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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Bernadete Silveira Moraes
Santo corpo profanado: escutas e performances na cultura
afro-brasileira
DOUTORADO EM ANTROPOLOGIA
SÃO PAULO
2009
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1
BERNADETE SILVEIRA MORAES
Santo corpo profanado: escutas e performances na cultura
afro-brasileira
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutora em
Antropologia, sob a orientação da Profa. Dra. Silvia
Helena Simões Borelli.
SÃO PAULO
2009
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BANCA EXAMINADORA
___________________________________
___________________________________
___________________________________
___________________________________
___________________________________
3
DEDICATÓRIA
À minha mãe, Julia Pereira,
pela persistência e alegria
Ao meu pai,
Luiz da Silveira Moraes (in memorian)
4
AGRADECIMENTOS
À Capes,
pela bolsa de estudo que viabilizou o desenvolvimento desta tese.
À minha orientadora, Profa. Dra. Silvia Helena Simões Borelli,
pela competência e incentivo.
À Profa. Dra. Maria Antonieta Antonacci,
pelas novas escutas (Curso sobre a cultura africana – Prof. Dr Kasadi Wa Mukuna)
Aos familiares,
pelo apoio incondicional.
Aos meus filhos,
Marcela,
uma dança de intensidades.
Fabio,
uma escuta contínua.
Aos amigos,
pelos encontros que sempre resultam em novos caminhos.
Aos meus alunos,
novas perspectivas.
Aos narradores,
meu agradecimento especial.
5
RESUMO
Este trabalho se propõe analisar o corpo nos processos de sacralização e profanação. A
profanação, um processo lento, mas constante nos discursos filosóficos e científicos modernos
promoveu estrategicamente uma fragmentação do olhar em relação ao corpo. Na prática, uma
des-ritualização. A sacralização, a arte contínua de reintegração do corpo, no interior das
culturas populares promove uma incessante reinvenção do corpo. Utiliza-se das fontes de
tradição em tempo presente. Com uma perspectiva metodológica cartográfica, desenvolvemos
a pesquisa inicialmente nas observações e trajetos das performances que nos convocavam a
um pertencimento, próprio de culturas que agregam o corpo em suas manifestações culturais.
Localizamos em Carlinhos Brown e seu grupo musical o território propício dos
deslocamentos tanto da cultura local associado às tradições, quanto da sua dimensão global.
Palavras-chaves: corpo, sagrado, profano, performance, cultura.
6
ABSTRACT
This study proposes to analyze the body in the processes of sanctification and profanation.
Profanation, while constant in modern philosophical and scientific discourses, is a slow
process which has strategically promoted a fragmentation in looking at the body. In practice, a
de-ritualization. Sanctification, the continuous art of reintegrating the body at the centre of
popular cultures, promotes an incessant reinvention of the body. Thus using tradition as a
source in the modern day.
Using a Cartographic methodological perspective, we have developed our research initially
based on the observations and trajectories of the performances that seem to belong precisely
to cultures which incorporate the body in their cultural manifestations.
We have found in Carlinhos Brown and his musical group, a favorable example of these
changes in both the local culture associated with tradition, and also in its global dimension.
Key-words: Body, sacred, profane, performance, culture
7
Carlinhos Brown - Candonbléss
8
SUMÁRIO
Introdução.........................................................................................................................
9
Capítulo 1 – Corpo e performances................................................................................ 37
1.1 A ilha do espetáculo......................................................................................... 37
1.2 A festa do Guetho............................................................................................ 44
1.3 O Candeal Pequeno de Brotas.......................................................................... 51
1.4 A figura de Carlinhos Brown .......................................................................... 54
1.5 A comunidade do Candeal............................................................................... 62
Capítulo 2 – Ritualização do corpo................................................................................ 66
2.1 O sagrado: formas de ritualizar o corpo........................................................... 67
2.2 A purificação do corpo..................................................................................... 71
2.3 A festa dos deuses............................................................................................ 75
2.4 Os mitos........................................................................................................... 84
2.5 A dança dos deuses contadas pelos seus filhos................................................ 88
2.6 A dança dos espíritos....................................................................................... 97
2.6.1. A dança dos deuses na etnia Nyungüe (Nyungüe Língua e Etnia). 97
2.7 Rumo a comunidade.........................................................................................
102
2.8 A des-ritualização do corpo............................................................................. 106
Capitulo 3 - Olhares sobre o corpo: des-ritualização................................................... 108
3.1 Cartografias: metodologias para uma reflexão sobre o corpo..........................
108
3.1.1. Indagações a respeito do corpo........................................................ 117
3.2 Antropologia e sociologia do corpo................................................................. 122
3.3 Corpo esquecido/duplo discurso...................................................................... 130
3.4 Corpo disciplinado e mercantilizado................................................................
138
3.5 Performances e o povo da voz........................................................................ 142
3.6 Os sentidos do corpo – avançar tateando.........................................................
146
Considerações Finais........................................................................................................
155
Referências Bibliográficas...............................................................................................
161
Anexos............................................................................................................................... 168
9
INTRODUÇÃO
Os objetivos traçados neste trabalho voltam-se para uma investigação do corpo nas
performances de tradições populares e religiosas. A performance, termo discutido por
Zumthor (2000) e utilizado em nossa pesquisa, refere-se a uma forma poética de
comunicação”, na qual uma intensa participação da voz que emana da presença de um
corpo e também de inúmeros aspectos ligados a uma produção complexa dos sentidos. É uma
prática que se volta para a expansão da vida. Muitas são as sociedades que utilizam a voz
como um poder central, pois esta agrega e distribui valores que reverberam e alimentam a
criação e a reinvenção de outras formas de expressão da cultura. A voz vibra no corpo e, ao
ecoar, faz contato com quem a escuta; recebida pelo tímpano, generaliza-se no corpo.
O presente trabalho constituiu-se a partir das vozes que ecoavam dos cantadores nas
ruas e bairros de Salvador; dos cantos da cultura mestiça; das performances dos grupos de
dançarinos populares e religiosos; dos “corpos de passagem”, nos quais o presente é
substituído por presença: “um corpo tornado passagem é, ele mesmo, tempo e espaço
dilatados” (Sant’Anna, 2001: 105). Estes “corpos de passagem” seguiam não os cantos,
mas os ritmos, considerados em si uma cultura residual (Williams, 1977) das tradições
ancestrais e como os ritmos das novas tendências culturais do mundo contemporâneo.
O corpo, objeto de nosso estudo, liga os sentidos no espaço e no tempo. Na dança, o
corpo tem a possibilidade de viver intensamente, de ritualizar e comunicar-se com o outro.
Dançar é uma forma viva de ser. Nas suas variações, o corpo humano.
[...] imita, armazena e lembra. Quem pode computar o enorme tesouro
de posturas que ele traz consigo? Nossa primeira base cognitiva reside
nas recordações encarnadas, em dados que se transformam em
programas. Quanto mais se dilata esse capital, esse reservatório
inconsciente pois o inconsciente é o corpo –, menos ele pesa e mais
se torna leve e aéreo em virtude das adaptações conquistadas. O que
existe de mais precioso do que os mapas desses lugares visitados que
permanecem no fundo da memória corporal? (Serres, 2004: 75 - 76)
Formatado pelo meio social e cultural em que estão inseridos os atores de determinada
época ou sociedade, o corpo humano apropria-se do mundo dando-lhe um significado,
representa e simboliza os acontecimentos da vida, transforma o seu meio, familiariza-se,
10
comunica e compartilha com os outros corpos a experiência sensível de existir. O corpo é
possível na sua existência.
Após rastrear as diversas performances, ancoramos nossa investigação na cultura do
Candyall Guetho Square, palco de apresentação de artistas nacionais e internacionais, um
espaço que mistura a simbologia dos cultos do candomblé com a cultura popular urbana. O
Gueto, como é conhecido popularmente, acolhe as produções artísticas e sociais de sua
comunidade, localiza-se no bairro do Candeal Pequeno de Brotas, nos arredores de Salvador
(BA). Destas produções elegemos Carlinhos Brown, líder do grupo Timbalada e líder
comunitário que faz a fusão da cultura musical afro-baiana com os diversos ritmos latinos e
apresenta uma performance que revela as matrizes dos cultos religiosos da população jeje-
nagô.
As pesquisas realizadas no Candyall Guetho Square, nas ruas de Salvador e nos
terreiros religiosos nos mostraram que as experiências da corporeidade são semelhantes,
provocam a sensação de pertencimento, existe a possibilidade que o corpo seja passagem de
forças, de fluxos de vida. A forma como nos relacionamos corporalmente com o mundo nos
possibilita ritualizar ou então simular.
Trabalhamos nesta tese sob a perspectiva dos estudos das culturas da oralidade,
observamos o corpo a partir de sua potência simbiótica (Hampatê Bã) de sacralizar-se. No
vaivém das forças provocadas pela fala (canto) gestam-se fluxos que se ligam ao acaso,
materializando-se em movimentos (dança) que ficam explícitos nas formas de apropriação
simbólica da realidade. Com os depoimentos a respeito da sacralização do corpo apresentados
pelos guardiões dos segredos (pais de santo), acompanhamos os ritos encantatórios no
processo de integração do corpo.
Como ressalta Le Breton, um dos teóricos importantes para o nosso estudo e cuja obra
A sociologia do corpo norteou parte da discussão teórica de nossas investigações, o corpo é
nosso eixo de relação com o mundo, pois “o corpo não existe em estado natural, sempre está
compreendido na trama social dos sentidos [...]” (2006: 32).
O pesquisador traça um caminho histórico das investigações da corporeidade humana
a partir dos primeiros passos das ciências sociais ocorridos no século XIX, momento em que
temos também as primeiras preocupações com relação à corporeidade. Le Breton (2006)
recorre a três momentos para falar do corpo na sociologia. O primeiro ele denomina de
“sociologia implícita” e é quando as condições de atores em diferentes situações são
percebidas, mas não são questionadas em profundidade. As discussões sobre o homem em
11
situações de exploração não remetem os teóricos da sociologia da época a uma análise mais
detalhada a respeito do corpo.
Um segundo momento é a “sociologia em pontilhado”, que, para o autor, proporciona
elementos sólidos de análise, mas estes não são sistematizados. É nesse momento que
entramos com a discussão de Marcel Mauss (2003), o teórico que deu voz a um corpo que se
supunha mudo. Neste trabalho, demonstramos que o teórico deslocou a visão dominante do
corpo “natural”, que, naquele momento, era medido, discriminado, segregado, classificado
pelas instituições dominantes a partir de suas aparências. Acrescentamos que, apesar da
permanência, até os dias de hoje, de uma leitura médica a respeito do corpo, Marcel Mauss
(2003) ressaltou, em sua época, o homem como produto do seu meio cultural e social.
Destacamos também, nesta apresentação, que Marcel Mauss valoriza a investigação sobre as
culturas e defende a idéia de que os escritos, os documentos e as narrativas orais são
importantes para entendermos a vida de um povo, mas ao mesmo tempo ressalta o nosso
esquecimento com relação ao corpo. Interessamo-nos por objetos vários da indústria humana,
aponta o pesquisador, mas ignoramos as potencialidades de nossos corpos. Nesta etapa,
denominada por Le Breton (2006) de “sociologia em pontilhado”, também abrimos um
diálogo com Norbert Elias. Em sua obra O processo civilizador, o autor demonstra as regras
da sociedade da corte, que se transformam em estilo de vida nas camadas dominantes da
sociedade moderna.
As regras da sociedade civilizada foram se infiltrando cotidianamente nas práticas dos
grupos sociais, nos seus gestos, na sua alimentação, nas suas danças e, pouco a pouco,
limitando e restringindo a expressão corporal. Geradas no interior da Idade Média e herdadas
pela modernidade, essas regras de civilidade padronizaram o corpo, impediram a
expressividade dos sentimentos, das emoções, esvaziaram o “corpo presença” do qual nos fala
Sant’Anna (2001), e a partir de então adotaram os gestos padronizados permitidos para o
estilo de vida do qual faziam parte.
Tentamos construir neste trabalho o percurso histórico desse pensamento que
determinou as mentalidades e costumes que restringiram o corpo. Encontramos na abordagem
de Le Goff e Truong (2006) um detalhamento no que se refere à apresentação de uma
concepção de corpo, dos imaginários que rondam o corpo. Os autores historicizaram o
cotidiano e os momentos de grande destaque da nobreza religiosa. O período medieval foi
marcado pelas tensões do corpo e da alma, do homem e da mulher, da razão e da fé, da santa e
da prostituta. Reprimido, o corpo é atravessado pela oscilação entre repressão e exaltação,
entre humilhação e veneração. O corpo representado na sacralidade do corpo de Cristo é
12
também a roupa abominável da alma”. Vive-se nesse período uma “situação paradoxal”,
conforme indicam os autores mencionados.
Com relação ao povo do período medieval, suas práticas também são reprimidas e os
corpos, controlados, mas escapam pela via da comicidade, descolada da instituição religiosa.
O povo vive a lei da liberdade, a oposição gera um movimento dinâmico, e a repressão
mantida pela Igreja no controle de seus corpos não impede a manifestação pública.
Essa repressão das instituições religiosas sobre o povo e a tentativa de controle de sua
cultura remete-nos às nossas primeiras cartografias na cidade de Salvador: os Filhos de
Gandhi, diante de um conjunto de igrejas católicas, reúnem-se para os seus rituais nas ruas de
Salvador, cujas performances permaneceram e são as que mais se assemelham às melodias e
aos ritmos do candomblé, da tradição nagô. Este fato é de suma importância para estudos e
pesquisas étnicas e musicais.
Retornando nosso olhar para a inscrição histórica do corpo, vemo-lo colocado na
Idade Média em um lugar de paradoxos. O século XIII é período de renúncia, de restrições,
abstinências, tempo de procissões expiatórias e flagelos corporais realizados em praças
públicas, controle de gestos, fiscalização do espaço e controle também do tempo, por meio da
manipulação do calendário. O pecado original transforma-se em pecado sexual. A Igreja nesse
período não controla como também codifica o corpo, cria a confissão, a introspecção,
estabelece regras que irão interferir nas formas de ser e fazer do cotidiano de cada um. As
mãos, no campo das simbologias corporais, expressam as tensões vividas nessa época, signo
de proteção, mas também de comando, súplica e prece.
A mistura das culturas da corte e os ideais do cristianismo infiltram-se e
institucionalizam-se entre a nobreza e a burguesia. Esta última, por sua vez, almejando o
poder, busca o refinamento e a legitimação da classe social. O lento processo de legitimação
da classe burguesa transformou o “corpo comunitário”, do qual nos fala José Gil (1997), em
corpo isolado, assemelhando este processo aos de isolamento de um corpo em química, em
microfísica. Foi a mudança do corpo social em corpo individual.
As leis antes divinas que permeavam o cotidiano das mentalidades do período
medieval rompem-se e dão lugar às novas formas de pensar. O ponto comum que norteia a
sociedade cartesiana nascente são as máquinas – as de controlar o tempo, de controlar o corpo
–, também submetidas às leis mecânicas. A maquinaria que se legitima no mundo moderno
impõe suas inscrições sociais, as quais, quando institucionalizadas, são absorvidas,
normatizadas. As influências do pensamento filosófico moderno reforçam a entrada de mais
um aspecto desta sociedade em cena: a mecânica do corpo biológico. O corpo submete-se,
13
então, a uma maquinaria jurídica e médica, individualizado e exposto aos determinismos que
predominam na entrada do século XIX.
Retomamos aqui o roteiro de estudos que desenvolvemos a respeito das performances
populares e religiosas: as matrizes que lhe dão forma se exercitam no grupo social ao qual
pertencem. O corpo do dançarino não é isolado dos demais. Eles ritualizam em conjunto suas
alegrias e tristezas. Trazemos para esta reflexão o referente corpo. Enquanto objeto de muitos
debates, é lembrado em suas ações, mas esquecido de ser questionado. O corpo como conceito
abstrato, quando afastado dos atores que o habitam, torna-se vazio, inexistente e inviabiliza a
análise. Le Breton (2006) nos alerta que é preciso saber de que corpo se fala.
A discussão do controle político do corpo à qual nos remete o autor segue uma ordem
dada pelo teórico da sociologia do corpo. Tentamos segui-lo desde o início, momento em que
localizamos historicamente o aparecimento dos estudos da sociologia do corpo. Neste sentido,
divide em etapas as diversas abordagens vindas do campo da antropologia, da sociologia, da
medicina, da história. Movimenta-se, assim, em diferentes campos epistemológicos. Atento
aos riscos que oferecem as discussões a respeito deste objeto, persegue a idéia da “presença”
no corpo, da atuação do “ator” do referido corpo. Após desbravar o território das “lógicas
sociais e culturais do corpo”, mergulha nos “imaginários” criados no século XIX, uma versão
moderna do dualismo em que o corpo perde seu “antigo valor moral” e ao qual é agregado o
“valor técnico”. A dois passos do fechamento de suas reflexões, apresenta mais uma etapa,
que se refere à atuação do olhar na modernidade, momento em que as relações sociais se
distanciam, o homem individualiza-se, isola-se, vive a novidade das metrópoles. Uma de suas
referências teóricas, e que dá suporte à discussão de nosso trabalho, é Michel Foucault (1983)
e sua obra Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Foucault parte do pressuposto de
que todos os nossos valores são criados historicamente. Mostra que o poder é um sistema de
relação que impõe normas e é exercido em diversos espaços institucionais.
As verdades com relação ao corpo e ao que os homens fazem de seus corpos foram se
deslocando no mapa histórico. O guerreiro comandado pelas cadências rítmicas dos tambores
no século XVII perseguia sua meta em função da honra e da valentia. No século XVIII, o
investimento na “arte dos detalhes” disciplinares transformou este corpo guerreiro em soldado
dócil. O sentido dócil o se refere à docilidade, à obediência, mas sim ao corpo flexível, às
mudanças às quais é submetido o homem moderno. O trabalhador dócil é o trabalhador
flexível, aceita as novas tarefas, obedece e propõe idéias. A virtude não está somente na
obediência, mas no ato de se recriar, de ser um novo homem. O corpo na modernidade do
século XVIII é individualizado no tempo e no espaço sob a mira de um olhar disciplinar do
14
poder, que não é mais do soberano, mas fruto de uma vigilância constante. O olhar de quem
vigia entra no corpo do prisioneiro. “O corpo não é mais entidade corpo, mas experimento em
processo – aquilo em que você pode intervir”
1
.
Ao privilegiar o olhar, a modernidade exclui outros sentidos. Ao valorizar o trabalho
mecanizado, individualizado, distancia o corpo da coletividade. Le Breton (2006) nos remete
a George Simmel, que apontava para a mediação sensorial nas interpretações sociais.
Algumas filosofias da modernidade dão mais importância à visão que à escuta, menor
credibilidade ao tato e ao olfato. Abstrair, conforme menciona Serres (2001:21), “significa
menos sair do corpo do que o partir em pedaços: análise”. Destacamos que o corpo reage
sempre, mesmo que muitas filosofias entendam o corpo em pedaços e, diante do grito primal,
busquem sempre o prazer: a respiração que a cadência rítmica do coração, o movimento, o
caminhar, o saltar. Segundo Serres (2001: 331), “Um corpo jamais nasceu antes de ter
dançado”. A dança, música do corpo, reina antes da linguagem. O início dos tempos é
narrrado por meio dos gestos; o ritmo se repete e refaz os passos, reencontra gestos, sugere
novas coreografias, surpreende e retorna ao ritmo. A dança é igual à vida, à inteligência, à
intuição, ao desejo.
Seguimos rastreando os caminhos e encontramos inúmeras possibilidades do corpo nas
performances de rua, nos rituais religiosos e nos espetáculos. Capturamos alguns trajetos
repletos de ritmos, tramas de coreografias que anunciavam inúmeras possibilidades do corpo.
Em síntese, nossa pergunta de pesquisa é: quais são as matrizes culturais que servem
de fonte e composição nas performances apresentadas nas práticas de Carlinhos Brown e sua
banda de músicos?
Para a realização desta tese e aprofundamento teórico no que se refere às
possibilidades do corpo, estabelecemos diálogos com os seguintes teóricos: Pratt e Hampat
Bã, autores que contribuíram na reflexão a respeito do corpo na diáspora e um caminho para
reflexão do tema de nosso trabalho Santo corpo profanado. Acompanhamos o clássico
discurso de Paul Zumthor a respeito dos conceitos de performance, nomadismo e vocalidade
nas obras Escritura e nomadismo e Performance, recepção, leitura, A oralidade e o corpo, o
gesto na cultura na Introdução a cultura oral. Inserimos no debate o sociólogo polonês
Zygmunt Bauman, com sua discussão a respeito da Comunidade: a busca por segurança no
mundo atual. Jesus Martín-Barbero, com O ofício de cartógrafo: travessias latino-americanas
1
Anotações de aula. Disciplina Corpo e Cultura, constante do programa de Psicologia Clínica,
ministrada pela profª Denise B. Sant’Anna na PUCSP, 1° semestre de 2008.
15
da comunicação na cultura, do qual recuperamos o conceito de “Mapas noturnos” e o método
cartográfico. Marcel Mauss em As noções de técnicas do corpo
,
Michel de Certeau em A
invenção do cotidiano. David Le Breton, com A sociologia do corpo; Jacques Le Goff e
Nicolas Truong, com Uma história do corpo na Idade Média; Michel Serres, que evidenciou
Os cinco sentidos e ampliou a reflexão a respeito do equilíbrio, denominando-o de sexto
sentido na obra Variações do corpo.
As pesquisas de campo realizadas nas igrejas, nas ruas e nos terreiros de candomblé
mostraram a potência do corpo nas performances, nas danças coletivas. O exercício do
sagrado nos terreiros de candomblé propicia ao iniciado, ao filho-de-santo, metamorfosear-se
durante a dança, transformar-se em outro. Faz do corpo possuído a morada dos deuses,
relembrando as inúmeras possibilidades plásticas da carne. Estas sociedades de tradições
seculares vêm no corpo humano possibilidades múltiplas de movimentos. O corpo, quando
passagem, ao deus a presença e ao homem a potência. A potência das cantorias desses
grupos, herdeiros de matrizes culturais de tradições africanas, foi difundida ao longo do
processo histórico vivido no Brasil. Os povos da voz imprimiram seu ethos à comunidade.
A “vocalidade” impressa no cotidiano desses povos reforçou sua condição de membro
de uma comunidade que o transcende. Acrescentamos que, na sua qualidade “movente”, a voz
uniu-se ao gesto como em um “jogo”, permeado por intensidades. Este jogo resulta em uma
ação corporal que se dilata no tempo e no espaço, proporcionando a presença no corpo e
aproximando-se de um rito.
A herança deixada por esses povos é a poética da comunicação, que aqui
denominamos de performance, termo cuja definição é longamente comentada pelo autor
nômade Paul Zumthor. O caráter nômade atribuído por ele e pelos seus interlocutores
clássicos refere-se a sua trajetória de vida, que envolveu seu trânsito entre o país de origem,
Genebra, suas experiências de final de infância e juventude em Paris, sua permanência na
Holanda e no Canadá e também sua constante prática de nomadizar formas de atividade e
escrita. O seu contato em 1980 com “os povos da voz”, termo utilizado para se referir aos
povos da África, resultou em uma obra importante entre tantas outras: Introdução a poesia
oral. Um poema em prosa, conforme relata Paul Zumthor, cuja idéia fundante é a voz na
condição nômade. A performance não é uma forma poética fixa; ela se transforma a cada
momento. Sua “competência” é afetar e ser afetada.
Quanto à discussão que formulamos para entender a performance, partimos de uma
escuta a respeito das performances, não da observação. A escuta possibilita afetar-se pela voz.
16
Os cantadores de blues Moraes (2000) são um bom exemplo para entendermos o processo das
performances: quando estes expressavam seu cotidiano de luta e saudade da terra de origem,
faziam-no como um rito. Coletivamente, cantavam suas melodias e deixavam-nas espraiar
pelo corpo comunitário, sem racionalizar; o corpo comunitário afetado pelos sentimentos dos
cantadores acolhia todos os seus componentes. A voz afeta o corpo, gera e promove um
gestual imbuído de várias emoções, a partir dos gestos e, num sentido mais amplo, este afetar
promove a música que se dissemina no corpo, constituindo a performance. Cada vez que se
usa a voz para cantar, tem-se um gesto corporal: a voz se mistura ao corpo, é expressa pelo
corpo, o corpo absorve este fluxo, o que resulta em performance.
Sobre o corpo nas performances, abrimos um diálogo com Michel Serres, nascido em
1930 na França, aluno da Escola Naval, de onde se desligou em 1949, segundo ele próprio,
devido, em grande parte, à leitura de A gravidade e a graça, de Simone Weill, “a primeira
filósofa que falou da violência em todas as suas dimensões: antropológica, política, religiosa e
mesmo científica”. Cursou a École Normale Supérieure de Paris, licenciando-se em
matemática, letras clássicas e filosofia, mas se considera um autodidata.
Os cinco sentidos, obra que proporcionou aproximarmo-nos de uma filosofia por ele
denominada de filosofia dos “corpos misturados”, aborda os sentidos do corpo em diversos
momentos. Narra, no percurso textual, ações que exigem os sentidos do tato, do olfato, do
paladar, da visão e da audição, esta última promotora do equilíbrio, o que sugere que seja
considerado como o sexto sentido. O tato – a pele, sentido vital do nosso corpo, invólucro que
nos separa e protege do mundo, filtro das turbulências externas, é local também onde se
misturam alma e corpo. É na pele que o tempo imprime os acontecimentos vividos.
Serres (2001) mistura estes sentidos à mitologia grega, traz para o texto suas
observações a respeito das tapeçarias de Pierre Bonnard (1867-1947), que revelam cenas
intimistas. O autor desenvolve um detalhamento dessas obras, que, pouco a pouco, envolvem
nossos sentidos, sensibilizando-nos ao acompanharmos sua descrição de cada ação estampada
na tapeçaria. No decorrer do texto, evidencia as qualidades de cada sentido, propõe assim uma
junção desses sentidos, alinhava lentamente os poderes de cada um e como estes se
metamorfoseiam em outros. A pele, como nos informa Serres (2001), agrega uma variedade
de sentidos, mistura-os. Tecido comum, nela concentram-se singularidades e desenvolve-se a
sensibilidade.
Confirmamos, assim, a impossibilidade de uma performance ser uma forma fixa. O
corpo sempre reage a qualquer situação, pois a sensibilidade incorporada sinaliza os perigos,
os impactos. O corpo não é receptor passivo, mas reage às turbulências da vida.
17
Nesse momento contemplamos a obra Variações sobre o corpo, também de Michel
Serres (2004), que trata do sexto sentido, o equilíbrio. Retoma a discussão da filosofia que
cindiu o pensamento moderno, faz um movimento de união entre o corpo e a mente, a
animalidade e a humanidade, o corpo e o pensamento; remete-nos ao corpo comunitário, que
recusa a divisão de corpo e mente mantendo as ações diversas do seu cotidiano conectadas ao
corpo. O acontecimento passa pelo corpo; a voz, também um acontecimento, atravessa o
corpo individual e coletivo ao mesmo tempo e em primeiro lugar, e não passa pela razão.
Esse movimento de divisão entre o corpo e a alma, corpo e mente, humanidade e
animalidade é resquício das matrizes que se constituíram no período em que Deus era o centro
da vida na Europa. Essas matrizes sofreram algumas mutações, mas não perderam o objetivo
principal que as constituiu, isto é, afastar o corpo da mente como entidades separadas,
desagregadas, que pouco se encontram, mas que vivem na ambigüidade dos desejos. A mente
mantêm o domínio secular herdado de outras épocas e submete o corpo ao esquecimento. Esse
esquecimento provoca uma estagnação no corpo, dificultando as performances, padronizando
expressões, endurecendo e congelando os corpos.
É por este caminho que Serres (2004) vai desenvolver sua reflexão. O autor valoriza o
movimento, pois o corpo em movimento, afirma ele, federa os sentidos, unifica o tempo e o
espaço. Portanto, a discussão que se abre nesta obra é sobre o movimento, o treinamento do
corpo, o exercício físico, não o treinamento para as competições, mas para um aprimoramento
do corpo. O corpo em movimento nos livra do consciente, reforça o autor. O pianista, lembra-
nos, não precisa do controle da mente para expressar sua música. O corpo está sempre
adotando as potências; é suporte da intuição, da invenção em múltiplas variações. Serres
acrescenta que é para se duvidar de uma sociedade que recusa a dor; a nossa, como sabemos,
escamoteia a morte e também a dor.
Na sua descrição sobre a ação de escalar a montanha, verifica nas posições exigidas
pelo corpo as possibilidades de um retorno à animalidade. Andar de forma ascendente e como
um quadrúpede o faz pensar de onde vem a proteção que o mantém no paredão de uma
montanha, pensa na possibilidade do animal que habita essa túnica, invólucro do corpo com o
mundo, a pele, membrana fina que mistura os sentidos. Constata que somente o corpo
glorioso, aquele que se reinventa, pode ser real, enquanto a cabeça ingênua adora repetir. O
corpo glorioso, a carne divina, distingue-nos das máquinas; “a inteligência humana se
distingue da artificial apenas pelo corpo” Serres (2004:18). A satisfação da volta o faz
adormecer. Envolvido pela sensação de plenitude, visita todo seu interior e todos os labirintos
de seu corpo, por dentro da epiderme. Expande o corpo. É a transformação que se inicia.
18
O que existe de mais belo do que a dança criada dos movimentos naturais do corpo?
Do corpo coletivo que dança e recria, a cada momento, preenchendo o tempo com sua
coreografia? A dança encontrada em diversos ritos, do sagrado ao profano, que nasce do
enfrentamento do desconhecido, de dizer o que é indizível. Ela aparece na magia, na religião,
na festa; celebra mitos dos que visitam seus filhos distantes, mitos que incorporam, que curam
os corpos em metamorfose, que também são performances guiadas pela voz e pulsos que
emanam do corpo. O corpo humano é capaz de todas as metamorfoses. Quando não alcança a
perfeição, imita ou simula.
Em nosso trabalho, apresentamos as danças sagradas, resultado das investigações e
escutas de performances nas ruas de Salvador, nos terreiros de candomblé e na comunidade
do Guetho. Os narradores que trouxemos para compor o corpo nas danças são os filhos-de-
santo, que, na sua experiência no campo do sagrado, nos contam o que acontece ao corpo
nesses ritos de passagem. Atentamos para a importância da cultura afro-brasileira e suas
manifestações culturais através das festas dos orixás, uma das mais expressivas instituições da
religião, pois é entendida como ritual de purificação e renovação. É nesse momento
ritualístico que se vive o mito, momento de trocas simbólicas, circulação de riquezas,
apresentação e encontro dos deuses, uma celebração coletiva e ancestral. O corpo que
encontramos é um corpo coletivo que vive as dores, angústias e alegrias de todos no corpo.
Inserimos no debate o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, com sua discussão a
respeito da Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. A entrada na comunidade
sagrada e não-sagrada aproximou-nos da discussão de Bauman (2003) dessas comunidades e
da perspectiva histórica dessas formas de viver. A própria palavra, como nos informa
Bauman, é uma palavra que nos afeta, estimula a imaginação e apresenta-se como um lugar
cálido e de aconchego. Este imaginário de aconchego não pode ser medido e muito menos
confirmado, pois é um paraíso perdido e inalcançável. O mito de Tântalo ilustra estas
reflexões. O ensinamento que propõe o mito é o de reiterar infinitamente o acontecimento,
viver na inocência, ignorar o porquê do mundo, dos fatos. É o contar sem fim as origens, é
circular pelos mesmos caminhos sem buscar os atalhos ou ser surpreendido pelos imprevistos.
As mudanças ocorridas na comunidade do Candeal Pequeno de Brotas, apelidado de
“Ilha de Sapos” (Lima), afetaram não o seu nome, local que passou a ser reconhecido
popularmente como comunidade do Guetho. O jovem que vivia a condição de morador da
periferia de Salvador, com possibilidade profissional e escolar indefinidas pelos estrangeiros
que o estigmatizavam como violento e marginalizado, depara-se com uma outra perspectiva
de vida. Na década de 1990, o músico Carlinhos Brown e o Timbalada, moradores do bairro,
19
destacam-se na mídia e transformam a comunidade. A partir de projetos sociais e musicais,
criam o terreiro eletrônico conhecido como Candyall Guetho Square, voltam-se às raízes
ancestrais, reciclam a música do candomblé e a transformam em música pop. O espaço antes
estigmatizado vira palco de figuras internacionais. A “Ilha de Sapos” transforma-se em “Ilha
da Fantasia” (Lima, 2001). Uma “ilha” de espetáculos que agrega os nativos e não nativos,
espaço eclético, caldeirão cultural onde se misturam as tradições em contexto tecnologizado.
As metodologias desenvolvidas nesta tese tiveram como preocupação, no primeiro
momento, entender como poderia se organizar uma pesquisa que compreendesse o corpo nas
performances, sendo que as performances atraem para sua constituição vários aspectos das
matrizes culturais de um povo, como a dança, a música, o pulso interno, as gestualidades, o
canto, a teatralidade. Não nos interessava estudar o corpo distante desta condição que a
performance proporciona. Para tanto, as leituras realizadas no primeiro ano de estudo foram
fundamentais. Tentamos ampliar os estudos da cultura africana, pois alguns anos a
investigávamos por meio da literatura e da prática musicais. A música permeia a todo instante
a vida social dos africanos e da diáspora que se organizou no Brasil e que está historicamente
vinculada à música nos processos de produção da terra, nas fases iniciáticas, nas ruas, nos
mercados. Em 2003, quando ocorreu a primeira pesquisa de campo em Salvador, coletamos as
músicas cujas melodias e ritmos se ligavam a nosso campo de pesquisa e também revelavam
informações históricas para ampliarmos o conhecimento a respeito das performances
populares e religiosas que estavam no foco de nosso interesse.
Os estudos da antropologia foram fundamentais para construir nossa reflexão a
respeito da cultura do afro-descendente. Buscamos em História geral da África, obra
coordenada por J. K. Zerbo, e nos estudos de Pierre Verger, entre outros, os caminhos para a
compreensão do emaranhado de etnias e povos que eram chamados de iorubas, conhecidos
no Brasil como nagôs.
Realizada essa primeira fase de leitura, partimos para o trabalho de campo em
Salvador e em São Paulo, onde desenvolvemos nossas observações etnográficas. O
desenvolvimento da etnografia depende não só do pesquisador, mas também da forma como a
comunidade em estudo o recebe. A chegada ao local desperta um interesse mútuo de quem
nos olha e de quem vê o quê. A “observação participante”, prática fundamental para a
realização da etnografia de campo, remete-nos, no momento de chegada, às aulas e leituras
realizadas na área da antropologia. Os primeiros gestos do olhar em volta e situar-se foi
fundamental. Munidos do mapa de acesso ao local, caminhamos até a comunidade com
algumas referências dos projetos sociais desenvolvidos. Visitamos a escola de música
20
Pracatum e o projeto Rebocado, que visa à renovação das condições básicas de moradia de
seus habitantes. Fizemos contato com alguns moradores que nos revelaram que, apesar de a
proposta da escola de música ser para todos da comunidade, na prática não era o que
realmente acontecia. Os alunos da escola vinham de várias partes da cidade. Portanto, naquele
momento, a escola Pracatum não era para a comunidade como se anunciava na imprensa e na
proposta do projeto. Nos dias que se seguiram, voltamos ao local e visitamos o terreiro
eletrônico. Encontramos um cenário singular para o momento da pesquisa: as misturas da
religiosidade do candomblé e da cultura popular. Assistimos às performances dos artistas
realizadas no local e as fotografamos. Voltamos em 2004, época em que coletamos material
do acervo sobre a cultura afro-baiana localizado no Pelourinho. Acrescentamos a essa fase de
pesquisa de campo as visitas aos terreiros de candomblé, não mais na Bahia, mas em São
Paulo. Como o objetivo central era o corpo religioso e popular nas performances,
esquematizamos as observações do corpo em diversos momentos dos ritos de passagem,
participamos de festas e observamos o xirê, que é o momento em que os deuses se encontram
e realizam as danças entre os orixás. Após estas observações, relacionei alguns contatos para a
realização das entrevistas com os filhos-de-santo apresentadas no segundo capítulo deste
trabalho e que se constituem como recortes importantes que tentam responder a nossa questão
principal sobre como documentar as possibilidades do corpo nas performances religiosas e
populares.
Partimos da discussão das primeiras referências do candomblé, datadas do século XIX,
que receberam maior influência das tradições africanas-ocidentais: a jejê ou daomeana, dos
cultos dos voduns; e a ioruba ou nagô, dos cultos dos orixás. A população mantinha suas
expressões religiosas e marcava também as diferentes nações. Após a fase de primeiros
contatos com as músicas próximas do candomblé, começamos a selecionar as músicas
originais que tocam nos ritos, identificando assim as várias células rítmicas que são utilizadas
nos rituais, em que cada santo tem uma melodia e uma harmonia para os ritmos, os quais não
se assemelham. Acrescentamos que para a compreensão do candomblé da Bahia investimos
nas leituras de Roger Bastide (2001), que descreve os rituais ocorridos na primeira metade do
século XX, entre outros autores, também coletamos informações entrevistas, documentários e
formamos um conteúdo que nos facilitou as escutas nas ruas de Salvador, nos terreiros de
candomblé e nas danças de Carlinhos Brown e o Timbalada.
Um terceiro momento que ressaltamos nesta parte que se refere à metodologia
caracteriza-se pelas leituras de Nestor Garcia Canclini discutidas nas orientações do grupo e
que facilitaram a análise da população das comunidades que estão em processos de misturas
21
culturais; as populações que vivem em comunidades antes cristalizadas e que se misturam
com aquelas que circulam nas metrópoles globalizadas. O que resulta dessa miscigenação, um
interesse fundamental para o nosso trabalho, partindo-se do pressuposto que no processo
comunitário tudo passa pelo corpo a música brida, os ritmos das tradições que se juntam
aos ritmos da contemporaneidade –, mostrou-se de especial relevância para nossas discussões.
Acrescentamos que o conhecimento a respeito da história e da formação do povo
brasileiro teve como fonte de pesquisa as exposições e o acervo bibliográfico do Museu Afro-
Brasil de São Paulo. Realizamos entrevistas com filhos de santo com o objetivo de construir
um caminho a respeito do que pode o corpo. Esclarecemos que o interesse nessa metodologia
é armazenar as diversas experiências corporais desses iniciados que vêem nesses ritos
possibilidades de reinvenção. Assim, o presente texto está organizado de forma a permitir
uma performance que exponha a corporeidade como território de misturas de sentidos, de
expansão do corpo por meio da dança, pois “A dança reina antes da linguagem, como música
do corpo”, como atesta Serres (2001: 330), não de significados, pois os significados não nos
levam ao corpo todo; alcançam apenas o pensamento. A filosofia dos corpos misturados nos
propõe um corpo humano definido e capaz de realizar todas as metamorfoses possíveis, caso
isto não ocorra, deve-se imitar ou simular (Serres, 2004).
Vale lembrar que o método cartográfico Martín-Barbero (2004) foi fundamental para
capturarmos os “trajetos e devires” (Deleuze (1997) das performances de rua, as danças e
coreografias ritualísticas, que sob a liderança das paisagens sonoras predominantes nos
terreiros eletrônicos e religiosos preenchiam os espaços entrelaçando e produzindo novos
sentidos. Tentamos detectar indicativos e material para colocarmos em estudo, buscamos nos
aspectos de “intensidade” Deleuze (1997), as emoções, as incorporações, as transformações
do corpo. Ao captar o método cartográfico (Martín-Barbero) para entender os trajetos e
performances do corpo, retomamos os mapas que expunham as tramas dos novos modos de
produzir mediante” as transformações comunicacionais e os deslocamentos da cultura de
tradição frente aos processos de globalização econômica e informacional. O corpo, território
por onde transita a cultura de um povo, processa as mudanças, as mediações, na interface com
as culturas de tradição reinventa as performances. Na arte de inventar o cotidiano (Certeau)
apropria-se da realidade, a realidade é narrada com registros das tradições, dos mitos, muito
comum nas narrativas de Carlinhos Brown e filhos de santo que elegem seus orixás para
justificar seus atos presentes, suas formas de dançar e articular a vida cotidiana.
Ainda na esfera das metodologias, buscamos em Mario de Andrade, um dos caminhos
sugeridos por Oliveira em Colonizadores do futuro, outras pistas que apontassem invenções
22
na maneira de olhar a cultura. Encontramos a invenção do olhar brasileiro diante das
manifestações rurais e urbanas que eram questionadas sob a luz da modernidade dos anos 30
no Brasil. Destacamos do referido estudo a respeito das relações de poder em conexão com os
valores e símbolos da sociedade brasileira (Estado e Cultura), as investigações e reflexões em
torno da cultura popular e estudos folclóricos nos quais o modernista Mario de Andrade expõe
seus primeiros passos nas observações acerca das danças, das coreografias, das músicas e
instrumentos utilizados pelos manifestantes nos quais tenta captar e detalhar sua escuta e as
formas como são processadas e documentadas. A documentação das performances de
Carlinhos Brown e Timbalada serão apresentadas neste trabalho, assim como um glossário de
nomenclaturas dos instrumentos utilizados nas performances populares e religiosas.
Para justificar o título do trabalho Santo corpo profanado utilizamos as referências de
Pratt para o processo de profanação que se desenvolveu no século XVIII nas investidas de
dominação por parte da população européia. A sacralização aparece na cultura da oralidade,
quando o corpo território de fluxos e força é lembrado no seu cotidiano. “[...] por meios
desses olhos do império que, movidos pelos mais diversos interesses e causas (oficiais ou
não), perscrutavam terras, rios, planícies, montanhas, florestas e agrupamentos humanos
rurais ou nativos de continente americano e da África. (Pratt, 1999)
Santo corpo profanado: o termo “profanado” se justifica com base na obra de Mary
Louise Pratt, Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação, fruto de um curso
ministrado pela autora sobre relatos de viagem e expansão européia. Nesse livro, são
discutidos os processos ocorridos no culo XVIII, quando, por interesses diversos,
investigações oficiais e não-oficiais rastrearam as regiões da América Latina e da África.
Trata-se de um estudo de gênero que paralelamente constrói uma crítica da ideologia que
permeava e dominava as investigações científicas do período. Para além de estudos dos
relatos de viagem na abordagem literária ou textual, o que se encontra na obra é uma história
da produção de sentido realizada a partir do olhar europeu.
Estabelecido o campo de forças, a “zona de contato”, conceito trabalhado pela autora,
colonizadores tornam-se co-autores na construção de um imaginário ao desbravar o interior
dos continentes. A reflexão dela se pauta nas articulações elaboradas pelo imperialismo como
um agente colaborador na construção de estereótipos étnicos, sociais e geográficos, na
interferência e dominação econômica, política e, mais acentuadamente, nas mentes dos
envolvidos no processo: “espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se
entrelaçam uma com a outra, freqüentemente em relações extremamente assimétricas de
23
dominação e subordinação como o colonialismo, o escravagismo, ou seus sucedâneos ora
praticados em todo o mundo”. (Pratt, 1999: 27)
Destacamos que o início desse processo foram os acontecimentos de 1735 quando,
segundo a Pratt, fatos como a publicação do Systema Naturae (O sistema da natureza), de Carl
Linné (apud Pratt, 1999), naturalista francês, e a primeira expedição científica internacional
da Europa. Conforme descreve a pesquisadora:
“um sistema classif
icatório que visa categorizar
todas as formas vegetais do planeta, fossem elas conhecidas ou desconhecidas dos
europeus.[...] a inauguração da primeira expedição científica internacional da Europa, um
esforço conjunto visando determinar de uma vez por todas a forma exata da Terra” (Pratt,
1999: 42).
A expedição científica internacional sob o comando de Charles de La Condamine foi
um marco decisivo para a comunidade científica européia, pois se tratava de uma investigação
cujo debate havia sido travado entre os postulados cartesianos, portanto franceses, e os
postulados newtonianos que norteavam a discussão dos teóricos ingleses.
La Condamine apresentou por meio de seus escritos a medida “de quanto a ciência
veio articular os contatos europeus com a fronteira imperial e do quanto foi articulada por
eles” (Pratt, 1999: 49). O empreendimento desenvolvido pelos europeus burgueses,
denominado pela autora de “consciência planetária” a favor do eurocentrismo moderno, surge
como novo paradigma de uma elite ilustrada cientificizada que utiliza métodos cuja fonte são
as investigações da ciência natural que se tornam, nessa época, lentes pelas quais se
examinará, classificarão a cultura do mundo principalmente não urbano, mas implicitamente
também as regiões comercializáveis, os valores materiais não visíveis na superfície, mas em
seus interiores. Esta atitude em perscrutar terras, rios, planícies, montanhas, florestas e
agrupamentos humanos, citados inicialmente não dos continentes americanos e africano
–, se estendem também às populações européias ligadas à produção agrícola, ao campo.
‘Essa nova consciência planetária, como sugiro, é elemento básico na construção do
moderno eurocentrismo, o reflexo hegemônico que incomoda os ocidentais, continuando a ser
uma segunda natureza para eles” (Pratt, 1999: 42). As expedições que se voltam para a
investigação do mundo vão pouco a pouco se infiltrando e se tornam “um catalisador de
energia e recursos de intrincadas alianças das elites comerciais e intelectuais por toda a
Europa [...] fonte de alguns dos mais poderosos aparatos ideológicos e de idealização, por
meio dos quais os cidadãos europeus se relacionam com outras partes do mundo” (Pratt, 1999:
52-3).
24
A comparação que se estabelece dessas expedições ao interior dos continentes e as
navegações que antecederam essas investidas, ou seja, trezentos anos que distanciam o início
de um empreendimento do outro, também apresentam mudanças na consciência. “O tapete
além da orla”, conforme propõem comentários encontrados em relatos a respeito dos objetivos
que no século XVIII perseguem a idéia de um expansionismo, de codificação das ambições
imperiais européias além-fronteiras.
Em 1822 Alexandre Humboldt (apud Pratt, 1999) afirmou que “não haverá de ser pela
navegação costeira que haveremos de descobrir a direção das cordilheiras e sua construção
geológica, o clima de cada região e as influências de formas e hábitos dos seres organizados.
[...] A história das jornadas por terra em regiões distantes é muito mais apropriada par incitar
o interesse geral” (Pratt, 1999: 54).
Os projetos científicos tomaram impulso, e o sistema Lineu tomou dimensões sem
precedentes no universo de interesses europeus, sendo que na segunda metade do século
XVIII, a estratégia messiânica” (Daniel Boorstin, apud Pratt, 1999: 57) distribuiu os
“discípulos” de Lineu pelo planeta para rastrear as novas possibilidades e benefícios que este
tinha em potencial.
O mapeamento sistemático iniciado pelas empresas científicas do século XVIII
conectava-se a um grande empreendimento de procura de matérias-primas, terras para
colonizar, novas rotas comerciais. Lembramos que os países que estavam transitando para o
mundo industrializado necessitavam de matéria-prima para alimentar sua produção. Era uma
investida em uma “ordem”, a qual, por sua vez, inspirada na história natural, rompe
paulatinamente, com as redes afetivas, as classificações e os detalhamentos que levam a uma
desagregação. A pesquisadora descreve os desdobramentos dessa estrutura de pensamento
(Pratt, 1999: 67):
A história natural, como um processo de pensamento, rompeu redes afetivas
de relações materiais entre pessoas, plantas e animais onde quer que fosse
aplicada. O próprio observador europeu não tem mais lugar na descrição.
[...]. Para Lineu, diz Daniel Boorstin, a natureza é uma imensa coleção de
objetos naturais que ele próprio passava em revista como um supervisor,
rotulando-os [...].
O desdobramento das classificações projetadas em rede global pelo processo de
naturalização da história natural alcança a humanidade. O Homo sapiens, nomenclatura
determinada por Lineu [...], segundo a autora é composto de seis variedades:
25
a) Homem selvagem. Quadrúpede, mudo peludo.
b) Americano. Cor de cobre, colérico, ereto. Cabelo negro, liso espesso,
narinas largas, semblante rude, barba rala, obstinados, alegres, livres. Pinta-
se com finas linhas vermelhas. Guia-se por costumes.
c) Europeu. Claro, sanguíneo, musculoso, cabelo louro, castanho, ondulado,
olhos azuis, delicado, perspicaz, inventivo. Coberto por vestes justas.
Governado por leis.
d) Asiático. Escuro, melancólico, rígido, cabelos negros, olhos escuros,
severo, orgulhoso, cobiçoso. Coberto por vestimentas soltas. Governado por
opiniões.
e) Africano. Negro, fleumático, relaxado. Cabelos negros, crespos; pele
acetinada, nariz achatado, lábios túmidos, engenhoso, indolente, negligente.
Unta-se com gordura. Governado pelo capricho. (Pratt,1999: 68)
O “mito da superioridade” do homem europeu, construído
com base nessas classificações,
nomeações, evidencia uma “naturalização”, a recolocação da humanidade em uma ordem
estabelecida pela história natural. Este processo de nomeação foi evidenciado séculos
anteriores, durante as conquistas dos navegantes, entre as instituições religiosas cristãs que
fincavam geograficamente suas marcas pelo batismo e a santificação das terras, catequizando,
assim, as almas e os corpos. Temos nessa classificação realizada pelo cientista um olhar que
inicia o processo de “profanação dos corpos”
O que se pretendeu pelo processo de dominação e expansão da história natural por
meio do coletor naturalista encontra na voz de Pratt algumas considerações a respeito da
“figura benigna”:
[...] uma imagem utópica do indivíduo burguês europeu, simultaneamente
inocente e imperial, professando uma benigna visão hegemônica que não
instauraria qualquer aparato de dominação. Quando muito, os naturalistas
eram vistos como auxiliares das aspirações comerciais expansionistas da
Europa. Falando claramente, em troca de viagens gratuitas e favores
semelhantes, eles produziam conhecimento comercialmente utilizável. “É
principalmente da história natural”, afirmava um autor num prefácio datado
de 1795, “que aprendemos o valor e a importância de qualquer país, pois é
por esta fonte que podemos conhecer tudo que ele produz.” (1999: 69-70
)
Apesar da distância aparente entre as investidas científicas e interesses comerciais, as
expedições que se montaram estavam sigilosamente atentas às oportunidades e perigos em
potencial, demonstrando a “dialética ideológica que se gestava a cada empreendimento.
Pode-se dizer que as perspectivas comerciais colocaram de forma
argumentativa a ciência no âmbito do interesse público geral, embora, na
verdade, os benefícios da expansão mercantil e do imperialismo fossem
drenados basicamente para pequenas elites. No entanto, no nível da
ideologia, a ciência a descrição exata de tudo”, como a caracterizou
26
Buffon criou um imaginário global que transcendia o comércio. Ela
funcionou como um espelho rico e multifacetado no qual toda a Europa
pôde projetar a si mesma como constituindo um “processo planetário” em
expansão, enquanto abstraía desta imagem a competição. Exploração e
violência acarretadas pela expansão comercial e política e pelo domínio
colonial. (Pratt, 1999: 71)
O discurso burguês que se estabeleceu com base na sistematização da natureza
representa um discurso urbano sobre mundos não urbanos, o burguês letrado toma
conhecimento dos interiores da África, da Ásia, das Américas e até dos interiores da Europa
que nesse período histórico transitava pelas transformações impostas pelos grandes centros
europeus que exigiam maiores lucros das produções agrícolas e adaptações às necessidades do
momento, a introdução de criação e o aperfeiçoamento científico de animais domésticos e das
colheitas. Reforçavam o discurso que descaracterizava as produções de subsistência e,
conseqüentemente, distanciavam e criavam as diferenças entre os modos de produção. Os
atores desse cenário pintado pelos europeus urbanos letrados, os camponeses europeus eram
considerados “um pouco menos primitivos que os habitantes do Amazonas”.
Seguindo a estrutura de pensamento lançada na obra de Pratt (1999), tentamos
dimensionar o quanto as práticas das ciências “lineanas” de sistematização assemelham-se às
formas de classificação e padronização, na produção em série, o discurso a respeito do Homo
sapiens descrito por Burke (apud Pratt, 1999:68) coincide com o tráfico de escravos, o
sistema de plantation. A autora coloca em paralelo acontecimentos que marcaram a colônia,
como o trafico de escravos e os experimentos da produção: “O que seriam o tráfico de
escravos plantions senão maciços experimentos em engenharia social e disciplina, produção
em série, a sistematização da vida humana, padronização de pessoas?”.
A interligação da história natural com as camadas de europeus, autoridade urbana,
letrada e masculina, resultou em um entendimento racionalizado, extrativista, dissociador,
extirpador das relações funcionais, das experiências entre pessoas, plantas e animais, e
gerador de uma hegemonia global que produziram posteriormente o que a autora denomina
“forma eurocêntrica de consciência global”.
Outro aspecto que nos chamou a atenção e sentimos a sua relevância na discussão
desta pesquisa é no que diz respeito à “dinâmica de automodelagem crioula” que se refere aos
discursos desenvolvidos por autores do começo do século XIX, que desafiavam a necessidade
da criação de uma cultura autônoma, descolonizada, mas contraditoriamente mantinham os
valores da elite européia branca. Também nos deparamos com uma reflexão a respeito do
27
termo transculturação. Entendemos transculturação como aquilo que ocorre na “zona de
contato”.
Conforme discussão da autora, os etnógrafos utilizam-se do termo transculturação
quando se referem aos grupos subordinados ou àqueles que estão à margem da sociedade,
que selecionam e inventam os materiais transmitidos por uma classe dominante ou
metropolitana. Ainda de acordo com ela, os povos subjugados constroem assimetricamente
aquilo que emana da cultura dominante, bem como decidem em diversos graus e variações o
que absorvem ou o que assimilam em suas culturas. A transculturação é um “fenômeno da
zona de contato”. Desse contato, muitas questões foram apontadas por Pratt (1999: 31): Como
os modos metropolitanos de representação são recebidos e apropriados pela periferia? E a
transculturação das colônias para a metrópole?
Destas perguntas iniciais, outras foram gestadas, e ao analisar as zonas de contato
esclarece a autora que é uma tentativa de apresentar um território espacial e temporal de
encontro de sujeitos que se cruzam. O “contato” são zonas interativas e devem ser olhadas no
sentido de compreender como esses mesmos sujeitos são constituídos ou mesmo ignorados
nas relações assimétricas de poder.
Contrapondo a forma de pensar o outro por meio de um processo de profanação, uma
profanação das culturas das formas de apropriação da realidade, dos usos e maneiras de se
elaborar os corpos, entendemos que as “zonas de contato” prescreveram e divulgaram para a
Europa descrições de corpos olhados sob lentes classificatórias da efervescente ciência.
Corpos que estão latentes, mas que não se anunciam, corpos profanados que serão percebidos
e questionados nas diásporas. A força desse pensamento classificatório tem antecedentes na
filosofia moderna desenvolvida por Descartes. (2001)
Diferenciando-se do corpo divulgado e assimilado na concepção cartesiana, o “santo
corpo” é pensado na sua totalidade, na sua integração, nas conexões possíveis promovidas
pelas tradições das culturas populares, das tradições religiosas que vazam pelas práticas do
cotidiano e são apropriadas pela cultura popular. Pensamos o corpo da tradição na diáspora
brasileira, mas para nossa compreensão histórica de construção deste corpo na diáspora,
acionamos caminhos cujos referenciais partem de um rigoroso estudo das culturas africanas
desenvolvido pelo pesquisador africano Hampatê Bã. Essas leituras nos possibilitaram
entender a concepção e perspectiva de mundo diferente do universo ocidental, compreender
os resultados da mestiçagem de culturas que entraram em contato com a expansão do
capitalismo europeu e seus desdobramentos históricos e científicos ao longo dos últimos
séculos. Seguimos em direção às culturas com as quais trabalhamos nesta pesquisa, tentando
28
historicizar suas origens, observando e refletindo as suas formas de mistura, de apropriações,
de reinvenções do cotidiano.
Ao nos reportarmos a uma reflexão dos depositários das culturas na diáspora
brasileira, nosso primeiro passo foi percorrer “A tradição viva” (Hampatê Bã,1982) e a
constituição das tradições com base nos estudos da oralidade. A tradição oral na concepção do
africano utiliza-se da palavra que é transmitida de boca ao ouvido de mestre a discípulo.
Segundo o autor, quando se fala de tradição da cultura africana, toma-se a tradição oral como
referência, a memória viva. A fala é reconhecida na sociedade oral “como um meio de
preservação da sabedoria dos ancestrais [...] como testemunho transmitido oralmente de uma
geração a outra” (Hampatê Bã, 1982: 181).
Em um dos aspectos que destacamos na reflexão que faz Vansina (1982: 158) a
respeito da natureza da tradição, percebe-se que “um testemunho transmitido oralmente de
uma geração a outra” comporta características particulares, como o verbalismo e a maneira
como é transmitida, diferenciando-se da transmissão que ocorre na sociedade ocidental, que é
por intermédio da escrita, cujo resultado é o “manuscrito”.
Quanto à cultura oral, não encontramos a mesma facilidade em defini-la, pois
comporta inúmeros aspectos enredados em uma complexidade. Na concepção do pesquisador
Vansina (1982: 158-9), a tradição oral legítima deveria fundamentar-se no relato de um
testemunho ocular, “que é de grande valor, por se tratar de uma fonte ‘imediata’ não
transmitida, de modo que os riscos de distorção do conteúdo são mínimos. O boato”, afirma,
“deve ser excluído”, por se tratar de algo que se ouviu dizer, o que não impede que se torne
uma tradição se for repetido nas gerações posteriores. A tradição é mais um aspecto que
transporta as experiências para as gerações seguintes.
Seguindo o pensamento de Hampatê Bã, o testemunho, como um dos aspectos da
tradição oral, propõe no seu exercício realizar uma ligação entre o homem e a palavra; o
testemunho evidencia o valor do homem na sua ética em transmitir de forma fidedigna os
acontecimentos, como as memórias individuais e coletivas, e também, em sua concepção, a
verdade. Esta ligação entre o homem e a palavra tem mais força no momento, aspecto este
que não tem a escrita, a assinatura que na sociedade ocidental legitima uma situação mais que
a palavra falada, maiores garantias, é a prova incontestável. Segundo Hampatê (1982:
182)
Nas tradições africanas – pelo menos nas que eu conheço e que dizem respeito a toda a
região da Savana e Sul do Saara –, a palavra falada se empossava, além de um valor moral
fundamental, de um caráter sagrado vinculado a sua origem divina e às forças ocultas nelas
29
depositadas. Agente mágico por excelência, grande vetor de “forças etéreas”, não eram
utilizadas sem prudência. [...] Inúmeros fatores – religiosos, mágicos ou sociais – concorreram
por conseguinte, para preservar a fidelidade da transmissão oral.
Considerada uma grande escola da vida e distanciada das concepções do pensar
cartesiano que fundamentam a visão ocidental, a tradição oral toma para si uma concepção de
mundo que não fatia a realidade, mas assume uma postura integrada diante da vida, não
dissociando o material do espiritual. Converge nas suas práticas a religião, a ciência natural, a
iniciação à arte, a história. “Fundada na associação e na experiência, a tradição oral conduz o
homem à sua totalidade e, em virtude disso, pode-se dizer que contribuiu para criar um tipo de
homem particular, para esculpir a alma humana” (Hampatê Bã, 1982: 183).
A origem divina da palavra é descrita por Hampatê por meio das tradições da
savana ao sul do Saara (antiga África Ocidental francesa). O mito de criação
2
, muito comum
nas culturas de tradição, dimensiona os valores primordiais e a criação do homem. Cercada
pelo universo divino, a fala é, por sua vez, um dom de Deus. Este primeiro, gestado no
universo mítico africano, o homem (Maa) do qual nos fala o pesquisador, recebeu de seu
superior (Maa Ngala) a potencialidade do poder, do querer e do saber. Por sua vez, cada uma
destas forças permanece silenciosa até ser acionada. O primeiro efeito desta vibração é o
pensamento; o segundo é o som; e o terceiro é a fala. A fala exterioriza, materializa a vibração
das forças.
A “fala” e a “escuta” nessas sociedades de tradição nos remetem a um universo
diferenciado e amplo. Trata-se, conforme Hampatê Bã, de uma “percepção total”.
Se a fala é força, é porque ela cria uma ligação de vaivém [...] que gera movimento e
ritmo, e, portanto, vida e ação. Este movimento de vaivém é simbolizado pelos pés do tecelão
que sobem e descem, como veremos a diante ao falar dos ofícios tradicionais (Com efeito, o
simbolismo do ofício do tecelão baseia-se inteiramente na fala criativa em ação). (Hampatê
Bã, 1982: 185)
2
A tradição bambara do Komo ensina que a palavra, Kuma, é uma força fundamental que emana do
próprio ser supremo, MaaNgala, criador de todas as coisas. Ela é instrumento da criação: “Aquilo que
Maa Ngala diz, é!”, proclama o cantre do deus Komo. “O mito da criação do universo e do homem,
ensinado pelo mestre iniciador do Komo (que é sempre um ferreiro) aos jovens circundados, revela-
nos que quando Maa.” Ngala (força infinita) sentiu falta de um interlocutor, criou o Primeiro Homem:
Maa [...] guardião do universo” (recebeu parte do poder da Mente e da Palavra) [...] Maa Ngala
ensinou a Maa, seu interlocutor, as leis segundo as quais todos os elementos do cosmo foram formados
e continuam a existir. Ele o intitulou guardião do Universo e o encarregou de zelar pela conservação
da Harmonia universal. (Hampatê Bã, 1982: 183-4).
30
A força da fala estimula o movimento de tudo que está estagnado. Como vimos, a fala
é a “materialização da cadência”. As tradições africanas agregam uma visão religiosa no seu
modo de ser. Em grande parte das culturas descendentes, estas verdades se confundem a
força primordial em movimento contínuo mantêm conectados todos os aspectos que se
referem ao cosmo sociedade do humano, o mundo animal, vegetal e mineral. Esta conexão
ocorre muitas vezes por meio do ritual, da magia que restaura a harmonia. É no instante
desses trânsitos mágicos que a força se instaura e transforma.
Hampatê (1982: 186) comenta que na Europa a palavra “magia” é comumente
compreendida no sentido negativo. Sabemos que atualmente para muitos é ainda tomada no
mau sentido. Na África, conforme reflexão do autor, refere-se a um controle de forças que,
dependendo da forma como é dirigida, poderá ser benéfica ou maléfica, boa ou má. A magia
boa, registra Hampatê Bã, “a dos iniciados” e “mestres do conhecimento”, tem como objetivo
a purificação do humano, animal e objetos, colocá-los em harmonia, restaurar o equilíbrio por
meio das forças da fala. A fala que segue a cadência rítmica da palavra e tecendo um ritmo e
um canto em direção a transformação:
Nas canções rituais e nas formulas encantatórias, a fala é, portanto, a
materialização da cadência. E se é considerada como tendo o poder de agir
sobre os espíritos, é porque sua harmonia cria movimentos, movimentos que
geram forças que agem sobre os espíritos que são, por sua vez, as potências
da ação. (Hampatê Bã,1982: 186)
Como agente vivo da magia, da transformação, do universo sagrado, a palavra deve
ser mantida na sua força original. Não se pode utilizá-la indevidamente para burlar, enganar,
mentir. As sociedades orais de tradição concebem a mentira uma “doença”, equivalente a uma
“lepra moral”. Os que faltam com a palavra na sociedade de tradição oral “matam sua pessoa
civil”, “religiosa” e “oculta”, ficam estigmatizados, marginalizados.
Tomamos o poema do canto ritualístico do Komo Didi de Kulikoro, no Mali:
A fala é divinamente exata,
convém ser exato para com ela.
A língua que falsifica a palavra
vicia o sangue daquele que mente.
Hampatê (1982: 187) desenvolve comentários fundando-se na letra da canção,
traduzindo os símbolos desta sociedade. Segundo ele, o sangue simboliza nesta canção a força
vital interior. No momento em que ocorre a mentira, esta força vital interna tem sua harmonia
perturbada, a mentira corrompe quem mente.
31
O pensar e o dizer estão conectados nas sociedades tradicionais, quando
ocorre o inverso, a pessoa provoca uma fratura em seu corpo. Ocorre uma
separação entre o que se pensa e a forma como age. Rompe as unidades
sagradas, reflexas da unidade cósmica, criando desarmonia dentro e ao redor
de si. (Hampatê Bã, 1982: 186-7)
Os “tradicionalistas”, considerados os “grandes depositários da herança oral” e
também testemunhas, memória viva da África, são traduzidos como generalizadores, pois têm
o conhecimento das ciências em geral, a ciência das plantas (propriedades de cada planta), a
ciência das terras (as propriedades agrícolas ou medicinais dos diferentes tipos de solo), a
ciência das águas, a astronomia, a cosmogonia, a psicologia, entre tantos outros. Um guardião
dos segredos da gênese do mundo, da ciência da vida visível e invisível aos olhos
racionalistas. Este tradicionalista arquiva em sua mente os acontecimentos passados e
presentes.
O autor classifica alguns mestres tomados como tradicionalistas: os “doma ou doma”
(conhecedores) em bambara; “donukeba”, os fazedores de conhecimento; os iniciadores ou
mestres iniciados em ramos de trabalho, como o ferreiro, o tecelão, o caçador, o pescador, os
grandes conhecedores e iniciadores, transmissores do conhecimento. Estes tradicionalistas,
perseguidos pelo poder colonial, eram alvos importantes para o poder europeu que se
implantava na África. Os tradicionalistas eram extirpados para cultivar a cultura dos
missionários, colonizadores que tentam transplantar uma outra cultura onde predomina a
visão cartesiana.
Estes tradicionalistas respeitam a verdade, pois a falta desta causaria uma “interdição
ritual”. Encontramos nesta reflexão aspectos importantes para pensar a organização da cultura
em debate. No momento em que ocorre a mentira por parte de uma pessoa responsável pela
transmissão (tradicionalista doma) do conhecimento, indiretamente todos são afetados. A
palavra não pode ser utilizada de forma indevida
3
.
Distanciada de práticas contemporâneas nas quais o conhecimento está fragmentado
por disciplinas, o conhecimento africano é transmitido por “histórias”. A grande história da
vida, segundo Hampatê Bã: “História das Terras, e das Águas (geografia), História dos
vegetais (botânica e farmacopéia) a História dos ‘Filhos do seio da Terra’ (mineralogia,
3
“Independentemente da interdição da mentira, ele pratica a disciplina da palavra e não a utiliza
imprudentemente. Pois se a fala, como vimos, é considerada uma exteriorização das vibrações de
forças interiores, inversamente, a força interior nasce da interiorização da fala”. (Hampatê Bã, 1982:
190).
32
metais), a História dos astros (astronomia, astrologia), a História das águas, e assim por
diante” (1982: 195).
Embarcando nas formas de apropriação do universo africano encontramos um
detalhamento a respeito de tradições. Hampatê relata que nas tradições (bambara e peul)
existem “classes de seres” com suas respectivas subdivisões
4
. Estas categorias dão ao homem
a condição simbiótica, o homem como um concentrador de todos os reinos, (humano, animal
e vegetal).
Um outro grande vetor da tradição oral que nos diz respeito são os ofícios tradicionais.
Uma vez que na sociedade de tradição africana as práticas humanas estão entrelaçadas ao
campo do “sagrado, do oculto”, a transmissão de conhecimento que é transferido de geração a
geração tem como ponto de partida uma “revelação inicial”. Ao manipular as matérias como o
ferro, os minérios, o couro, a madeira, o algodão, entre outros materiais, os homens são
“depositários de todos os processos de transformação”. Hampatê nos exemplos que
contextualizam estes ofícios, entre eles o tecelão:
[...] o tecelão, cujo ofício vincula-se ao simbolismo da Palavra criadora que
se distribui no tempo e no espaço. [...] Antes de dar início ao trabalho, o
tecelão deve tocar cada peça do tear pronunciando palavras ou ladainhas
correspondentes às forças da vida que elas encarnam. [...] O vaivém dos pés,
que sobem e descem para acionar os pedais, lembra o ritmo original da
Palavra criadora, ligado ao dualismo de todas as coisas e à lei dos ciclos [...]
a tira de tecido que se acumula e se enrola em uma bastão que repousa
sobre o ventre do tecelão representa o passado, enquanto o rolo do fio a ser
tecido simboliza o mistério do amanhã, o desconhecido devir. [...] No total,
o trabalho do tecelão representa oito movimentos de vaivém (movimentos
dos pés, dos braços, da naveta e o cruzamento rítmico dos fios do tecido)
que correspondem às oito peças as oito peças da armação e às oito patas da
aranha mítica que ensinou sua ciência ao ancestral dos tecelões. Os gestos do
tecelão, ao acionar o tear, representam o ato de criação e as palavras que lhe
acompanham os gestos são os próprios cantos da vida. (1982: 197)
As pessoas da pessoas são numerosas dentro da pessoa. [...] A relação do
homem tradicional com o mundo era, portanto, uma relação viva de
participação e não uma relação de utilização. É compreensível que, nesta
visão global do universo, o papel do profano seja mínimo (1982:199)
4
“Na parte inferior da escala, os seres inanimados, os chamados seres “mudos”, cuja linguagem é
considerada oculta, uma vez que é incompreensível ou inaudível para o comum dos mortais. Essa
classe de seres inclui tudo o que se encontra na superfície da terra (areia, água etc.) ou que habita o seu
interior (minerais, metais etc.). Dentre os inanimados mundos, encontramos os inanimados sólidos e
gasosos (literalmente fumegantes) [...] No grau médio, os “animados imóveis”, seres vivos que não se
deslocam. Essa é a classe dos vegetais, que podem se estender ou se desdobrar, no espaço, mas cujo pé
não pode mover-se. Dentre os animados, imóveis, encontramos as plantas rasteiras, as trepadeiras e as
verticais, estas últimas constituindo a classe superior. [...] Finalmente, os “animadores móveis”, que
compreendem todos os animais, inclusive o homem. Os animados móveis incluem os animais
terrestres (com ou sem ossos), os animais aquáticos e os animais voadores.” (Hampatê Bã, 1982:?)
33
Estes mestres “depositários da transformação”, responsáveis pela manutenção do
conhecimento das “ciências ocultas” e saberes especializados, convivem com os mestres
mantenedores da “forma poética de comunicação”, termo utilizado por Zumthor (2000) ao
referir-se a performance. Estes mestres da poética são os animadores públicos ou, como
menciona A. Hampatê (1982), os griots, os menestréis, uma espécie de trovadores. Estes
agentes da poética musical divulgam as formas de expressão da cultura, amplamente
demonstrada em aula por Mukuna (2008). Os divulgadores e mantenedores da sociedade oral
preservam a sabedoria por meio do testemunho transmitido oralmente. Outro aspecto que a
tradição oral agrega é a escuta que compõe não com base na afinação das vozes, mas na
revelação das diferentes possibilidades sonoras. Distanciada da concepção que distingue
vozes e as enquadra em alturas definidas, como é a cultura ocidental, que classifica as vozes, a
beleza da cultura de tradição africana está na improvisação vocal das diferenças.
As “paisagens sonoras (Shaffer, 2001) captadas durante a escuta das tradições
africanas e tradições afro-brasileiras dos terreiros de candomblé e Candyall (casa de
espetáculo) nos remeteram às matrizes de cantos (Mukuna) cujo contexto são narrativas
mitológicas, mas também orações que ligam o pensamento ao corpo. A cada dança de um
orixá em uma festa pública, o iniciado entra em contato com um universo sagrado em tempo
real. A nossa escuta não se limita à música, mas tenta alcançar as narrativas reveladas pelo
corpo que dança. Estas anunciam que muitos corpos buscam passagem para outras formas de
existir, ou podemos dizer que estes corpos (nós) buscam relembrar por meio dessas práticas
da tradição oral a forma real de existir.
Partimos da discussão das primeiras referências do candomblé, datadas do século XIX,
que receberam maior influência das tradições africanas-ocidentais: a jejê ou daomeana, dos
cultos dos voduns; e a ioruba ou nagô, dos cultos dos orixás. A população mantinha suas
expressões religiosas e marcava também as diferentes nações. Após a fase de primeiros
contatos com as músicas próximas do candomblé, começamos a selecionar as músicas
originais que tocam nos ritos, identificando assim as várias células rítmicas que são utilizadas
nos rituais, em que cada santo tem uma melodia e uma harmonia para os ritmos, os quais não
se assemelham. Acrescentamos que para a compreensão do candomblé da Bahia investimos
nas leituras de Roger Bastide (2001), que descreve os rituais ocorridos na primeira metade do
século XX, entre outros autores, também coletamos informações entrevistas, documentários e
formamos um conteúdo que nos facilitou as escutas nas ruas de Salvador, nos terreiros de
candomblé e nas danças de Carlinhos Brown e o Timbalada.
34
Um terceiro momento que ressaltamos nesta parte que se refere à metodologia
caracteriza-se pelas leituras de Nestor Garcia Canclini discutidas nas orientações do grupo e
que facilitaram a análise da população das comunidades que estão em processos de misturas
culturais; as populações que vivem em comunidades antes cristalizadas e que se misturam
com aquelas que circulam nas metrópoles globalizadas. O que resulta dessa miscigenação, um
interesse fundamental para o nosso trabalho, partindo-se do pressuposto que no processo
comunitário tudo passa pelo corpo a música brida, os ritmos das tradições que se juntam
aos ritmos da contemporaneidade –, mostrou-se de especial relevância para nossas discussões.
Acrescentamos que o conhecimento a respeito da história e da formação do povo
brasileiro teve como fonte de pesquisa as exposições e o acervo bibliográfico do Museu Afro-
Brasil de São Paulo. Realizamos entrevistas com filhos de santo com o objetivo de construir
um caminho a respeito do que pode o corpo. Esclarecemos que o interesse nessa metodologia
é armazenar as diversas experiências corporais desses iniciados que vêem nesses ritos
possibilidades de reinvenção. Assim, o presente texto está organizado de forma a permitir
uma performance que exponha a corporeidade como território de misturas de sentidos, de
expansão do corpo por meio da dança, pois “A dança reina antes da linguagem, como música
do corpo”, como atesta Serres (2001: 330), não de significados, pois os significados não nos
levam ao corpo todo; alcançam apenas o pensamento. A filosofia dos corpos misturados nos
propõe um corpo humano definido e capaz de realizar todas as metamorfoses possíveis, caso
isto não ocorra, deve-se imitar ou simular (Serres, 2004).
Vale lembrar que o método cartográfico Martín-Barbero (2004) foi fundamental para
capturarmos os “trajetos e devires (Deleuze (1997) das performances de rua, as danças e
coreografias ritualísticas, que sob a liderança das paisagens sonoras predominantes nos
terreiros eletrônicos e religiosos preenchiam os espaços entrelaçando e produzindo novos
sentidos. Tentamos detectar indicativos e material para colocarmos em estudo, buscamos nos
aspectos de “intensidade” Deleuze (1997), as emoções, as incorporações, as transformações
do corpo. Ao captar o método cartográfico (Martín-Barbero) para entender os trajetos e
performances do corpo, retomamos os mapas que expunham as tramas dos novos modos de
produzir mediante as transformações comunicacionais e os deslocamentos da cultura de
tradição frente aos processos de globalização econômica e informacional. O corpo, território
por onde transita a cultura de um povo, processa as mudanças, as mediações, na interface com
as culturas de tradição reinventa as performances. Na arte de inventar o cotidiano (Certeau)
apropria-se da realidade, a realidade é narrada com registros das tradições, dos mitos, muito
35
comum nas narrativas de Carlinhos Brown e filhos de santo que elegem seus orixás para
justificar seus atos presentes, suas formas de dançar e articular a vida cotidiana.
Ainda na esfera das metodologias, buscamos em Mario de Andrade, um dos caminhos
sugeridos por Oliveira em Colonizadores do futuro, outras pistas que apontassem invenções
na maneira de olhar a cultura. Encontramos a invenção do olhar brasileiro diante das
manifestações rurais e urbanas que eram questionadas sob a luz da modernidade dos anos 30
no Brasil. Destacamos do referido estudo, as relações de poder em conexão com os valores e
símbolos da sociedade brasileira (Estado e Cultura), as investigações e reflexões em torno da
cultura popular e estudos folclóricos nos quais o modernista Mario de Andrade expõe seus
primeiros passos nas observações acerca das danças, das coreografias, das músicas e
instrumentos utilizados pelos manifestantes, nos quais tenta captar e detalhar sua escuta. A
descrição das performances de Carlinhos Brown serão apresentadas neste trabalho, assim
como um glossário de nomenclaturas dos instrumentos utilizados nas performances populares
e religiosas.
Vale lembrar que o método cartográfico Martín-Barbero (2004) foi fundamental para
capturarmos os “trajetos e devires” Deleuze (1997) das performances de rua, as danças e
coreografias ritualísticas, que sob a liderança das paisagens sonoras predominantes nos
terreiros eletrônicos e religiosos preenchiam os espaços entrelaçando e produzindo novos
sentidos. Tentamos detectar indicativos e material para colocarmos em estudo, buscamos nos
aspectos de “intensidade” Deleuze (1997), as emoções, as incorporações, as transformações
do corpo.
Para justificar o título do trabalho Santo corpo profanado utilizamos as referências de
Pratt (1999) para o processo de profanação que se desenvolveu no século XVIII nas investidas
de dominação por parte da população européia. A sacralização aparece na cultura da
oralidade, quando o corpo território de fluxos e força é lembrado no seu cotidiano.
Para tanto, esta tese subdivide-se em três capítulos:
No primeiro capítulo apresentamos a “Ilha do espetáculo” na qual testemunhamos os
deslocamentos dos rituais de tradição, movimentos e ritmos das novas tendências culturais do
mundo contemporâneo.Tentamos entender as performances elaboradas pelo artista Carlinhos
Brown e os músicos da banda Tímbalada na diversidade das matrizes que os formataram, nos
seus processos de apropriação da cultura local e global, nas trocas simbólicas e econômicas,
na relação com as mudanças provocadas pela projeção artística conquistada em território
nacional e internacional.
36
Comparamos a corporeidade destes a um texto no qual podemos refletir as
potencialidades da tradição oral, do corpo simbiótico, das singularidades provocadas na busca
de uma possibilidade de reinvenção e não simulação do corpo. Capturamos destas
coreografias uma das fontes que entendemos ser relevante para nossa investigação, as danças
dos orixás.
Na seqüência destas investigações, trazemos para o Segundo capítulo tentamos nos
aproximar das práticas de ritualização
do corpo, de diversos filhos-de-santo, narrativas a
respeito das metamorfoses, dos processos de transformação do humano em divino, do humano
em animal, da integração do corpo. Ressaltamos os depoimentos dos ritos de cura e
purificação que propiciam essas transformações. As danças dos deuses e de seus filhos que
são permeadas de simbologias que legitimam a comunidade religiosa e tornam seus corpos
presenças atualizadas. Essas simbologias são absorvidas nas misturas que estabelecem as
culturas populares e religiosas, processos que identificamos na comunidade do Candeal
Guetho Square, nas danças de rua, nos terreiros religiosos.
O terceiro capítulo trata de um olhar sobre a des-ritualização do corpo no processo
sócio-histórico. Desenvolvido primeiramente com a reflexão da corporeidade apresentada por
Marcel Mauss, que partiu dos ensinamentos de Durkheim e agregou ao conceito de “fato
social”, uma visão ampliada, que é reconhecido como “fato social total”. De forma
interdisciplinar observava as inúmeras possibilidades do corpo.
Le Breton (2006), nos deu o suporte para a reflexão sobre o corpo no contexto
sociológico e apresentou novas possibilidades de abordagens conceituais para a construção do
corpo na modernidade. O autor refez os caminhos por outros campos do conhecimento para
reflexão a respeito da corporeidade sob o ponto de vista da ciência da sociologia, que nasceu
junto às mudanças sociais do século XIX. Trouxe os primeiros teóricos que deram voz ao
corpo e apontou para as transformações do corpo comunitário em individual. Cavamos nesse
momento as origens do corpo individualizado e mecanizado que se submete aos experimentos
dos novos processos de disciplina e controle. Contrapomos a essa discussão a volta da
complexidade dos sentidos, a nossa sensibilidade que sempre reage às danças, aos ritmos.
37
CAPÍTULO 1 – CORPO E PERFOMANCES
1.1. A “ilha” do espetáculo
5
O movimento na “ilha” era intenso, os raios do sol refletiam cores avermelhadas sobre
o horizonte enquanto entardecia, os nativos e não-nativos ajeitavam-se ao redor do terreiro
eletrônico a céu aberto e tentavam o melhor foco para testemunhar
6
o ritual que estava por
acontecer. Os sons percutidos dos tambores entram em cena, com os toques quase divinizados
junto aos agogôs que marcam a base rítmica dos cantos. Entre as chamadas e respostas, como
nas canções de trabalho, conhecido como “canto responsorial”, homens e mulheres de corpos
pintados chegam dançando, e centenas de pessoas aproximavam-se atraídos pela sonoridade.
Muitos corpos mobilizados pela ressonância dos sons e ruídos graves aglutinam-se,
misturando-se ao redor do espetáculo.
A cada batida na pele do tambor vibravam as vozes que chamavam para a cerimônia e,
num movimento de sutil expansão da iluminação artificial, visualizávamos alguns corpos que
se diluíam, misturavam-se aos focos luminosos que incidiam sobre eles. Contagiados pelas
vibrações ora graves dos tambores, ora agudas dos instrumentos de sopro, estimuladas pelos
ritmos mais vigorosos e cortantes ou contínuos dos tambores, os gestos dos não-nativos,
afetados pelas ondas sonoras, imitavam performances do corpo, expressões sutis quase
5
“O mundo imaginário não é mais apenas consumido sob forma de ritos, de cultos, de mitos
religiosos, de festas sagradas nas quais os espíritos se encarnam, mas também sob forma de
espetáculos, de relações estéticas.” Morin (1997:79).
6
Segundo A. Hampaté Ba (1982: 181-2), “o testemunho, seja escrito ou oral, no fim o é mais que
testemunho humano, e vale o que vale o homem. [...] Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no
decorrer dos séculos como no próprio indivíduo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do mundo
foram o rebro dos homens. Antes de colocar seus pensamentos no papel, o escritor ou o estudioso
mantém um diálogo secreto consigo mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos
tal como lhes foram narrados ou, no caso de experiência própria, tal como ele mesmo nos narra. [...]
Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade mais fidedigno do que o
testemunho oral transmitido de geração a geração. As crônicas das guerras modernas servem para
mostrar que, como se diz (na África), cada partido ou nação ‘enxerga o meio dia da porta de sua casa’
através do prisma das paixões, da mentalidade particular, dos interesses ou, ainda, da avidez em
justificar um ponto de vista. Além disso, os próprios documentos escritos nem sempre se mantiveram
livres de falsificações ou alterações, intencionais ou não, ao passarem sucessivamente pelas mãos dos
copistas fenômeno que originou, entre outras, as controvérsias sobre as ‘Sagradas Escrituras’ [...] O
que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio valor do homem que faz o testemunho,
o valor da cadeia de transmissão da qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e
coletiva e o valor atribuído à verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligação entre o
homem e a palavra.
38
invisibilizadas. Entre o virtual e o atual havia uma mistura, tempos múltiplos imperavam. Era
o tempo de indeterminação da música. As sensações e emoções transbordavam e tomavam o
espaço do “corpo inteiro”; num processo de metamorfose, absorvia, processava, expulsava em
imagens e gestualidades
7
.
As ondas vibrantes dos tambores impulsionavam um movimento continuum,
intensificando as passagens, tornando o “corpo presente”, aproximando-o e religando-o na
sacralidade em dia de santo, no sacrifício do ruído em prol do som e a transformação deste
som em música de oferenda e consagração de uma divindade.
É nesse momento de total intersubjetividades que aparece na multidão, no espaço mais
alto do terreiro tecnologizado, uma cena mítica. Surge à sombra, metade homem metade
touro, o minotauro, vestimentas da contemporaneidade reciclada, luzes no lugar de orelhas,
um mito-tecno, uma imagem que reverberava cantos de um índio xamã. Relembramos nesse
momento a concepção dos reinos da vida no universo africano mencionado por Hampatê
(1982), as possibilidades simbióticas conjugadas no homem.
Na espacialidade multitemporal, no qual tempo e espaço se misturam, o pulsar para
estes lados do Atlântico evocava uma paisagem plástica e sonora de tradições seculares, que,
adaptadas na diáspora, resultaram em práticas cuja fonte pode ser encontrada no candomblé
(religião), nos ritmos assimilados e reapropriados pela cultura brasileira, como o funk, o soul,
o samba-reggae.
Esculpidos na “vocalidade” do sagrado, a figura mítica no cenário de grande
entusiasmo dos não-nativos teatraliza não a figura do minotauro, mas em outros momentos
também se apresenta revestido de índio, relembrando as tradições em que grande parte da
população que estava à margem da sociedade se transformava em índio, personagem
7
Ondas sonoras: “[...]sinal oscilante e recorrente, que retorna por períodos (repetindo certos padrões
no tempo). Isto quer dizer que, no caso do som, um sinal nunca está só: ele é a marca de uma
propagação, irradiação de freqüência. [...] Para dizer isso, podemos usar uma metáfora corporal: a
onda sonora obedece a um pulso, ela segue o princípio da pulsação. Bem a propósito, é fundamental
pensar aqui nessa espécie de correspondência entre as escalas sonora e as escalas corporais com as
quais medimos o tempo. Porque o complexo corpo/mente é um medidor freqüencial de freqüências.
Toda a nossa relação com os universos sonoros e a música passa por certos padrões de pulsação
somáticos e psíquicos, com os quais jogamos, ao ler o tempo e o som. No nível somático, temos
principalmente o pulso sanguíneo e certas disposições musculares (que se relacionam sobretudo com o
andar e suas velocidades), além da respiração. A terminologia tradicional associa o ritmo à categoria
do andamento, que tem sua medida média no andante, sua forma mais lenta no largo, e as indicações
mais rápidas associadas já à corrida efetiva do allegro e do vivace (os andamentos se incluem num
gradiente de disposições físicas e psicológicas). Assim, também, um teórico do culo XVIII sugeria
que a unidade prática do ritmo musical, o padrão regular de todos os andamentos, seria ‘o pulso de
uma pessoa de bom humor, fogosa e leve, à tarde [...]’” (Quartz apud Wisnik,1989: 17).
39
freqüente nas primeiras décadas do século XX (serviam de bandeira de luta dos iguais, para os
dançarinos afro-brasileiros de rua em tempo de carnavalização).
Seguimos uma cultura que inventa e reinventa o cotidiano, que se apropria
corporalmente da realidade contemporânea mas também agrega as suas tradições sagradas,
cria um campo de negociação entre os pólos local e global. Não exclui as tradições e
influência, mas mantém o vínculo ao elaborar a sua arte. Estiliza o fazer musical, e, com fonte
nas tradições, insere, readapta a cultura em sua prática, popularizando-a nas performances de
rua e de mídia.
Estas foram as nossas primeiras impressões da produção do artista multifacetado
Carlinhos Brown acompanhado pela banda de timbaleiros, mais conhecido como Timbalada
em dia de “espetáculo”. Os espetáculos que pudemos viver e observar no Candyall Gueto
Square aconteceram em 2003 e 2004.
O termo espetáculo, fundamentado nas reflexões de Morin (1997: 77) é uma das
formas de expressão que na concepção do autor, revela-se como uma das características da
cultura de massa no lazer moderno. O espetáculo possibilita uma efervecência do imaginário.
O texto que construímos até este parágrafo é um exemplo de nossas primeiras impressões
acerca da Candeal Guetho Square que denominamos “Ilha do espetáculo”. As sensações ao
nos depararmos com o acontecimento, o show-ensaio, foram descritas nas fronteiras do
imaginário e do real, uma “dupla consciência”, Morin (1997:77) esclarece que é por
intermédio do “estético” que se realiza o consumo imaginário. Diferencia o estético de outras
práticas, mas não descarta a possibilidade de justaposição de uma estética agregada a uma
situação prática do cotidiano ou algo utilitário como o automóvel que também poderá ser
objeto de desejo ou de veneração. Seguimos as reflexões do autor:
A relação estética reaplica os mesmos processos psicológicos da obra na
magia ou na religião, onde o imaginário é percebido como tão real, até
mesmo mais real do que o real. Mas, por outro lado, a relação estética
destrói o fundamento da crença, porque o imaginário permanece conhecido
como imaginário. (Morin, 1997: 77)
A reificação do imaginário acontece por intermédio da religião e da magia, também
seus desdobramentos em forma de mitos, deuses, da arquitetura sacralizada das igrejas e dos
monsoléus dão a permanência e continuidade a temporalidades. Considerando as reflexões de
Morin (1997: 78) no que concerne à estética, esta reificação não se realiza, o que se
desenvolve é uma relação ampliada do humano. Acompanhamos aqui um detalhamento
construído pelo autor na atuação ao que se chama de imaginário:
40
O imaginário é o além multiforme e multidimensional de nossas vidas, no
qual se banham igualmente nossas vidas. É o infinito jorro virtual que
acompanha o que é atual, isto é singular, limitado e finito no tempo e no
espaço. É a estrutura antagonista e complementar daquilo que chamamos
real e sem a qual, sem dúvida, não haveria o real para o homem, ou antes,
não haveria realidade humana. [...]. O imaginário é um sistema projetivo que
se constituiu em universo espectral e que permite a projeção e a
identificação mágica, religiosa ou estética. (Morin, 1997: 80)
Na comparação entre comunicação gico/religiosa e comunicação estética,
entendemos que a primeira “ecoa” sobre a vida, enquanto na segunda, evidencia-se por
intermédio de regras, o que não impede a realização de um movimento de aproximação dos
afetos, das intersubjetividades, o despertar de matrizes e aspectos das tradições que estão na
memória do corpo.
As cartografias iniciais realizadas no Gueto suscitaram o olhar sobre um território
atravessado por matrizes culturais que revelavam “experiências iniciatórias” que sob as lentes
benjaminianas, tornaram-se ausentes na vida moderna. (Benjamin,1989: 243). No território
(Guetho) em discussão evidenciava-se a mediação de uma estética das tradições do
candomblé com o público de mais de duas mil e quinhentas pessoas que entravam no pulso
dos tambores, das danças contínuas que circundavam o palco dos artistas.
As diferentes forças que atuam no contexto pesquisado são compostas de nativos, não
nativos, trabalhadores, cidadãos, grandes empresas, patrocinadores, organizações não
governamentais, “culturas” que se interpenetram, resultando em misturas, mestiçagens que
possibilitam outros olhares, outros caminhos. Downuing (2002: 13) nos coloca em contato
com novas perspectivas teóricas para analisar a experiência que observamos (Salvador), na
organização espontânea dos eventos de rua, nas danças, nas canções. Anterior a discussão a
respeito da dança, enfatizamos uma observação realizada pelo autor e que se refere a uma
realidade encontrada em muitos dos nossos entrevistados, a “dança como forma de
comunicação” o corpo que comunica. Muitos “pensam a dança como algo que as pessoas
fazem nas festas para relaxar ou exibir sensualidade, ou como arte (associada ao balé
europeu).” Na sequência, Downuing (2002: 164) lança uma questão: “Como é possível que a
dança seja comunicação se não envolve palavras e, às vezes, nem mesmo música?” Tenta
responder a pergunta através de suposições. [...] a suposição que arte é uma coisa, e
comunicação, é outra. Há suposição de que a linguagem corporal não é comunicação. a
suposição de que o prazer, o relaxamento e a expressão sexual não se misturam com a arte”
Downuing (2002: 164).
41
Continua sua reflexão a respeito do corpo como “comunicação alternativa” ao retomar
os processos de escravidão dos afro-americanos e suas práticas da dança. “Durante os séculos
de escravidão, a dança era uma espécie de meio alternativo entre os afro-americanos. [...] foi,
por muitas razões, uma forma particularmente importante de comunicação. [...] continuidade
de uma cultura que lhes era negada, [...] uma performance da memória política.” Downuing
(2002: 164-165)
Com relação ao estilo das danças realizadas pelas tradições africanas, descritas na obra
do pesquisador, vimos que as tradições afro-brasileiras seguem semelhantes padrões. Uma
estética de dança interativa, quase não uma distância entre os dançarinos e platéia, nas
ruas, os dançarinos se misturam aos que transitam no local. Detalhando os movimentos
corporais, Downuing (2002) esclarece as diferenças da cultura popular em oposição à cultura
de elite, no caso a dança européia. O ponto de apoio do corpo, nas danças de tradição africana
são os quadris, enquanto na dança européia é geralmente o esterno. Na sequência de
observações e comparações entre culturas, enfatiza que a atenção do dançarino africano volta-
se para o corpo inteiro. Um dos destaques com relação as suas análises diz respeito ao corpo
“propriedade dos senhores” em tempos de escravidão. Ao imprimir seus ritmos nas danças de
tradição européia, retomavam a sua existência corporal, sua memória cultural.
As reflexões abordadas na obra Mídia Radical, aproximam-se do que vimos nas
comunidades pesquisadas. Ao acompanharmos as práticas performáticas, pudemos constatar
que as danças são expressões elaboradas no interior das comunidades, sem qualquer
obrigatoriedade com o universo da arte, das regras externas. O estreitamento das culturas
religiosa com a cultura popular e simultaneamente a mestizaje (populares e hegemônicos)
contribuíram para o surgimento de culturas que podem ser exemplificadas na estética de
Carlinhos Brown.
Nossas investigações de campo iniciais no Candeal Pequeno de Brotas (bairro) foram
realizadas durante a semana. Portanto, não havia quase movimento além dos moradores do
bairro e crianças que brincavam pela rua sob olhares das pessoas que paravam em um
pequeno comércio para trocar algumas palavras com a comerciante. Enquanto ela vendia
sorvetes e balas para as crianças, acompanhava os acontecimentos do pedaço, sabia quem
chegava e quem saía, quem era quem e onde morava.
Primeiramente percorremos o bairro acompanhando as formas com as quais a
população local foi se apropriando dos territórios, os aclives e declives das ruas, algumas sem
saneamento básico, pequenos comércios, “puxadinhos” que serviam de cobertura para
algumas mesas e cadeiras onde se vendiam bebidas, sorvetes. Continuamos a caminhada e
42
chegamos ao Candyall Guetho Square, onde se realizavam os shows/ensaios de Carlinhos
Brown, a banda Timbalada, convidados nacionais e internacionais.
Ao chegarmos ao local, nos deparamos com as demarcações quase totêmicas que
detém secreta e invisivelmente os segredos de seu território, suas regras e leis. Fomos nos
aproximando do espaço onde se realizam as apresentações dos artistas. As cores fortes em
verde e amarelo formavam uma composição de desenhos geométricos cobrindo as paredes
externas da construção, expunham muitos dos símbolos e concepções dos fundadores do
local. Guerreiro sintetiza sua impressão:
O Guetho Square é também um espaço eclético onde se misturam símbolos
do imaginário pop contemporâneo. De construção irregular, o prédio exibe
no alto um grande olho de formas egípcias, no interior arcos orientais
conduzem ao tio interno onde esculturas metálicas desenham timbaleiros
futuristas e as árvores têm tambores como frutos. A idéia de
entrecruzamentos culturais se expressa também na proposta musical dos
grupos envolvidos [...]. (2000: 172)
Após este primeiro contato visual, aproximamos-nos do portão principal. Os
seguranças apostos do lado de fora do Candyall Guetho Square (casa de espetáculo)
aguardavam a passagem de algumas pessoas, inclusive a nossa. Quem nos havia conduzido
até o local conhecia boa parte dos moradores do bairro, conversou com alguns deles.
Percebíamos que a comunicação entre as pessoas do bairro e a que nos conduziu já era antiga.
Em alguns momentos da pesquisa de campo nos damos conta de que quem chega de fora é o
tempo todo observado. Quando nos foi permitido entrar no território de shows e espetáculos,
nos encaminharam para uma primeira sala.
Ao entrar no território do Guetho, uma construção em alvenaria, percebemos
inicialmente na parte externa um espaço comum. Ao abrirem as dependências internas da
casa, esta estava decorada com santos, flores e todos os objetos de um espaço sagrado,
semelhante a um terreiro de candomblé. Qual não foi a surpresa naquele momento quando nos
deparamos com essas informações, pois voltamos para um novo direcionamento da pesquisa,
uma vez que a influência das tradições dos afro-descendentes estavam expostas não na
música, nos ritmos, mas também na concepção do local. Era na fonte das tradições religiosas
de afro-descendentes que os criadores do espaço se sustentavam.
Enquanto observávamos o território, algumas pessoas encarregadas da organização
entravam e saíam com equipamentos de som, de limpeza; outras lavavam o pavimento que
43
dava acesso ao espaço dos shows. O esforço era geral para que no domingo estivesse pronto
para o novo show-ensaio. Passamos então para o espaço seguinte.
Nesse momento nos foi possível visualizar o espaço sagrado. Logo que atravessamos
de uma sala para outra, percebemos que os batentes da casa estavam todos adornados com
franjas de palha utilizadas nos centros religiosos de candomblé, conhecidos como mariô
8
.
Sabemos que é um adorno utilizado para retirar do corpo “elementos maléficos”, impurezas,
uma proteção mágica quando as pessoas passam sob as portas. Também marca a fronteira
entre o exterior e o interior da casa, bloqueia a possibilidade de que mortos venham conviver
com os vivos. Van Gennep, um clássico dos estudos dos ritos de passagem, considera
“atravessar a soleira” a entrada em um mundo novo. Neste caso encontrado é o “rito de
purificação” (1978: 37).
Ao passar sob o mariô, avistamos a imagem de uma santa católica que também é
reverenciada no universo dos cultos aos orixás, a Santa Bárbara. Instalada abaixo de um
cortinado branco e rodeada de flores, a santa dos cultos cristãos na cultura da diáspora
transforma-se em Iansã-Oiá, deusa guerreira. Oiá, segundo Prandi (2001: 22), “dirige o vento,
a tempestade e a sensualidade feminina. É a senhora do raio e a soberana do espírito dos
mortos, que encaminha para o outro mundo”.
Na sala seguinte avistamos a imagem de São Jorge, conhecido no candomblé como
Ogum, filho de Oxalá e Iemanjá, hábil na arte de caçar e abrir os caminhos. Conforme Prandi
(2001: 21), “ogum governa o ferro e a metalurgia, a guerra. [...] dono dos caminhos, da
tecnologia e das oportunidades de realização pessoal”.
Algumas paredes da casa viram suporte de textos poéticos cujo conteúdo exibe
evocações de mitos africanos, letras de música da banda Timbalada. Nesse espaço que exala
8
Mariô. (s.m.). O mariô, folha geralmente nova e tenra do dedenzeiro desfiada artesanalmente, está
pronto para um dos mais importantes usos do verde na ética religiosa dos terreiros, especialmente nos
Candomblés. Fazer mariô é atividade masculina e inclusive crianças poderão fazê-lo. Não nenhum
cunho cerimonial específico para esse trabalho; entretanto, a colocação dos mariôs nos diferentes
locais é tarefa que exige maior compreensão do seu uso. São pessoas adultas e ocupantes de cargos no
terreiro que orientam o trabalho ou mesmo colocam os mariôs. O mariô é uma espécie de atestado de
proteção e confirmação da própria árvore sagrada, o dendezeiro, tão sabiamente uma fonte da vida
material e simbólica dos orixás, voduns e Inquices, sendo uma das principais folhas de axé. É comum
existirem mariôs nas portas e janelas dos prédios públicos ou privados dos terreiros. Justamente na
entrada, locais que se comunicam com o espaço não-sagrado (exterior), o mariô marca uma divisa e
distintivo da ação e proteção mágica, impedindo a entrada dos malefícios e principalmente que os
mortos venham conviver com os vivos. Para a organização religiosa dos Candomblés e Xangôs, são
muito bem definidos o mundo dos Orixás/vivos e dos eguns/mortos, o que impõe divisões muito
nítidas, tanto para os rituais como para as convivências de dois setores, a princípio opostos, mas que se
unem nos mesmos fundamentos de ancestralidade remota africana e outra próxima, de fundo e forma
afro-brasileira” (Lody, , 2003:128).
44
tradição, exala também o poder e a força da cultura ancestral. O sagrado é transportado para o
profano, torna-se público e socializa a profanação, uma vez que não se trata de um terreiro de
candomblé, mas um espaço onde se realizam os shows dos músicos populares.
Continuando nossa peregrinação no interior do “templo” sagrado, este abre-se para
uma ampla quadra, onde acontecem os ensaios. um palco circular sob a copa de uma
grande árvore, como a imagem de um baobá, com alguns tambores coloridos pendurados,
sinos, sinais de trânsito, alguns quiosques de bebidas espalhados pelo terreno, outdoor de
empresas patrocinadoras dos eventos.
A realidade estética de Carlinhos Brown nos chamou a atenção. Sua prática de
reciclagem fica explícita em sua roupagem, na elaboração de acessórios, na reutilização de
panelas, tambores, bacias, latas, material essencial na construção de instrumentos percussivos,
adereços (como colares de lacres de latas de refrigerante e cerveja, tampas de garrafas). Os
usos que faz dos objetos reflete o uso que faz das tradições: recicla sempre, junta e emenda
palavras, cria ritmos com as onomatopéias, faz do som das palavras inspiração para novas
letras.
1.2. A festa no Guetho
Saímos do local e nos encaminhamos ao bairro onde estavam vendendo as entradas
para o ensaio do Guetho que aconteceria no final de semana seguinte. No valor de 40 reais em
2003, me perguntei como a população do bairro freqüentava essa festa? Não havia acesso
livre para os moradores?
No domingo, fizemos o mesmo trajeto do dia em que fomos conhecer o local. Quando
fomos nos aproximando, o lugar estava quase intransitável. Era grande o movimento, não
da população, que aos domingos fica em casa, pois é um dia em que operários descansam,
mas para quem mora no Candeal Pequeno de Brotas o dia é de bastante trabalho. Muitos dos
moradores montavam suas pequenas barracas de pratos com frutas harmonicamente
redesenhadas e tentavam faturar o que era possível no local. O diálogo entre a cultura do
bairro e a cultura dos de “fora” era estabelecido por meio do comércio informal.
Além do sobe-e-desce dos morros, havia a movimentação dos turistas que chegavam e
se juntavam em grupos, enquanto crianças e jovens das vizinhanças não tinham a cadeira
cativa ou entrada garantida como os não-nativos. Em algumas falas e descrições sobre o local
menciona-se que os moradores (alguns) recebem uma porcentagem de entradas para o show,
mas esta entrada é vendida. Muitos nativos, na falta dessa possibilidade, improvisavam seus
45
lugares em cima de muros, das árvores do quintal vizinho que rodeava o terreiro, em
construções que estavam na fronteira do Candyall Guetho Square e persistiam durante todo o
espetáculo sonhando com uma aproximação com seus ídolos e de um dia estar como
percussionista, pois é este o desejo de jovens que freqüentam as escolas de educação musical
e dos projetos sociais do bairro.
O marketing das empresas de telecomunicações e bebidas infiltra-se pelo espaço
público, distribuindo lenços e tatuagem colante que imitam os desenhos do Timbalada aos
jovens que aguardam o horário de entrada no show de Carlinhos Brown. Essas empresas
fazem seu merchandising com meninas e meninos brancos bem-tratados, que circulam pelas
ruas entre ambulantes nativos que se esmeram artisticamente na decoração de suas barracas e
ao mesmo tempo cuidam de suas crianças que brincam ao redor. As baianas de acarajé
investem em seus adornos e temperos. Algumas utilizam-se de improvisadas caixas de isopor
com cerveja, batidas artesanais, refrigerantes. O guardador de carros, as barreiras de
seguranças, todos se misturam a estruturas das empresas multinacionais que espalham
representantes propagando seus produtos pelas ruas que rodeiam o terreiro eletrônico. Todos
trabalham em prol da realização do show para o dia de lazer dos não-nativos. O mercado
cultural que ali se instala é uma vitrine das diferenças sociais construídas na diáspora. O
jovem da região que não tem condições financeiras para pagar o alto custo da entrada instala-
se em construções inacabadas nas lajes dos prédios e casas inacabadas que rodeiam o
Candyall Guetho Square, enquanto o turista ou jovens com mais poder aquisitivo tem lugar
garantido.
Mas esta realidade é recente nas terras do Candeal. A cultura do lazer que se
desenvolvia no bairro anterior ao sucesso de Carlinhos Brown e Timbalada é descrita por
Lima (2001:10) “O lazer no Candeal era o bate-papo, o jogo de dominó, o futebol, a cerveja
em casa com os amigos ou nos bares locais, o pagode em um bairro vizinho, televisão e a
música baiana tocada nas rádios, que quase nunca compravam discos. Não havia grandes
expectativas por um futuro melhor”.
Na cultura moderna de lazer, o consumo toma o espaço livre que predominava nas
culturas tradicionais. É o “autoconsumo da vida” (Morin, 1997). O consumo pode ser
entendido hoje numa perspectiva de possibilidades e acessos a tecnologia informatizada, a
qualidade de vida, conforto. Na concepção de Morin (1997: 69):
46
O lazer moderno surge, portanto, como o tecido mesmo da vida pessoal, o
centro onde o indivíduo procura se afirmar enquanto indivíduo privado. É
essencialmente esse lazer que diz respeito à cultura de massa; ela ignora os
problemas do trabalho, ela se interessa muito mais pelo bem-estar do lar do
que pela coesão familiar, ela se mantém à parte (se bem que possam pesar
sobre ela) dos problemas políticos ou religiosos. Dirige-se às necessidades
da vida do lazer, às necessidades da vida provada, ao consumo e ao bem-
estar, por um lado, ao amor e à felicidade, por outro lado. O lazer é o jardim
dos novos alimentos terrestres.
A cultura do lazer que se desenvolve no Candyall Guetho Square permite-nos destacar
que não é um acesso livre e democrático encontrado na classe dominante. O tempo de lazer é
outro, mistura-se ao tempo de uma cultura de tradição oral e simultaneamente percorre o
tempo do mercado turístico. Estas temporalidades dão o ritmo à autoprodução do bairro. Não
podemos encaixá-lo nas características que predominam no lazer moderno, pois o que
predomina nesta realidade é a ética do trabalho originado das organizações burocráticas e
industriais. Este tempo de trabalho está atrelado à rigidez dos horários de produção, e não das
estações do ano a lógica que prevalece é a do tempo regulado pelas organizações
alimentadas pela lógica da economia, do lucro.
As festas distribuídas ao longo do ano eram simultaneamente o tempo das
comunhões coletivas, dos ritos sagrados, das cerimônias, da retirada dos
tabus, das pândegas e dos festins. O tempo das festas foi corroído pela
organização moderna e a nova repartição das zonas de tempo livre: fim de
semana, férias. Ao mesmo tempo, o folclore das festas se enfraqueceu em
benefício do novo emprego do tempo livre [...].(Morin, 1997: 67).
A cultura de massa que Morin aborda é uma “gigantesca ética do lazer”. Na tentativa
de pegar um melhor foco para explicitar uma definição, o autor detalha “a ética do lazer, que
desabrocha em detrimento da ética do trabalho e ao lado de outras éticas vacilantes, toma
corpo e se estrutura na cultura de massa” (1997: 69).
Buscamos um local que nos desse uma visibilidade mais ampla para a observação;
buscávamos um foco enquanto testavam o som dos amplificadores e acertavam os
instrumentos. O espaço equipado com mesa de som e de iluminação centraliza à sua volta o
público. Aproximadamente às dezoito horas, as luzes locais começam a acender. O público,
que ultrapassa 2 mil pessoas, ocupa os lugares possíveis para o ensaio, os tambores começam
a percutir. Os atabaques são tambores altos, instrumentos ritualísticos, cujos toques são
semelhantes aos dos ogâs no início dos rituais afro-brasileiros. Na produção sonora e rítmica
do Timbalada, os instrumentos percussivos são compostos também pelo timbau, instrumento
47
usado na década de 1930 com o Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda (Bira
Reis, apud Guerreiro: 2000), bem como os Filhos de Gandhi na década de 1940. As rezas
católicas com os toques dos tambores fundem as tradições. O templo de cultura e diversão,
Candyalll Guetho Square, também se tornou um centro de cultura de práticas culturais não
dos afro-brasileiros, mas também um espaço que congrega as pessoas pelas afinidades
musicais, performáticas. Outras vertentes musicais ali se apresentam, líderes de outras bandas
que se destacam nos trios elétricos do carnaval de Salvador, todos sob as bênçãos da mãe-de-
santo (ialorixá Maiamba) de Carlinhos Brown, que ocupava a varanda central localizada no
fundo da platéia nesse acontecimento. O amálgama cultural que se desenvolve nessa rede de
produção de sentidos promove o espaço eclético.
Nesse momento a banda toda entra no palco, ao todo dezessete componentes, e cada
um deles apresenta tipos diferenciados de pintura corporal, pintura no rosto e no peito
principalmente. Pintar o corpo é um modo singular de exibição, na concepção de Jeudy (2002:
89-90):
[...] é conforme cada um imagina, encontrar um meio de exprimir de si
mesmo o que seduzirá o Outro. Todavia, existe uma pressão crescente ao
longo da vida entre essa determinação pessoal de exibição e a obrigação de
ocultar do olhar do Outro o que, de nossa própria pele, acaba de exibir. [...]
O corpo pintado, o corpo suporte de expressão artística parece, segundo
histórias da arte, ter como origem as maneiras pelas quais os homens das
sociedades primitivas utilizavam seu próprio corpo para nele escrever sinais.
Isso permite afirmar que certas performances contemporâneas retomam
igualmente as tradições primitivas.
A força da sonoridade do tambor é contagiante, anuncia o espetáculo. As batidas
mobilizam o público presente, provocando o movimento da “massa” que ultrapassa 2.500
pessoas. Os jovens acompanham os cantos e “imitam”, “simulam” em geral os movimentos
corporais. São poucos os que fazem do “corpo uma passagem”. É nesse ritmo que o público
dança e canta em torno do palco, acompanhando os timbaleiros e cantores com os quais a
banda se apresenta. Notamos que os cantos inspirados no culto dos orixás, sempre que
apresentados sob o comando dos atabaques
9
, mobilizam a platéia. Com a prática do “canto
9
Atabaques [...] O atabaque atende aos usos mais diversos, indo das práticas secretas nos santuários
do Candomblé até as festas públicas. Por isso, os tratos e os significados que têm o atabaque irão
variar de acordo com os desempenhos nas danças, cortejos, práticas religiosas internas, ocupando
sempre lugar de destaque nas manifestações populares afro-brasileiras. No seu âmbito sagrado está
decisivamente incluído no sistema sócio-religioso do Candomblé, tema orientador da análise do
instrumento enquanto objeto ritual e detentor de significados fundamentais à existência do próprio
culto, mantendo sua unidade litúrgica. O atabaque não será apenas um instrumento musical; ele
ocupará o papel de uma divindade e, por isso, será sacralizado, alimentado, vestido, possuirá nome
48
responsorial” (Mukuna), uma das referências da tradição africana na diáspora, as chamadas
eram feitas com perguntas, e enquanto se aguardava a resposta, improvisavam, repetindo as
perguntas. Na seqüência, novas improvisações não da voz, mas dos atabaques, que
mantinham um diálogo sobrepondo ritmos
10
.
O show segue apresentando novas figurações no palco, músicas de Carmen Miranda
relembram aos jovens o repertório usado em marchas carnavalescas. Entre algumas
apresentações a figura de Brown, que, segundo Lima (1997: 164), desenvolveu um “discurso
etnomusical”, que se reverte em inclusão social, diferente da postura que exclui, comum em
alguns grupos de afro-descendentes que circulam pela região de Salvador. O diferencial do
discurso de Brown é o destaque e a valorização individual. Lima destaca a valorização e a
realização pessoal de cada componente da comunidade de músicos do Timbalada e aponta a
existência de uma prática de consciência cidadã entre os músicos. Confirmamos esta prática
do cantor em seus discursos que aparecem entre músicas, no qual o artista faz referências às
atitudes de jovens que entram em confusões pelas ruas ou ações que os desqualificam.
Do lado de fora, nas ruas do Candeal Pequeno de Brotas presencia-se um movimento
de barracas de bebidas, de churrasquinho e muita gente circulando na rua, aguardando o
momento em que a população que sai do show-ensaio. A participação dos moradores tem
nesse comércio uma das formas de legitimar sua presença e viver as transformações do bairro.
Tomamos para esta análise “As artes de fazer” e tentamos organizar uma forma de
compreender e retirar dos ruídos dessas práticas do cotidiano uma metodologia que nos
guiasse. Partimos da proposta teórica de Certeau (1994: 39), a idéia de “fabricação”, pois o
que realmente queríamos era detectar a poética que se desenvolvia no local, como o corpo era
criado, inventado, gerado nesse espaço de produção:
A “fabricação” que se quer detectar é uma produção, uma poética mas
escondida, porque ela se dissemina nas regiões definidas e ocupadas pelos
sistemas de “produção” (televisiva, urbanística, comercial etc.) e porque a
extensão sempre mais totalitária desses sistemas o deixa aos
“consumidores” um lugar onde possam marcar o que fazem com os
produtos. A uma produção racionalizada, expansionista além de
centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção
próprio e, apenas sacerdotes e pessoas de importância para a comunidade poderão tocá-lo nos rituais”
Lody (2003: 67)
10
Trabalho de Campo realizado no Candeal Pequeno de Brotas, bairro onde localiza-se o Candyall
Guetho Square fundado em novembro de 1996. Observação realizada nos dias: 12, 15 e 19 de janeiro
de 2003, em Salvador (BA).O Candyall Guetho Square, segundo site da banda Timbalada, nasceu da
necessidade de um espaço próprio para a realização dos ensaios. Antes eles ocorriam nas.do bairro e
eram prestigiados pela maioria da população. Todos queriam ver seus amigos e parentes participando
da banda que era promessa de sucesso na cidade.
49
qualificada de “consumo”; esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo
ela se insinua obliquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz
notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos
impostos por uma ordem econômica dominante.
A pesquisa realizada no Candeal Pequeno de Brotas nos forneceu dados importantes
para ampliar essa investigação. O processo de apropriação do tempo em que o bairro vivia à
margem de um contexto social estigmatizado, sem perspectiva, transformou-se em um tempo
diferente. O tempo proporcionava aos jovens adeptos e seguidores dos ensinamentos de
Carlinhos Brown e ao bairro vislumbrar uma outra realidade, uma ascensão social. Seguimos
as descrições etnográficas de Lima (2001:16).
Naquele momento, o Candeal se via diante de um paradoxo. Ao mesmo
tempo que Carlinhos Brown e timbaleiros ultrapassavam fronteiras, se
tornavam cosmopolitas, procuravam fortalecer os laços comunitários. A
idéia de uma comunidade contínua e uniforme era o tempo todo suscitada
por meio de remissão a laços comuns de sangue ou simpáticos, da memória
comum daqueles que cresciam juntos, brincavam juntos, envelheciam juntos
e compartilhavam lembranças dos tempos dos africanos, do mato alto, dos
bichos soltos, das festas locais, do culto a Ogum e a Santo Antonio. A
comunidade do Candeal Pequeno se configurava portanto, como uma
construção simbólica tanto quanto estrutural. estavam constituídas
relações sociais que eram repositárias de significados para seus membros,
não eram mecânicas relações.
A comunidade reelabora sua própria história, o que é possível com a ausência de uma
documentação historiográfica. Recolhendo as falas de diversos habitantes, Lima (2001:17)
demonstra que a projeção do bairro na mídia também exige uma narrativa oficial das origens
do bairro e de sua gente que, obtida por um mergulho nas tradições religiosas:
Carlinhos Brown, educado numa família de negros protestantes, referência
comunitária, remaneja novamente laços ao se converter à tradição religiosa
afro-baiana e assumir, no ano de 1995, a tarefa de resgatar a tradição da festa
de Ogum, mobilizando seus familiares e timbaleiros nessa tarefa que era
originalmente atribuição dos fundadores do local. Desse modo, tradição
religiosa, sangue, música e território vinculados, no Candeal, se tornaram
motivo de agregação, mas produto de uma atitude reflexiva, engendrada. O
uso do timbau, instrumento musical muito aparentado ao atabaque,
instrumento sagrado do Candomblé que convoca os deuses, como vedete da
Timbalada e motivação para criação musical foi um dado novo que aponta
para a atitude reflexiva, para a agência em relação à tradição.
50
Esse contexto de visibilidade conquistada na mídia global trouxe também uma
visibilidade das pessoas contrárias ao movimento do bairro que expandia e tirava o “sossego”
que havia até então. Enquanto cada um estava em “seu lugar” e as fronteiras dos condomínios
garantiam esse distanciamento (apesar de os nativos terem se estabelecido na região há muitas
décadas e pouco a pouco perderem suas terras para as novas políticas de zoneamento), a
população de poder aquisitivo maior os aceitava. Os protestos começaram em relação à
poluição sonora. Os tambores começaram a incomodar, em virtude da vibração intensa.
Moradores do bairro protestavam quando da saída da banda dos shows:
[...] Mendes defende a permanência dos ensaios na área. "Se a Timbalada
sair daqui, o Candeal morre. Brown desenvolveu a cultura local e beneficiou
o comércio, criando um espaço de lazer. Trata-se de uma verdadeira
evolução." No que diz respeito aos reclamantes, ela classifica-os como uma
minoria movida pela inveja. "O barulho não incomoda tanto, é uma alegria
para o bairro", definiu. (Correio da Bahia, 06/02/2003)
Mas dentro de uma investigação também nos deparamos com o inesperado. Em
virtude de reclamações quanto à poluição sonora provocada pelos shows-ensaios que eram
desenvolvidos, o local ficou impedido de funcionar. As determinações dadas pela justiça da
cidade justificavam-se em função de os moradores das redondezas, dos prédios de classe
média há muito se incomodarem com os barulhos, bem como com o vai-e-vem e o trânsito de
pessoas e carros que superlotavam os espaços do bairro. Conseguiram com esses processos
judiciais a paralisação temporária das atividades, e posteriormente, com as disputas judiciais,
a história culminou com o fechamento do espaço.
Sob o título de “Barulho no Candeal”, o Correio da Bahia (06/02/2003) em relata os
fatos que se desenrolaram na sede da Promotoria de Meio Ambiente do Ministério Público, no
Jardim Baiano:
Participaram da reunião o promotor de Justiça [...] representantes da
comunidade do Candeal Pequeno e do condomínio Quinta do Candeal,
Superintendência de Controle e Ordenamento do uso do solo do município
de Salvador (Sucom) e da Superintendência de Engenharia de Tráfego [...]
uma das dificuldades é que o Guetho está localizado em um vale, que age
como uma concha acústica e faz o som se propagar [...].
Na impossibilidade de retornar ao campo para novas análises, tratamos, a partir das
observações anteriores, dos caminhos observados para construir os itinerários no sentido de
dar prosseguimento à investigação. Continuamos com as reflexões a respeito das produções
51
das performances que haviam sido produzidas e as formas como estas performances foram
apropriadas. Buscamos na imprensa escrita maiores detalhes das produções realizadas pelos
artistas que estávamos investigando.
1.3. O Candeal Pequeno de Brotas
O Candeal Pequeno de Brotas fica a dez minutos de carro do centro de Salvador. É um
bairro que contrasta com a população vizinha, que mora em prédios modernos e construídos
em ruas arborizadas e planejados:
Uma das características marcantes dos bairros mais antigos de Salvador é,
no entorno de um núcleo central de povoamento e urbanização,
encontrarmos uma infinidade de outros subnúcleos interdependentes. Brotas,
por exemplo, é um antigo bairro de classe média que tem esse perfil. Situado
num dos mais altos pontos da cidade, cortado por uma avenida principal, a
D. João VI, encontramos nas extremidades dessa avenida e em todo seu
percurso, transversal a ela, vários subnúcleos, tais como Matatu de Brotas,
Engenho Velho de Brotas, Acupe de Brotas, Cosme de Farias, Candeal de
Brotas (Candeal Grande e Candeal Pequeno), Campinas de Brotas, entre
outros. Em todos eles, pobreza, precária urbanização, deficitário sistema de
transportes, predominância de economia informal escorrem pelas encostas,
combinam e se confundem com uma grande incidência populacional de
negros, violência e estigmatização. (Lima 2001: 48)
No mapa que segue podemos visualizar a localização da região de Brotas e em
conexão com as avenidas Vasco da Gama, Antônio Carlos Magalhães, Mario Leal Ferreira, as
quais dão acesso aos bairros ricos ou pelo menos de uma classe social média e aos bairros
mais desfavorecidos economicamente. Em nossa investigação de campo acompanhamos os
contrastes presentes nesta região e constatamos que grande parte das casas não são rebocadas,
daí o nome de um dos projetos do bairro do Candeal Pequeno de Brota ser “Tá Rebocado”,
uma iniciativa que deu origem à elaboração estética (em variadas cores) das casas que
compõem o bairro, bem como a canalização e saneamento básico que não existiam até a
projeção do músico, compositor e percussionista Carlinhos Brown e o grupo Timbalada.
52
Mapa – Brotas, Salvador - BA
53
Em 2003, conforme mencionamos, estivemos no local para conhecer o Candyall
Guetho Square, mas também para conhecer o projeto social desenvolvido no bairro. O
primeiro espaço de trabalho que tivemos contato foi a escola Pracatum, onde conseguimos
informações a respeito do funcionamento do espaço. A escola estava em momento de
mudança e transição de direção. A responsável (diretora) contou-nos a respeito da proposta do
ensino que era mais abrangente e mais completa para os alunos. Segundo informações obtidas
com moradores dos arredores, a instituição não recebia apenas alunos do Candeal, mas de
várias partes de Salvador.
No contexto formal curricular, o ensino se estendia também para as aulas de teatro,
dança, aulas de teoria musical e harmonia. O número de jovens na época em que fizemos a
investigação era em torno de duzentos, os quais se preparavam para participar das bandas
criadas por Carlinhos Brown; o restante compunha as saídas em trios elétricos, as
apresentações em dia de festa na cidade. Ao lado da escola pudemos avistar a produção do
projeto “Tá Rebocado, que foi iniciado para garantir uma condição de vida diferente para a
população que até então vivia sem saneamento básico.
Em Salvador é muito comum, assim como na periferia da Grande São Paulo, a
construção de casas sem reboco. Quando saímos dos centros de Salvador e nos dirigimos para
bairros um pouco mais distantes, como Brotas e outros, o que vemos em sua maioria são as
casa inacabadas.
A estética colorida adotada após a reforma do bairro deu-lhe mais presença. O
Candeal Pequeno de Brotas (bairro), antes com acesso somente pelas escadarias, possui
passagens estreitas entre as casas coloridas e em diversos níveis da rua, muitas vezes
separadas por lances e terrenos em desnível. Muito próximas umas das outras, vemos que o
contato da vizinhança é direto, quase porta a porta.
Lima (2001) faz um paralelo entre o Candeal Pequeno de Brotas antes do sucesso de
Carlinhos Brown, a banda Timbalada e a década de 1990, quando o bairro virou espaço de
“estrelas globais” da sica nacional e internacional. O bairro não urbanizado e habitado por
uma população simples, sem ostentação, era freqüentemente estigmatizado pela classe média
moradora do bairro nobre, pelos “estrangeiros” que fazem fronteiras com o local. Conhecido
anteriormente como “Ilha dos Sapos”, lugar de “gente feia” e “desordeira”, sofreu o impacto
quando veio o sucesso “no verão de 92”. A “Ilha dos Sapos” passou a ser vista como Ilha da
Fantasia”, comenta Lima (2001). Esta idéia de Ilha da Fantasia foi mencionada por Ayres
Denis, um dos informantes do pesquisador.
54
Com a projeção do artista na mídia nacional e posteriormente internacional, a vida
desta população mudou. Antes de atentarmos para as mudanças e os últimos acontecimentos,
é importante verificar que a história de vida do percussionista e compositor está estreitamente
ligada ao seu bairro de origem.
1.4 A figura de Carlinhos Brown
Primeiramente, ao falar de Carlinhos Brown lembramos que é uma figura que desde
muito cedo percorreu as ruas da capital (Salvador) com a música percussiva. Assimilou os
ensinamentos de Mestre Pintado do Bongô, seguindo os caminhos das culturas de tradição,
nas quais os pontos importantes na transmissão envolvem a oralidade, a corporeidade e a
improvisação. Aprendeu os diversos ritmos, entre eles os latinos, o samba e o pagode. No
final da década de 1970 carregava seu atabaque e suas congas para o trio elétrico no qual
tocava o frevo. Nos anos 1980 o frevo era a música tocada na Bahia.
O músico que compunha na escuta de sonoridades captadas nas paisagens urbanas
conectava-se com os acontecimentos das diásporas. É nesse movimento de inquietação que
ocorriam neste lado do Atlântico o que muitos músicos afro-brasileiros começam a assimilar,
as misturas que aceleram as mudanças do cenário musical nacional.
O ano de 1980 vivia a transição cultural musical. Segundo Guerreiro (2000) havia uma
paisagem sonora que se distinguia naquele momento. Atentemos para uma contextualização
dos processos de mudança dos rumos das tendências musicais e as fontes que alimentavam
essas novas produções.
Uma efervescência musical se espalhava pelos três cantos da península, que
avança para o mar, tendo como limites, de um lado, a Baía de Todos os
Santos e, de outro, o Oceano Atlântico. Os tambores que soavam de
Itapagipe a Itapuã, passando pelo Pelourinho, começavam a enviar sinais
para o resto do Brasil. A imprensa nacional desembarcava para investigar a
novidade musical que vinha da Bahia: a música percussiva produzida pelos
blocos afro-carnavalesco de Salvador – e, voltando no eixo Rio–São Paulo, a
Folha de S. Paulo alardeava: a Bahia virou Jamaica. Guerreiro (2000: 21)
Esta reflexão deixa claro qual era o jogo de produção que se estabelecia até esta data
no universo das grandes mídias e gravadoras: São Paulo e Rio de Janeiro determinavam a
circulação dos produtos. Os movimentos musicais ocorridos em Salvador marcam a entrada
do samba reggae na cena brasileira. Por outro lado também, os movimentos dos grupos afro-
55
baianos trazem a imagem da religiosidade. Seguindo a linha de reflexão de Guerreiro (2000:
49-51):
A imagem de africanidade dos blocos afro desenha também através da
incorporação de elementos afro-brasileira o candomblé, que aparece neste
contexto como uma referência fundamental. São muitos os elementos
pinçados pelos blocos afro do vasto repertório dos candomblés baianos. [...]
A percussão, tocada nos atabaques nos terreiros, é a base da musicalidade
dos blocos. Além dos ritmos, o recurso vocal também encontra paralelos nos
rituais sagrados. A técnica responsorial utilizada nos cultos do candomblé,
que consiste em uma pergunta puxada pelo solista e respondida pelo coro
e/ou pelos atabaques, foi apropriada pela produção musical dos blocos afro e
inspirou a estrutura de várias canções, onde a voz do cantor/cantora aparece
antes dos sons dos tambores (repiques,taróis, surdos), servindo para puxar a
bateria. [...] como nas narrativas míticas, a história do povo africano é
recontada nas letras das canções. Todos os blocos afro realizam pesquisas
sobre a história da África.
O que nos interessou nesta descrição é que outros elementos estão atrelados a esta
assimilação e o culto à ancestralidade. Quando nos referimos na citação acima a respeito da
volta às referências africanas e afro-descendentes na diáspora, destacamos que os gestos
dançados desses blocos de afro também trazem uma releitura da religiosidade do candomblé.
Conforme acentua a autora, esses blocos mantêm a dança atrelada à música, e os atores
desses mesmos blocos recriam as danças dos orixás. Eles trazem uma estilização das danças
dos orixás. Insistem em movimentos que se voltam para o chão, para a terra, também
características das danças populares, danças de pessoas ligadas à terra, diferenciando-se dos
balés que acionam os movimentos para as alturas e exigem as pontas dos pés, persistindo nas
tradições ocidentais dos balés clássicos.
Conforme pudemos observar na pesquisa de campo, nos terreiros e nas aulas de
danças dos orixás, os movimentos das danças de candomblé geralmente exigem o plantado
no chão, movimentos que acionem o corpo para o chão; os joelhos sempre estão mais
flexionados e os gestos refere-se a uma imitação do trabalho do cotidiano.
Estas características foram localizadas na performance de Carlinhos Brown e outros
participantes que dançavam e figuravam no palco. O corpo nas apresentações do Candyall
Guetho Square transformava-se em textos, os quais líamos por meio dos gestos. É pelos
gestos que a música que passa pelo corpo se vizibiliza. (A música é volátil, ou seja, é
impossível pegá-la. Quando conseguimos alcançá-la, quando o corpo é atravessado pela
música, ela aparece por meio do gesto.) Enquanto as performances desenrolavam no palco, o
público “imitava” as gestalidades.
56
Em Salvador existem alguns locais em que a população de afro-descendentes supera
outros. No bairro da Liberdade, reduto do grupo IAyê, onde branco dificilmente entra, a
não ser com alguém que tenha contato com a comunidade, mostrou em seu primeiro sucesso o
movimento de “africanização”: é a discussão política do corpo negro. (Conforme mencionou a
profª dra. Maria Antonieta Antonacci, é na diáspora que a discussão dos afro-descendentes a
respeito do corpo negro acontece.) Temos abaixo uma fala de Brown citada por Goli, uma
reflexão a respeito dos usos do corpo nas culturas com referências das tradições orais
africanas.
Voltamos à reflexão a respeito dos contágios pelos quais passou Carlinhos Brown e
como este se apropriou das danças e da cultura afro-americana de James Brown. Tomamos
uma fala do artista citado por Guerreiro (2005:6)
Eu não entendia nada do que ele cantava. Mas entendia como ele se
comportava e todo mundo entendia, porque a forma de dançar se arrastando,
sabe? Parecia drible, um drible social nas coisas, indo no chão, usando o
corpo como um movimento. Na Liberdade, o cara falava: risque aí: e fazia a
roda. Então, se você dançasse legal, se apresentasse uma novidade, tudo
bem, senão nego dizia: “Você não é brau [brown], não”.
Vem daí a inspiração para o nome de Carlinhos Brown, segundo a pesquisadora.
Contrapondo esta idéia, encontramos na revista IstoÉ Gente (o parecer do cantor que não se
mostra conivente com a afirmação acima: “O Brown do meu nome é um acaso, sempre
disseram que era por causa do James Brown, o que acaba com meu Cartola, com meu Jobim,
com meu Chico. Com Carlito Marrón, quis me relatiniza”
11
.
Seguindo sua descrição e refletindo as propostas de Certeau (1994: 39) com
relação às apropriações que realizamos no cotidiano, entendemos que houve uma fusão das
tendências que predominavam o contexto musical e performático da época em discussão. Não
só Carlinhos Brown como outros artistas do momento apropriavam-se da cultura “de fora”, da
“cultura estrangeira”, mas também da cultura de “dentro”. A inspiração para a produção tinha
várias fontes que se misturavam, provocavam fusões em processos contínuos. Mesmo que as
afirmações com relação às influências e misturas culturais sejam múltiplas, a “cultura
residual” (Williams: 1992) do candomblé e as referências da cultura africana mantêm-se
presentes assim como as primeiras lições de percussão que o artista recebeu do Mestre
11
Disponível em:
<www.terra.com.br/istoegente/204/diversao_arte/musica_ping_pong_carlinhos_browm.htm - 55k>
30/06/2003.
57
Pintado do Bongô; são as matrizes predominantes das culturas de tradição que, reinventando-
se as produções a cada apropriação, permanecem como um suporte. Retomamos um percurso
elaborado por Ayeska (2005:12), uma das pesquisadoras que analisam a produção da música
de Salvador.
Até a década de 70, a música produzida pelos blocos afro e afoxés era
música de gueto, inacessível e até mesmo repudiada pelos participantes dos
blocos de trio. Era considerada coisa tribal, pouco evoluída, e não tinha
visibilidade na mídia; a televisão já havia saído do ar quando esses blocos
começavam seus desfiles. Tampouco chegava à indústria fonográfica,
embora se saiba que blocos como o Apaches do Tororó gravassem discos
com suas músicas de carnaval para serem vendidos nos ensaios. Não
interessava às empresas patrocinar essas entidades porque sua marca só seria
divulgada entre pessoas de baixo poder aquisitivo.
Os anos 80, conforme referenciamos acima, promove situações inusitadas na cultura
popular de rua. Quando se começou a entender que as tradições podem pertencer a outras
espacialidades, outras temporalidades além dos terreiros, e que estão em constante
movimento, assimilando as mudanças exigidas na contemporaneidade, reinventando-se nas
manifestações populares de rua, nas quais a convivência de blocos que misturam brancos e
negros, afro-descendentes e afro-americanos, latinos nativos e não-nativos que dançam ao
som da música que se eletriza sob os comandos dos tambores quase sagrados, consagram-se
nesse momento as possibilidades de uma cultura híbrida (Canclini, 2005) que se expande
contagiando outras culturas.
Nas investigações de alguns pesquisadores, a figura de Carlinhos Brown é apropriada
de diferentes formas. O primeiro que contatamos por meio de leituras foi Lima (1997 e 2001),
que em suas obras elabora uma etnografia a partir dos discursos que os habitantes do bairro
produzem nas narrativas coletadas. A preocupação do pesquisador tem por base “como a
identidade negra pode ser representada por meio de interceptação de categorias de
pertencimento territorial e práticas de reterritorialização”. Seguindo esta preocupação, coletou
informações a respeito das origens do local, que de acordo com os habitantes mais velhos o
Candeal Pequeno era propriedade de negros livres que vieram em busca de parentes
expatriados. Havia nesses discursos um “mito de origem” que fazia conexão com a África.
Havia o discurso estigmatizante, pois, como mencionamos, o Candeal Pequeno não era
freqüentado pelos bairros da redondeza até o momento que se tornou espaço de espetáculo e
de oportunidade de ascensão econômica. Ainda em suas coletas evidenciaram-se as
influências do candomblé nas práticas religiosas dos primeiros moradores. Nessas práticas
58
festivas o homenageado era Ogum, padroeiro do Candeal, que também foi território
quilombo. Sobre as descendências, encontrou 95% de população de afro-descendentes.
Reforçando as projeções desta comunidade” de afro-brasileiros, Guerreiro (2004),
descreve os movimentos do bairro com a exibição do filme El milagro do Candeal, de
Fernando Trueba no Candyall Guetho Square, lugar antes reservado aos ensaios da banda de
afro-pop de Salvador conhecidos como Timbalada. Na concepção da autora, “um sinal
imagético da força da musicalidade do Brasil”, uma história sociomusical do bairro, tendo
como um dos protagonistas Bebo Valdés:
O olhar do cineasta segue o fio de uma história que começa na diáspora
africana e religa Brasil e Cuba, Salvador e Havana. É uma mescla de
documentário e ficção, que acompanha a viagem do lendário pianista cubano
de 85 anos, exilado 45, na Suécia. Bebo Valdés chega a Salvador em
busca de suas raízes africanas e conhece o percussionista Mateus Aleluia,
que lhe apresenta a Cidade da Bahia que aparece nos cartões-postais: o mar,
o Centro antigo, o candomblé, o carnaval. Bebo é o personagem condutor.
Sob seu olhar atento, descortina-se então um nicho periférico da cidade e o
trabalho social desenvolvido no Candeal, através de sua música e sua gente.
Apolinário (2006) desenvolve a pesquisa a respeito das produções e produtores que,
interligados com a cultura letrada e oral, “expõem imagens identitárias e as questões étnico-
raciais que envolvem a cidade de Salvador”. Ressaltamos na sua forma de apropriação um dos
pontos que se relaciona com nossa pesquisa. Para esta investigação apropria-se dos discursos
do cantor que passam pelas composições, pelas suas declarações, suas aberturas de shows e
investiga detalhadamente, construindo e desconstruindo as palavras e os conceitos possíveis
que lhes dêem pistas para desvelar as letras e assim, a partir de um saber arqueologicamente
estruturado, desvenda, contextualizando-as historicamente, desvelando e revelando
significados invisíveis em cada letra, em cada composição.
O que a princípio me chamou a atenção nas músicas foi o fato de ele ter suas
produções musicais altamente influenciadas pelos elementos culturais de
matriz africana, cujo teor abrange desde a utilização de instrumentos
característicos da religião candomblé à inclusão de expressões idiomáticas
africanas do ioruba e do bantu, dentre outros aspectos. Apolinário (2006: 8)
Encontramos outras reflexões de pesquisadores
que desenvolvem análises a respeito do
artista multifacetado, o “tropicalista globalizado”. Ayeska (2005), elabora um panorama
preliminar a respeito dos trajetos de Carlinhos Brown, que articula a experiência estética
com a vida em sociedade e as manifestações tradicionais da cultura com as tecnologias da
59
comunicação e da informação”. O que a despertou para o estudo foi o alcance da produção do
artista no mercado musical mundial e a sua atuação como mediador das práticas socioculturais
em seu bairro de origem. Estes aspectos foram abordados pela autora baseados em uma
perspectiva dos estudos culturais.
O aflorar dos movimentos das ruas de Salvador acontecia paralelamente a um
descentramento do chamado eixo “Rio–São Paulo”, e novos olhares de cunho econômico o
lançados para esta mudança do jogo das produções artísticas. Nesse percurso são associados
os acontecimentos de Salvador (BA), entre eles as manifestações de danças de rua, um novo
rótulo para as produções de “axé music” na década de 1980, somando-se às facilidades da
gravadora Studio WR Gravações e Produções, que deslocavam o monopólio das produções
fonográficas e televisivas. Esse foi o canal para a projeção do carnaval, dos artistas que até
então dependiam das produtoras do Sudeste do país. Criou-se um produto cultural consumido
no mercado local e global.
Nesse processo de incorporação da cultura e liderança social, o músico, que se insere
em uma cultura miscigenada, que começou pelas mãos do Mestre Pintado do Bongô,
participou das primeiras gravações e tornou-se um pop-star internacional que arrebatou em
2005, no carnaval de Madri, diante de um público de mais de 1 milhão de pessoas.
O mercado de trocas que se estabeleceu entre o local e o global é permeado por altas
cifras, como também uma reinvenção das tradições locais, nas quais o artista veste e reveste-
se de personagens históricos de Salvador, como é a figura do índio. Nesse processo de
hibridação, suas criações musicais incorporam
cantigas de candomblé, rezas da Igreja Católica, salsas cubanas, toques de
tambores tribais, samba-duro, bossa nova, marcha. Do mesmo modo, ele vai
do acústico ao eletrônico usando timbau, xequerê, violão, bacurinha, sem
desprezar guitarras, samplers, loops, beats e outros recursos de
equipamentos digitais. Ao promover a conexão entre as culturas local e
global, esse artista glocal, que transita com igual desenvoltura pelas grandes
metrópoles do mundo ou pelos becos da periferia, faz de si próprio não
uma ponte para viabilizar esse fluxo, mas o conteúdo cultural em si,
apresentado em suas músicas, shows, ações sociais e culturais. (Ayeska,
2006:4)
Um dos teóricos que enfatiza é Nestor Garcia Canclini, que anuncia em seus estudos a
hibridação existente nas fusões das culturas de tradições religiosas e étnicas e das culturas
tecnologizadas do mundo contemporâneo. Trazemos para esta reflexão um dos exemplos
desta hibridação dada pela autora e que será exemplo das influências das tradições religiosas
na música de Brown: a produção fonográfica de candobless.
60
Enfatizamos que para a autora, mais do que evidenciar as raízes e tradições africanas e
tradições religiosas trazidas para a arte, Brown promove uma reinvenção de sua historia e dos
trajetos do Candeal.
Nos processos que nos pareciam mudos e invisíveis das mil práticas que se
desenrolavam existe uma arte de combinar e de utilizar-se dos produtos, de elaborar as idéias.
A “lógica dos usos” (Certeau, 1994) nos trouxe um mapa móvel que nos permitiu perscrutar a
rede que se estabelece na “arte de fazer” que passa pelo corpo. Nas tradições orais, as práticas
do cotidiano acontecem no corpo. Retomando a reflexão de Corpos sem fronteiras, Antonacci
(2002:147) declara: “Imagens surpreendidas ontem e hoje do lado de e do lado de do
Atlântico, que, ao projetarem corpos entre reinos e mundos, permitem sondagens em tornos
de concepções e expressões de corpos em culturas orais”. Estamos atentos a estas sondagens
do corpo, que, na concepção das tradições da cultura oral, apresenta-se conectado, integrado,
corpo simbiótico (Hampatê Bã) que conjuga todos os reinos da vida. Na realidade de do
Atlântico é que se discute a corporeidade das tradições orais. Nas reflexões, mesmo que
indiretas, que refletem os cultos religiosos e as purificações, o corpo é o território de suporte
de todos esses rituais, de todas as informações que percorrem a vida de uma pessoa. É no
corpo que o fluxo dessas alquimias acontecem, por intermédio dos ritos e dos mitos.
Nas culturas da oralidade utilizam-se dos mitos, histórias dos processos corporais que
organizam suas cosmogonias. O mito nos os indícios da ordem social de um povo e da
atuação dos diversos personagens que assumem ao longo da vida. O mito é uma invenção
humana que ajuda a ordenar experiências, como a morte, por exemplo, os valores como a
lealdade, a sexualidade. Ainda segundo Keleman (2001: 27)
Ao contar um mito, uma parte do organismo pode falar com outra e os
indivíduos podem partilhar experiências internas com as pessoas a sua volta.
O mito é uma maneira de perceber os mundos interior e exterior. O corpo
organiza a sensação que emerge do metabolismo tissular, e isso é o que
chamamos de consciência. Esse processo somático é a matriz para as
histórias e imagens do mito.
As experiências mágicas e míticas na concepção dos autores que compartilham a
experiência de refletir o corpo e o mito por mais de uma cada favorecem a ligação do
homem, auxilia na sua forma de ser, de se integrar interna e externamente com outras pessoas.
As narrativas de sagas, de heróis e relatos das cosmogonias atendem as necessidades do
homem de se relacionar com o que é desconhecido. Essas mesmas práticas mágicas e míticas
funcionam como “modelos na modelagem do self [...]. Quando ficamos íntimos dessas
61
histórias e modelos que elas oferecem, descobrimos as narrativas subjetivas das múltiplas
formas de nosso próprio corpo” (Keleman, 2001: 26).
E aqui podemos afirmar que na cultura ocidental o corpo é excluído desde a paisagem
medieval; ficamos apenas com a alma. Conforme Le Goff e Truong (2006), quando anunciam
que no limiar da Idade Média o corpo é uma roupa abominável contrastando que o bem maior
pertinente à sociedade medieval é a alma. Fortalecidos pela filosofia cartesiana, concebem
que “os corpos dos animais e dos homens devem ser encarados como uma máquina, cujo
funcionamento é explicado pelas leis mecânicas”. A reverberação desta filosofia se instala
acentuadamente nas culturas modernas.
Os novos suportes de memorização e o transporte de signos nos distanciam do corpo,
imprensa, pergaminho, e “fizeram com que esquecêssemos a prioridade do corpo nessas
funções; culturas sem escrita ainda as conhecem” (Serres, 2004: 69).
Desaprendemos como trilhar os caminhos de passagem da música no corpo, a música
não passa pelo corpo na cultura ocidental, o que resulta num corpo imóvel, que não expressa a
música. Vemos muitos corpos que imitam, “imitam ou simulam”, segundo Serres (2004).
Quando o corpo não reage à vibração da música, ele procura outros caminhos, automatiza-se,
os gestos ficam mecânicos, limitados na sua expressão, transformam-se em corpos
inexpressivos.
Foi com base nessas reflexões que entendemos a apropriação e reapropriação, que o
corpo elabora diante dessas práticas que realiza. O que este corpo nos revela quando se
realizam as danças? Quando falamos de nossa observação nas apresentações da banda e de
Carlinhos Brown, entendemos que existe uma apropriação do público por imitação, por
simulação em sua grande maioria.
O entendimento desse processo exigiu que nos aprofundássemos na compreensão a
respeito das apropriações do corpo. Uma das concepções básicas que Hampatê Bã, o autor da
tradição oral viva nos apontou, foi “o homem como simbiose de todas as coisas do universo”.
Homem simbiótico. Podemos pensar que nas práticas de algumas cenas de danças de rua ou
mesmo das acrobacias da capoeira existe uma “percepção total”, onde se pode ser qualquer
coisa homem e animal simultaneamente.
62
1.5. A comunidade do Candeal
Esquivar-se das questões referentes à comunidade é também esquivar se da atualidade.
É evidenciando-a e problematizando o que a permeia que poderemos tentar entender o que a
constitui. Com este movimento, poderemos também tatear as brechas possíveis para novas
constituições de convivência humana. A comunidade, como reflete Bauman (2003), é uma
palavra que nos afeta, nos causa sensações de “aconchego”, de “um lugar cálido”, uma
segurança imaginada, não medida, não alcançável. Mesmo assim continuamos a percorrer
caminhos que possam nos levar até o paraíso perdido, a comunidade imaginada, que, segundo
o autor, difere da comunidade real. A comunidade real cobra o preço pela segurança,
compromete o corpo, pensa o grupo de seus habitantes, e não o individual.
“Você quer segurança? Abra mão de sua liberdade, ou pelo menos boa parte
dela. [...]você quer entendimento mútuo? Não fale com estranhos, nem fale
línguas estrangeiras. [...] você quer essa sensação aconchegante de lar? [...].
Você quer proteção?.[...]. Você quer aconchego? Não chegue perto da
janela, e jamais a abra.” As questões apresentadas pelo autor ilustram a
realidade de se viver em uma comunidade. O aconchego, a proteção tem um
preço, [..] “autonomia”, direito a “auto-afirmação” e “identidade” (Bauman,
2003:10).
O dilema vivido na comunidade real e discutido pelo autor é o movimento entre ter
segurança e a perda da liberdade ou vice-versa. Esta situação é ilustrada por meio do mito de
Tântalo. O mito nos ajuda corporalmente a entender o mundo. Tântalo, nascido dos amores
pelo qual o herói grego foi penalizado [...] não se contentou em partilhar a dádiva divina – por
presunção e arrogância desejou fazer por si mesmo o que poderia se desfrutado como
dádiva” (Bauman, 2003: 13).
O ensinamento a que se propõe o mito é reiterar os laços infinitamente entre o deus do
Olímpo, Zeus e a ninfa Plutó, Tântalo sofreu a agonia dos castigos eternos da fome e da
sede. Conta o mito que“Tântalo foi mergulhado até o pescoço num regato mas quando
abaixava a cabeça tentando saciar a sede, a água desaparecia. Sobre sua cabeça estava
pendurado um belo ramo de frutas mas quando ele estendia a mão tentando saciar a fome,
um repentino golpe de vento carregava o alimento para longe”.(Bauman, 2003: 13)
Bauman (2003: 14) relata o mito de Tântalo a partir de várias versões mapeadas e
justifica os motivos do acontecimento. Viver na inocência, ignorar o porquê do mundo, dos
fatos. E o contar sem fim, as origens, é circular pelos mesmos caminhos sem buscar atalhos, é
um movimento comunitário. Conforme o autor, na Bíblia encontramos passagens semelhantes
63
e que têm a mesma estrutura do mito de Tântalo: a narrativa de Adão e Eva, que escutamos
desde sempre. O “Paraíso”, local onde não era preciso fazer escolhas para encontrar a
felicidade, este foi perdido. Ao comer o fruto da árvore do conhecimento, seus habitantes
foram expulsos, perderam a possibilidade de viver “sem problemas”, perderam a felicidade
concedida. A crueldade dos deuses, a dos moradores do Olímpo ou deus judeu se equivaliam.
O que Bauman (2003: 14) detalha é que o castigo do deus judeu exigia “maior
capacidade de
interpretação [...] precisarás trabalhar para comer [...] ganharás o pão com o
suor de teu rosto”. A saída do Jardim do Éden foi definitiva para Adão e Eva, sem
possibilidade de retorno, como também para todos os seus descendentes. A espera do retorno
ao que era bom foi perdida, ficou de alguma forma retida nas lembranças, na memória.
Alguns autores são acionados por Bauman (2003: 15) para esta discussão. Ferdinand
Tönnies (apud Bauman 2003: 15) convida a pensar a comunidade antiga e moderna, destaca
“um entendimento compartilhado por todos os seus membros”, diferente de consenso
“produto de negociações”; Göran Rosemberg (apud Bauman, 2003: 15) lança a idéia de
“circulo aconchegante”; Robert Redfield (apud Bauman, 2003: 17) fala de “distinção”, uma
visibilidade de suas fronteiras espaciais comunicacionais e auto-suficiência da comunidade.
Existe uma visibilidade de onde começa e termina a comunidade. “A pequena comunidade é
um arranjo do berço ao túmulo” (Bauman, 2003: 17).
A idéia de visibilidade e controle dos movimentos internos da comunidade diluem no
momento em que as palavras não andam mais a pé, o transporte das informações não
dependem mais do corpo para chegar ao seu destino. Reportando para atualidade, em que as
idéias correm o mundo virtualmente, os muros que dividiam o interno e o externo da
comunidade começam a desabar e embaralhar “dentro” e “fora”.
Exatamente essa fissura nos muros de proteção da comunidade se torna
trivial com o aparecimento dos meios mecânicos de transporte, portadores de
informação alternativa (ou pessoas cuja estranheza mesma é informação
diferente e confiante com o conhecimento internamente disponível)
podem em princípio viajar tão rápido, ou mais, que as mensagens orais
originárias do círculo da mobilidade humana “natural”. A distância, outrora
a mais formidável das defesas da comunidade, perdeu muito de sua
significação. O golpe mortal na “naturalidade” do entendimento comunitário
foi desferido, porém, pelo advento da informática: a emancipação do fluxo
de informação proveniente do transporte dos corpos. (Bauman, 2003: 18)
Diante dessas mudanças, a homogeneidade possível deverá, conforme o autor, ser
“pinçada” em meio à “massa confusa e variada”. Estamos diante de inúmeras potencialidades
e, portanto, distante de uma possibilidade de reconstituição da comunidade imaginada. Não
64
existe retorno. Uma vez desenraizados os costumes, resta recompor, tecer e emendar os
fragmentos.
O que vimos nas comunidades visitadas (Oxumare, que comentaremos no próximo
capítulo) foram discursos que transitam fortemente para recuperação de unidade, e as formas
de recuperação dessa unidade passam por recuperar as referências de suas tradições. No
Candeal Pequeno de Brotas destaca-se um movimento que explicita novas formas de
articulação, movimenta-se no bairro a tradição da religiosidade dos ancestrais e esta,
absorvida na contemporaneidade, transparece nas sicas em especial no Candombléss,
produção musical de Carlinhos Brown, e nas danças, resultando em uma atualização, e não
em um congelamento do passado.
Mergulhado na estética da mestiçagem, o artista Carlinhos Brown se destaca ao
evidenciar o bairro com a sua arte, reaviva as práticas de antepassados locais, cor às festas
de Santo Antônio, divindade da Igreja Católica que faz interface na religiosidade dos cultos
dos orixás, neste caso Ogum, o que abre os caminhos, que também é protetor e referência
divina do cantor. O artista reveste a sua performance com esta mistura de diversas fontes
culturais, e por onde passa acrescenta em seu repertório novos dados culturais. Sua música se
fortalece nas fontes dos terreiros de candomblé, sua escola primeira, fundada na oralidade.
Dela absorve a complexidade rítmica que a constitui, que não paralisou como muitos
imaginam. Nesse repertório da música religiosa encontramos os registros do ritm patterns line
características encontradas na escuta dessas composições (Mukuna nas aulas de
Etnomusicologia), uma música viva. Ecoa essas influências e evidencia todas as aquelas que
recebeu desde a infância, dos latinos aos americanos, na dança e na música.
Como agente comunitário, Carlinhos Brown se projetou na recomposição do bairro,
reconectou-se com as matrizes africanas e historicizou sua gente, seu local de origem.
Projetou e evidenciou o que hoje chama de “favela do mundo”, como anuncia em seus
espetáculos internacionais. Uma nomenclatura que se assemelha a um slogan, mas também
uma demonstração do quanto pode a “periferia do mundo” movimentar o corpo e o povo do
“Primeiro Mundo” com suas danças e cultura.
Na reinvenção do cotidiano dirigimos nosso olhar para o que acontece “entre” estes
processos de apropriação e reapropriação. Quais as relações que se estabelecem neste
intervalo? Quais os micromovimentos que atuam nesses processos que mantêm as culturas
tradicionais? Acompanhando as descrições sobre “os modos de proceder da criatividade
cotidiana”, Certeau (1994: 41) revela novas possibilidades de análise, resultado de reflexões
dos fluxos de poderes que se estabelecem nas sociedades.
65
Como empreendedor artístico e também social, cria as organizações que movimentam
os projetos de habitação e educação. Seguimos de forma cronológica as realizações e a
criação dos projetos que deram a visibilidade ao local. Em 1994 Carlinhos Brown criou o
Pracatum Ação Social APS (organização da sociedade civil, de direito privado, sem fins
lucrativos), trabalho que deu o impulso para criação de bandas musicais e de percussionistas;
acionou também melhorias para os bairros, o que resultou no programa Rebocado;
encaminhou suas propostas para um desenvolvimento comunitário no qual visa educação,
saúde, cultura, urbanização e mobilização social. Reconhecido pela Unesco em 2002, o bairro
exercita a sustentabilidade tão propagada na atualidade por intermédio da cultura e da
formação musical de jovens.
O inventar e reiventar de cotidianos compara-se à música e aos ritmos. Eles não se
repetem (Mukuna acentuava em aula que a música e os ritmos não se repetem, eles se
reciclam). Assim também o faz o artista, que afirma pertencer a uma cultura mestiça,
miscigenada. Carlinhos Brown é conhecido na Espanha como Carlito Marron. Ele, na sua
forma de ser, recicla e mistura símbolos, conserva seu pertencimento religioso (mantém seu
santuário no Candeal), é dono de seus caminhos, assim como é seu santo Ogum. Segue
socializando os ritmos com tambores reciclados, timbaus (referências dos Filhos de Gandhi,
considerados uma réplica dos candomblés). Mistura a cultura oral à cultura da escrita nas
escolas que criou. A música não é ensinada somente pelas técnicas da oralidade. Faz do
Candeal (bairro) um palco de estrelas e se projeta junto aos nativos como “favela do mundo”
(o milagre do Candeal). Faz do corpo um texto ao utilizar-se de indumentárias que
comunicam à massa suas matrizes culturais, como também os corpos pintados do seu grupo
de músicos que nos remetem a tribos, em tempo real e tecnologizado.
A reciclagem marcante que nos apresenta é, entre outras, a sua gravação Candombléss,
produção importante que legitima sua conexão com o panteão dos orixás
12
.
Não desconsideramos as influências que marcaram a trajetória e trabalho do artista.
Entendemos que as leituras e pesquisas realizadas até o momento nos remetem às fontes e aos
cultos dos orixás, ao universo do que denominamos de sagrado, a sabedoria viva confirmada
por Viana (2005).
12
Hermano Viana: “Então, o que se toca no candomblé é tão contemporâneo quanto qualquer pop.
Afirmar isso não é desrespeitar o candomblé, mas sim respeitá-lo verdadeiramente, não como
‘folclore’, mas como sabedoria viva” (19/10/1995).
66
CAPÍTULO 2 – RITUALIZAÇÃO DO CORPO
Para o africano, o tempo não é a duração que impõe determinado ritmo ao destino
individual; é o ritmo respiratório da comunidade. Não é um rio que fui numa única direção,
de uma fonte conhecida a uma foz desconhecida. O termo tradicional africano abrange e
incorpora a eternidade em ambas as direções. As gerações passadas não estão perdidas para
o tempo atual. Continuam, à sua maneira, sempre contemporâneas e tão influentes como
quando viviam, ou até mais.
M. Boubou Hama e Joseph Ki- Zerbo
Roger Bastide, o filho de Xangô nas terras de Salvador.
O viajante que à noite erra nesses subúrbios, onde as habitações vão se espaçando, como que
se debulhando e cedendo pouco a pouco diante da floresta, ouve por vezes, subir detrás das
frondes, do fundo das trevas, o martelar surdo dos tambores sagrados,
enquanto foguetes riscam os céus, desenhando sobre eles novas estrelas. Cada foguete que
sobe é o sinal que uma divindade que veio da África possuir um dos seus filhos na terra do
exílio; cada estrela que repentinamente cintila acima das plantas em germinação indica a
quem passa que uma divindade “montou em seu cavalo”, fazendo-o reviravoltear em torno
do poste central, mergulhando na noite do êxtase. Pois estes deuses só podem
volver na medida em
que se manifestam no corpo dos fiéis.
Roger Bastide (2001)
67
2.1 O sagrado: formas de ritualizar o corpo
O autor de O candomblé na Bahia faz desta viagem ao interior dos ritos nagôs o
uma crônica, mas uma narrativa em estilo monográfico, que revela um universo “religioso
específico”, povoado por divindades e homens “vivos e mortos”, “natureza e cultura”,
cerimônias de sacrifício, de oferendas, ritos de iniciação, de comunhão. Segundo Fernanda
Áreas Peixoto, que apresenta a obra acima citada, o ponto alto dos escritos de Roger Bastide
está no ritual (análise estrutural do transe místico) que tem “caráter eminentemente teatral”,
um ensinamento que Bastide (2001) absorve das leituras de Michel Leiris.
Roger Bastide permaneceu no Brasil por dezesseis anos (1938-54), transitou de forma
interdisciplinar por várias áreas do conhecimento, da arte, da psicanálise, da história, entre
outras. Manteve um intenso diálogo com os intelectuais e pesquisadores brasileiros. Portando
uma perspectiva teórica antietnocêntrica, tentou entender o Brasil por meio de múltiplas
abordagens, pois era pelas pesquisas e observações que construía seus caminhos. Estudou
profundamente as religiões afro-brasileiras, utilizou procedimentos como “observação
participante”. Propagou a idéia de que temos que nos transformar naquilo que estudamos,
“transcender a nossa personalidade para aderir à alma que se encontra ligada ao dado
estudado”. (Bastide, 1983: 17).
Sua investigação transitou pela leitura de romancistas, poetas, artistas plásticos,
críticos. Analisou Euclides da Cunha, Sílvio Romero e Joaquim Nabuco. Passou pela
produção de Câmara Cascudo, Gilberto Freire e Emílio Willems, bem como pelos estudos
africanistas de Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edson Carneiro, que favoreceram sua
reflexão no sentido de entender a gênese e a formação da cultura brasileira. Bastide não se
deteve apenas na manifestação cultural, como muitos pesquisadores estrangeiros, conforme
destaca Peixoto na apresentação da obra O candomblé da Bahia.
Analisou em profundidade as religiões afro-brasileiras com o objetivo de compreender
a “civilização heterogênea com que se defrontava”, mapeou os olhares que discriminavam
índios e negros; investigou também os primeiros escritos etnográficos carregados de juízo de
valores e mais os dados coletados que lhe possibilitaram construir suas hipóteses.
A heterogeneidade da população em uma terra de contrastes e aspectos díspares,
aspectos díspares “As civilizações misturam-se nas cozinhas: azeite de dendê africano, beijus
dos índios, arroz, feijão preto brasileiros [...] se opõem pelas profissões: modista francesa,
alfaiate italiano, remendão mulato [...]. O sociólogo que quiser compreender o Brasil não raro
precisa transformar-se em poeta” (Bastide, 1976: 15). Essas contradições preocupavam os
68
estudiosos brasileiros que se perguntavam sobre as conseqüências dessas realidades tão
dispares para a formação sociocultural e socioeconômica, principalmente com relação às
misturas de negros com os brancos e índios. A preocupação era com a mestiçagem que
ocorria entre as populações, o temor de um “desequilíbrio [...] nefasto para o progresso do
país” que já estava instalado nas reflexões de pesquisadores brasileiros” .
Alguns dos autores chegavam a considerar tais disparidades como fatores
indiscutíveis de enfraquecimento intelectual e de anormalidades mentais. O
transe mítico dos fiéis dos candomblés, nas cidades; a tendência dos
campesinos para movimentos messiânicos, no meio rural, indicava a
existência de irrefreável instabilidade emocional nas camadas populares,
conseqüência da mescla de elementos raciais e culturais incongruentes; tais
manifestações patológicas comprometiam o avanço da nação na senda do
progresso. (Bastide,1983: 18)
Roger Bastide tomou esses valores, que permeavam a discussão intelectual do Brasil
nas primeiras décadas do século XX, como referencial para os estudos de campo. No
desenvolvimento dos trabalhos foi distanciando-se das perspectivas iniciais, criando novos
caminhos e tomando assim uma posição teórica inversa à dos seus antecessores. Percebeu,
com o aprofundamento de seus estudos, que a heterogeneidade cultural, “longe de pôr em
perigo o equilíbrio da sociedade ou das mentalidades”, tão anunciada pelos teóricos
brasileiros por ele pesquisado e que lhe serviu para uma primeira leitura desta terra, era na
realidade um movimento de harmonização para a continuidade da sociedade.
Atentamos para algumas observações desenvolvidas por Bastide (2001: 18) durante
suas pesquisas em candomblé. Para ele, o “transe stico” possibilitava uma integração das
etnias, o ajustamento incessante e a coesão interna das partes, que “não podiam ser tidas como
aberrantes ou patológicas”, “não se apresentavam de maneira desordenada ou selvagem”. Era
uma resposta diante das dificuldades, não estava pautado em sobrevivências de outros
tempos.“Tratava-se de elementos vivos, ativos, sadios, ‘elementos normais’ (Bastide, 1983:
19).
Os trabalhos desenvolvidos por Bastide teve repercussão no mundo ocidental no
campo da sociologia e da psicologia social. As manifestações culturais, por muito tempo
consideradas “anômalas” ou “persistências arcaicas de épocas bárbaras”, eram denominadas
pelos pesquisadores nacionais de “ilógicas”,“desviantes” pois olhavam a sociedade sob o
conhecimento fragmentado da ciência da época. Com suas investigações, Bastide conseguiu
deslocar o olhar dos analistas da sociedade brasileira para novas perspectivas metodológicas e
teóricas (1983: 19).
69
O momento em que se aproximou dos ritos do candomblé na Bahia e passou a estudá-
los tornou-se um deles. “Nascer de novo” em uma outra sociedade, não com uma “observação
participante”, mas integrar-se ao mundo do outro, deixar a condição de estrangeiro, nascer
num mundo diferente, “o mundo brasileiro”, filho de Xangô, europeu, protestante,
participante agora de um mundo de contrastes (1983: 20-1).
Esses estudos foram distanciando-se das reflexões acadêmicas brasileiras iniciais
sobre a população brasileira. Construiu a partir de estudos de Nina Rodrigues, Arthur Ramos
e Edson Carneiro a reflexão sobre o candomblé da Bahia.
Nações diversas e tradições diferentes: angola, congo, jeje-nagô (fala iorubá), queto,
ijexá segundo Bastide (2001), por certos traços do ritual podemos distinguir a nação, bem
como pelos toques dos tambores, pelo idioma dos cânticos, pelas vestes litúrgicas, pelos
nomes das divindades. Conforme seus estudos, “a influência dos iorubás domina sem
contestação o conjunto das seitas africanas, impondo seus deuses, a estrutura de suas
cerimônias e a sua metafísica aos daomeanos, aos bantos”, Em O candomblé da Bahia,
Bastide (2001: 29) estuda os candomblés nagô, queto e ijexá
A festa é apenas uma parte do ritual, pois os acontecimentos privados são mais
importantes que as festas públicas. Na apresentação do candomblé, Bastide (2001: 34-9). faz
uma divisão dos momentos em que se desenvolve o ritual. Na seqüência ele menciona as
seguintes etapas: o sacrifício, parte que está reservada a um grupo pequeno de participantes
(ainda que poucos, todos devem ser integrantes da religião); a oferenda; o padê de Exu; o
chamado dos deuses; as danças preliminares; a dança dos deuses; ritos de saída e comunhão.
Nossos contatos com as práticas de dança religiosa aconteceram em algumas festas
públicas e por meio das entrevistas com os filhos-de-santo. Em busca de informações a
respeito do trato com o corpo, as formas de apropriação e seus usos, entende-se que a todo
instante este corpo é acionado. Ou seja, desde o momento em que ao pessoa é iniciada ou está
por se iniciar, conforme depoimentos que veremos adiante, uma reestruturação e uma
integração do corpo por intermédio da purificação, da alimentação, dos cuidados. O corpo é
protegido, metamorfoseado, banhado em ervas, adornado. Nessas práticas, que se
conformaram na diáspora brasileira, todas as ações acontecem no corpo, seguem as tradições
vivas.
Durante os nossos estudos a respeito do ritual que se realiza publicamente, tentamos
ampliar o nosso olhar para essas apropriações. Apesar de não desprezar os diversos aspectos
da performance, tentamos exercitar o que pode o corpo, visualizar o que tem de corporeidade
nessas práticas, o que nos parece direta ou indiretamente ligado ao corpo. Em uma das etapas
70
do rito, o iniciado, quando tem o santo em sua carne, incorpora o universo ancestral, conforme
menciona Bastide (2001: 37): “Quando o orixá baixa, o negro é recolocado na condição de
africano, de participante da vida tribal de seus pais; então pisará com seus pés nus a terra, que
é também uma deusa”. A incorporação que ocorre é de um deus, do divino, mas também de
um universo, de uma concepção de mundo. Após a incorporação, as metamorfoses propiciam
novos semblantes, a reinvenção de um outro corpo, ou mesmo um devir de possibilidade de
múltiplos corpos, os quais se conectam com a vida, com suas histórias pessoais, que neste
trânsito entre o humano e o divino podem elaborar novas experiências de vida.
Como buscam as tradições fincadas na ancestralidade, este iniciado que participa do
ritual deixa do lado de fora da casa o corpo profanado, fragmentado. Desde o momento em
que se iniciam os preparativos da festa de invocação, os iniciados se preparam no sentido
de sacralizar o corpo. Os ritos de passagem são realizados sob uma intensa purificação do
corpo. Nas reflexões que se seguem encontramos os processos da limpeza do corpo que se
encontra profanado.
De acordo com Almeida (2000: 37), as crenças dos iorubas estão ligadas às práticas de
uma cura natural.
As questões fisiológicas raramente estão dissociadas da cura espiritual e da
concepção de vida e morte. As plantas estão sempre presentes através do uso
das folhas, raízes, fruto e das árvores de várias representações simbólicas,
vêm como outros elementos naturais, insetos, cinzas, ossos, ovos e muitos
outros objetos utilizados para a cura e prevenção de doenças [...]
Almeida (2000) relata que a mitologia ioruba concebe que as plantas e os alimentos
são componentes de cura, são presentes e riquezas dadas ao homem pelos deuses. É por meio
dos oráculos (Ifá) que se determinam os diagnósticos das doenças. Na mitologia dos iorubas
conta-se que Orumilá tinha como missão na terra distribuir o conhecimento e conceder
poderes aos humanos. O conhecimento da cura no universo desta população, o uso da
medicina vegetal é conhecido como um poder divino. A lenda de Ossanyn e Orumnmila,
filhos dos mesmos pais nos conta que
uma guerra os separou e foram criados sem se conhecerem. Muitos anos
depois, Ossayin foi enviado para abrir as matas e a arar a terra para o homem
aprender a cultivar. Ele o pode recusar porque nesse tempo era o único
homem que poderia ter a capacidade de identificar a existência e a
importância das plantas medicinais e outras ervas encantadas indicadas por
Orumnmila. Sendo assim, enquanto Ossanyn se especializou em plantas,
Orumnmila, através do jogo de Ifá, indicava os diagnósticos e a origem dos
71
sintomas. Orumnmila e Ossanyn, segundo as tradições, foram os primeiros a
conhecerem e a curarem as pessoas com plantas medicinais nas terras
Yorubá. (Almeida, 2000: 39)
Como parte da magia, os cantos, tidos como orações para os músicos do candomblé,
cumprem o que diz a tradição oral (Hampatê Bã), tiram o corpo da estagnação em que se
encontra. A fala (cantada) é uma “materialização da cadência” que vibra no corpo causando
movimentos, reinvenções de um outro corpo.
2.2. A purificação do corpo
O depoimento do professor dr. Roberto do Nascimento Paiva, ogã de Logum da Ilê
Axé Tokolê, casa de candomblé situada em Lauro de Freitas (BA), esclarece o processo da
sacralização do corpo por meio da purificação:
A idéia aqui é a de explicitar alguns procedimentos ritualísticos da purificação
do corpo no candomblé.
Primeiramente, devo esclarecer que o termo “cura” é comumente associado à
cura médica, na cultura ocidental. No momento em que se está inserido num contexto
do candomblé brasileiro, além da cura física, a cura espiritual. No candomblé, a
cura precisa ser visível, momento em que haverá indícios físicos dessa cura a partir
do espírito. As vestes devem ser brancas ou o mais claras possível. Há, na maioria
das vezes, amarrados aos antebraços, cordinhas de palha, em direção às axilas, que
protegerão aquele corpo limpo durante os dias de preceito (resguardo).
Nesse caso uma diferença que deve ser explicada: a purificação do corpo
para os que são filhos da casa e para os outros, clientes ou futuros filhos-de-santo.
Enquanto o filho da casa ou aquele que se iniciará na religião e se tornará um filho
deverá ser marcado, em seu corpo, por sinais dessa purificação, aquele que apenas
busca um tratamento, sem se envolver tanto em rituais ditos secretos, deverá
substituir as marcas por procedimentos nas vestes e no comportamento pós-ritual:
não ingerir determinados alimentos e bebidas, não manter relações sexuais, não
freqüentar ambientes aglomerados ou que tenham bebidas alcoólicas. Mas o que é
uma pessoa, definitivamente, curada no candomblé?
O primeiro passo é o corpo, a purificação deste para o ponto culminante que é o
encontro com o orixá, o santo da pessoa, o anjo de guarda mais íntimo, a nossa mais
72
profunda consciência. Nesse passo acontecerá o ebó (detalhado mais adiante). Esta
prática limpa o corpo sujo. O que é ter o corpo sujo? É o corpo que veio da rua, que
manteve relações sexuais, que ingeriu bebidas alcoólicas, que está absorto em
pensamentos eminentemente materiais.
Esse corpo precisa ser purificado para então começar o ritual, o qual é
caracterizado pela “festa” que, na nomenclatura do candomblé, é todo aquele
momento em que se vai entrar em contato com o divino, com os orixás. E a única
forma de se conectar com as divindades do candomblé será pelo corpo. Somente ele
nos dará a oportunidade de fazer essa conexão. Vale dizer que o corpo está atrelado
aos nossos cinco sentidos, que, dentro da particularidade de cada um, sobretudo do
iniciado, essa manifestação se dará em cada sentido. Por isso no candomblé se
separa os que “incorporam” (rodante) o santo, o orixá e aqueles que não incorporam
(ogãs-homens; equedes-mulheres). Quanto aos ogãs, que é o meu caso, temos
algumas atribuições numa casa de santo: uns tocam, outros cuidam dos animais a
serem oferecidos aos orixás, outros rezam, outros fazem trabalhos mais braçais. De
qualquer forma, todas essas atribuições são proporcionais aos cinco sentidos. os
rodantes rodam com o santo, razão pela qual são figuras importantíssimas e que
merecem todo o cuidado e carinho nossos, pois estão vulneráveis no corpo, mas
totalmente perceptivos no espírito. Lêem tudo, aos mais inconscientes pensamentos
das pessoas presentes.
Nessa festa não se pode prescindir da música, da voz do alabê (cantor) e do
toque dos tambores. Tudo isso ritualiza e concretiza a purificação. Para isso, todos os
atores os que vão dançar na roda, os que vão cantar e os que vão tocar e mais
aqueles que vão cambonear (secretariar) o pai-de-santo precisam também se
purificar para participar do ritual, cada um dentro da sua idade de santo, tempo na
religião e discernimento. também aqueles que não precisarão se purificar, basta
estar presentes. São os clientes, simpatizantes, curiosos, amigos e filhos de outras
casas.
O vestuário é um elemento importante num ritual de purificação, pois as cores
também purificam. A cor principal é o branco, que é a cor da reflexão, da proteção e
do luto. Todos deverão estar de branco, principalmente o iniciado ou aquele que será
o foco da purificação. É importante mencionar que todo esse ritual tem um lugar
específico para acontecer, que é numa roça de candomblé, num terreiro de
73
preferência o mais natural possível, com mata nativa, barracos de palhoça ou de
alvenaria bem simples, numa típica alusão às antigas senzalas.
Como elemento purificador, o ebó é composto de alimentos: verduras, grãos,
farinha, azeite de oliva, dendê, água, ovos, cachaça e alguns objetos, como a vela,
sempre a branca, pois na umbanda são utilizadas velas de outras cores. os
tecidos de chita, ora brancos, vermelhos ou pretos; alguidares (vasilhas de barro,
uma tigela), algodão e pólvora.
A dinâmica do ebó se caracteriza por esfregar esses alimentos no corpo do
iniciante, e essa tarefa pode ser desenvolvida por uma pessoa preparada: o pai-de-
santo, um ogã ou uma equede, desde que todos bem antigos na prática ritualística.
Deve-se obedecer a uma ordem nesse ritual, que é a mesma do xirê que irei comentar
posteriormente. Cada alimento representará a presença de um orixá. Tudo começa
com o Exu (o primeiro, o início, o mensageiro), o orixá mais corporificado, ou seja, a
sexualidade pura, as sensações sinestésicas todas, os nossos sentimentos mais
primitivos e selvagens.
Na seqüência temos Ogum, o dono dos caminhos, Oxóssi, o caçador, Ossain, o
dono das folhas, do saber e assim sucessivamente, culminando com Oxalá, o último e
por isso o mais importante, o mais velho, o branco, a pureza, deus. Findo esse
processo, o iniciante ficará pelo menos uma semana (podendo chegar a até três
meses) em completa abstinência. Pode até ir trabalhar, mas o ideal é que o iniciante
fique na casa de santo. Se isto não for possível, deve permanecer em sua casa, pois a
pessoa fica como que uma criança, um bebê recém-nascido, totalmente sensível às
coisas. Logo a sua residência deverá ser um campo de paz, jamais o contrário.
O ebó como elemento purificador tem múltiplas funções: purificar para o ritual
quando se é filho-de-santo ou curar doenças do corpo e as de cunho psicológico,
quando se é cliente ou simpatizante.
Tudo no candomblé é dual o bom e o mal, o que é filho-de-santo e o que não é
(cliente, não iniciado). Uma vez que este cliente está purificado, pode se conectar com
o seu orixá, o dono da sua cabeça, do seu destino. No iorubá (língua das rezas que os
orixás entendem), a cabeça se chama ori, e tem-se também um pré-ritual, antes na
iniciação de feitura, que é quando o iniciante será consagrado um filho-de-santo,
denominado bori. Tanto o cliente como o filho-de-santo carregam consigo a presença
do seu orixá, e o ideal é que ele esteja sempre conectado ao seu orixá para que o sinta
conectado ao seu corpo. Logo, ou se está conectado ou não se está.
74
Outra dualidade é a imaginação e a percepção, o real e o virtual. A
verossimilhança é sempre uma constante nessa dualidade. A imaginação está ligada
aos seus desejos e à projeção destes; a percepção está ligada à realidade, a uma
verdade. É comum confundir o real com aquilo que se deseja. Daí a importância da
ponderação por parte dos pais-de-santos e seu grupo mais próximo.
Com isso, a purificação do corpo está totalmente completa, o iniciante passa a
ser um iniciado e poderá ajudar seus irmãos de santo, os amigos da casa, as pessoas
em geral, sempre buscando sua purificação ao longo de toda a sua vida, sabendo que
não será apenas um ritual que o purificará adeternum, mas sim os comportamentos
éticos, pacíficos e saudáveis.
A purificação é total no sentido da integração do corpo ao universo religioso.
Destacamos que entre esses movimentos de purificação temos os cantos míticos que
aceleram este processo de integração. Posteriormente, nas festas, é um dos aspectos
que favorecem os processos de incorporação. As melodias que acompanham os rituais
escapam das concepções ocidentais de estética; elas têm uma função, são as músicas
funcionais.
Esta música fica a cargo dos ogãs ou alabês, que aprendem a música, a
utilização dos instrumentos musicais por meio da cultura da oralidade, e exercitam-se
muito na escuta do outro. A “orquestra do candomblé” compõe-se de atabaques
(rum, pi e lê), agogôs, cabaças, chocalhos, agbê (piano de cuia), adjá, xerê (usado em
festa de Xangô).
O ogã de Ylê Axè Yemonja, José Fernandes da Costa Neto (omo t-rin t-ogun), foi
evangélico dos dezessete aos dezoito anos e relat
a:
Meu pai e minha mãe freqüentavam o candomblé e convidaram-me para ir a uma
festa. Nesse dia havia faltado um ogã, e a e- de-santo, que sabia que eu tinha
praticado capoeira e tocava atabaque, pediu-me para ajudar. Depois fui em mais
duas festas e só fiquei assistindo no terreiro. A seguir, decidi entrar no candomblé e a
mãe-de-santo confirmou que eu era ogã [...]. A minha atuação é dentro de uma casa,
dar rum para o santo rum é o toque; ‘o de dança’, o alabê caminha sempre ao
lado da mãe-de-santo. Dentro da hierarquia do candomblé, onde a mãe-de-santo
estiver, o alabê tem que estar ao lado dela. Existem várias festas em que os babás e
75
iás, as mães e pais-de-santo, são convidados, e se em uma dessas ocasiões o orixá do
babá ou da vier para parabenizar o dono da festa, a importância do alabê ao lado
do pai ou da mãe nesse momento é fundamental. O alabê precisa ir ao tambor
imediatamente para dar o rum à mãe ou ao pai-de-santo”.
As cantigas que se escutam durante um ritual de candomblé são as orações. Os
filhos desta religião podem cantar quando estão em paz. Se não estiver em paz no
coração não deve cantar, pois não é uma canção é uma reza. O ritmo desenvolvido
pelo alabê marca o passo. São vários os toques: ijexá, barra vento, samba de
caboclo.[...].Nunca há planejamento antes.
Nós conhecemos várias formas de tocar, visitamos muitos terreiros, outras
festas, obrigações. Visitamos também terreiros de umbanda. Com estas visitas,
encontramos outras canções, e sentimos que é a canção certa.
A mãe-de-santo aprende várias linhas religiosas, porque chegam filhos de
diversas casas. Como trabalhar com as diferenças? Temos que saber como age o
outro lado para colher o outro filho que está chegando. Não conseguimos explicar
como é a incorporação porque ogã não pode incorporar. [...] O que a gente entende é
cabe aos ogãs puxar uma oração para agitar o filho que está incorporado. O
instrumento ocupa o espaço para fazer com que este filho penetre na vibração para
receber [...] poder do ogã do alabê no xirê. É chamar o orixá de qualquer filho, este
ogã ou alabê consegue colocar um orixá de e-de-santo em terra. Tem o poder de
ver tudo que está acontecendo, inclusive no espiritual. O alabê tem esta sensibilidade,
é vidente, antes de acontecer no xirê. Comunicação e poder, eu consigo levantar
uma mãe-de-santo se ela cair ou passar mal. O tambor tem a força de chamar um
orixá, o tambor tira a energia negativa. A música de Iansã tem que ser mais gitada,
guerreira. O toque barra o vento como se estivesse brigando, guerreando, enquanto
Iemanja é super tranqüila, relata Vagner Serafim Nicoleti, também alabê e atua junto
a José Fernandes.
2.3. A festa dos deuses
O chamamento dos deuses acontece nas festas, momento em que se encontram
presentes os filhos-de-santo, iniciantes (purificados), simpatizantes, observadores e
convidados especiais. Todos convivem sob os princípios das tradições, as quais, antes de
qualquer ritual, reverenciam os intermediários entre os homens e os deuses. Entre eles os
76
tambores, que, assim como os filhos-de-santo, são purificados e passam também por rituais de
sacralização até atingir o status de divindade. Estes ritos são presenciados apenas pelos
iniciados mais graduados e o grupo de instrumentistas. Lody (2003: 68-9) descreve todo o
processo de preparação dos tambores até o momento em que entra em cena nas festas
públicas.
Na época das festas, cada atabaque é “vestido” com uma tira de pano,
colocada no corpo do instrumento e arrematada com um laço. [...] ojá [...].
Esse ato de “vestir o atabaque” é prerrogativa de pessoas iniciadas, podendo
ter participação feminina, aliás, uma das raras participações da mulher na
música do terreiro. [...] O músico-instrumentista, na hierarquia do
candomblé, é da maior importância. Ele estabelece, pela música, contatos
com os deuses africanos e participará da quase totalidade dos rituais secretos
e públicos. Faz parte das atribuições saber tocar os ritmos, os empregos
corretos desses ritmos para os momentos das liturgias, cuidar dos atabaques,
alimentando-os periodicamente e vestindo-os nos dias de festa. [...] A
música executada pelo trio de atabaques está assentada num rígido
conhecimento de polirritmos, chamados “toques”. Cada toque é executado
pelo conjunto de três atabaques.
A festa de Oxóssi do babalorixá Kacilá-Orumilá foi um ritual realizado em um
domingo do mês de março de 2006, em São Paulo, em uma região próxima à rodovia Castelo
Branco. Quando chegamos, avistamos muita gente aguardando o início das festividades.
Grande parte dos que estavam do lado de fora vestia roupa branca, e ao nos aproximarmos
havia algumas pessoas recepcionando. Fomos entrando e nos acomodando nos espaços
disponíveis.
No centro da sala na qual foi realizado o rito havia um arranjo de flores vermelhas e
brancas que simbolizam o axé da casa. Nas paredes, muitas fotos de pais-de-santo do
candomblé da Bahia, todas as janelas com cortinas azul-clara, cor de referência de Oxóssi. Na
porta de entrada, no lado interno da sala, acima do batente havia dois potes, o ibá, pote onde
são colocadas as oferendas de búzios para a defesa da casa. “ibá do santo”, o que equivale na
linguagem do Candomblé como assentamento do santo”. (Lody, 2003: 108)
Uma mulher vestida de branco começa a andar no centro da sala fazendo os ritmos de
chamada com um instrumento conhecido por adjá. Esse momento é conhecido como xirê.
Estes ritmos intermitentes começam a vibrar por todo o ambiente. As pessoas que estavam
dispersas, conversando, ou espalhadas fora da casa e nos arredores, vão lentamente se
organizando. Umas se dirigiam mais ao centro e outras se afastavam, buscando espaço de
visibilidade. Como que atraídas por um ímã, vão se aglutinando, formando um círculo que se
77
fecha em torno dos participantes, e sob repetições intermináveis do adjá começam a entoar os
cantos e bater os tambores.
Na música ocidental as células rítmicas que se repetem são denominadas de ostinatos.
Estes criam lentamente um ciclo repetitivo que captura a linha de tempo dos participantes do
ritual. Os ritmos vão preenchendo os espaços vazios e tomando conta dos corpos. O
observador atento a essas estruturas rítmicas sente a divisão e a força que se estabelece, uma
fronteira entre o tempo corporal interior e o tempo corporal exigido no exterior e que o ritmo
dos ostinatos capturam.
Os membros da casa se mobilizam ao som do adjá, são convocados para a festa, e os
ritmos continuam insistentemente. A população que se aproxima do centro tem seus papéis
definidos. Preparam-se aquecendo o corpo para o momento da descida dos deuses.. Todos a
postos aguardam os primeiros toques. As indumentárias, sofisticadamente bem apresentadas,
demonstram a importância do rito e do investimento para o participante.
Os atabaques se fazem presentes. Tocados com varetas, preparam as chamadas para as
canções (rezas, conforme relatou o ogã José Fernandes) dos orixás. O primeiro a entrar é
Ogun, em seguida Oxóssi, Abaluaiê, Ossanha, Nanã, Oxumaré, Oxum, Ewa, Iansã (orixá da
tempestade) Xangô, Oxalá, Oxoguiã, Lugundé (filho de Oxum com Oxóssi, Iroko (vem na
festa com Oxóssi). Na seqüência, eles percorrem o espaço na dança de cada orixá que entra.
Os ogãs, entidades ritualizadas para essas festas, conforme descrevemos, tocam os
atabaques, os quais são devidamente paramentados com ojá, fitas da cor do orixá
homenageado ou branco. São em número de três e, de acordo com a nação seguida pelo
candomblé, adquirem nomes diferentes, do maior para o menor tamanho, cada um com som
diferenciado de acordo com o tipo de toque ou o tipo de som que queiram dar, percutidos com
as mãos e com varetas de madeira.
Depois do xirê, que é momento de agradecimento e louvação em comunhão com todos
os presentes, forma-se a roda de Xangô, que louva o chão, a terra, o dono da casa de
candomblé. Alguns se debruçam sobre o chão para agradecer
Após a louvação, os ritmos começam com uma dinâmica mais rápida, assim como as
cantigas. Nesse momento os filhos da casa pedem que “estas divindades dêem a honra da
presença”. A festa começa com Ogun, no xirê. Na preparação para a dança dos deuses não
existe a possessão. O momento cria um ambiente de possibilidades para a entrada dos orixás.
Durante quase uma hora canta-se e dança-se para criar uma “cristalização energética”
(definição dada por V. Santana entrevistada após o ritual): “Oxóssi é um cavaleiro. As
pessoas quando cantam a música de Oxóssi movimentam-se como o cavaleiro em cima do
78
cavalo”.. A entrevistada relata algumas sensações do corpo no momento de preparação para
receber o orixá: “O corpo vai junto. A pessoa, quando tem a possessão, perde a consciência do
corpo, alguns perdem parcialmente o domínio. A possessão provoca uma dormência, ela se
sente num outro espaço. O corpo está sendo ocupado por uma força maior, que é o orixá”,
conclui.
A festa da qual participamos teve um primeiro momento de preparação, a chamada
dos deuses (termo utilizado por Bastide, 2001), conhecido como xirê, no qual deve-se antes
reverenciar o santo que tradicionalmente todos os rituais dessa natureza reverenciam. As
danças preliminares começam com o Exu, o intermediário entre divindades e humanos; a
seguir são realizados cantos e danças para todos os santos, e termina com Oxalá, “senhor do
céu e o mais elevado dos orixás”. As culturas afro-brasileiras realizam festas para os seus
orixás, um acontecimento extremamente importante para a religião. Segundo Amaral (2002:
30), a festa de candomblé é “uma das mais expressivas instituições dessa religião”. Nessas
práticas encontramos uma “diversidade de papéis”, uma rede de relações que não passam
somente pelas nações, pelas identidades e fiéis que louvam seus deuses. No momento da festa
religiosa, estabelece-se uma rede de sociabilidade a economia, o prazer, o lazer, a estética,
entre outros aspectos citados pela autora. Podemos nos conectar com o conceito de “fato
social total” inserido nas análises de Marcel Mauss.
A festa é ritual de renovação e purificação, momento em que se “vive o mito”, “o
sonho”, momento das trocas, circulação de riquezas. É o instante escolhido para mostrar seus
deuses, a celebração coletiva e a apresentação de novos membros da religião. É momento de
consciência de seus mortos, da comunhão das etnias. Na festa, o grupo se solidariza. É
“identidade do culto”, é uma “vitrine”, “o momento em que os humanos recebem os deuses
em suas casas, às vezes em seu próprio corpo”, afirma Amaral (2002: 32). As festas ocorrem
durante o ano:
[...] em janeiro costumam acontecer muitas festas de Caboclos, na época em
que se comemora São Sebastião, quando também acontecem muitas festas
para Oxóssi. Em fevereiro, antes do início da Quaresma, acontecem muitas
festas para Ogum (por ser o início do ano), o que também pode acontecer em
abril (dia de São Jorge) ou junho, quando ele é sincretizado em Santo
Antonio. Por ocasião do início da Quaresma, faz-se/ a festa de Oxaguiã
(Lorogum) [...] Em junho são freqüentes as festas de Xangô (muitas vezes
sincretizadas com São João ou São Pedro) [...] Em agosto [...] festas de
Obuluaiê, sincretizado em São Lázaro ou São Roque [...] Em setembro
acontecem centenas de festas de erês (ou ibeji, as entidades infantis do
candomblé), em razão do sincretismo em São Cosme e São Damião,
comemorados a 27 de setembro. Também em setembro ocorrem as festas
das Águas de Oxalá (um ciclo de três festas que se realizam durante três
79
semanas), [...] seguindo-se o preceito do candomblé de que tudo (inclusive o
ano) começa com Exu e termina com Oxalá , que é sincretizado em Cristo.
As festas das iabás (orixás femininos) [...] costumam acontecer em
dezembro devido ao sincretismo,mas podem acontecer em qualquer época
do ano. Amaral (2002: 33-4)
Nesse calendário existe a festa de Iemanjá, que geralmente acontece nos meses de
dezembro ou de fevereiro. É uma festa em que se homenageia a deusa das águas do mar, que,
segundo pescadores da região de Rio Vermelho em Salvador, Iemanjá, é a única festa não
ligada à Igreja Cristã.
Duvignaud (1983: 75) relata as passagens de uma festa, “danças do mar” no nordeste
brasileiro que mistura as crenças cristãs com ritos dos descendentes de africanos.
Cada grupo traz consigo os seus deuses, os seus “orixás”, pois
depende da seita e, dela, que tais entes apareçam nos longos serões
de dança ao som do tambor, nos barrancos construídos de tábuas com
um esteio no meio que reconstitui, ao mesmo tempo, o centro do
mundo e o entrelaçamento da palhoça africana, perdida com o país de
origem. O que se via na ocasião é o mergulho na água azul e a
renovação com o mar (que banha também a África e que foi
navegado in illo tempore em dois séculos). O pacto é anualmente
renovado [...]. Acampado pelas imediações, sobre a imensa praia, os
grupos sentam e cantam ou salmodiam uma mistura de português e
africano em invocações a Maria, uma vez que Maria representa
oficialmente o casamento dos terreiros com o mar, uma Maria
esculpida em madeira e pintada de um azul lavado que se vai, logo a
seguir, mergulhar nas ondas e que talvez se confunda com a
divindade das águas, Iemanjá, a sereia do país dos Yoruba.
80
Imagem 1 - Iemanjá
Também aconteceram outras comemorações, como aniversários de iniciação (feitura),
“sagrado”, agradecimento”. O preparo da festa mobiliza todos os seguidores da casa. Antes
de iniciar os preparativos, jogam-se os búzios para verificar os caminhos que serão seguidos, .
Decididos os caminhos, acionam-se os seguidores para se conseguir ajuda para o evento.
Forma-se uma rede de colaboradores, que buscam ajuda nas casas (candomblé), escolas de
samba, lojas de artigos religiosas, boates gays, parentesco de santo e nação, afirma a
pesquisadora. “A rede de informação do povo de santo é tão eficiente que no candomblé é
costume dizer, no candomblé, que “se você não quer que saibam de uma coisa, não deixe que
81
aconteça”. Pois, se acontecer, todos saberão mais cedo ou mais tarde, tenha o fato acontecido
na dimensão pública ou privada da vida do indivíduo que vive nessa religião.” Amaral 2002:
36).
Todos contribuem com as tarefas do terreiro. A descrição feita pela pesquisadora
(Amaral, 2002: 36-42) é rica em informações sobre todos os procedimentos que ocorrem na
preparação da festa, como os alimentos que serão utilizados, os cuidados com as roupas a
serem confeccionadas, os adereços dos atabaques, as flores, a limpeza do local, a cozinha,
lugar onde são transmitidos muitos conhecimentos do candomblé.
A parte pública da festa de candomblé, por suas características intrínsecas de ludismo
o canto, a canção, o ultrapassamento do “eu” no transe, um figurino e papéis previamente
conhecidos por todos os que dela participam –, assume ares de drama ritual, semelhante à
representação teatral, em que são vividas as histórias dos deuses e a do povo-de-santo.
Conferimos em Festas e civilizações de Duvignaud (1983: 222) uma discussão a
respeito das festas. Nas linhas discutidas pelo autor encontramos uma distinção entre festa de
participação e festa de representação, muito comumente encontrada nas sociedades complexas
como as nossas.
Diremos que a festa, assim como o transe, permitem às pessoas e
coletividades sobrepujarem a “normalidade” e chegarem ao estado onde tudo
se torna possível porque o indivíduo, então, não se inscreve apenas em sua
essência humana, porém, em uma natureza, que ele completa pela sua
experiência, formulada ou não. O sistema de festa [...] implica, como o
transe no qual ela tem expressão mais freqüente, a intensidade de uma
natureza descoberta por intermédio das manifestações extremas. [...]. O
transe ou os fenômenos de possessão constituem, assim, um meio de
abordagem da festa. A descoberta de um modifica o sujeito que se engaja
nesta confrontação, na medida exata em que o primeiro é transformado.
Coletivo ou individual, o conhecimento que a festa promove orienta a
descoberta da força de uma destruição de que a consciência pessoal não
participa. Tornar-se outro, identificar-se com um personagem imaginário
não é, como se costuma dizer, um ato psicológico; é a revelação ou o
encontro de uma evidência que e em julgamento todo um sistema de
cultura e restabelece, por certo período, um diálogo do homem com a
natureza que recusamos como todo empenho.
Seguindo o pensamento de Bastide (2001), retomamos a idéia do início deste capítulo,
quando o pesquisador francês percorre regiões de Salvador que naquele momento não
estavam urbanizadas. Ele menciona o martelar surdo dos tambores sagrados enquanto
“foguetes riscam os céus, desenhando sobre eles novas estrelas. Cada foguete que sobe”,
82
confere Bastide, “é o sinal que uma divindade veio da África possuir um dos seus filhos na
terra do exílio”.
Os deuses entram em cena, anuncia Amaral (2002: 47). Segundo sua descrição, os
orixás “vêm à terra”, incorporam em seus filhos para dançar. A autora usa o termo “brincar no
xirê “termo que em ioruba significa exatamente brincar, dançar, divertir-se”. No conjunto de
gestos representados nas performances de cada orixá que descrevem corporalmente as suas
características, os mitos são revividos e apresentados. Todos os personagens do “drama
religioso” entram em cena, cada um com a chamada da música, e todos que participam do xirê
dançam com os gestos do orixá que acabou de chegar. A cada orixá, uma dança, um canto, um
ritmo. “Os deuses incorporam seus eleitos e dançam majestosamente: usam roupas brilhantes,
ricas, coroas e cetros, espadas e espelhos, são os personagens principais do drama religioso”
(Amaral, 2002: 48).
Acrescentamos uma reflexão de Amaral (2002) aos papéis atribuídos a cada
participante da casa:
[...] a construção de papéis rituais não se faz somente na festa, mas
principalmente nela que eles se expressam em sua plenitude, pois é quando
se encontram reunidos todos os membros do terreiro que podem no
“palco” que é o barracão – contracenar entre si na presença do público
assistente, que, em muitos casos, pode também atuar, acompanhando
com canto, palmas, louvações os “atos” representados ali. [...] Nesse
“teatro”, cada papel é construído com base numa série de mitos, movimentos
ritualizados, roupas, emblemas próprios, sons, cores, além é claro, de tempo,
conhecimento, direitos e deveres específicos. [...] todos os papéis religiosos
são vividos intensamente, numa atuação sincrônica, cujos elementos
ordenadores são dados pelo xirê.
O xirê apresenta a visão de mundo e complexidade do grupo. Ele costura “a atuação
dos personagens religiosos em função dos papéis e dos momentos adequados à sua
representação”. Amaral exemplifica ( 2002: 52)
Primeiro toca-se para exu, no padê (porque ele é o intermediário entre os
homens e os orixás, entre o mundo do além e o da terra, é ele que chama e
traz os orixás à terra), depois para ogum (porque é dono dos caminhos e dos
metais e sem ele e suas invenções da faca e da enxada o sacrifício aos orixás
e o trabalho na terra estariam impedidos, nada haveria neste mundo ogum
é, ainda, irmão de exu), oxóssi (porque é irmão de ogum e porque está ligado
à sobrevivência através da caça e da pesca), obaluaiê (porque é o orixá das
cura e das doenças ou aquele que as traz), ossaim (dono das folhas que
curam, daí sua ligação com obaluaiê) oxumaré (deus do arco-íris, por sua
ligação com xangô, como seu escravo e aquele que faz a ligação entre o céu
– nuvens – e a terra), xangô (deus do trovão e do fogo, trazido por oxumaré),
83
oxum (esposa favorita de xangô e deusa do amor e da fertilidade), logun-édé
(o filho de oxum com oxóssi), iansã (a deusa dos ventos, que no mito criou
logun-edé juntamente com ogum quando oxum o abandonou), oba (deusa
das águas revoltas, tida em muitas casas como irmã de iansã e a terceira
mulher de xangô), nanã (a mais velhas das iabás, deusa da lama primordial,
tida com o mãe de iansã e uma das mulheres de oxalá), ieman(deusa do
mar, dona das cabeças e mulher de oxalá) e, entretanto, seguem outra ordem,
que pode privilegiar o parentesco em lugar das relações míticas entre os
orixás.
A ordenação acima é que o rumo da reunião, “norteia os acontecimentos da festa”,
marca os “momentos apropriados”, momentos de reverência, acompanhados pelo “histórico
musical” do grupo, o uso do “paó”, que são as palmas ritmadas. Nesta seqüência de descrição,
a autora destaque às características da festa, que tem sua forma de ser de acordo com a
nação de origem. Os ritmos seguem a nação de origem. As entidades (orixás) são acionadas
por meio dos ritmos e da música, e é nesse momento que os transes acontecem. A intensidade
deste momento é “dinamizada pelo ritmo dos atabaques, [...] os orixás expressam suas
características através dos ritmos particulares, criando um momento musical em que elas se
tornam inteligíveis e plenas de sentido religioso” (Amaral, 2002: 54).
Encontramos nas descrições do xirê dadas pela autora que o candomblé para muitas
pessoas é o lazer, é o momento lúdico, “candomblé é boate de pobre” (apud Sandra de xangô
Amaral, 2002: 54). Após o xirê é que acontecem as “rodas de samba”, enquanto, namoram e
flertam.
No candomblé, de fato, muita diversão nas festas. Além das danças dos
orixás, verdadeiros “espetáculos” de música, de dança e de figurino, há
depois o ajeum, quando são servidas aos presentes as comidas “de santo”.
Enquanto isso, contam-se piadas, dançam-se sambas, conseguem favores dos
assistentes para os iniciados. A festa é também uma espécie de “jogo”, que
consiste em reconhecer peças, códigos, decifrar signos (que orixá é aquele
que virou, qual a sua qualidade, o que as contas penduradas no pescoço
“dizem”), uma espécie de texto já muito conhecido que se acompanha
praticamente “dizendo” as falas dos personagens junto com os atores. Uma
festa de candomblé tem “fim” quando outra começa a ser gestada. Até
servirá de assunto cotidianamente nos terreiros e entre as pessoas que dela
participam. Será avaliada quanto ao rigor ritual, quanto à fartura da comida,
quando à assistência, à beleza, à etiqueta etc.
As conexões que se estabelecem nesses encontros, o modo de fazer e de ser dos
indivíduos que se vinculam à comunidade de candomblé favorecem uma expansão do mundo
dos comuns para o mundo divino, e por sua vez as atitudes dos deuses se assemelham à dos
humanos. As fronteiras são frágeis e as narrativas míticas nos mostram o quanto de humano
84
existe nas biografias dos mitos. Estes reproduzem os conflitos, os dilemas, e os sentimentos
dos humanos são ancorados em um corpo humano. Os deuses se mostram não inseridos nos
conceitos de perfeição, mas da complexa fragilidade do demens (Morin)
Contrariando as filosofias ocidentais, que se esquecem do corpo no cotidiano, como
ocorre historicamente nos rituais religiosos cristãos, que retiram o corpo de cena, no
candomblé não existe a possibilidade de exclusão do corpo. Este é evidenciado e valorizado
desde a passagem pelo primeiro portal do “território sagrado” até um dos momentos mais
altos de sacralização, que é a incorporação. Existe no “povo-de-santo” a visão de “totalidade”
na qual se entrelaça a “mente”, o “corpo” e a coletividade”, todos aspectos destacados na
apresentação do universo da tradição oral (Hampatê Bã).
2.4. Os mitos
Conforme Keleman (2001:18), a ligação do homem com o mágico e o mítico auxilia
na “incorporação” na organização de seu espaço, de sua continuidade e identidade, nas suas
maneiras de agir e de se comportar. É o sentido da busca de uma ordenação em uma
linguagem inteligível, para quem a cria. O mito voz à realidade interna, promove uma
corporificação de nossas histórias, traz para a consciência nossos dramas. “Uma história que
brota da história do processo corporal para orientar a vida e indicar valores” (Keleman, 2001:
27).
Começamos pelo mito que nos conta a respeito de um mensageiro que andava pelas
terras africanas dos povos iorubas conhecido como Exu. Ele tentava encontrar soluções para
os problemas que afligiam tanto os orixás quanto os homens. Aconselhado a escutar as
narrativas de vida de todos que dividiam a Terra com os homens, ou seja, os animais, as
divindades, o conhecimento acumulado foi dado a um adivinho (Orumilá, Ifá), que por sua
vez o transmitiu aos “pais dos segredos”(Babalaôs) (Prandi, 2001: 17).
O padê (reunião) de Exu é uma prática inicial em qualquer ritual de candomblé. Os
Filhos de Gandhi (candomblé de rua) realizam primeiro a cerimônia, como pudemos
testemunhar em frente ao Museu de Jorge Amado (Pelourinho – Salvador), ligam-se ao
sagrado antes de qualquer saída em procissão, pedem permissão a Exu antes de continuar a
caminhada em dia de festa. Assim, envolvidos nos ritmos de ijexá, temos um espelho das
sonoridades e ritos do candomblé de rua.
85
Seguindo a descrição de Augras (2008: 91), Exu, a rigor, não é orixá, “mas sim
personificação do princípio de transformação”. O primeiro a ser invocado. Um trickster
13
,
define Augras (2008: 91-9). Na sua descrição a respeito da figura, pontua as especificidades
de ser da divindade mais jovem dos orixás.
Concede o seu apoio a quem lhe oferece sacrifícios, mas a aliança tem que
ser constantemente renovada. Como a própria vida, transforma-se sem parar,
e assim faz o universo funcionar. Esse funcionamento, porém, não é
uniforme. Exu muda o jogo a seu bel-prazer. Enreda e desenreda os
caminhos do mundo. [...] São inúmeras as peças que prega. Não expressam
malignidade, antes resultam dessa pluralidade, essa polivalência, essa
capacidade de ser um e múltiplo, imutável e cambiante que faz a essência de
Exu [...]. Tudo o que se une, se multiplica, se separa, se transforma, tudo
isso é Exu. Exu é vida com todas as sua contradições e sínteses.
Imagem 2 - Exu
13
Trick : habilidade, proeza, artimanha, ardil, estratagema, truque, trapaça, prestidigitação,
brincadeira, peça, tique, hábito peculiar, cacoete [...] (Houaiss, 1998: 819).
86
Feitos os cerimoniais para Exu e cumprindo as práticas e tradições de reverenciá-lo
antes de qualquer ritual, um dos primeiros mitos que trabalhamos foi Ogum, pai protetor
festejado e mito reavivado nas terras do Candeal. Carlinhos Brown é filho de Ogum, cujo
símbolo mítico é da atividade criadora, orixá do progresso, da tecnologia, que abre os
caminhos. É mais visto como guerreiro.
Relembrando que a comunidade do Candeal Pequeno de Brotas retoma suas raízes
históricas (Lima, 2001), a visibilidade do artista (Carlinhos Brown) na década de 1990
promove uma revisão das práticas culturais. Carlinhos Brown e os timbaleiros “resgatam as
tradições do culto a Ogum”. O candomblé vira a fonte inesgotável para as criações do artista,
a começar pelos objetos e a estética encontrados no seu camarim, que mais se assemelham a
um centro de candomblé. Desde a entrada nos deparamos com adornos com as folhas de
palmeiras desfiadas, segundo Pierre Verger (2000), mariow (ioruba): “Era o traje que Ogum
usava outrora”.
Imagem 3 - Ogum
87
Muitas atitudes tomadas pelo artista são remetidas às suas ligações com Ogum
“Filho de todos os orixás e protegido por Ogum” (Isto É Gente, 19/2/2001). Oficializada a sua
ligação com os orixás, a produção sonora de Candombléss “atualiza os pontos de candomblé”
e reforça as matrizes complexas das sonoridades do candomblé na música popular brasileira.
Viana faz uma referência importante que utilizamos em nossa pesquisa para fundamentar a
nossa percepção com relação a arte de Carlinhos Brown e as fontes do candomblé: “A música
do candomblé não ficou parada no tempo, como era na pré-história da Nigéria. Ela se
transforma constantemente. Não havia candomblé na África como o que hoje no Brasil, e
sua música - misturando ritmos de povos diferentes que passaram a conviver em terreiros
brasileiros - é uma criação do século XIX, que o ficou estática no século XIX e que
provavelmente vai continuar apresentando novidades constantes. Então: o que se toca no
candomblé é tão contemporâneo quanto qualquer pop”.. Associadas a estas produções do
cantor relembramos que as danças apresentadas em seus shows nos remetem a coreografias
religiosas de inúmeras divindades.
Conforme avançamos nas investigações das possibilidades do corpo nos processos de
sacralização, necessitamos mais das narrativas dos praticantes. Apesar de termos um fio
metodológico condutor, este método cartográfico se movimenta quando conseguimos novos
relatos. A cada depoimento abrimos novas possibilidades de compreensão do que Hampatê Bã
(1982) nos conta a respeito da simbiose do corpo. Alguns destes relatos demonstram as
transformações do corpo e todas as práticas que envolvem o momento de metamorfose
(Augras, 2008).
Imagem 4 – Religiosidade afro-brasileira
88
2.5. A dança dos deuses contada pelos seus filhos
Imagem 5 – Oxalufan
89
Imagem 6 - Oxaguian
A dança, as performances, a vocalidade, os processos sociais e religiosos entre
humanos e deuses. Oxalá! Oxalufã! Orixalá! Oxaguiã!
90
O dia do santo é sexta-feira. O corpo do santo veste-se de branco, tudo em
branco, as contas
14
, roupas, a pureza do branco se estende para o universo da ética,
da moral, os filhos do santo seguem os preceitos da religião ancestral. É dia de
purificação! O corpo se nutre com bebida sagrada. O vinho, somente o vinho pode ser
ingerido, os alimentos são escolhidos [...] pouco sal [...] e nada de sexo.
Nosso entrevistado
15
relata certa ansiedade com a proximidade de um dia muito
especial. Como será?, questiona ele.
Fala de sua iniciação, seu rito de passagem, um “rito de agregação”. Descreve como
chegou e se integrou às tradições da religião afro-brasileira:
Vou fazer o santo em janeiro de 2008, uma trajetória consciente [...] cheguei
pela dor, quando eu cheguei na peneira, jogo de búzios da mãe-de- santo, ela me
perguntou: qual o seu nome e data de nascimento? depois de três anos, onde fui
parar? [...] e isto já faz sete anos , virei filho-de-santo.
Enquanto narrava seus primeiros contatos com o universo religioso do candomblé,
observava o “corpo de presença” do entrevistado. E esta presença ficou mais evidente, o olhar
forte, incisivo, enquanto refletia e descrevia as sensações do corpo no momento da virada, no
momento da incorporação.
[...] é muito louco [...] são coisas que você não controla, não pensa no que faz,
quando fala [...], situações em que se tem lapso de memória do que acontece,
você está de um lado da sala, de repente acorda do outro lado de modo diferente,
vestido diferente, ao lado de pessoas desconhecidas. No começo assusta muito.
Depois também, ao longo do tempo, aprende a conviver com este susto. você quer
tentar racionalizar e é impossível, é uma manifestação num corpo físico, a
manifestação metafísica. Inicialmente você busca a razão. As gestualidades não são
14
“Conta é uma designação geral para tudo que é processado por enfiamento com a finalidade de ser
um fio-de-contas [...] cada indivíduo iniciado, se iniciado, terá muitos e diferentes tipos de contas.
uma hierarquia nos fios-de-contas conforme a história de seu portador. Fios que remetem à Nação,
outros à família-de-santo da qual ele é componente, à particularidades da sua iniciação e aos novos
rituais de passagem obrigações cíclicas que serão distinguidos por diferentes emblemas do corpo,
entre eles os fios-de contas” (Lody, 2001: 63-4).
15
Filho-de-santo, G.G, 1 de novembro de 2007. (entrevista)
91
controladas, você não se vê virado, confunde, você tem lapsos de memória do que
está acontecendo, você tem hiatos, não tem o todo.
Em contrapartida, situações super down, tenso nas coisas mundanas, no
cotidiano. quando você conta com o sagrado, o sagrado proporciona o relaxamento,
o conforto, o afago. Quando se fala de umorixá feminino ou masculino é o seu orixá,
ele quer o seu bem, ele é o pai, ele é a mãe.
A dança de Oxaguiã é um pouco a calma de Oxalá e um pouco de Ogum. Pela
mitologia dos orixá,. Ogum ensinou-o a guerrear, por isso ele carrega a cor azul, em
respeito à memória de Ogum. A ferramenta de sala é uma mão de pilão, então ele vai
dançando o movimento de pilar o pilão, pilar o inhame e, claro, estamos falando
da cabeça, do ori, estamos falando da coreografia [...]. Existe um conhecimento
anterior dos gestos e dos movimentos da dança.
No que antecede o ritual, ressalta que [...] no xirê tenho muito mais visibilidade
a respeito dos orixás, boiadeiros, as cantigas ritmadas pelos coros [aqui o
entrevistado refere-se aos atabaques] que marcam as batidas ritualísticas. Você vai
vendo as reações que são físicas, mas que você sabe que não são físicas [...] o
coração dispara, sente tonturas, uma coisa no estômago, não é desconforto. De
repente, você perde o controle, quando viu, foi e está voltando, e não existe
ninguém que segura, você é capturado [...]. Posso falar com você e não sou eu quem
está falando, por mais que eu esteja consciente, há a questão da intuição.
No xirê, relata nosso entrevistado:
as pessoas como eu, que não têm coordenação para dançar, desenvolvem um
balé sincronizado, perfeito, que você se pergunta, como pode?”. O entrevistado deu
um exemplo de Oxumaré, o orido movimento que assegura a unidade do universo.
Enquanto o entrevistado falava, fazia gestos de Oxumaré, da cobra. Seu corpo pode
fazer um s[...] pessoas que estão incorporadas, que dão um pulo e fincam o no
chão e não se machucam [...].choque [...] em querer explicar, entender e racionalizar,
é quase impossível, ou impossível, [...] hoje eu vou com um espírito de satisfação,
você sai moído fisicamente, fui em festa que ficamos quatros horas de festa, e nesta
festa acontece muito [...], depende do motivo da festa [...].
92
Imagem 7 - Iansã
Iansã, filha do fogo, nasce da união do elemento fogo e água, da tempestade,
do raio que corta o céu no meio de uma chuva [...] a tempestade é o poder
manifesto de Iansã. rainha dos raios, das ventanias, do tempo que fecha sem
chover. (Reis, 2000)
Iansã, orixá guerreiro, sabe defender o que é seu, vai à luta em busca da sua felicidade.
Reis (2000) descreve as características da divindade que exterioriza sua raiva e seu ódio na
mesma medida em que demonstra seus sentimentos de amor e alegria. Rejeita o papel
feminino tradicional. É um orixá reconhecido pela sensualidade e foi a primeira esposa de
Xangô. Segue o relato de uma filha de Iansã (Rodrigues). que nos fala sobre o dia em que se
festeja o seu santo.
93
O dia do santo é na quarta-feira, é um dia de emoção e agitação porque o
próprio santo carrega consigo, uma energia abrasadora, pois ela é a dona do fogo. E
um dia muito elétrico, a festa requer muitas atividades. Iansã é a dona do acarajé,
então tem a saída na sala que é servida ao povo como um ebó, uma limpeza espiritual.
Junto com Xangô, que é o deus do trovão, da justiça, ela carrega sobre sua cabeça o
alguidar de barro, vertendo fogo, sai fogo de dentro. Isto para os presentes da festa,
que ficam felizes e entusiasmados, e a energia se espalha por todo o salão.
Os preparativos da festa começam com a preocupação com roupas, com os
adereços. A dança de Iansã é muito sensual, rápida. Com o seu eroxim (adereço feito
de rabo de cavalo), ela afasta os eguns (espíritos dos mortos). É um orixá guerreiro
cujo grito de guerra é Eparrei! É admirada e querida por todos os orixás, porque com
todos ela teve relacionamentos de amor e ódio: para os orixás masculinos, de amor, e
para os orixás femininos, de ódio.
No momento das cantigas, depois xirê, quando Iansã é invocada pelo babalorixá,
pelos ogãs (percursionistas), é entoada uma cantiga sem letra, um ritmo parecido com
uma quebra de pratos. Nesse momento um calor começa a subir pela planta dos pés,
acelera o coração, você perde o domínio da visão e o controle mental. Iansã chegou
nesse momento, você quer pensar em andar, correr e não consegue mais, perde todo o
domínio. Eu, como pessoa sou tímida, mas ela é muito expansiva e faz coisa que
jamais eu faria.
Depois da possessão, as equedes acordam o santo (Iansã) e voltamos ao nosso
estado normal, ainda bastante aceleradas até que o corpo volte a um estado normal.
Neste relato, a performance toma caminhos indescritíveis. Uma metamorfose do
corpo, o trânsito de um corpo que assume o corpo divino, torna-se nesse momento o divino, o
divinizado, o corpo vivo de Iansã que une opostos: a água e o fogo.
O vermelho vivo é sua cor. A espada, as pulseiras, o diadema, todos os
objetos de metal são de cobre. Sua roupa é toda vermelha, como as contas de
seu colar. É a impetuosa filha do fogo. [...] Pode movimentar-se suavemente
e, de repente, girar em turbilhão como o vento da tempestade. É-lhe comum
empunhar a espada, desafiando Ogum em duelo, uma dança conjunta que é
uma das coisas mais belas a que se pode assistir no terreiro [...]. Sua figura
heróica é extremamente popular. Assimilada como Santa Bárbara, por causa
do raio é festejada em Salvador no Mercado [...] no dia 4 de dezembro.
(Augras, 2008:149-50)
94
A entrevistada descreve que no momento da incorporação ela “perde a visão e o
controle mental”. O indivíduo, ao incorporar o divino, perde o domínio do corpo até o
momento em que é despertado e volta ao normal. O corpo que se transforma, passa de um
estado a outro, do humano para divino. O humano dá espaço às características do orixá.
Em anotações de aula do curso “Corpo e Cultura”, Sant’Anna ressalta que “quando os
deuses não estão encarnados eles estão mais potentes”. A cultura dos iniciados é imbuída de
um conhecimento natural das possibilidades de seu corpo, não o ignoram, mas o evidenciam
nas suas possibilidades de movimentos. Nessas práticas de incorporação, o incorporado
liberta-se do “corpo civilizado”, seus limites de movimentos são rompidos, possibilidade
de expressão, de representação. Vimos no relato da filha de Iansã que quando tudo termina e o
orixá deixa seu corpo, ela “acorda”, “volta ao normal”. O trânsito desse corpo entre o divino e
o terreno lhe dá o estado de um corpo santo, purificado, integrado.
Augras (2008:75) traz para a sua discussão um aspecto importante diante da que se
desenvolveu historicamente a respeito do corpo, desde as reflexões que se voltavam para uma
análise que circundava o campo das patologias a um condicionamento, chegando a uma
impossibilidade de explicação da ação, tendo como premissa que o campo do sagrado é um
espaço de subjetividade e, conseqüentemente, não há como dimensionar os acontecimentos. O
que fica explicito é que existe uma condição para esta “simbiose”, a inconsciência. O corpo
humano é um microcosmo que se conecta ao macrocosmo. Esta relação feita de aspectos
heterogêneos e complexos acontece no tempo e no espaço.
O longo processo da elaboração do corpo sagrado consiste nessa conexão do homem
com os aspectos mais complexos. Nos relatos, filhas e filhos-de-santo mencionam a
integração nas práticas de iniciação e sacralização do corpo. Segundo J. N. (não quis se
identificar).
[...] a mudança acontece quando saio do urbano para o rural levo meu corpo
comigo, com minhas memórias, não sinto falta de televisão existe uma integração
do corpo e da mente a todo o momento, a todo o momento somos invocados para a
corporeidade. As vestimentas são diferentes, andamos de saias, tomamos banhos na
cachoeira, banhos de folhas que é para tirar o que é da rua, o profano, é entendido
homo. Eu não posso separar o corpo e a mente [...] quando a gente vai para a
religião africana, tem dificuldade de unir o corpo e a mente. Então tem as canções
os cantos de orixá, que tomam o corpo como um todo... Na cultura ocidental faz-se a
separação grosseira, separando corpo, tronco, braços, esquartejando o homem.
95
Meu pai... e minha mãe-pequena não estão aqui [...], mas quando vou fazer
alguma coisa, meu comportamento é modificado. Deixei de ser filha para ser parte
do orixá... Eu me sinto muito próxima do orixá... Corpo e matéria, corpo e espírito
estas divisões não existem no candomblé. O corpo é visto como um todo. Quando
tomo o meu banho de ervas, pode entrar alguém e ver meu corpo nu, por exemplo; o
ogã não vai olhar partes do corpo, o meu peito, mas sim o todo.
Entre as entrevistas realizadas, M. Maciel, que reverencia não o candomblé, mas é
eclética na sua devoção, relata suas sensações diante das experiências com relação ao
candomblé. A filha de Iansã narra as suas dificuldades ao assimilar uma cultura que privilegia
o corporal:
[...] quem cultua trinta ou quarenta anos é que tem muito conhecimento. A
tradição é passada e tem que guardar na memória. Fiz a iniciação, sou feita no
candomblé, tem nove anos de aprendizado vou nas festas, mas não freqüento o
candomblé. freqüentei, gosto de ir na igreja católica, kardecismo. Conheço o
evangelho e não faço distinção entre todos os que freqüentam a minha casa. Hoje
freqüento a umbanda. Na umbanda a dança não é tanto... Candomblé tem toda uma
cultura: quando vai fazer santo, você fica 21 dias para aprender alguns passos. O
ensinamento do candomblé é como o período de quatro anos de uma faculdade,
depois o pós-graduação e o doutorado. É o mesmo ritmo. Tem que estar ali dentro,
participando de tudo que tem na festa, desde a limpeza – enfeitar a casa, o barracão,
onde se vai acumulando o conhecimento. Cultuo meu santo, mas deveria tomar
continuidade. Muitas vezes não tem como largar os filhos[...]
Às vezes você sente uma agressão. Em diversos momentos, quando você descobre
cada movimento que existe dentro o candomblé, a agressão dentro dos orôs (a
matança) –, primitivos em vários sentidos, Depois que participa e o caminho da
divindade, fica mais... muito distante da nossa cultura, porque tem muitos atos. Por
que não se faz em público? Porque as pessoas vão achar que é do tempo das
cavernas. O candomblé quer deixar a tradição, os cultos não mudam, e por isso não é
aberto para o público os segredos do candomblé estão hoje na internet isto se
deve a pessoas jovens no culto, é marmotagem, aparece uma pessoa raspada, corre
muito dinheiro – é um meio de ganhar dinheiro, salário.
96
A dança também é muito agressiva – mexe muito com o seu corpo. Tem Ogum – e
representa a ida a uma guerra, dança como se estivesse em uma guerra. Quando está
dançando existe toda uma cultura para aplacar a ira; joga-se um pano branco para
aplacar a ira. Quando se junta Ogum e Exu, também acontece o transe e um vai para
cima do outro. No auge, joga-se o pano branco. Dançar, a dificuldade é grande na
cultura, o modo é muito diferente. Os africanos mexem muito com o ombro e braços e
você tenta em casa. Alguns exercícios são difíceis para dançar para o orixá. Você não
consegue.
Outro depoimento dado por Valter Marcos Ribeiro de Xangô: diz o filho-de-santo da
comunidade de Oxumarê Salvador (BA):
“A música no corpo é consentimento, não dá para explicar o que acontece”.
Imagem 8 - Xangô
97
Rapaz, homem que santo é que nem mulher que toma cachaça. Não se
governa, Comecei a freqüentar candomblé muito cedo. Minha madrinha era de
candomblé e eu vinha às sessões que se todas as quartas-feiras. Aprendi a tocar.
Aos sete anos fui morar com o meu pai, pois minha mãe não tinha condições de me
criar . Fiquei distante dez anos do candomblé. Meu pai não gostava, mantinha rédea
curta. Em 1990, mais ou menos, vim ajudar no barracão, na arrumação. Em seis
meses, de agosto a janeiro, fui suspenso como ogã (toca os tambores). Para se
aprender a tocar, primeiro exercita-se no agogô, instrumento no qual aprende-se o
ritmo de cada orixá.
Quando percorremos as narrativas da mitologia dos orixás (Prandi, 2001), percebemos
a infinidade de características que cada um deles assumem nas suas inúmeras possibilidades
de ser. As metamorfoses que se realizam no corpo o expandem e o atualizam, são
multifacetadas. Trazemos neste trabalho Hampatê com a sua visão de simbiose do corpo.
Nos depoimentos que se seguem temos uma exposição deste corpo que em dado momento
deixa a condição humana e adota uma outra forma de ser.
2.6. A dança dos espíritos
2.6.1. A dança dos deuses na etnia Nyungüe (Nyungüe Língua e Etnia)
Nos relatos da africana
16
, pertencente à etnia e língua Nyungüe, apresentamos o trajeto
e a formação de conceitos da comunidade com práticas tribais. O que enfatizamos nesses
relatos são os ritos de passagem deste povo, a “vocalidade”, o corpo no devir animal e
humano, o corpo simbiótico, bem como os da comunidade que vive as transformações
políticas e econômicas nos últimos vinte anos, em Tête, Moçambique.
Em uma bibliografia oferecida pela própria entrevistada denominada História de
Moçambique, de Malyn Newitt, considerada a primeira história de Moçambique desde o
16
Segundo Leonilda Adelino Antonio Sanveca Muatiacale, jornalista, mestranda na PUCSP
nascida na província de Tetê (Moçambique), lingua e etnia Nyungüe.
98
século XV, encontramos escritos que tratam desde a chegada dos portugueses; 1891, ano do
tratado luso-britânico que definiu as fronteiras atuais de Moçambique, e 1975, data de
independência (fala das influências muçulmana, indiana e a presença dominante dos
portugueses). Recortamos o conteúdo de leitura que contextualiza os últimos vinte anos.
As tradições do conhecimento permanecem até os dias atuais e são transmitidas de
uma geração para outra. Conforme a entrevistada,
todo o conhecimento passado em casa é oral, e o conceito de família não está
restrito somente a pai e mãe, irmãos e tios. O conceito de família diz respeito
a todos da aldeia. O sentido de família para eles é mais amplo. [...] Os mais
velhos têm autoridade na educação de uma criança, o vínculo de família diz
respeito à comunidade. Transmitidos em conversas informais, o
conhecimento também é passado nos ritos. Um dos ritos que desde criança
acontecia em minha aldeia era o rito conhecido como dança dos espíritos.
Quando criança, relata a jornalista, freqüentava as casas dos espíritos:
Na minha etnia, Malombo é religião tradicional. Estes espíritos estão ligados às
entidades espirituais. As danças de alegria, de acontecimento, cada uma tem um
nome. Malombo é dança de entidades divinas. Perto de minha casa e ao lado da
escola encontra-se o recinto do Malombo. Na casa de uma senhora tem o espírito de
poder, tem uma árvore grande. Nas danças recreativas, uma que se chama njole,
estas danças são as mulheres que dançam, mas geralmente adolescentes. Elas giram
bem rápido; a dança é alegre, acompanhada pelos ritmos de batuque. As letras falam
assim: no meio do canto, fala-se o nome das pessoas; se é de um casamento, as letras
referem-se ao casamento. Nessas reuniões os espíritos que dançavam eram de
animais. Pessoas com espírito de leão, de macaco, de cobras de vários tipos. Essas
pessoas têm o poder da cura, da adivinhação, o poder de influenciar o agir de outras
pessoas, o poder psicológico e o poder material.
As lembranças da entrevistada sobre os ritos vêm à tona, ficam visíveis em seu
semblante. Os seus olhos ficam mais brilhantes e maiores, enquanto fala dos acontecimentos e
relatos de sua infância. Empolga-se expressando-se também em gestos. Relembra que seu pai
era missionário e não seguia essas práticas, enquanto suas duas tias freqüentavam essa casa e
tinham na época espírito de animal quando entravam em transe.
99
Uma era o espírito de macaco e outra de cobra “que é a mais pacífica”. É vista
com bons olhos. Quando falecia alguém na tribo, os espíritos delas vinham na família
para visitar. Elas chegavam normais, cumprimentam, davam os pêsames e em
determinado momento entravam em transe. O espírito delas vinha dar os pêsames
junto com os antepassados. Quando entravam em transe ou quando se juntavam em
outras cerimônias, esses espíritos falavam outro dialeto. Toda a pessoa que entra em
transe fala outro dialeto. Sempre tem tradutores e estes tradutores são pessoas que
têm contato com os espíritos.
Na dança dos rituais, cada espírito tem a sua cor. As pessoas que têm o espírito
de animal são convocadas para as cerimônias. Quando é para pedido de chuva em
favor de um bem para a aldeia, o ritmo e dança é para o espírito de cobra. Todos
em roda dançam e cantam, ao som dos batuqueiros de vários tamanhos.
Deixam alimentos em volta do espaço do sacrifício, Todos os que têm o espírito
de animal vão a essas cerimônias. As pessoas em formação, com espírito de leão,
convocam a comunidade. A aldeia participa quando os chefes são empossados.
Os chefes são eleitos pela comunidade e têm a autoridade de ordenar e convocar
os encontros, os rituais de cerimônias da chuva, para as procissões e todos os
acontecimentos da tribo. A autoridade maior é considerada mambo (senhor).
No ritual, o público chega com roupas de várias divindades de animais: roupa de
cobra, de macaco, os colares, miçangas; levam nas mãos a cauda do boi, a cauda de
cachorro, e vão dançando em círculo. Qualquer dança é em círculo. Os batuques dão
o sinal. Estes são aquecidos durante o dia. Os batuques feitos de pele de animal dão
os toques, depois que começam os cantos.
Os que têm espíritos de animais são confinados em uma casa. Alguns chegam,
conversam, outros já estão dançando quando entram em transe. Alguns, os que são
espíritos de macaco, pulam; outros, com espírito da cobra, rastejam.
As danças acontecem com pouca freqüência. Acontecem com a necessidade de
evocar para parar a chuva, por exemplo, para que mande a chuva. Se alguém está
muito doente , alguém da família dança, como se fosse uma celebração de pedir;
quando colhem, fazem as bebidas tradicionais, os espíritos vão agradecendo o fato.
Se um bem aconteceu, há uma proteção dos deuses não só para uma pessoa, mas
para a coletividade. Acreditam que a doença foi enviada por uma outra entidade de
antepassados, pedido de alguma coisa, ou ficaram muito tempo sem dar atenção a
esta divindade. Celebram como reparação, procuram o chefe espiritual para serem
100
encaminhadas no processo de iniciação, marcam o dia. Quando são convidados,
todos que têm esse espírito ficam na expectativa. Vai entrar em transe, todos estão em
volta dela, os espíritos mais velhos já começam a dançar, dançam em volta dela.
Terminam o canto e não aconteceu nada, a pessoa vai ficando aérea e todos
comemoram. evidência nos gestos, na linguagem, a assistente vai traduzindo e
falando, o espírito vai falando.
Na seqüência dessas narrativas, descreve os tipos de alimentos que esses espíritos
consomem durante o transe, quando os participantes incorporam os espíritos dos animais. Por
exemplo:
para o espírito da cobra, a prova é a pimenta pilada. Pilaram um prato cheio de
pimenta e ela vai com a língua igual de cobra, e de rastro, come tudo. Ao espírito de
leopardo dá-se o sangue, carneiro, cabra, e ele vai bebendo o sangue. Parece
história, mas é verdade. Engraçado que quando terminam o transe, vão se esticando e
escuta-se o barulho dos ossos, das articulações, e você que a pessoa voltou a si. É
uma coisa misteriosa.
O forte é que o espírito que recebi de um antepassado é uma herança, um dom,
mas também se acredita que não é qualquer pessoa que recebe. Este tem idéia do
escolhido, o eleito. Cheguei a ver pessoa que antes de saber que tem este espírito, ela
vai ficando doente, começa a ir ao curandeiro, e estes falam que estão preparando
porque vai receber a ordem de alguém, o espírito. A cura da pessoa (menina citada
pela entrevistada) não depende de nenhum remédio científico, e quando marcam a
consulta, o dia em que vai fazer cair, trazer o espírito, você vai experimentar, entrar
em transe, o espírito... Criam o condicionamento, a pessoa tem certeza, faz o pedido
aos mambos (grandes), o curandeiro descobre em você a tendência, qual é o espírito.
Os relatos da entrevistada nos forneceram os dados para a compreensão de mais uma
das possibilidades do corpo, uma das nossas questões iniciais: O que pode o corpo (Espinosa,
apud Deleuze 2002). Impossível não nos remetermos a Serres (2004) quando em Variações
sobre o corpo descreve (metamorfoses) suas impressões a respeito do humano e dos animais:
“homem simbiótico comentado por Hampatê (1982) e que por algumas vezes a ele nos
referimos. A revelação da plasticidade do corpo que é sagrado, integrado aos diversos reinos e
que é fonte de criação popular brasileira nas práticas da cultura da oralidade, nos levou para a
101
reflexão de Antonacci (2002) ou aos ritos que favorecem o fato de o corpo acolher as forças
invisíveis e sagradas, o corpo, lugar de passagem de “forças não-humanas” (Sant’Anna, 2001:
104).
As narrativas da entrevistada se estenderam além dos nossos questionamentos, o que
nos trouxe mais elementos para compor a nossa investigação. Não somente dos rituais das
danças dos espíritos, mas também as formas de inserção de uma corporeidade musicada na
vida dos habitantes dessa comunidade desde a infância.
Desde criança a música é uma coisa espontânea, não tem escola de música.
Começa cantando, a família canta (todos da comunidade), não há família organizada
(a organização ocidental composta de pai, mãe e filhos). Por exemplo, as
brincadeiras são as danças conhecidas como joly. Não tem nada organizado, brincam
de jogo, uma busca interna. Criança que não vai à escola, aprende o hino nacional,
hinos da revolução, ensinavam os cantos da revolução, você sabe cantar na sua
língua [...]. O que acontece nas famílias quando tem luar, contam histórias de
fábulas, as histórias são cantadas, e isto é muito forte, o coelho canta por este jeito, o
leão tem a voz dele, e assim desenvolve a expressão, narrativas cantadas. Um dos
aspectos é o teatro, a representação, o canto dos animais; existe a gramática,
gravações de contos. Brincadeiras com dança, danças típicas de meninas e meninos.
Enquanto não conseguem modular os batuques, tocam as latas, em idade de seis anos.
O batuque é conservado para as cerimoniais. Não sabem construir seu próprio
batuque, talvez percebendo o som, brincando, explorando o som. Na minha casa era
um rodízio. O pároco, como tinha casa na cidade e não na aldeia, vinha em nossa
casa quando tinha luar. Fazíamos a roda de histórias, e as pessoas se juntavam para
montar as histórias, e nelas tinham ensinamentos, a esperteza do coelho, pode
transportar para a vida real, a coragem a história do coelho, o coelho muito esperto.
Adivinhas são narradas cantando, por exemplo. Um objeto retratado de maneira
sutil. Advinha através de cantos, pilar cantando e fazer o ritmo. No interior, nas
aldeias não tem moinho, os pilões são grandes, as pessoas não questionam, vão
trabalhando. Quando ajuntam, cantam com o pilador, este sobe num tom e desce com
o outro, as canções retratam o dia-a-dia da machamba (roça). A letra de uma das
músicas diz assim: Tua mãe foi para machamba...”. Em ritmo de brincadeira, estão
trabalhando. As mulheres e os homens, quando vão para a mata, vão assobiando,
cantando; quando estão pastorando, cantam altíssimo, enquanto estão levando os
102
animais para a montanha. Muitas histórias são relacionadas ao animal da selva, as
histórias da costa, animais marítimos, animais que são valentes, histórias de outros
animais fracos que se aproveitam dos outros, outros animais que têm que fazer
sacrifício para superar as dificudades [...]
A música continua, os batuques continuam, os homens tocam. Na verdade, o
batuque é tocado pelos homens. É impressionante que na igreja [dos missionários na
qual o pai da entrevistada faz parte] as mulheres tocam os batuques. A inculturação
do evangelho os europeus levaram, os ritos romanos não tinham batuques, piano,
harmônio. A língua em latim. Quando a conferência dos bispos do Vaticano II
terminou em 69, que deu abertura, o processo de inculturação, não foi tão forte, esta
abertura como o processo de independência, e pouco tempo nas missas e
celebrações entrou o batuque, e a Bíblia começou a ser traduzida nos dialetos nossos,
propostas de cada lugar de cada país. Nas igrejas as mulheres tocam batuques, é
aleatório, não tem a restrição como nas culturas, também nunca se questionou; os
próprios batuques (tambores) são grandes, pelos tons, os homens sentam neles.
Tocam a noite toda, mulheres solistas e cantoras, seguram as vozes femininas,
homens seguram as vozes masculinas, a mulher que aprendeu a tocar, toca qualquer
instrumento. Momentos típicos, gestos típicos da cultura, dotados, é um desafio e aos
poucos está assumindo.
2.7. Rumo à comunidade
Durante nossa pesquisa visitamos algumas comunidades, o povo de Oxumare Salvador
(BA), inicialmente para um primeiro contato e depois para uma investigação mais detalhada.
O contato realizado com a comunidade foi intermediado por V. Santana, que mora em São
Paulo mas é membro da casa de Oxumare.
Foram marcadas algumas vezes as idas para essa comunidade, mas em diversas
ocasiões elas foram adiadas por motivos de trabalho e outros contratempos. Conseguimos
acertar a data para um período não muito propício por ser mais instável.
O dia prometia muita chuva, contrastando o mês de janeiro, que é feito de muito calor;
o tempo estava nublado em Salvador. Munida de mapas, saí de Campo Grande em direção à
avenida Vasco da Gama. Logo encontrei alguém que conhecia bem o local e obtive uma
direção mais precisa. Passamos por alguns locais conhecidos, como o Farol da Barra, espaço
de shows e eventos. O contraste social em torno do Shopping da Barra –, prédios de
103
apartamentos de classe média alta frente às construções sem reboco é uma paisagem urbana
que se repete nesse local. Chegamos ali em vinte minutos. Muito próximo da avenida, espaços
que se tocam, um novo portal. Começa aí o território mágico religioso, um outro mundo, lugar
de passagem do território profano, da rua para um local sagrado. Novamente o portal de
passagem e eu tinha à minha frente uma longa caminhada em sentido ascendente.
Deparei-me com a entrada do local, uma escadaria de 101 degraus, coberta de arcos
que provavelmente é enfeitado em dia de festa. O caminho é ladeado de plantas medicinais,
plantas de proteção, espada-de-são-jorge, comigo-ninguém-pode, entre outras. Durante a
subida até a roça, trazia à mente o poema africano sobre a ancestralidade de Birago-Diop
dedicado ao sacerdote Antônio de Oxumare (fundador da casa de Oxumare que tem suas
raízes no século XIX).
Ouça o vento
O soluço do arbusto
É o sopro dos antepassados
Nossos mortos não partiram
Estão na densa sombra
Os mortos não estão sobre a terra
Estão na árvore que se agita
Na madeira que geme
Estão na água que dorme
Estão na cabana, na multidão
Os mortos não morreram
Nossos mortos não partiram
Estão no ventre da mulher
No vagido do bebê
E no tronco que queima
Os mortos não estão sobe a terra
Estão no fogo que se apaga
Nas plantas que choram
Na rocha que geme
Estão na casa
Nossos mortos não morreram
Fomos avançando e ao mesmo tempo observando a vegetação e encontramos pelo
caminho uma senhora bastante idosa que mexia na terra, arrancando as ervas daninhas que
cresciam ao redor das plantas de cura. Visualizei a escada e ainda tinha um pouco menos da
metade até chegar ao topo. Aparentemente uma casa em um terreno amplo, mas chegando
mais perto em volta da residência havia divisões com portões e para além desses, outras casas,
moradores que convivem na comunidade; crianças e animais soltos pelo terreno.
104
A casa maior estava fechada e na frente dela três mulheres conversavam. Aproximei-
me e me apresentei. Pediram para alguém que estava do outro lado do terreiro chamar a “tia
Ana Laura”. Em seguida vem a senhora. Ela mostrou-me o local externo e pediu que me
sentasse em um barracão. Então chamou um dos filhos-de-santo para me falar do trabalho que
desenvolvem na roça. Enquanto conversávamos, algumas pessoas trabalhavam; todos ao redor
tinham muito o que fazer.
Durante o percurso na roça, ia descrevendo os locais. A comunidade centenária guarda
em sua sala de rituais a imagem da visita de Pierre Verger. A sala na qual se jogam os búzios,
a sala dos rituais com o axé plantado cravado no meio da sala. As casas dos santos são
distribuídas no terreno (quartos em que se guarda os santos), uma ao lado da outra. Elas ficam
separadas da casa maior. Após percorrer esses espaços com descrições mais detalhadas dos
símbolos de cada local, fomos para o barracão de entrada, e “tia Ana Laura” foi pausadamente
descrevendo a sua chegada àquele local.
Muito centrada em seus pensamentos, começou a narrar que mais de cinqüenta
anos veio para o candomblé. Tinha apenas catorze anos quando saiu de casa para se instalar
na roça. Ainda menina, tinha algumas determinações para sua vida. Durante a sua descrição
pessoal, fazia algumas comparações com relação aos tempos passados e às práticas da
religião, comentava a respeito das transformações que estavam presentes nas comunidades,
saudosa com relação às práticas do passado.
Estranhava o confronto entre jovens e as tradições, que são passadas pelos mais velhos
“os jovens não escutam os mais velhos na comunidade” –, o convívio delicado entre as
gerações e a distribuição do poder no interior dessas comunidades afloram em forma de
descontentamento. A sua fala nos passava a idéia de uma comunidade que não existe mais,
mas que existiu um tempo em que isto foi possível, pois havia o compartilhamento, havia uma
comunhão. Faz referência a um tempo em que os laços eram mais estreitos, mais
harmoniosos.
O que vimos nas comunidades visitadas foram discursos que transitam fortemente para
recuperação de unidade, e as formas de recuperação desta unidade passam por resgatar as
referências de suas tradições, mas também uma luta incessante diante de outras religiões que
tentam, no mundo globalizado, ganhar um novo adepto para sua igreja.
No Candeal Pequeno de Brotas destacamos uma ação que explicita novas formas de
articulação. Movimenta-se no bairro a tradição da religiosidade dos ancestrais e esta absorve a
contemporaneidade, que é explícita em suas músicas e danças, resultando em uma
atualização, e não em um congelamento de tradições.
105
Os trajetos que percorremos entre os terreiros eletrônicos e religiosos trouxeram para
esta pesquisa novas paisagens a respeito da corporeidade. O corpo, morada de todos nós,
dilata-se e estende-se inteiro quando ritualizado, torna-se “hipercomplexo” (Serres, 2001:
335), larga o antigo saber e se aproxima das sutilezas de conhecer o mundo pela pele, pelo
faro desenvolvido, pela intuição.
Estas novas janelas que se abriram, resultado das pesquisas e investidas nas culturas
de tradição, trouxeram paisagens que estavam presentes no cotidiano, mas não são vistas
pelos olhos comuns. As metamorfoses observadas no corpo dos iniciados eram textos que
necessitavam de fundamentações teóricas e práticas, que em alguns momentos buscamos nas
origens, mas também na contemporaneidade.
Entender os deslocamentos das tradições nas práticas do artista mestiço Carlinhos
Brown exigiu um olhar despojado, pois entendemos desde o início da pesquisa que é
investigando as origens que poderemos problematizar as questões na atualidade. É impossível
esquivar-se das tradições, pois elas proporcionam nossos trajetos; cabe a nós atualizá-los.
Quando nos voltamos para as primeiras indagações que realizávamos a respeito do corpo,
colhíamos todas as imagens, sons, danças, representações que nos chegavam. A cada gesto
que detectávamos tentávamos não encaixar em padrões, mas perscrutar os trajetos e verificar
os encontros e devires que estes trajetos (Deleuze, 1997) nos traziam como conteúdo da
pesquisa. Sustentamos grande parte desta tese seguindo os mapas abertos, o método
cartográfico conforme encontramos nas reflexões de Martín-Barbero (2004), avançamos os
territórios tateando as mediações que encontrávamos pelo caminho, entre eles o Candeal
Guetho Square e as tradições e formas de purificação e integração do corpo.
O corpo nas tradições, conforme estudamos em Hampatê em nossas pesquisas de
campo, tem o poder de transformar-se, e isto se deve ao exercício de deixar os fluxos sonoros
passarem pelo corpo. No caso das performances, estas reverberam as cadências e pulsos
internos em gestos. Os gestos transformam-se em coreografias, em expressões
contemporâneas ou míticas, sinalizam o que pode o corpo, o seu poder mutante. Não
queremos fazer o movimento dual de tradição e contemporaneidade, o que existe “entre” os
processos de deslocamentos de temporalidades.
A corporeidade representada nos ensaios/shows, composta dos nativos (artistas e
descendentes das tradições), as metamorfoses dos músicos e do cantor que encenava rituais
indígenas, mitos africanos e gregos são mais bem compreendidos após nossa pesquisa.
Também a corporeidade da “massa” (turistas, estrangeiro ao bairro) que acompanhava em
conexão com os fluxos de ressonâncias de gestos, ritmos e sons. Alguns transpareciam as
106
conexões que estabeleciam corporalmente com o acontecimento, admiráveis metamorfoses;
outros apenas simulavam. Víamos ao vivo corpos sacralizados, integrados, e simulações de
danças, corpos profanados, fragmentados.
Nosso interesse em estudar esta cultura aconteceu em grande parte por uma sensação
de pertencimento. Assim como em pesquisas anteriores, quando nos limitávamos a investigar
as sonoridades improvisadas dos grupos de jazz, esta dimensão da corporeidade já nos tomava
a atenção. Engelman, musicoterapeuta e pesquisadora da “escuta como espaço de relação”,
deixa sua reflexão no que se refere à sensação de pertencimento:
Penso que a sensação de pertencimento se pela relação
direta funcional
dos acontecimentos da vida, ou seja, na tradição oral o que se preserva é
“um sentido para as ações daquele grupo humano no fluxo da vida”, que se
repete para gerar uma continuidade por função. Função aqui é pensada como
“o que funciona enquanto produção de invenção de vida” e isso, no século
XXI, já é bastante, uma vez que as ações tendem a se efetivar pela repetição
do aumento capital (o corpo que vende). Talvez possamos pensar que o
pertencimento se dá exatamente porque esse corpo expressa a vida, enquanto
o outro exibe o capital.
2.8. A des-ritualização do corpo
A construção do corpo moderno tratado por Le Breton (2006) rompe
gradativamente com a conexão que se tinha do corpo com a natureza e o cosmo.
“Meu corpo não é mais meu corpo” assim diz Primo Levi na simplicidade
de um enunciado que lembra o que foi ontem o inumano. Na hora em que se
multiplicam os corpos virtuais, em que se aprofunda a exploração visual do
ser vivo, em que se comerciam o sangue e os órgãos, em que se programa a
reprodução da vida, em que se vai apagando a fronteira entre o mecânico e o
orgânico mediante a multiplicação dos implantes, em que a genética se
aproxima da replicação da individualidade, é mais que nunca necessário
interrogar, experimentar o limite do humano: “Meu corpo será sempre meu
corpo? A história do corpo está apenas começando”. (Courtine (2008: 11-2)
O corpo anterior à filosofia platônica era concebido não na dualidade. Havia uma
distinção do corpo e da alma não como diferentes, mas colocados com a mesma importância.
Um se relaciona com o outro, existe uma porosidade entre corpo e alma, natureza e cultura,
não hierarquia. Nas tradições orientais e nas tradições populares brasileiras segundo
107
Sant`Anna
17
, essas práticas continuam: como as curas, o curandeirismo que tem no seu
imaginário as relações do corpo e a alma que se conectam intimamente. Assim vimos durante
todo o nosso trajeto pela cultura pesquisada. No capítulo que segue temos as reflexões em
grande parte a respeito deste corpo desritualizado.
17
Anotações de aula a partir das reflexões desenvolvidas pela profª dra. Denize Bernuzzi. Sant´Anna
na disciplina História do Corpo do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica=,
PUCSP. 2º semestre de 2008.
108
CAPÍTULO 3 - OLHARES SOBRE O CORPO: DES-RITUALIZAÇÃO
3.1. Cartografias: metodologias para uma reflexão sobre o corpo
Diante de terras desconhecidas, a primeira ão é rastrear, capturar as informações de
várias procedências, os fragmentos de sons, flashes de cores, os afetos, sem desprezar os detalhes.
Ao fazer um trajeto, temos várias fontes que nos alimentam. Não somente as escrituras podem
nos contar sobre a realidade: o ato de observar nos proporciona subir e descer montanhas,
atravessar longas distâncias. As imagens, os sons sentidos, os movimentos, todos eles também
são materiais a ser investigados. Feita a análise da topografia, o caminhar torna-se necessário.
Encontrar as performances que buscamos nos trará a resposta das indagações a que nos
propomos.
Todo mapa carrega informações visíveis e invisíveis. Quando seguimos os roteiros
turísticos, os fluxos por onde devemos transitar já estão estabelecidos. Atentos ao que está
inscrito e normatizado, percebemos que mapas prontos estão contagiados pelo olhar de quem os
traça, às vezes um olhar hegemônico, um olhar que não capta as singularidades.
O itinerário que traçamos para o nosso estudo pautou-se inicialmente nas reflexões de
Jesus Martín-Barbero (1997). Nas pistas teóricas por ele apresentadas, encontramos as propostas
metodológicas que nos possibilitaram “redesenhar” novos conceitos. Em seus estudos, o autor
propõe uma análise que possibilita a formulação de novas questões, seus traçados teóricos
ampliam o horizonte de investigação. Trata-se de mapas abertos, sem fronteiras:
[...] avançar tateando, sem mapa ou tendo apenas um mapa noturno.Um
mapa que sirva para questionar as mesmas coisas dominação, produção e
trabalho mas a partir do outro lado: as brechas, o consumo e o prazer. Um
mapa que não sirva para a fuga, e sim para o reconhecimento da situação a
partir das mediações e dos sujeitos. (Martín-Barbero, 1997: 288)
Reforça o uso do mapa “noturno”. Acrescentamos que, no mapa noturno, o pesquisador
tem a possibilidade de ressituar os estudos dos meios desde a investigação das matrizes culturais,
a partir do corpo, dos espaços sociais e das operações comunicacionais dos diferentes atores do
processo, até os desafios que a globalização traz para as ciências sociais quando se aciona a
reflexão de Nestor Garcia Canclini, que propõe uma compreensão da “multivocidade de
processos e lógicas” vividos na atualidade (Martín-Barbero, 2004).
109
Na montagem de suas cartografias, Martín-Barbero (2004) relata-nos que encontrou
visões adversas sobre o termo cartografia e também cartografia cognitiva. Para alguns teóricos,
comenta o estudioso, a cartografia é um método que simplifica, deforma as figuras de
representação. Outros, por sua vez, a olham na fronteira da ciência com a arte, situando-a em uma
“ambigüidade ilimitada”. No embate entre limitação ou incerteza do método, Martín-Barbero
(2004) ilumina a possibilidade de olhar não a partir das fronteiras que separam os territórios, mas
da construção de imagens de inter-relações, pontes de entrelaçamentos dos caminhos que nos
levam a outras paragens.
Para atravessar essas pontes e chegar a outras paragens, não podemos restringir os
espaços. Precisamos de cartografias “moventes”, cartas abertas para capturar a produção dos
sentidos, e estas não têm lugar fixo e muito menos estável. O cartógrafo, no exercício de seu
ofício, move-se em múltiplas direções, o que favorece criar sempre outros itinerários, criar novas
perspectivas teóricas, bem como o desvelar de outras realidades, tais quais as rotas de tribos
urbanas, dos migrantes que redesenham novos caminhos, elaborando, assim, novas cartografias.
O arquipélago é um mapa aberto, “nossos mapas cognitivos”, segundo Martín-Barbero
(2004: 13). É um exemplo desprovido de fronteiras, diz o autor, e suas ilhas falam entre si,
dialogam e interconectam o diverso. Nas pistas de reflexão de Nestor Garcia Canclini, Martín-
Barbero, pensando no âmbito das cartografias cognitivas, que, segundo ele, se direcionam para
“dois planos” que expõem os caminhos adotados pelo pesquisador perante a globalização,
salienta:
[...] Nestor Garcia Canclini não se limita expor teorias sobre os fatos da
globalização, mas assume de frente os desafios que o fato de pensar a
globalização traz para as ciências sociais, começando pela impossibilidade
de pensá-la como processo num sentido. A ruptura com o monoteísmo
ideológico, o da única clave para compreender o todo unificado pelo motor,
o ator e o antagonismo, não serve para mapear uma multiplicidade de
processos fortemente articulados entre eles próprios, porém regidos por
diversas lógicas em muito diferentes temporalidades: a homogeneidade e a
velocidade com as quais se movimenta a rede financeira são certas, mas a
heterogeneidade e a lentidão dos modos como operam as transformações
culturais também o são. Para fazer inteligível essa multivocidade de
processos e lógicas, Nestor Garcia Canclini opta por construir uma
pluralidade de pistas de penetração com duas figuras: a das perguntas e a das
narrativas; a nova forma de fazer o mapa exige a mudança de discurso e
escrita [...]. (Martín-Barbero, 2004:15)
110
Neste sentido, conforme observou Martín-Barbero (idem: 15), com base nas observações
de Nestor Garcia Canclini sobre a construção dos mapas, exigem-se hoje novas formas de se
construir os mapas, a “multivocidade de processos e lógicas” requer a construção de uma
pluralidade de pistas a partir das “perguntas” e “narrativas”, o que provoca uma mudança de
“discurso e escrita”. Referindo-se ainda ao pensamento de Nestor Garcia Canclini, acrescenta
que, frente à multiplicidade de “questões e experiências” da realidade globalizada, como, por
exemplo, “o executivo de uma grande empresa e o operário sem trabalho, obrigados a emigrar
para outro país, a dona-de-casa e o governante, o desenhista de modas na capital e o artista numa
cidade de fronteira com os Estados Unidos. A multiplicidade de “questões e experiências” de
“dados duros e de metáforas” em que se constroem as articulações entre campos diversos que vão
do econômico ao trabalhista e político, passando pelas implicações que se estabelecem entre
economia e cultura e pelas reorganizações das “instituições e socialidades”, exige outras políticas
que “ressituem” o Estado e “reexpressem o sentido da política e do público”.
O segundo plano do qual nos fala Martín-Barbero (2004) refere-se às reflexões
desenvolvidas no Primeiro Colóquio Internacional sobre Espaços, Imaginários, organizado pela
Faculdade de Filosofia e Letras da Unam no México, em 1999; no Pensar en los Interstícios,
Instituto Pensar em Bogotá, 1999; na Constelaciones de la Comunicación, revista da Fundación
Walter Benjamin, 2000. Todas essas referências sintetizam novos espaços para se pensar as novas
formas de se traçar os mapas de investigação que precisamos para nos aproximar desta realidade
tão complexa que nos apresenta a atualidade
Martín-Barbero (2004) traça itinerários de investigação da comunicação na América
Latina. Sugere pensar a sociedade dos anos 1990 a partir da comunicação, que sob o seu ponto de
vista é uma “tarefa de envergadura antropológica”. O final de século XX não traz somente os
deslocamentos do capital e inovações tecnológicas. “Pensar na América Latina é cada dia mais
uma tarefa de envergadura antropológica”. O que também está em “jogo”, acentua o
pesquisador, são as:
[...] profundas transformações na cultura cotidiana das maiorias: mudanças
que trazem à superfície estratos profundos da memória coletiva ao mesmo
tempo em que movimentam imaginários que fragmentam e des-historicizam.
Mudanças que nos confrontam com uma acelerada desterritorialização das
demarcações culturais e com desconcertantes hibridizações nas identidades.
(2004: 209)
O que acontece na América Latina, nos informa Martín-Barbero (2004), é que a
integração das massas populacionais à modernidade realiza-se não pelos livros, mas pelas novas
111
tecnologias da indústria do audiovisual. O pesquisador conclui sua análise constatando uma
mudança de sensibilidade em virtude das novas formas de apropriação do conhecimento, o que
traz como conseqüência a necessidade de repensar os conceitos de cultura. Conforme anuncia
Martín-Barbero (2004:210), esta realidade está transformando “os modos de ver, de imaginar e de
narrar, de sentir e de pensar”. O cenário das relações entre cultura e comunicação expostas acima
resultam em:
[...] desestruturação das comunidades e da fragmentação da experiência, o da
perda da autonomia do cultural e da mescla arbitrária das tradições, o da
emergência de novas culturas que desafiam tanto a sistemas educativos
incapazes de se encarregar do que os meios maciços significam e são
culturalmente, como políticas culturais dedicadas ainda majoritariamente a
difundir e conservar. (2004: 210)
As mudanças tecnológicas que ocorrem na sociedade ocidental dos séculos XX e XXI
refletem em mudanças também culturais. As novas formas de apropriação e realização da cultura
apresentada pelo autor nos remete a uma revisão dos processos culturais tradicionais.
Nos primeiros momentos dos estudos da cultura, esta era investigada a partir dos relatos
que favoreciam esclarecer o lugar da cultura e também se aproximar da vida que transita pela
arte, ou a arte que, em movimento contínuo, se comunica com a vida. Traziam-se, a partir dessas
práticas, modos de viver e de ser no dia-a-dia. Esses relatos do cotidiano tomaram formas
diversas quando foram escritos, apareceram por meio dos folhetos de cordel, das canções, dos
folhetins e fascículos de novelas, faziam parte da cultura dos “não-letrados”.
Com a entrada do povo em cena, pelos relatos de gêneros, entre os quais o melodrama,
segundo Martín-Barbero (2004), temos a gestação do “maciço”. Buscar a narrativa no popular
nos remete às matrizes do oral:
[...] Vista a partir de seus modos de narrar, a cultura popular continua sendo
a dos que mal sabem ler, que lêem muito pouco e que não sabem escrever.
Pergunte a um homem do campo de que modo ele faz a sua vida, e poderão
constatar não a riqueza de seu saber e a precisão de seu vocabulário, mas
a expressividade de seu saber contar. Peçam a ele, porém, que escreva o que
disse, e verão que se cala. Isso nos aponta, em positivo, a outra face, a da
persistência dos dispositivos da cultura
oral
enquanto dispositivos de
enunciação tanto nos modos de narrar como nos de ler. (Martín-Barbero,
2004: 159)
Foi em busca dos sujeitos que transitam nas “brechas” do cotidiano urbano, que relatam
seus imaginários por intermédio dos seus cantos e danças, repertórios gestuais e vocais, sagrados
e profanos, que demos início ao estudo das produções de artistas que se deslocam das margens da
112
sociedade, como Carlinhos Brown e o grupo Timbalada, e agenciam as transformações sociais.
Neste diálogo dos artistas que têm suas marcas e origens nas matrizes do candomblé e nas
produções latino-americanas, que reciclam e recriam este repertório de tradições, encontramos
um corpo diferente, corpos imbuídos pelos pulsos e movimentos, elementos vivos da tradição,
corpos que gingam, que expandem seus costumes para as ruas da cidade, popularizando-se entre
nativos e não-nativos.
O movimento primeiro deste trabalho foi caminhar em meio às festas sagradas e profanas,
na busca de pistas das performances. Simultaneamente, delineamos os mapas e demarcamos os
percursos metodológicos. Entre os fluxos de conhecimentos coletados, a partir de etnografias e
estudos teóricos, dilatamos o território de investigação. Enxergamos que o diálogo entre as
culturas tradicionais e aquelas do mundo contemporâneo, no que se refere às performances, cria
novas possibilidades de investigação, pois a “contaminação”(Greiner, 2005)
18
rompe com a
divisão entre sagrado e profano.
Com as leituras de Paul Zumthor (2005), entendemos que existem nas práticas
performáticas produções de sentidos, o corpo é território de simbolização, recria-se a cada
performance (convencional, natural, histórica ou livre). A voz implica o corpo e, segundo o autor,
a voz “expande o corpo, deslocando o corpo para muito além de sua epiderme; mas, em
contrapartida, o corpo a ancora no real vivido” (p. 89). No que se refere aos ritos, Zumthor (p. 99)
os define como
Uma ação que abarca o grupo social, definindo-lhe papéis funcionais e, ao
mesmo tempo, assegurando ao grupo relações tranqüilizadoras com o outro
mundo, a divindade, as forças diante das quais o homem se sente
dependente. [...] O rito é constituído de um gesto, e este explicita a voz
escandida ou cantada. Poderíamos nos exprimir nestes mesmos termos a
respeito da maioria das manifestações da poesia oral de que falamos até aqui.
A voz ritual é pronunciada, segundo as formas de linguagem particulares,
num tom que pode ser o de um canto determinado, num espaço-tempo que é
o dos deuses, a palavra secreta e imperativa que permite ao grupo viver,
ocupar o espaço de sua assembléia.
18
Contaminação é um termo utilizado por Greiner, com a seguinte acepção: [...] contaminação
simultânea entre dois sistemas sígnicos onde ambos trocam informações de modo a evoluir em
processo, juntos [...]. Pensar nas relações entre corpo e cultura e até mesmo em multiculturalismo a
partir dessas reflexões é reconhecer que a preservação de limites é uma ficção. No entanto, isto não
significa que não existam especificidades e muito menos que estas não devam ser valorizadas” (2005:
104).
113
Vimos em nosso trabalho os corpos em processo de “contaminação”, em processo de
“mistura”
19
. Essas misturas” resultam em uma mestiçagem de práticas, uma mestiçagem
entre o sagrado e o profano que originam outras práticas de sacralização. Aqui entendemos a
religiosidade do candomblé que escapa para as ruas, mas, também, do catolicismo que adota
as performances do candomblé no interior de suas igrejas, como veremos posteriormente nas
pesquisas de campo. O corpo é espaço de conexão entre as religiosidades jeje-nagô e cristã.
Por meio desta conexão, fluxos de informação são trocados, assimilados, incorporados e
sedimentados. Voltamos para a sociologia e antropologia do corpo.
Referência primeira para a nossa investigação a respeito do corpo nas performances é
Marcel Mauss, ponto de partida de estudiosos que se voltaram para os usos do corpo, em
diversas culturas e temporalidades. Uma “plêiade” de pesquisadores franceses buscaram em
Mauss, ressonâncias diretas com o modernismo de seu pensamento. Citado e referenciado em
obras contemporâneas produzidas nos séculos XX e XXI, quanto por estudiosos que
investigaram o corpo em diversos campos do conhecimento, Mauss descreve “as maneiras
pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se
de seu corpo.” (Mauss, 2003:401). O autor menciona o corpo sendo um instrumento natural
modelado pela cultura em que está inserido. A constatação do fato envolve a análise das
diferenças culturais que são construídas historicamente, e de uma geração a outra os hábitos
se solidificam. O pesquisador das “técnicas do corpo” aciona o conceito de “homem total”,
amplia o olhar, considera não os aspectos físicos e biológicos, inclui em sua análise as
intermediações psicológicas.
No território da sociologia do corpo, traçamos ainda uma reflexão teórica a partir de
Le Breton
20
(2006), que apresenta a corporeidade humana inserida em um contexto social e
19
Michel Serres, o autor que circula pelos sentidos, desenvolve “uma filosofia dos corpos misturados,
uma proposta da cultura da mestiçagem entre o duro e o suave, o claro e o escuro, o antigo e o
contemporâneo, o monoteísmo e o politeísmo, o branco e o preto, e todas as cores da palheta, sem
exclusão nem ódios recíprocos” (2001).
20
Em suas reflexões volta o olhar sobre outras sociedades nas quais “o corpo não é isolado do homem
e está inserido em uma rede complexa de correspondências entre a condição humana e a natureza ou o
cosmo que o cerca. Um estudo exemplar de M. Leenhardt aponta que, por exemplo, para os Canaques,
no interior da sociedade comunitário, nenhum termo específico é utilizado para referir-se aos órgãos
ou ao próprio corpo. O conjunto dos componentes do que chamamos “corpo” é emprestado à
vegetação. Os órgãos ou os ossos, tal qual nos parece, levam nomes de frutas de árvores, etc. Não
existe ruptura entre a carne do mundo e a carne do homem. O vegetal e o orgânico se encontram em
tamanha correspondência que alimenta que alimenta inúmeros traços da sociedade canaque. O próprio
nome de “corpo” (Karo) designa uma estrutura, uma base que se aplica indiferentemente a outros
objetos. E Leenhardt conta com o “causo” ostentoso pelos questionamentos que proporciona:
desejando medir o impacto dos valores ocidentais na sociedade melanésia através da visão de um
114
cultural. A corporeidade é território de mediação e passagem dos acontecimentos sensíveis do
cotidiano. O corpo é o ponto de intersecção do homem com o mundo, é “emissor ou receptor”
de uma realidade cultural contínua do grupo de pertencimento. A ciência sociológica, nascida
“lá onde são eliminadas as antigas legitimidades” (Le Breton, 2006: 11), tem nos anos 1960,
segundo o autor, inúmeras incursões das ciências sociais na investigação do corpo, como das
lógicas sociais e culturais. O autor da Sociologia do corpo referencia as produções a respeito
do corpo elaboradas por Marcel Mauss
21
. Evidenciar o corpo provocou olhares de
investigação a respeito da força do “processo civilizador”.
Elias (1994) apresenta o conceito “civilização” na perspectiva de um modelo da
sociedade ocidental, abre uma reflexão a respeito do termo “civilização” e kultur,
estabelecendo as devidas particularidades que os conceitos agregam para cada sociedade em
discussão na obra. Recupera as matrizes das transformações de condutas localizadas nos
primeiros tratados sobre o comportamento e encontra civilité, conceito utilizado no meio
religioso, uma justificava para os movimentos de expansão religiosa e econômica no século
XVI.
O tempo que este corpo se civilizava também ficou esquecido sob os limites
colocados pela instituição cristã, a qual abriu suas portas não para os rituais do povo que
celebravam as colheitas e suas crenças com as danças e gestualidades próprias do cotidiano,
mas para o espaço sacralizado que mantém o corpo sob a mira da disciplina e das restrições
gestuais próprias dos dogmas cristãos; o “pecado original” versus o “anticorpo” da instituição
cristã, que se interessava pelos homens em um primeiro plano, e em segundo plano pelas
mulheres, mas quase sempre “desencarnados”, comentam Le Goff e Truong
22
(2006).
Mauss, ao descrever as gestualidades, “voz” ao corpo, que, até então, se supunha
mudo. Saímos da simples compreensão de um corpo natural para juntar os olhares de diversos
campos do conhecimento, pois o corpo não é apenas um; são vários, em diferentes momentos
históricos e concepções teóricas. A corporeidade é resultado das experiências construídas pelo
autóctone, Leenhardt questiona um ancião a este respeito. Este responde imediatamente: “O que vocês
me trouxeram é o corpo”. Le Breton ( 2006: 27-28)
21
“Em 1934, diante da Sociedade de Psicologia, M. Mauss adianta uma noção destinada a prosperar:
as técnicas do corpo. Gestos codificados em vista de uma eficácia prática ou simbólica. Trata-se de
modalidades de ação, de seqüências de gestos, de sincronias musculares que se sucedem na busca de
uma finalidade precisa. Evocando lembranças pessoais, Mauss lembra a variação de tipos de nado de
uma geração a outra em nossas sociedades, e mais geralmente de uma cultura para a outra” Le Breton
(2006: 39).
22
Uma história do corpo na Idade Média, obra do medievalista Jacques Le Goff e do jornalista
Nicolas Truong, nos aproximou dos códigos, dos gestos e dos signos herdados pelo Ocidente
Medieval.
115
ser humano. Então nos colocamos a questão: como o corpo se tornou o que é? As verdades
sobre o corpo vão se deslocando na história. Foucault (1983)
23
, que será discutido neste
capítulo, trata dos “corpos dóceis”. O corpo dócil, segundo Sant’Anna, é
[...] dócil porque dada a ordem, ele obedece recriando, dando a este corpo
uma mais-valia. [...], porque incorpora o olhar da ordem,
da lei,
algo externo
ao indivíduo. A norma por sua vez é a interiorização da lei. A lei é externa
ao indivíduo, não mexe com a vontade [...], a norma é interiorizada. [...].
Nesta passagem da lei para a norma aparece o medo, o prazer e depois o
esquecimento, a automatização da norma
24
.
Como o corpo se tornou dócil, flexível aos olhares do panóptico? Como este corpo
interiorizou a disciplina que esquadrinhou o tempo e o espaço do corpo? A pergunta que
Foucault lança para esta sociedade dos “corpos dóceis” é, segundo Sant’Anna, como estas
pessoas burlam esta disciplina imposta?
Ao tratamos neste trabalho da população que segue os cultos do candomblé e é
oprimida historicamente pela cristã e pela polícia durante décadas, procuramos trazer o
corpo de uma cultura que resiste às adversidades, não da justiça, mas também do poder da
medicina, do olhar médico do século XIX. No Capítulo III, voltar-nos-emos para as análises
da antropologia de Nina Rodrigues (1988) sobre a população que resiste aos mandos políticos,
às leis religiosas e científicas, falaremos do povo que “ginga” de corpo fechado e purificado,
incorporando não as normas, mas os deuses.
Quem faz mapa percebe, ao longo dos trajetos, as matizes sociais. Ao caminhar nos
territórios de rituais dos candomblés e das performances no Candeal Pequeno de Brotas
(Candeal Guetho Square) em Salvador (BA), localizamos o corpo do qual nos fala Serres em
Os cinco sentidos. O corpo que
[...] se exercita, treina, quase por si mesmo, ama o movimento,
espontaneamente, regozija-se de entrar em ação, salta, corre ou dança,
conhece a si mesmo, imediatamente e sem linguagem, na e pela sua
impetuosidade, descobre sua existência no ardor muscular, quase nos limites
da fadiga. (2001: 324)
23
Michel Foucault parte do pressuposto que todos os nossos valores são criados historicamente.
24
Anotações de aula a partir das reflexões desenvolvidas pela profª Denize Bernuzzi. Sant´Anna no
curso de Corpo e Cultura do Departamento de Psicologia Clínica. PUCSP. 1º. Semestre de 2008.
116
Esta “fadiga” é comentada com freqüência na fala dos entrevistados, quando
descrevem que passam horas dançando nos rituais do candomblé ou nas performances
observadas no Candyall Guetho Square (2003-04), quando a multidão de jovens salta e dança
por horas, desafiando a sua resistência física. Nesse momento, as fronteiras entre o sagrado e
o profano, que inicialmente marcaram o nosso trabalho de pesquisa, foram se diluindo, e os
contornos tornaram-se quase imperceptíveis. Constatamos que os territórios da performance
religiosa e popular se interconectam em freqüência muitas vezes inaudível. O trânsito que se
estabelece entre o que é produzido no campo do religioso e do popular é constante, uma via
de mão dupla. Os territórios aparentemente separados são espaços contínuos que se
realimentam e estão em conexão constante, e as pistas entre os universos culturais são
múltiplas.
O corpo, centro de nosso interesse, segue uma prática nômade. Os devires humanos e
divinos misturam-se, e, num constante movimento que lhes é próprio, reativam as formas de
ser. Serres (2001: 337) acrescenta: “Não nada no intelecto que não tenha estado primeiro
nos sentidos: fica o sensível”.
Caminhamos também pelas bordas dos acontecimentos para capturar os sons, ouvir os
relatos, registrar as imagens dos campos de investigação ou em meio às manifestações
musicais das ruas. Os corpos pintados, adornados, que, ao som de atabaques reciclados,
improvisavam seus movimentos, são os mesmos que aqui nomeamos de corpos misturados
que andam em territórios múltiplos, com os “pés enraizados” nos terreiros sagrados, nos quais
elaboram o repertório das festas populares, unem os fragmentos vivos de tradição, fazem
destas suas matrizes, fonte de criação sonora, nas misturas dos ritmos afro-latinos com os sons
afro-brasileiros; corpos em constante metamorfose, corpos que dançam e buscam
incessantemente, no “ardor muscular”, as formas de reação do corpo.
Os corpos em metamorfoses, os corpos nomadizados também nos revelam como
enfrentam os deslocamentos e mudanças sociais e culturais da comunidade Bauman (2003),
comunidade Candeal Pequeno de Brotas e a organização em trabalhos sociais. Neste processo
de desarticulação e rearticulação das comunidades, no trânsito entre o coletivo e o individual,
temos no corpo o território em que se processam as interculturalidades, segundo Canclini
(2005).
117
3.1.1. Indagações a respeito do corpo
Se você não conhece a resposta, discuta a pergunta.
(Geertz, apud Canclini, 2005)
As inquietações provocadas pela música improvisada pesquisada no Mestrado
remeteram-nos a outras possibilidades e trajetos. Ao nos debruçarmos sobre os estudos da
mestiçagem cultural, observamos nos grupos de jazz (Moraes, 2000) novas dimensões que
foram incluídas em nossa investigação. Um dos aspectos que se destacava como interesse era
a prática de improvisação coletiva, baseada no diálogo de chamadas e respostas, que criava
um território ritualístico e performático, no qual a expressão ultrapassava a possibilidade de
uma explicação teórica.
Naquele momento, a dimensão complexa da performance, realizada pelos jazzistas e
também apresentada pelos rituais tradicionais dos afro-americanos nos campos de trabalho,
não era o ponto central dos nossos estudos, mas a agitação e o interesse no assunto não
cessaram, e passamos a uma pesquisa que não se limitava às sonoridades, mas estendia-se
para toda a performance.
A antropologia e a música impulsionaram-nos para esta caminhada. No interesse de
realizar um trabalho comunicante no sentido de percorrer diversas áreas do conhecimento,
como num ato antropofágico, optamos pela cartografia como metodologia, que ela nos
propicia, conforme discutimos, a elaboração de “uma pluralidade de pistas” a partir das
“perguntas” e “narrativas”. Com a proposta de transitar entre os teóricos do corpo e as
pesquisas da cultura de ascendência africana para os estudos das matrizes culturais brasileiras,
elaboramos algumas investigações a respeito de grupos musicais que trouxessem uma
performance possível para análise e a concretização deste trabalho. Porém não nos detivemos
somente na cultura de afro-brasileiros, pois no decorrer do trabalho percebemos a necessidade
de ampliação desta reflexão para outros grupos que participam das casas de candomblé de São
Paulo e são nelas iniciados.
Ao dar prosseguimento à elaboração de cartografias, passamos a nos deslocar para
Salvador (BA), a fim de desenvolver as primeiras pesquisas de campo. Montar uma
cartografia foi o caminho escolhido, uma forma de coletar as informações no momento em
que são apresentados os acontecimentos. Estas pesquisas possibilitaram as primeiras
118
indagações. Nesse percurso de contatos e estudos pudemos observar a prática do cotidiano e o
contexto de festividades sagradas e profanas que compõem a rotina dessa cidade.
No vai-e-vem de gente que circula pelos labirintos do Pelourinho, lugar central de
Salvador, encontramos inúmeras performances. Dessas observações destacamos um grupo de
crianças que passava dançando, tocando, cantando. Algo muito próprio delas era a expressão
de domínio sobre o corpo e a alegria contagiante; seus corpos saltavam e giravam com
bastante leveza, os olhos brilhavam, os movimentos eram visivelmente conscientes. Era uma
força de expressividade extremamente singular; os cantos e os toques dos tambores saíam
muito naturalmente. Percebia-se um corpo “diferente” nessas práticas culturais.
Algumas questões passaram a nos acompanhar: o que possibilitava este corpo ser
diferente, ser mais expressivo? Visualizávamos sempre um rito do corpo, “corpos de
passagem” (Sant’Anna, 2001)
25
, passagem de uma cultura, passagem do sagrado e não-
sagrado. As questões multiplicavam-se. Como estas práticas incidem no corpo? Como
desenvolver uma antropologia do corpo? E a escuta? E as imagens deste corpo? Percebemos
que os corpos em movimento eram vários.
Diante de perguntas sem muitas respostas, adotamos o pensamento de Gueertz citado
por Canclini (2005)
26
: “Se você não conhece a resposta, discuta a pergunta”. Assumindo a
orientação dada, seguimos com as investigações da pesquisa que nos possibilitaram
25
Corpos de passagem: “Um corpo tornado passagem é, ele mesmo, tempo e espaço dilatados. O
presente é substituído pela presença. A duração e o instante coexistem. Cada gesto expresso por este
corpo tem pouca importância em si. O que conta é o que se passa entre os gestos, o que liga um gesto a
outro e, ainda, um corpo a outro. [...] Quando o corpo é aberto e se transforma em passagem, a
dissolução da distância entre consciência e inconsciência deixa de ser utopia ou sinônimo de redução
de percepção. Porque não é a alma que se abre para acolher o sagrado e, em seguida, se recolhe para os
confins da intimidade de cada um. A alma se abre para ser espraiada no corpo, tal como a espuma das
ondas se dilata e se dispersa no mar. A alma deixa de ser uma espécie de submarino blindado
navegando nas profundezas do corpo fluído do mar, sempre tentando partir ou chegar. Porque ela se
desrealiza enquanto embarcação que não cessa de viajar pelas vias do corpos, este se transforma em
passagem. Aqui a alma não é mais um elemento destacado do corpo feito relíquia. Deixou de ser
submarino fechado para ser água e areia, mar de sensações, universo precioso de elos liberado do risco
de naufragar. Pois o mar não naufraga. E também não precisa ser salvo. Necessita apenas marear”
(Sant’Anna, 2001: 105-106).
26
O autor introduz esta obra com uma questão que nos remeteu à realidade que encontramos no início
e durante a nossa investigação de campo: “[...] como encaixar em algo que pareça real, tão real como
um mapa, este feixe de comunicações distantes e incertezas cotidianas, atrações e desenraizamentos,
que se nomeia como globalização. Setenta canais de televisão acessados a cabo, acordos de livre
comércio que nossos presidentes assinam aqui e acolá, migrantes e turistas cada vez mais interculturais
que chegam a esta cidade, milhões de argentinos, colombianos, equatorianos e mexicanos que agora
vivem nos Estados Unidos ou na Europa, programas de informação, vírus multilíngües e publicidade
não pedida que aparecem no computador: onde encontrar a teoria que organize as novas
diversidades?” (2005:15).
119
acompanhar a diversidade dos acontecimentos e traçar mapas contemplando não as
misturas, mas também os deslocamentos e os desenraizamentos culturais.
E, entre as ladeiras, em uma das andanças, nos deparamos com um ritual religioso na
Igreja de Santo Antônio de Catijeró, uma igreja católica com um público de fiéis.
Coincidentemente, estavam festejando o dia do santo padroeiro, e o ritual era enriquecido com
muita música. Ao entrarmos no templo, visualizamos, próximo do altar, um grupo de músicos
e cantores que entoavam os hinos tradicionais católicos. Havia um diferencial, pois eles eram
acompanhados com instrumentos de percussão pandeiro, atabaque e agogô em ritmo de
samba. O líder do grupo cantava uma frase do hinário e todos a respondiam entoando a
melodia e com movimentos corporais. Esta passagem nos remete às práticas de improvisação
de perguntas e respostas, muito comum nas canções de trabalho dos negros americanos
(Moraes, 2000).
A cerimônia da Lavagem da Igreja do Bonfim”, que também é um rito que congrega
as inúmeras crenças do povo de Salvador, promove brechas para um estudo do corpo que se
movimenta entre o sagrado e o profano. Parte das gestualidades tem como matriz a
religiosidade dos candomblés, entre outras crenças que se agregam nesta festa religiosa.
O percurso de mais de oito quilômetros levou quase duas horas para chegar ao local
previsto, em um dia muito quente, de quarenta graus ou mais. Conforme avançávamos a
caminhada e nos distanciávamos da orla marítima, o calor tornava-se mais intenso e mais
difícil a travessia. Esta procissão se diferenciava das tradicionais, pois era religiosa e também
um meio de propaganda eleitoral: os cartazes dos candidatos acompanhavam o cortejo.
Essas imagens de inúmeras gestualidades retidas, quase paralisadas na mente,
revertiam-se em outras questões sobre as práticas corporais. Quais as forças que atravessam o
corpo no momento dessas práticas? Ao manifestar o seu fazer musical, o seu gestual, a sua
cultura, como vimos, o garoto, que bem cedo tem o referencial de seu meio social, imita as
gingas do corpo dos capoeiristas que circulam por todos os cantos da cidade, nas festas de
terreiro, nas praias. Nas praças, as gingas transformam-se em brincadeiras de crianças, que
testam suas habilidades, superam-se nas piruetas, giram no ar e flutuam para retomar
estrategicamente a postura ao tocar os pés no chão. Elas se utilizam do gingado para driblar os
parceiros de jogo.
Diante desses enfoques, o que nhamos de concreto continuava sendo as questões,
vestígios das imagens. Como um observador que afeta e é afetado pelas investigações,
tentávamos transformar as informações em algo mais visível. Entre o que está visível e o que
é invisível, buscamos frestas para refletir sobre o corpo. Qual a importância das performances
120
na libertação e reatualiação do corpo? O que buscam os dançarinos de rua? Assim como o
corpo que evoca os orixás, o corpo afastado da prática religiosa, corpo que realiza uma
performance cujas matrizes estão no religioso, mas que atua no interior da cultura popular.
Percebemos esse processo nos primeiros contatos com as danças apresentadas no terreiro do
Candeal Guetho Square, por exemplo. O que diferenciam esses dois corpos? Quais as
possibilidades de um corpo nas performances dos rituais religiosos e performances da cultura
popular das ruas de Salvador, especificamente no Candeal Guetho Square? Estas são as
investigações com as quais nos envolveremos nesta tese. A indeterminação das topografias do
corpo mostra-nos que escutá-lo exige um exercício constante dos sentidos, bem como o
confronto do vivido com o teorizado pelos estudiosos e pesquisadores da corporeidade.
Uma outra questão também relevante para o nosso estudo refere-se à investigação
sobre a religiosidade das tradições afro-descendentes, às quais nos vimos atrelados quando
iniciamos a pesquisa a respeito das performances de Carlinhos Brown e o grupo musical
Timbalada, que apresentam esteticamente a cultura resídual dessas tradições.
Qual a importância de nos enveredarmos por uma investigação das tradições
religiosas? O que estas investigações poderão nos trazer a respeito da corporeidade? Não nos
parecia tão simples fazer esta conexão, e, em alguns momentos, apresentava-se extremamente
complexa a discussão pela via da religiosidade. A certeza de que este era o caminho nos foi
dada quando nos deparamos com as reflexões sobre o estudo das tradições religiosas
elaboradas por Carvalho (2003)
27
.
As reflexões a respeito das tradições do afro-descendente, realizadas pelo antropólogo
José Jorge Carvalho, que atua na área da antropologia das populações afro-brasileiras com os
temas de religião, etnomusicologia e cultura popular brasileira, foram importantes para o
nosso trabalho, pois agregaram novas perspectivas na discussão a respeito das tradições de
populações que vivem em comunidade.
Nas primeiras investidas de campo, voltamos-nos para as performances e tudo o que
nela está contido, tendo como foco principal o corpo, pois este é o local privilegiado e eixo de
contato do homem com o mundo. O corpo (pele) faz a mediação do mundo externo para seu
universo interno.
Deslocamos-nos assim rumo às reflexões da antropologia e sociologia do corpo,
primeiramente Marcel Mauss, nosso mapa inicial, matriz dos estudos voltados a corporeidade,
27
“Uma razão importante que vejo para incorporar as tradições de longue dureé em nossas análises do
panorama da cultura afro-americana contemporânea é que elas também comentam, a partir de seus
horizontes simbólicos, político e estéticos próprios, as transformações e as novas experiências vividas
pelos membros das sociedades que as mantém vivas” (Carvalho, 2003: 104).
121
encontramos no percurso de leituras a discussão de David Le Breton, professor na
Universidade de Estrasburgo II, um dos mais conhecidos autores da corporeidade. A leitura de
sua obra A sociologia do corpo nos insere na condição corporal humana e com ela nos põe em
contato com o que se constitui como um fenômeno sociocultural, um território do simbólico
permeado por representações e imaginários.
A nossa existência é corporal, e é desse território que emanam as significações que
fundamentam o existir humano individual e coletivo Essas significações são apropriadas pelos
membros de uma comunidade. A existência corporal humana implica a possibilidade de o
homem se articular no tempo e no espaço, possibilita imitar, interiorizar, comunicar-se por
meio dos gestos, das palavras, dos ritos que geram as transformações do ser e do seu meio.
Retomando Le Breton (2006), historicamente os estudos e reflexões da sociologia
sobre o corpo nascem junto aos estudos das ciências sociais, quando esta ciência legitima-se
na sociedade moderna. Le Breton localiza os estudos do corpo em etapas determinadas: a
sociologia que ele denomina de “implícita” em uma primeira etapa, encontrada nas análises
clássicas de Marx sobre a condição corporal do homem no trabalho. Neste caso, a situação
corporal é relatada, mas não é conceituada. O autor ressalta também as investigações do corpo
a partir das suas feições, da sua morfologia, na qual a ordem do mundo submete-se “à
primazia do biológico”, o “homem não tem poder de ação contra essa natureza que o revela; a
sua subjetividade só pode acrescentar pormenores sobre o conjunto” (Le Breton, 2006: 17).
Um segundo momento ou uma segunda etapa de investigação é a sociologia,
denominada a sociologia em “pontilhado”, que trata de uma corporeidade socialmente
construir. Nessa fase da sociologia, define Le Breton (2006), encontra Marcel Mauss como
um dos principais marcos teóricos dos estudos do corpo; Robert Hertz, Norbert Elias e
contribuições etnológicas que “descrevem os ritualismos e os imaginários sociais que
contribuem para colocar a corporeidade em condições mais favoráveis dentro do pensamento
sociológico”. No que se refere a Marcel Mauss, suas contribuições quanto à investigação a
respeito do corpo podem ser localizadas nos textos: “A expressão obrigatória dos
sentimentos” (1921), “O efeito físico da morte” (1926) e “As técnicas do corpo” (1936). Entre
estes escritos, selecionamos “As técnicas do corpo” para contextualizar nossas primeiras
reflexões sobre o presente trabalho.
“Antropologia e sociologia do corpo”, que veremos a seguir, aborda a importância de
Mauss e o valor de uma etnografia que busca desbravar as “terras desconhecidas” e os
“territórios não investigados”. O corpo investigado a partir de Mauss trouxe-nos uma primeira
122
referência para entender que as práticas, os costumes e as tradições de um povo estão
diretamente ligados ao corpo.
3.2 Antropologia e sociologia do corpo
Uma das primeiras leituras para entender as questões da corporeidade partiu das
reflexões de Marcel Mauss
28
, o pensador francês que investigou o corpo e comprovou que o
corpo não é apenas uma construção biológica, mas também uma construção social e cultural.
Pesquisadores como Levi-Strauss
29
, Le Goff e Truong (2006), entre outros, apontam para a
sensibilidade de Mauss ao perceber a forma como as sociedades impõem o uso do corpo.
Também conforme Mauss, damos importância aos escritos, aos documentos, às narrativas
orais de um povo e, ao mesmo tempo, esquecemos-nos de inventariar o corpo. Montamos
coleções de objetos variados, criados pela indústria humana, mas ignoramos as possibilidades
de nossos corpos, tão variadas e universais, estando com eles tão próximos e acessíveis a nós.
Conforme Le Goff e Truong (2006), continuamos a ignorá-lo, a esquecê-lo.
Como nossa proposta é fazer um movimento de “desconstrução” de um padrão do
olhar relativo ao corpo, destacamos uma observação relevante no que se refere ao pesquisador
e sua relação com a concepção filosófica fundante do pensamento da racionalidade. A citação
abaixo é uma das suas falas em aula inaugural:
Na pátria de Descartes, estamos muito preocupados em começar pelos
‘objetos mais simples e mais fáceis de conhecer’, para não sentir todo o
peso das pesquisas que recaem sobre os fenômenos elementares. Mas é aqui
é que eu sou levado para o para o meu segundo ponto. Como observar os
fatos? Quero lhes dizer que os fatos são interessantes porque “simples e
fáceis de conhecer’. Mas é necessário provar a minha afirmação. Os
fenômenos religiosos, que representam sociedades das quais estou a lhes
falar, têm justamente a reputação de nem serem simples”, e nem fáceis de
28
Marcel Mauss nasceu em 1872, em Épinal, cidade-sede do departamento de Vosges, às margens do
rio Mosela, a quase quatrocentos quilômetros de Paris. Catorze anos antes, nessa mesma cidade, nascia
Emile Durkheim, seu tio e sua maior influência na gestação de toda a sua carreira. Segundo
Cazeneuve, foi Durkheim o guia e orientador de Mauss em sua formação de filósofo, iniciada na
universidade de Bordaux , onde o tio era professor de Pedagogia e Ciência Social entre 1887 e 1902.
Antes de seus estudos universitários, Mauss fez o secundário no liceu de Épinal. Ao findar os estudos,
em 1893, com licenciatura em Filosofia (agrégation), dedicou-se inicialmente à História das Religiões
e ao pensamento hindu. Depois de realizar vários estágios em outras universidades estrangeiras, como
Oxford, Breda e Leiden, tornou-se, em 1900, assistente de Foucher, diretor de estudos da História de
Religiões da Índia, na Ecole Pratique des Hautes Etudes, para, dois anos depois, suceder Leon
Marillier na cátedra de História das Religiões de Povos Não-Civilizados. Referências encontradas em
Oliveira (1979: 9).
29
Lévi-Strauss. Claude. Introdução à obra de Marcel Mauss. In Mauss, 2003.
123
conhecer. Vou lhes explicar primeiramente em que medida são simples. (...)
Os fenômenos religiosos que observamos atualmente na Austrália, por
exemplo, não são certamente nem simples e nem primitivos. As sociedades
australianas ou americanas têm todas atrás de si uma longa história. Elas são
tão velhas quanto as nossas, (...) (Oliveira, 1979: 10).
Alguns pontos apresentados por Oliveira (1979) revelam que Mauss interessava-se em
esclarecer a importância dos dados etnográficos, que, até fins de século XIX, eram coletados
com critérios diversos. Entendemos que nessa discussão era um padrão de olhar que estava
em jogo. Os estudos desenvolvidos por Mauss sobre o corpo nos favoreceram pensar que as
práticas, os costumes e as tradições de um povo estão diretamente ligados ao corpo, um corpo
que tem as suas variações quando caminha, quando salta, quando dança; um corpo que desde
a mais tenra idade imita o outro, imita a educação e as sociedades.
Com essas constatações, Mauss propõe assim a universalização do conhecimento das
possibilidades do corpo humano. Propõe um inventário das práticas corporais. Tal
empreendimento depara-se com as concepções da época, pois, no início do século XX, as
teorias racistas formatavam o pensamento europeu. Os desafios éticos dessa empreitada
contrariam aqueles que querem ver o homem como produto do seu corpo. O olhar
predominante nesse período estava associado às características biológicas. A ordem do
mundo, segundo Le Breton (2006), estava determinada pelas ordens biológicas e estas eram
provadas a partir das aparências corporais. Trazendo esta reflexão para nosso território,
acrescentamos que, no Brasil dos republicanos, as marcas das teorias racistas estavam
presentes na conformação das nossas instituições, os estudos sobre as populações que
constituíam o país passavam pelas discussões de uma análise morfológica, e não
sociocultural.
Mauss enfatiza, em certo momento, que investigar o que nos é desconhecido é como
desbravar terras, contêm as suas marcas (teóricas). Encontra-se na fronteira das ciências, “lá
onde os professores devoram-se entre si” (Mauss, 2003: 401). Acrescenta, em tom de crítica,
a forma como tratam o que não é conhecido, rotulam com o termo “diversos”, denominação
esta que pouco esclarece. Partir do concreto para o abstrato é uma forma utilizada por longo
tempo por pesquisadores.
sempre um momento, não estando ainda a ciência de certos fatos
reduzida a conceitos, não estando esses fatos sequer agrupados
organicamente, em que se planta sobre esta massa de fatos o marco da
ignorância: “Diversos”. É que devemos penetrar. Temos certeza de que é
aí que há verdades a descobrir [...]. (Mauss, 2003: 401)
124
Em suas análises, Mauss fala do corpo como uma ferramenta, um objeto técnico,
refere-se a técnicas do corpo, a partir da maneira com que os homens servem-se de seus
corpos. A palavra técnica é entendida por ele como um “ato tradicional eficaz” e o corpo,
como um “instrumento natural do homem”. Portanto, essas técnicas que regem o corpo
variam de acordo com as sociedades:
Eu digo as técnicas do corpo, porque se pode fazer a teoria da técnica do
corpo a partir de um estudo, de uma exposição, de uma descrição pura e
simples das técnicas do corpo. Entendo por essa expressão as maneiras pelas
quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional sabem
servir-se de seu corpo. Em todo caso, convém proceder do concreto ao
abstrato, não inversamente. (Mauss, 2003: 401)
Encontramos nas reflexões elaboradas por Le Breton (2006) um parágrafo que nos
esclarece que mesmo o corpo sendo denominado uma ferramenta com técnicas próprias e
diversificadas em cada cultura, não é um objeto técnico. Por mais que estes gestos estejam
tecnicamente trabalhados, o objeto corpo tem um valor próprio em seu contexto, e os gestos,
uma verdade própria em cada movimento.
O estudo das técnicas do corpo é uma via proveitosa com a condição de esclarecer,
para não cair num dualismo elementar, que mesmo sendo o corpo uma ferramenta, continua
sendo o “fato homem” e depende então da dimensão simbólica. O corpo nunca é um simples
objeto técnico (nem mesmo objeto técnico). Além disso, a utilização de certos segmentos
corporais como ferramenta não torna o homem um instrumento. Os gestos que executa, até os
mais elaborados tecnicamente, incluem significação e valor.
Na concepção de Le Goff e Truong (2006: 18-19), “as técnicas que comandam o corpo
variam, sobretudo conforme as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os
prestígios”. Segundo os autores, a partir da reflexão de Mauss conclui-se que o corpo é e
contém história. Em As noções de técnicas do corpo, a reflexão de Mauss evidencia as
“exigências” adotadas no interior das práticas sociais em sociedades diversificadas, pois ele
historiciza a diversidade de gestualidades. A gestualidade é uma construção social e, nesta
perspectiva, o corpo é o que sente e guarda as dimensões de todos os acontecimentos: o jeito
de andar, a forma de escutar, as diferenças de marcha entre o soldado francês e o inglês, o
trato das mães com as crianças ao nascer. Evidencia-se o despertar para a necessidade
individual de práticas diferenciadas. A diversidade das práticas culturais ao observador
elementos para distanciar-se de metodologias e correntes de pensamento que faz da condição
social o produto direto do corpo.
125
Trata-se de submeter a primazia do biológico (mais ainda, de um imaginário
biológico) as diferenças sociais e culturais, de naturalizar as diferenças de
condição justificando-as por observações “científicas”: o peso do cérebro, o
ângulo facial, a fisiognomia, a frenologia, o índice cefálico [...]. (Le Breton,
2006: 17)
Na opinião de Le Goff e Truong (2006), Mauss faz das reflexões das técnicas do corpo
a entrada para a análise do “homem total” por intermédio da história e do estudo das
sociedades.
Na longa história da humanidade, o inventário e o desvendar dos usos do corpo eram
de real importância. Mauss exemplifica estas passagens de significação e valores dados pelas
sociedades. O autor tece algumas comparações entre as sociedades e as variações do corpo.
Afirma que cada sociedade tem seus costumes e destaca diferenças de práticas entre essas
culturas, sob diversas perspectivas: idade, rendimento ou destreza e habilidade, práticas de
caminhada, de salto, de nado, dos cuidados do corpo, o sexo. Da religião, como a ioga, às
técnicas de sopro no taoísmo também merecem comentários de Le Breton (2006: 40):
Conforme o sexo: de fato, as definições sociais de homens e mulher
implicam freqüentemente um conjunto de gestos codificados de diferentes
maneiras.
Conforme a idade: as técnicas próprias de obstretícia e aos gestos do
nascimento; as técnicas da infância, da adolescência, da idade adulta (Mauss
evoca principalmente a técnicas do sono, do repouso, da atividade
caminhada, corrida, dança salto, nado, subida, descida, movimentos de
força); técnicas dos cuidados com o corpo (toalete, higiene); técnicas de
consumo (comer, beber); técnicas de reprodução (Mauss introduz de fato a
sexualidade nas técnicas do corpo e lembra a variabilidade de posições
sexuais); os tratamentos do corpo (massagens). [...] Conforme o rendimento:
Mauss pensa aqui na relação com a destreza, com a habilidade. [...]
Conforme as formas de transmissão: através de quais modalidades e em que
ritmo as novas gerações as adquirem?
Podemos exemplificar estas passagens de significação e valores dados pelas
sociedades. Mauss nos relata algumas descobertas durante o período em que ficou internado
em um hospital de Nova York. Fez observações sobre o andar das enfermeiras no qual
identificava algo já conhecido. Para ele interessava o que daquele andar chamava a sua
atenção. Percebeu que existia uma semelhança desse andar com o das francesas. Estas
questões o levaram a concluir que existia uma influência indireta do cinema americano, uma
vez que as francesas imitavam a cultura e o jeito de caminhar da mulher americana. Passa em
seguida a analisar a imitação realizada por crianças em relação às atitudes dos adultos e o
domínio da educação, destacando que esta tem um papel fundamental, sobrepondo-se à
126
imitação. Vemos que o processo civilizador da educação enfatizado nas observações de
Mauss com relação ao corpo, apontava para as diferenças culturais.
Segundo Le Breton (2006: 40),
Mauss não desejava lançar um projeto de pesquisa preciso e exaustivo.
Como um farol, lançava luz sobre a validade heurística de um conceito;
evocando uma série de anotações pessoais, convidava os pesquisadores a
exercer a imaginação sociológica sobre o sujeito.
A continuidade desses estudos aparece ainda na década de 1940 na figura de Norbert
Elias, em
La civilisation des mouers; conforme Le Breton (2006: 21), um “ensaio clássico de
sociologia histórica que atualiza a genealogia das atitudes externas do corpo, relembrando o
caráter social de rios comportamentos desde os mais banais até os mais íntimos da vida
quotidiana”. Este estudo fornece ao autor a matéria-prima que ele necessita para chegar ao
âmago da moral e entender os ritos de interação. É para a sociedade da corte que o autor se
volta e investiga suas regras de civilidade.
O conceito de civilização foi intensivamente trabalhado por Norbert Elias
30
. O corpo
como ator dos processos de restrição, impostos pelos costumes civilizatórios, também é
receptor do mesmo processo. A interiorização de gestos e a omissão de sentimentos tornam os
corpos contidos e moldados pelos movimentos controlados.
Segundo Elias (1994), o conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de
fatos: o nível da tecnologia, os tipos de maneiras, o desenvolvimento dos conhecimentos
científicos, as idéias religiosas e os costumes. Pode se referir ao tipo de habitações ou à
maneira como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição determinada pelo sistema
judiciário ou ao modo como são preparados os alimentos.
O conceito de civilização conforme discussão tratada em O processo civilizador
expressa “a consciência que o Ocidente tem de si mesmo”. O autor ainda acrescenta que
civilização não tem o mesmo significado para nações diferentes: franceses e ingleses a
30
“Uma descrição muito esclarecedora da diferença entre esta classe alemã e sua contrapartida
francesa é também encontrada nas conversas de Goethe com Erkermann [...]. Na França, os membros
da intelligentsia estão reunidos em um lugar, são mantidos juntos em uma ‘boa sociedade’ mais ou
menos unificada e central; na Alemanha, com suas numerosas e relativas pequenas capitais, não
essa ‘boa sociedade’ central e unificada. Neste caso, a intelligentsia está dispersa por todo o país. Na
França, a conversa é um dos mais importantes meios de comunicação e, além disso, séculos é uma
arte; na Alemanha, o meio de comunicação mais importante é o livro, e é uma língua escrita e
unificada, e não falada, que essa classe intelectual desenvolve. Na França, até os jovens vivem em um
ambiente de rica e estimulante intelectualidade, mas o jovem membro da classe média alemã tem que
subir a muito custo em relativa solidão e isolamento. Os mecanismos de progresso social são
diferentes nos dois países” (Elias, 1994: 44-45).
127
concebem de uma forma; os alemães, de outra. Franceses e ingleses a resumem em orgulho
que têm de suas nações, do progresso do Ocidente e da humanidade. Para os alemães,
Zivilistion é um valor “de segunda classe”, e, a palavra que expressa o orgulho de suas
realizações é Kultur.
“Formado em medicina, em filosofia e, sobretudo na sociologia de Max Weber na
República de Weimar em plena revolução psicanalítica, Norbert Elias eleva as funções
corporais ao nível de objeto histórico e sociológico. E não importam quais” (Le Goff e
Truong, 2006: 21).
Para muitos pesquisadores, a seriedade nesses assuntos apresentava-se como
futilidades. No entanto, Elias mostra em O processo civilizador a força das práticas corporais
como cultura, em contraposição a um olhar que acreditava ser natural tal prática. Le Breton
(2006: 21) assinala com a sua reflexão afirmando que
A sociedade da corte é o laboratório onde nascem e a partir da qual se
difundem as regras de civilidade que hoje adotamos em matéria de
convenções e de estilo, de educação dos sentimentos, de colocação do corpo,
de linguagem e, sobretudo, no que diz respeito ao externum corporis
decorum. A civilidade pueril (1530), de Erasmo, obra dedicada ao jovem
príncipe de Borgonha e destinada ao ensino de savoir-vivre às crianças,
cristaliza para diversas sociedades européias da época a noção fundadora de
“civilidade”. As regras de civilidade vão, de fato, impor-se para as camadas
sociais dominantes. Como se comportar em sociedade para não ser, ou
parecer, um bruto. Pouco a pouco o corpo se apaga e a civilidade, em
seguida, a civilização de costumes, passa a regular os movimentos mais
íntimos e os mais ínfimos da corporeidade. [...] As sensibilidades
modificam-se.
A moderna “cultura” da civilização dos corpos torna-os “iguais”, cria o “novo
homem”, previsível nos movimentos e nos gestos; “na contramão de padronização do corpo,
investimos em uma “des-construção”. Propomos evidenciar as sonoridades do corpo,
despertar as gestualidades que não são audíveis. E, assim, como território visível e audível, a
investigação que se segue registra que até então o que dominou este corpo foi o discurso que o
Ocidente construiu de si mesmo nesses três últimos séculos.
Para falar dos sentidos, do audível, tomamos a discussão de Brumana
31
e o
mapeamento da heterogeneidade humana retomando Marcel Mauss. A partir de Brumana, em
31
“A independência do social é outra face de sua interdependência; implica que todos os fenômenos
sociais são manifestações da vida do grupo como grupo. Mas essa interdependência forma um sistema
orientado, isto é, os distintos fenômenos estruturam-se hierarquicamente, as diferentes instituições
dependem entre si, e todas elas dependem da constituição do grupo. Desta maneira, as instituições são
expressão da vida concreta dos homens entre si. [...] Falando em ‘expressão’, mergulhamos em cheio
128
Antropologia dos sentidos, encontramos sublinhada a proposta da sociologia durkheiminiana
na busca de significados, enquanto aos olhos de Mauss o corpo apresentava-se culturalmente
diversificado.
Para Mauss, trata-se de fazer falar aquilo que se supunha essencialmente mudo. O
próprio corpo deixa de ser o ponto de determinação da natureza sobre a cultura: não resta
nada de naturalidade em um corpo cujos mínimos movimentos são socialmente significativos,
respondendo a códigos estabelecidos de forma minuciosa e, em grande parte, arbitrária. Por
outro lado, Mauss busca estreitar até o limite mínimo o mapa da heterogeneidade humana.
Adeus mentalidade pré-lógica; adeus homens não civilizados; adeus evolucionismo ufano.
No ensaio de Marcel Mauss foi possível dar “vozao corpo que até então se supunha
mudo. A escuta, nos limites de sua época, favoreceu a ampliação e a compreensão de novos
olhares sobre o mesmo. Saímos da explicação de um simples corpo físico, natural, para juntar
olhares de diversos campos do conhecimento.
Na seqüência dessas reflexões, mencionamos o audível, a escuta do corpo.
Entendemos “escuta” como as manifestações sonoras e não-sonoras do “outro”. Assim,
escutar é perceber as formas de ser do outro, como evidenciou Mauss. O conceito de escuta
pode ser entendido conforme definição de Carlos Kater, no prefácio do livro de Santos
(2002:11):
Pressupõe dar estado de existência às fontes sonoras, aos materiais, formas
de ser e seus agenciamentos. Escutar na individualidade e na pluralidade, na
melodia e no contexto, em si e no diálogo que cada um mantém
insuspeitadamente e a todo instante com cada uma das partes de um suposto
todo é atitude engajada e relacional.
no campo da significação. Para Mauss, a questão é entender a realidade social, do significativo, toda
uma série de fenômenos até o momento não considerados como tais. Assim, as categorias do
pensamento ou da religião agora não são referentes dentro de um plano ideacional, mas remetem,
na condição de sua matriz constitutiva, às condições sociais a que foram geradas. Os acontecimentos
sociais não se esgotam em si mesmos, mas se referem a determinados princípios dos quais são a
atualização. A tecnologia e a fisiologia não são fatos da natureza, mas complexos culturais que
permitem entrever o ordenamento social que os subordina. Por outro lado, o que aparecia sem ordem
ou dotado de ordenação alheia mostra-se agora como uma mensagem, uma cadeia sintagmática,
rastrear suas regras de composição, sua sintaxe, determinar seu emissor e seu significado [...]. Não
fatos sociais mudos, em seu seio sempre fala uma representação coletiva: é uma opção, uma
modalidade, como gosta de dizer Mauss [...]. A tecnologia não pode deixar de firmar um acordo com
a natureza. Aqui começa a se esboçar um dos principais cortes de Mauss, não só em relação a
Durkheim, mas também com a respeito as suas primeiras posições. Segundo a doutrina da primeira
época de L´Ánnée..., a religião era considerada a matriz de toda a representação coletiva e, portanto, da
racionalidade. Para Mauss da maturidade, já não é mais assim. Tudo provém, é claro, da definição que
Mauss dá de ‘razão’ [...] a razão não tem data de nascimento diferente da do homem: não há nada aqui
que se assemelhe ao pensamento pré-lógico de Lévy-Bruhl. Toda sociedade implica trabalho,
tecnologia, um certo grau de conhecimento objetivo” (Brumana, 1983: 19-21-22).
129
A escuta que desenvolvemos nas ruas de Salvador traz como informação a
complexidade dessas práticas. Falamos de situações que coexistem, como o cantar, o gesto
que dá vida ao corpo. O corpo não está presente, mas emana presença por meio da voz que
vibra no acústico do corpo. A música muitas vezes propicia este “estado de presença”,
principalmente quando absorvemos a música com o corpo. Quando a música encontra
passagem no corpo, os eventos contemporâneos e de multimídia, não da cultura da
oralidade, nos exigem esta prática. É um exercício da complexidade da escuta, da ordem do
que é tecido junto, escutar com o corpo. Clarice Lispector (1998: 10-11) exemplifica em Água
viva esta escuta:
Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como
o instante. É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela
fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo mesma. Não se compreende
música: ouve-se. Ouve-me então com o teu corpo inteiro. [...] Vejo que
nunca te disse como escuto música – apoio de leve à mão na eletrola e a mão
vibra espraiando ondas pelo corpo todo: assim ouço a eletricidade da
vibração substrato último no domínio da realidade, e o mundo treme nas
minhas mãos.
Marcel Mauss deu voz ao corpo que se supunha mudo, escutou o corpo na sua
singularidade ao descrever o repertório de gestos codificados que cada cultura expressa a
partir de sua existência corporal. Evidenciou a pluralidade deste corpo que até o século XIX
era explicado nos parâmetros das ciências da biologia, um olhar sobre o corpo que se apoiava
no imaginário biológico. A expansão desta forma de entender o corpo abriu as portas para as
regras de civilidade que foi se infiltrando na intimidade da sociedade e na intimidade de cada
indivíduo, apagando a sua expressividade gestual singular e impondo as regras “civilizadas”.
Essas regras que pouco a pouco se estabeleceram no seio da sociedade moderna vão limitando
e restringindo a expressão corporal. Geradas no interior da Idade Média, tais regras
“civilizadas” de ser e viver são uma das heranças recebidas pela modernidade. Adotadas e
imitadas por muitas gerações, disseminam-se no corpo social.
Discutiremos, a seguir, o corpo na Idade Média, submetido a uma duplicidade de
discursos e relegado ao esquecimento da história e dos historiadores. Estes últimos contavam
as realizações e façanhas dos poderosos, mas em sua maioria sem corpo, desencarnados. Uma
história escrita sob o ponto de vista dos vencedores foi, por longo tempo, uma história
desprovida de suas vísceras, de suas desgraças e alegrias. Adotada a fórmula do esquecimento
do corpo, a história deixou de olhar para os trabalhos de Norbert Elias a respeito das
130
civilizações e dos costumes, bem como para as pesquisas de Marc Bloch e Lucien Fevre a
respeito das mentalidades do período medieval ou ainda para Michel Foucault e Jules
Michelet. Conforme Le Goff e Truong (2006: 17), “foi a partir de seu mergulho nas
ciências sociais, contudo, que a história cedeu espaço às ‘aventuras do corpo’ nas quais Marc
Bloch recomendava envolver-se”.
3.3. Corpo esquecido/duplo discurso
Quando falamos inicialmente do interesse em investigar o corpo que se apresentava
“diferente”, tentávamos de alguma forma fazer uma comparação. O que torna “diferente”
esses corpos de performance que investigamos? O que é revelado nesse momento? Revela-se
nesse momento uma expressividade própria dos corpos que dançam e ritualizam seus dramas
no seu cotidiano. O que os torna diferentes é o corpo de presença”, conforme nos indica Le
Breton (2006). Serres (2004: 15) anuncia: “O corpo em movimento federa os sentidos e os
unifica no tempo e no espaço”. O corpo que observamos, seja nas performances do
candomblé ou dos artistas populares das ruas de Salvador ou do Candeal Guetho Square, tem
expressividade. O movimento vem primeiro, as gingas estão presentes nas brincadeiras de
criança; privilegiam-se os cantos, os gestos, a imitação e a ação do corpo comunitário”.
“O corpo comunitário implica uma vivência do corpo singular como não separado, não
isolado das coisas e dos outros corpos” (Gil
32
,1997: 58).
Em contrapartida, a gestualidade imposta à sociedade moderna é a expressão de um
corpo que se esvaziou de presença e expressividade, eliminou a espontaneidade e adotou
gestos padronizados, mecanizados, que deixaram os corpos rígidos, inexpressivos. Os
movimentos de respostas do corpo em relação aos acontecimentos da vida são submetidos às
normas, não às do corpo, mas às da civilidade. Em conseqüência dessa normatização social,
os movimentos reais ficaram guardados, congelados nas entranhas dos tecidos que são
comuns em todo o corpo.
32
O termo “corpo comunitário”, tratado na obra citada, interessa-nos, pois o autor explica que “Em
cada comunidade primitiva o laço que une todos os membros fundamenta-se neste corpo comunitário:
todos os outros fatores de coesão, as diferenças e as classificações que se erguem sobre a superfície
social e que determinam, no interior da comunidade, oposição, aproximações, cruzamentos, trocas,
divisões em grupos e subgrupos, assentam neste corpo primeiro. se operam divisões muito
profundas: as funções mais imediatas, mais vitais do homem como a nutrição, a reprodução, as
excreções, as percepções canalizam e reproduzem o mesmo em que cada corpo individual,
fragmento e momento de um corpo comunitário, compõe e analisa os seus ritmos, deixando-se
atravessar pelos ritmos de todos os outros” (Gil, 1997: 56).
131
Este grande legado de mentalidades e costumes civilizados que restringem e limitam o
corpo tem na Idade dia a sua matriz. Le Goff e Truong (2006) se estendem na reflexão
desta idéia e justificam que muito dos nossos comportamentos foram concebidos nesse
período. Acrescentam que apesar das mudanças acentuadas provocadas pelas duas revoluções
a do século XIX e a do XX –, no esporte e no domínio da sexualidade, a Idade Média tem
como um dos aspectos predominantes que marcam esse período histórico o cristianismo.
O cristianismo como poder central da Idade Média e diferentemente de outras religiões
monoteístas fundamenta-se na encarnação da divindade. O corpo do Menino Jesus, do Cristo,
é inserido no sistema de crenças. O Natal é o marco desta encarnação. Corbin (2008: 59)
revela-nos:
Os pavores, as ternuras e os tormentos da maternidade, o suor do sangue na
presciência da agonia, os horrores do suplício: são todas emoções e
sentimentos sentidos em maior ou menor grau pelos fiéis, de acordo com o
grau de fé de seu fervor, mas que, de qualquer forma, se referem a existência
carnal; são afetos distantes da concepção, quando muito, metafórica e
conscientemente antropomórficas, do corpo de Deus do Antigo Testamento,
que permanece como Deus do Islã, uma figura abstrata, encolerizada,
justiceira ou misericordiosa. Além disso, aos olhos dos católicos, a Igreja
forma o corpo místico de Cristo ressuscitado, que reúne os vivos e os
mortos.
A história e a dinâmica da sociedade e da civilização medievais constituíram-se de
tensões: “[...] entre Deus e o homem, entre homem e mulher, entre cidade e o campo, entre o
alto e o baixo, entre a riqueza e a pobreza, entre a razão e a fé, entre a violência e a paz” (Le
Goff e Troung, 2006: 11), mas como evidenciam os pesquisadores, a tensão maior foi,
principalmente, entre o corpo e a alma. Essa tensão se dá no interior desse mesmo território, o
corpo. A repressão ao corpo e o seu enaltecimento coloca-o em uma situação paradoxal. E, no
limiar da Idade Média, o cristianismo reprime-o, como revela o pensamento do papa
Gregório, o Grande (apud Le Goff e Troung, 2006: 35): “O corpo é a abominável roupa da
alma”. Na seqüência, é simbolizado na sacralidade do corpo de Cristo. A ideologia do
cristianismo institucionalizado tenta conter as práticas populares, mas estas camadas da
população resistem, escapam pelas brechas da tensão entre Quaresma e Carnaval. A imagem
abaixo é de autoria de Pieter Bruegel, quadro célebre de 1559 intitulado O combate do
Carnaval e da Quaresma. Citado por Le Goff e Troung (2006: 35), ilustra a dualidade
também existente neste acontecimento: “De um lado, o magro, do outro, o gordo. De um lado,
o jejum e a abstinência, do outro, banquetes e gula”.
132
Imagem 9 - O combate entre o Carnaval e a Quaresma- Pieter Bruegel (1559)
Tentamos neste momento ressaltar que, por um lado, o poder institucional da Igreja
cristã está de posse do controle dos corpos, conforme discutem longamente Le Goff e Truong
(2006), mas convive com a oposição: a sociedade religiosa é atravessada por forças advindas
da carnavalização. Banquetes em oposição ao corpo flagelado, desregramento contra a
ascese, as festas de Carnaval burlesco, com essas danças, as caroles, consideradas obscenas
pelo clero, opõem-se à quaresma dos jejuns. A civilização do Ocidente medieval é, no nível
do símbolo, o fruto da tensão entre Quaresma e Carnaval” (Le Goff e Truong, 2006: 60).
A cultura da comicidade é uma releitura do que é formal (formalidades). Sob as lentes
do cômico, do escárnio da estrutura oficial, das estruturas hierárquicas, fechadas, dogmáticas,
as instituições do período medieval são expostas nas suas burocracias. As personagens
sociais, discriminadas na sociedade como os deficientes, o bobo e os bufões (que viviam
também na vida real), monstros, anões, o palhaço –, viram figuras centrais. A carnavalização,
que durava dias, segurava as pessoas pelas ruas, seguida de procissões não-oficiais. Os
festejos marcavam, nesse momento, pela diferença em relação aos cultos da Igreja e
cerimônias do Estado, “uma diferença de princípio”. Toda a cerimônia era descolada da Igreja
e do Estado, “deliberadamente não-oficial”. Bakhtin
33
(1993) fala de um “segundo mundo”,
uma “segunda vida” que era vivida em tempos determinados, que possibilitava viver a
dualidade da Idade Média e Renascentista.
33
Mikhail Bakhtin (1895-1975) é um dos mais importantes teóricos da literatura contemporânea.
133
Nas festas oficiais, toda a hierarquia era demonstrada por meio dos símbolos de
nobreza, os brasões de família, as indumentárias. O status era exposto conforme os signos e a
posição social de cada um dos participantes. O popular demonstrava o “realismo grotesco” na
sua relação com o uso do corpo, “corpo clássico” versus “corpo grotesco”.
O corpo grotesco, esta imagem de acordo com Bakhtin (1993), tem como premissa
apresentar dois corpos em apenas um, uma figura física que sempre apresenta situações de
gravidez, de concepção, de parto, uma fusão de corpos. O corpo materializa-se por intermédio
de atos do cotidiano, como beber, comer, ritualidades no plano corporal. Um corpo “aberto”,
incompleto, corpo “misturado ao mundo”, mundo animal, mundo das coisas. Na cultura
medieval, as concepções de corpo passavam pelo realismo grotesco (séculos XII e XIII).
O corpo nos territórios do religioso e da cultura popular transita em dois mundos, o
oficial e não-oficial. A diferença desses rituais no formato cômico e os cultos religiosos e
cerimoniais do Estado estavam no fato de o Carnaval ser algo não-oficial, um segundo
mundo, extra-realidade formal da Igreja e do Estado. O acontecimento participa da realidade
cotidiana deste povo. Não existe um dogmatismo religioso e muito menos mítico. Os
participantes vivem o Carnaval. Não um palco de apresentações, as pessoas se envolvem,
interagem, pois as leis que dominam nessas práticas são as da liberdade.
Incluindo o texto de Bakhtin (1993), transferimos essas impressões para a realidade
brasileira e para o território que estamos analisando: a presença de espetáculo e festejos nas
ruas. A mestiçagem estabelece-se entre práticas religiosas e não-religiosas. Assim é a mistura
que se conforma nas terras de Salvador, uma mestiçagem entre o sagrado e o profano que
origina outras práticas de sacralização (aqui entendemos a religiosidade do candomblé que
escapa para as ruas, mas também do catolicismo que adota as performances do candomblé no
interior de suas igrejas).
A disciplina que se estabeleceu no cristianismo medieval passa pelo cotidiano das
pessoas da época. Na impossibilidade de cercar as práticas do povo, como vimos com o corpo
grotesco, em que as pessoas transitam pelos dois mundos, o oficial e o não-oficial, a Igreja
trata de codificar este corpo, criar regulamentos, infiltrar-se nas práticas corporais, na arte da
culinária, das indumentárias, dos gestos, do amor, da beleza, da nudez. A Igreja cristã na
Europa se infiltra em todos os campos que se referem ao corpo e à vida social. Vimos com
Norbert Elias o processo civilizatório que tomou conta da sociedade moderna,
movimentando-se na dualidade herdada das práticas medievais, da mulher que oscila entre a
santa e a prostituta, Eva e Maria, a beleza profana e a sagrada.
134
Conforme observações dos autores citados, a dinâmica de oscilação presente nesse
período histórico deve ao corpo o foco central que ocupa no contexto real e imaginário dessa
gente. A convivência dessa dualidade gera um movimento dialético e dinâmico no seu
cotidiano. Não é um movimento de oposições ou antagônico (Le Goff e Truong, 2006).
As três ordens que compõem a sociedade tripartite medieval, oratores
(aqueles que rezam), bellatores (aqueles que combatem) e laboratores
(aqueles que trabalham), são em parte definidas por sua relação com o
corpo. Os corpos sadios dos padres que não devem ser nem mutilados nem
estropiados; os corpos dos guerreiros, enobrecidos por suas proezas de
guerra; os corpos dos trabalhadores, esgotados pela labuta. “As relações
entre a alma e o corpo são, por sua vez, dialéticas, dinâmicas e não
antagônicas.” (Le Goff e Truong, 2006: 35-36)
Na seqüência da leitura de Le Goff e Truong (2006), encontramos uma informação
relevante para a nossa reflexão. Esclarecem os pesquisadores que a matriz dessa pretensa
dualidade entre a alma e o corpo não é produto da Idade Média, mas sim de um período
posterior:
[...] não é a Idade Média que separa a alma do corpo de maneira radical,
mas, sim, a razão clássica do século XVII. Ao mesmo tempo pelas
concepções de Platão, segundo a alma preexiste ao corpo filosofia que irá
alimentar o desprezo pelo corpo”, dos ascetas cristãos, como Orígenes (c.
185-c. 252) –, mas ao mesmo tempo penetrada pelas teses de Aristóteles,
segundo o qual “a alma é a forma do corpo”, a Idade Média concebe que
“cada homem se compõe, assim, de um corpo, material, criado e mortal, e de
uma alma, imaterial, criada e imortal”. Corpo e alma são indissociáveis. (p.
36)
“Ele é exterior (foris), ela é interior (intus), e se comunicam através de toda uma rede
de influências e signos”, resume Jean-Claude Schmit (apud Le Goff e Truong, 2006: 36).
Vetor dos vícios e do pecado original, o corpo também é o vetor da salvação: “o Verbo fez-se
carne”, diz a Bíblia. Como o homem, Jesus sofreu. [...] Mas o que se convencionou chamar
Idade Média foi de início, a época da grande renúncia do corpo” (Idem: 36).
Na concepção dos autores acima citados, o corpo na Idade Média “constitui uma das
grandes lacunas da história, um grande esquecimento do historiador. A história tradicional
era, de fato, desencarnada. Interessava-se pelos homens e, secundariamente, pelas mulheres.
Mas quase sempre sem corpo” (Le Goff e Truong, 2006: 9).
O corpo na Idade Média é relegado a um status diferente daquele que tivera até então
nas culturas gregas, “lugar de paradoxos”. Nesse período ele sai do circuito social, e na trama
da grande renúncia a que é submetido está o corpo feminino, a mulher associada às práticas
135
demoníacas; “o corpo é considerado a prisão e o veneno da alma” (Le Goff e Truong, 2006:
37). Esse movimento de depreciação, de desprezo, esta renúncia ao corpo foram fomentados
pelo “monaquismo”, que se refere ao modelo ideal de vida cristã, ao ascetismo, à vida de
monge, solitária. O conteúdo que afeta o corpo nesta proposta cristã é “a renúncia ao prazer e
a luta contra as tentações” (Le Goff e Truong, 2006: 37).
Esquecer o corpo era a proposta dessas práticas. Nesse período, desaparecem as
termas, o esporte e também o teatro de influência grega e romana. O século XIII é o marco
das grandes restrições que abrangem os calendários, o que inclui abstinências alimentares,
conforme a reflexão de Le Goff e Truong (2006). Leigos, confrarias, penitentes organizam
uma procissão expiatória; flagelos de corpos são realizados publicamente. Os costumes se
alastram e os controles dessa ideologia atravessam o corpo e o tempo de cada um dos
seguidores do cristianismo na Itália. A Igreja passa a controlar os gestos, adota um
policiamento do espaço ao corpo e estrategicamente manipula o calendário intervindo também
no tempo.
O pensamento dos ideólogos medievais, como Santo Agostinho, Jerônimo e Santo
Tomás de Aquino, dão o impulso à depreciação corporal e sexual da Idade Média. O
cristianismo é o “operador de grandes reviravoltas”, em conexão com as estruturas
econômicas, mentais e sociais. Essa reviravolta elaborada pelo cristianismo é a grande
“novidade do Ocidente”, “a transformação do pecado original em pecado sexual”, uma prática
possível a partir de um pensamento simbólico. O controle dos corpos é assumido no século
XII. Traçada por Santo Agostinho, esta ideologia será paga com altos tributos, principalmente
pela mulher, subordinada a um pecado espiritual e corporal. Oito séculos separam Santo
Agostinho de Santo Tomás de Aquino, que se afasta da ideologia agostiniana em parte, pois
no que se refere à condição da mulher mantém as mesmas premissas, reforçada nesse
momento pelas idéias aristotélicas que muito o influenciaram.
As estratégias criadas pela Igreja na tentativa de controlar o corpo não foram
suficientes. Passam então a codificar, a criar regras que se infiltram no cotidiano das práticas
sociais e privadas. Lentamente essas práticas serão assimiladas na Europa e passo a passo
transformam-se em práticas de “civilizar o corpo”. A junção do cristianismo com a sociedade
da corte institucionaliza as “boas maneiras”, pois a preocupação com a “distinção social” e a
busca dos prazeres alimentares dos nobres e burgueses exige o refinamento, transforma o
alimento em cultura e a cozinha em gastronomia. Essas práticas são detalhadas por Le Goff e
Truong (2006).
136
As inscrições sociais institucionalizadas são absorvidas ao longo dos séculos,
transformam-se em normas. Esses corpos inscritos pelas leis religiosas são também marcados
pelas leis jurídicas. Na modernidade, o corpo social e individual submete-se às leis: em
diversos ritos de passagem, o indivíduo está exposto às normas de sua comunidade. A lei que
se inscreve sobre os corpos faz parte de um aparelho que articula as relações sociais. Os
instrumentos utilizados por esses aparelhos de coerção são vários. Podemos localizá-los
historicamente e servem para gravar “a força da lei” sobre aqueles que a infringem e servem
também de modelo para o grupo social medieval. É uma amostragem do que acontece com
quem ultrapassa as regras estabelecidas oficialmente pelo poder do rei que nesse momento é
divino. Um exercício que se torna legítimo socialmente e permissível de aplicação é a
maquinaria jurídica. “Essa maquinaria transforma os corpos individuais em corpo social. Ela
faz esses corpos produzirem o texto de uma lei” (Certeau, 1994: 233-234)
34
.
Uma outra maquinaria vem somar-se a essa: paralela à primeira, mas de tipo médico
ou cirúrgico, e não mais jurídico, serve de “terapêutica” individual e não coletiva. O corpo
que ela trata se distingue do grupo. Depois de ter sido durante muito tempo apenas um
“membro” braço, perna ou cabeça da unidade social ou lugar de cruzamento de forças ou
“espíritos” cósmicos, foi lentamente se destacando como uma totalidade com as suas
enfermidades, seus equilíbrios, desvios e anormalidades próprios. Foi necessária uma longa
história do século XV ao XVIII para que esse corpo individual fosse “isolado” da mesma
maneira como se “isola” um corpo em química ou microfísica, para que então se tornasse a
unidade básica de uma sociedade, após um tempo de transição em que aparecia como uma
miniaturização da ordem política ou celeste um “microcosmo”. Ocorre uma mudança dos
postulados socioculturais quando a unidade de referência progressivamente deixa de ser o
corpo social para tornar-se o individual.
34
“O corte individualista e médico circunscreve um espaço ‘corporal’ próprio onde se deve poder
analisar uma combinatória de elementos e as leis de seus intercâmbios. Dos séculos XVII ao XVIIII, a
idéia de uma física dos corpos em movimento neste corpo habita a medicina, antes que esse modelo
científico seja substituído, no século XIX, pela referência termodinâmica e química. Sonho de uma
mecânica de elementos distintos, cuja força é transmitida por pulsões, pressões, modificações de
equilíbrios e manobras de todo tipo. O trabalho do corpo é uma complexa maquinaria de bombas, de
tubos, de filtros, de alavancas, onde circulam licores e há órgãos que se correspondem. A identificação
das peças e de seus jogos permite que sejam substituídos por elementos artificiais aqueles que se
deterioram, ou apresentam algum defeito, e até construir corpos autômatos. O corpo se repara. Educa-
se. Até mesmo se fabrica. A panóplia dos instrumentos ortopédicos e dos instrumentos para
intervenção prolifera portanto, à medida que, daqui em diante, o homem se torna cada vez mais capaz
de compor e reparar, cortar, substituir, tirar, acrescentar, corrigir ou endireitar. A rede desses
instrumentos se complexifica e se estende. Até hoje está funcionando, apesar da passagem para uma
medicina química e para modelos cibernéticos. Milhares de lâminas afiadas e sutis se ajustam às
infinitas possibilidades que lhes oferece a mecanização do corpo.(Certeau, 1994: 234)
137
A transformação do corpo social em corpo individual e a transposição do poder antes
jurídico para o poder médico não deslocam o interesse de marcar o corpo em nome de uma
lei. muitas formas que se inscrevem em nossos corpos e deixam marcas: a tatuagem tão
comum na atualidade, a escarificação que se agrega aos ritos de sociedades com costumes
tradicionais e a que nos interessa debater, que são os instrumentos de justiça, dos mais simples
aos mais complexos. São tatuadas as forças impostas pela lei a determinadas sociedades; as
leis que se inscrevem nos corpos são assimiladas, tornam-se normas do corpo e o modelam.
De volta ao nosso mapa de orientação do corpo nos estudos da etnologia e sociologia,
retomamos Le Breton (2006), que, diante de algumas ambigüidades do corpo questiona: mas
de que “corpo” se trata? Alonga-se em uma reflexão a respeito do nosso esquecimento com
relação à realidade de um corpo que é encarnado. Não é possível falar de um corpo sem antes
mencionar suas representações, imaginários sociais que o nomeiam, suas genealogias, seus
limites e possibilidades que variam de uma sociedade para outra.
Distinguimos nesta análise o “corpo comunitário” ao qual nos remete Gil (1997) e que
“implica uma vivência do corpo singular”, não separado dos outros corpos. A trama que liga
os homens em sociedade tradicionais passa pelo corpo, território que é o elemento de ligação
da energia coletiva. O corpo e o homem não estão dissociados; pelo contrário, estão
misturados, e sua carne se mistura à natureza e ao cosmo. O corpo não é possível sem o outro;
a existência de um depende da presença do outro.
Em cada comunidade primitiva o laço que une todos os membros
fundamenta-se neste corpo comunitário: todos os outros factores de coesão,
as diferenças e as classificações que se erguem sobre a superfície social e
que determinam, no interior da comunidade, oposição, aproximações,
cruzamentos, trocas, divisões em grupos e subgrupos, assentam neste corpo
primeiro. Aí se operam divisões muito profundas: as funções mais imediatas,
mais vitais do homem - como a nutrição, a reprodução, as excreções, as
percepções canalizam e reproduzem o mesmo em que cada corpo
individual, fragmento e momento do corpo comunitário, compõe e analisa os
seus ritmos, deixando-se atravessar pelos ritmos de todos os outros. Gil
(1997: 56)
Nas sociedades do tipo individualista, como a que vivemos, os atores estão separados
uns dos outros, a autonomia impera nas ações do cotidiano. A fronteira com o universo é o
corpo, é a pele, fina película viva que nos separa do mundo e dos outros. Este isolamento do
corpo nas sociedades ocidentais, “eco das primeiras dissecações e do desenvolvimento da
filosofia mecanicista”, acrescenta Le Breton (2006: 31), chega junto à modernidade e aos
primeiros métodos da sociologia.
138
A definição do corpo, preocupação constante em nosso trabalho, pautou-se mais nos
questionamentos que propriamente em verdades estabelecidas. Cuidamos de encontrar as
matrizes que nos conectam ao entendimento e intersecções que favorecem a condição
humana. Seguimos as orientações de Le Breton (2006), que nos indicou o percurso das
análises possíveis sobre o corpo, das “lógicas sociais e culturais, os imaginários sociais do
corpo e o corpo no espelho social” (p. 77). Estes três momentos, intitulados campos de
pesquisa, tratam de um mapeamento dos trabalhos sociológicos elaborados a respeito da
corporeidade.
Nas “lógicas sócias e culturais” discutimos Marcel Mauss e Norbert Elias. Nessa
discussão, retomamos a Idade Média e voltamos no tempo para localizar as matrizes do
pensamento e suas influências no corpo moderno, no qual encontramos o imaginário que
elaboramos para explicar as diferenças, tema que será tratado no Capítulo 2.
No momento, interessa-nos abordar “o corpo no espelho social”, que se refere à
discussão do controle político da corporeidade. O tema remete-nos à discussão da ação
política e o controle sobre o corpo, que, na década de 1970, era foco de discussão nas ciências
sociais.
3.4. Corpo disciplinado e mercantilizado
O corpo aparece em debate na obra intitulada Vigiar e punir: história da violência nas
prisões, em que Michel Foucault coloca em exposição o jogo de forças que atravessam o
corpo nas instituições e o próprio corpo das instituições. No capítulo denominado “Corpos
dóceis”, o filósofo aponta para a postura do guerreiro e para a fabricação dos corpos flexíveis.
Ao descrever a postura dos soldados em diferentes períodos da história, o autor cria a
possibilidade de comparação entre o corpo do soldado, perpassado pelos valores de um
guerreiro, e de um soldado do século XVIII, formatado nos moldes dos micropoderes da
instituição. O corpo normatiza as leis em diferentes momentos da história.
Essa comparação revela uma diferença entre o vigor e a submissão automática. Com
relação ao soldado do século XVII, a imagem da vida do guerreiro, “a sua força e valentia”
faziam desse corpo guerreiro uma “retórica da honra”. Seus pés, conforme descreve o autor,
são “firmes, fortes e ágeis”, marcham na cadência dos tambores que são as referências da
expressão e gravidade. Os ritmos dos tambores comandam o corpo do soldado; ele é movido
pela cadência dos toques.
139
Ao longo de muitos processos, a “anatomia política” se estabelece e atua em múltiplas
direções. Com este “dispositivo termo que desenvolveremos a seguir –, abrem-se
possibilidades na fabricação do soldado que recebe um adestramento minucioso por meio de
regras. Esculpido pelos sistemas disciplinares, o soldado do século XVIII passa a ter em seu
corpo um território de investimento na “arte dos detalhes”. De forma cuidadosa, o exercício
será utilizado ininterruptamente para se obter os resultados esperados para a dominação.
A genealogia do poder foi o caminho para a análise crítica que fez Foucault ao
detalhar a formação do sujeito moderno. O território que se observa nessa discussão é o corpo,
a fabricação de um corpo flexível, automatizado e útil. O corpo como “objeto e alvo de
poder”, como se observa nas “micropolíticas do cotidiano. É principalmente em Vigiar e
punir que vemos caracterizada a genealogia a que se propôs: do suplício à punição, das
estratégias disciplinares dos corpos dóceis ao olhar “panóptico”.
Propondo-se a realizar uma “ontologia histórica de nós mesmos”, Foucault destituiu o
sujeito do lugar privilegiado de fundamento constituinte que ocupava na cultura ocidental,
passando a problematizá-lo como objeto a ser constituído, acrescenta Rago (1995: 77).
Essas transformações acerca do sujeito em suas práticas do cotidiano promoveram
interesses sobre o que fazemos de nós mesmos
35
. Neste trabalho conectamos-nos à discussão
em busca de novos caminhos e respostas a respeito do corpo. O encontro tratou da seguinte
questão: “O que estamos fazendo de nossos corpos?”. O propósito das discussões
desenvolvidas no foi construir, a partir dos teóricos citados anteriormente, ferramentas que
permitissem pensar novas possibilidades e campos nos quais possamos problematizar sobre
nós, nossas dificuldades ao transitar pela contemporaneidade.
Das reflexões resultantes desse Colóquio encontradas em Imagens de Foucault e
Deleuze: ressonâncias nietzschianas, tomamos a fala de Sant’Anna (2000) Transformações do
corpo, controle de si e uso dos prazeres como caminho para discussão deste sujeito que
transita pelas metrópoles, que convive corpo a corpo com os paradoxos do mundo
contemporâneo. Voltamos a nossa atenção para o corpo de cada um de nós, que é o foco de
análise da autora. Na visão da pesquisadora e com as bases teóricas fincadas em especial em
Foucault, atualmente comenta que se exige do corpo novas configurações. Em sua opinião, a
passagem de uma ordem “político-jurídica” para uma “tecnocientífica empresarial”
transformou nossa relação com o corpo. Nessa nova configuração que a autora problematiza
35
Colóquio Foucault-Deleuze, realizado sob a coordenação de Margareth Rago e Luiz B. Lacerda
Orlandi. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (IFCH/Unicamp),
2000.
140
está o uso dos prazeres. Marcando esta passagem, a década de 1970 é o momento em que a
genética associa-se à informática e à massificação global do consumo e dos bens
industrializados. Essa mistura é analisada em dois momentos pela autora: no primeiro,
denominado por ela de expansão externa”, e no segundo, “expansão interna”. O movimento
de “expansão externa” é aquele em que acontece uma conexão com o mercado global, e o
segundo, a expansão interna”, é quando o indivíduo volta-se para o seu corpo e toma para si
o controle dos seus níveis de prazer. Na “expansão externa”, o corpo, com suas
singularidades, tende a desaparecer; na “expansão interna”, o corpo ganha uma importância
exagerada porque são multiplicadas as exigências e as sensibilidades que cada indivíduo tem
em relação a si mesmo. Temos então, por um lado, o diluir das singularidades do corpo para
alimentar as necessidades de uma economia de mercado, enquanto, por outro lado, um
aprimoramento tal que causa um isolamento do mundo, por exemplo, o spa.
A “forma homem”, criada no século XIX sob os olhares de cientistas, industriais e
políticos, passa por uma transformação acelerada que pode desencadear duas atitudes opostas,
segundo a autora, dois lados de uma mesma moeda: “salvar o que resta de humano ou
descartar a humanidade em favor de uma nova via de evolução biológica” (Sant’Anna, 2002:
101). Como a sociedade vive sob uma ordem tecno-científica-empresarial, a autora apresenta
oito ações sobre os corpos.
Estas oito grandes tendências suscitam a necessidade de relançar questões, na
verdade, seculares: como fazer com que o uso dos prazeres fortaleça as
potências de cada corpo e o afeto por si sem degradar as potências dos demais
corpos ? Ou, ainda, como constituir coletivos destituídos do espírito de
rebanho e, ao mesmo tempo, fortificar o afeto por si ? E como cuidar do
próprio corpo sem fazer dele um exílio confortável, macio e perfumado, um
templo no qual amigos e inimigos são dispensáveis ?. (Sant’Anna, 2002: 108)
A nova ordem na concepção da autora, aprofunda a antiga necessidade de fazer do
corpo um veículo capaz de passar pelo tempo e acessar muitos lugares, ao invés de fazer dele
mesmo uma passagem” (Sant’Anna, 2002: 108). Olha-se o corpo como mercadoria, que
“reivindica o estatuto das artes”. A juventude é dilatada por meio de inúmeras intervenções,
num tempo curto de exposição, pois tem um prazo de validade; na seqüência, vira apenas uma
quimera. Na ordem “jurídico-política”, a sociedade precisa de corpos dóceis, flexíveis e
humanos; busca a mais-valia da mão-de-obra, porém a nova ordem, segundo a pesquisadora,
precisa do humano e não-humano, precisa da carne, das células, do sangue, dos órgãos, dos
tecidos, na captura da carne e do espírito. O valor do requinte é substituído pelo da eficácia.
141
As palavras de ordem são os prazeres ilimitados. E são elaborados, segundo a autora, novas
técnicas de conquistas do interior do corpo, possível de codificação, uma “endocolonização”.
A passagem de uma sociedade disciplinar para uma de controle tirou a disciplina que
se fixava no interior das instituições, das famílias, dos colégios para o exterior, por meio do
controle do trânsito, das pessoas nas ruas. Hoje, o corpo é filmado, é fotografado. As nossas
digitais são registradas a cada tentativa de acesso a aeroportos, na compra de serviços aos
quais nosso acesso é possível apenas com o toque dos dedos nas registradoras de digitais.
As redes tecidas na sociedade de controle utilizam como amarras os mecanismos do
marketing. O marketing é o instrumento de controle social da atualidade, as redes de conexão,
que liberam os corpos nos seus trânsitos de vida, ficando obscurecidos, invisíveis, enquanto as
redes constituídas pelos poderes cedem à tecnociência empresarial, com mais eficácia e
menos ética.
Na esteira desta discussão, conectamos com Carvalho (2003), que nos apresenta
questões referentes à realidade da população que investigamos. O pesquisador direciona uma
reflexão a partir do artigo intitulado “As culturas afro-americanas na Ibero-América: o
negociável e o inegociável”. Nesse estudo, analisa a realidade das culturas afro-americanas e
as possíveis articulações históricas e atuais, as questões teóricas e políticas, entre outros
aspectos. Os exemplos destacados nessa discussão esbarram na música, na dança e nos rituais
sagrados, o que não impede, segundo o autor, de utilizar essa reflexão no campo do teatro, do
cinema, da literatura e das artes plásticas. Destaca, ainda, a ideologia que permeava a década
de 1990, que se reveste de uma afirmação “sedutora e simplista”. O discurso volta-se para
uma idéia de grandes oportunidades para os países periféricos em processo de globalização.
Esta afirmativa estimava que o momento seria uma excelente chance de realizações em
diversos âmbitos da sociedade, desde os intercâmbios culturais aos materiais simbólicos. Em
contrapartida, deveriam abrir suas economias, enxugar a máquina do Estado.
De acordo com Carvalho, a política de transferência de decisões culturais de alguns
Estados para as empresas privadas, com o objetivo de redução de custos, é uma decisão que
não visa a sociedade, e sim o capital. Em outras palavras, e afinando-se com a discussão
anterior, o critério para validar o projeto de cultura é transformá-lo em uma mercadoria que
gere o lucro, e não, como afirma o autor, “seu potencial de emancipação, resistência,
reivindicação ou expressão de identidades discriminadas e fragmentadas” (Carvalho, 2003:
103). Acrescenta que o modelo neoliberal inserido no contexto da cultura ou a cultura quando
capturada pelo sistema neoliberal tem como princípio “um vazio político, ideológico e
histórico”.
142
A arte perfomática africana foi inscrita, por meio de som e imagem, no centro da
forma estética popular ocidental que veio, por mediação da indústria cultural, a caracterizar a
juventude branca: o rock-'n’-roll. Associações entre pop stars ocidentais e artistas africanos
foram estabelecidas e fixadas em símbolos de cooperação e amizade norte–sul, centro–
periferia, brancos–negros.
É o momento em que a arte se dobra às exigências do mercado. Torna-se uma
mercadoria vendável. O movimento de despolitização e descaracterização das práticas de
tradição acelera na mesma velocidade em que se investe nas estratégias do mercado. Algumas
passagens sobre esses mecanismos de mercado o exemplificadas por Carvalho (2003). Uma
das figuras de destaque internacional é Paul Simon, que se conectou ao grupo Olodum.
Segundo o autor, “provavelmente a canibalização de Simon, estes contatos com a cultura teve
resultados mais drásticos para a cultura de afro-baianos que a influência de seu disco na luta
contra o aphartheid na África do Sul” (2003: 110).
3.5. Performances e o povo da voz
O que passa na poesia oral e, pela força das circunstâncias,
permanece absolutamente estranho à poesia escrita, é isto: a voz, por onde a
poesia transita, aceita, assume a servidão que constitui a existência do corpo, com
tudo que esse corpo implica, suas fraquezas e suas forças. Estamos assim de volta
à idéia de espaço: a voz expande o corpo, deslocando seus limites para muito
além da sua epiderme; em contrapartida, o corpo a ancora no real vivido.
(Zumthor, 2005: 89)
Paul Zumthor, o autor nômade assim reconhecido pelos seus interlocutores, nasceu em
Genebra em 1915, foi educado em Paris e por muito tempo lecionou na Holanda, finalizando
sua carreira acadêmica no Canadá, mas a África e Brasil marcaram sua vida e suas obras.
A presença da voz é título de cinco entrevistas cedidas por Zumthor (2005) para uma
rádio do Canadá. A respeito da audição de um canto africano extraído de Musique et tradition
du Congo, seguido de um rock de Bill Halley, em seus comentários ele deixa explícito que a
voz é um objeto central de muitas sociedades, é uma qualidade de poder, um conjunto de
valores que funda uma cultura, e que esses valores se estendem às inúmeras outras artes.
Quando compara o povo da voz, que são os povos da África profunda, com as canções de
afro-americanos, incita-nos a pensar sobre a história da voz. A complexidade da voz, muitas
vezes inalcançável pela ciência, diz por ela que é a própria presença.
143
Faz parte do nosso movimento de escuta, como poder central, a voz de inúmeras
culturas, a voz também dos jeje-nagôs, entre outros. A partir dos ritos dos Ijexá, Queto, a
canção que se desenvolve durante o ritual de candomblé é o mesmo que uma oração. A voz é
tanto social quanto individual. No grupo social, a comunicação vocal tem como função
externar os discursos, ser escutado garantindo a sua perpetuação, não um discurso científico,
mas um discurso que perpassa o corpo.
Um dos aspectos importantes do trabalho de Zumthor (2000) é a interdisciplinaridade
que permeia suas obras sobre a voz, a voz humana como foco central de investigação. Ao
desenvolver suas pesquisas a respeito do tema, transitou por áreas de conhecimento como a
etnologia, segundo ele, dentro de seus limites, posteriormente a acústica, a lingüística,
ressaltando onde começou a história das tradições orais, a sociologia das culturas populares,
as formas de comunicação interpessoal. Essa articulação interdisciplinar promoveu novas
perspectivas.
A partir de um olhar interdisciplinar, ampliou os horizontes. Com os estudos da poesia
medieval, deparou-se com a questão da “vocalidade”, adotou o termo em oposição à
“oralidade”. Desenvolveu uma tarefa de “desalienação crítica” com relação às divisões que
muitos medievalistas faziam no bojo da cultura.
Sua paixão pela voz humana, ou pelas vozes humanas, justifica-se pelas
particularidades concretas que elas carregam. Essas vozes das quais se fala emanam de um
corpo:
O que entender aqui por esta palavra, corpo? Despojado como ele está em
minha frase, parece escapar, por demasiado puro e abstrato, [...] No entanto,
é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo; ele que
vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso sentido
na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização daquilo
que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação com o
mundo, [...] conjunto de tecidos e de órgãos, suporte da vida psíquica,
sofrendo também as pressões do social, do institucional, [...] contração e
descontração dos músculos; tensões e relaxamentos internos, sensações de
vazio, de pleno, de turgescência, mas também um ardor ou sua queda, o
sentimento de uma ameaça ou, ao contrário, de segurança íntima, abertura ou
dobra afetiva, opacidade ou transparência, alegria ou pena provindas de uma
difusa representação de si próprio. (Zumthor, 2000: 28-29)
Este corpo que emana a voz é o corpo das performances, que “implica competência”,
um “saber-fazer e saber-dizer no tempo e no espaço”. Tendo o corpo como território, inicia-se
o processo de integração. A voz que emana do corpo aceita se submeter ao corpo; poesia
144
processo. Performance é território de simbolização, de integração, de “multiplicidade de
trocas semânticas”.
O autor nômade evoca lembranças da infância relacionadas a performances que o
inspiraram em suas práticas e produções acadêmicas durante a sua vida (Zumthor, 2000). Nas
suas idas e vindas pelos subúrbios onde habitavam seus pais e também região onde fazia o
curso secundário, passava sempre pelas ruas de Faubourg, Montmartre e Saint-Denis
freqüentadas pelos estudantes pobres. Esta região era animada por cantores que ele, segundo
seus relatos, adorava ouvir:
Éramos quinze ou vinte troca-pernas em tr
upe ao redor de um cantor.
Ouvia-se uma ária, melodia muito simples, para que na última copla
pudéssemos retomá-la em coro. Havia o homem, o camelô, sua parlapatice,
porque ele vendia as canções, apregoava e passava o chapéu; as folhas-
volantes em bagunça num guarda-chuva emborcado na beira da calçada.
Havia o grupo, o riso das meninas, sobretudo no fim da tarde, na hora em
que as vendedoras saíam de suas lojas, a rua em volta, os barulhos do mundo
e, por cima, o céu de Paris que, no começo do inverno, sob as nuvens de
neve, se tornava violeta. Mais ou menos tudo isto fazia parte da canção. Era
a canção. (Zumthor, 2000: 32-33)
O autor alonga-se na descrição sobre estas performances de rua colocando todos os
aspectos que fazem parte da cena, do tom violeta do céu sob as nuvens de neve às sonoridades
flutuantes, aos “cacos” de sons. Todos viram componentes de uma composição elaborada a
partir de uma escuta. Era um jogo.
O estudo das performances para o nosso trabalho teve como uma das bases as
reflexões de Zumthor. Foi a partir de sua definição de performance, juntamente com as
cartografias realizadas em Salvador, que elaboramos a nossa trajetória. Partimos da idéia dada
pelo autor que toma o termo da concepção anglo-saxônica:
[....] A performance se situa num contexto ao mesmo tempo cultural e
situacional: nesse contexto ela aparece como uma “emergência”, um
fenômeno que sai desse contexto ao mesmo tempo em que nele encontra
lugar. Algo se criou, atingiu a plenitude e, por mesmo, ultrapassa o curso
comum dos acontecimentos. [....] A performance e o conhecimento daquilo
que se transmite estão ligados, naquilo que a natureza da performance afeta o
que é conhecido. A performance de qualquer jeito, modifica o conhecimento.
Ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando ela marca.
(Zumthor, 2000: 36-37)
Tentamos aqui abrir mais brechas para melhor compreender o conceito de
performance. Quando o autor relembra suas passagens em Paris, pelas ruas onde encontrava
os cantores, comenta que a interação com eles e suas melodias constituía-se em um jogo. O
145
que o havia atraído era o espetáculo, que era o que o retinha. Todos os aspectos da
performance faziam parte dessa canção, desse jogo, uma “forma” que não era fixa e muito
menos estável, “a forma se percebe em performance, mas a cada performance ela se
transmuda” Zumthor (2000: 39).
Del Hylmes, citado por Zumthor (2000), apresenta uma definição mais explícita de
performance:
Para Hyme, pode-se classificar segundo três tipos a atividade de um homem,
no bojo de seu grupo cultura: behavior, comportamento, tudo que é produzido
por uma ação qualquer; -depois conduta, que é o comportamento relativo às
normas socioculturais, sejam elas aceitas ou rejeitadas; - enfim, performance,
que é uma conduta na qual o sujeito assume aberta e funcionalmente a
responsabilidade [....] (p.36-37)
A “reiterabilidade” da performance modifica o conhecimento, modifica e “marca”.
“Performance é o único modo vivo de comunicação poética” (Zumthor, 2000: 39-40) ou modo
“eficaz”, como acrescenta o autor. De volta às reflexões sobre as relações que a performance mantém
com a voz e com a escrita, Zumthor aponta para aspectos da diversidade das culturas, das diferenças
internas de cada população –“oralidades no plural”. Se informalmente performance se refere ao oral e
ao gestual, isto reforça que ela está atrelada à idéia de presença de um corpo. O corpo é recriado a cada
relação de uma performance. O autor relembra que a canção que recheou suas lembranças, nas ruas de
Paris, cantada pelo ambulante, implicava uma interação de ritmos das melodias, dos gestos e da
linguagem; as pulsações agiam em todos que estavam presentes, sem que eles suspeitassem que esta
interação promovia o que Zumthor chama de “mistério primitivo sacral” (2000: 46).
Seguindo os aspectos apresentados pelo autor, temos que a performance se liga também ao
espaço de teatralidade:
[...] a performance não é uma soma de propriedades de que se poderia fazer
o inventário e dar a fórmula geral. Ela só pode ser apreendida por intermédio
de suas manifestações específicas. Ela partilha nisso com a poesia (e sem
dúvida poética) um traço definidor fundamental. (2000: 50)
O som produzido nas performances não se fixa em lugar algum, mas ocupa um
espaço, e se muitas vezes não detectamos a sua fonte, ou esta nos parece vaga, a sua recepção
se espraia e se difunde entre a multidão e cinde nossa audição. Retomando que a performance
retém a idéia da presença de um corpo e da voz, questionamos: de onde vem a voz? A visão
fornece uma presença, não o som. A visão distancia, a música toca, o ruído assedia. O inimigo
pode interceptar o rádio, mas não pode entrar no semáforo.
146
3.6. Os sentidos do corpo – avançar tateando
A noite não anestesia a pele, ela exalta a sua finura. O corpo se eleva ao buscar o
rumo em meio às trevas, ama as pequenas percepções, em graus baixos: apelos tênues,
imperceptíveis matizes, eflúvios raros, prefere-os a tudo que estardalha. Aquele que vagueia
no silêncio e na sombra ajuda o corpo encontrar exercícios caídos milênios no
esquecimento e no desuso. As próteses técnicas datam de um momento tão recente da história
que nossos ossos humilhados se entusiasma quando voltam a desempenhar seu papel
imemorial. Nossos tendões e músculo, nossa roupa cutânea cantam de alegria quando
jogamos fora nossas pernas de pau, lâmpadas ou automóveis, muletas sensoriais ou motoras.
Nossas técnicas geralmente custam uma ortopedia para um membro são, que ,tão logo
substituído ou alongado, como diz a teoria, cai doente ou impotente. Conservemos o que nos
engrandece e desprezemos o que nos diminui.
(Serres, 2001: 64)
A performance no conceito trabalhado anteriormente não nos remete a um inventário
no qual podemos levantar uma forma-padrão do corpo. A performance não tem uma regra
fixa, o pode ser repetida sem alteração; sua forma não mantém uma estabilidade. Esta
prática só é entendida a partir de suas particularidades e no momento em que acontece.
Quando buscamos entender as performances dos rituais religiosos do candomblé e do
Candeal Guetho Square, local de que mais nos aproximamos para a análise de nosso objeto
o corpo nas danças performáticas –, percebemos que são essas danças, imbuídas de uma
complexidade de fluxos e produções de sentido, que lhe dão sustentação. Esta sustentação tem
como base os sentidos que dão as formas não estáveis às performances. O que são estes
sentidos? Volto-me para Michel Serres, que desenvolve uma reflexão nas obras Os cinco
sentidos e Variações do corpo. Na primeira, discute a respeito dos corpos misturados, de uma
cultura da mestiçagem que mistura os sentidos; na segunda, analisa as “admiráveis
metamorfoses” que o corpo realiza, “corpo genial”. O autor relaciona a postura corporal com
a do pré-humano quando escala uma montanha. Evidencia as metamorfoses possíveis em
nossas ações, rompe com os limites de pensar o humano separado do animal. Acrescenta que
“não existe nada no intelecto que primeiramente não estivesse nos sentidos” (2001: 66).
O corpo tem um conhecimento próprio,
[...] não recebe ajuda de qualquer memória externa, ele o faz por si só, copia
e armazena os dados. Essa preciosidade encontra-se presente em todas as
histórias das culturas nas quais não existe um trabalho mais difundido e mais
preciso que o de copiar: os trabalhos dos pintores murais de Lascaux, dos
escribas assírios, dos monges da Idade Média, de Jean Jacques que
transcrevia a música. (Serres, 2004: 76)
147
Investigar o corpo é fazer emergir o que de encoberto nesse território cujo
invólucro é o tato, a pele, “matriz de todos os sentidos” (Montagu, 1998: 21). É nesse extenso
tecido
36
de receptores sensoriais que podemos observar os mapas traçados durante e pela
própria vida. O rosto é uma tela viva que expõe não trajetos das alegrias e tristezas, mas
sutilezas e tons das sensações que trafegam no corpo, os espantos, o grito. A pele é nossa
fronteira com o mundo.
Avançar tateando, esta é mais uma das premissas para o ofício do cartógrafo, “tatear o
território” por onde passa para construir os mapas, neste caso, o mapa dos sentidos.
Rastreamos as sensações, pois elas nos guiam e nos defendem. Sobre a sensação, diz Serres:
“sem ela morreríamos, corpos explodidos, decepados pelas forças físicas, pelo poder do social
e pelas dores íntimas. Ela apresenta, como num ninho, uma vizinhança parede mole de
espinhos duros e, em sua cavidade dura, gera o sentido doce. “Que sai da cavidade e voa”
Serres (2001: 126).
O autor de Os cinco sentidos alinhava nesta obra as impressões e imagens que
permeiam os sentidos do corpo. Descreve e ao mesmo tempo exala por todos os poros as
sensações do seu corpo em um naufrágio, revive o evento sob a multiplicidade de percepções
entre céu e o inferno.
A leitura da filosofia dos “corpos misturados” discutida na obra de Serres trouxe-nos
uma reflexão sobre os sentidos, a chance de uma cultura “ideal”, “talvez a única esperança de
um porvir quando a ciência nos tornou aptos a construir e destruir o mundo”, vários territórios
das sensações, estimulando a fala, não por meio do princípio de inteligibilidade, mas dos
sentidos.
36
“A pele, como uma roupagem contínua e flexível, envolve-nos por completo. É o mais antigo e
sensível de nossos órgãos, nosso primeiro meio de comunicação, nosso mais eficiente protetor. O
corpo todo é recoberto pela pele. Até mesmo a córnea transparente de nossos olhos é recoberta por
uma camada modificada de pele. A pele também se vira para dentro para revestir orifícios como a
boca, as narinas e o canal anal. Na evolução dos sentidos, o tato foi, sem dúvida, o primeiro a surgir. O
tato é a origem de nossos olhos, ouvido, nariz e boca. Foi o tato que, como sentido, veio a diferenciar-
se dos demais, fato este que parece estar constatado no antigo adágio ‘matriz de todos os sentidos’.
Embora possa variar de estrutural e funcionalmente com a idade, o tato permanece uma constante, o
fundamento sobre o qual assentam-se todos os outros sentidos. Embora possa variar estrutural e
funcionalmente com a idade, o tato permanece uma constante, o fundamento sobre o qual acentuam-se
todos os outros sentidos. A pele é o mais extenso dos órgãos do sentido do nosso corpo e o sistema
tátil é o primeiro sistema sensorial a tornar-se funcional em todas as espécies até o momento
pesquisadas – humana, animal e aves. Talvez depois do cérebro, a pele seja o mais importante de todos
os nossos sistemas de órgãos. O sentido mais intimamente associado à pele, o tato, é o primeiro a
desenvolver no embrião humano.” (Montagu, 1998: 21-22).
148
A sensação, conforme Serres, “tem estatuto de música”. A música é “indeterminação”.
Este conceito é registrado por Terra (2000: 37): “Em Cage
37
, sua função é ampliar o próprio
campo o silêncio (um indeterminado puro) –, de modo a abranger a totalidade dos sons e
ruídos”. É nesse momento que se rompe a fronteira da escuta. Rompe-se também com uma
tradição secular, abrem-se os ouvidos e experimenta-se a diversidade sonora do mundo.
Aproxima-se a arte da vida. Falamos de processo que não tem início nem fim. Assim é o
corpo em movimento, é o corpo na dança, é o corpo nas performances.
Na montagem de uma reflexão sobre o corpo, encontramos em Mauss um desbravador
de terras desconhecidas, estas terras que se situam nas fronteiras das ciências, conforme a
citação apresentada no início deste capítulo. Fez um inventário dos usos do corpo em
momentos históricos distintos, o corpo como resultado de uma construção social e de um
discurso elaborado pelo Ocidente. Ao iluminar o corpo, evidenciou a diversidade cultural, o
fato social total.
Um corpo audível foi traçado, é possível agora ouvi-lo, “tateá-lo com os olhos”. A voz
torna-se presença sob a regência acústica do corpo. A escuta do corpo dá passagem às
intensidades, os fluxos são inúmeros. Impossível classificá-los como fazemos com os ossos
do corpo humano, as plantas e suas qualidades terapêuticas. A complexidade dos sentidos
toma-nos toda a atenção, pois o corpo desenvolve inúmeras mediações. Enquanto emissor e
receptor existe, nesse momento, uma invenção constante de fluxos. Diz Serres (2001: 324)
que:
O corpo não se comporta, nem por sombra, como receptor passivo. Por mais
que a filosofia o ofereça ao dado mundo, estabelecido ou deformado, mole e
feio, recentemente tornado repugnante. Ele se exercita, treina, quase por si
mesmo, ama o movimento, espontaneamente, regozija-se de entrar em ação,
salta, corre imediatamente e sem linguagem, na e pela sua
ou dança,
conhece a si mesmo, impetuosidade, descobre sua existência no ardor
muscular, quase nos limites da fadiga.
A afirmação anunciada por Serres automaticamente nos remeteu às imagens do corpo
descrito por Foucault (1983) e às interpretações realizadas por Le Goff e Truong (2006) a
respeito do corpo na Idade Média e o corpo moderno. Os rituais das populações no período
37
“Situando no contexto de um pensamento não dualista, John Cage concebe os sons de sua música
como eventos em um campo de possibilidades, ao contrário da tradição européia, que produz sons
musicais em pontos discretos desse campo: [...] O campo de possibilidades de onde Cage parte para
criar a música é o silencio[...] o silêncio torna-se algo diferente não o silêncio como tal, mas os
sons, os sons do ambiente” (Cage, apud Terra, 2000: 41).
149
medieval implicavam práticas corporais de dança de louvor à terra. A Igreja cristã, ao trazer
as cerimônias para dentro das igrejas, limita as atividades físicas e as cerimônias externas.
O corpo, ressalta Serres (2001), não é um “receptor passivo”. Portanto, a onde
podemos restringir um corpo? Um exemplo muito próximo nosso é quando deixamos de ter
atividades físicas e valorizamos mais a intelectual, quando delimitamos os tipos de
movimentos repetitivos, como na vida moderna. Foucault (1983) exemplifica em “Corpos
dóceis” as restrições corporais do soldado moderno em comparação ao guerreiro. O repertório
de movimentos do guerreiro transforma-se em relação ao soldado moderno, mas o soldado
moderno é flexível, molda-se às exigências da modernidade. O corpo, ressalta Serres, não é
um “receptor passivo”. Portanto, como escapa às restrições? O que do corpo está submetido
aos movimentos de restrição? Diante de tantas limitações impostas ao corpo, das leis
religiosas que insidiam o corpo medieval, normatizando-o às técnicas de posturas do soldado
dos exércitos modernos, das mecânicas leis jurídicas e médicas submetidas à “ordem
biológica”, conceito que se opõe à discussão elaborada por Marx e Engels, Villermé e Buret
(apud Le Breton, 2006: 16), quais são, na realidade, os efeitos nesse corpo? E quanto ao corpo
dançarino, o que esta prática propicia? Novas etnografias precisam ser elaboradas
contemplando estas questões. Para esta investigação, temos que nos equipar com todos os
sentidos, rastrear outros territórios, outras paragens do conhecimento.
Seguimos então, primeiramente, rumo ao campo de profissionais que trabalham com
técnicas corporais, para averiguar o que existe em suas experiências que se conectam com a
afirmativa de Serres a respeito da não-passividade do corpo e também a respeito de trabalhos
que enfatizam o corpo em movimento, no caso da dança.
Foi com base na afirmativa de Serres que iniciamos o diálogo com Vera Moreira,
terapeuta que trabalha com rolfing (um sistema de educação corporal e manipulação física,
chamado originalmente de “integração estrutural”) e exerce a profissão de enfermeira há mais
de vinte anos. Primeiro, contextualizamos a obra do autor, em seguida apresentamos o objeto
de nosso trabalho – o corpo nas performances religiosas e populares – e por fim apresentamos
a afirmativa lançada por Serres
38
.
38
“O corpo não se comporta, nem por sombra, como receptor passivo. Por mais que a filosofia o
ofereça ao dado mundo, estabelecido ou deformado, mole e feio, recentemente tornado repugnante.
Ele se exercita, treina, quase por si mesmo, ama o movimento, espontaneamente, regozija-se de entrar
em ação, salta, corre ou dança, conhece a si mesmo, imediatamente e sem linguagem, na e pela sua
impetuosidade, descobre sua existência no ardor muscular, quase nos limites da fadiga” (Serres, 2001:
324).
150
A entrevistada ouviu atentamente e iniciou sua fala confirmando a frase de Serres: “O
corpo não é passivo; quando você olha para o outro e o outro te olha, sempre tem uma reação,
se não externa, mas uma reação interna”. Acrescenta que “sempre que existe um contato,
acontece um tipo de transformação, você tem o tato, tem o contato, forma o vínculo; se não o
alimenta, ele acaba, começa e termina [...] quando nos deparamos com uma imagem, ela nos
toca, as reações podem ser desconhecidas pelo receptor, mas o corpo reage”. Outro exemplo
dado pela terapeuta do corpo: “A criança, por falta de possibilidades reais de vida, afogará
durante anos os acontecimentos que a marcaram, mas sempre reage, e você tem as
máscaras. As máscaras sociais”. “Frente a um luto, uma perda, a pessoa não consegue
canalizar o sofrimento. Em nossa sociedade, que ritual é feito para isto?”, pergunta a
terapeuta, e em seguida reforça a idéia que o corpo não é passivo. “O organismo reage
internamente, com dores físicas. [...] O indivíduo quando está com raiva e não grita, reprime
as emoções, estas ficam congeladas, retidas, exteriormente nada se percebe”, completa a
profissional.
Novamente apresentamos a citação de Serres (2001: 324) à dançarina, coreógrafa e
terapeuta do movimento Marcela Moraes, que contribui para este trabalho com suas leituras e
experiências no trato do corpo e da dança:
o corpo não se comporta, nem por sombra, como receptor passivo. [...]
regozija-se de entrar em ão, salta, corre ou dança, conhece a si mesmo,
imediatamente e sem linguagem, na e pela sua impetuosidade, descobre sua
existência no ardor muscular, quase nos limites da fadiga.
Com relação às reações do corpo, confirma: “No momento em que você nasce ou
morre ou na hora que acorda ou vai dormir, você reage ao mundo externo. Apesar de estarmos
acostumados e na maior parte do tempo não prestarmos atenção, as sensações acontecem o
tempo inteiro, comunicamos-nos com o mundo externo o tempo todo. Ao ouvir um som, nos
viramos para saber o que é ou jogamos a atenção mental para ‘escanear’ o que estamos
ouvindo. O mesmo acontece com a luz, com a temperatura e os objetos que tocamos ou que
nos tocam. Existe um termo na língua inglesa usado para explicar que a gente subestima os
valores de informações sensoriais: We take it for granted. Por dar mais valor para ao conteúdo
mental, o conteúdo sensorial muitas vezes não é usado a nosso favor, fica no inconsciente.
Nos rituais religiosos ou populares, o corpo chega quase aos ‘limites da fadiga’ seguindo o
pensamento de Serres. Estas práticas propiciam esta condição ao corpo”.
151
Com relação à dança, Marcela Moraes acrescenta informações a respeito da obra
Dançar a vida, de Garaudy (1980: 8), prefaciada por Maurice Béjart. Béjart, segundo a
entrevistada, descreve os conteúdos da dança sagrada e da dança profana. Para ele, devemos
procurar as origens da dança nessas duas realidades. Conferimos abaixo as explicações:
A dança é um rito: ritual sagrado, ritual social. Encontramos na dança essa
dupla significação que está na origem de toda atividade humana. [...] Dança
sagrada – o homem está diante do Incompreensível: angústia, medo, atração,
mistério. As palavras de nada servem. Para dar a isso nomes como Deuses,
Absoluto, Natureza, Acaso?...O que é preciso é entrar em conctato. O que o
homem busca, para além da compreensão, é a comunicação. A dança nasce
dessa necessidade de dizer o indizível, de conhecer o desconhecido, de estar
em relação com o outro. [...] Dança profana O homem fez parte de um
dado grupo étnico, social, cultural. E tem necessidade de se sentir fazendo
parte integralmente deste grupo: de estar em relação com os outros. Muito
mais do que as leis, os costumes, o traje e a linguagem é o gesto que vai dar
existência a essa união. As mãos se juntam, o ritmo une as respirações, a
dança folclórica nasce, com seu leitmotiv universal: a ronda, a
farândola...[...]
A entrevistada nos dá a referência da citação acima e acrescenta um comentário
importante a respeito do termo dança, seguindo as definições de Garaudy (1980: 13-14):
[...] a dança é um modo de existir [...] não apenas jogo, mas celebração,
participação e não espetáculo, a dança está presa à magia e à religião, ao
trabalho e à festa, ao amor e à morte. [...] A própria palavra em
todas as
línguas européias danza, dance, tanz –, deriva da raiz tan que, em
sânscrito, significa “tensão”. Dançar é vivenciar e exprimir, com o máximo
de intensidade, a relação do homem com a natureza, com a sociedade, com o
futuro e com seus deuses. Dançar é, antes de tudo, estabelecer uma relação
ativa entre o homem e a natureza, é participar do movimento cósmico e do
domínio sobre ele.
Ao associarmos estas definições ao nosso objeto de estudo, que é o corpo nas
performances populares e religiosas, entendemos que a afirmação do sujeito em sua
comunidade se por meio dessas performances, que é a um tempo arte, movimento,
conhecimento, religião. O sagrado que se instala nos rituais religiosos é uma forma de troca
de saberes. A dança não é apenas expressão e celebração da continuidade orgânica entre o
homem e natureza. É também realização da comunidade viva dos homens” (Garaudy, 1980:
17).
A dança nasce da gestualidade do cotidiano, do trabalho do homem. Desde a gênese
das sociedades, o homem se afirma como parte de uma comunidade que o transcende por
152
meio das danças e cantos. Vários são os registros que confirmam a realização da comunidade
dos homens em função dessas práticas. Garaudy (1980: 19) nos coloca alguns exemplos:
[...] esse momento ascendente do homem não se registrou apenas uma vez na
origem das grandes civilizações, com a paixão de Osíris ou de Dioniso, com
a dança de Shiva. Ele nasce da experiência incessante do trabalho dos
homens: em cada organização coletiva do trabalho, a comunidade se realiza,
e se realiza de maneira rítmica. Durante culos, todas as vezes que,
cadencialmente, marinheiros içavam a vela ou davam voltas cabrestantes,
que barqueiros sirgavam suas barcas ao longo dos rios, que ferreiros
malhavam, no mesmo ritmo, o mesmo ferro, a força do grupo, uma vez
coordenada e ritmada, mostrava-se superior à soma das forças individuais
dos participantes. O homem adquire assim um novo poder e toma
consciência dessa transcendência da comunidade com relação aos
indivíduos. Este poder e essa transcendência estão ligados ao ritmo dos
gestos e à comunhão que esse ritmo permite concretizar. A dança opera essa
metamorfose: transformando os ritmos da natureza e os ritmos biológicos em
ritmos voluntários, ela humaniza a natureza e dá poder para dominá-la.[...]
Como não crer nos rituais religiosos que seguem os ritmos das cadências de tambores
ancestrais? Nas danças que têm como objetivo transformar, evocar a cura? Nas performances
de dançarinos de rua que, imbuídos pela alegria provocada pelas cadências rítmicas, agregam,
por onde passam, o povo em procissão. “A dança torna o deus presente e o homem potente”,
confirma Garaudy (1980: 20).
Rastreando ainda a fala de Garaudy (1980: 20), acrescentamos que a dança exprime a
“coesão”. “Para um africano, o que um homem dança é sua tribo, seus costumes, sua religião,
os grandes ritmos humanos de sua comunidade.”
39
Nas performances religiosas que encontramos em nossas pesquisas, verificamos esta
coesão. O corpo comunitário do qual nos fala José Gil (1997) é o laço que une as pessoas.
Na modernidade, relatada nos ensaios de Walter Benjamin (1989: 36), autor de
Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, encontramos na voz de Simmel uma
referência com relação à predominância da visão neste contexto:
Quem vê sem ouvir fica muito mais inquieto do que quem ouve sem ver. Eis
algo característico da sociologia da cidade grande. As relações recíprocas
dos seres humanos nas cidades se distinguem por uma notória
preponderância da atividade visual sobre a auditiva.
39
Anotações das aulas de Etnomusicologia ministradas por Kasadi Wa Mukuna, autor do livro
Contribuição bantu na música popular brasileira: perspectivas etno-musicológicas. Centro de
Estudos Culturais Africanos e da Diáspora. PUCSP, 1° semestre de 2008.
153
Na seqüência do texto, desenvolve uma explicação para tal atitude. Olhar um ao outro,
sem muitas vezes trocar palavras, é algo estranho, não acolhedor:
[...] antes do desenvolvimento dos ônibus, dos trens e dos bondes do séc.
XIX, as pessoas não conheciam a situação de terem de se olhar
reciprocamente por minutos, ou mesmo por horas a fio, sem dirigir a palavra
umas às outras.
Conferimos também em Serres a reflexão que desenvolve a respeito da predominância
da visão a despeito de outros sentidos do corpo:
Muitas filosofias referem-se à vista; poucas ao ouvido; menos crédito se
ao tato e ao odor. A abstração recorta o corpo que sente, suprime o gosto, o
olfato e o tato, conserva apenas a vista e o ouvido, intuição e entendimento.
Abstrair significa menos sair do corpo do que o partir em pedaços: a análise.
(2001: 20-21)
Mesmo que muitas filosofias mantenham um entendimento do corpo aos pedaços, o
corpo sempre reage, independentemente da ação. Diante do grito primal, busca-se o prazer. O
primeiro prazer, segundo Serres (2001: 324), é respirar, esta respiração domina a batida do
coração. Depois da respiração, vem o “salto” e, em seguida, a “corrida”, “soma do fôlego e do
salto”, todos os ofícios que passam pelo canto, pela voz. “Um corpo jamais nasceu antes de
ter dançado” (Serres, 2001: 331). Nas danças religiosas e populares, presenciamos
movimentos que contam uma história, a dos cultos religiosos e as suas matrizes seculares.
O exercício do sagrado, nos terreiros de candomblé, propicia ao iniciado
metamorfosear-se durante a dança, transformar-se em um outro. Faz deste corpo possuído a
morada dos deuses, relembrando as inúmeras possibilidades plásticas da carne. Estas
sociedades de tradições seculares vêem no corpo humano possibilidades múltiplas de
movimento. Das satisfações básicas do corpo citadas por Serres (2001), acrescentamos que “a
sensação de equilíbrio sobre os pés se constrói como um refúgio ou habitat, se compõe como
uma partitura musical” Serres (2004: 30).
O corpo é genial. Não sei por que não aprendi mais cedo a sua força
criadora, por que não compreendi, quando mais jovem, que somente um
corpo glorioso poderia ser real. Eu celebro esse porquê no crepúsculo de
minha vida para que meus sucessores tenham conhecimento dele. O que
você vai fazer na alta montanha na sua idade? Preparar minha escrita.
Estudem, aprendam, certamente sempre restará alguma coisa, mas,
sobretudo, treinem o corpo e confiem nele, pois ele se lembra de tudo, sem
qualquer dificuldade ou impedimento. O que nos distingue das máquinas é
154
unicamente nossa carne divina; a inteligência humana se distingue da
artificial apenas pelo corpo. (Serres, 2004: 17 - 18)
Nos primeiros mapas, quando ainda rastreávamos o território para justificar a escolha
do objeto, não buscávamos informações, mas sim pistas. Ficávamos atentos aos
acontecimentos que eram constantes, porém imprevisíveis. Nesta imprevisibilidade, os corpos
da população que investigávamos traziam as matrizes da religiosidade jeje-nagô. Neste
universo extremamente complexo, a dificuldade era entrar literalmente nos campos de
pesquisa. Avançamos pelas bordas, trouxemos para o nosso trabalho os relatos de filhos-de-
santo, que, na riqueza de suas experiências míticas, compuseram o que denominamos de
sagrado. Traçaram uma cartografia que, passo a passo, foi modelando a realidade na qual
vivem.
A idade das grandes viagens supõe uma dissolução da paisagem, o
surgimento de imensos mapas, o obstinado desprezo, pela circunstância, o
monoteísmo e a supremacia da vontade sobre a inteligência. Sábio,
marinheiro, filósofo ou viajante ganham a cabeça linear e confundem-na
com a razão. Bela conquista, grandes vitórias: a necessidade não-linear,
inesperada, irreconhecível, de cem caras e mil contornos, cai no
esquecimento com a inteligência correspondente e a paisagem antiga e
politeísta. (Serres, 2001: 273)
A reflexão desenvolvida neste capítulo evidenciou a tradição do pensamento ocidental.
O esquecimento com relação ao corpo, também uma tradição e uma prática das instituições
religiosas e não-religiosas, se popularizou, tornando os corpos dóceis, flexíveis, que se
reinventam e se defendem, buscam recursos para a sua sustentação, reagem a qualquer custo,
pois o corpo sempre reage, contendo-se ou recriando-se. A possibilidade de deslocar-se para o
universo dos mitos expande e abre novos territórios para o corpo. Apresentamos nas páginas
anteriores um universo de narrativas que seguem não a lógica dos “tempos modernos”, mas
do universo mágico, cujos ritos de iniciação promovem o pertencimento desses narradores a
uma convivência diária com as divindades e em determinadas situações, esses narradores
divinizam-se.
155
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os inúmeros portais que acessamos e nos quais fizemos a passagem nessa
investigação nos levaram a conhecer a diversidade não cultural, que é uma marca do
nosso povo brasileiro, mas nos propiciou ir mais além e nos infiltrarmos pelos labirintos das
cosmogonias que se impõem na vida de corpo inteiro. Pierre Verger (2000) nos lembra que os
praticantes dos cultos de tradição extraem das divindades um sentimento de orgulho e de uma
fé real, reflexos de poder deixados pelos seres divinos. Quando estes seguidores se encontram
em dificuldades, ritualizam seus santos e conseguem o apoio que necessitam no cotidiano.
Com isso tomam conhecimento das possibilidades de seu corpo, assim como os caminhos
para sua renovação e ampliação.
Um dos autores importantes que inserimos em nossa tese foi Hampatê Bã,
fundamental nas suas longas narrativas das práticas africanas. Trouxemos para este trabalho a
ancestralidade e a concepção de mundo apresentadas pelo autor, que constituem um
testemunho ocular da sabedoria viva. Essa sabedoria tocada pelas mãos dos povos da diáspora
africana transborda em fonte de criação, em cultura reciclada, a arte dos adornos, a arte de
reciclar o que de excesso de objetos de consumo da sociedade ocidentalizada,
industrializada. Ficam explícitas nas reciclagens que faz Carlinhos Brown ao construir suas
ferramentas sonoras e estéticas com o que encontra em seu território, assim como os griots
que constroem seus instrumentos sonoros (cora é um exemplo) com o que encontram na
vegetação e em seu hábitat.
Com as leituras e as aulas (Kasadi) a respeito da cultura africana fundamentamos as
danças, que na África significa música, canto, dança. Estas não estão separadas; pelo
contrário, são extensões umas das outras que a cada momento causam um efeito diferente.
Não se repetem, não têm começo, meio, nem fim. Estão presentes nos olhares, nas falas que
também são melodias que afinam os instrumentos sonoros. Do bater e forjar as formas do
ferro, o ferreiro gesta a música. Ele não é um simples executor de tarefas; ele tem a sabedoria
e a história de seu povo, é o contador de histórias do cotidiano, do conhecimento dos
antepassados em tempo presente. Nessa cultura que é detalhadamente vivida, crianças, velhos
e jovens arquitetam uma rede de transmissão de conhecimentos. Quem teve um ancestral
contador de histórias sabe da importância desta conexão que contextualiza as formas de existir
em um universo cheio de indagações como é a infância. As formas de viver apresentadas pelo
autor das tradições orais (Hampatê Bã) mostram também o ofício de tecelão, o qual, no
156
movimento de seus pés que aciona as máquinas de tecer, cria as freqüências de suas canções,
ou seja, está conectado ao corpo durante o seu trabalho. Não fica fora do tempo de seu corpo,
segue o ritmo sentido de dentro para fora.
Uma das imagens mais belas do documentário O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, é
a cena da criança nas costas da mãe, quando ela, em seus afazeres domésticos (pilando os
grãos), gesta os movimentos que embalam a criança. É muito comum cantar em conjunto com
outras mulheres que também carregam seus filhos e trabalham simultaneamente. Essas
crianças no tato direto com as mães recebem as informações do mundo externo, se este é
seguro ou temido. Entram literalmente no ritmo da mãe e nessa simbiose gestam em seu
interior o que é próprio do ser humano. Afetam-se e são afetadas. É uma rede de conexões que
explica o que pode o corpo, quais são as suas intensidades. Como o exemplo da criação do
tambor em que o homem, ao esticar o couro do animal para secar nos troncos das árvores, tira
o som da pele. Essa pele é sonora e, quando percutida, ouve-se o lamento do animal na
concepção do universo africano, razão pela qual segue percutindo e ritualizando a morte do
animal compondo canções.
Não somente o trabalho de campo nos abre portais, mas as leituras desvelam também
outras temporalidades. Voltamos para as explicações ocidentais a respeito dos paradigmas do
homem. Morin, em O paradigma perdido, nos apresenta um caminho de compreensão para os
enigmas da vida humana, da transformação, do duplo. A consciência da realidade nos abre
dimensões mais complexas de compreensão do mundo. O encontro com o que é real, como o
é a morte, suscita no homo sapiens uma necessidade de “transmortalidade”, um cruzamento
de uma consciência “objetiva” com uma consciência “subjetiva”. O resultado é a criação dos
ritos que auxiliam a assimilar o acontecimento traumático. Com os ritos, acionam-se os mitos
por meio das magias. Esses atos, conforme menciona Morin (1973), provocam um fenômeno
por ele denominado de “ressonância”. O corpo vibra diante dos sons, dos odores, das cores,
das imagens e toma uma amplitude que marca a forma de ser do homo sapiens. Assim
passamos a explicar essa condição de incertezas (demens) que predomina daí em diante na
vida complexa do homem.
Uma das primeiras constatações a que chegamos quanto às possibilidades do corpo é
que a cultura ocidentalizada faz divisões na arte que são inconcebíveis na cultura da oralidade.
Essa segunda é sabida, porém pouco compreendida na sua profundidade. Esses ensinamentos
seculares nos condicionaram o olhar. Por interesses econômicos revestidos de dogmas
científicos e religiosos colonizaram e desritualizaram o nosso corpo. O efeito desses processos
foi um distanciamento das “intensidades” Deleuze (1997), que são as conexões com as
157
emoções de alegria, de movimento, de falas cantadas, de gestos dançados, dos risos, de
narrativas, de simbioses entre o animal e o homem, de imaginários no cruzamento com o real.
Essas intensidades distanciadas do cotidiano humano resultam e restam ao homem em um
repertório limitado e um trânsito pouco provável no universo gico da “forma poética de
comunicação” (Zumthor, 2000).
A ruptura provocada pela missão colonizadora, civilizadora e filosófica (com o
pensamento cartesiano), além de separar e distanciar das intensidades, cria discursos, fruto de
um olhar civilizador que é assimilado como verdade pelos colonizados. Tentamos nessa
pesquisa dimensionar o tempo inteiro o que pode o corpo, pois esse conhecimento nos foi
omitido em longos períodos históricos. O adestramento e a restrição da potência corporal em
nossa cultura começam no berço, nas amarras, nos limites espaciais, na diferença entre
crianças que vivem no berço e as que vivem no espaço livre, reverberando grandes impactos
em seu corpo, nos seus enfrentamentos no mundo. As explorações das paisagens sonoras
representam um ganho na formação do homem. A criança que cresceu na rua seguindo os
sons e buscando suas origens viveu em meio às paisagens sonoras dos batuques, freqüentou a
escola da oralidade. O cotidiano das crianças que vivem na “intensidade” fazem deste
universo de brincadeiras um entremeado de ritmos, de danças e de cantos, de latas percutidas
de invenções de outros corpos, nossa segunda constatação.
Na “ilha do espetáculo”, que já foi conhecida pelos moradores como “Ilha dos Sapos”,
posteriormente “Ilha da Fantasia”, encontramos a história da diáspora africana que se
estabeleceu no Brasil. O texto inicial do capítulo I apresenta nosso olhar primeiro. Víamos o
ritual, era um visual que transbordava intensidades e projetava também as distâncias e os
deslocamentos das origens, o ritual atualizado, indicador do real, mas também de um
imaginário, uma trama de tempo e espaço. O mapa cartográfico sugerido por Martin-Barbero
(2004) nos levou a essas intensidades. Das apropriações que o artista Carlinhos Brown
realizou em sua comunidade pudemos visualizar as matrizes da oralidade que o inspiram e
dão o suporte a sua arte e a seus empreendimentos. Associa a oralidade e a escrita.
Movimenta-se e ancora suas produções na cultura religiosa dos candomblés. Mesmo
tendo sua formação em uma família protestante, o artista retomou a ancestralidade das
tradições e justifica ser como Ogum, o que abre caminhos, o guerreiro. Associou-se ao
momento de reafricanização cultural que ocorria em 1980 em Salvador e reavivou o que
existia nas suas matrizes culturais, oficializou-se na comunidade compondo músicas que
divulgam sua gente e o legitimam junto ao grupo musical Timbalada como artista local e
global. As matrizes da estética de Carlinhos Brown são recicladas nos universos com os quais
158
convive na cidade de Salvador. O artista inventa uma linguagem misturada, improvisada nas
fontes latinas, americanas e de tradição religiosa do candomblé. Esta última consiste em uma
das matrizes mais evidentes aos nossos olhos nessa cultura de inventar do artista.
Atravessar o universo religioso do candomblé foi um dos desafios que não estavam
previstos em nossa proposta inicial. Hesitamos num primeiro momento, mas muitas das
referências que víamos nas performances do artista nos remetiam a esses cultos. Avançamos
para os primeiros rituais e assim verificamos um outro ponto que nos respondem quais as
possibilidades do corpo, mesmo que submetido aos sincretismos, aos imperialismos e aos
processos de colonização. A ancestralidade transparece lentamente, e com muita força
evidencia-se o quanto da oralidade predomina nos terreiros de candomblé, mesmo frente a
algumas mudanças que as comunidades refletem na atualidade. Porém em grande parte as
práticas permanecem como estrutura de pensamento do universo africano e da diáspora
africana. A integração do corpo é uma das primeiras ações que solicitam ao iniciado; o
processo de sacralização também é a possibilidade de retomada do próprio corpo, de interação
com o mundo sagrado e o abandono da matéria profanada. Com o corpo limpo, depois de
várias rezas (orações cantadas para a integração do corpo), muitas cerimônias com ervas e
afastamento do que é profano, a pessoa se prepara para enfrentar o mundo externo, para
incorporar e festejar com o seu santo, dividindo seu corpo, seu espaço corporal, com o divino.
Os rituais, também compostos de músicas e ritmos, danças e cantos, são altamente
potentes e atuam de forma direta no corpo de todos. O instrumento sonoro é uma extensão do
corpo. O ogã e o alabê (corpos sonoros) estendem as intenções de sua música a todos os
participantes que as sentem ressoar em seus corpos. A purificação é feita pelos sons e ritmos
que atuam primeiro e diretamente nas musculaturas. O corpo é feito de movimentos mais ou
menos acelerados. Em meio a essa paisagem, o corpo é capturado e fica pronto para receber o
santo, incorpora, e então se desenvolvem as coreografias mais exuberantes.
Por intermédio das declarações dos entrevistados, lembramos que a dança vinha
espontaneamente, e muitos narraram em seus depoimentos que fora do contexto religioso, das
danças dos orixás, não se sentiam à vontade para dançar. O corpo a corpo com os rituais não
recebe ajuda de memória externa. Segundo Serres (2004: 76), “ele o faz por si só”, “copia e
armazena os dados”, “imita as coisas diretamente”. O autor afirma ainda que não precisamos
repetir os gestos muitas vezes, pois os movimentos encadeados são incorporados nos
músculos, nas articulações e nos ossos. Ficam espalhados e esquecidos na complexidade
corporal. Uma forma é a imitação; a outra é a simulação que acorrenta o corpo a uma outra
dimensão. O que nos interessa é demonstrar que a imitação em algum momento poderá tomar
159
um impulso para a invenção, não aprisionando os corpos. A invenção recria a dança, adapta
os ritmos, agrega os ruídos, os sons, outras coreografias. Permite avançar e capturar outras
paisagens corporais e novamente sacralizar.
O contexto vivido pelos povos da língua e etnia Nyungüe, na voz de uma de suas
descendentes, enriqueceram a nossa pesquisa e simultaneamente confirmaram as
possibilidades simbióticas do homem em relação a sua existência. Serres (2004) constata em
seus exercícios de montanhismo as metamorfoses de seu corpo, utiliza-se de todos os sentidos
para sobreviver, transcende sua condição e adota as possibilidades arcaicas de se equilibrar.
Transita entre a condição humana e pré-humana, metamorfoses, universos em que todos os
seres se comunicam, mas estão tanto tempo esquecidos que reaparecem em formato de
fábulas, como as crianças de Tête (Moçambique), que são memórias da própria entrevistada
no seu cotidiano em comunidade.
A ritualização que se desenvolve nas culturas de tradição oral com relação ao corpo,
práticas de purificação e sacralização, não são as mesmas das culturas que estão expostas mais
diretamente aos processos civilizatórios. A construção do corpo moderno tratado por Le
Breton (2006) rompe gradativamente com a conexão que se tinha do corpo com a natureza e o
cosmo.
Retomando os dados históricos, encontramos momentos de desritualização do corpo.
Pratt (1999) contribuiu para uma justificativa do que chamamos de corpo profanado, do
quanto a concepção e práticas do corpo foram dessacralizadas no decorrer do domínio e da
visão européia que surgia no exercício de um outro olhar, o científico. Mas anterior a esta
missão tão propagada, Morin (1973: 15) nos relembra que “desde Descartes que pensamos
contra a natureza, certos de que a nossa missão é dominá-la, subjugá-la, conquistá-la”. A
profanação se estendeu a uma dimensão em que os homens “civilizados” esqueceram de seus
corpos. O período de dominação da Igreja Católica foi marcante para o ritual de esquecimento
do corpo, mas nada se compara aos controles que se fizeram presentes com a modernidade e a
expansão do capitalismo, quando as culturas de tradição tinham que simular sua adesão aos
cultos católicos e ficavam sob a mira da disciplina e dos dogmas religiosos.
Mas nas inúmeras buscas de territórios de investigação a respeito da profanação do
corpo, nada foi tão violento como a modernidade, que com o propósito de classificar e
quantificar os territórios de dominação, incluiu o humano e o colocou também como um
produto a ser explorado, codificado. As novas estratégias de conquistas ficam cada vez mais
elaboradas. O reencontro com o território que por muito tempo permaneceu mudo e esquecido
aconteceu com um dos primeiros investigadores em fins do culo XIX e início do XX no
160
campo da antropologia, citado e estudado na atualidade: Marcel Mauss. Ele acionou um
campo de investigação comparando os gestos culturais, corpos que deixam a natureza como
uma única explicação para sua existência e são percebidos pela distinção das classes e o nível
de controle imposto aos corpos. De Mauss a Norbert Elias o corpo passa a ser lugar de
história.
E assim o século XX evidencia mais e mais o corpo, os encontros com os territórios
urbanos, as cidades, os olhares tornam-se mais freqüentes. A certeza do corpo é expressa na
arte das imagens que o fragmentam e o apresentam em pedaços nas grandes telas de cinema,
corpo suporte de arte. Com a Primeira Guerra Mundial o corpo vira experimento, lugar de
intervenção. A floresta cartesiana, montada não na diversidade e menos nos sentidos, resultou
em uma desritualização e em um caminho que avançou rumo à profanação do corpo sagrado.
161
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168
ANEXOS
ANEXO 1 - Cronograma de etnografias e entrevistas
18/10/2008 Etnografia: cultura bantu
Inzo La Tumbanzi – Rituais Bantu
Itapecerica da Serra –
São Paulo
29/09/2008
Ms.Lílian Engelman Coelho
Musicoterapeuta, Mestre em
Comunicação e Semiótica
PUC/SP. 2000
17/09/2008 Marta Maciel Iansã
08/07/2008 Valter Marcos Valente de
Xangô
Membro da casa Oxumare
Salvador – (BA)
08/07/2008 Tia Ana Laura Membro da casa Oxumare
Salvador – (BA)
05/07/2008 Etnografias: Casa Oxumare Vasco
da Gama –Salvador (BA)
Salvador (BA)
04/07/2008
Centro de Estudos africanos e
asiáticos (CEAO)
Salvador (BA)
02/07/2008
Festa de Independência da Bahia
Salvador (BA)
03/07/2008 Centro de Estudos Áfricanos e
Asiáticos (CEAO)
Salvador (BA)
29/02/2008 Terapeuta corporal (Rolfing) Vera Moreira
03/01/2008 Terapeuta corporal(Rolfing) Vera Moraeira
08/02/2008
Marcela Moraes
Bacharel e Licenciada em
dança-Unicamp-SP;
coreógrafa; terapeuta do
movimento
13/12/2007
Dr. Roberto do Nascimento Paiva
Depoimento: A purificação do
corpo no universo do candomblé
Doutor e Mestre em
Comunicação e Semiótica pela
PUC-SP, coordenador do
curso de pós-graduação e
professor adjunto Fizo/
Anhanguera Educacional
2007 Exposição Benin
Parque Ibirapuera – São Paulo
Museu afro-brasileiro
169
2004; 2005; 2006;
2007
Museu afro-brasileiro biblioteca
Pesquisa do acervo
Parque Ibirapuera – São Paulo
03/03/2007
Marcela Moraes
Bacharel e Licenciada em
dança- Unicamp-SP;
coreógrafa; terapeuta do
movimento
14/11/2007 Gemauro Gonçalves Oxaguian
13/11/2007
V Santana
Membro da Casa de
Candomblé- Oxumare-
Salvador (BA)
10/11/2007
V.Santana.
Membro da Casa de
Candomblé- Oxumare-
Salvador (BA)
13/10/2007 Wagner Nicoletti Ogã de Ylê Axé Yemonjá
13/10/2007 José Fernandes Ogã de Ylê Axé Yemonjá
17/01/2007 Leonilda Adelino Sanveca
Muatiacale
Relato a respeito da “Casa dos
Espíritos”
Jornalista africana mestranda
PUC/SP. Língua e etnia
Nhungüe, Tête-Moçambique.
14/10/2006 Leonilda Adelino Sanveca
Muatiacale,
Relato da Comunidade e educação
das crianças na etnia Nhungüe
Jornalista africana, mestranda
PUC/SP, Língua e etnia
Nhungüe, Tête-Moçambique.
1° semestre de
2006
Ritual de Candomblé Pai Toninho Barra Funda São Paulo
Março -2006 O Brasil de Pierre Verger
Exposição - fotográfica, fílmico e
performances de danças dos Orixás
Museu de Arte Moderna
(MAM) – São Paulo
Parque do Ibirapuera
1° semestre de
2005
Etnografias de um ritual de
Candomblé “Festa de Oxóssi”
Jandira – São Paulo
170
1º semestre de
2005
Museus da Bahia
Pelourinho – Salvador – (BA)
01/2004
Fundação Pierre Verger
Engenho Velho de Brotas –
Salvador – (BA)
01/2004 Igreja Santo Antonio de Catijeró Pelourinho – Salvador – (BA)
01/2004 Igreja São Francisco de Assis Pelourinho – Salvador – (BA)
02/2004 Mestre Lua Rasta “Cortejo do
Bando de Associados da
capoeira”
Gilson Fernandes- Terreiro de
Jesus- Pelourinho- Salvador
(BA)
15/01/2004 Festa da Lavagem do Bonfim
2004 Festa de Iemanjá Rio Vermelho Salvador (BA)
01/2003
Mestre Lua- oficinas de percussão
mestre de capoeira, artesão e
pesquisador de instrumentos
musicais de percussão afro-
brasileiros – Ateliê-
Pelourinho Salvador (BA)
05/01/2003 Show de Carlinhos Brown
Timbalada
Candyall Guetho Square –
bairro do Candeal Pequeno de
brotas. Salvador (BA)
08/01/2003 Visita ao Projeto da Associação
Pracatum Ação Social
Bairro do Candeal Pequeno de
brotas. Salvador (BA)
09/01/2003 Visita ao Projeto de Habitação “Tá
Rebocado” (recuperação das
casas do Candeal Pequeno de
Brotas)
Bairro do Candeal Pequeno de
brotas. Salvador (BA)
12/01/2003 Show de Carlinhos Brown
Timbalada
Candyall Guetho Square –
bairro do Candeal Pequeno de
Brotas. Salvador (BA)
2003 Centro de Estudos fricanos e
Asiáticos (CEAO)
Terreiro de Jesus – Pelourinho.
Salvador. (BA)
171
ANEXO 2 – Produção musical
A percussão, tocada nos atabaques nos terreiros, é a base da musicalidade dos blocos. Além
dos ritmos, o recurso vocal também encontra paralelos nos rituais sagrados. A técnica
responsorial utilizada nos cultos do candomblé, que consiste em uma pergunta puxada pelo
solista e respondida pelo coro e/ou pelos atabaques, foi apropriada pela produção musical
dos blocos afro e inspirou a estrutura de várias canções, onde a voz do cantor/cantora
aparece antes do som dos tambores (repiques, taróis, surdos), servindo para puxar a bateria.
Tal como nas narrativas míticas, a história do povo africano é recontada nas letras das
canções. Todos os blocos afro realizam pesquisas sobre a história da África. (Guerreiro,
2000: 51)
As bandas criadas por Carlinhos Brown seguem tradições religiosas do candomblé,
música e dança não estão separadas, recebem um tratamento coreográfico estilizado, os
componentes que se apresentam tem maior liberdade de reinvenção. A Timbalada (uma
banda afro e um bloco de carnaval). Timbalada é uma banda formada por dezessete
componentes, sendo que seus instrumentos são: Timbau, Timbales, Tarol.
Lactomia, Bolacha Maria e os Zárabes, esta última se destaca nas festividades da
cidade, na Festa do Bonfim principalmente, quando o grupo aparece repentinamente em meio
a multidão, vão “costurando” o povo que segue a procissão, mistura influências árabe e
africana e carrega em suas roupas a mistura das culturas, Lactomia banda mirim. Conhecida
como Bolacha Maria, a banda feminina apresenta-se nos festejos do Pelourinho.
172
ANEXO 3 - Glossário dos instrumentos musicais
ADJÁ (s.m) instrumento idiófono, formado por uma, duas ou três campânulas Os
materiais utilizados são a folha de flandres. Ferro, alumínio, latão dourado e cobre. O adjá é
instrumento distintivo do poder de mando dos rituais religiosos. Serve também para dirigir
obrigações diversas, oferecimento de comida aos deuses e coordenar as danças. Ao seu som
de apelo, quase mágico, vêm os deuses, como também ocorre com o uso do xerê na roda de
Xangô. O adjá é guardado no santuário no santuário como os demais objetos fundamentais à
estrutura e ao funcionamento do terreiro. Sua ocorrência concentra-se no Candomblé, indo ao
Xangô e recentemente absorvido pela Umbanda. Os diferentes materiais dos adjás servem
para caracterizar o orixá ou grupo de orixás, ou mesmo o deus patrono do terreiro ou o
dirigente do ritual religioso.
Adjá de cobre indica Xangô, Iansã e sua família mítica; os de latão dourado são
dedicados a Oxum, e os prateados em vários materiais pertencem a Iemanjá, Oxalá, como
também a qualquer outro orixá uma espécie de tipo múltiplo -, por isso a maior ocorrência
verificada de adjás é prateada; os de ferro são para Exu, Ogum ou mesmo para uso geral
durante as festas. (Lody: 2003: 63)[...]. Ao som do adjá também é comandado um tipo de
cumprimento convencional nos terreiros o paô -, batidas cadenciadas de palmas feitas
diante dos assentamentos dos deuses, de pessoas de alta posição hierárquica ou perante
qualquer símbolo da natureza que remeta a um deus ou a uma situação ritual específica.
AFOXÉ- (s.m.) instrumento de percussão idiófono, também conhecido genericamente
como cabaça ou ágüe, formado por uma cabaça (crescentia cujete) bojuda e recoberta por
redes de fios de algodão, tradicionalmente, ou náilon, recebendo cartas, búzios, sementes,
entre outros materiais. O afoxé integra diferentes contextos da música ritual religiosa afro-
descendente e nomina um cortejo de rua do período de carnaval, o afoxé, sendo conhecido
também como Candomblé de rua.
Os ritmos seguem o modelo da Nação Gexá, seguindo o Xirê, ordem dos cânticos e
danças, iniciando com Exu e culminando com Oxalá. O contexto instrumental do cortejo
afoxé chama-se charanga, sendo formado pelo afoxé, agogô ilu e atabaque. Lody (2003: 64)
AGOGÔ (s.m) agogô é um instrumento formado por duas campânulas de ferro batido,
podendo ser cromado, complementado com uma vareta do mesmo material como elemento
percussor. Ocorre na formação de conjuntos como oos da música religiosa dos Candomblés,
173
Xangôs, ou ainda na estrutura de grupos de samba e na macroformação de bateria das escolas
de samba, com variações, tais como haste central que sustenta lateralmente quatro, seis, oito
ou mais campânulas em ferro e que são percutidas alternadamente. O agogô tradicional
apresenta uma campânula maior e outra menor, sendo esta um terço da anterior, e são
distinguidas por timbres e alturas específicos. Com o artifício de usar um dos dedos,
geralmente o polegar, o músico pressiona a campânula maior, fazendo com que o som fique
mais surdo e grave.
Dos idiofónos, o agogô é o de maior ocorrência e abrangência na geografia da música
afro-brasileira. No conjunto instrumental do Candomblé, por exemplo, o agogô inicia os
toques, polirritmias que identificam nações ou orixás, vocuns e inquices. Assim: alujá para
Xangô, bravum para Oxumaré, Ilú para Oiá ou Iansã, Ibi para Oxalá oum para Angolas,
Nação Angola, o barravento, cabula e congo. Assim, o agogô dista uma frase rítimica que é
imediatamente seguida pelos três atabaques, podendo ser complementado com as cabaças ou
afoxés e ainda com o bater de palmas, entre outras fontes sonoras. Lody (2003: 65)
AGUIDAVI (s.m.) Baquetas artesanais em madeira e de características peculiares para
uso no trio de atabaques. O aguidavi é confeccionado pelo próprio ogã músico alabê e runtó
- , sendo que um tipo mais grosso e único que é o indicado para o rum maior atabaque - ,
e dois pares de baquetas mais finas para uso nos atabaques Rumpi e Lê. Lody (2003: 65)
Os aguidavis são retirados de galhos de goiabeira (Psidiu guaiyava) ou araçazeiro
(Psidium littarale) entre outras madeiras resistentes e flexíveis; medem aproximadamente
entre 30 a 40 cm de comprimento. Os aguidavis são apenas descascados e lixados com
faquinhas e feitos ás dezenas, ficando próximos dos ogãs para uso durante as festa dos
terreiros. O uso de aguidavis caracteriza a música instrumental das nações Ketu-Nagô e Jeje
para o Candomblé baiano e sua diáspora.
ATABAQUES. Tradicionalmente um instrumento musical muito simplificado,
construído por couro animal esticado sobre aro de madeira ou caixa oca de madeira, a parte
principal do atabaque é justamente o couro, local onde é realizada a percussão.
Na confecção do atabaque, além dos critérios na seleção da madeira e outros
acessórios, o ato de encourar o instrumento é tarefa das mais importantes, o que garantirá o
bom uso da percussão. Assim, o encouramento poderá incorrer de várias formas: esticando a
pele por tachas, cordas presas em aros de ferros calçados por pedaços de madeira (cunhas) e
tiras de couro, cordas de náilon, pinos de madeira e por parafusos e taraxas. [...] Pode-se
observar que, na músic religiosa afro-brasileira, os atabaques mais antigos, aqueles
centenários, encontrados em alguns terreiros de Candomblé na cidade de Salvador, são os de
174
caixa monóxila por escavação a fogo. [...] No seu âmbito sagrado, o atabaque está
decisivamente incluído no sistema sociorreligioso do Candomblé, tema orientador da análise
do instrumento enquanto objeto ritual e detentor de significados fundamentais a existência do
próprio culto, mantendo sua unidade litúrgica.
O atabaque não se apenas um instrumento musical, ele ocupará o papel de uma
divindade e, por isso, será sacralizado, alimentado, vestido,; possuirá nome próprio, e apenas
sacerdotes e pessoas de importância para a comunidade poderão tocá-lo e usá-lo nos rituais.
Lody (2003:66-67),
BATÁ (s.m) O bata, o abata e o olubatá são tambores percutidos com as mãos
diretamente sobre o couro, em geral de veado, por ser mais fino e portanto possibilitando a
emissão melhor da sonoridade, segundo os integrantes dos terreiros. Esses tambores,
prerrogativa dos homens, também são sacralizados como atabaques do Candomblé juntamente
com os abes e o agogô. Cada instrumento passa por iniciação especial, sendo alimentado,
vestido e cumprindo resguardo no interior do peji como um laô. O bata é instrumento
membrafone de uso restrito na música religiosa do Xangô pernambucano [...]. Lody (2003:
71)
BERRA BOI/ (Zumbidor) [...] Também conhecido como urra-boi, rói-rói e zumbidor.
No Nordeste , o berra-boi foi também constatado em forma circular e recoberta de papel de
seda multicolorido. É também brinquedo popular vendido em feiras e mercados brinquedo
de fazer zoada . Instrumento ideófano que circula nas tradições afro-descendentes e por quase
todo o Nordeste. Lody (2003:73)
MARIMBÁ (s.f) a marimba é um instrumento restrito a algumas manifestações
contemporâneas da música afro-brasileira, especialmente em alguns grupos de congadas.
Embora documentalistas do período do Brasil Colônia registrassem nas ruas do Rio de Janeiro
grupos de africanos tocando marimba quissanje e urucungo (berimbau), conforme demonstra
iconografia de Debret, Rugendas e Carlos Julião (século XIX), o instrumento em análise
quase desapareceu em confecção e uso. A marimba também é conhecida como xilofone, cuja
percussão se em lâminas de madeira e a ressonância ocorre, em certos casos, com o apoio
de meias cabaças que funcionam como caixas. Marimba ou malimba, termo banto, designação
dos quimbundos de Malanje e Luanda-Angola, substituindo os termos ndjimba [...] Os
xilofones variam de formato, sendo os diretos ou primitivos construídos com o emprego de
placas de madeira de diferentes tamanhos aplicadas sobre duas regras também de madeiras e
paralelas, sendo a percussão realizada por duas baquetas, do mesmo material; neste tipo não
caixa de ressonância. [...] Os xilofones curvos apresentam maior número de teclas de
175
madeira do que os primitivos, possuindo meias cabaças em tamanhos diferentes, que servem
como caixas de ressonância, dispostas embaixo das madeiras que sustentam as teclas. Lody
(2003: 85-6)
OGUÊS (s.m) Chifres de boi usados ritualmente para percussão. Oxossi, rei de Ketu,
popularizou-se no Brasil, fortalecendo-se nos Candomblés da Bahia, possivelmente pelo
expressivo número de africanos fundadores de terreiros provenientes da Nigéria e Benin,
África Ocidental. Oxossi, o caçador, o provedor dos alimentos, o dono das matas, também
interpretado como o dono da terra, Onilé, é festejado anualmente por centenas de templos, uns
ainda evidenciando elos com os costumes mais tradicionais de seu culto, o que é visto por
intermédio da música instrumental. Sacerdotes especialmente selecionados tocam os ágües,
chifres de bois percutidos uns aos outros, marcando ritmos que anunciam as obrigações religi,
sas, as danças públicas do orixá, sendo também referências as sociedades dos caçadores
que atuam como protetores das matas e das vilas.[...] Lody (2003: 87)
RECO-RECO (1) instrumento idiófono por fricção geralmente confeccionado em
bambu com sulcos e haste de madeira. O mesmo que pule. Existem reco-recos de vários
tamanhos, alguns lixados, envernizados e outros adornados com flores e fitas de papel, tecido
e plástico. (2003:90) O reco-reco é ocorrente em conjuntos de congada e em certas
modalidades de samba.
SURDOS GUERREIRO (2000: 279)
TAMBOR .(s.m ) O nome geral tambor é empregado indistintamente para
diferentes membrafones, inclusive os atabaques [...].Lody (2003:95)
TAMBORIM. O trabalho artesanal na construção do tamborim requer ripa de madeira
que formará estrutura quadrada ou retangular, podendo ainda ser redondo, recebendo tímpano
simples que é ajustado por pregos ou tachas. Naqueles de feitura industrial a membrana, no
caso, a sintética de náilon, é retesada por meio de tarraxas e o corpo do instrumento poderá
receber materiais como folha metálica cromada. A percussão é feita por meio de diferentes
baquetas. Lody (2003:95)
TAROL O tarol ou caixa de guerra é um tambor de procedência européia. Segundo
estudioso Bira Reis (apud Guerreiro 2000: 282) , “essas caixas eram usadas nas guerras
inglesas e francesas para fazer caminhar os soldados”. Os diâmetros embaixo e em cima, bem
como a esteirinha de metal, sinalizam que se trata de uma versão européia. É um instrumento
de 14 polegadas de diâmetro, com duas membranas, uma em cima e uma embaixo, que
produzem um som agudo, e é percutido com um par de baquetas pequenas de madeira.
Diferentemente das baquetas dos surdos, que são produzidas artesanalmente, estas que
176
percutem o tarol são adquiridas em fábricas, totalmente em madeira, e têm cabeças levemente
arredondadas que precisam ser polidas em tamanho padrão. Guerrreiro (2000: 282)
TIMBAU tambor brasileiro segundo o fabricante Bira Reis, (apud Guerreiro 2000:
282) “foi industrializado nos anos 30. Mas ele vem de um outro instrumento muito usado no
Rio de Janeiro, que é o caxambu, do jongo”. Na Bahia, o timbau é usado desde os primórdios
do afoxé de Filhos de Gandhy, “mas com outra versão, em tamanho pequeno, com pele de
cobra, e cordas. Agora, o timbau desta forma que a Timbalada usa, com tarrachas[parafusos],
aparece no Bando da Lua, que acompanhava Carmem Miranda”, informa o estudioso. É um
instrumento de madeira, com cerca de 5 kg, de bojo afunilado de 60 a 70 cm de altura, com
14 polegadas de diâmetro, coberto com pele apenas na parte superior. Essa membrana é
percutida com as mãos e emite um som agudo. (Guerreiro, 2000: 282)
TIMBALES é um instrumento afro-cubano. Ele é composto de dois tambores de
formato semelhante ao tarol, mas que têm apenas uma membrana cada, sendo que um deles
tem 13 polegadas de diâmetro e o outro tem 14 polegadas. As duas “bocas” são sustentadas
por uma armação de ferro. Ele vem sendo utilizado por muitos mestres de bandas de samba-
reggae que dispensam o uso do apito (típico das escolas de samba cariocascomo meio
privilegiado de condução da banda.) Guerreiro (2000: 282)
XERÊ (s.m) Conhecido como chocalho de Xangô, instrumento de Xangô. Na origem
africana o xerê une-se ao okinki trompa que anuncia a chegada do alafim. No caso afro-
brasileiro a chegada do Xangô se ao som do xerê, em especial nos Candomblés da nação
Ketu-Nagô em momento público chamado a roda de Xangô É uma roda onde ficam todos os
iniciados e a mãe e o pai-de-santo de posse do xerê vai chamando Xangô e todos os outros
orixás . O xerê africano é uma cabaça (cabaceiro amargoso) de cabo alongado, ou ainda
recoberta de couro e detalhes em metal. O xerê afro-brasileiro é especialmente de cobre, de
cabo alongado e caixa de ressonância arredondada - mimese da cabaça de cabo longo. O som
do xerê lembra as chuvas e também o roncar da trovoada. O instrumento é de uso público,
inclusive como ferramenta do barracão, juntamente com o oxê, e ainda compõe o
assentamento de Xangô [...]. (Lody, 2003: 96-7)
177
ANEXO 4 – O milagre do Candeal
178
ANEXO 5 – ARTIGO
Rock in Rio
"Sou filho de Ogum e isso atrai essas coisas", diz Carlinhos Brown
ISRAEL DO VALE
da Folha de S. Paulo, no Rio
14/01/2001
Carlinhos Brown disse que esperava a reação agressiva de parte do blico ao seu
show. "Sou transgressor. Vim aqui por aquela coisa da paz. Se não fosse assim não teria
graça", disse, após deixar o camarim.
Segundo o cantor e compositor baiano, a atitude foi típica de jovens cariocas. "Isso
não aconteceria na Bahia, onde os jovens são disciplinados."
Calmo, pouco mais de meia hora depois de ter deixado o palco, Brown usou um
argumento à baiana para comentar o episódio.
"Sou filho de Ogum e isso atrai essas coisas."
Segundo ele, a receptividade talvez ocorresse em qualquer outro dia de show,
independente de ter os s do Guns N'Roses na platéia. "Não é feio gostar de Guns, é feio não
gostar do Brasil", disse.
Para Brown, "o roqueiro, no fundo, é uma pessoa doce. O rock'n'roll é a coisa mais
infantil que tem, não tem diferença em relação à Xuxa; pesada é uma escola de samba",
argumentou.
"Mas o roqueiro tem um comportamento retrógrado, de se vestir de preto...".
O fato de o episódio ter acontecido num festival que prega um mundo melhor é visto
por Brown com preocupação. "Esses meninos são todos saudáveis, criados no Toddy.
Precisam aprender a entender o Brasil."
179
ANEXO 6 – CD (Candombléss)
Livros Grátis
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