra-estatal para cujo serviço os maçons se
sentiam convocados –, era vista como um retorno a um passado ideal, o tempo de
Augusto, “peodo em que a arte real se estendeu à Britânia, que, tendo-se tornado desde
então a nova Senhora da Terra, deveria levar a todos os povos a arte da paz”
72
. Foucault
também comenta como a idéia do progresso e de construção do novo foi mobilizada
discursivamente como um retorno a um passado áureo, o que ele chama de “reativão
histórica”
73
. Tais aspectos indicam a permanência da concepção cíclica da hisria na
69
VOLTAIRE. Le pyrronisme de l’histoire. apud SOUZA, Maria das Graças de. Voltaire: História e
Civilização. op. cit., p. 127.
70
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de
Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999, pp. 19.
71
Ibidem, pp. 116-117.
72
Ibidem, p. 115.
73
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo:
Martins Fontes, 1999, p. 252.
Introdução
26
Ilustração, que, para Le Goff, ainda era dominante, sendo vista como fases de progresso,
apogeu e decadência. Montesquieu, por exemplo, comentando seus estudos sobre o
Império Romano, afirmava:
Quando todas as nações do mundo seguem este ciclo: primeiro o rbaras;
conquistam e tornam-se nações civilizadas; esta civilização as faz maiores e
tornam-se nações polidas; a polidez enfraquece-as; são conquistadas e voltam a
ser bárbaras: como prova destas afirmações temos os Gregos e os Romanos
74
.
A própria concepção histórica de um esclarecimento linear defendida por Voltaire
conviveu com a perspectiva cíclica. Seu conceito de grande século”, aplicado ao tempo
de Luís XIV, e, segundo ele, apenas a outros três séculos da humanidade – o de Felipe e
Alexandre na Grécia; o de Augusto, em Roma; e o do Renascimento, na Itáliaindicam
também uma idéia de se retomar essas grandes épocas
75
. Como se verá no Capítulo 4,
progresso e retorno também foram conciliados na legitimação histórica do pombalismo,
principalmente através da Dedução Cronológica e Analítica.
Do ponto de vista coletivo, o Estado, na Ilustração, tornou-se o principal ator
responsável por se trazer as luzes e o progresso aos povos, daí a idéia de um despotismo
esclarecido, um poder que se situava entre o “o homem e sua liberdade de agir”
76
. Trata-
se de um governante concentrador dos poderes, mas capaz de colocar o Estado na
direção do progresso e da razão, coisa que, sozinhos, os povos não seriam capazes de
fazer. O déspota esclarecido acampava o voluntarismo potico ilustrado
77
. No século
XIX, a doutrina do progresso sofreria modificações. Nesse momento, a perspectiva
voluntarista da ilustração seria invertida e conceber-se-ia o progresso como uma foa
autônoma em relação aos atores históricos, uma força que levaria a história para o
caminho do progresso independentemente das ações dos homens. Seria como uma
torrente”, que nem mesmo poderia ser resistida pelos homens
78
.
A prática potica desenvolvida em Portugal, durante os anos do reinado josefino,
deve ser vista tanto pelo contexto interno, em que se intentou um reforço dos aparatos
estatais de ação potica, e, externamente, pelo contexto europeu e ultramarino de
74
MONTESQUIEU. Cahiers (1716-1755). apud LE GOFF, Jacques. “Progresso/Reação”. op. cit., p. 246.
75
SOUZA, Maria das Graças de. Voltaire: História e Civilização. op. cit., pp. 111-113.
76
ARENDT, Hanna. On Revolution. apud JASMIN, Marcelo Gantus. As Formas da História. In. Alexis
de Tocqueville: a historiografia como ciência política. Rio de Janeiro: ACCESS, 1997, p. 11.
77
Voltaire e outros ilustrados defendiam a idéia de que a filosofia da história do progresso se realizaria
sob um despotismo esclarecido. Nessas condições, com monarcas que se dedicassem a suprimir os atrasos
e resquícios do feudalismo, os homens não se veriam tolhidos em suas liberdades, pelo contrário, mais
livres, pois desenvolveriam seu espírito e sua razão. Daí a admiração manifestada por reis como Catarina
da Rússia, ou Frederico da Prússia. Na contramão dessa perspectiva, encontrava-se Rousseau, que não
admitia o poder despótico em nenhuma circunstância, por corromper a humanidade. SOUZA, Maria das
Graças de. Voltaire: História e Civilização. op. cit., pp. 102 e 117.
78
JASMIN, Marcelo Gantus. As Formas da História. op. cit., pp. 11-12.
Introdução
27
políticas e iias do século XVIII, em que a Ilustração forneceu algumas ferramentas
teórico-políticas para a ação política do pombalismo.
Voltando à reflexão de Pocock, enunciada anteriormente, a respeito das relações
mútuas entre concepções de história e idéias políticas, pretende-se desenvolver a
hipótese de que Portugal passou por um questionamento de suas noções de tempo
público durante o terceiro quartel do século XVIII, correlacionando-se novos
pensamento político e iia de história.
Entendendo-se o pombalismo como um enunciado destinado a produzir um efeito
sobre uma determinada realidade e emitido em um determinado contexto histórico e
lingüístico, é necessário compreender quais os termos que compunham a tradição que
ele pretendia refutar. Dessa forma, o Capítulo 1 será dedicado a analisar as
fundamentações teóricas do corporativismo escolástico e do messianismo-milenarismo.
Nessa análise, pretende-se mostrar o enraizamento desses pensamentos na constituição
histórica e potica de Portugal na Época Moderna e de que forma eles se relacionam
com interpretões e formulações acerca da história portuguesa produzidas no século
XVII, ressaltando-se a concepção teológica, que envolvia tanto as formulações poticas
quanto históricas no período. Para esse fim, analisar-se-ão textos de cunho
historiográfico que apresentam conceitos caros ao corporativismo escolástico e às
crenças messiânico-milenaristas, como a História de Portugal Restaurado (1679-1698),
de D. Luís de Meneses, e a Restauração de Portugal Prodigiosa (1643-1653), do padre
João de Vasconcellos.
Na primeira metade do século XVIII, começaram-se a se pronunciar as primeiras
vozes portuguesas que contestavam o pensamento escolástico, o papel dos jesuítas em
Portugal e as conseqüências poticas e culturais dessa ação para o mundo lusitano. No
desenvolvimento dessa crítica, encontraram-se ressonâncias das Luzes. Ilustrados
portugueses como Luís Antônio Verney, Antônio Ribeiro Sanches e D. Luís da Cunha
pronunciaram-se, à sua maneira, acerca da realidade portuguesa. Criticaram a situação
do estado cultural, econômico e político português, as relações de poder estabelecidas
entre Coroa, Igreja e nobreza, e propuseram soluções para tirar Portugal do marasmo e
obscuridade em que acreditavam encontrar-se. No Capítulo 2, pretende-se traçar um
quadro do contexto português nessas primeiras décadas dos setecentos, apresentar os
termos da crítica ilustrada desenvolvida no período por alguns portugueses e suas
proposições de soluções poticas com vistas à ilustração do Reino luso. Perceber-se-á,
nas análises de algumas obras desses ilustrados, que eles propuseram formulações de
Introdução
28
novos modelos poticos, e desenvolveram novas visões acerca da história, em geral, e
portuguesa, em particular. Sebasto Jo de Carvalho e Melo, bem como seus
apoiadores, viveram esse período e compartilharam dessas visões ilustradas sobre
Portugal, sendo as mesmas, pois, fundamentais para se compreender o pombalismo em
suas idéias e práticas poticas.
No Capítulo 3, esboça-se um quadro das lutas poticas e práticas governativas do
período pombalino. Através dessa narração, pretende-se mostrar como a formulação de
idéias poticas e produção de obras no pombalismo responderam, em vários momentos,
a questões circunstanciais. Ao mesmo tempo, procura-se uma definição abrangente para
o pombalismo, que mostre os traços comuns e mais generalizantes do seu ideário e das
suas práticas poticas. Ao final, mostram-se quais as razões e fundamentos que o
pombalismo utilizou para refutar as idéias poticas do corporativismo escolástico e as
crenças messiânico-milenaristas. Nessas formulações, são percebidas apropriações do
ideário ilustrado.
O Capítulo 4 se dedica a analisar as manifestações historiográficas do
pombalismo. Primeiramente, far-se-á um breve quadro das discussões historiográficas
em Portugal na primeira metade do século XVIII, especialmente na Academia Real de
História Portuguesa. Nas discussões que tiveram lugar nessa academia, estiveram
presentes temas poticos caros à época e questões teóricas e práticas acerca da história
na Ilustração. Através da análise dos principais textos de cunho historiográfico
produzidos pelo pombalismo, a Relação Abreviada e a Dedução Cronológica e
Analítica, pretende-se observar as relações existentes entre as concepções de poder
desenvolvidas pelo ideário pombalino e sua concepção de história. A questão a ser
respondida é saber se o pombalismo, ao refutar os princípios poticos do
corporativismo escolástico e das crenças messiânico-milenaristas, rejeitou também suas
visões de história e, se positivo, formulou uma outra. Ver-se-á que o pombalismo, ao
utilizar a hisria para legitimar sua potica, foi herdeiro de vários temas discutidos na
Academia Real e se apropriou de concepções ilustradas da história. Doutrinas históricas
das Luzes foram adaptadas à visão pombalina acerca do estado de desenvolvimento do
Reino português, bem como às soluções que considerava adequadas. Foram revistas a
legitimação histórica do poder político português e sua função no tempo, o que teve
repercussões na própria legitimação da posse colonial.
Capítulo 1
Portugal moderno: política e história
Portugal será o assunto, Portugal o
centro, Portugal o teatro, Portugal o
princípio e fim destas maravilhas; e os
instrumentos prodigiosos delas os
Portugueses.
Antônio Vieira.
Na formulação de seu ideário potico, o pombalismo procurou refutar os erros
políticos que teriam sido executados e difundidos em Portugal desde a chegada dos
jesuítas. Conforme se verá adiante, a historiografia pombalina criou uma imagem de
harmonia potica e pleno desenvolvimento econômico e cultural em Portugal na época
dos Grandes Descobrimentos, e de um período posterior de degeneração das tradições
portuguesas, até o momento em que, no reinado de D. José, ter-se-ia buscado recuperar
a grandeza perdida.
Ao propor um novo modelo político e uma nova visão da história portuguesa, o
pombalismo buscou desqualificar as práticas e idéias acerca do poder até então vigentes
no reino lusitano e a compreensão de história que delas se depreendia. Faz-se
necessário, então, compreender em que consistiam as linguagens poticas contra as
quais o pombalismo buscava se afirmar, ou seja, o que seriam os “erros” que levaram
Portugal à decadência. A avaliação desses “princípios corrompidos” foi feita pelo
pombalismo por um viés ilustrado e, ao mesmo tempo, fundamentando um projeto de
governo que dava maior autonomia para o poder central. Daí o repúdio às doutrinas
milenaristas, ou mesmo às interpretações providencialistas da história, tidas como
manifestações da superstão e do irracionalismo. Também daí a contestação das idéias
oriundas do corporativismo da Segunda Escolástica, que, outrossim, definiam a potica
por um viés teológico, além de sugerirem limites à ação potica dos reis e servirem de
fundamentações para sedições contra o poder real.
Com o objetivo de compreender em que ambiente potico e mesmo de linguagem
política o pombalismo formulou seus enunciados, buscar-se-á traçar as linhas dos
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
30
pensamentos providencialista e corporativista em Portugal, e suas compreensões da
política e da história.
1.1 A fundação, o mito e a história providencial
A constituição de um Estado nacional, ou Estado moderno, nos países ibéricos não
correspondeu ao mesmo processo verificado na Europa central e no norte europeu. A
motivação de caráter cruzadístico mobilizou os reinos ibéricos a empreenderem as
guerras de Reconquista que se estenderam desde o século VIII até a conquista de
Granada, em 1492. Durante esse longo período, as acomodações e disputas foram
rias, envolvendo, além da luta por territórios entre cristãos e mouros, várias outras
internamente ao universo dos reinos cristãos, que, em determinados momentos,
chegaram a associar-se com chefes árabes.
O período da Reconquista é fundamental para se compreender a história ibérica
moderna e a portuguesa, em particular. A luta pela expulsão dos sarracenos da península
foi tratada não simplesmente como uma conquista de territórios, mas, sim, como uma
extensão das Cruzadas, uma espécie de Guerra Santa dos cristãos contra os infiéis
muçulmanos. Este ponto é significativo, posto que, em 1075, a empreitada cristã na
Península Ibérica ganhou a benção pontifical, o que transformou o conflito localizado em
uma missão em nome da cristandade, assumindo um teor providencialista o da missão
de expansão da fé cristã a todo o orbe. Os reis ibéricos cristãos tomaram para si o papel de
defensores fidei, retomando uma mística existente desde os tempos visigóticos
1
.
A constituição de um reino português aunomo inseriu-se no contexto das guerras
de Reconquista. A grande necessidade de forças militares na luta contra os muçulmanos
fez com que se fortalecessem o poder dos senhorios locais que, conforme expulsavam o
inimigo mouro, aumentavam seu poder territorial. O Condado Portucalense, território
do extremo oeste da península, foi dado a D. Henrique de Borgonha, no século XI, por
seu genro, Afonso VII de Leão. Durante as lutas, D. Henrique, apoiado por senhores de
terra locais, conseguiu estender os domínios de seu condado ao norte, na Galícia, e para
o leste. Entretanto, após a morte de D. Henrique, D. Afonso VII exigiu que D. Tereza,
viúva de D. Henrique, lhe prestasse vassalagem e reduzisse os limites do condado ao
tamanho inicial. Vários nobres locais viram seus interesses tolhidos pelas ões de D.
Tereza e se revoltaram, escolhendo D. Afonso Henriques, filho de D. Tereza e D.
1
BARBOZA FILHO, Rubem. Tradição e artifício: iberismo e barroco na formação americana. Belo
Horizonte: Ed. UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2000, pp. 143-146.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
31
Henrique, como cabeça do movimento. Afonso Henriques conseguiu, a princípio,
derrotar a mãe e investir em reconquistar os territórios anteriormente conseguidos pelo
pai, ao norte e a leste do condado, mantendo constante luta ao longo das fronteiras.
Entretanto, o avanço sarraceno ao sul, impeliu-o para essa região e, em 1140, as tropas
portuguesas confrontaram-se com o exército de cinco reis mouros nos campos de
Ourique. D. Afonso Henriques obteve a vitória e foi aclamado rei por seu exército.
A vitória de D. Afonso Henriques em Ourique é um marco fundamental e
mitológico da história portuguesa. Em torno deste evento, e de suas posteriores narrações,
desenvolveram-se construções e reconstruções históricas ao longo dos séculos seguintes,
a partir das quais se destacaram alguns aspectos essenciais que caracterizaram a maneira
como os portugueses entenderam sua constituição histórica e política.
De fato, debate-se ainda na historiografia portuguesa a respeito do local exato
onde teria ocorrido a vitória de Ourique, e admite-se que a vitória completa sobre os
muçulmanos teria ocorrido um século mais tarde no Algarve
2
. Independentemente
dessas incertezas e debates, as narrações da batalha foram ganhando importância social
e política conforme eram contadas e recontadas, incorporando progressivamente
elementos míticos caros à sociedade portuguesa, em particular, e ibérica, no geral.
O chamado “milagre de Ourique” consistiu na atribuição da vitória de Afonso
Henriques à intervenção direta de Jesus Cristo. Segundo a lenda, um dia antes da
batalha, Afonso Henriques estava temeroso acerca dos resultados que poderiam advir de
sua empreitada e s-se a rezar, adormecendo sobre a Bíblia. Um velho ermitão lhe
apareceu em sonho anunciando que veria o próprio Cristo. Ao acordar, Afonso
Henriques saiu da tenda em que dormia e viu raios de luz formarem uma cruz e, nessa
2
VALENSI, Lucette. Fábulas da memória: a batalha de Alcácer Quibir e o mito do sebastianismo. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1994, p. 142. Ainda a respeito dos eventos que se referem à batalha de Ourique,
Luís Carmelo escreve: “Como J. Matoso referiu, existem fundamentos históricos que situam uma batalha,
a sul, durante este Verão de 1139. Sendo certo que, por essa altura, D. Afonso terá, pelo menos, dirigido
‘um fossado’ constituído por um exército maior do que o habitual, a verdade é que os cenários apontados
pelo historiador são, contudo, muito alternativos aos da Ourique alentejana, isto é, ou o dito recontro,
entre tropas cristãs e islâmicas resultou de uma contra-investida de Afonso Henriques contra os
Almorávidas que ameaçariam uma cidade a norte do Tejo; ou, por outro lado, resultou de uma investida
directa de D.Afonso, a leste de Badajoz, contra vários ‘chefes mouros’ que iriam em socorro dos
Almorávidas cercados em Colmejar, a sul de Toledo. Verosímil parece ter sido o regresso a Coimbra de
D. Afonso, após a contenda, onde, por augúrio feliz, terá encontrado D. João Peculiar, regressado de
Roma, onde fora receber, durante o Concílio Latrão Ecuménico, o “pálio arquiepiscopal”. Estes fatos
importantes, acrescidos aos da própria aclamação de D. Afonso a rei terão inevitavelmente conduzido a
uma hiperbolização literária subsequente (de acordo com os horizontes de expectativas de diversas
épocas).” CARMELO, Luís. O milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência. Dispovel em
<
http://bocc.ubi.pt/pag/carmelo-luis-Ourique.html#_ftnref35> Acesso em 10 mai. 2007, s.p. (Itálico no
original).
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
32
luz, aparecer Jesus Cristo, que lhe garantiu a vitória e pediu para que aceitasse o título
de rei que lhe seria oferecido por seus soldados.
Os detalhes da lenda alteraram-se de acordo com o autor ou suas circulações em
meios populares e orais, e foram utilizados de diversas formas. É interessante notar que
as primeiras crônicas que fizeram referência a Afonso Henriques e à batalha de Ourique
o mencionaram o milagre. A Crônica Geral de Espanha, de 1344, por exemplo, narra
a revolta do primeiro rei português contra sua mãe e seu padrasto, em nome da
manutenção da obra de seu pai. Nela, ele aparece como “um homem superiormente
dotado, insubmisso, audacioso, impertinente, mas sempre firme no cumprimento e
decerto na fundação de uma grande obra”, além de se fazer referências a uma
genealogia de reis blicos e da Antiidade, picos das crônicas e da literatura
romanesca da época
3
.
O aparecimento de Cristo ao futuro rei, bem como a sua promessa de vitória e
fundação de um reino, só viriam surgir na Crônica de 1419, de autoria ainda incerta
4
, ou
seja, quase três culos depois. É possível se estabelecer, pelo menos, duas fontes
inspiradoras para a incorporação desse elemento à memória da batalha de Ourique. O
primeiro é a visão de Constantino, em que Cristo lhe aparece enquanto disputava Roma
com outro candidato ao Império, e lhe garante a vitória
5
. Outra fonte, dessa vez ibérica,
refere-se a Pelayo, o godo que teria iniciado as guerras de Reconquista da Espanha.
Segundo antigos relatos, Pelayo conquistou uma importante vitória sobre os árabes em
720, comandando uma tropa de montanheses, o triunfo, porém, lhe havia sido
assegurado por um aparecimento da Virgem Maria
6
. Percebe-se a presença do mesmo
pico que, primeiramente, foi apropriado no ato de fundação da Reconquista espanhola,
dando-lhe um caráter divino e, ao mesmo tempo, ligando-a a uma tradição visigótica
7
.
Assim, a lenda de Ourique destaca Portugal dentro da Ibéria, dando-lhe uma história
transcendente tão importante quanto aquela começada por Pelayo e a promessa da
Virgem.
3
Ibidem, s.p.
4
MEGIANI, Ana Paula Torres. O Jovem Rei Encantado: Expectativas do Messianismogio em
Portugal, Séculos XIII a XVI. São Paulo: Hucitec, 2003, pp. 70-78; e CARMELO, Luís. op .cit., loc. cit.
5
VALENSI, Lucette. op. cit., pp. 141-142.
6
BARBOZA FILHO, Rubem. op. cit., p. 121.
7
Os relatos da vitória de Pelayo retratam-no como tendo sangue real, oriundo da antiga realeza visigótica,
e que teria lutado ao lado de D. Rodrigo, este, o último rei visigodo, derrotado pelos muçulmanos e cujo
corpo nunca foi encontrado, o que gerou a expectativa de seu retorno, posto que não tivesse morrido,
semelhantemente ao que aconteceu, séculos depois, com D. Sebastião. BARBOZA FILHO, Rubem. op.
cit., p. 111.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
33
A lenda de Ourique legitima o caráter guerreiro dos reis portugueses, mais
especificamente de defensores da católica, que a fundação do Reino se deu numa
batalha contra o infiel sarraceno, e esta luta foi garantida pelo próprio Cristo. Além
disso, a promessa garante a independência da Coroa lusitana frente o restante da Ibéria,
que a sucessão de Afonso Henriques deveria recair apenas em seus descendentes.
Tanto a lenda de Pelayo quanto a de Afonso Henriques são formas de fundação e
inserção da história humana nos desígnios da Providência. Como se viu, o
providencialismo absorve o tempo humano no divino, no tempo da salvação. No caso
português, Cristo teria elegido esta Coroa para que tivesse o papel preponderante na
expansão de sua fé por toda a Terra, fim último da história. Assim, as ações poticas
dos reis portugueses se inseririam na economia da salvação.
As crenças messiânicas e milenaristas são compreenes providencialistas da
história. Podem carregar idéias de restauração ou retorno a um paraíso perdido, mas é
uma constante que a salvação coletiva é terrestre e iminente, sendo a certeza da salvação
de cunho profético e transcendental. Dessa forma, afirmam um sentido para a história
8
.
Age-se na expectativa da chegada do messias ou mesmo do tempo de felicidade total,
integrando-se as ações terrestres no plano da promessa divina. Messianismo e
milenarismo possuem vários aspectos comuns, mas são conceitos diferentes. A espera
pelo messias não supõe necessariamente a duração da espera nem de seu reino, como é
o caso do judaísmo; por outro lado, as crenças milenaristas podem existir sem que se
espere por um messias, no caso do cristianismo o messias já veio, espera-se o seu
retorno e a “reatualização das condições que existiram antes do primeiro pecado”
9
. As
crenças messiânicas e milenaristas importam, aqui, na medida em que geram
interpretações da história e impelem ações poticas no sentido de suas realizações.
Existiu em Portugal, desde fins da Idade Média, um imenso conjunto de crenças
messiânicas e milenaristas, que associavam profecias bíblicas, de padres e santos da
Igreja, a elementos da história portuguesa. A temática messiânica circulava, por
exemplo, na literatura de cavalaria portuguesa
10
. Na verdade, em toda a Europa, as
crenças messiânicas nos séculos da Baixa Idade Média eram amplamente difundidas, de
norte a sul, especialmente em momentos de crises e pestes. A associação de reis
(guerreiros) ao chamado “Imperador dos Últimos Dias” também foi comum; Carlos
8
DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma história do paraíso. São Paulo: Companhia das Letras,
1997, pp. 17-18.
9
Ibidem, p. 18.
10
MEGIANI, Ana Paula Torres. op .cit., pp. 70-78.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
34
Magno, Frederico II do Sacro Império e Balduíno de Flandres são exemplos. As crenças
messiânicas e milenaristas também variavam de acordo com a camada social
(cavaleiros, nobres, camponeses, baixo clero, alto clero etc.) e o acesso aos textos que
os homens da época tinham
11
.
Os sucessos portugueses nas conquistas de territórios africanos, asiáticos e,
posteriormente, americanos, fizeram com que o rei português se tornasse senhor de
mais da metade do mundo conhecido pelos europeus, criando-se em Portugal a idéia da
superioridade natural de sua realeza”
12
. Assim, a missão daquele que ocupasse a Coroa
lusitana tornava-se dupla: “conquistar novos mercados e levar ao mundo todo a verdade
da fé católica”
13
. Entende-se, assim, um pouco mais a incorporação, a posteriori, dos
elementos milagrosos e proféticos na história portuguesa, pois se está falando de uma
sociedade que se concebia como sacralizada e vivia um momento de afirmação dos
Estados nacionais. Nesse caso, definia-se, dentre outros fatores, o Reino português pela
escolha e fundação direta pelo próprio Cristo. Terminada a Reconquista nos terririos
da península, a missão evangelizadora e de defensores da fé dos monarcas lusitanos
expandiu-se para terras mais longínquas. Os “descobrimentos” seriam mais uma
manifestação da escolha de Portugal por Deus para executar no tempo mundano Seus
desígnios, ou seja, a história profana portuguesa estabelecia um elo direto com o tempo
divino.
Entretanto, essa história de sucessos e graças divinas sofreu um duro revés quando
as tropas de D. Sebastião foram derrotadas em Alcácer-Quibir (1578). Os relatos acerca
de D. Sebastião que precedem à expedição de África indicam que o jovem rei assumia
para si a missão potico-religiosa executada pelos monarcas que o antecederam. Ele
teria feito questão, inclusive, de conhecer as armas com as quais lutou D. Afonso
Henriques e teria sido tomado por forte euforia e admiração ao ver os instrumentos
sagrados por Cristo e que garantiram a independência de Portugal
14
.
A morte do rei, que mesmo antes de seu nascimento era tido como o
desejado”, e o donio castelhano sobre Portugal (1580-1640) fizeram surgir os
sebastianismos diversas crenças acerca do retorno do rei-messias, associado ao
Encoberto” e que, em alguns casos, viria instalar o millenium da escatologia cristã. A
11
Ibidem, pp. 37-40; DELUMEAU, Jean. op. cit., p. 176; ROMEIRO, Adriana. Um visionário na Corte
de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, pp. 74-75.
12
MEGIANI, Ana Paula Torres. op .cit., p. 65.
13
Ibidem, p. 66; Ver também HERMANN, Jacqueline. No reino do Desejado: a construção do
sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII). São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 121-124.
14
Ibidem, p. 93.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
35
literatura em torno do sebastianismo é bastante vasta, sendo dispensável um comentário
pormenorizado
15
. Cabe aqui analisar o seu conteúdo profético e de que maneira ele
engendra uma interpretação providencialista da história portuguesa.
Além da tristeza de perder o rei de uma forma tão trágica, a morte de D. Sebastião,
gerou um sério problema dinástico: sem herdeiros portugueses, a Coroa lusa quedou sob
domínio de Castela. As correntes sebastianistas se desenvolveram bastante nesse
contexto, numa vertente em que o retorno do rei seria também a restauração da
independência portuguesa. Segundo Joaquim Veríssimo Serrão, este “ideal sebástico se
tornou mais expressivo na literatura poética e na aura popular do que propriamente na
historiografia
16
. Entretanto, a primeira obra de cunho histórico sobre as razões da
Restauração de 1640, A Restauração de Portugal Prodigiosa, guarda estreita relação
com a literatura profética portuguesa e o sebastianismo.
O padre jesuíta João de Vasconcelos escreveu a Restauração de Portugal
Prodigiosa sob o pseudônimo de D. Gregório de Almeida. A primeira edição da obra é
de 1643, em duas partes, e uma segunda edição, de 1653, foi acrescida de uma terceira
parte
17
. Nela, como forma de se explicar a queda de Portugal sob o domínio espanhol e
a sua posterior restauração, coligem-se profecias blicas, principalmente do livro de
Esdras e Daniel; escritos proféticos de padres da Igreja; e histórias de milagres
ocorridos em Portugal, que também anunciariam a sua restauração. Tudo isso foi
interpretado de maneira a se tentar demonstrar a certeza da profecia e sua realização. Ao
narrar o episódio do milagre de Ourique, conta que Jesus teria dito essas palavras a D.
Afonso Henriques:
Eu sou o fundador, & dessolador, quando me apraz, dos Imperios, & dos Reynos,
quero em vos, & em vossos descendentes fundar, & estabelecer para mi hu
Imperio, para q por meio delle seja meu nome publicado, & dado a conhecer ás
naçoes estranhas, & para que vossos descendentes me reconheçaõ por Author do
Reyno; comporeis o escudo de vossas armas o preço, com que eu remi o genero
humano, & daquele, porque eu fui comprado dos Iudeos, & sermeha Reyno
sanctificado, puro na fé, & demi amado por sua piedade
18
.
15
Dentre outros, ver: AZEVEDO, João Lúcio de. A evolução do Sebastianismo. Lisboa: Editorial
Presença, 1984; BESSELAAR, JoVan Den. O Sebastianismo História Sumária. Lisboa: Instituto de
Cultura e Língua Portuguesa, 1987; HERMANN, Jacqueline. op. cit.; MEGIANI, Ana Paula Torres. op.
cit.; e VALENSI, Lucette. op. cit.
16
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A historiografia portuguesa: doutrina e critica (Século XVII). Lisboa:
Verbo, 1973, vol.2, p. 15.
17
Ibidem, p. 156.
18
VASCONCELOS, João de, S.J. Restauração de Portugal prodigiosa / pelo D. Gregorio de Almeida
Ulyssiponense. Lisboa: por Antonio Alvarez, 1643, Primeira Parte, p. 27. (Foi consultada uma versão
digitalizada da obra, dispovel no site da Biblioteca Nacional de Portugal
www.bn.pt ).
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
36
Além disso, as palavras de Cristo confirmavam ter escolhido “o Senhor os Reys de
Portugal, & seus naturaes, entre os mais Reys da Christandade cousa sua”
19
.
Está presente aqui a já conhecida promessa de Cristo aos reis portugueses e
escolha de Portugal como o reino santo. O autor espera que após a restauração o destino
de Portugal se cumpra, que é o domínio da África e da Índia, e a conversão dos gentios:
A esta quererá a divina Bondade, sayão nestes têpos as merces, com que não
esperamos há de conservar a Monarchia Lusitana em a maravilhosa liberdade a
que seu omnipotente braço a tem restituido, mas a ha de engrandecer, & dilatar,
concedendolhe o mui espaçoso Imperio Indico, & Africano, como nos prometem
alguas das prophecias, & vaticínios, que veremos (...).
Esperamos na divina Bondade, que neste ditoso têpo em que estamos, se de
comprir com felicissimos successos para eterna gloria de sua soberana, & infinita
Magestade, alegria geral, & summa felicidade da Monarchia Portugueza, com
grandes Augmentos da fé Catholica, conversaõ da Gentilidade, timbre da gloriosa
empreza de suas conquistas, & vitorias contra os inimigos desta Coroa Lusitana,
aqual o mesmo Deos, com tantas maravilhas tem entregue ao Augustissimo Rey
Dom IOAM nosso; & confiamos em sua divina benignidade perpetue em o
Serenissimo Príncipe Dom THEODOSIO, & mais Reys Portuguezes de sua
descendendia Real
20
.
Como foi dito acima, a visão de Portugal como braço dos desígnios divinos é bem
anterior à Restauração. Nesse ponto, o jesuíta Vasconcelos reitera essa visão, mas
acrescenta que a queda da Coroa lusitana sob Castela, assim como tudo o que acontece
na história, também foi obra da Provincia. Antes de se avançar na discussão desse
tema, vale comentar que, no Proêmio da obra, o autor discute a validade das profecias
para compreensão da história. Segundo ele, a Providência governa todos os reinos do
mundo com decretos muito superiores e “escondidos a nosso limitado saber”.
Entretanto, o “mesmo Senhor dà, quando he servido, noticia do assentado nelles, por
revelações, por visões, por outros varios sinais, que escolheo para por meio delles
se nos communicar”
21
. Assim, caso se tenha ciência de como interpretar corretamente os
sinais e as profecias divinas, é possível antever os sucessos da história que são ditados
por Deus. O autor narra, inclusive, alguns exemplos de profecias e sinais divinos que se
concretizaram
22
. Através de Seus sinais, Deus declara de antemão os Seus decretos,
deixando, entretanto, a “vontade humana em seu livre alvedrio”, ou seja, os vaticínios
19
Ibidem, Primeira Parte, p. 28.
20
Ibidem, PROEMIO, s.p.
21
Idem, s.p.
22
Um dos sinais narrados é o de um enxame de abelhas que apareceu no dia em que D. João III mandou
lançar a primeira pedra para a construção do Real Colégio da Companhia de Jesus. O enxame vaticinava
que os que passassem pelo colégio seriam resplandecentes em virtudes e ciências, propagadores da fé,
grandes conversores e dariam grandes frutos ao mundo e particularmente ao reino português. Segundo o
jesuíta, assim se deu. Idem, s.p.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
37
o constrangem os homens a agirem de uma determinada forma
23
. Ao mesmo tempo,
adverte que se deve ter cuidado para se interpretar as profecias, e se pode ter certeza
delas quando se concretizam, por isso narra profecias verdadeiras e concretizadas,
o aquelas que se espera para o futuro
24
.
O padre João de Vasconcelos estabelece várias concordâncias entre profecias
bíblicas, principalmente do Antigo Testamento e a história portuguesa, de forma a
mostrar que, desde o princípio estava prevista a existência do reino luso e a sua escolha
divina. Esforça-se também para demonstrar que os sinais bíblicos referiam-se a Portugal
e não a outros reinos, como o de Castela e o de França
25
. Mostra também que outros
momentos de crise da Coroa portuguesa, como o da Revolução de Avis, em que
também houve o risco de Portugal não ter um “rei natural”, também estavam previstos
em profecias, bem como a aclamação de D. João I pelos povos
26
.
A interpretação providencialista dada para a Restauração recuperou o milagre de
Ourique e a promessa de Cristo, acrescentando-lhe mais um elemento. Agora, além da
promessa de vitória e sucessos dos reis portugueses, Cristo teria predito que a fé sobre a
dinastia de D. Afonso Henriques se atenuaria na décima sexta geração. Esse aspecto foi
incorporado durante o domínio castelhano sobre Portugal, por exemplo, no texto da
Monarquia Lusitana, de 1632
27
. De maneiras diversas, procurou-se demonstrar que a
queda da Coroa portuguesa sob o domínio de Castela estava predita na promessa de
Cristo, visto que D. Sebastião era a décima sexta geração da dinastia de D. Afonso I,
mas, após essa atenuação, um rei português retornaria ao seu trono para ser o imperador
cristão. Devem-se considerar, aqui, dois aspectos: primeiramente, as condicionantes do
momento, a submissão à Castela que propiciou o forjamento da profecia; e um segundo
aspecto, este de duração mais longa, a escolha de um argumento protico para se
compreender a submissão portuguesa, anunciando e justificando a sua restauração, que
é uma interpretação religiosa da história. Segundo o relatado na Restauração de
Portugal Prodigiosa, no dia anterior à batalha contra os mouros, Afonso Henriques foi
chamado para fora da tenda em que dormia, pois um velho lhe procurava. Era o mesmo
ermitão que lhe aparecera em sonho. O velho, então, lhe falou:
Senhor, estay de bom animo, vencereis, vencereis & e não sereis vencido, sois
amado do Senhor, porque poz sobre vós, & sobre vossa geração, os olhos de sua
23
Idem, s.p.
24
Ibidem, Primeira Parte, p. 13.
25
Ibidem, Primeira Parte, p. 10 e 30.
26
Ibidem, Primeira Parte, pp. 17-18.
27
CARMELO, Luís. op .cit., s.p.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
38
mesericordia, até a decima sexta geração, na qual se diminuirá, mas nella
atenuada, tornará a por os olhos, & verá. Este oraculo, consta do Iuramento Del
rey Dõ Affonso Henriques (...)
28
.
A profecia de Cristo diz ainda que Portugal, após a Restauração, haveria de deixar de
ser Reino para se tornar um Império, conforme explica João de Vasconcelos,
Porque o Reyno podemos entender do tempo, que correo a á decima sexta
geração, & della por diante esperamos se cumprirá a promessa, de Portugal aver
de ser Imperio, conforme ao que achamos em outros vaticinios antigos de maõ,
os quaes fazem mais provavel a distinção, que admitimos entre Reyno, &
Imperio, postoque estas palavras do Senhor podem ter a mesma significação
29
.
A obra recupera as crenças sebastianistas ao defender que as esperanças daqueles
que esperavam o retorno de D. Sebastião para que o reino português recuperasse a sua
condição independente se concretizaram com a aclamação de D. João IV
30
. Além disso,
defende que o jovem rei não morrera na batalha de África, pois seu corpo jamais fora
encontrado
31
. Recupera também os escritos de Simão Gomes, o Çapateiro Sancto”, e
Gonçalo Anes Bandarra, o sapateiro de Trancoso, a quem Deus comunicou coisas
futuras como a derrota em Alcácer, o domínio castelhano e o recuperação do trono
português por D. João IV
32
. Os escritos destes dois sapateiros, principalmente de
Bandarra, tiveram bastante inflncia nos meios populares e eruditos nos séculos XVI e
XVII português, contribuindo para um forte ambiente de esperanças messiânicas e
milenaristas. Foram explorados por autores sebastianistas e milenaristas portugueses,
como D. João de Castro, Manuel Bocarro Francês e o padre Antônio Vieira
33
.
Voltando à análise da compreensão providencialista da história em Portugal, a
inserção da promessa de queda, após a décima-sexta geração, e a posterior restauração
indicam um retorno, mas, nesse caso, o retorno não é apenas potico, ou seja, a
retomada do poder e de suas funções. O reino restaurado é inserido na constituição do
Império de Cristo na Terra, o retorno já não é como reino, sim como um império que
cumpriria os desígnios de Deus na Terra. Esse é um estágio da escatologia cristã, que
antecede o Juízo Final
34
. Assim, a história secular de Portugal não sofreria dos mesmos
males e degenerações comuns às repúblicas e às histórias profanas, que padecem como
28
VASCONCELOS, João de, S.J. op. cit., Primeira Parte, p. 35.
29
Ibidem, p. 28.
30
Ibidem, pp. 5-6.
31
Ibidem, p. 22.
32
Ibidem, caps. XIX e XXII a XXV.
33
HERMANN, Jacqueline. op. cit., pp. 189-246.
34
DELUMEAU, Jean. op. cit., pp. 18-19.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
39
qualquer outro ser na natureza; ela, por sua vez, participaria diretamente da linha eterna
da história sagrada cristã.
O reconhecimento da história como a realização dos desígnios de Deus é um tipo
de expectativa histórica. A escatologia permite que se interpretem os eventos históricos
passados como etapas rumo ao fim do mundo
35
. A vitória de Alexandre sobre os persas,
por exemplo, conforme explica Koselleck, era lida, no início da Idade Moderna, como a
passagem do segundo para o terceiro império temporal
36
, dos cinco impérios temporais
previstos na profecia de Daniel, após os quais, o Juízo Final estaria próximo. A
expectativa futura de um fim próximo do mundo fazia parte de uma concepção de
tempo sacralizada, que a Igreja tentou controlar, reprimindo visiorios como
Savanarola, e considerando heréticas rias profecias. Procurou também integrar a sua
história na história da salvação, o futuro foi integrado ao tempo
37
.
As análises de Koselleck sobre o tempo histórico apontam ainda que um dos
fatores de secularização do tempo durante a Idade Moderna foi o adiamento das
promessas das profecias de fim do mundo, projetadas cada vez mais para um futuro
mais adiante: desde o século XV, o fim não mais batia à porta. Um segundo fator foi
a perda de espaço da Astrologia, que, devido ao progresso das ciências naturais, veio a
cair em descrédito
38
.
No caso português, a compreensão providencialista da história, mesmo em
vertentes diferentes dessa que se analisou na Restauração de Portugal Prodigiosa,
continuou sendo bastante disseminada. A censura pombalina, através da criação da Real
Mesa Censória, em 1768, teve especial atenção em combater a circulação de obras e
idéias de cunho milenarista, como o próprio texto do jesuíta João de Vasconcelos e,
principalmente os escritos do padre Antônio Vieira, além de perseguir também aqueles
que divulgavam interpretações religiosas de eventos naturais, como o terremoto de
Lisboa. Por divulgar tais iias, o jesuíta Gabriel Malagrida acabou sentenciado em um
auto de fé. O papel da Real Mesa Censória e a visão anti-milenarista do pombalismo,
interpretada no sentido de secularização do pensamento, serão analisadas no Capítulo 3.
Muitas idéias proféticas a respeito da história de Portugal defendidas na
Restauração de Portugal Prodigiosa concordam com as de Antônio Vieira, em sua
35
KOSELLECK, Reinhart. O futuro passado dos tempos modernos. In: Futuro Passado: contribuição à
semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, pp. 23-24.
36
Ibidem, p. 24.
37
Ibidem, p. 26.
38
Ibidem, p. 28.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
40
História do Futuro, como as referências bíblicas à história de Portugal; a leitura das
Trovas de Bandarra, como profecias da história portuguesa; e a visão de Portugal como
o reino de Deus na Terra. No caso de Vieira, acrescenta-se a idéia de Portugal como o
Quinto Império.
Para Vieira, o Quinto Império é o Império de Cristo na Terra. Neste império
haveria uma total junção entre os poderes espiritual e secular, entre alma e corpo,
entretanto, ele se exerceria através de dois braços: o papa e um rei católico:
Porque este Império de Cristo, que dizemos de ser na Terra, ou pode ser
espiritual ou temporal: espiritual como o que hoje tem o Sumo Pontífice, cujo
poder e jurisdição se ordena a governar os fiéis, membros e ditos da Igreja, a
conseguir a bem-aventurança, que é último fim do homem; temporal como o que
têm os príncipes católicos sobre os seus reinos e províncias, que se dirige a
governar os vassalos por meio de leis prudentes e justas, que é o fim particular de
todas as comunidades humanas, dos Cristãos católicos, em quanto este fim
particular e mediato se ordena ao último fim
39
.
No Império de Cristo, a execução do poder temporal também tem o mesmo fim
último do poder espiritual, a “bem-aventurança” dos fiéis, ou seja, destinar-se-ia a fins
espirituais. Quanto à identidade do rei e da nação onde se instalaria o império universal
de Cristo, Vieira dizia:
Mas perguntar-meporventura alguma emulação estrangeira (que às quais não
respondo): se o Império esperado, como diz no mesmo título, é do Mundo, as
esperanças por que não serão senão também do Mundo, senão de Portugal? A
razão (perdoe o mesmo Mundo) é esta: porque a melhor parte dos venturosos
futuros que se esperam e a mais gloriosa deles se não somente própria da Nação
portuguesa, senão única e singularmente sua. Portugal será o assunto, Portugal o
centro, Portugal o teatro, Portugal o princípio e fim destas maravilhas; e os
instrumentos prodigiosos delas os Portugueses
40
.
O Quinto Império teria lugar com a chegada do “Encoberto” ao trono português.
Em Portugal, a figura do Encoberto se confundia com a do Imperador dos últimos dias,
que instalaria um novo tempo, o da conversão de todos a uma fé, a extirpação da
heresia e a reunião das tribos perdidas”
41
. A identidade deste rei, para Vieira, é o que se
devia conhecer, dado que se sabia que era português. Para este jesuíta ela foi se
alterando com o tempo, primeiramente seria D. João IV, e, posteriormente, D. Afonso
VI, D. Pedro II e D. Teodósio
42
. O reino de Portugal teria uma missão escatológica,
dada a sua eleição divina desde a fundação e o milagre de Ourique. Assim, a Coroa
39
VIEIRA, Antônio. História do Futuro. ALEIXO, José Carlos Brandi (Org.). Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 2005, p. 88.
40
Ibidem, pp. 134-135.
41
ROMEIRO, Adriana. op. cit., p. 74.
42
Ibidem, pp. 76-77.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
41
portuguesa seria diretamente ligada a Deus, responsável pelo cumprimento da
Providência, sendo, ao mesmo tempo, divina e temporal.
O providencialismo vieiriano sacraliza a história portuguesa. Todas as ações dos
portugueses, principalmente da expansão e comércio com os povos não-cristãos, o
manifestações da expansão do Evangelho por todo o orbe, algo previsto na Bíblia e
executado por Portugal. Assim, apesar do rei português se tornar o braço secular do
império de Cristo na terra, sua escolha e sua missão são profundamente espirituais.
A perspectiva potica de Vieira, de um poder providencialista, o alcançou muito
elevada expressão em Portugal, durante o século XVIII
43
, sendo correntes as teorias
corporativas escolásticas, que serão analisadas à frente. O providencialismo histórico e
político teve, em Vieira, um de seus principais representantes portugueses.
A permanência de tais idéias providencialistas em Portugal, relativas à sua
história, é tal que, na História da América Portuguesa, de 1730
44
, Rocha Pita narra o
episódio do “milagre de Ourique” com os mesmos aspectos míticos:
Ficando em oração o piedoso príncipe [D.Afonso Henriques, após receber
o velho ermio que lhe confirmara que Deus em pessoa lhe apareceria], e
ouvindo o sinal na segunda vela da noite, saiu fora da tenda e viu para a parte do
oriente um raio, que resplandecendo pouco a pouco foi formando uma cruz mais
que o sol brilhante, e nela se lhe mostrou o Senhor crucificado, a cuja divina
presença prostrado o príncipe, largando a espada, o escudo, a capa e o calçado,
derramando muitas lágrimas, lhe rogou pelos seus vassalos, e que se algum
castigo lhe tinham merecido, o voltasse contra ele, e que aqueles súditos
animasse e ajudasse a vencer aos inimigos da sua santa fé, e se lembrasse não só
dos seus sucessores, mas de toda a gente de Portugal.
A esta deprecação por o justas causas e com tantos suspiros feita
respondeu o Senhor, que da sua descendência e de Portugal se não apartaria sua
misericórdia, e que vinha animá-lo naquele conflito, por estabelecer o seu reino
sobre firme pedra; que aceitasse o título de rei que antes de entrar na batalha lhe
ofereceriam seus vassalos, e que na sua descendência (atenuada na décima sexta
geração) poria os olhos, porque nela e no seu reino havia de estabelecer um
império que levasse o seu nome às partes mais distantes
45
.
Além disso, Rocha Pita também acreditava na instauração do Quinto Império e
que este teria lugar com o Império português que adviria após a Restauração. Defendia
que as promessas feitas por Cristo a D. Afonso Henriques, bem como as demais
43
XAVIER, Ângela Barreto, HESPANHA, Antônio Manuel. A representação da sociedade e do poder.
In: HESPANHA, Antônio Manuel (coord.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, vol.
4, p. 124.
44
Essa é a data da primeira edição, entretanto a obra estava escrita em 1724, quando o manuscrito foi
enviado à Metrópole. Por razões ainda desconhecidas, sua publicação foi retardada (SERRÃO, Joaquim
Veríssimo. A historiografia portuguesa: doutrina e critica (Século XVIII). Lisboa: Verbo, vol. 3, 1974,
pp. 262-263).
45
PITA, Sebastião da Rocha. História da América portuguesa. Belo Horizonte: Itaitaia; São Paulo:
Edusp, 1976, p. 136.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
42
profecias se realizaram com D. João IV, pois este era o verdadeiro Sebastião, por quem
tanto suspiravam os Portugueses na antonomásia de Sebastianistas, disfarçando com a
vinda de um rei desaparecido a ânsia de outro desejado
46
.
É importante observar a permanência desses elementos míticos, dado que, desde
1720, com a fundação da Academia Real da História Portuguesa, a pesquisa e a escrita
históricas, em Portugal, procuraram se “justificar pelas coordenadas criteriológicas da
razão crítica e da observação sistemática e comparada de documentos”, assim, as
“luzes” na história tendiam a retirar-lhe “o lastro ‘maravilhoso’ e providencial,
procurando esclarecê-los à luz duma razão natural e apofântica”
47
. De fato, várias obras
produzidas sob a orientação da Academia Real seguiram essa tendência, entretanto, isso
o impediu que a História da América Portuguesa passasse pela avaliação dessa
mesma Academia, o seu autor fosse um membro supranumerário desta
48
. O papel da
Academia Real de História Portuguesa na historiografia portuguesa dos setecentos e a
inserção da obra de Rocha Pita neste contexto serão analisados no Capítulo 4.
1.2 Centralização política, corporativismo e história
A afirmação da Coroa portuguesa junto ao Reino fundado por D. Afonso
Henriques deu-se sobre uma sociedade que possuía certos conceitos e formas de se
conceber a ordem social e potica. António Manuel Hespanha mostra, em diversos
textos, como o pensamento acerca da sociedade e da potica em Portugal na Idade
Moderna foi herdeiro da concepção corporativa de origem medieval
49
. Dentro dessa
concepção, a vida social teria a mesma organização da natureza, ou seja, a ordem social
e potica era vista como um corpo; era algo dado, que não poderia ser alterado, sendo
imperativo, pelo contrário, conhecê-lo e segui-lo. Assim como a natureza, que tinha
46
Ibidem, p. 137.
47
CUNHA, Norberto Ferreira da. A desdivinização do mundo histórico no culo XVIII. In: Elites e
acadêmicos na cultura portuguesa setecentista. Lisboa: Casa da Moeda/Imprensa Nacional, 2001, pp. 12-
13.
48
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. op. cit., vol. 3, p. 77.
49
Dentre outros, ver os seguintes trabalhos do autor: HESPANHA, Annio Manuel. História das
Instituições: Épocas medieval e moderna. Coimbra: Livraria Almedina, 1982; Idem, Panorama Histórico
da Cultura Jurídica Européia. Publicações Europa-América, 1998; Idem, “Para uma teoria da história
político-institucional do Antigo Regime”. In: HESPANHA, A. M. (dir.). Poder e instituições na Europa
do Antigo Regime. Lisboa: Gulbenkian, 1984, pp. 7-90; Idem, As estruturas políticas em Portugal na
Época Moderna”. In: TENGARRINHA, José (ed.). História de Portugal. São Paulo: EDUSC-UNESP,
2001, pp. 117-182; e XAVIER, Ângela Barreto; HESPANHA, Antônio Manuel. A representação da
sociedade e do poder. In: HESPANHA, Antônio Manuel (coord.). História de Portugal. Lisboa: Editorial
Estampa, 1998, vol. 4, pp. 113-140.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
43
seus ritmos, ciclos e estações, todas as demais organizações sociais como famílias,
comunidades, corporações de ocios, e mesmo o reino, tinham suas organizações
concebidas como “naturais”.
A analogia que se estabelecia para dar um caráter natural à ordem social era, como
indicado acima, com o corpo humano. Assim como cada membro e órgão do nosso
corpo possui uma fuão previamente dada, de cuja execução depende o bom
funcionamento de todo o organismo, as pessoas seriam os membros que deveriam
executar corretamente suas funções para que a sociedade atingisse seu fim que era o
bem comum.
Assim, as pessoas não eram concebidas como indivíduos dotados de vontade e
capazes de alterar seu modo de vida e a ordem sócio-política que as envolvia. Pelo
contrário, eram vistas como partícipes do corpo social do Reino e de diversos “corpos”
que o compunham. Uma mesma pessoa se reconhecia através das funções que exercia, e
que lhe eram atribuídas pelas posições que ocupava dentro da sociedade. Por exemplo,
ela podia se ver como camponês, homem e morador de uma região preponderantemente
produtora de cereais; essas posições, dentre outras, estabeleciam certas funções e
obrigações que a pessoa deveria naturalmente cumprir nos diversos corpos de que
fizesse parte, como sua comunidade local, sua família, seu reino, etc.
A Segunda Escolástica, além de recuperar o tomismo, foi também herdeira do
pensamento corporativo medieval e teve uma particular importância em Portugal e, de
resto, em todo o mundo Ibero-americano. De fato, no contexto da Contra-Reforma ou
Reforma Católica, o Neo-tomismo foi assimilado como uma ortodoxia católica no
combate às “heresias luteranas”, fincando raízes nos reinos ibéricos e cidades italianas,
espaços privilegiados da ação contra-reformista
50
.
A recuperação da escolástica tomista, no início do século XVI, deu-se
primeiramente com os dominicanos, destacando-se as obras e a atividade docente de
Francisco de Vitoria e Domingo de Soto. Entretanto, na segunda metade do século, os
jesuítas, rivais dos dominicanos, adotaram as propostas de releitura do tomismo e
difundiram fortemente essas doutrinas, principalmente na luta contra as teses luteranas.
50
TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restaurão. Coimbra: Biblioteca da
Universidade, 1982, vol. 2, pp. 12-13.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
44
Destacam-se os nomes do italiano Roberto Bellarmino, dos espanhóis Luís de Molina,
Juan de Mariana e Francisco Suárez
51
.
Frente aos erros luteranos” da defesa da sola scriptura, que rejeitava toda a
tradição católica, e à outra tese de Lutero de que a Igreja, de fato, compunha-se de uma
congregação de fiéis com o que se repudiam todas as hierarquias eclesiásticas e os
poderes legislativos do papa –, os neo-escolásticos assumiram a defesa da tradição, da
hierarquia e dos poderes da Igreja Romana. Além do mais, os luteranos defendiam que
era impossível que os homens, decaídos por natureza, fossem capazes de conhecer a
vontade divina e que, por isso, “todas as autoridades constituídas deveriam ter sido
diretamente ordenadas por Deus sobre os homens, a fim de sanar essas deficiências
morais
52
, o que também negava qualquer valor às interpretações da palavra e vontade
divinas, até então feitas e assumidas pelos padres da Igreja Católica.
A defesa da tradição católica feita pelos teóricos da Segunda Escolástica tinha
ainda outros adversários, os defensores da ragione di stato, principalmente Maquiavel e
seus seguidores. Para os neo-escolásticos, a doutrina da razão de Estado, segundo a qual
o valor básico que deve orientar um príncipe em suas ações é a conservação de seu
Estado, independentemente de valores morais e religiosos (ou seja, o governante deve
pensar apenas na república temporal), constituíria um dos erros mais ímpios, pois
desconsiderava os fins sticos do corpo político, da salvação e, além disso,
desrespeitava as leis naturais, as quais, para o tomismo, estariam diretamente ligadas à
lei divina
53
.
A rejeição ao luteranismo e ao maquiavelismo pela Segunda Escolástica deu-se
através da afirmação tomista da existência da lei natural de origem divina, e do
conhecimento que todos os homens possuiriam dessa lei, inscrita em seus corações.
Contrariando os luteranos, os neo-tomistas defendem que a vontade de Deus não é
incompreensível à razão humana e tampouco muda constantemente. Para esses teólogos
católicos, a lei da natureza é a expressão da vontade de Deus e, ao mesmo tempo, é justa
e racional. Deus inscreve nos homens a lei natural para que estes “sejam capazes de
compreender Seus desígnios e intenções para o mundo
54
. Assim, o seria necessário
51
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras,
1996, pp. 414-416; TORGAL, Luís Reis. op. cit., vol. 2, p. 13
52
SKINNER, Quentin. op. cit., p. 417.
53
TORGAL, Luís Reis. op. cit., vol. 2, pp. 14-15; SKINNER, Quentin. op. cit., p. 421;
ALBUQUERQUE, Martim de. A Sombra de Maquiavel e a Ética Tradicional Portuguesa. Lisboa:
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1974, p. 69, 82 e 93.
54
SKINNER, Quentin. op. cit., p. 426.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
45
que o homem tivesse conhecimento da lei divina positiva, encontrada na Bíblia, para
entender a lei natural e a vontade de Deus. Outro aspecto que se depreende dessa teoria
é que toda a lei positiva das repúblicas deve derivar da lei da natureza. Caso contrário,
ela não seria justa nem expressaria a vontade de Deus e, neste caso, o deveria ser
obedecida, pois, como diziam os neo-escolásticos, o constituiria leis genuínas
55
.
Neste ponto, chega-se a uma concordância entre a concepção corporativa da sociedade e
a Segunda Escolástica: identificando-se a natureza com a vontade divina, as leis das
repúblicas devem expressar, legitimar e manter os corpos sociais que foram
naturalmente estabelecidos.
A instituição das repúblicas ou dos governos civis é outro ponto essencial da
Segunda Escolástica e guarda uma relação direta com sua teoria das leis até aqui
exposta. A definição desta questão também é uma refutação à heresia luterana, que
defendia que as repúblicas temporais foram estabelecidas todas pela vontade de Deus,
do que adviria que os soberanos não teriam limites em suas ações poticas.
Essa discussão passa pela caracterização de um “estado naturalimaginário criado
pelos neo-tomistas. Vitoria, Suárez e Molina concordam que, anteriormente à criação
das repúblicas, os homens seriam livres, iguais, e inexistiria qualquer tipo de domínio
político de um homem sobre outro
56
. Assim, também não haveria leis positivas, que
existiriam nas sociedades civis, entretanto não era um estado de ausência de leis. Na
verdade, os homens se regeriam por uma autêntica e genuína lei, a lei natural inscrita
em seus corações. Seguindo sua leitura das idéias aristotélicas, os neo-tomistas
concebiam o homem como um animal social, embora, sua condição natural não fosse
política
57
.
Essa condição natural de igualdade e liberdade tenderia, todavia, a degenerar,
posto que os homens possuiriam uma natureza decda e, embora conhecessem os
preceitos da moralidade perscrutando os seus corações, não se esforçariam para isso.
Tenderiam, pelo contrário, a negligenciá-los e esquecê-los, pensando apenas em si
próprios. Caso não se estabelecessem leis positivas e se criassem as repúblicas, os
homens mal conseguiriam sobreviver
58
. Assim, os homens sentiriam a necessidade de
abrirem mão de sua liberdade natural e de se reunirem em repúblicas.
55
Ibidem, pp. 426-427.
56
Ibidem, pp. 432-433. Neste ponto, os tomistas fazem questão de diferenciar o natural poder e direito
paterno do poder político.
57
Ibidem, pp. 434-435.
58
Ibidem, pp. 436-437.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
46
A instituição do poder civil se daria através do consenso. Os tricos da Segunda
Escolástica defendem que haveria um consentimento da comunidade natural de que é
impossível manter a justiça naquele estado e de que é racional limitar a liberdade natural
para garantir a vida, a segurança e a justiça. O consenso dos homens em torno da
instituição da sociedade civil é, segundo Vitoria, impelido por Deus, entretanto esta
posição é contrariada por Suarez, que defende que o poder político, bem como a
capacidade dos homens criarem repúblicas advém da lei natural e, por conseguinte, de
Deus, mas ela é essencialmente uma escolha humana. Com isso, os homens não seriam
naturalmente obrigados a fazê-la
59
.
A república surgida desse consenso tem, para os tricos neo-escolásticos, um fim
que é o “bem comum”, no que seguem exatamente a teoria de S. Tomás
60
. Antes de
mais nada, realizar o bem comum é respeitar os ditames da lei natural e governar a
partir de leis genuínas. Caso isso o aconteça, o soberano torna-se um tirano e é justo
que os povos resistam ao seu poder. A argumentação, neste ponto, é de que o poder não
deixa de residir nos povos mesmo que o transmitam por consenso. O soberano possui o
poder in actu, porém os povos o conservam in habitu, podendo readquiri-lo em
determinadas circunstâncias
61
.
A resistência ao rei que se torna tirano, ou seja, que governa contrariamente à lei
natural, desrespeita os costumes dos corpos do reino, torna-se herético, ou mesmo atua
contra o mandato que lhe foi concedido, o se limita a ser uma resistência passiva, de
simples desobediência ao rei. Os neo-tomistas entendem como legítima a resistência
ativa, ou seja, a ação direta no sentido de deposição do rei
62
.
Apesar da idéia de limites éticos e políticos à ão do soberano e do direito de
resistência dos povos a um rei tirano, as teorias políticas da Segunda Escostica não
eram, por definição, anti-absolutistas. Torgal mostra como, em algumas construções
neo-tomistas do contrato entre povos e soberano, subentende-se um transferência total
do poder ao governante e que os povos devem sempre se sujeitar às suas ordens e leis. É
59
Idem.
60
Seguindo a tipologia de governos aristotélica, do consenso dos povos poderia surgir uma monarquia,
uma aristocracia, ou uma democracia. Contudo, tanto S. Tomás quanto os neo-tomistas declaram
preferência pela monarquia, que seria a mais improvável de se degenerar em tirania. TORGAL, Luís Reis.
op. cit. vol. 2, p. 16.
61
Ibidem, vol. 2, p. 17.
62
Ibidem, vol. 2, pp. 29-30.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
47
o caso de Suarez, que considera o rei recebe o poder “de maneira ‘plena e absoluta’ e
por isso é ‘independente’”
63
.
Segundo Torgal, as concepções jurídico-poticas tomistas tiveram grande voga
em Portugal no século XVI. As iias de S. Tomás chegaram a terras lusitanas em
comentários à obra do Doutor Anlico, como o De legibus, e mesmo em aulas de
grandes nomes da Segunda Escolástica, como Azpilcueta Navarro e Francisco Suárez,
que foram professores em Coimbra, e Luís de Molina, em Évora
64
. Também haveria
em Portugal uma tradição juspotica de caráter ‘popular’”, que teria se manifestado na
escolha, em 1385, do Mestre de Avis dentre outros pretendentes à Coroa, nas Cortes de
Coimbra. Após um imbróglio dinástico, o poder de escolher o soberano seria do povo
65
.
Em 1580, em outro momento de crise dinástica, novamente veio à tona esta defesa,
tocando, principalmente, sobre os direitos de D. Catarina na sucessão do Reino. Foram,
inclusive, forjadas as “atas das cortes de Lamego”, documento que procurava mostrar o
caráter de ‘eleição popular’ que presidiu à constituição da monarquia portuguesa”
66
.
Os aspectos acima podem ser percebidos na História de Portugal Restaurado.
Escrita pelo Conde da Ericeira, D. Luís de Meneses, “constitui a obra magna sobre o
movimento de 1640 e o período que decorreu até à assinatura da paz com a Espanha”
67
.
A obra foi, primeiramente, publicada em dois tomos, o primeiro em 1679 e o segundo,
em 1698, quando o autor já era falecido, o que ocorrera em 1690. D. Luís de Meneses,
além de eminente potico português do século XVII, lutou nas guerras da Restauração,
que se estenderam de 1640 a 1668, e sua obra é até hoje “fundamental para o estudo
daquele período
68
.
Na História de Portugal Restaurado, Ericeira comenta uma carta de D. Catarina
ao rei cardeal D. Henrique em que ela argumenta a sua recusa em ceder seu direito ao
trono em troca de alguns benecios particulares oferecidos a ela por D. Felipe. Afirma
que a resolução acerca de um sucessor deve ser feita em Cortes, pois era justo que
ouvisse a todos em um negócio que a todos tocava”, e que não poderia ceder da sua
pretensão, seguindo a regra de que pesa mais o bem comum que o particular”
69
.
63
Ibidem, vol. 2, p. 17.
64
Ibidem, vol. 1, p. 197.
65
Ibidem, vol. 1, pp. 197-198. O texto da Restauração de Portugal Prodigiosa reitera esta idéia ao
afirmar que D. João I, Mestre de Avis, fora “aclamado pelos povos”, conforme se analisou acima.
66
Ibidem, vol. 1, p. 199.
67
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. op. cit., vol. 2, p. 192.
68
Ibidem, vol. 2, p. 193.
69
ERICEIRA, Conde da. História de Portugal Restaurado. Porto: Livraria Civilização, 1945, vol. 1, p.
33.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
48
Após a decepção por não conseguir concretizar seus desejos poticos e evitar que
o reino português caísse em mãos estrangeiras, o Duque de Bragança, esposo de D.
Catarina, deixou um “papel” aos cinco governadores nomeados pelo cardeal D.
Henrique, no qual
Mostrava que Deus instituíra o reino de Portugal, elegendo no Campo de Ourique
a el-rei D. Afonso Henriques com Império independente e soberano, e que fora
estabelecido nele e seus sucessores, para levarem, como sucedeu, o seu santo
nome e lei evangélica às nações mais rbaras e regiões mais remotas; que esta
afeição fora confirmada com uma das mais insignes vitórias que alcançaram dos
infiéis as armas católicas: que fora el-rei antes dela aclamado pelo exército; e
depois eleito e jurado pelos Três Estados do reino nas Côrtes que se ajuntaram na
cidade de Lamego, celebradas no ano de 1145, nas quais se decretaram as leis
fundamentais, e forma que se devia ter na sucessão deste reino; porque o intento
dos portugueses fora, naquela primeira criação dele, eleger Reis que os
governassem em paz e justiça, conservassem a sua liberdade, e defendessem de
seus inimigos, declarando (por anteverem com prudência os casos futuros) que,
quando faltasse a algum dos Reis filho varão, pudesse herdar o reino a filha mais
velha, se estivesse em Portugal e casasse com português, excluindo com lei e
cláusula expressa qualquer Infanta que casasse fora do reino com Príncipe
estrangeiro; porque, como instituíram Reis para sua conservação e quiseram que
fosse Império hereditário dos Príncipes naturais, negaram justamente aquele
privilégio aos estrangeiros e às Princesas que com eles casassem, para que não
fossem instrumento da sua ruína; que admitiram as filhas enquanto naturais e as
excluíram enquanto estrangeiras, querendo mostrar que instituíram Príncipes
para a República e não República para os Príncipes, porque a sucessão dos Reis
devia atender à sua conservação e liberdade, devendo este governar-se pelas
suas próprias leis, seguindo inviolavelmente na sucessão as que decretaram em
seus princípios (...)
70
.
Ericeira relata ainda, seguindo o comentário à carta do Duque de Bragança, o epidio
da eleição de D. João I, Mestre de Avis, pelos povos:
(...) esta mesma lei se observara e tivera o seu justo vigor quando, por morte de
el-rei D. Fernando, que acabou sem mais filhos que a infanta D. Beatriz, casando
com el-rei D. João I de Castela, fora exclda da sucessão por este fundamento
nas Cortes celebradas na cidade de Coimbra, no s de Abril de 1382, nas quais
declararam os Três Estados juntos em Cortes, a quem tocava decidir estas
matérias, houveram por vago, e elegeram el-rei D. João, que o havia governado e
defendido dos castelhanos com tão insignes vitórias como a fama celebrava (...)
71
.
Conforme se pode perceber, estão presentes acima algumas tópicas do pensamento
político neo-tomista: a origem popular do poder dos reis, o bem comum como
finalidade do governo e a obediência às leis pelos soberanos. Além disso, reitera alguns
aspectos da compreensão da história portuguesa nos séculos XVI e XVII: a fundação do
reino por Cristo, a sua missão evangelizadora, e a existência das leis fundamentais do
Reino instituídas nas Cortes de Lamego.
70
Ibidem, vol. 1, pp. 37-38 (Itálico nosso).
71
Ibidem, vol. 1, p. 38.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
49
O anti-maquiavelismo é outro ponto que demonstra a adoção por Ericeira de
perspectivas poticas advindas da Segunda Escolástica. Ao traçar o retrato político de
Felipe II, percebe-se a condenação de um príncipe que não leva em conta a justiça, e
valores morais e religiosos, nem mesmo com seus parentes, preocupando-se apenas com
a conservação do poder temporal:
Cuidava muito no governo, conhecia os vassalos; premiava os merecimentos,
ouvia a todos e a todos respondia, não com generalidade, senão com resolução às
pretensões, de que mostrava ter inteira notícia; porém se acaso suspeitava que
para a conservação do Império era necessário cortar por muitas vidas, a nenhuma
perdoava, ainda que as culpas não fossem muito manifestas e os delinqüentes
fossem os mais chegados em sangue
72
.
As iias neotomistas tiveram, como se disse, uma grande influência na formação
intelectual e potica lusitana, dessa maneira, em Portugal vivia-se “o mundo da ordem
pronunciada por Deus. Nele, a vontade submetia-se à razão, o arbítrio à ordem, o
governo referia-se à moral (e ao Criador, em última instância), a liberdade submetia-se à
necessidade racional das coisas”
73
. Os discursos jurídico e político passavam por um
viés teológico; na verdade, o discurso teológico “era um signo de um conjunto de
crenças que repousava sobre a iia de uma ordem divina com expressão terrena
74
.
Nesse pensamento, o homem tinha o papel de garantir a realização da ordem divina
através da correta interpretação dos textos sagrados e da aplicação destes em sua
realidade; o homem era o ser que estabelecia o elo de ligação entre a razão, a justiça
divina e a materialidade das coisas”
75
. A história era a realização dos desígnios divinos
pelos homens, a construção coletiva da sociedade, ou seja, a ação política implicava a
manutenção da ordem existente no mundo, ou um retorno à boa ordem, à ordem
divinamente estabelecida. Disso decorria o papel do poder político.
Dessa forma, pode-se dizer, como Pedro Cardim, que estamos perante uma
sociedade na qual as fontes do poder profano estavam profundamente marcadas por
elementos religiosos, com os quais mantinham uma ligação ontológica”
76
. Isso é
demonstrado, por exemplo, pela linguagem teológica que era a marca dos tratados
jurídicos, principais fontes para se conhecer o pensamento potico dos séculos XVI e
72
Ibidem, p. 54.
73
XAVIER, Ângela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quér”: razões da política no Portugal
seiscentista. Lisboa: Colibri, 1998, p. 121.
74
Ibidem, p. 120 (Itálico nosso).
75
Ibidem, p. 122.
76
CARDIM, Pedro. Cortes e Cultura Política no Portugal do Antigo Regime. Lisboa: Edições Cosmos,
1998, p. 15.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
50
XVII
77
, situação na qual a governo era necessariamente avaliado de um ponto de vista
ético e cristão.
A Segunda Escostica, conforme foi dito, é herdeira do pensamento corporativo
medieval e entendia a sociedade como um corpo ordenado, no qual cada membro tinha
sua respectiva função, naturalmente estabelecida por Deus
78
. O soberano, que nessa
metáfora do corpo social era associado à cabeça, tinha a incumbência de manter a
harmonia das partes do corpo, “garantindo a cada qual o seu ‘foroou ‘direito’; numa
palavra, realizando a justiça; e assim é que a realização da justiça finalidade que os
juristas e políticos medievais considera[va]m o primeiro ou até o único fim do poder
político se acaba[va] por confundir com a manutenção da ordem social e potica”
79
.
Compreendia-se que cada parte do corpo possuía uma jurisdição:
O organismo social assentava na pluralidade jurisdicional, apresentava uma
estrutura corporativa na qual se inseriam todos os poderes, e até mesmo o rei.
(...). Um rei que, ao invés de estar claramente apostado numa política de
unificação dessas diversas jurisdições, procurava, pelo contrário, desenvolver o
seu projeto político mantendo ou alterando o mínimo possível esses equilíbrios
jurisdicionais. Como tal, quer nas Cortes quer nos demais momentos do
processo político, mais do que com régias ambições centralizadoras, vamos
deparar com uma interdependência e com uma estreita colaboração entre o rei e
as diversas partes da sociedade. É que o corpo social carecia de um rei que o
governasse, e o monarca, por sua vez, contava com os corpos da comunidade
para administração do território que estava sob a sua alçada, território esse que,
de outra forma, a Coroa nunca seria capaz de governar, na medida em que, por
essa altura, não dispunha nem de meios nem de vocação para governar sozinha
nem para substituir as demais jurisdições. Concebido como um ofício, o
trabalho do monarca envolvia diversas obrigões, e entre esses imperativos o
mais importante era, sem dúvida, servir as necessidades do reino, ou seja,
preservar a paz e manter os direitos e as prerrogativas dos corpos do reino
80
.
77
“De fato, no que toca às imagens sobre a sociedade, sua organização e seu governo, constatou-se que
até ao século XVIII foram os juristas os principais produtores de reflexões sobre essa temática, resultando
um saber que comportava determinados esquemas normativos e propostas de ordenamento social, um
saber que comportava determinados esquemas normativos e propostas de ordenamento social, um saber
assente num aparelho conceptual construído e manuseado, antes de mais, pelos próprios juristas. (...) as
palavras que integravam tal aparelho conceptual eram dotadas de um potencial notável, na medida em
que, para além de designarem as ações, eram elas próprias, também, geradoras de ações de condutas e de
normas, classificando e instaurando distinções e hierarquias” (CARDIM, Pedro. op. cit., p. 12)
78
“O pensamento social da escostica medieval é dominado pela idéia da existência de uma ordem
universal, abrangendo os homens e as coisas, que orientava todas as criaturas para um objetivo único que
o pensamento cristão identificava com o próprio Criador. No entanto, a unidade dos objetivos da criação
não exigia que as funções de cada uma das partes do todo na consecução desses objetivos fossem
idênticas. Pelo contrário, o pensamento escostico sempre se manteve firmemente agarrado à idéia de
que cada parte do todo cooperava de forma diferente na realização do destino cósmico. Por outras
palavras, cada ‘ordem’ da criação e, dentro de cada uma delas, cada espécie, e, dentro da espécie
humana, cada grupo ou corpo social teria, nesse destino, um objetivo próprio e irredutível a realizar”
(HESPANHA, António Manuel. História das Instituições: Épocas medieval e moderna. Coimbra:
Livraria Almedina, 1982, p. 206).
79
Ibidem, p. 210.
80
CARDIM, Pedro. op. cit., p. 14
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
51
Para tanto, o rei deveria obedecer não aquilo que Deus determinou para a
sociedade, mas também respeitar os direitos adquiridos (iura acquisita), guardar os
foros, usos e costumes” dos povos ou dos corpos sociais específicos. O poder deveria,
então, garantir que a história fosse uma contínua reiteração. A importância da tradição
ou dos costumes, juntamente com a ordenação divina da sociedade, na teoria
corporativa, confluía para colocar o campo de referência para a ação potica dos
homens num lugar diferente daquele de seu presente e mesmo de sua realidade concreta.
Tomando-se a organização social e a instituição do poder como advindos da lei divina,
seriam os desígnios de Deus que explicariam as situações que se passavam, cabendo ao
homem conhecê-los e segui-los. No caso do apelo aos costumes, as práticas poticas
adotadas, bem como a maneira como se deveria lidar com algo novo, teriam sido
estabelecidas em um passado bastante antigo, sendo esta antiidade um fator que
legitimaria a perpetuação do costume. Daí que, se a função do rei era fazer justiça aos
corpos e respeitar os costumes dos povos, e estes, quando reivindicavam algo
politicamente, baseavam seus argumentos em um costume legítimo por sua antiguidade,
efetuava-se uma operação que significava um desejo de que o passado “se repetisse”, ou
o mundo permanecesse como sempre fora.
No pensamento corporativo da Segunda Escolástica, a ordem social dependeria da
natureza das coisas, estaria para além da disposição da vontade. O afastamento das leis
naturais (momentos de tirania ou revolução) constituía exceção; a constituição natural
sempre retornaria. Associando-se a natureza à ordem natural ditada por Deus (causa
primeira em linguagem aristotélico-tomista), era a Providência que mantinha a ordem
natural
81
. Nesses termos, o direito não deveria ser alterado, era natural, e não
estabelecido por um pacto voluntário dos homens nesse caso, adviria a possibilidade
de se alterarem as regras pela vontade da sociedade (pacto liberal) ou mesmo do
soberano, no caso do contratualismo absolutista, que embasou teoricamente monarquias
iluminadas européias
82
. Daí o termo, atribuído por JoSubtil, de uma “administração
passiva ao tratar do governo português na Época Moderna até a metade do século
XVIII. A viragem para uma administração ativa” se daria na segunda metade do
81
Por isso, momentos de mudança potica, como a Restauração de 1640, eram lidos como retornos à
ordem natural e conduzidos pela Providência, como se verá à frente na leitura que o Conde da Ericeira faz
da Restauração. Outros historiadores portugueses do século XVII também leram tal episódio como
resultado de desígnios divinos. Sobre isso, ver: SERRÃO, Joaquim Veríssimo. op. cit., vol. 2, pp.155-
216.
82
HESPANHA, António Manuel. O absolutismo de raiz contratualista. Disponível em
<hespanha.net/sitebuildercontent/sitebuilderfiles/1995_Absolutismo_contratualista.pdf> Acesso em 13
ago. 2005, s.p.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
52
XVIII, quando, “de uma situação de ‘impossibilidade’ governativa para mudar o status
quo, típica da ‘administração passiva’ jurisdicionalista, passa-se para uma situação
interventora, em que a capacidade dos atos governativos se mede pela ação exeqüível
dos programas poticos”
83
.
Nessa forma de governo “passivo”, as Cortes tinham um papel fundamental. A sua
denominação como “assembléia dos três estados” é “um indício de que a sociedade se
concebia a si mesma o propriamente como um aglomerado de indivíduos isolados,
mas, sim, como um conjunto de pessoas inseridas em corporações, em entidades
coletivas portadoras de direitos, de prerrogativas e de deveres”
84
. A concretização do
“bem comum”, finalidade essencial para essa potica, implicava essa manutenção das
prerrogativas. Os temas a serem apreciados por essas assembléias eram aqueles que
tocavam o interesse de todos, como os tributos. As reuniões das Cortes eram os
momentos essenciais em que essa sociedade, concebida como um corpo, encontrava a
sua representação, pois ali se viam todos os membros do corpo para, conjuntamente,
praticarem a potica, que, segundo os próprios termos que se utilizavam, significava
‘ajuizar’, ‘consultar’, ‘legalizar’
85
. Esse vocabulário forense é mais uma manifestação
dessa política concebida como realização de justiça.
Os momentos de convocação de Cortes, em que os corpos do Reino estavam
reunidos, eram situações excepcionais, pois o “corpo stico da república” estava ali
representado e poderia, então, ajuizar sobre qualquer questão que tocasse ao bem
comum. Essa comunidade “mística” é referenciada nas citações bíblicas que se
evocavam em suas reuniões, bem como às “lendas fundacionais da não portuguesa”
86
,
com especial destaque para as Cortes de Lamego.
As Cortes de Lamego mito, que, como foi dito, foi forjado durante o período da
União Ibérica – seriam a primeira reunião de Cortes do Reino de Portugal, na qual o seu
primeiro rei, D. Afonso Henriques, teria sido confirmado soberano daqueles povos.
Ademais, essas Cortes teriam estabelecido as normas de sucessão do trono português
daí em diante. Em torno da crença na existência histórica dessas Cortes fundamentais,
seguiam-se alguns importantes pontos que uniam o pensamento corporativo à própria
leitura da história de Portugal. Primeiro, o poder residiria no povo, que, reunido em
83
SUBTIL, José. Os poderes do centro. In: HESPANHA, Annio Manuel (coord.). História de Portugal.
Lisboa: Editorial Estampa, 1998, vol. 4, p. 143.
84
CARDIM, Pedro. op. cit., p. 22.
85
Ibidem, pp. 19-22.
86
Ibidem, p. 37.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
53
Cortes, poderia deliberar sobre o direito ao poder de um dado rei; segundo, o povo
reunido em Cortes poderia instituir leis às quais todos, inclusive o monarca, deveriam se
submeter; tais leis, por tocarem em pontos fundamentais, e, logo, ao bem comum, eram,
desde o princípio do Reino português, de competência das mesmas Cortes. Devendo-se
ressaltar que tais leis nunca poderiam colidir com as leis naturais e, por conseguinte,
com as divinas.
As Cortes de Lamego constituíram, na memória dos portugueses, um evento
fundamental que demonstrava a tradição e a antiidade de suas práticas poticas, dos
direitos dos povos frente ao poder do soberano e do papel deste como realizador da
justiça, em respeito às leis, aos usos e costumes do Reino. Ressaltando-se ainda que o
rei “levantado
87
nessas Cortes, D.Afonso Henriques, era possuidor de uma imagem
quase santa, devido ao milagre de Ourique, comentado anteriormente.
Durante o século XVII, o papel das Cortes foi aos poucos sendo diminuído, ao
passo que cresciam as ações governativas advindas da Coroa. De fato, dentro do sistema
juspotico corporativo escolástico, também competia ao príncipe o imperium, poder
autoritário que permitia fazer aquilo que era vontade da Coroa, mas que deveria ser
usado apenas em casos excepcionais, e para o bem blico, nunca para realizar um
desejo próprio, o que era desqualificado com termos pejorativos como tirania e
despotismo. A ação do imperium como correção e complemento à ordem jurídica era
chamada de graça”
88
. Entretanto, ao conceder uma graça, o príncipe o era visto como
legislador, pois isso era algo previsto no sistema jurídico. O que alterou essa imagem foi
que durante os seiscentos os príncipes começaram cada vez mais utilizar a graça tendo
em vista realizar seus interesses
89
.
A idéia de um governo passivo foi, pois, aos poucos, sendo alterada. Haveria uma
politização” do governo, entretanto houve muitas resistências a essa tenncia
87
O próprio termo “levantamento do rei é significativo desse pensamento político. Diferentemente da
“coroação feita pelo papa, como na França, que sugere a idéia de que o poder foi transferido diretamente
por Deus ao rei, o “levantamento” do rei pelos povos reunidos em Cortes expressa melhor a idéia de que
o poder também de origem divina reside nos três estados. Outros elementos do ritual que concede o
poder ao monarca em Portugal, como o juramento ante os três estados, também contribuem para a
construção desse imaginário político. A esse respeito ver: CARDIM, Pedro. op. cit., pp. 103-115;
HERMANN, Jacqueline. op. cit., pp. 125-176. O texto de Hermann aborda também as tentativas para que
o cerimonial da coroação papal tivesse lugar em Portugal, o que não chegou a ocorrer. As arraigadas
práticas e pensamentos políticos portugueses, bem como as exigências de Roma para a submissão de
Portugal ao poder pontifício, para que se executasse a coroação, impediram que se visse tal prática em
reis portugueses.
88
CARDIM, Pedro. “Administração” e “governo”: uma reflexão sobre o vocabulário do Antigo Regime.
In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (org.). Modos de governar: idéias e
práticas políticas no império português (Séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2005, p. 57.
89
Ibidem, p. 58.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
54
governativa da Coroa, vindas principalmente dos antigos magistrados e dos tribunais,
que sentiam seu poder diminuído; e da aristocracia, que, por vezes, se via relegada a um
segundo plano nas formas clientelares de recrutamento. Essa resistência atava-se à idéia
de rompimento com a ordem potica, o que é visto de forma marcadamente negativa,
pois desconsidera os mecanismos corporativos de bom governo e causa um perigoso
desequilíbrio da “justa distributiva”
90
.
Segundo Pedro Cardim, a ação legislativa da Coroa, o imperium, tinha ainda uma
outra limitação”, que
tinha a ver com o fato de a função jurisdicional ser entendida como uma
intervenção de último momento’, quer dizer, era uma técnica confinada à
restauração da ordem depois de esta ter sido violada. Era uma técnica que não
estava propriamente pensada para evitar que a desordem se registrasse, mas sim
para esperar repor a ordem depois de rompido o ordenamento. Nessas condições,
seria difícil esperar que o dispositivo se mostrasse apto ou sequer disponível
para levar a cabo uma ação marcadamente voluntarista
91
.
Pelo que se viu até o momento, é possível perceber de que maneira as práticas e os
pensamentos poticos vigentes em Portugal no século XVII eram limitadores das ações
do poder potico central, da cabeça do corpo social. Depreende-se, daqui, uma forte
razão para que Pombal, numa perspectiva política centralizadora e voluntarista,
utilizasse os aparatos poticos disponíveis para combater a validade e a disseminação
dos conceitos políticos até então vigentes em Portugal.
As concepções poticas do corporativismo escolástico engendraram também uma
visão de história que pode ser observada na História de Portugal Restaurado. A tese da
origem popular do poder régio expressa nesta obra e endossada por seu autor, já foi
anteriormente analisada, veja-se, agora, como a questão do processo histórico é tratada.
Logo ao iniciar a obra, afirma que:
A Providência Divina, que distribui toda a humana grandeza, e costuma igualar a
pena à culpa e o prêmio ao merecimento, havendo permitido que os ânimos
valorosos dos varões portugueses padecessem sessenta anos o infeliz domínio de
Castela, ou por castigo da vaidade de haverem superado com ações singulares as
nações mais remotas, ou por desconto da glória que na liberdade lhes destinava,
suspendendo os golpes da espada da Justiça e mostrando os frutos do ramo da
misericórdia, lhes influiu alentado espírito, para que, sacudindo tão pesado jugo,
libertassem a esclarecida Pátria, melhor fábrica da Natureza, da injusta sujeão
que padecia
92
.
90
Ibidem, p. 66-67. SUBTIL, José. op. cit., pp. 142-143.
91
Ibidem, p. 61 (Itálico nosso).
92
ERICEIRA, Conde da. op. cit., vol. 1, p. 17.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
55
Percebe-se, aqui, a idéia de que os cursos da história são determinados, em última
instância, pela Provincia Divina. A sujeição de Portugal a Castela foi determinada
pela Provincia devido à vaidade ostentada pelos portugueses em face das suas grandes
proezas e conquistas, ou mesmo porque uma liberdade muito maior lhe era destinada.
Entretanto, existe uma tensão entre as determinações da Provincia e as ações
humanas, o que é exposto neste outro trecho que também trata da queda de Portugal sob
domínio castelhano:
Porém, como a fortuna não consente a grandeza dos Impérios, toda esta glória
alcançada em Portugal, todas estas vitórias conseguidas, todos estes reinos
conquistados, desbaratou a omissão de um príncipe português e a negociação de
um Rei castelhano, ajudado dos ânimos ambiciosos de uns homens ingratos de
sangue, de que se alimentavam, e inimigos da ilustre pátria em que nasceram, que
produziu este aborto por permissão Divina, porque tendo a glória de Portugal
chegado ao maior auge, era necessário que se abatesse para tornar a subir. E como
estes foram os fundamentos dos gloriosos sucessos desta História, dar-lhe-emos
princípio (...)
93
.
Os “fundamentos” desta história são, então, além da determinação ou “permissão
superior da Providência, as ações humanas que a levam a agir sobre a história,
corrigindo seu curso com prêmios e castigos; e o ritmo natural de todos os reinos no
tempo, que é o da degeneração ou queda após um apogeu, o que é “necessário” para que
posteriormente volte a subir e que, por isso, também determina as ações humanas.
A compreensão da história a partir de ciclos de apogeu e declínio provém da
Antigüidade. Para os antigos gregos e romanos, o tempo da potica obedece ao mesmo
ciclo do tempo da natureza, da physis
94
. Com o cristianismo, a linha do tempo divina
torna-se mais importante que os ciclos naturais da história secular, ou seja, busca-se a
salvação eterna, a integração no tempo de Deus. Entretanto, essa busca o exclui a vida
terrena, que continua sendo compreendida a partir da idéia de repetão natural de seus
ciclos, embora, por isso mesmo, desmerecida. Noção fundamental para que se conceba a
história “mestra da vida”, que supõe a repetição dos eventos aprendidos com a
experiência histórica.
Tanto a Provincia divina quanto o ciclo da natureza são formas de dar sentido à
história, de torná-la compreensível, pois, conhecidos os inícios e fins do tempo, é
possível ao historiador situar o seu objeto narrado dentro de um plano anteriormente
93
Ibidem, vol. 1, p. 26.
94
ARENDT, Hannah. O conceito de história Antigo e Moderno. In: Entre o Passado e o Futuro. São
Paulo: Perspectiva, 1972, p. 70-71 e 81; BIGNOTTO, Newton. O círculo e a linha. In: NOVAES, Adauto
(org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 185; REIS, JoCarlos. História da
história: civilização ocidental e sentido histórico. op. cit., p. 17; Idem. Tempo, história e evasão.
Campinas, São Paulo: Papirus, 1994, pp. 146-147.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
56
conhecido. É o que fez o Conde da Ericeira em sua interpretação da Restauração
portuguesa, o que foi algo bem comum em seu tempo. Na urdidura de sua compreensão
da história, as ações humanas têm uma importância inferior frente ao ciclo necessário de
apogeu e declínio das repúblicas: era a Providência, que com sua o, distribuía seus
prêmios e castigos. No entanto, a partir das ações humanas, pode-se conhecer o que
levou a Providência a castigar ou premiar, ou como uma república entrou em declínio
ou ascensão.
Na narração destas ações humanas, deve-se ter em conta a sua relevância potica.
Aqueles que se dedicam a relatar os vícios e defeitos particulares são satíricos e não
historiadores. As particularidades dos personagens devem ser narradas quando são
necessárias para a compreensão da história:
(...) não perdoei a requisito algum, necessário para a história, que me ficasse por
escrever, parecendo-me só escusado relatar defeitos particulares, tendo por
opinião que os que se arrojaram a descobri-los merecem mais o título de satíricos
que de historiadores, excetuando aqueles que referiram vícios de que depende a
narração da sua história, como é necessário que me aconteça, quando chegar a
referir os sucessos da vida de El-Rei D. Afonso VI
95
.
Quais ações foram importantes para a retomada do poder por Portugal e, ao
mesmo tempo, para a queda de Espanha? O que levou a Providência a premiar os
portugueses e punir os castelhanos? Nas respostas dadas a essas perguntas, Ericeira
desenvolve concepções poticas afeitas ao corporativismo escolástico.
Os anos passados sob donio dos felipes são descritos como o de ocorrências de
rias iniqüidades e principalmente de desrespeito por seus costumes. O dia em que
Felipe II de Espanha entrou em Portugal como rei, “não só passaram os infelizes
portugueses de filhos a vassalos, mas de vassalos a escravos, perdendo a liberdade e a
pureza dos costumes em que permaneceram por tantos séculos”
96
.
A sujeição dos portugueses a el-rei Católico se deu nas Cortes de Tomar. Nessas
Cortes, o rei castelhano jurou respeitar os mesmos foros do Reino anteriormente
prometido por D. Manuel aos portugueses. Assim, Felipe II e seus descendentes
estavam comprometidos a guardarem os usos, costumes, moedas, isenções, alguns
privilégios de portugueses na administração do Reino, o uso da língua portuguesa em
papéis administrativos etc.:
E que sendo o caso que ele ou seus sucessores não guardassem tudo o prometido
e jurado, que os Três Estados do reino não seriam obrigados a estar pela
concórdia, e poderiam livremente negar-lhe sujeição, vassalagem e obediência,
95
ERICEIRA, Conde da. op. cit., vol. 1, p. 17.
96
Ibidem, pp. 45-46.
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
57
sem por este respeito incorrerem em crime de lesa-majestade, nem outro mau
caso. Porém esta cláusula, se não a imprimiram os castelhanos, acha-se na lei
régia de Portugal, impressa em Madrid por João Salgado de Araújo (...)
97
.
Nessa descrição das Cortes de Tomar, percebe-se um pacto de sujeição ao estilo
neo-tomista, em que os povos se submetem a obedecer ao soberano, mas para que se
conservem os usos, costumes e liberdades do corpo social. Caso o soberano não cumpra
a sua parte no pacto, os povos podem descumprir o seu juramento de obediência sem
que incorram em qualquer crime. Segundo Ericeira, esse ponto foi, inclusive, ressaltado
nas mesmas Cortes, porém o impresso pelos castelhanos, o que já era um indício do
ânimo com que os soberanos espanhóis iriam tratar os portugueses. Dessa forma, entre
os pontos que tocavam em “conveniências de Portugal”,
(...) nenhum houve dos que Felipe II firmou neste sentido que ele (em parte), seu
filho e neto totalmente o rompessem, com que foram os mesmos Príncipes os
que justificaram mais que todas as leis a resolução que os portugueses tomaram
de se livrar de seu domínio
98
.
Assim, a justificativa das ações dos portugueses em retomar a sua independência está
nas próprias ações dos reis castelhanos que, ao desrespeitarem o juramento, tornaram-se
tiranos”
99
. Principalmente Felipe IV de Espanha, o último a governar Portugal, que
Entrou no Governo desembainhando, sem dissimulação, a espada contra este
Reino, que experimentou na infelicidade daquele século, na mudança das Coroas,
multiplicada a tirania. Sem chamar Cortes, acrescentou os tributos em Portugal,
com tal excesso, que vieram a ser intoleráveis
100
.
Os outros reinados dos felipes também descumpriram suas obrigações, porém,
como sugere o pacto de sujeição, os portugueses mantiveram-se obedientes às ordens
reais. Entretanto, a tirania de Felipe IV e de seu valido, o Conde-Duque de Olivares,
mostrou-se “intolerável”, levando os portugueses a negar-lhe obediência. Além do fato
de possuírem os portugueses um rei “natural”, o Duque de Bragança, apto, de acordo
com as leis do reino a assumir a Coroa.
A História da América Portuguesa, de Rocha Pita, como se viu acima, reproduz
concepções históricas providencialistas escatológicas semelhantes às formuladas por
Antônio Vieira e João de Vasconcelos. Entretanto, a obra de Pita possui também idéias
97
Ibidem, p. 48
98
Idem.
99
A caracterização dos reinados filipinos como “tiranos” na obra História de Portugal Restaurado
utilizando-se de conceitos corporativos escolásticos foi analisada por Luiz Carlos Villalta em
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na
América Portuguesa. 1999. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, pp. 37-38.
100
Ibidem, p. 65 (Itálico nosso).
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
58
corporativas escolásticas na leitura da Restauração portuguesa e na Restauração
pernambucana.
Para Pita, o governo dos castelhanos e seus ministros sobre Portugal foi tão
tinico que deixou as forças lusitanas terrivelmente debilitadas, tanto que parecia “a
empresa que conseguiram os Lusitanos obra da mão onipotente”
101
. Assim, a tirania
legitima a revolta, porém ela de ter sido levada a cabo pela ação da mão divina,
semelhantemente à leitura feita por Ericeira.
A revolta dos pernambucanos frente ao governo dos holandeses se justificaria pela
tirania com que os batavos agiam sobre colonos portugueses. Tal ação contrariou
mesmo as determinações da Coroa portuguesa, que instruíam os revoltosos para que
capitulassem em obediência às pazes ajustadas entre Portugal e Holanda. Porém, maior
que a obediência ao rei, era o direito natural de defesa frente a um governo tirânico, o
que se expressava na resposta dada por João Fernandes Vieira à notícia de que D. João
IV determinava a trégua:
os Pernambucanos pegaram nas armas por se livrarem da última ruína que os
inimigos preveniam a todos os moradores daquelas províncias; e que sendo a
defensa natural às gentes, não devia o príncipe obrigar aos vassalos a viver na
sujeição de um domínio tirânico, de que não podiam livrar-se sem romper o jugo
que os trazia arrastado (...)
102
.
Ao concluir o capitulo sobre a Restauração de 1640 e a Restauração
pernambucana de 1656, Rocha Pita interpreta-as como retorno à boa ordem, à ordem
natural, um retorno dos corpos à sua natural cabeça. A metáfora do corpo, como se viu,
é bastante cara ao corporativismo escolástico:
Restaurado o reino pelo nosso grande monarca o senhor D. João IV, e com
infalíveis esperanças de ficar estabelecido e seguro na sua augusta descendência,
recuperadas as províncias que no Brasil tinha senhoreado o poder de Holanda,
tornava com novas luzes a manifestar-se o antigo esplendor da monarquia [...].
[D. João IV] Foi duque em nome, e oitavo em número, da sereníssima casa de
Bragança. Nasceu rei por direito, vassalo por tirania: mas este descuido da
natureza emendou a fortuna, então ministra da providência divina, restituindo-
lhe a coroa que estava violentada em outra cabeça, e separando o reino daquele
corpo que intentou reduzi-lo a um pequeno membro, fazendo-o província
103
.
Por fim, a leitura de Ericeira e Rocha Pita coloca o retorno ou restauração do reino
de Portugal dentro da linha cristã. A degeneração da sociedade potica, algo natural, é
sucedida por uma recuperação. Ao mesmo tempo, a mão da Provincia garante a
justiça e moralidade das relações políticas entre os homens, o que é avaliado por
101
PITA, Sebastião da Rocha. op. cit., p. 137.
102
Ibidem, p. 146.
103
Ibidem, p. 159 (Itálico nosso).
Capítulo 1 – Portugal moderno: política e história
59
critérios corporativos escolásticos. A História de Portugal Restaurado mantém,
também, vários aspectos ticos da historiografia portuguesa da época, como a
genealogia bíblica dos reis portugueses e o milagre de Ourique, entretanto, não é
presente na obra o providencialismo de caris escatológico, como o defendido pelos
padres Antônio Vieira e João de Vasconcelos, e por Rocha Pita.
Os argumentos políticos que explicam a Restauração na obra do Conde da Ericeira
foram os mesmos mobilizados por portugueses em diversos textos para justificarem a
revolta, negação da sujeição e eleão de um novo rei. Vários textos com argumentos
jurídicos nesse sentido foram impressos em Portugal à época, como o Assento feito em
cortes pelos tres estados dos Reynos de Portugal da acclamação, restituição &
juramento dos mesmos Reynos ao muito Alto, & muito poderoso Senhor Rey Dom Joaõ
o Quarto deste nome (1641); o Manifesto do Reyno de Portvgal. No qval se declara o
direyto, as causas, & o modo que teve para exemirse da obediencia del Rey de Castella,
& tomar a voz do Serenissimo Dom Ioam IV ... (1641); A acção de acclamar a elrey
Dom João o IV: foy mais gloriosa, & mais digna de honra, fama, & remuneração, que
a dos que o seguiraõ aclamado (1644), dentre outros. Especialmente o primeiro, o
Assento, foi explicitamente contestado na Dedução Cronológica e Analítica, texto
pombalino que acusa os jesuítas de terem manipulado a sua escrita, refutando a
legitimidade das Cortes em deporem e levantarem um rei. Da mesma forma, a História
de Portugal Restaurado é acusada, na Dedução, de ter sido “disfigurada depois de
escrita pelos mesmos denominados Jesuitas
104
, no que também se pode perceber uma
contestação aos argumentos juspoticos do corporativismo escolástico. A crítica
presente na Dedução Cronológica e Analítica ao corporativismo escostico e à leitura
da história, tanto da Restauração quanto das Cortes de 1668, feitas na História de
Portugal Restaurado, serão objeto do Capítulo 4.
104
SYLVA, José de Seabra da. Dedução Cronológica e Analítica... Lisboa: Officina de Miguel Manescal
da Costa, 1768, Parte I, p. IV. (Foram consultadas as edições de 1769, em cinco volumes, presente na
coleção de Obras Raras da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa MG, e a de 1768, em três
volumes, que possui uma versão digitalizada no site da Biblioteca Nacional de Portugal –
www.bn.pt . As
citações da obra neste trabalho farão referência a esta última.).
Capítulo 2
Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
Deus não quis que eu iluminasse a nossa
Nação e eu me conformo com a sua
vontade.
Verney
O olhar estrangeiro sobre Portugal, no século XVIII, foi comumente carregado de
idéias que apontavam para o atraso cultural dos lusitanos. Manoel Cardozo reuniu
algumas menções de ingleses e franceses que demonstram o desdém com que alguns
homens destas nacionalidades que passaram por Portugal se referem ao país. Sobre a
principal obra literária portuguesa de então, Sir Richard Fanshawe, que traduziu os
Lusíadas para o inglês, dizia que possuía uma linguagem tão deselegante que as pessoas
dificilmente acreditariam que poderia gabar-se de rivalizar com a de Tasso. Com
críticas ao barbarismo da língua portuguesa e de sua literatura em geral, Joseph Barreti
escreveu, em 1760, que as perdas de livros provocadas pelo terremoto de Lisboa de
1755 seriam lamentadas apenas em Portugal. O francês Charles-Fraois Dumouriez,
em 1766, repreendia “a extrema indolência e apatia de seus (de Portugal) habitantes;
eles não viajam, escrevem, nem se comunicam com nações estrangeiras”.
Compartilhava dessa opinião o inglês Sir Joseph Banks, que, em seu jornal, em 1768-
1771, afirmava ser o português, “sem exceção, a mais preguiçosa bem como a mais
ignorante raça no mundo inteiro
1
. Outros comentários referiam-se à futilidade de
Portugal, uma nação que se interessaria mais pelas Delícias” que pelos “Necessários
para a Vida”, além da superstição e do fanatismo do português, aspectos em que a ação
do Santo Ofício em Portugal era apontada como prova por vários observadores
2
.
Nas Cartas Persas, de Montesquieu, por exemplo, critica-se a forma como os
católicos julgavam alguém como herege, simplesmente por divergir da opinião
ortodoxa, o que era prática comum em França e Alemanha, mas, além disso,
1
CARDOZO, Manoel. The Internationalism of the Portuguese Enlightenment: The Role of the
Estrangeirado, c. 1700- c. 1750. In: ALDRIDGE, A. O. (comp.). The Ibero-American Enlightenment.
Urbana: University of Illinois Press, 1971, pp. 141-146.
2
Ibidem, pp. 141-146.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
61
em Espanha e Portugal há uns daroeses [os inquisidores] que não gracejam e
mandam queimar um homem como se fosse palha. Quando se lhes cai nas garras,
feliz o que sempre orou a Deus com uma enfiada de continhas de pau, que sempre
usou dois pedaços de pano atados com duas fitas, e que foi alguma vez a uma
província por nome Galiza. Sem isso está mal o pobre diabo
3
.
O julgamento feito pela Inquisição nos países ibéricos seria baseado no
desrespeito da opinião; em uma apreciação em que se levava em consideração a prática
de algumas atividades como rezar um rosário ou usar um escapulário; e em uma pena
cruel.
Voltaire também satiriza os conhecimentos e costumes portugueses em Cândido
ou O Otimismo. Os sábios” do país, inclusive da Universidade de Coimbra se
apegavam a saberes supersticiosos e religiosos, como na reação ao terremoto de Lisboa:
Depois do tremor de terra que destruiu três quartas partes de Lisboa, os sábios do
país não encontraram meio mais eficaz para prevenir uma ruína total do que
oferecer ao povo um belo auto-de-fé; foi decidido pela Universidade de Coimbra
que o espetáculo de algumas pessoas queimadas a fogo lento, em grande
cerimonial, era um infalível segredo para impedir que a terra se pusesse a tremer
4
.
De fato, essa visão negativa sobre os costumes e a cultura portuguesa de então se
devia em grande parte ao desconhecimento que esses observadores tinham em relação a
Portugal. Segundo um italiano, Giuseppe Gorani, que viveu em Portugal de 1765 até
1767, “não havia povo na Europa de quem o caráter tem sido tão pouco conhecido como
este do Português, que, em geral, são conhecidos através do relato de escritores
espanhóis”
5
. Alguns aspectos apontados como indicadores do atraso português, como a
restrição a não-católicos na Universidade de Coimbra, poderiam ser compensados pela
restrição a católicos praticada em Oxford e Cambridge; quanto à manutenção da
escolástica como filosofia oficial nas escolas, dever-se-ia ter em conta que a biblioteca
da Universidade de Coimbra era cheia de livros considerados perigosos pela Inquisição,
assim como a de muitos nobres, e a biblioteca do rei era uma das maiores da Europa
6
.
Indo além do depoimento de Gorani e detendo-se em instituições como as academias e
nas iniciativas particulares, é também possível perceber a utilização de técnicas
inovadoras em algumas áreas do conhecimento, como a médica e, se nessa área
persistiam práticas e crenças “maravilhosas” ou em forças ocultas, mesmo no meio
universitário lusitano, deve-se considerar que essa característica era também comum a
3
MONTESQUIEU. Cartas Persas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960, p. 75.
4
VOLTAIRE. Cândido ou o Optimismo. In: Contos e Novelas. Rio de Janeiro; Porto Alegre; São Paulo:
Editora Globo, 1951, pp. 153-154.
5
CARDOZO, Manoel. op. cit., p. 146.
6
Ibidem, p. 148.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
62
outras universidades euroias
7
. Tudo isso permite considerar que essa visão de
Portugal como um reino obscurantista não corresponderia à realidade histórica, até
mesmo pelo fato de que outras nações, como França e Inglaterra, apontadas como
esclarecidas”, devido à grande reputação de vários de seus pensadores e filósofos dos
séculos XVII e XVIII, mantinham também práticas e pensamentos tidos como
“irracionais” ou preconceituosos”, de acordo com o próprio pensamento ilustrado.
A imagem de um Portugal obscurecido e atrasado, intelectual e culturalmente,
frente outras nações “iluminadas” da Europa de Além-Pirineus foi compartilhada por
rios ilustrados portugueses do período, como se verá melhor posteriormente, e foi
também uma interpretação fixada por boa parte da historiografia que abordou o
setecentos português. As razões desse possível “atraso”, bem como da elaboração desse
discurso, devem ser analisadas.
O Estado português teve uma conformação precoce e importantes picos do seu
embasamento teórico-político permaneceram, malgrado as novas idéias e teorias que
emergiam no Além-Pirineus. Quando das Revoluções Religiosa e Científica, Portugal
era um édifice déjà construit
8
, possuindo já um embasamento intelectual bem fundado,
que dava respostas aos questionamentos da época e se mostrava relativamente resistente
às inovações científicas e filoficas do tempo
9
. Essa delimitação das fronteiras, tanto
espaciais quanto ideológicas, favoreceu a fundão do Estado português e manteve-o
preso a um pensamento que foi posteriormente identificado como tradicional, ou
atrasado, ao se chegar ao culo das Luzes. O pensamento e tradições portuguesas
estavam fortemente arraigados nas suas heranças medievais. Como se viu no Capítulo
1, os principais pensadores eram tlogos, herdeiros do tomismo ou mesmo tricos da
Segunda Escostica.
No alvorecer da Idade Moderna, Portugal conheceu um dos períodos mais áureos
de sua história. Os Descobrimentos colocaram os países ibéricos em posição de
destaque no Ocidente europeu. A constituição de impérios ultramarinos proporcionou
enriquecimento, uma grande relevância potica frente outros reinos europeus e junto ao
papado e uma nova forma de conhecimento e entendimento do mundo, a cultura dos
descobrimentos. Nesse momento, os países ibéricos ocupavam uma posição ecomica
e cultural de destaque no espaço europeu.
7
VILLALTA, Luiz Carlos. op. cit., pp. 136-7.
8
MORSE Richard M. O espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. Trad. Paulo Neves. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 44.
9
Ibidem, p. 44.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
63
Para Francisco Falcon, o universo cultural português, entre o século XV e as
primeiras décadas do século XVI, ou seja, no período dos grandes descobrimentos
anterior à Contra-Reforma ou Reforma católica, abrigou três culturas ou subculturas: a
humanista-renascentista, a escolástica e a dos descobrimentos marítimos
10
.
As vertentes humanista-renascentista e escolástica, ou mais especificamente, da
Segunda Escolástica, têm muito em comum, principalmente no que tange ao método ou
acesso ao conhecimento. Ambas valorizavam os métodos críticos e filológicos a fim de
restaurarem as versões originais de textos antigos; procuravam conjugar esses saberes
com preceitos da dogmática católica; e tinham uma concepção de saber essencialmente
textual, na qual o conhecimento advinha da correta interpretação das autoridades, e o
empirismo ou contato com a realidade encontrava lugar no momento de
comprovação das verdades já obtidas a partir dos textos autorizados. A diferença
fundamental entre essas duas vertentes estava no fato de que a autoridade da
Antigüidade a ser seguida pelos neo-escolásticos era unicamente Aristóteles, enquanto
para o humanismo-renascentista vários autores clássicos possuíam essa prerrogativa.
Isto fez com que vários ensinamentos oriundos do humanismo-renascentista fossem
rejeitados pelos neo-escolásticos e, após a Reforma Católica, fossem praticamente
abolidos em Portugal e nos reinos católicos pela suspeita de heresia que carregavam,
que foram vistos, em muitos momentos, como causa da Reforma protestante
11
. É claro,
entretanto, que essa aproximação sumária entre a Segunda Escolástica e o humanismo-
renascentista portugueses, bem como sua rápida diferenciação, não abarcam toda a
complexidade de uma comparação desse tipo. Ela foi feita com o intuito de realizar uma
outra comparação, desta vez com a cultura dos descobrimentos
12
.
A aventura marítima portuguesa foi tão importante que, para autores quinhentistas
como João de Barros e Zurara, o infante D. Henrique marcaria o início de uma nova
idade, o rompimento com a medievalidade
13
. As novas formas de conhecimento
oriundas dos descobrimentos possuem uma característica comum, um núcleo
racionalista-pragmático-experiencial”
14
. Daí um saber oriundo da experiência direta,
empírica, configurando-se na prática do mar, no desenvolvimento da ciência náutica; no
10
FALCON, Francisco José Calazans. Descobrimentos, Mentalidade e Cultura. In: FALCON, Francisco
J. Calazans; RODRIGUES, Antonio Edmilson M. Tempos modernos: ensaios de história cultural. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 226-227.
11
Ibidem, pp. 203-211.
12
Utilizo aqui a expressão “cultura dos descobrimentos” conforme o trabalho de Falcon que, por sua vez,
baseia-se nos estudos de Luís Filipe Barreto e José Sebastião da Silva Dias.
13
FALCON, Francisco José Calazans. Descobrimentos, Mentalidade e Cultura. op. cit., pp. 212-213.
14
Ibidem, p.214.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
64
estabelecimento de relações entre a matemática, a astronomia e a geografia; além
daqueles advindos do contato com os povos do ultramar: criação de tratados
informativos sobre o “material médico” (medicina, botânica e zoologia); e o campo
etnológico, ou seja, de diversas manifestações, formas de expressão e organização do
gênero humano, no que tiveram uma especial importância os missiorios jesuítas
15
.
Os saberes dessa experiência do mar foram contemporâneos do Renascimento e
utilizaram-se bastante de seu racionalismo crítico-experiencial, aspecto renascentista até
então deixado um tanto de lado pelo humanismo-renascentista. Por isso, seguindo ainda
Falcon, pode-se afirmar que, “em tal contexto, a sabedoria do mar se define como um
espaço de convergências e oposições científicas, filoficas e técnicas, cujos enunciados
constituem um território cultural em compasso com o resto da Europa
16
. Muito
embora o humanismo-renascentista, a cultura dos descobrimentos e a Segunda
Escolástica sejam saberes que, em alguns casos e manifestações, se interpenetrem, é
inegável a preponderância assumida por esta última no universo português da Era
Moderna, tanto cultural quanto politicamente.
O reino de Portugal, no contexto da Reforma, fez uma opção tridentina, e tornou-
se, juntamente com a Espanha, expoente da ação contra-reformista. O pensamento
português no início dos tempos modernos não pode ser entendido separadamente do
pensamento religioso católico, principalmente no contexto da Reforma Católica
17
.
Desse modo, em Portugal, a ausência de um grande contato com as idéias científicas
que se desenvolviam no Além-Pirineus, o campo intelectual que mais se desenvolveu
foi a teologia
18
, especificamente sob a Segunda Escolástica ou Neo-tomismo.
A Segunda Escolástica manteve-se preponderante em Portugal pelo menos até
meados do século XVIII, quando suas idéias foram atacadas por pensadores lusos
influenciados pelas idéias das Luzes, sobretudo a partir do governo ilustrado pombalino.
Esse combate tinha um viés potico, pois a concepção escolástica de poder, em várias
de suas vertentes, como se viu no capítulo anterior, impunha limites ao exercício do
poder absoluto, o que contrariava a orientação política de Sebastião José de Carvalho e
Melo. Os ataques manifestavam um outro viés, que tange ao conhecimento, ou seja, ao
atraso” cultural de Portugal, à sua impermeabilidade aos desenvolvimentos intelectuais
e científicos do resto da Europa, causados pela força que as explicações escolásticas, da
15
Ibidem, pp. 213-214.
16
Ibidem, p. 215. (Itálico no original).
17
TORGAL, Luís Reis. op. cit., vol. 2, p. 13.
18
Ibidem, vol. 1, p. 110.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
65
física à medicina, ou seja, de Aristóteles a Galeno, exerciam sobre as mentes
portuguesas, o que também não deixava de revelar um cunho político. Por isso, vários
ilustrados portugueses defenderam reformas educacionais visando a dar um caráter mais
científico (da forma como o Século das Luzes entendia a ciência) ao conhecimento
ensinado e produzido pelos portugueses. Foram defensores dessas reformas homens
como Luís António Verney, Annio Nunes Ribeiro Sanches e o padre Teodoro de
Almeida, dentre outros. Neste sentido, a reforma da Universidade de Coimbra, realizada
sob Pombal, é bastante significativa e será melhor analisada no próximo capítulo.
Mais do que isso, uma revisão historiográfica que recua o marco temporal em
que Portugal teria tomado consciência das “novas luzes” e investido nessa
modernização. O governo de D. João V (1706-1750), freqüentemente visto como o
símbolo do obscurantismo português devido à incomensurável religiosidade do
soberano, que não poupava o ouro vindo do Brasil para investi-lo em Igrejas e
conventos, como o monumental Palácio Real de Mafra, hoje é associado à reentrada de
Portugal na Europa
19
. A esse respeito, Manoel Cardozo narra um interessante episódio:
Quando D. João perguntou ao Dr. Jacob de Castro Sarmento (1691-1762), o
eminente médico, o que ele deveria fazer para melhorar o estudo de medicina em
Portugal, o famoso expatriado aconselhou-o a publicar uma tradução de Francis
Bacon (como um meio de tornar disponível para o Português os princípios da
nova ciência) e mandar jovens para serem educados no exterior
20
.
Durante o período joanino, de fato, iniciou-se uma política de subsídios para a
educação de jovens lusitanos em academias e universidades do resto da Europa, uma
política que foi mantida pelo Estado português até o fim do Antigo Regime. Tais
portugueses formados no exterior, que em muitos casos nem voltaram à pátria, ficaram
conhecidos como estrangeirados e foram muito importantes na manutenção de Portugal
em contato com o conhecimento que se produzia alhures. D. João tornou-se um patrono
de ciências e artes, a maioria de motivos religiosos, em Portugal. O Magnânimo
preocupava-se em construir um Reino que fosse admirado pelas outras nações do
mundo. O apoio a academias científicas particulares; a fundação da Academia Real da
História; as medidas relativas à biblioteca da Universidade de Coimbra (expansãosica,
o aumento das rendas e a atualização do acervo); a tentativa de trazer Boerhaave de
Leiden para Coimbra;a capacitação da Ordem dos Oratorianos; a construção de um
observatório astronômico; e o patrocínio a empreendimentos científicos, como os de
19
CARDOZO, Manoel. op. cit., p. 152.
20
Ibidem, p. 153.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
66
aeróstato de Bartolomeu de Gusmão, são exemplos de ações de fomento às ciências
tomadas por D. João V
21
. Assim, percebe-se que, mesmo antes do governo de D. José I
(1750-1777), houve ações no sentido de modernizar o pensamento português.
A formação cultural tridentina foi preponderante em Portugal durante o século
XVII e a primeira metade do XVIII. Fincando os pés nas universidades de Évora e
Coimbra, além de se fazer presente nos “estudos menores”, a orientação católica,
essencialmente jesuítica, afirmou “a autoridade una e universal da Igreja, configurou em
códigos não toda a liturgia e catecismo como a moral e o saber
22
. Combateu-se,
assim, o livre-exame de textos sagrados originais, sendo que glosar comentadores
autorizados pelos estatutos da Universidade era a principal atividade intelectual
realizada. As instituições culturais pugnaram pela defesa dos dogmas, ensinava-se um
conhecimento livresco, afeito à “especulaçãoe à “controvérsia”, ao mesmo tempo em
que se repugnava a ciência experimental. Tais procedimentos, dentre outros, foram
adotados para se consolidar uma nova forma escolástica de se relacionar com o mundo,
no que, pode-se dizer, foi uma empresa bem sucedida
23
.
Esse modelo de conhecimento relegava as ciências naturais e exatas a um plano de
menor importância. Embora noções de física, astronomia, cosmografia, biologia,
aritmética e lógica fossem previstas nos conteúdos programáticos, poucas vezes eles se
efetivavam nas aulas
24
. Além do fato de que o ensino da filosofia e das ciências naturais
era voltado para o aprimoramento do conhecimento teológico, subordinava-se, pois, a
filosofia à teologia
25
. A matemática foi uma exceção, tendo algum desenvolvimento e
entusiasmo entre os jesuítas, principalmente com as aulas de Esfera”, durante o século
XVII
26
. O controle e limitação desses conhecimentos ligavam-se à idéia de restringir as
possibilidades de contestação das doutrinas de S. Tomás e Aristóteles sistematizadas,
como método de ensino jesuítico, no Ratio Studiorum.
21
CHACON, Vamireh. João V, Pombal, o Iluminismo e a Escolástica Progressista. In: O Humanismo
Ibérico: A escolástica progressista e a questão da modernidade. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da
Moeda, 1998, p.30; FILGUEIRAS, Carlos Alberto Lombardi. Bartolomeu de Gusmão um eco da
Revolução Científica no Brasil Colonial. In: GOLDFARB, Ana Maria, MAIA, C. A.(org.). História da
Ciência: o mapa do conhecimento. São Paulo: Expressão e Cultura/ Edusp, 1995, p. 381.
22
GOUVEIA, António Camões. Estratégias de interiorização da disciplina. In: HESPANHA, Antônio
Manuel (coord.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, vol. 4, p. 424.
23
Ibidem, loc. cit.
24
CARVALHO, Rômulo de. História do ensino em Portugal: desde a fundação da nacionalidade ao
fim do Regime de Salazar-Caetano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 350.
25
Ibidem, pp. 343-344.
26
Ibidem, 378-383.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
67
Houve também uma relativa abertura dos jesuítas aos conhecimentos da ciência
moderna, que pode ser relacionada à doutrina do probabilismo”. Iniciado na segunda
metade do século XVI, o probabilismo exerceu uma influência sobre os membros da
Companhia de Jesus e defendia que, nas situações em que se precisasse decidir entre
uma ou outra regra moral, poder-se-ia escolher uma opinião provel mesmo que esta
contrariasse a “estrita doutrina”. Dessa forma, mesmo que a opinião contrária fosse mais
provável, era possível se seguir uma posição menos provável desde que ela também se
mostrasse plausível e contasse com defensores “respeitáveis”
27
. Além das questões
morais, que se ligavam à definição se um comportamento era pecaminoso ou não, o
probabilismo, ao ser aplicado às questões do conhecimento, legava uma certa abertura e
liberdade para se adotarem doutrinas contrárias às previamente estabelecidas. Exemplo
desse comportamento pode ser visto no padre jesuíta Cristóo Bruno que divulgava, no
Colégio de Santo Antão, a teoria heliocêntrica, contestando-a em alguns pontos, por
volta de 1625, muito embora ela fosse contrária à “estrita doutrina” católica no que
tange à Astronomia. Quando o pensamento de Copérnico e Galileu passou a se chocar
mais fortemente com a doutrina católica, entretanto, Bruno teve que adotar uma postura
conciliadora, entre a escolástica e as novas descobertas. Outro exemplo é dado pelo
jesuíta Francisco Soares Lusitano, professor em Coimbra e Évora, que no seu Cursus
Philosophicus, publicado em 1651, defendia a teoria da circulação sanguínea de Harvey,
e afirmava que os médicos deveriam dar maior valor às teorias deste estudioso moderno,
que àquelas do Estagirita”
28
. Assim, o modelo de conhecimento adotado pelos jesuítas
o merece ser simplesmente visto como atrasado, mas, sim, melhor compreendido de
acordo com seus conceitos
29
.
No século XVIII, os jesuítas não se mantiveram alheios ao conhecimento que se
produzia com as novas luzes do século XVIII. Na verdade, estiveram bem nscios
desta produção, mesmo que fosse para contestá-la. Nas primeiras décadas do século
XVIII, as Congregações Gerais da Companhia discutiram o que deveria continuar sendo
seguido no pensamento aristotélico e o que poderia ser modificado. As discussões
pautaram-se principalmente nas questões sicas, posto que envolviam a manutenção ou
o de questões dogmáticas
30
. Sobre a participação de membros da Companhia de Jesus
27
VILLALTA, Luiz Carlos. op. cit., pp. 50-51.
28
FILGUEIRAS, Carlos Alberto Lombardi. op. cit., p. 383.
29
VILLALTA, Luiz Carlos. op. cit., p. 52.
30
WOOLLEY, Patrícia Domingos. Os jesuítas no setecentos europeu: autoridade, ensino e poder. Revista
Cantareira, p. 6. Disponível em
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
68
nas discussões ilustradas, vale ressaltar os inacianos correspondentes nas Philosophical
Transactions da Royal Society de Londres; o Journal de Trévoux (1701-1762),
periódico de jesuítas franceses que praticava uma literatura de vulgarização intelectual,
e chegou a publicar uma sinopse completa do discurso preliminar de D’Alembert na
Encyclopédie; e, neste periódico, pode–se dizer que, entre os filósofos e os jesuítas,
havia muitos interesses comuns no alargamento do mundo intelectual
31
.
No universo português, o padre jesuíta António Cordeiro, que, em 1713-1714,
publicou o Cursus philosophicus conimbicensis, uma “obra de síntese (que) integra o
dito pelos anteriores comentadores, mas introduz afirmações de compromisso com o
mundo do atomismo, lido indiretamente em Descartes e Gassendo através de Fabri”
32
,
foi o primeiro filósofo português a inserir conceitos do cartesianismo em aulas e
escritos; houve também a publicação feita pelo jesuíta Paulo Amaro, em 1752, do
Mercúrio Filosófico, Obra Dirigida aos Filósofos de Portugal e Destinada ao
Estabelecimento da Paz Perfeita entre a Filosofia Antiga e Moderna, que conciliava de
maneira ectica elementos da filosofia aristotélica e da ciência moderna, obra publicada
dentro da polêmica desencadeada pela publicação do Verdadeiro Método de
Estudar
33
. Outra presença dos modernos filósofos entre os jesuítas portugueses é
atestada pelos trabalhos de Bento Feijó, Descartes, Locke e Wolff no inventário da
Universidade de Évora, e o próprio Verdadeiro Método no Cogio dos Jesuítas em
Coimbra
34
.
Na América portuguesa, devido à sua extensão e dificuldades de comunicação
com o Reino, o controle da ortodoxia era menos eficaz
35
. Em meados do século XVIII,
no seminário de Belém, o jesuíta Manuel Maciel ensinava os “melhores descobrimentos
da Física Moderna”
36
. Os jesuítas foram também os anfitriões, no Pará, de La
Condamine, em 1743, em sua expedição científica, mantendo com ele, posteriormente,
contato epistolar
37
.
<http://www.historia.uff.br/cantareira/edic_passadas/v6/os_jesuitas_no_setecentos_europeu.pdf> Acesso
em 25 fev. 2008.
31
BANGERT, William V. História da Companhia de Jesus. apud WOOLLEY, Patrícia Domingos. op.
cit. p. 7.
32
GOUVEIA, António Camões. op. cit., p. 426.
33
WOOLLEY, Patrícia Domingos. op. cit., p. 12.
34
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: Paradoxo do Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1997, p. 13.
35
FILGUEIRAS, Carlos Alberto Lombardi. op. cit., pp. 382-383.
36
LEITE, Serafim. O Curso de Filosofia e Tentativas para se Criar a Universidade do Brasil no Século
XVII. apud FILGUEIRAS, Carlos Alberto Lombardi. op. cit., p. 383.
37
FILGUEIRAS, Carlos Alberto Lombardi. op. cit., p. 383.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
69
Apesar desses casos de abertura jesuítica às novas filosofias das Luzes, a postura
comumente adotada pela ordem foi de defesa do método de ensino tradicional, o Ratio
Studiorum que não sofria uma revisão desde 1599, o que foi acontecer em 1832.
Além das críticas aos métodos e conteúdos, que desconsideravam a empiria e se
baseavam na “autoridade das autoridades”, o ensino jesuítico no século XVIII ainda
tinha “em vista uma finalidade teológica de moldar a sensibilidade religiosa e o estudo
conveniente das disciplinas
38
. Essa postura chocava-se fortemente com a idéia ilustrada
de uma educação voltada para o desenvolvimento de homens e conhecimentos úteis ao
Estado e ao seu progresso, tema que será aprofundado adiante.
Externamente ao ambiente jesuítico, nas primeiras décadas do século XVIII,
alguns autores portugueses, num ecletismo cultural e filofico, conjugaram a
tradicional filosofia escolástica com algumas idéias modernas ou ilustradas. A marca
dos modernos filósofos, ao lado do pensamento tradicional em Portugal, manifestou-se
nas obras Lógica racional, geométrica e analítica (1744), de Manuel Azevedo Fortes,
em que se a defesa do experimentalismo contra a dedução hipotética; e na
Philosophia aristotelica restituta (1748), do oratoriano João Baptista, em que se “tenta
despojar de hipóteses vãs e formais a metafísica das escolas, buscando a sua síntese com
as propostas cartesianas”
39
.
Ilustrados lusos agiram com o intuito de superar o atraso” português, fazendo
críticas a algumas instituições do Antigo Regime, como a nobreza de sangue, e
procurando combater o obscurantismo lusitano. Cabe ressaltar que, assim como na
Itália e na Espanha, pensadores ilustrados em Portugal tiveram que conjugar princípios
científicos e experimentais com os dogmas da fé e filosofia católicas
40
. Mas essa
conjugação foi possível, visto que importantes nomes da ilustração portuguesa
originaram-se justamente de instituições calicas, como os oratorianos Teodoro de
Almeida e Luís António Verney.
Deve-se considerar também que a circulação de obras e idéias ilustradas mais
radicais, ou de autores proibidos pela censura portuguesa, como Voltaire e
Montesquieu, existiu independentemente da menção a essas idéias e autores pelos
pensadores ilustrados portugueses. Em documentos da Inquisição relativos a Brasil e
Portugal, Luiz Carlos Villalta encontrou informações que indicam práticas de leitura de
38
WOOLLEY, Patrícia Domingos. op. cit., p. 14.
39
GOUVEIA, António Camões. op. cit., p. 427.
40
VILLALTA, Luiz Carlos. op. cit., p.137.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
70
obras proibidas. Nessa documentação, há menções a alguns autores das Luzes, ou
mesmo pronunciamentos em que se pode perceber a circulação e a discussão das idéias
ilustradas de tais pensadores, em alguns ambientes e estratos sociais, marcadamente os
ligados ao setor de serviços. Logo, as citadas idéias fizeram-se presentes no universo
setecentista luso-brasileiro e, em alguns casos, como mostra o autor, através do
depoimento de denunciados à Inquisição, a circulão de iias ilustradas radicais
existiu independentemente da posse e leitura das obras proibidas
41
.
A querela entre os Antigos e os Modernos manifestou-se durante o setecentos
português como um embate entre o antigo escolasticismo e as iias modernas dos
séculos XVII e XVIII, assimiladas num ambiente católico. Entre os modernos, coube
destaque aos oratorianos. O Padre Teodoro de Almeida, da Congregação do Oratório,
iniciou, em 1751, a publicação de uma importante obra de divulgação de idéias
modernas, no contexto da Ilustração portuguesa: a Recreação Filosófica, ou diálogo
sobre a filosofia natural para instrução de pessoas curiosas, que não frequentaram as
aulas. Os dez volumes desta obra foram completados em 1800. Esta “enciclopédia” de
Teodoro de Almeida tratava de “assuntos tão diversos como a gravidade e o peso dos
corpos, o movimento, a luz, o fogo, o ar, a água, a anatomia humana, os brutos, os
planetas, os astros ou o globo terrestre entre outros”
42
. No conflito entre as novas e
antigas visões de mundo, essa obra colocava-se a favor de uma modernidade cultural
contra o estado vigente, o que significava superar uma “mundividência
irremediavelmente ultrapassada pelo curso das novas iias, particularmente na esfera
que hoje diríamos científico-filosófica”
43
.
Além da Recreação Filosófica, o papel dos oratorianos na divulgação dos novos
princípios contou também com demonstrações públicas da “filosofia experimental”: as
pessoas iam assistir à demonstração e descrição de algum fenômeno natural à luz da
nova filosofia. Essa proposta representava uma popularização dos novos
conhecimentos, dando uma visão não-escolástica do mundo àqueles que não estudaram,
ou não conheciam latim, ou mesmo, haviam estudado com os jesuítas. E em 1758, ao
41
Cf. VILLALTA, Luiz Carlos. Romances e leituras proibidas no mundo luso-brasileiro (1740 1802).
In: ABREU, Márcia (org.). Trajetórias do romance: circulação, leitura e escrita nos séculos XVIII e XIX.
Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 2008.
42
DOMINGUES, Francisco Contente. Um Projecto Enciclopédico e Pedagógico: A Recreação Filosófica
de Teodoro de Almeida. Revista de História da Idéias, Coimbra, v.10, p. 235-248, 1988, p. 239.
43
Ibidem, p. 240. Uma alise comparativa entre o pensamento de Teodoro de Almeida e as Luzes
européias, especialmente o pensamento de Voltaire, encontra-se em: VIEIRA, Diogo Lúcio Pereira.
Cândido, ou o Otimismo, de Voltaire e Recreação Filosófica, de Teodoro de Almeida: romance e ciência
em Portugal do século XVII. In: ABREU, Márcia (org.). op. cit.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
71
publicar a terceira edição do tomo I de sua Recreação, Teodoro assim se manifestou
quanto à renovação cultural em Portugal:
nunca em Portugal se vio tão bem estabelecida, e radicada a sã Filozofia, como no
tempo presente... não anda escondida, solitaria, e perseguida, mas aparece em
publico, com tanto sequito, e tão pompozo acompanhamento, que mais me parece
que triunfa, do que peleja. Vejo tentar uma e outra ves as experiencias, vejo
manejar as Maquinas com cuidado, vejo consultar as importantes leis da
Mecanica, vejo enfim formar calculos matemáticos;... agora no descobrimento
da verdade escondida, não se fia o entendimento da lús da razão, procura á
forsa de repetidos golpes de experiencias, tirar dentro da mesma natureza uma
nova lús que o alumeie, para caminhar seguro
44
.
Como se vê, Teodoro de Almeida menciona uma época de “sã Filozofiacujos
fundamentos seriam o uso da razão e das experiências, o recurso às máquinas e as
contribuições das ciências matemáticas e naturais –, única na história portuguesa, do
que se deduz que, antes disso, havia o atraso. As iias de atraso e de obscurantismo
português foram, com efeito, bastante utilizadas pelos ilustrados lusitanos no século
XVIII, até como forma de mobilizar ações do Estado em prol de mudanças, possuindo,
portanto, um caráter estratégico, mais do que de diagnóstico. Pode-se discernir um traço
fundamental nas propostas de reformas elaboradas pelos ilustrados portugueses: tornar a
prática potica, o ensino, a cultura, a economia e, até mesmo, os costumes, mais úteis
ao Estado português e, por conseqüência, a toda sociedade.
2.1 Ilustração portuguesa e conformação do ideário pombalino: Verney, Ribeiro
Sanches e D. Luís da Cunha
No reinado de D. José I tem início em Portugal os governos do chamado
Reformismo Ilustrado, denominação que se estende aos dois reinados posteriores, o de
D. Maria e de D. João VI. Entretanto, como se viu acima, as discussões de iias
ilustradas em terras lusitanas tiveram lugar na primeira metade do século XVIII.
Pretende-se, agora, avaliar as obras de três ilustrados portugueses cujos pensamentos
mostram consonância com algumas práticas e idéias que foram desenvolvidas no
período pombalino.
A avaliação das obras de Verney, Ribeiro Sanches e D. Luís da Cunha não tem o
objetivo de identificar o nascimentoou onde” o ministro Carvalho e Melo e seus
demais colaboradores foram buscar suas idéias. Na verdade, a idéia é apresentar um
44
Teodoro de Almeida. Recreação Filosofica. apud DOMINGUES, Francisco Contente. op. cit., pp. 243-
244.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
72
pouco por onde passavam as discussões poticas e históricas da Ilustração portuguesa
no momento de ascensão de D. José ao trono português. Outros nomes poderiam ser
listados na construção desse ambiente, como o citado padre Teodoro de Almeida,
Alexandre de Gusmão, Francisco Xavier de Oliveira (Cavaleiro de Oliveira), Jacob de
Castro Sarmento, D. Francisco Xavier de Meneses (IV Conde da Ericeira), dentre
outros. Do grupo desses homens fizeram parte o próprio Sebastião José de Carvalho e
Melo e outros que ascenderam ao poder junto com ele. Discutiu-se acerca da política
portuguesa, sua situação perante a Europa e o enquadramento na nova realidade.
Discussões que influenciaram no Reformismo Ilustrado pombalino. Entretanto, o
pombalismo formou-se também de acordo com as lutas e situações específicas com as
quais se encontrou, como diz Silva Dias,
teoricamente, o absolutismo não foi igual a si mesmo do princípio ao fim do
pombalismo. E, por outro lado, não nasceu feito. Fez-se aos poucos, de acordo
com o apelo das lutas concretas em que sucessivamente se envolveu. Em vão se
tentaria descobrir nele também o decalque de idéias criadas além fronteiras o
que não significa que as tivesse desconhecido ou desaproveitado. Significa,
todavia, que possui uma identidade cultural bastante definida, sobretudo colada à
problemática do País naquele momento
45
.
Os tratados pedagógicos foram um dos principais meios de manifestação e da
crítica exercida pelo pensamento ilustrado no Portugal setecentista, destacando-se entre
eles os Apontamentos para a educação de hum menino nobre (1734), de Martinho de
Mendonça, o Verdadeiro Método de Estudar (1746), de Luís Antônio Verney, e as
Cartas sobre a Educação da Mocidade (1760), de Antônio Nunes Ribeiro Sanches.
Nessas três obras, é possível verificar alguns temas fundamentais da ilustração lusa e
que lhe dão especificidade: a condenação do ensino vigente, exercido principalmente
pelos jesuítas e a necessidade do incremento dos novos saberes que se desenvolviam em
outros países europeus, como forma de se adequar Portugal à nova realidade do Século
das Luzes. Conjugavam idéias ilustradas com o pensamento religioso e monárquico, ou
seja, absorvendo as idéias mais úteis à Coroa e à sociedade lusa, tirando a última de seu
atraso”, mas sem romper com as bases fundamentais do poder no Antigo Regime. E,
um último ponto, criticava-se como ignorância e superstição a valorização da nobreza
hereditária, quando esta não possuísse valor ou mérito para tal reconhecimento.
45
DIAS, José Sebastião da Silva. Pombalismo e Teoria Política. apud FRANCO, José Eduardo. Quem
influenciou o Marqs de Pombal? Ideólogos, idéias, mitos e a utopia da Europa do Progresso.
Disponível em <http://www.realgabinete.com.br/coloquio/3_coloquio_outubro/paginas/12.htm> Acesso
em 11 jun. 2007, s.p.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
73
Com essas críticas e propostas, longe de se romper com a sociedade nobiliárquica
e estamental, pretendia-se que os nobres se destacassem frente ao vulgo por seus
conhecimentos e por sua utilidade à Coroa e à sociedade. Para tanto, seria necessário um
novo ensino, inclusive com colégios específicos para nobres, como o proposto por
Ribeiro Sanches, pois tais nobres deveriam exercer, por sua qualidade, os principais
cargos da monarquia. Concluindo, então, percebe-se, nos escritos mencionados, a
proposta de se manter a ordem social do Antigo Regime, “ilustrandoalgumas de suas
práticas poticas e mesmo alguns dos membros do corpo social.
Apesar de não constituírem textos do gênero historiográfico, os tratados
pedagógicos de Ribeiro Sanches e Verney possuem uma visão de história bem afeita ao
pensamento ilustrado, considerando a história como uma linha, do progresso do
conhecimento, do esclarecimento, da superação dos preconceitos, da ignorância e dos
erros do passado, tudo sendo superado pela razão
46
. É significativo, nesse sentido, que
as principais obras do pensamento ilustrado português tenham se dedicado ao tema da
educação, pois isso é um sinal da crença no progresso e no aperfeiçoamento humano no
tempo, concebendo-se a educação como a maneira de se espalhar a razão, as luzes, num
processo de esclarecimento contínuo.
Luís António Verney formou-se em Portugal, estudando inicialmente com os
jesuítas, mas seguiu o caminho da Congregação do Oratório. Foi estabelecer-se na Itália
aos 23 anos, onde passou a maior parte de sua vida. De lá, manteve intensa
correspondência com um círculo pequeno de portugueses, principalmente seu irmão e
uns poucos membros da administração real, dentre eles o próprio Pombal, mas
principalmente Francisco de Almada e Mendonça, ministro português junto à Cúria
Romana, primo de Cavalho e Melo, e principal articulador da extinção dos jesuítas
47
.
46
GAY, Peter. The Enlightenment: an interpretation. The rise of Modern Paganism. New York; London:
W. W. Norton & Company, 1995; e ARAÚJO, Ana Cristina. A Cultura das Luzes em Portugal. Lisboa:
Livros Horizontes, 2003.
47
MONCADA, L. Cabral de. Um “iluminista” português do século XVIII: Ls António Verney. In:
Estudos de história do direito. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis, 1950, vol. 3, p. 12. A obra de
Verney foi saudada na Dedução Cronológica e Analítica, como sendo um “judicioso livro”, fruto do
trabalho de um autor que conhecia a nação portuguesa e que escrevia baseado nos bons conhecimentos
que se desenvolviam em outras nações e sob autorização de Roma, de onde escrevia. Verney não é
nomeado no comentário feito ao Verdadeiro Método de Estudar, mas é descrito como alguém que se
preocupava em iluminar os estudos portugueses, apontando os melhores métodos que se praticavam na
Europa e os males que do “método jesuítico causava às letras e conhecimentos portugueses. A Dedução
comenta também a polêmica causada pelo lançamento do Método de Verney em Portugal. Afirma que
diante da exposição e clara fundamentação dos males que o ensino jesuítico causava a Portugal, os
inacianos tentaram refutar os argumentos de Verney, acusando-o de herético e propondo uma nova
reforma em Coimbra, como forma de se evitar o iminente fim de seu domínio sobre as mentes
portuguesas, que, durante o reinado de D. João V, tomavam consciência das trevas que lhes eram
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
74
Verney declarava ter recebido uma incumbência expressa de D. João V de fazer
progredir os estudos em Portugal, de iluminar a nação, missão na qual, já velho, afirmou
ter falhado: “Deus não quis que eu iluminasse a nossa Nação e eu me conformo com a
sua vontade”
48
, conforme epígrafe deste capítulo.
Em suas correspondências com Almada e Mendonça, constata-se a sua intensa
participação na discussão de idéias e na proposição de reformas durante o consulado
pombalino. Nelas, Verney defendia profundas mudanças na cultura e na potica
portuguesa para que a nação se iluminasse. Além da decadência educacional, que
atribuía às formas escolásticas de ensino e ao papel dos jesuítas, ele criticava o
fanatismo da Inquisição e a formação intelectual do clero, as determinações poticas
de Roma em assuntos temporais de Portugal (que lhe retiravam riquezas e impediam os
progressos), o excesso de rendas destinadas às instituições eclesiásticas e as distinções
entre cristãos-novos e velhos (que também sangravam recursos do Reino). Por fim,
lamentava o estado sofrível da instria e do comércio
49
.
No que se refere à potica, Verney demonstrava total horror ao despotismo
absolutista, defendendo uma educação especial para o príncipe como forma de fazê-lo
conceber que o cargo que ocupava era para o bem público. Totalmente dentro da crença
ilustrada, Verney acreditava que a boa razão seria capaz de formar bons príncipes, que a
difundiriam por suas nações. Defendia um maior controle real sobre os bens e rendas
dos eclesiásticos, bem como a intervenção direta do poder secular na educação, dado
que ela seria fundamental para o bem da nação e o poderia ficar a critério de
religiosos. E, dentro de um espírito regalista, propunha um Conselho de Estado para
avaliar a concessão ou não do beneplácito régio
50
. Como diria Moncada, defendia-se um
despotismo inteligente”
51
.
Nessas idéias e propostas, percebe-se muito do que Pombal implementou ou
mesmo intentou implementar. Havia também a forte influência da ilustração italiana,
principalmente de Antonio Genovese e Muratori, com quem Verney teve larga
imputadas pela ação da Companhia de Jesus em terras lusitanas. SYLVA, José de Seabra da. op. cit., pp.
496-499.
48
MONCADA, L. Cabral de. op. cit., p. 21.
49
Ibidem, pp. 23-24.
50
Ibidem, pp. 48, 59, 101-106, 118-119 e 122-123.
51
Ibidem, p. 60.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
75
correspondência
52
. Assim como em Portugal, a Ilustração na Itália se desenvolveu
bastante em meios católicos e foi lá que Verney produziu grande parte de suas obras.
Em sua principal obra, o Verdadeiro Método de Estudar, talvez a mais comentada
da Ilustração lusa, Verney escreve em estilo epistolar, e apresenta suas cartas “Aos
Reverendíssimos Padres Mestres, da Venerável Religiam da Companhia de Jezus. No
Reino, e Domínio de Portugal”. De forma extremamente inica, faz um longuíssimo
elogio à Companhia e sua atuação em Portugal:
Quem tem dado mais, e mais ilustres escritores a este Reino, que a Companhia?
Quem tem promovido com mais empenho os estudos, que os seus mestres? Onde
florecem as letras com mais vigor, que nos seus Colegios? Que omen douto tem
avido em Portugal, que nam bebèse os primeiros elementos, nas escolas desa
Religiam?
53
.
Continua nesse tom por toda a dedicatória, ressaltando todos aqueles feitos que
são tidos pelos próprios jesuítas como de grande mérito de sua ordem em Portugal.
Ainda na dedicatória, Verney faz outra ironia importante, que toca ao caráter
ultramontano dos jesuítas, a ligação direta com Roma e sua desconsideração das ordens
e necessidades nacionais:
Nem quero trazer à memória, o que esa sua Religiam tem feito, e faz, nas mais
partes da Europa Catolica. Deixo de parte, a inviolavel uniam que sempre teve,
com a Sé Apostolica: e as perseguisoens, e censuras criticas, que tem sofrido por
esa cauza. Nem menos falo na gloria, que rezulta à Companhia, de ver que tantas
Religioens, e Congregasoens, que se-fundaram despois dela, todas a-tem tomado
por treslado: (...) Este é um milagre continuo daquele bemaventurado espirito, que
la no-Ceo essermpre pedindo a Deus, pola propagasam, e aumento da Religiam
que ca deixou: unir tantas vontades, para imitarem uma Religiam, que nam conta
longa serie de seculos, mas que é a mais moderna entre as famozas
54
.
A estreita ligação entre os seguidores de Santo Inácio e os monarcas portugueses é
também objeto da ironia de Verney:
Os mesmos Monarcas de Portugal, que sabem justamente estimar a Virtude; nam
costumam intregar, a diresam da sua conciencia, senam aos Religiozos da
Companhia. Desde que VV. RR. intráram neses Reinos, conspiráram todos eses
Soberanos a reconhecèlos, como prudentisimos diretores, da conciencia dos
omens: e por iso os-elegèram, para seus Confesores. Os Principes, a Caza Real, os
Grandes, a maior parte dos omens de letras, e empregos, todos praticam o mesmo.
52
Ibidem, pp. 18-19. Moncada publica nesta obra uma coletânea de cartas entre Verney e Muratori, e de
Verney para Almada e Mendonça e para os padres da Congregação do Oratório.
53
VERDADEIRO Método de Estudar, para ser util à Republica, e à Igreja: PROPORCIONADO Ao
estilo, e necessidade de Portugal. Valensa, na Oficina de Antonio Balle, 1746, Tomo Primeiro, s.p. (A
primeira edição da obra não apresentava o nome de Luís António Verney como autor, que era “Exposto
em varias cartas, escritas pelo R.P. *** Barbadinho da Congregasam de Italia”. Foi consultada uma
versão digitalizada da obra, dispovel no site da Biblioteca Nacional de Portugal –
www.bn.pt ).
54
Idem, s.p.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
76
Nam é posivel que se-inganem tantos omens, de diferentes gerarchias, e de
incontrados intereses, sem que os-obrigue a experiencia, e a verdade
55
.
O conteúdo da apreciação do estado e métodos de ensino utilizados em Portugal,
exposto nas dezesseis cartas que comem o Verdadeiro Método de Estudar, perde
totalmente esse caráter de louvor e, por isso mesmo, provocou várias reações, vindas
dos jesuítas, sempre defendendo os seus métodos e dogmas: o Ratio Studiorum era uma
herança a ser preservada, alterá-lo seria uma decadência. Mais uma vez, manifestava-se
o ultramontanismo jesuítico: uma mudança nos seus métodos não poderia advir de
interesses nacionais, apenas de suas diretrizes romanas
56
.
Verney não desenvolveu propriamente uma teoria potica em seus escritos, mas
de forma esparsa é possível perceber suas concepções políticas, como ao tratar da
nobreza na carta sobre a “Ética”:
Os Omens nacèram todos livres, e todos sam igualmente nobres. O direito das-
Gentes introduzio, com as divizoens, as Republicas, e Monarchias: mostrando a
experiencia, que, nam se-obedecendo a alguem, confundia-se toda a sociedade
umana: e mostrando tambem a boa razam, que, no-estado em que natureza umana
se-acha, nam se-pode conservar, sem obedecer a alguem. O emprego foi cauza,
que se-estimasem aqueles primeiros reinantes, porque dependiam todos deles.
Com o tempo, pasou com titulo de eransa, o que tinha sido eleisam: Mas muitas
Republicas, e talvez as mais famozas, conserváram o governo eletivo. Estes
Principes buscáram entre os cidadoens, os melhores, e mais virtuozos omens,
paraque lhe-asistisem, e de que se-servisem na guerra, e na paz. Estes foram mais
considerados, que os outros cidadoens: e este é o principio de toda a nobreza
57
.
Analisando essa passagem, Moncada percebe um princípio potico ilustrado, o da
identificação da lei natural com a boa razão
58
. Além disso, Moncada também como
ilustrada a noção de que os homens, iguais “ao nascerem”, necessitam de uma
autoridade para governá-los e os conservarem. Entretanto, como se viu no Capítulo 1,
essa concepção pode ter uma origem neo-tomista. Cumpre lembrar que Verney conhecia
tanto autores do contratualismo moderno, como Hobbes e Locke, quanto aqueles da
Segunda Escostica.
Concluindo sua análise sobre a nobreza, Verney argumenta que alguns príncipes,
o podendo beneficiar os homens virtuosos que os serviram, acabaram transferindo os
prêmios para seus filhos, sendo que esses, em respeito à memória e admiração
alcançada por seus pais, também se esforçavam para adquirem as mesmas virtudes.
Entretanto, defende que é um erro considerar que as virtudes se transmitam pelo sangue:
55
Idem, s.p.
56
WOOLLEY, Patrícia Domingos. op. cit., p. 14.
57
VERDADEIRO Método de Estudar, Tomo Segundo, pp. 67-68.
58
MONCADA, L. Cabral de. op. cit., pp. 52-53.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
77
o ser filho de um omen ilustre, nam é o mesmo que ser ilustre”
59
. O Barbadinho
mostra, com vários exemplos históricos, como a virtude muitas vezes tem origem em
camadas mais simples da sociedade.
Ao criticar as categorias do pensamento filosófico peripatético, como o silogismo,
Verney associa-o à ignorância, tomando esse pensamento como pouco lógico e nada
empírico e, logo, como um obstáculo ao desenvolvimento das ciências. Se os séculos
passados teriam sido tempos de barbárie, o seu século XVIII seria um momento de
superação do olhar humano sobre a realidade:
Os séculos do-silogismo foram os mais barbaros, e ignorantes. Ele comesou
no-Ocidente no-IX. seculo: aumentou-se com muito mais exceso no-XI. e durou
até o meio do-XVI. E que coiza boa acha V.P. neses tempos? Pelo contrario,
desde o principio do-XVII em que o silogismo se-comesou a deixar, e se-
procurou outro metodo; o aumento é tam sensivel, que seria loucura mostrálo:
muito mais neste ultimo seculo, em que os olhos estam mais abertos
60
.
Há, no excerto acima, a iia de um passado de obscuridade, mais distante, e de
outro, mais próximo do presente, de esclarecimento. Entretanto, para Verney, Portugal
o tinha participado desse esclarecimento. No país, mantinham-se as práticas e iias
do barbarismo” peripatético. Isso se manifestaria em todas as áreas de produção do
conhecimento e das artes. Um exemplo seria a produção poética, em que portugueses e
espanhóis preocupar-se-iam mais com ridicularias métricas”, em se copiar cegamente
os autores antigos e em escrever com um estilo pomposo, sem que nessas obras se
reconhecessem “vestígios de bom juízo”, sendo, então, inúteis. O gongorismo na poesia
era, para Verney, uma manifestação da ignorância desterrada dos países cultos da
Europa, mas que permaneceria nos países ibéricos:
Deste principio naceram, aquelas ridiculas compozisoens, que tanto reináram, no-
seculo da ignorancia, digo no-fim do-seculo XVI. de Cristo, e metade do-XVII. E
desterradas dos-paizes mais cultos, ainda oje se-conservam em Portugal, e nas
mais Espanhas. Os omens daqueles seculos ignorantes, nam observáram no
Antigos o bom, mas o mao. Viram, que neles se-achavam vestigios, de um mao
ingenho; e ese foi o que abrasáram: de-sorteque ainda oje tem os doutos grande
trabalho, em desterrar isto, da-mente dos-omens
61
.
A compreensão ilustrada da história em Verney também é patente na crítica que é
feita à obra de Antônio Vieira. Tendo produzido sua obra no século XVII, Vieira
possuiria “o estilo corruto do-seu seculo”, estilo que se manifestaria em toda a obra do
missionário jesuíta:
59
VERDADEIRO Método de Estudar, Tomo Segundo, p. 68.
60
Ibidem, Tomo Primeiro, p. 306.
61
Ibidem, Tomo Primeiro, pp. 19-20.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
78
Quanto aos sermoens, e orasoens, deixou-se arrebatar, do-estilo do-seu tempo; e
talvez foi aquele que com seu exemplo, deu materia a tanta sutileza, que sam as
que destruem a Eloquencia. Nos-seus sermoens, nam acha V. P. artificio algum
retorico, nem uma Eloquencia que persuada. Muitos, que gostam daquelas
galantarias, lendo-o sairám divertidos; mas nenhum omen de juizo exato, sairá
persuadido delas
62
.
A grande fama tida por Vieira só existiria porque os homens, principalmente
portugueses foram Criados com o prejuizo, de que o Vieira foi, um grande Orador; e
ouvindo sempre repetir isto aos velhos, que bebèram aquela doutrina; nam é maravilha,
que digam tantas coizas dele, e que o-imitem tam cegamente”
63
. No comentário feito à
Clavis Prophetarum está contida a crítica ilustrada ao providencialismo na história e
que foi posteriormente empreendida em escritos pombalinos. Deixe-se que Verney fale:
Mas nam poso deixar de insinuar, que a maior prova do-que proponho, é a sua
decantada obra, Clavis Prophetarum: de que nos-dá uma ideia, no-livro que
intitula, Istoria do-Futuro. Neste livro acha V.P., uma chimera mui bem ideada, e
que a ninguem mais cocorreo. Promete provar primeiro, que á-de aver no-mundo,
um novo Imperio: mostrar, que Imperio á-de ser: determinar, as suas grandezas e
felicidades: explicar, por-que meios se-de introduzir: individuar, em que terra,
em que tempo, e em que pesoa á-de comesar este Imperio; o qual á-de ser tam
grande como todo o mundo, sem iperbole, sem sinedoche. Prova isto, segundo
diz, com uma profecia de S. Frei Gil: com o juramento d’El-Rei D. Afonso: e
com outras provas deste calibre. Diz tambem, que a maior parte, á-de sair da-
Escritura; na qual estam reveladas, todas estas coizas. Quanto ao Imperador,
ainda que claramente o-nam-explica, muito bem a intender, que sairá de
Portugal; porque aos Portugueses é que propoem, estas felicidades. Alem disto
em outra parte declara mui bem, que este Imperador será o filho promogenito, do-
Serenisimo Rei D. Pedro II e pretende proválo com os mesmo fundamentos, com
que prova o Imperio, na Istoria do-Futuro. E nas cartas que escreve, a algumas
pesoas, lhe-explica, que as felicidades de Portugal, estam muito vizinhas.
Eu nam entro aqui a disputar, se estes fundamentos, (nam falo das-
Escrituras, pois é loucura persuadir-se, que falam em tal materia) sejam bastantes,
para afirmar tal paradoxo: é bem claro, que isto tem aparencias de comedia; e
bem parece obra feita, para divertir o tempo. Mas aindaque fose verdade, que as
conquistas feitas, estivesem tam distintamente profetizadas, na Sagrada escritura;
e despois do-suceso se intendesem; fica em pé a dificuldade, de tirar da-Escritura,
as conquistas futuras, deste novo Imperador. E quanto aos expozitores que ele
aponta, e às profecias destes modernos, em que se-funda; creio nam faremos
injuria ao P. Vieira, se nos-rirmos de todas estas provas, esperando, que as
procure mais fundadas. Mas o que digo a V.P. é, que na dispozisam deste livro
preambulo, se-ve o estilo do-P. Antonio Vieira: porque tudo prova com a
Escritura. Ainda as coizas mais triviais, as profanas, e a mesma justisima
exaltasam de D. Joam IV ele as-quer provar aos Espanhoes, com as Escrituras
(...).
E eu creio que nam sam mui toleraveis, as que ele aqui escreve:
observando-se suma contrariedade, na interpretasam que dá, aos seus mesmos
fundamentos. Umas vezes, a decimasexta gerasam, é o Cardial Rei D. Enrique: e
ainda lhe faz a merce, de nam contar a vida d’El-Rei D. Alfonso I. que cuido
62
Ibidem, Tomo Primeiro, p. 206.
63
Ibidem, Tomo Primeiro, p. 209.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
79
devia ser o primeiro, no-catalogo. Outras vezes, a decima-sexta gerasam é D.
Joam IV.; e D. Pedro II. é a prole atenuada: e como ao dito Rei nam se-pode
aplicar, a palavra atenuada; procura aplicá-la a seu filho, o Principe entam
nacido. Eisque morre o tal Principe ainda menino: Neste cazo o noso interprete
excogita a saida, de lhe-ir dar no-Ceo, a investidura do-Imperio: e comesa com
outra metafizica pior, que a primeira. Finalmente despois de muitas observasoens,
fica desmentida a verdade, do-juramento d’El-Rei D. Alfonso: e o Imperio do-
mundo, que tam claramente estava profetizado, e prometido ao tal Principe, lá vai
polos ares: e nem menos á aparencia, que se-torne outra vez a restablecer: pois
do-tempo em que ele escrevia até este, vam bons 80. anos; e ainda nam vemos
aparencias diso
64
.
A História do Futuro é tida como mais uma manifestação do “século da
ignorância”. Ela se apega em provas “não fundadas”, como profetas modernos; atribui
às Sagradas Escrituras eventos e sentidos que não são dela, como o Império português e
a própria aclamação de D. João IV, que é “profana”, “trivial”, e “justissima”, ou seja, é
um evento político que deve se provar pela justiça e por argumentos humanos, sem se
recorrer à metasica. Além do mais, a experiência histórica mostrou que todas as
certezas profetizadas não passaram de “chimeras”. A história, para a Ilustração, o se
faz de quimeras, sim de ações. Daquelas ações que levam ao progresso cultural e
técnico, ao esclarecimento da sociedade, algo que, para os homens das Luzes, era
bastante palpável e não constituiria mais uma metafísica.
Outro ilustrado importante foi o médico português Antônio Nunes Ribeiro
Sanches. Ele tinha origem judaica e foi bastante reconhecido em seu tempo. Foi aluno
de Boerhaave; médico militar na Rússia, recomendado pelo próprio Boerhaave à
czarina; e colaborou com um artigo para a Enciclopédie, após ter se fixado como
dico em Paris
65
. Assim como Verney, passou grande parte de sua vida longe da terra
natal, mas sempre se preocupou com os rumos de Portugal no século XVIII, tendo
colaborado ativamente nas reformas do período pombalino.
As Cartas sobre a educação da mocidade foram publicadas durante o governo de
D. José I e escritas, segundo o próprio autor, sob a inspiração do alvará régio que abolia
os colégios jesuítas em Portugal (1759). Tal medida, para Ribeiro Sanches, era o sinal
de importante reforma que se esperava de um Estado naquele tempo. Para esse autor, a
educação da mocidade nobre era voltada, entre outras coisas, para o manejo de armas e
64
Ibidem, Tomo Primeiro, pp. 206-208.
65
FALCON, Francisco JoCalazans. A época pombalina (política econômica e monarquia ilustrada).
São Paulo: Ática, 1982, p. 347; FRANCO, José Eduardo. Quem influenciou o Marquês de Pombal? op.
cit., s.p.
Disponível em <http://www.realgabinete.com.br/coloquio/3_coloquio_outubro/paginas/12.htm> Acesso
em 11 jun. 2007, s.p.; CARDOZO, Manoel. op. cit., pp. 174-176.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
80
táticas de guerras. Isso teria sido bastante útil enquanto o Estado português conquistava
novas terras. Entretanto, vivia-se já num outro momento, em que o diferente contexto
europeu, a cessação das guerras de conquistas e o desenvolvimento do comércio e da
indústria faziam com que o Estado tivesse necessidade de homens com outros
conhecimentos, não apenas saberes bélicos, que não tinham utilidade em tempos de paz.
Por isso, aprovava a reforma educacional que se processava em Portugal e explicitava as
novas necessidades do reino:
Aquelle benegnissimo Alvará nos a conhecer que a Educaçaõ da Mocidade,
como deve ser, he o mais effectivo e o mais necessario. Porque S. Magestade, que
Deos guarde com alta providencia, considera que lhe saõ necessarios Capitaens
para a defensa; Conselheyros doutos e experimentados; como taõbem Juizes,
Justiças, e Administradores das rendas Reais; e mais que tudo na situação em que
está hoje a Europa, Embayxadores, e Ministros publicos, que conservem a
harmonia de que necessitaõ os seus Estados; esta Educaçaõ naõ seria completa se
ficasse somente dedicada á Mocidade Nobre; Sua Magestade tendo ordenado as
Escolas publicas, nas Cabeças das Comarcas, quer que nellas se instruaõ aquelles
que haõ de ser Mercadores, Directores das Fabricas, Architectos de Mar e terra, e
que se introduzaõ as Artes e Sciencias
66
.
O papel que os nobres tiveram nas conquistas portuguesas fez com que tivessem
alguns privilégios políticos frente aos interesses da Coroa, interesses que deveriam ser
os de toda a sociedade – e não de apenas uma parcela. Os privilégios dos nobres ficaram
arraigados nos costumes portugueses e deveriam ser extirpados, pois a única fonte de
poder numa república era o soberano, que deteria o poder civil com o consentimento
dos povos e o juramento de fidelidade:
A forma, união, o vínculo do Estado civil e político, e o seu principal fundamento
he aquelle consentimento dos Povos a obedecer e servir com as suas pessoas e
bens ao Soberano; ou que este consentimento seja reciproco, ou que seja tacito ou
declarado, sempre forma hum Estado, ou Monarchico, ou Republicano.
Mas o que constitue ser o Estado hum ajuntamento, ou corpo civil e
sagrado, he o juramento de fidelidade mutuo entre o Soberano e os Subditos,
tacita ou declaradamente. No acto desta convençaõ invocaõ os contractantes deste
pacto ou contracto, a Divindade que mais venerpor testemunha e cauçam, que
hão de executar o que prometem; sujeitandose ao premio ou ao castigo, conforme
o comprirem
67
.
A partir dessa teoria da origem do poder, Ribeiro Sanches invalidava as outras
instâncias de poder do Estado: a nobreza e a Igreja. Quanto à nobreza, era do soberano a
competência única e exclusiva de distinguir aqueles membros dos povos que
exercessem algumas funções especiais, distinguindo-se no seu exercício. E eles o
66
SANCHES, António Nunes Ribeiro. Cartas sobre a Educação da Mocidade. Coimbra: Imprensa
Universitária, 1922, p.3.
67
Ibidem, p. 17-18.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
81
faziam concedendo o estatuto de nobre ou fidalgo a esses homens que se destacassem.
Assim, não se poderia inferir nenhum poder potico especial pelo fato de algum dia ter
merecido uma graça real, ou mesmo que essa graça devesse ser perene ou hereditária.
Todos os súditos que pactuavam o fariam em condição de igualdade e Sanches
considerava “que a conservaçaõ do Estado civil he a primeira e a principal ley”
68
, que,
para ser exercida, o soberano não pode ser ver limitado pelo poder de nenhum súdito.
No que se refere à Igreja, Sanches defendia que, desde o início, as “divindades”
foram testemunha e caução do contrato entre povos e soberano, jamais o seu
fundamento. Os homens utilizaram essa “testemunha” para dar um caráter sagrado a seu
ato de instituição potica, e não ficarem à mercê de uma “quebra de contrato” repentina.
Mas disso não se poderia extrair nenhum poder civil para as instituições religiosas,
que o fundamento do poder do soberano era o juramento de fidelidade e não a
testemunha do juramento.
Nas monarquias cristãs, houve, historicamente, uma deturpação das jurisdições
civil e eclesiástica, ocorrendo a união entre Estado e Igreja, o que constituía, para
Ribeiro Sanches, uma “monarquia gótica”. A monarquia tica seria uma corrupção não
dos princípios de instituição da sociedade civil como da própria Igreja cristã, cujos
domínios se restringiriam às “consciências” e acçoens mentais”, cabendo-lhe ensinar o
Evangelho e aplicar os sacramentos, sem, porém, imiscuir-se nas acçoens exteriores”,
campo de competência da jurisdição civil:
He certissimo que a Igreja fundada por Christo, e os seos Apostolos tem
jurisdiçaõ sobre as consciencias, sobre todas as acçõens mentais, do mesmo modo
que a jurisdiçaõ civil tem todo o poder sobre todas as acçoens exteriores
humanas. Esta sagrada jurisdiçaõ deu Christo aos seos Apostolos, dizendo-lhes:
Andai e ensinai todas as Naçoens, e tambem as bautizareis en nome do Padre, do
Filho e do Espirito Santo, ensinando a observar tudo o que vos ordenei. Vê-se
claramente que toda a jurisdiçaõ que Christo deu á sua Igreja, se reduz a ensinar
os preceitos do seu Evangelho, e a administrar os Sacramentos, incluindose todos
na base delles, que he o bautismo
69
.
Aplicando sua teoria política à história portuguesa, Ribeiro Sanches fez uma
manobra intelectual típica do contratualismo moderno. Os princípios bons e corretos da
política não deveriam advir da história, da empiria, pois esta se mostraria irracional e
contingencial, o podendo, pois, ser o critério para se agir politicamente, dado que as
68
Ibidem, p. 20.
69
Ibidem, pp. 27-28. (Itálico no original).
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
82
condições o se repetiriam
70
. O recurso à história serviria, como faz Ribeiro Sanches,
para mostrar os erros, deturpações e injustiças perpetradas por não se ter agido de
acordo com a razão, e demonstrar as conseqüências poticas que se tiram dessas
concepções errôneas. Sanches, a exemplo de Locke, subordinava a história à razão
71
, ou
seja, aplicava seus princípios racionalmente deduzidos a momentos da história, no caso,
a portuguesa, e via a sua teoria do contrato com juramento de fidelidade ocorrendo em
momentos fundamentais da história lusa:
Quando os Portuguezes no campo de Ourique acclamaraõ Dom Affonso Henriques por
seu Rey; quando em Coimbra acclamaraõ o Mestre de Avis por Rey de Portugal, tácita
ou declaradamente, lhes deraõ todos Juramento de Fidelidade, invocando o Summo
Deos como testemunho e caução que lhes obedeceriaõ e serviricom suas pessoas e
bens, com tanto que estes Reis os governassem e defendessem, e que vivessem mais
felizes, que no Estado precedente
72
.
Embora Sanches não tocasse explicitamente no assunto, pode-se concluir sua
discordância em relação à fundação sagrada e providencial do reino português no campo
de Ourique desta, afinal, seria possível inferir uma importância potica secular da
Igreja e a missão sagrada do Estado português de ser um defensor da fé cristã. Na
verdade, a missão do soberano, para Sanches, é unicamente temporal: fazer os
portugueses serem mais felizes que “no Estado precedente”.
Esse fim do poder político, ao mesmo tempo, impunha um certo limite a esse
poder, pois subentende-se que o soberano devesse cumprir a sua parte no pacto, o que é
convencionado no contrato de estabelecimento do poder: fazer os povos felizes. Sem
essa contrapartida do soberano o pacto não se justificaria. Entretanto, para o
cumprimento desse objetivo, não se admitia que os povos tivessem poder sobre o
monarca com o qual fizeram o contrato. De fato, Ribeiro Sanches defendia uma total
obediência dos povos à vontade do soberano, que, para garantir o bom governo, poderia
dispor dos bens e pessoas de seus súditos, ou seja, invalidava os limites do poder real
extraídos de uma interpretação do corporativismo escolástico. Lembre-se que a
governação, nessa última matriz, assentava-se no objetivo de “fazer justiça”, de um
governo passivo, o que, na prática, implicava reiterar os privilégios e as diferenças. Na
teoria de Sanches, pelo contrário, defende-se uma governação ativa: os direitos dos
povos não impõem limites ao poder do soberano, e sua função não é garantir a
70
JASMIN, Marcelo Gantus. Racionalidade e História na Teoria Política. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
1998, pp. 38-40.
71
Ibidem, p. 45.
72
SANCHES, António Nunes Ribeiro. op. cit., p. 19.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
83
permanência desses direitos. De fato, para a boa realização do fim maior de sua
fundação, o poder potico pode e deve alterar a ordem social e criar novas regras e
direitos, caso sejam necessários para a conservação do Estado civil. Estão expostos,
aqui, os princípios da teoria do absolutismo contratualista, que foi lentamente
desenvolvida durante o período pombalino.
Ribeiro Sanches defendia ainda que, após o contrato, os súditos manteriam em seu
poder, primeiro, a Propriedade de seus bens, com obrigaçaõ tacita ou declarada, que
parte da sua renda seria para sustentar o Estado”; e, segundo, “Aquella liberdade interior
de querer, naõ querer, amar, aborrecer, julgar, ou naõ julgar, ver, ou naõ ver: que saõ as
acçoens interiores que passaõ dentro de nós, e que se naõ mostraõ por acçoens
exteriores, que todo mundo possa observar visivelmente”
73
, que é o princípio da
liberdade de consciência. É importante lembrar que Ribeiro Sanches tinha origem
judaica e que foi denunciado como judaizante na “leva de 1726”
74
. Ao longo de sua
obra, defendeu o fim das distinções entre cristãos novos e velhos, e, o que é mais radical
para o momento português, a liberdade de crença: se o Estado tinha total autonomia
sobre pessoas e bens dos súditos, o a possuía sobre suas consciências (desde que essas
o implicassem ações contra o Estado). Para ele, essa jurisdição assumida pelo Estado
era mais uma das deturpações políticas advindas da união entre Estado e Igreja.
O estabelecimento de uma “monarquia gótica” fez com que membros do corpo
eclesstico ocupassem cargos poticos, assentos em Cortes, e com que se
confundissem, nos organismos do Estado, as jurisdições civil e eclesiástica. Daí que as
próprias monarquias, dirigidas por bispos e outros religiosos, tivessem uma educação
voltada para se formar fiéis, e não cidadãos úteis à pátria, e seria com esse objetivo que,
no século XVIII, os soberanos deveriam se dedicar à reforma da educação:
De tudo o referido se claramente que he do jus da Magestade fomentar e
promover a utilidade publica e particular, com decencia; e que nenhua requer
maior attençaõ no animo do Soberano, do que a Educaçam da Mocidade, que
deve ser toda empregar-se no conhecimento, e na practica das virtudes sociaveis
referidas, e em todos os conhecimentos necessarios para servir a sua patria
75
.
A primeira parte de suas Cartas sobre a Educação da Mocidade trata de como foi
a educação em Portugal e demais países da Europa, desde a Antiidade até o culo
XVIII, advertindo Sanches “que toda a Educaçaõ, que teve a Mocidade Portugueza,
desde que no reyno se fundáraõ Escolas e Universidades, foi meramente Ecclesiastica,
73
Ibidem, p. 21.
74
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. op. cit., p. 346.
75
SANCHES, António Nunes Ribeiro. op. cit., pp. 25-26. (Itálico no original).
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
84
ou conforme os dictames dos Ecclesiasticos; e que o seu fim foi, ou para conservar o
Estado Ecclesiastico, ou para augmentalo
76
. Isso faria com que, no século XVIII, a
necessidade que se tinha de rios profissionais diferenciados não fosse satisfeita, pois a
educação não se voltava para os bens públicos, para a utilidade do Estado, apenas para a
formação de fiéis. Ribeiro Sanches defendia que o objeto da Educação da Mocidade
deve ser proporcionado às leis e aos costumes do Estado a quem ela pertence”
77
, ou
seja, uma mudaa de concepção de Estado deveria resultar numa alteração no tipo de
educação praticada. Assim, o Estado português deixando para trás uma “Constituição
Gótica”, de aliança com a Igreja e defesa dos privilégios nobiliárquicos, deveria
organizar um diferente sistema de ensino laicizado, sob controle do Estado, e
atendendo às demandas deste.
À maneira de Verney e outros ilustrados portugueses, Ribeiro Sanches
identificava a causa do marasmo cultural, ecomico e principalmente da educação
portuguesa daquele tempo na ação dos jesuítas, que também seriam a grande
manifestação da união Estado-Igreja. Tanto que, caso ainda estivessem em Portugal,
suas Cartas jamais seriam publicadas:
Deos seja louvado que me chegou ainda a tempo que os PP. da Companhia de Jesus,
naõ saõ ja Confessores nem Mestres; porque se conservassem ainda aquella acquisão,
taõ antiga, nenhua das verdades, que se leraõ neste papel poderiaõ ser caracterizadas
com outro titulo, que de herezias! A Deos sejaõ dadas as graças, que pela infatigavel
providencia de S. Magestade, todos estes obstaculos se dissiparaõ (...)
78
.
Portanto, a questão da educação era marcada por uma forte discussão política, que
passava pela secularização do Estado, pela separação entre as jurisdições da Coroa e da
Igreja. Trata-se de um tema fundamental para a discussão aqui proposta. Esse processo
gerou conseqüências para a compreensão da potica e da história no Ocidente. Em
Ribeiro Sanches, à maneira Ilustrada, expressa-se a compreensão de que se viveria um
novo tempo, de desenvolvimento das ciências e de progresso. Entretanto, entendia-se
que havia a necessidade de uma força que promovesse esse progresso e essa força seria
o Estado, que deveria regular e controlar a educação de forma a gerar cidadãos e
conhecimentos úteis para a própria administração estatal e, conseqüentemente, para o
bem blico. Daí derivaram as várias propostas de reformas educacionais expostas nas
Cartas sobre a Educação da Mocidade, que entendiam a educação portuguesa de então
76
Ibidem, p. 2.
77
Ibidem, pp. 75-6.
78
Ibidem, pp. 27.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
85
como atrasada, devido à sua falta de interesse na promoção das ciências, posto que
marcadamente eclesiástica.
Ribeiro Sanches retirou a missão religiosa do Estado, tornando-a humana e
secular. A nova missão do progresso, entretanto, subordinava a vontade do soberano ao
utilitarismo. Não existia um voluntarismo livre; a capacidade potica de criação do
novo, se o possuía mais o limite ético-potico da religião, tinha outro que é o da
necessidade do progresso. Embora se concebesse dentro de uma linearidade racional, o
primado da utilidade trazia a ação de volta para a prisão do “útil pelo útil”. Não havia
saída. Construir-se-ia algo útil, para que gerasse bens úteis, que promoveriam a
disseminação de outros bens úteis, indefinidamente. Aqui, o discurso ilustrado da
secularização livrava a potica da cadeia da evangelização, mas prendia a vontade
humana na obrigação, que se tornava ética, de produção do progresso. Os homens se
tornavam limitados a um presente cíclico em que o tempo de liberdade e progresso
estaria sempre no futuro.
O terceiro ilustrado a focalizar é D. Luís da Cunha. Ele foi um eminente diplomata
português, com vasta experiência potica e conhecimento de vários países europeus.
Por seu grande conhecimento da potica e por acertar em algumas “previsões” acerca
do contexto político europeu, recebeu a alcunha de o “oráculo da potica”
79
. Foi
embaixador em Londres, participando, inclusive das discussões que levaram à
assinatura entre Portugal e Inglaterra do chamado Tratado de Methuen, além de ser o
representante português em vários acordos diploticos entre países europeus desde
fins do século XVII e toda a primeira metade do século XVIII
80
. Participou ativamente
das discussões poticas do reino durante o governo de D. João V e teve suas idéias
políticas a respeito de Portugal sistematizadas principalmente em dois textos, as
Instruções a Marco António de Azevedo Coutinho, redigidas entre 1736 e 1737, a
pedido de Coutinho, que assumira o cargo de embaixador português junto à Corte
inglesa; e o Testamento Político, escrito em 1749, endereçado ao príncipe D. José, que,
devido ao estado de saúde de seu pai, estava na iminência de assumir o trono. O
Testamento é bastante lembrado pela indicação faz ao então príncipe de Sebastião José
de Carvalho e Melo para o ministério do Reino. D. Luís da Cunha mantinha
79
SILVA, Abílio Diniz. D. Ls da Cunha e o Tratado de Methuen. Revsita da Faculdade de Letras.
Porto, vol. 4, pp. 59-84, 2003, p. 59.
80
Ibidem.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
86
correspondências com Carvalho e Melo sobre a potica portuguesa
81
, e, no Testamento,
refere-se a seu indicado como tendo nio paciente, especulativo e ainda que sem
vício, um pouco difuso, se acorda com o da nação”
82
. Nas Instruções, D. Luís defendia
a criação de companhias de comércio e uma política ecomica monopolista como
forma de se desenvolver a economia portuguesa, principalmente do comércio com os
domínios ultramarinos, evitando a concorrência com o capital estrangeiro, mormente o
inglês.
A influência da instituição eclesiástica sobre o poder político é também analisada
por D. Luís da Cunha. Para ele, tal influência estaria deixando em Portugal muitas terras
incultas, que grandes extensões pertenciam à Igreja; e um contingente muito grande
de pessoas fazia parte do corpo eclesiástico e, por isso, além de serem sustentadas pela
Coroa, não trabalhavam para a produção de riquezas, falta sentida principalmente na
agricultura
83
. Na concepção de D. Luís, “os muitos homens” eram as “verdadeiras
minas do Estado
84
, pois sem eles não haveria como se proteger e desenvolver um país,
daí a crítica ao excessivo número de conventos em Portugal. Nas Instruções, os jesuítas,
apesar dos cios comuns a todos os religiosos, são descritos até de maneira positiva
devido a suas ações nas colônias:
Outra ordem ou sociedade se introduziu em Portugal e subsiste nas mais partes do
mundo católico romano, que é a dos Jesuítas, anfíbios da religião, porque não são
como os frades nem deixam de o ser. Esta pois furtou às mais a benção de se
saber enriquecer; mas estes bons padres não estão pelo menos ociosos como os
mais, de que tenho falado; antes os seus institutos os obrigam a freqüentar os
púlpitos e a assistir nos confessionários, a doutrinar os povos, a ensinar as artes e
a sacrificar as vidas pela propagação da Fé, de sorte que o favor de tanta utilidade
temporal e espiritual se pode sofrer a sua ambição, a que todavia se lhes deve
prescrever algum limite, como a todas as ordens, a quem chamei herdades ou que
herdam, porque sendo inalienáveis os bens que nelas entram ou por necessidade
81
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: Paradoxo do Iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p.
6.
82
CUNHA, D. Luís da. Testamento Politico ou Carta Escrita pelo grande D. Luiz da Cunha ao Senhor
Rei D. José I antes do seu Governo, o qual foi do Conselho dos Senhores D. Pedro II, e D. João V, e seu
Embaixador às cortes de Vienna, Haya, e de Paris, onde morreu em 1749. Disponível em
<http://www.arqnet.pt/portal/portugal/documentos/dlc_testamento1.html> Acesso em: 25 ago. 2005, s.p.
83
Este ponto apresenta uma converncia entre o pensamento de D. Luís e o de Montesquieu. Para o
ilustrado francês, “a cultura da terra é o maior trabalho do homem”, sendo que as leis políticas e a religião
deviam incentivá-la. Entretanto, o monaquismo do Oriente, da Índia, e mesmo de alguns países da Europa
tendem para o contrário, levando uma grande quantidade de homens a dedicarem-se mais à especulação
que à ação. As leis desses países, ao invés de desencorajarem a vida monástica e eliminarem os meios de
se viver sem trabalhar, “fazem justamente o contrário: oferecem aos que desejam ser indolentes lugares
apropriados à vida especulativa e a isso acrescentam riquezas imensas”. Nessas condições, “as pessoas,
que vivem numa abunncia que lhes é pesada dão, com razão, seu supérfluo ao baixo povo. Este perdeu
a propriedade dos bens; aquelas recompensam-no pela ociosidade da qual o fazem desfrutar e o baixo
povo chega a apreciar a própria miséria”. MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Abril,
1973, pp. 212-213.
84
FRANCO, Jo Eduardo. Quem influenciou o Marquês de Pombal? op. cit., s.p.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
87
dos que lhes vendem ou pela mal entendida devoção que eles inspiraram a quem
lhos deixa, não têm os vassalos de el-rei em que empreguem os cabedais que
ajuntam para sustentarem as suas casas
85
.
Percebe-se que os jesuítas deveriam ser “tolerados” apenas por apresentarem uma
certa utilidade temporal. Entretanto, precisariam ser completamente reprimidos, caso
sua influência se estendesse diretamente sobre os reis, como se vê no Testamento
Político. Nele, era recomendado que o rei não tivesse nenhum confessor, já que “com
este título (...) o autoriza[va] para querer ingerir-se nas coisas do governo, e fazer-se
respeitar, servindo-se do confessiorio para tirar, ou encher o príncipe de escrúpulos,
conforme convém aos interesses de sua ordem, dos seus parentes e amigos”
86
. O perigo
de se ter um confessor era ainda maior caso este fosse jesuíta, devido à capacidade de
convencimento demonstrada por estes padres:
tenho observado que a teologia de frades é muito arriscada, principalmente a dos
jesuítas, que são os que mais a estudam e por isso mais aptos para adotarem as
opiniões, que possam agradar ao confessado se for príncipe e não um pobre
lavrador
87
.
A religiosidade do soberano era vista de um ponto de vista prático também, pois
seria: preciso que o príncipe faça ver aos seus vassalos que regularmente pratica os
preceitos da igreja”.
Seguindo a sua visão de que se deveriam conter as “sangrias” de homens em
Portugal, D. Luís defendia também uma reforma na Inquisição, responsável pela
perseguição e fuga de homens do Reino, principalmente de judeus e cristãos-novos.
Assim, como Verney e Ribeiro Sanches, ele era partidário do fim da distinção entre
cristãos-novos e cristãos-velhos, pois fazia com que uma grande quantidade de capitais
nas mãos de judeus emigrassem para outras terras, como Holanda e Inglaterra, que
acabavam desenvolvendo o comércio e a produção industrial pelo incremento desses
investimentos
88
. Para Falcon, a defesa dos cristãos-novos feita por D. Luís da Cunha é
exclusivamente pragmática, não podendo ser identificada com uma tolerância ilustrada,
afinal eram reproduzidos as noções pejorativas e “as barreiras sociais e mentais que
cercam a própria iia de cristão-novo”
89
.
85
CUNHA, D. Luís da. Instruções inéditas de D. Luís da Cunha a Marco António de Azevedo Coutinho.
apud FRANCO, Jo Eduardo. Quem influenciou o Marquês de Pombal? op. cit., s.p.
86
CUNHA, D. Luís da. Testamento Politico. op. cit., s.p.
87
Idem, s.p.
88
Idem.
89
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. op. cit., p. 329.
Capítulo 2 – Luzes portuguesas e antecedentes pombalinos
88
No Testamento Político é proposta também uma reforma do judiciário para torná-
lo mais eficiente e colocar um maior poder de julgamento e de prisões nas mãos da
Coroa. A potica de concentração das ações em torno do rei, a limitação do poder dos
ministros e magistrados, a recomendação ao rei de não possuir confessor nem validos e
a visão prática da religiosidade como forma de poder social frente aos vassalos
deixariam D. Luís sob suspeita de adotar as máximas de Maquiavel. Pecha em que D.
Luís o via problemas, dizendo que confess[a] [sua] culpa sem arrependimento”, e
ainda se referia ao florentino como refinado potico”. Tal liberdade e franqueza em
associar suas idéias às de Maquiavel, mesmo se restringindo a um aspecto de seu
pensamento, era uma exceção em Portugal, onde havia a preponderância de concepções
políticas católicas que repudiavam o maquiavelismo. Mesmo nos governos do
Reformismo Ilustrado, como D. José e D. Maria, a circulação de doutrinas de
Maquiavel continuaram a ser reprimidas
90
.
Nesses três autores, é possível perceber o desenvolvimento de algumas concepções
políticas que rompiam com a matriz corporativa escolástica. Embora destaquem
aspectos diferentes em suas obras, Verney, Ribeiro Sanches e D. Luís da Cunha
concebiam o poder político como autônomo frente aos demais focos de poder dentro do
Estado, principalmente a nobreza e a Igreja; entendiam que a prática potica do
soberano devia voltar-se para a promoção de reformas que garantissem a adequação do
Reino português à nova realidade do século XVIII, principalmente tendo-se em vista os
conhecimentos ilustrados e as novas ordens econômica e potica européias.
Acreditavam também que o panorama português nessa primeira metade do século XVIII
era de um atraso” cultural, econômico e potico, e que a reversão desse quadro seria
possível mediante ações reais de um Estado forte e promotor de mudaas, que
assumisse a missão de superar esse atraso. Desenvolvia-se, aqui, algumas bases do
chamado absolutismo esclarecido que, aos poucos, conformou-se durante o período
pombalino.
O auge do absolutismo foi atingido em fins dos anos sessenta, com o controle
de instituições religiosas pelo Estado, a implementação do monopólio comercial e a
submissão dos setores anti-absolutistas da aristocracia senhorial. Ver-se-á, no capítulo
seguinte, um breve quadro das lutas que levaram a esta conformação e o esforço de
fundamentação e legitimação teórica dessa prática política.
90
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit., p. 204 e 210.
Capítulo 3
Ideário pombalino e construção do regalismo
Hum dos maiores estragos, que os ditos
Regulares havião feito na Monarquia
destes Reynos, foi o que tinha padecido a
Authoridade Regia na sujeição á
Monarchomachia Ecclesiastica da Curia
de Roma.
Dedução Cronológica e Analítica
As práticas poticas durante o reinado de D. JoI (1750-1777) foram marcadas
por várias reformas. Algumas inovadoras e outras em que houve um “reforço dos
aparatos governamentais pré-existentes. Da mesma forma, houve reformas que
correspondiam a um planejamento ou a um ideário potico que ascendeu ao poder nesse
momento, assim como houve práticas reformistas que responderam a questões
circunstanciais.
A principal marca do Estado na “época pombalina” é a centralização das ações
políticas na Coroa. Embora essa centralização tenha atingido sua culminância” durante
o consulado pombalino, deve-se observá-la de uma perspectiva histórica mais alongada.
De fato, como foi comentado no Capítulo 1, houve em Portugal, desde o século XVII
uma tendência a se reduzirem os poderes dos senhorios locais, das Cortes e das câmaras
municipais. Mesmo considerando-se momentos de retrocessos, resistências e embates
nessa tendência, é de se observar que não houve sequer uma reunião de Cortes durante o
reinado de D. João V (1706-1750) beneficiado pelo enorme aporte de ouro brasileiro,
que o desobrigava a reunir os três estados do Reino para aumentar impostos e sustentar
sua Corte
1
. Os outros reinados setecentistas lusos seguiram a mesma linha e as Cortes só
voltaram a se reunir em 1820, segundo um novo feitio e princípios.
O investimento noutra imagem da realeza perante a sociedade portuguesa teve um
passo muito importante durante o reinado joanino. Ana Cristina Araújo estuda,
inclusive, um projeto decoroação e sacralização de D. João V, através de ritual
1
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: Paradoxo do Iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p.
44.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
90
inspirado no cerimonial francês e totalmente estranho aos costumes portugueses
2
. Além
desse aspecto, a partir dos anos 20, “o processo de concentração da autoridade clarifica-
se”
3
. Foram adotadas várias medidas que aumentaram as “prerrogativas majestáticas do
soberano buscando “por um lado, limitar a autonomia da nobreza e, por outro, (...)
submeter o estado clerical aos superiores desígnios do Estado”
4
. Estão aqui expostos os
princípios do regalismo potico, que foi aprofundado no reinado josefino.
A centralização potica pombalina teve, como correlato econômico, a efetivação
de monopólios comerciais. Os últimos cinco anos do reinado de D. João V foram de
enfraquecimento do Estado e dos exclusivismos comerciais, principalmente com o
grande crescimento dos contrabandos no comércio colonial, o que gerou problemas de
arrecadação e dificuldades econômicas para o reino português
5
. As primeiras reformas
pombalinas focaram-se nesse ponto.
Foram criadas companhias privilegiadas de comércio como a Companhia do
Comércio da Ásia (1753), a Companhia do Grão-Pará e Maranhão (1755), a Companhia
da Pesca da Baleia (1756), a Companhia dos Vinhos do Alto Douro (1756) e a
Companhia de Pernambuco e Paraíba (1759); além disso, foi promulgado o alvará de 6
de dezembro de 1755 “contra os chamados comissários volantes”, identificados como
principais responsáveis pelo contrabando colonial e em que havia uma forte atuação de
comerciantes estrangeiros, principalmente ingleses
6
. Em 1761, foi criado o Erário
Régio, com a inteão de disponibilizar uma burocracia estritamente ligada ao Estado e
colocar sob controle da Coroa a maior parte dos recursos fiscais do país
7
. Pombal
apoiou os comerciantes portugueses da metrópole em detrimento dos clandestinos e
contrabandistas; centralizou a fiscalização sobre o ouro e, nos portos, sobre os produtos
primários, como açúcar e tabaco, cooptando membros das elites locais para esses cargos
no ultramar, centralizando o controle e criando laços de união pelo império e seu
centro
8
.
O investimento em uma potica monopolista tinha estreita e necessária relação
com a construção de um Estado forte, como observou Jorge Borges de Macedo:
2
ARAÚJO, Ana Cristina. Ritualidade e Poder na Corte de D. João V: A gênese simbólica do regalismo
político. Revista de História das Idéias. Coimbra, v. 22, pp. 175-208, 2001, pp. 182-183.
3
Ibidem, p. 187.
4
Ibidem, p. 201.
5
MACEDO, Jorge Borges de. A situação econômica no tempo de Pombal. Lisboa: Moraes Editores,
1982, pp. 45-46.
6
Ibidem, p. 47; MAXWELL, Kenneth. op. cit., pp. 60-61.
7
MACEDO, Jorge Borges de. op. cit., p. 36.
8
MAXWELL, Kenneth. op. cit., pp. 56-57.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
91
Apoiando, desde o início, toda a sua potica econômica no sistema monopolista
contratos, companhias, privilégios de produção, de distribuição, etc. para que
ela desse resultado era evidentemente necessário que as garantias dos monopólios
fossem eficazes e só o poderiam ser com um Estado bem sólido: quanto mais
firme e fechado ele fosse mais prometedoras seriam as vantagens dos
exclusivismos econômicos
9
.
Buscava-se, dessa forma, garantir os altos lucros do comércio colonial e das
produções tradicionais portuguesas, principalmente do vinho. A entrada de outros
capitais concorrentes, contrabandos e produtores arrivistas, fazia baixar os preços dos
produtos no mercado, além de propiciarem a fuga de impostos e arrecadações
alfandegárias dos cofres e do controle da Coroa.
Macedo não vê nada de inovador nessa potica, apenas o “reforço” de aparatos
estatais existentes e de técnicas tradicionais da monarquia portuguesa
10
. A renovação do
sistema de privilégios o teria pertencido à vontade do rei, de Carvalho e Melo ou dos
demais ministros da Coroa, mas seria uma necessidade de se garantir os altos lucros
ante a “ameaça da sua partilha pela multidão de concorrentes aos grandes grupos
usufrutuários”
11
. Para o historiador português, essas reformas não corresponderam a
nenhuma planificação de governo, seriam apenas medidas circunstanciais para atender
os interesses dos grupos que foram tradicionalmente privilegiados pela potica
portuguesa:
A legislação pombalina é quase sempre uma legislação de emergência sem outra
planificação, nem outro nexo que o seja o ponto de partida de uma política
protecionista, e sem outro desenvolvimento que não seja o que lhe é dado pelo
curso objetivo dos acontecimentos, onde os principais condicionantes são os
fatores econômicos (...)
12
.
De fato, os fatores circunstanciais são essenciais para se compreender o
desenvolvimento político de qualquer governo, por mais “planejada” que seja sua ação
política. Entretanto, e como o próprio estudo de Macedo indica, o modelo pombalino de
investimento em um sistema de economia monopolista possuía o sentido de se garantir
o alto vel dos lucros do comércio português e o aporte de receitas no Reino, bem
como o controle dessas pelo poder central. Nisso tudo podem-se entrever uma
planificação e uma proposta econômica, na linha defendida, como se viu, por D. Luís da
Cunha. O controle ecomico a partir do Estado na época pombalina, com a utilização
9
MACEDO, Jorge Borges de. op. cit., p. 33.
10
“No campo do reforço do Estado, a atividade pombalina não foi renovadora, utilizando os organismos
tradicionais assim como os métodos, ao tempo, tradicionais da monarquia portuguesa. Reorganização em
Pombal quer simplesmente dizer reforço da organização existente”. Ibidem, p. 33.
11
Ibidem, p. 48.
12
Ibidem, p. 88.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
92
de exclusivismos e o favorecimento de grandes produtores e comerciantes, não possuía
mais o objetivo clássico do mercantilismo, que é o de atrair ouro e prata para dentro do
país, visto que Portugal, ao lado da Espanha, era uma das grandes fontes internacionais
dos valiosos metais. O objetivo era reter esse metal em Portugal, por isso Pombal
privilegiou os grandes comerciantes, ele Pombal via nos pequenos a ação do capital
estrangeiro e acreditava que, fortalecendo os grandes, estes seriam capazes de competir
com os grandes estrangeiros no jogo comercial internacional
13
.
Além dos problemas ecomicos diagnosticados por Carvalho e Melo, havia
também uma preocupação com a “decadência” cultural lusa frente a outras nações
européias, o que também era, como seu viu, uma preocupação de outros ilustrados
portugueses, e que, para Pombal, possuía uma relação direta com o estado da economia
portuguesa e de sua influência potica internacional. A defesa do fortalecimento do
poder central fazia parte de uma visão ilustrada do mundo e da potica baseada
principalmente numa concepção secularizada do poder. Entendia-se também que o
Estado seria responsável por promover mudanças que levassem ao progresso,
concebendo-se, como progresso do conhecimento, o rompimento com certos
preconceitos irracionais” e a aplicação desses saberes de uma maneira prática, com
vistas a melhorar a economia portuguesa e o papel de Portugal diante de outros países
europeus.
As ações de Pombal pautaram-se pela construção de um forte Estado, regalista e
absolutista, ou seja, que repudiava as influências e intromissões do poder religioso,
manifestadas pela Cúria Romana e pelas instituições a ela ligadas e subordinadas,
principalmente a Companhia de Jesus; além de procurar subordinar o outro principal
concorrente do poder régio, a nobreza, em suas facções contrárias às medidas
pombalinas.
Quanto à nobreza, vale ressaltar que foi nesse estamento que o pombalismo foi
recrutar alguns dos principais beneficiados por sua política econômica. Além disso,
Pombal preocupou-se com uma educação específica para a nobreza, como meio de se
formar um contingente humano de qualidade e capaz de atuar na nova administração
pública. Veja-se a fundação do Colégio de Nobres, algo pensado e proposto por Ribeiro
Sanches. Um novo padrão de nobreza era o que se esperava, havendo nobilitações de
comerciantes, principalmente dos grandes, ligados às companhias de comércio; de
13
MAXWELL, Kenneth. op. cit., p. 68.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
93
pessoas “úteisque exerciam com capacidade funções na burocracia estatal; de homens
de letras; o incentivo para que nobres investissem no corcio, sem que isso os
desonrasse; e procurou unir com casamentos famílias nobres com ramos cristãos-novos
ricos
14
. Nuno Gonçalo Monteiro afirma que o pombalismo provocou alguns abalos nos
critérios tradicionais de definição da nobreza, como os conflitos entre a monarquia e a
genealogia, associada “à queima das listas de cristãos-novos e à questão das famílias
puritanas
15
, redefinindo critérios como o da pureza de sangue”, que foram abolidos,
bem como os seus registros locais
16
. Ao contrário dos reinados anteriores, o período
pombalino não se notabilizou pelo aspecto militar, que era um dos princípios
fundamentais da nobilitação no Reino português
17
, preferiu a adoção de outros que lhe
permitissem o controle sobre a nobreza e a utilização política da nobilitação para os seus
objetivos. O tratamento dado à nobreza no período pombalino, entretanto, segundo
Monteiro, foi uma exceção. De uma maneira geral, algumas características
fundamentais como a genealogia das casas nobres e o militarismo associado à nobreza
foram constantes até 1832, quando triunfou a revolução liberal
18
.
A perseguição à nobreza e o desrespeitoaos foros privados de julgamento que a
mesma detinha, manifestados de forma espetacular no caso do julgamento dos Távora e
dos Aveiro, após a tentativa de regicídio de 1758 quando as proteções que o código
legal português determinava para famílias nobres foram revogadas –, eram uma marca
da nova relação que se esperava entre Coroa e nobreza, não propriamente um ódio à
classe
19
. Dentro do modelo de Estado pensado pelo pombalismo, os direitos nobres não
poderiam estar acima das vontades da Coroa, muito menos consentir que aqueles
homens dos quais se esperava mais virtudes e capacidades para atuar nos vários postos
do governo não o fizessem e ainda fossem privilegiados frente àqueles verdadeiramente
virtuosos e úteis ao Reino. Pombal aproveitou-se do epidio do atentado ao rei para
colocar em prática algumas dessas medidas de reforma legal das relações entre Coroa e
nobreza, algo que já possuía um desenvolvimento teórico em Portugal antes do
consulado pombalino, como se viu.
14
MACEDO, Jorge Borges de. op. cit., p. 78-79; MAXWELL, Kenneth. op. cit., p. 77 e 92-93.
15
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O ‘Ethos’ Nobiliárquico no final do Antigo Regime: poder simbólico,
império e imaginário social. Almanack Braziliense, 2, 2005, pp. 4-20. Disponível em
<http://www.almanack.usp.br/PDFS/2/02_forum_1.pdf> Acesso em 12 mar. 2008, p. 8.
16
Ibidem, p. 16.
17
Ibidem, p. 11.
18
Ibidem, p. 6.
19
MAXWELL, Kenneth. op. cit., pp. 92-94.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
94
A perseguição aos jesuítas também se insere nessa ótica potica. Chegados a
Portugal ainda no século XVI, alguns anos após a instituição da ordem, os inacianos
ocuparam importantes posições no sistema de ensino tanto no Reino como no ultramar;
na colonização, principalmente com as missões; além de cargos poticos e posições
estratégicas no governo português, como os de conselheiros de reis. Trata-se de uma
ordem religiosa que, por seus próprios objetivos e características, de intensa mobilidade
faziam, inclusive, um voto de mobilidade, pois iriam aonde Deus ou o papa quisessem
–, sempre esteve mais ligada aos comandos de seus superiores do que ao de qualquer
poder temporal dos reis. Os jesuítas eram autônomos mesmo em relação às autoridades
religiosas locais: seu voto de obediência era ao papa, obedeciam apenas a ele e à
hierarquia jesuítica
20
. Tal comportamento de subordinação direta a Roma, passando por
cima dos reis cristãos, caracterizou o chamado de ultramontanismo. As missões
incluíam, além da atividade evangélica, atividades econômicas. No Brasil, as missões
amazônicas, por exemplo, prosperavam e mantinham corcio e potica externas
independentemente da Coroa portuguesa, o que era inadmissível à ótica do pombalismo,
pois retirava recursos e súditos leais a Portugal.
O primeiro embate entre a potica pombalina e os jesuítas girou em torno da
execução do Tratado de Madri, ou Tratado de Limites, de 1750. Quando D. José I subiu
ao trono português, nesse mesmo ano, as negociações entre as Cortes portuguesa e
espanhola em torno dos novos limites de suas colônias americanas estavam assinadas,
cabendo implementá-las, no que Pombal teve particular interesse
21
. Nas
correspondências de Carvalho e Melo para Gomes Freire de Andrade, responsável pelas
demarcações ao sul, na região dos Sete Povos das Missões, e para Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, irmão de Pombal, comissionado nas demarcações ao norte, percebe-
se a influência da iia de D. Luís da Cunha de que os homens seriam as maiores
riquezas de um país
22
. A incorporação dos indígenas como súditos fiéis ao rei português
era fundamental para segurança da fronteira e desenvolvimento econômico das regiões,
pois fazê-lo apenas com portugueses significaria o despovoamento do reino
peninsular
23
. Daí a lei de 1755 que restituiu “aos Índios do Grão Pará, e Maranhão, a
20
EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais,
aventuras teóricas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, pp. 36-37.
21
MAXWELL, Kenneth. op. cit., pp. 51-52.
22
Ibidem, p. 53.
23
A questão das nobilitações no período pombalino acima referida também tocou o domínio colonial. A
concessão de sesmarias e nobilitações de pessoas importantes do ultramar era vista como uma forma de se
garantir o domínio e poder da Coroa sobre as colônias, especialmente a brasileira. Em corresponncia a
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
95
liberdade das suas pessoas, e bens, e comércio”, assinada durante os conflitos da Guerra
Guaranítica, e o incentivo à miscigenação entre índios e colonos.
Apesar de desconfiar de qualquer negociação territorial com a Espanha, a
implementação do Tratado de Madri foi uma boa oportunidade para Pombal colocar em
prática seus planos em relação às missões jesuíticas e sua influência temporal sobre os
índios. A resistência indígena em deixar a região dos Sete Povos das Mises, através
de confrontos armados, foi posteriormente utilizada pelo pombalismo na campanha anti-
jesuítica pela Europa, sendo produzido um dos principais textos de cunho histórico da
propaganda pombalina a Relação Abreviada (1757). Esse texto, escrito em grande parte
pelo próprio Carvalho e Melo, foi inicialmente publicado em português, mas teve
traduções para alemão, inglês, francês e italiano, e ajudou a disseminar a imagem de
índios militarizados e treinados pelos inacianos, sendo uma das mais fortes propagandas
para legitimar a expulsão dos jesuítas de todo o Império de Portugal (1759). Além disso,
ajudou na pressão pela extinção da ordem de Santo Inácio, o que fez o papa Clemente
XIV, em 1773. Esses talvez tenham sido os principais resultados da Guerra Guaratica
para Pombal, pois, em 1761, o Tratado de Madri foi revogado e a região dos Sete Povos
das Missões voltou ao controle espanhol. O motivo da luta retornava à mesa das
discussões diplomáticas.
Ao final da década de 1750, o sistema de controle temporal sobre os índios,
implementado por Mendonça Frutado no norte da América portuguesa, era o modelo a
ser seguido em toda a colônia
24
. A campanha anti-jesuítica, iniciada em torno da
execução do Tratado de Madri, ensejou a reforma educacional do período pombalino.
Como se viu, a questão de uma reforma educacional em Portugal era objeto de
discussão desde os tempos de D. João V, e os problemas nessa área, para rios
ilustrados portugueses, encontravam-se no método de ensino jesuítico, pouco aberto às
novidades do século e mais voltado à formação de fiéis que súditos úteis ao progresso
português. A partir de 1759, data da publicação do alvará que proíbe as aulas gratuitas
dos jesuítas
25
, iniciou-se uma série de reformas educacionais que tocaram todos os
Carvalho e Melo, em meados do século XVIII, o duque Teles da Silva afirmara: “Para ter mais ligado o
Brazil ao Reino, dissera eu, que sua Magestade faria utilmente, gratificando essas principais famílias de
muitas terras, senhorios, feudos e comendas, limitando desde agora, com boa advertência para futuro a
respectiva extenção”. apud MONTEIRO, Nuno Gonçalo. op. cit., p. 14.
24
MAXWELL, Keneth. A Devassa da devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil Portugal, 1750-1808.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 44.
25
AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e sua época. Rio de Janeiro: Annuario do Brasil,
1922, p. 285.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
96
níveis de ensino e que envolveram uma ampla publicação de textos, que sempre as
apontavam como necessárias, devido ao antigo estágio de atraso apresentado pelos
estudos portugueses frente àsNações polidas da Europa”
26
. A causa do atraso era
invariável: a ação dos jesuítas nessa área.
As reformas educacionais pautaram-se pelo maior controle do Estado sobre o
ensino português. Esse controle ia além de um absolutismo monopolizador das ações. A
educação tinha um papel essencial na ótica pombalina, tanto que, dentre os “estragos”
que teriam sido causados pelos jesuítas, segundo os textos de propaganda do
pombalismo, os mais apontados o sobre as letras e conhecimentos portugueses, que
teriam um pleno desenvolvimento anteriormente à chegada da Companhia de Jesus em
Portugal. Os primeiros espaços dominados pelos jesuítas teriam sido os
estabelecimentos de ensino, o que seria a causa da decadência cultural portuguesa, como
o narrado na Dedução Cronológica e Analítica, e no Compêndio Histórico do Estado da
Universidade de Coimbra, algumas das principais obras do pombalismo. A tomada de
controle do Estado pombalino sobre a educação se manifestou na colocação de homens
diretamente ligados à Coroa na administração dos estabelecimentos de ensino
universitário, secundário e das primeiras letras, com professores pagos pelo Estado
27
; e
na criação de escolas especializadas, como o Real Cogio dos Nobres e a Aula do
Comércio, que “tinha caráter eminentemente prático”
28
. Segundo Maxwell, “a reforma
educacional pombalina teve um objetivo altamente utilitário: produzir um novo corpo
de funcionários ilustrados para fornecer pessoal à burocracia estatal e à hierarquia da
Igreja reformadas”
29
. Concordando com as propostas de Ribeiro Sanches, a reforma
educacional pombalina tentava “produzir homens capazes de atender às novas
necessidades do país, tanto na administração pública, quanto no conhecimento científico
que se esperava produzir a respeito das potencialidades naturais do Reino e do ultramar,
como forma de ser trazer benefícios para o Estado, uma idéia de progresso com
utilitarismo patente.
A fundamentação dessas reformas propiciou a publicação de outros textos
pombalinos, como o citado Compêndio Histórico do Estado da Universidade de
Coimbra (1772), produzido pela Junta de Provincia Literária, da qual fizeram parte o
próprio Pombal, José de Seabra da Silva, o Cardeal da Cunha e Frei Manuel do
26
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. op. cit., p. 432.
27
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: Paradoxo do Iluminismo. op. cit., p. 105.
28
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. op. cit., p. 439.
29
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: Paradoxo do Iluminismo. op. cit., p. 110.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
97
Cenáculo, dentre outros, todos homens ligados à governação pombalina em várias de
suas medidas; publicaram-se também os Novos Estatutos da Universidade de Coimbra.
Verney, Jacob de Castro Sarmento e Pascoal Jo de Melo Freire foram nomes que,
embora não fossem nominalmente citados, contribuíram ativamente nas reformas
educacionais
30
.
A política de maior controle do Estado sobre a cultura teve também ação na
censura. Em 1768, foi abolido o sistema de tplice censura, em que a Inquisição, o
Ordinário e o Desembargo do Paço eram responsáveis pelo controle de textos e idéias
que circulavam em Portugal; e foi criada a Real Mesa Censória. Se, até esse momento, a
censura portuguesa pautava-se pelo Index romano e pela grande influência de membros
da Igreja e da própria Inquisição, a criação da Real Mesa Censória seguia uma
tendência geral de secularizão da censura”; am disso, representava uma potica
de estatização” dessa atividade
31
, ou seja, uma tentativa de estabelecer um maior
controle da Coroa sobre as idéias em circulação no Império português. Ressalte-se que
conteúdos políticos não foram alheios à censura pré-pombalina, imiscuídos ou não em
temas religiosos
32
.
Assim como na educação, a secularização empreendida na censura no período
pombalino significou principalmente o controle do Estado sobre essa atividade, e não
uma completa laicização dos temas e conteúdos a serem apreciados pelo órgão censório.
De fato, os temas religiosos continuam fazendo parte das preocupações da Coroa, tanto
que as restrições a obras ilustradas na censura pombalina tocavam principalmente
àquelas que professam doutrinas deístas e/ou ateístas, e mesmo o protestantismo
33
.
Nesse sentido, o edital de 24 de setembro de 1770 da Real Mesa Censória, que se voltou
contra as obras que defendiam idéias ilustradas radicais, como ateísmo e materialismo,
possuía um estreito vínculo entre a religião cristã e a ordem potica. Nele, a religião
cristã teria o papel de Estabelece[r] a boa ordem, e o Poder do Governo Político:
firma[r] a autoridade e proteção nos Soberanos: Assegura[r] a sujeão e obediência nos
vassalos”. Concebe-se, aqui, a religião como um limite à ação dos homens, e uma
garantia do poder dos soberanos
34
. Os editais censórios tiveram um importantíssimo
30
Idem; FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. op. cit., p. 436.
31
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit., p. 182.
32
Ibidem, p. 186.
33
Ibidem, pp. 203-204.
34
Ibidem, p. 229. Em outro texto, Villalta referiu-se a uma correspondência entre essa visão do papel
político da religião expresso no Edital de 24 de setembro 1770 e o pensamento de Montesquieu. No
Espírito das Leis, o importante ilustrado francês tomava a religião como o “único freio que podem ter
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
98
papel na construção do ideário pombalino e na condenação de obras que defendiam
idéias poticas do corporativismo escolástico e messiânico-milenaristas, ambas
associadas ao pensamento jesuítico, o que será comentado à frente. O mesmo se pode
dizer no que se refere à difusão de uma mentalidade mais propensa às ciências físicas e
naturais.
Em 1760, o Núncio retirou-se de Lisboa e o ministro português em Roma foi
trazido de volta a Portugal. Novamente estavam rompidas as relações entre a Coroa
portuguesa e a romana. A partir de então, o chefe da Igreja lusitana seria o seu
primeiro ministro, e o mais o pontífice
35
. Nessa década ocorreram vários conflitos e
tentativas de reconciliação entre Roma e Lisboa. Entretanto, a defesa dos jesuítas feita
pelo papa Clemente XIII, pedindo a readmissão dos inacianos no reino lusitano,
impediu que as possibilidades de ajuste fossem levadas a diante. Aliás, os breves
expedidos por Roma em defesa da Companhia de Jesus foram todos considerados nulos
em Portugal
36
. No final da década, foi publicada a Dedução Cronológica e Analítica
(1767), obra em três volumes, sendo um de seus propósitos mostrar todos os males
perpetrados pelos jesuítas na história de Portugal, na história eclesiástica e na
deturpação do direito canônico, ao defenderem a supremacia papal sobre os reis
temporais. A autoria da obra foi atribuída a José de Seabra da Silva, o mesmo que
escreveu a Petição de Recurso apresentada em audiencia publica á magestade... sobre
o ultimo, e critico estado desta monarchia depois que Sociedade chamada de Jesus foi
desnaturalizada, e proscripta dos dominios de França, e Hespanha (1767). A Dedução
Cronológica e Analítica, principal obra da interpretação da história do pombalismo, foi
bem recebida na França e na Espanha, e também contribuiu nas pressões para a
supressão da ordem de Santo Inácio. A Dedução, como historiografia pombalina e
compreensão do político, será objeto do Capítulo 4.
aqueles que não temem as leis humanas”. VILLALTA, Luiz Carlos. ‘Teresa Filósofa’ e o frei censor:
notas sobre a circulação cultural e as práticas de leitura em Portugal (1748-1802). In: PAIVA, Eduardo
França. Brasil Portugal: sociedades, culturas e formas de governar no mundo português (século XVI-
XVIII). São Paulo: Annablume, 2006, p. 134, nota 46.
35
AZEVEDO, João Lúcio de. op. cit., p. 286.
36
Ibidem, p. 288. Segundo Lendro Catão, a primeira inconfidência de Curvelo, em 1760, teve, entre suas
motivações, a circulação clandestina de um Breve Papal” que condenava as “tiranias” que então se
cometiam em Portugal, como o suplício e condenação de nobres eminentes envolvidos no episódio da
tentativa de regicídio contra D. José I e a própria expulsão da Companhia de Jesus. A condenação papal
às ações de D. José I teria se manifestado em outros “papéis sediciosos” que continham ofensas ao rei e
motivaram a abertura de uma devassa. Ver CATÃO, Leandro Pena. Inconfidências, jesuítas e redes
clientelares nas Minas Gerais. In: VILLALTA, Luiz Carlos; RESENDE, Maria Efigênia Lage de.
História de Minas Gerais: As Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
99
O anti-jesuitismo, como se viu, teve seus argumentos lentamente constrdos.
Esses últimos responderam, ao mesmo tempo, a uma potica conduzida pelo
pombalismo e a questões práticas, localizadas. Aliás, a ordem jesuítica não gozava de
fama positiva em todos os meios portugueses, mesmo antes de Pombal. Gabriel Soares,
ao final do século XVI, defendia que no início da ação missionária dos inacianos no
Brasil conformava-se à ordem social existente e não intervinha em questões seculares,
entretanto, algum tempo depois, os mesmos se imiscuíam em questões temporais e
tornavam-se perigosos à colonização portuguesa na América
37
. Segundo Leandro Catão,
houve ainda libelos anti-jesuíticos produzidos antes, durante e depois do consulado
pombalino e que não foram patrocinados por Carvalho e Melo
38
. Dentre os escritos anti-
jesuíticos pombalinos, podem-se citar ainda a Origem Infecta da Relaxação Moral dos
Denominados Jesuítas (1771) e os Erros ímpios e sediciosos (1759).
Como se percebeu, a secularização política no período pombalino compreendia
principalmente uma reforma das estruturas de poder, no que era fundamental dar novos
lugares para a Igreja, institucionalmente, dentro do poder político do reino português.
Segundo Falcon, nas ações pombalinas a respeito da Companhia de Jesus e da potica
da Cúria romana,
o alvo efetivamente visado através dessa política não era exatamente a Igreja,
tomada no seu sentido de instituição eminentemente religiosa, incumbida do
cuidado das almas e, portanto, da salvação dos homens, mas alguma coisa que,
embora bem distinta, andava então algo confundida com a primeira: a dominância
do aparelho religioso, em seu sentido estrito, sobre os demais aparelhos
ideológicos, a qual, somada à presença política direta do clero e aos seus grandes
recursos econômicos, configurava uma situação anômala do ponto de vista das
novas idéias e dos novos interesses que iam em franca expansão
39
.
Assim, a potica regalista, além de não admitir saões do poder eclesstico
sobre o temporal, também procurou alargar o “âmbito de jurisdição do Estado a
expensas da Igreja”
40
. A iia, em alguns casos, foi de incorporação de estruturas
eclessticas ao corpo do Estado.
A publicação das obras do padre oratoriano Antônio Pereira de Figueiredo, o
principal artífice do regalismo pombalino, deu-se em meio aos conflitos entre a Coroa
37
FRANCO, José Eduardo. Fundação Pombalina do Mito da Companhia de Jesus. Revista de História da
Idéias. Coimbra, v.22, pp. 209-253, 2001, p. 217.
38
CATÃO, Leandro Pena. Sacrílegas Palavras: Inconfincia e jesuítas nas Minas Gerais durante o
período pombalino. 2005. Tese (doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de s-
Graduação em História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, pp. 149-150.
39
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. op. cit., p. 424.
40
CASTRO, Zília Osório de. O regalismo em Portugal. Antônio Pereira de Figueiredo. Apud. FRANCO,
José Eduardo. Quem influenciou o Marquês de Pombal? op. cit., s.p.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
100
lusitana e a romana, alguns deles provocados por Pombal. Em 1765, quando as
relações entre Roma e Lisboa estavam rompidas, o padre Figueiredo publicou seu
Doctrina veteri Ecclesiae de supremo regum, em que defendeu o poder dos reis de
direito divino. O texto defendia, baseado em argumentos teológicos, que o poder
temporal teria sido dado aos reis diretamente por Deus para que se garantisse a
felicidade dos vassalos e o bom andamento das sociedades humanas. Para tanto, era
necessário que as leis dos monarcas fossem superiores no temporal, devendo todos a
elas se submeterem, inclusive a Igreja. Dessa forma, deveriam ser abolidas as isenções e
imunidades de foro eclesiástico, bem como a cobrança de tributos exercida pela Igreja.
O poder pontifício seria soberano, mas apenas na sua esfera
41
.
Durante a década de 1760, o rompimento com Roma gerou o problema de quem
poderia autorizar as dispensas matrimoniais exigidas principalmente por nobres que
desejavam se casar com parentes próximos, o que era apenas de jurisdição do papa.
Pombal quis autorizar o episcopado local a realizar tais dispensas, entretanto houve
hesitação de alguns bispos. Nesta situação, Pombal pediu a Figueiredo que produzisse
uma defesa dessa prerrogativa aos bispos em momentos de rompimentos com a Santa
Sé. Daí nasceu a Tentativa Teológica, um dos principais textos de fundamentação do
regalismo no período pombalino, defendendo a paridade entre as jurisdições do bispo de
Roma e os demais bispos da Igreja Católica
42
. Segundo Figueiredo, todos os bispos
teriam este poder dado por Cristo aos apóstolos para governarem as dioceses que a
cada um coube por sorte (...), era um poder absoluto e ilimitado que se estendia a todo
gênero de casos”
43
. O papa, como sucessor de São Pedro, teria sua missão especial
apenas em garantir a unidade da Igreja e impedir cismáticos e heréticos. A defesa da
autonomia das Igrejas nacionais, também articulada por Figueiredo em outras obras,
como a Demonstração theologica
44
, era mais uma forma de limitar a esfera de
jurisdição papal, impedindo sua ingerência em Portugal. Pombal incentivou a
divulgação de iias regalistas também ordenando a tradução da obra do alemão
Nicolaus von Hontheim, que divergia da idéia de poder supranacional do papa. O livro,
41
FRANCO, Jo Eduardo. Quem influenciou o Marquês de Pombal? op. cit., loc. cit.
42
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit., pp. 150-152.
43
FIGUEIREDO, Annio Pereira. Tentativa Teológica... apud FRANCO, José Eduardo. Quem
influenciou o Marqs de Pombal? op. cit., loc. cit.
44
Demonstração theologica, canonica, e historica do direito dos metropolitanos de Portugal para
confirmarem, e mandarem sagrar os bispos suffraganeos nomeados por Sua Magestade; e do direito dos
bispos de cada provincia para confirmarem, e sagrarem os seus respectivos metropolitanos, tambem
nomeados por Sua Magestade, ainda fóra do caso de rotura com a corte de Roma (1769).
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
101
publicado em 1763 sob o pseudônimo de Justinus Febronius, foi traduzido para o
português com o título de Do estado da Igreja e poder legítimo do pontífice romano
45
.
A retirada da Igreja de importantes aparelhos ideológicos e a sua incorporação ao
Estado atingiu também a Inquisição. Em 1768, o novo Intendente-geral assumiu os
poderes de polícia da Inquisição, restringindo sua esfera de atuação civil. Um ano
depois, o tribunal do Santo Ofício em Portugal foi tornado dependente do governo e, a
partir de então, as propriedades confiscadas pela Inquisição passavam a fazer parte do
Tesouro nacional
46
. Na reforma da Inquisição, extinguiram-se os autos-de-fé públicos e
a pena de morte
47
.
Como não podia deixar de ser, as ões reformistas referentes ao Santo Ofício
também ensejaram uma obra de propaganda pombalina, o e último Regimento do
Santo offício da Inquisição dos Reinos de Portugal, também conhecido como
Regimento Pombalino da Inquisição. O texto legislativo foi escrito por Basílio da
Gama, sob orientação de Carvalho e Melo, e foi publicado em uma edição luxuosa, em
1774, tendo uma nota introdutória do Cardeal da Cunha. Como em outros textos,
procurava-se abolir a imagem obscurantista que caía sobre Portugal, também pela
presença e ação da Inquisição nesse Reino, atribuindo as atrocidades à ação dos jesuítas
no controle do Santo Ofício, sendo que o novo regimento [foi] emanado para
completar o projeto governamental em curso para iluminar o Reino e combater o
‘império das trevas’ perpetrado pelos Jesuítas”
48
.
O pombalismo construiu-se adotando algumas idéias oriundas da Ilustração
européia e repudiando outras, principalmente aquelas mais radicais, de cunho deísta ou
ateísta e que eram contrárias ao absolutismo e ao colonialismo
49
. Um exemplo dessa
apropriação seletiva das Luzes pode ser percebido no Alvará, com força de Lei, de 16 de
Janeiro de 1773, através do qual o governo pombalino concedeu liberdade aos escravos
negros existentes em Portugal e assegurou a liberdade dos que nascessem a partir da data
de publicação da lei. Segundo Falcon, “o texto dessa lei critica o que chama de
45
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: Paradoxo do Iluminismo. op. cit., p. 102.
46
Ibidem, p. 99.
47
Ibidem, p. 100
48
FRANCO, José Eduardo. Os catecismos antijesticos pombalinos: As obras fundadoras do
antijesuitismo do Marquês de Pombal. In: Revista Lusófona de Ciência das Religiões. Lisboa, nº 7/8,
2005, p. 267.
Disponível em <http://cienciareligioes.ulusofona.pt/arquivo_religioes/religoes7_8/pdfIV/247-268-PT3-
ARTIGOS-E-FRANCO.pdf> Acesso em 22 fev. 2008.
49
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit., pp. 195 e 203-
206.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
102
‘superstição dos romanos’ e proclama enfaticamente o caráter ‘intolerável da
escravatura”
50
, ou seja, tem uma perspectiva bem ilustrada. A diferença é a extensão
dessas Luzes, pois, ainda seguindo Falcon, “ao que parece, as ‘luzes’ estavam restritas, ao
lado de lá do Atlântico uma vez que sequer é mencionada a questão dos escravos negros
do Brasil
51
.
As noções secularizantes das Luzes foram apropriadas pelo pombalismo também
na refutação do corporativismo escolástico e das crenças messiânico-milenaristas
52
.
Corporativismo e milenaro-messianismo participavam de visões religiosas de mundo,
com algumas características específicas no caso português, demarcando papéis para o
poder político e visões sobre a história, constituindo a tradição com a qual o
pombalismo estabeleceu o seu diálogo. Diálogo que, na maioria das vezes, destinava-se
a refutar essa tradição, e, nessa contestação, construir novas concepções poticas,
fundamentando suas práticas. Para Maxwell:
As formulações legais do Estado pombalino eram justificadas como uma aplicação
da lei natural, um sistema secularizado que era uma construção lógica na qual a
razão, mais do que a fé ou o costume, definia a justiça ou a injustiça
53
.
O quantoa razão é definidora legal e jurídica do Estado pombalino, em relação
à e ao costume, é algo difícil de ser medido. A tendência secularizadora, uma das
principais características das Luzes, teve um limite claro nos países da chamada
Ilustração Católica, como Portugal, pelo fato de ser esse último pensamento baseado na
divina revelação de um Deus pessoal”
54
, em que a iia de razão é, ela mesma, um
atributo de Deus. As fundamentações teóricas do pombalismo, na maioria das vezes,
foram desenvolvidas em circunstâncias em que as medidas poticas às quais se referiam
estavam implementadas ou em andamento. A utilização do direito natural moderno,
ou mesmo de conceitos oriundos deste, foi bastante comum, entretanto, foram
apropriados aqueles que mais se aproximavam das teorias católicas: o contrário disso
seria uma ruptura impensável para aquele momento português. Assim, os enunciados
políticos do pombalismo compartilham noções caras àquelas mesmas linguagens que
buscam refutar.
50
FALCON, Francisco José Calazans. As práticas do Reformismo Ilustrado pombalino no campo
jurídico. Revista de História da Idéias. Coimbra, v.18: 511-527, 1996, p.517.
51
Idem.
52
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit, p. 203.
53
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: Paradoxo do Iluminismo. op. cit., p. 116.
54
MILLER, Samuel. Portugal and Rome c. 1748-1830: An Aspect of the Catholic Enlightenment. Rome:
Università Gregoriana Editrice, 1978, p. 1.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
103
O Tratado de Direito Natural, de Tomás Antônio Gonzaga, foi uma das obras que
buscou legitimar, no nível jurídico, as reformas empreendidas pelo pombalismo
55
. O
texto, dedicado ao Marquês de Pombal, também se inseriu nas disputas jurisdicionais
entre o poder secular e o poder eclesiástico. Gonzaga fez a opção pelo jusnaturalismo de
Heinécio, para quem a Lei Eterna pode emanar do Criador, e não por Grócio e
Pufendorf, que aceitavam a possibilidade da existência do Direito Natural ainda que
Deus não existisse
56
. O que insere Gonzaga na tradição jurídico-potica teológica
57
. Em
seu Tratado, Gonzaga negava o poder do papa sobre o século, ainda mais para depor
reis essa prática teria sido uma concessão que alguns reis haviam dado aos papas.
Dessa forma, defendia a ausência de qualquer poder estranho que pudesse concorrer
com a Coroa, tanto do Direito Natural quanto do divino. Era também contra as
limitações de poder internas (nobreza e clero)
58
. Na sua concepção, o poder potico era
fundamentado por Deus de forma imediata, eo mediada pelos povos. Aqui, ele
argumentava que, pela perfeição divina, Deus não daria o poder para quem o poderia
exercê-lo. O ato de eleger o soberano realizado pelos povos não significava que esses
possuíssem o poder que estava em Deus: em sua perfeição, Deus não daria o poder aos
povos para que depois esses o transferissem para alguém
59
. Desse modo , era repelida
toda forma de resistência ao soberano, concebida como uma resistência a Deus
60
. No
âmbito secular, até a esfera eclesiástica deveria total obediência às leis do Estado
61
.
Apesar de inserido no contexto pombalino de fundamentação do absolutismo e de sua
repulsa a concepções corporativas escolásticas, principalmente no aspecto que essas
teorias limitam a ação do soberano, o Tratado de Direito Natural compartilha vários
conceitos com os teóricos da Segunda Escolástica. Dentre eles, destacam-se a
concepção do Estado como um corpo em que o rei é a cabeça; a origem do poder civil a
partir de um pacto; e o fim deste poder que é o bem comum
62
.
55
GOMES, Rodrigo Elias Caetano. As Letras da Tradição: O Tratado de Direito Natural de Tomás
Antônio Gonzaga e as Linguagens Políticas na Época Pombalina (1750-1772). 2004. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em História, p. 50. As
análises do Tratado de Direito Natural são todas tributárias desse trabalho.
56
Ibidem, p. 100.
57
Sobre esse aspecto ver também: VALLE, Sofia Alves. As concepções jusnaturalistas de Tomás Antônio
Gonzaga (1744-1810) no Tratado de Direito Natural e na Carta sobre a usura. 2005. Dissertação
(Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em História, pp. 60-88.
58
Ibidem, p. 107.
59
Ibidem, p. 110.
60
Idem.
61
Ibidem, p. 113.
62
Ibidem, p. 108-109 e 117.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
104
O pombalismo, como conjunto de iias, deve ser entendido, então, como uma
perspectiva potica ilustrada, de construção e fundamentação de novos pensamentos e
novas práticas poticas. Não era possível se construir um pensamento historicamente
novo que rejeitasse tudo o que lhe era anterior, ou mesmo que ignorasse a existência de
qualquer tradição. Pelo contrário, a compreensão da construção de uma perspectiva
política e histórica ilustrada, em Portugal, deve-se ter como referência o conjunto de
idéias então em circulação no Reino e esta é a visada deste estudo sobre o pombalismo.
Embora haja vários pontos de encontro entre os pensamentos ilustrados
desenvolvidos em vários países europeus do século XVIII, os contextos e realidades
nacionais são fundamentais para se entender o lugar e os interlocutores dessas vozes. No
caso português, é significativo, como seu viu, que algumas idéias ilustradas fossem
rejeitadas devido ao seu “radicalismo”, ao rompimento com a ordem existente. A
proposta, aqui, é entender os enunciados do pombalismo ao refutar os pensamentos
corporativista escolástico e messiânico-milenarista, pois esses foram temas
fundamentais do pensamento político e da compreensão da história em Portugal durante
a Época Moderna, além de terem sido alvos explícitos do próprio pombalismo. Assim,
procura-se entender o pombalismo dentro do diálogo de iias coevo à sua formulação e
execução, diálogo que proporcionou a sua própria construção.
Com a morte de D. José em 1777, subiu ao trono sua filha, D. Maria I, e o poderoso
ministro Marquês de Pombal saiu do governo. O reinado mariano (1777-1816, sendo que,
entre 1792 e 1816, se deu a regência de D. Jo) foi acusado, em sua própria durão, de
ser uma “Viradeira”, ou seja, de implicar um retorno às práticas políticas anteriores a
Pombal, ou até mesmo um retorno ao atraso e ao obscurantismo. Essa iia, contudo, não
se sustenta quando se avaliam as linhas gerais pelas quais se pautou o governo de D.
Maria I. O mesmo vale para a regência e reinado de seu filho, D. João (regente desde
1792 e rei, desde 1816). Houve a manutenção de alguns importantes homens do peodo
pombalino em altos cargos de governo, bem como de suas iias, como Pina Manique,
Martinho de Mello e Castro, D. Rodrigo de Souza Coutinho, e o retorno de um dos
grandes homens do pombalismo, Jode Seabra da Silva
63
. Houve, é verdade, um recuo
em relação à Igreja e às decies papais, que conquistaram um maior espaço, sem,
contudo, minar a preponderância do poder secular e sem que a ordem dos jesuítas fosse
restabelecida em terras lusitanas. Quanto às teorias políticas, no período mariano percebe-
63
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit., p.153;
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: Paradoxo do Iluminismo. op. cit., p. 162.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
105
se uma “‘monarquia temperada’, que associava elementos das concepções corporativas e
absolutistas providencialistas e, ainda, que estava a meio caminho da monarquia
constitucional
64
. Portanto, apesar de algumas mudanças no campo das idéias e práticas
políticas, os dois últimos governos do Reformismo Ilustrado português, de D. Maria e do
príncipe D. João, seguiram os princípios dos tempos de Pombal: uma apropriação seletiva
e pragmática das Luzes, principalmente daquelas que proporcionassem um melhor
aproveitamento das potencialidades comerciais e manufatureiras do Império português; a
defesa do absolutismo, e da sociedade estamental. A censura às obras que contrariassem
essa última característica permaneceu no peodo mariano e joanino, mesmo com as
reformas empreendidas na censura por D. Maria
65
.
Durante esses dois últimos reinados do Reformismo Ilustrado português, houve
um arrefecimento mais teórico que prático do regalismo. As principais discussões em
torno das questões jurídicas e poticas do período foram ainda fruto das largas
produções da época pombalina, como os textos e discussões entre Pascoal de Melo
Freire e Antônio Ribeiro dos Santos, “velhos companheiros do regime pombalino”. No
debate entre os dois, “Ribeiro, havia começado a abraçar uma interpretação mais
constitucionalista do Estado e do papel da sociedade civil”, enquanto Melo Freire
“mantinha-se fiel à visão absolutista”. Assim, o pombalismo “foi precursor do debate
que estava por vir, quando a crise do século XVIII relativa ao governo e à representação
entrou em sua fase mais aguda e violenta, esse debate iria dividir Portugal durante os
primeiros trinta anos do século XIX”
66
. Isso mostra a importância de se estudar a
intensa produção de obras do período pombalino, quando a luta de jurisdições entre os
poderes secular e religioso foram mais profundas.
64
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit., p.157.
65
Ibidem, pp. 206-207. A censura no período mariano foi também influenciada pelos eventos e papéis
relativos à Revolução Francesa. Inicialmente, a simpatia demonstrada por alguns jornais portugueses aos
revolucionários franceses foi endossada pela censura portuguesa. Entretanto, o desenvolvimento dos
acontecimentos fez com que a posição se invertesse, havendo uma defesa do absolutismo, de Luís de XVI
e da fidelidade que se deve ao soberano, principalmente os portugueses. Ibidem, pp. 197-198 e 237.
66
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: Paradoxo do Iluminismo. op. cit., p. 177.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
106
3.1 O pombalismo e a refutação do providencialismo histórico e do
corporativismo escolástico
O ideário pombalino se manifestou em diversas formas textuais, nos livros
diretamente escritos por Pombal e pelos homens de sua equipe; na edição de livros de
outros autores que manifestavam concordância com suas idéias; e nos longos
considerandos” das leis e editais assinados por D. Jo I. Os textos das leis foram
inclusive utilizados por Frei Manuel do Cenáculo na educação potica do príncipe D.
José, neto do então rei
67
.
Os textos dos editais lançados pela Real Mesa Censória são bastante elucidativos
do corpo de idéias defendidas e refutadas pelo pombalismo. Aliás, os textos do
pombalismo costumam ser inter-referentes, ou seja, usa-se um texto pombalino para
“legitimar” ou dar “autoridade” ao argumento desenvolvido em outro. Assim, a Relação
Abreviada é tida como uma das “provas” da Dedução Cronológica e Analítica, e a
própria Dedução serve de prova para uma grande quantidade de editais que visavam
refutar obras e idéias que se relacionavam principalmente aos jesuítas, no que tange ao
pensamento corporativo escolástico e às crenças messiânico-milenaristas
68
.
É dentro de uma secularização da potica e de execução de práticas poticas
ilustradas que se entende o combate pombalino às idéias milenaristas e ao
providencialismo histórico. As reformas pombalinas no sistema de censura português
são muito significativas nesse sentido. A Real Mesa Censória, como se viu, exibia uma
tentativa de controle do poder secular sobre obras e idéias em circulação no Império
português. As iias milenaristas, vistas também, pelo pombalismo, como
“maquinações” dos jesuítas, foram condenadas no Edital da Real Mesa Censória, de 9
de dezembro de 1774, por espalharem “a Ignorancia, a Superstição, e o Fanatismo;
oppostos á verdadeira Sabedoria, á lida Crença, e á santa, e pura Religião”
69
. Com
67
Ibidem, p. 108. Maxwell afirma que os “considerandos” das leis também foram utilizados por Pombal
como uma das formas de propaganda política “descrevendo para audiências domésticas em linhas gerais,
com pormenores às vezes cansativos, os objetivos e antecedentes das mudanças políticas, assim como a
essência da própria medida”. Ibidem, p. 98.
68
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit., p. 192. Deve-
se ressaltar ainda que os editais eram enviados a todas as partes do Império português, afixados e lidos
nas câmaras. Prática que era anterior ao período pombalina e que foi continuada neste, sendo, pois, uma
das formas de divulgação de seu ideário, muito embora tenha havido queixas à Coroa pelo não
recebimento de alguns editais no Brasil. Ibidem, pp. 244-245 e 273.
69
EDITAL da Real Meza Censoria, em que se prohibe o livro intitulado: Anacephaleoses da Monarquia
Lusitana, Author Manoel Bocarro Francez. In: COLLECÇÃO DOS EDITAES, que se tem publicado
pela Real Meza Censoria, erecta por El Rey fidelissimo D. JoI. Nosso Senhor, pelos quaes prohibe
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
107
obras como Anacephaleoses da Monarquia Lusitana, de Manoel Bocarro, principal
objeto de proibição do edital citado, ou Esperanças de Portugal, Quinto Imperio do
Mundo, de Antônio Vieira, os jesuítas pretendiam:
Fazer os Homens Estupidos, Enthusiastas, Supersticiosos, e Fanaticos:
Suggerindo-lhes Objectos falsos, quiméricos, e impossíveis: Persuadindo-lhes a
facil crença de affectados Prognosticos, falsas Profecias, e fingidas Revelações:
Costumando-os a pensar em Futuros contingentes, quando não ha Meio algum
para se conhecerem; a esperar cousas vans, e extraordinarias; e a investigar pelo
natural Curso, e Movimento dos Astros futuros acontecimentos, que dependem
do Livre Arbitrio: E convidando-os, e induzindo-os para trabalharem
infatigavelmente por novas descubertas de preciosidades quiméricas, e riquezas
impossíveis: As quaes todas sobreditas cousas o a base da Ignorancia, da
Insipiencia, da Supersitção, e do Fanatismo: Conseguindo elles Jesuitas pelos
reprovadissimos Meios, por huma parte; o apartarem os Homens das uteis, e
proveitosas applicações Fysicas; e por outra parte, cansarem as imaginões
debeis, para que impossibilitadas para fazerem reflexoens sérias, e maduras
sobrea as cousas Moraes, facilmente succumbissem a todas, e quaesquer
impressões Fanaticas, e Supersticiosas, que elles Profesores da infesta
Sociedade lhes quizessem suggerir, tendentes ás suas malignas idéas, e
diabolicos interesses
70
.
Há, aqui, uma condenação das crenças proféticas por sua irracionalidade e por
desviarem a atenção dos homens dos úteis conhecimentos, que seriam as causas sicas e
naturais do mundo. Não haveria como se predizer nada na história, nem por meio de
astros, nem através de escritos religiosos e proféticos: os acontecimentos seriam frutos
do livre-arbítrio do homem
71
. É clara a perspectiva ilustrada na condenação da
superstição e do fanatismo presente nas profecias milenaristas, percebendo-se uma
interpretação mais racional e natural da realidade, sem que se excluísse de forma total o
divino, a metafísica, da compreensão do mundo e da história.
O mesmo edital citado condenava explicitamente a profecia do Quinto Império em
Portugal, afirmando que as obras proibidas pretendiam provar através do Movimento
dos Astros” e de Cálculos Astrologicos”, que
havia de acabar o Imperio Otomano; em cujo lugar se levantaria outro novo
Imperio em Portugal; declarando, qual dos Soberanos desta Monarquia havia de
ser o primeiro Imperador do novo Lusitano Imperio; cujo Chefe havia também
dominar em todos os Póvos sujeitos ao Imperador dos Turcos
72
.
varios livros. Desde 10 de Junho de 1768. até 6 de Março de 1775. Lisboa: Regia Officina Typografica,
1775, s.p. (Foi consultada uma versão digitalizada da obra, disponível no site da Biblioteca Nacional de
Portugal – www.bn.pt ).
70
Ibidem, s.p.
71
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit., p. 217.
72
EDITAL da Real Meza Censoria, em que se prohibe o livro intitulado: Anacephaleoses da Monarquia
Lusitana, Author Manoel Bocarro Francez. op. cit., loc. cit.; VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo
Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit., p. 215.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
108
Entre os fatores apontados por Koselleck para a secularização do pensamento
histórico na Época Moderna e a desconstrução da expectativa histórica de cunho
providencialista, estão envolvidos processos políticos fundamentais para o mundo
moderno. Um dos fatores aponta para o papel dos Estados na construção da história
humana e para a separação entre história sacra e profana. O Império Romano-
Germânico, segundo Koselleck, não seria mais concebido como portador de uma função
escatológica. Para o autor,
A história humana não tem qualquer meta a atingir; ela é o campo da
probabilidade e da inteligência humana. Assegurar a paz é uma tarefa do
Estado, e não uma missão de um Império. [...] A emerncia de uma história
humana, independente da história sacra, e a legitimação do Estado moderno,
capaz de submeter os partidos religiosos cônscios de sua sacralidade, são [...]
um mesmo processo
73
.
Outro fator desenvolvido por Koselleck é diretamente ligado ao anterior: a gênese
do Estado absoluto implicou uma busca do controle sobre a história e sobre o futuro.
Nessa busca, o Estado reprimiu as previsões apocalípticas e astrológicas
74
, afirmando-se
frente à Igreja e tornando-se o principal agente histórico. Nesses dois fatores,
encontram-se esquematizadas algumas questões particulares da construção do
pensamento político e histórico sob o pombalismo. Segundo João Lúcio de Azevedo e
José Van Den Besselaar, a perseguição aos escritos proféticos e milenaristas sob
Pombal, especialmente de Vieira, foi, antes de tudo, mais uma forma de se destruir os
jesuítas em Portugal, pois, naquele momento, os defensores dessas iias, ainda
presentes, sobretudo entre os sebastianistas, eram pacatos e esperavam pacientemente a
chegada do futuro melhor; logo, eles não representavam nenhuma verdadeira ameaça
política a Pombal
75
. Apesar de desmerecido por esses autores, o cunho ideológico do
anti-milenarismo pombalino é fundamental para se compreender a sua lógica potica e
histórica. Primeiramente, pelo fato, salientado pelo próprio Besselaar, de que “os
profetas e os seus adeptos são elementos incômodos para as autoridades, porque às
seguranças e às leis da ordem estabelecida preferem outras certezas e outras normas que
o são deste mundo”
76
, o que era bastante problemático para um Estado que se
73
Ibidem, p. 29.
74
Ibidem, loc. cit.
75
AZEVEDO, João Lúcio de. A evolução do Sebastianismo. Lisboa: Editorial Presença, 1984, pp. 90-93;
BESSELAAR, José Van Den. O Sebastianismo – História Sumária. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, 1987, pp. 137-138.
76
BESSELAAR, José Van Den. op. cit., p. 137.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
109
pretendia absolutista, e que, como tal, como salientou Koselleck, buscava o controle da
história em plano temporal.
Como segundo fator, as profecias e os milenarismo apoiavam-se em concepções
religiosas do tempo, em que passado, presente e futuro definiam-se pela Providência
Divina, numa crença no interior da qual o poder temporal era inferiorizado frente ao
religioso, ou mesmo, apenas se definiria na medida em que concorresse para a salvação
religiosa dos súditos. Essa crença era bastante importante em Portugal, onde reis se
viam como evangelizadores do mundo e onde o fenômeno da esperança messiânica
tinha uma altíssima relevância
77
. O providencialismo histórico de Antônio Vieira e de
João de Vasconcelos, na Restauração de Portugal Prodigiosa, também unia as esferas
política temporal e religiosa, e o fundamento do Estado tornava-se a evangelização, o
que não era compatível com o Estado pombalino, para o qual os objetivos profanos,
como o desenvolvimento técnico e econômico, tornaram-se prioritários.
Como último fator da condenação pombalina a esses escritos “jesuíticos”, deve-se
mencionar o seu já citado caráter ilustrado de perseguição às superstições e ao
fanatismo, concebidos como irracionais e “inúteis”. Aqui, é retomado um traço
fundamental da Ilustração, o seu utilitarismo, já ressaltado nas obras de Verney, Ribeiro
Sanches e D. Luís da Cunha. Afinal, segundo o pombalismo, um dos objetivos dos
jesuítas ao incutirem tais crenças entre os portugueses era “apartarem os Homens das
uteis, e proveitosas applicações Fysicas”. Dentro dessa perspectiva, o conhecimento das
aplicações físicas, e todos os demais que poderiam advir do conhecimento racional e
empírico da natureza, deveriam ter resultados úteis ao progresso econômico português.
Embora se rejeitasse o providencialismo histórico, em que a missão do Estado no
tempo é o cumprimento dos desígnios divinos e de sua história, a idéia de um
providencialismo político, em que o fundamento do poder é emanado diretamente de
Deus ao rei, não foi estranha ao pombalismo. Essa doutrina foi exposta, como se viu, no
Tratado de Direito Natural, e na utilizão, no corpo de leis, de fórmulas como:
usando aos respeitos de todo o pleno e Supremo Poder, que na temporalidade recebi
imediatamente de Deus Todo-Poderoso”
78
, mesmo que essa doutrina o constituísse
uma uniformidade em todos os escritos oficiais, ou mesmo em todo o período
pombalino.
77
ROMEIRO, Adriana. Um visionário na Corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001, pp. 69-70. AZEVEDO, João Lúcio de. op. cit., p. 7.
78
FRANCO, Jo Eduardo. Quem influenciou o Marquês de Pombal? op. cit., s.p.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
110
A principal lei do reformismo jurídico pombalino foi a de 18 de agosto de 1769, a
chamada “Lei da Boa Razão”, assim denominada em função do apelo freqüente que se
faz no seu texto à recta ratio’”. Nela, se estabelece que, nos julgamentos, devem-se
seguir, primeiramente, as “leis pátrias” e estilos da corte” somente quando
legitimados através de ‘assentos’ da Casa de Suplicação, de Lisboa”
79
–; em seguida, o
costume, “desde que o fosse contrário à Lei, e possuísse mais de cem anos de
existência”; e, em último caso, o direito romano, “mas desde que fosse conforme à ‘boa
razão’, isto é, conforme aos princípios do direito natural e das gentes”
80
. As condições
expostas para que seguisse um costume dificultavam bastante a permanência legal de
algum. Nessa situação, na medida em que se considerava que as leis emanadas da Coroa
orientavam-se pela razão, colocava-se essa última acima dos costumes. Além disso, a
mesma lei excluiu o direito canônico dos tribunais régios, estabelecendo o seu uso apenas
ao nível eclesiástico
81
. Utilizou-se, pois, o argumento da razão ilustrada, manifestada em
forma de leis, para se justificar a quebra com a tradição, com os costumes e com os
direitos adquiridos dos corpos políticos, o valorizados pelo pensamento político
corporativo escolástico. Com isso, dava-se mais um passo na fundamentação do
absolutismo
82
.
Como se viu no Capítulo 1, as teorias poticas da Segunda Escolástica não podem
ser vistas como necessariamente contrárias ao absolutismo. Torgal defende que tanto a
tradiçãode origem popular do poder, quanto as teorizações juspoticas neo-tomistas,
79
FALCON, Francisco José Calazans. As práticas do Reformismo Ilustrado pombalino no campo
jurídico. op. cit., p.522.
80
Idem.
81
Ibidem, p.522
82
Os costumes se embasavam, dentre outros aspectos, na previsibilidade das ações e/ou respostas dos
soberanos às demandas dos povos, bem como de seus reperrios de contestação. Em outras palavras, os
momentos em que a ação da Coroa contrariava algum costume, os povos sabiam como agir para retornar
à ordem anterior, assim como, mediante as sublevões dos povos, os soberanos agiam no sentido de
voltar às formas acomodatícias pré-existentes (ANASTASIA, Carla. Vassalos Rebeldes: violência
coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte, C/ Arte, 1998.) A Lei da Boa
Razão tentou romper com esse círculo, colocando na capacidade legislativa da Coroa – portadora da razão
– a legitimidade de avaliar aracionalidade”, ou não, de determinado costume, fundamentando um
absolutismo de raiz ilustrada. Há indícios de resistências a esse desmerecimento dos costumes e dos
riscos que tal postura poderia acarretar. Carla Anastasia cita, por exemplo, que Antônio de Seabra da
Motta Silva, ouvidor da Comarca do Serro Frio, em carta escrita ao rei, em 1800, “apesar de não
pretender ‘engendrar idéias novas e contrárias à boa razão’, criticava o novo dispositivo, afirmando que a
mantê-lo, ‘cada vez mais as justiças ordinárias romperão em maiores violências e desatinos e os povos
irão sofrendo dobrados males’” (ANASTASIA, Carla. A Lei da Boa Razão e o novo repertório da ação
coletiva nas Minas setecentistas. Varia Historia, Belo Horizonte, n. 28, pp. 29-38, dez. 2002, p. 38). Ao
mesmo tempo, a autora afirma não parecer que a Lei da Boa Razão tenha sido inócua por dois motivos:
a) pela existência de um fluxo processual em acordo com a nova legislação que se constata pela atividade
do Tribunal da Relação; b) pelo caráter de excepcionalidade atribuído às solicitações de uso do direito
comum (ANASTASIA, Carla. A Lei da Boa Razão e o novo repertório da ação coletiva nas Minas
setecentistas. op. cit., loc. cit.).
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
111
caracteristicamente ibéricas, não impediram uma “tendência centralizadora do Estado e
com um certo realismo e empirismo potico característico do mundo moderno que
desabrochava
83
.
O tratado Escola Moral, Politica, Christãa, e Jurídica (1757), de Diogo Guerreiro
Camacho de Aboym (1661-1709) é um exemplo da conciliação entre teorias tomistas e
um poder do soberano sem limitação terrena. O autor era desembargador do Porto e sua
obra foi publicada, postumamente, já durante o reinado de D. JoI. A Escola Moral
baseia-se nas Sagradas Escrituras e em Santo Tomás, nela está presente a concepção da
sociedade como um corpo, cuja cabeça é o rei, e a idéia de governar como fazer justiça.
Aboym defendia que era altamente necessário que um príncipe fosse um bom
conhecedor da história, dizendo que a principal e mais importante história a ser lida era
a Escritura Sagrada, depois vinham os livros espirituais e as crônicas de religiosos, que
eram mais importantes que as histórias humanas. Através dessas histórias, os príncipes
teriam um bom conhecimento da Filosofia Moral, sendo que,
A liçaõ da philosophia moral he muy util a todos; porque he a que compôem a
armonia do governo, quem a souber, saberá castigar máos, e premiar aos bons;
fazer justiça, tratar dos costumes, prover a terra, dar o que he seu, a quem toca,
plantar as virtudes, arrancar os vicios, reformar os costumes, melhorar, a vida
84
.
A noção de governar como fazer justiça é ainda reiterada quando se explica a
razão pela qual os homens decidiram instituir a sociedade civil. Não podendo mais viver
livremente, os homens criaram um poder que “castigasse a huns, e premiasse a outros, e
desse a cada hum o que era seu officio principal de Justa”
85
. A tradicional mefora
corporal para a sociedade civil é traçada na obra reiteradas vezes. Uma delas se encontra
quando Aboym defende que o rei deve ser como um pai, justo e amoroso com o seus
vassalos:
He todo o Reyno hum homem, em que ha cabeça o Rey, e membros o povo; o
bom Rey tantos Cidadãos tem, tantos membros conta, e assim como este, como
cabeça, se dóe de perder qualquer Cidadão, assim aquelle deve amar, e guardar o
Rey como cabeça (...)
86
.
Dentre as formas de governo, Aboym cita S. Tos para preferir a monarquia. A
anomalia de um corpo ter duas cabeças é a mesma de um reino ter dois senhores.
83
TORGAL, Luís Reis. op. cit., vol. 1, p. 197.
84
ABOYM, Diogo Guerreiro Camacho de. Escola Moral, Politica Christãa, e Juridica. Lisboa: Na
Officina de Bernardo Antonio de Oliveira, 1759, p. 12. (Foi consultado um exemplar presente na coleção
de Obras Raras da Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa – MG).
85
Ibidem, p. 19.
86
Ibidem, p. 24.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
112
dentre as formas de escolha do governante, ele desconsidera a eleição por considerar
que essa maneira tende à corrupção. Prefere o direito de sangue, que é o mais comum no
universo. Os soberanos são tidos como “Vice-Deuses na terra”. Aboym defende que a
própria natureza e conformação dos reis seriam diferentes do comum dos homens,
aproximando-se mais à de Deus. Dessa semelhança divina, adviria a veneração e
obediência que se deveriam às majestades. E, arrematando suas idéias acerca da boa
política, concluía que
Todas estas regras da Prudencia politica se reduzem a esta só, que o povo obedeça
ás leys do Principe, e o Principe obedeça ás ley naturais, e Divinas; porque
suposto que o Principe absoluto he superior ás leys publicas, e ás leys politicas de
seus antepassados, naõ o he das leys Divinas, e das Naturais
87
.
Aqui, percebe-se uma noção de hierarquia de leis oriunda do tomismo (lei eterna,
lei divina, lei natural e leis humanas ou direito positivo). Entretanto, para ele, o príncipe
o estava sujeito às leis civis, nem à tradição das leis dos antigos, ou seja, aos
costumes. O soberano deveria apenas sujeitar-se às leis divina e natural. Dentro desse
limite potico de cunho ético-religioso, ele seria o soberano absoluto. Dessa forma, não
se admitiria a resistência ao poder real, mesmo que ele se tornasse um tirano. Para
Aboym, tirano era o contrário do bom governante e se definiria por ser aquele “que se
naõ sabe governar a si, nem a seus subditos”
88
. Também define tirano por ser aquele que
“Reyna por sua utilidade”
89
. Entretanto, Aboym não admitia a resistência dos súditos
nem mesmo nestes casos.
Compreende-se que esse enunciado inseria-se num momento de afirmação do
poder central que vinha desde o período joanino, e foi uma “solução que articulou
tomismo e absolutismo. Como se verá no próximo capítulo, a Dedução Cronológica
também articulou concepções corporativas escolásticas com o absolutismo em algumas
passagens do texto. Dentre essas articulações do pombalismo, estiveram presentes
algumas soluções semelhantes às apresentadas na Escola Moral, como a hierarquia
tomista das leis e a não submissão do rei às leis civis ou positivas.
Entretanto, o tratado de Diogo Aboym mostra alguns pontos que não se
enquadrariam na linguagem absolutista do pombalismo, principalmente pelo
providencialismo histórico exposto no obra, ao dar resposta a outras questões. Se não se
admite a resistência dos povos ao tirano, esses maus reis não poderiam governar sem
87
Ibidem, p. 27.
88
Ibidem, p. 23.
89
Ibidem, p. 32.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
113
sofrerem nenhuma saão. Para Aboym, a maneira mais infame de se agir um tirano é
quando esse desconsiderava os fins religiosos de seu poder, dando maior valor ao
temporal e mesmo arriscando a legislar em matérias do estado da Igreja. Quando isto
acontecia, a punição divina era irremediável:
Fatal ruina ameaça Deos pelo seu porpheta Isaias no capit. 16. aos Principes, e
aos Reynos, em que faltar o culto da Religiaõ, gens, regnum, quod non servaverit
tibi, piribit: sentença, que vimos executada em os Néros, Domicianos,
Heliogábalos, Maximinos, Diocleciânos, Licinios, Juliânos, dos quaes a huns lhe
quebráraõ as cabeças, a outros arrastraraõ por lugares immundos, huns render
as vidas às mãos de suas proprias casas, outros lhas tiráraõ seos proprios
soldados, huns foraõ feridos de rayos, outros pagáraõ seus peccados com
ignominiosa escravidaõ, e todos (para que o digamos de huma vez) pereceràs
mãos de Deos, que castiga com severidade, os que se daõ por seus inimigos, e de
sua Religiaõ
90
.
A concepção potico-histórica de Aboym admitia a ação direta de Deus na
regulação da ordem moral do mundo. Os Estados têm missões religiosas. São
condenados os Príncipes que “façaõ materias de Estado da Religiaõ”
91
. O Estado
português teria uma especial missão religiosa. Nesse caso, Aboym recuperou o discurso
do destino religioso da Coroa lusa desde a sua fundação:
Entre todos os Principes do mundo nenhuns houve taõ zeloso na materia de
Religiaõ como os Principes Portuguezes, que por zelo, e augmento da fé passaraõ
a conquistar novos mundos, depois de haverem plantado a nestes Reynos,
expulsando primeiro delles aos Mahometanos; (...) que os nossos Serenissimos
Reys sejaõ senhores universais do mundo, como prometeo Christo Senhor nosso
ao primeiro Rey de Portugal. Trabalhem os Principes Portuguezes em estender, e
dilatar o imperio de Christo, que, o mesmo senhor terá cuidado de lhe conservar,
dilatar, e augmentar o seu: tenhaõ muito particular cuidado de favorecer, e
amparar o tribunal da Fé porque o senhor o te muito particular de os defender, e
conservar, porque alem dos bens Espirituais conseguirá o ter o seu Reyno em paz
politica (...)
92
.
A Escola Moral é um exemplo de conciliação entre o corporativismo escolástico,
providencialismo e absolutismo, adequados ao caso português, mostrando que o
absolutismo não é teoricamente incompatível com o corporativismo. Para o
pombalismo, entretanto, a solução de Diogo Aboym era inadequada devido à sua
concepção de fins religiosos do Estado, e o julgamento divino contrário ao controle do
Estado sobre a instituição religiosa.
A perseguição do pombalismo às iias corporativas escolásticas focou-se,
principalmente, sobre as apropriações feitas dessas teorias em Portugal, mormente na
90
Ibidem, p. 34
91
Ibidem, p. 33.
92
Ibidem, pp. 36-37.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
114
Restauração de 1640. Essas formulações apontavam para o poder popular de eleger,
julgar e depor um soberano, quando ele não se mostrasse apto para a função ou mesmo
desrespeitasse costumes e direito adquiridos pelos corpos políticos. Daí a perseguição
do pombalismo às obras que sugerissem tais idéias.
Mais uma vez, os editais da Real Mesa Censória, através da fundamentação de
suas interdições, são fundamentais na compreensão da repressão às teorias neo-
escolásticas sob o pombalismo. Sempre associado ao pensamento jesuítico, o
corporativismo escolástico é condenado, por exemplo, no Edital de 12 de dezembro de
1771, em que a “perniciosa Ethica de Aristoteles, fonte de todas as agressões moraes”, é
utilizada pelos inacianos para perturbar as “consciencias dos Fieis”, o “socego publico,
e do mesmo Throno Real”, divulgando iias que sugeriam, inclusive, o regicídio
93
. O
mesmo edital proíbe obras de importantes autores da Segunda Escolástica, como
Molina, Bellarmino e Mariana
94
. Vistos como “monarcômacos”, esses autores e a
utilização de suas idéias pelos jesuítas visariam à destruição da lealdade dos vassalos a
seus soberanos, e aos ministros régios
95
.
Como se viu no Capítulo 1, as teorias da Segunda Escolástica foram utilizadas na
fundamentação da Restauração de 1640, no seu próprio momento e em textos jurídicos
posteriores, que buscavam a legitimação da causa. A idéia de que a relação entre povos
e soberano era um contrato, e de que um rei injusto poderia ser julgado e deposto, que
fundamentou a Restauração, circulou também no ultramar, gerando outros riscos à
Coroa. Segundo Luciano Figueiredo, essa foi uma das iias que perpassou as
reivindicações dos colonos revoltosos no século XVII e no XVIII, através da concepção
de que o soberano deve respeitar os direitos dos povos e governar com justa,
principalmente em questões fiscais
96
. Isso indica mais uma das preocupações do
pombalismo em se combater a aplicão do neo-tomismo na interpretação da
Restauração, tendo em vista as grandes dificuldades que a metrópole tinha em afirmar o
seu poder e administração na colônia americana. Segundo Villalta,
as teorias corporativas ofereciam subsídios para se questionar, não propriamente
as relações entre os dois lados do Atlântico, mas entre as gentes, a comunidade, e
a soberana (...). Essas teorias (...) conteriam germes para uma possível
legitimação de investidas contra a situação de opressão em que viviam os
colonos, expressa na vexação fiscal, no afastamento dos cargos públicos e na
93
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit., pp. 217-218.
94
Ibidem, p. 219.
95
Ibidem, p. 218.
96
FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Além de súditos: notas sobre revoltas e identidade
colonial na América portuguesa. Tempo, Rio de Janeiro, nº 10, p. 92.
Capítulo 3 – Ideário pombalino e construção do regalismo
115
guinada “neo-mercantilista”: caracterizando-se o governo como tirânico, abria-se
a possibilidade de restituir o poder in actu a quem tinha o poder in habitu...
97
.
Apesar de proibidos, foram encontrados livros que postulavam tais teorias nas
bibliotecas coloniais e, juntamente com ilustrados que refletiram sobre as relações
políticas e coloniais, como o padre Raynal, compuseram o espectro de idéias em que os
Inconfidentes mineiros formularam seus ideais, lendo-as em situação colonial
98
.
A prática potica do consulado pombalino demonstrou, pois, inflncias e
preocupações semelhantes àquelas pensadas por outros ilustrados portugueses
analisados no capítulo anterior. Embora seja de fato impossível se chegar a uma
definição fechada que pressuponha uma total coerência entre os pensamentos
reformistas de Ribeiro Sanches, Verney, o próprio Carvalho e Melo e os demais homens
que compuseram o seu governo, nem mesmo atestar uma homogeneidade das medidas,
idéias e propagandas para todo o período josefino, é possível se entrever alguns traços
comuns que perpassaram o pombalismo. Esses traços marcaram a visão da realidade
portuguesa como atrasada cultural, ecomica e politicamente; a associação desse
atraso à influência religiosa na potica temporal, mormente pela ação dos jesuítas; a
apropriação seletiva de ideais ilustrados no julgamento do atraso português e na
rotulação de “fanáticos” ou supersticiosos” dos métodos e pensamentos jesuíticos ou a
eles associados; a identificação do escolasticismo e do messianismo-milenarismo como
as principais manifestações do que haveria de “trevas”, ou do que precisava ser
superado e iluminado na cultura portuguesa; e a proposição de um governo que, através
de medidas práticas e utilitárias, transformasse a realidade portuguesa, colocando-a a
par das “nações iluminadas” da Europa. Embora tenha sido comum, durante o período
pombalino, o rompimento entre o Marquês de Pombal e alguns de seus colaboradores
diretos e indiretos, como aconteceu com Verney, Ribeiro Sanches, José de Seabra e
outros, isso não anula as relações existentes entre vários pensamentos formulados e
medidas práticas desenvolvidas pelo pombalismo.
No próximo capítulo, analisar-se-ão as concepções pombalinas em sua expressão
historiográfica, formulando conjuntamente idéias históricas oriundas da Ilustração e
visões tradicionais, em que as questões coloniais e a missão do Estado no tempo foram
reformuladas.
97
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit., pp. 467-468.
98
Idem. Ver o Capítulo 8 da tese: “Leituras e Inconfidência Mineira (1789).
Capítulo 4
História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
Por quanto, sendo huma verdade
evidente, e demonstrada, que o malicioso
Plano de hum Rey Portuguez Encuberto,
e do novo Quinto Imperio do Mundo,
fora huma estudada Invenção dos
referidos Jesuitas (...)
Edital da Real Mesa Censória de 6
de março de 1775
No pombalismo, a adoção seletiva de princípios ilustrados e a refutação dos
princípios poticos do corporativismo escolástico e do messianismo-milenarismo
compreenderam também uma refutação das concepções poticas oriundas dessas duas
matrizes de pensamento. Na fundamentação de suas práticas poticas através de
discursos históricos, principalmente com a Relação Abreviada e a Dedução
Cronológica e Analítica, houve uma re-significação de alguns eventos e momentos
históricos portugueses que possuíam interpretões marcadas pelo corporativismo
escolástico e pelo messianismo-milenarismo. O entendimento de uma historiografia
pombalina deve considerar também os conceitos e pensamentos históricos que se
desenvolviam no século das Luzes e como essas noções estavam sendo assimiladas em
Portugal durante a primeira metade do século XVIII. Esses serão os aspectos
examinados neste capítulo.
4.1 Historiografia em Portugal nos setecentos: a Academia Real de História
Portuguesa
O estudo da produção historiográfica portuguesa na primeira metade do século
XVIII é indissociável da Academia Real de História Portuguesa, fundada por D. João V,
em 1720. A Academia Real foi herdeira de práticas acadêmicas que vicejavam em
Portugal desde o século XVII. Não em Portugal. Em outros países europeus como
França e Inglaterra, havia academias que se caracterizavam por não possuírem
especificidade disciplinar: discutia-se medicina, filologia, poesia etc., o que fazia parte
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
117
do entretenimento da vida cortesã. No fim do século XVII, já se percebem uma gradual
especialização e também a introdução dos patrocínios, principalmente do mecenato
régio nas práticas acadêmicas. Na França, com Richelieu, se começou, em 1635, uma
estatização” das academias privadas, arregimentado-as com o objetivo de fazer de seus
membros e conhecimentos um instrumento do Estado. Redes de trocas de documentos
entre abadias, academias e acadêmicos se formaram sob orientação da Coroa francesa
no século XVII
1
.
Em Portugal, o chamado “ciclo dos Ericeiras” teve particular importância nas
práticas acadêmicas. Em 1647, foi fundada a Academia dos Generosos, da qual faziam
parte eminentes nobres do Reino, tendo atividades semelhantes às de outras academias
européias, ou seja, multidisciplinares e de cunho privado e cortesão. Dentre esses
nobres, destaca-se o Conde da Ericeira, D. Luís de Meneses, autor da História de
Portugal Restaurado, uma das principais obras de história de Portugal produzidas até
aquele momento, citada anteriormente. D. Luís de Meneses foi ministro de D. Pedro
II, a quem dedicou sua obra historiográfica, e, no exercício de seu ministério, incentivou
o investimento em manufaturas em Portugal, sendo também conhecido como o “Colbert
português”
2
. Incentivo que não teve continuidade no reinado posterior.
O pai e o avô de D. Luís de Meneses também foram membros da Academia dos
Generosos. Os Ericeiras tinham amplo acesso à cultura européia do período. A obra foi
continuada pelo filho de D. Luís, D. Francisco Xavier de Meneses, 4º Conde da
Ericeira. D. Francisco de Meneses, em substituição à Academia dos Generosos, fundou
as “Conferências Discretas e Eruditas”, em que, além de temas literários de cultura
barroca, discutiam-se questões científicas, isto é, filosóficas; problemas matemáticos,
filológicos e morais. Dentre os temas científicos” tratados, há a zoologia, física e
astronomia, havendo experiências em algumas sessões, em que se “desfaziam” mitos
sobre a natureza, como o do unirnio. O Conde da Ericeira tinha um gabinete de
física em sua casa
3
.
D. Francisco Xavier de Meneses dedicou-se à história ainda no tempo das
“Conferências”, entretanto era um momento de “história filológica”, uma “aturada
busca de documentos e fatos, tanto quanto possível exata e minuciosa, mas não
1
KANTOR, Iris. Esquecidos e renascidos: historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). São
Paulo: Hucitec; Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA, 2004, pp. 24-26.
2
MONTEIRO, Ofélia M.C. Paiva. No alvorecer do “Iluminismo” em Portugal: D. Francisco Xavier de
Menezes, IV Conde de Ericeira (1ª Parte). Revista de História Literária de Portugal, Coimbra, v. 1, 1962,
p.196.
3
Ibidem, p. 207.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
118
culminada por uma visão sintética e interpretativa
4
. Nesse aspecto, ele se enquadrava
no cânon historiográfico que se conformava entre os séculos XVII e XVIII, o qual se
diferenciava das práticas puramente retóricas e era praticado por pessoas que se
dedicavam à erudão e crítica de documentos
5
.
Outro nome de destaque das “Conferências” foi D. Raphael Bluteau que, como D.
Francisco, preocupava-se com as “inexaties da linguagem e os exageros dos
processos poéticos setecentistas”
6
, o que foi posteriormente apontado por Verney como
elementos de permanência da cultura barroca em Portugal e sinal de seu atraso. D.
Francisco de Meneses fundou, em 1717, a Academia Portuguesa, uma espécie de
continuidade das “Conferências”. Na Academia Portuguesa, devia-se trabalhar “em
fazer communicavel a sua universalidade em toda a literatura & dirigir os coraçoens &
discursos moraes & as ciencias, tirando destes as especulaçoens inuteis
7
. Percebem-se,
aqui, elementos da crítica ilustrada ao conhecimento de tipo escolástico.
Além das atividades acadêmicas de Ericeira, mas também sob sua inspiração,
houve em Portugal, a Academia dos Anônimos, fundada em 1717, em que se incluía a
história na medida em que suas obras poéticas também se destinavam ao louvor das
ações dos grandes homens patrícios
8
. E a Academia dos Ilustrados, de 1716, da qual
fizeram parte o próprio Conde da Ericeira, Sebastião Jo de Carvalho e Melo e seu
irmão, João Manuel de Melo. Nesta última, havia discussões de temas da poética, da
política e das “ciências experimentais”, designadas como filosofia natural
9
. Nessas
práticas acadêmicas, há discursos e textos em que se defendem, simultaneamente,
autores e pensadores “modernos”, ao lado de outros antigos” ou barrocos, segundo as
definições da época
10
.
A fundação da Academia Real de História Portuguesa por D. João V correspondeu
a uma integração de academias e acadêmicos existentes em Portugal em um programa
oficial de pesquisa e escrita da história lusa. A Academia Real tinha a especificidade de
ser uma instituição estatal que se dedicava à história com exclusividade, diferentemente
das práticas acadêmicas multidisciplinares que havia em Portugal e mesmo em outros
países europeus. Havia também a noção, exposta por D. Luís da Cunha em reunião da
4
Ibidem, p. 208.
5
KANTOR, Iris. op. cit. pp. 23-24.
6
MONTEIRO, Ofélia M.C. Paiva. op. cit. p. 210.
7
Plano de trabalho do conde da Ericeira (1717) apud SERRÃO, Joaquim Veríssimo. A historiografia
portuguesa: doutrina e critica (Século XVIII). Lisboa: Verbo, 1974, vol.3, p. 59.
8
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. op. cit. vol. 3, p. 61.
9
MONTEIRO, Ofélia M.C. Paiva. op. cit. p. 231.
10
Ibidem, p. 232.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
119
Academia, de que a história compreendia todas as demais ciências. Compreendia-se a
história, ademais, como mestra da potica, conservadora da memória dos grandes
homens, ou seja, algo de utilidade fundamental
11
. A Academia Real foi tachada
negativamente por alguns autores, como Teófilo Braga e Hernani Cidade, por não
possuir uma produção histórica relevante, apenas panegíricos e sermões dentro do estilo
retórico da época, e por ser fruto da “megalomania de D. João, buscando copiar a
Academia Francesa de Inscrições e Belas-Artes
12
. No entanto, a instituição desenvolveu
importantes trabalhos na pesquisa e recuperação de documentos, além de ser um espaço
de discussão e reflexão sobre a história portuguesa.
O programa proposto para a Academia Real, desde sua fundação, era a
composição de uma história eclesiástica, denominada posteriormente Lusitania Sacra, e
secular do reino português e de suas conquistas. Para isso, D. João determinou que não
houvesse nenhuma resistência das instituições (câmaras, cogios, igrejas, ordens
militares, etc.) e arquivos locais ao envio de documentos à Academia, nem mesmo
restrição à entrada de seus membros para pesquisas. De fato, essa era mais uma forma
de se aumentar o poder real diante das demais instituições, assim como de driblar as
dificuldades colocadas por algumas no envio de documentos, que podem ser vistas
como resistências localistas à centralização monárquica
13
. A história feita na Academia
Real deveria contar grandes feitos de portugueses em Portugal e pelo mundo, elevar a
glória do país, o sentimento de pertencimento e amor à pátria em Portugal
14
.
Até a criação da Academia Real de História Portuguesa, as principais obras da
história de Portugal eram a Monarquia Lusitana, dos monges alcobacenses, cuja
qualidade varia de acordo com o autor; e a História de Portugal Restaurado, do
Conde da Ericeira
15
. A história do reino estava a cargo do cronista-mor, que era
desenvolvida paralelamente à crônica religiosa. Durante o século XVII, os monges
cistercienses de Alcobaça tiveram a hegemonia no cargo de cronistas do Reino, dando à
história portuguesa uma tradição historiográfica particular. Recuaram as origens de
Portugal ao Gênesis. Os reis portugueses seriam descendentes de Túbal, neto de Noé.
Traçaram uma linha de continuidade providencialista na história portuguesa. Foi
11
KANTOR, Iris. op. cit. p. 44.
12
CUNHA, Norberto Ferreira da. A desdivinização do mundo histórico no culo XVIII. In: Elites e
acadêmicos na cultura portuguesa setecentista. Lisboa: Casa da Moeda/Imprensa Nacional, 2001, pp. 45-
46.
13
KANTOR, Iris. op. cit. pp. 64-65.
14
Ibidem, p. 58.
15
TORGAL, Ls Reis. Antes de Herculano... In: TORGAL, L.R.; CATROGA, F.; MENDES, J.M.A.
História da História em Portugal sécs. XIX-XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 21.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
120
também na Abadia de Cister que se forjou a autoridade do milagre de Ourique, aqui
analisado
16
. A versão criada pelos monges disseminou-se em outras narrativas da
história portuguesa. A origem do reino luso na História de Portugal Restaurado, por
exemplo, era narrada assim:
O Reino de Portugal teve princípio com o nome de Lusitânia, como assentam as
mais certas opiniões, no ano 1800 da criação do mundo, 150 depois que Deus
(castigados os insultos dos homens) suspendeu a inundação das águas, 2170 antes
que Cristo, para Redenção Universal, se revestisse da natureza humana. Foi
Túbal, neto de N, segundo Adão do Mundo, primeiro pai dos portugueses,
porque, pertencendo a Jafete, de que foi quinto filho, a propagação da Europa, e
saindo Túbal de Itália navegou o Mar Mediterneo, tocou o Estreito de Gibraltar
e o Promontório Sacro, e surgiu na parte mais ocidental da Europa, onde
desembarcou, afeiçoado de um sítio sobre o Mar Oceano, que banhavam as águas
do rio Sálio por um lado, ficando por outro pouco distante as do Tejo. Neste lugar
fundou Túbal o primeiro de Espanha, que, com a duração do nome de Setúbal,
que quere dizer ajuntamento de Túbal, conserva o agradecimento do benefício; e
com esta coroa deu princípio ao Império de Espanha
17
.
As pesquisas desenvolvidas pelos membros da Academia Real deveriam pautar-se
pela crítica documental, a confrontação de fontes e a narração dos eventos verdadeiros
oriundos deste trabalho. Entretanto, os Estatutos da Academia orientavam seus
membros no sentido de que a instituição fora criada para que “se perpetu[ass]e a
memória das ações pias, generosas, e úteis ao culto da Religo, ao serviço Real, e ao
bem comum dos seus Vassalos”
18
. Assim, o objetivo inicialmente traçado na Academia,
de composição de uma Lusitania Sacra, não era de restituir as memórias da nação
portuguesa com as vitórias e derrotas, riquezas e misérias, “mas, sim, r em relevo o
lastro providencial da (...) história e o papel tutelar e edificante que nela tinham
desempenhado os eclesiásticos e outras figuras carismáticas da Igreja Católica e da
Pátria portuguesa”
19
.
Como mostra Norberto Ferreira da Cunha, não é possível estabelecer um
programa, uma teoria e mesmo uma metodologia uniforme de pesquisa e escrita
histórica aos vários membros da Academia Real de História Portuguesa. Enquanto para
uns, como Manuel Caetano de Sousa, a crítica histórica possuía rios limites, de forma
que nada que contrariasse a tradição, ou mesmo que depusesse negativamente contra o
Reino e a Igreja portugueses pudesse ser levado em conta como verdade
20
; outros, como
16
KANTOR, Iris. op. cit. pp. 30-32.
17
ERICEIRA, Conde da. op. cit. vol. 1, pp. 18-19.
18
CUNHA, Norberto Ferreira da. op. cit. p. 14.
19
Idem.
20
Na parte que lhe coube na confecção da Lusitania Sacra, D. Manuel Caetano de Sousa disse que sua
crítica documental era prescrita por algumas regras, “a saber: a) o escrever coisa alguma contra o
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
121
Martinho de Mendonça de Pina e Proença, Diogo de Mendonça Corte-Real e Frei
Miguel de Santa Catarina, defendiam que os fatos verdadeiros deveriam ser contados
mesmo em desabono da tradição ou escândalo do vulgo
21
. Para Pina e Proença,
esconder a verdade em nome da tradição seria “respeitar mais os ignorantes que os
sábios, era obrar contra as luzes da razão”; o Frei Miguel de Santa Catarina aceitava
até mesmo a utilização de livros de autores heréticos se neles se contivesse alguma
verdade
22
.
Questões metodológicas acerca da possibilidade ou o de se chegar à verdade
histórica foram também objeto de discussões entre os acadêmicos. Sob a influência das
discussões científicas e ilustradas da época, questionava-se se era possível a aplicação
do método científico newtoniano, tido como ideal para se conhecer a natureza e a
verdade, à pesquisa histórica. Martinho de Mendonça e José da Cunha Brochado
defendiam que era impossível o alcance de tal verdade, devendo-se o historiador
contentar-se com o verossímil, o mais provável. Aliás, Cunha Brochado chegou a
afirmar que, como o principal objetivo da história é o ensinamento moral, e a narração
do verossímil muitas vezes foge ao edificante e aceitável moralmente, então seria
preferível uma fábula para esta função
23
.
Verney, comentando a Colecção das Memórias, Estatutos e Documentos da
Academia Real da História Portuguesa (1721), em carta a Luís Muratori, em 1745, diz
que os trabalhos da Academia se mostravam como produtos de “homens que se dizem
imparciais e sem preconceitos, [mas que] adotam muitas coisas que enjoam os que m
critério”, que são “o péssimo gosto da Eloqüência e o da Filosofia”. Dentro da sua linha
Brevrio ou Martirológio Romano; b) não impugnar nem duvidar das tradições da Igreja; c) não
considerar argumentos puramente negativos; d) não dar crédito algum a autores hereges no que respeita à
História Eclesiástica; e) não seguir livro de autor católico proibido (sem saber a causa por que o era) nem
qualquer outro que a Igreja mandasse emendar em alguns pontos ou que tenha ordenado que se riscasse;
f) não dar crédito algum aos autores estrangeiros que escreveram contra os naturais de uma determinada
terra; g) não dar crédito algum, no que diz respeito à História, a nenhum autor moderno contra os antigos,
senão que provasse o que afirmava com testemunhos mais antigos e irrefutáveis; h) não dar crédito a
autor vulgarmente tido por mentiroso; i) não dar crédito a autores que, levemente, criam tudo e, menos
ainda, aos que tudo negavam; j)não dar crédito a autor que provasse suas proposições com argumentos
respondidos; l) não seguir as opiniões minoritárias se não quando elas demonstrassem a falsidade das
majoritárias; m) repudiar, na História Eclesiástica, a crítica indiferente e tolerável, porque o tinha em
conta a autoridade pública, o interesse da Religião e a glória da Pátria (ainda que regendo-se pelas regras
da ciência, e da cortesia e da caridade cristã); n) repudiar a crítica condenável e ímpia, porque era aquela
que visava desacreditar a Pátria, que se opunha à autoridade da Igreja e às tradições antigas, seculares e
eclesiásticas; o) aceitar apenas a crítica louvável e pia, que se faz com autoridade pública e em obséquio
da Religião ou em benefício da Pátria”. Ibidem, p. 31.
21
Ibidem, p. 33.
22
Idem
23
Ibidem, p. 43.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
122
crítica, Verney afirma que os acadêmicos “julgam todas as coisas com as luzes dos
Peripatéticos, não deixando de tomar os seus sonhos por realidades”, e preocupando-se
“só com bagatelas e cavilações”
24
. A crítica verneyriana acusa os acadêmicos de
fazerem suas pesquisas partindo de noções apriorísticas peripatéicas, o que o foi, de
fato, uma linha comum a todos os membros da Academia, sendo, portanto, injusta.
Alguns conjugavam noções escolásticas com outras modernas e outros eram críticos
desta filosofia, além do que vários acadêmicos não submetiam suas pesquisas aos
exemplos sagrados, caso não fossem comprovados por documentos autênticos.
A produção historiográfica da Academia Real, malgrado o ceticismo de alguns de
seus membros em se chegar à “verdade” histórica, pautou-se pela pesquisa e crítica;
pela desmistificação de vários pontos forjados da história portuguesa; e pela diminuição
do lastro providencial e escatológico, embora este subsista em algumas obras.
Entretanto, o milagre de Ourique e as Cortes de Lamego foram artigos indisputáveis na
Academia
25
. Devendo-se considerar também que o milagre fazia parte das verdades
destes historiadores-religiosos”
26
.
Em sua Geografia Histórica (1734-1736), o padre D. Luiz Caetano de Lima,
membro da Academia Real de História Portuguesa, afirma que não trataria dos reis
portugueses anteriores à conquista romana, pela incerteza das informações a este
respeito e pelo seu envolvimento em fábulas. Limitar-se-ia a narrar o período posterior a
D. Afonso Henriques:
Naõ fallando nos antigos Reys de Portugal, cuja Historia he muita parte fabulosa,
principalmente a dos que reynaraõ antes da conquista dos Romanos, trataremos
do estabelecimento dos Principes deste Reyno, depois da sua separaçaõ dos mais
Dominios de Hespanha
27
.
Além disso, seguindo a mesma linha, o narra a aparição de Cristo a D.Afonso
Henriques na célebre batalha em que foi erigido rei. Limitou-se a dizer que, pouco antes
da batalha contra o rei Ismar e os quatro reis mouros que o acompanhavam no campo de
Ourique, Afonso Henriques foi aclamado rei por suas tropas
28
. Da mesma forma, ao
relatar o domínio castelhano e a Restauração, não inclui nenhum elemento providencial
24
Ibidem, p. 19.
25
KANTOR, Iris. op. cit. p. 50.
26
TORGAL, Luís Reis. Antes de Herculano.... op.cit. p. 21.
27
LIMA, D. Luiz Caetano de. Geografia historica de todos os estados soberanos da Europa. Lisboa
Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, Impressor da Academia Real, 1734, Tomo Primeiro,
p. 197. (Foi consultada uma versão digitalizada da obra, disponível no site da Biblioteca Nacional de
Portugal –
www.bn.pt ).
28
Ibidem, p. 198.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
123
ou fabuloso, diz apenas que, de acordo com as regras de sucessão estabelecidas nas
Cortes de Lamego, a princesa que se casasse com príncipe estrangeiro estaria excluída
da sucessão, o que tornaria o domínio espanhol uma usurpação, bem como foi
totalmente legítima a retomada do trono pelo Duque de Bragança
29
.
Publicada poucos anos antes da Geografia Histórica, a História da América
Portuguesa (escrita em 1724, mas publicada em 1730 por atrasos na avaliação da
obra pela Academia Real), de Rocha Pita, seguia parâmetros divergentes. Como se viu
no Capítulo 1, a História de Rocha Pita, membro fundador da Academia Brasílica dos
Esquecidos e membro supranumerário da Academia Real, defendia a instauração do
Quinto Império de Cristo na Terra, afirmando que este teria lugar sob comando do rei
português e que esta promessa de Cristo se realizaria após a Restauração. Rocha Pita
reiterava também a linhagem bíblica e mitológica dos reis portugueses:
Florescia o Império Lusitano muitos séculos depois de ser fundado por Túbal,
ampliado por Luso e por sias, e de terem os seus naturais gloriosamente na
pátria obrado ações heróicas, e concorrido fora dela para as maiores empresas,
nos socorros que deram aos Cartagineses, conduzidos por Safo, para domar a
Mauritânia, nos que acompanharam a Aníbal para conquistar a Itália,
concorrendo com Mitridates contra Pompeu, e com Pompeu e seus filhos contra
sar; e de haverem na defensa da própria liberdade feito admiráveis provas de
valor com seus capitães Viriato e Sertório contra os Romanos; e finalmente
depois que livres da sujeição dos Suevos, dos Alanos, dos Godos e dos
Sarracenos, tendo logrado no seu primeiro rei português o invicto D. Afonso
Henriques (...)
30
.
Segundo Serrão, as pesquisas realizadas por Rocha Pita e pelos demais membros
da Academia dos Esquecidos pecavam pela falta de bibliografia mais atualizada e pela
consulta a documentos presentes apenas nos arquivos da metpole. Dessa forma, suas
produções tiveram mais um cunho poético, com o cântico da terra, o mistério do
descobrimento e o louvor messiânico do Brasil. Talvez esteja aí uma das explicações do
distanciamento entre os postulados da Academia Real de História Portuguesa e da
Academia Brasílica dos Esquecidos. Aliás, a fundação da segunda esteve diretamente
ligada à da primeira. Nenhuma personalidade política ou cultural residente no Brasil,
especialmente em Salvador, foi lembrada entre os membros da Academia Real. Tristes
com tal situação, os baianos “esquecidos” resolveram fundar a Academia Brasílica, em
1724
31
.
29
Ibidem, pp. 199-200
30
PITA, Sebastião da Rocha. op. cit., p. 20.
31
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. op. cit., vol. 3, pp. 256-262.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
124
Os trabalhos de pesquisa da história na Academia Real de História Portuguesa
dividiram-se entre as pesquisas da história religiosa e da história secular, designando-se
alguns membros para cada área dos trabalhos. A história secular foi divida em grupos de
trabalho, que correspondem também a uma periodização da história portuguesa. A
primeira seriam as Memórias que vão das antiguidades de Portugal até o conde D.
Henrique; a segunda, os reinados da primeira dinastia; a terceira, a dinastia de Avis; a
quarta o período entre D. Sebastião e a Restauração de 1640; e, por último, os cinco
reinados da Dinastia Nova
32
. Como se percebe, a periodização respeita uma ordem
cronológica e a noção de se contar a história a partir de reinados, agrupados em
dinastias. Como se verá à frente, a historiografia pombalina, com seus objetivos
políticos, agrupará os reinados de forma diferente, atribuindo-lhes sentidos de atraso e
de progresso, muito embora mantenha a narração da história a partir de reinados.
Com a fundação da Academia Real, D. João V implantava um programa coletivo
de pesquisa e escrita da história nacional sob tutela da Coroa, “propiciando a integração
e socialização das elites dirigentes leigas e eclesiásticas, ao mesmo tempo em que
estimulava a transferência de informações e competências da esfera eclesiástica para a
esfera secular”
33
. Além desse controle, as obras produzidas, como a História
Genealógica da Casa Real Portuguesa (1735-1748), de Antônio Caetano de Sousa,
focavam-se na construção da “imagem majestática do rei, evidente nos retratos
apresentados dos rios soberanos”, tratando-se de uma concepção de história que,
embora possa não ser classificada diretamente de ‘pragmática’, se inseria no contexto de
uma monarquia cada vez mais divinizada, em que o rei ocupava o primeiro lugar do
espaço histórico e cultural”
34
.
Os trabalhos de recolhimento de documentos e pesquisa histórica na Academia
Real tinham também objetivos diplomáticos. Dois pontos, em especial, necessitavam de
uma segurança clara a partir da documentação recolhida e da história portuguesa
narrada e comprovada com estes documentos: a independência de Portugal em relação à
Espanha e as posses portuguesas na América, bem como seus limites em relação às
colônias espanholas
35
.
Para isso, era necessário que se fixasse “uma genealogia da ocupação territorial
nos donios ultramarinos”, através da coleção de tratados internacionais assinados
32
Ibidem, vol. 3, pp. 68-69.
33
KANTOR, Iris. op. cit. p. 30.
34
TORGAL, Luís Reis. Antes de Herculano.... op.cit. pp. 21-22.
35
KANTOR, Iris. op. cit. p. 50.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
125
após 1640, contando a história das colônias e de suas conquistas, ressaltando a posse, a
ocupação, os desenvolvimentos realizados e os progressos da religião lá efetuados. Daí
a preocupação em se pesquisar e traçar cartas geográficas e marítimas do Reino e de
suas possessões. Nesse sentido, várias viagens e coletas de informações foram feitas. A
confirmação de posse e territórios ultramarinos era importante para assegurar rotas de
comércio no Atlântico, entre outros motivos, devido à descoberta do ouro nas Minas
36
.
Tais preocupações se justificavam, pois, após a Paz de Vestfália, os argumentos de
soberania e direito internacional foram colocados em termos mais secularizados. Isso
implicou um certo esvaziamento do direito religioso, assegurado pelas concessões
papais, a que Portugal se apegava na legitimação de sua colônia americana. O direito de
posse por descoberta também era criticado, por exemplo, por Grócio, que dizia que as
descobertas não garantiriam a posse, no caso dessa não ser tomada de fato. A validação
dos documentos papais estava em análise, pois se discutia se o papa poder religioso
teria ou não autoridade para legislar em questões de direito secular, no caso, de
soberania internacional
37
. não mais se assumia o argumento da missão divina de
Portugal para justificar as posses da Coroa. Em 1730, um jurista português defendia que
o Reino de Portugal fora conquistado em guerra justa sem princípio sobrenatural em sua
constituição, mas protegido pelo céu e destinado a levar a fé cristã a remotas partes do
mundo
38
, adequando-se mais aos termos do direito e da diplomacia do século XVIII.
Os objetivos da Academia Real e o contexto internacional passavam, então, pela
questão da secularização do poder. Os Estados católicos discutiam o lugar do poder
papal e seus limites dentro do poder temporal. Dessa forma, as demais Coroas
contestavam o argumento que até então legitimava a presea ibérica na América
39
.
Com isso, reescreveu-se a história. Segundo Iris Kantor, a
Academia Real de História Portuguesa estimulou a secularização da história
eclesiástica e a sacralização da história civil. Sob a égide do mecenato régio, o
todo crítico propiciava a concentração das fontes dos direitos civil e
eclesiástico e, nessa medida, preparava as bases da política regalista
implementada durante o consulado pombalino
40
.
As atividades da Academia Real de História Portuguesa estenderam-se até 1760.
Entretanto, desde 1737, as produções diminuíram, sem que as reuniões e publicações de
livros e opúsculos pela Academia terminassem por completo. Com o terremoto de
36
Ibidem, pp. 54-55, 57 e 60-61.
37
Ibidem, pp. 45-46 e 48-49.
38
Ibidem, p. 49.
39
Ibidem, p. 69.
40
Ibidem, p. 71.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
126
Lisboa, a biblioteca da Academia foi destruída, e a crise se acentuou. Reuniões ainda
continuaram a ocorrer, “mas sem nenhum fogo criador, que talvez o dramatismo da
época não permitisse manter”. Segundo Serrão, a Academia Portuguesa da História
o foi extinta, mas apagou-se lentamente nas vicissitudes impostas à cultura nacional
durante o consulado pombalino
41
.
4.2 Pombalismo, história e colonização
O Reformismo Ilustrado pombalino, com suas ões culturais, sociais e poticas,
propiciou uma revisão nas concepções de história portuguesa? Na tentativa de responder
a essa questão, Jorge Borges de Macedo afirmou que, com Pombal, foi inaugurada uma
“historiografia oficial abertamente partidária e que continuou até aos nossos dias”
42
.
Torgal, embora concorde com essa afirmação, matiza-a, dizendo “que a historiografia
anterior era igualmente marcada pela ideologia”, mas há uma especificidade pombalina:
que Pombal, para levar a efeito a sua “reforma”, teve de usar uma
argumentação essencialmente diferente da que a era produzida e que
assentava numa nova maneira de encarar a história. O caráter afirmativo e, por
vezes, polêmico das obras eno produzidas e a proibição da defesa de certas
idéias, até aí tidas como oficiais, teriam de se apoiar num movimento ideológico
forte, que se reproduzia atras de textos de propaganda. E o que deveremos
afirmar mais categoricamente não é que se tenha estabelecido eno uma
“historiografia oficialabertamente partidária, mas sim uma nova historiografia
oficial, de caráter mais claramente propagandístico, que acabou por ter uma
enorme influência na consciência política e historiogfica que se lhe seguiu
43
.
Segundo o mesmo autor, a defesa e a fundamentação de concepções poticas
diferentes no pombalismo acabaram por influenciar a historiografia da época,
principalmente nas décadas posteriores e no século XIX, como as discussões em torno
do liberalismo
44
. As construções pombalinas sobre a associão entre jesuítas e a
Inquisição, o papel destes na Universidade e demais instituições do ensino português, o
seu anti-sebastianismo e o repúdio às demais crenças proféticas e messiânico-
milenaristas tiveram reflexo nas idéias políticas tanto do liberalismo quanto do
republicanismo e em suas interpretações historiográficas
45
.
41
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. op. cit. vol. 3, p. 78.
42
MACEDO, Jorge Borges de. “Pombal, Marquês de”. Dic. Hist. Port. apud TORGAL, Luís Reis. Antes
de Herculano.... op.cit. p. 24.
43
TORGAL, Luís Reis. Antes de Herculano.... op.cit. p. 24.
44
Ibidem, p. 27.
45
Ibidem, p. 25.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
127
A política reformista empreendida durante o reinado de D. JoI representou uma
ruptura em muitas práticas enraizadas na potica portuguesa, principalmente na
mudança do papel assumido pela Coroa. O ministério de Carvalho e Melo iniciou em
Portugal uma “governação ativa”, que significa um papel ativo do poder secular na
proposição e execução de reformas, muitas delas rompendo com a tradição
portuguesa
46
. A prática potica pombalina tem como sua principal marca o regalismo,
que se define pela separação das esferas de poder secular e religioso, e pela supremacia
do poder da Coroa sobre o da Igreja nos assuntos de cunho secular. Entretanto, quando
se trata do pombalismo, deve-se entender que “o regalismo implica um problema de
poder que, no caso vertente, reflete uma determinada visão de soberania ou de poder em
si, uma certa incidência do seu exercício, e, inerente a ambas, a valorização do temporal
sem exclusão do valor do sagrado
47
. Este aspecto é importante porque a separação dos
poderes secular e religioso é uma das características da secularização do poder
48
.
Entretanto, o processo verificado no regalismo pombalino não implicou uma exclusão
total e definitiva do poder religioso, principalmente das idéias de cunho teológico da
política, mas, fundamentalmente, o afastamento institucional dos poderes temporal e
eclesstico, como se viu no capítulo anterior.
As reformas pombalinas pautaram-se por um ideário de cunho ilustrado. O
Reformismo Ilustrado sob Pombal fez uma apropriação seletiva das idéias produzidas
pelas Luzes do século XVIII europeu, o que pode ser percebido principalmente através
dos textos produzidos pelo grupo de homens ligados a Carvalho e Melo, sendo alguns
escritos por ele próprio. Com suas reformas, Pombal esperava transformar a realidade
social, potica, econômica e cultural de Portugal, colocando reino lusitano num estado
de “polidez” e de desenvolvimento de “Luzes” semelhante àquele verificado em outras
cortes européias. A “utopia pombalina”, conforme expressão de José Eduardo Franco
49
,
significava uma mudança de rumos na história portuguesa, tirando o reino luso do
marasmo, ou mesmo do atraso, e colocando-o num outro ritmo histórico, o do
progresso, idéia muito cara aos filósofos e historiadores da época das Luzes. À sua
maneira, Portugal esteve ligado às discussões ideológicas da Ilustração e em suas
46
SUBTIL, José. Os poderes do centro: governo e administração. In: MATTOSO, José (Coord.). História
de Portugal (O Antigo Regime). Lisboa: Editorial Estampa, 1997, pp. 141-172.
47
CASTRO, Zília Osório de. Antecedentes do regalismo pombalino: O Padre José Clemente. In: Estudos
de Homenagem a João Francisco Marques. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001
vol. 1, p. 325. Disponível em <
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2839.pdf> Acesso em 20 out. 2006.
48
ARENDT, Hannah. O conceito de história – Antigo e Moderno. op. cit., p. 102.
49
FRANCO, Jo Eduardo. Quem influenciou o Marquês de Pombal? op. cit., s.p.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
128
repercussões na historiografia, exemplo disso são as atividades da Academia Real de
História Portuguesa.
Sebastião José de Carvalho e Melo preocupava-se em fundamentar as iias que
embasavam suas atitudes e reformas, bem como fazer uma divulgação destas.
Acreditava também que a propagação de seus ideais através de neros literários
diversos, como o teatro, a poesia, e a história, era também uma das formas de se
reformar a sociedade lusa e seus costumes. Cabe ressaltar que, embora seja durante o
pombalismo que tais preocupações com a reforma dos costumes se tornaram mais
manifestas e foram encampadas por uma potica régia, havia, anteriormente, um anseio
de parte da sociedade portuguesa de que seu Reino se aliasse aos conceitos de uma
Europa Ilustrada.
J. J. Carvalhão Santos mostra, em seu estudo sobre a literatura durante a época
pombalina, que havia uma intervenção direta de Carvalho e Melo sobre o que era
produzido, editado e apresentado nos teatros portugueses
50
. Um caso concreto foi o de
Manuel de Figueiredo, que recebeu uma ordem para escrever três farsas, das quais
soube, inclusive, o título e o assunto ordenados pelo próprio Marquês. Suas obras tratam
da utilidade que a nobreza deveria ter para a República, valorizando mesmo aqueles que
se dedicavam a ocios mecânicos úteis. As obras de Figueiredo fazem, através da sátira,
uma crítica à nobreza de sangue que não vinha acompanhada de virtudes, como se
idealizaria; condenam os gastos excessivos dos nobres; e defendem que estes devem ser
os mais leais às ordens reais e obedientes às leis, pois são o espelho para o restante da
sociedade
51
. Destacam-se, nessas temáticas, aspectos caros ao pombalismo, como o
controle da Coroa sobre outros focos do poder, no caso, a nobreza; e o utilitarismo, ou
seja, os saberes e as virtudes dos vassalos, principalmente dos nobres, devem ser
utilizados para o bem da República e para o seu progresso
52
. A preocupação com a
importância pedagógica do teatro era tanta que o próprio filho do Marquês de Pombal,
Henrique, foi colocado na gerência dos palcos lisboetas.
50
SANTOS, J. J. Carvalhão. Literatura e Política: pombalismo e antipombalismo. Coimbra: Livraria
Minerva, 1991, pp. 21-29.
51
Idem.
52
Segundo Ivan Teixeira, o utilitarismo seria a palavra que melhor definiria a produção poética do
Setecentismo luso-brasileiro (TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica. São Paulo:
Edusp, 1999, p. 255.). A necessidade de que o nobre conjugue sua distinta filiação à virtude e aos saberes
letrados, para que exerça cargos de governo, foi defendida, como se viu anteriormente, por ilustrados
portugueses como Verney e Ribeiro Sanches e, na literatura dos setecentos, foi também expressa nas
Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga. A este respeito ver: FURTADO, Joaci Pereira. Uma
república de leitores: história e memória na recepção das ‘Cartas Chilenas’ (1845-1989). São Paulo:
Hucitec, 1997, pp. 77-78.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
129
Em seu discurso potico reformador, o pombalismo elegeu a Companhia de Jesus
como a feitora de todos os males poticos, econômicos e culturais pelos quais passava o
reino português. O anti-jesuitismo pombalino fez inclusive com que se revisse a censura
anteriormente imposta às obras de Molière. Com o apoio de Pombal, o capitão Manuel
de Sousa traduziu O Tartufo, peça que, em 1768, foi editada e representada no teatro do
Bairro Alto. O fim da interdição, já num momento de controle da censura pelo Estado,
explica-se por ser o hicrita Tartufo um padre da Companhia de Jesus
53
.
Carvalho e Melo teve uma preocupação especial com a história, que se
manifestava sob dois aspectos: primeiro, deixar gravada a memória dos marcantes feitos
reformadores empreendidos durante o seu ministério; segundo, fundamentar
historicamente as razões poticas de suas ações, mostrando a superação do atraso e o
esclarecimento de Portugal, dentro de uma perspectiva ilustrada.
Com relação ao primeiro aspecto, é significativa uma tradução feita pelo Pe.
Custódio de Oliveira do tratado Como se deve escrever a história de Luciano de
Samósata. O texto, publicado em 1771, foi a terceira tradução da obra para o português,
sendo que as duas primeiras fizeram parte de uma mesma edição, ainda na primeira
metade do século XVIII
54
. O trabalho do Pe. Custódio foi dedicado ao Marquês de
Pombal, cujos feitos são comparados às façanhas dos heróis de Homero. Assim, as
reformas pombalinas deveriam se tornar objetos privilegiados dos historiadores. Dentre
as ações pombalinas, o tradutor de Luciano destacava:
Mas se fosse pouco restabelecer a felicidade pública sobre as ruínas do mais
horrível terremoto; regular o comércio; erigir e aperfeiçoar as manufaturas;
quebrar as cadeias da escravidão dos índios; r em exata arrecadação o Erário
Régio; destruir e aniquilar os monstros públicos; sustentar ilibada a antiga;
afugentar a discórdia; desterrar o monstro da hipocrisia e do fanatismo;
finalmente, como se o nosso amabilíssimo Monarca e o seu vigilantíssimo
Ministério passassem os seus dias em um perfeito ócio, no qual só é que as Musas
acham de ordinário o seu abrigo, estes mesmos estudos e aquelas ciências, que
em outro século tanto ilustraram a nossa tria, correm nos dias de V.
EXCELÊNCIA a tomar o seu antigo assento e a alumiar os escritores
portugueses, indignos por certo de serem tiranizados com as trevas da
ignorância
55
.
Um ano após a publicação de sua tradução de Luciano, o Pe. Custódio de Oliveira
foi oficialmente encarregado de fazer o primeiro diciorio grego-português, pelo que
recebeu uma pensão de duzentos mil is, mas deixou o trabalho por fazer. É possível
53
SANTOS, J. J. Carvalhão. op. cit. p. 26.
54
BRANDÃO, Jacyntho Lins. Luciano e a história. (no prelo).
55
OLIVEIRA, Ao Ilmo. e Excmo Senhor Sebastião José de Carvalho e Mello, Márquez de Pombal. In:
LUCIANO. Sobre o modo de escrever a História apud BRANDÃO, Jacyntho Lins. op. cit.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
130
supor que a própria tradução de Luciano tivesse sido também uma encomenda de
Pombal, pois, além da dedicaria ao Marquês, os fatos “memoráveis” do governo
pombalino elencados pelo padre são os mesmos destacados em outros textos do
pombalismo. Também é comum ao pombalismo a associação feita entre estes fatos e
um esclarecimento português, com a expulsão do fanatismo e o fim das “trevas da
ignorância”.
Dentre os textos pombalinos que se preocuparam em registrar a memória das
reformas e ações poticas do reinado josefino, e mais especificamente de seu principal
ministro, podem-se citar a Relação Abreviada (1757); as Memórias das principaes
providencias, que se derno terremoto, que padeceo a Corte de Lisboa no anno de
1755 (1758); e a Dedução Cronológica e Analítica (1767). Além destes, pode-se incluir,
no corpus de uma “historiografia pombalina”, o Compêndio Histórico do estado da
Universidade de Coimbra (1771)
56
, que, embora não faça um relato de ações do reinado
josefino, desenvolve um argumento histórico idêntico a todas as outras.
O primeiro desses textos, a Relação Abreviada, narra a Guerra Guaranítica, ou a
execução do Tratado de Limites acertado entre Portugal e Espanha, do ponto de vista do
pombalismo
57
. A obra teve ampla divulgação em Portugal e internacionalmente. Foi
feita uma tiragem de 20.000 exemplares, circulando inicialmente entre as grandes
personalidades do Reino, e, posteriormente, também no Além-Mar, buscando culpar os
jesuítas pelos conflitos que ocorreram na tentativa de demarcação do Tratado de
Limites
58
. A obra foi difundida em meios diplomáticos, tendo traduções para o latim,
espanhol, francês, italiano, aleo, sendo editada, por vezes, parcialmente e de forma
apensa a outros textos
59
, como, por exemplo, nas “Provas” da Dedução Cronológica e
56
O texto do Compêndio, além de reproduzir o argumento de atraso dos estudos portugueses devido aos
“estragos” jesuítas, possui também a característica de utilizar e/ou reproduzir partes de outros textos
pombalinos, indicando a autoria comum a alguns deles, ou, pelo menos, sua elaboração a partir de uma
mesma orientação. O Compêndio data de 1772, e a Origem Infecta da Relaxação Moral dos
Denominados Jesuítas, de 1771. Mas, como afirma Ivan Teixeira, “apesar das datas, este alude
freqüentemente ao primeiro, dando a entender que foi publicado posteriormente. (...) a Origem Infecta
reproduz boa porção do capítulo II do Compêndio Histórico. TEIXEIRA, Ivan. Mecenato Pombalino e
Poesia Neoclássica. op. cit., p. 61, nota 16.
57
O título completo da obra já é bem significativo nesse sentido: Relação abreviada da República que os
Religiosos Jesuítas das Províncias de Portugal, e Espanha, estabeleceram nos Domínios Ultramarinos
das duas Monarquias, e da guerra, que neles tem movido, e sustentado os Exercitos Hespanhoes, e
Portugueses; formada pelos registos dos dous respectivos Principaes Comissários, e Plenipotenciários; e
por outros documentos autênticos.
58
FRANCO, Jo Eduardo. Os catecismos antijesuíticos pombalinos. op. cit., p. 249.
59
Ibidem, pp. 249-250.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
131
Analítica
60
. O governo português empenhou-se em divulgar a Relação Abreviada, a
obra expressa uma ideologia que se enquadra perfeitamente à potica pombalina.
Apesar de ter vindo a público sem autoria expressa, sua redação é atribuída a Sebastião
José de Carvalho e Melo
61
.
A questão do domínio temporal exercido pelos jesuítas sobre os índios é
fundamental, pois a idéia do Reformismo Ilustrado pombalino era desenvolver as áreas
coloniais povoando-as com vassalos fiéis à Coroa portuguesa, que defendessem os
terririos ultramarinos e os tornassem mais produtivos. Assim, os índios tinham um
papel importante no projeto ilustrado de progresso do reino português.
No relato das lutas de portugueses e espanhóis contra os índios que são sempre
descritos como tendo sido armados e treinados militarmente pelos jesuítas sob a falsa
intenção de defenderem a religião –, percebe-se uma concepção ilustrada a respeito da
ação civilizadora que se deve ter em relação aos índios. Seria necessário tirar os índios
da ignorância em que viviam, levando-lhes as Luzes, que, para o pombalismo,
consistiriam essencialmente em lhes ensinar a existência de um poder temporal ao qual
devem obedecer e de leis, às quais devem seguir. Veja-se, por exemplo, o seguinte
trecho da Relação Abreviada:
Pois que ignorando os miseraveis Indios, que havia na terra poder, que fosse
superior ao poder dos Padres [da Companhia de Jesus], crião que estes eo
Soberanos dispoticos dos seus corpos, e almas: Ignorando que tinham Rey a quem
obedecer, crião que no Mundo não havia vassalagem; mas que tudo nelle era
escravidão: E ignorando em fim, que havia Leys, que não fossem as da vontade
dos seus Santos Padres, (assim os denominão) tinhão por certo, e infallivel, que
tudo o que elles lhes mandavam era indispensavel, para logo obedecerem sem a
menor hesitação
62
.
Segundo Ivan Teixeira, a “Relação Abreviada inaugurou a história oficial da
gestão pombalina. Tratando-se de um tipo de historiografia próprio dos governos
autoritários, a Relação Abreviada foi imposta pelo Estado como versão indiscutível dos
fatos”
63
.
A Relação Abreviada incorpora a colonização na história portuguesa pela ótica
ilustrada da civilização, e o objetivo religioso da conversão dos gentios, embora
continue a existir, passa a ser visto como mais um aspecto dessa “civilização”, da
60
Se utilizado, aqui, o texto Relação Abreviada incldo no volume de provas da Dedução
Cronológica.
61
FRANCO, Jo Eduardo. Os catecismos antijesuíticos pombalinos. op. cit., pp. 251-252.
62
RELAÇÃO Abreviada ... In: COLLECÇÃO das provas que forão citadas na parte primeira, e segunda
da Deducção Chronologica e Analytica, e nas duas Petições de Recurso do doutor Joseph de Seabra da
Sylva. Lisboa: Officina de Miguel Menescal da Costa, 1768, p. 161. (Itálico no original).
63
TEIXEIRA, Ivan. op. cit. pp. 61-62.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
132
incorporação de valores civilizados e europeus pelos indígenas e não mais como a
meta última a ser atingida
64
. O texto do Diretório dos Índios (1757), por exemplo,
demonstra bem essa perspectiva:
Não se podendo negar, que os índios deste Estado se conservaram até agora na
mesma barbaridade, como se vivessem nos incultos Sertões em que nasceram,
praticando os péssimos e abomináveis costumes do Paganismo, não só privados
do verdadeiro conhecimento dos adoráveis mistérios da nossa Sagrada Religião;
mas adas mesmas conveniências Temporais, que se podem conseguir pelos
meios da civilidade, da Cultura, e do Comércio: E sendo evidente, que as
paternais providências de Nosso Augusto Soberano, se dirigem unicamente a
cristianizar, e civilizar estes até agora infelizes, e miseráveis Povos, para que
saindo da ignorância e rusticidade a que se acham reduzidos, possam ser úteis a
si, aos moradores e ao Estado
65
.
De fato, revoltas coloniais do século XVII, como a do Cachaça (1660-1661), no
Rio de Janeiro, e a de Beckmann (1684), no Maranhão, opuseram jesuítas e colonos em
torno da escravização indígena, pois estavam em jogo projetos coloniais distintos
66
. No
século XVIII, essa questão ganhou novos ares e, mais uma vez, o pombalismo mirou
nos jesuítas, mas o alvo a ser acertado era outro, ou pelo menos algo mais amplo,
encontrando-se nas relações entre metpole e colônia: fundamentar a autoridade da
Coroa na América, bem como o seu papel colonizador, em um momento de dificuldades
da administração régia.
Como se viu no capítulo anterior, uma das primeiras preocupações e provincias
do governo pombalino foi o combate aos contrabandos e à ação do capital estrangeiro
no comércio colonial. Além do problema da arrecadação para os cofres da Coroa, a ação
de estrangeiros na colônia poderia colocar em risco a posse portuguesa na América.
Essa também era uma preocupação já antiga, como se verificou com outras, como foi
dito acima. As pesquisas da Academia Real de História Portuguesa também buscavam
legitimar, com base em argumentos não-teológicos, os donios coloniais lusos,
recorrendo à recolha de documentação diplomática e à narração da história da
colonização pelas benfeitorias que os portugueses trouxeram ao Novo Mundo e a seus
habitantes.
64
PAIVA, Adriano Toledo. “O anseio por bom tratamento e honra”: índios, negros e mestiços
setecentistas e a delimitação de suas identidades. In: Anais Eletrônicos XVI Encontro Regional de
História. Belo Horizonte: ANPUH-MG, 2008. 1 CD-Rom.
65
Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará, e Maranhão, enquanto Sua Majestade
não mandar o contrário. §3. apud PAIVA, Adriano Toledo. op. cit., p. 2.
66
SOUZA, Laura de Mello e. A conjuntura crítica no mundo luso-brasileiro de inícios do século XVIII.
In: O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do culo XVIII. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006, pp. 81-82.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
133
A Coroa portuguesa tinha, no século XVIII, que conter duas ameaças à sua
empresa colonizadora na América: uma externa, dos franceses e outros estrangeiros que
procuravam a costa brasileira; e outra interna, dos colonos insubmissos às
determinações reais, principalmente ao controle fiscal
67
. O pombalismo, adotando a
idéia de D. Luís da Cunha de que os homens são as verdadeiras minas de um Estado,
procurou transformar os índios em leais vassalos de El-Rei, tanto para segurança da
colônia frente às incursões estrangeiras, quanto para o desenvolvimento econômico da
América portuguesa.
A missão colonizadora deixava de ser unicamente a expansão da cristã,
centrando-se na civilização e esclarecimento dos nativos americanos, o que, como se
viu, passava pelo ensinamento de regras da boa política, algo que não estaria sendo feito
pelos jesuítas e que se esperava que acontecesse com o domínio secular sobre os índios.
A colonização é justificada, historicamente, pela entrada dos homens americanos na
história ilustrada da civilização européia.
A visão da colonização européia sobre outras áreas do globo como uma missão
civilizadora foi desenvolvida também por um ilustrado, o padre Raynal. Para este
ilustrado, as nações ou sociedades desenvolvidas teriam o papel de tirar aquelas que
ainda estivessem no estado de selvageria, civilizando-as. Em sua História Filosófica e
Política das Possessões e do Comércio dos Europeus nas duas Índias, mais
precisamente no volume que trata do estabelecimento dos portugueses no Brasil, Raynal
uma importância civilizadora nos europeus. Para ele, o estado em que os índios
brasileiros se encontravam era selvagem e pouco desenvolvido; atestava essa
característica a “penúria de linguagem, comum a todos os povos da América, (que) era
prova do pouco progresso que fizera o espírito humano”
68
. Raynal acreditava que a
civilização segue uma inclinação que leva todo homem a tornar melhor sua condição,
contanto que não se queira constrangê-lo à força e que essas vantagens não lhes sejam
apresentadas por estrangeiros suspeitos”
69
, ou seja, o simples contato com a civilização
impeliria os selvagens ao curso natural de um desenvolvimento civilizacional, com a
adoção de valores, costumes e a potica euroia (civilizada). O problema, no caso da
colônia portuguesa na América, era que a imposição dessa cultura se deu violentamente.
67
Ibidem, p. 81 e 93.
68
RAYNAL, Guillaume-Thomas François. O estabelecimento dos portugueses no Brasil. Trad. nica
F. Campos de Almeida e Flávia Roncari Gomes. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional: Brasília: Editora
UnB, 1998, p.46.
69
Ibidem. p.36.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
134
Se a colonização tivesse se desenvolvido de uma maneira pacífica, naturalmente “o
habitante selvagem o tardaria a compreender que as artes e os conhecimentos que
chegavam até ele eram muito favoráveis à melhoria de sua sorte”
70
. Tão natural quanto
a assimilação dos costumes civilizados pelos selvagens, seria, para Raynal, a
reconquista da independência por estes, ou seja, os índios se civilizariam até o ponto em
que os costumes europeus o se chocassem com o clima e geografia do Novo Mundo.
E retomariam o governo sobre si mesmos.
Nada mais bizarro do que ver a Europa, por assim dizer, transportada para a
América e reproduzida pelo nome e forma de nossas cidades; pelas leis, pelos
costumes e pela religião de nosso continente. Mas, cedo ou tarde, o clima
retomará seu império e restabelecerá as coisas em sua ordem e seu nome naturais,
embora com esses traços de alteração que uma grande revolução deixa sempre
atrás de si
71
.
Essa relação metpole-colônia, seguindo o mesmo processo (desenvolvimento da
colônia e posterior independência), coincide com uma idéia de história explicitada pelo
próprio Raynal:
Assim, os homens, seus conhecimentos e suas conjecturas, seja em relação ao
passado, seja ao futuro, são joguetes das leis e dos movimentos de toda a
natureza, que segue seu curso sem consideração por nossos projetos e por nossos
pensamentos, talvez mesmo por nossa existência, que apenas é uma seqüência
momentânea de uma ordem passageira como ela
72
.
A história dos homens é, pois, a história de sua civilização, ou seu processo
civilizacional, dentro da qual os homens são como joguetes, acompanhando um curso.
Aqui, Raynal assume o discurso iluminista do progresso, o estado de natureza tende a
ser superado em prol da civilização. De alguma forma, os povos selvagens tomariam
contato com a cultura “civilizada” e a assumiriam dentro de suas características
geográficas e climáticas. Cedo ou tarde, cumprir-se-ia tal processo histórico “natural”, a
despeito de “nossos projetos”.
A História Filosófica de Raynal é posterior ao texto da Relação Abreviada, não
constituindo, pois, uma influência no pombalismo
73
. De fato, a concepção ilustrada do
esclarecimento e da civilização possuía uma visão cosmopolita que foi
instrumentalizada pelo pombalismo na legitimão da colonização e de sua inserção na
história da Europa civilizada. A relação entre Raynal e a Coroa lusa no século XVIII
70
Ibidem. p.36.
71
Ibidem. p.38.
72
Ibidem. p.38.
73
O texto teve dezessete edições entre 1770 e 1780, e outras dezessete entre 1781 e 1787. VILLALTA,
Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura. op. cit. pp. 232-233.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
135
foi, pelo contrário, nada amistosa. A obra foi proibida pela censura pombalina através
do edital de 11 de outubro de 1773,
por espalhar “libertinagens”, apartando os “espiritos fracos, e á mocidade
inadvertida” da “crença verdadeiramente Christã, e Orthodoxa, e fazelos sectarios
da erronea, impia, e reprovada Filosofia”, insinuando-se seu autor um
“escandaloso Monarcomaco” ao atacar as Leis mais Santas”, “desacreditar as
Nações mais polidas”, denegrir os Ministerios mais illuminados” e “infamar os
estabelecimentos mais prudentes, e interessantes
74
.
Embora o pombalismo concordasse com a idéia do papel civilizador português, a
conclusão de Raynal de que, após “civilizadas” as colônias deveriam ganhar ou retomar
suas independências, dado que a missão das metrópoles havia acabado (ele comparava a
relação metrópole-colônia com aquela estabelecida entre pais e filhos e, por
conseguinte, em algum momento daria lugar à ruptura, à autonomia), com certeza, ia
contra os interesses imperiais portugueses, sendo tachado de “monarcômano”. A obra,
entretanto, teve circulação na América portuguesa e é considerada como uma das
principais inflncias ilustradas na Inconfidência Mineira
75
.
Embora a iia de uma unidade americana não tivesse sido formulada por
nenhuma das revoltas coloniais setecentistas, no campo letrado, a História da América
Portuguesa, de Rocha Pita, e o Compêndio narrativo do Peregrino da América, de
Nuno Marques Pereira, foram os primeiros a esboçarem tal unidade no campo
discursivo
76
. Agentes metropolitanos como o membro do Conselho Ultramarino,
Antonio Rodrigues da Costa, que foi também um dos cinqüenta primeiros membros da
Academia Real de História Portuguesa, ficando com cargo de cronista ultramarino,
preocupavam-se com a possível unidade da América portuguesa e as conseqüências
disso para a integridade do Império português. Rodrigues da Costa chegou a sugerir que
entendia o Império como parte da Europa e temia que a prática das revoltas da primeira
metade do século XVIII desenvolvesse um sentimento de unidade dos colonos
americanos, o que colocaria em risco a manutenção do Império
77
. O conselheiro
ultramarino entendia que a riqueza da colônia poderia pesar mais na balança imperial,
ou seja, nas relações poticas entre metrópole e colônia, sendo difícil que a parte mais
74
apud. Ibidem, p. 233.
75
O inconfidente Dr. Domingos Vidal Barbosa sabia trechos da História Filosófica de Raynal de cor, e o
também inconfidente cônego Luís Vieira da Silva conhecia o livro, como consta nos Autos de Devassa da
Inconfidência Mineira. Sobre essa presença de Raynal no Brasil colônia e sua influência na Inconfidência
ver: LEITE, Paulo Gomes. A propagação do Iluminismo em Minas Gerais. Revista Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2 (13): 24-27, jan. 1989; e VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e
Práticas de Leitura: op. cit. (Ver o Capítulo 8).
76
SOUZA, Laura de Mello e. op. cit. p. 104.
77
Ibidem, pp. 91-92 e 102.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
136
rica se sujeitasse à menor e mais pobre, o Reino, caso essa questão fosse colocada. Na
mesma época, D. Luís da Cunha e o conde Silva Tarouca, em correspondências com
Sebastião José de Carvalho e Melo, aventavam a possibilidade do Brasil se tornar a
cabeça do Império
78
. A empreitada posteriormente assumida por Pombal foi de garantir
a unidade do Império, sem que a cabeça se afastasse de Lisboa, mas utilizando-se das
colônias para reforçar o papel português diante da potica européia.
O discurso pombalino de integração dos índios entre os vassalos da Coroa tinha
algumas resistências americanas. A Academia Brasílica dos Renascidos, fundada em
1759, também em Salvador como a Academia dos Esquecidos, teve como patrono Jo
Mascarenhas Pacheco Pereira Coelho e Melo. Homem ligado ao reinado josefino,
Mascarenhas chegou à Bahia com a missão de fundar novos tribunais e, alguns meses
depois, decidiu fundar uma nova academia, juntamente com membros da elite local,
com o propósito de compor, coletivamente, uma história para a América portuguesa
79
.
O papel do índio nessa história foi objeto de discussões entre os renascidos”. Algumas
vozes dessa discussão, como mostra Íris Kantor, criticavam o discurso ilustrado
pombalino da civilização do indígena, por desconsiderar os modos típicos dos
indígenas, suas danças, falas, hábitos, trajes etc., sendo que a imagem de um índio
freqüentando a Corte parecia, para alguns acadêmicos, algo impensável. Além disso, as
elites que compunham a Academia dos Renascidos se incomodavam com a idéia de que
o haveria mais diferenciações entre eles e os índios recém-elevados à condição de
súditos. Assim, procuravam desqualificar o estatuto do índio por sua “irracionalidade”,
ou incapacidade de utilizar bens e artefatos do “mundo civilizado”.
A Academia Brasílica dos Renascidos assumiu um papel na potica ultramarina
pombalina na execução do novo lugar estabelecido para a América na história
portuguesa. José Mascarenhas, por exemplo, idealizou um inquérito a ser aplicado aos
índios e rendeiros das terras indígenas para se conhecer sua extensão e utilização, com o
intuito de demarcá-las, pensando-se, já, na expulsão dos jesuítas e na elevação dos
aldeamentos indígenas à condição de vilas, proposta por Pombal
80
.
78
Ibidem, p. 106.
79
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. op. cit., pp. 267-269.
80
Mascarenhas, como se disse, era um homem ligado a Pombal e sua política, e, assim como aconteceu
com vários outros colaboradores pombalinos, ele também caiu em desgraça com o Marquês. Devido a
seus contatos com elites acadêmicas espanholas no contexto de redefinição das fronteiras americanas e da
Guerra dos Sete Anos (1756-1763), em que Portugal e Espanha assumiram posições opostas,
Mascarenhas acabou acusado de colaboracionismo com os inimigos e foi preso e remetido para a ilha de
Santa Catarina e, posteriormente, levado para a ilha das Cobras. Com a Viradeira, foi anistiado, o que
também aconteceu com outros perseguidos de Pombal. KANTOR, Iris. op. cit. pp. 152-154.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
137
O debate sobre a secularização do controle dos aldeamentos indígenas teve lugar
na Academia dos Renascidos. As questões giravam em torno de se saber se os índios
eram capazes de gerirem os aldeamentos que se tornassem vilas, se era necessário que
se juntassem alguns colonos aos índios vizinhos nessas novas vilas, e se os índios
deveriam ter representantes na repartição de sesmarias e na administração da justiça.
Nesse debate, José Mascarenhas evoca Rousseau para defender a mestiçagem e
desenvolve a teoria do progresso das civilizações:
[...] até os Gregos foram faltos de Letras enquanto não comunicaram com os
egípcios. [...] Os ingleses, os alemães, e mais povos do norte, foram rbaros
enquanto viveram sem estrangeiros naqueles frigidíssimos climas. Os espanhóis,
os portugueses, e quase todos europeus, ignorantes, incivis, enquanto os romanos
à custa do seu próprio sangue lhe não introduziram; com a conquista do mútuo
trato com os dominantes; e por conseqüência as Leis, as Ciências, a política, e a
o idioma, com que nos explicamos
81
.
A Academia dos Renascidos buscou também integrar a história da América
portuguesa na história universal. Essa era uma forma discutida entre os acadêmicos para
se definir como contá-la. Nessa discussão, ao contrário da tendência que havia na
Academia Real de História Portuguesa, foram formuladas teorias que buscaram integrar
a América na história pela via providencialista. Os povoadores da América seriam
descendentes de Noé, que aqui chegaram após o dilúvio. Os acamicos brasílicos
conciliavam métodos críticos e teorias de cunho ilustrado, como a iia do progresso da
civilização dos indígenas, com visões providencialistas, recuperando profecias, milagres
e visões a respeito da América, como a passagem de São Tomé por essas terras
82
.
Para Kantor, a instituição da Academia dos Renascidos correspondia a um
interesse da potica pombalina de se formar novas elites e garantir a governabilidade
dentro de uma nova potica territorial
83
. As reconstituições da história do casamento de
Diogo Álvares Caramuru e Catarina Álvares Paraguaçu entre os renascidos passaram
por esse viés. Primeiramente, através da heroicização de Paraguaçu, conferindo um
status socialmente diferenciado” para famílias de casamento interétnico e dando uma
nova qualidade aos miscigenados, num momento em que era abolida a impureza de
sangue pela marca indígena
84
.
O laço potico entre metrópole e colônia também passava pela narrativa da
história de Paraguaçu e Caramuru. Anteriormente à fundação dos Renascidos, os
81
De como viviam os índios de Nova Abrantes do Espírito Santo. apud KANTOR, Iris. op. cit. p. 116.
82
KANTOR, Iris. op. cit. pp. 218 e 232-235.
83
Ibidem, p. 119.
84
Ibidem, p. 220.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
138
cronistas que narraram a história de Caramuru apenas o apontavam como um
intermediário na instauração do governo-geral, mas, a partir desse momento, Diogo
Álvares começou a ser visto como o elemento de legitimidade do donio português
sobre sua porção da América. O casamento de Caramuru e Paraguaçu funcionaria como
uma espécie de mito fundador das relações entre Portugal e Brasil
85
. A posse portuguesa
se legitimaria pelo matrimônio com lideranças indígenas, de uma forma pacífica, e pela
vassalagem prestada por Paraguaçu à Coroa portuguesa. A doação papal está excluída
desta versão, e o papel português de defensor da e responsável pela expansão do
cristianismo é minimizado frente à relão potica de cunho temporal que ligou Brasil e
Portugal. Algo que, como se viu, se insere na linha que vinha sendo desenvolvida na
Academia Real de História.
Em 1793, na esteira da repercussão da Inconfidência Mineira, Domingos Moniz
Barreto escreveu um texto endereçado ao Sereníssimo Príncipe do Brasil”, buscando
justificar a ilegitimidade da sedição mineira. Nesse texto, utilizou-se da idéia de um
pacto entre americanos e portugueses que teria se firmado no casamento de Caramuru e
Paraguaçu. Defendia que os súditos deveriam total obediência ao rei e que, no caso dos
índios brasileiros, o domínio português sobre as terras e as gentes americanas se deu
“sem oposição” dos indígenas. Moniz Barreto aplicou conceitos do Direito Natural para
explicar a sujeição dos americanos” a Portugal, que teria sido selada quando o pai de
Paraguaçu, tido como der de todos os naturais da terra, entregou sua filha ao português
Diogo Álvares Caramuru. Esse fato significaria uma submissão dos indígenas à Coroa
lusa para que esta os desenvolvesse e defendesse:
Vendo-se Diogo Álvares constrangido a voltar ao Brasil em duas naus, aí se
fortificou e estabeleceu grandes fazendas vendo a par de si uma feliz sucessão.
Sendo pois este homem vassalo de El-Rei de Portugal, e como tal reconhecido e
respeitado pelos mais principais índios, e casado com a Princesa de todos os que
havia naquela Província, foi apossado daquele grande território, que pelo Direito
Natural e das Gentes pertencia a então a sua mulher e que passou para ele para o
cultivar e defender debaixo do domínio da Coroa Portuguesa, de quem era
vassalo, posse esta que se deve entender de administração, fundada no mesmo
real direito e senhorio da Coroa Portuguesa
86
.
Permaneceram, pois, no período mariano, versões históricas e legitimações poticas
oriundas do pombalismo e da Academia Real de História Portuguesa.
85
Ibidem, p. 221.
86
BARRETO, Domingos Álvares Branco Moniz. Observações que mostram o o crime de rebelião
que temerária e sacrilegamente intentaram alguns moradores da Capitania das Minas, no Brasil, mas a
legítima posse que têm os Srs. Reis de Portugal daquelas Conquistas. In: Autos de Devassa da
Inconfidência Mineira. Brasília: mara dos Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas
Gerais, 1980, vol. 9, p. 281.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
139
Como se disse acima, Pombal se preocupou em divulgar, através das letras, seus
feitos e idéias. Nesse sentido, cabe ainda ressaltar a publicação do Uraguay, de Basílio
da Gama, que tinha ligação direta com Carvalho e Melo e participou da redação do
Regimento Pombalino da Inquisição, como se viu no capítulo anterior. A edição do
Uraguay de 1769 teve publicada a Relação Abreviada de forma apensa, além de citar
passagens da Relação e se referir a ela em notas como comprovação de suas
informações. Aliás, o épico de Basílio da Gama deu forma poética à versão pombalina
da Guerra Guaranítica estabelecida na Relação
87
. Embora tivesse apropriações diversas
nas décadas posteriores, principalmente pelo romantismo, o Uraguay, de acordo com
Ivan Teixeira, deve ser interpretado como um livro inserido na campanha anti-jesuítica
travada pelo pombalismo e na fixação de uma nova relação e donio poticos entre
Portugal e Brasil.
A Relação Abreviada é o início da construção de uma memória das ações
pombalinas e da argumentação política que buscava deslegitimar a ão religiosa no
âmbito secular. Ela esboça uma “legitimidade histórica” da política pombalina, porém,
tal legitimidade foi desenvolvida, principalmente, na Dedução Cronológica e Analítica.
4.3 A Dedução Cronológica e Analítica: regalismo e história ilustrada.
Publicada em meio às tensões entre a Coroa portuguesa e a Santa Sé,
principalmente em torno da questão dos jesuítas, a Dedução Cronológica e Analítica
(1767) foi a obra mestra do anti-jesuitismo pombalino. Sua primeira edição foi
composta por três volumes. O primeiro narra a história política portuguesa desde o
momento em que a Companhia de Jesus chegou em Portugal até o momento em que os
inacianos foram expulsos, em 1759
88
. O segundo volume pretende relatar o papel dos
jesuítas na história da Igreja Católica e, novamente, mostrar as deturpações que a
Companhia de Jesus promoveu na doutrina da Igreja, principalmente por sua influência
na censura de livros e, dessa forma, tendo acarretado “prejuízos” tanto à Igreja quanto
87
TEIXIERA, Ivan. op. cit., p. 62.
88
O título completo deste volume é: Deducção Chronologica, e Analytica na qual se manifestão pela
successiva serie de cada hum dos Reynados da Monarquia Portugueza, que decorrerão desde o Governo
do Senhor Rey D. João III até o presente, os horrorosos estragos, que a Companhia denominada de Jesus
fez em Portugal, e todos seus Domínios por hum Plano, e Systema por ella inalteravelmente seguido
desde que entrou neste Reyno, até que foi delle proscrita, e expulsa pela justa, sabia, e providente Ley de
3 de Setembro de 1759.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
140
aos Estados católicos ligados à Roma que abrigaram os inacianos
89
. O terceiro volume,
publicado em 1768, é composto por documentos que servem de provas” aos
argumentos dos dois primeiros volumes. De fato, as provas apresentadas nesse volume
são distorcidas, algumas forjadas, há a inclusão de textos produzidos pelo próprio
pombalismo, como a Relação Abreviada, e alguns documentos são interpretados
tendenciosamente, tirando-se deles conclusões que se enquadram na interpretação da
história proposta pela obra e mesmo hiperbolizando aspectos secundários dos textos
90
.
Para os objetivos deste trabalho, utilizar-se-á o primeiro volume, que trata da hisria
portuguesa e sistematiza a leitura da história do Reino feita pelo pombalismo, o que se
manifestou também em outros textos do período.
A obra saiu com a autoria do doutor José de Seabra da Sylva, que era chanceler da
Casa de Suplicação e Procurador da Coroa de Sua Majestade, desde 1766. Entretanto, é
patente a intervenção de Marquês de Pombal em sua confecção. Seabra da Sylva foi um
dos grandes colaboradores da potica pombalina. Contudo, como aconteceu com outras
pessoas, acabou caindo em desgraça com o Marquês e foi exilado. no exílio,
confessou que não passou de um “colaborador e de um instrumento usado por Carvalho
e Melo para que a obra saísse, escondendo seu nome, para assim desimplicar o
Ministro
91
. Segundo João Lúcio de Azevedo, além de Pombal, contribuíram outros,
pois
por abalisado que fosse no direito ecclesiastico, e erudito na litteratura referente
aos jesuítas, não poderia sósinho, nesta quadra, a mais afanosa da sua vida,
colligir o material immenso de factos, citações e juizos, que constituem o fundo
da obra. O proprio José de Seabra, o monge Cenaculo, o theologo Antonio
Pereira, Verney, collaborador em Roma do ministro Almada, o famoso Platel
quando esteve em Lisboa, porque o trabalho é de annos a todos esses, sem
arrojo de conjectura, se póde atribuir algum contingente no estrondoso libello
92
.
declarações de Pereira de Figueiredo e de Manuel do Cenáculo que também
indicam a autoria pombalina da Dedução Cronológica, bem como a colaboração
destes
93
. A obra, como ocorrera com a Relação Abreviada, teve divulgação nacional e
internacionalmente, sendo traduzida para latim (pelo padre Pereira de Figueiredo),
89
O segundo volume é assim apresentado: Deducção Chronologica, e Analytica. Parte segunda, na qual
se manifesta o que successivamente passou nas differentes epocas da Igreja sobre a censura, prohibição,
e impressão dos livros: demonstrand-se os intoleraveis prejuizos, que com o abuso dellas se tem feito á
mesma Igreja de Deos: a todas as monarquias: a todos os Estados soberanos: e ao socego publico de
todo o universo.
90
FRANCO, Jo Eduardo. Os catecismos antijesuíticos pombalinos. op. cit., p. 256.
91
Ibidem, p. 257.
92
AZEVEDO, João Lúcio de. O Marquês de Pombal e sua época. op. cit., p. 291.
93
FRANCO, Jo Eduardo. Os catecismos antijesuíticos pombalinos. op. cit., p. 257.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
141
italiano, espanhol, italiano, francês, alemão, havendo até uma versão adaptada em
chinês, em vista da presença dos jesuítas na China
94
. Sua divulgação foi feita,
principalmente, às custas do governo português. As livrarias do Reino receberam
milhares de exemplares para serem vendidos, além do envio gratuito para “todas as
principais autoridades e instituições civis e religiosas que exerciam influência do Reino
e nas colônias”
95
.
Para mostrar o papel dos inacianos na história portuguesa, a Dedução Cronológica
deturpa vários episódios históricos, inserindo os membros da Companhia em situações
em que eles não participaram, atribuindo-lhes a autoria de ações funestas à sociedade
portuguesa, que não necessariamente foram cometidas pelos jesuítas, ou mesmo
interpretando alguns documentos de forma tendenciosa. Um exemplo dessa
manipulação pode ser vista quando se narram as ações do primeiro reinado do felipes
sobre Portugal. Na Dedução, os jesuítas o acusados de influenciarem Felipe II nas
medidas cruéis que tomou contra os portugueses, de serem, em alguns casos, os
executores dessas medidas e de adotarem posturas falsas perante os povos portugueses,
pois, quando subiam nos púlpitos, clamavam pela liberdade portuguesa e consolavam os
povos dizendo que tal liberdade logo chegaria. Para provar essa última postura dos
jesuítas, a Dedução Cronológica cita a História de Portugal Restaurado:
Assim he tambem verdade notoria, e constante pelos mesmos Historiadores
daquelle tempo; entre os quaes se explica o dito Conde da Ericeira D. Luiz de
Menezes nestas formaes palavras:
Estas, e outras demonstrações accrescentárão de sorte a afflicção nos
animos de todos os Portuguezes, que muitos se sahírão do Reyno; vendo que
nelle não tinhão livres mais que os olhos, para ver o que padecião, e chorar o
que perdérão. Porém não faltavão outros, a que não confundia o temor; e
achando-se sem mais socorro, que o da esperança, recorrião ás Profecias, e
espalhavão-nas pelo Povo; para que estivesse sempre vivo o desejo da liberdade,
até o tempo offerecesse occasião de procuralla. Caminhavão ao mesmo afim
muitos Prégadores no Pulpitos, donde fallavão tão livremente, que confessava
ElReyCatholico dar-lhe cuidado a Guerra, que lhe fazião; e ao passo deste receio
os mandava castigar. Era hum dos mais resolutos o Padre Luiz Alvares da
Companhia de Jesus, &c.
96
.
Na verdade, o Conde da Ericeira, ao relatar a crença em profecias e na liberdade
futura que os portugueses teriam, não estava fazendo uma apologia da falsidade dos
jesuítas, pelo contrário, o “&c. da citação feita na Dedução Cronológica vem
94
Ibidem, p. 259.
95
Idem.
96
SYLVA, José de Seabra da. Dedução Cronológica e Analítica... Lisboa: Officina de Miguel Manescal
da Costa, 1768, Parte Primeira, pp. 128-129. (Itálico no original).
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
142
exatamente no momento em que D. Luís de Meneses faz um comentário a respeito da
Companhia: “religião em que esteve sempre viva a fé portuguesa”
97
. ainda outros
comentários elogiosos aos jesuítas ao longo da História de Portugal Restaurado, que,
talvez por isso, seja acusada, na própria Dedução de ter sido desfigurada pelos
jesuítas
98
. Ao mesmo tempo, como se viu, as palavras do Conde da Ericeira foram
usadas como tentativa de se provar as teses anti-jesuíticas do pombalismo.
A divulgação de crenças proféticas de que trata a citação acima era vista por
Pombal como uma das piores manifestações da superstição e fanatismo, que os jesuítas
disseminavam em Portugal. A Divisão IX” da Dedução Cronológica
99
, que trata do
reinado de D. João IV, deu especial atenção ao papel dos jesuítas na divulgação de tais
crenças, contestando-as e associando-as a objetivos poticos que os inacianos teriam ao
defenderem essas idéias em Portugal.
Ainda durante o tempo dos felipes, os jesuítas teriam utilizado as profecias do
“Çapateiro Santo Simão Gomes” para iludirem os portugueses com crenças
supersticiosas e acalmarem os ânimos dos povos que estavam enfurecidos contra os
inacianos por estes terem sido responsáveis por incentivar D. Sebastião a partir para a
desastrosa batalha de África. Daí terem forjado a crença no retorno do rei, que se teria
salvado milagrosamente e que, ao voltar, traria um tempo de grandes felicidades ao
Reino.
Durante o reinado de D. João IV, passados 60 anos da morte de D. Sebastião,
quando as promessas de retorno do rei já não mais faziam sentido, os jesuítas teriam
recuperado as profecias de Simão Gomes encontrando nelas o vaticínio da Restauração
sob o Duque de Bragança. Além das palavras de Simão Gomes, os jesuítas, com o
mesmo propósito, teriam produzido uma coletânea de profecias, ajuntando quantas
97
ERICEIRA, Conde da. op. cit., vol. 1, p. 53.
98
Sebastião José de Carvalho e Melo foi bastante ligado à casa dos Ericeiras. Foi membro de uma das
academias fundadas pelo IV Conde da Ericeira e foi autor de um elogio ao V Conde da Ericeira, D. Luís
Carlos Ignácio Xavier de Meneses, em que é designado como membro da “arvore da Excelentissima
Familia de Ericeira” (SERRÃO, Joaquim Veríssimo. op. cit., vol. 3, p. 188). Talvez essa seja uma
explicação para que atenue as críticas feitas ao escolasticismo e jesuitismo presentes na História de
Portugal Restaurado, dizendo que ela foi modificada pelos jesuítas, ou seja, tais posições não seriam
próprias de D. Luís de Meneses. Sua obra é citada várias vezes durante a Dedução Cronológica,
considerada uma das fontes mais seguras da história portuguesa à época.
99
A primeira parte da obra é composta por 15 “Divisões”, que correspondem a capítulos que se referem
geralmente à narrão da história de cada um dos reinados desde D. João III, quando os jesuítas chegaram
a Portugal.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
143
imposturas puderão inventar”, intitulada Jardim Ameno, “para inundarem este Reyno de
suggestões supersticiosas, e para com ellas seminarem hum geral Fanatismo
100
.
Da mesma forma que introduziram tais crenças na Corte francesa com o padre
Campanella, que conseguiu sugestionar até mesmo o cardeal Richelieu a respeito de um
prognóstico que dizia que o Duque de Orleans morreria antes de reinar, os jesuítas
teriam difundido suas profecias na Corte portuguesa e junto ao rei D. João IV e o
príncipe D. Teosio. Com esse fim, “puzerão em público (...) o ardente Engenho, e
turbulento Espírito do seu Antonio Vieira, então celebrado de muitos”
101
. Vieira teria
composto as trovas atribuídas a Bandarra na obra Profecias de Gonsalianes Bandarra,
Çapateiro de Correa, natural da Villa de Trancoso, Anno de 1640. Sendo um rústico
sapateiro do interior, Bandarra jamais poderia ter composto trovas com tão afinado
estilo, ritmos e métricas: não teria aquelle pueril engenho, e (...) aquelle escolástico
artifício, que nas Classes da Companhia se aprendem”
102
, nem mesmo teria
conhecimento dos elementos de história sagrada e profana mobilizados em suas trovas,
muito menos noção dos interesses poticos envoltos em um prognóstico da Restauração
no ano de 1640
103
.
Apesar dessas óbvias” incongruências, a crença de que Bandarra pudesse ter
composto suas profecias teria sido possível devido à grande confusão e fanatismo que
os jesuítas haviam espalhado em Portugal naquele século, de tal forma que apenas uma
pouca erudição, e pouco criterio, haverião bastado, para se desmascarar a impostura”
104
daquelas profecias. Aqui se percebe a relação estabelecida entre as crenças proféticas e
um tempo de atraso, de escuridão em Portugal, durante o qual os jesuítas tiveram
preeminência.
A grande capacidade e eloqüência de Antônio Vieira, “forçando as Sagradas
Escrituras a virem arrastadas por jogos de palavras, e fóra do verdadeiro sentido
105
,
ligando a história profana à Bíblia, principalmente em seus sermões nos lpitos, teria
influenciado até mesmo as pessoas bem cultivadas de Portugal. Introduzindo sua
influência na Corte, os jesuítas conseguiram que um membro de sua ordem, João
Pascasio Cosmander, fosse escolhido para mestre de Matemática do príncipe D.
100
SYLVA, José de Seabra da. op. cit., p. 199.
101
Ibidem, p. 204.
102
Ibidem, p. 206.
103
Idem.
104
Idem.
105
Ibidem, p. 207.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
144
Teodósio, então com nove anos incompletos
106
. Segundo a Dedução Cronológica, este
abominavel Jesuita foi pois determinado, o para illuminar, mas antes para corromper
o innocente Espirito do referido Principe; como corrompeo, até o ponto de lhe fazer
crer, que pela Astronomia, e Astrologia, podia adivinhar”
107
. Relata-se, através das
palavras de um historiador jesuíta, que o príncipe foi capaz de fazer vários prognósticos
que se concretizaram. Posteriormente, outro jesuíta, André Fernandes, teria continuado
o mesmo estilo de ensino sobre o príncipe. Como se viu no capítulo anterior, a ctica
aos conhecimentos astrológicos e à possibilidade de se prever eventos históricos através
desses saberes esteve também presente nos editais censórios e é uma das características
do processo de secularização do pensamento histórico. Nesse caso, o ensino da
Astrologia ligado à previsão do futuro era visto como uma corrupção, como um
processo contrário ao esclarecimento.
Qual seria o objetivo dos jesuítas ao “corromperem” as letras e os conhecimentos
portugueses e introduzirem a superstição e o fanatismo nos povos e Corte lusitanos? Na
resposta a essa questão, ocultava-se uma meta potica dos inacianos: confundir e
distrair o conhecimento dos monarcas lusitanos para poderem dominá-los e governarem
o Reino de acordo com seus interesses. Semelhantemente ao que já haviam feito com D.
Sebastião, os jesuítas influenciaram a formão do príncipe D. Teodósio que acabou
Sendo alienado de si mesmo á força de especulações Metafysicas, e de Discursos
Mysticos: Sendo assim reduzido ao estado de hum servil Noviço da Sociedade
dos seus Mestres, e Directores: Sendo radicado na aversão contra o Matrimonio, a
que o obrigava o lugar de Successor da Monarquia: Sendo tirado da obediencia,
que por Direito Natural, e Divino, devia a seu Augusto Pay (...) porque estas são
as causas, de que se seguem as doenças, que ordinariamente costumão precipitar
na sepultura a mocidade estudiosa da mesma Companhia chamada de Jesus,
como he bem notorio
108
.
A ação perniciosa e fanática dos jesuítas teria conseguido influenciar até mesmo o
sábio rei D. João IV, que acabou ficando sem ter onde buscar colaboradores que não
fossem já corrompidos pelas doutrinas jesuíticas:
De sorte que nem os grandes, e sublimes talentos, de que todo o Mundo sabe que
era dotado o Senhor Rey D. João IV, forão bastantes, para o defenderem do
bloqueio, em que os ditos Regulares puzerão a sua Real Pessoa, e o seu Gabinete;
até vir a ser necessitado a governar-se por Elles, sendo os seus maiores Inimigos;
a acabar a vida entre suas mãos; e a deixar o Reyno entregue á Companhia
denominada de Jesus, que foi o mesmo que deixar a Monarquia conquistada por
aquella cruel, e façanhosa Sociedade
109
.
106
Ibidem, p. 216.
107
Idem.
108
Ibidem, p. 219.
109
Ibidem, p. 220.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
145
Dessa maneira, o ideário pombalino associava as crenças proféticas a um objetivo
político da Companhia de Jesus em Portugal, tomando-as também como uma das
manifestações da corrupção das letras e dos conhecimentos portugueses, ou seja, de seu
atraso cultural e potico. Veja-se, agora, como as concepções poticas do
corporativismo escolástico foram tratadas na Dedução Cronológica, a partir da
interpretação de um episódio histórico: as Cortes de 1668.
Segundo o narrado na “Divisão XI” da Dedução Cronológica, as interpretações
das Escrituras e demais sinais proféticos disseminados nos escritos e sermões de Vieira
foram novamente mobilizados para, dessa vez, impedir que o infante D. Afonso
assumisse o trono português. Os jesuítas desejariam manter a influência e controle que
exerceram sobre D. João IV e a rainha D. Luísa enquanto esta foi regente. Sabiam,
entretanto, que não conseguiriam exercer tal poder sobre o rei D. Afonso VI, que
possuía sábios e leais conselheiros e ministros como o Conde de Castelo Melhor, o
fidalgo Henrique Henriques de Miranda e o conselheiro Antonio de Sousa de Macedo,
então Secretário de Estado. Dessa forma, os inacianos teriam utilizado profecias e
revelações, principalmente de Vieira, para convencer a Corte e os povos portugueses de
que o infante D. Pedro, irmão de D. Afonso, “era o verdadeiro, e legitimo Rey de
Portugal determinado pelo Ceo”
110
. Intentaram também convencer o próprio D. Pedro
de sua escolha divina, além de nutrirem em seu ânimo uma aversão, desprezo e ódio a
seu irmão D. Afonso
111
. Iniciaram também uma campanha de difamação dos ministros e
conselheiros reais, persuadindo as pessoas do povo “que não passão da superficie á
substancia das cousas”
112
.
Além dessas estratégias, os inacianos teriam também iniciado uma campanha
difamatória que afirmava que D. Afonso VI era inapto para reinar, pois possuiria uma
“inabilidade para matrimônio”. Convenceram até mesmo a rainha D. Maria Francisca
Isabel de Saboya a ficar contra seu esposo, dando depoimentos nesse sentido e pedindo
a anulação do casamento
113
.
Com todos esses artifícios, os jesuítas teriam conseguido fazer com que o infante
D. Pedro assumisse as funções reais em lugar de seu irmão, muito embora este
continuasse com o título de rei. A intenção dos jesuítas em promoverem essa mudança é
110
Ibidem, p. 282.
111
Ibidem, p. 278.
112
Ibidem, p. 288.
113
Ibidem, pp. 317-325.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
146
atestada, na Dedução, pela citação de uma carta de Vieira a uma grande pessoa da Corte
de Lisboa, em que afirmava que procurou mostrar a todos “que ElRey, que Deos
guarde, fosse preferido, como era justo, a seu Irmão: E que entre os que padecérão por
esta causa, não [foi ele] o menos perseguido, e vexado”
114
.
Diante de uma indignação dos povos com a injustiça perpetrada contra El-Rei D.
Afonso VI, os jesuítas novamente utilizaram o seu “Plano de Cortes”, para justificarem
a troca de soberanos. Baseado na idéia de que “as Cortes formão hum Tribunal
Soberano, e reduzem a Pessoa do mesmo Rey á mesma condição de hum simples
Particular”
115
, o Plano de Cortes” dos jesuítas teria sido utilizado em outros momentos
para realização de seus interesses, como no final do reinado de D. Henrique, tirando o
direito à Coroa de sua sobrinha D. Catarina; em um atentado contra o poder de D.
Felipe IV; e durante a regência de D. Luísa
116
. Assim, mais uma vez propiciaram a
convocação das Cortes, para analisarem a deposição de Afonso VI. Nesse ponto, a
Dedução Cronológica narra os argumentos apresentados e discutidos nas Cortes de
1668, utilizando o relato contido na História de Portugal Restaurado.
No Capítulo 1, viu-se como a interpretação da Restauração de 1640 feita na
História de Portugal Restaurado baseou-se em concepções poticas do corporativismo
escolástico. A legitimação da Restauração era um dos objetivos de D. Luís de Meneses,
o outro era a justificação da coroação de D. Pedro. Segundo D. Luís de Meneses, sua
obra pretendia “mostrar claramente ao mundo, assim a justiça com que o Sereníssimo
Rei D.João o IV, de imortal memória, se restituiu à Coroa de Portugal, como a justa
razão com que o excelente Príncipe D. Pedro, segundo Tito, delícia dos homens, sem
mais causa que a defensa da conservação e segurança deste Reino, tomou sobre seus
generosos ombros o governo dele (...)”
117
. A elevação de D. Pedro à Coroa portuguesa
deu-se nas Cortes de 1668, em que o então rei, D. Afonso VI, foi considerado inapto
para governar. Então, o príncipe D. Pedro, irmão de D. Afonso, que já exercia as
funções governativas em seu lugar, foi jurado rei pelas Cortes. D. Luís de Meneses teve
ligação direta com o reinado de D. Pedro, como se disse acima, e o último livro de sua
obra narra a justificação assumida pelas Cortes tanto da inaptidão de D. Afonso, como
da legitimidade da entrega da Coroa ao novo rei. Os critérios apontados para a troca de
soberanos foram justificados também através de conceitos do corporativismo
114
Ibidem, p. 338.
115
Ibidem, p. 333.
116
Ibidem, p. 312.
117
ERICEIRA, Conde da. op. cit., vol. 1, p. 5.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
147
escolástico. Já a Dedução Cronológica dedicou uma divisão apenas à refutação de todos
os critérios utilizados nessas Cortes, alegando sua injustiça, ilegalidade e, como era de
se esperar, a ação dos jesuítas nessa corrupção dos preceitos.
A Divisão XII” da Dedução Cronológica dedicou-se a mostrar “os sediciosos
absurdos da deliberação das Cortes, que derão por boa, e legitima a deposição do
mesmo Senhor Rey D. Affonso VI”
118
. Nessa seção da obra, encontra-se sistematizada
toda a crítica do pombalismo ao pensamento potico corporativista escolástico. Afirma-
se que os critérios utilizados nessas Cortes foram os mesmos apresentados no Assento
feito em cortes pelos tres estados dos Reynos de Portugal da acclamação, restituição &
juramento dos mesmos Reynos ao... Rey Dom Ioaõ o Quarto deste nome (1641), e que
os jesuítas teriam se infiltrado nas Cortes de 1640 e manipulado a confecção deste
documento, da mesma forma que o fizeram nas Cortes de 1668
119
.
O Assento, justificando as Cortes que levantaram o rei D. João IV, evoca as Cortes
de Lamego para afirmar que o poder de um reino, particularmente o de Portugal, reside
em seus povos, sendo legítima a deposição de um rei e a eleição de um novo:
E pressuppondo por cousa certa em direito, que ao Reyno somente compete
julgar, & declarar, a legitima successaõ do mesmo Reyno, quando sobre ella já
duuida, entre os pretensores, por rezão do Rey vltimo possuidor falecer sem
descendentes, & exhimiarse tambem de sua sogeição, & dominio, quando o Rey
por seu modo de gouerno, se fez indigno de Reynar. Por quanto este poder lhe
ficou, quãdo os Pouos a principio, transferirão o seu no Rey, para os gouernar.
Nem sobre os que não reconhecem superior, há outro algum a quem possa
competir, senão aos mesmos Reynos, como prouão largamente os Doutores, que
escreuerão na materia, & há muitos exemplos nas Respublicas do mundo, &
particularmente neste Reyno, como se deixa ver das Cortes do Senhor Rey Dom
Affonso Henriques, & do Senhor Rey Dom Ioaõ o I
120
.
No decorrer do texto são apresentados os argumentos jurídicos que provavam a tirania
do felipes e a justiça da entrega do trono ao Duque de Bragança, no que se obedeceu aos
mesmos tópicos que seriam posteriormente apresentados por Ericeira na História de
Portugal Restaurado, como o desrespeito ao direito e normas de sucessão portuguesas
estabelecidas nas Cortes de Lamego; a nulidade das Cortes de Tomar e demais assentos
que confirmavam os felipes como reis de Portugal (pois elas não tiveram a
representação dos três estados e por ter sido uma conquista violenta); e por ser também
118
SYLVA, José de Seabra da. op. cit., p. 350.
119
Ibidem, pp. 390-391.
120
ASSENTO feito em cortes pelos tres estados dos Reynos de Portugal da acclamação, restituição &
juramento dos mesmos Reynos, ao muito Alto, & muito poderoso Senhor Rey Dom Ioaõ o Quarto deste
nome. Lisboa: por Paulo Craesbeeck, 1641, fls. 2 e 2v. (Foi consultada uma versão digitalizada da obra,
disponível no site da Biblioteca Nacional de Portugal –
www.bn.pt ).
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
148
nula a obediência jurada à Castela, pois Felipe IV não governava para o bem comum,
mas, sim, para suas utilidades, o que os doutores mostrariam ser indigno de reinar
121
.
Segundo o argumento da Dedução Cronológica, esses foram os mesmos “falsos”
princípios que nortearam as Cortes de 1668. O relato dessas Cortes, feito por D. Luís de
Meneses, apresentou três causas, discutidas e aprovadas pelos Três Estados do Reino,
para a deposição de D. Afonso VI. Sendo a primeira causa “a sua incapacidade, que teve
princípio em uma doença que padeceu na sua infância”, o que não seria um problema,
se disso não adviesse a ruína do reino, “porque, juntando a todos os defeitos a
inadvertência com que favoreceu, tanto na puerícia como na adolescência, a homens
indignos (...) que trataram de o agradar, insinuando-lhe tudo quanto era mais
contrário à autoridade e estado real e ao governo de seus reinos”
122
.
A segunda causa da privação do poder a D. Afonso VI foi pelo fato de exercer um
governo tirânico. Apesar da ressalva de que, devido à doença, Sua Majestade não
entendia o mal que obrava e consentia se obrasse”, o rei “exercitou muitas ações
tinicas; como foi a desobediência à rainha sua mãe e a irreverência com que a
tratou”
123
. Além disso, sua tirania foi retratada assim:
Desterrar as pessoas grandes e eminentes do reino, sendo os mesmos de que el-rei
seu pai fazia a maior confiança e que, pela defesa do reino, haviam derramado
muitas vezes o sangue, buscando para a sua doméstica assistência os homens mais
facinorosos da república, em que se verifica e manifestamente se prova que o seu
governo era tirânico; levantar e admitir honras e dignidades homens indignos,
facinorosos e cruéis, e dar-lhes confiaa e ousadia para continuarem seus maus
costumes à sombra do seu valimento, venderem-se as honras e ofícios públicos,
que são o tesouro da república, com o qual, sem se empobrecer o patrimônio real,
se remuneram os beneméritos, e, pelo contrário, vêm aquelas honras a perder a
sua estimação, quando se experimenta que se alcança com o dinheiro e não com o
merecimento pessoal de cada um: estas ações tão repetidamente exercitadas,
acrescentando-se a elas a crueldade com que el-rei maltratava e a violência com
que consentia maltratar seus vassalos, de modo que parecia andavam em
competência os mesmos vassalos a querer dar a vida em seu serviço e el-rei a
ofendê-los e afrontá-los, mostram concludentemente que o governo de el-rei era
tirânico e, em conseqüência, que Sua Alteza e a nobreza do povo lho podiam
tirar
124
.
A terceira causa apontada para a deposição de D. Afonso VI foi a “dissipação dos
bens da Coroa e do Reino
125
. Apesar do acréscimo de recursos que entraram nos cofres
da Coroa e da diminuição dos gastos com as guerras contra Espanha em seu reinado, as
121
Ibidem, fls. 2v-3, 7-8; 10-11.
122
ERICEIRA, Conde da. op. cit., vol. 4, p. 496.
123
Ibidem, vol. 4, p. 501.
124
Ibidem, vol. 4, pp. 501-502.
125
Ibidem, vol. 4, p. 502.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
149
contas do Reino sob D. Afonso eram cada vez piores, de tal forma que “dissipando-se
tudo com tanto desperdício, e tão fora do que pedia o bem comum a que estava
aplicado, que poucos dias mais que durasse a sua administração, se experimentariam
irremediáveis os danos da monarquia”
126
.
Essas foram as razões apresentadas para a deposição de D. Afonso VI, segundo
Ericeira. Por meio delas, percebe-se a caracterização do governo tinico e contrário ao
bem comum, justificando-se a retomada do poder potico pelo Reino, aspectos típicos
do pensamento potico corporativo escolástico. A “Divisão XII” da Dedução
Cronológica pretende provar, justamente, o quão absurda foi essa deposição, a começar
pelo pressuposto de que o poder político do Reino reside em seus corpos. Contra a tese
de que o poder político reside nos corpos sociais do Reino, a defesa feita na Dedução
Cronológica afirmava que o poder na Península Ibérica advinha da “santa conquista” do
terririo frente aos mouros, iniciada por Fernando de Leão. Defende-se, pois, o direito
de conquista em uma guerra justa, que legitimava o poder de Fernando e seus
sucessores na reconquista da Península. Dessa forma, o poder estava na dinastia
conquistadora, e dela poderia emanar. E foi assim que teria surgido o reino
português: o Conde D. Henrique de Borgonha o recebera por doação do rei de Leão e,
por sucessão, o poder passou para seu filho D. Afonso Henriques e daí por diante
127
.
Nessa formulação, os povos não tiveram nenhum papel nem na separação do reino
português de Leão, nem na eleição do novo rei. A aclamação de D. Afonso Henriques
pelo exército tinha um valor simbólico, pois, a partir daquele momento, ao invés de
conde e condado, D. Afonso Henriques e Portugal se tornariam rei e reino
128
. Aqui, já se
percebe uma releitura de um importante episódio da historiografia portuguesa de então.
Dentro da leitura do corporativismo escolástico, a aclamação de D. Afonso pelos
soldados seria o momento em que os povos teriam transferido o poder, que neles
residia, para o rei. na refutação dessa interpretação, feita na Dedução Cronológica, o
poder residiria legitimamente no soberano independentemente dos povos, princípio que
se teria seguido por todos os outros reis portugueses que, legitimamente, aumentaram
suas possessões em guerras justas.
A partir da refutação da teoria da origem do poder régio português oriunda do
pensamento corporativo escolástico, o ideário pombalino apresenta o poder real
126
Ibidem, vol. 4, p. 503.
127
SYLVA, José de Seabra da. op. cit., pp. 351-352.
128
Ibidem, p. 353
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
150
totalmente independente dos estados do Reino e, dessa forma, sem limites que possam
ser estabelecidos pela reunião desses estados nas Cortes, nem que as mesmas tenham
qualquer função legislativa.
Na Dedução Cronológica e Analítica, entende-se que as Cortes em Portugal,
desde Lamego, tiveram sempre um papel apenas consultivo, “a que o rei recorria na
falta de outros meios de auscultar o Reino
129
. Além disso, retira-se das mesmas todo o
papel que possuíam como mediadoras entre o poder de Deus, residente nos povos, e o
soberano. A argumentação anti-corporativista no texto de José de Seabra da Sylva,
se dirige a provar que a monarquia portuguesa era uma monarquia pura, constituída
por territórios conquistados em guerra justa, fundada por doação (de Afonso VI de
Leão a D. Henrique), transmitida por sucessão e em que todos os poderes residiam
pura e soberanamente no rei, e que, portanto, ao contrário do que se passava nas
monarquias mistas, não havia qualquer participação no poder de outros corpos do
Reino, nomeadamente quando reunidos em cortes
130
.
Pedro Cardim acrescenta ainda que a Dedução Cronológica e Analítica retrata o
Lamego, mas tamm a narrativa acerca das reuniões de Cortes durante o século
XVII, “como um instrumento dos padres da Companhia [de Jesus]”, pois visavam
diminuir a autoridade do rei, tornando-o um simples particular
131
. A retomada do tema
das Cortes de Lamego na obra em tela não possuía a inteão de “negar a sua
existência”, mas sim o objetivo de “retirar aos participantes nesse evento o poder para
levantar ou depor um rei”
132
. As Cortes de Lamego teriam definido apenas as regras de
sucessão do trono, mas, de forma alguma, seriam a legitimação do próprio poder.
Considera-se, também, que a lei deve prevalecer sobre todas as instâncias do
Estado
133
, e o poder de legislar reside exclusivamente no soberano. Assim, é fuão do
rei estabelecer as leis e delegar poderes e fuões para que essas se fam ser
cumpridas. Em hipótese alguma o soberano poder ser limitado pelas mesmas leis e
poderes que alguns homens possam exercer, pelo contrário, pode revogar as mesmas
leis e retirar o poder àqueles a quem o confiou, caso lhe pareça necessário
134
. A única
129
HESPANHA, A. M. O absolutismo de raiz contratualista. op. cit., s.p.
130
Ibidem, s.p.
131
CARDIM, Pedro. op. cit. p. 176.
132
Ibidem, p. 176.
133
Uma das argumentações para se provar o “absurdo” que foi a deposição de D. Afonso VI e eleição de
D. Pedro II foca-se exatamente no desrespeito que se cometeu às regras de sucessão confirmadas nas
Cortes de Lamego e que constituiriam uma lei fundamental do Reino, pois, por essas mesmas regras, o
poder de D. Afonso era legítimo. SYLVA, José de Seabra da. op. cit., p. 355.
134
A Dedução Cronológica admite casos em que os estados da nobreza e do clero possuem o poder, o
que o se aplica a Portugal: “Porque o Estado do Clero só teria a Suprema Jurisdicção Aristocratica, com
que o fizerão obrar illudido, nas Republicas, onde se elegião para exercitarem a dita Jurisdião as
Pessoas notáveis pelas suas virtudes, e talentos, como succedeo aos Lacedemonios, os quaes nestes
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
151
limitação ao poder real seriam as leis fundamentais do Reino, que nem mesmo o rei
pode alterar. No caso português, essas leis, oriundas de Lamego, restringir-se-iam,
como se disse, às normas de sucessão.
São refutadas todas as teorias de que se pode inferir uma limitação ao poder real.
Aqui são registrados alguns nomes da Segunda Escolástica, como Luís de Molina,
Roberto Bellarmino, Francisco Suárez, Martinho Becanus, Juan de Mariana e outros
135
.
Suas obras são comentadas e refutadas, sendo que a defesa de resistência ao poder real,
bem como do direito de rebelião e até mesmo de regicídio, feita por esses autores, é
tachada de “monarcomachia”
136
. Os jesuítas seriam os principais “monarcômacos” a
agirem contra o sossego público nos reinos europeus. Os monarcômacos desejariam que
os homens vivessem em confusão, sem leis nem ordens que devessem respeitar, o que
era fundamental para a boa ordem social, pois seria necessário um poder soberano sem
limitações na sociedade civil para que se “puzesse hum freio ás suas [dos homens]
soltas, e mal entendidas liberdades”
137
.
Fundamenta-se, assim, uma governação ativa, que pode alterar a ordem social
caso seja necessário e em que os costumes não imem restrições à capacidade
legislativa do rei. No modelo corporativo escolástico, de uma governação passiva, a
função governativa de se “realizar justiça”, como se viu no Capítulo 1, possuía
limitações morais e religiosas, abrigava a concepção da sociedade como um corpo
ordenado por Deus e implicava uma reiteração da história, pela qual as funções dos
corpos sociais permanecessem as mesmas e as leis e normas atemporais, divinamente
estabelecidas, se concretizassem. No modelo juspotico pombalino, pelo contrário, não
existem tais limitações ao poder real. E este poder pode alterar a ordem social, caso seja
necessário, através da sua capacidade legislativa, pelo menos nos termos da sua
teorização potica: esta noção acha-se desenvolvida nos argumentos históricos da
ultimos tempos só imitou, e está imitando actualmente a Cidade Mercante de Amsterdão: Porque o Estado
da Nobreza tambem o podia praticar a outra Aristocracia, que affectou, senão nas Républicas, onde a
Suprema Authoridade está nos que se distinguem pelo nascimento; como succede em Veneza, em
Genova, em Luca: E porque finalmente o mesmo pertendido Poder Supremo do Terceiro Estado, ou dos
Póvos, da mesma sorte o seria praticavel, seo fosse nas outras Républicas Democraticas, onde
aquelle Supremo Poder reside na Universalidade dos seus Habitantes, ou nas Assembléas Geraes dos
Cidadãos; como succede nas Répulicas, dos Estados Geraes das Provincias Unidas, dos Cantões Suissos,
das Ligas dos Grizões, e do Paiz de Genebra; com differença das antigas publicas de Athenas, e de
Roma, nas quaes decidia o ajuntatamento universal do Povo”. SYLVA, José de Seabra da. op. cit., pp.
358-359. (Itálico no original).
135
Ibidem, pp. 381-387.
136
Ibidem, pp. 377.
137
Ibidem, p. 378.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
152
Dedução Cronológica e manifestada também na prática legislativa pombalina,
principalmente com a edição da Lei da Boa Razão.
Essa visão aproxima-se da concepção histórico-política oriunda do contratualismo
moderno, segundo a qual a boa ordem social o pode ser limitada pela história, ou seja,
o fato de existir uma “tradiçãoou um “costume” o pode ser o modelo a ser repetido
pelo pensamento e pela prática potica. A razão deve ser o norteamento da política e da
história; sendo assim, é legítimo e necessário que o poder político, em busca da
felicidadeblica, rompa com o previamente estabelecido.
A construção do regalismo também implicou uma revisão das concepções de
história. O regalismo absolutista implicava afirmar o poder do Estado, não só sobre a
ação dos poderes concorrentes ao da Coroa, mas também a fundamentação e
legitimação desses poderes. Na Dedução Cronológica e Analítica, assim como havia
sido feito por Ribeiro Sanches nas Cartas sobre a Educação da Mocidade, existe a
defesa de que o poder real, desde o início do reino português, era a única fonte de poder,
e que os momentos em que a Igreja teve uma participação decisiva na potica foram
deturpações. Para isso, reiterando, revisou-se a concepção religiosa da história, para que
o papel potico do Estado pudesse se apartar da Igreja.
A conformação do ideário pombalino inseriu-se no contexto das tensões entre o
poder temporal e o espiritual, defendendo a autonomia da Coroa frente à Igreja. Para
tanto, rejeitou-se a “concepção sacral da sociedade, isto é, a visão da sociedade civil à
imagem e semelhança da sociedade eclesiástica [...] a visão do Estado como braço
secular da Igreja”
138
. Assim, rejeitando-se essa idéia, rompeu-se com a concepção
escolástica da sociedade como um “corpo místico”, cujo fim seria, como de qualquer
fiel, a salvação. Entretanto, como se ressaltou no capítulo anterior, essa rejeição não
implicava uma desvinculação entre a ordem divina e a sociedade potica, mas uma
reinterpretação desse vínculo.
Segundo Hespanha, a Dedução Cronológica e Analítica é aprimeira grande
manifestação literária, em Portugal, dessa nova concepção política”
139
, pois nela se
defende a tese de que o rei é “soberano, ungido de Deus Todo-Poderoso, imediato à sua
divina ominipotência, e tão independente que não reconhecia na terra senhor superior
138
SILVA DIAS, J. S. Pombalismo e teoria política. apud HESPANHA, A. M. O absolutismo de raiz
contratualista. Disponível em
<hespanha.net/sitebuildercontent/sitebuilderfiles/1995_Absolutismo_contratualista.pdf> Acesso em 13
ago. 2005, s.p.
139
HESPANHA, A. M. O absolutismo de raiz contratualista. op. cit., s.p.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
153
temporal”
140
. Da polêmica anti-papista em que se insere a obra, segue-se uma exaltação
do poder temporal central, da Coroa, que desqualifica e deslegitima outros poderes
concorrentes, estes já no âmbito secular
141
.
O poder da Coroa, sem concorrentes ou limites no temporal, é legitimado com
base em argumentos teológicos, semelhantemente ao que é feito por Gonzaga no
Tratado de Direito Natural. Segundo o texto da Dedução Cronológica, a limitação
imposta à Coroa pela Igreja e demais corpos do Reino, bem como a ação dos três
estados nas Cortes julgando as ações reais, contrariavam a Lei Divina. O poder supremo
dos reis teria origem bíblica, teria sido estabelecido por Deus, contra o qual os povos
o possuíam o direito de reclamarem. Baseando-se na interpretação que o teórico De
Real fez do livro do profeta Samuel, defende-se que, por direito divino, o poder dos reis
é supremo e deve ser usado para obrar o bem. Entretanto, caso o soberano não agisse
dessa forma, os povos não teriam “contra os mesmos Reys mais recurso, que o
soffrimento; porque Deos não ouviria nunca os incompetentes clamores, com que o
Povo acusasse ao seu proprio Rey”
142
. São citados outros textos do Antigo e Novo
Testamentos a fim de provar, com base nas Sagradas Escrituras, que as ordens dos reis
devem ser obedecidas como sendo proferidas pelo próprio Deus, pois o juramento de
obediência que é feito ao rei, na verdade, seria feito a Deus, e que Deos poz os
Principes no seu lugar, e o substituio nos seus Direitos nesse Mundo”. Dessa forma, são
condenadas todas as possíveis rebeliões contra os reis e suas ordens, tidas como
desobediências a Deus, até mesmo quando o príncipe se torna violento ou injusto, pois
as suas ordens substituem o direito de Deus neste mundo
143
.
A argumentação regalista é complementada apontando-se que Cristo o possuía
jurisdição temporal, pois o seu reino não seria desse mundo. Isso seria expresso em
diversas falas de Cristo
144
, que demonstravam que a sua jurisdição, herdada por seus
discípulos e por sua Igreja, referia-se à salvação e o ao poder político. Como no
excerto a seguir:
Por isso quando os dous Filhos de Zebedeo pertendêrão ser eleitos para os
lugares, que sua Mãy pedia para Elles, lhe respondeo o mesmo Senhor = Que os
Principes da Terra dominavão nos seus Vassallos: Que aquelle, que tinhão o
140
Ibidem, s.p.
141
Ibidem, s.p.
142
SYLVA, José de Seabra da. op. cit., p. 360.
143
Ibidem, pp. 361-366.
144
Ibidem, pp. 362-365.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
154
Supremo Poder, he que os govenavão; que porém não era o mesmo entre os seus
Discipulos
145
.
Percebe-se como, nesse texto pombalino, a prática potica regalista é
fundamentada com base em argumentos religiosos e nas Sagradas Escrituras, algo
comum às teorias corporativas escolásticas. Alguns conceitos valorizados por uma
linguagem potica são utilizados por outra concorrente, aspecto importante na
legitimação do discurso, dado que o rompimento com a tradição, caso se radicalize,
corre o risco de fazer com que o discurso caia no vácuo, pois, como ensina Skinner, a
sociedade em que o discurso potico é lançado tem que reconhecer nele os próprios
valores para que ele se legitime. Nesse sentido, é interessante a ratificação, no texto da
Dedução Cronológica, da teoria das leis pensada por S. Tomás:
Aquelles Sagrados Textos do Velho, e Novo Testamento, que acabo de transcrever
assima, não estabelecêrão Lei nova, que até o tempo delles fosse ignorada no
Mundo. Muito pelo contrário só formalizárão aquella anterior, e primitiva Lei,
com que a razão infusa por Deos Todo Poderos no juizo dos Homens, e nelle
impressa pelo habito a que chamão Synderesis, tinha elevado o Direito Natural ao
Direito Divino, com que o Supremo Poder Civil havia sido respeitado, e temido
desde a creação do mesmo Mundo, por todas as Sociedades humanas, que nelle se
forão multiplicando, para manter entre ellas a ordem da economia, e do socego
público.
Direito Natural, e Divino, digo, que sempre havia sido Sagrado, e
inviolavel, ainda entre as Nações infieis, que infelizmente carecêrão do
conhecimento do verdadeiro Deos (...)
146
.
Segue-se a argumentação dizendo que, segundo essas leis conhecidas e aceitas mesmo
por aqueles que não tiveram acesso às Sagradas Escrituras algo caro ao tomismo –, o
poder dos soberanos é sagrado, independente no temporal “e que contra elle não devia
attentar-se”
147
. Assim, tem-se uma continuidade com o pensamento jurídico
corporativista, ou seja, o que é natural, no caso, a separação entre os poderes civil e
eclesstico e o dever de obediência ao soberano, é aquilo estabelecido por Deus.
Identifica-se o direito natural, que não deve ser alterado, com as regras da criação
divina. A argumentação pombalina contra os jesuítas e o pensamento corporativista
acaba adotando princípios de seus “adversários”, uma característica das linguagens
políticas.
145
Ibidem, p. 363. (Itálico no original)
146
Ibidem, p. 366.
147
Ibidem, loc. cit. Defende ainda que Santo Tomás não legitimava a resistência ao poder do príncipe,
nem mesmo aceitava a idéia de que o soberano pudesse ser coagido por qualquer lei positiva, dado que
ele próprio era a fonte das leis. Estes princípios tomistas teriam sido deturpados pelos jesuítas da Segunda
Escostica. Como se viu no capítulo anterior, essa articulação teórica entre tomismo e absolutismo foi
também formulada por Diogo Aboym, em sua Escola Moral.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
155
Ao analisar esse aspecto, Rodrigo Elias Caetano Gomes defende que as noções
básicas sobre a potica e a sociedade da langue pombalina estão ancoradas no
aristotelismo tomista da Segunda Escolástica, sobretudo no que dizem respeito à origem
do Estado (pacto) e ao fim do mesmo (eudamonia, bem-comum, felicidade)”
148
. De
fato, como se analisou acima, houve uma re-utilização de conceitos rivais pelo ideário
pombalino. Entretanto, esse ponto deve ser visto como uma estratégia de afirmação e
legitimação do discurso potico do regalismo absolutista e não apenas uma
continuidade do corporativismo escolástico, encampado pela potica pombalina.
Anteriormente viu-se como há também, na Dedução Cronológica, uma outra concepção
de lei, expressa, outrossim, na Lei da Boa Razão, que contrariava a concepção de lei da
escolástica segundo a qual o direito positivo deve refletir o direito natural e a
ordenação corporativa da sociedade. Essa diferenciação liga-se ao propósito de se
legitimar uma “governação ativa”, contrária à idéia corporativa de se governar como
“fazer justiça”. Tem-se, pois, um impasse: qual seria a concepção de lei que embasou o
ideário pombalino?
Embora essas duas concepções de lei e de governação” se mostrem teoricamente
incompatíveis, deve-se entender que, no momento das lutas políticas, as armas
utilizadas o aquelas que estão ao alcance das mãos, o que, aos olhos ulteriores do
historiador, pode parecer uma contradição do discurso. Na verdade, os atores histórico-
políticos, em suas falas e ações, possuem desafios e objetivos mais práticos e urgentes
do que se mostrarem lógicos e racionalmente coerentes, o que não pode escapar à
analise do historiador, nem mesmo levá-lo a um julgamento errôneo acerca da coerência
ou incoerência de um determinado discurso. Assim, em um mesmo texto, duas
concepções de leis teoricamente incompatíveis foram expostas e mobilizadas na defesa
de uma prática potica. Da mesma forma que foi possível que, em momentos diferentes
do consulado pombalino, as questões colocadas levassem à mobilização de um ou outro
conceito com vistas à concretização de determinados objetivos políticos.
É interessante observar que a utilização tática de alguns discursos tradicionais
para legitimar novas práticas poticas era algo sabido e comentado pelo futuro Marquês
de Pombal e seu círculo político: em 1732, Manuel Teles da Silva, o Conde Silva-
Tarouca recomendou a Carvalho e Melo, em uma correspondência, que quando fossem
necessarias algumas grandes disposições novas, sempre lhes quizera r nomes e
148
GOMES, Rodrigo Elias Caetano. As Letras da Tradição. op. cit., p. 118.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
156
vestidos velhos”
149
. Na Dedução Cronológica, foram apresentados ainda outros
argumentos teológicos na defesa do regalismo e do absolutismo, como o estabelecido
em Concílios católicos, textos dos apóstolos S. Pedro e S. Paulo, padres e autores
eclessticos, como Bossuet
150
.
Segundo Hespanha, a polêmica anti-corporativista no culo XVIII embasava-se
em dois picos: primeiro, nos direitos de conquista em guerra justa e não de uma
eleição e uma cessão dos poderes dos povos ao rei; e segundo, que o poder do rei não
possuía limitações no temporal, pois adviria de um pacto originário absoluto e
irrevovel, em que se definiria a forma de governo e os objetivos últimos e imediados
do Estado criado
151
. Nas duas argumentações,
estamos perante uma completa desvalorização da idéia de uma ordem
preestabelecida da criação e perante a fundamentão dos vínculos sociais na
vontade. No primeiro caso, na vontade livre e absoluta de um soberano, que em
virtude de Deus rege o Reino como coisa conquistada sua. No segundo caso, na
vontade de um rei posto à frente do Reino em virtude de um pacto originariamente
estabelecido entre os povos e cujas prerrogativas de governo foram estabelecidas
pela vontade dos pactuantes
152
.
Em qualquer uma das situações, prevalece a perspectiva voluntarista, capaz de alterar a
ordem social, até mesmo de recriá-la. O homem pode alterar sua organização social, no
tempo, através de sua vontade, e avançando um pouco, através de sua razão. A ordem
social deixa de ser divina e naturalmente estabelecida, a história deixa de ser uma teologia
aplicada. É preciso considerar, todavia, que essas duas perspectivas, apresentadas por
Hespanha como opostas e irreconciliáveis, foram conjugadas em alguns momentos e
argumentações. Na Dedução Cronológica e Analítica, como se viu, a argumentação
centrou-se na defesa dos direitos de conquista. A tendência dominante do pombalismo foi,
reiterando, a voluntarista, admitindo-se a sua articulação com conceitos corporativos.
Dessa forma, são deslegitimados os fundamentos utilizados para mudaa de
ocupantes do trono realizada nas Cortes de 1668. O próprio episódio da Restauração de
1640 é revisto. A argumentação desenvolvida na Dedução Cronológica retira a
caracterização dos governos dos felipes como tirânicos e a legitimidade dos povos de
deporem os reis nessa situação. Seu argumento, dentro da lógica desenvolvida, explica a
149
Citado em MAXWELL, Keneth. A devassa da devassa. op. cit., p. 22.
150
A utilização da “authoridade” do “Douto, e Pio Bispo Jacques Benigno de Bossuet na defeza do Clero
Gallicano” (SYLVA, José de Seabra da. op. cit., p. 367.) é mais um exemplo que corrobora a idéia
anteriormente expressa, pois, como se sabe, Bossuet foi defensor do providencialismo histórico, o que
seria “incompatível” com o pensamento pombalino que via tais teorias como supersticiosas ou fanáticas.
151
HESPANHA, A. M. O absolutismo de raiz contratualista. op. cit., s.p.
152
Ibidem, s.p.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
157
aclamação de D. João IV pela efetivação das fundamentais leis de sucessão do reino,
estabelecidas em Lamego, que teriam sido desrespeitadas, pois, segundo essas leis, a
sucessora da Coroa deveria ter sido D. Catarina. Esta não teria ocupado o trono devido à
ação dos jesuítas, entretanto, seu neto D. João, preservava o direito sucessório (pois as
leis fundamentais não são derrogadas e não perdem o valor) e fez prevalecer a
legalidade e justiça do trono. Trata-se de uma leitura também anteriormente apresentada
por D. Luiz Caetano de Lima, no âmbito da Academia Real de História, como se viu
acima
153
.
De fato, a refutação dos argumentos corporativos escolásticos utilizados nesses
dois momentos da história portuguesa ensejou o desenvolvimento das concepções
políticas do pombalismo e sua aplicação à história de Portugal. O sentido do título pode
ser elucidativo para se compreender esse método de desenvolvimento e compreensão do
político. O objetivo mais claro da Dedução Cronológica e Analítica, expresso no seu
título, é mostrar os “estragos” realizados pelos jesuítas em Portugal desde sua chegada
até a expulsão em 1759. Procurava-se legitimar a expulsão da Companhia de Jesus e de
todo o modelo cultural e potico a ela associado e, ao mesmo tempo, legitimar a prática
política do pombalismo. Mostrar algo cronologicamente significaria narrar sua história.
Segundo o dicionário de Raphael Bluteau, cronologia é a obra em que se tem
exactamente (...) a serie dos tempos, & dos acontecimentos de cada anno”
154
. O mesmo
dicionário de Bluteau define “analytico como o método que reduz as materias aos
seus principios, para examinallas, & conhecer miudamente o que se sabia sò por
mayor”
155
. Assim, esta obra mestra do pombalismo, mediante uma redução das questões
153
A Academia Real de História Portuguesa mereceu um comentário na Dedução Cronológica e
Analítica. Ela é apresentada como uma das manifestações das “luzes de D. João V, tentando tirar os
portugueses das “trevas” em que viviam e, por esse motivo, teve seus trabalhos atrapalhados pelos
jesuítas. Além disso, o autor da Dedução confessa sua dívida com as obras produzidas pelos membros da
Academia na feitura de seu trabalho: “Por Decreto de 8. de Dezembro de 1720. estabeleceo o mesmo
Monarca a Academia Real da Historia Portugueza, e creou para ella o grande numero de Academicos,
que he bem manifesto. Assim fez occupar utilmente muitas Pessoas de todas as classes do Reyno, que
antes vivião na ociosidade: Assim fez descubrir ao público muitos, e grandes talentos até áquelle tempo
ignorados: Assim fez entrar no Reyno muitos Livros de boa instrucção, que antes erão desconhecidos aos
seus Vassallos: Assim fez revolver os Archivos da Corte, e do Reyno, e as Memorias do seculo feliz, para
illuminar-nos com as nões das causas da decadencia dos nossos Estudos, e dos meios para cultivarmos
com mais utilidade: E assim fez em fim sahir á luz algumas composições instructivas, que não
contribuírão pouco para a obra, que estou escrevendo; e que havia muitos annos se não tinhão visto sahir
dos Prélos Portuguezes” (SYLVA, José de Seabra da. op. cit., pp. 495-496).
154
“Cronografia”. In: BLUTEAU, D. Raphael. Dicionário Portuguez e Latino. Coimbra: Collegio das
Artes da Companhia de Jesu, 1712, vol. 2, p. 618. (No dicionário de Bluteau, o verbete Cronologia”
remete a “Cronografia”, que, por sua vez, é complementado assim: “Cronografia, ou como de ordinario se
diz Cronologia”).
155
“Analytico”. In: Ibidem, vol. 1, p. 360.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
158
políticas portuguesas ao seu princípio, deduz histórica, ou cronologicamente, a
necessidade de expulsão dos jesuítas e de correção da governação lusa, que deveria se dar
pela adoção do modelo pombalino. Desenvolve-se, assim, uma legitimidade hisrica
dessa prática política.
A argumentação da “legitimidade histórica” de uma forma de governo é, seguindo
Koselleck, um “modo de comprovaçãoda utilidade, ou mesmo da necessidade, de um
modelo político, através de um discurso que pode ser qualificado como
especificamente histórico”. Nele, “o antes e o depois, o antigamente e o posteriormente
adquirem, do ponto de vista das formas de governo, uma força comprobatória imanente
ao próprio decorrer cronológico da ação, que iria penetrar nas formas de relacionamento
político”
156
.
Existe, segundo Falcon, um bimio argumentativo no discurso pombalino. O
primeiro ponto é o da separação das esferas civil e eclesiástica, sendo que o temporal,
que nessa separação adquire uma superioridade sobre o religioso, deveria pautar-se pela
razão, pelas Luzes, ao exemplo das “nações polidas e “civilizadas”. O segundo é a
recuperação de “uma tradição preexistente que teria sido vilipendiada pelos jesuítas”
157
.
A prática potica pombalina, combinou esses dois pontos em sua estratégia para
desenvolver uma legitimidade história.
Segundo a Dedução Cronológica e Analítica, antes de 1540, ano de
estabelecimento dos jesuítas no Reino de Portugal, floresciam e se desenvolviam
plenamente nessas terras todas as artes, letras, estudos de Direito Canônico, Civil,
Público e Eclesiástico, a Teologia, a Moral Cristã e a Dialética. Prova disto seriam as
obras dos Ozorios, dos Andrades, dos uveias, dos Barros, dos Camões, dos Sás, dos
Albuquerques, dos Menezes, dos Rezendes, dos Teives...
158
. Naquele tempo anterior à
ação dos membros da Companhia de Jesus, além disso, estariam bem densenvolvidos o
comércio, as ciências, as navegações e os descobrimentos portugueses. Verificar-se-ia,
ademais, uma boa divisão dos poderes secular e religioso:
Finalmente a observancia, em que até á mesma infaustissima Epoca estiverão a
reverencia á Suprema Cabeça da Igreja: o Supremo poder temporal: a dignidade
Regia: os Direitos públicos da Coroa: as suas prerrogativas: os privilégios dos
seus Vassalos; e as claras luzes, com que até então brilháo entre s os Direitos
do Sacerdocio, e do Imperio; e os justos limites, que Deos Senhor nosso
156
KOSELLECK, Reinhart. História, Histórias e Estruturas temporais formais. In: Futuro Passado:
contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 124.
157
FALCON, Francisco José Calazans. As práticas do Reformismo Ilustrado pombalino no campo
jurídico. op. cit., p. 516.
158
SYLVA, José de Seabra da. op.cit., p. 2.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
159
prescreveo aos dous poderes Espiritual, e Temporal, para entre elles se
conservarem aquella consoante harmonia, e aquella reciproca correspondencia,
sem as quais a Religião, e a tranquilidade pública não podem subsistir (...)
159
.
Percebe-se, no texto, como o bom desenvolvimento dos estudos e das letras em
Portugal associava-se a uma saudável relação potica entre, de um lado, os membros do
governo temporal e, de outro, os do clero; o respeito aos limites entre tais poderes,
acrescente-se, teria sido estabelecido por Deus. Assim, tal harmonia no passado
constituía mais uma justificativa para a perseguição aos jesuítas no presente e para o
estabelecimento da imaginada ordem “harmônica” no presente e no futuro (mais do que
propriamente uma verdade histórica). A “Época dos Descobrimentos”, no pombalismo,
é tratada como uma espécie de Idade de Ouro” da história portuguesa
160
. Em
consonância com essa perspectiva, várias reformas poticas e jurídicas foram
apresentadas como retorno à tradição portuguesa, não como a crião de algo novo.
Assim, as ações pombalinas soavam menos radicais, traduzindo-se uma tentativa de
inserir suas reformas no próprio passado português.
O período compreendido entre a chegada da Companhia de Jesus e o reinado de D.
José é descrito como as trevas da história portuguesa, de corrupção de todos os
saudáveis princípios poticos, bem como de ruína da cultura e da economia
portuguesas. Através de suas ações na censura portuguesa, os jesuítas teriam impedido
que os progressos dos conhecimentos desenvolvidos nas outras partes da Europa
chegassem a terras lusitanas, pois eram classificados como escritos hereges, além disso,
destruíram as boas bibliotecas que existiam em Portugal até o século XVI e eliminaram
os homens doutos do Reino:
Armando-se por huma parte com as certezas de que então não havia neste
Reyno nem Doutores, nem de Livros de sans, e verdadeiras Doutrinas, porque
159
Ibidem, p. 3.
160
O recurso discursivo da idealização de um passado superior, como o da Idade do Ouro, foi utilizado
desde a Antigüidade: Entre os gregos, Hesíodo, possivelmente na esperança de inspirar os homens a
empreender a reforma social, usou o mito de uma idade áurea no passado remoto, quando os homens
viviam em harmonia com a natureza e entre si, como uma antítese de sua própria época, a idade de ferro,
quando apenas a força prevalecia. Porém – como se dá no caso de Hesíodo – o arcaísmo não raro traz em
si mesmo o reconhecimento de que os homens da antiga era idealizada eram inerentemente superiores aos
homens do presente, de que eram feitos de um estofo mais refinado. E, desse modo, a evocação de uma
idade do ouro no passado pode servir freqüentemente tanto para reconciliar os homens com as privações
do presente quando para inspirar revolta a bem de um futuro melhor” (WHITE, Hayden. As formas do
estado selvagem. In: Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a Crítica da Cultura. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1994, p. 192). A Reforma Religiosa, por exemplo, utilizou-se da idealização
de um cristianismo primitivo, puro, para inspirar uma revolta que possuiria o sentido de um retorno às
origens. Para o caso do discurso pombalino, esse passado ideal legitimava as mudanças no quadro
religioso, cultural e político vigente, apresentando-as como um retorno ao período mais próspero da
história de Portugal, aquele das conquistas e da expansão marítima.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
160
tudo isto se achava por Elles destruído com as mortes dos dous mil Ecclesiasticos,
que havião feito submergir no Mar adjacente á Barra de Lisboa, e com o destroço,
que havião feito nas Livrarias pela clandestina introducção dos Índices
Expurgatórios, que havião formado; de que em taes termos ninguém podia ler
senão o que Elles querião, que se lesse, desde os primeiros rudimentos da
Grammatica a os maiores gráos das Artes, e Sciencias, como deixo assima
ponderado: Armando-se por outra parte com o Estratagema das vozes, que
espalhavão nos Póvos para persuadirem a que erão hereticos todos os uteis, e
excellentes Livros escritos nas linguas vivas das Nações mais cultas, e mais
illuminadas da Europa, com que ella tem feito nestes ultimos tempos hum tão
grande progresso as Artes, e Sciencias; para ficarmos sem o uso delles na mais
densa, e crassa ignorancia (...)
161
.
Recorria-se, assim, à idéia de um descompasso entre o desenvolvimento histórico
de Portugal e das demais “nações iluminadas” da Europa. As Luzes e o progresso
verificado alhures ainda não haviam chegado ao Reino português. A assimilação da
idéia ilustrada do progresso pelo pombalismo é aplicada à história portuguesa com a
construção da imagem de um passado atrasado, anterior ao reinado de D. JoI, e o
esclarecimento cultural e potico verificado a partir desse governo, que teria recolocado
Portugal no mesmo ritmo histórico das nações “mais cultas” da Europa
162
.
A “Divisão XV” da Dedução Cronológica e Analítica narra a história do período
josefino até a expulsão dos jesuítas e constitui uma ntese da visão do pombalismo
sobre sua própria história. São ressaltadas e louvadas ações como a execução do Tratado
de Limites, citando-se a Relação Abreviada como fonte segura para o conhecimento de
tais fatos; a reconstrução de Lisboa após o terremoto, em que também se recorre ao
texto das Memórias das principaes providencias, que se deraõ no terremoto; a criação
de companhias de comércio e o fim do contrabando de ouro nas Minas; e o julgamento
dos Távora no atentado sofrido pelo rei. É feita, enfim, uma exaltação das ações do
governo nos moldes daquela encontrada na dedicatória que o Padre Custódio de
Oliveira faz a Pombal em sua tradução de Luciano.
Essas medidas arroladas no livro e correspondentes ao reinado josefino
demonstrariam que se viveria, então, em Portugal, um período de Luzes, que adviriam
da capacidade e dos conhecimentos do próprio rei. Logo no início da “Divisão XV” é
dito que:
161
SYLVA, José de Seabra da. op. cit. pp. 388-389.
162
De fato, o reinado anterior ao de D. José, o de D. João V, é narrado como uma tentativa de se
“iluminar” a nação. Provas dessa tentativa foram a criação da Academia Real de História, o
estabelecimento das aulas menores de artes sob orientação da Douta, Religiosa, e benemerita
Congregação de S. Filippe Neri”, e a própria publicação do Verdadeiro Método de Estudar, que expôs a
precariedade do ensino, das letras e da cultura lusitanas naquele período. Entretanto, o grande poder que
os jesuítas ainda mantinham em Portugal limitou as possibilidades de ação esclarecedora do Magnânimo.
Ver a “Divisão XIV” da Dedução Cronológica e Anatica.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
161
Havia ElRey Nosso Senhor unido ás suas incomparáveis luzes naturaes, e
adquiridas pelos seus ferteis, e felices Estudos, as muitas noções, que lhe
acrescentarão as successivas experiencias, e as bias, e perspicazes observações,
com que nos oito annos da fatal enfermidade, que teve seu Augustissimo Pay o
impedido (...)
163
.
A governação, com suas medidas sábias e ilustradas, retirara de Portugal os
jesuítas e, com eles, a superstição, o fanatismo e a ignorância, sendo obra das Luzes que
emanavam da cabeça do rei, do poder secular. Aqui, a cisão histórica fundamental da
Ilustração, a separação entre luz e trevas, em que a superação do passado de ignorância
é acompanhada por um processo de esclarecimento, do progresso da razão, é obra do
poder político e legitima as ações e a centralização política regalista.
Assim, a Dedução Cronológica e Analítica desenvolve a legitimidade histórica da
governação pombalina compatibilizando duas visões de história aparentemente
concorrentes: o rculo, do retorno à tradição pré-jesuítica e à Época dos
Descobrimentos; e a linha, do progresso, do esclarecimento que busca colocar Portugal
no mesmo patamar das outras “nações polidas” da Europa. rculo e linha se conjugam
na medida em que o progresso do presente visa, no futuro, a recuperar a posição de
destaque exercida por Portugal em seu passado.
O discurso histórico é utilizado como tática na luta potica por diferentes grupos
ideológicos de formas variadas. Viu-se acima como o pombalismo forjou
discursivamente uma época áurea na história portuguesa, a Época dos Descobrimentos,
e associou a ela elementos poticos que faziam parte da sua luta potica do século
XVIII. Foucault mostra como essas mobilizações discursivas de retorno à perfeição
perdida foram utilizadas em diversas lutas poticas. No século XVIII, por exemplo, às
vésperas da Revolução Francesa, o terceiro estado “se encontrou” na história
valorizando a liberdade que os gauleses possuíam nas cidades da Gália romana. Se a
romanidade tinha, até então, favorecido o discurso absolutista, a iia de municipalidade
e a liberdade mantida nas cidades davam um ar “nobre” ao terceiro estado e
legitimavam sua luta por liberdade frente ao poder real
164
. Mesmo a burguesia, que se
mostrava o mais anti-historicista dos grupos políticos envolvidos, preferindo o discurso
rousseauniano do contrato social como uma forma de se escapar das construções
históricas das outras forças em luta, conseguiu inserir seu discurso na formatação do
163
Ibidem, p. 503.
164
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo:
Martins Fontes, 1999, pp. 246-248.
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
162
ciclo histórico, através de uma “reativação” histórica
165
. Houve dois processos nesse
sentido, primeiro, uma reativação de Roma, melhor, reativão da cidade romana, ou
seja, tanto da Roma arcaica, republicana e virtuosa, quando da cidade galo-romana, com
suas liberdades e sua prosperidade”; e também a reativação da “figura de Carlos Magno
(...) que é tomado como ponto de junção entre as liberdades francas e as liberdades galo-
romanas: Carlos Magno, homem que convocava o povo para o Campo de Marte; Carlos
Magno, soberano-guerreiro, mas ao mesmo tempo protetor do comércio e das cidades;
Carlos Magno, rei germânico e imperador romano”
166
.
Tais operações são possíveis porque reversibilidade tática do discurso. Para ser
utilizado, depende diretamente da homogeneidade das regras de sua própria formação.
Assim a idéia de círculo e retorno pode ser utilizada taticamente por grupos
concorrentes – como a realeza e os revolucionários franceses –, ou mesmo de diferentes
formas, dependendo das questões históricas específicas da luta que se travava. O retorno
à boa ordem, para D. Luís de Meneses, no contexto restauracionista, era a
independência frente à Castela; para o pombalismo, era a independência dos poderes
secular e religioso, que teria existido no período pré-jesuítico da história portuguesa.
A própria iia de uma Viradeira que teria ocorrido com o fim do governo
pombalino é tributária da noção cíclica da história. Críticos do governo mariano, como
Francisco de Melo Franco, no poema O Reino da Estupidez, narraram o reinado de D.
José como um período de esclarecimento da potica, da cultura e dos costumes, em
contraposição ao que existiria anteriormente, e o reinado mariano como um retorno
àquelas práticas negativas que caracterizariam o período pré-pombalino, ou seja, o
reinado de D. Maria cumpriria a curva descendente no ciclo histórico português
167
.
Quanto ao aspecto progressista do discurso do pombalismo, deve-se ressaltar que
a problemática das Luzes, conforme explica Foucault, de uma luta do dia contra a noite,
do saber contra a ignorância, enfim, do esclarecimento, é principalmente uma luta entre
saberes concorrentes. No século XVIII, principalmente nos países do chamado
165
Ibidem, pp. 252-253.
166
Ibidem, p. 253. Vale ressaltar que, durante a Revolução e no período posterior, o discurso dos
revolucionários, como o Sieyès, sofreu uma “inversão do eixo temporal da reivindicação. Daí em diante,
não é em nome de um direito passado, estabelecido quer por um consenso, quer por uma vitória, quer por
uma invasão, que vai se articular a reivindicação. A reivindicação vai poder se articular a partir de uma
virtualidade, de um futuro que é iminente, que já está presente no presente (...)”. Ibidem, p. 266.
167
Ver [FRANCO, Francisco de Mello]. Reino da estupidez, poema. Hambourg: 1820. O Reino da
Estupidez foi publicado em 1818, mas circulou como manuscrito, em Coimbra, em 1785. Seu autor foi
um médico ilustrado luso-brasileiro, que escreveu alguns tratados na área médica, tendo sido figura de
destaque nessa área (Cf. VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura.
op. cit. pp. 165-168).
Capítulo 4 – História pombalina: Luzes, colonização e regalismo
163
despotismo esclarecido”, o Estado assumiu um papel de frente nessa luta. Ele agiu no
sentido de normatizar os saberes, desqualificando aqueles que não se adequavam ao
modelo tido como mais “racional” e mais útil para o progresso
168
. Lembre-se, no caso
do Reformismo Ilustrado pombalino, dos termos com que, nos editais censórios, eram
referidos os cálculos astrológicos e as crenças proféticas: “supersticiosos”, “ignorantes”;
“inúteis” etc
169
.
O Estado se acreditava o motor capaz de conduzir a nação ao progresso e, para
isso, entendia dever controlar os saberes e sua aplicação humana. O progresso era tido
como a conseqüência de uma potica que se preocupava com o controle de técnicas e
sua aplicação de uma forma utilitária. É a mesma idéia do utilitarismo professada por
Ribeiro Sanches. Um utilitarismo que, embora se utilize da imagem do progresso, da
expansão dos bens e aprimoramento do homem, do progresso linear, se prende à
produção, à técnica, e não consegue romper com o rculo da “produção para a
produção”.
Em suma, o pombalismo utilizou-se da história para legitimar sua prática potica,
tanto no que tange às concepções de poder quanto ao problema da colonização. Nessa
fundamentação, foram empregados conceitos históricos e poticos ilustrados, além de
se aproveitarem algumas elaborações e discussões históricas, realizadas na Academia
Real de História Portuguesa. As questões poticas mobilizaram uma releitura de
episódios da história lusa e da própria significação de períodos e reinados. Com os seus
propósitos, o pombalismo atribuiu sentidos como “época áurea”, “atraso”, “progresso” e
retorno” ao narrar a história de Portugal. Essa periodização, com conceitos ilustrados e
outros mais tradicionais, foi também expressa na legitimação de outras medidas, como
as reformas educacionais, que ensejaram a confecção do Compêndio Histórico do
Estado da Universidade de Coimbra. Para concluir, a história no período pombalino
também foi pensada como uma forma de se manter a memória das ações reformadoras e
progressistas do Marquês, de acordo com a maneira como sua potica via o passado e o
presente portugueses.
168
Ibidem, pp. 213-216.
169
Segundo Falcon, no absolutismo regalista de Pombal, as leis que procuravam combater o poder da
aristocracia eclesiástica, representados pela Companhia de Jesus, apresentam “um verdadeiro diálogo,
quase sempre conflituoso, entre o novo discurso e o antigo, no qual se faz a crítica das concepções e das
práticas fixadas pela tradição inquisitorial e que são agora contestadas ou desqualificadas”. FALCON,
Francisco José Calazans. As práticas do Reformismo Ilustrado pombalino no campo jurídico. op. cit., p.
515.
Conclusões
O ideário potico do pombalismo, formulado em torno de suas práticas poticas,
criou também suas visões de história que se ligavam estreitamente com as idéias e
objetivos políticos do governo português.
Características fundamentais do pombalismo, como a refutação do pensamento
político do corporativismo escolástico e das crenças messiânico-milenaristas e a
apropriação seletiva de idéias do pensamento ilustrado, foram presentes também nas
interpretações da história desenvolvidas pelos textos do pombalismo que se propuseram
a fundamentar um modelo de prática potica com base em narrativas e interpretações
históricas.
Concepções gerais de história e interpretações da história portuguesa em que se
manifestaram visões e conceitos corporativos escolásticos e/ou messiânico-milenaristas,
como nas obras História de Portugal Restaurado, Restauração de Portugal Prodigiosa,
História do Futuro e História da América Portuguesa, tiveram seus argumentos
contestados pelo pombalismo, através de textos dos editais censórios e das suas obras
historiográficas.
De fato, desde a primeira metade do culo XVIII, a crítica ilustrada se
manifestava em Portugal, atingindo os campos cultural, econômico e potico. Nas
críticas formuladas por pensadores ilustrados, como Verney e Ribeiro Sanches, era
possível se perceber concepções de história diferenciadas daquelas até então
predominantes no âmbito cultural luso. Diretamente relacionadas com suas perspectivas
políticas e sociais ilustradas, as visões de história apresentadas por esses autores
apontavam para a superação de um estado de atraso e obscuridade em que, segundo suas
análises, Portugal se encontraria naquele momento. A influência religiosa,
especialmente jesuítica, na potica e cultura portuguesas, era condenada como a
principal causa do distanciamento que haveria entre Portugal e as “nações polidas” da
Europa. Na proposição de soluções para esse atraso lusitano, é possível perceber
também a releitura de momentos da história de Portugal, como a fundação do Reino
com o milagre de Ourique, e uma re-significação do poder da Coroa lusa no tempo.
No reinado josefino, em que seu ministro Sebastião Jode Carvalho e Melo foi
figura de proa, intensificaram-se medidas que seguiam uma orientação reformista e
Conclusões
165
ilustrada, à maneira das discussões e propostas que tiveram lugar na primeira metade do
século XVIII. Carvalho e Melo foi um dos vários ilustrados portugueses que pensaram a
condição lusa nos setecentos e propuseram reformas. Juntamente com ele, outros
homens ilustrados ascenderam ao poder ou foram arregimentados para trabalharem em
seu governo reformista.
Não é possível se afirmar uma unidade ideológica e governativa para todos os
vinte e sete anos do período pombalino. Suas medidas práticas, reformas administrativas
e legislativas, produção e divulgação de textos, foram motivadas, em vários momentos,
por questões localizadas. Entretanto, houve um certo padrão nessas respostas: a defesa e
o fortalecimento do poder central frente às outras instâncias de poder, entendendo-se o
temporal como independente de qualquer outro poder e soberano em sua esfera; a
orientação dos saberes e potencialidades portugueses para um aproveitamento utilitário,
que se concebia como necessário para o progresso do Reino, colocando-o em compasso
com as “nações iluminadas” da Europa; a adoção de um discurso ilustrado de superação
do estado de atraso, utilizando-se conceitos das Luzes para se refutar as linhas mestras
do que era diagnosticado como sintomas das “trevas” portuguesas, o escolasticismo e as
crenças proféticas, bem como a associação desses pensamentos à influência religiosa
jesuítica sobre o Reino; a utilização de conceitos e iias oriundos do corporativismo
escolástico, paralelamente aos ilustrados e do direito natural moderno, na
fundamentação do absolutismo e do regalismo, como estratégia na luta potica que se
travava.
O ideário do pombalismo foi expresso em diversas formas textuais. Desde os
longos textos de leis e editais a formas literárias como poesia e teatro. Dentro desse
espectro, houve também formulações historiográficas que, como os demais textos,
tiveram um caráter legitimador e propagandístico da governação pombalina. Dentre os
textos de cunho historiográfico, destacaram-se a Relação Abreviada e a Dedução
Cronológica e Analítica. Nesses textos, é possível perceber a presença de elementos das
discussões e interpretações históricas, que tiveram lugar na Academia Real de História
Portuguesa, a utilização da história para legitimar as ações pombalinas, e uma coerência
entre suas visões de história e as concepções poticas do pombalismo.
Com o intuito de narrar as dificuldades e violências que portugueses e espanhóis
enfrentaram na implementação do Tratado de Limites na região sul da América, a
Relação Abreviada apresenta uma visão pombalina a respeito da ação dos jesuítas na
América portuguesa e do sentido da colonização. À maneira ilustrada, a colonização é
Conclusões
166
justificada por colocar em contato europeus e indígenas; tal diálogo levaria à civilização
dos gentios, que adquiririam as luzes e os costumes necessários para uma vida melhor e
civilizada, para o que as missões jesuíticas não estariam contribuindo, muito pelo
contrário. Assim, a missão histórica outrora assumida pelos países ibéricos em sua
empreitada colonizadora, a de levarem a cristã para os povos que ainda não a tinham
conhecido, ganha um novo contorno, o de ilustrarem esses povos, tirando-os do estado
de selvageria em que viviam. Entretanto, esse novo sentido dado à colonização não
significou a supressão do sentido religioso. A cristianização passou a ser vista como um
dos elementos que conduziriam à civilização que, no caso do pombalismo, deveria vir
juntamente com o aprendizado pelos indígenas: de normas poticas, como a existência
de leis civis, às quais deveriam seguir; de um soberano, que deveriam obedecer; e de
entenderem que faziam parte de um império, que deveriam proteger e desenvolver.
A Dedução Cronológica e Analítica, ao narrar a hisria do Reino português desde
a chegada da Companhia de Jesus às terras lusitanas, no tempo de D. João III, até a
expulsão dos inacianos, no reinado de D. José, procurou justificar essa expulsão e, ao
mesmo tempo, legitimar a governação pombalina, desqualificando o período
compreendido entre esses reinados devido às corrupções políticas e culturais que os
jesuítas teriam imposto sobre os portugueses. Dessa forma, foram também refutadas as
interpretações históricas oriundas do corporativismo escostico e das crenças
messiânico-milenaristas.
Assim como foi exposto em outros textos do pombalismo, como o Compêndio
histórico do estado da Universidade de Coimbra e textos de leis, como o da “Lei da
Boa Razão”, a Dedução Cronológica e Analítica apresenta o passado português anterior
à chegado dos jesuítas como uma época de pleno desenvolvimento cultural, econômico
e potico. Haveria o cumprimento de bons princípios poticos, que se caracterizariam,
principalmente, pela saudável harmonia e divisão entre os poderes temporal e religioso,
sendo que, no temporal, a Coroa não teria nenhuma limitação. Dessa política saudável,
cujos princípios teriam sido os mesmos estabelecidos por Deus, teria resultado o apogeu
português, a “Época dos Descobrimentos”, em que o reino luso tivera um grande
poderio econômico, técnico e um grandioso desenvolvimento de sua cultura e de suas
letras. Criou-se, assim, a imagem de uma “Idade de Ouro” da história portuguesa.
O pombalismo se apresentava como um retorno, ou uma tentativa de retorno e
recuperação, desse período áureo da história lusa. Os traços que caracterizariam o
período anterior à chegada dos inacianos em Portugal foram forjados pelos olhos da
Conclusões
167
segunda metade do século XVIII, encontrando no passado os aspectos que, nos
setecentos, se acreditavam saudáveis e sob inspiração de um ideal ilustrado. A
tradicional visão da história com ciclos de apogeu e decnio teria a retomada da curva
ascendente com a prática potica do governo pombalino.
Ao mesmo tempo, a concepção linear do progresso, de um esclarecimento dos
costumes, da cultura, e das práticas governativas lusitanas era também assumida pelo
pombalismo. Com o consulado de Sebastião José, Portugal deixaria a estagnação, o
marasmo, as trevas e o atraso em relação às demais nações européias, para entrar em
novo ritmo histórico, o do progresso. Duas características históricas e poticas da
Ilustração estiveram presentes aqui: a primeira, a conciliação entre rculo e linha, ou
seja, a proposição de práticas racionais, utilitárias e racionais no presente com vistas a
uma condição superior no futuro, o progresso, ao mesmo tempo em que a imagem desse
futuro superior é criada a partir de construções idealizadas de um passado áureo. A
segunda: a concepção de que, para que um país entre no ritmo histórico do progresso, é
necessário que um Estado forte tome as rédeas da condução política e histórica, o
condenado despotismo tomava novos contornos quando era acompanhado do adjetivo
esclarecido”. O primeiro aspecto pode ser visto como uma estratégia discursiva na luta
pela legitimação da prática potica que visaria ao processo de esclarecimento.
A defesa e divulgação dos ideais poticos e históricos do pombalismo não
significaram a supressão das demais concepções e matrizes de pensamento existentes
em Portugal desde os primórdios da Idade Moderna. O texto de Domingos Moniz
Barreto, comentado no Capítulo 4, por exemplo, em sua fundamentação histórica da
ilegitimidade da sedição mineira, utilizava-se, ainda em 1793, de conceitos do
corporativismo escolástico, e os próprios inconfidentes mineiros teriam fundamentado
seu movimento em uma leitura escolástica da Restauração de 1640, dentre outras
influências. Da mesma forma, em 1809, Theodoro Jo Biancardi comentava em seu
romance, Cartas Americanas, que havia em Portugal um grande grupo de pessoas que
esperavam que a liberdade portuguesa frente à invasão francesa viria com o retorno de
D. Sebastião, crença que o autor também chamava de “fanatismo
1
.
Essas permanências, entretanto, não invalidam a grande importância do
pombalismo para se entender a compreensão histórica em Portugal. O governo
1
A este respeito ver: MARTINS, João Paulo. Cartas Americanas: romance e idéias políticas na Ilustração
portuguesa. In: ABREU, Márcia (org.). Trajetórias do romance: circulação, leitura e escrita nos séculos
XVIII e XIX. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Fapesp, 2008.
Conclusões
168
pombalino, ao tentar impor uma visão política e histórica, propôs questionamentos e
discussões acerca da potica e cultura lusas, que repercutiram nos reinados posteriores e
na historiografia portuguesa dos séculos seguintes, que não pode ser bem compreendida
caso se ignore a crise pela qual passou no período em que foi central a figura de
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