Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
ESCOLA DE BELAS ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS
LINHA DE PESQUISA EM IMAGEM E CULTURA
FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DOS
ARTUROS:
IMAGENS DE UMA CELEBRAÇÃO
Mariana Emiliano Simões
Orientador: Prof. Dr. Rogério Medeiros
RIO DE JANEIRO
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
MARIANA EMILIANO SIMÕES
FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DOS ARTUROS:
IMAGENS DE UMA CELEBRAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Artes Visuais, linha de
pesquisa em Imagem e Cultura da Escola
de Belas Artes da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, como requisito para
obtenção do título de Mestre em Artes
Visuais.
Orientador: Prof. Dr. Rogério Medeiros
RIO DE JANEIRO
Abril/ 2009
ads:
iii
Simões, Mariana Emiliano
Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Arturos: imagens de uma
celebração/ Mariana Emiliano Simões -- Rio de Janeiro: UFRJ / Escola de
Belas Artes, 2009.
xv, 161 p. : il.
Orientador: Rogério Medeiros
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro /
Centro de Letras e Artes / Escola de Belas Artes / Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais, 2009.
1. Cultura popular- festas. 2. Análise da imagem. 3. Congado-Minas
Gerais. 4. Comunidade dos Arturos. 5. Cultura afro-brasileira.
Dissertação. I.Medeiros, Rogério. II.Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-Graduação, EBA. III. Título.
iv
Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Arturos:
Imagens de uma celebração
Mariana Emiliano Simões
Professor orientador: Prof. Dr. Rogério Medeiros
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Banca Examinadora: Prof. Dr. Rogério Medeiros
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Dr
a
. Helenise Monteiro Guimarães
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Dr. José Luiz Ligiéro Coelho
Universidade Federal do Estado Rio de
Janeiro
v
Aos meus pais, Arlindo e Ângela
vi
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, pela educação que me deram, pelo apoio, respeito e confiança
com os quais me ensinaram a viver;
Ao professor Rogério Medeiros, pela orientação, carinho e apoio fundamentais
em todo o processo;
Aos Arturos, por resistirem e levarem adiante a cultura do povo negro brasileiro
e pela simpatia com que me receberam;
A José Bonifácio da Luz, Bengala, presidente da Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário de Contagem, que tão bem me recebeu e atendeu durante a
pesquisa;
À família de Goreti e Purita, pelo acolhimento, amizade e carinho;
A todos os professores e funcionários do PPGAV da Escola de Belas Artes-
UFRJ, em especial a Fátima Alfredo, pela atenção com que me atendeu desde
meu primeiro contato com a escola;
A Zeca Ligiéro, cujo trabalho me despertou para as possibilidades de pesquisa
e criação;
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
cujo auxílio foi fundamental para a realização da pesquisa;
Aos colegas de curso da EBA, pelas dicas, conversas e colaborações, e
especialmente a Ana Paula Alcântara, Louise Prates e Luciana Alvarenga que
muito ajudaram nesta caminhada;
Aos professores da banca examinadora;
Às professoras Nadma Maluf e Sandra Barsotti, pelas belas e oportunas
contribuições na fase final de redação;
A todos os meus amigos e familiares que acompanharam o desenvolvimento
do meu trabalho, ainda que distantes;
Aos alunos e professores do curso de pós-graduação em História da África e
do negro no Brasil, da Universidade Cândido Mendes, turma de 2008, pelos
novos olhares, novas oportunidades e pela alegria que compartilhamos em
tantos momentos;
Ao professor Alain Kally, pelas colaborações sempre pertinentes;
A Cristina e Ka, da Casa de Cultura de Contagem, pela atenção e respeito com
que me atenderam;
vii
A Robert Makundzana,
pelas fotos cedidas;
A Gisele Werneck, pelo apoio constante e amizade insubstituível;
A José Francisco, pela força e alegria que me inspira;
A nia Bertolino, Maria Amélia Silva, Ricardo Emiliano, Byron O´Neil, e a
todos os mineiros que de alguma forma participaram da construção deste
material;
Aos jovens Arturos, em especial a Hiago, Ana Tereza, Melissa, Leonardo, Caio
e Vítor, pelo carinho e felicidade que me oferecem em cada encontro;
A Nossa Senhora do Rosário, senhora dos homens pretos cuja devoção
possibilita a continuidade de uma tradição tão encantadora;
E por fim, aos nossos ancestrais, pela herança deixada e por serem exemplos
de luta, fé e resistência.
A todos eles, minhas saudações!
viii
“A escrita é uma coisa, o saber é outra. A escrita é
a fotografia do saber, mas não o saber em si. O
saber é uma luz que existe no homem. A herança de
tudo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que
se encontra latente em tudo que transmitiram, assim
como o baobá existe potencial-mente na sua
semente.”
Tierno Bokar
ix
RESUMO
SIMÕES, Mariana Emiliano. Festa de Nossa Senhora do Rosário dos Arturos: Imagens de
uma celebração. Orientador: Prof. Dr. Rogério Medeiros. Rio de Janeiro. Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais. Linha de Pesquisa em Imagem e Cultura. Escola de Belas Artes.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, 2009.
Esta dissertação tem por objetivo o estudo da Festa de Nossa Senhora do
Rosário, da Comunidade Negra do Arturos, localizada em Contagem, MG, a
partir de seus elementos visuais. Apresenta o conjunto estético do evento em
uma abordagem iconográfica que pretende mostrar seus aspectos
constituintes, suas relações com o contexto social e as matrizes culturais que
os formaram. Levanta questões acerca das festas populares afro-brasileiras, da
história dos Congados e da arte presente nas celebrações religiosas, seus
figurinos, objetos rituais, adornos e performances corporais.
Palavras-chave: Festas populares. Análise da imagem. Congado-Minas
Gerais. Comunidade dos Arturos. Cultura afro-brasileira.
x
RESUMÉ
Cette dissertation vise étudier la Fête de Notre-Dame du Rosaire de la
Communauté Noire d'Arturos située à Contagem, Minas Gerais, à partir de ses
éléments visuels. Elle présente l’ensemble esthétique de l’évènement par
l’abordage iconographique qui veut montrer les aspects qui le composent, sa
relation avec le contexte social et culturel, et aussi les matrices culturelles qui
les ont formés. Ce texte prétend soulever encore des questions concernant les
fêtes populaires afro-brésiliennes, l’histoire du Congado et l´art dans les
célébrations religieuses, avec leurs moeurs, leurs objets rituels, leurs
ornements et leurs performances corporelles.
Mots-clés: Fêtes populaires. Analyse de l'image. Congado-Minas Gerais.
Communauté d'Arturos. La culture afro-brésilienne.
xi
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Il.1
Arthur Camilo Silvério e Carmelinda Maria da Silva. Fotos da família. Fonte:
LUCAS, Glaura;
LUZ,
José Bonifácio da. (Org.). Cantando e Reinando com os
Arturos. Belo Horizonte: Rona, 2006. 33
Il.2 A Arturos de primeira linha, filhos de Arthur e Carmelinda, por Lúcio Dias de
Oliveira 33
Il.2 B Filhos ainda vivos de Arthur e Carmelinda. Foto Antônio: Robert Makundzana.
Outras: Fotos da autora (F. A) 34
Il.3 Mapa de Contagem. Fonte: http://maps.google.com.br/maps 36
Il.4 Localização da Comunidade dos Arturos, Contagem.
Fonte: http://maps.google.com.br/maps 37
Il.5 Antiga Igreja do Rosário. Desenho de um quadro da Capelinha. F.A 41
Il.6 Atual Igreja do Rosário. F.A 41
Il.7- 8 Negros representando escravos na Festa da Abolição. F.A 58
Il.9 -10 Negras vestidas de baianas, Festa da Abolição. F.A 59
Il.11 Mulher representando a escrava Anastácia. Festa da Abolição. F.A 59
Il.12 Cavalaria de São Jorge, Festa da Abolição. F.A 60
Il.13 Guarda de Congo, Arturos. F.A 61
Il.14 Guarda de Moçambique, Arturos. F.A 61
Il.15 Integrantes de guardas convidadas. F.A 62
Il.16 Boi-bumbá da Comunidade dosArturos. F.A 62
Il.17 Contagem em relação à região metropolitana de Belo Horizonte. Fonte:
http://biblioteca.uol.com.br/atlas 70
xii
Il.18 Capelinha, Comunidade dos Arturos. F.A 71
Il.19 Casa Paterna, Comunidade dos Arturos. F.A 72
Il.20 Espaço interno da Comunidade. F.A 72
Il.21 Entrada da Comunidade. F.A 73
Il.22 Espaços enfeitado à frente da casa de seu Antônio. F. A 73
Il.23 Altar da Capelinha. F. A 76
Il.24 Interior da Capelinha. Foto: Robert Makundzana 77
Il.25 A -B Interior da Casa Paterna. F. A 79
Il.26 Corte da Comunidade dos Arturos. F. A 83
Il.27 Representante da Princesa Isabel. Festa da Abolição. F. A 83
Il.28 Fardas da guarda de Congo. F.A 86
Il.29 Capitão da guarda de Congo. F.A 86
Il.30 Fardas da guarda de Moçambique. F.A 87
Il.31 Capitão da guarda de Moçambique. F.A 88
Il.32 Bandeireira. F.A 90
Il.33 Cozinheiras. F.A 92
Il.34 Oração após o almoço na Casa Paterna. F.A 97
Il.35 A-B-C Vestes festivas da Corte dos Arturos. F.A 104
Il.36 A-B Fardas Guarda-Coroa. F.A 105
Il.37A Adereços da guarda de Congo: Capacete feminino e gorro masculino. F.A 107
Il.37B Detalhe do capacete feminino. F.A 107
xiii
Il.38 A Mulheres amarrando turbantes dos moçambiqueiros. F.A 108
Il.38 B Turbantes da guarda de Moçambique. F.A 108
Il.39 A Farda. Antônio, Capitão Regente. F.A 109
Il.39 B Fardas guarda de Congo. F.A 109
Il.40 Colares e guias usadas pelos congadeiros. F.A 112
Il.41 Brincos usados pelos congadeiros. F.A 113
Il.42 Rosários e terços comuns aos congadeiros. F.A 114
Il.43 A Estola. José Bonifácio, o Bengala, Capitão do Congo. F.A 115
Il.43 B Estola. Dunga, Capitão do Moçambique. F.A 115
Il.44 A Fila de dançantes do Congo. Horizontalidade. F.A 119
Il.44 B Criança do Congo dançando e tocando patangome. F.A 119
Il.44 C Dança do Capitão do Congo, com pandeiro, ao centro do grupo. F.A 120
Il.44 D Dança do Capitão do Congo, com espada. F.A 120
Il.45 A Dança dos moçambiqueiros. F.A 122
Il.45 B Movimento de curvatura da dança do Moçambique. F.A 123
Il.45 C Dança do Capitão do Moçambique. F.A 123
Il.46 A Coroa Maior. F.A 129
Il.46 B Coroas no altar da Capelinha. F.A 129
Il.46 C Coroas no altar. F.A 130
Il.47 A-B Bastões – diversidade em cores e adereços. F.A 132
Il.48 A Espadas dos Capitães do Moçambique e do Congo. F.A 134
xiv
Il.48 B Espadas dos Guardas- Coroa. F.A 135
Il.49 A Bandeiras com imagens de santos no altar da Capelinha. F.A 136
Il.49 B Detalhe de bandeira de Nossa Senhora do Rosário. F.A 136
Il.49 C Reverência à bandeira. F.A 137
Il.50 A Levantamento de um mastro. Foto: Robert Makundzana 138
Il.50 B Mastros com estandartes dos santos de devoção. F.A 138
Il.50 C Congadeiros tocam o mastro: fortalecimento das energias sagradas. F.A 138
Il.51 Diversos estandartes que são colocados nos mastros. F.A 139
Il.52 A Imagens de santos no altar da Capelinha. F.A 140
Il.52 B Detalhes do altar: imagens de Nossa Senhora do Rosário. F.A 141
Il.52 C Detalhes do altar: imagens de santos negros. F.A 142
Il.53 Andores com imagens de Nossa Senhora do Rosário. F.A 143
Il.54 Tambores sagrados do Congo e Moçambique. F.A 146
Il.55 Patangomes. F.A 147
Il.56 Tamborim. F.A 147
Il.57 Gungas usadas pelos moçambiqueiros. F.A 148
Il.58 Pandeiro. F.A 149
xv
FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DOS ARTUROS:
IMAGENS DE UMA CELEBRAÇÃO
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .....................................................................................................1
1 A IMPORTÂNCIA DO FESTEJAR................................................................... 9
1.1 FESTA E IDENTIDADE CULTURAL ........................................................14
1.2 A FESTA AFRO-BRASILEIRA .................................................................18
2 CHORA INGOMA: OS ARTUROS E A FESTA............................................ 29
2.1 PRETINHOS DE CÁ: O COMEÇO DA HISTÓRIA. ................................ 31
2.2 PRETINHOS DE LÁ: O COMEÇO DO REINADO
2.2.1 Origens do catolicismo africano ...................................................... 43
2.2.2. A Senhora das Águas .................................................................... 47
2.3 A VIDA EM FESTA: DATAS E COMEMORAÇÕES ............................... 51
2.3.1 Festa da Abolição da Escravatura: o 13 de Maio recontado .......... 54
3 OBSERVAÇÃO E VIVÊNCIA DE UM RITO: A FESTA DE NOSSA
SENHORA DO ROSÁRIO .............................................................................. 66
3.1 DESCRIÇÃO DO CAMPO: O OBSERVADO .......................................... 69
3.1.1 Onde estamos - Espaço e identidade ............................................. 69
3.1.2 Quem são eles - Os Personagens do Cortejo ................................ 80
3.1.3 O que fazem - As ações rituais ....................................................... 93
4 RELIGIÃO E ESTÉTICA: A ARTE COMO COMUNICAÇÃO .....................100
4.1 O CORPO ADORNADO ...................................................................103
4.2 O CORPO QUE DANÇA ...................................................................116
4.3 OBJETOS RITUAIS ......................................................................... 125
5 CONCLUSÃO ............................................................................................ 150
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 156
INTRODUÇÃO
2
Este trabalho é, antes de tudo, um ato de fé. Entender o Reinado de Nossa Senhora
do Rosário foi uma busca da origem das minhas próprias crenças e heranças, que, ainda
criança, fui inserida no contexto de mistério e encantamento que compreende o Congado
mineiro. Realizar essa pesquisa tornou-se, então, depois de algum tempo trilhando outros
caminhos, um retorno às matrizes de uma religiosidade que herdei sem mesmo saber como
e que se transformou em curiosidade e disposição que me levaram ao início de uma longa
trajetória de estudos.
A pesquisa aqui apresentada tem como objeto a Festa de Nossa Senhora do Rosário
da Comunidade negra dos Arturos e o contexto visual que ela nos oferece. O evento foi
apresentado com uma descrição de seu conjunto estético, em uma abordagem iconográfica
que pretendeu mostrar os aspetos constituintes da estrutura festiva, suas relações com o
contexto social em que é produzido e as matrizes culturais que os formaram.
O interesse pelo Reinado
1
de Nossa Senhora do Rosário partiu de alguns pontos.
Primeiro, minha participação no Congado da cidade de Nova Era, em Minas Gerais, por
duas vezes, integrando a Corte Festeira (que se altera anualmente), incutiu-me a devoção à
santa e o desejo de melhor compreender as origens de tal tradição. Em segundo lugar, meu
contato com as temáticas da cultura popular brasileira, durante o curso de graduação em
Artes Cênicas, onde passei por disciplinas como ‘Folclore e Educação’ e Danças
Étnicas’. E por fim, meu trabalho com danças afro-brasileiras, que possibilitou uma
aproximação com a cultura de matriz africana e despertou meu olhar para a necessidade de
ampliar os conhecimentos na área.
Entre tantas manifestações populares, o Congado foi escolhido por tratar-se de um
folguedo comum a várias regiões brasileiras, representando um evento marcante no
calendário festivo católico das cidades em que ocorre. Também pelo fato de oferecer um
vasto repertório de signos que atravessam os séculos com seus sentidos específicos e
simbologias diversas. A escolha da Comunidade dos Arturos justifica-se por ser esta uma
formação coletiva que mantêm muitos dos costumes tradicionais da cultura herdada dos
africanos aqui escravizados. Assim, a festa que produzem encerra em si uma preciosa
fonte de signos fundamentais da experiência ritual que representa.
1
As festas do Rosário são popularmente conhecidas como Congados, Congadas ou Reinado. A
diferenciação entre os termos é feita em algumas cidades, caracterizando o Reinado como uma estrutura
mais complexa, que inclui a presença das guardas (dançantes), missa, cortejo, coroação de reis do
Congo, etc. o Congado refere-se às guardas de Congo, que podem existir independentemente dos
Reinados. Neste trabalho utilizarei os dois termos como sinônimos, que são aceitos como tal, ao
reportar-me à festa em questão.
3
A história da comunidade está ligada à figura do negro Arthur Camilo Silvério, que
no início do culo XX instalou-se com sua família no terreno onde hoje fica o bairro
Jardim Vera Cruz, em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Arthur e sua
esposa, Carmelinda Maria da Silva, criaram os filhos baseados em valores como o respeito
à família, a devoção a Nossa Senhora do Rosário e aos ancestrais negros com quem
adquiriram conhecimentos e crenças. O Congado iniciou-se ainda com o pai Arthur e
sempre esteve presente no desenvolvimento da família. Hoje os Arturos são um dos
principais símbolos de resistência negra no Brasil, suas tradições são mantidas e cada vez
mais conhecidas e apreciadas.
Sobre a metodologia
O crescente interesse por conhecimentos acerca da temática afro-brasileira tem
contribuído para o aumento de estudiosos da área, o que resulta num aumento dos
materiais produzidos nos últimos anos. Alguns estudos têm sido realizados em torno da
cultura de matriz africana, sendo a maioria deles voltados para os aspectos sociais,
antropológicos e performáticos. Diversos autores contribuíram com pesquisas que
focalizavam o negro no Brasil e seus costumes, porém essa abordagem ainda necessita ser
revista e acrescida de novos dados. Também há diversos registros acerca dos folguedos e
danças populares brasileiras, num aumento visível da atenção dada, principalmente, a
algumas festas regionais.
Encontra-se também uma série de pesquisadores que tem se dedicado à análise de
comunidades negras, quilombolas ou não, de seus costumes, crenças e sua organização
política e sócio-econômica. Em Minas Gerais, Núbia Pereira Gomes e Edimilson de
Almeida Pereira (2000) apresentam um estudo complexo sobre a comunidade dos Arturos
em seu livro Negras Raízes Mineiras: os Arturos”. Com um olhar etnográfico,
registraram os aspectos históricos, sociais e culturais da comunidade, de grande utilidade
para meus estudos. Para fins da pesquisa, interessaram- me particularmente as fontes
referentes ao contexto visual e ao universo simbólico inerentes às manifestações religiosas
dos Reinados de Nossa Senhora do Rosário. Entre as obras mais completas sobre o tema,
encontra-se “Afrografias da Memória”, de Leda Maria Martins (1997), professora da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde fala da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário na região do Jatobá, em Belo Horizonte, com caráter documental.
4
Patrícia Brandão Couto (2003) apresenta o Reinado da cidade de Bom Despacho, no
interior de Minas Gerais. Sua obra Festa do Rosário: Iconografia e poética de um rito”,
traz um relato da festa com ênfase em suas danças, celebrações e no misticismo que
permeia a história dos Congados.
Outros textos acadêmicos relacionados à Comunidade dos Arturos foram
produzidos, entre eles destaco a pesquisa de Glaura Lucas (2002), que trata da
musicalidade dos Congados em seu “Os sons do Rosário: O Congado Mineiro dos Arturos
e Jatobá. Seu trabalho também resultou no livro-cd Cantando e Reinando com os
Arturos”, organizado em parceria com a comunidade. Em relação aos festejos do Reinado,
a obra de Marina de Mello e Souza (2002), “Reis negros no Brasil escravista”, oferece
um importante relato histórico dos festejos desde suas origens, fundamental para a
compreensão do desenvolvimento do Congado no país. Além destes, outros estudos menos
abrangentes contribuíram para minha produção.
É necessário dizer que, apesar do aumento de produções acadêmicas sobre arte e
cultura afro-brasileiras, ainda dificuldades ao tratar do tema, principalmente quando se
buscam metodologias de análise dos aspectos aqui abordados. Muitos termos ainda o
utilizados de forma indevida e outros deixam perceber pré-conceitos e equívocos, graças
ao desconhecimento da real história dos negros brasileiros, ignorância esta causada pelos
anos de negligência para com a população negra e pela maneira de observá-la sob a ótica
do exotismo e da folclorização de seus costumes. Entretanto, procurei olhar para as
africanidades presentes no festejo em questão, com a consciência de que nem tudo poderia
ser apreendido e interpretado.
A partir do material estudado e dos objetivos propostos, desenvolvi a análise
pensando nas seguintes proposições: apresentar os elementos (objetos, adereços,
personagens, rituais) que compõem o contexto visual da Festa de Nossa Senhora do
Rosário dos Arturos, como é traduzida, imageticamente, a intercessão entre o catolicismo
europeu e a forma negra de celebração que marca este festejo e quais os possíveis
significados contidos no sistema simbólico iconográfico das festas do Rosário e suas
relações com o contexto social ao qual pertencem.
Para apresentar as imagens da festa do Rosário foi utilizada, como referência teórica
e conceitual, a semiologia, com base na idéia de que o comportamento humano é
simbólico (LARAIA, 2003), ou seja, o símbolo é essencial para a participação do homem
no mundo. Além da semiologia, outra base fundamental foi a etnografia. Compreender
5
como se articula a sociedade estudada é imprescindível para a interpretação dos símbolos
dos quais se utiliza em suas manifestações religiosas. Nesta busca, a aproximação do
objeto de pesquisa fez-se necessária e concretizou-se com minha participação nos eventos
e visitas à comunidade em outras ocasiões.
O primeiro capítulo aborda teorias sobre o festejar. Apresentei idéias de Durkheim
(1996) e de Jean Duvignaud (1983) acerca dos rituais, numa tentativa de traçar as
proximidades entre o ritual e a festa para melhor compreender esta. Partindo dos conceitos
de religião, crenças e ritos, as cerimônias religiosas são consideradas momentos em que a
coletividade se sobrepõe ao individual, o homem entra em contato com o sagrado e as
energias coletivas que animam determinado grupo são fortalecidas. Para tal são acionados
símbolos que comunicam algo sobre o contexto sócio-cultural em que são produzidos.
Aproximando os conceitos de festa aos de ritos religiosos, destacamos alguns de seus
aspectos mais relevantes tais como a periodicidade, a dinâmica das representações e dos
símbolos, que são transformados ao longo do tempo, e o caráter comunicativo das
cerimônias. Forma de comunicação em potencial, as festas marcam identidades e estão
ligadas à memória e aos locais em que acontecem. Por caracterizarem as culturas locais,
têm se tornado, principalmente nos últimos anos, produto de um mercado cultural que visa
atrair maiores lucros a partir dos costumes tradicionais, considerados exóticos e atraentes.
Por fim, o capítulo trata das festas brasileiras com matrizes africanas e suas
principais características. São marcadas, em primeiro momento, pela forte ligação ao
catolicismo desenvolvido no Brasil e pela constate repressão aos costumes dos negros.
Este contexto determinou uma convivência entre ritos africanos e católicos, no âmbito das
Irmandades religiosas, o que resultou no que chamamos de catolicismo africano ou
catolicismo negro. Aspectos principais dessa religiosidade são o culto à ancestralidade e a
oralidade, marcas das culturas africanas. Além destes, outros traços são apontados a partir
das idéias de Frigerio (2003) sobre as performances afro-americanas: a
multidimensionalidade, a participação, a ubiqüidade na vida cotidiana, conversação e o
estilo pessoal e funcionalidades sociais são as características dadas pelo autor que podem
ser encontradas na base das festividades afro-brasileiras. Outro fato importante refere-se à
estética desses eventos, marcada por uma corporalidade e espacialidade específicas e
presença de adereços que embelezam e traduzem a multiplicidade simbólica que
caracteriza a festa negra.
6
O segundo capítulo conta a história da Comunidade dos Arturos e a importância do
Reinado em sua trajetória. Desde a difícil infância do pai até a luta e resistência dos dias
de hoje, a saga dos Arturos, marcada pela forte religiosidade, confere-lhes lugar entres as
principais comunidades negras do país mantenedoras de tradições de matrizes africanas.
Seu Reinado é conhecido em diversos lugares, inclusive no exterior, e suas festas atraem,
todos os anos, milhares de visitantes à cidade de Contagem.
As origens do Congado estão na África Centro-Ocidental (SOUZA, 2002), sendo
observado no Brasil pela primeira vez no século XVI (TINHORÃO, 1988). Ritos de
origem banta, os congados se espalharam pelo país e hoje são encontrados principalmente
nos estados de Minas Gerais e São Paulo. Seus fundamentos ligam-se a uma lenda que
narra a retirada de uma imagem de Nossa Senhora do Rosário das águas do mar.
Apresentam um rico conjunto simbólico que traduz as influências múltiplas e
contribuições locais dadas ao ritual.
Além do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, os Arturos celebram a Festa da
Abolição da Escravatura, quando relembram a assinatura da Lei Áurea pela Princesa
Isabel. Na ocasião, os negros vestem-se de escravos e o marco histórico é encenado,
seguido por um dia inteiro de danças, cantos e orações. A Festa de 13 de maio, como ficou
conhecida, antes chamada de Reinadinho, tem passado por um processo de
mercadologização, uma vez que o investimento de setores públicos cresce, visando
aumentar a visibilidade do evento e atrair mais turistas para a cidade, processo este
ocorrido em diversas regiões do Brasil.
O terceiro capítulo, corpo principal da pesquisa, narra a festa de Nossa Senhora do
Rosário a partir dos elementos visuais observados. Personagens, cenários, ações rituais,
dança e os objetos litúrgicos são descritos e ilustrados, numa abordagem que busca
decodificar os códigos do festejo e encontrar neles traços das suas culturas de origem. Para
tanto, foi usada como base as idéias de Mauss (1967) acerca da estética inerente aos
fenômenos religiosos.
Os lugares em que acontece a festa são considerados sagrados pela sua importância
na história da família e possuem aspectos determinantes da identidade individual (AUGÉ,
1994). O espaço comunitário é local de trocas e socializações, e seu desenvolvimento
determina as relações dos moradores com a cidade à sua volta. Os personagens
encontrados na festa são os negros Arturos que se transformam em reis, dançantes,
músicos e capitães, numa estrutura hierárquica sagrada. Os grupos de dançantes dividem-
7
se em Congo e Moçambique, cada qual com características próprias no seu ato de louvar.
A corte é a representante maior de Nossa Senhora, guardiã dos mistérios e fundamentos do
Reinado e possui valor sagrado dentro do sistema ritual. Os outros atores presentes são
aqueles que trabalham nos bastidores da festa, além daqueles que assistem e acompanham
todo o evento como espectadores e fiéis. as ações rituais do Congado são baseadas na
tríade batuque-dança-canto (LIGIERO, 2003). Assim, durante os três dias de festa, os
fiéis cantam, dançam e tocam seus tambores, chamados de ‘ingoma’, elevando aos céus
seus pedidos e agradecimentos, falando aos ancestrais e aos santos, num encontro entre
catolicismo e africanismo marcado pela variedade simbólica e riqueza visual.
Ritual ameaçado pelo tempo, o Candombe acontece na noite anterior ao início dos
festejos do Reinado. Baseado também no mito da retirada da santa das águas, o rito se
em torno dos três tambores sagrados Santana, Santaninha e Jeremias, e apouco tempo
era uma atividade restrita aos mestres da comunidade. Numa linguagem sagrada e
codificada, os participantes dançam e cantam diante dos tambores, desafiando e
respondendo uns aos outros, versando sobre a vida dos negros, fazendo brincadeiras e
chamando os novos à participação.
O quarto e último capítulo foi dedicado à estética presente nas festas do Rosário,
considerando a arte inerente aos rituais como meio de comunicação. Desde os cultos
totêmicos (DURKHEIM, 1996), grande valor é dado às imagens, pois estas concretizam
idéias e crenças e, transformadas em símbolos de uma cultura, carregam significados que
vão além da pura forma material. Para falar dos signos da festa foi apresentado o corpo
congadeiro - corpo que é adornado para dançar para os santos e ancestrais. Todo o
vestuário e adereços possuem sentidos ligados à mitologia e à história dos Reinados e
traduzem as influências das culturas européia e africana. As fardas, os capacetes,
turbantes, colares e rosários formam um conjunto estético rico de simbologias, que além
de enfeitar, representa muito da cultura híbrida que contextualiza a festa.
A performance negra observada, forte presença africana nos rituais do Congado, é
caracterizada pela corporalidade que busca o contato com a terra, signo do valor dado à
ancestralidade. Também a energia pulsante e a alegria estão presentes na dança
congadeira, fundamentalmente percussiva e imbricada às performances vocais. Além da
relação com os cantos, o gesto se associa aos objetos rituais, utilizados de forma adequada
para conferir poder e sacralidade aos seus portadores. Esses objetos são aqui apresentados,
numa lista que visa mostrar, de forma geral, parte do acervo litúrgico festivo.
8
Importante papel é dado à fotografia em todo o trabalho, que traz uma série de
imagens captadas durante a observação em campo e pretendem ilustrar as idéias propostas.
Apropriei-me das fotos utilizando-as como suporte comunicacional da produção textual,
para possibilitar ao leitor a concretização do que foi apresentado. O valor dado à imagem
em meu processo, articulou-se a partir das idéias de Aumont:
A imagem é sempre modelada por estruturas profundas, ligadas ao exercício de uma
linguagem, assim como à vinculação a uma organização simbólica (a uma cultura, a
uma sociedade); mas a imagem é também um meio de comunicação e de
representação do mundo, que tem seu lugar em todas as sociedades humanas
.
(AUMONT, 1993, p.131).
Pensando nas funções de uma imagem de estabelecer contatos com o mundo e os
modos dessa relação – simbólico, epistêmico e estético iniciei a pesquisa com meu olhar
voltado para as imagens da festa, aquelas produzidas pelos fiéis em seu ato de adorar, e
terminei me deparando com minhas próprias imagens as que produzi através da
fotografia. E se, de fato, como diz Aumont, é o espectador que faz a imagem, o resultado a
que cheguei é uma narrativa onde se destaca o meu olhar, minhas percepções e
preferências sobre o evento. Um olhar oriundo dos meus anseios e busca de aspectos que
talvez nem sejam tão reais, ou pelo menos não estão visíveis a olho nu.
Numa perspectiva multidisciplinar, o texto aqui exposto é apenas uma pequena parte
de um universo imenso que se constitui nos Reinados, universo este impossível de ser
decifrado por completo sem as práticas e a vivência dos anos de tradição. Meu olhar de
artista possibilitou-me capturar aspectos das performances corporais, dos cantos, dos
objetos e tudo o mais que colabora para a beleza e a arte das celebrações. Portanto, muito
se deixa passar entre os símbolos que vemos, entre as cantigas que escutamos e as danças
que nos são mostradas. Os mistérios não revelados do Reinado de Nossa Senhora do
Rosário permanecem estranhos à nossa percepção, mas se perpetuam na vida, no dançar e
batucar dos negros Arturos, metonímia perfeita do povo negro brasileiro que faz de sua
e suas tradições forma sagrada de contato com as raízes e a história, por tanto tempo
calada, dos nossos ancestrais.
9
I
A IMPORTÂNCIA DO FESTEJAR
10
Uma definição inicial dos conceitos de festa e ritual é necessária para
compreenderem-se os aspectos que serão aqui apresentados. Apesar da constante presença
da temática em estudos antropológicos, percebe-se uma limitação quanto às suas
definições e expansão de seus conceitos. Encontramos em alguns autores análises e
passagens acerca do tema, em sua maioria como suporte para estudos sobre celebrações
específicas. Para este trabalho, utilizei-me das idéias apresentadas por Émile Durkheim,
em As Formas Elementares da Vida Religiosa e Jean Duvignaud em Festas e
Civilizações”, como bases para o estudo em questão. Também foram consultados alguns
autores com trabalhos mais recentes sobre festas e seus desdobramentos, como Rita de
Cássia Amaral, em “Festa à Brasileira: Significados do festejar no país que não é sério” e
Hermano Viana, em “O mundo funk carioca”, entre outros.
Durkheim, a cuja obra vários teóricos fazem referência, observa que o conceito de
festa confunde-se, muitas vezes, com o de cerimônia religiosa. Para ele, ambos têm por
efeito aproximar os indivíduos, pôr em movimento as massas e suscitar, assim, um estado
de efervescência, às vezes até de delírio, que não deixa de ter parentesco com o estado
religioso.” (DURKHEIM, 2003, p.417). Assim como nos rituais, as festas promovem um
estado extra-cotidiano, um corte no tempo ordinário, quando as forças são renovadas, a
coletividade é reforçada através de mecanismos de expressão de idéias, crenças e dramas
comuns. Para entender essa aproximação, vejamos os conceitos de religião e de ritual.
Sobre a religião, Durkheim a define como
[...] um todo formado de partes; é um sistema mais ou menos complexo de mitos, de dogmas,
de ritos, de cerimônias. Ora, um todo não pode ser definido senão em relação às partes que o
formam. É mais metódico, portanto, procurar caracterizar os fenômenos elementares dos quais
toda religião resulta, antes do sistema produzido por sua união. Esse método impõe-se
sobretudo pelo fato de existirem fenômenos religiosos que não dizem respeito a nenhuma
religião determinada. É o caso dos que constituem a matéria do folclore. (DURKHEIM, 2003,
p.18).
Ora, se a religião é formada por diversas partes, está indissociável dos contextos
sociais, da história e demais aspectos relativos à sociedade em que se faz presente. A
própria evolução da religião, as transformações de suas crenças e seus ritos são relevantes
para o seu entendimento. Ainda segundo Durkheim, as crenças são estados de opinião,
representações, enquanto os ritos são modos de ação, regras de conduta que determinam o
comportamento do homem com as coisas sagradas. Estes, principalmente, nos interessam
no momento. Como partes de uma religião,
11
Os ritos podem ser definidos e distinguidos das outras práticas humanas, notadamente das
práticas morais, pela natureza especial de seu objeto. Com efeito, uma regra moral, assim como
um rito, nos prescreve maneiras de agir, mas que se dirigem a objetos de um nero diferente.
Portanto, é o objeto do rito que precisaríamos caracterizar para podermos caracterizar o próprio
rito. Ora, é na crença que a natureza especial desse objeto se exprime. Assim, só se pode definir
o rito após se ter definido a crença. (DURKHEIM, 2003, p.19).
A partir de tais idéias, pode-se dizer que os rituais religiosos são ações determinadas
por certas crenças (idéias, representações), realizadas pelo homem nas suas relações com o
sagrado, a fim de fortalecer laços e compromissos sociais ou apenas estreitar seu contato
com forças divinas, que renovam e revigoram as energias vitais humanas. O rito pode ter
finalidades várias, executados em diferentes momentos importantes para a vida social ou
individual, como os ritos de passagem, as cerimônias matrimoniais, fúnebres, etc. Tem,
normalmente, ligação com o passado do grupo que o executa, como herança dos
antepassados e marca um compromisso com sua própria continuidade. Também pode
apresentar diversas formas de ação, simultâneas ou não, como jogos, danças, orações,
dramatizações, quase sempre numa relação física, onde o corpo se altera, as energias se
elevam e a distância entre o sagrado e o profano diminui.
Jean Duvignaud diz que a festa foi incorporada ao sagrado e às regulamentações
coletivas, e possui a capacidade de conduzir os homens à reconstituição de si mesmos. É
um momento em que a coletividade e o sagrado se intensificam. Sobre isto, nos fala:
A festa é um período peculiar, apesar de inteiramente integrado à sociedade, período no qual a
vida coletiva é extremamente intensa. Os fenômenos relativos ao sagrado e à religião
correspondem a momentos de efervescência e de unanimidade. A “consciência coletiva” se
exacerba manifestando-se em dramas que descrevem os “mitos” ou sistemas de crenças. A
substância social, dispersa e difusa na vida quotidiana, tende a mostrar-se como uma totalidade
orgânica a que se deu o nome (derivado do vocabulário marítimo) de “mana”. É uma
substância coletiva que se exterioriza e se dramatiza ao longo de cenas e representações mais
ou menos teatralizadas, a que a magia ou a religião proporcionam uma imagem diversificada.
Durante as manifestações “sagradas”, esta criatividade atinge o apogeu e a pessoa termina por
projetar para fora de si a substância constituinte. Sublimação fantástica, ela se transforma até,
artificialmente, em objeto exterior que as coletividades adoram como a causa da sua existência,
não obstante ser em verdade o efeito do seu próprio dinamismo. Tal movimento é a “alienação”
[...] que suscita uma curiosa ambiguidade, pois o homem adora, fora do seu eu, o resultado da
sua própria exteriorização. Ele venera [...] uma realidade que não é senão a sua existência
sublimada. (DUVIGNAUD, 1983, p. 71).
Este momento em que a coletividade se intensifica, quando a liberdade do homem se
concretiza, serve como forma de revigoramento das energias sociais, estabelecendo o
contato entre homem e divindade, como ruptura após a qual o grupo se insere novamente
na vida comum. Outra idéia de Duvignaud concernente às festividades é em relação à
12
participação dos envolvidos, elemento fundamental para a definição de festa. Rita Amaral
(1998) comenta essa definição dada pelo autor, dizendo que
Na categoria das Festas de Participação, incluem-se cerimônias públicas das quais participa a
comunidade. Os participantes são conscientes dos mitos que ali são representados, assim como
dos símbolos e dos rituais utilizados. [...] das Festas de Representação, contam-se aquelas que
apresentam “atores” e “espectadores”. (AMARAL, 1998, p. 41).
Vários o os exemplos de festas em que estas definições se enquadram, mas
também há algumas em que as duas possibilidades se encontram. São festas em que atores
e público se misturam, quando a própria platéia se faz fiel, brincante e atriz dos ritos
encenados. Os rituais religiosos podem, em sua maioria, ser classificados como ritos de
participação, mas também se caracterizam, por determinados momentos, como ritos de
representação, quando dramas são encenados como forma de transmissão de saberes, de
história ou como meio de transmissão de uma crença ou tradição a ser preservada.
Comemorar é, antes de tudo, conservar...” (DUVIGNAUD, 1983, p.154).
Ao tratar da ritualização, Hermano Vianna (1997) mostra duas posturas: uma
representada por Max Gluckmam, que defende a relação do ritual com o domínio religioso
ou místico, e a outra, representada por Edmund Leach, que não diferencia o
comportamento comunicativo do “mágico”.
Os participantes do ritual mágico também estão comunicando alguma coisa para um
destinatário determinado e por isso sua mensagem pode ser estudada e “decifrada” [...]
Qualquer ritual utiliza uma linguagem, verbal e/ou não verbal, condensada e muito repetitiva,
diminuindo assim a ambigüidade da mensagem que deve ser transmitida. Nessa concepção,
muito difundida entre os antropólogos contemporâneos, o ritual está sempre dizendo alguma
coisa sobre algo que não é o próprio ritual. Isto é, o ritual por si não basta, não faz sentido.
(VIANNA, 1997, p.58).
Sendo, portanto, os rituais semelhantes ao comportamento comunicativo, destaca-se
a importância de suas linguagens, seus símbolos e suas representações. Expressam, tal
como outras manifestações da vida social, como a política, a arte, etc, os discursos
simbólicos daqueles que os possuem, traduzindo ideologias, pensamentos e costumes. Daí
concluímos que o ritual é uma forma de comunicação, uma vez que traduz aspectos da
sociedade em que se encontra. Conhecer tal sociedade é fundamental para compreender
suas estruturas rituais.
13
O ritual e a festa
Os ritos religiosos possuem características próprias, que possibilitam a aproximação
com o que chamamos de festa. A primeira delas que aqui se destaca é o caráter de
coletividade inerente aos rituais e às festividades. Durante tais acontecimentos, o
individual lugar ao coletivo, um encurtamento das distâncias entre as pessoas, em
prol de um objetivo comum, de uma celebração ou mesmo de uma comemoração. Durante
o tempo festivo, que pode ser de algumas horas ou até longos dias, o encontro daqueles
que muitas vezes estão distantes no dia-a-dia promove o aumento da consciência coletiva,
cuja força tende a se perder ao longo do tempo. A “efervescência” citada por Durkheim
reativa as energias sociais em favor do grupo, uma vez que ele passa pela experiência
ritual como um único ser, uma voz e um corpo em comunicação com o sagrado. As
vozes individuais são caladas, fala-se em nome de um povo, de um grupo, de um coletivo;
dança-se unido, em harmonia; canta-se em uníssono, fazendo da canção de todos a oração
de cada um. Após o período festivo, o sentimento de união e solidariedade encontra-se
vivificado, reanimado.
Como esse sentimento se enfraquece com o cotidiano, a importância da festa se
encontra no poder que possui de renovação das energias sociais. É preciso que ela se repita
periodicamente, num ciclo interminável, para que as forças acionadas não se percam
definitivamente. A periodicidade é um aspecto fundamental, estando o acontecimento
frequentemente marcado no calendário do grupo, algumas vezes demarcando um período
para o qual a vida social se volta. Esse repetir-se cria nos indivíduos a expectativa pelo
momento festivo, aguçando os ânimos, despertando a vontade de que tudo ocorra da
melhor maneira e de que os objetivos (muitas vezes a festa em si) sejam alcançados.
Ao longo do tempo, as ações são recriadas, relembradas, outras ações surgem e
algumas são adaptadas de acordo com as necessidades atuais. Ora, se são tradições
herdadas e representam um compromisso com os antepassados, é natural que apresentem
certas continuidades, ritos que permanecem iguais ao longo do tempo. Porém, é inevitável
que transformações sejam feitas, principalmente quando se conta com a participação de
jovens, que contribuem com inovações oriundas de seu contexto. Assim, a cada festa, os
atos tradicionais, permanentes, tomam corpo junto a outros criados, que se tornam
tradicionais à medida que são aceitos e incorporados ao processo ritual. Essa
transformação colabora para o envolvimento do grupo em sua totalidade, uma vez que
possibilita a inserção de todos, apesar das diferenças de sexo e idade. Além disso, os
14
novos elementos introduzidos nos rituais mostram como estes estão intimamente ligados
às crenças, aos valores morais e aos contextos daqueles que os exercem. A dinâmica das
representações e símbolos presentes determina a permanência e duração, fazendo com que
a herança do passado não se perca, apesar de e através de suas adaptações ao presente.
Também o caráter comunicativo do ritual pode ser percebido na festa, que esta é
uma forma de manifestação social que possui uma linguagem específica e apresenta
diversos símbolos, sempre ligados às histórias ou às crenças locais, regionais ou nacionais.
A capacidade que essas manifestações têm de expressar uma identidade deve ser
considerada quando se pretende compreender os significados das simbologias inerentes.
As festas comunicam, falam sobre seus povos, seus integrantes, suas lutas, desejos e
ideais. Perceptíveis ou não ao espectador, os elementos estéticos, lingüísticos, sonoros,
que formam a estrutura ritual, exercem o papel de expressar, contar, destacar e transmitir
todos esses sentidos que estão imbricados nas festividades.
Dadas essas características, creio podermos definir a festa como um fenômeno social
onde o coletivo se sobrepõe ao individual, num momento de encontro para celebração de
um fato, pessoa ou outro marco histórico e/ou sagrado na vida de determinada sociedade.
Neste momento, são realizadas ações, rituais, performances corporais, representações,
quase sempre acompanhadas por sonoridades; a memória coletiva se fortalece, histórias
são recontadas com símbolos numa linguagem específica. São constantemente
transformadas e reinventadas em suas formas e simbologias, mantendo-se, assim,
presentes ao longo do tempo, como herança e compromisso com um passado, uma história
ou uma fé.
1.1 FESTA E IDENTIDADE CULTURAL
A relação da festa com a identidade de um povo é bem conhecida e bastante
encontrada nos estudiosos do tema. Usadas muitas vezes por historiadores, as festas
colaboram com dados que muito revelam sobre a história de uma cidade, de um grupo e de
um país. Lugar de memória, de recriação do passado, elas refletem os anseios e crenças de
seus participantes, deixando à mostra as diversas identidades existentes. Segundo Martha
Abreu (1999), através das festas, pode-se conhecer melhor a coletividade e a época em
que aconteceram.”, ou seja, parte da história pode ser contada através da trajetória dos
momentos festivos.
15
Falar de identidade, principalmente na atualidade, é falar em diversidades. De acordo
com as idéias de Hall (2003), a identidade cultural de um indivíduo é marcada pelos
aspectos que determinam seu pertencimento a determinada cultura étnica, religiosa, racial,
etc. Segundo o autor, com a pós-modernidade, observa-se uma fragmentação do sujeito em
diversas identidades, assumidas em momentos diferentes. De acordo com a noção de
sujeito sociológico, temos:
[...] a identidade é formada na “interaçãoentre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um
núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo
contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem.
(HALL, 2003, p.11).
Esse sujeito “dividido” em várias identidades encontra no momento festivo a
oportunidade de compartilhar com sua comunidade o que eles têm em comum, sua
unidade. Através dos ritos eles se renovam como partes de uma sociedade, como seres
sociais, renovando, assim, a força do que os une. São compartilhados símbolos, histórias,
crenças e a memória coletiva fundamenta as representações. Percebemos tal fato
claramente na história do povo negro no Brasil quando, ainda durante a escravidão,
encontravam-se para relembrar e celebrar, ao modo da terra de origem. As diferenças
culturais entre os escravos eram amenizadas pela situação comum de opressão a que eram
submetidos, sendo seus encontros, com fins religiosos ou festivos, oportunidades para a
troca de símbolos, o que resultou, com outras influências posteriores, na tão vasta e
múltipla cultura brasileira.
Além de diminuir as diferenças culturais, a festa também encurta a distância entre
indivíduos de diferentes classes. As hierarquias cotidianas são, muitas vezes, alteradas, e
outra hierarquia pode ser criada dentro do contexto festivo, conferindo poderes a pessoas
previamente determinadas. Nas comunidades tradicionais, esse poder pertence
principalmente aos mais velhos, possuidores dos conhecimentos da tradição. Porém,
outros fatores podem determinar tais hierarquias, como a escolha de reis, a capacidade
individual de articulação com setores da sociedade, os talentos naturais para música, canto,
dança.
Também vale destacar o que Roberto Da Mata (1983) chama de ritual de inversão,
quando quebra de papéis rotineiros. Percebemos em muitos ritos um jogo entre as
identidades cotidianas e as festivas, quando aqueles que estão numa condição de
subalternos, dominados, exercem domínio e poder simbólico sobre os demais
16
participantes. até mesmo uma valorização dos sujeitos por sua participação,
principalmente quando há destaque para o evento perante toda a cidade, fato muito comum
no interior do Brasil, quando grupos marginalizados ganham mais espaço e são mais
“valorizados” por serem agentes de ritos religiosos e/ou comemorativos importantes no
local.
Outro aspecto importante no que diz respeito às identidades é a relação com o espaço
onde a festa teve origem e onde ocorre no momento presente. “Nascer é nascer num
lugar, ser designado à residência. Nesse sentido, o lugar de nascimento é constitutivo da
identidade individual [...]” (AUGÉ, 1994, p. 52). Com esse pensamento, temos o lugar de
nascimento e morada não como pano de fundo para os acontecimentos, mas como fator
influente no processo ritual. Os aspectos cio-geográficos podem, ao longo do tempo,
alterar características dos ritos, assim como esses também influenciam os espaços onde
atuam. A escolha do local ocupado pelos agentes de uma cerimônia festiva não se faz por
acaso. Concorrem para tal a história do lugar, os símbolos ali encontrados, as
possibilidades que oferece para deslocamento e fixação, a proximidade ou não de centros
urbanos. E fixando-se nesse espaço, a festa adquire os traços locais, e podem, então, ser
observadas diversas trocas entre a festa e a cidade.
A identidade territorial é marcante nos grupos periféricos e comunidades rurais, onde
é mais fácil perceber uma unidade entre os agentes. A história do lugar e de sua ocupação
freqüentemente adentra o universo mítico e simbólico que sustenta crenças e ritos,
definindo trajetórias de procissões, caminhadas, cortejos, marcando lugares sagrados. A
memória guardada nas ruas, casas, igrejas e praças contribuem para vivificar a tradição,
reforçando sentimentos de unidade e compromisso com o passado. Amélia Cristina
Bezerra, citando Haesbaert, diz:
Uma das características mais importantes da identidade territorial, que corresponde ao mesmo
tempo a uma característica geral da identidade, é que “ela recorre a uma dimensão histórica do
imaginário social, de modo que o espaço que serve de referência condense a memória do
grupo, tal como ocorre deliberadamente nos chamados momentos históricos nacionais”.
(BEZERRA, 2008, p. 11).
Dessa forma, o espaço e a festa se imbricam, e esse encontro se concretiza em
diversos signos, traduzindo-se como mais um elemento da identidade coletiva,
constantemente em construção. Um caminho a que leva essa identificação é o fato de que,
em muitas cidades, a festa passa a ser um marco e um traço distintivo da região. Assim
acontece com o carnaval carioca, a festa do Boi Bumbá de Parintins, as festas de Nossa
17
Senhora do Rosário nas pequenas cidades de Minas, entre outras. Colabora para este fato o
investimento político em certos acontecimentos, como forma de aumentar o turismo e a
visibilidade dos municípios. Uma conseqüência disto é a crescente espetacularização de
festas tradicionais, que vão, aos poucos, perdendo seus sentidos originais e transformando-
se em shows para turistas e fontes de renda para os organizadores. A tradição transforma-
se em mercadoria. Sobre esta tendência nos fala Rita Amaral:
[...] as festas vêm se tornando um excelente negócio. O forte apelo turístico que lhes é peculiar,
especialmente quando elas apresentam particularidades regionais, mitos religiosos ou
simplesmente a vontade de dançar, cantar e beber, tem se mostrado capaz de gerar milhões de
dólares em divisas [...] a festa adquire tríplice importância: por sua dimensão cultural (no
sentido de colocar em cena valores, projetos, arte e devoção do povo brasileiro), como modelo
de ação popular (no sentido de que ela tem sido, em muitas ocasiões o modo de concentração e
investimento de riquezas- investimento feito em benefícios sociais, como creches e escolas) e
como espetáculo, produto turístico capaz de revigorar a economia de muitas cidades [...].
(AMARAL, 1998, p.9).
Concluímos, a partir de então, que a festa tem papel fundamental para as sociedades,
como lugar de transmissão e renovação das tradições, costumes, valores, mitos e símbolos.
Possui uma relação com o espaço em que ocorre, interferindo neste e sendo por ele
perpassada. Ela comunica uma identidade, representa seu povo e pode se transformar num
produto mercadológico a fim de atrair olhares e recursos financeiros. Estando em
constante transformação, os rituais festivos são reflexos da dinâmica social em seus vários
âmbitos e devem ser estudados com o olhar voltado para o passado, onde se originaram e
de onde vêm seus fundamentos. Assim, a festa é o lugar de memória, onde os indivíduos
se encontram com objetivos determinados, sejam eles o de rezar, dançar, comemorar,
relembrar datas e fatos históricos ou apenas se divertirem. Nesses momentos, o coletivo se
sobrepõe e as energias se renovam, fazendo com que o compromisso com a tradição e com
o universo mítico seja reforçado.
No item seguinte, pretendemos abordar as características encontradas nas festas de
origem afro-brasileira. Como integrantes do quadro das festas populares do Brasil,
possuem traços marcados pela fusão de elementos de origens diversas, especialmente
africanas e européias. Esperamos, com isso, desenvolver um pouco as idéias acerca da
cultura de origem africana e identificar aspectos que serão mais tarde utilizados no estudo
da Festa do Rosário da Comunidade dos Arturos.
18
1.2 A FESTA AFRO-BRASILEIRA
As festas populares brasileiras caracterizam-se por suas influências múltiplas. A
grande maioria teve, em sua trajetória, forte ligação com a Igreja, sendo que muitos dos
festejos são, ou estiveram em algum momento, relacionados com a religião. Como
instrumento de catequese, forma de celebração ou mesmo como pura diversão, as festas
fazem parte dos calendários religiosos e são ambientes onde muito se pode observar sobre
o desenvolvimento das sociedades e suas formas de religiosidade.
A história de muitas das festas negras encontra-se diluída na história do catolicismo
no Brasil. Para compreendê-la, é preciso considerar a forma como a Igreja atuou no trato
dos africanos escravizados. Os negros eram forçados a se converterem, eram batizados,
recebiam outro nome, os santos católicos eram-lhes impostos, tudo isso como forma de
controle por parte dos senhores e como meio de aceitação na sociedade. A estrutura social
do negro no Brasil era completamente distinta das relações na África, uma vez que os
laços familiares e sociais foram desfeitos para evitar agrupamentos e dificultar os
relacionamentos entre pessoas da mesma origem. Uma das conseqüências de tal fato foi o
encontro de diferentes formas rituais, crenças, costumes, deuses e valores trazidos por
africanos de etnias diversas, sob o manto do catolicismo. A religiosidade africana foi,
então, mantida, recebendo outros elementos, formando uma religiosidade
caracteristicamente afro-brasileira.
A presença do negro na formação social do Brasil foi decisiva para dotar a cultura brasileira
dum patrimônio mágico-religioso, desdobrado em inúmeras instituições e dimensões materiais
e simbólicas, sagradas e profanas, de enorme importância para a identidade do país e sua
civilização. No que diz respeito à religião especificamente, os cultos trazidos pelos africanos
deram origem a uma variedade de manifestações que aqui encontraram conformação
específica, através de uma multiplicidade sincrética resultante do contato das religiões dos
negros com o catolicismo do branco, mediado ou propiciado pelas relações sociais assimétricas
existentes entre eles, e também com as religiões indígenas e bem mais tarde, mas não menos
significativamente, com o espiritismo kardecista. (grifo meu) (PRANDI, 95/96, p. 67).
A idéia de sincretismo como base estrutural da religiosidade negra, bastante
difundida até então, tem sido aos poucos questionada, considerando que a “mistura” foi,
na verdade, uma sobreposição, ou, antes, uma coexistência de valores e crenças, única
forma de aceitação do negro pelo seu novo contexto. Muitas equivalências foram feitas
com nomes de santos, deuses e elementos do universo mítico-religioso africano, forma de
subtrair sua força, valorizando a cultura européia dominante.
19
Acontece que, na medida em que as religiões católica e africana são dois sistemas fechados e
paralelos que não se referenciam nos mesmos valores, não existe contradição no fato de ser
cristão e “animista” ao mesmo tempo; os princípios de realidade em que cada um dos sistemas
se fundamenta são absolutamente distintos. (GONZALEZ, 1989, p. 90).
A tentativa de fazer com que as similitudes da mítica africana se diluísse nos
aspectos europeus não obteve total êxito. O catolicismo foi aceito, mas a religiosidade
africana continuou em vigor, disfarçadamente ou às escondidas. O sistema africano, como
citou Gonzalez, possuía fundamentos diferentes do catolicismo, o que não impediu a
simultaneidade do desenvolvimento dos dois. Ele permaneceu e se difundiu, nas religiões
afro-brasileiras, com seus deuses e valores, sendo visto como “absorvido” ou
“sincretizado” com o catolicismo, mas manteve-se, na verdade, paralelo a este, com suas
singularidades e seu sistema de símbolos específico.
O encontro entre os dois sistemas religiosos, o católico europeu e o africano, teve as
Confrarias como um espaço favorável às suas manifestações. Elas foram de grande
importância nesse processo, reunindo os grupos e cristalizando a separação entre negros e
brancos, desenvolvendo, em seu âmbito, um “catolicismo negro”, com elementos
marcadamente africanos. Era lá onde os escravos praticavam suas crenças, seu culto aos
ancestrais, suas danças e batuques, atividades essas vistas, muitas vezes, como
“brincadeiras”, visão que acabou por transformar manifestações mágico-religiosas em
folguedos, folclore. Além da importância religiosa das irmandades, elas também
funcionavam como espaço de socialização e integração de seus membros. Encarregavam-
se de cuidar da saúde e dos enterros dos negros, que os senhores não se preocupavam
com estas questões, e eram verdadeiras redes de solidariedade, recuperando laços que
conferiam certa familiaridade entre os seus integrantes.
As confrarias serviram também para marcar identidades, que havia divisões entre
as várias etnias, entre brancos e negros, entre homens e mulheres, sendo que uma igreja
poderia ter várias irmandades sob seu domínio. As irmandades dos negros mais
conhecidas são a de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito, de Santa Ifigênia e de
Santo Elesbão, e foram com elas que se desenvolveu o que chamamos de catolicismo
negro. Sobre essa religiosidade, nos fala Prandi:
Se a religião negra, ainda que em sua reconstrução fragmentada, era capaz de dotar o negro de
uma identidade negra, africana, de origem, que recuperava ritualmente a família, a tribo e a
cidade, perdidas para sempre na diáspora, era através do catolicismo, contudo, que ele podia se
encontrar e se mover no mundo real do dia-a-dia, na sociedade dos brancos dominadores,
responsável pela garantia da sua existência, não importa em que condições de privação e dor.
Qualquer tentativa de superação da condição escrava, como realidade ou como herança
20
histórica, implicava primeiro a necessária inclusão no mundo branco. E logo passava a
significar o imperativo de ser, sentir-se e parecer brasileiro. Nunca puderam ser brasileiros sem
ser católicos. Podiam preservar suas crenças no estrito limite dos grupos familiares, muitas
vezes reproduzindo simbolicamente a família e os laços familiares através da congregação
religiosa [...] O próprio catolicismo, como cultura de inclusão, hegemônica, não fez oposições,
que não pudessem ser vencidas, ao fato de o negro manter uma dupla ligação religiosa.
(PRANDI, 95/96, p. 68).
Ainda que sob o manto do catolicismo e sofrendo repressões durante anos, as festas
religiosas organizadas pelas irmandades ganharam força e se mantêm como principais
redutos para a continuidade dos valores africanos. A forma africana de celebrar e festejar
deixou forte herança no celebrar brasileiro, com elementos que podem ser identificados
quando observamos as diversas formas rituais presentes no nosso catolicismo popular e
nas religiões afro-brasileiras, como o Candomblé e a Umbanda. Um desses elementos,
comum a todas as etnias africanas, é o culto aos ancestrais (BASTIDE, 1971). Muitas
culturas têm a ancestralidade como base de seus sistemas religioso, filosófico e social.
Essa relação com os antepassados determina muito do cotidiano presente. Como diz Leda
Martins,
No caso brasileiro, os ritos de ascendência africana, religiosos e seculares, reterritorializam
uma importante concepção filosófica e metafísica africana, a ancestralidade, que “constitui a
essência de uma visão que os teóricos das culturas africanas chamam de visão negra- africana
do mundo. Tal força faz com que os vivos, os mortos, o natural e o sobrenatural, os elementos
cósmicos e os sociais interajam, formando os elos de uma mesma e indissolúvel cadeia
significativa”. A concepção ancestral africana inclui, no mesmo circuito fenomenológico, as
divindades, a natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos, os vivos e os
que ainda vão nascer, concebidos como anelos de uma complementariedade necessária, em
contínuo processo de transformação e de devir. (MARTINS, 2003, p. 78).
A importância da ancestralidade se faz perceber no compromisso com as tradições,
na preocupação em dar continuidade aos costumes herdados dos antepassados e na forma
com que se acredita na influência destes sobre o tempo presente. Esse sistema foi rompido
com a diáspora africana, quando as relações com a terra de origem foram dissipadas e
interrompidas. Porém, no Brasil ele se reconstruiu em alguns cultos. Os símbolos foram
ressignificados, equivalências foram feitas entre as estruturas religiosas; o culto dos
antepassados permaneceu e, ganhando novas formas e significações, perpetuou-se na base
dos festejos e ritos afro-brasileiros.
As festas, organizadas pelas irmandades, muitas vezes serviam como celebração da
memória dos antepassados africanos, como no caso das coroações de reis negros. Eram
permitidas pela Igreja, porém sempre mal vistas pelos senhores. Foram proibidas por
21
diversas vezes, ao longo da história, principalmente pelo fato de reunirem grande número
de negros, o que era considerado uma ameaça à segurança. A reunião de escravos e
mesmo alguns libertos preocupava os proprietários, que viam nesses momentos de
efervescência a possibilidade de revoltas, fugas e outras formas de resistência à
escravidão. Portanto, permitir que ocorressem sob a égide da Igreja era a garantia de
controle por parte do Estado e do poder eclesiástico. Dessa forma, as festas estiveram
submissas ao domínio do branco e do catolicismo e quando não eram ligadas diretamente
a este, como no caso do candomblé, eram consideradas ilegais, sofrendo grande
perseguição da polícia.
Mesmo com toda repressão, as festas continuaram nos templos religiosos afro-
brasileiros e sempre exerceram funções dentro do contexto religioso. Para compreendê-las,
tomemos como exemplo as festividades de um terreiro de candomblé. As comemorações
acontecem como uma forma de adoração; a função de adorar, celebrar e entrar em contato
com o divino pode ser considerada uma de suas primeiras utilidades, sendo a
funcionalidade da festa engendrada por ela mesma. Ela é a religiosidade em si, a
configuração de uma simbologia manifesta em cores, músicas, performances corporais,
figurinos, etc. A festa é a forma sob a qual a própria religião se constitui.
O festejar também é responsável por possibilitar o contato entre os fiéis, suas
práticas e a população em geral. Ao se abrirem as portas dos templos, em cerimônias
públicas, permite -se que as práticas sejam observadas, despertando curiosidade dos não
praticantes da religião, o que pode levá-los a se tornarem fiéis. Esse proselitismo, como
chama Fonseca (1995), age na medida em que a beleza e alegria das festas atraem mais
adeptos. O ato festivo funciona, assim, como uma “divulgação” das práticas religiosas,
levando ao público uma parte dos ritos e atraindo-o de acordo com o efeito produzido pelo
ritual.
Fonseca destaca a aprendizagem como um terceiro papel das festividades. Como são
fundamentadas na oralidade, as religiões afro possuem como “método de ensino” a
observação e a vivência, uma vez que os símbolos, mitos e fundamentos são repassados
oralmente através das gerações. Durante as cerimônias é possível conhecer um pouco dos
mitos, da gestualidade específica dos orixás, das danças rituais, dos procedimentos
referentes ao transe, das músicas referentes a cada santo e a cada momento do rito. Nesses
eventos, como em outras religiões, são reforçados os costumes e as ações rituais, tornando
22
a ocasião propícia para se pôr em prática os ensinamentos recebidos. Como conclui o
autor,
As festas ocupam uma posição central na estrutura das religiões Afro-Brasileiras.
Desempenham um papel religioso, pois é o momento privilegiado de contato com os deuses.
Cumpre também um objetivo proselitista, possibilitando o recrutamento de novos adeptos e a
permanência de antigos. Por fim, desempenha um papel importante no processo de
aprendizagem, iniciando os novos fiéis nos segredos e mistérios do culto. Trata-se de uma
religiosidade onde a alegria é o principal ingrediente da fé, numa vivência sagrada impregnada
do lúdico. (FONSECA, 1995, p. 20).
Analisadas tais funções, vale lembrar um dos traços principais das festividades, que é
o de fortalecimento da coletividade, seja em terreiros, comunidades ou nas próprias
cidades. A festa marca o momento em que o grupo se reafirma como tal, reforçando sua
identidade e transmitindo, em formas diversas, suas práticas religiosas.
Para este trabalho, interessa destacar um aspecto presente nos momentos festivos
negros, referente à forma africana de celebração. Esta é baseada, segundo alguns autores,
na tríade cantar- dançar- batucar (LIGIERO, 2003), uma constante nas performances
afro-brasileiras. Para entender este conjunto, utilizo as idéias de Alejandro Frigerio ao
tratar das artes negras afro-americanas.
Frigerio propõe seis qualidades das artes afro-americanas, derivadas das culturas
africanas das quais se originaram. “La performance artística afroamericana es [...]
multidimensional, participativa, ubicue em la vida cotidiana, básicamente conversacional,
resalta el estilo individual de cada participante y cumple nítidas funciones
sociales.”(FRIGERIO, 2003, p.53). Essas características, apesar de estarem relacionadas
às artes negras, podem muito bem se enquadrar como qualidades das manifestações
festivas religiosas, fato justificado pela relação direta entre vida, religião e arte,
indissociáveis nas culturas tradicionais.
A multidimensionalidade pode ser compreendida a partir da tríade citada canto-
dança-batuque, base estrutural de ritos e performances de origem africana. A música
exerce papel fundamental; o tambor, sempre presente, é quem “fala” com os deuses, quem
comunica, e possui sacralidade dentro do contexto ritual. A ele é dedicado um respeito
especial, por ser o canal da comunicação com o mundo divino. Os cantos, unidos aos
tambores, são orações, brincadeiras entre os participantes, às vezes com mensagens
somente compreendidas pelos envolvidos. Trazem mensagens de fé, pedidos, reverências
aos deuses e santos, jogos de palavras cheios de jocosidade. Foram usados, durante a
23
escravidão, para combinar fugas, revoltas e para transmitir mensagens que não poderiam
ser de conhecimento dos senhores. A dança, que contribui para a beleza e estética, traduz a
especificidade da corporalidade africana, onde o corpo atua também como canal de
comunicação. A expressividade afro-brasileira é marcada pela força, energia pulsante, pela
teatralidade dos gestos e movimentos e, por ser representada de formas e em âmbitos
diversos, determina o caráter multidimensional de tais manifestações.
Outras qualidades destacadas por Frigerio merecem especial atenção. O aspecto
participativo e a ubiqüidade na vida cotidiana determinam importantes características dos
ritos em questão, devido à forma com que tais fenômenos estão vinculados às estruturas
sócio-culturais de suas comunidades. Nas culturas afro-americanas, como destaca o autor,
não gida separação entre público e atuantes, como também não há separação marcada
entre situações de representação e a vida cotidiana. As performances negras podem ser
encontradas no dia-a-dia de seus atores, em sua gestualidade, crenças, etc, conferindo um
caráter performativo à vida comum. Com isso, podemos dizer que as festas negras estão
intimamente ligadas às ações diárias; seus simbolismos são inerentes ao cotidiano dos que
a realizam e estes não se separam rigidamente como atores/público, estando toda a
comunidade envolvida, mesmo que de formas diferentes, no fenômeno festivo.
A conversação e o estilo pessoal, aspectos também citados, são observados durantes
as celebrações das mais diversas. Tendo o grupo como estrutura fundamental, muitas
ações se baseiam no diálogo, seja através da música (percussão/ canto), através da dança,
das respostas dadas por um coro ao solista, ou mesmo entre os próprios instrumentos
musicais. Essa dinâmica pode ocorrer em momentos alternados ou simultaneamente, e
reforçam a importância da coletividade e a multidimensionalidade das performances.
Nesse contexto, surge espaço para que se desenvolvam os estilos pessoais dos brincantes,
quando alguns se destacam por suas habilidades e suas posições ocupadas na hierarquia
ritual.
Por fim, ao dizer que as performances artísticas afroamericanas cumprem funções
sociais, Frigerio chama a atenção para sua importância como elemento socializador e
aglutinador. Vale destacar que, devido às trajetórias das festas negras em seus distintos
contextos nas Américas, elas aparecem sempre como um lugar propício para o
desenvolvimento da sociabilidade e integração entre os negros, resgate e retenção de suas
tradições. O sentido destes eventos para a comunidade vai além do simples divertimento.
Passa pelo âmbito da resistência, estabelecendo laços e compromissos com a memória,
24
tornando-se local de trocas simbólicas, cumprindo sua funcionalidade para a vida da
sociedade que neles depositam suas esperanças, sua força, suas capacidades e, através
desses fenômenos, reforçam suas identidades e seus vínculos com o passado.
Os traços citados por Frigerio são baseados em “africanismos” observados em
manifestações afro-americanas e, com o cuidado de se atentar para certas particularidades,
podem ser considerados características comuns a todas essas manifestações, em diversos
espaços. Associados a outras características, que variam de acordo com as influências que
atuaram em cada contexto, tais aspectos estão presentes em festas dos Candomblés, nas
Congadas, Maracatus, Jongos, Folias de Reis, Candombes, Tambor de Crioula, rodas de
capoeira, batuques, rodas de samba, dentre outros. Estes festejos, espalhados pelas regiões
do Brasil, possuem clara herança africana e são exemplos da variedade de modos de
expressão com uma mesma raiz. Interessa-nos, portanto, conhecer algumas das marcas
deixadas por essa herança no aparato estético e simbólico das festas afro-brasileiras.
A festa negra e sua estética
Quando se fala das festas afro-brasileiras, sempre destaque para variedade de
símbolos e para a exuberância das formas de expressão da religiosidade. Visualmente,
uma profusão de cores, movimentos, objetos, símbolos carregados de magia e sacralidade,
nem sempre passíveis de serem desvendados ao primeiro olhar. Faremos agora uma
pequena exposição de alguns elementos dos cultos de origem africana, com destaque para
a corporalidade, espacialidade e a estética própria dessas cerimônias, utilizando o que
foi descrito sobre as danças, roupas e espaço rituais.
A corporalidade africana sempre chamou a atenção de estudiosos, desde os primeiros
relatos sobre danças negras feitos no Brasil. Estranhos ao olhar europeu, os movimentos
dos negros foram descritos com tons muitas vezes pejorativos e preconceituosos,
referindo-se com estranhamento aos fenômenos de possessão, à sexualidade e à
exuberância gestual observada. Nelson Lima, em sua tese Dando conta do recado: a
dança afro no Rio de Janeiro e suas influências”, cita alguns autores que descreveram
danças dos rituais afro-brasileiros na cidade do Rio de Janeiro. Um deles é João do Rio,
que fez a seguinte exposição:
A dança dessas cerimônias é mais ou menos precipitada, mas sem os pulos satânicos dos
Cafres e a vertigem diabólica dos negros da Luiziânia. É simples, contínua e insistente,
25
horrendamente insistente. Os passos constantes são o ‘alujá’, em roda da casa, dando com as
mãos para a direita e para a esquerda, o ‘jequedê’, em que o compasso dos atabaques, com os
pés juntos, os corpos se quebram aos poucos em remexidos sinistros. Não sei se o desespero,
se a cachaça, se o exercício , o fato é que, em pouco, a ‘yauô’
2
parecia reanimar-se, perder a
fadiga numa raiva louca.De cada ‘xequexé- xequexéque a mão de um negro sacudia no ar,
vinha um espiçamento de urtiga, das bocas cusparinhentas dos assistentes escorria a
alucinação. (BARRETO apud LIMA, 1995, p.49).
Esta visão carregada de termos inadequados e depreciativos era comum,
principalmente pelo desconhecimento dos fundamentos e dos simbolismos presentes nas
cerimônias. Com o passar do tempo, apesar da permanência de determinados preconceitos
no trato das danças rituais, o olhar do pesquisador tem se alterado, na busca de melhor
compreensão dos sentidos inerentes ao dançar ritualístico do negro. Outra citação, feita
por Gilberto Freyre, apresenta as danças dos negros e índios no período colonial:
Pitt-Rivers confronta as danças dos negros com a dos índios, salientando naquelas a
espontaneidade de emoção exprimida em grandes efeitos de massa mas sem rigidez nenhuma
de ritual com o compassado e o medido das danças ameríndias. Danças quase puramente
dramáticas. [...] Esse contraste pode–se observar nos Xangôs afro-brasileiros - ruidosos,
exuberantes, quase sem nenhuma repressão de impulsos individuais; sem a impassibilidade das
cerimônias indígenas. (FREYRE apud LIMA, 1995, p. 50).
Freyre destaca a dramaticidade das danças negras e, apesar de considerar certo
“descontrole” sobre os impulsos individuais, deixa claro o vigor e a emoção registrados,
que são características inerentes a elas. Vários outros autores, em diferentes épocas,
descreveram as danças dos terreiros e cultos afro-brasileiros, e creio não ser necessário
transcrevê-los. O que pretendo ressaltar é que os traços característicos que hoje
percebemos em festejos, cerimônias religiosas e na arte afro-brasileira são tais como os
citados em tempos passados, com uma ou outra variação, devido às mudanças que
sofreram ao longo da história, mas com uma mesma raiz, que confere semelhanças a toda
forma de manifestação negra ainda atuante no Brasil.
A forma de usar, pensar e se relacionar com o corpo nas culturas africanas é
diferente do pensar europeu. Ainda nos faltam estudos que alcancem a multiplicidade das
culturas da África, portanto alguns pontos podem ser levantados a partir dos povos que
para cá foram trazidos. O corpo, para maioria desses povos, é percebido como parte do
universo, não está isolado das forças e energias que atuam na natureza. Ele é meio de
contato com o divino, o sobrenatural, o cosmos, estando, assim, integrado com o todo. É
2
Filha de santo no Candomblé.
26
no corpo, e através dele, que se faz a história, a memória está nele contida, o corpo ensina,
grava, transmite saberes, e segundo Leda Martins, “o corpo, na performance ritual, é
local de inscrição de um conhecimento que se grafa no gesto, no movimento, na
coreografia, na superfície da pele, assim como nos ritmos e timbres da vocalidade.”
(MARTINS, 2003, p. 70).
Os gestos apresentam essa relação com a natureza e a integração com o universo.
Nos candomblés, as danças dos Orixás dramatizam os mitos, trazendo para o corpo,
mimeticamente, as histórias, os objetos de cada santo, os elementos da natureza que os
identificam. O corpo é narrador e narrativa; é nele que se inscrevem os conhecimentos
religiosos e através da dança ele se integra com as divindades, ao mesmo tempo em que
externa os saberes adquiridos. É comum nas danças ritualísticas negras o curvar do corpo,
que simboliza o contato com a terra, uma relação com a ancestralidade, com a terra-
origem. Os movimentos de ombros também são bastante comuns, tanto nos candomblés,
onde é chamado “gincado” (Lima, 1995), quanto em festas como as Congadas, onde os
dançantes se curvam e fazem o movimento de agitar os ombros. Na dança dos
Moçambiqueiros (um dos ternos de Congado), essa ação é muito usual, juntamente com o
acompanhamento dos pés que, carregando as gungas (espécie de chocalhos acoplados aos
tornozelos), tocam e dançam em movimentos verticais, saltos e giros.
Os braços acompanham toda a gestualidade, mostrando-se conectados ao resto do
corpo. saltos, giros, deslocamentos no espaço, amplos ou reduzidos. O que de fato se
percebe é a variedade de execuções coreográficas e a total integração do corpo ao executá-
las. Todos as partes atuam ativamente na performance, estando totalmente conectadas ao
ritmo dos tambores. Em algumas performances artísticas, como no samba de roda, por
exemplo, a “leitura rítmica” marca essa conexão entre o corpo e o som, quando o
dançarino “lê”, com o corpo, as variações sonoras propostas pelos músicos. Assim, dança
e música estão em perfeita harmonia, transformando o dançar e tocar em um único meio
de comunicação, louvor e adoração, provocando no corpo um estado alterado de êxtase e
amplitude energética propiciando, quando necessário, o estado de transe.
A espacialidade nos rituais afro-brasileiros tem como principal aspecto a
circularidade. Em várias manifestações o círculo aparece dispondo os participantes e o
público ao redor de um ponto central, normalmente o lugar onde se encontram os
instrumentos ou onde são executadas as danças. Como exemplos, citamos as rodas de
capoeira, de samba (o próprio nome indica a circularidade), a disposição dos rituais de
27
candomblés, os vários festejos em que as pessoas se reúnem em torno de mastros, altares,
etc. também as procissões e cortejos, presentes desde as primeiras celebrações dos
negros em terras brasileiras, e caracterizam muito do que hoje é observado, como desfiles
de escolas de samba, procissões de santos, afoxés, Folias de Reis, entre outros. Ligiero,
citando Mcnamara e B. E Kirhenblatt- Gimblett, aproxima as procissões africanas das
católicas quando
Formalizam e dramatizam algum evento de importância para a comunidade. O evento pode ser
religioso, político ou social e pode ser tanto funcional quanto referencial. Ou seja, ela pode ter
a função de conduzir participantes de um lugar ao outro, como no caso de casamentos ou
funerais, ou pode aludir a eventos passados uma vitória, um sacrifício, um milagre. O evento
para o qual a procissão se refere pode ser recente - para honrar um herói nacional ou passado,
como no caso de uma procissão em honra a um santo ou mártir (divindade ou ancestre).
(MCNAMARA e B.E KIRHENBLATT- GIMBLETT apud LIGIERO, 2003, p. 84).
Nas festas populares brasileiras, as procissões são muito comuns e, além do caráter
funcional ou referencial, ajudam a determinar a relação dos atores com o local em que se
realizam os eventos. Para muitas culturas africanas, o local de nascimento, a terra natal é
considerada sagrada e tem profundas relações com a identidade individual e coletiva. Ao
tratar do espaço festivo da Comunidade dos Arturos desenvolveremos este tema.
Para terminar, citamos os vestuários festivos, que merecem especial atenção quando
se fala em estética das festas populares. Complemento do corpo consagrado, sacralizado,
as vestes são de extrema importância no fazer ritual e exigem respeito especial no seu
vestir. No caso dos candomblés, são atrativas pela beleza, cores e detalhes e estão, assim
como os gestos, objetos e músicas, contextualizadas ao momento em que são utilizadas e
ao Orixá que representam. Em outras celebrações, como nos Reinados, variam em cores e
modelos, de acordo com os gostos, possibilidades financeiras dos grupos ou outros
critérios, mas exigem o mesmo respeito quando usadas. A partir do momento em que se
veste um “figurino sagrado”, assume-se um compromisso com a divindade e com o
momento de celebração e o participante precisa cumprir algumas normas exigidas. O que
percebemos nas diversas festas populares de origem africana é a necessidade de um
vestuário específico, extra-cotidiano, que diferencie o momento de celebração do tempo
ordinário. As roupas são normalmente coloridas, indo dos tecidos mais simples até sedas e
rendas mais luxuosas. Estão sempre relacionadas aos mitos, símbolos e demais sistemas
que fundamentam a religiosidade negra brasileira, possuindo significados específicos
dentro do contexto ritual.
28
Em um próximo momento, trataremos das relações entre o corpo e os adornos
utilizados durante as cerimônias religiosas. O que pretendemos que fique claro é que os
rituais afro-brasileiros, sagrados ou não, estão repletos de uma simbologia específica que
traz a herança africana e suas demais influências.Tal simbologia é percebida através dos
mais variados signos, como os corpos dos participantes, seus gestos, suas danças, os
figurinos utilizados, os objetos rituais, os espaços e seus usos. Todo esse conjunto sígnico
confere aos rituais seu caráter estético, sendo sua visualidade digna de uma observação e
análise atenta, pois nela estão contidos muitos dos significados que fundamentam os ritos
em questão. E, devido às dificuldades em conhecer as verdadeiras origens daquilo que
herdamos dos africanos, resta-nos voltar nosso olhar para os símbolos que ainda
permanecem, a fim de reconhecer a vasta contribuição que deram aos nossos costumes e
crenças.
Ô , que coisa bonita que eu vi aqui agora
É o rosário de Nossa Senhora
Ô , que coisa bonita que eu vi aqui agora
É o rosário de Nossa Senhora
Oiê
(Canto do Moçambique)
29
II
CHORA INGOMA: OS ARTUROS E A FESTA
30
Apresentaremos neste capítulo a Comunidade dos Arturos, sua história e sua relação
com as festas de Nossa Senhora do Rosário. Já contada por outros autores, a trajetória da
comunidade é marcada pela luta por respeito, reconhecimento e pela fé que une os
membros em torno da família e de suas tradições. Iniciaremos com um breve relato sobre
suas origens; na seqüência faremos uma descrição sobre o início das festas do Rosário e,
então, será apresentada a relação dos Arturos com essas festividades. Pretendemos, assim,
compreender parte da trajetória da comunidade, considerando a importância dos festejos
para a manutenção de seus costumes e a perpetuação de suas manifestações culturais.
3
Como em geral acontece com a história dos negros no Brasil, encontramos muitas
dificuldades em relação à documentação e precisão nas narrativas históricas. Por isso nos
reportamos a dados baseados principalmente nas fontes orais e nos relatos escritos a partir
de tais fontes. Embora se trate de história ainda em curso, que 4 dos filhos do fundador
da Comunidade ainda vivem, a saga dos Arturos tem sido contada e recontada ancorada na
memória de seus integrantes, que constroem, a cada dia, novos capítulos da própria
trajetória. E essa construção se faz com as práticas cotidianas que tecem a estrutura
sociocultural ampla, dentro da qual atuam os negros aqui citados.
Utilizamos dentro desse contexto a idéia de José D´Assunção Barros, em seu O
Campo da História”(2004) acerca das práticas culturais, noção pensada
[...]em relação aos usos e costumes que caracterizam a sociedade examinada pelo historiador.
São práticas culturais, não apenas a feitura de um livro, uma técnica artística ou uma
modalidade de ensino, mas também os modos como, em uma dada sociedade, os homens falam
e se calam, comem e bebem, sentam-se, andam, conversam ou discutem, solidarizam-se ou
hostilizam-se, morrem ou adoecem, tratam seus loucos ou recebem os estrangeiros. (BARROS,
2004, p. 77).
Essas práticas culturais que, segundo o autor, geram padrões de vida cotidiana, são
fundamentais na observação de comunidades tradicionais como a dos Arturos, pois é
através delas que podemos conhecer as idéias, crenças, tradições e pensamentos
norteadores da vida dos que as possuem.
Outra idéia de Barros que aqui cito refere-se à História do Imaginário, descrita pelo
autor como o campo que estuda as imagens produzidas por uma sociedade, tanto imagens
visuais, quanto verbais e mentais. Devido à importância do Imaginário, aqui ele deve
também ser encarado como uma realidade efetiva, o estática e como um sistema ou
3
Para uma análise mais complexa dos Arturos ver GOMES, Núbia Pereira de Magalhães; PEREIRA,
Edimilson de Almeida. Negras raízes mineiras: Os Arturos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2000.
(Coleção Minas & Mineiros, vol.1).
31
universo complexo e interativo que abrange a produção e circulação de imagens visuais,
mentais e verbais, incorporando sistemas simbólicos diversificados e atuando na
construção de representações diversas” (BARROS, 2004, p. 93). Percebe-se, então, o
imaginário de uma sociedade como outro aspecto de grande relevância pois, ao lado das
práticas cotidianas, detêm parte da narrativa histórica de determinado grupo. É a partir do
cotidiano de seus membros e das representações coletivas que possuem que se tem
conhecido a história da Comunidade dos Arturos.
2.1 PRETINHOS DE CÁ: O COMEÇO DA HISTÓRIA
Conhecer a história dos Arturos é adentrar o universo de todo o povo negro e suas
vivências pelo interior do Brasil. A vida da família negra, descendente de escravos, não
difere da de milhares de brasileiros que vivem lutando contra preconceitos em busca de
dignidade e respeito, enfrentando dificuldades ao dar continuidade aos valores e costumes
herdados dos seus antepassados. E um pouco dessa história contaremos aqui, sabendo que
muito deixa de ser exposto pela incapacidade de registrar fielmente tantos casos e
acontecimentos que transformaram os Arturos naquilo que hoje conhecemos.
Ao fim do século XIX, chega a Minas Gerais o escravo Camilo Silvério. Pouco se
sabe de sua vida. Certo é que se casou com D. Felisbina Rita Cândida e foi pai de Arthur
Camilo Silvério, além de outros 5 filhos. Com muita luta, comprou o terreno que mais
tarde seria herdado pelos seus filhos e onde se localiza ainda hoje a comunidade dos seus
descendentes.
De Arthur vieram os Arturos. Segundo GOMES E PEREIRA (2000), Arthur,
nascido por volta de 1880
4
, teria trabalhado em fazendas na região de Contagem, sendo
maltratado pelo patrão e padrinho. Quando soube da morte do pai, ainda menino, pediu
licença para se ausentar, mas foi repreendido com violência:
o padrinho dele a resposta que deu - que ele contava a gente - foi que deu nele uma
bordoada com um pau de árvore na boca dele que jogô os dente no chão.
E ele voltô pra casa chorano, não viu o pai, não viu o pai dele depois de morto, não pôde a
bênção e no outro dia ele saiu e foi trabaiá, assim mesmo com a boca inchada sem podê cumê e
sem podê nada. (Maria do Rosário da Silva (Induca), filha de Arthur Camilo Silvério)
(GOMES E PEREIRA, 2000, p. 171).
4
certa imprecisão sobre a data de nascimento de Arthur, constando o ano de 1885 em sua certidão de
casamento, mas deduz-se pelo atestado de óbito a data de 1880. (
GOMES E PEREIRA, 2000).
32
Os relatos dos filhos de Arthur mostram o tratamento violento e desumano vivido
pelo pai que, apesar de nascer livre, ainda sofria com os valores do regime escravista.
Após o episódio da morte de Camilo Silvério, o jovem apanhava todos os dias. Depois de
algum tempo fugiu para a fazenda do Morrão, recusando-se a viver sob a autoridade do
padrinho. Em 29 de dezembro de 1917, casou-se com Carmelinda Maria da Silva, na
Comarca de Contagem. Algum tempo depois, a família mudou-se para a região conhecida
como Domingos Pereira, onde se situam os 6,5 hectares de terra deixados por Camilo
Silvério. Ali, criaram os filhos com muito trabalho, transmitindo os valores que hoje
norteiam a vida de toda a comunidade.
A força e persistente luta do pai diante das dificuldades, a e devoção com as quais
resistiu aos sofrimentos marcam a história dos Arturos. A imagem do pai está presente em
todos os momentos e é em sua memória que os costumes são transmitidos. Sua trajetória é
contada e recontada, trazendo a figura paterna para o cotidiano, lembrando suas lições,
seus conselhos e seu desejo de que os filhos não sofressem como ele.
nasceu aqui mesmo, em Domingos Pereira. Mamãe nasceu em Boa Vista. É mesmo aqui perto,
vizinho daqui. Papai perdeu os pais cedo. Ele falava com a gente que ele não tinha nem quinze
anos quando ele perdeu o pai dele. Porque eram acho que oito irmão e cada um teve que
ficá com padrinho. E papai ficô com o padrinho dele (...). Ele sofreu demais. Ele contava nós
que ele falava sempre em Deus, que se Ele dexasse ele criava os fio dele, que nunca que Deus
tirasse ele antes de criá os fio dele. Porque ele sofreu muito e num queria que os fio sofresse.
(Maria do Rosário (Induca). (Id., p. 170).
Da união com Carmelinda nasceram Geraldo Arthur Camilo (falecido), Maria Gelsa
da Silva (falecida), Conceição Natalícia da Silva (Tetane), Juventina Paula de Lima
(Intina, falecida), Maria do Rosário da Silva (Induca), José Acácio da Silva (Zé Arthur,
falecido), Izaíra Maria da Silva (Tita, falecida), Antônio Maria da Silva, Mário Braz da
Luz, João Batista da Silva (falecido) e Joaquim Bonifácio da Luz (Bill, falecido em
dezembro de 2007). Arthur sempre ensinou aos filhos o valor da família, do trabalho e a
devoção a Nossa Senhora do Rosário. A mãe Carmelinda foi exemplo de dedicação, força
e amor que, ao lado do pai exemplar, contribuiu para a formação dos filhos na e na
honestidade. Estes relembram o companheirismo do casal, os conselhos para que
cuidassem sempre da e, nunca a deixando sozinha, reforçando sempre a importância do
núcleo familiar
.
33
Il. 1- Arthur Camilo Silvério e Carmelinda Maria da Silva
Il. 2 A- Intina, Induca, Bil, Tetane, Tita, Mário, Geraldo e Antônio
34
Il. 2 B- (da esq. para dir.) Mário, Induca, Antônio e Tetane
35
Arthur começou a vida trabalhando na lavoura, época em que também atuou como
carreiro e vaqueiro. Mais tarde exerceu a atividade de tropeiro e comerciante nas regiões
vizinhas. Enfrentou todas as dificuldades que acometeram os negros ex-escravos e mesmo
os nascidos livres no final do séc. XIX e início do século XX, num contexto pós-abolição,
quando os negros se viram destituídos de todo e qualquer respaldo por parte dos antigos
senhores. A inconstância dos trabalhos gerava grande instabilidade na vida familiar e
exigia um esforço ainda maior para garantir o sustento e a estrutura emocional dos filhos.
Para isso foi fundamental a presença incansável de Carmelinda, braço forte nos afazeres
da casa e da lavoura, além de companheira afável na criação dos filhos e na dedicação ao
marido. Falecido em dezembro de 1956, Arthur é hoje o símbolo maior da comunidade,
reconhecido por construir as bases sobre as quais o grupo se desenvolveu. A em Nossa
Senhora do Rosário e a festa do Reinado são alguns dos mais importantes fundamentos
transmitidos pelo pai, e a forma primordial de transmissão dos conhecimentos foi a
oralidade. Carmelinda faleceu em novembro de 1983, deixando o exemplo de mulher
batalhadora, companheira fiel que nunca deixou de trabalhar ao lado do marido para
garantir o sustento dos filhos. Simboliza a mãe maior, acolhedora, e centraliza, ao lado de
Arthur Camilo, a memória dos que hoje celebram, festejam e vivem tudo que aprenderam
com eles. O casal permanece, hoje, no imaginário coletivo como uma referência, exemplo
de dignidade, trabalho e resistência.
Ao contrário do que se costuma pensar, os Arturos não constituem uma organização
quilombola, apesar de estarem em uma área de grande concentração de negros no período
escravista. O terreno fora comprado pelo pai de Arthur Camilo e herdado por seus filhos.
Como Arthur foi o primeiro a mudar-se para o local, a origem familiar da comunidade lhe
é atribuída. O território encontra-se em Contagem, região metropolitana de Belo
Horizonte, capital de Minas Gerais. Distante apenas 21 km da capital, Contagem possui
uma área de 194,586 km², uma população de 608.650 habitantes, e é uma das mais
importantes cidades dessa aglomeração urbana, principalmente pelo seu grande parque
industrial
5
. A comunidade situa-se no atual bairro Jardim Vera Cruz e, apesar de localizar-
se num centro urbano, ainda apresenta aspectos de uma propriedade rural. As casas são
simples, muitas delas ainda sem acabamento. Com apoio da Prefeitura, uma parte do
espaço foi recentemente calçada, mas no terreno ainda predomina o chão de terra batida.
5
FONTE: http://pt.wikipedia.org/wiki/Contagem
36
Citada por Gomes e Pereira (2000), Mari de Nasaré Baiocchi usa, para a comunidade, o
termo “bairro rural”.
Il. 3- Contagem, Região metropolitana de Belo Horizonte, MG
Inicialmente, o terreno era utilizado na agricultura e pecuária de subsistência da
própria família. Paulatinamente, à medida que as pessoas tentaram melhores condições de
vida, estas atividades perderam espaço para os trabalhos urbanos. Tal integração não se fez
sem adversidades. O preconceito, ainda hoje enfrentado, sempre acompanhou os Arturos
em sua inserção na sociedade. Conta-nos José Bonifácio da Luz, mais conhecido como
Bengala, neto de Arthur e Carmelinda, que sempre houve dificuldades no processo de
integração com a cidade. Até pouco tempo atrás, a comunidade priorizava o trabalho
braçal, do qual tirava o sustento diário, em detrimento da escola, atitude que reforçou
seu isolamento. Como reitera Sabará (1997), a grande distância entre a comunidade e a
escola mais próxima, em Contagem, agravava a situação e a conseqüência é o baixo vel
37
de escolaridade de muitos dos integrantes do grupo. Este quadro veio a alterar-se a partir
da década de 80. Segundo Sabará:
o crescimento demográfico do grupo, a expansão da Cidade de Contagem ao redor dos Arturos,
a entrada dos eletrodomésticos, a proeminência do trabalho assalariado, a chegada da energia
elétrica e da televisão são fatores que alteraram profundamente o modo de vida do grupo.
(SABARÁ, 1997, p. 128).
Il. 4- Comunidade dos Arturos, em Contagem
38
Aos poucos, o grupo foi se abrindo à sociedade local, conquistando mais espaço e
algum reconhecimento, principalmente por manter os costumes e as tradições afro-
brasileiras herdadas. Os jovens freqüentam a escola regularmente, participam das
atividades sociais de Contagem. Os homens e mulheres são trabalhadores nas empresas e
casas de família da cidade. Contudo, a abertura não garantiu o fim do preconceito e
discriminação por parte da população, principalmente por estarem os Arturos diretamente
associados à religiosidade negra.
A tradição religiosa é um dos principais valores que mantêm viva a memória do
ancestral de origem. O Congado, praticado pelo pai desde cedo, tornou-se um dever
sagrado, a herança que os Arturos perpetuam. Após a morte de Arthur, Geraldo Arthur
Camilo, o filho mais velho, tornou-se o responsável pelo Reinado. Foi coroado Rei pelo
pai, que o escolheu para substituí-lo nas funções sagradas:
Ocê deve de i treinano que é ocê mesmo que vai fica no meu lugá. Num tem desse negoço de
sabê ou num sabê fazê as coisa: na hora vem uma força e o faz. Purquê
ocê é o fio da minha benção e vai um capitão do Rosaro. (Arthur Camilo Silvério) (GOMES
E PEREIRA, 2000, p. 336).
O destino do primogênito, determinado pelo pai, levou-o a ser o Rei Congo do
estado de Minas Gerais até o seu falecimento, em 2004. Incumbido da missão de
transmitir aos mais jovens a tradição do Congado, Geraldo Arthur ensinava a tocar e
cantar, do jeito que aprendeu.
Ah, os menino fica aí. Vem um, vem outro, de todo lado, quando vê já pegaro as latinha e vão
cantano os ponto do Moçambique e do Congo. Desde aqui ó, vão embaxo pra tirá rainha.
Dispois vem perguntá: ‘Vovô, cume aquele canto pra tirá rainha? Tá certo assim?’ (Geraldo
Arthur Camilo) (Idem, p. 200).
Deste modo, as crianças aprendem cedo as lições de fé, garantindo a continuidade
dos saberes, que são partilhados entre os membros da grande família. Aos mais velhos
pertence o conhecimento dos fundamentos e segredos religiosos que sustentam a crença e
as práticas rituais. O aprendizado se dá no dia-a-dia, em casa e nos espaços em comum. A
participação começa desde muito cedo e não é raro vermos, nas festas, crianças de colo
com seus pequenos instrumentos nas mãos.
A tradição do Reinado, conta-nos Bengala, começou como uma forma de Arthur
reunir a família. No início não havia Guardas (nome dado aos diversos conjuntos de
39
dançantes). As pessoas chegavam e se incorporavam ao grupo para cantar, dançar e
louvar, mas somente os homens participavam. Com o passar dos anos, junto com o
crescimento do Reinado, as mulheres passaram a integrar também as guardas dançantes.
Forma de união e resistência, o Congado foi, assim, transformando-se numa grandiosa
manifestação religiosa, símbolo da coletividade e devoção dos negros Arturos. A tradição
plantada pelo pai encontra-se hoje em sua geração, e apesar de nem todos participarem,
a grande maioria vivencia o Reinado de Nossa Senhora do Rosário como parte inerente à
própria vida.
A história da comunidade tem a Festa do Rosário como um dos pontos fundamentais,
que acabou tornando-se referência em Minas Gerais e no Brasil. Outras festas também
marcam a vida do grupo, sempre ligadas à religiosidade e às tradições de matrizes
africanas. Deixadas pelos primeiros Arturos e mantidas como um compromisso com a
própria continuidade, as festas e a religiosidade resistem às influências atuais e
sobrevivem, renovando-se a cada ano, integrando novos componentes e novos elementos
sem, entretanto, perder suas raízes e fundamentos principais. uma preocupação, como
relata Bengala, em não deixar que a crescente aparição na mídia e a espetacularização das
festas façam com que estas percam seu real valor, seu sentido inicial.
O espaço onde se localiza a Comunidade dos Arturos possui, em seu ponto central,
uma pequena igreja, a Capelinha, ao lado da Casa Paterna, onde moravam Carmelinda e
Arthur. Ao redor deste centro, várias casas foram construídas, à medida que aumentava o
número de seus membros. Hoje residem por volta de 45 famílias no terreno e, somando-se
aos que se mudaram para bairros próximos, os Arturos somam ao todo cerca de 500
pessoas. Da “primeira linha”, ainda vivem quatro filhos de Arthur e Carmelinda:
Conceição Natalícia - Tetane, 91 anos (contemplada com o Prêmio Culturas Populares
2008 como Mestre de Batuque da Comunidade), Maria do Rosário - a Induca - 84 anos,
Antônio Maria Silva, 73 anos e Mário Braz da Luz, 70 anos.
A união e fraternidade podem ser observadas nas relações entre crianças e jovens,
que se reconhecem numa identidade comum vivenciada fora dos limites da comunidade, e
também na vida comunitária, cheia de solidariedade e companheirismo entre todos. O
respeito aos “mais velhos”, considerados sábios, também permeia o tratamento entre eles,
característica das culturas tradicionais, em que os conhecimentos passados de geração a
geração possuem valor incontestável. Nem mesmo o dinamismo social, que interfere na
organização interna da comunidade é capaz de dissolver a estrutura sobre a qual a vida dos
40
Arturos está firmada, com crenças, valores e idéias enraizados e costumes mantidos pelo
compromisso com a memória.
Hoje a Comunidade é representada juridicamente pela Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário de Contagem, cuja história se confunde com a dos próprios Arturos. As
irmandades possuem fundamental importância no processo de encontro entre o
catolicismo e a religiosidade africana, simbiose que possibilitou aos negros alguma
aceitação social e a permanência de seus ritos. Mas a participação nas irmandades não
ocorreu sem discriminação. A segregação entre brancos e negros sempre ocorreu e não são
poucos os casos de perseguição e intervenção da polícia nas atividades religiosas destes
últimos.
Em Contagem, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário data de 1858 (GOMES E
PEREIRA, 2000). Os Arturos sempre participaram ativamente das atividades da
associação, como membros efetivos e em sua diretoria – o atual presidente da Irmandade é
José Bonifácio da Luz, o Bengala o que não significa que não tenham sofrido repressões
e atos discriminatórios. Na década de 1868 iniciou-se a construção de uma igreja de Nossa
Senhora do Rosário pelos escravos, que se tornou símbolo da devoção da família de
Arthur Camilo, sendo por este e por seus filhos cuidada. Com o crescimento da cidade e a
urbanização, a capela foi demolida, em 1973, mostrando o desinteresse e desconsideração
do poder público para com a memória daqueles que tinham a igreja como uma referência
de e ancestralidade, guardiã de mistérios e detentora de uma sacralidade especial. No
local foi construída outra igreja, contudo, não possuía o mesmo modelo e não guardava a
memória e a história que envolvia a anterior. Os Arturos, então, construíram no centro da
comunidade a Capelinha, uma pequena igreja onde foram colocadas algumas das imagens
que restaram da demolição. Outras desapareceram e muito do patrimônio ficou perdido.
Fatos como este mostram como a resistência tem sido uma constante na vida dos
negros devotos que, mesmo sob o olhar austero da Igreja Católica, foram constantemente
perseguidos e muitas vezes impedidos de exercerem sua . A demolição da capela ainda
hoje representa muito no que toca à falta de respeito e desmerecimento para com as
tradições negras, e mostra que, apesar de tudo, a força prevalece e os Arturos prosseguem
resistindo, reconstruindo e preservando sua memória e sua ligação com o passado.
41
Il. 5– Antiga Igreja do Rosário
Il. 6 – Atual Igreja de Nossa Senhora do Rosário
42
Ao longo de quase um século de existência, desde que o primeiro Arthur pisou o
terreno, a comunidade se desenvolve acompanhando a dinâmica do mundo social à sua
volta e atualizando-se sem, entretanto, perder suas raízes. Além da famosa Festa de Nossa
Senhora do Rosário no mês de outubro, atualmente acontecem outras comemorações como
a Festa da Abolição da Escravatura, a Festa de João do Mato (ou festa da Capina), a Folia
de Reis e ainda os Batuques e Candombe. Em 1996 foi criado o grupo “Filhos de Zambi”,
formado por jovens do Movimento Negro em parceria com a Pastoral da Criança, para
apresentações artísticas de dança afro-brasileira e percussão. A formação do grupo,
segundo Bengala, foi motivada pelo desejo de participar de eventos para os quais são
constantemente convidados e que, com freqüência, recusavam, considerando que os
integrantes das guardas trabalham durante a semana, inviabilizando seu deslocamento. A
solução encontrada foi unir as crianças e os adolescentes, com maior disponibilidade, e
levar com eles algumas das tradições da comunidade, além de criações artísticas.
A crescente participação dos Arturos nos festejos em diversas cidades de Minas e até
mesmo fora do país (um grupo esteve no Festival Internacional Ollinkan de Culturas de
Resistência, em Tlalpan/Cidade do México, em abril de 2008) atrai olhares de turistas, de
pesquisadores e da mídia local, o que faz com que fiquem cada vez mais conhecidos.
Porém, segundo José Bonifácio, o reconhecimento e a valorização vêm, principalmente, de
fora. A viagem para o México, de acordo com ele, é um exemplo de tal fato. E não é raro
encontrarmos pessoas de Contagem que não conhecem a comunidade dos Arturos. Por
ocasiões das festas, é grande a afluência de fotógrafos, estudantes e curiosos em geral ao
local da celebração, mas muitos destes, principalmente os jovens, vão apenas em função
de trabalhos escolares e sequer tinham ouvido falar dos Arturos antes da data festiva.
Nos últimos anos tem-se observado uma maior participação do poder público nas
atividades da família, o que não significa que isto converta apenas em benefícios. Há de se
ter cuidado ao pensar nesta intervenção especialmente no risco de afetar as raízes e
prejudicar o sentido daquilo que a comunidade possui de mais original, que é a
simplicidade e fidelidade aos fundamentos herdados. Porém, algumas das ações são, sem
dúvida alguma, necessárias para o desenvolvimento e melhor articulação do grupo em sua
prática cultural. Neste ano de 2009, com o programa Cultura Viva do Ministério da
Cultura, a Comunidade dos Arturos se tornará um Ponto de Cultura da cidade de
Contagem, e tem como objetivo construir um Centro de Referência, onde acontecerão
43
oficinas variadas como Informática, Idiomas e construção de indumentárias e instrumentos
do Congado.
Todas essas transformações marcam a dinamização cultural pela qual passam os
Arturos, processo inevitável que moderniza, integra e desenvolve as capacidades e
possibilidades de seus integrantes.No entanto, o grupo familiar ainda mantém os traços
característicos de uma sociedade tradicional, com um modo específico de ver, pensar e
agir. A oralidade prevalece, o valor dado aos “antigos” ainda é a principal chave para os
conhecimentos. O cotidiano é marcado pelas conversas de quintal, os jogos de carta na
casa dos vizinhos, as festas animadas pelo batuque, as partidas de futebol no campinho, a
comida tradicional aprendida com vovó Carmela, a benzeção do vovô Mário à sombra de
uma árvore. Falar da história dos Arturos é falar de tardes passadas ouvindo casos e
lembranças, dos inúmeros relatos de festas passadas e acontecimentos presentes. E como
nos é impossível narrar todos esses fatos, apenas trazemos um pedaço deste universo
mágico e encantador, que tem como pedra fundamental a herdada, o compromisso com
o pai fundador, a devoção ao Rosário e a tradição negra que veio com os escravos e que
resiste na dança, nos cantos, nas orações e no som dos tambores que soam, relembrando
um pouco da África que existe em Minas Gerais.
2.2 PRETINHOS DE LÁ: O COMEÇO DO REINADO
2.2.1 Origens do catolicismo africano
Os festejos do Congado fazem parte do catolicismo popular negro brasileiro, mas
suas origens encontram-se na África. A chegada dos portugueses em terras africanas, em
1483, marcou o início das relações comerciais entre o Reino do Congo e a Corte
portuguesa. Assim como na Europa, havia no Congo uma organização política
centralizada e uma corte estruturada em torno do rei. Marina de Mello e Souza, em Reis
negros no Brasil escravista”, nos traz uma análise completa da coroação dos reis do
Congo, desde seu início ligado à história da África Centro-Ocidental. Segundo a autora
as coroações de rei congo ligavam-se à cristianização do reino do Congo no final do século
XV, ao espaço simbólico que o Congo ocupava na África Centro-Ocidental, tanto para
africanos como para portugueses, às características particulares do tráfico transatlântico de
escravos, à formação de novas comunidades de africanos escravizados e seus descendentes na
América portuguesa, ao tipo de catolicismo aqui praticado e às relações entre estas
comunidades e a sociedade senhorial. Tendo na festa o momento máximo de visibilidade,
44
essas eleições de reis expressavam determinados valores e concepções de mundo por meio dos
rituais realizados e dos símbolos utilizados. (SOUZA, 2002, p. 19).
A conversão ao catolicismo ocorreu depois que uma expedição enviada ao Congo,
para difusão da cristã e com claros interesses comerciais, voltou a Portugal, levando
alguns reféns e deixando no reino alguns emissários. Estes congoleses aprenderam a
língua e a religião portuguesas e ao retornarem, em 1485, foram recebidos com festa, pois
todos pensavam que tivessem morrido. De acordo com a cosmogonia congolesa, o mar
representava o mundo onde os mortos viviam e tudo o que dele viesse era sagrado.
Também o branco era a cor que simbolizava a morte, sendo que negros viviam na terra e
os espíritos, brancos, viviam no outro mundo. Assim o rei de Portugal pareceu ser aos
olhos dos congoleses um deus vivo, superior ao seu próprio rei porque vivia em outro
mundo, além da água, onde habitavam os mortos.” (SOUZA, 2002, p.54).
O senhor da província de Soyo, o Mani Soyo, foi o primeiro a ser batizado no
catolicismo, junto a seu filho, e recebeu o nome de D. Manuel (TINHORÃO, 1988).
Depois de Soyo, Congo foi o próximo reino a ter o rei batizado, em 1491, tendo o Mani
Congo recebido o nome de Afonso I. O evento foi seguido por grande comemoração,
durante vários dias, com banquetes, danças e queima de imagens não cristãs.
A relação entre conversão e poder fez com que os chefes adotassem os novos objetos
e ritos trazidos pelos portugueses, como meio de fortalecimento de seus poderes. Tais
novidades foram incorporadas sem que a cultura local fosse abandonada. Souza nos fala do
“mal- entendido” que caracterizou a cristianização do reino do Congo, devido às diferenças
culturais dos envolvidos:
Inseridos em universos culturais completamente diferentes, congoleses e portugueses criaram
um campo de compreensão mútua a partir do qual se desenvolveram os “mal-entendidos”
propiciados pela leitura dupla dos mesmos eventos e idéias. O interessante é tentar entender
como as diferenças tornaram-se similitudes, como a cruz se tornou um nkisi
6
, os missionários
católicos, ngangas
7
, e D. João II, Nzami Mpungu. Como do encontro das duas religiões, dos
seus sacerdotes e seguidores, nasceu o que vem sendo chamado de cristianismo africano, que
aceita vários elementos do cristianismo e combina de forma dinâmica as diferentes cosmologias.
(SOUZA, 2002, p. 67).
No século XVI, em Portugal, os africanos escravizados mantinham alguns de seus
costumes, entre eles o da eleição de reis acompanhada de festejos, momentos em que
6
Nkisi são objetos mágicos indispensáveis à execução dos ritos religiosos. (Souza, 2002, p. 65).
7
Nganga: líder religioso que prestava serviços privados e trabalhavam com a ajuda dos minkisi (plural de nkisi). (Idem).
45
executavam suas músicas e danças. No ritual de coroação, o rei e a rainha congos
representavam as nações negras africanas e este evento foi utilizado pelo Estado e pela
Igreja como forma de controle dos negros, que possuíam uma aparente organização social
tendo os reis como liderança. As irmandades religiosas exerceram papel fundamental nesse
controle, tanto em Portugal quanto no Brasil, pois essas eleições ocorriam no âmbito de tais
organizações. Estas eram
associações leigas formadas por negros, escravos, forros ou livres, em torno de um santo
protetor e de um altar no qual este era cultuado. Essas corporações cumpriam diversas funções
de ajuda mútua, socialização e diversão. [...] foi nesses espaços que se desenvolveu a festa de
reis negros. (Id., 2002, p. 183).
A prática do catolicismo uniu-se às formas negras de celebração e era dentro das
Confrarias que os negros podiam realizá-las. Além disso, as irmandades possibilitavam
melhor integração social de seus participantes, cuidavam da saúde e dos sepultamentos dos
negros, constituíam verdadeiras redes de solidariedade. Apesar de seu caráter socializador,
eram divididas por etnias, segregavam negros e brancos, sendo algumas formadas somente
por mulheres. O catolicismo africano desenvolveu-se sob o olhar severo das autoridades,
que viam muitos dos costumes dos negros como manifestação de bruxaria. Houve
momentos da História em que a coroação dos reis negros foi proibida, sendo os devotos
impedidos de entrar nos templos católicos. A festa continuou acontecendo, então, nos adros
da Igreja, marcando a resistência e a luta pela manutenção da cultura trazida da África.
No Brasil, o primeiro registro de uma Confraria de Nossa Senhora do Rosário consta
de 1552, segundo Tinhorão (1988). Mas a festa de coroação de reis data do século XVII,
sendo incorporada aos costumes populares somente nos séculos XVIII e XIX. Seguindo o
modelo português, o Reinado brasileiro tinha as irmandades católicas como locais de
ocorrência. Os “irmãos” partilhavam a devoção a um santo católico e reafirmavam sua
identidade étnica longe de sua terra de origem, o que conferia às irmandades o caráter de
uma sociabilidade reconstruída após a saída da terra natal. Caio César Boschi, citado por
Marina de Mello e Souza, cita como estas foram uma ‘força auxiliar, complementar e
substituta da Igreja’, responsáveis pela contratação de religiosos e pela construção dos
templos mineiros do século XVIII.” (SOUZA, 2002, p.183).
A festividade que acompanhava a coroação foi descrita por Urbain Souchu de
Rennefort, 1666, Olinda:
46
Após irem à missa, cerca de 400 homens e mulheres elegeram um rei e uma rainha, e
marcharam pelas ruas cantando, dançando e recitando os versos que fizeram, acompanhados de
oboés, trombetas e tambores bascos. Estavam vestidos com as roupas de seus senhores e
senhoras, com correntes de ouro e brincos de ouro e pérola, alguns deles mascarados. Todas as
diversões desta cerimônia lhes custaram 100 escudos. O rei e seus oficiais não fizeram nada em
toda essa semana, além de andarem solenemente, com a espada e a adaga ao seu lado.
(RENNEFORT apud SOUZA, 2002, p. 206).
O ritual de coroação de reis negros pode ser considerado pelo seu caráter simbólico
de identificação e rememoração de uma história pertencente ao negro africano escravizado
nas Américas. Ao eleger um rei e uma rainha e submeter-se aos seus poderes, os negros
reafirmavam sua identidade comum e davam continuidade aos seus costumes, mesmo que
de forma hibridizada ou mascarada pelos ritos católicos. Porém, a corte negra, soberana
entre os homens pretos, era subordinada ao poder religioso da Igreja, sendo que a coroação
somente adquiria legitimidade após a sua sagração. Esta era uma forma de controle por
parte das autoridades religiosas, mas também remete ao modelo congolês, onde o poder
religioso era superior à monarquia. (SOUZA, 2002). Destaca-se também o caráter de
inversão presente em tal rito, pois os reis eram pessoas sem nenhum valor para a classe
dominante, pobres excluídos que se tornavam superiores, dignos de respeito e adoração,
mesmo que somente no período festivo.
Durante a festa, destacavam-se as danças dramáticas, os cortejos e banquetes. Tais
ações ligavam-se sempre à mitologia inerente ao rito e compunham a totalidade do evento
religioso. Assim conclui Souza:
Misturando história com invenção, elementos africanos com portugueses, catolicismo e
crenças bantos [...] as festas de coroação de rei congo tornaram-se um dos elementos
atribuidores de nova identidade à comunidade negra, criada a partir da diáspora imposta pelo
tráfico de escravos. Enquanto a eleição do rei estabelecia normas de convivência internas ao
grupo e deste com a sociedade abrangente, organizando hierarquias, reforçando solidariedades,
definindo papéis sociais, a dança dramática fornecia os elementos simbólicos de
estabelecimento de uma identidade que se fundava no cristianismo, ao mesmo tempo que em
raízes africanas. (SOUZA, 2002, p. 305).
O ritual, considerado de origem banto
8
, espalhou-se pelo Brasil, sendo a região
sudeste local de maior concentração, especialmente São Paulo e Minas Gerais. Com
elementos comuns, como os cortejos e as danças, cada região apresenta particularidades, já
que o rito inicial sofreu interferências vindas das culturas locais, que levou à variedade nos
ternos (também chamados Guardas, os conjuntos de dançantes), símbolos, vestimentas e
8
O termo banto designa um grupo com características lingüísticas e culturais semelhantes que engloba
diversos subgrupos étnicos, localizados na África subsaariana.
47
coreografias. Alguns dos grupos mais conhecidos de dançantes ainda hoje observados nas
festas são os Congos, Moçambiques, Catupés ou Catopés, Vilões, Marinheiros,
Caboclinhos, Candombes. As datas festivas também variam nas diversas localidades, mas
acontecem principalmente nos dias dos santos devotados pelos negros: Nossa Senhora do
Rosário, São Benedito, Santa Efigênia, e em alguns casos também em comemoração ao
dia 13 de maio.
Marcadas pela sua origem afro-luso-brasileira, as Congadas resistem ao tempo e
integram o quadro das inúmeras manifestações de religiosidade afro-brasileira, sendo uma
das mais observadas e estudadas nos últimos anos. Paralelamente, perpetuam-se também
os preconceitos e o descaso para com a tradição, quadro que as acompanha desde seu
início em terras brasileiras. Mas os negros resistem e a tradição se renova a partir de suas
raízes, seus fundamentos, e levam adiante a cultura negra brasileira, escrevendo no tempo
a história daqueles que souberam recriar sua devoção apesar das condições a que foram
submetidos pela diáspora africana. Símbolo de resistência, o Congado brasileiro
permanece e, sem dúvida, conta-nos muito da vivência do negro desde sua vinda como
escravo até sua luta atual.
2.2.2. A Senhora das Águas
A devoção ao rosário tem sua origem ligada à figura de Domingos de Gusmão, no
início do século XIII, quando, em uma aparição, a Virgem Maria teria lhe ensinado a orar
utilizando um colar de contas (SOUZA, 2001). Segundo a autora, tal devoção ganhou
força durante a Reforma católica, principalmente entre os dominicanos, e foi uma arma
poderosa nas lutas pela disseminação do catolicismo. No culo XVI, foi instituída a festa
de Nossa Senhora do Rosário, comemorada no mês de outubro em homenagem a uma
batalha vencida pelos católicos durante as Cruzadas.
Em Portugal, Nossa Senhora do Rosário possuía grande mero de devotos, e suas
irmandades eram das mais importantes. Julita Scarano, citada por Souza (2001) diz que a
irmandade
[...] de Nossa Senhora do Rosário dos pretos surgiu em Portugal a partir de uma transformação
gradativa, nascendo realmente das irmandades de brancos que tinham a mesma invocação.
No esforço da Igreja católica de integrar o africano recém-chegado ao Reino, atraiu-o para as
irmandades e, nesse sentido, os dominicanos podem ter tido mais sucesso em fazê-los ingressar
nas associações de seus conventos. Assim, os negros participaram, inicialmente, das
48
irmandades de brancos e, aos poucos, com o aumento numérico daqueles, talvez com apoio dos
dominicanos, passaram a se reunir em núcleos separados, formando suas próprias confrarias.
(SCARANO apud SOUZA, 2001).
no Brasil, o rosário foi difundido pelos jesuítas e encontrou nos negros
escravizados grande aceitação. Conhecido pelos africanos de procedência banto, devido ao
processo de conversão do reino do Congo, o terço de Maria foi um importante objeto de
adoração em terras brasileiras, sendo as irmandades de Nossa Senhora do Rosário
principal espaço para a prática de tal devoção.
Além do mito fundador ligado à história do reino do Congo, os congadeiros
explicam a devoção a Nossa Senhora do Rosário com uma lenda que também remete à
África. Muitas são as versões dadas. Uma delas, citada por Leda Martins, conta que
No tempo da escravidão, os negros escravos viram uma imagem da santa vagando nas águas
do mar. Os brancos a resgataram e entronizaram numa capela construída pelos escravos, mas
na qual os negros não podiam entrar. Apesar dos hinos, preces e oferendas, no dia seguinte a
imagem desaparecia do altar e voltava ao mar. Após várias tentativas frustradas de manter a
santa na capela, os brancos rendem-se à insistência dos escravos e permitem que eles rezem
para a imagem, à beira-mar. Uma guarda de Congo dirige-se, então, para a praia e com seu
ritmo saltitante, sua coreografia ligeira, suas cores vistosas, paramentos brilhantes e fitas
coloridas canta e dança para a divindade. A imagem movimenta-se nas águas, alça-se sobre
mar, mas não os acompanha. Vêm, então, os moçambiqueiros, pretos velhos, pobres, com seu
canto grave e glutal, seu ritmo pausado e denso, as gungas, seus patangomes e sua telúrica,
cativam a santa que, sentada no tambor maior, o Santana ou Chama, acompanha-os devagar,
sempre devagar. (MARTINS, 1997, p. 45).
Outra versão, contada por Antônio Maria da Silva, Capitão Regente da
Comunidade dos Arturos, registrada por Glaura Lucas em Cantando e Reinando com os
Arturos”, revela:
Nossa Senhora do Rosário, quando ela apareceu na beira do mar, foi uma negra que trabalhava
na fazenda de escravos, foi que ela apareceu com essa negra, do outro lado do mar. A negra
voltou pra casa e disse ao senhor: “Senhor, não consegui apanhar água porque eu vi um
resplendor do outro lado e eu me senti mal com aquilo, fiquei com medo e vim”. O senhor
falou com ela: “Se for mentira sua, amanhã eu vou mandar os carrasco lá com ocê e ocê vai vê.
Vou te cortar ocê no coro e depois ponho ocê na roda d´água.” então ela ficou muito triste
com aquilo e ele mandou mesmo os carrasco com ela de madrugada, às quatro hora da
madrugada, quando chegou lá, eles viu o resplendor e voltou. Chegou e falou pro senhor que
era verdade.
Nesse momento eles tiraram os nêgo, os nêgo num podia mais ir na beira do mar, que eles
viram que era uma santa que tava lá. Chamaram banda de música, chamaram gente branco
para ir lá fazer uma festa: banda de música, o padre pra tirar a santa do mar, pra ver se ela saía.
Eles pelejaram, pelejaram, os nego saía da fazenda três quilômetros para a tipóia deles, e
começou a fazer seus instrumentos, que foi o tambor, foi as caixa. Começaram a fazer seus
instrumento tudo. De tarde eles subia pra fazenda e saía da fazenda, três quilômetros fora da
fazenda, para que o senhor não escutasse o barulho deles fazendo os instrumentos. Como
eles pelejaram,... Os branco falou; agora..., largou a Nossa Senhora pum lado porque eles via
49
que ela num saía. Aí, um dos nêgo, coitado, chegou e pediu o senhor: Ô senhor, será que
com ocês ela num quis sair, será que o senhor deixa nós ir lá, ver se ela sai com nós?A
resposta que ele teve foi: “Ah, cambada de preguiçoso! Cês é com preguiça! Se ela não saiu
com nós, com isso, essa catinga de nêgo, é que ela vai sair?” Ele deu as costa por resposta e foi
saindo devagarzinho. o senhor pegou e chamou ele e falou: “Oh, então vai lá, vamo se
ela sai com cês, vamo vê?”
Aí eles foram chamar. Chegou lá, juntaram o Candombe, o Moçambique e o Congo, e
desceram e vieram pra beira do mar. Chegaram. O Congo chegou na frente, dançava e fazia
aquela meia lua chamando o Moçambique, que ela tava caminhando, falando com o
Moçambique que ela tava caminhando. O Congo foi ficando aflito, ficando aflito...
Evém do mar, evém do mar
Lá evém Nossa Senhora
Virgem Santa, mãe de Deus
Ela é a mãe dos nêgo
É a santa que todo mundo adora
E o Moçambique num podia andar depressa, porque estava os preto velho com os tambor, não
agüentavam caminhar com os tudo cheio de bicho, não tinha como caminhar, e os tambor
sem jeito, não tinha corda pra segurar nem nada.
Aí, quando chegaram na beira do mar, os três, que foi o Congo, o Moçambique e o Candombe;
quando chegaram, a Nossa Senhora tava pertinho, quase do lado de fora. que ela rancô
de e pulô. Mas não chegou, assim, pegou os bastãos que a gente, os capitão, tava usando,
eles fizeram uma parede com os bastão e levantaram ela e sentou ela no tambor que chama
Santana. Daí os tambor já num bateu mais. O Moçambique é que veio conduzindo a nossa
Senhora em cima do Santana. Aí apareceu tudo quanto é santo, para que nada atingisse aquela
coroa que Nossa Senhora usava na cabeça.
Evém do mar
Evém do mar
A coroa do rosário (eu vou levar)
Evém do mar
Quem viesse de longe num sabia de tanta coroa que tava ao redor. Aí veio. Aí, quando chegou
na igreja dos branco eles tomaram a santa. Tomaram ela, levaram pra dentro e mandou os
nêgo sumir outra vez porque eles num precisava dos nêgo. Mas só que ela fugiu. Ela fugiu e foi
embora na madrugada. Quando foi no outro dia eles chegou caçando a santa, que deixou ela
muito bem trancada, muito bem arrumada. Saiu, viu o rastinho dela, que ela tinha voltado
pro mar. Foi atrás do negro outra vez, chamar os nêgo para que os nêgo isse na beira do mar
se tirava a santa. então os nêgo foi, arrumou os seus tambor, arrumou suas caixa e tudo.
foi lá, formaram, foi, e bateram ela tornou a sair com os nêgo. Aí os nêgo não parou na
igreja dos branco. Cortou pro mato afora, pos trio e foi pra tipóia. Na tipóia deles é que eles
deixou a santa lá, sem... sem trancar, sem nada. Nossa Senhora com eles ficou. Ficou a
noite toda.
Então, de manhã, eles assustou, que o senhor tava esperando de neles um coro porque sabia
que eles tava suado, que eles tava dançando. “Ah, eu vou mostrar eles. Amanhã nós vamos
tudo.” E prepararam. Mas quando eles chegou lá, que eles viram a santa, eles assustaram.
Assustaram e vieram pros seus cavalos e correram. Vieram embora. E falando: “Ela lá, ela
amanheceu lá com eles, ela amanheceu lá com eles.”
Nisso os go assustou né, quando eles viu os cavalo e os piraí, eles assustaram e levantaram.
Mas os branco já ia correndo, ia correndo. Aí eles levantaram afobado e a Nossa Senhora
tava lá, olhando eles. E eles chegou e falou. Perguntou a Nossa Senhora o quê que eles ia dá ela
a troco dela ter ficadoe eles num ter apanhado. Ela respondeu pra eles: “Não, é só ocês falar
assim: Benção!” E ensinou eles: “Cês tomam ‘a benção mamãe’. E ocês num tem que pagá
nada.” Aí foi ela cuns nêgo. A história é essa. (LUCAS, 2006, p. 40-42).
Os negros também contam, com a história da retirada da santa das águas, que esta,
ao acompanhar os escravos, deixou cair lágrimas, que deram origem à planta, cujas
sementes são utilizadas para a confecção do rosário. Por tal motivo as contas são
50
conhecidas como “lágrimas de Nossa Senhora”. No documentário Reis Negros”, os
congadeiros de Minas Gerais contam que a origem do Reinado é muito antiga e está no
princípio do mundo; segundo Gentil Lúcio, Capitão Mor da cidade de Raposos, MG, os
negros que tiraram a santa das águas “não têm nome nem data”.
Na cultura do Congo, a água representava a ligação entre o mundo dos vivos e o
mundo dos deuses, espíritos e ancestrais. Assim, vinda do mar, a imagem trazia consigo a
identidade católica negra e o fato levou os negros a se considerarem difusores dos
ensinamentos da cristã, escolhidos pela sua humildade e pobreza (Souza, 2002). Este
mito se faz presente em todo o ritual. A devoção ao rosário de contas, segundo alguns
autores, representa o elo entre o catolicismo e a cultura africana. Nossa Senhora do
Rosário pode ser identificada com o orixá Ifá, responsável pelo processo de adivinhação,
utilizando-se de cocos-de-dendê (Gomes e Pereira, 2000). O rosário foi, então, apropriado
pelos negros e, como outros símbolos do catolicismo, passou por um processo de
ressignificação, sendo incorporado à crença africana caracterizando o catolicismo negro
que então se formava.
Nossa Senhora do Rosário, a santa que veio sobre as águas, escolheu os negros e
com eles saiu do mar. Tornou-se a padroeira, a mãe, a advogada daqueles que não tinham
nenhuma proteção. O rosário de contas transformou-se em arma indispensável na luta
diária. Significa os mistérios da Virgem, a força da oração e da fé. Mathias, Capitão Mor
do Jatobá, em MG, enfatiza o poder do terço para o Congado: O Reinado do negro está
aqui!”.
A história é hoje recontada e revivida a cada festa do Rosário. Principalmente nos
grupos de dançantes, as guardas, a memória do mito é transformada em cores, sons e
movimentos. Mesmo sofrendo transformações ao longo do tempo, ele não perde seu valor
dentro do universo do Reinado, orientando os procedimentos festivos e dando sentido à
dos que o celebram.
Tanto a história, que envolve a coroação dos reis, quanto a lenda da retirada da
imagem das águas do mar norteiam as comemorações dos congadeiros em várias regiões
do Brasil. Mito e rito interpenetram-se, formando um universo rico em símbolos,
transformando os homens pretos em Filhos do Rosário, reis e rainhas de uma corte
invisível aos olhos do dominador, mas que transporta em si a força de um povo que soube
se adaptar, dando continuidade às suas crenças e rituais, mesmo que para tal fosse
51
necessário adotar uma cultura estrangeira, imposta violentamente, mas que não foi capaz
de destruir e nem fazer esquecer a memória da Mãe África.
2.3 A VIDA EM FESTA: DATAS E COMEMORAÇÕES
A festividade é um fato constante na vida dos Arturos. Tendo como eixo a devoção à
Senhora do Rosário, baseada no mito que narra a retirada de uma imagem da santa das
águas do mar, conseguida pelos escravos, os ritos festivos são momentos de reafirmação,
transmissão e reconstrução de uma identidade e de suas tradições. Segundo Maria Laura
Cavalcanti,
As diferentes regiões e cidades do país depositam desse modo nas festas a sua própria história e
memória, em permanente elaboração. [...]
A festa torna-se lugar de memória, de construção e atualização de um passado que não pertence
mais apenas a seus cidadãos, mas mostra-se capaz de atribuir identidade a setores amplos da
sociedade. (CAVALCANTI, 2006/2007, p. 44-45).
Considerando a festa como este lugar de memória, construção e atualização de um
passado, ela apresenta-se, dentro da trajetória social do grupo, como momento de encontro
entre o presente e a história de seus habitantes, que é a história mesma dos negros de todo
o país. O rito marca o instante em que se busca transformar o único no universal, o
regional no nacional, o individual no coletivo (Da Mata, 1983).
Para os Arturos, a festa significa a força da convivência com o sagrado, da união:
Festejar é uma dinâmica que mantém o Arturo identificado ao próprio sentido da existência.
Além de viver intimamente em festa - como filho do Rosário, os descendentes de Arthur
Camilo e Carmelinda têm uma atitude vital de esperança e alegria. Celebram todas as
oportunidades de estarem unidos, criando um espaço para o lazer e os festejos. (GOMES E
PEREIRA, 2000, p. 80).
De acordo com José Bonifácio da Luz, Bengala, presidente da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e Capitão do Congo, a festa do Rosário começou quando Arthur
Camilo passou a juntar a família para tocar e dançar em louvor à santa. Vários dançantes
se uniam, sem ainda formar guardas específicas. Este era um recurso utilizado pelo pai
para unir os familiares e amigos, que nem sempre podiam estar juntos devido aos afazeres
do dia-a dia. O Congado, então, foi se desenvolvendo ao longo do tempo como uma
religião, uma devoção, união”. Virou uma tradição familiar, ganhando cada vez mais
52
participantes, exigindo maior organização, até chegar à dimensão que hoje possui, com
três dias seguidos de festa, no mês de outubro, recebendo grupos de bairros e cidades
vizinhas e um número incontável de visitantes.
Além da grande festa de Nossa Senhora do Rosário, outro evento que atrai a atenção
para os Arturos é a Festa da Abolição da Escravatura, comemorada na semana do dia 13
de maio, sobre a qual falaremos em seguida. Também outras manifestações integram o
calendário da comunidade, como a Folia de Reis e a Festa João do Mato ou Festa da
Capina, no mês de dezembro, e os batuques que acontecem nos aniversários e casamentos.
Conta-nos Bengala que o Batuque surgiu na família para possibilitar a participação
feminina, que as mulheres não participavam do Reinado. Caracteriza-se por ser uma
festa coletiva, onde todos cantam, dançam e bebem aos ritmos das palmas e dos tambores.
Outro ritual importante é o Candombe, rito interno, restrito aos principais Capitães, que
reverenciam os três tambores- Santana, Santaninha e Jeremias (ou Chama)- evocando e
homenageando os antepassados. Destacam-se os gestos míticos, musicais e coreográficos,
as canções apresentam desafios aos participantes, cantam a realidade e a religiosidade,
num jogo que mostra a habilidade e a sabedoria dos mestres candombeiros.
A importância das comemorações dos Arturos pode ser comprovada pelo fato de que
mobilizam todo o grupo durante meses antes dos grandes eventos. Todos se preparam,
numa forte rede de cooperação, para que a tradição seja mantida e a expressa da melhor
forma, conforme os ensinamentos herdados de Arthur Camilo. E é na roda da vida, no
cotidiano, que se faz único esse grupo étnico, pela característica maior da fé, que se faz
festa: durante todo o ano, rezar e dançar constituem a linguagem religiosa do Arturo, um
signo vital.” ( GOMES & PEREIRA, 2000, p.8).
Mas o que significa a festa para quem a faz? Bengala nos fala: “Mas o que é a festa?
Muitas vezes as pessoas que vêm de fora falam. É festa nos Arturos!’ Mas, para nós não
é festa. Para nós é uma tradição, é uma devoção, é uma oração que a gente está fazendo
em louvor a Nossa Senhora do Rosário.”.
Considerando esta definição, em que os atores participantes não separam
comemoração de ato religioso/devoção, percebe-se que os fundamentos que servem de
base a tais ritos estão imbricados em toda a vida coletiva e cotidiana dos Arturos. A festa
surge como um momento em que a coletividade e o sagrado se intensificam. Sobre este
momento, nos fala Jean Duvignaud:
53
A festa é um período peculiar, apesar de inteiramente integrado à sociedade, período no qual a
vida coletiva é extremamente intensa. Os fenômenos relativos ao sagrado e à religião
correspondem a momentos de efervescência e de unanimidade. A “consciência coletiva” se
exacerba manifestando-se em dramas que descrevem os “mitos” ou sistemas de crenças. A
substância social, dispersa e difusa na vida quotidiana, tende a mostrar-se como uma totalidade
orgânica a que se deu o nome (derivado do vocabulário marítimo) de “mana”. É uma
substância coletiva que se exterioriza e se dramatiza ao longo de cenas e representações mais
ou menos teatralizadas, a que a magia ou a religião proporcionam uma imagem diversificada.
Durante as manifestações “sagradas”, esta criatividade atinge o apogeu e a pessoa termina por
projetar para fora de si a substância constituinte. Sublimação fantástica, ela se transforma até,
artificialmente, em objeto exterior que as coletividades adoram como a causa da sua existência,
não obstante ser em verdade o efeito do seu próprio dinamismo. Tal movimento é a “alienação”
[...] que suscita uma curiosa ambiguidade, pois o homem adora, fora do seu eu, o resultado da
sua própria exteriorização. Ele venera [...] uma realidade que não é senão a sua existência
sublimada. (DUVIGNAUD, 1983, p. 71).
A festa também é libertadora, retira o indivíduo de sua rotina, segundo Amaral:
A festa religiosa parece representar, portanto, um espaço imaginário diferente, onde o homem
se liberta do constrangimento das hierarquias econômicas e sociais, propondo seus ideais ou
fantasiando sobre o futuro. Os mistérios e dramas litúrgicos são aspectos dessa imensa tentativa
de impor ao mundo (desde o período feudal, pelo menos, e nas sociedades ocidentais) uma
igualdade mítica que contradiz a realidade cotidiana: utopia viva, a festa supõe uma imagem do
homem diferente daquela que lhe impõe o sistema social. (AMARAL, 1998, p. 49-50).
Este momento em que a coletividade se intensifica e se sobrepõe ao individual,
quando a liberdade do homem se concretiza, serve como forma de revigoramento das
energias sociais, estabelecendo o contato entre homem e divindade, como uma ruptura
após a qual o grupo se insere novamente na vida comum. O tempo festivo retira o homem
de seu estado cotidiano, para depois devolvê-lo revigorado, com as crenças fortalecidas e
com a certeza de que o seu compromisso com o passado e a tradição foi cumprido.
E nesse sentido, os Arturos preservam suas festividades com a consciência de que
dar continuidade aos costumes é não deixar morrer os desejos e ade seus pais. Mantêm,
apesar das dificuldades, um calendário anual com os principais ritos, organizando-se
durante o ano para manter a raiz e o sentido da devoção que atrai cada vez mais olhares.
Segue o calendário festivo da comunidade:
Janeiro
- Folia de Reis/ Encerramento da Folia de Reis
- Recesso das Atividades Culturais da Comunidade
Março/Abril
- Sábado de Aleluia - Abertura do Ciclo do Reinado
Maio
- Festa da Abolição da Escravatura
54
Outubro
- Festa de Nossa Senhora do Rosário
Dezembro
- Ritual da Festa João do Mato
- Encerramento do Ciclo do Reinado
- Abertura do Ciclo Natalino com a Folia de Reis
2.3.1 Festa da Abolição da Escravatura: o 13 de Maio recontado
Olha pra trás e põe sentido.” A frase, constantemente repetida pelos mestres mais
velhos, guardiões dos segredos do Congado, resume o pensamento que possuem sobre a
história e sua permanência na memória atual. É preciso recordar o que passou, colocando
sentido naquilo que se viveu. Rememorar o sofrimento”, nas palavras de Bengala, é
colocar sentido no passado, para dar continuidade à resistência que os mantém unidos.
Ao falar da festa que comemora a libertação dos escravos, o Capitão do Congo
revela essa necessidade de olhar para o passado e compreendê-lo, lembrando o sofrimento
dos nossos antepassados. O momento em que foi assinada a Lei Áurea é representado
ainda hoje, com os devidos personagens, simbolizando a conquista da liberdade e a alegria
dos negros após o acontecimento. Apesar dos constantes questionamentos em relação ao
dia 13 de maio, feitos pelas frentes negras atuantes no país
9
, a data continua a ser
comemorada e, em Contagem, ganhou destaque no decorrer dos anos. Apresentaremos
agora alguns aspectos da Festa da Abolição da Escravatura realizada pelos Arturos.
Conhecida no seu princípio como “Reinadinho”, ou “Festa Pequena”, a festa da
libertação é de introdução mais recente na história da religiosidade popular dos negros
(Gomes e Pereira, 2000). Sua primeira ocorrência foi no ano de 1971, sendo que a
Prefeitura de Contagem passou a destinar verba para sua realização, transformando-a
numa atração da cidade. Fala-nos Romeu Sabará:
[...] a Festa de Treze de Maio em Contagem deixou de ser uma promoção da Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário e dos Arturos para ser uma promoção da Prefeitura Municipal de
Contagem, através da sua Secretaria de Turismo e Assessoria de Imprensa. Na época da Festa
são mobilizados diferentes setores da repartição pública, convidadas personalidades políticas,
9
O dia 13 de Maio, quando se comemora a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, em 1888,
concedendo a liberdade aos cativos brasileiros, tem sido contestado desde a década de 70, principalmente
pelo Movimento Negro, por enfatizar uma ação paternalista de “concessão” da liberdade aos negros. Em seu
lugar, foi proposto o dia 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares, como mbolo maior de
resistência negra contra a escravidão. A data tem sido comemorada alguns anos e em algumas cidades é
considerada feriado, como Dia da Consciência Negra.
55
de fora da cidade, com direito a palanque e condecorações, ao lado da Princesa Isabel e do
Reinado do Congado. (SABARÁ, 1997, p. 314).
Sabará conta como a festa foi se alterando, a partir de 1975, com a introdução de
novos elementos e a apresentação, por parte da mídia, do evento como uma atração
turística, valorizando a comunidade como algo exótico e sua festividade como produto
cultural. Tal processo, observado em inúmeras manifestações pelo país, tem se
intensificado atualmente, quando políticas públicas interferem nos ritos tradicionais,
revestindo-os com uma roupagem vendável, meio de atrair turistas e recursos para as
cidades. Esse fato tem se intensificado, seguido de uma espetacularização das tradições,
que muitas vezes prejudica o real sentido dos eventos populares. Por outro lado, possibilita
aos grupos e comunidades maior organização, com os recursos a eles destinados. Longe de
uma visão consensual sobre a interferência das políticas públicas na cultura popular,
encontramos diversos autores que vêem essa prática como prejudicial à cultura original.
Citamos aqui Trigueiro (2005), que fala da espetacularização das festas do Norte e
Nordeste brasileiros:
A cultura popular está sempre aberta a setores de produção cultural, a outros significados, a
novas práticas sociais, a novos sistemas de comunicação. Estamos vivendo no mundo em que
quase tudo se torna espetáculo. Vivemos numa sociedade midiatizada onde as culturas
populares são atrativos para o exibicionismo televisivo, onde quase todos os acontecimentos da
vida cotidiana poderão transformar-se em espetáculos midiáticos. (TRIGUEIRO, 2005, p. 4).
Enquanto se transforma a cultura do povo em espetáculo rentável, os seus
organizadores originais mantêm o sentido do festejar e celebrar, trabalhando em função de
sua e de seus costumes. Assim, percebe-se a dualidade do acontecimento, enquanto rito
tradicional realizado pelo grupo para perpetuar suas tradições e, ao mesmo tempo,
representação espetacular produzida para o mercado. Nesse sentido, continua Trigueiro:
Mas é preciso se chamar a atenção para as mudanças por que passam atualmente essas festas
populares (Natal, Carnaval, Semana Santa, São João, Vaquejada, etc), que eram realizadas
espontaneamente pelos grupos locais e agora são organizadas com a participação de grandes
grupos multimidiáticos, empresas de bebidas e comidas, promotores culturais e empresas de
turismo. É como se existissem duas festas, uma dentro da outra, ou seja, a festa central
institucionalizada, de interesse econômico dos megagrupos empresariais, políticos e até
religiosos, e a outra periférica, que continua sendo organizada através da mobilização da
comunidade, pelas fortes redes sociais de comunicação, com a finalidade alegórica de
rompimento com o cotidiano e com o mundo normativo estabelecido. Ou seja, a celebração
para “quebrar a rotina”, em tempo de festa nos diferentes instantes da comunidade e outra no
tempo do espetáculo organizado para consumo global. (TRIGUEIRO, 2005, p. 4).
56
A Festa da Libertação, neste contexto, apresenta características dos eventos nos
quais agem as forças do mercado cultural, principalmente em um momento em que as
matrizes afro-brasileiras ganham destaque nos meios de comunicação. Entretanto, para os
Arturos, a representação guarda seu sentido mítico-religioso, fazendo parte do ciclo do
Congado e integrando o quadro dos festejos sagrados que executam durante o ano. Sobre a
crescente aparição na mídia, Bengala revela a preocupação dos mestres, que dizem que,
quando se aparece muito, acaba perdendo-se o valor; que ficar muito conhecido causa a
desvalorização e perda do sentido original. Por isso, a necessidade do cuidado ao se lidar
com os meios de comunicação.
E o que há na Festa da Abolição? Observando o evento nos anos de 2007 e 2008,
pudemos relatar seus principais componentes, com a intenção de descrevê-los numa
narrativa que apresentasse os personagens, os espaços e as ações rituais. Trazemos, no
momento, seus personagens e os ritos representados, tendo como fundamento a
semiologia, baseando-se na idéias de Leslie White acerca dos símbolos:
Todo comportamento humano se origina no uso de símbolos. [...] Todas as civilizações se
espalharam e perpetuaram somente pelo uso de mbolos...Toda cultura depende de símbolos.
É o exercício da faculdade de simbolização que cria a cultura e o uso de símbolos que torna
possível a sua perpetuação. Sem o símbolo não haveria cultura, e o homem seria apenas um
animal, não um ser humano. [...] O comportamento humano é o comportamento simbólico. [...]
a chave deste mundo, e o meio de participação nele, é o símbolo. (WHITE, apud LARAIA,
2003, p. 55).
Nesse sentido, a festa tem sido observada considerando os diversos símbolos nela
presentes e a rede de significações que formam. Nenhum elemento pode ser compreendido
destacado do seu contexto ritual e festivo, seja em suas relações com a história da
comunidade e do Congado, seja nas relações com o tempo e espaço atuais em que se
fazem ver.
A Festa de 13 de Maio, promovida pelos Arturos e pela Prefeitura de Contagem,
possui particularidades em relação às outras festas do Congado, que acontecem em
outubro. A leitura da Lei Áurea e o Lamento Negro na porta da Matriz marcam,
certamente, a especificidade desta data. A representação tem lugar no centro da cidade, na
praça da Matriz de São Gonçalo, onde, após um cortejo, encontram-se os Arturos,
visitantes, moradores da cidade, turistas e personalidades políticas. Na ocasião observada
(maio de 2007), apresentaram-se os seguintes personagens:
57
- Escravos: Os homens e meninos da comunidade representam os negros cativos.
Usam calças brancas, peito nu e os pés descalços. Estão acorrentados, trazem
objetos de trabalho na lavoura - enxadas, foices, facões etc.- usam brincos e
colares de metais e sementes. Durante o cortejo seguem em duas filas indianas.
- Baianas: As mulheres vestem-se de branco, com longas saias e turbante ou
lenços na cabeça. Algumas levam cestos de frutas e legumes, outras carregam
seus filhos no colo. Acompanham os escravos, seguindo ao lado destes no
cortejo.
- Escrava Anastácia
10
: Uma negra vestida como as outras mulheres destaca-se
por trazer no rosto uma máscara de ferro, semelhante à usada pela escrava.
Cultuada como santa e heroína, é um importante símbolo da história negra no
Brasil.
- Cavalaria de São Jorge: Os cavaleiros acompanham os negros, representando
os homens encarregados de buscarem os escravos.
- Princesa Isabel: Uma mulher branca que acompanha a Corte, sendo encarregada
pela leitura da Lei Áurea. Após o ato, é louvada com cantos pelos negros e pelas
guardas visitantes.
- Capataz: Participa da encenação, pedindo a liberdade dos cativos.
- Senhor e Senhora de Engenho: Em diálogo com o capataz, concordam com a
liberdade dada aos negros.
8
Segundo o mito, Anastácia nasceu no dia 12 de maio, filha de uma escrava com um homem branco. Sua beleza,
marcada pelos olhos azuis, encantou o filho de seu dono, o que levou o rapaz a oferecer-lhe tudo para que se deitasse
com ele. Não aceitando o pedido do jovem, foi condenada a usar uma máscara de ferro, retirada somente para se
alimentar. Por invejarem sua beleza e terem ciúmes da negra, as mulheres e filhas de senhores incentivaram a
manutenção do castigo. Bastante debilitada, Anastácia foi levada para o Rio de Janeiro, onde faleceu. Pouco se sabe
sobre a verdadeira história de Anastácia, o que leva alguns a duvidarem de sua real existência. Hoje ela é cultuada como
santa em algumas regiões.
58
Il. 7- Negros representado os escravos
Il. 8- Encenação do momento anterior à assinatura da Lei Áurea
59
Il. 9- Baiana
Il. 10
Il. 11- Anastácia representada
60
Il. 12- Cavalaria de São Jorge
- Corte: Fundamental na estrutura das festas de Reinado, segue todo o cortejo
atrás da Guarda de Moçambique. É constituída da seguinte forma: Rei Congo e
Rainha Conga, Rainha Treze de Maio, Rainha do Império, Reis Festeiros e
Princesa Isabel.
- Guarda de Congo: Responsável por abrir os caminhos, este grupo de dançantes
segue à frente do cortejo. Após a leitura da Lei Áurea, saúda a Princesa com
cantos. Formada principalmente por mulheres e crianças.
- Guarda de Moçambique: Responsável por guardar a Coroa, segue à frente da
Corte, no final do cortejo. Após o Congo, é a próxima a saudar a Princesa.
Formada principalmente por homens.
- Guardas convidadas: Grupos de cidades vizinhas participam da festa e, em
agradecimento, as guardas dos Arturos marcam presença nas festas de suas
cidades.
61
Il. 13- Guarda de Congo
Il. 14- Guarda de Moçambique
62
Il. 15- Representantes de guardas convidadas
Il. 16- Boi Bumbá da Com. dos Arturos
63
- Banda musical
- Boi-Bumbá: Personagem típico de vários folguedos brasileiros, o Boi- Bumbá
possui sua origem ligada ao totemismo
11
do boi nos povos bantos africanos
(Gozalez, 1989; Duarte, 2006; Ramos, 2006), o que influenciou diversas
manifestações no país, principalmente nas regiões de desenvolvimento da
pecuária.
- Autoridades políticas: Estiveram presentes também no Espaço Popular, no
centro de Contagem, figuras ligadas à administração da cidade e à Irmandade de
Nossa Senhora do Rosário. Entre elas a prefeita de Contagem, o diretor da Casa
da Cultura “Nair Mendes Moreira”, o coordenador do setor cultural de
Contagem, a vice-presidente da Associação de Religiosos Afro-Descendentes de
Minas Gerais, o patriarca da Comunidade dos Arturos, Mário Brás Luz e o
representante da Cavalaria de São Jorge.
Além destes personagens, a festa conta com a participação de um público formado
por moradores da cidade, turistas, amigos dos Arturos, fotógrafos e pesquisadores.
Também conta com a atuação dos organizadores, pessoas responsáveis pelo transporte, as
cozinheiras que trabalham todo o tempo, sendo praticamente todos pertencentes à família
ou ligados a ela de alguma forma. Cada um exerce papel fundamental para que o evento se
concretize conforme o costume.
A produção de uma festa é tarefa complexa e custosa. papéis e atribuições definidos e
fundamentais, na organização e no plano artístico. Esses papéis correspondem a posições
sociais e requerem talentos, vocações e habilidades específicas. [...] numa festa, seja ela
sagrada ou profana, as roupas, estandartes, adereços, alegorias precisam de cuidadosa
confecção. As festas produzem assim seu artesanato característico, m seus promotores
orgânicos e trazem ocultos no seu brilho muita tenacidade, disciplina e capacidade de
organização. (CAVALCANTI, 2006/2007, p. 45).
O evento se inicia na noite de sábado, com procissão e levantamento de mastros em
frente aos lugares sagrados. Mas a principal atração ocorre no domingo. Após a Matina,
quando um grupo sai às quatro horas da manhã, tocando e cantando até a Igreja do
11
Segundo Durkheim (2003), o totemismo está na origem de diversos cultos religiosos. Baseia-se na figura
do totem, espécie de coisa que designa coletivamente o clã e é seu objeto de culto. Os elementos que servem
de totem são pertencentes, na maioria das vezes, ao reino vegetal e animal.
64
Rosário, os participantes se encontram às oito horas para o início da representação. O
cortejo sai da comunidade, passando pela Igreja do Rosário e segue até a Matriz
de São
Gonçalo, no centro da cidade de Contagem. Os negros que representam os escravos e a
Guarda de Congo são levados de caminhão até a Casa de Cultura, de onde seguem em
desfile para o Espaço Popular, na Praça da Matriz de São Gonçalo. Lá, então, acontece o
grande encontro. Escravos acorrentados, Guardas de Congo e Moçambique, guardas
convidadas de várias cidades, banda de música, Cavalaria, Corte e público se preparam
para a encenação da assinatura da Lei Áurea.
Após a acomodação de cada grupo participante, de frente para o palco, onde se
encontram os Reis da festa junto às autoridades, algumas palavras são proferidas pela
prefeita, seguida de cada um dos representantes das entidades presentes. Segue-se então
com a encenação. Um homem representando um capataz trava um diálogo com o Senhor
de escravos, pedindo a liberdade para estes. O momento culmina quando o Senhor
“concede” a liberdade aos cativos, e a moça que representa a Princesa Isabel a Lei
Áurea. Um negro leva aos escravos, que até então estavam deitados de barriga no chão,
enfileirados, a boa notícia. Eles tiram as correntes que os prendiam e entoam o ”Canto de
Liberdade dos Negros Cativos no País”. Começando pelo Congo, todas as guardas cantam
em saudação à Princesa Isabel. É um momento de muita alegria, muito aplaudido pelos
espectadores.
A próxima cena acontece à porta da Matriz de São Gonçalo, com o “Lamento
Negro” que relembra o período em que os negros eram proibidos de entrar nas igrejas
católicas. Cantando, pedem que as portas se abram para que assistam à missa do lado de
dentro. Após o lamento, as portas são abertas pelo padre e os negros entram primeiro.
Terá, então, início a Missa Conga.
A celebração litúrgica segue o tradicional ritual católico, diferenciando-se pela
participação das Guardas nos cânticos. As coroas e bastões, símbolos do poder real, são
entregues no momento do ofertório e devolvidos aos reis no final da cerimônia, quando os
participantes saem entoando cantos de despedida, dançando, exultantes de alegria.
Mais uma vez um cortejo leva os congadeiros até a comunidade, passando pelas ruas
de Contagem. Cantam e dançam durante todo o percurso, encantando os passantes. Na
Casa Paterna, o almoço é servido. Enquanto algumas Guardas almoçam, outras se dividem
pelo terreno, entre as casas dos Capitães onde estão os mastros e a Capelinha, sempre
cantando, dançando, louvando Nossa Senhora do Rosário, celebrando a vida e a liberdade.
65
Os sons nunca cessam, os tambores nunca se calam. E a festa continua, com o pagamento
de promessas por fiéis, até o momento do Encerramento dos Festejos, com a despedida das
guardas visitantes.
A respeito da Festa de 13 de Maio, chamamos a atenção para o fato de ter sido
adotada pelos participantes a partir de uma proposta externa, ou seja, não partiu
necessariamente de seus únicos interesses. Percebemos como as tradições são recriadas e
reinventadas, por motivos diversos, e novos costumes acabam por tornar- se integrantes de
uma rede cultural maior, como é o Congado da Comunidade dos Arturos. Uma das
questões iniciais dessa pesquisa era em relação à espetacularidade das festas populares,
questão esta deixada à margem por perceber o quão estreita é a linha entre a devoção e o
espetáculo. Entretanto, a Festa da Abolição nos aparece como um momento ímpar, em que
podemos claramente definir o que é representação e o que é de fato ritual religioso. A
encenação da leitura da Lei Áurea marca a espetacularidade, mesmo com a participação
das Guardas e seus cantos sagrados. O que se destaca é a narrativa, recontar o instante
histórico, mostrar o “como foi” que se deu a liberdade no Brasil. Aos espectadores é
oferecida a cena derradeira da escravidão brasileira.
Porém, os ritos que se seguem levam a uma outra dimensão, quando o sagrado se
destaca, com os cortejos, a missa, o incessante tocar e cantar em louvor à Senhora do
Rosário. O religioso volta à cena, não para ser representado, mas para acontecer de fato,
tornar-se no momento presente a continuação e afirmação da fé, da própria história dos
negros construída em seu dia-a-dia. E é nessa dinâmica, quando novas estruturas se
integram ao tradicional, que os Arturos perpetuam a trajetória de recontar o passado,
colocando sentido, revivendo o sofrimento dos antepassados, fortalecendo, assim, a união
que os mantém e os faz resistir e continuar.
Aô Angola! Aô, Angola!
Essa gunga veio de lá, essa gunga veio de lá
Correu mundo e correu mar
Correu mundo e correu mar
(Canto do Moçambique)
66
III
OBSERVAÇÃO E VIVÊNCIA DE UM RITO:
A FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO
67
Este terceiro capítulo destina-se ao objetivo principal da atual pesquisa, que é
apresentar a visualidade da Festa de Nossa Senhora do Rosário, observada na Comunidade
dos Arturos nos anos de 2007 e 2008. Durante o período de pesquisa, percebemos o quão
vasto e complexo é o sistema simbólico que abrange o evento e, assim, compreendemos a
dificuldade em apresentar, com eficiência e fidelidade, todos os aspectos que o envolvem.
Por isso, restringimos este trabalho a uma narrativa do fato observado, com uma descriçao
dos principais elementos visuais e uma relação dos objetos rituais, junto a um breve estudo
dos aspectos estéticos inerentes aos signos festivos. Tal estudo não possui a pretensão de
elaborar uma análise completa da estrutura simbólica que a festa nos oferece, nem
tampouco de chegar a uma conclusão sobre a presença da arte nos rituais religiosos e seus
possíveis desdobramentos. Pretende-se apenas oferecer, de forma sucinta, um olhar sobre
a plasticidade e o aparato estético inerente à Festa do Rosário, dando destaque às
características marcantes da religiosidade afro-brasileira.
O Congado é um universo mítico que possui inúmeras possibilidades de leitura para
os seus variados símbolos que estão, por sua vez, imbricados ao cotidiano, ao passado e às
tradições mantidas por aqueles que deles se utilizam. Na decodificação das imagens
festivas, faz-se necessário conhecer a história e a vida dos congadeiros, as razões e as
matrizes de sua fé. É igualmente importante considerar o contexto em que se formaram as
bases de uma religiosidade cujas raízes estão na África, mas que foi forçada a se adaptar às
condições brasileiras sob o regime escravista, marcado pela repressão e discriminação e,
principalmente, a ter de se valer de símbolos e crenças católicos impostos pelo dominador.
Por entender o Congado como um lugar de encontro do catolicismo com o africanismo,
abordaremos a estética da festa em suas diversas vertentes, sem esquecer do processo
constante de ressignificação que os símbolos sofrem com o passar do tempo, seguindo a
dinâmica própria das manifestações populares que se renovam e se reinventam para
permanecerem no presente.
Para abordar a estética da Festa do Rosário, nos apoiamos em três pontos: o Espaço,
os Personagens e os Rituais, por ser esta tríade básica na decodificação e compreensão
dos signos rituais. Marcel Mauss, em seu Manual de Etnografia”, diz que os fenômenos
estéticos são fenômenos sociais e se diferenciam das técnicas por buscarem uma sensação
estética, em vez de apenas uma utilidade. Ligada aos conceitos de contemplação, prazer,
alegria e ao ritmo, a estética ocupa papel importante nas sociedades, por estar presente em
qualquer atividade, inclusive nos ritos religiosos: La estética contribuye [...] a la eficacia
68
religiosa, a la par que los ritos, por lo que el número de objetos absolutamente laicos es
tan restringido. [...] podemos también afirmar que hay siempre un elemento de arte y un
elemento técnico en todo objeto de culto.” (MAUSS, 1967, p.148).
A Festa do Rosário apresenta sua estética própria, formada por elementos visuais -
cores, vestuários, cenários, objetos sacros, instrumentos, danças; linguísticos- cantos e
orações; musicais- cantigas, sons dos instrumentos musicais. Mesmo sem uma intenção
puramente estética na produção do evento, os fenômenos estéticos são acionados,
concorrendo para que o rito se preencha do Belo, daquilo que promove prazer e satisfação.
Ainda em Mauss, encontramos:
No puede pasar inadvertido el aspecto sociológico de los fenómenos estéticos ni el papel que
las fiestas representan en la vida pública, o dicho de otro modo, la noción de feria, de alegría,
de juegos. Todo esto coexiste en el fenómeno estético, en una mezcla frecuentemente
inextricable. De aquí puede ya deducirse la importancia religiosa de los fenómenos estéticos,
tan conexos a los fenómenos religiosos. Así nace la teoría delas representaciones colectivas
del arte. (MAUSS, 1967, p.151).
Os fenômenos religiosos se revestem, então, de uma estrutura estética. A música
ritual, com suas características próprias, associada à dança, mobilizam os sentidos
daqueles que as executam e dos que as vêem, ao mesmo tempo em que exercem sua
função de comunicação com o divino. As roupas carregam um sentido ligado ao mito
inicial e suas cores e formas são combinadas harmoniosamente em prol da beleza e do
desejo de agradar a Senhora do Rosário. A teatralização assinatura da Lei Áurea,
embora executada de forma primária, marca um momento crucial na comemoração da
comunidade, valendo-se de uma linguagem artística como chave para a realização do
ritual de rememoração.
Podemos pensar a estética do Congado sob o ponto de vista que nos oferece
Clifford Geertz (1994), ao dizer que los medios de expresión de un arte y la
concepción de la vida que lo anima son inseparables, y no podemos comprender los
objetos estéticos como concatenaciones de pura forma”, ou seja, os signos utilizados
para expressão da e que nos aparecem como artísticos estão intimamente ligados à
vida social daqueles que os utilizam e a conexão entre eles se dá em um plano
semiótico.
69
Los signos o los elementos sígnicos [...] que componen ese sistema semiótico que
pretendemos, con propósitos teóricos, denominar estético, se hallan conectados
ideacionalmente- y no mecanicamente- con la sociedad en la que se encuentran. Son,
parafraseando a Robert Goldwater, documentos primarios; no son ilustraciones de
concepciones que ya están en vigor, sino concepciones que buscan por mismas [...] un lugar
significativo en el repertório de los restantes documentos, igualmente primarios. (GEERTZ,
1994, p. 123).
A partir destas idéias, descreveremos o conjunto de signos visuais do Congado dos
Arturos e mostraremos imagens a eles relacionadas, sem perder de vista a sociedade e sua
cultura como parâmetros para se pensar o aparato estético utilizado.
3.1 DESCRIÇÃO DO CAMPO: O OBSERVADO
A Festa de Nossa Senhora do Rosário acontece no mês de outubro, na Comunidade
dos Arturos, e se estende por três dias consecutivos, ocasião em que uma seqüência
ininterrupta de ritos toma conta de todos os moradores e demais participantes. Apesar de
apresentar a mesma programação todos os anos, a cada festejo podem ser encontrados
novos acontecimentos e novos elementos, mas para percebê-los é necessário um olhar
atento às sutilezas.
Para este trabalho, durante dois anos nos envolvemos com as celebrações do Rosário,
sendo que no ano de 2008 participamos também do período de preparação que antecede os
festejos. A fim de descrever os principais signos observados na festa, vamos dividi-los em
três grupos principais- Espaço, Personagens e Ações.
3.1.1 Onde estamos - Espaço e identidade
“Nascer é nascer num lugar, ser designado à residência. Nesse sentido, o lugar de
nascimento é constitutivo da identidade individual [...] (AUGÉ, 1994, p.52). Seguindo
esta idéia, pode-se dizer que o espaço representa um fator fundamental na formação da
identidade dos Arturos. A história da comunidade liga-se primeiramente a terra onde
foram plantadas suas raízes, a terra-mãe, local onde nasceram e ainda vivem. Augé nos
fala do lugar antropológico como identitário, relacional e histórico, por marcar o local do
nascimento, pelas relações de coexistência que ele compreende, e finalmente por situar a
história daqueles que nele habitam, conjugando identidade e relação. Assim temos o
terreno comum como este lugar antropológico onde se construiu e se constrói a história da
70
família de Arthur. Terra e memória não se separam; as relações interpessoais se
determinam pelas regras e costumes locais criados ao longo das cinco gerações que ali se
encontram.
E, afinal, que espaço é este em que vivem os Arturos? Gomes e Pereira (2000) nos
apresentam a comunidade inserida no contexto histórico de Contagem. O grande número
de escravos na região possibilitou aos cultos de origem africana sua sobrevivência à
repressão e a conseqüente chegada aos dias de hoje. Para os autores,
Os dados históricos inserem a Comunidade dos Arturos num contexto social - o município de
Contagem partindo do princípio de que ela não se constituiu como fato extemporâneo da
trajetória do negro em Minas Gerais. A Comunidade participa de uma realidade social que tem
por moldura a realidade de um passado étnico, histórico e social que lhe permite projetar uma
imagem reveladora de si mesma. (GOMES E PEREIRA, 2000, p. 183).
Contagem faz parte da região metropolitana de Belo Horizonte, capital de Minas
Gerais, e se destaca pelo seu grande parque industrial, instalado no ano de 1941
(SABARÁ, 1997). Possui uma área de 194,586 ke uma população de cerca de 608.650
habitantes, a 21 km da capital. A Comunidade dos Arturos localiza-se no atual bairro
Jardim Vera Cruz e no início, por estar afastada do centro urbano, era mais fechada à
sociedade ao redor. Esse quadro foi alterado com o desenvolvimento industrial da cidade e
a consequente inserção do aglomerado ao contexto, transformando muitos de seus
moradores em empregados das empresas que ali se fixaram, alterando as relações de
trabalho antes ligadas tão somente à agricultura e à pecuária.
Il. 17- Região metropolitana de Belo Horizonte
71
A Comunidade ainda apresenta aspectos de uma propriedade rural. As casas são
simples e apenas uma parte do terreno é asfaltado. Citada por Gomes e Pereira (2000),
Mari de NasaBaiocchi usa para a comunidade o termo “bairro rural”. É formada por
várias residências em torno de uma pequena igreja, a Capelinha. A seu lado, fica a Casa
Paterna, onde moravam Arthur e Carmelinda e onde hoje vive Induca, uma de suas filhas.
A Casa Paterna é o centro convergente das energias, local onde acontecem os encontros,
onde são recebidos os visitantes e onde são servidas as refeições nos dias de festa. Sua
cozinha ainda possui o forno de barro onde vovó Carmela fazia os quitutes ensinados às
filhas e netas e que ainda hoje fazem parte do cardápio festivo. Casa e Capelinha juntas
constituem o espaço sagrado e determinam a área comum do cotidiano onde todos se
encontram, onde as crianças brincam e onde se percebe a tranqüilidade de uma vida
interiorana.
Il. 18 Capelinha
72
Il. 19 Casa Paterna
Il. 20- Interior da comunidade
73
Il. 21
Il. 22
74
A festa acontece dentro e fora dos limites da comunidade. No espaço interno,
bandeirolas enfeitam todo o terreno, algumas casas têm a fachada enfeitada, a Capelinha é
completamente ornamentada. No primeiro dia, na noite de sábado, ao início da grande
festa, a concentração se em frente à Capelinha, espaço centralizador das forças
simbólicas acionadas nos rituais. Cantando, dançando e rezando, os filhos do Rosário
seguem em procissão pela cidade de Contagem. As ruas tornam-se, então, o palco por
onde desfilam os fiéis. Altera-se a ordem cotidiana, o espaço comum e ordinário é tomado
pelo espetáculo da fé.
Diferente da comemoração de maio, quando eventos no centro de Contagem, a
festa de outubro limita-se ao território interno e às ruas que levam aos locais onde serão
levantados os mastros, a começar pela Igreja de Nossa Senhora do Rosário, próxima à
comunidade, seguindo para os outros locais determinados. O levantamento dos mastros
determina a abertura dos festejos e simboliza o ligamento entre a terra e o céu. Os locais
escolhidos para fixar os mastros são considerados sagrados por terem sido palco de fatos
relevantes na história e na religiosidade do grupo. Sobre a sacralidade dos espaços rituais
diz Augé:a sacralidade dos locais onde se concentra uma atividade ritual é uma
sacralidade que se poderia dizer alternativa. Assim, aliás, criam-se as condições de uma
memória que se vincula a certos lugares e contribui para reforçar seu caráter sagrado.”
(AUGÉ, 1994, p.57).
São erguidos mastros nos seguintes locais: na frente da Igreja do Rosário, construída
no lugar da capela demolida na década de 70, próxima à comunidade; no Cruzeiro da Casa
de Cultura “Nair Mendes Moreira”, na Praça Vereador Josias Belém, em homenagem ao
Babalorixá José Aristides, importante líder religioso na história dos Arturos; no espaço
interno, em frente à Capelinha e nas casas dos capitães. Importante ressaltar a relevância
desses locais para manter a memória da festa e a sacralidade a eles conferida, por
guardarem fatos marcantes da trajetória da família e do Congado, compondo o universo
simbólico e mítico que abrange os rituais. A festa renova os laços com estes locais
sacralizados no passado ao refazer o caminho por onde os antepassados construíram as
bases da tradição. Unidos nestes locais, os grupos envolvidos, ao repisarem as trilhas
dantes percorridas, fortalecem sua coletividade através das lembranças, reforçando, assim,
sua identidade.
Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade
por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali antes como histórias à
75
espera e permanecem no estado de quebra- cabeças, enigmas, enfim, simbolizações enquistadas
na dor ou no prazer do corpo. (CERTEAU, 1994, p. 189).
Cada lugar, cada espaço sacralizado faz parte do grande quebra-cabeças que é o
sistema simbólico presente no Congado. Ao poucos vamos conhecendo as histórias que
envolvem cada lugar, os acontecimentos que marcaram este ou aquele cortejo, os motivos
da devoção a determinados lugares. A cada passo, algo se acrescenta e podemos tecer a
rede de significados e compreender o sentido de determinados fatos.
Como a festa acontece na cidade, além dos limites da comunidade, percebemos a
forma como se a inserção dos congadeiros no ambiente urbano. Por alguns momentos
parece contraditório o cortejo dos negros Arturos pelas ruas da cidade cinza e desatenta,
com seus tambores e cantos que nos levam ao passado, suas roupas e adereços destoando
no presente.. Cria-se um universo paralelo, ao mesmo tempo estranho e concernente
àquele território. Neste momento, pode-se perceber através da festa uma representação da
relação cotidiana dos Arturos com a urbe: eles lhe são pertinentes, mas não se fundem a
ela. O grupo se destaca, possui identidade própria, algo que os diferencia de todos os
outros, tanto aqueles que param para os verem passar, quanto os que olham desconfiados
pelas janelas e aqueles que fecham as janelas para não vê-los e ouvi-los. Vê-los pelas ruas
é constatar que, mesmo com o passar dos anos e as inúmeras mudanças ocorridas, o
Congado ainda se mantém como um microcosmo cheio de mistério e encanto, que reitera a
distinção entre seus praticantes e a sociedade que assiste a ele.
Após o levantamento dos mastros na cidade, retornam para a comunidade onde
outros estandartes também são erguidos. Aqui, chamamos a atenção para o caminhar,
presente em toda a celebração. Segundo Michel de Certeau (1994), caminhar é ter falta de
lugar, é o processo indefinido de estar ausente e à procura de um próprio; caminhar é sair.
Em seus cortejos, os negros do Rosário saem de sua terra-matriz e levam para a rua seus
ritos e sua história, derramando sobre o percurso a alegria de seus cantos e danças.
A rua é o lugar onde as festas populares acontecem, o lugar primordial onde o povo
se encontra, festeja, reza, comemora, representa o passado e se projeta a um futuro que se
aproxima. Andar pelas ruas é colocar sobre elas a sua marca, é traçar o seu caminhar
festivo e sagrado, recriando suas trajetórias de modo a renovar e reapropriar- se daqueles
espaços. Assim, os Arturos reforçam seu pertencimento e retraçam as rotas dos
antepassados durante suas celebrações, colocam-se como um coletivo que preserva sua
identidade social e étnica juntamente, além de reafirmar seus laços com a cidade.
76
No espaço comunitário, voltamos nosso olhar para a Capelinha. Construída pelos
próprios moradores após a destruição da antiga capela de Nossa Senhora do Rosário, é um
santuário pequeno, com poucos bancos, que são postos nas laterais durante a festividade, e
chama a atenção pelo seu altar, riquíssimo em cores e formas. Nele estão imagens de
diversos santos, objetos sacros do Congado como bastões, espadas e coroas, flores, velas,
copos de água. Uma infinidade de símbolos materializa a riqueza presente na festa,
marcada pela diversidade simbólica e multiplicidade visual. Esta variedade de signos
concretiza o encontro das diversas influências que formaram o Reinado e o altar é o local
onde se percebe a constante convivência entre a matriz negra africana e o catolicismo
europeu. Santos e pretos-velhos dividem o mesmo espaço; as diversas crenças e as
múltiplas formas de simbolização convivem lado a lado.
Il. 23- Altar
77
Il. 24 – Interior da Capelinha
Além do altar majestoso e exuberante, na Capelinha fotos antigas, que retratam
um pouco da história da família e do Reinado. Percebe-se ali o lugar de concentração das
energias do rito festivo. Ali os fiéis se benzem antes de iniciar o dia de festa; diante do
altar os negros se ajoelham pedindo proteção à Senhora do Rosário; também os objetos
sagrados que compõem o ritual ali se encontram protegidos até o momento exato de serem
utilizados. É também na Capelinha que a festa se encerra ao fim da noite, quando as
guardas se despedem com as últimas canções, onde as orações são feitas e todos os
agradecimentos e recados são dados. Antes de voltar para casa, mais uma passagem pelo
altar, agradecendo pelo dia que termina e renovando as forças para o dia que se segue.
Ao lado da Capelinha fica a chamada Casa Paterna, onde moravam Arthur e
Carmelinda. Uma casa simples, com enorme quintal e uma área onde acontecem as
refeições festivas. Uma grande mesa ao centro, alguns bancos e uma bancada onde são
servidas as panelas compõem o ambiente, que também é completamente enfeitado com
bandeirinhas e fotos de festas anteriores. A cozinha acompanha a simplicidade de todo o
local, com um fogão a lenha e um forno de barro utilizados para o preparo dos pratos.
Enquanto a Capelinha concentra as energias sagradas, a Casa Paterna representa o
convívio familiar, o encontro, a partilha, os momentos de descontração, de brincadeiras, da
78
comunhão do alimento. Comum na cultura negra brasileira, os quintais são lugares onde a
sociabilidade se concretiza. São conhecidas as histórias das casas das matriarcas que
recebem a todos, servindo pratos que vão sendo preparados enquanto a conversa, a bebida
e a música alegram o ambiente, onde sempre chega mais um e se junta à grande família
que se diverte unida. O acolhimento é marca dessas grandes-mães que estão sempre com
as portas abertas aos seus filhos, netos e amigos. E é esse clima de ‘casa de vó’ que
encontramos na Casa Paterna, consagrada por guardar a memória familiar da vida dos
primeiros Arturos, aberta e receptiva aos que vão chegando, seja para comer, para
conversar, ou mesmo para conhecê-la. Centro de referência da comunidade, o terreiro de
Vovó Carmela permanece e permanecerá como local sagrado não apenas por integrar o
espaço ritual, mas também (e cremos principalmente) por ser o lugar onde se partilham o
alimento, as alegrias, as dores, as lembranças e onde a sociabilidade acontece unindo ainda
mais os filhos do Rosário.
Começar e terminar dentro do espaço comum confere à festa do Rosário a identidade
principal dos Arturos. “O homem, arraigado à sua cultura, liga-se antes de tudo aos
locais onde se manifestam os elementos que animam a sua vida.” (DUVIGNAUD, 1983,
p.55). A dimensão sócio-geográfica confere especificidade ao festejo, já que cada cidade e
cada bairro possuem traços próprios que são traduzidos em seus símbolos rituais. No caso
dos Arturos, ainda um caráter especial por serem parte de um agrupamento fechado
(apesar da crescente relação com a cidade), o que faz de sua celebração a tradução de uma
vivência cotidiana e de uma construção social e religiosa que atravessa gerações sem se
desligar da terra-mãe, espaço primeiro, lugar onde estão plantadas as suas raízes que
permitem a continuidade e difusão de sua cultura.
79
Il. 25 A
Il. 25 B
80
3.1.2 Quem são eles - Os Personagens do Cortejo
Apresentaremos neste item os personagens que encontramos nas festas de Nossa
Senhora do Rosário. Os negros Arturos transformam-se em “Filhos do Rosário” para a
celebração do ritual festivo, devidamente paramentados e com ações litúrgicas
determinadas, marcando um jogo de identidades entre o Arturo cotidiano, imerso na vida
comum da cidade, e o Arturo congadeiro, imbuído de poderes e saberes religiosos.
Utilizo aqui a noção de sujeito sociológico:
[...] a identidade é formada na “interaçãoentre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um
núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo
contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem.
(HALL, 2003, p.11).
A identidade do Arturos é marcada pela ligação ao pai Arthur Camilo Silvério, do
qual herdaram o primeiro nome. Ser “arturo”, é ser descendente de Arthur, viver no
território que primeiro foi pisado por ele e aprender aquilo que o pai ensinou. Hoje, Arturo
é também todo aquele que participa das atividades religiosas do grupo, amigos, vizinhos,
que integram a grande família, devotos de Nossa Senhora do Rosário, companheiros nas
lutas diárias e nas celebrações.
Como negros, trazem consigo a história dos africanos escravizados. Ao relembrar,
nas festas, os momentos vividos pelos escravos, retraçam a trajetória de seus ancestres,
rememorando e recriando a vida dos negros no Brasil. Assim, no papel de propagadores da
história, os Arturos se identificam profundamente com aqueles que viveram o tempo da
escravidão, confundindo passado e presente: “No tempo dos antigo, da escravidão, nós
tinha que usá uns chucaio nas perna, pra num fugi. Purque se fugisse, baruiava os
chucaio e os feitô pegava nós. E ia prum tal de tronco apanhá.” (Mário Braz da Luz,
capitão de Congo in GOMES E PEREIRA, 2000, p.419, grifo nosso). Essa identificação
mostra como a vivência dos antigos determinou e determina a formação da identidade dos
negros, impossível de ser desvinculada do sofrimento e da luta pela liberdade, ao mesmo
tempo em que os projeta a uma construção identitária de maior autonomia, compromisso e
valorização da cultura herdada.
Portadores de uma tradição cultural, não estão, entretanto, alheios às alterações da
sociedade à sua volta. As influências externas vão desde as relações trabalhistas até aos
novos costumes, aos quais aderem, principalmente, os mais jovens devido à influência da
81
mídia e de novas tecnologias. Essa dinâmica social põe em foco a dicotomia
tradicional/moderno presente no dia-a-dia das sociedades tradicionais, quando o presente
se insere e passa a modificar, mesmo que de forma lenta e sob certa vigilância, a tradição
transmitida há anos.
nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm
e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço,
inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e
futuro, os quais, por sua vez, são estruturados por práticas sociais recorrentes. (GIDDENS apud
HALL, 2003, p.15).
E dentro desse jogo, destaca-se o Arturo congadeiro, Filho do Rosário de Maria, ator
principal do espetáculo que presenciamos. Os personagens que encontramos nos festejos
são os negros Arturos, gente simples, trabalhadora, que no seu dia-a-dia são invisíveis aos
olhos do homem cotidiano, urbano, moderno. o trabalhadores das indústrias da cidade,
donas de casa, estudantes, que se transformam simbolicamente em reis e rainhas, capitães
e dançantes. O Arturo congadeiro, festivo, é filho da África, de sua cultura e sua energia, é
o homo festivus, que se entrega ao louvor, ao ritmo e à fantasia. (GOMES & PEREIRA,
2000, p.39).
Durante a Festa de Nossa Senhora do Rosário apresenta-se o elenco ritualístico
formado principalmente por dois núcleos: a Corte e as Guardas de Congo e Moçambique.
Presentes tanto na festa da Abolição quanto na do Rosário, são os principais personagens
atuantes nos festejos. Apresentaremos a seguir cada um desses núcleos, destacando a
estética que eles conferem à celebração, através de seus trajes e de suas atuações/ações
rituais.
Reis Negros
Desde o princípio, os festejos do Congado estiveram relacionados à eleição de reis e
rainhas, representantes de uma liderança simbólica que ligava os negros ao seu passado
histórico. O rei e a rainha representam as nações africanas, mais especificamente o Reino
do Congo, e se destacam dentro da cerimônia pelo poder religioso que lhes é conferido.
Este ritual de coroação, utilizado pelos senhores e pela Igreja para o controle dos africanos
e seus descendentes, foi apropriado pelos negros como forma de reterritorialização de
formas ancestrais de organização social e ritual (MARTINS, 1997). O poder de reis e
82
autoridades africanas se perderam com a diáspora e a escravidão, porém, representá-las
aqui era uma forma de resgatar a história que fora destruída e fazer permanecer a realeza
das autoridades negras, mesmo que submissas à Igreja e dentro de uma forma ritualística
transformada.
nos primeiros relatos sobre o Congado no Brasil, a coroação se mostrou como
momento de grandiosidade que envolvia um número elevado de participantes e
determinava uma alteração da ordem cotidiana. A importância da corte era expressa pela
riqueza de seus trajes e pelo poder dado a esta sobre os demais, mesmo que um poder
simbólico e dramatizado que se estendia para além dos dias de festa, através do respeito
devotado aos reis e rainhas eleitos. Após a coroação, seguiam-se dias de comemoração
com batuques, banquetes e cortejos pela cidade, estrutura mantida até os dias de hoje.
Lembramos que o nome “Reinado”, também usado para denominar as festas do Congado,
determina o festejo em que acontece a coroação, ou seja, o Congado sem a corte não é um
Reinado.
Na Comunidade dos Arturos, a corte está sempre presente, formada por alguns
casais. A Coroa, como também pode ser chamada, é o signo maior de sacralidade, pois
simboliza o poder de Nossa Senhora. Segue protegida durante todo o cortejo, sendo a
guarda de Moçambique responsável por sua proteção. A corte negra dos Arturos é
formada pelos seguintes elementos: Rei Congo e Rainha Conga, autoridades supremas;
Reis festeiros, que são trocados a cada ano, responsáveis por financiar as despesas da festa
e normalmente o fazem para cumprir uma promessa - daí também serem chamados Reis
de Promessa; Reis Perpétuos, escolhidos de acordo com a sua devoção e seu procedimento
dentro do Congado; os Reis de 13 de Maio, representados na festa da Abolição, quando
também integra a corte uma mulher branca representando a Princesa Isabel.
Os reis apresentam-se devidamente caracterizados, trazendo as insígnias reais:
coroas, cetros, capas. Vestem-se com uma “luxuosidade simples”. Seus trajes mostram a
influência da cultura européia e predominam as cores rosa e azul, primordiais na estrutura
mítica e estética do Congado dos Arturos. São sempre acompanhados e protegidos pelos
capitães, que trazem empunhadas suas espadas e bastões, seguindo ao final do cortejo.
83
Il. 26- Corte
Il. 27- Princesa Isabel
84
A importância da coroação dos reis negros está ligada à reafirmação de uma
identidade negra, ao mesmo tempo que representa um ponto de contato entre o catolicismo
europeu e o africano.
A eleição de reis negros, que ajudou a estruturação das comunidades negras e a sua inserção na
América portuguesa, tornou-se espaço de constituição de uma identidade que congregava as
diferentes etnias africanas, tendo como fio condutor a conversão ao cristianismo e o papel que
o reino do Congo ocupou tanto na história da África Centro- Ocidental, como nas relações
desta com Portugal. [...] essa identidade católica negra [...] integrava elementos das culturas em
contato criando um produto cultural novo. (SOUZA, 2002, p. 297).
Dizemos então, que a Coroa possui fundamental valor religioso dentro do sistema
festivo por guardar o sagrado, sendo a representante de Nossa Senhora na terra e digna
de respeito por sua divindade. Possui valor histórico, por relembrar a coroação dos reis
africanos e sua conversão ao catolicismo europeu, sendo as relações com a corte
portuguesa também simbolizadas em tal representação, trazendo o passado recontado. E,
por fim, o valor político, que se deu principalmente no período escravista, quando os reis
eram eleitos dentro de um contexto de dominação por parte dos senhores e da Igreja
católica e eram autoridades de influência entre os grupos de negros. A subordinação das
pessoas à corte negra facilitava o controle por parte dos brancos.
E não podemos deixar de mencionar que a coroação de reis mostra uma forma de
resistência do negro brasileiro, subalterno e discriminado, que soube transformar as
mazelas em alegria e esperança através de sua e de suas festas. E parafraseando o
fotógrafo Valter Firmo, o homem e uma coroa de lata e se torna rei por um dia”.
Assim se fez a história da religiosidade popular no Brasil e assim se preservou o passado
e a memória de nossos ancestrais. Através da oralidade e das representações simbólicas,
o negro acreditou e depositou na tradição suas energias, mantendo sua força renovada
para não deixar cair a coroa do Rosário, que guarda os fundamentos e os segredos de
nossas raízes e mantém unidos os herdeiros da fé no Reinado de Nossa Senhora.
Congo e Moçambique: O povo que dança
O Congado dos Arturos apresenta dois grupos de dançantes: uma guarda de Congo e
uma de Moçambique, que se destacam por trazerem um conjunto maior de signos. Desde
seu vestuário colorido e atrativo aos mistérios que guardam seus Capitães, todos seus
85
elementos se relacionam ao contexto mítico- religioso. São os responsáveis pelo
movimento e pela beleza da festa, com suas músicas, toques de tambores e danças rituais.
O Congo, que no mito fundador foi o primeiro a tocar para a santa sobre as águas,
apresenta-se de farda branca (calça e camisa social), saiote rosa, capacete de arcos com
flores e fitas coloridas. A cor rosa simboliza as flores que enfeitavam o caminho por onde
levaram a Senhora de Rosário. Formado principalmente por mulheres e crianças, é o
responsável por abrir os caminhos, seguindo à frente do cortejo. Como diz Bengala,
Capitão do Congo, este é quem faz a festa da celebração, ele enfeita, põe flor, balanceia,
faz brincadeiras, vai e volta, abre alas, é o enfeite da festa. O capacete serve para dar esse
movimento, é alegre, voa com suas fitas coloridas, se espalha com o vento. Os homens
usam um gorro branco e rosa no lugar do capacete.
Suas músicas, cantos e danças são mais animados, o Congo passa “varrendo” o
caminho pra o Moçambique passar com a Coroa, deixa o caminho puro e enfeitado. A
dança é alegre, aberta, com movimentos de vai-e-vem, saltos e muito giros. Os dançantes
organizam-se em duas filas paralelas, com passos bem marcados que desenham pelas ruas
formas variadas em seu constante ir e vir. O Capitão traz uma espada, símbolo de
proteção, ou um tamborim– pequeno instrumento em forma quadrangular.
O Moçambique, que no mito era formado pelos pretos velhos, é responsável por
guardar a Coroa. Segue à frente da Corte, usando também farda branca, saiote azul,
turbante da mesma cor na cabeça e gungas (pequenos chocalhos) nos tornozelos. Formado
principalmente por homens, é quem faz a fé e marca a tradição, é o guardião dos mistérios.
O turbante simboliza o respeito à fé, ao trono coroado e faz referência às religiões em que
se costuma cobrir a cabeça como sinal de respeito, segundo Zé Bengala.
86
Il. 28- Fardas do Congo
87
Il. 29- Capitão do Congo
88
Il. 30- Fardas do Moçambique
A dança do moçambiqueiro é mais lenta, mais pesada e profunda, com passos que
simbolizam o contato com a terra e as raízes, onde nunca se tiram os pés do chão. As
gungas conferem movimento e sonoridade especial à dança, uma vez que os pés também
tocam, quando o ritmo marcado do forte bater com os pés no chão criam a musicalidade
com os chocalhos que vibram nos tornozelos. Como é responsável pelo trono coroado, sua
dança traz mais sentimento, é mais intensa, caracterizada pelo corpo reclinado em direção
ao solo e movimentos verticais. Seu Capitão carrega um bastão, símbolo de poder e de
contato com o sagrado.
89
Il. 31- Capitão do Moçambique
Cada guarda possui também seu grupo de tocadores com tambores, gungas,
patangomes e demais instrumentos. Normalmente os tambores seguem à frente dos
dançantes, ditando o ritmo a ser dançado. Considerando a importância do tambor dentro
dos sistemas religiosos afro-brasileiros, os caixeiros precisam de uma preparação especial
para aprender a “pôr sentido” tocando. O tambor é um instrumento sagrado, responsável
pela comunicação com o divino, daí a responsabilidade daquele que o toca, que torna-se,
também, ponto de contato entre o homem e a divindade. Cada guarda traz em torno de
três a cinco caixeiros, e estes passam por treinamentos constantes para assumir a função
dentro do Reinado.
Personagem de destaque nas guardas são os Capitães, que comandam seus grupos de
caixeiros e dançantes, puxando os cantos, ditando os ritmos e movimentos, conduzindo o
caminho dos cortejos. Assim como os músicos, o Capitão também passa por um longo
processo de aprendizagem, que exige dedicação, disciplina e respeito aos fundamentos,
pois sua função é comandar, dirigir seu grupo, corrigir, proteger, comunicar, fazer a
ligação com o sagrado. Segundo Leda Martins,
90
Receber o bastão de comando de uma guarda significa o reconhecimento de um poder e de um
saber, no universo do sagrado, que instituem ascendência, autoridade e, acima de tudo,
responsabilidade. Símbolo maior de sua função e posição hierárquica, o bastão, do capitão de
Moçambique, e o tamborim, do capitão do Congo, são metonímias do poder divino delegado a
um regente de guarda. (MARTINS, 1997, p.102).
Durante os cortejos, os capitães brincam entre si, o bastão troca de mãos sendo que
aquele que o segura é o comandante no momento, conduzindo os cantos e danças. É
necessário ter conhecimento sobre a estrutura ritual e estar atento, pois cada situação exige
um canto diferente, com procedimento, ritmo e movimentos adequados. Perceber e
conduzir bem tais procedimentos é de responsabilidade dos capitães. A figura simbólica da
capitania, juntamente com a corte, traduz parte da herança européia presente no Congado,
sendo um dos símbolos reapropriados e adaptados ao contexto festivo, ao lado de signos
da cultura africana. A imagem do capitão remete à figura do marinheiro (algumas cidades
inclusive, possuem guardas com o nome de Marinheiros ou Marujos), e leva mais uma vez
à constante presença do mar no mito inicial e na própria história do Reinado, ligada à
chegada dos europeus, pelo mar, em terras africanas.
Além dos personagens citados, outra figura que aparece é a bandeireira, que segue à
frente empunhando o estandarte com o nome da guarda e a imagem do santo de devoção,
símbolo também de poder e sacralidade. Papel de extrema responsabilidade, pois a
bandeira abre a passagem, apresenta o grupo, é respeitada e venerada pelos fiéis que a
beijam e se curvam diante dela. A bandeira faz do corpo de quem a carrega um verdadeiro
altar, também canal de ligação com a divindade e centro canalizador das forças religiosas
que se crê estarem contidas na imagem santa.
91
Il. 32- Bandeireira
Referindo-se às funções de cada grupo na estrutura ritual, Bengala diz que “o
Candombe representa as raízes, os ancestrais; o Moçambique é o tronco e o Congo está
espalhado pelos galhos, movendo para onde o vento levar.”. Essa definição liga-se ao
mito inicial, e explica os signos que cada guarda apresenta. De fato, é nos grupos de
dançantes que se concretizam, esteticamente, as diversas influências culturais e também as
transformações que a festa tem sofrido ao longo do tempo. A modernização das roupas e
acessórios e a uniformização são algumas dessas mudanças. A mutabilidade dos elementos
estéticos, mesmo que se ao longo de alguns anos, sinaliza a transformação dos aparatos
simbólicos e/ou as ações externas que atuam sobre o Reinado. Mudam-se as formas, os
tecidos das roupas e adereços, mudam-se os instrumentos musicais. Entretanto, os
fundamentos principais que se encontram na base da estrutura ritual permanecem. Assim,
mesmo mudando-se o material, o sentido permanece em cada signo, guardando a mesma
sacralidade e o mesmo valor ritual.
Outro fator de extrema importância ligado às guardas é a corporalidade que
apresentam em suas danças. O corpo negro se destaca, paramentado, consagrado, entregue
e energizado para cumprir os deveres sagrados. Esse corpo, que salta, gira, se curva,
ajoelha, que toca o tambor, é o corpo africano reterritorializado, portador das matrizes
92
culturais negras em seu cantar-dançar-batucar. Este é o corpo do Arturo congadeiro,
reduto de fé, sobre o qual falaremos mais adiante.
Quem faz, quem vê: os outros personagens
Além da corte e das guardas, a festa do Rosário nos apresenta outros personagens
sem os quais o evento não se concretizaria. Entre eles estão as guardas convidadas, que
vêm de outros bairros e outras cidades e, em retribuição, os Arturos participam de suas
festas. A multiplicidade do Congado se percebe através desses diferentes grupos, guardas
de congo, moçambique, caboclos, catopés, entre outras. Cada uma com sua
particularidade, suas roupas coloridas, instrumentos variados e diversidade musical e
coreográfica, marcas das influências regionais.
Escondida durante todo o tempo, a equipe de cozinheiras também exerce papel
fundamental para o festejo. Nos dias de festa, as cozinhas da Casa Paterna e da casa do
capitão rio são tomadas por um grupo de mulheres e alguns jovens que passam horas
ali, preparando as refeições. Para o café da manhã, que também é servido ao final da noite,
bolinhos, pães, biscoitos, rosquinhas, iguarias que compõem a culinária tradicional da
família são preparadas para servir àqueles que chegam, junto com o café fresco e chá. O
trabalho intenso é seguido por muita conversa e diversão, fazendo da cozinha uma atração
à parte. No último dia de festa, depois de terminado o trabalho, o grupo se une ao Congo e
Moçambique, na última procissão até a Igreja do Rosário, cantando e dançando, fazendo
festa, adorando e agradecendo, unindo forças para a despedida do tempo festivo.
Por fim, temos o “pessoal de apoio”, que acompanha os cortejos, servindo água,
levando e buscando o que for necessário, resolvendo todo tipo de problema; funcionários
dos órgãos públicos, que se encarregam de receber e cadastrar estudantes, fotógrafos e
pesquisadores que chegam a todo momento, acompanham e registram toda a festa; guardas
de trânsito que possibilitam a segurança durante as procissões pelas ruas e, claro, o povo
contagense, moradores da cidade ou visitantes que acompanham, juntam-se à comunidade,
fazem-se integrantes do grande colar de contas que é este rosário de Maria.
93
Il. 33- Cozinheiras
94
3.1.3 O que fazem - As ações rituais
Faremos agora uma narrativa das ações rituais observadas durante a festa do Rosário,
a fim de apresentar sua estrutura. Participando das festas em dois anos consecutivos,
percebemos que seguem um mesmo roteiro estabelecido pela tradição, e este é
apresentado no cartaz da programação divulgado pela cidade. As particularidades ficam a
cargo da espontaneidade e do caráter efêmero das cerimônias, que muito têm de
espetacular. A cada ano a festa apresenta nuanças visíveis a quem as acompanha algum
tempo e observa atentamente os detalhes de seus signos. Porém, uma base ritual e uma
seqüência de ações que estão internalizadas e formam o conjunto a que chamamos Festa
do Rosário. Esta será agora apresentada.
As ações são executadas durante três dias principais, quando o tempo cotidiano é
alterado e os participantes se inserem em uma dimensão dominada pelo sagrado. A forma
negra de festejar encontra-se em destaque e os atos litúrgicos estão relacionados à
multidimensionalidade da performance africana (FRIGERIO, 2003), influência maior na
religiosidade popular afro-brasileira, fortemente marcada pela presença da música e da
dança. Batuque-dança-canto (LIGIERO, 2003) é o elemento festivo que traduz a herança
africana dentro deste rito que une princípios católicos às nossas matrizes negras.
Acerca dos rituais, Da Mata diz:
os rituais servem, sobretudo na sociedade complexa, para promover a identidade social e
construir seu caráter. É como se o domínio do ritual fosse uma região privilegiada para se
entrar no coração cultural de uma sociedade, na sua ideologia dominante e no seu sistema de
valores [...] o ritual é um dos elementos mais importantes não para transmitir e reproduzir
valores, mas como instrumento de parto e acabamento desses valores, do que é prova a
tremenda associação [...] entre ritual e poder. (DA MATA, 1983, p. 24-25).
Partindo de tal idéia, dizemos que as ações transcorridas nos festejos possuem certa
importância para a sociedade em questão, pois consistem em maneiras de transmissão e
reprodução de valores, reafirmação de identidades sociais e rememoração da história
coletiva. São formas de pertencimento a um determinado grupo utilizadas pelo indivíduo
para se inserir e reconhecer caracteres que o tornam membro daquele círculo social
responsável pela manutenção das próprias tradições. Assim chegamos ao conceito de rito
95
como fato social, necessário ao indivíduo para reavivar suas crenças e renovar a unidade
coletiva.
Mas dizer que o rito é observado porque procede dos antepassados é reconhecer que sua
autoridade se confunde com a autoridade da tradição, coisa social em primeiro lugar.
Celebram-no para permanecerem fiéis ao passado, para preservarem a fisionomia moral da
coletividade, e não por causa dos efeitos físicos que ele pode produzir. (DURKHEIM, 2003, p.
404).
Encontramos, pois, na festa do Rosário dos Arturos aspectos reais de um fato social,
quando ritos tomam forma para que a herança não se perca. As ações litúrgicas, as
procissões, a missa, os cantos e danças são permanências de uma tradição antiga que os
Arturos preocupam-se em não deixar morrer. Assim, os rituais observados durante o
tempo festivo são, além de suas funções religiosas de ligar o homem a suas crenças,
formas de resistência, continuidade e fidelidade a um passado histórico.
A festa tem início no sábado com a concentração no centro da comunidade. Durante
a semana anterior, uma novena reúne os filhos do Rosário em orações. Também a
preparação é um acontecimento que envolve todas as famílias, adultos, jovens e crianças,
para enfeitar os espaços internos e as casas. Em 2008, por causa de uma chuva de granizo
que atingiu a cidade duas semanas antes dos festejos, houve também uma grande
mobilização para recuperar telhas e casas destruídas.
Após a concentração no centro e na Capelinha, no início da noite, as guardas de
Congo e Moçambique partem em procissão até a Igreja do Rosário, onde uma missa é
celebrada, abrindo oficialmente a festa. Depois da celebração, acontece o levantamento
dos mastros nos lugares sagrados. São erguidos os estandartes em frente à própria Igreja
do Rosário e no Cruzeiro da Casa de Cultura “Nair Mendes Moreira”; em seguida,
caminham de volta à comunidade, onde novos mastros são postos nos locais sacralizados:
nas casas dos capitães e no centro, em frente à Capelinha. O levantamento dos estandartes
marca o início festivo, quando céu e terra se unem, o divino e o humano ligam-se através
do objeto que centraliza a energia da festa. As pessoas passam pelos mastros tocando-os,
circulando em sua volta os bastões e terços, colocando velas a seus pés, fazendo-lhe
reverência, encostando-lhe a testa. Ali é o local sagrado e tocá-lo é uma forma de sagrar-se
e energizar-se para os dias que se seguem. Esse processo dura algumas horas, terminando
por volta da meia-noite, quando um café é servido na Casa Paterna, antes dos participantes
seguirem para suas casas.
96
O domingo começa às quatro horas da manhã, quando os foguetes anunciam o início
da Matina e a “Dança que Chama o Sol”. Saindo do terreno, entre a escuridão e o silêncio
da cidade que ainda adormece, um grupo de aproximadamente 50 pessoas segue até a
Igreja do Rosário, sempre cantando e tocando. o, em sua maioria, integrantes da guarda
de Moçambique. chegando, fazem suas orações entre cantos e sons dos tambores.
Voltam para a comunidade quando o sol, despontando entre as montanhas, oferece a todos
um belo cenário, derramando sua luz dourada sobre os filhos de Arthur. As casas dos
capitães são visitadas e, aos poucos, as pessoas chegam vestidas para o novo dia de
festa. A Matina termina quando o dia está claro e o café da manhã está pronto para os
que estavam em oração e para os que acabam de chegar.
Concentram-se novamente no centro da comunidade as guardas de Congo e
Moçambique, já fardadas, e seguem até a Igreja do Rosário, onde são recebidas as guardas
convidadas. No encontro, muita música, dança, cores e alegria. Tem início, então, a Missa
Conga, com a participação de todos os congadeiros, além de rias pessoas da cidade e
turistas que vêm especialmente para o evento. A missa segue o ritual tipicamente católico,
mas com as músicas tocadas e cantadas pelas guardas. Em seguida, novo cortejo até a
Comunidade do Arturos, onde o almoço já espera para ser servido.
Enquanto algumas guardas almoçam, outras dividem-se pelo terreno, passando pelas
casas onde se encontram os mastros e pela Capelinha, sempre cantando, dançando,
louvando a Senhora do Rosário, celebrando a vida e os ancestrais. Os sons nunca cessam,
os tambores nunca se calam, até que todos tenham se alimentado. O almoço também é o
momento em que podem descansar um pouco, conversar com os visitantes, brincar e trocar
informações. Várias pessoas de fora se espalham pelo centro, onde algumas barracas são
montadas vendendo comidas, bebidas e artesanatos, criando um clima de diversão e
marcando o encontro entre profano e sagrado num mesmo tempo e lugar.
O pagamento de promessas acontece após o almoço. O penitente recebe uma coroa e
uma capa e, acompanhado pelas guardas dos Arturos, voltas em torno da Capelinha de
acordo com a promessa feita. A coletividade marca esse rito, segundo GOMES E
PEREIRA:
A promessa de um se torna compromisso de todos: a penitência é coletiva e se o agrupamento
não realizar o prometido pelo penitente o castigo recai sobre todos os membros da
Comunidade. Os Arturos são os guardiões da promessa: cônscios de uma culpa do homem em
relação à divindade, sabem da tristeza do erro e acreditam no sacrifício para o resgate.
(GOMES E PEREIRA, 2000, p.233).
97
Terminado o ritual das promessas, outro cortejo até a igreja, durante um belo por-do-
sol, onde se despedem dos convidados. Sempre cantando e dançando, retornam à
comunidade, terminando mais um dia de comemoração. O final acontece sempre dentro da
Capelinha, depois que a guarda de Congo, seguida pelo Moçambique, adentra o templo,
entoa seus cantos de agradecimento e despedida, ali deixando seus instrumentos e os
pedidos de força para o terceiro dia de festa.
No último dia, na segunda-feira, a manhã parece a de um domingo, tamanho silêncio
e tranqüilidade. Como a concentração acontece somente às 9 horas, há bastante tempo para
um café com conversas, fotos com as crianças, caminhadas pelo terreno. Aos poucos, as
pessoas vão chegando para a celebração eucarística marcada para as 11 horas. Esta
acontece na capela, dirigida pelo padre de Contagem que acompanha todo o evento. Uma
missa tradicional, com um coral formado por jovens arturos. Sente-se falta dos tambores e
cantos negros, ausentes nesta liturgia.
Começam os cantos e o bater dos tambores do Congo e Moçambique, levando os
participantes para o almoço. Neste dia, a refeição é seguida por um longo período de
oração, quando agradecem pela comida e pelo correr da festa. Lindas canções, momentos
de muita emoção dentro da Casa Paterna, o coração da coletividade dos negros herdeiros
de Arthur. Percebem-se, nesses instantes, a força da e devoção aos antepassados, a
gratidão para com Arthur e Carmelinda, moradores daquele espaço onde agora celebram
juntos. Alimentam-se e cantam. Depois que todos comeram e rezaram, os congadeiros
percorrem diversos pontos do terreno num incessante cantar e dançar, louvando a santa do
Rosário, pedindo-lhe proteção, brincando, relembrando a história dos negros que ali
pisaram, cantando as dores e os sofrimentos por que passaram os seus ancestres e
festejando a vida e a fé. Ao fim da tarde, seguem em procissão até a Igreja do Rosário.
São feitas orações e agradecimentos pela festa que se encerra.
Momento de forte emoção e despedidas, a descida dos mastros marca o ritual de
encerramento. Um ônibus leva a guarda de Moçambique até a Casa de Cultura para a
descida do madeiro erguido. Retornam à praça da Igreja e seguem num último cortejo
para a comunidade. A alegria e energia com as quais seguem o percurso chamam a
atenção. Parece que a festa está começando. Um momento único de força e magia que faz
sentir a emoção de ser um Arturo, Filho do Rosário, fiel às suas tradições e possuidor de
uma identidade marcante. Nesse clima de festa e despedida os demais mastros são
98
retirados, desligam-se o divino e o humano, corta-se a comunicação entre sagrado e
profano sem, entretanto, destruir os laços entre eles. A festa se aproxima do fim.
Il. 34- Momento de oração após a refeição
Dentro da Capelinha, um dos momentos mais importantes: a coroação
12
dos novos
reis festeiros. Em uma demorada cerimônia, os reis do ano entregam a coroa e a capa,
ajoelhados perante o altar. Os novos reis ajoelham-se e recebem, então, as insígnias reais.
Todo o ritual de retirada e entrega da coroa é feito com cantos dos capitães, sendo um
canto para cada momento: a retirada das coroas, das capas, a bênção aos novos reis, a
entrega das insígnias, etc. Para cada ação, uma canção diferente entoada por um capitão,
12
O ritual de coroação não acontece todo ano. Em 2007 foi observada a troca de reis festeiros, porém, em
2008 não aconteceu a coroação, sendo marcada para a festa de 13 de maio de 2009. Os reis do ano são os
responsáveis pelo financiamento da festa no período em que estão com a coroa e, por isso, a troca precisa ser
feita antes do evento do mês de outubro.
99
que impõe o bastão sobre os fiéis ajoelhados. Ao final, os reis coroados recebem as
bênçãos e preparam-se para a despedida.
No pequeno santuário, envolvido pela fumaça de incenso e pelo bater incessante dos
tambores, o clima é de intensa oração quando, já cansados de tanto caminhar, dançar e
cantar, os negros encerram suas festividades. O cansaço é visível no olhar dos
congadeiros, mas não impede que cantem e dancem com mais força e vigor, como se
quisessem jogar ali as últimas gotas de energia que ainda lhe restam. O rei festeiro do ano
fala algumas palavras de agradecimento, seguido por Bengala, capitão do Congo e
presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Contagem, que, entre lágrimas,
agradece pela ajuda de todos e pede, enternecido, que não o deixem sozinho na luta pela
continuação do Reinado. Entre palmas, cantos e batuques, a festa chega ao fim.
Candombe: uma tradição ameaçada
O ritual do Candombe
13
é uma cerimônia fechada que acontece na sexta-feira
anterior à Festa de Nossa Senhora do Rosário, na comunidade dos Arturos. Cercado de
segredos e mitos, o rito ainda não foi amplamente analisado e registros de sua
ocorrência em algumas regiões de Minas Gerais. A origem mítica é a mesma que
fundamenta os festejos do Congado, estando a lenda da retirada da santa das águas
presente também na sua simbologia.
Na comunidade, o Candombe era restrito aos participantes, sendo proibido o registro
por visitantes ou outras pessoas de fora. Entretanto, como tende a perder-se no tempo, a
cerimônia de 2008 foi registrada em vídeo, para que os próprios membros da família
possam manter na memória a sua estrutura. Assistimos ao ritual deste ano e a partir da
observação algumas inferências podem ser feitas, lembrando que pouco se conhece dos
fundamentos e mistérios que são cuidadosamente guardados pelos mais velhos.
A cerimônia é composta pelos três tambores sagrados – Santana, Santaninha e
Jeremias e diante deles diversos pontos são cantados e uma dança é executada pelo
cantador. Os cantos são acompanhados por um coro formado pelos participantes e
apresentam os mais variados temas. Percebe-se uma linguagem simbólica que remete ao
tempo da escravidão, às atividades e à vida dos negros, às relações com os brancos e
mesmo ao próprio ritual. São feitas brincadeira (bizarrias) e desafios, num modelo desafio-
13
Sobre o Candombe em Minas Gerais, ver PEREIRA, Edimilson. Os tambores estão frios. Herança
cultural e sincretismo religioso no ritual do Candombe. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2005
100
resposta dada pelo próximo cantador, que se apresenta aos tambores e faz sua
participação.
A dança executada é marcada pelo balançar dos ombros com o tronco curvado em
direção ao solo. Essa referência à ancestralidade está em todo o ritual, que é um dos
momentos mais importantes de encontro e devoção aos antepassados. Quando vem o
Candombe, tudo muda. Ali é o fundamento, ali você tem condições de ter concentração
para pedir as coisas. E o que é pedido no Candombe, normalmente é atendido. você
firma a corrente, pede a força e a harmonia pra festa.”. (Maria Lúcia da Silva, Rainha
Conga in LUCAS, 2006, p.44).
A preocupação com a continuidade do costume é perceptível na atitude dos mestres,
que chamam os jovens para entrarem no jogo sem medo, para garantir a resistência da
tradição. Os cantos mostram essa relação entre pais e filhos, mestres e jovens
candombeiros, como ilustram estes pontos:
Filho de pombo
Aprende a voar
Filho de pombo
Aprende a voar...
Ê vovô,
Me ensina eu rezar
Ê vovô
Me ensina eu rezar...
Ô menino,
Toma benção sua pai
Ô menino
Toma benção sua pai
Ainda é tímida a participação dos jovens no Candombe mas, mesmo com poucos, o
ritual se perpetua e integra o grande sistema religioso que constitui o Reinado de Nossa
Senhora. Instante fundamental no processo ritualístico em questão, o Candombe
continuará fazendo falar os tambores sagrados, levando os pedidos aos ancestrais e
cantando a vida e a dos negros candombeiros. E como disse Antônio Maria da Silva,
Capitão Regente, ao chamar para a participação, o Candombe é dos negros e por eles
precisa ser mantido: “Não precisa ter receio, não precisa ter medo. É coisa nossa.”.
Põe o pé no caminho
Candombeiro
Põe o pé no caminho
Candombeiro (Canto do Candombe)
101
IV
RELIGIÃO E ESTÉTICA:
A ARTE COMO COMUNICAÇÃO
102
A Festa do Rosário, como todos os fenômenos religiosos, possui uma dimensão
estética inerente ao ritual, através da qual são identificados os símbolos sagrados adorados
que ligam os fiéis às suas crenças. A concretização e materialização dos mitos ocorrem
através de diversos elementos utilizados durante cerimônias ou mesmo fora delas, e estes
não estão isentos de valores estéticos e artísticos. Para compreender esse processo,
utilizamos a idéia de Mauss (1967), ao dizer que os fenômenos estéticos são inerentes à
vida social e que a estética contribui de forma significativa para a eficácia religiosa. Sendo
o objeto estético algo que pode ser contemplado, pode-se encontrar em cada objeto ou
atividade (aqui referindo-se a jogos, danças, etc.) um valor estético.
Pensando a origem comum da arte e da religião, a conexão entre fenômenos estéticos
e religiosos fica evidente, sendo que a arte, assim como a religião, é um retrato da
sociedade em que aparece. Indissociável do cotidiano nas sociedades tradicionais, a arte é
e sempre foi essencial nos processos de simbolização, adoração, confecção de materiais
litúrgicos, sendo canal de comunicação com o divino, instrumento auxiliar para tal contato
ou apenas como ornamento das peças usadas nas liturgias. E ainda segundo Mauss,
sempre um elemento de arte e um elemento técnico em todo objeto de culto e isso nos leva
a considerar que as imagens observadas durante os rituais têm outro caráter além do
utilitário. Elas são formas de expressão e comunicação, o que determina que a estética
esteja, portanto, diretamente ligada aos fenômenos sociais.
Émilie Durkheim (1996), ao tratar das religiões totêmicas, mostra a importância da
imagem dentro da estrutura dos cultos, conferindo valor sagrado aos objetos em que está
gravada. Ao falar do signo, mostra como é fundamental para a representação daquilo em
que se crê, idéia que não pode ser concretizada e compreendida facilmente:
[...] é uma lei conhecida que os sentimentos despertados em nós por uma coisa se transmitem
espontaneamente ao mbolo que a representa. [...] Essa transferência de sentimentos advém
simplesmente de que a idéia da coisa e a idéia de seu símbolo estão intimamente ligadas em
nossos espíritos; disso resulta que as emoções provocadas por uma se estendem
contagiosamente à outra. Mas esse contágio [...] é muito mais completo e marcante toda vez
que o símbolo é algo simples, definido, facilmente representável, ao passo que a coisa, por suas
dimensões, o número de suas partes e a complexidade de sua organização, é difícil de abarcar
pelo pensamento. Pois não poderíamos considerar numa entidade abstrata, que
representamos laboriosamente e com uma noção confusa, a origem dos sentimentos fortes que
experimentamos. Não podemos explicá-los a nós mesmos senão relacionando-os a um objeto
concreto cuja realidade sentimos vivamente. Portanto, se a própria coisa não preenche essa
condição não pode servir para nela fixarem-se as impressões experimentadas, embora tenha
sido ela que as provocou. É o signo então que toma seu lugar; é para ele que se voltam as
emoções que ela suscita. Ele é que é amado, temido, respeitado; a ele somos gratos, por ele nos
sacrificamos. (DURKHEIM, 1996, p. 227).
103
A partir de então, encontramos no signo a função de traduzir idéias, sentimentos,
crenças e mitos que os homens têm a necessidade de concretizar para formar seus sistemas
religiosos. Através dos símbolos, conhecemos parte da história e da religiosidade, pois
através deles são mantidos a memória e os valores do grupo em que se encontram. São os
objetos rituais, as danças, as indumentárias, os cantos e instrumentos musicais integrantes
desse acervo mágico-religioso, repleto de sentidos múltiplos e portadores de valores
estéticos, plásticos e artísticos.
Considerar as festas do Rosário como fenômenos estéticos é conferir-lhes o caráter
de arte, reconhecendo seu valor como uma ação simbólica (GEERTZ, 1994). Para decifrar
seus símbolos, faz-se necessário conhecer as estruturas sociais do grupo que as produzem
para então se chegar aos códigos de seus fenômenos estéticos. A semiótica deve ser uma
ciência social” (GEERTZ, 1994, p.144).
Uma infinidade de significados pode ser retirada do conjunto estético presente na
festa em questão. A arte feita pelo povo em louvor aos santos se transforma em um belo
espetáculo pelas ruas da cidade, transformada em palco para a celebração da fé.
Catolicismo e africanismo se encontram na diversidade das formas, cores e expressões
corporais e musicais que conferem identidade própria ao Congado do Arturos. E é neste
momento de comunicação que vemos a sua arte e criatividade no ato de adorar. Os festejos
fazem parte da vida da comunidade e seus símbolos não podem ser lidos distantes dela. É
necessário considerar o todo para que uma parte se revele.
La variedad de expresiones artísticas proviene de la variedad de concepciones que los hombres
tienem del modo en que son las cosas, pues se trata en efecto de una misma variedad.
Para lograr que la semiótica tenga un uso eficaz en el estudio del arte, debe renunciar a una
concepción de los signos como medios de comunicación, como un código que ha de ser
descifrado, para proponer una concepción de éstos como modos de pensamiento, como un
idioma que ha de ser interpretado. [...] necesitamos [...] una ciencia que pueda determinar el
significado de las cosas en razón de la vida que las rodea. (GEERTZ, 1994, p.146).
Parte do conjunto estético do Reinado fora apresentado, na descrição dos lugares,
personagens e ações rituais. Faremos agora uma exposição de outros elementos, tendo o
corpo negro congadeiro como eixo principal, local de inscrição da memória, de tradução
de saberes e de ostentação dos diversos signos religiosos essenciais ao sistema maior que
compreende o Congado. Desde a preparação do corpo com os adereços até sua
performance durante os festejos, tudo contribui para a eficácia religiosa do rito em
104
questão, ao mesmo tempo em que confere à festa beleza e uma estética particular, repleta
de códigos e símbolos de significados múltiplos.
4.1 O CORPO ADORNADO
Assim como no teatro, algumas cerimônias religiosas exigem vestes especiais, que
determinam ações, exigem respeito, transformam o indivíduo comum no personagem a ser
representado, seja ele sagrado ou profano, encarregado de funções predeterminadas pelo
sistema ritualístico. Essa vestimenta possui uma simbologia específica ligada aos demais
símbolos do evento e por isso, ao tentar decifrá-la, precisamos voltar nosso olhar para o
contexto maior que a envolve.
A necessidade de roupas especiais pode ser compreendida pelo fato de que o tempo
festivo, sagrado, leva o indivíduo a uma dimensão extra-cotidiana, diferente do tempo
comum em que suas ações são definidas pelo ordinário, pelo que é habitual em seu dia-a-
dia. Este tempo extraordinário exige atenção especial, entrega e disposição para a
execução dos ritos que se dispõem nessa dimensão espaço-temporal específica. É como se,
através do rito, o homem saísse do momento presente para adentrar alguma esfera de um
passado a ele transmitido, revivendo-o e preservando-o através das representações. Para
tal, é preciso vestir-se de forma adequada, caracterizar-se de acordo com a função, a
hierarquia ou até mesmo para a uniformização que confere ao grupo igualdade durante a
adoração.“O figurino é algo meio sagrado. É por isso que em certas cerimônias religiosas
existe uma roupa específica. É isso que diferencia, tira a pessoa de um contexto e a põe
em outro.” (Clara Carvalho in MUNIZ, 2004, p.42).
A começar pela Coroa, os trajes festivos remetem à riqueza e ostentação das cortes
européias, apesar da simplicidade dos modelos e tecidos utilizados. Predominam as cores
branco e azul, relativas a Nossa Senhora, e o vermelho, símbolo de poder. Os reis e
rainhas trazem as insígnias que lhes conferem autoridade e sacralidade: coroas, de variadas
formas e tamanhos; capas sobre o vestuário e cetros, alguns enfeitados com fitas e/ou
terços e rosários. A corte é acompanhada pela Guarda-Coroa, que usa fardas brancas e traz
espadas, ícones de proteção para a realeza.
105
Il. 35 A- Corte
Il. 35 B
Il. 35 C
106
Il. 36 A- Guarda- Coroa
Il. 36 B- Farda do Guarda- Coroa
107
As roupas usadas pelos dançantes no Congado dos Arturos são chamadas de fardas,
e são compostas por calça e camisa brancas e um saiote colorido (no segundo dia de festa
são usadas camisas da cor correspondente à guarda e saiotes brancos). Na comunidade, a
guarda de Congo usa saiote rosa e a de Moçambique, azul. As cores estão ligadas ao mito
original, portanto, o rosa também o verde é usado por grupos de diversas cidades
representa as flores do caminho por onde passou a santa ao sair das águas e o azul
simboliza o manto de Nossa Senhora. Como adereços, são usados capacetes formados por
arcos e fitas coloridas para as mulheres do Congo, enquanto os homens usam um gorro
branco e rosa. os moçambiqueiros usam um turbante azul ou branco na cabeça. Estes
elementos também carregam seus significados. O capacete com fitas confere maior
movimento, leveza e alegria à dança conga, contribuindo para a função do Congo de
enfeitar a festa, abrir os caminhos, embelezar a passagem para a Nossa Senhora. Também
pode ser enfeitado com flores artificiais de papel ou tecido, a critério do seu portador. Já o
turbante usado pelo Moçambique, responsável por guardar e proteger a coroa, remete ao
uso deste adereço em diversas religiões como sinal de respeito ao sagrado, segundo
Bengala, capitão da guarda de Congo. Com a origem exata desconhecida, o turbante é
usado em diversos países, com funções sociais e religiosas, e presume-se que seu uso era
comum no Oriente, antes mesmo dos mulçumanos. Estando seu uso nos congados ligado
ao islamismo (predominante em diversos países africanos), ou às influências de outras
culturas africanas, pode-se afirmar sua função religiosa e de afirmação da identidade negra
dentro dos Reinados.
Percebemos no vestuário dos congadeiros influências das culturas africana e
européia. O termo farda remete à linguagem militar, presente em diversos elementos do
Reinado, como os próprios membros da hierarquia apresentada Capitão Mor, Capitão
Regente, guardas visível herança dos europeus. E é nos adereços que as marcas afro-
brasileiras se destacam. O Moçambique usa nos tornozelos pequenos chocalhos, feito de
latinhas e sementes, chamados de gungas, tocados com os movimentos dos pés. Esses
instrumentos possuem uma sonoridade marcante, intensificada nos momentos de grande
entusiasmo durante os cortejos e danças. Símbolos de negritude e marca da presença
africana no Congado, as gungas são essenciais para a composição musical dos festejos.
No tempo dos antigo, da escravidão, nós tinha que usá uns chucaio nas perna, pra num fugi.
Purque se fugisse, baruiava os chucaio e os feitô pegava s. E ia prum tal de tronco apanhá.
Agora as gunga é por causa disso , pra num esquecê. Mas é um baruio santo, igual dos sinin da
igreja na hora de comungá. Por isso a gente pode batê caxa, nas igreja. É importante. (Mário
Braz da Luz, capitão de Congo apud GOMES E PEREIRA, 2000, p. 419).
108
Il. 37 A
Il. 37 B- Capacete
109
Il. 38 A
Il. 38 B- Turbantes
110
Il. 39 A
Il. 39 B
111
Além da farda, chamam nossa atenção os ornamentos que compõem a indumentária
festiva. São colares, brincos, rosários, lenços que embelezam e completam o sentido da
vestimenta. Segundo Mauss (1967), a noção de adorno está ligada à busca de uma beleza
artificial. Enfeitar-se para adorar é comum em diversas tradições, dados os sentidos sociais
e religiosos dos adornos corporais. Assim como se enfeitam as casas, a capela e as ruas, o
corpo é preparado para se apresentar diante dos deuses; a preocupação que envolve toda a
preparação é “agradar Nossa Senhora”, fazendo uma festa bonita, harmoniosa, agradável
aos olhos. Dessa forma, tudo concorre para a harmonia do festejo que será oferecido aos
deuses, santos e ancestrais.
Diversos objetos e recursos são utilizados para que o belo se faça presente na
adoração, e para tal, cada congadeiro se enfeita da melhor forma possível. Alguns usam
diversos colares e fios-de-contas no pescoço, unindo símbolos sagrados a simples enfeites
dos mais diversos materiais. De acordo com Bengala, os colares são os principais ícones
da negritude, fazendo a identificação com a cor da raça e determinando a principal herança
africana dentro do Reinado. Como antigamente os escravos não tinham jóias de ouro como
as de seus senhores, faziam as suas com sementes e outros materiais da natureza, costume
este ainda observado na estética afro-brasileira. Os adereços são escolhidos por cada
pessoa de acordo com critérios pessoais. Alguns novos objetos são adotados, como alguns
brincos e colares que trazem pequenos tambores, feitos às vésperas da festa por alguns
participantes. Outros são bijuterias usadas para completar o visual étnico, por alguns
considerado como “exótico”, que tanto contribui para o encanto do conjunto ritualístico.
Comum a todos os integrantes, o rosário de contas negras pode ser também
destacado como importante símbolo da união de diferentes religiosidades. Alguns autores
(TINHORÃO, 1988; GOMES E PEREIRA, 2000) consideram a ligação do rosário de
contas com o orixá Ifá, cujo culto relaciona-se às práticas divinatórias utilizando-se cocos-
de-dendê. Porém, a origem da devoção ao rosário encontra-se no catolicismo e foi
difundida nas regiões africanas colonizadas por Portugal e na América portuguesa.
Segundo Juliana Souza:
Foi, portanto, pela obra dos missionários que o culto se expandiu nas terras americanas e,
através do culto à Senhora do Rosário, os negros rearticularam suas crenças, reinterpretando os
rituais de devotamento ao rosário da Senhora. Os negros, segundo Megale (1998:431), usavam
o rosário pendurado no pescoço e, ao final do dia, reuniam-se em torno de um "tirador de reza"
e ouvia-se nas senzalas o sussurrar das ave-marias e pai-nossos. (SOUZA, 2001, s/ p.).
112
Considerado uma arma poderosa nas lutas espirituais, o colar de contas negras ou de
sementes de lágrimas- de- Nossa Senhora está na base sígnica do Reinado, convergindo os
poderes milagrosos da santa e as energias sagradas da devoção. Pode ser usado no
pescoço, à mostra ou por baixo da camisa, cruzado no peito ou até mesmo amarrado aos
bastões. O uso de colares na diagonal do tronco é comum em outras formas de
religiosidade, como no candomblé, onde simboliza que os ancestres descendentes resultam
da interação da direita e da esquerda, do masculino e do feminino e se referem ao passado
(atrás) e ao futuro (diante) (LODY, 2001).
Completando o vestuário religioso, um lenço de tecido colocado no pescoço que
desce sobre os ombros, semelhante à estola usada pelos padres católicos. Esse adereço é
usado pelos capitães, pelos moçambiqueiros e membros de destaque na hierarquia do
congado. Símbolo de poder e sacralidade, aparece muitas vezes bordado com motivos do
catolicismo. “É índice de comando, no vestuário, a toalha que cobre os ombros,
denotando a força do portador. No simbolismo do corpo, o ombro representa poder e
domínio: tocar o ombro é realçar a força do indivíduo; envolvê-lo com uma faixa é tornar
sagrada essa força.” (GOMES E PEREIRA, 2000, p. 420).
Santuário original, o corpo devidamente preparado, ornamentado, apresenta-se às
suas divindades portando os símbolos de devoção e os objetos sacros. O corpo negro,
tratado como coisa em sua história de escravidão e sofrimento, transforma-se agora em
símbolo sagrado, ao mesmo instante, oferenda e templo onde se inserem as insígnias da fé.
A beleza com que este corpo congadeiro se apresenta, paramentado e pronto para as
batalhas espirituais, institui uma grande parte do conjunto estético do Reinado. Neste
corpo estão unidos os diversos signos e seus múltiplos significados, que brindam nosso
olhar com um belo espetáculo formado em prol da e da permanência da memória dos
negros Arturos.
113
Il. 40- Colares
114
Il. 41- Brincos
115
Il. 42- Rosários de contas
116
Il. 43 A
Il. 43 B- Estolas
117
4.2 O CORPO QUE DANÇA
O corpo africano trazido para o Brasil trouxe suas vivências, práticas, costumes e
ritualizações constantemente coibidas pelo processo escravista e pelo tratamento recebido,
que o reduziu à condição de objeto. Tais experiências foram mantidas na memória dos
negros e, mesmo sob severas repressões, desenvolveram-se em formas de expressões
corporais, vocais, musicais, em ritos e mitos transmitidos oralmente e que formaram, ao
longo do tempo, o complexo sistema cultural afro-brasileiro.
Diversas culturas africanas, assim como os povos indígenas brasileiros, possuem
com o corpo uma relação de totalidade e comunhão com a natureza e as divindades. Canal
de comunicação, santuário em potencial, o corpo físico o é visto separado das forças
espirituais atuantes na vida comum. Nesse sentido, a dança - ou performances corporais
como um todo - sempre esteve presente e consolidou-se como forma primordial de
expressão e transmissão de conhecimentos, sentimentos, histórias, relações sociais e
religiosas.
As representações performáticas aparecem em dramas sociais, onde a coletividade
celebra seus santos e heróis, suas datas e festividades, seus ritos de passagem,
nascimentos, mortes ou até mesmo quando apenas se diverte. O corpo ocupa espaço
primordial nessas representações coletivas, uma vez que através dele se efetivam as
comunicações desejadas. Receptáculo e transmissor de energias, é dele que emanam as
vozes dos antepassados, com seus movimentos aprendidos pela observação e prática, no
cotidiano, nas brincadeiras e nos rituais. As crianças aprendem com os mais velhos a
corporeidade necessária aos ritos e a transmissão se faz ao longo dos anos, juntamente
com os outros conhecimentos necessários à prática litúrgica. A oralidade é a peça principal
deste processo.
Segundo Leda Martins,
A memória do conhecimento não se resguarda apenas nos lugares de memória (lieux de
mémoire), bibliotecas, museus, arquivos, monumentos oficiais, parques temáticos, etc., mas
constantemente se recria e se transmite pelos ambientes de memória (milieux de mémoire), ou
seja, pelos repertórios orais e corporais, gestos, hábitos, cujas técnicas e procedimentos de
transmissão são meios de criação, passagem, reprodução e de preservação dos saberes. As
performances rituais, cerimônias e festejos, por exemplo, são férteis ambientes de memória dos
vastos repertórios de reservas mnemônicas, ações cinéticas, padrões, técnicas e procedimentos
culturais residuais recriados, restituídos e expressos no e pelo corpo. (MARTINS, 2003, p. 69,
grifo nosso).
118
Sendo o corpo lugar essencial de memória, as performances afro-brasileiras que
ainda hoje se manifestam guardam conhecimentos que remetem à nossa herança africana,
como a corporalidade específica, com características particulares que são marcas do
legado negro. São danças, movimentações, performances musicais e vocais que se
multiplicam, recontando o passado histórico e permitindo a manutenção de costumes,
crenças e práticas. “Por via da performance corporal – movimentos, gestos, danças,
mímica, dramatizações, cerimônias de celebração, rituais, etc. a memória seletiva do
conhecimento prévio é instituída e mantida nos âmbitos social e cultural.”(MARTINS,
2003, p. 82). Assim, o corpo contribui para o processo de selecionar naturalmente, manter
e transmitir saberes àqueles que entram em contato com suas matrizes culturais.
A performance corporal exerce, dentro dos rituais, papel fundamental ao colocar o
indivíduo em contato com aquilo que de atemporal, transcendente a ele mesmo, com
suas ações pré-determinadas que ele deve realizar para alcançar objetivos também pré-
estabelecidos pelo sistema cultural e religioso em que se encontra. Marca de uma
identidade e uma tradição, a performance mostra capacidades, habilidades corporais e
vocais natas e/ou aprendidas com a vivência que devem ser reproduzidas para a
permanência e continuidade daquilo que pretende traduzir. Segundo Richard Schechner,
Performances afirmam identidade, curvam o tempo, remodelam e adornam corpos, contam
histórias. Performances artísticas, rituais ou cotidianas - são todas feitas de comportamentos
duplamente exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam
para desempenhar, que m que repetir e ensaiar. Está claro que fazer arte exige treino e
esforço consciente. Mas a vida cotidiana também envolve anos de treinamento e aprendizado
de parcelas específicas de comportamento e requer descoberta de como ajustar e exercer as
ações de uma vida em relação às circunstâncias pessoais e comunitárias. (SCHECHNER, 2003,
p. 27).
Sendo então comportamentos previamente exercidos, a performance corporal que
encontramos nos rituais do Congado é formada a partir de experiências e criações
anteriores, que o retomadas a cada evento e, mesmo que sejam re-presentações e
reformulações de práticas estabelecidas, possuem um caráter de espontaneidade e
originalidade. Marcada pela multidimensionalidade (FRIGERIO, 2003), a performance
negra possui traços que definem uma estética e linguagem próprias. As diversas dimensões
música, canto, dança, mese caracterizam a corporalidade afro-brasileira, que
destaca-se pela energia pulsante, pela sua espacialidade abrangente e ligada à
circularidade, o permanente contato com a terra e originalidade das execuções. O corpo
negro performático, devidamente adornado, reconta a história a partir de danças e cantos
119
em total comunhão com a natureza, com a terra e com as forças ancestrais que animam sua
vida.
A dança bailada pelos negros foi por muito tempo proibida e recriminada pelos
senhores e pela Igreja, durante a escravidão, por sua forte expressividade, sensualidade dos
movimentos, aspectos condenados pela religião e cultura européias. O pensamento
antigo cristão via o corpo como um empecilho para a salvação da alma, sendo que o
hedonismo e todo aspecto carnal das expressões pagãs era condenado pela Igreja, que via
nessas atitudes do instinto humano a causa da perdição da alma” (OTÁVIO, 2004, p.31).
Entretanto, as danças continuaram acontecendo, desdobrando-se nos inúmeros estilos
encontrados pelo país, cada um com sua especificidade determinada pelas outras
influências, mas com uma essência comum oriunda dos batuques negros.
A dança congadeira, assim como outras danças populares afro-brasileiras, apresenta
aspectos de uma corporeidade expressiva e cheia de especificidades. Caracteriza-se pelos
movimentos fortes, percussivos e ritmados, giros e saltos constantes, agilidade e fluidez
dos dançarinos. Há uma variedade enorme de passos encontrados nas guardas e cada
grupo possui seu traço original. Nos Arturos, no Congo e no Moçambique qualidades
de movimentos diferentes que os caracterizam, definindo a identidade do grupo dançante e
enfeitando o decorrer dos cortejos.
O Congo dança de forma leve, com movimentos amplos e abertos que desenham no
espaço linhas horizontais. São desenhos feitos pelo ir e vir dos dançarinos, da direita para
a esquerda e vice-versa, sempre em duas filas paralelas e com os capitães e capitãs ao
centro. Essas filas se cruzam, fazem evoluções coreográficas formando meia-lua ou ainda,
dando voltas ao longo de si mesmas, como num movimento de caracol. As trocas de lugar
entre as filas também acontecem, quando uma formação circular ocorre pelo encontro das
duas fileiras, com uma cortando por fora e a outro por dentro da roda.
A dança conga destaca-se pela agilidade e movimentos das pernas e pés. São giros e
saltos, batidas de pés ritmadas, pisadas que acompanham a música, estando a
movimentação concentrada nos membros inferiores. uma constante flexão dos joelhos,
que confere leveza e impulso aos passos. Os braços normalmente ficam soltos ao longo
do corpo acompanhando sua evolução com floreios e brincadeiras. Em determinados
passos, o corpo curva-se à frente com o tronco em direção ao solo, durante alguns giros,
por exemplo; porém, a postura principal observada é a verticalidade da coluna vertebral,
com o tronco erguido e os membros inferiores mais livres e ágeis.
120
Il. 44 A
Il. 44 B
121
Il. 44 C- Capitão do Congo dançando
Il. 44 D- Dança, Capitão do Congo
122
Os capitães performam no espaço delimitado pelos demais dançantes, com o
pandeiro, tamborim ou com sua espada, em evoluções personalizadas que mostram as
habilidades dos mestres que trazem no corpo uma história de muitos anos dentro do
Reinado, o que lhes confere maestria e liberdade ao coreografar seus passos. Alguns de
seus movimentos retomam o contato com o solo em curvaturas do tronco ou mesmo
quando os joelhos se dobram e a dança é feita no plano inferior. Os instrumentos
colaboram para a beleza de seus bailados, quando tocam, cantam e dançam
harmonicamente, comandando todo o grupo.
Seguindo o fundamento mítico, o Congo segue abrindo os caminhos para a Coroa
passar e seus passos cumprem tal função, ampliando a passagem, tirando os obstáculos,
cortando o que estiver à frente para que o cortejo avance. A alegria é contagiante, os giros,
enfeitados pelas fitas dos capacetes e pelo balançar dos saiotes, conferem beleza
espetacular à performance da guarda. A negritude transparece na energia com que dançam,
no vigor dos saltos e giros, no molejo e ginga presentes em todo o ato performático.
A dança da guarda de Moçambique, ao contrário do Congo, é densa e mais
concentrada. Os movimentos são mais contidos, com poucos deslocamentos laterais. O
moçambiqueiro performa quase sem sair do lugar, os passos vão e voltam em pequenos
espaços. O que personaliza essa dança é o uso das gungas nos tornozelos, chocalhos de
latinha e sementes que conferem um encanto especial ao Moçambique. Ao tocá-las, com
firmes batidas dos pés no chão, todo o vigor e expressividade vêm à tona ao som vibrante
que é produzido. Também são feitos passos de abrir e fechar os pés rapidamente, fazendo
as gungas ressoarem.
Os dançantes distribuem-se pelo espaço formando duas filas paralelas, mas em
muitos momentos formam um grupo homogêneo, espalhados à frente da corte que
protegem. A verticalidade é o principal aspecto na movimentação, sendo os passos
essencialmente de pisar o solo, remetendo ao contato com a terra e a ancestralidade. O
tronco se inclina constantemente, a coluna aparece curvada em direção ao solo. Como é
dança dos “pretos velhos”, essa posição remete ao mito original e à presença dos
ancestrais, cujo corpo curva-se para reverenciar, como um sinal de respeito e por
representar o corpo já cansado que se entrega à gravidade.
Os ombros do Moçambique apresentam-se soltos com deslocamentos alternados
entre direito e esquerdo, que são levemente lançados para baixo, quando o tronco se
encontra curvado. Essa ginga da cintura escapular envolve todo o torso do dançante, cuja
cabeça fica solta acompanhando levemente o balançar dos ombros. Os braços são soltos e
123
também seguem esta coreografia, conferindo a leveza e maleabilidade à performance. Esse
gingar dos moçambiqueiros, comum em outras religiões afro-brasileiras, traduz muito da
herança negra encontrada nos Congados. É um movimento que também caracteriza alguns
momentos de transe em diverso rituais, quando o corpo do dançarino está completamente
entregue às forças religiosas atuantes, estado este que pode ser induzido ou facilitado pelo
próprio dançar.
Constantes na dança moçambiqueira, os giros mostram a destreza e dinamismo dos
passos, que buscam manter pelo menos um dos pés no chão. O contato deve ser constante
e por isso a dança é mais lenta e os movimentos reduzidos. Segundo o mito, o
Moçambique foi quem tocou quando a santa saiu das águas, portanto, sua função é guiá-la,
protegendo e guardando-a. Dessa forma, a tarefa exercida nos cortejos é exatamente a de
seguir à frente do trono coroado, dando-lhe proteção. E como o guardiões dos
fundamentos e responsáveis pela fé, os dançantes representam aqueles que fazem contato
com o divino e, portanto, trazem em si a responsabilidade de cuidar da coroa de Nossa
Senhora. Densidade e vigor são aspectos de sua dança, proporcionados pelo poder do som
das gungas, pela busca do encontro com a terra e a ancestralidade e pela força e segurança
com que pisam em seu caminhar.
Il. 45 A
124
Il. 45 B
Il. 45 C- Dança, Capitão de Moçambique
125
Todo o ato de dançar dos congadeiros é acompanhado pelo cantar. Voz e movimento
se completam, traço marcante também das culturas africanas, onde o canto e a dança não
se dissociam. A voz surge como uma continuação do movimento fluido e contínuo, como
se ela fosse um passo que se exerce pelo espaço. A música
14
é elemento fundamental do
Congado, estando presente em todos os momentos e com cantos adequados para cada
situação. As letras contam histórias dos negros ancestrais, falam da dor e sofrimento
passados pelos seus descendentes, pedem a Deus e aos santos proteção; cantos para
abrir o Reinado, para pedir licença, cantos de chegada e de despedida, de agradecimento
pela refeição, para subida e descida dos mastros, letras com metáforas que remetem ao
período escravista, quando as mensagens eram transmitidas através de códigos internos
desconhecidos pelos senhores. A estrutura musical do Congado é rica em símbolos e
significados, completando o conjunto estético-artístico utilizado no ato de adoração.
Congadeiro nasce sabendo dançar”. Assim respondeu Bengala quando perguntado
sobre como se aprende a dançar congado. Sua resposta explica o sentido principal da
dança ritual dos Reinados nascer sabendo é herdar todo o conjunto cultural do qual a
dança faz parte, é ter no corpo as marcas da negritude que confere conhecimentos e
habilidades que estão além da própria racionalidade e compreensão técnica sobre a
performance. Este corpo congadeiro, congo ou moçambiqueiro, corpo-santuário por
essência, guarda informações que são expressas no e para o ritual. Corpo-memória, corpo-
relicário, corpo-lugar da própria devoção, corpo-significado e significante, suporte para as
mensagens de e resistência. Corpo-criador, receptor e receptáculo das energias que
emanam no ritual.
O corpo [...] ele é, sim, local de um saber em contínuo movimento de recriação, remissão e
transformações perenes do corpus cultural. Nas tradições rituais afro-brasileiras, alerquinadas
pelos seus diversos cruzamentos simbólicos constitutivos, o corpo é um corpo de adereços:
movimentos, voz, coreografias, propriedades de linguagem, figurinos, desenhos na pele e no
cabelo, adornos e adereços grafam esse corpo/corpus, estilística e metonimicamente, como
locus e ambiente do saber e da memória. Os sujeitos e suas formas artísticas que demergem
são tecidos de memória, escrevem história. (MARTINS, 2003, p. 82).
De tudo isso, chegamos à idéia de que a dança sagrada dos Arturos, legado de um
passado e símbolo de uma identidade cultural, possibilita a permanência de sua história e
continuação da trajetória de toda a coletividade. Através de seus ritos, passos, gingas,
cânticos e orações, o grupo restabelece o contato com as forças ancestres e com a que
14
Para saber mais sobre a música no Reinado dos Arturos ver Cantando e Reinando com os Arturos /
organização: Comunidade Negra dos Arturos; coordenação: Glaura Lucas; José Bonifácio da Luz. Belo
Horizonte: Ed Rona, 2006.
126
move seu viver, performar e adorar. O corpo é consagrado, adornado, torna-se um corpo
dançador e cantador que recria e refaz suas matrizes, dançando as dores e as alegrias,
renovando as energias criadoras, o que faz com que sua entrega e a totalidade corpo-
mente- natureza se mantenham vivas no cantar-dançar-batucar dos seus descendentes. E
ainda, como disse Santo Agostinho: Dança é mudança do espaço, do tempo, do perigo
contínuo de dissolver-se e tornar-se somente cérebro, vontade ou sentimentos. A dança
requer o homem libertado, ondulado no equilíbrio das coisas. A dança exige o homem
todo ancorado em seu centro”.
4.3 OBJETOS RITUAIS
O sistema simbólico do Reinado compreende também uma gama de objetos
singulares, produzidos especificamente para o momento festivo sagrado e que formam um
conjunto estético que merece um olhar apurado. Muitos desses materiais passam
despercebidos entre tantos sons e danças, mas são fundamentais para o bom procedimento
do rito. São os bastões, as coroas, as imagens dos santos, os próprios instrumentos
musicais, mastros e estandartes, além dos elementos apresentados, como as
indumentárias e adornos corporais. São artefatos imbuídos de poder e religiosidade, cujo
simbolismo muitas vezes só é conhecido por quem vive dentro do universo do Congado.
Antes de apresentar os componentes do acervo material do Reinado dos Arturos,
trazemos algumas idéias acerca da definição de “objeto”. Abraham Moles (1972), fala-
nos dos objetos como elementos essenciais do contato do indivíduo com o mundo. Dos
aspectos apresentados sobre o papel comunicacional do objeto, destacamos as idéias de
que ele é portador de uma forma (estética) e de que é ocasião de contato humano.
[...] de fato, este é o vetor de comunicações, no sentido sócio-cultural do termo: elemento de
cultura, o objeto é a concretização de um grande número de ações do homem da sociedade e se
inscreve no plano das mensagens que o meio social envia ao indivíduo ou, reciprocamente, que
o Homo faber subministra à sociedade global. (MOLES, 1972, p.10-11).
Ainda em busca de uma definição, encontramos:
Etimologicamente, o objectum significa lançado contra, coisa existente fora de nós, coisa
disposta diante, com uma característica material: tudo o que se oferece à vista e afeta os
sentidos (Larousse). Os filósofos tomam o termo no sentido do que é pensado e se opõe ao ser
pensante ou sujeito. (Ibid., p. 13).
127
A partir dessas definições, tomemos o objeto como o que existe fora do homem, que
é por ele fabricado e manipulado em situações diversas, exercendo algum tipo de
comunicação. O objeto encontra-se, portanto, submetido à vontade do homem.
De acordo com as relações estabelecidas com e pelos homens, os objetos dividem-se
em categorias que os classificam pela funcionalidade, qualidade artística, etc. Dentre essas
categorias, podemos considerar o grupo de objetos ritualísticos, aqueles utilizados em
cerimônias mágico-religiosas, cuja função está além de sua materialidade. Esses objetos
formam uma rede de significados, constituída pelas relações entre todos os objetos de
determinado culto e pelas relações estabelecidas entre os homens nos momentos em que
estes objetos são manipulados. Tais circunstâncias fundam um complexo conjunto
semântico, de onde surge uma hierarquia definida pelas significações sociais dadas aos
objetos em questão. Portar um objeto tal confere ao indivíduo certas funções ou status, e é
desse contato que se origina a estrutura ritual mais ampla.
Pensando em uma estética dos objetos, Van Lier (1972) diz que estes comunicam
pelo simples fato de que falam à sensação e à percepção e que todos os outros aspectos
decorrem da experiência sensível proposta pela sua presença ou sua utilização. Como
ciência do belo e da arte, a estética se faz presente na materialidade e contribui para a
multiplicidade das significações que encontramos ao tentar decifrar os códigos de
determinado objeto. E é partindo destes conceitos que voltamos nosso olhar para o
conjunto material presente no ritual do Congado.
Para mostrar alguns dos objetos que compõem o Reinado dos Arturos, tomamos
como referência a importância de suas relações com seus portadores e com a memória da
coletividade, pois são portadores de uma identidade e integram a história do grupo.
Sobrevivem ao tempo e às pessoas, passam por gerações, santificam, conferem poder,
remetem às lembranças de um passado distante ou próximo; são também úteis e exercem
funções pré-estabelecidas dentro das ações litúrgicas, o que os torna indispensáveis ao
sistema religioso como um todo. Possuidores de múltiplos significados, tais objetos são
indícios culturais do tempo, têm a função de significá-lo, assim como os objetos antigos,
que carregam em si uma historicidade (BAUDRILLARD, 2002). Sobre o objeto antigo,
diz o autor:
O homem [...] tem necessidade, como se tinha da lasca de madeira do Santo Lenho que
santificava a igreja, de um talismã, de um detalhe de realidade absoluta e que esteja no coração
do real, inserido no real para o justificar. Tal é o objeto antigo, que se reveste sempre, no seio
do meio ambiente, de um valor de célula-mãe. Através dele o ser disperso se identifica com a
situação original e ideal do embrião, involui para a situação microcósmica e central do ser
128
antes do seu nascimento. Estes objetos fetichizados pois não são nem acessórios nem
simplesmente signos culturais entre outros: simbolizam uma transcendência interior, o
fantasma de um núcleo de realidade de que vive toda a consciência mitológica e individual.
(BAUDRILLARD, 2002, p. 87).
Baudrillard nos diz que os signos ou os indícios culturais do tempo são retomados no
objeto antigo. Este se apresenta como um retrato de família”, guardando o passado,
repleto de significado. “[...] quanto mais velhos são os objetos, mais nos aproximam de
uma era anterior, da divindade”, da natureza dos conhecimentos primitivos, etc.” (Ibid.,
p.84). O caráter mitológico desses objetos, muitas vezes transformados em fetiches, faz
com que o culto a eles seja também um culto às origens. O valor deles está naquilo que
guardam e na capacidade de mediar um contato com o que transcende à pura forma.
A noção de fetiche, segundo Marina de Mello e Souza (2002), surge do contato dos
europeus com os africanos e seus objetos sagrados, chamados minkisi (nkisi, no singular).
Os minkisi, produzidos por sacerdotes para o uso em rituais, seriam objetos imbuídos de
poderes mágicos, ligados aos elementos da natureza e usados para diversos fins espirituais.
Considerando sua relevância para os ritos religiosos, pode-se dizer que os objetos
fetichizados seriam instrumentos, funcionais ou não, impregnados de sentidos mágico-
religiosos, cujos poderes são indispensáveis aos procedimentos ritualísticos de seus
portadores.
Percebemos em diversas manifestações o uso de determinados instrumentos que
tornam-se verdadeiras extensões simbólicas daqueles corpos que os portam. Continuidade,
prolongamento, reforço de seu portador, o objeto integra e se harmoniza com o corpo em
performance, é sua metonímia, signo e canal de comunicação. Portanto, ter posse, ser o
responsável, tocar, proteger, guardar esses objetos exige atenção e habilidades especiais,
físicas ou espirituais, uma vez que somente exercerão sua função se forem devidamente
manejados nos contextos adequados.
Os objetos que encontramos no Congado possuem, como todo o aparato estético até
então abordado, relações com o mito de origem e com a história dos Reinados no Brasil.
Há, porém, uma dinâmica, comum a toda manifestação popular, que faz com determinados
artefatos se percam e deixem de ser utilizados, como acontece com alguns instrumentos
musicais. Também a mudança das formas é perceptível, o que não implica alteração dos
sentidos e valores que carregam. Por outro lado, a permanência de determinados materiais
define o quanto são especiais:
Esses são, pois, objetos relíquias para os integrantes da
manifestação, isso quer dizer que são objetos tangenciadores do tempo pretérito, são
129
suportes de memórias, que guardam tesouros individuais e coletivos da comunidade [...]”.
(GABARRA, 2006, p. 408).
Além da historicidade e funcionalidade mágica que possuem, os objetos rituais são
esteticamente atraentes, apresentando uma variedade considerável de cores e formas. São
bastões pintados, enfeitados com contas e fitas, imagens sagradas que compõem a riqueza
do altar, tambores coloridos, coroas feitas de contas, estandartes cuidadosamente
adornados com papéis repicados, infinitas possibilidades encontradas pelos congadeiros
para deixar a festa mais bonita para a Senhora do Rosário. A intenção de “agradar a santa
e os ancestrais” leva-os a se utilizarem dos materiais disponíveis, valendo-se de toda a
criatividade, oferecendo sentindo aos pequenos detalhes para que embelezem ainda mais o
evento.
Dessa forma, a festa se constrói com cada conta, cada fita colorida, cada lenço, colar,
bastão, cada bandeirola que cobre o teto da capela. Cada pequeno detalhe se faz grandioso
ao olhar do fiel, que deposita nesses elementos a beleza e a alegria de festejar. Religião e
arte se encontram. O fazer artístico serve à religião, que por sua vez confere sentido à arte
sacra produzida. Indissociáveis, são traduzidas nos corpos, nas danças, nos objetos
sagrados. Estes são significados pelos seus portadores, que no instante festivo, se apossam
dos poderes imbuídos em seus instrumentos, fundindo-se numa coisa só. Falando aos
ancestrais, louvando, pedindo, agradecendo, os negros Arturos se valem de todo o
conjunto plástico para dizer, com a própria fé, que a história se perpetua e permanece
latente na memória da comunidade, nos corpos que dançam, nas almas adornadas e nos
objetos santificados.
A coroa
As coroas são símbolos maiores de sacralidade. A corte é a representante de Nossa
Senhora, respeitada e adorada por todos os congadeiros. Elas podem ser feitas de metais,
contas de lágrimas-de-Nossa Senhora, enfeitadas com pedras, etc. Ficam no altar da
Capelinha e de são retiradas para que os reis e rainhas participem dos cortejos e das
atividades festivas. Exigem um imenso respeito em seu uso, seu portador deve seguir as
regras dos comportamentos dentro do Reinado, atuando com cuidado e dignidade durante
os cortejos, banquetes, etc. A Coroa Maior, primeira na hierarquia conga, é de
responsabilidade do Capitão Mor, também Rei do Congado.
130
Il. 46 A- Coroa Maior
Il. 46 B- Coroas
131
Il. 46 C
132
O bastão
Metonímia do poder sagrado e da hierarquia do Reinado, os bastões, como foi
dito, são de responsabilidade dos capitães, reis e comandantes. Símbolo de respeito,
segundo Bengala, o bastão investe aquele que lhe porta de domínio sobre o grupo, sendo o
comandante com o bastão em punho quem puxa o canto, as danças e os trajetos a serem
feitos. Equivalente ao uso de cajados pelos reis, o uso dos bastões correspondia, para os
negros, à simbologia do poder. No Congado, os bastões são prolongamentos do corpo do
portador, extensão simbólica com a qual comanda seus dançantes. Alguns são preparados
pelos comandantes quando se forma um capitão enquanto outros são herdados, passando
de geração a geração. Exercem a função de abrir caminhos, afastar as forças negativas,
proteger, guiar e mediar a comunicação com o sagrado.
Encontramos bastões de diversos tamanhos, cores e formas, alguns enfeitados com
fitas, imagens de santos, medalhas, contas, terços e rosários, outros pintados com imagens
de pretos- velhos, cobras, outros apenas com a própria madeira polida e pequenos detalhes
de metais. Os detalhes plásticos observados confirmam a preocupação e atenção dada
pelos congadeiros à estética de seus objetos rituais, que são cuidadosamente enfeitados
com os símbolos sagrados. Investidos de sacralidade, os bastões exigem respeito em seu
manuseio e respeito ao capitão que o carrega. Nos Arturos, o bastão do Capitão Mor
concentra, junto da Coroa Maior, o símbolo maior do Congado; estes dois artefatos são
considerados os objetos mais sagrados, dignos de respeito e devoção. E neles também
percebemos a confluência das influências africana e européia, quando terços e ancestrais
negros dividem o pequeno espaço de madeira e concentram, juntos, o poder espiritual que
a insígnia representa.
133
Il. 47 A- Bastões
134
Il. 47 B
135
A espada
Dentro do Reinado, a espada aparece como símbolo de poder do capitão da guarda
de Congo e também de defesa da corte. Abrindo os caminhos e cortando o mal que pode
nele existir, a espada nas mãos do capitão protege, investindo-o de força espiritual. A
presença desse signo no Congado remete às lutas medievais, referência ainda marcante em
algumas cidades através das embaixadas, danças representativas das disputas entre mouros
e cristãos onde os congadeiros dançam com as espadas em diversas marcações
coreográficas. Essa dança não é executada pelos Arturos, porém, a simbologia permanece
presente e a espada figura entre os signos de destaque dentre os demais objetos rituais.
Il.48 A- Espadas dos Capitães
136
Il. 48 B- Espadas dos Guardas-Coroa
A bandeira
O uso de bandeiras tem sua origem na antiguidade, quando símbolos de identificação
eram talhados em metal ou madeira, para distinção de poder ou comando. Foram os
romanos que passaram a utilizar os sinais em tecidos, costume que se acentuou na Idade
Média
15
. Religiosamente, podemos inferir que o uso de tecidos com imagens de santos
assemelha-se ao emblema totêmico (DURKHEIM, 1996), corpo visível do deus,
concretização do poder sagrado do totem de onde emanavam as forças religiosas com as
quais os homens entravam em contato. Dessa forma, a imagem totêmica impressa no
material conferia a este a sacralidade suficiente para que ele fosse adorado e respeitado
como uma materialização dos poderes abstratos do totem.
Com essas referências encontramos a bandeira nos rituais do Reinado apresentando
suas guardas e seus respectivos santos de devoção, como verdadeiros emblemas sacros
dignos de respeito e adoração. São insígnias que identificam os grupos, seguindo à sua
frente, abrindo a passagem para os dançantes. As bandeiras são carregadas, normalmente,
por mulheres, cujos corpos convertem-se em dispositivos de sustentação do signo divino,
15
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bandeira
137
sacralizando-se por conseqüência. Sustentar a bandeira durante toda a festa é sustentar o
símbolo que materializa o santo cultuado, é transformar-se em altar.
Durante a celebração, a bandeira é beijada, diante dela os fiéis se ajoelham, pedem
proteção, rezam. A ela são transferidos os poderes religiosos, pois ela nada mais é que
imagem metonímica da estrutura mágica do ritual.
Il. 49 A- Bandeiras no altar
Il. 49 B- Bandeira (Detalhe)
138
Il. 49 C
Os mastros e estandartes
Os mastros são erguidos na primeira noite de festa, anunciando a abertura dos
festejos e simbolizando a ligação entre céu e terra, humano e divino e levando os pedidos e
orações para o plano superior. Cada mastro possui um estandarte com a imagem de um
santo e é colocado em um lugar sacralizado dentro da estrutura ritual. Ícone de
religamento e comunicação, o madeiro, comum em diversas festividades populares, é
tocado depois de erguido, com os bastões, espadas, objetos sagrados, como se sua força
pudesse reabastecer as insígnias de poder e sacralidade. Diante dele os fiéis fazem o sinal
da cruz, ajoelham-se, acendem velas, fazem-lhe reverência, pois a imagem ali depositada é
santificada e concentra as energias divinas, é a representação do santo figurado e por isso,
sagrado.
Os estandartes são cuidadosamente enfeitados com papéis e fitas em cores diversas,
e assim como as bandeiras, trazem o emblema que santifica o material em que aparece
impresso. Assim, o mastro levantado com o estandarte simboliza uma identificação da
devoção ao mesmo tempo em que une os dois universos, humano e divino. No último dia
de festa os mastros são retirados, determinando o fim das celebrações.
139
Il. 50 A- Levantamento de mastro
Il.50 B- Mastros na Comunidade Il. 50 C - Respeito aos mastros e estandartes
140
Il. 51- Estandartes
141
As imagens dos santos
Herança do catolicismo europeu, a adoração às imagens de santos integra o
simbolismo do Reinado e, como nos disse Bengala, é um dos principais remanescentes da
influência européia. No altar da Capelinha encontra-se um número enorme de imagens,
muitas delas recebidas pela comunidade de presente e que após passarem por um processo
de bênção, são colocadas junto aos outros elementos sagrados que se dispõem sobre a
mesa. As principais imagens da festa do Rosário são a de Nossa Senhora do Rosário,
protetora dos negros, São Benedito, que é o santo cozinheiro protetor das refeições, e
Santa Efigênia, santa negra adorada pelos congadeiros.
Além do altar, as imagens também estão presentes nos andores levados da
comunidade até a Igreja do Rosário durante o cortejo. São três cada um referente a um
dos principais santos padroeiros do Congado dos Arturos adornados com flores, que
complementam o conjunto estético do Reinado.
Il. 52 A- Imagens no altar da Capelinha
142
Il. 52 B- Imagens de Nossa Senhora do Rosário
143
Il. 52 C- Imagens de santos negros
144
Il. 53- Andores
145
Os instrumentos musicais
Elemento sico na configuração dos rituais afro-brasileiros, a música acompanha
todo o ritual e sua importância faz dos instrumentos musicais símbolos fundamentais do
sistema visual que integram. Meios de comunicação com o sagrado, os tambores e demais
instrumentos falam aos deuses e ancestrais, levam com seus sons os sofrimentos, pedidos,
alegrias, a e a vontade de celebrar dos negros congadeiros. Ser tambor é o desejo do
negro durante a festa, desejo este cantado em diversos momentos. Ser tambor é ser
também canal de contato, é despojar-se da condição de ser humano profano, cotidiano para
tornar-se divino pela capacidade de adorar e se integrar às energias sagradas que movem o
rito.
Destaca-se a necessidade de “pôr sentido” quando se tocam os instrumentos.
Manuseia-los é tarefa que exige responsabilidade e disciplina, aprendidas pelos tocadores
durante os anos de treinamento e prática dentro do Congado. Cada instrumento possui uma
história e um sentido único ligados à herança negra, e nos Arturos, eles são todos
instrumentos percussivos. O tambor, também chamado de ingoma (LUCAS, 2006), é
signo central na simbologia do Reinado, uma vez que sua função é primordial. Existem
tambores para cada ritual Candombe, Congado, Folia sendo proibido o uso fora de
seus respectivos festejos. São os seus sons que abrem e fecham os ciclos do Reinado,
fazendo pulsar os corações e corpos dos negros que recriam seus cantos e suas orações.
Investidos do poder mitológico presente nos objetos antigos, os mbolos que a Festa
do Rosário nos apresenta são signos culturais, possuidores de um valor étnico, que liga os
Arturos aos seus antepassados. São eles que, junto às músicas e danças, representam as
heranças ancestrais, através de imagens, cores e formas características da iconografia afro-
brasileira. As coroas que passam por gerações, os bastões que conferem poder aos seus
portadores, as bandeiras com imagens dos santos, as vestes reais e as fardas dos dançantes,
tudo é investido de valor religioso, determinando certos rituais em sua manipulação.
Signos de poder e religiosidade, valorizados pela sua história e pela ligação com os
ancestres, tais objetos ocupam relevante espaço dentro do universo simbólico do Reinado
e seu sistema de comunicação visual, e como os demais conhecimentos e costumes, são
passados entre as gerações, perpetuando a fé, a tradição e garantindo a continuidade do
Congado. Longe de serem simples adereços estéticos, estes objetos são preciosidades que
se preenchem de sentidos e sentimentos quando do momento festivo, ao serem
manipulados com finalidades sacras.
146
Indissociáveis do contexto em que são produzidos e utilizados, os objetos rituais
aqui apresentados fazem parte de uma rede de comunicação constituída pelos demais
elementos visuais encontrados na festa observada, e como tais, estão sujeitos a
permanências e transformações ao longo do tempo sem perder, porém, a essência de sua
participação nos rituais. E como diz Becker (1977), o mundo da arte espelha a sociedade
mais ampla na qual está inserido”. Assim, temos o universo estético-artístico do Congado
como o reflexo do mundo mítico-religioso-social em que vivem seus indivíduos, que
traduzem em códigos, signos e ícones de sacralidade os segredos e mistérios de suas
crenças e construções coletivas.
Oi, adeus, adeus, adeus, ai
Ei, nego véi já vai imbora
Ei, ocê fica aí com Deus, ai
Oi, eu vô com Nossa Senhora
(Canto de Moçambique)
147
Il. 54- Tambores sagrados
148
Il. 55- Patangomes
Il. 56- Tamborim
149
Il. 57- Gungas
150
Il. 58 - Pandeiro
151
V
CONCLUSÃO
152
O sistema ritual que compreende o Reinado nos oferece uma gama interminável de
significantes e significados, concretizados nos signos que se espalham pelo contexto visual
produzido pela festa. Apreender esses significados, ou parte deles, foi uma busca que
exigiu, além de muita atenção e respeito, um abandono de conceitos e teorias pré-
concebidas acerca da cultura afro-brasileira e suas possíveis interpretações. Talvez tenha
realmente compreendido o sentido de tudo quando, dentro de uma igreja católica, ouvindo
ecoar os tambores negros, percebi o quanto aquilo era para mim inexplicável ou, antes
disso, o quanto o sentido inerente ao ritual não necessita explicações.
Porém, tudo o que se materializava diante dos olhos dos espectadores encantados
tornou-se objeto de curiosidade. Captando as imagens como fotógrafa amadora, fui
construindo minha narração sobre o que via e tentando contar um pouco daquele universo
sagrado que se descortinava. Pessoas, vestuários, objetos sagrados, espaços percorridos,
meios de comunicação entre o homem e o divino, são também suportes para comunicar
aspectos culturais daqueles grupos produtores de determinado evento, ritual ou
performance. Descrever estes suportes presentes no Congado dos negros Arturos foi o que
se buscou. E para tanto, foi necessário conhecer o contexto em que ele acontece.
A história familiar ainda está em construção. Estudar a Comunidade tem sido uma
tendência crescente, dados os seus costumes tradicionais e a beleza de suas celebrações.
Porém, é preciso ter o cuidado de vê-la, não como um grupo arraigado ao seu passado e
congelado no tempo, com todas as suas heranças mantidas intocáveis. Ao contrário, a
dinâmica cultural na qual se encontram os Arturos os projeta cada vez mais a um futuro
construído pelos próprios integrantes, não apenas contado por quem os de fora. As
relações sociais e econômicas se alteram, a inserção tecnológica e as parcerias com órgãos
públicos contribuem para as transformações que tendem a aumentar. Mas o que se percebe
é que, apesar desse quadro de dinamismo e modernização, muitos dos valores são
mantidos e transmitidos aos jovens, valores estes muito perdidos nas grandes áreas
urbanas. A importância dada à família, o imenso respeito aos mais velhos e o culto aos
ancestrais, o valor da terra e do espaço comunitário são alguns dos ensinamentos que
resistem ao tempo e permanecem na vida dos Arturos. “Olhar para trás e por sentido” é a
máxima que norteia o pulsar da vida comunitária e que possibilita a preservação de suas
raízes.
Ao festejar, estas raízes culturais são materializadas e ganham formas e cores. Desde
as pequenas sementes das coroas e colares até os longos mastros erguidos com estandartes
enfeitados, tudo colabora para que o espetáculo aconteça de forma que melhor agrade à
153
Senhora do Rosário. Os personagens ocupam seus devidos lugares; o percurso é
estabelecido e completamente cumprido; as ações rituais são exercidas em memória do pai
que tudo ensinou. Um complexo conjunto de signos se revela, com significados múltiplos
e uma estética própria, baseados nos mitos, crenças e na própria história. Em todos os
grupos sociais, os impulsos estéticos têm expressões especiais que nascem á base de
modelos de beleza formados pelas tradições e pelo costume vivido no cotidiano e nas
festas.” (LODY, 2001, p. 78).
A polissemia dos objetos e demais elementos da festa é característica das práticas
rituais e, neste caso, é reforçada pela ambigüidade dos mbolos do catolicismo negro
então desenvolvido. A coexistência de materiais que remetem aos africanismos, e outros
herdados da cultura européia, converge em um vasto repertório imagético: santos católicos
dividem o altar com bastões que trazem imagens de um preto-velho; roupas que remetem à
linguagem militar européia vestem os corpos negros que se curvam e balançam os ombros
para se comunicarem com os ancestres; espadas de capitães abrem os caminhos para os
tambores sagrados passarem; reis e rainhas vestidos com longas capas lembram as cortes
portuguesas, enquanto o Rei Congo, autoridade maior do Reinado, porta uma coroa feita
de sementes de lágrimas-de-Nossa Senhora; o rosário, cuja devoção foi difundida pela
Igreja Católica, se emaranha em fios-de-contas oriundos do candomblé; a própria missa se
transforma com os batuques e cantos negros, por tanto tempo impedidos de soarem dentro
da casa santa.
Esses encontros entre religiosidades roubaram nosso olhar e, somente após uma
descrição de todo o conjunto estético é que chegamos às intercessões, sem portanto, poder
definir claramente a linha tênue entre as duas culturas. O que há, na verdade, é uma
terceira via, a da cultura afro-brasileira, que se alimentou de aspectos de ambas, uniu-as a
outras, como a cultura indígena brasileira, absorvendo, adaptando e recriando símbolos
cristãos, negros e indígenas, o que resultou na ampla rede de significações da religiosidade
afro-luso-brasileira que compreende o Reinado.
Ao decodificar os elementos visuais da festa em questão buscando nele encontrar
traços que determinariam suas matrizes, chegamos ao cerne daquilo que chamamos de
estrutura ritual: o corpo congadeiro. Ponto inicial e final, partida e chegada das energias
acionadas, o corpo em performance é que confere sentido a todo e qualquer instrumento
integrante do rito. É ele que transforma os signos em símbolos; é ele que confere
sacralidade e poder, pois é o responsável pela conexão sagrado-profano, através da danças,
das orações, da manipulação dos objetos. A importância da gestualidade durante todo o
154
processo litúrgico é inquestionável. O gesto, pré-estabelecido pela tradição, é aprendido
desde a infância, cotidianamente, em casa, nas brincadeiras e nas ocasiões festivas. Ele
torna-se vivo e cumpre a função religiosa em cada indivíduo que a ele se entrega,
deixando agir as forças transcendentais que os impelem a celebrar. É através do gesto que
tudo se concretiza e, apesar de ser individual, nestes momentos representam ações
coletivas, carregam sentidos válidos à sociedade à qual pertencem sendo, portanto, gestos
sociais.
Assim sendo, as roupas se tornam vestes sagradas ao serem usadas pelos
congadeiros; as coroas e capas são insígnias reais porque estão com as pessoas integrantes
de uma hierarquia; os bastões são símbolos de poder nas mãos dos capitães e mestres que
sabem manipular os poderes mágico-religiosos que possuem. Da mesma forma as
bandeiras, mastros e imagens adquirem sentidos quando o corpo se curva diante deles, em
busca de proteção ou apenas como sinal de respeito. Também é o corpo ajoelhado perante
o altar que determina que ali é um local sagrado. Os tambores e demais instrumentos
exigem respeito especial, pois são “as vozes” dos negros do rosário a falar com a Grande-
Mãe. Mas não o seriam se não fossem seus tocadores que para tal função, precisam
também de conhecimentos e comportamentos adequados. De tudo isso, podemos dizer que
o corpo, no centro do contexto simbólico, é o principal fator do processo de significação e
manutenção da memória coletiva.
Outro ponto a que chegamos com a observação refere-se à quantidade de signos
encontrados nas diferentes guardas. Congo e Moçambique possuem especificidades,
míticas e estéticas. Todavia, o Moçambique nos apresenta um número maior de elementos
estéticos e de símbolos a decifrar, e cremos que isso se deva à sua função de proteger a
Coroa e por ser responsável pela fé, pelos fundamentos sobre os quais se estrutura o
Congado. Na verdade, os mistérios que envolvem esta guarda talvez confiram a ela uma
possibilidade de mais simbolizações, o que não implica na escassez de representações do
Congo. Este, porém, por ser o responsável pela festa, pelo enfeite, e com a presença de
muitas mulheres e crianças, nos aparece de forma mais leve e com os sentidos mais claros
e perceptíveis.
Observamos que os adornos corporais são mais usados pelos homens do
Moçambique. Os brincos lhes conferem exotismo e uma beleza especial; os fios-de-contas
trazem à tona a coexistência de cultos de matrizes africanas e católicas; as gungas
enriquecem a dança e a música, um espetáculo à parte que presenciamos quando são
155
tocadas. As performances corporais encantam pela densidade, vigor e entrega que vemos
nos corpos dançantes, guardiões da fé e da coroa da Senhora do Rosário.
Entretanto, a alegria do Congo e sua dança saltitante, o balançar das fitas dos
capacetes ao vento ao trançar os caminhos por onde passa, é sem dúvida, cena
inesquecível para os espectadores atraídos pelas evoluções coreográficas, brincadeiras e
energia contagiante da guarda. Este é o aspecto que mais enriquece o grupo, que envolve a
todos num clima de euforia e êxtase que, mesmo ao fim da noite, no momento derradeiro,
contagia e anima os presentes. Irresistível, a dança do Congo brilha na festa e cumpre sua
função de enfeitá-la.
Resta falar do que não nos ocupamos nesta pesquisa: a linguagem dos cantos. A
riqueza musical dos Congados é objeto de alguns estudos, pois compreende por si um
universo simbólico digno de maior atenção. Os cantos entoados durante as ações rituais
são códigos através dos quais os congadeiros se comunicam. São também orações com as
quais se dirigem aos santos. Com letras e ritmos apropriados para cada situação, exigem
que aqueles que cantam conheçam os sentidos de suas palavras, as funções de cada um e
principalmente, que tenham percepção para puxar o canto necessário para cada momento.
Muitos cânticos versam sobre a vida dos negros, marca deixada pelos escravos que
se utilizavam deles como meio de expressão de seus sentimentos, desejos e mesmo de suas
histórias, quando a repressão e dominação impediam suas relações diretas. Com o tempo,
as letras vão se alterando, palavras são modificadas, os improvisos acontecem, o que
mostra que a dinâmica cultural abrange todo o ritual. Linguagem sagrada, palavra
proferida direta ao pai, aos ancestrais e aos deuses, os cantos emocionam pela
simplicidade e sinceridade com que entoam as dores, os anseios e a fé do povo negro.
Todos os objetos e imagens do Congado nada mais são que suportes materiais para
as crenças e concepções mágico-religiosas que o fundamentam. A plasticidade inerente a
estes elementos é característica dos rituais e está presente em todos os aspectos da vida
social. A estética não se dissocia do contexto em que vivem seus produtores e assim,
podemos encontrar nesses objetos, a tradução de valores e pensamentos dos que dela se
valem. A arte produzida pelo povo no seu ato de adorar é, além de simples adorno, meio
de comunicação, função que está na origem do fazer artístico e da religião. Comunicar,
ligar os mundos, transmitir mensagens, embelezar. Eis os sentidos encontrados na arte
sacra do Reinado do Arturos.
A história não se acaba. Muito ainda se tem a dizer sobre o Congado, sobre os
Arturos, sobre os negros e suas religiosidades. Aqui, um pedaço de um vasto universo de
156
difícil interpretação, mas de linguagem simples, como é a sua gente. Os Pretinhos do
Rosário, os filhos de Nossa Senhora que, apesar das dificuldades, levam adiante a herança
e o compromisso feito com o pai: não deixar morrer o Rosário de Maria. E a cada ano a
festa se renova, a se corporifica, se materializa “Ô, que coisa bonita que eu vi agora”
– lá nos Arturos a Ingoma chora.
157
VI
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Artigos e livros:
ABREU, Martha. O império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de
Janeiro, 1830- 1900. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. São Paulo: Fapesp, 1999.
ALCÂNTARA, Ana Paula (org.). Congos, Moçambiques e Marinheiros: Olhares
Sobre o patrimônio cultural afro-brasileiro de Uberlândia. Uberlândia: Gráfica
Composer Editora Ltda., 2008.
AMARAL, Rita de ssia de Mello Peixoto. Festa à Brasileira: Significados do
festejar, no país que “não é sério”. Tese de Doutorado apresentada no Departamento de
Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo. São Paulo, 1998.
AUGÉ, Marc. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade.
São Paulo: Papirus, 2003.
AUMONT, Jacques. A Imagem. Tradução: Estela dos Santos Abreu e Cláudio Santoro.
Campinas, SP: Papirus, 1993. (Coleção Ofício de Arte e Forma).
BARROS, José D’Assunção. O Campo da História Especialidades e Abordagens.
Petrópolis: Vozes, 2004.
BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das
interpretações de civilizações. Tradução de Maria Eloísa Capellato e Olívia Krähenbühl.
Primeiro volume. Livraria Pioneira Editora, editora da Universidade de São Paulo. São
Paulo, 1971.
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 2002.
BECKER, Howard. Arte como ação coletiva. In: Uma teoria da ação coletiva. Rio de
Janeiro: Zahar, 1977.
______. Mundos artísticos e tipos sociais. In Velho, Gilberto (org.). Arte e sociedade:
ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
BEZERRA, Amélia Cristina Alves. Festa e cidade: entrelaçamentos e proximidades.
Revista Espaço e Cultura, UERJ- Rio de Janeiro, n° 23: 7-18. Jan/Jun de 2008.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. Campinas, SP: Papirus, 1989.
158
CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2006.
CAVALCANTI, Maria Laura. As Grandes festas. Seminários Temáticos Arte e Cultura
Popular: Revista do Museu Casa do Pontal, Rio de Janeiro, p. 43-50, 2006/2007.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Tradução de Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
CLIFFORD, James. A Experiência Etnográfica. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
CONDURU, Roberto. Arte Afro-Brasileira. Projeto pedagógico: Lucia Gouvêa Pimentel
e Alexandrino Ducarmo; Coordenação editorial: Fernando Pedro da Silva e Marília
Andrés Ribeiro – Belo Horizonte: C/Arte, 2007. (Coleção Didática).
COSTA, Élsie Monteiro da Costa. Balanceia meu batalhão: universo poético-musical
dos congadeiros de Atibaia. 1.ed. Atibaia, SP: Ed. do Autor, 2005.
COUTO, Patrícia Brandão. Festa do Rosário: Iconografia de um rito. Niterói: EdUFF,
2003.
DA MATA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema
brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
DUARTE, Abelardo. O enterro da cabeça do boi. Revista Eletrônica Jangada Brasil.
Ano VIII - Edição 86, Janeiro de 2006.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico
na Austrália. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (Coleção
Tópicos).
DUVIGNAUD, Jean. Festas e civilizações. Tradução de L.F. Raposo Fontenelle.
Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1983.
______ Sociologia da arte. Tradução de Antônio Teles. Rio de Janeiro: Forense, 1970.
FONSECA, Eduardo P. de Aquino. As funções e os significados das festas nas religiões
afro-brasileiras in O Candomblé é a Dança da Vida. Aflição, Cura e Afiliação
Religiosa ao Palácio de Yemanjá. Dissertação de Mestrado em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco- UFPE, 1995.
FORTES, Meyer. Édipo e na África Ocidental. Cadernos de Campo. Ano VI, n
o
5 e
6, p.217-250. 1997.
FRIGERIO, Alejandro. Artes negras: una perspectiva afrocéntrica. Percevejo. Revista de
teatro, crítica e estética. Rio de Janeiro: UNIRIO; PPGT, 2003, n
o
12: 51 a 67.
159
GABARRA, Larissa Oliveira. Congado de Uberlândia: Relíquias e Memória. Revista
História e Perspectivas, Uberlândia, n°34: 393-423, jan.jun.2006.
______. Congado: A festa do batuque. Caderno Virtual de Turismo, Vol. 3, n° 2, 2003.
GEERTZ, Clifford. El arte como sistema cultural. In: Conocimiento local: Ensayos
sobre la interpretación de las culturas. Barcelona: Paidós, 1994.
______Uma descrição densa: Por uma teoria interpretativa da cultura. In: A interpretação
das culturas. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1989.
GOMES, Núbia Pereira de Magalhães; PEREIRA, Edimilson de Almeida. Negras raízes
mineiras: Os Arturos. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2000. (Coleção Minas &
Mineiros, vol.1).
______ Arturos: olhos do Rosário. Fotos de Marcelo Pereira, Belo Horizonte: Mazza
Edições, 1990.
GONZALEZ, Lélia. Festas Populares no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Index, 1989.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da
Silva, Guaracira Lopes Louro- 7 ed. Rio de Janeiro: DP& A, 2003.
JESUS, Seldinha de; ALMEIDA, Juniele Rabêlo. Narrativas, memórias e identidades:
mulheres da comunidade negra dos arturos. Revista eletrônica História, imagem e
narrativas, n°7, ano3, set/out 2008.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Tradução Marina Appenzeller.
Campinas, SP: Papirus, 1996.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar,
2003.
LIGIÉRO, Zeca. Performances procissionais afro-brasileiras. O Percevejo. Revista de
teatro, crítica e estética. Rio de Janeiro: UNIRIO; PPGT, Ano 11, n
o
12: 84 a 98, 2003.
LIMA, Nelson. Dando conta do recado: A dança afro no Rio de Janeiro e suas
influências. Tese de Mestrado apresentada na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Rio de Janeiro, 1995.
LODY, Raul. Jóias de Axé: fios-de-contas e outros adornos do corpo: a joalheria afro-
brasileira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
LUCAS, Glaura. Os sons do Rosário: o Congado mineiro dos Arturos e Jatobá. Belo
Horizonte: UFMG, 2002.
______; LUZ, José Bonifácio da. (Org.). Cantando e Reinando com os Arturos.
Organização: Comunidade Negra dos Arturos. Belo Horizonte: Rona, 2006.
160
MAGNANI, José Guilherme C. Festa no pedaço. São Paulo: Brasiliense, 1984.
MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: O Reinado do Rosário no Jatobá.
São Paulo: Ed Perspectiva, Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
______. Performances do tempo e da Memória: os Congados. O Percevejo. Revista de
teatro, crítica e estética. Rio de Janeiro: UNIRIO; PPGT, Ano 11, n
o
12: 68 a 83, 2003.
MAUSS, Marcel. Manual de etnografia. Capítulo 5: Estética. Lisboa: Editorial Pórtico,
1967.
MOLES, Abraham A.; BAUDRILLARD, Jean; BOUDON, Pierre; VAN LIER, Henri;
WAHL, Eberhard. Semiologia dos objetos. Tradução de Luiz Costa Lima. Petrópolis:
Editora Vozes, 1972.
MOURA, Antônio de Paiva. A cultura afro-brasileira e a festa do Rosário em
Diamantina. Diamantina: Gazeta Tijucana, 1998.
MUNIZ, Rosane. Vestindo os nus: o figurino em cena. SenacRio. Rio de Janeiro, 2004.
NERY, Vanda Cunha Albieri; ELIACINO, Maryely Cornélia; FIRMINO, Vanessa Faria.
Dança Conga: o ritual sagrado de uma tradição milenar. INTERCOM Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXVI Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação – Belo Horizonte, MG.2 a 6 Set 2003.
OTÁVIO, Valéria Rachid. A dança de São Gonçalo: re-leitura coreológica e história.
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Artes do Instituto de Artes da
UNICAMP. Campinas, SP, 2004.
POEL, Francisco van der. O Rosário dos Homens Pretos. Edição comemorativa do
Centenário da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Araçuaí,
MG. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1981.
PRANDI, Reginaldo. As religiões negras do Brasil: Para uma sociologia dos cultos
afro-brasileiros. Revista USP, São Paulo, n°28: 64-83, Dez/Fev 95/96.
RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro. 1º volume: etnografia religiosa. 5 ed. Rio de
Janeiro: Graphia, 2001.
______ Danças, festas e instrumentos musicais de origem bantu. Revista Eletrônica
Jangada Brasil. Ano IX, Edição 96, Novembro de 2006.
REGINALDO, Lucilene. Os Rosários dos Angolas: Irmandades negras, experiências
escravas e identidades africanas na Bahia setecentista. Tese de Doutorado apresentada
ao Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2005.
SABARÁ, Romeu. Comunidade Negra dos Arturos: o drama do campesinato negro
no Brasil. Tese de Doutorado em Antropologia Social. São Paulo: F.F.C.S.L.
Universidade de São Paulo. 1997.
161
SAMAIN, Etienne. Gregory Bateson: rumo a uma epistemologia da comunicação.
Ciberlegenda n° 5, 2001.
SANTOS, Inaicira Falcão dos. Corpo e Ancestralidade: uma proposta pluricultural de
dança- arte- educação. Salvador: EDUFBA, 2002.
SCHECNER, Richard. O que é Performance?. O Percevejo. Revista de Teatro, crítica e
estética. Rio de Janeiro: UNIRIO; PPGT, ano 11, n
o
12: 25 a 50, 2003.
SILVA, Cristiane dos Santos. Irmãos de fé, irmão no poder: A Irmandade de Nossa
Senhora dos Pretos na Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá (1751- 1819).
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em História da
Universidade Federal do Mato Grosso. Cuiabá, 2001.
SILVA, Júnia Bertolina da. O Congado na Comunidade dos Arturos: Catolicismo ou
culto africano? Monografia apresentada ao Programa de graduação em Ciências Sociais
da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. Belo Horizonte, MG, 2002.
SOUZA, Juliana Beatriz Almeida de. Viagens do Rosário entre a Velha Cristandade e o
Além-Mar. Estudos Afro-asiáticos. vol. 23 n°2. Rio de Janeiro, 2001.
SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história de coroação de
Rei Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil: cantos- danças- folguedos:
origens. São Paulo: Art Editora,1988.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. A espetacularização das culturas populares ou produtos
culturais folkmidiáticos. Comunicado apresentado no Seminário Nacional de Políticas
Públicas para as Culturas Populares. Brasília/DF, Fev/2005.
VENTURELLI, Isolde Helena Brans. Aspectos estéticos nos cultos afro- brasileiros.
Cadernos do ISER. Rio de janeiro, n°2: 25-32, 1974.
VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1997.
ZENICOLA, Denise. A coreografia das Iabás. O Percevejo. Revista de teatro, crítica e
estética. Rio de Janeiro: UNIRIO; PPGT, Ano 11, n
o
12: 99 a 122, 2003.
Endereços eletrônicos:
http://www.brasilcultura.com.br
http://elcioparaiso.multiply.com
162
http://www.folhadecontagem.com.br
http://hemi.nyu.edu/course-rio/perfconq04/materials/text/artigo_brasilia.htm
http://www.overmundo.com.br
http://www.pbh.gov.br/cultura
http://www.preac.unicamp.br
http://pt.wikipedia.org
http://www.terrabrasileira.net/folclore/regioes/5ritmos/mocambiq.html
www.roberiodeogum.com.br
http://www.saberglobal.com.br/deondeabaianavem
virtualbooks.terra.com.br/.../Artigos04.htm
http://www.uff.br
http://www.unicamp.br/folclore
Filme:
REIS negros. Direção de Rodrigo Campos. Produção: FAM Filmes, Rede Minas, F.P.
Anchieta/ Tv Cultura e Rodrigo Campos. Belo Horizonte, 2005.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo