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ANA VALESKA MAIA DE AGUIAR PINHEIRO
PULSÃO IRREFREÁVEL:
GÊNERO, ARTES VISUAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado Acadêmico em Políticas
Públicas e Sociedade da Universidade
Estadual do Ceará - UECE, como
requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre em Políticas Públicas e
Sociedade.
Orientador: Prof. Dr. Alexandre Almeida Barbalho
Dezembro / 2007.
Fortaleza - CE.
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Dedico às mulheres da minha vida.
Minha avó, Elina.
Minha mãe, Vera.
4
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Vera, por sua imensa generosidade.
À minha avó, Elina, pelo amor incondicional.
À Rose, irmã que a vida me deu, pela dedicação e confiança.
Ao Marcelinho, por compartilhar o amor pela arte.
À Amélia Rocha, a Loirinha, pelo afeto e apoio.
Ao Gustavo, pelas lições de vida.
Ao Iup, Kilt e Adelaide pela companhia e alegria.
À Professora Helena Frota, pelo exemplo de força e luta.
Às amigas Vivian, Lorena e Renata, pelas questões de gênero.
Aos colegas de turma do MAPPS, por compartilharem um momento muito especial.
Ao professor e amigo Roberto Galvão.
Ao amigo e orientador Alexandre Barbalho.
Às professoras que compõem a Banca Examinadora, Clara Virgínia Pinheiro e
Kadma Rodrigues, pela generosidade em contribuir com meu amadurecimento.
Aos(às) Professores(as) do Curso de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e
Sociedade, por abrirem novas perspectivas.
À CAPES, pelo bem-vindo apoio financeiro.
À Coordenação do Programa de Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e
Sociedade, pelo compromisso com o curso e com a sociedade.
À Fátima, do MAPPS, pela gentileza.
Às artistas que participaram desse estudo e gentilmente concederam material e
entrevistas.
Enfim, a todas as pessoas que, de algum modo, contribuíram no meu percurso de
vida e me ajudaram na realização deste trabalho, mesmo que indiretamente.
Muito grata.
5
Mulher sufocando; Mulher introvertida; Mulher esperando.
As meninas; Humanoinhumano; Nuas; Mamãe;
Moça com cabeça de ferro flutuando; Mulher ansiosa;
Moça fertile; Mulher geográfica; Mulheres siamesas;
Três pessoas à procura de Lucidez;
Moça com ferro na cabeça; Mulher boca;
Mulher em camadas;
Mulheres psicanalisadas;
Mulher de meia preta; Édipo planar;
Mulher correndo atrás de si mesma;
Família materialista; Rainha da piscina; Homem bebê
1
.
1
Títulos de obras da artista Cristina Salgado
6
RESUMO
“Pulsão irrefreável” provém da tentativa de refletir
sobre intensidades. Sobre intensidades presentes
nas reflexões que entrelaçam gênero, artes visuais e
políticas públicas. Procuramos compreender como
se delineou a imagem da mulher, por intermédio da
análise de fontes iconográficas, percebendo como
mitos, papéis sociais e regras de comportamento
eram revelados pelas obras de arte. Além disso,
reflexões são traçadas sobre as dificuldades
enfrentadas pelas artistas no passado, sobre as
transformações que atingiram o campo da arte, com
o advento da era da indústria cultural e das
chamadas vanguardas artísticas. o colocados em
pauta o feminismo e os estudos de gênero. Além
disso, é analisada a influência do feminismo na
produção das artistas no Brasil e no mundo. A
produção das artistas contemporâneas em Fortaleza
é posta em análise com destaque. Finalmente,
acontece a contextualização do processo de ações e
intervenções que possibilitaram a composição das
políticas culturais no Ceará. A atenção é direcionada
para a condução dos rumos e sentidos adotados
para as políticas para as artes visuais, o impacto do
mercado, a ampliação das possibilidades de
formação na área e o advento dos cursos de
graduação, que propiciaram o aumento da
participação das mulheres artistas no sistema das
artes visuais. Nesse sentido, a busca se deu em um
foco mais preciso nas questões que permeiam o
gênero feminino, com suas críticas ao sistema,
conflitos e inquietações.
Palavras-chave: Gênero. Artes visuais. Políticas
públicas.
7
ABSTRACT
This research reflects about intensities processes:
gender, visual arts and public policy. At first, does
comprehensions concerning woman’s image, take as
reference feminine symbols in the visual arts. It
permits to see how feminine myths, social functions
and behaviour are revealed for art’s works. So,
makes reflections in relation to difficulty professional
recognition of artist women. Analyzes too art’s
process transformation correlated to Cultural Industry
and “art’s vanguard”. In Fortaleza-Ceará-Brazil, looks
for to understand artistic movements linked to
Feminism and gender’s studies. Who were artist
women in the earliest times? What reveals women in
contemporary art? Finally, discusses about cultural
policy in Ceará: market, educational formation,
feminine participation in visual arts system.
Therefore, looks for answers with reference to
criticism, conflict and inquietude of artist women.
Key-words: Gender. Visual Arts. Public Policies.
8
LISTA DE ABREVIATURAS
A.W.C - Ad Hoc Women Artist’s Comitte
CCBA - Centro Cultural de Belas Artes
CCBNB - Centro Cultural Banco do Nordeste
CDMAC - Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura
CLÂ - Clube de Literatura e Arte
CEFET/CE - Centro Federal de Educação Tecnológica
CNDM - Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
ECOA - Escola de Cultura, Comunicação, Ofícios e Artes
FA7 - Faculdade 7 de Setembro
FGF - Faculdade Integrada da Grande Fortaleza
FUNCET - Fundação de Cultura Esporte e Turismo de Fortaleza
IACC - Instituto de Arte e Cultura do Ceará
MAC - Museu de Arte Contemporânea
MAUC - Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará
SAC - Seminário de Arte do Ceará
SCAP – Sociedade Cearense de Artes Plásticas
SECULT - Secretaria de Cultura do Estado do Ceará
UEE – União Estadual de Estudantes
W.A.R. - Women Artists in Revolution
9
RELAÇÃO DE IMAGENS
Fig. 01 Vênus de Willendorf (24.000 – 20.000 a.C.) Museu de História Natural,
Viena..........................................................................................................................22
Fig. 02 “Adão e Eva expulsos do paraíso”, Michelangelo, afresco, Capela
Sistina.........................................................................................................................31
Fig. 03 “Retrato de Tognina”, Lavínia Fontana, óleo sobre tela,
1585............................................................................................................................39
Fig. 04 “Judith e Holofernes”, Artemisia Gentileschi 1611-12, óleo sobre tela, Museo
Capodimonte..............................................................................................................40
Fig. 05 “Mãe e criança” Mary Cassat, óleo sobre tela. s/d........................................49
Fig. 06 “Mulher a ler” Berthe Morisot, óleo sobre tela, s/d.........................................50
Fig. 07 “A valsa” Camille Claudel, escultura em bronze, 1892..................................52
Fig. 08 “Sessão do conselho do Estado”, Georgina de Albuquerque, óleo sobre tela,
1922............................................................................................................................54
Fig. 09 “Demoiselles d’Aviggnon”, Pablo Picasso, óleo sobre tela, 1907.................57
Fig. 10 “A Fonte”, Marcel Duchamp, 1917...............................................................58
Fig. 11 “Tamara no Bugatti verde”, Tamara de Lempicka, óleo sobre tela, 1922....59
Fig. 12 “Amores alheios”, Cristiana Moura, papéis e tule, 2005...............................61
Fig. 13 “Torso”, Anita Malfatti, 1914-15, Pastel e carvão, Coleção MAC-USP, São
Paulo..........................................................................................................................64
Fig. 14 “Abaporu”, Tarsila do Amaral, 1928, óleo sobre tela. Coleção MAC-USP, São
Paulo..........................................................................................................................65
Fig. 15 Vagina Paiting, Shigeko Kubota , 1965, performance....................................86
Fig. 16 The Dinner Party, Judy Chicago, 1974-78, instalação..................................87
Fig. 17 Cartaz das Guerrillas Girls.............................................................................89
Fig. 18 “Caminhando”, Lygia Clark, 1964, performance...........................................91
Fig. 19 “Marca Registrada”, Letícia Parente, 1975, vídeo-arte.................................92
10
Fig. 20 “Protótipo para bastidores”, Rosana Paulino, objeto, 1988...........................93
Fig. 21 “Confissões”, Cláudia Sampaio, imagens da casa da artista,
2007............................................................................................................................97
Fig. 22 “Humano, demasiado humano”, Marina Barreira, fotografia, 2005................99
Fig. 23 “Humano, demasiado humano”, Marina Barreira, fotografia, 2005...............99
Fig. 24 “Palco aberto”, Jussara Correia, frame do vídeo, 2005...............................101
Fig. 25 “Sem título”, Milena Travassos, fotografia, 2005………….....................…..103
Fig. 26 “Ponto, linha...” Cecília Bedê, fotografia, 2005.............................................105
Fig. 27 “Sem título” Jacqueline Medeiros, fotografia, 2006......................................107
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .........................................................................................................13
1 A BUSCA POR SENTIDOS: UMA LINHA QUE ENTRELAÇA
HISTÓRIAS............................................................................................................................21
1.1 O poder dos mitos...............................................................................................25
1.2.O poder dos nós..................................................................................................28
1.3 A arte renasce......................................................................................................35
1.4 Mulheres: artistas invisíveis.................................................................................37
1.5 A construção de uma imagem ideal.....................................................................40
1.6 Um céu sempre azul............................................................................................44
1.7 A arte impressiona...............................................................................................47
1.8 Um lugar delimitado por uma situação de gênero...............................................52
2 O INÍCIO DE UM NOVO TEMPO..........................................................................56
2.1 Garimpando um lugar..........................................................................................59
2.2 Preconceito, paranóia ou mistificação?...............................................................63
2.3 A Fortaleza das artistas sem história...................................................................66
2.4 Sociedades de artistas: CCBA e SCAP...............................................................69
2.5 Nice e Heloísa......................................................................................................73
2.6 Salão de Abril.......................................................................................................76
3 ARTE, FEMINISMO E ESTUDOS DE GÊNERO ..................................................80
3.1 Reflexos do feminismo no campo das artes visuais.............................................84
3.2 Feminismo Made in Brazil....................................................................................90
3.3 Mulheres artistas em Fortaleza............................................................................94
3.4 O mundo privado na contemporaneidade............................................................97
3.5 Das leituras do corpo à mulher no espaço público.............................................102
12
4 POLÍTICAS PARA AS ARTES VISUAIS E QUESTÕES DE GÊNERO:
ENTRELAÇAMENTOS.............................................................................................110
4.1 Juventude Dourada............................................................................................111
4.2 As mutações do campo: a arte como cria do sistema........................................119
4.3 A política cultural encontra eco..........................................................................123
4.4 Formação das artistas........................................................................................126
4.5 E o Dragão, cospe fogo? ...................................................................................131
4.6 Cultura de mercado e a era dos centros
culturais....................................................................................................................140
4.7 Outras políticas da contemporaneidade: leis de incentivo, editais das artes e,
ainda, o Salão de Abril.............................................................................................146
4.8 Uma perspectiva de gênero...............................................................................153
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................157
REFERÊNCIAS........................................................................................................160
ANEXOS...................................................................................................................172
13
INTRODUÇÃO
“O que a arte te dá Milena?
A arte me dá...
Me dá fôlego!
2
Milena Travassos
Quando procurei as opções para prestar vestibular em 1991, o desejo que me
guiava conduzia sempre na direção das artes visuais. Cursar uma graduação em
cinema funcionaria como uma consoladora segunda opção. Entretanto, a realidade
que se apresentava para mim estava bem distante de meus sonhos juvenis.
Fortaleza não possuía cursos de graduação nas áreas que eu buscava. Ventilei a
possibilidade de estudar em outra cidade, fora de meu Estado. Pesquisei, fiz
cálculos, arquitetei planos mirabolantes para conseguir sobreviver em outras terras.
Infelizmente, as limitações financeiras, aliadas à tenra idade, obrigaram-me a buscar
uma conformação com o que a cidade oferecia naquele momento.
Dentre os cursos que existiam confesso que nenhum despertava minha luz
interior. No entanto, sem direito ao curso de artes visuais nem ao curso de cinema, a
situação que se apresentava me obrigava a fazer escolhas. Por gostar de animais,
optei pelo curso de Veterinária na Universidade Estadual do Ceará UECE. Opção
que acarretou uma desistência logo no primeiro semestre, pois fiquei arrasada
quando um cachorrinho que estava internado na clínica onde eu estagiava morreu.
Ficou claro que o fato de gostar de animais não significava um dom para lidar
rotineiramente com vida e morte.
O curso de Direito, na Universidade Federal do Ceará UFC, aparentava ser
a melhor escolha para mim naquele momento. Estava desiludida e existia um
verdadeiro encantamento coletivo pela carreira jurídica, onde a ambição por
concursos na área motivava a maioria dos universitários da faculdade de Direito.
Desencantada do mundo e influenciada pela pressão social da promissora carreira
jurídica, tentei me encaixar no sistema.
Por que a realidade do sistema cultural no Estado do Ceará era tão
decepcionante para uma pessoa que desejasse se especializar no campo da arte
2
Depoimento, documentário Mulheres artistas: o tempo da arte, 2006.
14
como eu? Existiam políticas públicas que possibilitassem algum tipo de formação em
arte, ou ainda, para o fomento de exposições? Alexandre Barbalho (2005),
analisando uma rie de artigos publicados no jornal O Povo, de autoria do artista
plástico Roberto Galvão, comenta o descaso governamental durante os primeiros
anos da década de 1980:
Naquele período, os artistas plásticos denunciavam na imprensa o descaso
governamental traduzido em dilapidação do patrimônio blico, falta de
verbas ou mesmo desativação de instituições voltadas às artes como a
Casa de Cultura Raimundo Cela, a Estação das Artes de Parangaba e a
Pinacoteca Estadual. Não havia também qualquer política de formação,
quer de artistas, quer de funcionários especializados [...] (BARBALHO,
2005, p.52).
A atuação da Secretaria de Cultura do Estado - SECULT possuía um caráter
publicamente deficitário. A administração do governo Gonzaga Mota (1983 1986)
destinava parcos recursos para o desenvolvimento de políticas culturais no Estado,
fato reconhecido pelos administradores culturais da própria gestão, como a diretora
do Departamento de Assuntos Culturais, Mírian Carlos, e pela diretora do Centro de
Artes Visuais Casa de Cultura Raimundo Cela, Maria Quintela. Essa ausência de
atenção tributou ao estado do Ceará a marca de “tornar-se o estado do Nordeste
com menor número de pessoas dedicadas às artes, segundo pesquisa realizada
pelo MEC” (BARBALHO, 2005, p.54).
Isso explica então porque tive que abdicar de meus sonhos juvenis: eu era
herdeira de um sistema cultural marcado pelo descaso e pelo clientelismo político.
A esperança que o governo seguinte, intitulado “governo das mudanças”
(1987-1990), liderado pelo empresário Tasso Jereissati, proporcionasse uma maior
atenção às políticas culturais não se confirmou. As declarações do governador eleito
privilegiavam a aplicação de recursos voltados às necessidades básicas da
população, como saúde e educação. Sem dúvida, para o novo governo, a cultura
não estava inserida no rol das necessidades básicas.
Fica factível que ainda não haviam acordado os governantes do Ceará para a
crucial importância da cultura, inclusive do retorno simbólico que o investimento
cultural proporcionava. No entanto, num âmbito mundial, muitas mudanças
aconteciam. A “década mundial do desenvolvimento cultural” (1988-1997) estava
estabelecida, por organismos como a ONU e a Unesco. No Brasil é criado o
Ministério da Cultura em 1985, sendo este extinto em 1988, pelo desarrazoado
15
governo Collor. Entre as idas e vindas da política cultural no Ceará, um acordo
político conduz Barros Pinho
3
para a Secult, da mesma forma como um
rompimento político vem a destituí-lo do cargo. Na análise de Barbalho (2005), os
artistas questionavam a legitimidade da nomeação, alegando que não foram
consultados e que o secretário estava mais identificado com o universo da política
do que com o campo das artes.
Violeta Arraes, em 1988, assume o posto de condutora da cultura no Estado. A
secretária possuía um bom relacionamento com a classe artística e intelectual,
inclusive fora do Brasil, pois vivia muitos anos na cidade de Paris. A política
traçada pela secretaria de cultura privilegiou a recuperação de espaços físicos como
o Teatro José de Alencar, a promoção de eventos de grande porte e a tentativa de
instalação de um pólo de cinema no Ceará (BARBALHO, 2005). Lamentavelmente,
no campo das artes visuais, durante o período em comento, nada de significativo
aconteceu que conseguisse imprimir uma marca duradoura.
O governante seguinte, Ciro Gomes, nomeia em 1991, como secretário de
Cultura, o publicitário Augusto Pontes. A gestão de Pontes foi intensamente criticada
pelos artistas, que reclamavam da ausência de uma política pública definida para a
cultura. Após a avalanche de críticas e no ensejo de uma reforma do secretariado,
Ciro Gomes convida, em 1993, o também publicitário Paulo Linhares para assumir a
condução das políticas culturais no estado do Ceará.
Em 1993, quando o secretário Paulo Linhares assumiu, eu estava no segundo
ano da faculdade de Direito. Apesar de não conseguir cursar a graduação
pretendida, as artes continuavam presentes em minha vida. Procurei me envolver
em atividades culturais impulsionadas pelo centro acadêmico. Em casa, praticava
exercícios de desenho e pintura, além de cultivar o hábito da leitura especializada
em arte e cinema. Em 1994, participei do curso introdutório de cinema da Casa
Amarela Eusélio Oliveira. Entretanto, sentia dificuldade em conseguir uma
continuidade para meu trabalho. Sem apoio nem orientação e com uma razoável
dose de minha própria indolência, a acomodação foi inevitável.
3
Na análise de Washington Bonfim (2002, p.43), no primeiro governo Tasso, 60,7% das secretarias
foram ocupadas por técnicos, 10,7% por empresários e 25% por políticos. Era o caso, entre estes
últimos, do então deputado estadual Barros Pinho, indicado para a Secult. [...] Barros Pinho foi
vereador, prefeito nomeado de Fortaleza por seis meses e duas vezes deputado estadual
(BARBALHO, 2005, p. 50-51)
16
Deixei as artes de molho.
No final do ano de 1997, me formei e comecei a advogar na área cível. Foram
anos insossos. Insatisfeita, era sintomática a falta de ar que sentia ao subir a rampa
do Fórum Clóvis Beviláqua
4
. Para mim, a falta de ar tinha um significado maior do
que uma suposta falta de condicionamento físico. Ali estava o aviso constante de
que algo essencial me faltava, tão importante e crucial quanto o ar que eu respirava.
Após sufocantes anos de exercício da advocacia, em 2001, folheando um
jornal local, li um anúncio que me chamou a atenção e fez meu coração disparar. A
faculdade Gama Filho estava oferecendo vagas remanescentes para graduados. O
curso? Graduação em Artes Visuais.
Efetivar a matricula foi uma pulsão irrefreável. Em 2002, um mundo novo
surgiu para mim. A faculdade de artes significava a realização de um sonho.
Enquanto descobria mundos novos, empolgada com técnicas, conceitos e materiais,
percebi também que o cenário do sistema cultural havia passado por inúmeras
transformações. Se em 1991, quando procurei um curso na área, a política para as
artes visuais era centrada em poucos acontecimentos, como o Salão municipal de
Abril, em 2002, na faculdade de artes visuais, falava-se o do tradicional Salão
de Abril, mas do Salão Sobral de Arte Contemporânea, do Museu de Arte
Contemporânea do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, do Centro Cultural
Banco do Nordeste e tantos outros acontecimentos que agitavam o campo das artes
na cidade. Além disso, existia outro curso de graduação na área, oferecido pelo
Centro Federal de Educação Tecnológica – CEFET - CE.
Desta forma, em cerca de uma década houve uma significativa ampliação no
alcance das políticas culturais no Ceará. Com o intuito de incluir Fortaleza no circuito
das grandes capitais culturais, tentando firmar a cidade como um lo cultural
nacional, a gestão do secretário Paulo Linhares, assim como a de seu sucessor na
pasta, Nilton Almeida, foi marcada pela inevitabilidade da era da indústria cultural,
materializada nos eventos de peso com artistas de renome nacional e nos
equipamentos culturais de grande porte, como o Centro Dragão do Mar de Arte e
Cultura, idealizado para atuar junto ao Instituto Dragão do Mar de Arte e da Indústria
4
O Fórum Clóvis Beviláqua é um fórum da comarca de Fortaleza da Justiça do Ceará subordinado ao
Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.
17
Audiovisual. Os cursos de formação do Instituto tinham inserção em cinema,
dramaturgia, vídeo, dança, design e teatro.
A constatação da mudança das políticas para as artes visuais me direcionou
no encontro com meu tema de pesquisa. Uma inquietação persistente tomava conta
de mim e me impulsionava a querer entender como haviam acontecido essas
mutações no campo cultural, principalmente para as artes visuais. Ao mesmo tempo,
visitando exposições e pesquisando catálogos de arte percebi que os trabalhos que
despertavam novos sentidos para mim coincidentemente eram realizados por
mulheres. A cada visita a uma exposição ou salão de artes plásticas se evidenciava
uma preferência por obras de autoria feminina. A recorrência me intrigou. Com um
olhar mais aguçado percebi nos livros que promoviam uma retrospectiva dos
grandes artistas uma escassa participação de mulheres. “O Livro da Arte”, por
exemplo, selecionou em forma de guia, 500 artistas de maior importância para a
História da Arte ocidental. Dos 500 artistas, apenas 12 eram mulheres.
Isso me levou a querer saber como se constituiu a realidade local, buscando
desvendar alguns entrelaçamentos da teia que envolvia gênero, artes visuais e
políticas públicas. Procurei saber de meu professor e pesquisador das artes visuais,
Roberto Galvão, se existia algum trabalho que explorasse este tema e a resposta
foi negativa. Uma pesquisa rápida em antigos catálogos do Salão de Abril reforçou
meu interesse: existiam muito mais homens artistas em evidência do que mulheres
artistas. Por que?
Fruto do domínio de uma sociedade patriarcal? Como este domínio existiu?
Ainda exerce influência na contemporaneidade? Como as obras de mulheres artistas
refletem essas questões? Aos poucos as indagações indicavam meu percurso
metodológico: Se o espaço da mulher era limitado por questões de poder, como as
mulheres artistas conseguiram o reconhecimento da profissão no passado? E hoje,
como se delineia este quadro? Como o movimento feminista influenciou a
participação das mulheres artistas em Fortaleza na contemporaneidade? O que
mudou no sistema da cultura que favoreceu uma ampliação de equipamentos
culturais, de cursos de artes visuais? A participação feminina atualmente acontece
de uma maneira mais igualitária? Qual o alcance das políticas para as artes visuais
em uma perspectiva de gênero? A linguagem presente na produção das mulheres
18
artistas nos permite acessar e problematizar aspectos próprios dos papéis exercidos
pelas mulheres hoje?
Na tentativa de compreender melhor as indagações que surgiam foi traçado
um norte para a pesquisa de natureza qualitativa. A pesquisa bibliográfica tem como
objetivo principal conhecer e aprofundar de maneira reflexiva e crítica as leituras das
produções teóricas sobre as principais categorias desta dissertação: Relações de
dominação, gênero e políticas públicas no âmbito das artes visuais. Para tanto,
busquei em autores que refletem sobre a questão do poder como Michel Foucault e
principalmente, Pierre Bourdieu, nortes teóricos que me auxiliassem na construção
de minha pesquisa. Presente também o pensamento de autores que trabalham as
questões de gênero, como Joan Scott e das políticas culturais, como Alexandre
Barbalho.
Para a pesquisa de campo houve a realização de uma série de entrevistas com
gestores públicos na área das artes visuais diretores e ex-diretores do museu de
arte contemporânea, pesquisadores em artes visuais e artistas. Além disso, houve
coleta de dados (imagens, catálogos, folhetos, vídeos), e a realização do vídeo-
documentário intitulado “Mulheres artistas: o tempo da arte”, com a participação de
dez artistas de Fortaleza: Bia Cordovil, Cecília Bedê, Jacqueline Medeiros, Jussara
Correia, Maíra Ortins, Meire Guerra, Milena Travassos, Rosângela Melo, Simone
Barreto e Waléria Américo.
A coleta dos dados bibliográficos e de campo indicaram a construção do
presente trabalho em quatro capítulos. O primeiro capítulo, intitulado “A busca por
sentidos: uma linha que entrelaça histórias” promove uma releitura do passado, em
um breve retrospecto. Esse percurso se fez necessário, para a compreensão do
processo, inclusive dos processos peculiares que permearam os movimentos
artísticos, como o renascimento e o impressionismo. Esse caminho permitiu
assimilar de uma maneira mais clara como aconteceram as constituições dos mitos
atribuídos ao universo feminino e como alguns papéis sociais eram revelados pelas
representações das obras de arte. Além disso, reflexões são traçadas sobre as
dificuldades enfrentadas pelas artistas no passado para alcançar algum
reconhecimento social.
No capítulo seguinte, “O início de um novo tempo” são evidenciados valores de
uma sociedade em mutação, inclusive as transformações que atingem o campo da
19
arte, com o advento da era da indústria cultural e das chamadas vanguardas
artísticas. No Brasil, o movimento modernista trouxe, além das inovações estéticas e
conceituais, a participação mais engajada das mulheres artistas, como Tarsila do
Amaral e Anita Malfatti. Um destaque foi dado para os movimentos políticos
liderados pelas mulheres no Brasil, como o que levou à conquista do direito ao voto.
Procurei, ainda, evidenciar como aconteceram alguns processos significativos para
as artes visuais e as relações de gênero em Fortaleza: quais as primeiras artistas da
cidade, como aconteceu o processo de união de artistas em torno de interesses
comuns, constituindo sociedades, como o CCBA e a SCAP. Esses movimentos
foram relevantes, inclusive, por instaurarem um sistema de exibição para as obras,
como os salões de artes plásticas e abrigarem a possibilidade de formação e
recepção para o trabalho realizado por mulheres, como Nice Firmeza e Heloísa
Juaçaba.
O terceiro capítulo, nomeado “Arte, feminismo e os estudos de gênero”
problematiza os movimentos que surgiram a partir da segunda metade do século XX
e que significaram uma mudança radical na vida das mulheres e da própria
sociedade. Além disso, é ressaltada a influência do feminismo na produção das
artistas no Brasil e no mundo. O capítulo é finalizado com a análise da produção de
algumas artistas em Fortaleza. A intenção reside em compreender como as obras
refletem e problematizam aspectos pertencentes ao universo privado, às questões
que abordam o corpo na contemporaneidade e aos questionamentos próprios do
espaço público e da dinâmica presente nas cidades.
Finalmente, no quarto capítulo, intitulado “Políticas para as artes visuais e
questões de gênero: entrelaçamentos”, o evidenciados aspectos referentes à
contextualização das entrelinhas que compõem o processo de ações e intervenções
dos caminhos percorridos pelas políticas culturais no Ceará. A atenção é direcionada
para a condução dos rumos e sentidos adotados para as políticas voltadas para as
artes visuais, observando a busca em um foco mais preciso nas questões que
permeiam o gênero feminino. Para tanto, investigamos o processo de formação das
artistas na contemporaneidade, bem como os mecanismos de mercado que
interferem na atuação das instituições e na adoção de novas políticas culturais.
Os quatro capítulos compõem a dissertação, além da introdução,
considerações finais, referências e anexos. O presente estudo vem de um
20
reencontro com a arte, que possibilitou em minha vida novos olhares e descobertas,
como o encontro com a intensidade dos trabalhos das mulheres artistas e as
transformações nas políticas para as artes visuais. Encontro que semeia sentidos,
potencializa o desejo pela vida e me faz perceber, cada vez mais, que assim como
acontece com a artista Milena Travassos, a arte me dá fôlego!
21
1 A BUSCA POR SENTIDOS: UMA LINHA QUE ENTRELAÇA HISTÓRIAS
“Alice abriu a porta e viu
que ela dava para uma pequena passagem,
não muito maior que um buraco de rato.
Ela se ajoelhou, deu uma espiada lá dentro,
e viu um jardim.
Era o jardim mais gracioso que já se viu!
Ah, como ela gostaria de sair daquele salão escuro
e passear naquele jardim,
por entre os canteiros de flores e fontes de água fresca...
Mas como é que ela iria
atravessar aquela porta tão pequena,
que mal dava para passar a cabeça?”
Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas.
Brincar com a terra do quintal de casa, no Recife, era uma rotina na infância da
gravadora Maíra Ortins
5
. A mãe de Maíra constantemente reclamava do hábito da
filha, repetitivo e incansável, de encontrar no quintal enlameado de casa o terreno
propício para deixar fluir seu imaginário infantil. Nessa época, cerca de 20 anos
atrás, Maíra Ortins ainda não possuía a consciência que o desejo irrefreável que a
levava a modelar o barro e buscar dar-lhe uma forma estética receberia mais tarde o
nome de arte e que ser artista seria sua profissão.
A primeira escultura que Maíra Ortins realizou representava uma mulher nua:
pequenininha, com cerca de 15 centímetros. Ao esculpir a peça, invisivelmente se
engendra um elo de continuidade entre duas histórias, uma linha que une a
contemporaneidade das descobertas da menina Maíra a um tempo passado; tempo
onde se delineou e se repetiu um percurso similar: a busca humana pela
compreensão dos sentidos da existência.
Aqui encontramos um ponto comum que entrelaça as inquietações e atravessa
os mais variados tempos, um tempo longínquo e um tempo próximo. Um tempo onde
apesar de todas as concepções e valores próprios que marcam as épocas que os
diferencia, em um olhar retrospectivo se confirma uma eterna repetição: há mais de
5
Depoimento, documentário Mulheres Artistas: o tempo da arte, 2006.
22
20.000 anos a.C., foi encontrada em Willendorf
6
, na Áustria, uma pequena estatueta,
também de uma mulher nua, com destaque para os grandes seios, o ventre
protuberante e os largos quadris (fig. 01).
A estatueta foi batizada posteriormente como Vênus. A
imagem de Willendorf, no entanto, costuma causar um certo
estranhamento quando exibida em um contexto acadêmico ou
em compêndios de arte. Ao contrário do ideal de beleza
refletido nas populares esculturas gregas, - (o que muitas
vezes canalizou o sentido da arte para a recorrente associação
com a representação do belo); nosso ancestral
7
que esculpiu a
Vênus de Willendorf, provavelmente estava intrigado com a
paulatina alteração do corpo das mulheres. Esse fenômeno se
apresentava como um enigma, num mundo ainda sem
explicações científicas, sem classificações ou imposição de
rótulos. A alteração do corpo significava algo muito especial: aqueles ventres
dilatados portavam a transformadora vinda da vida.
A prática de esculpir as chamadas deusas da fertilidade, ou Vênus ancestrais,
aliada às imagens rupestres, de órgãos sexuais femininos ou de mulheres dando a
luz, são indícios do interesse que as formas femininas despertavam desde muito
tempo atrás. Prazer sexual ou o mistério do surgimento da vida? as definições
acerca dos achados arqueológicos do período não podem ter uma precisão
cirúrgica, e sim sentidos múltiplos. Quando falarmos de cultura, falamos também de
pluralidade de sentidos.
Para investigar a participação das mulheres artistas no passado, faz-se
necessário um breve retrospecto histórico, que nos permita vislumbrar as
constituições de papéis sociais, inclusive como esses papéis eram revelados através
das representações da figura feminina nas obras de arte. Para assumir, em seguida,
6
A Vênus de Willendorf (24.000 – 20.000 a.C.) é uma estatueta com 11,1 cm de altura representando
uma mulher, descoberta no sítio arqueológico do paleolítico situado perto de Willendorf, na Áustria,
em 1908. Encontra-se atualmente no Museu de História Natural, em Viena (JANSON, 2001).
7
Em 1996, Le Roy McDermoott publicou uma teoria onde reforça a tese de algumas feministas de
que as mulheres foram as primeiras artífices. O pesquisador argumentou que as distorções
características das figuras do paleolítico ventres inchados, seios e nádegas volumosos , pernas
curtas e pés pequenos eram coincidentes com mulheres grávidas que esculpiam seus próprios
corpos. (HUSAIN, 2001).
Fig. 01: Vênus de
Willendorf
23
uma direção nesse percurso histórico que nos sinalize entre os caminhos
percorridos, nas pinceladas evidenciadas por alguns processos enfrentados por
mulheres artistas no passado, a dimensão do grau de esforço e desgaste
empreendidos e das relações de força instauradas na determinação de algumas
mulheres em alcançar um espaço profissional como artistas.
Um trânsito pelo passado possibilita a identificação de uma forte demarcação
de territórios entre os universos masculino e feminino nas inúmeras instâncias
sociais. Essa demarcação ensejou a implementação de um ambiente propício para
contínuas crises de sentido que atravessaram essas duas realidades, revelando uma
dicotomia persistente ao longo dos tempos.
No percurso da humanidade a arbitrariedade na percepção do sentido do que é
“ser humano” têm acompanhado as relações que envolvem os gêneros, as classes
sociais, as etnias. Ao se firmarem sistemas de dominação, como o patriarcalismo,
por exemplo, se firma também a caracterização da esfera social como um local de
exclusão. Ao longo da trajetória humana, as mulheres têm sofrido intensamente os
efeitos desta exclusão, do preconceito e da discriminação social. Muitas sufocaram
suas expressões anímicas, seus desejos, vivências e convivências. Tiveram suas
pulsões de existência refreadas e reprimidas.
Dar um sentido diferente a seus sentidos determinou, entretanto, o
reconhecimento pelas mulheres da extrema necessidade de repensar sua condição.
Compreender as relações de dominação, questionando paulatinamente a crueldade
e o sentido de permanência de formas arbitrárias de poder, como no poder
patriarcal. Um retrospecto histórico demonstra como a história das mulheres
permaneceu, por muito tempo, como uma memória própria do universo privado, o
que levou Michele Perrot a declarar: “No teatro da memória, as mulheres são
sombras tênues” (PERROT, 1989, p.9).
Relações de poder que decretavam às mulheres o vazio na atuação no espaço
público. Apesar da demarcação limitada ao espaço privado a presença das mulheres
na arte foi, em contrapartida, constante. Desta forma, o decreto de invisibilidade
imposto às mulheres era rompido sem problemas no terreno da produção artística
desde que obedecesse aos moldes estabelecidos: elas eram protagonistas, motivo,
inspiração, objeto de representação de uma perspectiva de mundo masculina.
24
Sendo assim, como a obra de arte pode nos conduzir nesse percurso? A arte
pode ser considerada uma linguagem, que comunica, institui modos de ver e
autoriza interpretações a respeito das vivências de mundo?
Como um reflexo de seu tempo, a arte nos permite pensar e problematizar
sobre aspectos próprios, conexões, valores, paradoxos e desvios da época em que
a obra foi criada. Desta forma, é factível que um dos maiores méritos da arte
consiste justamente em sua possibilidade de pluralizar sentidos e leituras de mundo,
constituindo linguagens. Como linguagem, pode, então, servir a interpretações
científicas da sociedade? Segundo Sandra Rey:
[...] é próprio da arte em geral e da arte contemporânea em particular propor
ou apresentar um ponto de vista diferenciado, ou com uma visão de mundo
particular, através da constituição de linguagens.
A linguagem alimenta-se da subjetividade e da vivência do artista, ao
mesmo tempo em que reafirma ou coloca em discussão questões oriundas
da própria arte e da cultura. (REY, 2002, p.128).
A escritora inglesa Jean Franco (2005), alega que agora é chegado para as
mulheres o momento delas exercerem seus direitos de interpretação do mundo.
Não somente para realizar uma hermenêutica do mundo contemporâneo, mas
inclusive, para redefinir a construção da própria história. Ao se adotar o
procedimento de recolocar questões e constituir releituras da história das mulheres,
é fortalecida a promoção de entrelaçamentos entre arte e vivências sociais e assim
se cultiva, ao nosso ver, o fortalecimento de um terreno fértil para o exercício efetivo
da mulher como agente e intérprete de sua própria história. Costa (2002) reforça
esse argumento:
Assim como a análise dos sonhos havia possibilitado o surgimento e
desenvolvimento da psicanálise, a interpretação das imagens em
documentos iconográficos passou a ser, na década de 1980, elemento
fundamental para o desenvolvimento da história, da antropologia e da
sociologia. O historiador Michel Vovelle, um dos criadores da história das
mentalidades, assegura que o uso de fontes iconográficas é de fundamental
importância para o trabalho de pesquisa, por serem elas muito mais do que
um comentário ilustrado dos textos escritos; elas falam mais do que estes,
com seu discurso autônomo e próprio, diz ele, ‘falam onde o texto se cala’
(p.23).
Realmente, falar quando o texto silenciou pode ser o grande mérito do discurso
estético característico de cada época. Fato especialmente relevante quando a busca
se propõe a percorrer as tênues sombras que turvaram a história das mulheres.
Filiados a essa corrente de pensamento é que acreditamos que a produção da arte
ocidental fornece subsídios para realizarmos um breve retrospecto. Afinal, a obra de
25
arte fala, transmite mensagens, pode, dessa forma, ser lida. As manifestações
simbólicas, a produção iconográfica, constituem um campo fértil para a investigação
científica. Compõem e ajudam a instrumentalizar, junto a outras fontes de pesquisa,
o processo de conhecimento de nosso objeto, clareando a compreensão das
relações de poder, das leis que regulam a estruturação do campo artístico, das
políticas culturais e das relações de gênero.
1.1 O poder dos mitos
“O Mito é um nada que é tudo”.
Fernando Pessoa
Raymond Williams (1992) alerta para a dificuldade que o termo “cultura”
acarreta. Uma abordagem singular limitaria a abrangência e a multiplicidade de
relações que a vida em sociedade contempla. Podemos proporcionar a
convergência entre os sentidos antropológico e sociológico de cultura como “modo
de vida global”, onde este modo de vida deve abarcar um sistema amplo de
significações, essencialmente envolvido em “todas” as formas de atividade social,
assim como também:
o sentido mais especializado, ainda que também mais comum, de cultura
como ‘atividades artísticas e intelectuais’, embora estas, devido à ênfase em
um sistema de significações geral, sejam agora definidas de maneira muito
mais ampla, de modo a incluir não apenas as artes e as formas de produção
intelectual tradicionais, mas também todas as ‘práticas significativas’
desde a linguagem, passando pelas artes e filosofia [...]. (WILLIAMS, 1992,
p.13).
De fato, se impõe como necessário abraçar a extensão de um conceito
ampliado de cultura, sem esquecer que, como adverte Bourdieu (2003a), a
multiplicidade de signos e sistemas simbólicos que compõem o universo cultural
revelam-se, comumente, como eficientes instrumentos de poder.
Clifford Geertz (1989), em suas reflexões sobre o imaginário e a realidade,
tratou o real e o imaginário como equivalentes. Adotando a abordagem de Geertz,
podemos compreender o processo de criação artística como um fluxo de vida,
intenso, dinâmico, portador de sentidos, multifacetado. Nesse fluxo, o que foi
imaginado se torna arte, a arte se entrelaça com a vida, as relações sociais
26
impulsionam o pensamento, onde uma parcela deste pensamento novamente se
concretiza numa manifestação artística, todo esse processo inserido num movimento
imprevisível, pulsante, incontrolável.
Existem determinismos ou previsibilidades quando tratamos do humano? Ao
tratar da condição humana Edgar Morin (2006) ressaltou:
O ser humano é um ser racional e irracional, capaz de medida e desmedida;
sujeito de afetividade intensa e instável. Sorri, ri, chora, mas sabe também
conhecer com objetividade; é sério e calculista, mas também ansioso,
angustiado, gozador, ébrio, extático; é um ser de violência e de ternura, de
amor e de ódio; é um ser invadido pelo imaginário e pode reconhecer o real,
que é consciente da morte, mas que não pode crer nela; que secreta o mito
e a magia, mas também a ciência e a filosofia; que é possuído pelos deuses
e pelas Idéias, mas que duvida dos deuses e critica as idéias; nutre-se dos
conhecimentos comprovados, mas também de ilusões e quimeras (p.59).
Um ser que vive entre amores e ódios, entre desmantelos e generosidades,
entre conflitos e conquistas de espaços de poder, lidando com imposições de modos
de ser e de viver. Assim, os aspectos ou as possibilidades de existência do humano
não residem apenas em uma perspectiva racional ou cnica. O humano é múltiplo,
tem seu ritos e seus mitos, cria suas religiões. Vive em coletividade, em sociedade.
Como afirma Morin (2006) é um ser que tem seu conhecimento racional-empírico-
técnico que convive com o conhecimento simbólico, mítico, mágico ou poético.
O ser humano é um ser complexo e o conceito de cultura é profundamente
relacional, não sendo passível de análises mecanicistas. Para Geertz (1989) o ritual,
o mito e a arte oferecem as respostas de uma essência coletiva, de como nos
sentimos diante das coisas, e de como as criações humanas seriam imagens
públicas dos sentimentos.
Podemos enxergar que alguns caminhos sinalizam a compreensão da
processualidade do passado. São caminhos freqüentes. Associações onde
provavelmente, as semelhanças dos ciclos biológicos das mulheres com a própria
dinâmica da natureza revelavam uma condição diferenciada que envolvia o gênero
feminino para as culturas ancestrais. Enquanto a terra semeada proporcionava
frutos, a mulher fecundada dava à luz. Através da terra e da mulher a vida
continuamente se renovava. As fases da lua completavam seus ciclos a cada 28
dias, assim como a mulher completava o seu ciclo menstrual. A natureza se
apresentava com formas e ciclos próprios, como o nascer e o pôr-do-sol, com as
27
fases de escassez de água e a posterior formação da chuva, com o advento do dia
sucedido pela inevitável noite.
Dentre tantos mistérios, assim também o nascimento da vida e a peremptória
morte, clamavam por um símbolo
8
, por um elo com o divino, que pudesse trilhar um
“sentido” para explicar os fenômenos da natureza e, inclusive, o sentido da própria
existência humana no mundo.
A cultura, ou as culturas, nascem da necessidade humana de dar significados
e sentidos ao viver e conviver.
Joseph Campbell (1994) pesquisou intensamente a relação de inúmeras
culturas ancestrais com as primeiras imagens de divindades, e o que foi encontrado
foi a constante representação da figura feminina como símbolo de comunicação com
o divino. A imagem da mulher, segundo o pesquisador, surge na história com um
símbolo de deusa, com uma conotação sagrada.
Mitos, deuses e religiões foram criados pelos seres humanos quando estes
observavam a si mesmos, quando refletiam sobre sua própria realidade circundante,
quando tentavam compreender os mistérios existentes entre o céu e a terra. Entre
agradáveis surpresas e fortes decepções foram sendo formados os princípios da
rede de conexões que engendra a cultura, ensejando a constituição de pontos onde
se ramificam incontáveis sentidos, sem núcleos ou raízes definidas, como no
conceito de rizoma, de Deleuze e Guattari (1997):
É também o que sucede quando os movimentos de 'massa', os fluxos
moleculares, se conjugam sobre pontos de acumulação ou de parada que
os segmentam ou os retificam. Porém, inversamente, ainda que sem
simetria, os caules de rizoma não param de surgir das árvores, as massas e
os fluxos escapam constantemente, inventam conexões que saltam de
árvore em árvore, e que desenraizam: todo um alisamento do espaço, que
por sua vez reage sobre o espaço estriado (p.227).
Por analogia, utilizaremos o como metáfora de nosso pensamento. No
fluxo da existência coletiva se encontram constantemente alguns nós, que
constituem pontos de acumulação ou de parada. Ao se estabelecerem definições e
papéis dentro de uma estrutura social, influenciando práticas religiosas e culturais,
se estabelecem também relações que envolvem poder. Numa visão panorâmica de
uma estrutura rizomática, esse predomínio do poder pode ser considerado, como
8
Para Jung o que chamamos símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode
ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e
convencional (JUNG, 2000, p. 20).
28
ponto de referência, um nó. Contudo, mesmo aparentemente seguro, este
permite pontos de fuga, estabelece conexões de onde brotam novas raízes
impulsionado outros movimentos. Analisemos, a partir de agora, um destes nós,
situado em um fluxo histórico, denominado patriarcado.
1.2 O poder dos nós
Um é um feito poderoso. Protege, fortalece, pode unir duas partes, mas
também amarra, prende, imobiliza, impede um fluxo. No início do depoimento da
artista Rosângela Melo no documentário “Mulheres Artistas: o tempo da arte” (2006),
existe um direcionamento que nos uma pista sobre o peso da concentração do
poder patriarcal:
Fui criada num sistema muito rígido, né, meu pai, de dizer você tem que
fazer assim ou assado. Aí quando eu resolvi sair de dentro da água, quando
tomei fôlego, eu resolvi que eu poderia ser mais ou menos parecida com
ele.
O depoimento de Rosângela Melo, apesar de curto, fala muito. Sentindo-se
oprimida pelo modo de criação paterno, a artista utiliza o símbolo do nascimento
“sair de dentro da água, tomar fôlego”, mas também alega que este renascimento a
fez ver que poderia ser mais ou menos parecida com ele”. Parecida para ser rígida
ou para ser livre? A reflexão da artista apresenta uma certa ambigüidade, pois ao
mesmo tempo em que se sente injustiçada pelo poderio patriarcal, toma-o como
modelo de atitude. Com relação à permanência da estrutura de pensamento
patriarcal na sociedade atual Shotter (1993) argumenta:
O patriarcado está entronizado nas nossas práticas sociais, nas nossas
formas de nos posicionar e de nos relacionar uns com os outros e nos
recursos que utilizamos para dar sentido uns aos outros. E não podemos,
com facilidade, rejeitar essas práticas (p.92)
A imagem seguinte à fala de Rosângela é de um trabalho da artista Bia
Cordovil. Uma mulher, envolvida por tecidos, pela seda, num ambiente
aparentemente macio e confortável, tenta sair a todo custo de dentro de um buraco.
Se debate de um lado para o outro, toma lego, coloca um braço e a cabeça para
fora e volta para o buraco, sem dele aparentemente conseguir se livrar.
Eu estava no limite de viver este conflito interno que era ser eu mesma e ser
uma mulher de família tradicional, casada, com filhos, filha de fulana que era
casada com sicrano [...] e então quando eu vim pra cá eu tava no limite
29
de subjugar essa Bia, então acho que essa coisa foi muito forte pra mim, foi
um impulso muito grande porque eu não conseguia mais camuflar [...]
9
Podemos perceber na performance de Bia Cordovil, assim como no
personagem “Alice” de Lewis Carroll, a presença do desejo de sair do salão escuro,
passar pelo buraco e chegar ao jardim florido. Essa passagem, entretanto, não é
fácil e nem é livre de conflitos.
A compreensão da vida social permeada por uma energia de luta é um
parâmetro que se repete desde a antiguidade. Como resultado da apropriação
diferenciada dos bens materiais e simbólicos, essa energia em desequilíbrio traz,
para Max Weber (1995), o fenômeno da dominação. Weber classificou os tipos de
dominação em três instâncias: legal, tradicional e carismática. Na dominação
tradicional, que aqui nos interessa, a obediência é conseqüência de uma dignidade
própria à pessoa obedecida, santificada por fidelidade e tradição. Existe um aspecto
consuetudinário arraigado na cultura, onde é manifestada uma permanência de
obediência e comando, contínua e durável ao longo dos tempos, sendo o tipo mais
puro de dominação tradicional o encontrado no domínio patriarcal.
A dominação patriarcal [do pai de família, do chefe da parentela ou do
‘soberano’] não é senão o tipo mais puro da dominação tradicional. [...] E,
efetivamente, a associação doméstica constitui uma célula reprodutora das
relações tradicionais de domínio (WEBER,1995, p. 353).
Para muitos autores, como o romeno Mircea Eliade (1992), nem sempre o
patriarcado imperou. Em seu argumento a identificação da fecundidade feminina
com a vida fez nascer o mito da deusa-mãe. Segundo o autor “A mulher relaciona-
se, pois, misticamente com a terra; o dar a luz é uma variante, em escala humana,
da fertilidade telúrica” (ELIADE, 1992, p. 120). A idealização da mitológica deusa-
mãe, Gaia
10
, serviu de bandeira arquetípica também para a defesa, inclusive, a
existência do matriarcalismo como organização social primitiva original: “[...] o
fenômeno social e cultural conhecido como matriarcado está ligado à descoberta da
agricultura pela mulher. Foi a mulher a primeira a cultivar as plantas alimentares”
9
Entrevista com a artista Bia Cordovil, em 05 de janeiro de 2006.
10
Na mitologia grega, Gaia é a personificação da Terra como deusa. Uma das primeiras divindades a
habitar o Olimpo, nasceu imediatamente depois do Caos. Sem intervenção masculina, gerou sozinha
o céu, as montanhas e o mar. Gaia, na mitologia clássica, personificava a origem do mundo, o triunfo
e ordenamento do cosmos frente ao caos, a propiciadora dos sonhos, a protetora da fecundidade e
dos jovens (COMMELIN, 1997). Na atualidade se fala novamente sobre Gaia, do planeta como um
sistema, inclusive muitos cientistas utilizam o conceito mitológico para justificar os desajustes à
natureza realizados pelo homem e que vem ocasionado reações e alterações climáticas no planeta.
30
(1992, p.121). A existência do matriarcado é argumento também defendido pela
feminista Rose Marie Muraro (2000, 2005).
Existem, porém, outras leituras possíveis a partir do mesmo tema. A poética
identificação do que seria próprio do feminino com a natureza trouxe conseqüências
nefastas para as mulheres. Conforme salienta Fritjof Capra (2002, p.37), “a
exploração da natureza tem andado de mãos dadas com a das mulheres”. A visão
da Terra como uma mãe bondosa e também como uma fêmea selvagem e
incontrolável assume um caráter deturpado na cultura patriarcal, onde a bondade é
associada à passividade e a natureza selvagem com a necessidade de controle,
passível de manipulação e exploração.
Portanto, até chegarmos em nosso tempo atual muita realidade foi criada. Nos
entrelaçamentos entre real e imaginário houve a construção de um mundo masculino
forte, agressivo e realizador, assim como foi idealizado um universo feminino
sensível, convenientemente passivo e domesticável. Observa-se, entretanto, que
essa noção do que é próprio do feminino revela uma trama impregnada por relações
de poder, onde, na busca de definições, se rotula e estereotipa.
Se houve na história uma abertura para a harmonia e a integração com a
natureza, o que predominou foi a ambição humana de conquista e manutenção da
propriedade, do controle e da dominação. Desta forma, é o patriarcalismo, como
estrutura de dominação social que vem a percorrer as instâncias da vida coletiva,
como no tipo puro de dominação tradicional da teoria weberiana. Analisando em
termos míticos, podemos afirmar que o terreno da fértil deusa é de posse e domínio
da figura arquetípica do herói guerreiro
11
. Elemento inquestionavelmente mais
adequado para servir de parâmetro para uma sociedade baseada em relações de
poder e conflito.
Como afirma Bosi (1999, p.8), a arte, rica em simbolizações, tem significado
uma atividade profundamente atrelada à existência humana: “a arte tem
representado, desde a Pré-História, uma atividade fundamental do ser humano”. Por
estar intrinsecamente inserida na pulsão de expressividade humana, é instrumento
farto para a manifestação das estruturas míticas e religiosas. Vale ressaltar,
11
Encontramos na referência arquetípica padrões de comportamento que existem no inconsciente
coletivo, desde a mais remota ancestralidade.
31
entretanto, que ao concretizar a força do mito
12
na sociedade, como feito na cultura
ocidental em análise, se reforça a questão do domínio, pois, conforme Durand
(1998, p.17), “a imagem mítica fala diretamente à alma”.
Podemos promover uma releitura no direcionamento dado ao mito de Eva,
como uma construção onde foi transmitido nas sociedades cristãs um sistema de
educação que concebia a gênese do mundo por intermédio do pecado da mulher.
No texto bíblico a primeira mulher vem da costela de um homem, é fraca e volúvel,
cede facilmente às tentações da serpente, induzindo o homem a comer com ela o
fruto proibido, é por culpa da mulher que os dois são expulsos do paraíso. A
interpretação do gênese impulsionou o processo de incutir na educação de
gerações, nos hábitos e costumes dos povos, a posição inferiorizada da mulher,
submetida então a um domínio patriarcal. A imagem mítica da mulher se delineia,
portanto, entre pecados, culpas e punições, permeada pela imposição de um
sistema severo de dominação e obediência.
A produção artística motivada pela hermenêutica bíblica foi vigorosa, como nas
figuras envergonhadas de “Adão e Eva expulsos do Paraíso”, de Michelangelo
(fig.02). Nos primeiros séculos cristãos, continuando pelo Renascimento italiano, a
cultura visual produzia uma figura sacralizada, frágil ou pérfida da mulher. Esta
imagem coexistiu e confirmou o que a estrutura social preceituava para disciplinar o
comportamento do sexo feminino.
12
Um mito pode ser designado por sua capacidade de fazer-se falar no imaginário de uma época e de
criar conexões com o real coletivizado.
Fig. 02: “Adão e Eva expulsos do paraíso”, Michelangelo
32
Além da pecadora, houve também a construção da imagem santa. Durand
(1998, p.19) afirma que é pela imagem [imago] que a alma humana representa com
maior exatidão ainda as virtudes da santidade”. Se na antiguidade mais longínqua
reproduzir a espécie era um privilégio dado ás mulheres pelos deuses, parir o filho
de Deus fez de Maria de Nazaré um dos maiores mitos da humanidade. Maria
permanece como mito a hoje, adorada por uma infinidade de fiéis simbolizada
como virgem, bondosa, pura e casta.
Manter Maria com a aura da virgindade, sempre pura, submetendo-se à
vontade de deus, sem questionamentos, e tendo permanecido sem pecado algum
ou mácula qualquer ao longo da sua vida, encarnou os objetivos de controle da
igreja católica. Assim, o ideal feminino seria valorizado pela castidade, obediência,
pureza e pelo amor materno. Eva simbolizava a punição pelo desejo da carne, pelo
amor sexual entre homem e mulher e pela expressão da vontade de conhecer. Maria
simbolizava o amor incondicional e a resignação, conforme salienta Costa (2002):
Assim, a produção pictórica em questão nos apresenta um culto dedicado a
uma divindade feminina boa e poderosa, cujos principais dons estão ligados
à sua condição de mãe capacidade de parir e dar à luz um deus, de
amamentá-lo e guiá-lo enquanto é criança e de ampará-lo quando adulto.
Além disso, ela assiste o filho em momentos difíceis, até mesmo na morte,
amenizando sua dor e confortando-o (p.70).
Pecadoras ou virgens santas? as mulheres foram alvo de construções sociais
onde se delineavam, nas linhas e entrelinhas das imagens, mitos e arquétipos o que
seria uma “natureza feminina”. Como impor uma natureza delimitada, um padrão de
comportamento a quem tem uma natureza múltipla, sendo esta uma característica
própria do ser humano? A construção da imagem feminina na arte e o conseqüente
reflexo dos papéis sociais da mulher foram sofrendo inúmeras transformações ao
longo dos tempos: da mitologia grega, à pecadora Eva. Das gravuras das bruxas no
período da Inquisição à imagem mais representada em toda a história da arte: a
Virgem Maria.
A força da doutrina religiosa, da tradição e do magistério da Igreja, se reflete
também um sistema de controle da sexualidade. O corpo engendrado como símbolo
de castidade se imbricado num eficiente sistema de adestramento. São
estabelecidos parâmetros de comportamento do que é certo e do que é errado,
revelando um eficiente todo de constituição da subjetividade, como analisado em
Foucault (2006):
33
A confissão, o exame de consciência, toda uma insistência sobre os
segredos e a importância da carne não foram somente um meio de proibir o
sexo ou de afastá-lo o mais possível da consciência; foi uma forma de
colocar a sexualidade no centro da existência e de ligar a salvação ao
domínio de seus movimentos obscuros. O sexo foi aquilo que, nas
sociedades cristãs, era preciso examinar, vigiar, confessar, transformar em
discurso (p.230)
A instauração do discurso como meio de controle da sexualidade conheceu na
noção de pecado um elemento para a segurança do casamento. Dentre outros
fatores, a união sacramentada entre homem e mulher garantiriam também a
segurança na transmissão da propriedade. A sexualidade passa a sofrer um rígido
controle: do pai, do marido, do irmão. Nasce dos costumes e das práticas todo um
sistema de obrigações legisladas que limitam a liberdade de ir e vir, assim como
doutrina a expressão das mulheres. O adultério transforma-se em um pecado mortal:
A virgindade e a monogamia feminina começam a ser enaltecidas como
valores e regras. O nascimento de um filho que não fosse do marido
ameaçaria a transmissão da herança. A presença feminina se reduz ao
âmbito doméstico, e ganha forma a separação entre o mundo público e o
mundo privado (AUAD, 2003, p.23).
A repressão religiosa estruturou um todo para coibir, desta forma, a
expressão dos desejos. Billouet (2003, p.164) acentua que na Idade Média, os
aspectos referentes à carne e à penitência “são um tema e uma prática unificados
por um discurso religioso”. O livro “O martelo das feiticeiras”, o Malleus Maleficarum,
escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger era o manual
usado para torturar e matar os acusados de bruxaria, principalmente mulheres. O
livro ensinava cnicas cruéis de tortura que deviam ser aplicadas para se obter as
confissões.
O período de "caça às bruxas" promoveu um cerceamento mais intensificado
do corpo e do prazer. A violenta estratégia repressiva obriga uma adaptação das
mulheres às estruturas de dominação patriarcais. O exercício dos saberes realizados
por mulheres são desconsiderados ou proibidos. Consoante Muraro (2005), as
mulheres detinham muito do conhecimento curativo das ervas, da medicina popular.
Com o nascente preconceito à sabedoria popular e com a euforia em torno do
cientificismo a tradição de um saber próprio das mulheres caiu em descrédito e a
legitimidade dos conhecimentos curativos migrou para a autoridade legitimada dos
médicos homens.
O descrédito dos saberes populares pode ser tributado à revolução científica.
A partir do século XV, o campo da ciência vivencia uma época de intensas
34
descobertas. O “penso, logo existo” de Descartes (2003) destacou a supremacia da
mente e do método científico, impondo um descrédito ao que não poderia ser
medido e quantificado. Francis Bacon (1999), por sua vez, condena o imaginário e
elabora uma teoria clara do procedimento indutivo e a experimentação científica
adota explicitamente a postura de domínio e exploração da natureza. Nos escritos
de Bacon, a natureza é colocada numa posição inferior e apartada da condição
humana. São dois lados que não se misturam. As relações entre homem e natureza
são pautadas pela dominação, tortura e escravidão. Desta forma, muito mais
importante do que governar os homens seria dominar a natureza. Em suas obras,
Nova Organum e Nova Atlântida, Bacon (1999) reforça esta idéia, onde o controle
científico sobre a natureza, facilitaria a vida num contexto geral. Para Capra, as
idéias patriarcais foram assimiladas pelo pensamento científico:
De fato, sua idéia da natureza como uma mulher cujos segredos têm que
ser arrancados mediante tortura, com a ajuda de instrumentos mecânicos,
sugere fortemente a tortura generalizada de mulheres nos julgamentos de
bruxas no começo do século XVII. A obra de Bacon representa, pois, um
notável exemplo da influência das atitudes patriarcais sobre o pensamento
científico (CAPRA, 2002, p.52).
A dominação da natureza e das mulheres passa a ser um fato naturalizado
durante séculos
13
. Para Muraro (2005, p.16), “as mulheres não têm mais acesso ao
estudo como na Idade Média e passam a transmitir voluntariamente a seus filhos
valores patriarcais então totalmente introjetados por elas”. A delimitação das
esferas competentes ao público e ao privado firmam território, tornam-se mais
incisivas. Com a imposição do espaço destinado às mulheres direcionado ao âmbito
doméstico, o rigor dos preceitos religiosos naturaliza a aceitabilidade social da
repressão sexual e do cerceamento da liberdade e do prazer. As mulheres são
induzidas a assumirem como natural a condição idealizada de criaturas dóceis e
submissas. Uma construção associada ao feminino que remete à passividade. O
masculino, ao contrário, é associado a uma postura ativa e realizadora.
Entretanto, na realidade, não teriam os seres humanos, como criaturas
complexas, porções do masculino e do feminino, em maior ou menor grau?
13
Antes da inquisição “na alta Idade Média, a condição das mulheres floresce. Elas têm acesso às
artes, às ciências, à literatura” (MURARO, 2005, p.13). Antes do início da caça às bruxas algumas
mulheres exerceram papéis sociais importantes. No século XIV, em Frankfurt, quinze mulheres
estudaram medicina e exerceram a profissão. As mulheres do povo, as camponesas, trabalhavam no
campo como um ofício cotidiano; havia muitas mulheres artesãs nas oficinas dos feudos (AUAD,
2003).
35
1.3 A arte renasce
Os pais da artista Milena Travassos
14
perceberam que a filha desde cedo
apresentava uma tendência para as artes. O interesse pela música, pela dança e
pelo desenho rapidamente conquistaram uma primazia na hierarquia das aspirações
infantis da artista: “(...)geralmente quem começa em arte é mais pelo desenho
mesmo, desenhava, copiava algumas coisas, com um desenho mais livre, e depois
eu fiz curso de desenho(...)”. No curso de desenho, Milena Travassos aprendeu a
utilizar diversos materiais: carvão, grafite, pastéis; assim como uma série de
técnicas: o impacto dos efeitos resultantes dos contrastes entre claro e escuro,
volumes, as possibilidades do uso da linha, segredos para o desenho do corpo
humano, regras adequadas para a composição de paisagens.
A vida de Milena Travassos nesse período era uma sucessão de descobertas.
O encontro com a arte significava um outro nascimento, como a possibilidades de
vivermos muitas vidas dentro de uma grande vida. Envolvidos pelos estímulos das
descobertas de outras possibilidades, alguns séculos atrás, nas primeiras
décadas do século XV, teve início na cidade de Florença o desencadeamento de um
processo de renovação, considerado um “renascer” da cultura.
Com o Renascimento, os artistas descobrem um instigante mundo e
experimentam técnicas de pintura que os possibilitem ir muito além dos efeitos
proporcionados pelas têmperas, encáusticas e afrescos. O esplendor do mundo
novo pode ser associado às descobertas do mundo real, da convivência humana,
simbolizado pela revolução científica. O homem agora é senhor do mundo,
compreende os mistérios da natureza e a arte deveria se aproximar ao máximo da
realidade captada pelo olhar humano. A pintura imitava o espaço. “E a
representação fosse ela festa ou saber se dava como repetição: teatro da vida
ou espelho do mundo, tal era o título de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se
e de formular seu direito de falar”. (FOUCAULT, 2002, p.23). Para o sucesso desta
empreitada alguns fatores foram decisivos: a descoberta da técnica de pintura à
óleo, pelo pintor Van Eyck; assim como o recurso do contraste claro/escuro e da
perspectiva, como salientado por Gombrich (1999):
As novas descobertas que os artistas da Itália e Flandres tinham feito nos
começos do século XV produziram um frêmito de emoção em toda a
14
Entrevista concedida em 12 de janeiro de 2006.
36
Europa. Pintores e mecenas estavam igualmente fascinados pela idéia de
que a arte pudesse ser usada não só para contar a história sagrada de uma
forma comovente, mas para refletir também um fragmento do mundo real
(p.247).
A utilização da perspectiva foi uma das mais revolucionárias técnicas nas artes
visuais. Adotando princípios matemáticos, a construção de uma composição em
perspectiva permite representar, num plano bidimensional, uma realidade que o
olhar humano percebe como tridimensional. Leonardo da Vinci representa o espírito
do humanismo na época, com suas descobertas científicas aplicadas à arte, à
arquitetura, à anatomia, permeadas por inúmeras invenções geniais.
O olhar científico é intensificado com o método criado por René Descartes. A
visão, entretanto, que se impõe é mecanicista. O cogito cartesiano promoveu uma
super valoração da mente em detrimento da matéria. A concepção do universo era
comparada a de uma máquina. O funcionamento da natureza seria regido por leis
mecânicas, onde tudo poderia ser descrito e quantificado
15
.
Foi a partir do renascimento também que houve uma individuação maior do
“ser” artista. Antes do renascimento não havia ainda uma valorização social da arte
como profissão. A arte no mundo antigo possuía um sentido de expressão dos
costumes, crenças religiosas e valores da sociedade. O “nome do artista” ainda não
merecia um destaque, o foco era centralizado no assunto que se queria transmitir.
Assim foi com a arte egípcia, em seus entrelaçamentos entre dois mundos, da vida
terrena e na vida espiritual, como também de sua divisão social, com um forte
poderio do faraó; com a arte grega, com suas formas perfeitas ou suas pinturas de
batalhas; os primeiros séculos da pintura cristã, com o intuito de ilustrar a saga de
Jesus Cristo e seus seguidores, realizada em catacumbas. Norbert Elias (1995)
argumenta que a arte no passado possuiu um caráter utilitário, tinha uma função
específica:
As obras do passado tinham uma função menos específica num contexto
social mais amplo eram, por exemplo, imagens de deuses nos templos,
adornos para túmulos de reis mortos, música para banquetes e de dança. A
arte foi “arte utilitária”, antes de se tornar “arte” (ELIAS,1995, p.50).
A popularização e o reconhecimento social do “nome de artista” se tornam
mais evidentes a partir dos primórdios da renascença, com Giotto. Todavia, esse
15
Entretanto, o cogito cartesiano, em suas concepções de verdade absoluta e cisão entre mente e
cérebro, apesar de ter vigorado inconteste por muito tempo, foi desbancado com as descobertas da
física quântica no século XX, através da teoria sistêmica do universo, onde tudo se relaciona através
de campos de energia.
37
reconhecimento estava atrelado, do renascimento até os movimentos
emancipatórios da revolução francesa, a uma relação de subordinação do artista a
uma sociedade de corte.
Conceito elucidativo é desenvolvido por Norbert Elias (1995), ao descrever as
diferenças entre uma arte de artesão e uma arte de artista. A primeira assume um
esquema de produção específico para um patrono, onde existe uma clara hierarquia
social envolvendo as partes, sendo a imaginação do artista subordinada ao gosto e
interesse do patrono. A segunda, arte de artista, é desenvolvida para um mercado
de consumidores anônimos, com liberdade de expressão dos produtores de arte e
uma certa paridade social entre as partes envolvidas:
Na fase da arte artesanal, o padrão de gosto do patrono prevalecia, como
base para a criação artística, sobre a fantasia pessoal de cada artista. A
imaginação individual era canalizada, estritamente, de acordo com o gosto
de classe dos patronos. Na outra fase, os artistas são, em geral,
socialmente iguais ao público que admira e compra sua arte. No caso de
seus quadros principais o establisment dos especialistas num dado país, os
artistas, enquanto formadores de opinião e a vanguarda artística, são mais
poderosos que seu público. Com seus modelos inovadores, podem guiar
para novas direções o padrão estabelecido de arte, e então o público em
geral pode ir lentamente aprendendo a ver e ouvir com os olhos e ouvidos
dos artistas (ELIAS, 1995, p.47).
As regras da arte ditada por patronos ou por artistas assumiam feições
próprias conforme as épocas e os movimentos. Sendo assim, convém indagar como
as mulheres participavam desse sistema.
1.4 Mulheres: artistas invisíveis
Fazer parte tanto do grupo da arte de artesão como do grupo da arte de artista
não foi tarefa fácil para as mulheres no passado. A raridade do conhecimento das
obras de arte realizadas por mulheres no período da renascença corrobora a
proliferação de uma estrutura receptiva às capacidades técnicas e criativas dos
artistas homens. Seria necessária a constituição de um terreno receptivo, toda uma
confluência de circunstâncias que propiciassem a recepção de uma arte concebida
por uma mulher. Mesmo assim, com todo o talento empregado, unido a uma exímia
dedicação, a conquista da equiparação do reconhecimento da capacidade artística
entre os gêneros ainda levaria séculos para balbuciar seus primeiros sinais.
Peter Burke procede à uma análise da História Cultural, revelando a existência
de uma longa série de estudos sobre as mulheres artistas e mulheres humanistas no
38
período renascentista. No argumento das pesquisas existe a concordância expressa
sobre a dificuldade do reconhecimento da capacidade das artistas serem levadas a
sério por seus “colegas homens, ou mesmo encontrar algum tempo para estudar,
quer casassem ou entrassem para um convento” (BURKE, 2005, p.66).
Apesar de uma estreita abertura, algumas poucas mulheres conseguiram um
certo espaço de atuação. Dentre mulheres artistas que viveram na época da
Renascença, destaca-se a italiana Sofonisba Anguissola (1527-1603), sendo
considerada por alguns teóricos a primeira mulher artista do período renascentista.
Sofonisba Anguissola produziu intensamente durante toda a sua vida. Como era
praxe no período, desenvolvia uma arte de artesã, sendo artista da corte do rei
Felipe II da Espanha. Mais tarde, o mesmo cargo seria ocupado por Diego
Velásquez, durante o reinado de Felipe IV. Algumas mulheres como Sofonisba
Anguissola conseguiam algum espaço, apesar dos cerceamentos. Conforme
destaca Manguel (2001):
Por meio de uma série de circunstâncias notáveis, o século XVI permitiu a
algumas mulheres certo grau de liberdade artística. Santa Caterina Vigri,
uma exímia musicista bolonhesa e pintora de miniaturas que morreu em
1493 e foi canonizada em 1712, inaugurou aquilo que a professora Vera
Fortunati chamou de “a lenda das mulheres artistas”, a exemplo da
veneziana Bárbara Longhi e da cremonesa Sofonisba Anguissola (p.134).
Sofonisba Anguissola realizou uma série de auto-retratos onde se colocava,
inclusive, como mulher artista. Suas pinturas eram admiradas pela sociedade da
época e seus trabalhos foram erroneamente confundidos como sendo de Rubens ou
Ticiano. Curioso é o fato de Sofonisba Anguissola ter ocupado o cargo de pintora
oficial da corte e seu nome não ter sido dignamente registrado na história. Foi
contra os preconceitos, lutou e conquistou o direito de ser reconhecida como artista
pela sociedade da época. A história da arte, lamentavelmente, cita com severa
parcimônia a atuação da artista.
Para os artistas da época, educar um filho para desempenhar um papel na
sociedade de corte era corriqueiro. Transmitir o ofício para os filhos mais dotados
artisticamente da prole consistia, praticamente, numa regra. O pai assumia o papel
de mestre. Próspero Fontana era um artista bolonhês que repetiu a tradição, com
apenas uma exceção: ensinou as artes do ofício para uma filha: Lavínia Fontana
(1552-1614). A artista aprendeu com o pai a técnica da pintura, conquistou clientela
própria e estabeleceu-se paulatinamente como artista profissional. Lavínia era muito
39
requisitada por senhoras da sociedade que apreciavam seu rigor nos detalhes e o
esmerado uso que a artista fazia de sua cartela de cores. A habilidade de Lavínia
era um choque para a corte, sendo considerada,
junto a outras mulheres artistas da época, “raridades
curiosas”, como frisa Manguel (2001).
Um dos trabalhos mais fortes que Lavínia
realizou foi o retrato de Tognina Gonçalvus (fig. 03).
Tognina pertencia a uma família que tinha a
característica genética de nascer com pêlos pelo
rosto e corpo. Os integrantes da família Gonçalvus
foram objeto de estudo pela incipiente comunidade
científica, como também alvo de curiosidade e
mexericos maldosos oriundos da corte. Uma mulher
artista pintando uma criança peluda significava para
os parâmetros da época um encontro “monstruoso”, uma excrescência, como
descreve a reflexão de Alberto Manguel (2001, p.136): “Será que elas conversavam
sobre sua solidão, sobre o peso de serem algo fora do comum, de um monstro para
o outro, de uma criança-lobo para uma mulher-pintora?”
Artemisia Gentileschi (1593–1653) para Janson (2001), foi a primeira mulher
artista a ter destaque na história da arte, apesar de raramente mencionada. A artista
foi violentada por seu mestre, o pintor Agostino Tassi. Apesar de aberto um processo
pela família da artista, a condenação do pintor não foi efetivada. Foi necessário
mudar de cidade para amenizar o trauma.
Sua pintura, seu estilo, é um dos mais expressivos do barroco italiano. Elegeu
as mulheres com heroínas em seus quadros, apresentando um caráter diferente da
visão masculina na época, tendenciosa a representar a mulher numa posição fria e
distante. No trabalho de Artemísia, as personagens esboçam reações, reagem à
violência masculina, como na pintura “Judite e Holofernes” (fig.04).
Fig. 03”Retrato de Tognina”. Lavínia
Fontana, 1585
40
Em todos os culos subseqüentes são
encontrados nomes de mulheres artistas,
normalmente fruto de pesquisa acadêmica
de mulheres como Vera Fortunatti, Ana Mae
Barbosa, Ana Simioni, Cláudia Damiani
Meyer, dentre outras. As pesquisadoras
citam as seguintes artistas: Catharina van
Hemessen (1528 - 1587), no século XVI,
pintora, fez inúmeros auto-retratos; Clara
Peters (1594-1657), pintora de naturezas-
mortas; Judith Leyster (1609-1660), pintava
cenas de costumes; Maria Sibylla Merian
(1647-1717), tendo colaborado intensamente
para o progresso da ciência, ilustrando
periódicos científicos, assim como o fez
Rachel Ruysch (1664-1750); Elisabeth-Louise Vigée-Lebrun (1775-1842), pintora da
corte de Maria Antonieta e Angelica Kauffman (1741-1807) que questionou as
normas femininas para a pintura de retratos, produzindo trabalhos de pintura
histórica.
1.5 A construção de uma imagem ideal
Em uma sociedade imersa em transformações e impulsionada pela euforia das
descobertas científicas os fatores que realmente instigavam as necessidades de
comunicação humana não eram mais os cenários idílicos, compostos por anjos e
santos. Se a construção da linguagem artística encontrou no imaginário uma
constante fonte de inspiração, fundamental era perceber que a partir da revolução
científica o foco havia mudado. As novas possibilidades do mundo da arte
apontavam o olhar para o terreno das vivências humanas, de suas construções, de
seus modos de viver, de seus hábitos e costumes, de suas conquistas. A busca dos
artistas caminhava para o fomento da capacidade de espelhar, com a maior
fidelidade possível, a realidade circundante. A aura do sagrado que envolvia os
personagens míticos foi estrategicamente transferida e adaptada para a vida dos
Fig. 04: : “Judith e Holofernes”, Artemísia
Gentileschi
41
seres humanos, que passaram a ser o motivo maior da inspiração artística do
período em comento.
Afirmamos anteriormente que a imagem da mulher foi alvo constante de
representação e idealização na produção artística nos mais variados tempos. Sendo
assim, a construção da imagem feminina estava condicionada por padrões de
representação que inevitavelmente conduziam na delimitação dos papéis sociais
que caberiam às protagonistas dos temas pictóricos.
Em sociedades hierarquizadas em títulos de nobreza, ou mais tarde,
diferenciada em classes por privilégios econômicos, a mutabilidade na preferência
por temas e gêneros artísticos é compreensível. Cada vez mais as sociedades e os
indivíduos se diferenciam e necessitam pontuar essa diferenciação. A produção
artística segue esse movimento, acompanhando as transformações sociais onde,
após uma longa produção baseada no fervor da apologia sacra, o retrato,
principalmente, o retrato feminino, ocupa um espaço significativo na preferência
social.
As razões que permeiam as transformações na produção dos artistas
encontram justificativa nas relações sociais e na necessidade de delimitação de
espaços de poder, na exaltação do “eu”, nas relações de comércio que se
estruturam na sociedade e no campo da arte, compondo sua gênese social, com
suas crenças e jogos de linguagem, seus valores próprios, seus interesses e
relações simbólicas, conforme salienta o pensamento de Bourdieu (1996). São
traços que se delineiam mais claramente a partir de delimitações de territórios físicos
e simbólicos, como o espaço social do homem e da mulher, do ser humano livre e do
ser humano escravizado, das relações entre dominantes e dominados, ditadas, na
maioria das vezes, por critérios econômicos ou consuetudinários.
Com relação à intensificação das relações de comércio no seio da produção
artística Costa (2002) acentua:
[...] a produção artística foi pouco a pouco se retirando do espaço público
para os recintos privados nos quais transitava a elite política. Não é preciso
dizer que a pintura mural foi sendo substituída pelas telas que, ao mesmo
tempo que facilitavam a vida do pintor, permitiam sua comercialização. A
arte não se destinava mais ao coletivo, mas se tornava, gradativamente, um
bem privado (p.89).
Como bem privado, os retratos buscavam exaltar a beleza, ressaltando
também um aspecto permeado pela futilidade, pela vaidade, pela representação das
42
posses econômicas que justificassem a razão de um destaque social. A idealização
das imagens referentes ao universo das mulheres corroboraram para cristalizar na
cultura social os requisitos indispensáveis para caracterizar o que seria um modelo
de ser e de viver ideal. A representação da imagem feminina vem acompanhada
dos mais finos tecidos, dos mais sofisticados acessórios, de uma postura impoluta,
desde a mais tenra idade.
A presença freqüente da imagem de mulheres como tema dos retratos é
sintomática. A recorrência dos assuntos em torno de adornos e enfeites, cumpre o
desígnio de popularizar uma imagem idealizada do que seria esperado do ser
feminino, cristalizada na nobre dama, gentil, doce, suave, delicada, enfim, “feminina”.
Com seus emblemas e símbolos peculiares, emaranhada pelos laçarotes e pela
decoração, a mulher retratada reforça a compreensão que é tão profunda quanto o
aparato que a envolve, sendo facilmente coagida a permanecer na posição em que
se encontra: passivamente esperando seu príncipe.
Contextualizando a sociedade da época, analisando os percursos que
atravessam a história humana, podemos encarar o século XVIII como um período
onde houve uma iluminação das idéias, por uma amplificação das possibilidades de
conhecimento do mundo pelo humano, guiada pelo clarão da razão. O homem que
compreende a razão compreende também, a si mesmo. Individualiza-se. O sistema
de valores do Iluminismo centraliza seu foco na conquista de direitos de cunho
fortemente econômico: propriedade e mercado livre, no que enfim, vem constituir o
embasamento do sistema capitalista.
No campo das artes visuais a mulher permanece como motivo, inspiração,
objeto de representação
16
. A peremptória exclusão destinada às mulheres no
espaço decisório da sociedade, do convívio blico, não se repetiu no universo das
artes visuais. A presença das mulheres na arte sempre foi freqüente, estando
atrelada, entretanto, ao direcionamento de um olhar masculino. A farta produção
artística do passado atualmente é utilizada, inclusive, como prova do estilo de vida
submisso e dos hábitos que o passado reservava às mulheres. Sem direito a criarem
suas próprias realidades as mulheres condicionaram suas existências ao que foi
construído pelo olhar do outro:
16
Michelle Perrot (2007, p.11) alega que até o “século XVIII ainda se discutia se as mulheres eram
seres humanos como os homens ou se estavam mais próximas dos animais irracionais”.
43
A escassez de vestígios acerca do passado das mulheres, produzidos por
elas próprias, constituiu-se num dos grandes problemas enfrentados pelos
historiadores. Em contrapartida, encontram-se mais facilmente
representações sobre a mulher que tenham por base discursos masculinos
determinando quem são as mulheres e o que devem fazer (SOIHET, 1997,
p.295).
As cenas históricas, por possuírem um caráter de participação pública ou
poder decisório dos rumos coletivos da sociedade, registram uma rara
representação da imagem feminina como tema da composição. Em contrapartida, na
França, Delacroix pinta uma tela incomum. Elege uma mulher como símbolo da
República. Com os seios à mostra e segurando a bandeira francesa, ela guia seu
povo em meio a corpos inertes para libertá-los da opressão. A pintura traz a mulher
como símbolo de liberdade, da igualdade, da fraternidade. A realidade dos fatos,
entretanto, apresentava um cenário diferente do idealizado na pintura do artista.
Segundo o estudo realizado por Joan Scott (2002), intitulado “A cidadã paradoxal”,
as mulheres costumavam participar das diferentes revoluções, atuando
anonimamente, para serem posteriormente descartadas.
Durante a Revolução Francesa, a participação das mulheres foi intensa nos
processos revolucionários, na luta pela conquista de direitos. O fim da monarquia, a
queda da Bastilha, conheceu o enfrentamento de uma enorme multidão de mulheres
do povo. Em meio a um contexto de miséria absoluta, as mulheres foram
extremamente corajosas na luta pela subsistência da família. Scott (2002) analisa o
nascedouro e a efervescência do movimento feminista na França, durante a época
da revolução. Infelizmente, a conquista dos princípios de liberdade, igualdade e
fraternidade, que constituíam a bandeira da revolução, eram direitos com
aplicabilidade exclusiva para os homens. Scott centraliza seu argumento na
participação das mulheres no contexto dos movimentos, dentre elas: Olympe de
Gouges, escritora de peças de teatro e artista. A resistência masculina à
representação política e à cidadania das mulheres fica patente quando Olympe
apresenta em 1791, a "Declaração dos Direitos das Mulheres e da Cidadã", que a
declaração somente se referia ao sexo masculino. A Assembléia reunida,
entretanto, rejeita a declaração, alegando que a Revolução Francesa é uma
‘revolução de homens”. O destino de Olympe foi trágico: foi condenada à morte e
decapitada na guilhotina em 1793, acusada de viver de excessos nocivos da
imaginação . Olympe foi uma mulher de pensamento fértil, uma mulher artista, que
44
não foi reconhecida pela história como os pensadores homens da época em que
Olympe viveu.
Perrot (2007) critica a maneira como os discursos existentes acerca da
participação de mulheres nos movimentos sociais encontram eco na História. Para a
autora, trata-se de mais um discurso que estereotipa:
De maneira geral, quando as mulheres aparecem no espaço blico, os
observadores ficam desconcertados; eles as vêem em massa ou em grupo,
o que, aliás, corresponde quase sempre a seu modo de intervenção
coletiva: manifestam-se na qualidade de mães, de donas-de-casa, de
guardiãs dos víveres etc. usam-se estereótipos para designá-las e qualificá-
las. Os comissários de polícia falam de “megeras” ou de “viragos” [mulheres
de aspecto e atitudes masculinizadas] para designar as manifestantes,
quase sempre taxadas de “histéricas” caso soltem o menor grito. A
psicologia das multidões empresta a estas uma identidade feminina,
suscetível de paixão, de nervosismo, de violência e mesmo de selvageria
(p.21).
Para a autora (2007) a ausência e os equívocos acerca da história das
mulheres vem recebendo preenchimentos e releituras, clareando, aos poucos, o céu
plúmbeo permeado pelas sombras da história oficial.
1.6 Um céu sempre azul
A arte nascida durante a agitação do período revolucionário, é classificada
como acadêmica. Instaura-se uma estrutura baseada em escolas, salões e prêmios.
A arte acadêmica é uma arte estatal. Os pintores acadêmicos são doutrinados na
severa obediência a cânones e regras de composição. Uma escola que cultuava a
cópia e condenava as transgressões. Fechada em suas regras peremptórias, guiava
seu rumo sempre com os mesmos signos de composição. Surgia então um mundo
convencional, onde a pintura, por exemplo, representaria um céu sempre azul, onde
os campos seriam sempre verdes e a cor da pele, indubitavelmente, sempre cor de
carne. Podemos observar que a estrutura acadêmica impõe fórmulas e regras de
conduta para os artistas, que colocavam seus objetivos na construção de uma
carreira que seria pautada pela quantidade de títulos alcançados, conforme salienta
Bourdieu (2003a):
Puros produtos da Escola, os pintores saídos desta formação não são nem
artífices, como em outros tempos, nem artistas, como os que tentam impor-
se contra aqueles: são em sentido lato, mestres. A diferença maior em
relação ao artista no sentido moderno do termo esem que eles não tem
uma <vida> digna de ser contada e celebrada, mas sim uma carreira, uma
sucessão bem definida de honras, da Escola de Belas-Artes ao Instituto,
45
passando pela hierarquia de recompensas atribuídas na época das
exposições no Salão (p.260).
A sociedade sente o impacto da introjeção de valores sociais de cunho
mercadológico, inclusive da crescente valorização do “nome” do artista. A
demarcação entre o público e o privado se torna mais evidente, atingindo, inclusive,
o campo da arte. Enfim, todos os signos decorrentes da individualidade, da
exaltação do “eu”, vem motivar a exploração da imagem durante o século XIX, que
traduz, obviamente, um reflexo dos valores cultuados pela coletividade. A estrutura
baseada em salões e exposições que privilegiam o culto ao nome do artista
permanece firme até os dias atuais, conforme analisaremos posteriormente.
A imagem da mulher como um ideal a ser representado era tema recorrente na
preferência dos artistas. A composição da imagem assumia um caráter romântico
nos retratos ou em cenas de costumes, ou poderia ser representada tímida, fria ou
devassa nos nus artísticos. O nu artístico era uma abordagem incentivada, que
nas academias e escolas de arte existiam aulas com modelo vivo, para aprender a
desenhar a anatomia do corpo humano (freqüentar essas escolas era um privilégio
masculino). No entanto, era necessário que se seguisse o rigor de algumas regras
que apresentassem a nudez com os princípios de uma pose acadêmica,
aparentando uma certa frieza e distanciamento: “a nudez deveria ser sempre, na
pintura neoclássica, uma atitude distante e impessoal” (COSTA, 2002, p.94).
Um dos mais polêmicos nus femininos realizados foi a obra com o significativo
título A origem do mundo, de Gustave Coubert, encomendada pelo diplomata turco
Khalil Bey. Uma mulher deitada, tem a vagina exposta, com um lençol que lhe
cobria dos seios para cima, tornando-a anônima e impotente, visando deleitar os
olhares masculinos. Tamar Garb analisa o impacto social desta pintura,
contrapondo-a a outra obra do mesmo artista intitulada A fonte, representando
igualmente um nu feminino, mas dentro dos padrões morais de aceitabilidade para o
gênero:
[...] é provocativa mas aceitável para exibição pública no contexto misto do
Salão de Paris de 1850; o outro (a origem do mundo) é um trabalho que
pode ser visto como pornográfico, dirigido a um mundo de negócios
exclusivamente masculinos (GARB, 1998, p.277).
Ao se instaurar estruturas narrativas baseadas no aspecto pictórico, é aberto
um território de possibilidades plúrimas de significados iconográficos profundamente
engendrados pela cultura. A construção da imagem da mulher através da linguagem
46
da arte assume um caráter relevante, que o conhecimento de sua história se
geralmente através da esfera privada, pois os registros da participação feminina no
âmbito público são exíguos. A memória das mulheres permanecerá, por muito
tempo, como uma memória do universo privado. A atividade artística, foi preciosa,
neste aspecto, para a compreensão desta memória. Como o destino das mulheres
era a esfera privada, elas por largo tempo estiveram ausentes das atividades
consideradas dignas de serem registradas para o conhecimento das gerações
subseqüentes” (SOIHET, 1997, p.295).
Esse olhar do “ser” mulher por intermédio da linguagem da arte é um olhar
construído. Portanto, impregnado de intencionalidade, quando se compõe um nu ou
um retrato feminino. Para Soler (2005, p.30) “a mulher é uma invenção da cultura
‘histórica’, que muda de feição conforme as épocas”.
Visando atender interesses
diversos, inclusive de manutenção de relações de poder, as mulheres estariam,
desta forma, profundamente envolvidas por uma lógica patriarcal. Na opinião de
Shotter (1993, p.92), se o
patriarcado está entronizado nas nossas práticas sociais
,
precisarmos compreender como seremos capazes de desenvolver novas práticas”.
O desenvolvimento dessas novas práticas passa pela análise da extensão da
naturalização do nó patriarcal. O domínio patriarcal instituiu formas de ver e pensar o
mundo. A perspectiva que a arte propicia, no sentido de simbolizar um olhar
ampliado acerca de novas possibilidades, de outros mundos possíveis, nos direciona
em caminhos de resignificação do existir coletivo e individual. A arte revelou essas
questões de uma forma muito intensa, inclusive para as mulheres.
Essa mudança das práticas sociais que envolvem o gênero feminino sentirá
um de seus maiores efeitos no campo da arte. Acompanhando a avalanche de
movimentos artísticos que surgirão a partir do impressionismo
17
, no final do culo
XIX, as mulheres conquistarão, pouco a pouco, o direito de serem reconhecidas
como artistas profissionais. Conquista acompanhada de intensas lutas,
transgressões e subversões, no propósito de sublimar as convenções de uma
sociedade estruturada em seus mais variados campos, sob o domínio do patriarcado
e da complexa rede de conflitos que permeiam as relações de poder entre os
gêneros e entre as classes sociais.
17
O Impressionismo revolucionou os parâmetros da pintura e marcou o início das tendências e
quebra de padrões que marcariam as artes plásticas no século XX.
47
1.7 A arte impressiona
Podemos afirmar que a produção em artes visuais realizada por mulheres
encontrou uma visibilidade mais patente a partir do nascedouro do movimento
impressionista francês, na segunda metade do século XIX. O cerceamento à
recepção da produção artística de autoria feminina encontrou nessa época um
enfretamento mais engajado, onde o questionamento do paradigma estabelecido
acerca da superioridade do “gênio” masculino se tornou mais efetivo.
Estamos agora em um momento em que as transformações sociais asseguram
um terreno fértil para a absorção de uma “arte de artista”, como conceituado em
Norbert Elias (1995). O século XIX, em suas inúmeras emergências, em suas
massas urbanas a se mesclarem com avanços tecnológicos, enfim, a série de
alterações dos modos de sentir a vida que a modernidade implementou, propiciaram
a consolidação de uma cultura de mercado, anunciando um sistema para as artes
voltado para compradores anônimos e mediada por instâncias como negociadores,
editores e empresários. A arte assume um caráter de negócio, e a diferença social
que colocava artistas e compradores em pólos distantes, tende a se tornar mais
elástica.
O advento da pintura moderna, que nasce na França na segunda metade do
século XIX, significa uma revolução simbólica no mundo da arte, impulsionada pelo
artista Manet e pela avalanche impressionista. Nesse momento, a queda da rigorosa
estrutura acadêmica restou inevitável. Um novo movimento se impõe. Algumas
ramificações brotam do seguro acadêmico e tornam o terreno propício para
acolher a grande subversão conceitual e estética no campo da arte. A pintura se
liberta. Impressiona.
Florescem assim algumas possibilidades de ampliação do olhar nas artes
visuais. O mundo é captado pelos artistas a partir de uma diversidade de sentidos e
pluralidade de representações. Bourdieu (2003a) argumenta sobre a flexibilização
que sofre o poder de nomeação. A convenção que atribui legitimidade à produção
artística sente abalos e mudanças em suas crenças. O novo movimento,
definitivamente, é impactante:
O universo de produtores de obras de arte, deixando de funcionar como
aparelho hierarquizado controlado por um corpo, institui-se pouco a pouco
como campo de concorrência pelo monopólio da legitimidade artística:
48
ninguém pode, para o futuro, arvorar-se em detentor absoluto do nomos,
mesmo que todos tenham pretensões a tal título. A constituição de um
campo é, no verdadeiro sentido, uma institucionalização da anomia.
Revolução de grande alcance que, pelo menos na ordem da arte que se vai
fazendo, elimina qualquer referência a uma autoridade suprema, capaz de
resolver em última instância: o monoteísmo do nomoteta central cede o
lugar à pluralidade dos cultos concorrentes dos múltiplos deuses incertos
(2003a, p.278/279).
A produção artística que até então estava condicionada ao peso de uma
ditadura institucional sente a mudança das regras do jogo. Vários fatores
influenciaram os ventos de transformação, sendo um dos mais fortes a libertação da
pintura da obrigação de ter que reproduzir a realidade. A partir da popularização da
fotografia a execução desta tarefa não cabia mais à pintura. Desta forma, “a ruptura
com o estilo acadêmico implica a ruptura com o estilo de vida que ele supõe e
exprime” (BOURDIEU, 2003a, p.272). Aos poucos a arte acompanha as
alterações e rupturas da sociedade. A arte se configura como um reflexo da vida.
Nesse sentido, Bueno (1999) reflete sobre o período:
Uma das regras básicas abolidas pelos modernos veio como decorrência do
processo de autonomização do olhar. A visualidade deixou se ser conduzida
por modelos preestabelecidos como as normas da perspectiva clássica
para desenvolver-se afinada com o olhar de cada artista. Houve um
afastamento da norma e da tradição em favor da valorização da experiência.
Rompia-se com a unicidade, instituindo uma pluralidade de visões (p.21).
Um único estilo ramifica-se em um caminho múltiplo. Várias alternativas,
atalhos, bifurcações, rumos. Pluralidade de visões. Na busca de novos caminhos a
artista Rosa Bonheur, foi uma precursora, assim como muitas mulheres artistas que
a sucederam. Com um novo olhar e uma nova mentalidade, Rosa Bonheur rompeu
muitas convenções de sua época. Ainda sob o domínio da ditadura acadêmica,
conseguiu ser reconhecida como uma artista de qualidade em pleno século
dezenove. Rompendo o cerco da estrutura acadêmica, recebeu uma medalha de
ouro na exposição oficial de pintura do Salon de Paris em 1848, a Medalha da
Legião de Honra francesa em 1865. Para executar seus trabalhos vestia-se com
roupas masculinas – um escândalo para a época, além de visitar regularmente feiras
de cavalos e dissecar carcaças de animais em matadouros, para impor mais
realismo na composição de sua pintura. Como relata Tamar Garb, a obra “A feira de
cavalos” causou forte impacto na sociedade parisiense:
Em virtude de sua escala, do tema, do sucesso comercial e da recepção da
crítica, trata-se de um quadro muito importante em Paris e proporciona um
precedente de uma artista que transgrediu os estereótipos de nero [em
seu trabalho e em sua vida], tornando-se assim mentora de muitas artistas
que vieram depois (GARB, 1998, p.233).
49
Rosa Bonheur sofreu muito preconceito e
represálias. O rompimento com as convenções, com
relação ao posicionamento social, no entanto, não foi
exatamente uma marca do comportamento das
impressionistas. As obras de mulheres pertencentes
a este
grupo, como Mary Cassat (fig. 05) e Berthe Morisot
refletem, em sua imensa maioria, aspectos do cotidiano da
vida que era destinada ao sexo feminino: a casa - o
espaço privado ou, ainda, os espaços de lazer tipicamente
burgueses, como o teatro e a ópera.
As artistas aderiram
à nova percepção de mundo pictórica, mas sua arte ainda
reflete um mundo com amarras. A limitação imposta ao trânsito do olhar determinou,
inclusive, cruéis críticas à esta produção, denominada como fútil ou pouco
significativa do ponto de vista estético, como argumenta Garb (1998, p.235):
A despeito do fato de que muitas delas expunham suas obras na época,
elas atuavam dentro de uma estrutura de poder das instituições artísticas
que era exclusivamente masculina. Excluídas de todos os organismos
oficiais, por lei ou por costume, nunca seriam vistas em nenhum retrato
formal de grupo de especialistas.
A obra de Berthe Morisot (fig. 06) é raramente citada como uma produção
significativa ou marcante. Estudos posteriores revelaram a influência que a artista
exerceu no grupo dos impressionistas, principalmente na obra de Manet,
considerado o grande impulsionador do grupo. Mary Cassat, mesmo com a
produção pictórica também legada a um segundo plano no contexto histórico,
exerceu um papel crucial na constituição do campo social da arte, contribuindo para
o reconhecimento da importância da produção impressionista francesa nos Estados
Unidos. Cassat, que era americana e vivia na França, implementou, - acionando sua
privilegiada rede de contatos, um sistema de aquisição de obras por parte de
milionários e colecionadores americanos.
A ampliação das trocas no mundo da arte, com suas redes de contato, como
exemplificado no caso de Mary Cassat, aliada ao incipiente sistema de aquisição de
obras, propiciou, nos EUA, a adoção de um sistema de aquisição e constituição de
acervo. Desta forma, houve a paulatina formação de um aparato institucional, com
museus e galerias. É estruturado, no sentido que Bourdieu (2004) emprega, no
campo da arte, em múltiplas formas e cores, o mercado de bens simbólicos. O
Fig. 05: : ‘Mãe e criança”. Mary
Cassat.
50
estereótipo do artista boêmio marca o período. Como
artista maldito ou gênio criador, a nascente política
para as artes estava em consonância com a nova
forma de percepção do mundo, que traçava seu rumo
ao caminho do autoral, idealizada pelos próprios
artistas, quebrando a ultrapassada supremacia das
inquestionáveis regras acadêmicas e das instituições.
Nascia, ainda, junto à revolução artística-
conceitual, um mercado receptor para as obras,
incluindo uma gama de agentes no campo: marchands,
críticos de arte, artistas, compradores, proporcionam a composição das estruturas
de um mercado caracterizado por intensas trocas simbólicas. Este mercado
receptor se deve à economia americana, com seus novos ricos, ansiosos por
adentrar no mundo de prestígio social que a cultura sabia muito bem como oferecer.
(BOURDIEU, 2004).
Apesar do frescor de liberdade desse ideário nascente, na arte e na sociedade,
o nó da trama patriarcal se apresentava firme e forte. A aceitabilidade da produção
artística das mulheres era ainda, por força das relações de dominação masculina,
legitimadas e incentivadas à medida que se enquadrassem na esfera das prendas
domésticas. Os temas dos trabalhos deveriam também obedecer às regras de
aceitabilidade do decoro e dos bons costumes. Cabia às mulheres serem discretas e
educadas, falando apenas o conveniente, ou seja: desenvolver pendores artísticos
que respeitassem os limites do lar, como o bordado, por exemplo.
Se, ao contrário, existisse a intenção de construir uma carreira profissional, ou
de se buscar novos horizontes ou interpretações da condição feminina oprimida,
inúmeros empecilhos constituiriam barreiras quase intransponíveis. O
comportamento da mulher artista significava uma maneira desviante, quase marginal
de existir. Para Loponte (2002), a limitação imposta à exploração temática contribuiu
para que fosse muito mais fácil para os homens se destacarem na carreira:
Tendo as mulheres sua sexualidade constantemente controlada e vigiada, o
que dizer então de uma mulher artista? Enquanto a sexualidade não abala a
'genialidade' de artistas como Picasso e outros artistas modernos que
representaram à exaustão bordéis, prostitutas e amantes, as mulheres que
ousavam entrar no mundo artístico tinham que se contentar com a
representação de pinturas de interiores, naturezas-mortas - gêneros de
Fig. 06: : ‘”Mulher a ler”, Berthe
Morisot
51
menor valor no mercado artístico e que não as fariam configurar no rol dos
“grandes artistas' (LOPONTE, 2002, on line).
Nas palavras de Bourdieu (2002, p.13), “incorporamos, sob a forma de
esquemas inconscientes de percepção e de apreciação, as estruturas históricas da
ordem masculina”. A compreensão social do universo feminino como dócil e
passivo acarretou um condicionamento que a identificação da arte produzida por
mulheres deveria possuir esse caráter. Como atesta Heloísa Buarque de Holanda,
em uma abordagem da arte contemporânea, essa imposição de uma “linguagem
feminina” permanece e trata-se de uma noção:
Construída, minuciosa e diabolicamente, contra nós, mulheres. É possível
perceber uma diferença significativa nas expressões e representações
artísticas de artistas homens e artistas mulheres, mas essa diferença não é
inocente. Se as mulheres desenvolveram culturalmente uma sensibilidade
mais atenta, uma linguagem mais sutil, uma prática mais negociadora na
administração de suas relações, isso certamente não se deveu à sua
natureza biológica e ao gosto, ou mesmo porque assim o quiseram.
(HERKENHOFF; HOLLANDA, 2006, p.16).
Vale ressaltar que a restrição ao espaço privado também era condicionada por
fatores econômicos. Desta forma, em se tratando de mulheres desfavorecidas
financeiramente, a face do espaço público se metamorfoseava numa estrutura cruel.
As mulheres eram submetidas a um trabalho sem condições de salubridade e com
um salário inferior ao dos homens:
O século XIX levou a divisão das tarefas e a segregação sexual dos
espaços ao seu ponto mais alto. Seu racionalismo procurou definir
estritamente o lugar de cada um. Lugar das mulheres: a maternidade e a
casa cercam-na por inteiro. A participação feminina no trabalho assalariado
é temporária, cadenciada pelas necessidades da família, a qual comenda,
remunerada com um salário de trocados, confinada às tarefas ditas não-
qualificadas, subordinadas e tecnologicamente específicas (PERROT, 1988,
p.186).
Um outro fator problemático para a carreira das mulheres artistas diz respeito
às relações amorosas. Para a artista Maíra Ortins
18
ainda hoje é impossível se falar
em uma mulher artista e não se ligar à vida amorosa dessa mulher. Palavras de
quatro letras, simples e entranhadas: amor, arte, vida. Muitas vezes, essas simples
palavras são seguidas por outras mais complexas: decepção, imposição, repressão,
injustiça. Essa profunda ligação realizada entre vida amorosa e obra é um peso para
o reconhecimento da qualidade artística de muitas mulheres, como foi para a
escultora Camille Claudel.
18
Depoimento Mulheres Artistas: o tempo da arte, 2006.
52
A imagem de Camille Claudel quase sempre é atrelada à figura do escultor
Auguste Rodin (1840-1917). As citações sobre a história de Camille Claudel,
inclusive no tocante à sua obra, estão quase sempre amalgamadas como sendo
uma parte, um detalhe tempestuoso da vida de Rodin. Seu trabalho, entretanto, é
dotado de uma expressividade única “A pequena sereiazinha, O Sankutala
(1888), A valsa”, (1892), Clotos (1893), A idade madura” (1899); dentre tantas
outras obras, demonstram o apuro técnico da artista. Autora de uma biografia de
Camille Claudel, Delbée (1988, p.40) ressalta:
Camille entre suas quatro paredes brancas. O sofrimento amargo e duro. O
sofrimento que retorce o coração. Camille bate na parede, com suas mãos
irmãs, grita o nome aos espelhos, como se lhe fossem dar o ser amado, a
luz que ela espera, a luta que ela quer recomeçar. Lassidão e sobressalto,
recusa, quando é preciso confessar-se vencida, e no entanto ela sabe
que aos olhos do mundo será
sempre o eco triste do ser amado.
Além disso, Camille Claudel possuía um
comportamento atípico para a época. Antes de
conhecer Rodin fazia esculturas de homens nus.
Necessitava ter mais autonomia em seu estilo e
rompeu com a dependência do mestre e amante.
Seu reconhecimento, seu tratamento pela
sociedade da época teria sido outro se Camille
Claudel não pertencesse ao sexo feminino. Para os
homens, era aceitável e até natural possuírem
amantes. Para uma mulher artista, uma vida
autônoma era um caminho árduo para trilhar. A
artista passou por várias crises psicológicas e
morreu no hospício, após nele permanecer por
trinta anos.
1.8 Um lugar delimitado por uma situação de gênero
No Brasil, na mesma época produtiva de Camille Claudel, as mulheres artistas
também precisaram empreender muitos esforços para serem reconhecidas. Antes
do movimento modernista, a História brasileira foi praticamente indiferente a elas.
Um dos principais obstáculos era o preconceito que ainda vigorava no século XIX,
Fig. 07: “A valsa” (1892).
Camille
Claudel
53
de que homens e mulheres eram seres biologicamente e intelectualmente diferentes.
Os homens seriam capazes de feitos incríveis, próprios da criatividade do gênio. As
mulheres, possuíam faculdades apenas imitativas. Além disso a mulher artista ainda
teria que enfrentar a questão da inacessibilidade à formação (o acesso às escolas
profissionais era exclusivo para os homens) e a objeção radical da família.
A pesquisadora Ana Simioni, citando a autora feminista Linda Nochlin, reforça
que a questão da inacessibilidade institucional das artistas contribuiu para a
inexistência de “mulheres de gênio”:
[
...] o estudo a partir do modelo vivo era considerado indecente para o sexo
frágil. É uma questão importante, pois o conhecimento das regras
anatômicas era essencial para retratar os heróis nas pinturas de história, o
gênero mais nobre da hierarquia acadêmica (SIMIONI, 2004, p. 87).
O estudo de Simioni (2004) é revelador ao apontar o número significativo de
mulheres artistas antes do modernismo de Tarsila do Amaral e Anita Malfatti. A
pesquisadora consultou fontes da época (1884 1922), catálogos de exposições,
jornais, encontrando 212 expositoras anteriores ao movimento modernista. A maior
parte dessas artistas é até hoje desconhecida do público. São artistas invisíveis
19
,
como Abigail de Andrade, de Vassouras, que foi a primeira mulher a conquistar uma
medalha de ouro de grau em um salão nacional, em 1884. O nome de Abigail
ficou mais conhecido na sociedade por esta ter se envolvido com seu professor,
Ângelo Agostitni, que era casado.
Simioni frisa que existiam muitas obras que foram posteriormente encontradas,
assinadas por mulheres, como no caso de Francisca Manuela Valadão, que
apresentava um estilo inovador, mas, devido à falta de registros, não se sabe dizer a
data do nascimento, nem muito menos da morte da artista. Como reforça o crítico
Paulo Herkenhoff: “No culo XIX, não havia, no Brasil, espaço social para a mulher
ser artista” (HERKENHOFF; HOLANDA, 2006, p.41). O sistema vigente, nas
relações sociais, era o de exclusão. As mulheres não eram reconhecidas como
profissionais da arte, como destaca Simioni (2002, on line):
A questão da participação das mulheres no mundo da pintura acadêmica
permite que esse sistema, auto-intitulado imune às pressões externas
(concebendo a diferença entre os artistas como assentada em dons, por
exemplo), se revele eivado de constrangimentos e relações de poder. A
19
A expressão artista invisível” é largamente utilizada por Ana Simioni. São mulheres artistas que
produziram intensamente, participando inclusive de várias exposições, mas que foram esquecidas
pela história e foram omitidas dos compêndios de artes plásticas.
54
diferença entre homens e mulheres no que se refere à formação artística
imputa espaços distintos, para uns e outros, nesse universo.
Georgina de Albuquerque é o exemplo de uma artista que tentava burlar as
convenções e subverter a ordem. No sistema de Salões, a artista recebeu a medalha
de prata em 1912 e 1914; em 1919, a medalha de ouro. Georgina contava com o
apoio do marido, fato recorrente na vida de mulheres artistas que permaneceram
exercendo a profissão e igualmente casadas. Georgina inscreveu a obra a “Sessão
do Conselho do Estado (fig. 08) no salão de 1922, consagrado ao centenário da
Independência. A “Sessão do Conselho do Estadoé a primeira obra de grandes
dimensões e representativa de um evento grandioso cuja figura central é uma
mulher. Aqui consiste uma grande inovação de Georgina, que a pintura histórica
brasileira era até então protagonizada por heróis masculinos, realizada igualmente
por artistas homens.
Georgina solucionou de forma singular a questão do tema, relativo à
comemoração do centenário da Independência. Em vez de abordar um
evento histórico triunfal, como uma cena de batalha, tal como o repertório
acerca da pintura histórica nacional poderia lhe sugerir, apresentou um
episódio diplomático dentro de um gabinete oficial. Ainda mais destoante é
a figura heróica aí representada: uma mulher! Após uma leitura breve da
legenda explicativa sabe-se, afinal, quem é a personagem central retratada,
a Princesa Leopoldina, em meio a reunião de Conselho de Estado presidida
por José Bonifácio, na qual se discutiu a necessidade de o Brasil tornar-se
independente de Portugal, momento esse que teria antecedido o brado do
Ipiranga (SIMIONI, 2002, on line).
Para a autora, a
relação entre a pintora e a
personagem central da tela
impõe um lugar delimitado
por uma situação de
gênero. Houve um
rompimento com dois
papéis determinados pela
tradição: a representação
de uma mulher no papel
principal em uma cena
histórica, assim
como o
fato do trabalho ser de
autoria de uma mulher artista. Uma leitura a partir de uma perspectiva feminista
suscita, inclusive, as questões que permeiam a formação artística recebida: no
Fig. 08: “Sessão do conselho do Estado” Georgina de Albuquerque.
55
século XIX, as condições de acesso ao estudo das artes tinham um caráter
profundamente diverso, extremamente desigual, entre homens e mulheres.
No Brasil, apesar da lei que permitiu o ingresso das mulheres nos cursos
superiores ter sido promulgada em 1879, valendo, inclusive para a Imperial
Academia de Belas Artes, a freqüência feminina demorou a aparecer. As causas?
Falta de um sistema de educação de qualidade que abrigasse mulheres, além da
coragem por parte das que desejavam ser artistas de romper padrões estabelecidos
e ultrapassar a fronteira do universo privado, encarando aulas com modelo vivo,
enfrentando a reprovação social, enfim, produzindo expondo, colocando-se
publicamente e profissionalmente em uma sociedade imersa em preconceitos.
No período, o destino de muitas mulheres que desejavam estudar arte e eram
dotadas de posses financeiras era a Academia Julian, em Paris. A Julian “foi pioneira
no ensino e na profissionalização das artistas do sexo feminino de todo o mundo,
tornando-se convidativa para um grande contingente de mulheres que desejavam se
aprimorar como artistas” (SIMIONI, 2005, on line). As salas de aula eram
separadas. As mulheres recebiam as orientações em espaços reservados dos
homens, mas o sistema preparatório da Escola Julian realmente incentivava a
competição, buscando preparar suas alunas para participar dos salões. Pela Julian
passaram a própria Georgina de Albuquerque e inclusive, mais tarde, Tarsila do
Amaral.
No próximo capítulo analisaremos o impacto das linguagens artísticas no
século XX, com suas inúmeras transformações na sociedade. Procurando destacar
como se configurou este cenário no Brasil para as mulheres, especialmente em
Fortaleza: as primeiras mulheres artistas e o processo de união de artistas em torno
de interesses comuns, que instauraram, inclusive, o início de um sistema de exibição
para as obras, como os salões de artes plásticas.
56
2 O INÍCIO DE UM NOVO TEMPO
“A arte não representa o visível,
a arte torna visível.”
Paul Klee.
O impressionismo e os movimentos que o sucederam fizeram parte de um
processo de intensas transformações que mudaram radicalmente a face da
produção artística em artes visuais no universo ocidental. Houve um desafio aos
valores cultuados pela tradição, uma verdadeira ação engajada na ruptura dos
padrões do que até então era considerado “arte”. Não somente no universo das
artes plásticas; mas na música, em sua multiplicidade de tons e escalas; na dança,
em seus inovadores referenciais de movimento e leituras do corpo; no teatro, em
criativos textos e possibilidades cenográficas e interpretativas; ou ainda, na
literatura, onde a prosa e a poesia também incorporavam as transformações de
mundo, em forma e conteúdo.
Sendo assim, observamos, a partir deste momento, uma alteração na práxis do
campo artístico, onde a consagração simbólica da expressão artística se dará,
fatalmente, a partir do solo ordenador do novo.
Foi neste contexto de desejo pelo novo que os movimentos artísticos se
sucederam em ritmo acelerado. nones da composição artística, como a
representação ou a perspectiva, perdem sua supremacia. O pintor Paul Cézanne
lança parâmetros de um novo olhar, atuando como um marco divisor entre dois
mundos. Na primeira cada do século XX, os fauvistas
20
, na França, chocaram a
sociedade, sendo apelidados de “feras”. Com o uso das cores puras e do exagero e
exercitando um estilo de pintura livre e expressivo, “eles foram, por alguns anos, o
mais experimental grupo de pintores trabalhando em Paris”, na análise de Stangos
(2000, p.11). Na Alemanha, o expressionismo lança suas bases em Dresden, com o
grupo Brucke (Ponte), e em Munique, o Blaue Reiter (Cavaleiro Azul), este último
abrigando nomes como Wassily Kandinsky e Paul Klee.
20
Seu mentor foi, sem dúvida, Henri Matisse (1869-1954), também o mais velho do grupo, e que já
havia feito experiências com vários estilos antes de chegar ao “fauve”, estilo altamente original e livre,
com sua intensa afirmação da visão própria do pintor (CHIPP, 1996, p.122).
57
No desenvolvimento dos
movimentos artísticos do início do
século XX, podemos admitir que abrir
espaço para um outro olhar foi, sem
sombra de dúvida, uma conquista do
movimento cubista. O cubismo
realmente revolucionou.
Principalmente o impacto
proporcionado por algumas
“senhoritas”, as Demoiselles
d’Aviggnon (1907, fig. 09), uma pintura
de cinco mulheres nuas, num estilo
radical e inovador para os padrões
estabelecidos. Esta obra representou,
- apesar da dificuldade em se estabelecer fronteiras delimitadas em torno de
períodos na história da arte, um verdadeiro divisor de águas. Obra que até hoje,
causa espanto por seu caráter audacioso. Segundo Chipp (1988):
O movimento cubista foi, nas artes visuais, uma revolução tão complexa que
os meios pelos quais as imagens podiam ser formalizadas na pintura
modificaram-se mais durante os anos de 1907 a 1914 do que se haviam
modificado desde o Renascimento. Suas invenções corresponderam tão
diretamente aos problemas artísticos críticos do início do século XX que o
próprio cubismo mal havia aparecido quando seus recursos formais
começaram a influenciar as outras artes, em particular a arquitetura e as
artes aplicadas, mas também a poesia, a literatura e a música (p.195).
Em termos de vanguarda, o abra de Marcel Duchamp é também um marco
referencial. Na efervescência das novas linguagens, Duchamp nos apresenta os
readymades
21
, sendo o mais polêmico de todos o mictório intitulado “A fonte” (1917,
fig. 10). Submetida a uma exposição que possuía um caráter aberto, a obra foi
rejeitada pelo júri. Apesar de inicialmente rejeitada, a assunção dos readymades e
do efeito questionador da ordem que essas manifestações produzem, vem
simbolizar a abertura de várias portas que tornaram possível o jorro de
manifestações que percorreram a arte do modernismo até a contemporaneidade.
Um comentário de Duchamp é esclarecedor sobre seus propósitos: sua intenção
21
Duchamp começou, em 1913, a recolher objetos que não haviam sido elaborados originalmente
como objetos de arte, mas sim como coisas comuns e utilitárias transportando-as então do seu
contexto usual para um ambiente inteiramente estranho: o contexto da arte (WOOD, 2002, p. 11).
Fig. 09: “Demoiselles D’avignon”, Pablo Picasso.
58
com os readymades consistia em aproximar a arte do pensamento, libertando-a de
subjugá-la ao simples deleite dos sentidos (WOOD, 2002).
Desta forma, nas primeiras décadas do
século XX, em um mundo mutante, o que
mudou para as mulheres no ambiente
artístico? Elas conquistaram um olhar mais
aberto para sua individualidade e
subjetividade? Se libertaram da imposição de
uma posição objetual? Sua participação
como artistas encontrou finalmente um
reconhecimento mais igualitário?
Se num retrospecto histórico a
participação feminina é lançada a um pólo
passivo, sendo encontrada freqüentemente
como objeto de representação, como essa
imagem de mulher, com sua força simbólica,
que foi recurso de consagração e marco referencial para grande parte dos
movimentos artísticos, atravessa as inovações do modernismo? Tem ela o exercício
do pólo ativo mais elástico ou este ainda é constantemente sufocado? Como mulher
artista, ou como agente catalisadora de movimentos, já existe espaço para um digno
reconhecimento social? Existe uma liberdade de exercício de opinião, de
manifestação do pensamento no espaço público?
As vanguardas européias acolheram, de uma certa forma, a nova mulher
artista. A produção e o posicionamento social da artista Tamara de Lempicka, são
emblemáticas desse novo tempo. No auto-retrato “Tamara no Bugatti Verde”, de
1925, encontramos uma referência da ânsia pelo novo, da quebra de fronteiras, ou
ainda da conquista de novos espaços e a importância crescente da construção da
imagem. A pintora, ao se colocar guiando seu automóvel, numa postura poderosa,
rapidamente é acolhida pela sociedade que tem ânsia pelo novo, torna-se famosa,
sendo considerada um paradigma da mulher moderna, um símbolo da emancipação
feminina. Gilles Néret, ao falar sobre a artista reflete sobre as questões suscitadas
em sua arte:
Fig. 10: “A Fonte”, Marcel Duchamp.
59
Serão os outros, pergunta-se ela, indiferentes ao seu próprio sexo? À sua
própria espécie? Serão eles seus aliados ou rivais? Não se poderá mudar
de feminino para masculino, e, vice-versa, consoante que seja cúmplice ou
motorista, amante ou patroa, de acordo com o nosso grau de feminilidade
ou de masculinidade? No fim das contas, todos os seres humanos,
mulheres ou homens, são uma subtil mistura desses dois componentes
(NÉRET, 1999, p. 8).
Se os mitos sobre o que é exclusivo do masculino
ou do feminino estavam em processo de questionamento
mais aberto, isso é conseqüentemente reflexo dos
avanços do mundo moderno, em franco desenvolvimento
urbano, com uma nascente indústria cultural e uma teia
cada vez mais ramificada do sistema de comunicações,
como o cinema, a indústria fonográfica, o rádio e a
indústria editorial. Atreladas a esta expansão está a
consolidação de um sistema cultural que envolve
associações, sindicatos, corporações, fundações,
bienais, instituições e museus.
2.1 Garimpando um lugar
Cada sociedade tem seu tempo, suas vivências, construções e desconstruções.
A tradição da sociedade brasileira, herdeira de uma ordem colonial, patriarcal e
escravocrata, encarou, provavelmente por esses fatores, o estilo de arte modernista
com um estranhamento mais incisivo. A absorção das inovações conceituais em
arte, no Brasil, assumiram um ritmo mais lento, enquanto em outros países e
cidades o novo era alvo de uma busca frenética. As mulheres, enfrentaram um
desafio bem mais árduo, pois além de clamarem espaço para um novo estilo de
expressão, também precisariam garimpar um lugar, que fosse além das paredes do
lar, para ocupar na sociedade.
Michelle Perrot (1988), autora que possui uma fértil produção sobre a situação
das mulheres na história, argumenta que a memória das mulheres era uma memória
do universo privado. A cena pública era uma condição própria e propícia para o
masculino, o livre transitar, por exemplo, a questão de ir e vir significava concepções
diferentes para homens e mulheres. Enquanto para os homens era sinônimo de
liberdade, para as mulheres era onde se poderia perder a virtude, desgraçando-se.
Fig. 11: “Tamara no Bugatti
verde”, Tamara de Lempicka.
60
Essa obrigação de “pertencimento” ao mundo privado ainda reverbera na
produção contemporânea realizada por mulheres. É comum encontrarmos uma
abordagem mais intimista, onde a criação de outras possibilidades dentro do espaço
permitido, de um mundo “privado”, de um mundo mudo, autorizado e delimitado
clama expressividade, almeja resignificações ou ampliação de territórios. Perrot
(1989), comenta sobre as práticas recorrentes das mulheres em criarem seus
abrigos de memória:
As mulheres se dedicam à matéria mais humilde: à roupa e aos objetos,
bugigangas, presentes recebidos por ocasião de um aniversário ou de uma
festa, bibelôs trazidos de uma viagem ou de uma excursão, “mil nadas”
povoam as cristaleiras, pequenos museus da lembrança feminina. As
mulheres tem paixão pelos porta-jóias, caixas e medalhões onde encerram
seus tesouros: mechas de cabelo, jóias de família, miniaturas que, antes da
fotografia, permitem aprisionar o rosto amado (p.13).
A artista contemporânea Meire Guerra
22
, de Fortaleza, aprisiona essa memória
do afeto, recorrendo ao mínimo e ao aparente ínfimo. Costurando elos entre a
irrelevância dos pequenos objetos, das coisinhas baratas, das preciosidades frágeis
ela revive uma memória da sutileza. Entre bonecas de biscuit, mechas de cabelo,
vinis, roupas e relicários, a artista elege dois elementos extremamente simbólicos
como suporte para o exercício de sua linguagem: a mala e a geladeira
23
. Manoel de
Barros escreveu em seu “Livro sobre nada” que “O olho vê, a lembrança revê, e a
imaginação transvê” (BARROS, 1997, p.75). Essa capacidade humana de
transvisão elege o roteiro da seleção estética, que se através das reflexões sobre
as expectativas do passado vivido e as reminiscências dessa memória, que são
cristalizadas, então, na obra de arte. Nesse sentido, Arendt (2001) argumenta:
O ato de pensar, por poder ser lembrado, pode cristalizar-se em
pensamentos; e os pensamentos, como todas as coisas que devem sua
existência à memória, podem ser transformados em objetos tangíveis que,
como a página escrita ou o livro impresso, se tornam parte do artifício
humano (p.86).
Essas reminiscências indicam muito das vivências de mulheres que não
puderam usufruir uma vida pública. Conservar os rastros do que foi sonhado nas
missivas e diários. São práticas da memória feminina traduzidas em cartas de amor,
na revelação sorrateira e incomensurável do não permitido, nos desejos não
realizados. Perrot (1989) segue seu argumento alegando que muito do que existia
22
Documentário Mulheres Artistas: o tempo da arte, 2006.
23
O trabalho da geladeira, intitulado “conservas”, foi exposto no Centro Cultual BNB em 2004.
61
dessa história da mulher - dos arquivos privados, se perdeu, pois muitas tinham
medo da censura familiar e destruíam os diários e as cartas. “Dessa parte secreta
dela mesma, desse pecado que foi gozo, não serão deixados vestígios” (PERROT,
1989, p.10).
É por isso que, prevendo a negligência ou mesmo a zombaria de herdeiros
indiferentes, muitas mulheres, no outono de suas vidas, punham suas
coisas em ordem, selecionavam a correspondência, queimavam as cartas
de amor ainda mais quando havia o risco de que atentassem contra sua
honra -, destruíam o seu diário, testemunha de emoções, esperanças e
sofrimentos passados que convinha fazer calar (PERROT, 2007, p.30).
Essas “provas” de afetos e percepções de mundo do universo feminino se
traduzem em elementos que se fragmentaram ou se desfizeram, como na obra
“Amores alheios” (fig.12) da artista contemporânea Cristiana Moura, de Fortaleza.
Numa cortina de tule são colocadas cartas manuscritas, amareladas pela passagem
do tempo. Essas cartas vão pouco a pouco se partindo, até que, ao chegar na barra
do tule, se transformaram em pó. Registros de uma história íntima sem provas,
que se dissolveu ou foi destruída.
Nessas circunstâncias, em um passado
estruturado num ambiente social refratário, como nas
primeiras décadas do século XX, no Brasil, uma
exposição pública de um trabalho autoral ou ainda,
um posicionamento político por parte de uma mulher
era motivo de estranhamento e represálias. A ordem
conservadora era fechada e excludente à participação
pública das mulheres. Seus lugares possuíam um
destino certo: esposas, mães ou ainda, havia a opção
pela vida religiosa.
Os movimentos de mudança, a consciência da
necessidade da conquista de direitos por parte das
mulheres se torna mais delineada a partir das manifestações do movimento
sufragista, que se espalha pela Europa, Estados Unidos e Brasil, principalmente nas
primeiras décadas do século XX. O desejo de participação política, se envolve pela
emergência da garantia do direito de votar e serem votadas e assim poder assegurar
a concretização posterior de outros direitos.
Fig. 12: “Amores alheios”, Cristiana
Moura.
62
No Brasil, a possibilidade do voto feminino foi excluída da carta constitucional
de 1891. Entretanto, a partir da década de 1910, a estrutura rural, alicerçada no
domínio dos coronéis sente o avanço do surgimento de uma cultura urbana, e o
paulatino avanço das incipientes classes médias e operárias. Um grupo de mulheres
funda em 1910 o Partido Republicano Feminino e mais tarde,no final da década, A
Federação Brasileira para o Progresso Feminino. O direito ao voto para as mulheres
é finalmente inscrito no Código Eleitoral em 1932 .
O jornalismo de caráter feminista tem um posicionamento engajado
principalmente a partir da segunda metade do século XIX. As feministas que
escreviam para pequenos jornais exerceram um significativo apoio na questão da
conscientização das mulheres em relação à condição feminina e da importância da
luta por direitos, inclusive pelo direito à educação.
Entretanto, conforme salienta Pinto (2003, p.33) essas ainda eram
manifestações que ocupavam apenas “as franjas da sociedade”, mas que, pouco a
pouco, esses micro movimentos formariam uma teia mais forte e mais desenvolvida
no futuro. São linhas que brotam do apertado patriarcal, fragilizando, pouco a
pouco, as amarras do poder. Na década de 20 do século passado, as mulheres
ainda ocupavam uma posição passiva diante do mundo engendrado pelas
concepções masculinas, mas que em breve a posição hegemônica deste mundo
androcêntrico viria a receber questionamentos bem mais incisivos, onde se
constituiria a semente de uma nova consciência acerca dos gêneros.
Nessa época, é visível uma alteração nos costumes sociais das mulheres. Uma
alteração que vai além da luta por direitos políticos e civis. A conscientização política
caminha ao lado da quebra de costumes, as roupas assumem aspectos
diferenciados, mais curtas, assim como o comprimento dos cabelos. Além da
tentativa de conquista da cidadania política, as mulheres também buscam exercer
profissões que antes eram uma concessão restrita ao mundo masculino. Avançam.
Questionam. Quebram barreiras. Rompem limites. “Por fim, questionam o mito da
superioridade física e intelectual masculina” (PONTE, 2000, p.187).
63
2.2 Preconceito, paranóia ou mistificação?
No universo das artes plásticas, no mesmo ano de fundação do Partido
Comunista do Brasil, em 1922 , acontecia, em São Paulo, a Semana de Arte
Moderna. Indiscutivelmente, a Semana foi um fato marcante num contexto social e
histórico. Para as artistas brasileiras, entretanto, foi particularmente especial, que
a partir do advento da semana modernista a visibilidade da produção artística
realizada por mulheres ganha uma maior audiência e conseqüentemente maiores
condições de legitimidade social.
O movimento modernista brasileiro promoveu uma alteração nos costumes
sociais e culturais. Segundo Bueno (1999, p.92), “a arte moderna desponta quando
os artistas começam a se afastar das normas e das regras que regiam a sociedade
tradicional, para produzirem respaldados apenas em suas concepções pessoais de
mundo”. A produção artística realizada por mulheres sente o impacto da sua força
com a obra de Anita Malfatti. A artista teve a oportunidade de estudar no exterior, em
Berlim e depois em Nova York. Numa época em que a Europa efervescia em
movimentos na arte (expressionismo, fauvismo, futurismo, surrealismo, cubismo
etc.), Anita Malfatti absorveu muitas inovações, signos, conceitos, e trouxe para o
Brasil uma linguagem repleta de inovações estilísticas. Essa nova expressão
artística foi conhecida pelos brasileiros numa polêmica exposição que ocorreu em
São Paulo, em 1917.
Tanta inovação desencadeou uma acirrada discussão na cidade, sendo esta
multiplicada pelo artigo de Monteiro Lobato, posteriormente intitulado como
“Paranóia ou mistificação”, veiculado num suplemento do jornal O Estado de São
Paulo. Lobato atacou a artista e sua obra impiedosamente. Houve um intenso
debate na cidade. Toda essa movimentação em torno de Anita Malfatti aproximou
uma série de artistas e intelectuais que a apoiaram, como Mário e Oswald de
Andrade, fazendo de Anita Malfatti a catalisadora do movimento modernista
brasileiro, movimento este que propunha novas idéias e formas de percepção do
mundo. Na opinião de Aracy Amaral:
Durante muito tempo viveu-se um problema de atribuição de precursor do
movimento renovador: Anita ou Segall? Hoje, todavia, depois de pesquisas
realizadas e divulgadas por Mário da Silva Brito, não mais persistem
dúvidas. A catalisadora do movimento foi Anita (1998, p. 94).
64
Apesar do apoio conquistado pelos colegas, a
crítica de Monteiro Lobato foi virulenta e é
significativo que a obra de Anita tenho se tornado
“bem comportada” após a fase mais intensa do
movimento modernista. Nessa época, os direitos da
mulher ainda eram limitados em termos de liberdade
civil, e o uso dos termos “paranóia e mistificação”
para caracterizar a obra de Anita configuravam uma
alusão misógina à loucura, histeria e incapacidade
de auto-gestão da artista e simbolicamente, da
mulher. A inversão de papéis uma mulher
representando um nu masculino
24
(fig. 13), acarretou
uma carga de violência verbal e simbólica extremamente pesada para a artista.
Tarsila do Amaral, assim como Anita Malfatti, de desfrutar do privilégio de
estudar no exterior e absorver linguagens artísticas de vanguarda. Mesmo não
participando da semana de 22, a artista ingressou posteriormente no modernismo,
sendo, talvez a primeira artista brasileira a ter conquistado um reconhecimento
amplo, um lugar social como artista. Tarsila do Amaral, filha de fazendeiros do
interior paulista, também tinha uma situação financeira privilegiada e pode estudar
em Paris, freqüentando os cursos da Academia Julian.
O modernismo brasileiro foi pautado por uma busca do que seria uma autêntica
brasilidade. uma procura do sentido de raça, um anseio do que representaria
uma identidade local. Enfim, havia a clara busca da essência da cultura brasileira.
Oswald de Andrade elegeu uma tela produzida por Tarsila do Amaral como um
símbolo dessa procura. Para ele, Tarsila criou a Pintura Pau-Brasil. “Abaporu” (fig.
14) traduzia a idéia de terra, da natividade, do ser selvagem, do ser antropófago.
Nesse processo, nasceram o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, em 1924, seguido, em
1928, pelo Manifesto Antropófago.
A obra de Tarsila do Amaral vai paulatinamente revelando o anseio de um
encontro com as raízes do Brasil. Sua produção artística assume um entrelaçamento
com uma cor diferenciada, com novas formas, abordagens e signos. A artista
24
No Salão em questão Anita Malfatti expôs a pintura de um nu masculino “Torso”. O modernismo
além de inovar em técnicas de arte, também propiciou uma nova postura em termos de gênero.
Fig 13: “Torso”, Anita Malfatti
65
costumava alegar uma procura das memórias de infância, de suas memórias,
conforme destacado por AMARAL (1988b, p.9). O encontro com o sentimento de se
sentir realmente brasileira e das memórias de infância é enaltecido pela própria
Tarsila,
Sinto-me cada vez mais brasileira:
Quero ser a pintora da minha terra.
Como agradeço ter passado na fazenda
Minha infância toda.
As reminiscências desse tempo
Vão se tornando preciosas para mim.
Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo,
Brincando com bonecas de mato,
Como no último quadro que estou pintando (AMARAL, 1988b, p.12).
Uma grande parte dos integrantes do
movimento modernista, como Tarsila do
Amaral ou Oswald de Andrade pertencia à
burguesia do café. O movimento modernista
no Brasil foi impulsionado, desta forma, por
uma elite. O tempo trata de incrementar os
fatos históricos com efeitos mais
unificadores, mas vale salientar que a
realidade brasileira nos anos 20 apresentava
um caráter bem distante do que seria uma
sociedade industrializada. Atrasada
economicamente, dominada por oligarquias
e socialmente estática, o núcleo da modernidade, de acordo com Cattani (2004,
p.11), “era simbolizado por o Paulo, cidade que, comparada às metrópoles dos
países economicamente mais desenvolvidos, continuava, contudo, pequena e
provinciana”.
Num contexto global, o mesmo período marca a assunção de grandes impérios
industriais americanos imersos em inovações tecnológicas. Como seria então a
realidade para as mulheres artistas na cidade de Fortaleza nas primeiras décadas do
século XX?
Fig. 13: Abaporu, Tarsila do Amaral
66
2.3 A Fortaleza das artistas sem História
Se na cada de 20 do século passado a cidade de São Paulo ainda era
considerada pequena e provinciana, como seria a cidade de Fortaleza, capital do
Estado do Ceará, nos anos 1900? Nas pesquisas onde há um relato sobre a
história da cidade, predomina uma interpretação que o final do culo XIX refletia
uma época considerada Belle Époque, onde a cidade recebera equipamentos de
modernização urbana como: praças arborizadas, ruas projetadas e alinhadas,
edifícios, linhas de bonde, sistema de iluminação a gás, dentre muitas outras
inovações. Um pouco antes, em 1875, o engenheiro Adolfo Herbster, havia
concluído a “Planta Topográfica da Cidade de Fortaleza e Subúrbios”, com o intuito
de disciplinar a expansão de Fortaleza.
As transformações urbanas implementadas atendiam a uma demanda
específica: incluir a cidade dentro dos moldes estabelecidos por uma nova ordem
capitalista. Assimilando os desígnios da nova ordem, a cidade tem na
disciplinarização do espaço urbano um caminho ideal a seguir. Essa disciplina
também visava delimitar espaços. De acordo com Ponte (1993):
A disciplinarização do espaço urbano da Capital cearense a partir do final
do século passado acha-se estreitamente relacionada com um leque de
medidas e técnicas voltadas para o reajustamento social das camadas
populares , sobretudo por meio do controle da saúde, dos corpos, gestos e
comportamentos. Tratava-se lato sensu, de um processo disciplinador que
pretendia instaurar uma nova ordem capitalista, republicana e racional que,
daquele período até o fim da Primeira República, atravessou as principais
cidades brasileiras (p.29).
Conforme defende Negri e Hardt (2001, p.42), esse processo disciplinador
atingiu a primeira fase de acumulação capitalista, e estruturava parâmetros de
comportamento, estabelecendo o normal e o desviante. A sociedade disciplinar se
constitui através de uma rede de dispositivos ou aparelhos que regulam os costumes
e as práticas. Além disso, conta com uma série de instituições disciplinares para
embasar essa estrutura: escolas, fábricas, hospitais, prisões, manicômios.
O censo de 1900 divulga o número de 48.369 habitantes na capital do Ceará.
Nessa época, os registros de artistas plásticos atuantes ainda eram escassos.
Galvão (2003) cita o nome de Antônio Rodrigues, que foi professor de artistas que
um pouco mais tarde se revelariam, como Raimundo Ramos (Cotoco), Vicente Leite,
Júlio Azevedo, Clóvis Costa. Essa também é a época em que floresce o trabalho de
Raimundo Cela, J. Carvalho, Gérson Faria.
67
Sendo ainda difícil encontrar, no ano de 1900, artistas plásticos na cidade, será
que existia entre esses habitantes alguma mulher artista que tivesse uma inserção
pública de seus trabalhos?
A artista Isabel Rabelo
25
é a primeira artista plástica a ter uma produção
explícita na cidade, segundo os registros e entrevistas. Contudo, sua atuação como
artista na cidade foi efêmera. De família abastada, a artista parte para estudar no
exterior. Não encontramos mais nenhuma referência ao paradeiro de Isabel Rabelo,
nem das obras que porventura a artista tenha produzido posteriormente. Roberto
Galvão destaca que são de autoria de Isabel Rabelo duas telas que permaneceram
expostas por muito tempo nas dependências da Igreja do Rosário, no centro de
Fortaleza:
Também temos notícia do exílio voluntário da pintora Isabel Rabelo da Silva
que, talvez por mais condições econômicas, vai estudar na Europa. Informa
o Barão de Studart no Dicionário Bio-Bibliográfico: “São de seu pincel as
duas telas que se vêem no corpo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de
Fortaleza, por ela oferecidas a 09 de agosto de 1902 ao bispo D. Joaquim
José Vieira”. Atualmente não temos informações sobre o paradeiro destas
obras. (GALVÃO, 2003, p.147).
Existe um vácuo com relação à participação de mulheres artistas em Fortaleza
nas primeiras décadas do culo XX. Atuando silenciosamente, não merecendo
uma atenção com relação a uma produção artística, se passam muitos anos até que
os registros da participação feminina no cenário das artes plásticas encontrem
novamente eco.
Um fato passou a acontecer na cidade com uma certa recorrência: a realização
de cursos de pintura para senhoras, ministrados por professoras que tiveram uma
formação no sul do país. Em Fortaleza, a partir dos anos 30 do século XX, os jornais
da época fazem referência a várias presenças de mulheres realizando, inclusive,
exposições na cidade, como pode ser visto na dissertação de mestrado de Roberto
Galvão, “A Escola Invisível: artes plásticas em Fortaleza 1928-1958”. Na entrevista,
Roberto Galvão comenta:
[...] você pode ver isso por exemplo no jornal O Povo, a existência de muitas
mulheres que pintavam, se você acompanhar as notícias vai poder ver que
haviam cursos ministrados por professoras que haviam realizado o seu
processo de formação geralmente no sul do país e que em voltando aqui
ensinavam para senhoras da sociedade. Também se pode ver exposições
25
O nome da artista foi citado nas entrevistas realizadas com os pesquisadores Nilo de Brito Firmeza
(Entrevista realizada em 12 de maio de 2006) e Roberto Galvão (entrevista realizada em 06 de
fevereiro de 2006).
68
de final de curso com 30, 40 nomes de mulheres participando da exposição.
Interessante é que essas mulheres digamos que pintaram não estão na
história da arte, nunca vi nenhum nome a posterior que venha confirmar
isso
26
Como aconteceu na pesquisa de Ana Simioni, Fortaleza também possuiu suas
mulheres artistas invisíveis. Talvez uma das primeiras artistas a conseguir quebrar a
barreira da invisibilidade foi Maria Laura Mendes
27
, da geração de Antônio Bandeira
e Aldemir Martins. Maria Laura é considerada por Roberto Galvão a primeira artista a
desenvolver um trabalho significativo e a conseguir marcar, mesmo que levemente,
seu nome na história da cidade. Essa marca, entretanto, é extremamente tênue,
que apesar do nome de Maria Laura ser citado em muitos jornais da década de trinta
e quarenta do século passado como uma artista que tinha uma produção intensa,
inclusive com vendas de obras e inovações estilísticas, a história posterior raramente
cita sua participação na constituição do cenário local no campo das artes. Para
Galvão:
Maria Laura era uma artista de muito reconhecimento social na década de
quarenta, eu digo isso por perceber que o jornal O Povo abria muito espaço
para suas exposições bem como promoveu um leilão de uma obra de Maria
Laura para fins filantrópicos. A Maria Laura fez uma exposição, se eu não
me engano, em 34, e vendeu 28 das 30 obras expostas. Ela é a primeira
artista a pintar num estilo futurista, talvez a nossa primeira modernista, a
nossa Tarsila do Amaral, ou melhor, a nossa Anita Malfatti.
28
Observamos também o nome da artista Joinha Fragoso participando de várias
exposições na cidade na década de quarenta. No entanto, podemos afirmar que
uma marca mais intensa foi conseguida pela artista Sinhá D’amora
29
, mas sua
carreira não é desenvolvida em Fortaleza. SinD’amora mudou-se para o Rio de
Janeiro, ainda na década de trinta. Determinada a estudar na Escola Nacional de
Belas Artes, a artista freqüenta o curso livre de 1933 a 1938, onde recebeu aulas de
Lucílio e Georgina de Albuquerque. Produziu intensamente e teve reconhecimento
nacional. Existe um memorial dedicado à pintora no prédio do Centro de Referência
do Professor, em Fortaleza, onde podem ser encontrados telas, cartas, objetos e
outros documentos históricos sobre a artista. Vale novamente ressaltar que o
26
Entrevista realizada em 06 de fevereiro de 2006.
27
Maria Laura nasceu em Fortaleza, em 1910. Participou de exposições onde se destacam Pinturas
de Guerra e algumas edições do Salão de Abril. Individualmente expôs em 1925, 1933 e 1934, todas
em Fortaleza (GALVÃO, 2004).
28
Entrevista realizada em 06 de fevereiro de 2006.
29
A pintora Sinhá D’amora nasceu em Lavras da Mangabeira, em 1906. Faleceu em Fortaleza, em
2002.
69
reconhecimento à importância da produção foi concedido a uma artista que
desenvolveu sua carreira fora da cidade e esse reconhecimento aconteceu muitas
décadas depois do período intenso de produção da artista.
Podemos atribuir à falta de reconhecimento da qualidade da produção artística
realizada por mulheres como uma marca da cultura do patriarcado? Nesse sentido,
podemos identificar o patriarcado, conforme frisa Sabadell (2005), como uma forma
de relacionamento, de comunicação entre os gêneros, caracterizada pela dominação
do gênero feminino pelo masculino. Considerada então a forma de dominação
patriarcal, podemos compreender que esta estendeu seus efeitos ao parco
reconhecimento da importância de trabalhos realizados por mulheres em nosso
sistema das artes visuais. Observaremos a partir de agora como foi o processo de
estruturação desse sistema na cidade de Fortaleza, a partir da organização dos
artistas em torno de interesses comuns.
2.4 Sociedades de artistas: CCBA E SCAP
Nas primeiras décadas do século passado a cidade de Fortaleza não possuía
um sistema de fomento às artes visuais ou promoção de exposições e Salões. Telas
eram expostas em vitrines de lojas, onde se mesclavam aos outros artigos de
consumo comercializados no local. A artista Maria Laura Mendes, por exemplo,
costumava exibir suas pinturas em vitrines de casas de moda. Desta forma, fica
claro que ainda não estava delineado um foco direcionado para a promoção e
divulgação das artes visuais.
A necessidade desse foco, entretanto, foi se tornando emergencial, ao passo
que artistas nascidos no Ceará estudavam fora, como Raimundo Cela e Vicente
Leite e absorviam novas linguagens e estilos artísticos, assim como mantinham
contato com um mercado crescente de bens simbólicos. Um sistema de exposições
e Salões, desta forma, não tardaria a se estruturar em Fortaleza. O artista suíço
Jean-Pierre Chabloz relata sua impressão do campo da arte quando chegou no
Ceará:
Quando cheguei ao Ceará, as artes plásticas viviam ainda uma vida
completamente marginal: as únicas coisas que a entretinham, e com
dificuldade, eram os esforços solitários de um pequeno número de artistas,
quase todos autodidatas. Em condições naturais, tão favoráveis a um
maravilhoso florescimento pictórico, tal situação o deixava de mostrar, à
70
primeira vista, todos os aspectos de um surpreendente paradoxo
(CHABLOZ, 1993, p.119).
Como alega Chabloz, Fortaleza, conhecida como a “terra da luz”, possuía
condições naturais extremamente propícias para a pesquisa pictórica. O paradoxo
se justificava devido às condições naturais favoráveis e a ausência gritante de um
sistema para as artes visuais. O tamanho do flanco aberto se estendia desde à
carência de organização por parte dos artistas, passando pela inexistência de
espaços adequados para exposição de trabalhos ou, ainda, por conta da falta de
planejamento ou políticas públicas de estímulo às artes visuais.
Os artistas começaram a sentir a necessidade de uma organização, de uma
entidade que promovesse a união dos interesses comuns da categoria, propiciando
a implementação de uma estrutura de apoio às suas aspirações e às suas atividades
em conjunto. Estrigas (1993) aponta o que foi a primeira exposição coletiva de
trabalhos artísticos na cidade: o Salon Regional de 1924, influenciado pelo que se
conhecia dos salões parisienses. O Salon contou com a participação de cinco
artistas: Otacílio de Azevedo, Clóvis Costa, Walter Severiano, J. Queiroz e Eme
Guilherme. Foram expostos mais de cinqüenta trabalhos.
Paris não foi apenas fonte de inspiração para servir de modelo para os salões
de arte na capital do Ceará. Convém salientar que o planejamento urbano de
Fortaleza possuía uma planta topográfica inspirada na cidade de Paris, com jardins,
cafés, coretos, monumentos e arquitetura de edifícios concebidos segundo padrões
europeus.
Antes da organização dos artistas em torno de uma categoria, as discussões
sobre arte e sobre a realidade local aconteciam nos ateliês individuais, como no de
Delfino Silva e Francisco Ávila; ou ainda no ateliê Artis de João Maria Siqueira e do
carioca Mário Baratta. Radicado em Fortaleza, Mário Baratta possuía um aguçado
espírito de liderança. Desta forma, conseguiu reunir os artistas que se encontravam
dispersos e reuni-los em torno de objetivos primordiais da categoria, e, em meio à
uma exposição de “[...] motivos, propósitos, interesses, e entusiasmo unânime,
funda-se no dia 30 de junho de 1941 a primeira entidade de ates plásticas do Ceará
para a qual foi adotado o nome de Centro Cultural de Belas Artes” (ESTRIGAS,
1983, p.13).
71
O Centro Cultural de Belas Artes CCBA, tinha como finalidade a aproximação
dos artistas, prevendo a criação de uma escola de desenho e pintura, de uma
biblioteca, da realização de conferências, Salões anuais -com instituição de prêmios,
além de uma galeria permanente. Vale ressaltar que do processo de concepção do
CCBA, assim como da composição do corpo diretivo, não houve a participação de
nenhuma mulher.
Desde o início passando por adversidades financeiras, O CCBA conseguiu
realizar três Salões de artes visuais: O I Salão Cearense de Pintura, em 1941,
seguido pela II e III edições do Salão, respectivamente em 1942 e 1944. A
constituição do CCBA é um ponto importante para a análise da constituição das
políticas públicas para as artes visuais no Ceará, que a partir da organização do
Centro, os artistas se organizaram em torno de ideais coletivos e suas reivindicações
passaram a ter um caráter mais claro e definido, matéria prévia e necessária para a
construção de qualquer política pública.
A SCAP substitui o CCBA , com estatutos mais adaptados aos anseios dos
artistas. A sociedade de artistas funcionou de 1944 a 1958. Além de estatutos mais
adaptados, a SCAP possuiu um maior número de sócios, sendo composta não
apenas por artistas plásticos: dela participavam escritores e amantes das artes em
geral. Integrantes do grupo CLÂ, por exemplo, eram scapianos, e vice-versa. Os
estatutos da SCAP tinham como “finalidade elevar o nível cultural e artístico em
nosso meio”, com Salões, galeria permanente, concursos, escolas e cursos
preparatórios para artistas.
Novamente, tanto na composição dos estatutos, como na constituição da
diretoria o existe nenhum nome feminino nos documentos. A instituição dos
cursos livres de desenho e pintura na SCAP, fundados no final de 1949, nos
interessam em particular, pois é a partir desse momento que a presença de
mulheres na SCAP se anuncia. Maria Nice, Nilza e Lisete eram as alunas que
participaram da primeira turma da SCAP. Destas, apenas Nice Firmeza continuou
trabalhando com arte. Aliás, das mulheres que passaram pela SCAP até seu
encerramento, em 1958, foram poucas as que se firmaram profissionalmente, como
artistas em Fortaleza: Estrigas cita Dayse Montenegro, mas indiscutivelmente Nice
72
Firmeza
30
e Heloísa Juaçaba
31
foram as artistas que conseguiram estruturar uma
carreira e serem reconhecidas como artistas. Augustine Pouchain e Freda Bondi
passaram pelos cursos da SCAP e estruturam uma carreira no sul do país. Como
professora da SCAP, apenas Angélica Torres, esposa de Honor Torres, também
professor da sociedade (ESTRIGAS, 1983).
Existiam, entretanto, outras mulheres que participavam indiretamente da SCAP:
as modelos que posavam para os nus artísticos. A movimentação da sala de
desenho da SCAP, nos altos do Bar Americano, no centro de Fortaleza, chamava a
atenção dos curiosos. Afinal, existia toda uma movimentação, com a freqüência de
vários homens e normalmente apenas uma mulher. Um modelo para posar nu
causava estranhamento na época. Os artistas recorriam, desta forma, às prostitutas.
Seguem depoimentos dos artistas na época esclarecendo o tratamento dado às
mulheres que posavam como modelo vivo:
Modelos profissionais não havia, nem por sonho. A quem recorrer?
Descobriram uma modalidade. Sorteavam um dos pintores solteiros para
“namorar” uma mulher dita de vida fácil. Nenhuma delas aceitava
simplesmente o fato de “posarpara pessoas estranhas. O que faziam tão
facilmente na vida profissional parecia-lhes um absurdo, no caso dos
pintores (depoimento de Barbosa Leite – apud ESTRIGAS, 1983, p.92).
Ás noites desenhávamos muito modelo vivo. Maria de Maranguape foi
nosso modelo por muito tempo (...) Outra modelo que posou para nós
muitas noites foi Maria morena. Era negra, de porte muito elegante, morava
só, num barracão de tábuas, até espaçoso, na praia próxima ao Poço da
Draga. (...) o corpo nu de Maria Morena valia ser contemplado (depoimento
de Mário Baratta – apud ESTRIGAS, 1983, p.85-6).
O modelo vivo era freqüente toda as semanas, de preferência o nu; sempre
teve uma mulata muito bonita e bem feita, que posava despida no centro do
salão. Todos ficavam em redor dela de cavalete armado com tela ou papel
de desenho (...) Acontece que a mulata desapareceu e ninguém sabe onde
o paradeiro dela. Arranjaram outra, uma alva, sempre encabulada, que era
preciso a gente tirar a roupa dela à força, porém, esta posou apenas duas
vezes (depoimento de Barrica – apud ESTRIGAS, 1983, p.75).
Os depoimentos evidenciam a naturalização das relações de dominação de
cunho patriarcal no período em comento. Um agravante com relação à intensidade
desta relação de poder tem fundamento não apenas em valores culturais ou
religiosos, mas também em condições sociais, raciais e econômicas. Nos
depoimentos observamos o tratamento reservado às prostitutas, assim como
questões de preconceito racial, mais fácil para a mulher “mulata” tirar a roupa do
30
Entrevista realizada em 05 de maio de 2006.
31
Entrevista realizada em 15 de maio de 2006.
73
que a mulher “alva”). Os aspectos mencionados se integram a tantos outros
aspectos explícitos e implícitos que reforçam as relações de violência física e
psíquica por qual passaram muitas mulheres, numa posição desprivilegiada,
normalmente desprovidas de meios de reação efetivos.
2.5 Nice e Heloísa
A adolescente Maria Nice de Castro Osório vivia em Aracati e estudava num
colégio de freiras. Nessa época (décadas de 30/40), o currículo das escolas não
recepcionava a disciplina Arte-Educação. Havia uma estrutura que visava formar
moças prendadas, que pudessem desenvolver habilidades que as qualificassem
para ter uma boa atuação como rainhas do lar: tocar piano, bordar, ter boas
maneiras, cozinhar e pintar. O sistema de formação na área das artes visuais
seguia padrões de incentivo à habilidade manual, que se evidenciava por intermédio
da cópia. Desta forma, causou estranhamento nas professoras a teimosia de Maria
Nice em querer representar o que via sem seguir os padrões rigorosos da cópia.
Chegaram até a especular a possibilidade de Maria Nice ter um defeito visual.
Apesar das represálias, a capacidade de Maria Nice de enxergar o mundo de uma
forma poética foi maior, pois para ela a cópia definitivamente limitava sua vocação.
O que talvez as professoras não tenham percebido é que Maria Nice não era apenas
mais aluna interessada nas prendas domésticas. A aluna era uma artista, que
necessitava criar e reinventar o mundo.
Apesar da violência simbólica do colégio de freiras, Maria Nice continuou com o
desejo de explorar as possibilidades de mundo que a arte oferecia. Deixa a cidade
de Aracati e vem com a família morar em Fortaleza, fixando residência no bairro
Jacarecanga. Um dia, João Maria Siqueira, professor e sócio da SCAP, caminha por
seu trajeto habitual e se depara com uma cena insólita: sua vizinha, a jovem Maria
Nice, tenta, de sua janela, executar uma pintura referente à saída de alguns
operários de uma fábrica. Tem início um diálogo entre os dois que é um marco na
vida de Nice:
- você gosta de pintar? Gosto, tenho muita vontade; e ele disse assim:
olhe, eu sou professor da SCAP e vai haver uma reunião e eu vou fazer
uma proposta para eles fazerem um curso livre de desenho e pintura, para
74
as pessoas que tem vontade de aprender. E eu fui a primeira aluna inscrita
no curso.
32
Ser a primeira aluna da SCAP foi um grande desafio para Nice. O caso de Nice
Firmeza
33
é emblemático das dificuldades enfrentadas pela mulher no período.
Quando resolveu estudar arte Nice ainda era solteira e enfrentou uma intensa
oposição familiar. O pai de Nice havia falecido e o irmão mais velho assumiu o
comando da família, com um exercício intenso do domínio patriarcal. Na entrevista,
Nice declara que desde criança sonhava em trabalhar com arte. No colégio, em
Fortaleza, possuía uma forte relação com o teatro, inclusive participando de várias
peças. Atuar era uma emoção muito intensa. O olhar da artista se iluminou quando
relatou seu amor pelo teatro, assim como nitidamente se entristeceu ao relembrar do
seguinte fato: quando o irmão de Nice soube de sua atuação nas peças proibiu
terminantemente a continuidade nos exercícios de teatro. Resolveu, ainda, retirar
Nice do colégio. Como alega a artista: “naquele tempo tudo era muito censurado,
diziam que as moças artistas iam para o cabaré com os rapazes, mas era tudo
mentira, nessa época, anos 30, a coisa era muito rígida”.
34
Proibida de estudar teatro pelo irmão, a artista enfrentou inúmeros obstáculos
para conseguir estudar arte na SCAP. Foi necessária a intervenção da mãe de Nice,
segundo a artista: - “Ela disse para ele: olha, você atrapalhou muito a vida dessa
menina, não faça a segunda vez, ela agora vai fazer o que ela quer”. Quando o
irmão reclamou dos gastos com o curso de arte, Maria Nice decidiu começar a
trabalhar para custear os estudos. Procurou emprego, até que foi aprovada numa
seleção da empresa Telefônica. Com voz decidida, avisou ao irmão: “Vou trabalhar
na Telefônica, amanhã às 07:00hs. Desta vez eu vou, para poder comprar minhas
tintas, meus pincéis e minhas telas”.
35
Roberto Galvão analisa em sua entrevista algumas razões pelas quais no
contexto social da época para as mulheres era uma ousadia estudar arte, sendo
motivo de repressão social e familiar:
Se você entrevistar a Nice ela vai lhe contar que para ela estudar na SCAP
era uma barra, os irmãos não aceitavam e ela disse que foi preciso a mãe
32
Entrevista realizada em 05 de maio de 2006.
33
Nice Firmeza é o nome de casada de Maria Nice de Castro Osório.
34
Entrevista realizada em 05 de maio de 2006.
35
Entrevista realizada em 05 de maio de 2006.
75
reunir a família e dizer: ‘a minha filha vai estudar o que ela quer estudar’.
Dona Aída Coelho, mulher do doutor Antero Coelho, ex reitor da Unifor,
também me falou que havia muita dificuldade ela andou estudando na
SCAP mas que isso era socialmente reprimido, não era uma coisa digamos
de pessoa séria, porque havia desenhos de modelo vivo, então era uma
coisa realmente não muito bem aceita socialmente.
36
Quem rompe convenções normalmente paga um preço pelas atitudes. Para as
três moças que participaram da primeira turma da SCAP
37
, em meados do século
XX, estudar à noite, num local freqüentado em sua quase totalidade por homens,
significava ser alvo certo de preconceitos e olhares maliciosos. Falamos de um
período onde a cisão entre o público e o privado possuía um caráter bem delimitado,
com muitas restrições ao comportamento público das mulheres, caracterizando uma
distinção hierárquica dos gêneros. A própria Nice Firmeza narra um episódio onde
as moças da SCAP foram alvo de percepções equivocadas:
A aula na SCAP era à noite. O Campos dizia assim: Nice você tem muita
coragem. Um dia um sujeito, um barbeiro, porque naquela região era
comércio, perguntou ao Campos: eu posso levar a minha também pra lá?
Achando que era outra coisa, sabe? O Campos disse: não! Ali não é o que
o senhor espensando não, ali são umas mas que estudam arte. Acho
que é porque ele só via homem né? Só tinham três mulheres.
38
Apesar dos percalços, Nice Firmeza, no entanto, persistiu em seus objetivos.
Ao contrário de suas duas colegas, permaneceu na SCAP até sua dissolução, em
1958. Foi no ambiente scapiano que conheceu o marido, o artista Nilo de Brito
Firmeza, conhecido como Estrigas. Juntos continuam até hoje trabalhando com arte.
Nice literalmente “pinta e borda”. São freqüentes as notícias nos jornais sobre suas
exposições. Estrigas e Nice vivem num aprazível sítio no Modubim, onde fundaram o
Mini-museu Firmeza, que possui um acervo significativo da produção artística
cearense.
Ao contrário de Nice Firmeza, para Heloísa Juaçaba, se tornar artista, foi um
processo de vida que fluiu com muita naturalidade. Os pais de Heloísa Juaçaba
estimularam desde cedo o desenvolvimento do dom da filha. Nascida em 1926, na
cidade serrana de Guaramiranga, a artista viveu próxima da natureza e da fartura.
36
Entrevista realizada em 06 de fevereiro de 2006.
37
A sede da SCAP nesse período funcionava embaixo do Bar Americano, na praça José de Alencar,
no centro da cidade
38
Maria Nice, Entrevista realizada em 05 de maio de 2006.
76
Atesta que o envolvimento com os encantos da cor foi um ponto constante em sua
obra, mas que seu olhar foi treinado por intermédio do contato com a natureza.
Eu acho que esse sentimento de arte nasce com as pessoas. Tem criança
que gosta de olhar pra cores e outras não gostam. Então minha mãe
percebeu que eu tinha uma vocação. E meu ambiente familiar era muito
favorável, sem dizer que eu cresci em Guaramiranga, e a natureza era
belíssima favorecia. E depois vim para Fortaleza e papai comprou um sítio
aqui pertinho, também cheio de natureza. Então eu acho que a arte é muito
da pessoa, como a gente observa a natureza, o sol, tem gente que olha
tudo e não nada, talvez por falta de cultura artística e a cultura vale
muito.
39
Apesar de cultivar e exercício do desenho e da pintura na infância e na
adolescência, pintando, inclusive, o retrato da mãe, dona Hermínia, foi apenas após
o casamento que Heloísa Juaçaba afirma ter se sentido artista. Por ter condições
financeiras, teve a possibilidade de freqüentar um curso livre no Museu de Arte de
Louisiana em Nova Orleans, EUA. Do marido recebeu telas, pincéis e o estímulo
para freqüentar as aulas na SCAP, onde fez amizade com Maria Nice. Heloísa
Juaçaba chegou na SCAP casada, não teve objeções familiares. Não lembra de
ter enfrentado nenhum tipo de preconceito por ser uma mulher artista. Por que se
que a realidade de Nice Firmeza e Heloísa Juaçaba apesar de tão próximas eram ao
mesmo tempo tão distantes?
Heloísa Juaçaba logo após o fechamento da SCAP foi convidada para integrar
o Conselho Estadual de Cultura, tendo voz deliberativa no conselho. Posteriormente
seria criado um Centro de Artes Visuais – Casa de Cultura Raimundo Cela, que será
alvo de análise um pouco adiante, onde a própria Heloísa Juaçaba foi fundadora e
diretora. Podemos observar que além de artista com uma fértil produção a atuação
de Heloísa Juaçaba foi importante para o desenvolvimento do sistema das artes
visuais no Ceará.
2.6 Salão de Abril
Desde o advento do Salon Regional de 1924, a cultura dos salões de artes
visuais se fortifica na cidade. No ano de 1952, acontece o Salão dos Novos,
promovido pela SCAP. Participando do salão podemos verificar o nome de Heloísa
Juaçaba, assim como o de Nice Firmeza e de muitas outras artistas (Lúcia Galeno,
Cleusa, Jacira Alencar, Mara, Míria, Dayse Montenegro, Ysis, Rita Maria). Com
39
Heloísa Juaçaba, entrevista em 25 de maio de 2006.
77
relação à visibilidade do formato Salão, entretanto, foi o Salão de Abril, que aglutinou
com uma maior ênfase os artistas que queriam mostrar à sociedade seus trabalhos.
O Salão de Abril constituiu, por muito tempo, a principal política pública voltada para
as artes visuais em Fortaleza.
Em 1943, com o país imerso na angústia de uma guerra mundial e tendo que
arcar com o peso de uma ditadura, um grupo de estudantes, que pertenciam a UEE
(União Estadual de Estudantes) enxergam a necessidade de um veículo que
promovesse um diálogo social com o momento vivido. Consideram adequado para
esse momento a instauração de um salão de arte, onde ao se tornar blica a
produção estética dos artistas também se favoreceria uma conscientização social.
Oito artistas expõem no I Salão de Abril, mas as expectativas dos organizadores e
artistas ficam muito aquém do pretendido. Em um local improvisado no centro da
cidade, a visitação pública foi mínima e as vendas praticamente inexistentes. Apesar
da decepção, Chabloz faz um balanço positivo da mostra: “Mas a pequena
exposição não foi de todo inútil. Apesar de tudo, foi graças a ela que se afirmaram a
existência e a atividade corajosa de alguns jovens artistas cearenses” (CHABLOZ,
1993, p.126). Ainda não há a participação de mulheres nesta primeira edição do
Salão de Abril.
A edição do Salão acontecerá apenas em 1946, tendo a SCAP como
promotora do evento. No catálogo do II Salão de Abril encontramos uma referência à
participação de uma artista: Maria Laura Mendes. A pintura de Maria Laura
apresentava um caráter figurativo, imbuído por uma temática que abordava questões
sociais. Maria Laura pintava, por exemplo, aspectos referentes às dificuldades
enfrentadas pelas camadas mais desfavorecidas da sociedade. Entretanto, não
podemos afirmar que existia um posicionamento engajado por parte das artistas em
Fortaleza com relação à luta por direitos mais igualitários ou contra algum tipo de
opressão existente na época. As manifestações que se apresentavam através da
linguagem da arte ou do posicionamento público das mulheres artistas se davam
dentro de padrões de aceitabilidade social. Não havia questionamentos mais
incisivos.
Na época do III salão de Abril, em 1947, participaram do evento, duas
mulheres: Joinha Fragoso e Angélica Sousa, esta última esteve presente também no
V salão. No VI, de 1950, participa Ruth de Sousa. No Salão de 1951, encontramos o
78
nome de Nice Firmeza e Aneliese Tuliola. Em 1952, o VIII Salão registra o apoio de
várias instituições, dentre elas a Prefeitura municipal de Fortaleza. É também o ano
de maior participação feminina até então, com onze expositoras. Mantém-se uma
média de cinco expositoras por salão.
O Salão de Abril conseguiu aos poucos ser incorporado pelo imaginário social.
A SCAP, apesar das dificuldades estruturais realizou treze edições da mostra.
Flexibilizava em algumas situações, como no XIII Salão de Abril, quando convida a
pintora italiana Paola Scala, que estava de passagem por Fortaleza, para
incrementar a exposição. Para a diretoria da SCAP, nessa edição do salão, os
trabalhos locais selecionados eram considerados fracos. Entretanto, há um fato
interessante envolvendo a participação de Paola Scala no Salão de Abril: um nu, de
autoria da artista, causa polêmica, impulsiona boatos entre o público visitante do
Salão. A diretoria da SCAP, temerosa das conseqüências, resolve retirar a pintura
da mostra. A artista ficou revoltada. Retirou imediatamente todos os trabalhos
expostos de sua autoria. O caso em comento reflete como a arte, em sua liberdade
de manifestações, ainda encontrava estranhamentos e resistências na realidade
local.
Existe, no entanto, um dado importante que devemos ressaltar quando
tratamos de um formato baseado nos moldes acadêmicos. Esse dado se refere ao
poder de nomeação, ao poder de definir quem é e quem não é artista. Nesse
sentido, esclarece Bourdieu (2003a):
O monopólio da nomeação acto de designação criadora que faz existir
aquilo que ela designa em conformidade com a sua designação toma, ao
aplicar-se ao universo da arte, a forma do monopólio estatal da produção e
dos produtores e das obras legítimas ou, se se quiser, do poder de dizer
quem é pintor e quem não é, o que é pintura e o que não é (p.276).
A realização do XIV Salão de Abril, em 1958, marca o fim da SCAP. O “terceiro
estágio” do Salão, segundo a classificação de Estrigas, acontece em 1964, quando
este é adotado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, responsável pela condução
do Salão até aos dias atuais (ESTRIGAS, 1993). O Salão de Abril seposto em
análise novamente no capítulo 4 deste trabalho, quando observaremos sua
permanência no calendário oficial da cidade e a busca constante dos artistas pelos
títulos concedidos por quem tem legitimado o poder de nomeação.
79
Antes desse passo convém problematizarmos as profundas alterações que
aconteceram na vida das mulheres e da sociedade, como os movimentos que
surgiram a partir da segunda metade do século XX. Desta forma, o capítulo que se
segue trata de alguns aspectos referentes à arte, feminismo e estudos de gênero.
80
3 ARTE, FEMINISMO E OS ESTUDOS DE GÊNERO
“Senhor! Senhor!, tornou a gritar,
ao concluir os seus pensamentos,
“devo, então, começar a respeitar a opinião do outro sexo,
embora me pareça monstruosa?
Se uso saias, se não posso nadar,
se tenho se ser salva por um marinheiro,
Deus meu!, o que devo fazer?”
E com isso entristeceu”
Virginia Woolf, Orlando.
“O gênero é o primeiro modo de dar
significado às relações de poder.
Seria melhor dizer:
O gênero é um primeiro campo no seio do qual,
Por meio do qual, o poder é articulado”.
Joan Scott.
Até aproximadamente o final dos anos 1960, o imaginário socialmente
construído arquitetava as opções ideais que as mulheres deveriam seguir, impondo
ao desejo feminino quase uma regra peremptória: o caminho das mulheres
normalmente era percorrido em uma estrada de mão única, que as conduzisse à
esfera privada do lar. Os sonhos das mulheres eram permitidos quando ancorados
ao anseio de um matrimônio indissolúvel unido à tarefa de cuidar de um bom
número de filhos.
Para as novas gerações de mulheres essa declaração pode soar até
exagerada. Entretanto, quando falamos de um passado não muito distante,
podemos admitir que a demarcação entre os espaços público e privado
demonstrava contornos bem delimitados. Para Sabadell (2005), até o final do
século XIX:
As mulheres eram excluídas da vida política e do exercício de uma série de
profissões (sobretudo as de caráter liberal), possuíam acesso muito
limitado à instrução, sofriam restrições ao direito de administrar o seu
próprio patrimônio e, no âmbito do casamento, eram tidas como uma
espécie de acessório do homem. Tudo isso confinava a mulher ao espaço
privado.
Somente a finais do século XIX e no início do século XX foram feitas
reformas permitindo uma limitada inclusão na esfera pública, sem, contudo,
contestar o poder masculino e a predominância dos homens tanto no
espaço público como no espaço privado (p.235).
81
Entretanto, a partir de meados do século XX, a vida das mulheres estava
caminhando para uma mudança radical. Enquanto muitas mulheres que desejavam
ter uma profissão, com liberdade e independência, como muitas mulheres artistas,
sofriam repressão familiar ou censuras sociais, não conseguindo reconhecimento de
sua produção, em vários países do mundo, estava florescendo a semente das
práticas do pensamento feminista que afrouxaria, de uma maneira nunca antes vista,
o apertado nó patriarcal.
De fato, a dinâmica do mundo estava mais acelerada. Inúmeros
acontecimentos contribuíram para o processo de mudança. Para as mulheres, os
efeitos em um mundo alterado por duas grandes guerras, a solicitação da mão de
obra feminina na indústria, a paulatina quebra de fronteiras entre as esferas pública
e privada, a modernização científica, a pílula anticoncepcional, enfim estes e outros
fatores impulsionaram as inquietudes do movimento feminista que tentava se firmar
com uma intensidade maior. A partir da cada de sessenta do século XX, muitos
movimentos tornaram o campo social favorável à incorporação da luta das mulheres
por direitos mais igualitários:
O feminismo eclode nas décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos e na
Europa, es estreitamente relacionado a toda a efervescência política e
cultural que essas regiões do mundo experimentaram na época, quando se
formou um caldo de cultura propício para o surgimento de movimentos
sociais (PINTO, 2003, p.41).
As ações em torno de movimentos organizados com o intuito de questionar o
sentido da manutenção de relações hierárquicas entre mulheres e homens, fizeram
que o feminismo levantasse a bandeira da luta pela igualdade social, política,
cultural e econômica entre os sexos. Eram intensamente colocadas questões que
propunham uma rediscussão acerca dos papéis sociais impostos, retirando os véus
que turvavam o olhar acerca do largo alcance da dominação masculina. O
movimento propiciou à sociedade os instrumentos necessários para uma tomada de
consciência, conforme destaca Varikas (1989):
Após longos séculos, pela primeira vez, as mulheres conheceram a
possibilidade de pensar sua condição, não mais como um destino biológico,
mas também como situação social imposta pelo direito do mais forte, como
uma injustiça (p.12).
Na busca de questionamentos sobre as opressões e os impactos sociais na
condição feminina e nos relacionamentos entre os sexos, assim como nas reflexões
sobre uma redefinição dos papéis sociais, dentre outras questões relacionadas, são
82
implementados nas universidades cleos de pesquisa para analisar as
particularidades de gênero. A categoria gênero instaura uma abordagem do tema
determinada a desvendar inúmeros falseamentos teóricos e práticos, sociais e
culturalmente construídos, acerca da peremptoriedade dos papéis que cabiam às
mulheres.
A dimensão da palavra gênero, neste sentido, foi dada pelas feministas
americanas que insistiam em interpretar a caráter eminentemente social
das distinções fundadas sobre sexo, rejeitando portanto o determinismo
biológico implícito no uso das expressões sexo e diferença sexual,
enfatizando portanto o aspecto relacional das definições normativas de
feminidade (FROTA, 2004, p.14).
Teóricas como Natalie Davis, por volta de 1975, iniciaram uma reação que
envolvia um questionamento sobre os estudos em separado que tratassem de
homens e mulheres. Esses estudos não poderiam abarcar apenas os aspectos
pertinentes ao sexo oprimido, assim como um historiador de classes não pode
centralizar o olhar em um foco exclusivo. Seria necessária, portanto, uma redefinição
de uma rie de noções e construções históricas, buscando uma inclusão de
experiências pessoais, de subjetividades, como também de suas influências em
atividades públicas e políticas das mulheres.
Scott (1990) é uma das principais teóricas no assunto. Buscando consolidar a
teoria de gênero, Scott elenca as três principais abordagens que tem sido utilizadas
nos estudos de historiadores e feministas: a primeira se refere na tentativa de
explicar as origens do patriarcado e seu exercício de poder; a segunda filia-se às
análises marxistas como linha de ação as críticas feministas e a terceira, baseada
no trabalho das escolas de psicanálise, na tentativa de explicar a produção e
reprodução da identidade de gênero no sujeito. As três correntes, para Scott,
apresentam suas limitações e não abarcam a amplitude da categoria gênero. O
grande mérito do estudo de Scott, reside em conceituar o gênero como uma
categoria útil à história de uma maneira geral e não apenas à história das mulheres.
Desta forma, o conceito de gênero instaura uma nova abordagem, essencialmente
social, não mais fundamentando as relações entre os sexos em um determinismo
biológico, que ocasionava compreensões e análises limitadas ou deturpadas.
Na compreensão de Michel Foucault (2006), a insistência em promover uma
definição do papel das mulheres associadas à sexualidade é algo que persiste
séculos. Torna-se factível a intencionalidade presente nessa construção: um sexo
83
frágil e debilitado. Como afirma o autor: “E este sexo, acrescentaram os médicos, é
frágil, quase sempre doente e sempre indutor de doença” (p.234). Ao longo dos
tempos um processo de patologização do corpo feminino foi tomando corpo. O
movimento feminista teria então utilizado justamente essa associação com a
sexualidade para subverter a ordem de poder estabelecida:
Ora, os movimentos feministas aceitaram o desafio. Somo sexo por
natureza? Muito bem, sejamos sexo mas em sua singularidade e
especificidade irredutíveis. Tiremos disto as conseqüências e reinventamos
nosso próprio tipo de existência, política, econômica, cultural [...] Sempre o
mesmo movimento: partir desta sexualidade na qual se procura colonizá-las
e atravessá-la para ir em direção a outras afirmações (FOUCAULT, 2006,
p.234).
Para Joan Scott o olhar de gênero se coaduna com as reflexões foucaultianas.
Ele é portanto, uma reinvenção. Em nossa compreensão, podemos traduzi-lo em
um olhar relacional, que busca a expressão do sentido da organização social,
política, econômica, cultural da relação entre os sexos, estruturado em uma visão de
processo, plúrima e multifacetada. Processo ou movimento que atravessa a
supremacia dos discursos hegemônicos, inaugurando novos caminhos,
direcionamentos, linguagens, criando outros sentidos possíveis para o existir.
[...] devemos nos perguntar mais seguidamente como as coisas se
passaram para descobrir por que elas se passaram. [...] devemos superar a
noção de um poder unificado, coerente e centralizado por um conceito que
se aproxime da concepção foucaltiana de poder, entendido este por
constelações dispersas de relações sociais desiguais identificado pela
expressão no ‘campo das forças’ sociais. Compreender que no interior
desses processos e estruturas um espaço para um conceito de agente
humano construir uma identidade, uma vida, um conjunto de relações, uma
sociedade com certos limites e com linguagens linguagem conceitual que
põe limites mas ao mesmo tempo contém possibilidades de negação,
resistência, de reinterpretação de jogo de manifestação metafórica e de
imaginação (SCOTT, 1990, p.14).
Um dos aspectos que o conceito de gênero em Scott problematiza é a
desconstrução dos discursos hegemônicos que procuram situar o papel social
exercido pela mulher. Denuncia a permanência histórica de um sujeito universal,
sendo este parâmetro o sujeito masculino. Ao aproximar-se, como diz a autora, da
concepção de poder de Michel Foucault, se criam possibilidades mais nítidas para
a compreensão das formas veladas de dominação, enxergando na microfísica do
poder a possibilidade de traçar uma genealogia:
Daí, para a genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a
singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona;
espreitá-los onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não
possuindo história os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos;
apreender seu retorno não traçar a curva lenta de uma evolução, mas para
84
reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos;
e até definir o ponto de sua lacuna, o momento em que eles o
aconteceram (FOUCAULT, 2006, p.15).
Um discurso de gênero apresenta um caráter abrangente, como aponta Torrão
Filho (2005, p.132): “incluindo o homem e a mulher em suas múltiplas conexões,
suas hierarquias, procedências e relações de poder”. O gênero tem uma
preocupação com a liberdade e atenta para os perigosos jogos de construção de
identidades do que é próprio do masculino ou do feminino. Orienta a busca de
respostas não em uma origem única dos fatos, mas sim em suas multiplicidades, em
entrelaçamentos tão bem constituídos, tão intrinsecamente amalgamados que não
possam estar separados sem corrermos o risco dos equivocados estereótipos.
3.1 Reflexos do feminismo no campo das artes visuais
Obras que se popularizaram, como “O Segundo Sexo”, de Simone de
Beauvoir, impulsionaram inúmeras reflexões sobre o que seria uma condição
feminina. Ao afirmar: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino
biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio
da sociedade” (BEAUVOIR, 1990, p.9), Beauvoir municia estruturas de pensamento
que embasam ações políticas no intuito de desconstruir inúmeros aspectos míticos
que envolvem a noção de feminilidade.
O movimento feminista conseguiu exercer uma larga influência na sociedade
ocidental. Teóricas, ativistas, artistas, donas-de-casa, estavam mais alertas aos
temas que envolviam cidadania e exercícios de direitos, aos critérios que
engendravam a imposição de limites entre a ordem pública e a esfera privada, quais
seriam as causas dos dogmas morais e da repressão sexual, dentre tantos fatores
intrinsecamente ligados aos aspectos identificados com o exercício do poder
patriarcal.
No campo da arte, as décadas de sessenta e setenta foram marcadas pelo
advento de expressividades artísticas impactantes. Os artistas - homens e mulheres,
iniciaram um questionamento mais incisivo sobre o corpo, elaborando obras que
indagavam sobre os limites impostos e quais as possibilidades de novas
significâncias. O corpo agora era também um local de poder e de sentidos políticos.
A flexibilização das possibilidades de leituras dos movimentos artísticos como a
85
Body art
40
e da arte conceitual
41
, por exemplo, são emblemáticas da amplitude das
metamorfoses sociais e culturais do período.
A expressão “arte conceito” foi utilizada pela primeira vez pelo escritor e
músico Henry Flynt, em 1961, durante atividades do grupo Fluxus
42
, em Nova York.
O que caracterizaria uma arte conceitual? Wood (2002) analisa a construção teórica
de Flynt:
Em um ensaio posterior Flynt escreveu que ‘arte conceito’ é acima de tudo
uma arte na qual o material são os ‘conceitos’, argumentando em seguida
que, ‘uma vez que os conceitos são estritamente vinculados à linguagem, a
arte conceitual é um tipo de arte na qual o material é a linguagem’ (p.8) .
A arte conceitual estruturou uma nova forma de abordar o sistema de
pesquisa utilizado pelo artista, estruturando conceitos e discursos acerca do
processo artístico. O conceito ganha um status diferenciado, ficando acima,
inclusive, da própria aparência da obra, de seu critério estético. A idéia, a
elaboração mental do trabalho, por exemplo, demonstram sua supremacia para a
arte conceitual quando as habilidades manuais ou técnicas migram para um plano
muito inferior do que predominava até então: a execução da obra pode ficar a cargo
de qualquer um que possua habilidades técnicas para o serviço. Sendo assim, não
necessariamente o próprio artista idealizador do projeto precisa executá-lo.
Aqui chegamos a um ponto que se revela crucial na compreensão das
transformações, concepções e formas de ver a obra de arte. Podemos afirmar que a
arte deixa de ser apenas algo retiniano, feita para ser meramente admirada e
assume o estatuto de idéia e pensamento. De forma mais ampla, então, podemos
40
Na Body art o corpo é utilizado como suporte ou meio de expressão, inclusive em performances
consideradas radicais, envolvendo mutilações e risco de vida.
41
A arte conceitual quebra a supremacia de inúmeros cânones na arte. Dentre eles existe a
“destruição das suas principais características da arte tal como ela chegou até nós na cultura
ocidental, ou seja, a produção de objetos que pudessem ser vistos e o olhar contemplativo” (WOOD,
2002, p.6). Entretanto, “arte conceitual”, como nome, surgiu pela primeira vez em 1967, quando Sol
Witt publicou os seus “Parágrafos sobre a arte conceitual”, na revista Artforum, no verão daquele
mesmo ano. (2002, p.37).
42
O Fluxus foi um movimento artístico que abarcava rias linguagens em arte, com ênfase para as
artes visuais, música e literatura. As décadas de 60 e 70 do século passado tem seu momento mais
fértil. O Fluxus se posiciona contra o objeto artístico tradicional como mercadoria ao passo que se
intitula como a antiarte.
Participaram do Fluxus vários artistas com destaque para John Cage, Joseph Beuys, Nam June Paik
, Wolf Vostell e Yoko Ono. O grupo organizava palestras, performances, música e poesia visual.
86
perceber a arte a partir das mudanças em comento. Sendo também pensamento, é,
por sua vez, promotora de reflexões, conexões entre experiências de vida e
articuladora de sentidos.
Como linguagem, a arte conceitual, as performances, a body-art e inúmeras
outras formas de expressão foram intensamente absorvidas pelos artistas,
comunicando novas formas de percepção do mundo. Muitas dessas percepções
reverberaram inevitavelmente nas manifestações de arte realizadas por mulheres, o
que Holanda (2006) chama de “jorro feminino” na arte. Jorro que colocou em
questão a re-significação da condição imposta ao “ser feminino” na sociedade.
As mulheres artistas assumiram, desta forma, a possibilidades de atuar
criticamente e politicamente na vida coletiva por intermédio de suas produções, de
sua linguagem artística.
Podemos destacar a artista Yoko Ono, que realizou performances onde
utilizava o próprio corpo e evocava as relações de poder entre os sexos. No trabalho
Cut Piece (1965), a artista, de joelhos, passivamente, sentada no chão de um
auditório, apenas observa inúmeros participantes do público que assistia a
performance cortarem pedaços de sua roupa, bem devagar e com uma grande
tesoura. Em nossa análise, o trabalho de Yoko Ono fala mais do que a denúncia da
posição de objeto da mulher na sociedade. Evidencia as inúmeras formas de
violência, a transformação do corpo da mulher em fetiche, quase sempre
comportado em estereótipos, apontando, com
salienta Sabadell (2005, p.236), como “é muito
difícil conseguir identificar como violência aquilo
que, do ponto de vista social, não é reconhecível
como tal”.
Muitos assuntos reverberaram nas obras de
mulheres artistas: a liberdade de escolha, o
direito à liberdade sexual, as formas de violência
contra a mulher. Outra performance impactante é
a realizada pela japonesa Shigeko Kubota,
intitulada Vagina Paiting (1965, fig.15), onde a
pintura é realizada com o pincel preso à vagina
Fig. 15: Vagina Paiting, Shigeko Kubota.
87
da artista. Rebecca Horn questiona as delimitações de poder próprias do masculino
em Mulher Unicórnio” (1970), onde um grande símbolo fálico é preso à cabeça.
Essas obras traduzem o espírito questionador das artistas sobre os parâmetros da
repressão sexual que atingia as mulheres, sendo estas muito influenciadas no
desenvolvimento de seus trabalhos
pelo movimento feminista.
Na obra The Dinner Party (O
Banquete, fig. 16), da artista canadense
Judy Chicago, uma mesa em forma
triangular, com trinta e nove lugares. A
mesa para a ceia é caprichosamente
composta, uma instalação onde
trabalharam mais de cem mulheres,
durante quatro anos (1974-1978) em
bordados, pinturas, modelagens e
desenhos. Os guardanapos recebem o
nome de mulheres historicamente
atuantes, onde o bordado também
narra o desenvolvimento de seus trabalhos em meio às opressões de gênero, como
Virgínia Woof, por exemplo. O prato principal? Modelagens de vaginas, em diversos
formatos, tamanhos e cores.
Vale ressaltar que a ocupação de espaços, assim como de novos papéis
sociais e o livre desenvolvimento da linguagem dos trabalhos pelas artistas não foi
tarefa fácil. A artista Louise Bourgeois (2000, p.112) declara: “Eu tinha a sensação
de que o mundo da arte pertencia aos homens, e que eu estava de certa maneira
invadindo seu domínio. Assim, a obra era realizada e escondida”. Talvez acanhadas
no princípio, portando uma pontiaguda sensação de ilegitimidade, ou sofrendo
repressões por atitudes consideradas inadequadas para uma mulher, as artistas,
pouco a pouco, se conscientizaram que o momento e as transformações do período
não comportavam mais o desconforto que a artista Louise Bourgeois confessa em
seu livro.
Fig 16: The Dinner Party, Judy Chicago
88
As artistas no final dos anos 1960, elaboram interconexões sobre gênero e
atividade artística, questionando, interpretando e reinventando as possibilidades de
construção do “ser” mulher:
[...] Desta forma, as artistas feministas tentaram introduzir outros sistemas
de valores como a emoção, o vivido, a experiência pessoal, etc, em
oposição ao único, ao elitista e ao cultural masculino. A arte patriarcal havia
transformado os corpos femininos em fetiches, limitados ou pelo papel de
musa e virgem ou relegado à iconografia da prostituta. Muitas artistas
plásticas uniram-se então para denunciar as tradicionais representações da
figura feminina e para reinvesti-la com seu olhar de mulher e artista . É em
torno da valorização e da representação da experiência feminina e de seu
processus corpóreo que as artistas vão, principalmente, trabalhar em busca
de formas simbólicas inerentes a ‘uma essência artística feminina’, através
de uma iconografia vaginal e sexual e da valorização das práticas ditas
femininas. (TOULZE, 2003, p.13).
Especificamente no campo da arte foram implementadas estratégias de ação
com o intuito de desvelar o domínio masculino no sistema. O espaço da produção
das artistas foi paulatinamente reivindicado. As artistas feministas exigiram que o
sistema absorve a direção das mulheres na organização de exposições, de
publicações, de discussões no campo da arte. Teóricas feministas iniciaram uma
produção direcionada a denunciar a visão patriarcal na história da arte, sobre como
a construção social da realidade foi alicerçada em valores de cunho patriarcal, que
tributavam às mulheres uma ínfima atuação no sistema. Teóricas problematizaram
essas questões em artigos científicos como Linda Nochlin, em sua publicação “Por
que não houve grandes artistas mulheres?”
Podemos constatar que as práticas conservadoras de museus, donos de
galerias e demais instituições oficiais foram evidenciadas. Ademais, as práticas
sexistas no sistema da arte vem de longa data. Como abordamos neste trabalho,
o espaço para a mulher ser artista no passado era sufocado. Várias teóricas
apontaram, desta forma, urgência de se refazer a história da arte através de uma
metodologia que levasse em conta uma história das mulheres artistas.
A partir do final da década de sessenta tem início uma série de movimentos
organizados por feministas artistas, cujo objetivo principal era questionar a ausência
das mulheres no sistema das artes. Nos Estados Unidos, em 1969, o grupo W.A.R. -
Women Artists in Revolution, denunciou as políticas sexistas em museus e
instituições culturais. Em 1970, surge o A.W.C - Ad Hoc Women Artist’s Comitte,
realizando ações políticas nas ruas. Nessa mesma época, pesquisadoras do Los
Angeles Council of Women Artists levantaram estatísticas sobre a participação
89
feminina no Museu Estadual de Arte de Los Angeles: somente 29 de 713 artistas
que apareceram em coletivas nos últimos dez anos eram mulheres; em individuais,
de 53 artistas, somente uma era do sexo feminino, como evidencia Archer (2001).
Uta Grosenick, em seu livro “Mulheres artistas nos séculos XX e XXI”, elabora uma
reflexão sobre a desigualdade do acesso ao campo das artes para as mulheres:
Na realidade, esta apregoada igualdade de oportunidades carecia de
fundamento. Eram poucas as mulheres a ensinar em Faculdades de Belas-
Artes ou membros de academias; elas continuavam a estar sub-
representadas nas exposições; e em comparação com o trabalho dos
artistas homens, a atenção da crítica voltava-se com muito menos
freqüência para elas, sendo suas obras muito menos adquiridas para
coleções públicas e privadas (GROSENICK, 2004, p.12).
Num contexto mais recente o grupo
artístico americano intitulado Las Guerrillas
Girls, (fig. 17) desde 1985, utiliza o humor pop
e a ironia como denúncia em performances e
cartazes acerca da pequena presença de
mulheres em exposições e museus.
Promovem releituras da história da arte,
denunciam a ausência das mulheres artistas.
Utilizam os signos de fetichização da mulher
como objeto, e subvertem seu sentido,
colocando uma mulher nua usando uma máscara de macaco, por exemplo. Para o
grupo, a participação das mulheres no sistema das artes ainda é alvo de
preconceitos. Na Colômbia, as ações do grupo feminista “Mujeres Creando” também
contestam as imposições do sistema e seus disfarces de privilégios de gênero.
[...] um grupo feminista, Mujeres Creando” que realiza ações públicas de
protesto, repúdio e busca da tomada de consciência cidadã em temas de
gênero, de homossexualidade, de racismo e de segregação social,
chegando, com suas atividades, a ter programas de televisão e a pressionar
que colecionadores de arte incorporem em suas aquisições seus trabalhos
em vídeo
43
(BOTTI b, 2005, p.29)
Muitas práticas discriminatórias foram incorporadas e naturalizadas pelo
próprio sistema. Possivelmente, uma das maiores dificuldades do movimento
feminista seja a real tomada de consciência das formas de violência que
43
No original: un grupo feminista, “Mujeres Creando” que realiza acciones públicas de protesta,
repudio y búsqueda de toma de conciencia ciudadana em temas de nero, de homosexualidad, de
recismo o de segregassem social, llegando, com su actividad, a tener programas estelares em
television y a lograr que colecccionistas de arte incorporen a sus fondos sus trabajos em vídeo.
(BOTTIb, 2005, p.29)
Fig 17: cartaz das Guerrillas Girls
90
permanecem na atualidade, inclusive com atenção para as metamorfoses das
formas de dominação. Números e estatísticas são eficientes em revelar as
desigualdades do sistema que ainda naturaliza privilégios de gênero.
Problematizaremos agora alguns aspectos da inserção do movimento feminista no
contexto brasileiro, no campo das artes visuais.
3.2 Feminismo- made in Brazil
“Eu sentia em mim , muito profundamente,
que o importante na forma era o movimento.
Eu tinha isso como certeza dentro de mim.
Via em cada forma algo como o fim de um movimento.
A liberdade da forma é a liberdade
que eu queria conquistar para cada pessoa.
Queria o conceito: a conquista da liberdade”.
Mary Vieira.
Segundo Pinto (2003, p.45), o movimento feminista no Brasil esteve
acompanhado das movimentações contra a ditadura. A autora salienta que a grande
maioria das militantes feministas no Brasil esteve envolvida ou foi simpatizante da
luta contra a ditadura no país. Muitas mulheres durante esse processo histórico
foram presas, torturadas ou exiladas pelo regime militar. Em 1975, a ONU,
reconheceu a discriminação contra a mulher, declarando oficialmente o período
compreendido entre 1975/1985 como a Década Internacional da Mulher. Durante a
vigência da década surgiram importantes organizações de contestação do regime
militar como os grupos de donas-de-casa e o Movimento pela Anistia em 1977.
Pinto (2003) argumenta ainda que o movimento feminista no Brasil nasce e se
desenvolve envolvido em um dificílimo paradoxo, quando deve administrar o
ambiente tenso de pleitear autonomia estando imerso em uma ditadura militar no
país. Como exigir liberdade e igualdade de direitos em tempos de repressão
institucionalizada? Além disso, o Brasil, ao contrário de outros países onde o
feminismo aflorou, passava também pelo enfrentamento da questão emergencial das
desigualdades sociais, onde a maioria dos direitos fundamentais ainda era negada à
população:
91
O movimento feminista, em países como o Brasil, não pode escapar dessa
dupla face do problema: por um lado, se organiza a partir do
reconhecimento de que ser mulher, tanto no espaço público como no
privado, acarreta conseqüências definitivas para a vida e que, portanto,
uma luta específica, a da transformação das relações de gênero. Por outro
lado, uma consciência muito clara por parte dos grupos organizados de
que existe no Brasil uma grande questão: a fome, a miséria, enfim, a
desigualdade social, e que este não é um problema que pode ficar fora de
qualquer luta específica (PINTO, 2003, p.45).
Na área das artes visuais pode-se afirmar que as artistas brasileiras eram
herdeiras de um campo eivado de vícios, preconceitos e intolerâncias. Até meados
do século XX, muitas artistas se sentiam obrigadas a adequar a linguagem de seus
trabalhos ao que estava estabelecido num circuito dominado por práticas
masculinas, conforme alega Chiarelli (2002). A obra de Lygia Clark é emblemática
dos novos momentos vividos pela arte e pelas mulheres artistas no Brasil. Para o
crítico de arte Fernando Cocchiarale (2005), os trabalhos de Lygia Clark intitulados
“Bichos”, integram os primórdios da contemporaneidade no Brasil, junto às
performances de Flávio de Carvalho e os “penetráveis” de Hélio Oiticica:
As primeiras manifestações da arte contemporânea brasileira ocorreram na
passagem da década de 50 para a de 60. Duas ações performáticas de
Flávio de Carvalho, a Experiência nº 2 e a Experiência 3, realizadas em
1931 e em 1956; os Bichos de Lygia Clark (1960) e os Núcleos e primeiros
Penetráveis de Hélio Oiticica (1960), podem ser tomados como emblemas
do nascimento da definitiva sincronização do país em relação às questões
universais da arte ocidental (COCCHIARALE, 2005, on line).
Cocchiarale frisa a grande
influência das obras de Lygia Clark que
sucederam os Bichos, como
“Caminhando” (1964, fig. 18) e as
“Máscaras Sensoriais” (1967), que
convocam o público a interagir com a
obra e não simplesmente contemplá-la.
Ao perceber que as possibilidades da
arte eram incomensuravelmente mais
amplas do que as concepções
estabelecidas pelo sistema, Lygia Clark
se intitula uma não-artista e propõe uma jornada de desterritorialização de inúmeros
referenciais construídos, principalmente no que envolve a relação entre espectador e
obra.
Fig 18: Caminhando, Lygia Clark
92
Aproximando a arte das atividades terapêuticas, Lygia Clark promoveu
inúmeras sessões de sensibilização coletiva com os objetos sensoriais - balões de
ar, sacos de areia, conchas, pedras, água; ações que resignificaram concepções e
possibilidades do fazer artístico, abrindo caminhos para as ltiplas possibilidades
hoje exercidas na arte contemporânea brasileira. Para Heloísa Buarque de Holanda,
Lygia Clark foi a primeira mulher artista radical na arte brasileira:
Lygia Clark é muito especial nesse sentido. As grandes perguntas
fundadoras e a grande manobra radical no território do feminino sem dúvida
foram feitas por ela. Isso é interessante porque a posição estratégica
conquistada por Lygia Clark, nos anos 1960, no campo da criação
intelectual e artística se torna emblemática para a cultura política feminina e
ultrapassa sua atuação nas artes plásticas [...]. Posso afirmar que minha
geração de mulheres tem em Lygia Clark uma forte referência intelectual. A
Lygia é aquela mulher que não se deixa segurar. Experimenta, arrisca, não
trabalha em função de um campo específico. Tanto na arte quanto em
outros campos, ela procura sem medo expandir o horizonte que se impõe,
vai fundo na ultrapassagem dos territórios da linguagem artística, do
conceitual, da política, do comportamento, enfim, o território, como ela tanto
queria, boderline (HERKENHOFF e HOLANDA, 2006, p.28).
Para a autora, as décadas de sessenta e setenta, assim como , na década de
oitenta, muitas artistas brasileiras enfrentavam padrões estabelecidos, trabalhando
diretamente com o que era estereotipado como próprio de uma cultura feminina:
sensualidade, corpo, maternidade, mutilações, traços geracionais. A produção das
artistas a partir da década de sessenta passou a questionar de uma maneira mais
incisiva os estereótipos estabelecidos sobre o que seria
um “universo feminino”.
A obra de Letícia Parente, artista precursora do
vídeo-arte no país, revela traços políticos
contundentes. Letícia Parente viveu muitos anos em
Fortaleza. No vídeo “Marca Registrada” (1975, fig. 19),
a artista borda, com a tela em close up a marca Made
in Brazil na pele da sola do pé. Lentamente se exibe a agonia do ser humano como
produto de consumo. Anna Maria Maiolino, imigrante italiana no Brasil, no trabalho
“Por um fio”, de 1976, discute a questão da imigração e dos laços familiares, através
de um fio que une mãe, filha e neta.
A construção do que seria identificado como uma “arte feminina”, sente o
impacto das desterritorializações, das quebras de estereótipos. Nascia uma nova
produção, realizadas por artistas, que, inclusive, não abria o da delicadeza, da
Fig 19: Marca registrada, Letícia
Parente
93
suavidade, dos véus, das sedas, das pérolas, dos bordados; mas estes elementos
frágeis agora também poderiam contar outras estórias - de decepções, de violência,
de dor, de perda, de dominação e de força. O trabalho de Rosana Paulino,
“Protótipo para Bastidores” (fig. 20) é significativo desse processo, quando a artista
utiliza o bastidor de bordado para simbolizar o real espaço para a voz da mulher
negra na sociedade. Pela própria subversão simbólica dos elementos de delicadeza
as artistas aos poucos questionavam e conquistavam espaços nunca antes
invadidos, como destaca Paulo Herkenhoff:
Nos anos 1970, parece ter havido um processo em que muitas mulheres
ousaram atuar dentro do que, muitas vezes, é um território da linguagem
dominado por homens, visto como
masculino (HERKENHOFF e
HOLANDA, 2006, p.68).
Suaves tecidos recebiam
delicados bordados que
narravam tristes estórias
permeadas por vidas oprimidas.
Ao mesmo tempo em que o
tema das obras se aprofundava,
as artistas também não
temiam mais “pegar no pesado”:
freqüentavam fundições,
trabalhavam grandes chapas de
ferro, pesquisavam a
composição dos materiais,
como Amélia Toledo. Se
apropriavam do ferro e da metáfora da violência como Cristina Salgado, onde na
série “Meninas”, cabeças são atravessadas por barras de ferro. Lygia Pape enfrenta
a histérica aversão coletivamente associada ao universo feminino, e constrói um
antifetiche, uma “caixa de baratas”.
A energia de transformação presente no trabalho das artistas estava em
consonância com as mudanças que a sociedade atravessava. O contexto social e
político brasileiro vivencia um momento onde, finalmente, se admite o debate em
torno de uma perspectiva democrática. O questionamento em torno dos signos que
remetiam à passividade feminina encontrou caminhos que garantiram a conquista de
Fig 20: “Protótipo para Bastidores, Rosana Paulino
94
vários direitos. O advento da Lei do Divórcio (Lei 6.515, de 26 de dezembro de
1977) e a promulgação da Constituição Federal do Brasil de 1988, representaram a
assunção de uma série de direitos fundamentais que atingiram os cidadãos e
cidadãs no País. Princípios expressos no art. 5º, norteadores e garantidores,
inclusive, da igualdade de direito entre homens e mulheres.
Com direitos garantidos
na lei, a ordem passou a fiscalizar sua efetivação.
No âmbito das políticas para as mulheres, muito foi conquistado. O Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) foi criado em 1985, vinculado ao Ministério
da Justiça, na função de promover políticas direcionadas ao combate da
discriminação contra a mulher e assegurar sua participação nas atividades políticas,
econômicas e culturais do país. O atual governo criou uma Secretaria Especial de
Políticas para mulheres
44
, que tem como objetivos elaborar e implementar
campanhas de caráter educativo, elaborando planejamento de gênero, além de
trabalhar continuamente pela efetivação da igualdade.
3.3 Mulheres artistas em Fortaleza
“As tramas da subjetividade que tencionamos
compreender
têm início no complexo e desconhecido terreno
da nossa própria subjetividade”.
Glória Diógenes.
Para a artista Bia Cordovil
45
sair de São Paulo e vir morar em Fortaleza
significou uma mudança radical que abarcaria algo muito maior do que o encontro
com uma nova cidade. Paulatinamente, aconteceu uma transformação interna, ou
melhor, uma metamorfose. Assim como o bicho-da-seda, a artista teceu seu casulo
para poder, enfim, se libertar. Para se chegar até a seda, principal matriz para o
44
A Secretaria foi criada através da Medida Provisória 103, no primeiro dia do governo do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, para desenvolver ações conjuntas com todos os Ministérios e Secretarias
Especiais, tendo como desafio a incorporação das especificidades das mulheres nas políticas
públicas e o estabelecimento das condições necessárias para a sua plena cidadania. Disponível em
http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sepm/sobre, em 17 de novembro de 2006.
45
Entrevista com Bia Cordovil, em 05 de janeiro de 2006 e documentário Mulheres Artistas: o tempo
da arte, 2006.
95
desenvolvimento dos trabalhos de Bia Cordovil, se exige um elaborado processo.
Faz-se necessária a construção de um casulo. Os fios construídos se entrelaçam
numa trama que resulta num tecido macio e extremamente forte.
O casulo que foi imposto às mulheres no passado foi rompido, é
inquestionável. Se na história das mulheres seus desejos conheceram a
peremptoriedade da proibição, o contexto contemporâneo apresenta um leque de
possibilidades bem mais abrangente para a ocupação dos territórios oferecidos no
tecido social. As lutas implementadas pelos movimentos feministas, a série de
vitórias contra a opressão que as mulheres tem obtido, tanto no aspecto privado
como na vida pública, são inquestionáveis. Entretanto, pesquisas recentes
46
como a
realizada pela Fundação Perseu Abramo demonstram como as injustiças ainda
persistem. Esclarecem o perfil da desigualdade social que atinge as mulheres: elas
ganham menos e trabalham mais, acumulando o trabalho fora de casa, muitas vezes
mal-remunerado, com o exercido no âmbito doméstico; ainda sofrem discriminação
no mercado de trabalho e são as principais atingidas pela violência.
Felizmente, os movimentos de um pensamento único pautado na ideologia
patriarcal vem encontrando outros rumos a seguir. A mudança no pensamento de
homens e mulheres acerca da condição feminina, os princípios e garantias
expressos na Constitucional Federal e legislação derivada, dentre vários outros
caminhos abertos, vem alterando a estruturação da família, do trabalho, da
educação, da cultura. Continuamente são diluídas fronteiras como também são
abertas novas possibilidades para a participação das mulheres nos rumos da
sociedade, ensejando uma cartografia social cada vez mais ampla a anunciar a
esperança da efetivação do princípio constitucional da igualdade
47
.
Entretanto, o que se constata na atualidade na fala das mulheres, muito mais
do que as denúncias do não-acesso aos espaços de poder é a contínua queixa que
46
O núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo realizou, em 2001, uma pesquisa sobre
“A mulher brasileira nos espaços público e privado”, que abrangia inúmeros temas, como: mudanças
na condição da mulher nas últimas décadas, expectativas pessoais e políticas, relações entre
trabalho remunerado e doméstico, contracepção e aborto, sexualidade e violência contra a mulher. A
íntegra da pesquisa pode ser conferida na página www.fpabramo.org.br.
47
Prescreve o caput do art. da Constituição Federal de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza (...) I- homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta constituição”.
96
as mulheres nos tempos atuais se sentem sobrecarregadas
48
. Se a independência
feminina foi assimilada nas mais variadas instâncias de convivência, esta também
tributou às mulheres o desafio de dar conta de uma gama cada vez maior de tarefas:
casa, casamento, filhos, carreira etc. A grande problemática consiste em ter que lidar
com o peso de um sistema onde ainda é freqüente a desigualdade de acesso ao
mercado de trabalho e a divisão das tarefas domésticas.
As artistas que produzem na contemporaneidade vêm colocando através da
linguagem dos trabalhos desenvolvidos nas artes visuais aspectos pertinentes às
questões de seu tempo. Não apenas aspectos que poderiam ser identificados com a
condição feminina atual, como violência doméstica ou a estafante tripla jornada de
trabalho. O tema da produção artística realizada por mulheres nos remetem a
conflitos imperativos da pós-modernidade, que perpassam desde vivências intimistas
à caótica organização do espaço público contemporâneo.
Em pouquíssimo tempo as mulheres percorreram um caminho que as libertou
da invisibilidade do mundo privado. Muitos atalhos foram abertos. Caminhos que
conduzem à hiper exposição e ao desempenho de papéis públicos. Consoante
Hobsbawm (1995):
Contudo, a própria amplitude da nova consciência de feminilidade e seus
interesses torna inadequadas as explicações simples em termos de
mudança do papel da mulher na economia. De qualquer modo, o que
mudou na revolução social não foi apenas a natureza das atividades da
mulher na sociedade, mas também os papéis desempenhados por elas ou
as expectativas convencionais do que devem ser esses papéis, e em
particular as suposições sobre os papéis públicos das mulheres, e sua
proeminência pública (p.307).
Como as mulheres artistas em Fortaleza refletem sobre questões próprias de
seu tempo? Com a instituição de cursos de graduação em artes visuais e com o
incremento do sistema de fomento às artes na cidade o número de mulheres artistas
produzindo ou assumindo a arte como profissão aumentou consideravelmente
49
. Por
conseguinte, com inspiração em Jean Franco (2005), perceberemos como as
artistas em Fortaleza vem exercendo, através da abordagem presente na linguagem
de alguns trabalhos, seu direito de interpretar, de ler e reler o mundo contemporâneo
e sua própria história.
48
Ver depoimentos de Bia Cordovil, Jussara Correia, Jacqueline Medeiros e Maíra Ortins no
documentário Mulheres Artistas: o tempo da arte, 2006.
49
Esse assunto será alvo de análise no capítulo 4.
97
3.4 O mundo privado na contemporaneidade
Aprendemos a olhar por intermédio das composições presentes no mundo
privado. Um mundo de pequenas coisas. O mundo íntimo nos revela surpresas,
primeiras descobertas, acolhe a verdade dos sentimentos que a esfera blica, em
diversas circunstâncias, nos obriga a reprimir. Como alega Arendt (2001, p.62),
embora a esfera pública possa ser grande, não pode ser encantadora,
precisamente porque é incapaz de abrigar o irrelevante”. O mundo privado é o
universo dos sentimentos, casa do amor e da dor. Lar da grandeza, do ínfimo e do
irrelevante que faz a vida de cada um ser única no mundo.
A artista Cláudia Sampaio investigou nas entrelinhas de cada canto da casa
onde vive o lugar onde reverberam silêncios, devaneios íntimos de pulsões
refreadas, gritos e sussurros de desejos frustrados, de amores desfeitos, da crueza
da solidão. No dia 27 de maio de 2004, a artista iniciou o processo de
Fig 21: “Confissões”, Cláudia Sampaio
98
aprofundamento de sua linguagem artística que a fez transformar sua casa em uma
obra pulsante
50
.
A casa fala de sentimentos que apenas o território privado está autorizado a
expor. A casa da artista Cláudia Sampaio, sua grande obra, exibe a essência dos
desencontros da co-existência. O trabalho intitulado “Confissões” (fig. 21) é uma
extensão da própria vida íntima da artista. As paredes são receptáculos onde a
artista escreve, agrega materiais, anota resquícios de vivências. Inclui nomes,
afetos, experiências, desenha, rabisca poemas. A casa, que simboliza abrigo,
refúgio ou proteção, recebe uma autorização para se despir de todas as muralhas,
de todas as máscaras e finalmente se entregar ao olhar do outro. Quebra os limites
entre o público e o privado; entre verdade e ficção.
A arte da escrita de Clarisse Lispector fala sobre o poder da criação, reflete
acerca do risco de se deparar, face a face, com a realidade:
Vou criar o que me aconteceu. porque viver não é relatável. Viver não é
vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não.
Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade.
Entender é uma criação, meu único modo. Precisarei com esforço traduzir
sinais de telégrafo traduzir o desconhecido para uma língua que
desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais. Falarei
nessa linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria
linguagem (LISPECTOR, 1988, p. 21).
Como no personagem G. H. de Clarisse Lispector, as confissões da artista
indicam o olhar que descobre sentidos presentes nas entrelinhas de cada canto da
casa. Simbolicamente, a casa sangra. Sofre as dores dos rompimentos, das
decepções. Cláudia Sampaio então medica as paredes, aplica curativos. Gaston
Bachelard (2003, p.25) em sua obra “Poética do espaço”, enuncia: “todo espaço
realmente habitado traz a essência da noção da casa”. Sentimentos habitados que
tornam a casa corpórea. O imóvel adquire vida, é um organismo. As unhas arrancam
superfícies. Das paredes brotam flores, cruzes, preces, lembranças, poemas.
[...] veremos a imaginação construir ‘paredes’ com sombras impalpáveis,
reconfortar-se com ilusões de proteção ou, inversamente, tremer atrás de
grossos muros, duvidar das mais sólidas muralhas. Em suma, na mais
interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites do seu
abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do
pensamento e dos sonhos (BACHELARD, 2003, p. 24).
50
A casa da artista pôde ser visitada durante o Salão de Abril de 2006. De novembro de 2006 à
março de 2007, a artista expôs uma versão da casa, que recebeu intervenções até o término da
mostra, no Museu de Arte Contemporânea do Centro Dragão do Mar.
99
Em outra perspectiva, a
artista Marina Barreira
desenvolve um trabalho em
que são problematizadas
questões da esfera doméstica
que ainda pesam sobre a
mulher na
contemporaneidade. No
trabalho intitulado “Humano
demasiadamente humano”
(fig. 22), a artista levanta
questionamentos sobre o
fardo do trabalho da dona-de-
casa. Antes chamadas pela alcunha depreciativa de “sexo frágil”, a noção de que o
trabalho doméstico é mais leve do o que é exercido fora de casa tornou-se um peso
para muitas mulheres, principalmente porque grande parte delas atualmente tem que
arcar com um regime árduo de trabalhar dentro e fora de casa, ser mãe e esposa.
Observa-se ao longo dos processos de convivência social, uma ausência de
reconhecimento ao valor do trabalho doméstico, como acentua Hubbard (1993):
As mulheres, com poucas exceções, trabalham e sempre trabalharam,
embora o termo trabalho” tenha sido cada vez mais definido, ao longo dos
séculos como aquilo que os homens fazem. O trabalho das mulheres é
muitas vezes banalizado, ignorado e subvalorizado, tanto em termos
econômicos quanto políticos. Não se diz trabalham quando “apenas”
tomam conta da casa e dos filhos (p.21).
As agruras da esfera doméstica recebem da artista
uma leitura subversiva, ao utilizar os mesmos elementos
da casa utensílios domésticos, peças de enxoval,
alimentos, roupas íntimas em posições diferenciadas. A
roupa de cama se assada no forno, a gaveta de
calcinhas traz a metáfora de dois mundos: o básico, um
prato de comida, o feijão com arroz e as peças íntimas, multicoloridas. A pressão
imposta pela rotina, pelo cotidiano, impede, em diversas circunstâncias, a
capacidade de ver o encantamento. Reflexões que conduziram a produção da artista
a subverter a ordem imposta pelo mundo doméstico, conforme declara em
entrevista:
Fig 22: “Humano, demasiado humano”, Marina Barreira
Fig 23: “Humano, demasiado
humano”, Marina Barreira
100
O que eu vejo que acontece de uma maneira inconsciente é que todos os
meus trabalhos sem eu perceber, falam de questões domésticas,
principalmente domésticas, mais do que de mãe, eu acho. E eu fiquei um
bom tempo nisso sendo dona-de-casa, quando as crianças eram bem
pequenas até agora. E eu não percebia que meus trabalhos tratavam
sempre disso, todos os trabalhos são sobre subversão de cotidiano
doméstico.
51
Marina Barreira realizou em 2006 uma performance no MAC intitulada
“Pretinho básico”. Usando um vestido preto, tipo “tubinho” com vários metros de
comprimento. Desta forma, a artista arrastava o peso do tecido, tropeçava, caía.
Uma reflexão que atravessa o peso da estética imposta na contemporaneidade, com
seus modelos de aceitabilidade, rapidamente introjetados como naturais. Reflete
também sobre os vários papéis impostos ao gênero feminino, como alega a própria
artista na entrevista:
[...]Eu tive filhos com 23anos, e aí eu fiquei realmente tomando conta deles,
eu resolvi optar mesmo em deixar a minha vida profissional um pouco de
lado para poder ficar com eles. Mas eu sinto que valeu a pena adiar a
carreira, por que eu vejo que mulheres que o puderam dar atenção aos
filhos pequenos ficam se sentindo mal mesmo, ficam se sentindo em falta, e
aí o que resultou dessa minha opção é que os meus trabalhos começaram a
refletir isso, essa vida doméstica, entendeu? As cadeiras vão subindo pelas
paredes, etc. tem uns trabalhos do salão de Abril que são mulheres com
duas cabeças, que eu acho que tem uma relação com o sobrecarregamento
da mulher. Tem um trabalho que eu desenho olhos em cima dos olhos
fechados, que tem haver com esses papéis que a gente tem que
representar como mãe, como esposa, eu me deparo muito com essas
questões entre ter que ser livre e ter que representar uma papel adequado
na escola dos meus filhos, por exemplo. Pois é, é fogo
52
.
Em vertigem
53
, de Jussara Correia, uma mulher costura continhas em um
tecido, sem parar, até chegar à aparente exaustão. O bordado lembra um mapa,
como se simbolizasse uma cartografia da condição feminina, exposta muitas vezes a
uma rotina doméstica em que o corpo se desgasta, sem ter seu resultado
reconhecido nem valorizado. No vídeo, a angústia chega ao ápice, a mulher não
suporta a carga, quase desmaia, e então volta num esforço incessante, quase
hipnótico, sem retorno nem outro caminho a tecer. Situação de muitas mulheres, que
se deparam diante de estradas sem atalhos, tendo que prover sozinhas a família,
normalmente com uma razoável quantidade de filhos. Muitas vezes ainda são
mulheres jovens e prenhes de sonhos. Para a artista, seus trabalhos tem uma linha
51
Entrevista com Marina Barreira em 12 de novembro de 2006.
52
Entrevista com Marina Barreira em 12 de novembro de 2006.
53
Vertigem, assim como outros trabalhos de deo-arte de Jussara Correia podem ser vistos no
documentário Mulheres Artistas – o tempo da arte.
101
que dialoga com situações típicas do universo das mulheres, pois ainda existem
muitas Marias Amélias”, “que além da carga financeira, ainda tem que suportar a
carga emocional, e acham que está tudo bem, porque é mulher”
54
.
Em outro vídeo da artista, intitulado
“Palco aberto(fig. 24), existe a presença
de um lagarto estirado no chão. Ouvimos a
voz de uma mulher a lamentar a condição
petrificada em que o corpo se encontra:
uma mulher estagnada, onde lhe resta
esperar e esperar. Num estado tipicamente
depressivo ou melancólico a mulher se fixa
no lamento e na dor que a deixa petrificada.
O corpo aparentemente morto tem vida,
mas uma vida interior em uma agonia que ninguém vê. A presença que se anuncia é
a de um vazio interior insuportável. Angústias colocadas na obra de arte. Jussara
Correia declara: “eu não gosto do mundo, eu acho o mundo muito triste. O planeta é
lindo, mas a vida não é linda
55
.
Nas fotografias de Jussara Correia o imaginário infantil, a atmosfera do
aparente lúdico nos remete a questões profundas. A artista cria narrativas, como na
obra “O u, a lua e as estrelas”. Um cavalinho amarrado anda em círculos. Vai
afundando cada vez mais até que consegue reagir, sair do buraco, se libertar das
amarras, enxergar um mundo novo e traçar um caminho próprio.
Muitos trabalhos de artes visuais costumam dialogar com outras linguagens,
como a literatura. A partir de poemas de Manuel Bandeira a artista Maíra Ortins
reflete sobre as possibilidades de uma vida. A série “A vida inteira que poderia ter
sido e não foi” que une técnicas de desenho e gravura, procura rastros de vivências
e de sonhos através das palavras dos poemas e das linhas do desenho. Direciona o
olhar para as estórias que narram e costuram o que ficou gravado na memória do
afeto, as intenções e ambições do percurso de uma existência, a vazão das próprias
54
Depoimento da artista Jussara Correia, documentário Mulheres Artistas: o tempo da arte, 2006.
55
Depoimento da artista Jussara Correia, documentário Mulheres Artistas: o tempo da arte, 2006.
Fig 24: Palco aberto, Jussara Correia
102
pulsões que, por questões alheias ou não à vontade da pessoa, foram impedidas de
seguir o fluxo do desejo.
Outros trabalhos que dialogam com o espaço privado, foram colocados
anteriormente, como a arte desenvolvida por Meira Guerra e Cristiana Moura. A
esfera íntima instiga a produção das artistas, é inquestionável. A abordagem que
verificaremos em seguida tem o caráter de analisar alguns trabalhos que dialogam
com o corpo e com o espaço público.
3.5 Das leituras do corpo à mulher no espaço público
No século XX a ascensão das temáticas feministas incluiu novos
posicionamentos com relação ao corpo e à liberdade da mulher. Das performances
ousadas oriundas da body art dos anos 60, até chegarmos à contemporaneidade,
observamos a existência de linguagens que lançam questões relativas às mutações
do corpo, suas marcas, reflexos e valores.
Entre a busca do prazer e a ditadura da disciplina, o corpo no mundo
contemporâneo transita entre paradoxos. Para Foucault (2006, p.146), o domínio, a
consciência de seu próprio corpo puderam ser adquiridos pelo efeito do
investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento
muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo”.
A s-modernidade amplia o território de discussão sobre o corpo. O debate
em voga fala da própria dissolução do humano. Narrativas presentes em filmes de
ficção científica materializam-se numa velocidade avassaladora. Atualmente, a
discussão do corpo remete também à quina, ao “ciborgue”. Essas vertigens do
pós-humano colocam e desconstroem discursos, desestruturam subjetividades.
Reflete sobre a questão Demo (2002):
Estamos passando por transformações culturais radicais que colocam em
xeque a subjetividade humana, ironicamente com base em transformações
do corpo. A alma humana é questionada a partir do corpo, com o advento
do clone, ciborgue e outros híbridos tecnonaturais, fenômeno que, bem
observado, não traz muito de novo, porquanto a biologia tem mostrado que
as dimensões culturais humanas são profunda e decisivamente
condicionadas pela base corporal, em especial do cérebro. Se o espírito
começa no corpo, ou o corpo no espírito, talvez jamais saibamos desvelar,
sem falar que a própria questão colocada sequer faz sentido. Não sabemos
onde termina o humano e começa a máquina, e a existência do ciborgue
volta-se menos para o problema das máquinas de que para a natureza
humana (p.248).
103
No trabalho da artista Milena Travassos, o corpo recebe uma outra leitura de si
mesmo, de sua estética convencional. É um corpo que conta estórias, simbolizadas
por um eixo, uma estrutura, um equilíbrio: a coluna vertebral. Ao re-significar o
próprio corpo, Milena Travassos cola uma série de vidrinhos, fruto de uma longa
pesquisa com as transparências, ao longo de toda a coluna. No vídeo “O mergulho:
onde algo de invisível se guarda, a artista executa ações que possuem um tempo
mais dilatado, propiciando um clima de estranhamento. São realizadas ações
corriqueiras, como lavar os cabelos, ou brincar no balanço. O ato do balançar é
lento, anunciando em um tom inefável, o medo dissimulado, a vertigem. Essas
ações, entretanto, trabalham com uma re-significação do corpo, são executadas por
uma mulher incomum, para além do humano, um ser híbrido (fig. 25).
A suavidade do trabalho de Milena Travassos pode se entrechocar com a
crueza do trabalho de outra artista. “Sem medo”
56
, vídeo de Rosângela Melo,
também fala do corpo. Do corpo que sofre, da mutilação, do corpo que finda. Tem
início onde cinco mulheres aparecem de costas. Lentamente vão girando, e revelam
56
Apresentado no Salão de Abril, 2004. Documentário Mulheres artistas: o tempo da arte, 2006.
Fig 25: “Sem título”, Milena Travassos
104
nas camisetas que vestem as conseqüências no corpo da mutilação que a
mastectomia causou. A artista reflete sobre como a manipulação da realidade está
presente nos canais formadores de opinião. As campanhas de prevenção do câncer
escolhem belas mulheres, com o corpo perfeito, para conscientizar a população
contra o avanço da doença. São comercializadas camisetas com símbolos que não
condizem com a realidade dos fatos. Para a artista, vivemos em uma sociedade
hipócrita. Declara o poder que a arte contemporânea tem de falar onde as outras
linguagens se calam:
As pessoas não gostam de saber a realidade. As pessoas querem viver no
mundo Disney. É muito mais fácil. A arte contemporânea te a
oportunidade de te dar uma pancada e dizer: acorda rapaz! Tu não na
Disney não. Tu tá em São Paulo, no Ceará..
Os trabalhos de Rosângela Melo remetem ainda a aspectos da morte do corpo,
do descaso social. Elabora uma farta mesa de banquete, onde a toalha é tecida com
atestados de óbito de crianças que morreram de inanição. Em outra obra, na época
da campanha eleitoral, distribui vários cartazes com fotos de anciãos abandonados
pelas famílias, em vários pontos da cidade, onde, junto à imagem, vemos
simplesmente a palavra Ei!
[...] nas grandes cidades, a saturação de estímulos sensoriais gera em nós
uma espécie de carapaça protetora. Um mecanismo de defesa que se
estabelece na forma de uma providencial indiferença a tudo aquilo que nos
rodeia e parece nos ameaçar e agredir. Porém, como conseqüência
inevitável disso, decai igualmente o nível de solidariedade que poderíamos
nutrir por nossos semelhantes (MALTA, 2004, p.121)
Outra artista que parte do corpo como objeto de reflexão, promovendo um
diálogo entre “o corpo e o Eu e o Outro” é Cecília Bedê. Traçando pontos e linhas
que unem os seres um a um, desenha sentidos utilizando os próprios corpos como
plano original para receber o trabalho. Em “Pontos”, a artista parte da simbologia do
ponto - elemento básico da linguagem visual - para desenhar fotograficamente uma
composição de sinais, por intermédio de vários fragmentos de corpos. Como na
composição de uma colcha de retalhos, a artista fotografou detalhes dos corpos de
várias pessoas, buscando seus “pontos”, seus sinais. Unindo posteriormente as
fotografias, formando um painel, há a concepção de uma nova estrutura corpórea. O
sinal que antes limitava-se a um corpo isolado revela-se então integrante de uma
conjuntura maior, propondo uma reflexão sobre os desdobramentos de um corpo
que possui exterior e interior, onde o início da exteriorização de seus movimentos,
105
fluxos e conexões acontecem nos domínios do que é invisível para nossos olhos: o
interior de nossos próprios corpos.
Seu trabalho seguinte, “Ponto, Linha...”, revela uma composição de nove
fotografias de grandes dimensões, onde linhas e pontos percorrem corpos que
sofreram intervenções cirúrgicas. Mais uma vez a artista utiliza a fotografia como
suporte para nos conduzir ao íntimo do ser do outro, às entranhas de uma existência
alterada pelo percurso da vida. É aberto um atalho a um terreno em que se faz
possível sentir simbolicamente na própria carne a linha que é comum a todos os
seres humanos, os unindo impreterivelmente: a lembrança das limitações físicas, da
sensação da dor, da mutilação, das ausências, dos afetos, dos ganhos e das
perdas, enfim, da própria finitude do corpo humano.
Os caminhos que Cecília Bedê traça com suas linhas e pontos nos conduzem
aos pensamentos de Merleau-Ponty (1999), principalmente em seu trabalho “Tomo
tua dor”. Aqui as cicatrizes e marcas do corpo do outro o transmutadas para o
próprio corpo da artista, sua pele é o suporte para os desenhos que representam
essas cicatrizes. A artista se propõe a ser um receptáculo para a dor de seus
semelhantes revelando através de si, a dor do outro. As várias fotografias do corpo
Fig 26: “Ponto, linha...”, Cecília Be
106
da artista encaminham a Ponty (1999), quando este fala acerca da essencialidade
da trama relacional que nos envolve e de como nossos olhos só enxergam a
grandeza espiritual do outro graças a seu corpo.
A performance que Bia Cordovil realizou, intitulada “Em uma hora” também fala
do corpo. A artista tem no uso da seda uma referência para seu trabalho e no
contexto em comento a seda foi disposta num cruzamento no centro de Fortaleza.
Durante uma hora carros, motos, bicicletas e pedestres imprimiram as marcas do
trânsito da cidade no tecido. Em seguida o resultado das impressões é recolhido e
exposto para o público.
Na obra da artista Jacqueline Medeiros é perceptível o exercício de outros
lugares possíveis em contraponto à frenética contemporaneidade. A artista cria
portais de sentido onde o olhar se apropria e cria, tecendo uma poética. Territórios
férteis, onde acontecem encontros: reúnem olhar, sujeito e mundo. Instigada pelo
fluxo dinâmico, intenso e imprevisível das cidades, a artista tem o olhar aguçado
para captar os entrelaçamentos de pensamentos e convivências. Seu olhar para as
cidades partiu de uma repetição. Por viajar muito, estava sempre em quartos de
hotel. Se deparava sempre com os falsos sorrisos acolhedores. Ao abrir a porta, a
paisagem se repetia: cama, televisão, telefone, frigobar. Tudo muito limpo,
arrumado e previsível. Tudo igual, até abrir a janela. Ao abrir a janela, surgem
mundos novos. Todo igual traz consigo a sua peculiar diferença. Por conta da
repetição a artista fotografou, nas diversas cidades por onde andou, a diferença que
cada quarto de hotel trazia: a paisagem da cidade.
O início do trabalho de Waléria Américo nasceu com o caminhar pelas cidades.
Suas primeiras gravuras são de pés em movimento. A artista procura nas cidades
seu encontro com o outro, com “a possibilidade de ver o mesmo de uma maneira
diferente, eu acho que a arte faz isso”,
57
pontua. Nesse sentido, Certeau (1994)
reflete sobre o ato de caminhar:
Certamente, os processos do caminhar podem reportar-se em mapas
urbanos de maneira a transcrever-lhes os traços (aqui densos, ali mais
leves) e as trajetórias (passando por aqui e não por lá). Mas essas curvas
em cheios ou em vazios remetem somente, como palavras, à ausência
daquilo que passou. Os destaques de percursos perdem o que foi: o próprio
ato de passar a operação de ir, vagar ou “olhar as vitrines”, noutras
palavras, a atividade dos passantes é transportada em pontos que
compõem sobre o plano uma linha totalizante e reversível. Só se deixa
57
Depoimento, documentário Mulheres Artistas: o tempo da arte, 2006.
107
então captar um resíduo colocado no não-tempo de uma superfície de
projeção. Visível, tem como efeito tornar invisível a operação que a tornou
possível. Essas fixações constituem procedimentos de esquecimento. O
traço vem substituir a prática. Manifesta a propriedade (voraz) que o sistema
geográfico tem de poder metamorfosear o agir em legilibilidade, mas ela
faz esquecer uma maneira de estar no mundo (p.176).
“Doar” foi uma performance que Waléria Américo realizou num cruzamento da
Praça 7, em Belo Horizonte, como parte de sua pesquisa da bolsa que recebeu para
estudar arte na capital mineira. A artista Waléria Américo quase não aparece em
meio a oitenta balões vermelhos. A intenção era registrar a performance em vídeo,
onde haveriam tomadas de cima e seria captada a poética do trabalho: as pessoas
pouco a pouco pegariam os balões, e a artista se doaria para realizar outros
percursos, com o deslocamento dos pontos vermelhos. Entretanto, a realidade foi
um pouco mais dura. As pessoas simplesmente atacaram a artista, arrancando os
balões e a inocência de quem ainda acreditava na visão poética da civilidade em
plena metrópole urbana.
Os imperativos da caótica pós-modernidade são objeto de reflexão no trabalho
“O que você precisa fazer para sobreviver?” de Jacqueline Medeiros. A artista
adesiva frases nas calçadas, onde os transeuntes se deparam com os comandos
“não pare, não pense , não sinta”. Em 2006, expõe no Salão de Abril 03 fotos
manipuladas digitalmente, onde as contradições da vida urbana, permeadas pelas
agressões ao interior das existências e ao espaço coletivo são novamente
tematizadas. Ao mesmo tempo que uma pessoa corre, se lê no asfalto “devagar” (fig.
27).
Os afetos pedem
tempo. Afetos que
podem ser engolidos na
cidade pela ansiedade
do novo, onde abrigos
de memória se
despedaçam.
Jacqueline Medeiros
passeia pelos
escombros das
demolições, pelos
Fig 27: “Sem título”, Jacqueline Medeiros
108
restos temporários da especulação urbana. Posteriormente unirá os escombros às
imagens da vida que existia no local demolido. Vizinhos que não mais existem,
tornaram-se espectros de existências. Pessoas que passam pela cidade e nela
deixam marcas invisíveis para olhos disciplinados, captados somente pelo olhar da
arte. Gravam afetos, entornam resquícios de sua permanência no local. A artista
recolhe esses pequenos amuletos, escombros de histórias da vida privada, tece
narrativas. Quanta vida existiu neste lugar? Quantos sorrisos, nascimentos,
aniversários, perdas ou decepções existiram na “Rua Raimundo Resende, 55”
58
?
Uma metáfora do tempo está presente no vídeo “Era uma vez” (2006). A
imagem leva à uma reflexão da vida como passagem. A areia que marca a
passagem do tempo pela ampulheta remete aos processos inevitáveis, à vida
mediada por seus contrários, por suas construções e desconstruções. O que fica do
que foi vivido? Quais escolhas determinarão a condução da vida? Em “De que lado
você está?” (2005), imagens de pessoas hipnotizadas, enlaçadas nas amarras do
sistema, submetidas à violência simbólica que engendra o estímulo ao ser passivo
são dispostas pela artista de uma forma que o espectador não tem acesso ao alvo
da curiosidade ou da anestesia coletiva.
A obra da artista Jacqueline Medeiros entrelaça reflexões sobre aspectos da
contemporaneidade, tece diálogos com os inúmeros tempos vivenciados. O tempo
da dinâmica pública, o tempo da intimidade do universo privado e sua memória
particular. A artista propõe narrativas, trilhas, fugas para a máquina do cotidiano. Ao
abrir a janela, instaura portais, enseja poéticas, abre espaços para que o individual e
o coletivo repensem seu lugar.
Alguns caminhos traçados pelas artistas sinalizam a compreensão de outro
lugar, de outro tempo. Abrem diálogos com o espectador, convidam a abrir janelas
para o mundo. Pontuam aspectos da orgulhosa civilização, que decreta a ausência
de espaço para as singulares, tributando a coexistência num mundo que grita em
seus mais amplos sentidos: não mais tempo! A confusão da vida urbana celebra
pactos que cegam, impondo a doutrina da pressa e da efemeridade das relações.
Como se a pós-modernidade condenasse a uma vida coletiva e, ao mesmo tempo,
incomensuravelmente solitária. Um individualismo egóico reina na sociedade urbana,
ornamentado pelo consumo.
58
Título da obra.
109
A arte, mais uma vez, representa um reflexo da vida.
As artistas, quer dialoguem com o espaço público, quer reflitam sobre as
significâncias do corpo e do (pós) humano, ou direcionem sua atenção para um
espaço mais intimista, do mundo privado, precisam ter condições para expor seus
trabalhos. A arte precisa do outro. Encontrarão nesse caminho entre a obra e o
público, a mediação de um mercado de bens simbólicos, serão afetadas pelas
políticas públicas voltadas para as artes visuais. Como se apresenta a realidade do
sistema de fomento às artes será, portanto, o assunto abordado no próximo capítulo.
110
4 POLÍTICAS PARA AS ARTES VISUAIS E QUESTÕES DE GÊNERO:
ENTRELAÇAMENTOS
“Não fale em necessidade!
Reduza a natureza às necessidades naturais
e o homem não passa de um animal.
Entende que precisamos de algo
mais para continuar vivendo?”
Shakespeare, Rei Lear.
Durante um passeio de fim de tarde, na Praia Formosa, o olhar aguçado do
artista suíço Jean Pierre Chabloz
59
encontrou o fascínio do imaginário de Chico da
Silva: “eu passeava ao longo da praia quando, de repente, minha atenção foi atraída
por estranhos desenhos que enfeitavam algumas casinhas de pescadores”
(CHABLOZ, 1993 p.149). Esse encontro foi determinante na condução dos rumos
da vida de Chico da Silva, tornando sua arte conhecida do grande público.
O olhar afinado de Chabloz também foi decisivo para os caminhos trilhados
pela artista Jane Lane
60
: “conheci o Jean Pierre Chabloz, e ele disse que eu era boa.
Eu tinha doze anos. E fiquei mais ou menos dos doze aos dezessete anos
estudando com o Chabloz”. Durante os anos que Jane Lane pôde conviver com
Chabloz foi sendo tecida, irreversivelmente, a teia da arte que cobriria toda a
trajetória de vida da artista.
Jane Lane teve em seu professor apoio, orientação e estímulo para pesquisar e
desenvolver uma linguagem que fundamentaria uma posterior carreira como artista.
Simbolicamente, o olhar de Chabloz, quando autoriza que a arte penetre na vida,
permite a vazão de possibilidades de sentido para a vida também de outros. Abre
espaço para que as experiências dos sentidos do outro se entrelacem com os seus.
Ponty (1999, p.18) afirma que “porque estamos no mundo estamos (condenados ao
sentido), e não podemos fazer nada que não adquira um nome na História”. Para os
59
Chabloz costumava vir sempre ao Ceará. O livro “Revelação do Ceará” de autoria do próprio
Chabloz, detalha os caminhos percorridos pelo artista suíço em terras cearenses, dando ênfase,
inclusive, à relação desenvolvida com o artista acreano radicado no Ceará, Chico da Silva.
(CHABLOZ, Jean Pierre. Revelação do Ceará. Fortaleza: Ed. Secult, 1993).
60
Entrevista com Jane Lane, concedida em 19 de junho de 2007.
111
artistas cearenses, como foi a condução do olhar do outro, como se teceu as tramas
de sentido para o mundo das artes visuais? Sendo esse “outro” aqui considerado
quem atua no planejamento e execução das políticas culturais, principalmente para
as artes visuais.
A tessitura dos fios dessa história tem suas particularidades. O rumo que traça
o “olhar” de quem elabora as políticas culturais imprime seus reflexos na sociedade
presente e na sociedade futura, na vida dos artistas e na percepção do público de
arte. Convém, então, destacar como podemos compreender a política cultural.
Adotamos, nesse estudo, um conceito traçado por Teixeira Coelho, que contempla
política cultural num sentido mais abrangente :
Política cultural é entendida habitualmente como programa de intervenções
realizadas pelo Estado, instituições civis, entidades privadas ou grupos
comunitários com o objetivo de satisfazer as necessidades culturais da
população e promover o desenvolvimento de suas representações
simbólicas (COELHO, 1999, p.293).
Neste capítulo procuraremos contextualizar e compreender um pouco mais das
entrelinhas que engendraram o processo de ações e intervenções que possibilitaram
a composição do presente sistema. Atentos para os caminhos que viabilizaram as
políticas culturais, a condução de seus rumos e sentidos para as artes visuais,
observando a busca em um foco mais preciso nas questões que permeiam o gênero
feminino. Procurando, desta forma, perceber os movimentos, paradoxos e
realizações da realidade que envolve as políticas para as artes e as questões de
gênero, quando estas duas faces se cruzam e se entrelaçam.
4.1 Juventude dourada
No panorama das políticas culturais do Estado do Ceará, o ano de 1966 marca
a instituição da Secretaria de Cultura do Estado sendo a primeira secretaria de
cultura a nascer no Brasil. Para a Secult, no entanto, vir ao mundo não significou um
processo isento de conflitos. Muitos agentes do campo governamental e
representantes da sociedade civil criticavam a existência de uma pasta específica
para a cultura. O entrechoque das necessidades naturais e as necessidades
culturais, (o “algo mais”, que fala Shakespeare), dificultava a capacidade de
enxergar o grau de importância que ambas possuíam. Quando as realidades em
questão eram colocadas em graus de prioridade, a direção tomada indicava um
112
porvir onde, na aplicação dos recursos públicos, as necessidades culturais migravam
para um último plano. Para Barbalho (1998, p.95), “esse período, então, é marcado
pelo empenho dos intelectuais envolvidos com a Secretaria de Cultura em legitimá-la
diante de seus oponentes”. Cônscios da profícua atuação da cultura na ampliação
de senso e sentido de mundo, estes intelectuais empenharam-se na empreitada de
legitimação da secretaria.
As vicissitudes que configuraram esse período delicado para o campo cultural
estenderam seus efeitos para o âmbito específico das políticas para as artes visuais,
por serem realidades visceralmente unidas. Com efeito, na cidade de Fortaleza
observava-se uma ausência de direção, movimentos ou acontecimentos
significativos nessa área no início da década de sessenta. A SCAP, havia
enfraquecido seu poder de coesão e encerrado suas atividades desde 1958. Alguns
artistas, inclusive vários remanescentes da época áurea da SCAP, sentido falta de
ações que promovessem uma movimentação no campo das artes, criaram uma
organização intitulada Seminário de Arte do Ceará - SAC. As atividades do grupo, no
entanto, rapidamente entraram em colapso e tiveram curta duração.
Isso reforça o grau da expectativa que atingiu os artistas devido à construção
do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará - MAUC - em 1961, no campus
do Benfica, defronte à Reitoria. Expectativa frustrada, consoante Galvão (2004,
p.180). Para o autor a orientação artística adotada pelo museu, bem como as
instalações da instituição não atenderam o que dele esperavam os artistas locais.
Apesar do desempenho aquém do esperado a construção do MAUC vem
incrementar a constituição de um campo que amplia o espaço de atuação social
para o gênero feminino: a artista Heloísa Juaçaba esteve presente durante o
processo de organização do MAUC e integra o grupo de artistas que tem obras que
participam da exposição inaugural do museu.
Após o fechamento da SCAP, mais de uma década se passou sem um local
que possibilitasse a união de artistas em torno de interesses comuns. A fase de
inatividade que caracterizou o período em comento, no entanto, pode ser associada
não apenas como uma lacuna, mas como uma transição entre gerações. Corrobora
esse argumento Galvão (2004), quando afirma que o momento pós-scap simboliza
uma nova fase para o campo das artes visuais. A estrutura scapiana, considerada
romântica e acadêmica, não acompanhava mais as alterações da sociedade. O
113
fluxo da arte foi sendo composto por outros valores que sentenciaram, entre
repulsas e simbioses, a despedida dos antigos preceitos acadêmicos.
O reinício do Salão de Abril, em 1964, coordenado a partir de então pela
Prefeitura de Fortaleza, re-significa a realidade da produção local em artes visuais,
trazendo para a cidade novos conceitos, olhares e perspectivas
61
. A emergente
geração de artistas se impõe e introduz, entre estranhamentos que normalmente
acompanham o advento das nascentes linguagens, as tendências antenadas com os
parâmetros modernistas.
Importa perceber que, somente após o fechamento da SCAP, em 1958, é
que os antigos valores acadêmicos perderam a sua posição como valores
dominantes. Pois, em 1964, ao reabrirem as portas do Salão de Abril, agora
coordenado pela Prefeitura de Fortaleza, ele foi totalmente dedicado às
artes modernistas, não existia mais espaço para as correntes acadêmicas.
O modernismo assumia a hegemonia entre os artistas da cidade para, logo
depois, pela própria razão de ser moderno, questionador de si mesmo,
iniciar o seu declínio como movimento dominante, permitindo e até gerando
o surgimento de novas tendências artísticas (GALVÃO, 2004, p.89)
Conseqüentemente, as edições do Salão de Abril que aconteceram a partir de
1964 davam visibilidade à nova produção, mas também abrigavam uma juventude
sedenta por produzir arte, que clamava ao poder público um olhar que os apoiasse
institucionalmente. Os artistas precisavam de “algo mais”. Desejavam a criação de
um espaço de amparo à produção. Almejavam ter acesso à formação adequada
para orientar e instrumentalizar o conhecimento, propiciando a continuidade do
processo criativo que envolvia a concepção dos trabalhos, assim como
demandavam um local adequado para exposição das obras.
Atendendo aos apelos dos artistas, é criada, em 1967, na cidade de Fortaleza,
o Centro de Artes Visuais Casa de Cultura Raimundo Cela. A estrutura da casa de
cultura foi concebida e viabilizada pela artista plástica Heloísa Juaçaba, integrante
da elite cearense e pertencente à geração SCAP, que vem agregar capital simbólico
à legitimação da Casa de Cultura Raimundo Cela perante a sociedade. De acordo
com Barbalho (1998, p.154), “Juaçaba era um nome certo para ficar à frente da
Casa de Raimundo Cela. Com trânsito entre diversos setores da intelectualidade
cearense, bem como nos círculos do poder político e econômico”. Heloísa Juaçaba
61
Vale destacar a influência que o artista José Tarcísio exerceu no processo de experimentação
plástica e conceitual dos novos artistas cearenses. Com suas performances (andou de costas,
usando fraldas e asas de anjo na avenida paulista, realizou um velório de artista) e objetos foi
premiado na IX Bienal Internacional de São Paulo. Salientando que a mãe de José Tarcísio, Marieta
Ramos, também era artista, indiscutivelmente influenciando o filho na construção de sua trajetória.
114
explica como se deu o processo de estruturação e fundação da Casa Raimundo
Cela:
[...] depois a SCAP silenciou e eu fui convidada pelo Dr. Raimundo Girão
para integrar o Conselho Estadual de Cultura. O primeiro Conselho Estadual
de Cultura do país foi montado pelo Dr. Raimundo Girão. Ele formou esse
conselho que tinham vários setores, eram dozes setores e eu era do setor
de artes plásticas, fiquei na pintura. Então ele precisava de uma pessoa no
conselho que gostasse muito de arte. Então o Mário Baratta e o Otacílio
Colares indicaram meu nome. E então como estava tudo silencioso, passou
uns dozes anos sem ninguém falar em movimento de arte aqui, não tinha
nada para proteger os artistas, então eu propus ao Dr. Raimundo Girão
fundar uma casa de cultura. Então foi um pouco demorado, demorou uns
meses para estrutura tudo, como eu propus com uma filosofia de ensino,
para despertar a juventude,
62
.
Rapidamente a Casa de Raimundo Cela é incorporado à estrutura da Secult.
Após anos sem incentivos e atividades na área a cidade recebeu uma instituição que
propiciava uma formação em história da arte, além de conhecimentos técnicos que
estimulam novas linguagens. Além disso, existia um programa de exposições,
favorecendo um ambiente que propiciava a fertilização do pensamento e a troca de
idéias entre a nova geração de artistas, professores e artistas mais experientes,
conforme evidencia Barbalho (1998):
A Raimundo Cela é responsável pela formação técnica e histórica de novos
artistas, não apenas por seus cursos, mas por possibilitar o contato entre
eles, os da nova geração, e entre estes e a velha geração. O franco-suíço
Pierre Chabloz, Zenon Barreto ou o jovem Descarte Gadelha são alguns
dos que ministram cursos na Casa (p.156-157).
Como fica evidenciado na citação o corpo docente se caracterizava pelo
domínio masculino. Indaga-se, então, quem eram os artistas que integravam a nova
geração? No início de 2007, o Centro Cultural Banco do Nordeste promoveu uma
exposição coletiva, em Fortaleza, com curadoria de Roberto Galvão. A mostra
coletiva contou com uma retrospectiva da produção artística de maior relevância do
período compreendido entre as décadas de sessenta e setenta em Fortaleza.
Intitulada “Juventude dourada”
63
, por conta do tratamento que a imprensa da época
dispensava aos artistas desta geração, a exposição contou com obras de dezesseis
artistas. Dentre os expositores não havia nenhuma mulher. Por que as artistas não
62
Entrevista com Heloísa Juaçaba em 25 de maio de 2006.
63
Participaram da exposição obras dos artistas Inácio Rodrigues, Marcus Jussier, Joaquim de Sousa,
Sergei de Castro, Marcus Francisco, Batista Sena, Hipólito Rocha Júnior, Sérgio Lima, José Tarcísio,
Descartes Gadelha, Tarcísio Félix, Aderson Medeiros, J. Pinheiro, Kleber Ventura, Gilberto Cardoso
e Carlos Moraes.
115
integravam o grupo da juventude dourada? O próprio curador da exposição Roberto
Galvão afirma que existiam muitas artistas no período:
[...] Com o movimento que desaguou na Raimundo Cela nós tínhamos
algumas artistas do gênero feminino: Tereza Bona, Regina Cavalcante, que
não sei se ainda são artistas hoje, a Regina teve uma participação muito
importante no cenário local, teve inclusive alguma participação significativa
no exterior, e eu não sei mais o que ela faz hoje, tem muitas: Miax, que
era namorada do artista Ximenes, também não sei se ainda produz, tem a
Ana Medeiros, que era companheira do Aderson, que também não sei se
continua produzindo, havia bastante, havia muitas mulheres
64
.
Será que nenhuma delas produziu obras significativas que marcassem o
período? A produção feminina nessa fase não imprimiu seu sentido na História?
Outro dado importante é a falta de continuidade da produção das artistas, da mesma
forma como ocorria na época da SCAP. Quais os motivos que ensejariam a massiva
desistência das artistas? Casamento? Filhos? No período da explosão do ideário
feminista no trabalho e da intensa participação das mulheres artistas no Brasil e no
mundo, inclusive questionando os estereótipos estabelecidos, a cidade de Fortaleza
apresenta registros da participação feminina nas artes visuais, mas uma indagação
incômoda persiste: porque essas artistas não conquistaram um digno
reconhecimento social como seus colegas do sexo masculino?
Na maioria das entrevistas essas artistas não são nem um fragmento de
memória, apesar de encontrarmos registros da participação das artistas nos
catálogos de mostras e exposições, como o Salão de Abril. Com a exceção de
Roberto Galvão, as pessoas entrevistadas não recordam, ou recordam apenas
superficialmente delas.
Na lembrança de Estrigas:
[...] por incrível que seja, não houve nenhuma mulher que se destacasse, ou
que pelo menos deixasse um nome que a gente não esquecesse, porque se
eu esqueci, é por que esse nome não ficou gravado
65
.
Para Heloísa Juaçaba os homens se destacavam com mais facilidade:
[
...] Existiam mulheres sim, mas tinha mais homens do que mulheres. Eles
se destacavam mais fácil. .........................eram muitos homens, uns 90%,
tinha o Roberto Galvão, o José Guedes, mas mulher...........................,(...)
Salete Rocha e Jane Lane, eram mulheres que freqüentavam a Casa de
Cultura Raimundo Cela
66
.
64
Entrevista com Roberto Galvão em 06 de fevereiro de 2006
65
Entrevista com Estrigas em 04 de junho de 2006.
66
Entrevista com Heloísa Juaçaba, em 25 de maio de 2006.
116
José Guedes também sentiu dificuldades em recordar o nome das mulheres
que no período tinham uma produção:
Tinha a Mariza, a Salete, tinha..., tinha.., quem mais? A minha memória não
ta legal, muita gente também deixou de ser artista, né? Eu posso me
lembrar depois [...]
67
Jane Lane, citada por Heloísa Juaçaba, é uma das artistas que iniciaram uma
produção artística na época em comento e que continua exercendo a profissão.
Jane Lane, entretanto, não esconde a indignação referente às possibilidades de
participação que o sistema da Casa de Cultura Raimundo Cela propiciava. Para a
artista, havia favorecimentos na política adotada pela instituição:
Você quer a verdade? Você vai se decepcionar. Eu nunca fui da Casa de
Cultura. Eu ia na casa de cultura porque tinha uma pessoa chamada
Francisco que fazia telas e molduras. E eu ia por lá, mas muito pelo
contrário, eu não era bem aceita na casa de cultura, não sei porque. A casa
de Cultura Raimundo Cela era uma coisa muito política. Quem era amigo de
determinadas pessoas ficava por e ia expondo. tinha um certo
desprezo e eu nunca gostei daquilo. Existia uma apelação muito grande,
uma política muito grande e eu não me sinto pertencendo a essa geração
68
.
A artista, portanto, claramente manifesta seu desconforto e acusa a existência
de favorecimentos. Descartes Gadelha, ao contrário, concedeu uma entrevista para
Alexandre Barbalho em que declara que a Casa de Cultura estava “aberta para todo
mundo, [...] todo mundo estava junto, todo mundo pintando, todo mundo fazendo
arte” [...] (apud BARBALHO, 1998, p.159). Qual a razão de posições tão
antagônicas? Mesmo considerada elitista e excludente por uma parcela de artistas a
Casa de Raimundo Cela, inquestionavelmente foi um referencial para a produção em
arte nos anos 60/70, como reforçam as palavras de Barbalho (1998):
Como podemos observar, o subcampo das artes plásticas no Ceará é,
durante os anos 60/70, basicamente motivado pela Casa Raimundo Cela.
Formando e incentivando uma nova geração de artistas em contato íntimo
com as gerações anteriores, a instituição garante uma certa continuação
estética com o passado scapiano, apesar de incorporar as novas
orientações das vanguardas européias (p.167).
Existe um fator atrelado à Raimundo Cela que simboliza a adaptação da
sociedade cearense aos valores disseminados em nível mundial. A geração que se
desenvolveu a partir das políticas implementadas pela Casa de Cultura Raimundo
Cela, passa a usufruir um incipiente mercado de arte. Fato que representa uma
grande inovação para a vida profissional dos artistas. Se a produção artística no
67
Entrevista com José Guedes, em 06 de abril de 2006.
68
Entrevista com Jane Lane, em 19 de junho de 2006.
117
passado da cidade de Fortaleza não encontrava um favorecimento à
comercialização da produção, a partir dos anos setenta é estruturado um sistema
que propicia essa circulação:
Em Fortaleza, para quem permanece, tudo é muito incipiente. Os primeiros
passos na formação de galerias e de um mercado de artes são dados na
Raimundo Cela, com os jovens artistas buscando novas linguagens e
atualizando-se com as propostas internacionais como o surrealismo e o
abstracionismo, inclusive para fins decorativos. Gadelha [opinião
compartilhada com Marcos Jussier] associa o nascente consumo de artes
plásticas à modernização de Fortaleza com a construção dos primeiros
apartamentos luxuosos e à conseqüente preocupação com a decoração de
interiores. Com isso, os decoradores passam a freqüentar a Raimundo Cela
atrás de quadros para seus clientes (BARBALHO, 1998, p.159).
Fundamental nesses processos foi o papel exercido por Heloísa Juaçaba. Seu
trânsito na sociedade favorecia a visibilidade e a aquisição das obras, cria, dessa
forma, valores de distinção social através da posse de obras de arte. Bourdieu
(1996) alerta para a atuação das mulheres aristocráticas na promoção das artes,
influenciando e mediando as relações entre artistas e burguesia. O incremento do
setor de ambientação de interiores, onde os arquitetos e decoradores
freqüentemente procuravam peças de arte na Raimundo Cela ressalta a face de
uma nova realidade que se instalava, baseada em valores de mercado. Os artistas
se afinam com o gosto de consumo da classe burguesa e a partir de agora, tão ou
mais importante do que a própria arte é a notícia estampada nos jornais, é a
badalação em torno da imagem e do nome do artista. Roberto Galvão analisa os
acontecimentos responsáveis pelas mudanças dessa etapa da produção em artes
visuais:
Nos anos sessenta um deslocamento. Na produção até vamos dizer
scapiana, do CCBA, eram as camadas mais operárias que produziam arte.
Quando a SCAP surge nos anos 40 é um contato das populações mais
aquinhoadas, geralmente estudantes universitários com esses produtores
digamos assim, operários. Mas na década de 60 um deslocamento e a
arte passa para a Aldeota, passa a ser produzida por uma camada mais
sofisticada, e mesmo que o artista não fosse oriundo dessas camadas ele
passa a freqüentar esse segmento social mais aquinhoado
financeiramente.
69
Antenada a partir de então com os preceitos oriundos do mercado a concepção
da arte passa por alterações. Para as artistas, o que muda a partir dessas
transformações de mundo?
69
Entrevista com Roberto Galvão em 06 de fevereiro de 2006.
118
Procedendo a uma releitura do passado, podemos compreender que para as
mulheres foi mais difícil exercer a arte como uma profissão. No passado a
participação feminina no espaço público ainda era limitada. As primeiras artistas que
surgiram em Fortaleza, por exemplo, como Isabel Rabelo e Maria Laura Mendes
limitaram sua produção a um período específico de suas vidas. Esse padrão se
repetiu com muitas outras artistas, como Miax, Tereza Bona, Regina Cavalcante e
Ana Medeiros, como podemos extrair da entrevista com Roberto Galvão.
Podemos concluir que apesar de dirigido por uma mulher Heloísa Juaçaba
o Centro de Artes Visuais Casa de Cultura Raimundo Cela revelou para o
reconhecimento social muitos talentos masculinos. Podemos observar que a
participação das mulheres artistas na cidade foi colocada como coadjuvante.
Sempre houve mulheres realizando trabalhos, mas o destaque e as premiações
(Salão de Abril, por exemplo) eram quase unânimes para os homens.
Quais as razões que levaram a esse quadro? O que fundamentava a
desistência da profissão? Casamento? Filhos? Desencantamento com o meio
artístico? Dificuldade de autonomia financeira por parte da mulher? Nice Firmeza e
Heloísa Juaçaba, que permaneceram na profissão tinham, em ambos os casos, o
apoio dos maridos.
Heloísa Juaçaba, inclusive, foi uma figura importantíssima na estruturação de
um sistema organizado para as artes visuais. Além de artista, participou dos
movimentos que marcaram e firmaram o campo das artes na cidade. Foi artista da
SCAP, participou do Conselho Estadual de Cultura, organizou o MAUC, planejou e
dirigiu a Casa de Cultura Raimundo Cela, dentre muitas outras atividades de
relevância social. Nice Firmeza também exerceu influência no contexto social,
participando e organizando atividades de formação em artes visuais e de
preservação da memória das artes, continuando sempre com sua produção autoral.
Mesmo sem um foco que as enxergassem, as mulheres estavam agindo no
campo das artes visuais e ingressaram como parte do fluxo das mudanças sociais,
que abririam caminhos para novos signos e outras construções conceituais e
estéticas, relevantes para os padrões vigentes na contemporaneidade. Afinal, a
sociedade pós década de setenta já havia atravessado vários questionamentos
sobre privilégios de nero e embarcava na era das conquistas tecnológicas e da
119
incorporação, cada vez mais ampliada, das necessidades artificiais oriundas da
cultura de consumo.
4.2 As mutações do campo: a arte como cria do sistema
Como se apresenta o fluxo da arte na contemporaneidade? Enquadrar o
mundo pós-moderno, dentre inúmeras transformações e mutações, por onde jorram
signos por todos os lados, talvez seja uma tarefa impossível. A inesgotabilidade do
sentido de mundo provavelmente seja a marca maior do que atualmente se produz
no campo das artes. O entrechoque de culturas e civilizações chegou a seu ápice e
a globalização em seu caráter pós-moderno mescla e tornam híbridos, para o bem e
para o mal, valores, crenças, políticas e formas de socialização. No entanto, na
infância do culo XXI, uma herança do século antecessor clama atenção: a
consciência da necessidade de enfrentar as incertezas que estão por vir. Talvez
esse enfrentamento configure nosso maior desafio, como frisa Edgar Morin (2006):
O século XX descobriu a perda do futuro, ou seja, sua imprevisibilidade.
Esta tomada de consciência deve ser acompanhada por outra, retroativa e
correlativa: a de que a história humana foi e continua a ser uma aventura
desconhecida. Grande conquista da inteligência seria poder enfim se libertar
da ilusão de prever o destino humano. O futuro permanece aberto e
imprevisível. Com certeza, existem determinantes econômicas, sociológicas
e outras ao longo da história, mas estas encontram-se em relação instável e
incerta com acidentes e imprevistos numerosos, que fazem bifurcar ou
desviar seu curso (p.79-80).
Para o artista, por estar disposto a abrir o terreno de sua própria subjetividade
para o cultivo de um campo criador, a atitude diante das incertezas se evidencia,
via de regra, como algo estimulante. De fato, o rumo adotado pelas políticas
culturais, estruturadas a partir dos direcionamentos oriundos do campo social,
frutificou mutações, entrelaçando a produção em artes visuais às regras
provenientes do sistema, identificadas, em diversas circunstâncias, com os preceitos
de mercado. Mapear esse sistema, entretanto, não constitui um empreendimento
simples de realizar.
Direcionamentos para as artes que são explicitados por quem tem o poder de
ditar as regras, convivem com regras implícitas. Micro poderes constituem relações
de força, como no conceito de microfísica do poder adotado por Foucault (2006).
Nesse sentido, o controle se expande. Exerce influência nas atitudes, nos
comportamentos, em expressões e discursos, sem se identificar apenas com um
120
nível geral de poder, como no caso dos poderes emanados pelo aparelho estatal.
Com efeito, o poder está em toda parte, atravessa os indivíduos, está nas relações,
age em rede, contamina:
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo
que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está na
mão de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder
funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só
circulam mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer
sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre
centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos
indivíduos, passa por eles (FOUCAULT, 2006, p.183).
No fluxo dos movimentos que compõem a microfísica do poder, na análise de
um determinado campo, existem, portanto, muitas implicações. Enxergar diversas
formas de poder e controle, implica também acatar a inevitabilidade de suas
contaminações, demanda uma ampliação do olhar para identificar os percursos de
suas emanações, principalmente onde ele se deixa ver menos, como no conceito de
Bourdieu (2003, p.7-8), referente ao poder simbólico que é “esse poder invisível o
qual pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que
lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem”. Desta forma, um olhar ampliado pode
representar a inserção de um dado emancipador. Pode configurar novas formas de
resistência. Proporciona, por fim, um caminho de liberdade.
As mutações nas diversas instâncias e das formas de poder que o corpo
ao campo social autorizam a afirmação que existe um espaço mais ampliado, uma
receptividade maior para a produção das mulheres artistas?
Com relação às políticas para as artes visuais, na atualidade, no Ceará,
principalmente na capital, é factível que houve mudanças e ampliações. Além do
tradicional Salão de Abril, existem no contexto contemporâneo os editais de
incentivo às artes visuais, de iniciativa da Secult e da Funcet, as políticas de
exposição e formação no Museu de Arte Contemporânea MAC do Centro Dragão
do Mar de Arte e Cultura; assim como as ações para as artes visuais implementadas
pelos centros culturais, com destaque para o CCBNB, sem falar dos recursos
provenientes das leis de incentivo à cultura, exposições em galerias privadas,
galerias vinculadas às Instituições de ensino superior, diversas mostras, salões
especiais etc.
Avaliar a constituição dessas políticas e ações, no contexto desse estudo,
determina a avaliação de seus entrelaçamentos com as questões de gênero e com
121
as diretrizes de uma ótica de mercado. O sistema das artes possui suas regras e
suas relações. Apresenta formas e procedimentos. Trilhas e caminhos de
consagração e exclusão. Possui seu campo e seus agentes. Campos, aqui
identificado no sentido utilizado por Bourdieu (2003), como espaços sociais
caracterizados por relações objetivas e específicas, que envolvem investimento,
capital, lucro e ganhos próprios, com suas crenças, seus jogos de linguagem, seus
produtos materiais, simbólicos e sua hierarquia. Esses campos, por sua vez,
possuem seus agentes, que, no exercício do poder simbólico, buscam a efetivação
de uma realidade que tenta estabelecer um consenso, uma integração acerca da
reprodução de uma dada ordem social.
A infiltração da doutrina do mercado no âmbito das políticas públicas tem
estendido seus efeitos para o universo das artes visuais, tecendo uma cartografia de
movimentos, fluxos e conexões. A relação entre neoliberalismo e as mudanças
provocadas por este sistema na política de fomento às artes visuais propicia o efeito
de rede, com múltiplas conexões e transmitindo códigos de linguagens e regras de
conduta para os agentes inseridos no campo. Esses fluxos afetam a produção e
viabilização da arte denominada “contemporânea”. Criam tendências. Moldam as
regras da arte.
Iclea Cattani (2004) constata que vivemos um tempo de adesão ampla, onde
as regras que doutrinam os rumos da economia neoliberal contaminam e estendem
seus efeitos para o sistema das artes visuais. Por intermédio de múltiplas conexões,
artistas, críticos e instituições em sua grande maioria jogam de acordo com regras
impulsionadas por princípios mercadológicos, agravando as dificuldades de acesso
da maioria da população ao universo de bens simbólicos:
Nas duas últimas décadas do século disseminou-se amplamente a adesão
ao modelo econômico dominante. Galerias de Arte, primeiramente, depois
os museus e instituições públicas, e a própria crítica de arte [Jimenez,
1995], assumiram os princípios de lucro, de concorrência e de norteadores
absolutos do sistema de difusão das obras, submetendo os artistas às
injunções do mercado de bens simbólicos e reforçando as hierarquias e as
desigualdades existentes dentro da nova cartografia econômica e
geopolítica mundial. E, na medida em que a atribuição de valores,
econômico e simbólico, às obras e aos artistas depende desses jogos
mercadológicos e ideológicos, muitos destes [para não dizer a maioria]
“jogam o jogo” das instituições. A arte acaba, assim, tornando-se um bem
simbólico cada vez mais restrito às elites (CATTANI, 2004, p.35)
De fato, na atual conjuntura econômica os indivíduos e a sociedade são
movidos por valores em consonância com um valor de mercado. Paulo Sérgio
122
Duarte, traça uma análise do poder de influência da globalização neoliberal do
sistema econômico no plano cultural:
A arte e suas instituições não escapam ao fenômeno da globalização, que
coincide com o redirecionamento neoliberal da economia e o conseqüente
recuo da presença do Estado como empreendedor de políticas públicas
compensatórias a partir da década de 1970. O avanço acelerado da
mercantilização dos processos políticos, sociais e culturais é uma das
marcas desse momento que chega até os dias atuais. Se o homem
unidimensional que a cultura pessimista de esquerda de Herbert Marcuse
projetava para as sociedades industriais avançadas não se efetivou, o que
se verifica é a tendência à sociedade tornar-se unidimensional tendo suas
camadas, antes coordenadas por relativa autonomia, achatadas em um
único plano governado pela lógica do mercado no qual a cultura aparece no
posto privilegiado da commodity por excelência. Estes são os temas do
mundo em que vivemos. (DUARTE, 2005, p.44).
Sem aderir a um determinismo peremptório, ou acreditando que a “sociedade
torna-se unidimensional em suas camadas” podemos tentar trilhar um caminho que
observe a consciência no papel desenvolvido por cada agente, a definição clara de
sua posição no sistema, em seu campo de atuação. Será que podemos afirmar que
os parâmetros de políticas públicas, sociedade, economia e cultura passam a
obedecer somente às tendências ditadas pelos centros hegemônicos de poder?
Como estamos em processo, em um constante vir e ser, em um fluxo, quais as
reações que brotam do nó do sistema neoliberal?
Conforme o entendimento de Canclini, a imposição da submissão aos ditames
dos centros hegemônicos de poder, evidencia que os laços que envolvem o campo
cultural e as leis do capitalismo estão extremamente fortalecidos.
A internacionalização do mercado artístico
está cada vez mais
associada à transnacionalização e concentração geral do capital. A
autonomia dos campos culturais não se dissolve nas leis globais do
capitalismo, mas se subordina a elas com laços inéditos (CANCLINI, 2003,
P.62)
Ao analisar o papel histórico da arte e da cultura no século XX, com seus
movimentos de vanguarda, resistência e crítica do mundo, talvez possamos afirmar
que a configuração atual dos nós que amarram o sistema podem encontrar linhas
escapatórias e pontos de fuga. Antes disso, entretanto, precisamos aproximar o
foco. A procura nesse momento reside na identificação dos reflexos do atual sistema
na condução das políticas para as artes visuais no Estado do Ceará. A intenção é
que a partir da análise das mudanças, possamos pontuar como os agentes e as
instituições respondem a esse fluxo. Percebendo por onde, nos passos
implementados, foram abertos caminhos e movimentos, por onde o fluxo corre ou
123
estanca. E nessa perspectiva, como acontece a participação das mulheres artistas
nesses processos.
4.3 A política cultural encontra eco
Tal como aconteceu no período da transição da época da geração SCAP para
a geração da Casa de Raimundo Cela, a década de 1980 foi também marcada pela
escassez de recursos para o desenvolvimento de políticas culturais no Estado do
Ceará. A atuação da Secretaria de Cultura do Estado oferecia um cenário desolador
para gestores, artistas e para a população. A ausência de uma política cultural
definida não se restringia a um caráter pontual, a uma carência local. Não podemos
deixar de descartar o possível reflexo no âmbito estadual do que havia sido
desenvolvido até então como política cultural em nível nacional. Se é que podemos
chamar de política cultural o predomínio de práticas de cunho clientelista,
permeadas pela ausência de um projeto sistêmico para a cultura. Segundo Simis
(2007):
Até os anos 80, a política cultural não se propôs como política pública e,
neste sentido, o que estava mais próximo de ser uma política cultural foram
diretrizes conservadoras, de caráter clientelístico, por vezes pluralista e
assistencial. O Ministério da Cultura, em meados dos anos 80, embora seja
o reconhecimento da singularidade da política cultural, não teve tempo de
articular um projeto sistêmico (p.152).
Arcar com o peso do passado tem sido um fator presente no processo de
planejamento e execução das políticas públicas no país. Não apenas no que se
refere às máculas que vem de longa data, estruturantes de nosso viver coletivo,
como a sociedade escravocrata e o latifúndio, que desde cedo semearam a
naturalização das desigualdades sociais. No âmbito das políticas culturais, num
passado recente, ainda eram vivenciados os reflexos dos ditames implementados
pelo regime militar. A herança do regime autoritário era um fardo pesado para
desconstruir. De fato, a redemocratização da sociedade, ou como alega Carvalho
(2003), a construção da democracia no Brasil, somente encontrou um norte mais
preciso após o fim da ditadura militar, em 1985.
Para a cultura cearense a herança local também não era das melhores. Como
foi salientado na introdução deste trabalho, a ausência de investimentos públicos na
área cultural caracterizou grande parte do período do primeiro governo do
empresário Tasso Jereissati, que se iniciou em 1987. Houve o direcionamento na
124
aplicação de recursos para o que era considerado na visão do gestor como
necessidades básicas da população, como os direitos sociais de acesso à saúde e à
educação. Na segunda fase da gestão, com a Secretária de Cultura Violeta Arraes,
houve a concentração de esforços em obras que proporcionassem impacto e
visibilidade, visando a reforma de espaços físicos, tal como ocorreu com o Teatro
José de Alencar. A gestão do secretário seguinte, Augusto Pontes, foi turbulenta e
polêmica, permeada pelas denúncias de ausência de uma política cultural definida,
sendo contestada por grande parte dos artistas locais.
Como vimos, para as administrações da década de 80, no Ceará, não havia
ainda um direcionamento claro, nem muito menos uma estrutura delineada para a
cultura que pudesse efetivamente ser reconhecida como política pública. A herança
do estado brasileiro lidava com uma máquina inchada e ineficiente. As dificuldades
que se apresentavam para a cultura reverberavam na vida dos artistas. No caso das
artes visuais, a Casa Raimundo Cela apresentava, na década de oitenta, uma
estrutura extremamente precária, corroborando a ausência de uma política de
formação e circulação para a área.
Isso decretava, em muitos casos, para os artistas, a inevitabilidade da
existência de uma segunda profissão. Quem possuía condições para ter uma
produção sistemática em ateliê, lidava com o desafio do número limitado de espaços
destinados à exibição de trabalhos de arte galerias e museus, assim como um
ínfimo blico consumidor para as obras. Para as mulheres artistas, essa realidade
se configurava ainda mais árdua, por conta das heranças de um passado patriarcal
que acarretava ainda algumas limitações impostas ao gênero feminino.
Outra herança do passado também exerce suas influências: como perceber o
mundo da arte se a tradição da educação brasileira foi omissa nesse aspecto? No
entanto, fluxos novos vem compor outras possibilidades para o sistema de incentivo
às artes. Além da poética criação de mundos na vida de cada pessoa, o
investimento em arte e cultura poderia proporcionar muito mais: como lida com
imaginário, com construção de sentidos, a arte também poderia servir aos desígnios
de uma ideologia política, serviria para elaborar imagens de um Estado moderno, de
um governo antenado com seu tempo. Nesse aspecto, alguns movimentos
promoveram novos olhares para as possibilidades de investimento no campo
cultural, inclusive por parte dos gestores públicos. Para Barbalho (2005):
125
Acontece que, em um primeiro momento, o governo Tasso não percebeu o
papel que a área cultural poderia desempenhar no projeto de se estabelecer
a imagem do Ceará moderno. Quando isso ocorreu, ou seja, quando se
compreendeu a capacidade da cultura em agregar valores de distinção, ela
passou a receber atenção crescente por parte do Estado atenção nunca
antes vista no Ceará (p.49).
A partir de 1993, quando assume o secretário Paulo Linhares, a política cultural
no Ceapassa por intensas transformações. O foco agora estava direcionado para
o investimento na indústria cultural. O Secretário de cultura reconheceu a eficiência
que esse direcionamento acarretava: era capaz de agregar valores de distinção,
proporcionava um retorno simbólico à imagem de quem investia no setor. De uma
forma nunca antes vista, a cultura passa a assumir uma posição de destaque para a
política estatal, sendo constante o espaço ocupado na mídia local para as
realizações da gestão do novo secretário.
Antes de Linhares assumir, entretanto, algumas sementes estavam sendo
cultivadas nesse sentido. As omissões estatais no que se referia à política cultural
estavam sendo percebidas e paulatinamente problematizadas por agentes do poder
público e representantes da sociedade civil. No início dos anos noventa,
predominava uma ausência de atividades de formação para a área das artes. A
partir da análise da estrutura deficitária de incentivo às artes por parte do Estado, um
grupo se reuniu para pensar as perspectivas e possibilidades de implantação de
atividades de caráter formativo para a área cultural, em suas múltiplas linguagens,
como música, artes visuais, audiovisual, dança, teatro.
Cientes da extensão do flanco que se encontrava aberto, o grupo que se
propôs a pensar as atividades de formação para a área das artes como política
pública direcionou as necessidades de planejamento voltadas a uma estrutura mais
capacitada para dar conta do ritmo frenético das mudanças que experimentava a
sociedade contemporânea. Desta forma, em 1992, o artista plástico Roberto Galvão,
que trabalhava na Secult na gestão do secretário Augusto Pontes, organizou na
cidade de Fortaleza um seminário onde participaram vários representantes da
cultura no Brasil. O intuito do seminário era pensar e estruturar um modelo de uma
escola de artes preparada para o século XXI. Participaram desse encontro
representantes das áreas de dança, música, teatro, cinema e artes visuais, como
Dulce Aquino, José Roberto Nemer, José Celso Martinez, Orlando Leite, Luísa
Teodoro, Roberto Gnattali, Dora Mourão, Wanda Costa, Luiz Áquila, Fausto Nilo,
126
Alda Oliveira, Beatriz Castro, Olívio Tavares, Sólon Ribeiro. Esses profissionais
apresentaram propostas para o que consideravam ser uma escola de artes de
atendesse as necessidades do século que se anunciava.
Os estatutos da escola de artes foram elaborados e esta foi batizada como
Escola de Cultura, Comunicação, Ofícios e Artes, a ECOA
70
. Apesar dos esforços, a
ECOA não chegou a sair do papel na forma como foi concebida. Seus
direcionamentos foram incorporados pela gestão seguinte, do Secretário de Cultura
Paulo Linhares. Para Sólon Ribeiro, que participou da elaboração dos documentos
da escola, “[...] a idéia da ECOA foi mais ou menos transformada no Dragão do Mar,
num centro de artes, em vez de uma escola, foi transformada num centro de artes e
de cultura”
71
. Para a gestão de Linhares, mais eficiente que uma escola de artes,
seria o impacto físico e simbólico de um grande centro cultural, onde além de
abraçar atividades de formação, incorporasse também outros equipamentos.
As sementes estavam lançadas. O olhar voltado para a necessidade de
formação para as artes visuais surtiu efeito e foi crucial para a formação dos artistas
da geração do início do século XXI, especialmente para as mulheres. As atividades
que nasceriam no Instituto Dragão do Mar e seus desdobramentos, assim como a
instauração na cidade dos cursos de graduação em artes visuais serão analisadas
no item que se segue.
4.4 Formação das artistas
Em 1996, durante a administração do secretário Paulo Linhares é inaugurado o
Instituto Dragão do Mar de Arte e Indústria do Audiovisual. Alexandre Barbalho
comenta a natureza que motivava a constituição do instituto: “[...] foi criado pela
Secult para atuar na formação e capacitação de profissionais para ‘o mercado da
emergente indústria cultural cearense’ (BARBALHO, 2006, p.7). Nesse sentido, o
70
Na justificativa da ECOA, a escola apresentava a figura jurídica de autarquia vinculada à SECULT,
e era considerada no texto de apresentação como uma ‘Universidade suplementar’. O objetivo da
ECOA era a capacitação para o trabalho de comunicação, arte e cultura, estruturado no tripé de
ensino, pesquisa e extensão, com um estímulo voltado para a prática, para a inserção no mercado de
trabalho. Os estatutos da ECOA previam um vínculo direto com os equipamentos da Secretaria, como
o Teatro José de Alencar, o Centro de Artes Visuais Raimundo Cela, Casa de Juvenal Galeno e
Conservatório de música Alberto Nepomuceno.
71
Entrevista com Sólon Ribeiro em 13 de maio de 2005.
127
investimento se casa com o perfil do secretário, que elege a constituição de um pólo
audiovisual para o Ceará como política pública de peso. Desta forma, evidencia a
preferência por uma linha de ação que privilegia a anuência do mercado, que se
ampara na visibilidade proporcionada pela indústria cultural.
Para as artes visuais, especificamente, não reside ainda na constituição do
instituto seu ponto forte, apesar da existência de vários cursos na área,
principalmente após a construção do Museu de Arte Contemporânea. Podemos
verificar que os movimentos que estruturam mudanças na condução das políticas
culturais tem várias ramificações, onde, em muitos pontos, estas costumam se
entrelaçar. O investimento em formação se justifica, dentre outras razões, pela
própria implementação de uma política cultural voltada para o mercado. Política que
exigia a instrumentalização dos agentes inseridos no sistema, para compreender as
regras e assim poder jogar o jogo lançado pelo mercado.
Como são as regras do jogo no sistema das artes visuais? Como se delineou a
formação dos profissionais da área, visando atuar no mercado? A formação em artes
visuais muitas vezes visa uma produção artística. Uma visão tradicional do espaço
de produção de um artista pode nos conduzir para um lugar repleto de telas, potes
de tintas ou blocos de argila à espera de serem esculpidos. Até bem pouco tempo, a
realidade da produção na cidade de Fortaleza se apresentava assim, com ateliês
individuais e parâmetros de produção atrelados aos preceitos modernistas.
Entretanto, o ateliê contemporâneo abarca muito mais do mundo do que o
conteúdo dos potes de tinta podem reproduzir. No ateliê contemporâneo pulsam as
linhas da vida cotidiana e nele tudo cabe: as mais diversas imagens, provenientes
de infinitos meios (revistas, jornais, televisão), aparelhos eletrônicos, sons, pessoas,
animais, pregos, plantas, aço, sucata, tecido, água, fogo, terra, ar. A realidade hoje
é multidimensional e a produção dos artistas requer mais do que telas e tintas:
Hoje com a televisão e as marcas, toda a sociedade produz imagens. O
ateliê perdeu sua função inicial: ser “o” lugar de fabricação de imagens.
Como resultado, o artista se desloca, vai para onde as imagens são feitas,
insere-se na cadeia econômica, tenta interceptá-las. O ateliê, portanto, não
é mais o lugar privilegiado da criação, ele é apenas o lugar onde se
centralizam as imagens coletadas por toda parte (BOURRIAUD, 2003,
p.77).
Mais do que centralizar e resignificar imagens coletadas o artista que produz na
contemporaneidade deve estar apto a ler, a interpretar esses signos. Atrelado ao
128
acompanhamento das novas tecnologias está a necessidade da instrumentalização
de um pensamento que embase a produção artística, assim como o conhecimento
das técnicas que permitam ao artista compor, sendo a composição da obra a própria
definição da arte, segundo Deleuze e Guattari (1992):
Composição, composição, eis a única definição da arte. A composição é
estética, e o que não é composto não é uma obra de arte. Não
confundiremos todavia a composição técnica, trabalho do material que faz
freqüentemente intervir a ciência [matemática, física, química, anatomia] e a
composição estética, que é o trabalho da sensação. este último merece
plenamente o nome de composição, e nunca uma obra de arte é feita por
técnica e pela técnica (p.147).
Para auxiliar nos processos de composição das obras de arte,
instrumentalizando o fluxo de idéias, pensamentos e técnicas, o contexto acadêmico
surge como algo necessário. Consoante Resende (2005), a universidade estabelece
critérios e referências para o artista, configurando um fator positivo, pois propicia as
trocas e o tira do isolamento do ateliê individual.
O isolamento do artista, que fala Resende, era quebrado em Fortaleza nas
décadas passadas normalmente por acontecimentos pontuais ou encontros
esporádicos. Existiam atividades, como vimos, na Casa de Cultura Raimundo Cela,
mas esta instituição na década de 90 se encontrava em grave colapso. Atividades
de formação aconteciam no MAUC, mas estas não estavam aparelhadas de uma
maneira satisfatória para atender uma demanda dos artistas que almejavam um
aprofundamento para o desenvolvimento da linguagem nas artes visuais.
No final da década de noventa, o fotógrafo Sólon Ribeiro, que participou do
núcleo que pensou a constituição da ECOA recebeu o convite para coordenar e
desenhar um curso de graduação em artes visuais, para a Faculdade Gama Filho,
hoje Faculdade Integrada da Grande Fortaleza - FGF. Pioneiro na cidade, o curso
de artes visuais iniciou suas atividades em 2000. A concepção do curso foi
estruturada em três eixos: a coluna de pensamento, composta pela filosofia,
sociologia, antropologia, psicologia e línguas; a coluna histórica, abraçando o
processo de evolução da arte através dos tempos e a coluna técnica, com disciplinas
de desenho, pintura, fotografia, gravura, cenografia e novas tecnologias. Eram
professores do curso em sua fase inicial, além de Sólon Ribeiro: Roberto Galvão,
Eduardo Eloy, Sebastião de Paula, Carlos Emílio Correia Lima, Thiago Themudo.
129
Apesar do corpo docente ser predominantemente masculino, a constituição de
um curso de graduação em artes visuais foi um passo decisivo para ampliar a
produção artística local, notadamente a produção de autoria feminina, inclusive de
mulheres em idade mais madura. As transformações nas estruturas produtivas,
refletidos no aumento no acesso aos estudos e na divisão do trabalho por parte das
mulheres, atestam a influência na contemporaneidade da representação da mulher
nas profissões intelectuais e no campo de serviços e comercialização de bens
simbólicos, por exemplo. Essas transformações reverberaram na cidade , que
poderia contar agora com uma estrutura acadêmica que visava a formação de
bacharéis em artes visuais com uma larga participação feminina. Para a artista
Rosângela Melo
72
, o curso propiciou o conhecimento das “ferramentas” necessárias
para implementar sua produção:
Eu entrei nas artes e vi que era isso mesmo que eu queria. E a princípio eu
vi como agora eu poderia expressar o que eu queria, como agora eu tinha
ferramentas. Eu entrei na faculdade e era como se eu tivesse começado a
receber as ferramentas para poder expressar o que eu queria.
Abrir cursos de artes visuais aqui deu uma oportunidade às mulheres,
principalmente à mulher madura. A abertura desses cursos deu uma
oportunidade de mulheres se descobrirem. Com as artes, as mulheres
entenderam que podem ter voz altiva e começaram a falar.
A faculdade propiciou um ambiente de experimentação e troca de referências.
Os temas e as discussões de sala de aula estimulavam projetos, instalações e
intervenções eram habituais no próprio campus. Isso levou a um resultado cada vez
maior da participação dos artistas matriculados na faculdade de artes visuais nas
seleções dos salões e exposições. A mudança de maior amplitude, nesse caso,
pode ser identificada com a participação do gênero feminino nesses processos.
De fato, até 2006, das 145 matrículas realizadas para o curso de artes visuais
da FGF, 108 eram de mulheres. Foi uma verdadeira “invasão”. Concomitante à
constituição do curso, surgiram novas mostras e salões, assim como espaços de
exposição e centros culturais. Entre os anos de 2000 e 2004 os alunos da Gama
Filho participaram (sendo muitas vezes premiados) das seguintes mostras: “Salão de
Abril” (2000 em diante); “Salão Sobral de Arte Contemporânea” (2000 a 2002);
“Salão de Novos Talentos da Fotografia” (2000); “Novíssimos”
73
(2000); “Salão dos
Novos” (2001); “X Universidarte” (2002); “Ainda Gravura” (MAC, 2002); “Salão da
72
Entrevista com Rosângela Melo, concedida em 05 de outubro de 2006.
73
Exposição realizada no Centro Dragão do Mar apenas com alunos da Gama Filho.
130
Base Aérea” (2002), “Múltiplas Poéticas”
74
(2002); “I Bienal Ceará América de Ponta
Cabeça” (2002); “I Festival Vida e Arte” (2003); “Visões da Arte Cearense através de
Gerações” (Galeria de Arte Vicente Leite- FA7, 2003); “Experimental I” (MAC, 2003);
“Salão Pinto de Escultura” (2003); “Mostra Cariri das Artes” (2003); “Ligações”
(individual Milena Travassos, CCBNB, 2003), “Experimental II” (MAC, 2003),
“Exposição Viva a Plástica” (CCBNB, 2004). A partir de 2004, muitos estudantes da
Gama Filho, agora Faculdade Integrada da Grande Fortaleza -FGF, conseguiam
espaço para exposições individuais, tanto no CCBNB quanto no MAC. Artistas como
Milena Travassos e Waléria Américo, por exemplo, possuem uma inserção nacional
de seus trabalhos.
Em 2002 tem início um outro canal de formação acadêmica em artes visuais: o
curso Tecnológico em Artes Plásticas do CEFET
75
. Gratuito, o ingresso acontece
mediante concurso vestibular acompanhado de teste de habilidade específica. A
grade curricular busca estar em consonância com as expectativas dos novos
tempos, anunciado expressamente que o curso pretende a capacitação dos alunos
para o mercado de trabalho, preparando-os para a inserção em um “mercado cada
vez mais competitivo”.
Como salientado, o fluxo que percorreu o movimento responsável pela rede de
conexões que permitiu aflorar uma geração de artistas no século XXI, também fez
surgir novos espaços expositivos e equipamentos culturais em espaços acadêmicos.
A Universidade de Fortaleza UNIFOR inaugurou um amplo espaço cultural para
receber mostras e exposições, inclusive internacionais, como a dos artistas Miró e
Rembrandt, assim como reativou em seu calendário anual a mostra de artes visuais
intitulada Unifor Plástica. A faculdade 7 de Setembro FA7, construiu uma galeria
em suas dependências que recebe exposições de artistas locais. É inegável que a
constituição de espaços novos oxigena e revigora o campo das artes. Entretanto,
quando falamos em espaços de exposição, existem referências constantes que
passam pelos novos equipamentos e centros culturais, como o Centro Cultural
74
Exposição realizada no Centro Cultural Oboé, apenas com alunos da Gama Filho.
75
Ao final do curso, o Tecnólogo em Artes Plásticas deverá estar habilitado a compreender e aplicar
os fundamentos da linguagem visual; conhecer a história das artes visuais; estar apto a utilizar
técnicas e materiais específicos da produção artística. É, em potencial, um artista que poderá atuar
na elaboração de projetos e pesquisas em Pintura, Modelagem, Gravura e Computação Gráfica
Disponível em http://www.etfce.br/Ensino/Cursos/Graduacao/Artes_plasticas/artes_plast.php
, acesso
em 17 de março de 2007.
131
Banco do Nordeste - CCBNB e o Museu de Arte Contemporânea MAC, do Centro
Dragão do Mar, que trataremos a seguir.
4.5 E o Dragão, cospe fogo?
Para as artes visuais, existe um marco que reside na inauguração de um
equipamento inserido em um empreendimento ambicioso. Em agosto de 1998, o
Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura CDMAC foi aberto ao público em caráter
experimental, passando a funcionar oficialmente, com todos seus equipamentos em
plena ação, em 28 de abril de 1999. É gerido por uma Organização Social
76
, o
Instituto de Arte e Cultura do Ceará IACC. O CDMAC é composto pelo Memorial
da Cultura Cearense, por cinemas, teatro, planetário, anfiteatro e por um Museu de
Arte Contemporânea. O entorno do CDMAC é composto por uma vida boêmia e
cultural, com bares, teatros experimentais, organizações não-governamentais e
galpões de arte. É considerado uma referência em cultura para a cidade e um dos
principais instrumentos de ação da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará
(SABADIA, 2001).
O Museu de Arte Contemporânea do CDMAC possui modernas instalações,
com reserva cnica e demais requisitos exigidos para um museu adaptado para as
necessidades das obras contemporâneas. Proporciona ao público um contato com
mostras de artistas locais, mas também tem a característica de receber exposições
de caráter nacional e internacional de pequeno, médio e grande porte, como no caso
da exposição do escultor francês Auguste Rodin, que trouxe para o museu um
público de 74 mil pessoas. Inusitadamente, a exposição que mais trouxe público
para o Museu foi de um artista que produzia no final do século XIX, bem longe a
cultuada contemporaneidade.
76
O Instituto de Arte e Cultura do Ceará (IACC) é uma associação na forma da lei, pessoa jurídica de
direito privado sem fins econômicos e sem fins lucrativos, de interesse coletivo. Foi constituído em 10
de março de 1998, qualificado como organização social, através do decreto de 25.020 de 03 de
julho de 1998. O IACC é o órgão gestor do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), desde
março de 1998, da Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho (EAO), reinaugurada em 15
de maio de 2006, e do Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), inaugurado em 07 de dezembro de 2006.
Disponível em http://www.dragaodomar.org.br/index.php?pg=iacc
, acesso em 14 de abril de 2007.
132
O primeiro diretor do museu foi o artista plástico JoGuedes. Na entrevista,
Guedes justifica as razões que levaram a escolha da linha de ação do Museu como
contemporânea: um museu novo precisava receber temáticas atuais. Além disso, por
ser o único espaço equipado com uma estrutura apta a receber qualquer mostra, o
MAC, quando conveniente, permitia algumas “concessões”:
É, eu fui o primeiro diretor, o museu ainda não tinha uma linha e a gente
colocou essa linha de arte contemporânea, que foi idéia nossa, eles
queriam um museu de arte do ceará, que seria um museu aberto pra tudo, e
não tinha sentido um museu novo não falar de assuntos atuais, muito
embora por ser o único espaço expositivo da cidade e ainda é de certa
forma, equipado para receber qualquer tipo de exposição ele tinha, por ser
o único na terra a gente que fazer algumas “concessões”; porque a partir do
momento que a gente traz o Rodin para o Museu de Arte Contemporânea
você pode dizer que tem uma concessão por conta da linha do museu, mas
o Ceará jamais poderia deixar de receber o Rodin porque o único espaço
que existia para receber o Rodin era , no museu de arte contemporânea,
entendeu?
77
Trazer a mostra dos trabalhos de Auguste Rodin para o MAC fazia parte de
uma estratégia de formação de público para o museu, afinal Rodin representa um
artista que tem um nome absorvido pelo imaginário social, com sua produção
associada com critérios de qualidade e legitimidade. Para o grande público, uma
exposição de Auguste Rodin pode ocupar um status de “necessidade cultural”,
sendo este um produto próprio do processo educativo, conforme alega Bourdieu
(2003b, p.69):
O que é raro não são os objetos mas a propensão em consumi-los, ou seja,
a ‘necessidade cultural’ que, diferentemente das necessidades básicas’, é
produto da educação: daí, segue-se que as desigualdades diante das obras
de cultura não passam de um aspecto das desigualdades diante da Escola
que cria a ‘necessidade cultural’.
A identificação ou o reconhecimento da “necessidade cultural” é um critério
ainda problemático para trabalhos que abordam uma linguagem mais experimental
ou contemporânea. O sistema ainda não possibilita meios suficientes, tanto em seu
foco cultural quanto educacional, para o domínio das ferramentas e códigos que
permeiam a linguagem da arte contemporânea. Desta forma, não consiste em uma
política eficiente apenas abrir as portas do museu para a visitação pública: “se é
incontestável que nossa sociedade oferece a todos a possibilidade pura de tirar
proveito das obras expostas nos museus, ocorre que somente alguns têm a
possibilidade real de concretizá-la” (BOURDIEU, 2003b, p.69). O real acesso,
demanda, portanto, um investimento muito mais profundo, que esteja firme no
77
Entrevista com José Guedes, em 06 de abril de 2006.
133
propósito de municiar, através da educação ampla, grande parcela da população
com os recursos para a leitura dos códigos presentes nesse universo.
Justifica-se, portanto, o fundamento para as “concessões” que se sucederam,
após a exposição de Rodin. Outras mostras
78
individuais no MAC na primeira gestão
de José Guedes, estavam fora dos critérios da pretendida linha contemporânea
adotada pelo Museu. Aldemir Martins, Antônio Bandeira e Raimundo Cela por
exemplo. Provavelmente houve a negociação para uma abordagem que
privilegiasse também uma contextualização histórica dos caminhos para a assunção
de um terreno mais aberto à multiplicidade contemporânea, facilitando a leitura das
obras de artistas que participaram das exposições seguintes como Julio Le Parc,
Antônio Dias, Flávio-Shiró, além dos cearenses Herbert Rolim, Maurício Coutinho e
Sérgio Lima.
Além da pouca participação de artistas que adotavam uma linha identificada
com a arte contemporânea, também era difícil a participação de obras de autoria
feminina durante a primeira gestão do MAC. Se, no caso da arte, podemos adotar o
argumento que as necessidades culturais ainda não foram incorporadas pela
sociedade de uma forma ampla, esse mesmo argumento seria plausível para
justificar o número ínfimo de mulheres artistas integrantes do circuito oficial da arte?
Para Grossenick (2004, p.12), em todo o mundo as mulheres ainda são sub-
representadas nas coleções de arte, públicas e privadas. Corroborando com o
argumento da autora, a realidade no MAC, em seu primeiro momento, foi de uma
participação do trabalho de mulheres artistas muito acanhada, um número muito
pequeno, dissolvido em mostras coletivas. A paulista Brígida Baltar, considerada
uma das maiores artistas brasileiras na atualidade, foi a única mulher a expor
individualmente durante a gestão de José Guedes, com uma mostra de vídeos
inserida num pacote pronto: Projeto Petrobrás de Artes Visuais. No Ceará, além
do MAC, Brígida Baltar participou também do Salão Sobral de Arte Contemporânea,
como convidada.
Um fator a ser considerado é a naturalização do caráter arbitrário que envolve
a diferença entre o reconhecimento das competências atribuídas ao gênero
masculino e ao gênero feminino, ou melhor, “a transformação da história em
78
O quadro das exposições no Mac de 1998 até 2006, encontra-se em anexo.
134
natureza, do arbitrário cultural em natural”, como adverte Bourdieu (2002, p.8).
Situação que remete ao preconceito naturalizado que perdura e evidencia a
gravidade de sua inserção social por ser ignorado pela maioria dos agentes
inseridos no campo em análise. Isso talvez justifique o estranhamento e a objeção
recorrentes nas entrevistas quando indagamos sobre o sistema de cotas para as
mulheres que garantissem um acesso maior ao sistema das artes, como será
abordado um pouco mais à frente.
Para Bourdieu (2002) a ordem estabelecida ainda obedece a preceitos de valor
que favorecem a perpetuação da dominação masculina. A utilização da violência
simbólica é uma ferramenta largamente utilizada nesse intuito, pelas linhas que
compõem as redes da comunicação e do conhecimento, do desconhecimento, do
reconhecimento e até do sentimento. São envolvidos nesse processo homens,
mulheres, instituições, famílias, Igreja, Escola, Estado. É uma malha de longo
alcance e talvez seja necessário mais envolvimento no processo de desconstrução
de vários olhares naturalizados. Questionamentos mais incisivos são cruciais para a
reestruturação de um olhar viciado, proporcionando a criação de outros possíveis
para o existir coletivo que o corram o risco de serem desdobramentos, produtos
ou reflexos de uma forma de pensar ancorada aos preceitos da dominação
existente.
Nesse sentido, voltamos ao MAC. José Guedes, ao ser indagado sobre
quantas individuais de mulheres artistas aconteceram durante sua primeira gestão
no Museu, um pouco surpreso, constatou:
José Guedes: Olha..., de individuais..., aí você vai dizer, mas rapaz, você só
expôs homens! Olha, que eu me lembre de significativo teve essa exposição
Ceará redescobre o Brasil, que tinha Mira Shendel, Lígia Clark, é..., quem
mais?
Ana Valeska: Mas individual feminina não houve nenhuma?
José Guedes: Não. Realmente não.
A ausência das mulheres das exposições é um dado sintomático, corroborando
o argumento dos efeitos da dominação simbólica:
O efeito da dominação simbólica [seja ela de etnia, de gênero, de cultura,
de língua etc.] se exerce não na lógica pura das consciências
cognoscentes, mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e de
ação que o constitutivos do habitus e que fundamentam, aquém das
decisões da consciência e dos controles de vontade, uma relação de
conhecimento profundamente obscura a ela mesma. Assim, a lógica
paradoxal da dominação masculina e da submissão feminina, que se pode
dizer ser, ao mesmo tempo e sem contradição, espontânea e extorquida,
pode ser compreendida se nos mantivermos atentos aos efeitos duradouros
135
que a ordem social exerce sobre as mulheres [e os homens], ou seja, às
disposições espontaneamente harmonizadas com esta ordem que as impõe
(BOURDIEU, 2002, p.49-50).
Um dos eventos idealizados durante a primeira gestão de José Guedes foi a
Bienal Internacional Cea América, “de ponta cabeça”, que aconteceu entre
dezembro de 2002 e fevereiro de 2003. Como símbolo da Bienal de Artes Visuais foi
utilizada a imagem de uma obra do artista uruguaio Joaquin Torres-García, onde foi
invertida a posição das Américas. Essa forma de “ver” diferente a posição das
Américas sinaliza a dimensão que a Bienal procurava atingir. Foi um projeto
ambicioso, se tomarmos como referência as ações implementadas em âmbito local
para as artes visuais. Em Fortaleza chegavam obras de vários países e regiões do
Brasil, contanto também com a presença de muitos artistas na cidade, inclusive com
um número significativo de trabalhos de autoria feminina. A curadoria da bienal ficou
a cargo de dois estrangeiros: o belga Jan Hoet
79
e o também belga, Philippe Van
Cauteren
80
, curador-adjunto da exposição e quem realmente trabalhou em Fortaleza.
Muito criticada pelos artistas locais, talvez pelo pouco espaço concedido à arte
cearense, (participaram do Ceará apenas Waléria Américo, Jared Domício, Maurício
Coutinho e o grupo Transição Listrada), a Bienal, realizada no MAC e em locais do
entorno do Museu como o prédio Boris
81
, conseguiu um bom destaque na mídia,
envolveu uma parcela dos artistas que traziam seus portfólios
82
para análise feita
pelo curador adjunto. A proposta da Bienal contemplava ainda mostras e
intervenções que aconteceram em alguns pontos específicos da cidade, como nos
galpões da RFFSA e num contexto urbano mais intenso, como no trabalho com
79
Jan Hoet foi curador da Documenta IX, em 1992, na cidade alemã de Kassel.
80
Philippe van Cauteren, na época com 33 anos, foi quem realizou as pesquisas e viagens (foram
mais de dez países durante um ano). Artur Barrio e Hans Haacke foram convidados em caráter
especial pela importância de suas trajetórias artísticas para o mundo das artes.
Foram selecionados cerca de 40 nomes para participar da Bienal, sendo muitos artistas considerados
“apostas”. Participaram da Bienal, dentre outros Narda Alvarado (Bolívia), Erick Beltran (México),
Francisca Garcia (Chile), Jonathan Harker (Panamá), Paola Parcerisa, Luis Insfran e Bettina Brizuela
(Paraguai), Esteban Alvarez e Tamara Stuby (Argentina). Do Brasil Odires Mlászho, Waléria Américo,
Mauricio Coutinho, Rogério Canella, Paulo Climachauska, Gaio, Juliano de Moraes, Felipe Barbosa,
Rosana Ricalde, Adrianne Gallinari, Jared Domício e o Grupo Transição Listrada.
81
A adaptação da centenária Casa Boris, fundada em 1869, para a Bienal foi a mínima possível.
Obras inclusive foram pensadas de acordo com a estrutura do local.
82
O início dos anos 2000 representa também o advento na cidade da necessidade da
profissionalização dos artistas, para atender as demandas emanadas pelo mercado de bens
simbólicos. Essa demanda consistia não somente no título conferido pelos cursos de graduação na
área, mas também pela qualidade, conceitual e gráfica, da apresentação das propostas para os
salões de arte e no impacto atingido por intermédio de um bem cuidado portfólio.
136
esferas gigantes vermelhas, em fibras de vidro, da artista Waléria Américo, intitulado
Equipamento de Verificação Urbana E. V. U
83
ou do coletivo Cambalache,
composto por duas artistas colombianas, que percorreu a cidade com um carrinho
de som e exibiu durante a bienal as experiências e vivências nas ruas de Fortaleza
em vídeo e cds.
A época intensa da Bienal, em seu encontros e desencontros, marcou o
encerramento do período correspondente à primeira gestão de José Guedes como
diretor do MAC.
Após a saída de José Guedes assume a direção do MAC uma mulher, a
curadora Luisa Interlenghi. Com formação em História da Arte e curadoria,
Interlenghi fez algumas alterações administrativas e estruturais, criticando, inclusive,
o sentido adotado pela política de exposições do museu. Para a diretora, era
prejudicial para os artistas locais e para o público a recepção constante que o museu
vinha fazendo de exposições vindas em pacotes prontos, normalmente de períodos
descontextualizados da proposta contemporânea assumida pela instituição. Essa
“quebra” de continuidade nas políticas adotadas tem seu fulcro, principalmente,
quando acontece uma troca de gestor.
Para a artista Waléria Américo
84
, esse é um fato comum em Fortaleza. Fruto
de um processo histórico-social, a realidade é estampada pelas cores pálidas da
ausência de instituições fortes e de planejamento adequado. Apesar de considerar
que estão acontecendo ações interessantes na cidade, a artista pontua exatamente
a ausência de continuidade das políticas implementadas. Destaca, então, a
necessidade de uma maior responsabilidade de todos os agentes envolvidos no
processo de difusão das políticas públicas para a cultura, inclusive os próprios
artistas:
[...] então é legal pensar ações, e vem uma responsabilidade das
instituições, uma responsabilidade como artista das pessoas de como puxar
isso e como cidadão mesmo de estar puxando essas pessoas.
[...] tem gente produzindo, mas a gente precisa se integrar tanto numa
política de Estado quanto numa política nacional também, que isso seja um
fluxo contínuo e não quebrado.
83
Obra presente no documentário Mulheres Artistas: o tempo da arte, 2006.
84
Depoimento Documentário Mulheres Artistas: o tempo da arte, 2006.
137
Entre rupturas e continuidades, algumas propostas marcaram a gestão de
Interlengui (2003-2004), à frente do MAC. A diretora promoveu duas grandes
exposições coletivas com jovens artistas cearenses, intituladas Experimental I e II.
Como o próprio título indica, as mostras abriam espaço para novas manifestações e
experimentos, pinçando artistas em potencial da nova geração, principalmente o
grupo que estava inserido na efervescência dos recém-criados cursos de artes
visuais. Como um reflexo dos novos tempos, das duas mostras em questão,
participaram muitas mulheres artistas. Esse é um dado relevante quando buscamos
um foco nas questões de gênero que configuram a realidade local no campo das
artes visuais. A marca de uma maior presença feminina foi impressa aos poucos,
silenciosamente, sem questionamentos ou tomadas de posição aparentes.
Para as mostras de artistas mulheres, a gestão do MAC abre um espaço
mais dilatado. As individuais das artistas consagradas Valeska Soares, Regina Vater
e Elida Tessler simbolizam esse novo percurso. Contradições também permearam a
gestão de Interlengui. Apesar da crítica direcionada à administração anterior, por
conta dos pacotes prontos e da fuga à linha contemporânea, durante a
administração de Luísa Interlengui o MAC recebeu a mostra “O Olhar Viajante” do
fotógrafo Pierre Fatumbi Verger. Um outro ponto a ser destacado foi a ausência de
uma política de constituição de acervo para a instituição.
Além da inquestionável importância do contato do público com as obras, houve
o fomento para outras possibilidades e significâncias, como os programas de
encontros entre artistas e público, batizado como “fala de artista”. A cada semana
um ou mais artistas falavam sobre sua vida e sobre o processo de construção de
seus trabalhos. Essas falas eram editadas e disponibilizadas em vídeo.
Em 2005 o diretor do Centro Dragão do Mar, jornalista Augusto César Farias
resolver abrir um processo de seleção para a escolha do novo diretor do MAC.
Formou um conselho composto pelos críticos de arte Agnaldo Farias, Moacir dos
Anjos e Rodrigo Moura. O conselho analisou os currículos dos interessados e
selecionou o curador paulista Ricardo Resende para o cargo. Como o diretor alega
na entrevista
85
, foi um meio de escolha democrático e até então inédito em
Fortaleza:
85
Entrevista com Ricardo Resende, concedida em 09 de maio de 2006.
138
A minha vinda pra foi bem democrática, embora o conselho que me
escolheu seja todo de homens. A escolha se deu através de edital, e fui
selecionado, em uma seleção composta quase toda de homens, que eu me
recorde tinha duas ou três mulheres apenas. Foi uma maneira inédita de se
escolher um diretor de museu.
Além disso, Resende conseguiu uma popularidade significativa entre os
artistas locais. Sua gestão foi pautada pela busca de parcerias e doações de obras,
visando a constituição de um bom acervo para o museu. Nesse sentido Resende
alega: “infelizmente o museu não tinha uma política de acervos e nem uma dotação
financeira que segure a programação. Então eu tive que ser muito criativo, pra fazer
uma administração minimamente competente”
86
. Desta forma, houve durante a
gestão um número significativo de exposições de artistas locais, assim como
mostras de doações recentes. O programa “Fala de artista” foi readaptado como
“Fala das sete”, ampliando o formato para receber também críticos e curadores e
desde o final de 2005 acontece o “Chá com porradas” buscando um bate-papo
informal e provocativo entre artistas, profissionais da área cultural, estudantes e
interessados. Também durante a gestão de Resende é inaugurada a Biblioteca de
Artes Visuais Leonilson, nas dependências do museu.
O MAC, a partir da gestão de Luisa Interlengui e continuando durante a fase de
Ricardo Resende (2005-2007), passou a receber um número bem mais significativo
de exposições de mulheres artistas. Além das individuais já citadas de Valeska
Soares, Elida Tessler e Regina Vater, também integraram as mostras do MAC as
artistas Marta Neves, Regina Silveira, Maria Bonomi, Iara Freiberg, Carmem Calvo,
Renata Andrade. Houve uma abertura para as artistas locais, como a individual de
Cláudia Sampaio e a intervenção/performance de Marina Barreira, além de uma
exposição coletiva, intitulada “De um lugar a outro” com cinco jovens que produzem
em Fortaleza: Waléria Américo, Milena Travassos, Beatriz Pontes, Mariana Smith e
Érica Zíngano.
A artista Cecília Bedê
87
, que trabalhou como monitora e na reserva técnica do
MAC, analisa o impacto da instituição para público, principalmente para as escolas
que constantemente visitam o museu. Para ela, o tempo hoje é um tempo tanto para
a abertura para a produção como para a difusão das artes visuais:
86
Entrevista com Ricardo Resende, concedida em 09 de maio de 2006.
87
Entrevista com Cecília Bedê, realizada em 20 de dezembro de 2005.
139
[...] agora o que eu percebo muito é que o museu de artes visuais causa
muito impacto e geralmente quando uma escola sai daqui que a gente
monitora a gente percebe que uma balançada assim, uma mexida
legal e o que eu percebo também é que a produção cada vez maior,
talvez essa abertura de espaço esteja causando isso, até porque essa
abertura faz com que a gente conheça melhor e saiba que existe, que em
todo lugar ta acontecendo e aqui tá acontecendo agora.
Com a obrigatoriedade do ensino da disciplina Arte nas escolas provavelmente
exista um paulatino aumento do público que freqüenta os museus. Afinal, faz-se
necessário um treinamento do olhar, pois a arte vasculha no simbólico a construção
de sua linguagem e precisa de instrumentos para ser decifrada. Como afirma
Bourdieu (2003, p.71): “a obra de arte considerada enquanto bem simbólico não
existe como tal a não ser para quem detenha os meios de apropriar-se dela, ou seja,
de decifrá-la”.
Na opinião da artista Bia Cordovil
88
, houve uma abertura da instituição,
inclusive para receber os artistas e constata que ainda se faz necessário um maior
amadurecimento da categoria:
Eu acho que nesse último ano melhorou demais, porque parece que agora
a gente ta tendo um profissionalismo, porque até então o Dragão do Mar
ele era clientelista, ele atendia uma minoria que se relacionava socialmente
com os diretores do museu e que seguiam tendências, então era assim é
amigo de fulano, dá ibope, é de fora então entra! Faz parte de uma
patotinha, então entra! Eu acho que agora isso vem sendo quebrado, eu
acho que o museu vem sendo devagarzinho conduzido com
profissionalismo, mas eu ainda acho que existe uma resistência dos artistas
chegarem até o museu mas eu não vejo uma resistência do museu em
receber os artistas. Tem a associação dos artistas plásticos que a duras
penas vem tentando espaço e vem conseguindo, mas ainda tem muito isso
de olhar para o próprio umbigo, ainda não há um pensamento coletivo sobre
arte. Mas eu acho que a gente ta num momento de amadurecimento. Eu
acho que as pessoas falam muito sem estudar e por isso alguns artistas são
tão perenes, muitos são apenas de onda. Então eu acho que o Dragão
ainda pode cuspir muito fogo.
A artista Rosângela Melo
89
possui uma análise mais severa acerca do papel
que o Museu de Arte Contemporânea vem desenvolvendo. Para ela, as exposições
se estendem demais, provavelmente por falta de um maior suporte financeiro:
Eu indico o Dragão do Mar para turismo, pra bater foto. Raramente você
tem o que ver, eu vi justificativa que é porque eles não tem verba, e eu
acredito, pois o governo não investe em cultura. Ali era para ser uma escola,
com treinamento, oficinas, exposições. Aquilo ali era pra pegar fogo. E ali
não é nada mais que um ponto turístico, pra ver o planetário ou uma
88
Entrevista com Bia Cordovil, concedida em 05 de janeiro de 2006.
89
Entrevista com Rosângela Melo, concedida em 05 de outubro de 2006.
140
exposição que passa quase o ano todo. Acho o espaço físico muito bom,
pra não ter um conteúdo que justifique aquele espaço. [...]
Eu via que a Luísa Interlengui e o próprio Guedes eles tentavam algumas
coisas, mas não sei, acho que aquilo ta em decadência, eu acho que o
governo esqueceu que existe aquilo ali. Você não artista fazer
movimento nenhum, reivindicar nada, porque não tem interesse o interesse
é do artista e o artista não faz nada, por que o artista é medroso. Ele tem
medo de se queimar. Enquanto que a voz da gente é a maior arma que a
gente tem.
O Dragão do Mar é ainda uma instituição jovem, assim como o próprio MAC.
Integra uma época onde observamos a assunção dos grandes equipamentos de
cultura, conhecidos como centros culturais. Obviamente, as políticas para o museu
devem ser direcionadas pela equipe de gestão, mas devem estar em consonância
com uma política que contemple a arte como uma necessidade cultural, sendo
sensíveis, sempre que possível, para a fala dos artistas e do público num processo
de construção de políticas públicas para a cultura em sua concepção democrática e
ampla.
4.6 Cultura de mercado e a era dos centros culturais
Podemos analisar a cultura como um espaço onde se constrói e produz o
simbólico, mas também como um campo onde se delimitam espaços de poder, em
um sistema baseado em trocas simbólicas. Na procura dos ganhos auferidos por
intermédio do simbolismo dessas trocas se constroem centros culturais. Os centros
que apresentam um maior porte, como o CCBNB de Fortaleza, são instituições
destinadas ao patrocínio de exposições e mostras de arte, além de atividades de
formação e apresentação de espetáculos nas diversas linguagens artísticas, e vem
ocupando, num contexto tanto local, quanto nacional, um espaço cada vez maior na
esfera das políticas de incentivo às artes.
Por outro lado, os centros culturais, também se configuram como um outro
meio de inserção das empresas capitalistas no mercado, daí a predominância de
centros culturais vinculados às instituições financeiras. O investimento em
atividades culturais garante um retorno capaz de agregar valores de distinção,
incrementando a performance da instituição no sistema, proporcionando acumular,
desta forma, poder e capital simbólicos. Isso explica a profusão na atualidade de
centros culturais vinculados às instituições financeiras, como o Banco do Brasil,
banco Itaú e Caixa Econômica, por exemplo. Como ressaltado acima, existem
141
razões que justificam a preferência pelo investimento em ações de caráter cultural,
por conta dessas ações serem portadoras de um poder simbólico, como reforça
Nussbaumer (2000):
Isso porque os produtos culturais são portadores de um poder simbólico que
pode ser utilizado a serviço da dominação ou da emancipação. Esse poder
simbólico, no entanto, vem sendo progressivamente reconhecido e mais
utilizado pelo setor economicamente dominante, que busca expandir-se
submetendo a seu domínio novas formas culturais (p.86).
O novo, apesar do estranhamento inicial ao olhar, porta uma energia que
revigora, questiona a ordem estabelecida e, em muitos casos, dita tendências e
modos de ser. A novidade das novas linguagens nas artes, como no caso da arte
contemporânea, despertou o interesse dos centros culturais, que passaram a
assumir como objeto principal de suas linhas de ação as linguagens que
direcionavam um ponto focal no caráter experimental e nas novas tecnologias. O
interesse dessas instituições em incorporar as manifestações contemporâneas
justifica-se pela própria lógica que rege o sistema mercadológico, que devora o
novo, ruminando tendências a serem adotadas, esvaziando, por óbvio, o potencial
crítico da arte.
Pelo o que pode ser observado, associar signos capitalistas aos signos
culturais instiga nas instituições o desejo de ampliação de territórios para assim,
ampliar o público a ser alcançado por essas políticas. O campo de atuação dos
centros culturais expande muitas vezes o espaço ou a cidade em que estão
sediados. Fortaleza constantemente recebe ações promovidas pelos centros
culturais vinculados ao Banco do Brasil e ao Banco Itaú, por exemplo. O Centro
Cultural Banco do Brasil promove anualmente seleções, através de projetos, para
cursos e exposições de artes visuais, que costumam acontecer no Centro Dragão do
Mar.
O programa Rumos Itaú Cultural Artes Visuais, que percorre a cada biênio as
capitais brasileiras, com o objetivo de mapear a recente produção em arte
contemporânea, selecionou
90
, através de entrevistas e análises de portfólios, na
90
Nessa edição do programa foram selecionados 60 portfólios que passam a compor o Mapeamento
Nacional da Produção Emergente 2005/2006. A inscrição foi feita mediante preenchimento de ficha e
envio de portfólio com obras produzidas a partir de 2003 ou inéditas - entre fotografias, esculturas,
objetos, pinturas, gravuras, desenhos, instalações, videoinstalações, site specifics, intervenções,
novas tecnologias e performances.
142
edição 2005/2006, cinco artistas cearenses
91
: Bosco Lisboa, Ticiano Monteiro, Yuri
Firmeza e as artistas Jussara Correia e Waléria Américo. Um número expressivo,
quando comparado com outras capitais do nordeste. Esta edição do ItCultural,
contou com uma comissão de seleção composta exclusivamente por mulheres:
Lisette Lagnado, Cristiana Tejo, Luisa Duarte, Marisa Mokarzel e liderada pela
crítica e curadora Aracy Amaral. Os resultados foram levados ao público através de
exposições em Fortaleza aconteceu no MAC e por intermédio da edição de um
catálogo geral analítico.
A edição em comento do programa Rumos Itaú explicita um dado interessante,
que em regra geral ainda configura uma exceção: mulheres assumindo cargos de
poder. Entretanto, em um caráter não tão explícito assim, uma análise com teor
crítico pode identificar como vão se definindo algumas regras do jogo, que envolvem
os participantes com amarras sutis e quase invisíveis. A artista Rosângela Melo
ressalta os efeitos da imposição de “tendências’ pelos centros culturais:
A maior parte destes editais é ligada a instituições que visam a parte
financeira. Pra mim a complicação começa daí. Se você olhar eles
começam estipulando uma tendência, que normalmente é na arte
contemporânea e você vai ter que fazer seu tema em cima disso. Isso
pra mim não é contemporâneo. [...] o principal objetivo das instituições
financeiras é aumentar a cauda delas, é de fazer brilhar sua estrela. Então o
objetivo delas é focar em, cima do que vai fazer brilhar a estrela delas.
Claro, nisso eles estão certos, mas quando entra na questão cultural pra
mim eles destroem.
92
O fato de lançar padrões de aceitabilidade para os trabalhos que serão
selecionados pelos editais dos centros culturais tem suas conseqüências. Existe
uma ansiedade dos agentes inseridos no campo em adequar o desenvolvimento da
linguagem dos trabalhos aos parâmetros lançados pelos centros, que muitas vezes
reproduzem padrões importados pelas tendências apresentadas nos centros
hegemônicos. O capitalismo é sedutor e tem uma ação hipnótica. Ferreira Gullar
alerta para a cruel realidade do sistema em vigor: “O artista, por sua vez, ou entra na
desabalada carreira da obsolescência das modas ou não se submete e corre o risco
de ser ignorado pela crítica, pelas instituições oficiais e pelo mercado” (GULLAR,
2001, p.16).
91
Em outras edições do Rumos Artes Visuais (1999/2000 e 2001/2003) participaram os artistas
Enrico Rocha, Francisco Zanazanan, Herbert Rolim e Járed Domício.
92
Entrevista com Rosângela Melo, concedida em 05 de outubro de 2006.
143
Esse cenário pode acarretar o que Bourdieu (1995) chama de “autocensura”.
Silenciosamente, sem dano aparente, os artistas adequam sua linguagem artística
aos padrões ou tendência predominante no momento, mudam temáticas, fazem
concessões para se adaptar à demanda do mercado. Associados a esse fator, existe
uma ausência de mobilização da categoria em torno de interesses coletivos e um
acentuado censor de defesa voltado apenas para interesses particulares, como,
mais uma vez, podemos identificar como uma característica típica do capitalismo.
Para evitar a censura, as instituições e os artistas que buscam os fundos
públicos se vêem de agora em diante em face da autocensura. Sabemos
muito bem que a autocensura é freqüentemente mais eficaz que a censura
aberta. Ela não deixa pistas desagradáveis (BOURDIEU, 1995:, p.9).
Em Fortaleza, desde 1998, funciona o Centro Cultural Banco do Nordeste
CCBNB
93
, sendo um dos mais procurados canais de exposição para os artistas da
cidade. O CCBNB oferece o Programa de Artes Visuais, que é composto por
exposições de arte, com as despesas pagas mediante processo seletivo previsto em
editais públicos anuais. Além da participação do artista, a proposta do programa de
artes visuais do CCBNB contempla a atuação de curadores e arte-educadores no
processo de formação de público para as artes, com a realização de cursos de
apreciação da arte, visitas monitoradas, encontros e palestras com artistas e críticos
de projeção nacional. A coordenação do Programa de Artes Visuais do CCBN é
responsabilidade da artista Jacqueline Medeiros. Das dezesseis exposições da
programação 2004/2005, aconteceram quatro individuais com as artistas Luciana
Falcão (Nós), Meire Guerra (Conserva), nia Gil (Mapas Imaginários) e Layne
Chaves (Dobras ao infinito).
A artista Maíra Ortins
94
aponta algumas fragilidades das políticas para as artes
visuais no atual contexto. Há o predomínio de uma aceitabilidade maior para o artista
que conseguiu participar de muitos eventos na área, como salões e exposições em
centros culturais. Isso legitimidade ao artista: formar um currículo recheado.
Entretanto, a ausência de uma política que possibilite condições minimamente
satisfatórias para a pesquisa e produção de obras, como um sistema de bolsas, por
93
Localizado no centro da cidade de Fortaleza, ocupa quatro andares equipados com salões de
exposições temporárias, teatro multifuncional, auditório, biblioteca física e com acesso a Internet.
Existem mais dois Centros Culturais, em Juazeiro do Norte –CE e em Souza, na Paraíba. Disponível
em www.bnb.gov.br
, acesso em 05 de março de 2007.
94
Entrevista concedida em 01 de fevereiro de 2006.
144
exemplo, pode acarretar a permanência de apenas uma parcela mínima e cada vez
mais elitizada de artistas:
Eu acho essas políticas frágeis. O que é que eu vejo acontecer muito, o
artista viver de salão, por exemplo, o que é uma bobagem, o que é que es
acontecendo com os artistas no Brasil e no mundo todo, eu acho que a arte
tem entrado nessa questão de mecenas e de apoio numa decadência, no
ponto econômico que eu digo, vamos chegar num exemplo: como um artista
hoje produz um currículo? Pelo número de salões que ele entrou, isso é
bobagem, não é isso que vai definir se o seu trabalho é bom ou ruim ou se
ele vai perdurar. Então essa questão de bolsa é muito escasso e não é
aqui, aqui principalmente, o BNB tem um projeto muito interessante, mas do
que me vale fazer uma exposição no BNB e depois acabar tudo? Tem todo
o meu processo criativo, é preciso parar, ter maturidade para mandar o
projeto, precisa de tempo, e para ter esse tempo eu preciso de dinheiro!
Ninguém vive de lua, então você precisa de alguém que lhe apóie, que lhe
dê subsídio para isso.
Verifica-se, desta forma, uma imposição à produção em artes visuais. Os
padrões que regem os sistema que aceita essa produção valorizam extremamente o
capital cultural vinculado às instituições, ou capital institucionalizado. Como destaca
Barbalho (2005, p.75), “o título torna-se capital cultural ao ser outorgado por uma
instituição detentora do poder de fazer o coletivo ver e crer, ou reconhecer algo”.
Com efeito, a peremptoriedade da construção do “currículo”, destacado pela
entrevistada, ou ainda a pressão silenciosa de ter que adaptar a linguagem
95
do
trabalho aos parâmetros emanados pelos agentes inseridos no campo artístico
corrobora a noção da extensão do nó do sistema, que determina, no emaranhado
das eficientes redes do poder simbólico, as regras de consagração e de exclusão.
O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de
fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e,
deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico
que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou
econômica), graças ao efeito específico de mobilização, se exerce se for
reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. [...] O que faz o poder
das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a
crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença
cuja produção não é da competência das palavras. (BOURDIEU, 2003a,
p.15).
Para Pierre Bourdieu o poder simbólico é uma forma transfigurada de outras
formas de poder. Consegue seus objetivos “sem dispêndio aparente de energia”.
Uma das questões freqüentes no campo artístico é a que vincula a produção dos
artistas à aceitabilidade do mercado ou às tendências do que estaria inserido dentro
do padrão de “contemporaneidade”, numa constante valorização do novo e da
experimentação. Esse novo, como já destacado anteriormente, será devorado e
95
Depoimento Maíra Ortins, documentário Mulheres Artistas: o tempo da arte, 2006.
145
assimilado pelo próprio sistema, possivelmente aniquilado em sua potência crítica
diante do mundo. Nesse aspecto, é estreitado o espaço dos que não correspondem
ao modelo estabelecido, criando a adaptação das obras produzidas segundo o
estabelecido pelos “modismos”, como ressaltado pela artista Jussara Correia
96
.
Também é relevante a pressão exercida pelo campo em homogeneizar um padrão
de produção e comportamento, desvalorizando a linguagem que não se encaixe nas
regras do grupo dominante, forma de violência simbólica enfrentada pela artista
Maíra Ortins:
Dizem pra mim: Maíra, você tem um trabalho bom, mas é muito tradicional.
eu me pergunto: tradicional porque é xilo
97
? Por que eu não considero
meu trabalho tradicional, [...] Eu acho que às vezes existe essa questão do
ultrapassado porque eu acredito que o mundo moderno seja muito efêmero
e superficial, e apressado, as pessoas atropelam as etapas de cada um.
Cada pessoa está no seu tempo, eu estou num processo, eu não posso
atropelar esse meu processo em prol de uma demanda, então eu paro tudo
o que eu estou fazendo, vou me magoar, vou me ferir com isso, porque eu
preciso mostrar aos outros que eu também estou viva, sou contemporânea,
sou moderna, eu sou o que sou, eu viva, aqui, fazendo trabalho,
fazendo gravura
98
.
A tentativa de independência da produção e da circulação artística passou,
historicamente, por várias etapas: houve submissão dos artistas à igreja, aos nobres,
à burguesia. Como vimos anteriormente neste trabalho, para Elias (1995) existia
uma clara diferença no passado entre uma arte de artesão e uma arte de artista. A
primeira assume um esquema de produção específico direcionado para um patrono.
A segunda, arte de artista, é desenvolvida para um mercado de consumidores
anônimos, com liberdade de expressão dos produtores de arte e uma certa
paridade social entre as partes envolvidas. A época atual apresenta uma face bem
mais sofisticada na caracterização dos agentes envolvidos no sistema e seus
respectivos exercícios de poder. A artista Érica ngano esclarece em seu
depoimento como é a realidade local para quem se propõe a trabalhar com arte
contemporânea:
Eu não faço parte do mercado de arte, eu não vendo obras, nunca vendi, o
que eu consigo ter é através de premiações, de editais, a gente consegue
96
Depoimento documentário Mulheres Artistas: o tempo da Arte, 2006. A artista alega que hoje
existem muitos modismos no mundo da arte. Se existe uma tendência para o vídeo-arte, por exemplo,
grande parte dos artistas migram para o desenvolvimento da linguagem em vídeo e arremata o
depoimento narrando a emoção que sentiu diante de uma obra que fugia ao modismo - um tijolo,
numa exposição.
97
Xilo, de xilogravura, técnica de gravura onde a superfície que será gravada é de madeira.
98
Depoimento documentário Mulheres Artistas: o tempo da Arte, 2006.
146
ter uma renda, mas ínfima, em relação a tudo que a vida exige: casa,
comida, roupa lavada, conta, aluguel, telefone, então eu não tenho, né,
como a gente vem trabalhando a gente tem que intercalar profissões, tipo
eu sou artistas plástica, mas eu sou também professora, eu faço isso e eu
faço aquilo para poder levar, né
99
?
A realidade evidenciada por Érica Zíngano, de exercer outra profissão e
conseguir o suporte para poder ser artista, faz parte da rotina de grande parte dos
artistas no atual contexto. Para a artista Bia Cordovil, ter a subsistência a partir da
produção artística pode exigir uma flexibilização que leva a uma “prostituição” do
trabalho:
Não pra viver de arte, da própria produção, até porque se você for viver
da própria produção você vai entrar na prostituição do trabalho porque você
vai produzir segundo o gosto do consumidor e você não consegue
desenvolver seu trabalho enquanto artista e essa é uma coisa que eu
sempre me neguei, pela minha própria história eu sempre quis que o meu
trabalho fosse verdadeiro e isso vem em primeiro lugar, agora se ele é
vendável ou não é outra conversa, 99,99% não é vendável, mas a idéia que
constitui a execução do trabalho eu sei que ele ta contribuindo de alguma
maneira com a construção da nossa sociedade
100
.
um ponto crucial na fala de Bia Cordovil: o caráter sagrado da liberdade de
criação e conseqüentemente, da própria arte. Algo que não pode ser corrompido
pelo mercado. Se, na realidade atual, a produção em arte contemporânea depende
muito das instituições atreladas ao mercado para conseguir se manter, o desafio
que grita é como conseguir manter a força de criação e inventividade da arte,
inclusive seu posicionamento político, estando os artistas tão emaranhados nas
redes do sistema.
Um caminho individual pode ser através do reconhecimento, da consciência do
que é arbitrário. Um caminho coletivo pode se dar por intermédio de políticas
públicas menos comprometidas com os preceitos estabelecidos; que possuam um
caráter mais amplo e democrático em seus processos de seleção, como prometem
as políticas de editais lançados pelos poderes públicos, que analisaremos a seguir.
4.7 Outras políticas da contemporaneidade: leis de incentivo, editais das artes
e, ainda, o Salão de Abril...
Da impressão na seda surgem imagens que remetem ao misticismo, à religião,
à força da crença. Santos, beatas, padre Cícero, o encanto da cultura pela imagem
99
Entrevista concedida em 25 de janeiro de 2006.
100
Entrevista com Bia Cordovil, em 05 de janeiro de 2006.
147
dos Irmãos Aniceto. Personagens que integraram a narrativa poética “Impressões”
que a artista Bia Cordovil empreendeu pela região do Cariri, no Ceará. A artista e o
fotógrafo Galba Sandras percorreram a região, com um olhar atento, espreitando
paisagens, no intuito de captar a intensidade da energia que pulsa no universo
peculiar do Cariri. As impressões que a artista colheu eram integrantes de uma
pesquisa que durou de março a dezembro de 1999, viabilizadas pela Lei Jereissati
de Incentivo à Cultura, com o apoio cultural da Coca-cola.
Em 1999, quando Bia Cordovil realizou a pesquisa “Impressões”, as regras do
neoliberalismo tinham impresso sua força em âmbito local e ditavam a condução
política nos mais variados setores de atuação estatal. No Estado do Ceará, é
sintomático dos novos tempos o slogan adotado na divulgação da lei estadual de
incentivo à cultura, Lei nº 12.464/95 conhecida como Lei Jereissati: “Muita Gente
Entrou Para a História Ajudando a Arte e a Cultura. Agora Você Pode Ganhar
Dinheiro Fazendo o Mesmo”. Os princípios da “era Jereissati”, fruto da mentalidade
de uma geração de empresários que assumiu a direção do governo do Estado do
Ceará
101
, se coadunaram com os valores disseminados pela nova ordem mundial,
estruturada no retorno proporcionado pelo investimento guiado pelas diretrizes de
mercado, não apenas no sentido econômico do termo, mas em sua dimensão
cultural, social e simbólica.
Afirmamos, nesse trabalho, como as grandes empresas, notadamente as
instituições financeiras atentas ao poder do retorno do capital simbólico, aderiram
ao sistema de políticas de fomento às artes, transformando-se nos grandes mecenas
da era contemporânea. Além da opção pelos Centros Culturais, uma outra forma de
vinculação da marca das empresas em projetos culturais é viabilizada através de
recursos que inicialmente seriam destinados ao recolhimento de impostos, via leis de
incentivo à cultura, como acontece, em abrangência nacional, no sistema previsto na
101
Os empresários do Centro Industrial do Ceará -CIC se destacavam pela postura crítica em relação
ao governo militar e seus representantes locais. Criticavam o modelo intervencionista-dirigista do
Estado, sua ineficiência administrativa e exaustão fiscal, denunciavam o empreguismo, o
patrimonialismo e o clientelismo, condenavam os desequilíbrios regionais e mostravam-se sensíveis
aos problemas sociais.
Ao assumirem o governo, tentaram imprimir uma gestão da coisa pública baseada em princípios de
racionalidade e eficiência empresarial. O princípio da qualidade total, aplicado na administração
privada, deveria também ser aplicado ao setor público. Para tanto, era necessário promover uma
reforma da mentalidade pública em sentido administrativo e político. Um estado menor, flexível e
eficiente, era considerado condição sine qua non para o desenvolvimento econômico e redução das
desigualdades sociais no Ceará e no Brasil. (ARRUDA, 2002, p.7).
148
Lei Federal de Incentivo a Cultura 8.313/91 denominada Lei Rouanet. Pelo
sistema previsto nas leis de incentivo, a empresa calcula o montante a ser recolhido
aos cofres públicos e reverte parte deste crédito tributário para o incentivo de
projetos culturais.
O Estado, que possuía a atribuição do financiamento direto da cultura,
transmite, desta forma, a responsabilidade do financiamento da cultura para as
empresas. Como ressalta o artista Hans Haacke: “invocando o nome de Mecenas,
as empresas de hoje se dão uma aura de altruísmo” (BOURDIEU e HAACKE, 1995,
p.43). Esta aura de altruísmo das empresas que aderem às leis de incentivo, por
exemplo, não é demais ressaltar, inevitavelmente será convertida em lucros
simbólicos e financeiros, proporcionados, em sua quase totalidade, por intermédio
dos recursos públicos. Para Albino Rubim (2007):
[...] cada vez mais o recurso utilizado é quase integralmente público, ainda
que o poder de decisão sobre ele seja da iniciativa privada. A
predominância desta lógica de financiamento corrói o poder de intervenção
do Estado nas políticas culturais e potencializa a intervenção do mercado,
sem, entretanto, a contrapartida do uso de recursos privados, nunca é
demais lembrar (p.25).
Existem contradições que envolvem a condução de políticas culturais a partir
de leis de incentivo. Consoante Rubim (2007), são muitas as críticas que envolvem
este tipo de política: o poder de deliberação passa do Estado para a iniciativa
empresarial, de acordo com a determinação do departamento de marketing das
empresas; o uso quase integral de recursos públicos, sem a contrapartida de
recursos privados; além da factível concentração de aplicação de recursos na região
sudeste, no caso da lei Rouanet. Barbalho (2007, p.48), reforça esse argumento:
por sua vez, a lei Rouanet, desacompanhada de uma política nacional de cultura,
reforçou as desigualdades entre as regiões brasileiras no que se refere ao apoio à
produção cultural”.
Existem outros fatores que corroboram as críticas: os participantes envolvidos
não estão em condições de participar com iguais oportunidades de preparo. As
empresas, obviamente, aderem a projetos que propiciem visibilidade midiática, que
interessem à uma linha de marketing adotada. Nesse sentido, esclarece Porto
(2007):
Os 10 maiores beneficiários dos incentivos proporcionados pela Lei
Rouanet, foram as atividades e programas das grandes fundações privadas,
com origem nos setores bancários, as multinacionais da área de
149
telecomunicações ou de grandes conglomerados. Sem analisar o mérito e a
qualidade das ações empreendidas, é possível afirmar que se financiou no
país uma ação regionalmente e setorialmente concentradora, de renda
inclusive, que sob a égide do gosto dos homens de marketing e
comunicação das empresas ditaram aquilo que a população brasileira ver
financiado (p.164).
que é factível que este sistema tributa à grande parcela dos envolvidos no
processo de expressão artística, o peso da falta de patrocínio, que não encontram
no mercado um veículo de circulação para suas obras, provavelmente por não
serem convenientes para a imagem da instituição patrocinadora. No caso da artista
Bia Cordovil, provavelmente o projeto estava em consonância com os interesses da
empresa. Porém, na realidade, muitos artistas não sabem sequer por onde começar
na busca deste tipo de patrocínio. Além disso, no projeto de Bia Cordovil, a artista
contou com uma agência para captação de recursos, o que facilita o caminho
percorrido na burocracia da aprovação de projetos.
As leis de incentivo à cultura abriram algumas lacunas que demonstraram sua
ineficiência para atuar como política pública de peso. Mesmo que a intenção do
poder público fosse a melhor possível com as leis de incentivo o tempo tratou de
demonstrar que muito freqüentemente coisas boas produzem maus efeitos. Uma
política cultural que se restrinja às leis de incentivo terá um alcance limitado e será,
inevitavelmente, excludente.
Portanto, na busca de uma conjuntura mais equilibrada, políticas públicas
foram adotadas na tentativa de garantir uma atuação mais democrática por parte do
poder público. A modalidade de seleção de projetos através de editais públicos de
incentivo às artes, tem seus princípios estruturados no estímulo ao desenvolvimento
de ações de inclusão social, de produção e divulgação das artes, das trocas de
experiências e conhecimentos, incentivando a diversidade e o retorno social dos
projetos contemplados. No Ceará, a política de editais é adotada pela Secult desde
2003 e pela Funcet a partir de 2006.
Os editas normalmente obedecem a uma divisão em categorias, que nas artes
visuais se manifestam da seguinte forma: “pesquisa”, para a realização de pesquisa
teórica com o objeto de pesquisa relacionado às artes visuais; “produção”;
“formação”, com a apresentação de propostas de atividades que envolvam a
capacitação de estudantes, profissionais e interessados em artes visuais, através da
150
realização de eventos como oficinas, cursos ou seminários; “exposição” e
“publicação”.
Cecília Bedê
102
, artista contemplada no edital da Secult na categoria pesquisa
e da Funcet na categoria exposição analisa a importância dos editais, mas aponta
sua ineficiência em abarcar todo o processo:
Eu acho que os editais ajudam muito, de uma certa forma é um incentivo
porque você acaba produzindo mais, você acaba criando um portfólio ou
uma prática de escrever sobre seu trabalho, mas assim também só isso não
funciona, acho que não sei como explicar isso mas deveria haver uma coisa
constante e não você estar sempre procurando, acho que os editais
deveriam ser um complemento de uma coisa que seria normal todo mundo
aqui no seu atelier trabalhando e ganhando em cima disso agora como
fazer isso eu não sei.
Milena Travassos
103
concorda que os editais são uma boa iniciativa, mas frisa,
assim como Cecília Bedê, que o alcance é limitado :
uma das coisas boas atualmente é justamente essa política dos editais, mas
elas não vão dar conta da tua sustentabilidade como profissional, mas as
políticas de editais são boas, aqui em Fortaleza tem muitas, tem a secult
que ta bem recorrente nisso, todo o ano tem editais para várias áreas, a
prefeitura também vai entrar com a política de editais também que vai ser
super legal, agora os museus poderiam estar contribuindo com bolsas, o
que eu sinto no edital é bom, mas a forma como acontece poderia ser
diferente. [...] então uma política que fique com você mais tempo, não só
que crie um meio para expor o teu trabalho, mas que crie um grupo todo
envolvido nisso, o artista, o curador, o pesquisador e a própria galeria, o
próprio museu, que tenha esse ciclo dentro dos editais, não como uma
forma de estar expondo o teu trabalho e fim, mas uma continuidade mesmo,
e também eu acho que o dinheiro reservado para as artes, quando abre um
edital você ganha mil reais, mil reais não nem pra você chegar no teu
trabalho onde ta, outro seis mil, então eu acho que essa quantia
disponibilizada pro produtor de arte é insuficiente, porque tem todo um
envolvimento, às vezes eu sinto uma necessidade e vejo em outras pessoas
também do trabalho crescer mas você não tem um suporte no edital que
viabilize financeiramente aquele trabalho então é isso, a forma do edital é
boa mas tem muitas coisas a serem revistas nele.
Maíra Ortins aponta para os critérios de seleção utilizados para “selecionar
quem seleciona”:
Tudo isso é muito fugaz isso não funciona, as leis de incentivo não
funcionam, principalmente se não se mudar a mentalidade das pessoas.
tem um edital e se chama três pessoas para compor uma curadoria e o
critério ainda é doméstico, se escolhe e se chama para participar por
simpatias.
Os depoimentos evidenciam a existência de deficiências no sistema de
fomento às artes. Apesar da maioria das entrevistas apresentarem dados que
102
Entrevista concedida em 20 de dezembro de 2005.
103
Entrevista concedida em 12 de janeiro de 2006.
151
reconhecem que houve uma abertura, que houve uma ampliação para a participação
dos artistas, assim como para a produção e circulação dos trabalhos, nunca é
demais lembrar que as políticas culturais devem ter a missão de satisfazer as
necessidades não dos artistas, mas também as necessidades culturais da
população; que devem estar direcionadas para o futuro, onde principalmente os
órgãos governamentais, devem agir buscando alcançar o interesse público,
proporcionando o acesso à cultura pelo cidadão. Além disso, na análise das políticas
“é preciso dar conta dos trânsitos de propostas, conceitos, representações e
imaginários algumas vezes confluentes, a maioria das vezes em direções opostas e
conflitantes, que cruzam o campo cultural” (BARBALHO, 2005, p.17).
Repensar o formato adotado por políticas tradicionais como o Salão de Abril,
que em seu edital anuncia a pretensão de fazer um recorte, de mostrar uma parcela
significativa da produção contemporânea em artes visuais, deve estar em constante
processo de revisão, se o Salão atende, de fato, este objetivo. Principalmente se o
Salão atinge o “outro”. Por ser promovido pela Prefeitura de Fortaleza, o Salão de
Abril não pode desconsiderar o público, que é quem sustenta o Salão, através da
carga tributária. O planejamento deve estar comprometido desta forma, com a
conquista de novos olhares, com a quebra de barreiras simbólicas entre a arte e o
público. Justamente por ser promovido pelo poder público, o Salão de Abril não pode
simplesmente reproduzir as fórmulas já deglutidas pelo mercado. O Salão deve
instigar resistências. Para Rosângela Melo, os vícios do sistema capitalista são
virulentos e afetaram a credibilidade do Salão de Abril:
Vício. uma palavra que pode resumir tudo: vício. E vício dependendo
da droga é quase impossível sair dele. E a droga daí é o dinheiro. E o
capitalismo é algo assim que aprisiona, escraviza e destrói. Como pode
destruir um salão. Daqui um tempo esse salão pode nem existir mais
porque estão surgindo pessoas que estão questionando. Pra onde vai a
credibilidade do salão, pra onde?
104
A artista Érica Zíngano
105
ressalta algumas vulnerabilidades do Salão de Abril.
Argumenta, assim como outras artistas entrevistadas, a tendência das ações e
políticas migrarem para o efeito hipnótico do evento, sem a preocupação com a
continuidade dos processos criativos que o Salão estimula.
104
Entrevista com Rosângela Melo, concedida em 05 de outubro de 2006.
105
Entrevista concedida em 25 de janeiro de 2006.
152
A gente já vem discutindo isso há muito tempo, desde a revisão do que foi o
Salão de Abril, quando a gente participou de várias reuniões e lançou várias
propostas que tem o intuito de que mudasse a relação do Estado com
aquilo, porque o que é que o Estado faz: tem o edital agora da Secult e a
prefeitura tem o Salão de Abril, então são os dois grandes, vamos dizer,
suportes estatais, suportes do Estado, ? e a gente queria rever esses
estatutos, rever como é que isso acontece, e propor outras coisas, quando a
gente pensava no Salão de Abril a gente pensava numa relação de bolsas,
por exemplo, e que isso não fosse só um único evento, como marco,
poderia continuar existindo o Salão de Abril, e concomitante, durante o ano
inteiro, fossem desenvolvidos vários trabalhos, rias exposições, que
ocupassem a Galeria Antônio Bandeira, que diluísse mais isso, porque
Fortaleza tem muito a coisa do evento, um acontecimento único, grandioso,
maravilhoso, e que todas as verbas tem que ir para aquela coisa. Eu achava
que tinha, eu como outros artistas achávamos que tinha, que deve existir
uma necessidade permanente, dessa relação de trabalho, de exposição.
No planejamento das políticas para as artes, será que não falta espaço para o
desejo? Para aquele “algo mais”? A anestesia dos desejos predomina. espaço
para a “necessidade”, como a cultura identificada como meio de consumo, como
indústria cultural. Há, porventura, na realidade no sistema em que estamos
inseridos, espaço para o desejo? um território propício para a vazão das
pulsões
106
? O desejo inquieto, questionador, que quer transformar, mudar, é alvo do
capitalismo, que busca neutralizá-lo. Controle subliminar, por isso mesmo perigoso,
que busca dóceis e fiéis adeptos no processo de reprodução do sistema, que se
alimenta, inclusive, da potência criadora das subjetividades.
Teixeira Coelho atenta para a necessidade da expansão do desejo. A
modernidade nos tributou uma herança, implementou um sufocamento das pulsões.
“Iluminismo, a ética da Revolução de 1789 e a ideologia do capitalismo embrionário
do culo XIX deram-se as os para reduzir a busca da felicidade ao bem-estar, o
prazer à comodidade” (...) e enfim, o desejo à necessidade (COELHO, 1999, p.14).
O sufocamento das pulsões anestesia o sujeito. Inverte a ordem. Transforma sujeito
em objeto.
Ana Costa Lima
107
fala sobre o potencial que a arte carrega. Tão essencial,
para ela, quanto o ar que respira:
Uma prova maior que você é artista é quando você enfrenta todas as
dificuldades e permanece fazendo a sua arte, ta a prova maior que você
é um artista porque se você for, você o consegue deixar. A arte é mais
ou menos isso, sabe, a partir do momento que eu coloquei ateliê, que eu
comecei a freqüentar outros ateliês, que eu comecei a colocar realmente a
106
Pulsão (trieb) aqui compreendida como a força germinativa, como a que impulsiona, como uma
propulsão, como uma forma originária do querer.
107
Entrevista com Ana Costa Lima, concedida em 10 de junho de 2006.
153
arte na minha vida, eu enfrento qualquer coisa e o abro mão dela de jeito
nenhum, é como comer, é como respirar mesmo.
A arte é vital, visceral. A arte desterritorializa. Esse talvez seja seu grande
caráter. Liquidifica. Revigora. Transforma. Assim, como podemos pensar uma
política cultural que contemple o desejo? Que não tenha desculpas mesquinhas e
arcaicas para o prazer, que acolha as expressividades sem procurar distorcê-las ou
refreá-las de acordo com regras subliminares do mercado?
E, ainda, que permita o acesso igualitário para a manifestação das pulsões,
independente de questões de gênero?
4.8 Uma perspectiva de gênero
Como as mulheres artistas em Fortaleza analisam as questões que remetem
às desigualdades de oportunidade por conta das relações de gênero? Para elas,
ainda existem privilégios que garantem uma participação maior ao gênero masculino
no campo das artes? Cecília Bedê considera que o espaço é igualitário:
Eu nunca parei para pensar essa questão, mas eu acho que não, acho que
hoje em dia tudo tá mais igual, apesar que eu acho que a mulher talvez seja
um pouco mais sensível pra perceber o mundo de uma forma geral e então
talvez eu acho que a mulher tem mais probabilidade de ser uma artista do
que um homem, sei lá, foi uma coisa que eu pensei agora, mas assim em
termo de espaço, de oportunidade, nesse meio eu acho que igual acho
que não tem muita diferença não, pelo menos hoje em dia, que é o que eu
observo, as pessoas que eu observo, não sei como era uns tempos
atrás, eu acho que existiam mais homens a uns tempos atrás
108
.
No entanto, analisemos uma situação prática: a seleção do Salão de Abril de
2007 não se coaduna com a impressão da artista. Foram 521 inscritos. 245
mulheres e 276 homens. Cabia ao júri selecionar 30 artistas. Resultado: 24 homens
e apenas 6 mulheres. Foram 03 artistas premiados. Nenhuma mulher. no caso
específico do Salão de Abril, que existe desde 1943, esse é um dado que se repete
e curiosamente se mantêm estável ao longo dos tempos
109
: a ínfima premiação de
mulheres artistas no salão.
108
Entrevista concedida em 20 de dezembro de 2005.
109
O quadro de premiações do Salão de Abril, desde seu início, em 1943, até 2007, se encontra
disponível no material anexo a este trabalho.
154
A artista Milena Travassos
110
também estranha o questionamento: “mas em
nenhum momento eu senti por ser uma mulher que estivesse produzindo estar
sendo vetada ou que alguém questionasse não, sempre foi super tranqüilo isso”.
Para Érica ngano
111
: “não acho que tem essa relação de discriminação não, eu
acho que ela não existe”.
Waléria Américo considera que os tempos estão mais abertos para a
participação das mulheres, como um reflexo da própria abertura social, mas não
deixa de reconhecer que, na prática, falando em estatística, os números denunciam
que o acesso ainda não é igualitário:
Inclusive as mulheres estão em alta nas artes, a gente tem uma porrada de
artistas que estão produzindo, tem uma porrada de críticas, curadoras, de
mulheres interessadas, as bienais por é mulher, o Itaú cultural teve
uma banca de mulher, e eu não vejo, eu sei que historicamente se você
pegar e ver que existe um processo que acontece nas artes mas também
acontece em todas as escalas sociais também, então elas estão tendendo a
ficarem mais abertas, mas eu nunca tive nenhum problema, agora que na
lista é muito mais homem que mulher sempre é, se a gente fala de
números..., uma bolsa que é para dez pessoas três são mulheres, três ou
quatro mulheres, então sempre é assim, é uma minoria, mas isso é fato.
Referente a uma política de cotas para mulheres no campo das artes visuais é
freqüente a forte resistência à idéia, conforme salienta Èrica Zíngano:
Eu não sou de acordo, porque aí é aquela velha história, é quando você
reafirma que existe um preconceito, e é quando a gente vai trabalhar
essa questão, que é super mal resolvida essa questão de gênero, quando a
gente fez a exposição a gente pensava assim: não, tem que partir do
pressuposto que isso não era mais para ser discutido, a questão das cinco
mulheres porque sempre vem uma nomenclatura do tipo há eu sou mulher,
isso é poético, é feminino, é adolescente, pois são conceitos que remetem
ao feminino, mas a gente não gostaria que essa questão fosse colocada,
porque existe uma diluição, claro que existe, a gente não pode pensar eu
sou mulher ele é homem, digamos, existe realmente uma estrutura
corpórea, uma estrutura social, que demarca territórios, mas eu acho que a
gente tem que trabalhar a noção de que isso não existe mais, pra que isso
realmente se esgarce, para que isso realmente se afaste, para que não
exista mais essa noção de diferente, apesar de ter como eu disse, uma
relação primordial, física, que por si só já é diferente.
Maíra Ortins:
Eu acho que o tem sentido. Porque homem ou mulher quem faz a
diferença é a sociedade e as conveniências dela, essa questão de botar
cota para mulher é uma maneira de dizer que ela não é artista, ela é
mulher, então isso aumentaria o estigma, é como se a mulher não fosse
capaz de concorrer com o homem, e isso é bobagem, isso é balela, isso não
110
Entrevista concedida em 20 de dezembro de 2005.
111
Entrevista concedida em 25 de janeiro de 2006.
155
existe, o que tem que mudar é a mentalidade das pessoas e não as leis, as
leis estão para serem cumpridas, é livre, qualquer pessoa pode se
inscrever, então o que tem que se mudar é a mentalidade das pessoas.
A adoção de políticas públicas que visem a afirmação de direitos nesse campo,
enfrenta, portanto, uma forte rejeição. Roberto Galvão traça uma reflexão sobre a
questão de gênero na contemporaneidade: “Eu acho que hoje a questão de gênero
ela é mais sofisticada, não é tão explícita como era no passado, pode até haver
algumas explicitações, mas eu acho que os métodos de repressão, de afastamento,
são menos legíveis”
112
. Com essas palavras o entrevistado nos remete novamente
ao pensamento de Bourdieu (2002, p.13), “onde incorporamos, sob a forma de
esquemas inconscientes de percepção e apreciação, as estruturas históricas da
ordem masculina”. Identificar essas ordens “menos legíveis” talvez seja o grande
desafio para as políticas que envolvem gênero e políticas que a perpassam, como as
culturais. A consciência dos arbítrios, principalmente os arbítrios introjetados como
uma ordem natural, talvez seja o caminho que proporcione a mudança de
mentalidade que almeja Maíra Ortins.
Implementar outra visão. Ampliar olhares. Instigar políticas do desejo. Para
Teixeira Coelho essa é a política da contemporaneidade:
Esta é a política cultural da contemporaneidade, um política que contemple
o desejo, que não se esconda atrás do discurso facilitador e demagógico da
necessidade, que deixe de traçar suas pequenas táticas para o bem-estar e
as mesquinhas satisfações comedidas e se abra para o prazer e, no limite,
para isso que se tornou, tragicamente, uma improbidade lingüística e
filosófica: a felicidade (COELHO, 1999, p.14).
A arte, tudo pode. Fecunda outros possíveis. Visa, também, ser política, por
que não? Desconstruir discursos hegemônicos. Afinal, a arte representa um
exercício de liberdade, que desata os nós que anestesiam e prendem os indivíduos
às teias engendradas pelo sistema. Movimentos alternativos tentam criar caminhos
que favoreçam a expressão de outras potencialidades, como o que enseja uma
abertura ao multiculturalismo
113
. Ou ainda, os coletivos de artistas, que fogem da
estrutura posta e imposta pelo sistema. A ordem, então, é deixar fluir a pulsão da
força de criação. Desatar as amarras. Abrir o terreno da subjetividade humana,
112
Entrevista com Roberto Galvão em 03 de fevereiro de 2006.
113
Multiculturalismo se refere à coexistência de diversas expressões e manifestações culturais, sem
que uma exerça privilégios sobra a outra.
156
independente de gênero, para o cultivo cada vez mais fertilizado, de um campo
criador.
Enfim, fazer da própria vida uma obra de arte.
157
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Liberdade é sempre a liberdade
de quem pensa diferente”.
Rosa Luxemburgo
.
Mulheres e arte. Uma união que atravessou os mais variados tempos. As
representações sobre o gênero feminino sofreram ao longo do processo histórico
muitas distorções, muitas perdas. Claro, não podemos deixar de reconhecer que
também houve ganhos. Trabalhar com constantes e cansativas criminalizações,
atribuindo todas as vicissitudes das mulheres ao império do sistema patriarcal pode
configurar visão limitada dos fluxos e movimentos, muitas vezes impossíveis de
agarrar, que compõem a dinâmica da vida em sociedade.
Afinal, as conquistas sociais por direitos mais igualitários são fato notório na
dinâmica social. Indiscutivelmente, as mulheres estão mais autônomas, tem mais
acesso aos espaços antes cerceados. Se houve um sufocamento das expressões
autorais femininas no passado a atualidade abre espaço para uma construção de
uma história das mulheres, que está sendo escrita agora também por elas mesmas,
como muito bem frisou Jean Franco. Como intérpretes de seu tempo, as mulheres
artistas exercem um papel crucial nesse processo. Afinal, as obras de arte são um
registro de um tempo vivido: revelam, inclusive, aspectos camuflados por conflitos
que envolvem poder.
Os princípios oriundos do feminismo foram assimilados pela sociedade. A
questão talvez não seja mais a luta por iguais condições de acesso, pelo menos da
forma que foi realizada até hoje. Como ressaltado no capítulo quatro, o desafio é
bem mais sofisticado. Devemos perceber as relações de poder onde essas se
deixam ver menos, como tantas vezes salientou Pierre Bourdieu. Retirar os véus,
identificar estruturas de repressão e diferenciação, inclusive inconscientes. Penso
que a arte pode contribuir nessa tarefa, que um dos maiores sentidos que
podemos extrair da arte é a capacidade de instigar resistências.
A atenção e a consciência alerta, inclusive histórica, aos desgastes e
sofrimentos, às proibições e arbitrariedades que marcaram o passado das artistas é
158
fator fundamental, pois não se tratam de questões exteriores a nós. Fazem parte de
nossa própria história, de nossa própria vida, são dados contemporâneos, que
interessam às mulheres e também aos homens. Nesse percurso, muitas narrativas
se perderam, muita produção foi mutilada. O que aconteceu com Isabel Rabelo? O
que aconteceu com tantas mulheres que passaram pela SCAP, que sonhavam ser
artistas?
Com relação às políticas para a cultura, especialmente no que concerne às
políticas para as artes visuais, em cerca de uma década realmente mudou o cenário
local. No início do século XXI, após a instalação dos cursos de graduação em artes
visuais da FGF e de artes plásticas do CEFET, a produção da arte realizada por
mulheres foi sensivelmente intensificada e cresce cada vez mais.
As artistas estão presentes nas exposições, nas mostras de artes, no Salão de
Abril (mesmo sem acontecer o equilíbrio no acesso, mas talvez isso seja uma
questão de tempo). Participam intensamente dos editais de incentivo às artes
visuais, expõem no MAC, no MAUC, no CCBNB e em tantos outros espaços. Cada
vez mais mulheres trabalham com crítica das artes e promovem curadorias de
exposições. Dirigem centros culturais e museus. São artistas no dia-a-dia. Estão nas
ruas, nas cidades, interferem na dinâmica social. Refletem sobre as subjetividades,
questionam mitos e sonham com novas utopias. Criticam e aderem ao sistema, se
inserem nos movimentos, desistem deles, corroboram com paradoxos, florescem a
vida com inúmeras realizações.
Particularmente, realizar essa pesquisa não foi tarefa cil. Sem perceber
minhas próprias limitações de origem cartesiana, tinha a crença de que chegaria a
conclusões. O tema escolhido revelou uma intensidade bem maior do que desenhei
mentalmente em minhas expectativas iniciais. Um mundo inteiro passou por mim.
Caí e levantei várias vezes. A pesquisa realmente me afetou. Foram incontáveis
possibilidades de sentido, muitas vidas, intensos significados atravessaram meu
espírito. Algo que não é relatável.
Trata-se de algo para ser sentido.
Sentir o desejo de saber que impulsionou o artista que realizou a Vênus de
Willendorf, acompanhar os rastros deixados pelas artistas invisíveis, tentar pinçar
espectros de existências do que ficou na história. Ser afetado também pelo
presente, pela obra de artistas excepcionais, como Cláudia Sampaio, Jussara
159
Correia, Rosângela Melo, Milena Travassos, Waléria Américo, Jacqueline Medeiros,
entre tantas outras. Perceber como tudo é entrelaçado na dinâmica vida em
sociedade: política, economia, subjetividades, gêneros, aspectos míticos, crenças,
valores, afetos, consciente, inconsciente, o singular e o coletivo. Não começo
nem fim. Existem fluxos e passagens. São processos.
O que é real?
Viver é real. A arte reflete isso. A arte é o que conserva, é um composto de
“perceptos e afectos”, como bem conceituou Deleuze e Guatarri (1992). O encontro,
portanto, é real, porque é sentido. O sentimento que pulsa nessa etapa do processo
consiste na determinada missão de lutar pela garantia das liberdades. Abrir espaços
para as diferenças.
Garantir o território das pulsões irrefreáveis.
.
160
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VÍDEOS
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ENTREVISTAS
(01) Em vídeo:
Bia Cordovil
Cecília Bedê
Jacqueline Medeiros
Jussara Correia
Maíra Ortins
Meire Guerra
Milena Travassos
Rosângela Melo
Simone Barreto
Waléria Américo
171
(02) Áudio:
Ana Costa Lima
Cláudia Sampaio
Cristiana Moura
Érica Zíngano
Heloísa Juaçaba
Jane Lane
Marina Barreira
Nice Firmeza
Gestores/ Diretores de Museu/ Centros Culturais
Jacqueline Medeiros
José Guedes
Ricardo Resende
Pesquisadores em Artes Plásticas
Nilo Firmeza (Estrigas)
Roberto Galvão
172
ANEXO - ENTREVISTAS
Entrevista Roberto Galvão, em 06 de fevereiro de 2006.
Ana Valeska: Vamos puxar pela memória? Eu queria que você me falasse sobre as
primeiras artistas que você tem conhecimento, sobre as primeiras mulheres que tem
uma produção em arte aqui em Fortaleza.
Roberto Galvão: Tem a artista Isabel Rabelo, se não me engano, ela é a primeira
artista da qual eu tenho informações. Ela pintou duas imagens que foram doadas à
Igreja do Rosário, se eu o me engano, em 1900. Ela estudou no exterior, ela
viajou para estudar belas artes no exterior. O comum na época era que artistas
fossem estudar geralmente no Rio de Janeiro, mas ela não, ela devia ter boas
posses econômicas para poder ir estudar no exterior. Eu não conheço nenhuma
obra dela, era o caso de...
AV: As que foram doadas à Igreja?
RG: Não estão mais lá, não sei se perderam, teria que ir buscar informações eu
creio no seminário onde está a arquidiosece se não está por em algum local.
Continuando: nos anos 30 eram muito comuns os, você pode ver isso por exemplo
no jornal O Povo, a existência de muitas mulheres que pintavam, se você
acompanhar as notícias vai poder ver que haviam cursos ministrados por
professoras que haviam realizado o seu processo de formação geralmente no sul do
país e que em voltando aqui ensinavam para senhoras da sociedade. Também se
pode ver exposições de final de curso com 30, 40 nomes de mulheres participando
da exposição. Interessante é que essas mulheres digamos que pintaram não estão
na história da arte, nunca vi nenhum nome a posterior que venha confirmar isso.
Dentre os processos de arte educação, além dessas que ministravam cursos para
senhoras, existe uma Dona Mundica, que era professora do Bandeira, o Bandeira
estudava pela manhã e tinha aulas com Dona Mundica pela tarde. O Aldemir Martins
também tentou estudar com Dona Mundica, mas ela não o aceitou porque para ela
ele não tinha talento. Também da década de trinta o primeiro nome que vira artista é
Sinhá D’amora, mas ela sai daqui e foi desenvolver a carreira dela no sul do país.
Ela retorna à Fortaleza no final da década de quarenta ou início da década de
cinqüenta. Então Fortaleza não conhecia a produção de Sinhá D’amora, era uma
173
produção externa. Aqui, nesse período, mais no final dos anos trinta, nós tínhamos
uma artista com uma certa importância, chamada Maria Laura Mendes, que
começou com Aldemir Martins, com Antônio Bandeira, eram da mesma geração.
Temos também uma senhora chamada Joinha Fragoso, que era pintora e
participou de algumas exposições também nos anos quarenta. Maria Laura era uma
artista de muito reconhecimento social na década de quarenta, eu digo isso por
perceber que o jornal O Povo abria muito espaço para suas exposições bem como
promoveu um leilão de uma obra de Maria Laura para fins filantrópicos. A Maria
Laura fez uma exposição, se eu não me engano, em 34, e vendeu 28 das 30 obras
expostas. Ela é a primeira artista a pintar num estilo futurista, talvez a nossa primeira
modernista, a nossa Tarsila do Amaral, ou melhor, a nossa Anita Malfatti. Depois,
na geração da SCAP, muitas mulheres estudaram ( a SCAP surge em 44), no
CCBA acho que não temos mulheres, era um movimento mais de artistas operários
e não sei se tínhamos mulheres. A primeira participação com o grupo da Maria Laura
acho que é na primeira exposição promovida pela SCAP chamada “Pinturas de
Guerra”. Entre os alunos da SCAP tivemos como destaque nas primeiras gerações a
Nice, e eu creio que se a gente olhar as fotografias que existem no mini-museu
Firmeza ou reproduzidas em alguns livros a gente vai poder observar que haviam
muitas mulheres entre os estudantes, mas a história também as esquece. Isso é um
problema, que inclusive está levando você a estudar isso.
AV: Você atribui esse esquecimento da história a que?
RG: Se você entrevistar a Nice ela vai lhe contar que para ela estudar na SCAP era
uma barra, os irmãos não aceitavam e ela disse que foi preciso a mãe reunir a
família e dizer: “a minha filha vai estudar o que ela quer estudar”. Dona Aída Coelho,
mulher do doutor Antero Coelho, ex reitor da Unifor, também me falou que havia
muita dificuldade ela andou estudando na SCAP mas que isso era socialmente
reprimido, o era uma coisa digamos de pessoa séria, porque havia desenhos de
modelo vivo, então era uma coisa realmente não muito bem aceita socialmente.
AV: E quantas artistas da época da SCAP seguiram carreira além da Nice?
RG: A Nice e a Heloísa Juaçaba, que pelo que me consta ela era apoiada pelo
marido, inclusive era ele que comprava os materiais, ele apoiou essa atividade.
Olhe, só conheço essas.
174
AV: E na década de cinqüenta e sessenta?
RG: Do fechamento da SCAP até a abertura da Raimundo Cela essa parte não está
muito registrada porque não havia instituições. Com o movimento que desaguou na
Raimundo Cela nós tínhamos algumas artistas do gênero feminino: Tereza Bona,
Regina Cavalcante, que o sei se ainda são artistas hoje, a Regina teve uma
participação muito importante no cenário local, teve inclusive alguma participação
significativa no exterior, e eu não sei mais o que ela faz hoje, tem muitas: Miax,
que era namorada do artista Ximenes, também não sei se ainda produz, tem a Ana
Medeiros, que era companheira do Aderson, que também não sei se continua
produzindo, havia bastante, havia muitas mulheres.
AV: Como a sociedade recebia essa produção feminina na época?
RG: Nos anos sessenta um deslocamento. Na produção até vamos dizer
escapiana, do CCBA, eram as camadas mais operárias que produziam arte. Quando
a SCAP surge nos anos 40 é um contato das populações mais aquinhoadas,
geralmente estudantes universitários com esses produtores digamos assim,
operários. Mas na década de 60 há um deslocamento e a arte passa para a Aldeota,
passa a ser produzida por uma camada mais sofisticada, e mesmo que o artista não
fosse oriundo dessas camadas ele passa a freqüentar esse segmento social mais
aquinhoado financeiramente. Então a relação muda e para as artistas ser artista é
mais bem aceito. Temos também Terezita Araújo, que era filha da D. Lorena
Araújo que foi dona de uma das primeiras galerias daqui, também eu acho que vale
citar a Ignez Fiúza, que abriu a galeria Recanto do Ouro Preto, e foi talvez a
segunda galeria que tivemos aqui. Então nós tínhamos aqui duas marchands, a
Ignez eu nem sei se ainda atua como marchand. E agora num terceiro momento, no
momento da FGF, dos cursos superiores de arte, houve uma inversão, são muito
mais mulheres fazendo arte do que homens.
AV: A sociedade mudou muito, e apesar de existir atualmente uma presença maior
feminina as premiações e participações em salões ainda são de maioria masculina,
como você analisa isso?
RG: Eu acho que hoje a questão de gênero ela é mais sofisticada, não é tão
explícita como era no passado, pode até haver algumas explicitações, mas eu acho
que os métodos de repressão, de afastamento, são menos legíveis. Agora a mulher,
175
pela própria condição social hoje, ela tem mais dificuldades do que os homens, isso
é visível, ela tem dificuldades de estudar, de deslocamento, mesmo até de atividade
social, de freqüentar certos lugares, então isso de algum modo limita a atuação da
mulher artista.
Acréscimo: Ana Uchoa, da geração do Sérgio Lima, ganhou muitos salões de abril,
era gravadora.
Entrevista – José Guedes, em 06/04/2006
Ana Valeska: Vamos iniciar pela sua trajetória como artista. Como era fazer arte no
tempo em que você começou?
José Guedes: 33 anos atrás eu estreei no Salão dos Novos, mas eu pintava
desde antes. Quando eu tinha uns doze anos eu conheci o Aldemir Martins e
mostrava meus rabiscos e ele sempre me deu corda. Desde que eu me entendo eu
sou artista, eu nunca tive na minha vida outra aspiração. É tanto que quando eu
resolvi fazer faculdade de direito eu fiz mais pela minha mãe, ela me disse: “meu
filho você pode continuar a ser artista, mas você tem que me dar o diploma”. Sou
advogado de carteirinha e tudo mas nunca exerci. Se hoje é complicado ser artista
naquela época era mais; não do ponto de vista das pessoas aceitarem isso como
profissão, mas também de vc aprender alguma coisa, não tinha escola, não tinha
nada. Se você tinha alguma vocação e isso o próprio Aldemir Martins falou “você
tem é que conviver com artistas, mostrar trabalhos, ver, trocar idéias, isso é que
constrói o artista”. O Aldemir disse até que quando ele era pequeno mostrou um
desenho para uma professora e ela disse que ele nunca ia ser artista, pois ele não
sabia nem pegar num lápis. Aprender a ser artista é que nem aprender a mastigar, a
gente mastiga por uma necessidade pra comer e você aprende a ser artista por uma
necessidade pra viver. Então eu entrei por aí, eu tive essa necessidade pra viver.
AV: E como era a política para as artes na época? Tinha o Salão dos Novos, o Salão
de Abril...
JG: tinha o Salão dos Novos que era bem legal, tem muita gente que surgiu por
conta do Salão dos Novos e pelo Salão de Abril. O Salão de Abril sempre foi
176
polêmico, sempre foi muito rigoroso, quer dizer, sempre teve critérios, os mais
esdrúxulos, mas sempre teve. Continua sendo assim, né? E é um salão em que
toda a geração de artistas cearenses que hoje é profissional, que estão trabalhando
aqui e fora, é uma geração que veio do Salão de Abril, junto com a Casa Raimundo
Cela, que também é importante, até porque era um local em que os artistas se
reuniam. Quando eu comecei a ser artista a D. Heloísa Juaçaba era diretora da
Casa Raimundo Cela, tinha exposições legais, conheci muito artista lá, então o que
tinha era isso a Raimundo Cela que era administrada por uma artista, que
movimentava, que a D. Heloísa foi uma pessoa que movimentou muito as artes, e
muita gente boa surgiu daí, mas era uma coisa que exigia muita vocação mesmo,
sabe? Tinha que ter muita garra, tinha que ter muita vontade de ser artista. Você não
tinha essa ambiência que você tem hoje. Hoje eu morro de inveja de vocês, sabe?
Você tem uma Gama Filho; as vezes em que eu fui é uma delícia, você tem ali
gente que ta trabalhando dentro de uma linha, dentro da geração de vocês, para que
se tenha uma informação para se fazer um trabalho em sintonia com seu tempo. Na
nossa época a gente ia fazendo, ia tateando as coisas, mas quando você via você
tava descobrindo a roda, né? Você tava fazendo um tipo de pintura que tinha 100
anos de atraso e não tinha ninguém pra te dizer isso. Quando tinha a coisa vinha
muito a conta gotas. Então algumas pessoas que eu tive convivência nessa época,
uma delas foi o Roberto Galvão, porque o Roberto tinha uma vivência, vinha de
uma Bienal de São Paulo, era um artista que tinha um trânsito a nível nacional.
Então o Roberto me colocou muito em sintonia com o tempo, coisa que ele continua
fazendo até hoje.
AV: Além da D. Heloísa que você citou quais outras mulheres se destacavam na
época em que você começou nas artes?
JG: Tinha a Mariza, a Salete, tinha..., tinha.., quem mais? A minha memória não ta
legal, muita gente também deixou de ser artista, né? Eu posso me lembrar depois,
mas a D. Heloísa já era uma artista consagrada...
AV: Você percebeu se havia uma quantidade maior de mulheres que abandonavam
a carreira do que homens?
JG: olha, mesmo assim na época em que eu comecei eu não me lembro muito de
mulheres não. Sempre teve muito mais homem do que mulher, hoje tem muito mais
mulher do que homem, não tenha nem dúvida. Realmente hoje tem.
177
AV: Como foi que você passou a integrar as comissões julgadoras dos salões? Você
participou bastante das comissões do Salão de Abril, não foi?
JG: No Salão de Abril eu fui cortado, fui aprovado, fui premiado e fui ri. Tudo o
que se refere ao Salão de Abril eu todas as posições eu já estive. A primeira vez que
eu fui cortado eu vinha de u prêmio no salão dos Novos e fui cortado no Salão de
Abril e foi bom, porque eu me toquei, sabe? Eu sempre tive a crítica como uma coisa
muito legal, a angústia que você tem quando é cortado, quando é criticado é muito
positiva, sabe? E essa abertura me fez ver muita coisa, me deu uma segurança
maior, uma consciência de que não existe verdade absoluta, sobretudo em arte
contemporânea, é uma arte que você, eu vou chamar de arte atual, a arte
contemporânea ta saindo um pouquinho da onda, hoje você cria seu parâmetro,
antigamente não a arte moderna tinha seu parâmetro, seus preceitos e você tinha
que segui-los, mesmo inovando, mesmo criando, mesmo inventando, mas hoje não,
você não tem que dar resposta a nada, você tem que criar um trabalho que ele fale
por ele próprio e isso divide muito as opiniões. Vou te dar um exemplo bem legal
talvez o meu trabalho mais difundido a nível internacional foi aquela faixa de
pedestres que eu fiz em 2003 no MAM e saiu em duas revistas estrangeiras,
nas duas matérias de duas páginas, é um trabalho que na Bienal agora de Havana
ele foi reproduzido; a primeira pessoa que eu mostrei esse trabalho quando eu
concebi o trabalho em 2002 foi pro Felipe que foi o curador da Bienal daqui e o
Felipe achou genial, queria que eu me demitisse do Dragão para o trabalho entrar
para a Bienal, e o Ian Ruth também adorou, mas teve um crítico brasileiro, curador
de duas bienais de São Paulo, que disse que o trabalho era uma bobagem, sabe?
Então eu tinha aquelas duas opiniões, e eu mostrei pro Mosquera e ele
selecionou para o Panorama e até hoje o trabalho ta correndo o mundo. Então quer
dizer, enquanto que um crítico tem uma formação importante, acadêmica, curador de
bienais acha que o trabalho é uma bobagem, outro acha que é bom, quer dizer,
porque pode ser uma coisa e pode ser outra, sabe? Eu já ouvi muita opinião
completamente oposta com relação ao que eu faço, não existe verdade absoluta,
você tem que fazer, nestes 33 anos de uns dez anos pra eu faço tudo o que eu
quero, eu não me policio em nada; então eu não sei se eu fugi muito da pergunta...;
tinha um amigo meu que era muito importante nessa época do começo que era o
178
Marcos Jussier, eu chagava para o Marcos todo empolgado, dizendo que eu tinha
conquistado mais um patamar dentro da técnica e o Marcos chegava pra
mim”rapaz a única coisa que presta nessa tua tela é o chassi”; e isso era muito bom,
sabe? Só pra resumir, eu tive sorte de ter pessoas sinceras.
AV: Com relação ao critério político de um julgamento, existia uma política delimita
para os julgadores, qual o critério em que as obras eram avaliadas?
JG: olha, eu acredito que em cada ano tinha..., engraçado tem um artista que
participou da história do Salão de Abril que é o Estrigas, e o curioso é que o Estrigas
nos anos 40 tinha um trabalho até avançado para a época, na época da SCAP, e de
repente o Estrigas foi um artista que sempre era do júri e ele sempre servia de
contra-ponto aos avanços do Salão de Abril, eu não quero nem ser cruel com o
Estrigas ele é uma pessoa idosa, mas esse que o Salão de Abril sempre teve
com o conservador emperrou não o Salão quanto a própria arte local. Eu diria
que ao mesmo tempo que o Salão de Abril revelou muita gente, ele como sendo a
única referência de arte que a gente tinha, o único objetivo concreto que a gente
tinha era fazer um trabalho para entrar no salão de abril, ele ao mesmo tempo pelos
critérios internos emperrou muito a arte. Eu me lembro que eu fui premiado em
alguns salões de abril e num deles tinha a Lina Tortosa, que é uma crítica
importantíssima da Argentina, o Paulo Herquenhorf, um dos críticos mais
importantes do Brasil e o Estrigas. Então na negociação da premiação foi premiado
eu e o Eduardo Frota e outra pessoa que eu não lembro quem é, e tinha umas duas
outras coisas muito acadêmicas; a Lina Tortosa chegou pra mim e disse: isso não
é culpa nossa não! Então o que é que acontecia, quem chegava e via uma
premiação tão louca, fruto de uma negociação porque tinha uma pessoa acadêmica
puxando o salão pra trás, então os critérios ficaram confusos. Então o salão teve
muito isso durante muitos anos. Ultimamente ele..., eu me lembro que eu participei
de alguns dos últimos júris, e a gente lutou muito contra isso, primeiro contra essa
tendência de premiação por categoria, que é uma coisa que desde o final dos anos
80 isso o existe em nenhuma exposição no mundo, e eu me lembro que um salão
de abril que eu participei uns 5 ou 6 anos atrás, em que a comissão era eu, o
Tadeu Chiarelli e a Dodora, a gente resolveu premiar todos os que a gente tinha
selecionado, coisa que depois lançaram como sendo uma novidade; e aí neste salão
nós quebramos essa questão da categoria, e depois a categoria voltou. Mas nos
179
últimos anos pelo menos o salão tem uma cara mais contemporânea, mas não
houve um avanço. Nessa administração do Alexandre do PT agora a gente pensava
que isso ia ficar mais sólido, mas não, o salão passado o resultado o
acrescentou em exatamente nada às edições imediatamente anteriores, e esse
agora eu não sei, eu ainda não consegui entender os critérios.
AV: tem visita a ateliê e análise de portfólio, você pode optar por uma das duas e
escolhe a pessoa que vai te selecionar: Sebastião de Paula, Sólon Ribeiro ou
Ricardo Rezende.
JG: é uma coisa que a gente precisa ver os resultados, mas acaba sendo um salão
que vai, digamos, fazer uma exposição de curadoria, é, pelas pessoas que estão
envolvidas eu acho que vai ser legal, acho que vai sair coisa boa daí, espero que eu
não me decepcione, como eu tenho me decepcionado muito ultimamente.
AV: Você num ponto que é o da premiação. A pesquisa ela vai revelando muitos
dados, que nós percebemos que existem, mas que nas pesquisas eles dão a cara
com mais nitidez. Um deles é que nas premiações é que existe uma desigualdade
bem razoável num percentual de para cada dez premiados, apenas uma pessoa é
mulher, durante a história do Salão de Abril. eu te pergunto, por que será? Será
que a arte feita pelas mulheres é inferior a que os homens fazem?
JG: esse percentual eu acredito que ele coincida com o percentual de homens e
mulheres trabalhando nas artes.
AV: Mas você mesmo disse que hoje em dia tem muito mais mulher fazendo arte do
que homem.
JG: Do que homem, não. Do que ontem, do que antes.
AV: Nas duas faculdades de artes plásticas aqui tem mais mulheres do que homens.
JG: Na minha época eu tive dificuldade de lembrar de duas ou três, eu acredito que
o percentual de mulher foi sempre muito menor, agora com relação aos últimos eu
não sei, nos últimos tem mais homens também premiados?
AV: Tem. Bem mais.
JG: Deve ser a questão do trabalho que ali para julgamento. No último salão de
abril era o trabalho da Milena Travassos. Agora, por exemplo, a exposição de
mulheres do Museu de Arte Contemporânea foi muito fraca. O trabalho da Milena
180
sempre é bom, ela e a Waléria das que tavam eram as que se garantiam, mas
mesmo assim, tem uma ansiedade de inserir o trabalho dentro de uma espacialidade
que se chama de contemporaneidade, que prejudica as idéias. O trabalho da Milena,
por exemplo, ele é lindo como fotografia, aquela fotografia transparente no salão que
era uma coisa mais singela, funcionava. Quando ela teve a necessidade de criar
uma escultura e pondo a transparência em cima eu acho que o trabalho vai ficando
meio obscuro, vai complicado o trabalho, por exemplo aquele trabalho da projeção
em cima da bacia não tinha necessidade, então isso é pra dizer que depende do
trabalho, existe o talento e às vezes o trabalho demonstrado no salão não é o
melhor. Se você for julgar o trabalho das mulheres por aquela exposição ou aquelas
artistas não tão num bom momento, ou tem más artistas que tão ali pegando carona
num tipo de fazer artístico. Então a mulher e o homem são passíveis de crítica. Eu
me lembrando dos talentos de hoje eu acho que tem mais mulher talentosa nessa
última geração. Vou citar as pessoas que eu acho que tem talento: você, gosto muito
do trabalho que você faz com os cabelos, eu nunca mais vi coisa tua, tem uma coisa
legal no teu trabalho; a primeira vez que eu vi eu chamei o Roberto Galvão e
perguntei de quem era aquele trabalho tão bonito; tem a Milena, tem a Waléria, que
tem uns trabalhos bem legais; tem o Weaver que é um excelente pintor; o Jared;
tem aquela que faz aquelas dobraduras de pano...
AV: A Célia Ponte,
JG: é a Célia, que tem uma investigação em cima da pintura, ela procura ampliar as
questões da pintura de uma maneira muito inteligente; a Jacqueline; aquela que faz
vídeo, a Jussara; então se eu for citar os artistas que eu apostando talvez tenha
mais mulher hoje, tem o Yuri que é muito legal; pois é isso se você for contabilizar
tem mais mulher do que homem. Então não existe essa coisa do gênero de jeito
nenhum. Agora mesmo na Bienal de Havana uma das estrelas da Bienal de havana
era uma mulher, ela é iraniana e trabalha com vídeo, as coisas mais lindas que você
pode imaginar.
AV: s falamos bastante sobre o Salão de Abril. Vamos agora para o Museu de
Arte contemporânea do Centro Dragão do Mar e sua política de exposições. Como
foi a sua experiência como primeiro diretor do museu?
JG: É, eu fui o primeiro diretor, o museu ainda não tinha uma linha e a gente colocou
essa linha de arte contemporânea, que foi idéia nossa, eles queriam um museu de
181
arte do ceará, que seria um museu aberto pra tudo, e não tinha sentido um museu
novo não falar de assuntos atuais, muito embora por ser o único espaço expositivo
da cidade e ainda é de certa forma, equipado para receber qualquer tipo de
exposição ele tinha, por ser o único na terra a gente que fazer algumas
“concessões”; porque a partir do momento que a gente traz o Rodin para o Museu
de Arte contemporânea você pode dizer que tem uma concessão por conta da linha
do museu, mas o Ceará jamais poderia deixar de receber o Rodin porque o único
espaço que existia para receber o Rodin era lá, no museu de arte contemporânea,
entendeu? Eu estava até conversando com a Daniella, que é a diretora do Paço das
Artes, que é o centro de arte contemporânea em São Paulo, ela me disse se aquela
exposição do Rodin fosse oferecida pra ela naquelas condições ela teria aceito,
lógico; mas teve muita gente que me criticou, sabe? “Tá apelando, trazendo o
Rodinzinho?” foi até o Eduardo Frota que ligou pra mim pra dizer isso, e aí é melhor
ficar calado. Então o Rodin levou 75 mil pessoas para o museu, a aprtir daí pessoas
que nunca tinham ido ao museu passaram a ir ao museu, e isso é o lado político, a
política de você criar uma platéia; eu acho que ele cumpre com o objetivo quando
ele consegue trazer uma obra de qualidade e consegue fazer com que o público veja
essa obra, o museu não pode ser feito para uma elitizinha iniciada não, sabe? Ele
não pode ter como objetivo final apenas a formação de um pequeno grupo, o museu
tem que ser pensado para uma comunidade geral e quanto mais gente o museu
levar para dentro dele melhor, e ele vai estar cumprindo seu objetivo. Então
nesse aspecto eu acredito que a nossa política do museu foi vitoriosa, pra você ter
uma idéia a última exposição que foi feita no museu, até que eu fiz a curadoria, que
era “Ainda Gravura”, essa exposição levou ao museu 22.700 pessoas, uma
exposição de artistas locais, isso nem o MAM em São Paulo tem esse número. A
administração que veio depois de mim mudou completamente essa política e o
museu perdeu completamente o público sabe, pra você ter uma idéia, a exposição
mais midiática que teve no museu foi a exposição do Verger, e a exposição parece
que atingiu no máximo 15 mil pessoas; e foi porque tinha toda uma mídia pra isso.
Então o museu perdeu o público, e passou oito meses com uma exposição chamada
experimental II, depois de ter passado uns três ou quatro com a experimental I,
então durante 1 ano o museu foi entregue à experimentação. Eu acho que o museu
tem que ter um projeto pra poder vir para a experimentação, porque o museu é um
espaço de excelência, entendeu? É um espaço para mostrar trabalhos que
182
atingiram um nível de excelência; tem que ter um projeto paralelo pra isso, não tem
como um museu como o Dragão do Mar ser dedicado a isso, eu acho que isso foi
uma fantasia, uma piração que não deu certo.
AV: Fale mais sobre os critérios que você utilizava sobre as exposições que iriam
para o museu.
JG: a gente trazia exposições que tinha..., a gente misturava, artistas jovens
também, exposições que tinham um caráter mais experimental, com exposições de
grandes mestres. Então eu acho que naquele momento de formação de público e de
um museu de arte contemporânea a gente tinha que trazer os pais da arte
contemporânea, mesmo o Rodin, que é um artista do início do século passado, o
Rodin representou uma ruptura entre a escultura clássica e a escultura moderna; pra
você entender o contemporâneo você tem que entender toda essa evolução; então a
gente enfatizou muito isso, que o contemporâneo surgiu por conta do moderno, veio
a partir das rupturas que o moderno fez, então teve toda essa preocupação, teve
uma grande exposição do Le Park, e teve gente que disse que o Le Park era um
artista anacrônico, que não tinha nada a ver com o museu; olha, idiota existe de toda
espécie; um artista como o Le Park leão de ouro na Bienal de Veneza, pai da arte
cinética no mundo, onde foi uma exposição magnífica, com o melhor Le Park, e o
público foi, essa exposição deu quase 50 mil pessoas; e depois s fizemos uma
exposição que tinha que fazer uma exposição vinculada aquele Brasil 50 anos, que
eu fiz a curadoria junto com o Nelson, o Nelson foi o curador, mas toda a estrutura
da exposição quem montou fui eu, que foi aquela “Cearedescobre o Nordeste”,
então de tudo que eles ofereciam eu falei o seguinte: vamos colocar o Leonilson
como artista local, como centro da exposição de arte contemporânea, e vamos
colocar toda a história da arte contemporânea que gerou Leonilson; e o Nelson
achou genial a idéia; então era uma exposição que tinha Hélio Oiticica, Lígia Clark,
então nós fomos da arqueologia ao contemporâneo; então foi uma exposição que eu
como curador assistente eu criei todas as ligações entre o antigo e o
contemporâneo, e foi a oportunidade que muita gente teve para poder ver obras
primas da arte contemporânea brasileira, tinha os bichos da Lígia Clark, tinha Nelson
Leiner, com aquele altar do Roberto Carlos, tinha Antônio Dias com aquele coração
para receber pancada, que é um clássico; então a gente fez isso e eu acho que o
museu tem essa obrigação de mostrar para as pessoas aquilo de importante que
183
foi feito; tem que abrir para o experimento sim, mas ele não pode ter uma política
voltada pra isso; eu acho que o Ricardo Rezende ta fazendo tudo de uma maneira
ótima, ele conseguindo um acervo de arte contemporânea de primeira, agora ta
com a Carmem Calvo, que é uma das artistas mais importantes de hoje, então é
bom saber que tem uma pessoa dando continuidade a um pensamento que a gente
teve no embrião da coisa.
AV: Quando você estava à frente do museu houve alguma exposição protagonizada
por uma artista que te marcou?
JG: Olha..., de individuais..., você vai dizer, mas rapaz, você só expôs homens!
Olha, que eu me lembre de significativo teve essa exposição Ceará redescobre, que
tinha Mira Shendel, Lígia Clark, é..., quem mais?
AV: Mas individual feminina não houve nenhuma?
JG: Não. Realmente não.
AV: Existe um sociólogo chamado Pierre Bourdieu em que na obra “A Dominação
Masculina” , onde ele fala que essa é uma dominação tão arraigada na estrutura
social que as pessoas a reproduzem inconscientemente; então a pesquisa vai
demonstrando alguns dados, e por mais que a pessoa diga: “não eu não percebo
desigualdade de acesso entre homens e mulheres” mas os dados demonstram que
o grande acesso ainda é masculino.
JG: muito do que mostrei, eu coloquei na época o museu no circuito nacional, foi
uma época em que grandes exposições foram montadas por conta de certas leis de
incentivo, de projetos como da Petrobrás, que patrocinavam grandes exposições,
coloquei o Dragão e o Ceará nesse circuito, que não tinha, e também fui criticado; a
primeira coisa que a Luísa Interlengui falou no jornal foi que o Dragão do Mar na vai
ser receptáculo de pacotes prontos; mas pacote pronto o que é? é Le Park, é Rodin,
é Antônio Dias? Vovai deixar de trazer um Antônio Dias porque não foi você que
fez a curadoria de uma exposição do Antônio Dias? Então um equívoco no
julgamento, essa história de dizer que o museu tem uma cara e que o museu vai
fazer exposições dentro dele, primeiro tem que ter muita grana, é uma coisa muito
de vaidade pessoal, a pessoa diz: “há, eu vou ser o museu”, no meu caso eu queria
ser apenas um intermediário entre a boa arte e o público, eu não queria me impor
como curador para dizer que o museu tinha a minha cara não; e muito do que a
184
gente fez eram exposições itinerantes pelo Brasil e realmente não tinha nenhuma
mulher, ninguém fez por exemplo, uma exposição da Lígia Clark; e você fala será
que o Brasil tem essas mulheres? Não sei, por exemplo, eu mostrei um Joseph
Beuys, será que o Beuys é considerado junto com o Andy Warrol um dos artistas
mais importantes da segunda metade do século passado por uma questão política
machista? Será que tem alguma mulher que tenha rompido, aberto caminhos tanto
quanto o Beuys abriu? Eu acho que é legal essa sua pesquisa nesse rumo pra
gente ver isso;mas eu adoro as artistas mulheres, algumas eu acho que são super
estimadas como a Louise Bourgeuar, eu acho que ela é bem inferior ao que as
pessoas acham que ela é, sabe? É uma boa artista, mas não está no nível de outras
artistas, mas existe também uma mitificação em cima da artista mulher também, a
Louise é considerada um mito e às vezes eu acho o trabalho dela tão óbvio, tão
decorativo, então quer dizer a Beatriz Milhazes, por exemplo, que vende super bem,
será que se a Beatriz não fosse mulher ela estaria onde está? Porque você pode
dizer que ela é super decorativa, a pintura dela combina com qualquer sofá, cai bem
em qualquer decoração, os críticos adoram, consideram a pintora brasileira, então a
discussão é muito ampla; existe uma força maior que rege isso aí, existem vários
interesses, de quem decide o destino de um artista.
AV: É, a gente sabe que tem muitas forças maiores atuando nisso. Me fala um
pouco agora sobre a Bienal que aconteceu aqui no Ceaa Bienal CeaAmérica,
“de ponta cabeça”.
JG: Foi uma Bienal que foi ótima e foi frustrante porque não teve continuidade. Eu
não entendo uma política que o fazer político, vamos dizer assim, é mais forte que
os interesses da comunidade. Então veja bem, a minha intenção quando eu fiz a
Bienal que foi uma Bienal baratíssima, o Felipe entendeu perfeitamente nossas
condições financeiras e procurou fazer uma bienal de qualidade sem ter muito custo,
AV: então a bienal foi idéia sua?
JG: Foi. A gente tinha um projeto de fazer do museu um museu de arte
contemporânea latino-americana, então era a Bienal Ceará América, que englobava
as Américas, então no projeto tinha a intenção de criar um acervo de arte
contemporânea latino-americana, que a gente jamais poderia ter comprando, ?
Então os artistas vieram pra , e a intenção era que vários trabalhos ficassem para
o museu, e tinha a possibilidade da gente ficar com quinze a vinte trabalhos, que
185
seriam trabalhos importantes de artistas latino-americanos, que teriam o aval de dois
curadores internacionais, dentre eles um ex-curador de uma Documenta; isso, a
gente abriu a Bienal e saímos do museu, então quer dizer, a bienal abriu em
dezembro e o governo mudou em janeiro e mudou todo o mundo; eu conversei com
a Luísa sobre isso e não houve interesse nenhum e tudo voltou e haviam obras que
forma produzidas aqui e foi tudo para o lixo, e o houve um interesse de pedir para
que ficasse no acervo do museu; então isso é crime, é quando a política trabalha de
uma maneira contrária, e como a bienal foi idéia de um grupo do outro governo e eu
não vou me estender muito nesse assunto porque é muito comprometedor, mas o
que acontecei foi isso e a Bieanl acabou, e a Bienal aconteceu, a folha de São Paulo
deu oito matérias, as críticas foram ótimas, quem falou mal da bienal forma os
artistas locais, que não estavam lá, que também é uma questão absolutamente
mesquinha, eles reclamaram que não tinham recebido ajuda de custo; como a gente
não tinha dinheiro, quem vinha de fora era que precisava de ajuda de custo, quem ta
aqui ta na suas casa, até se tentou fazer isso, mas o que eles queriam mesmo era
tentar ganhar uma publicidade; existe uma turminha nessa geração nova uns com
talento, outros não e outros com talento mediano, que o que prejudica talvez seja o
caráter, tem muito mau-caráter que vai pra frente mas tem muita gente que morre do
próprio veneno, né? Então aquilo que houve naquela época foi uma coisa
absolutamente mesquinha; a gente queria trazer uma movimentação nas artes para
cá, seria uma coisa muito boa pra gente uma bienal a cada dois anos, mas as
pessoas vêem as coisas de uma maneira muito mesquinha e acabou! Não teve
uma segunda edição da Bienal, e isso é absolutamente ridículo; aqui tem muito de
vaidade, tem artista que muda radicalmente o comportamento, tem muito artista aqui
que é bom, que é importante e tal que de repente se ele é convidado para uma coisa
aquilo é maravilhoso, se ele não é aquilo já não presta, tem artista bom que participa
do circuito que quando da bienal Ceará América levou o curador para conhecer o
trabalho, fez toda aquela coisa de mostrar e como ele foi excluído por razões que eu
não sei, por razões de curadoria, ele passou a trabalhar contra a bienal, começou a
colocar na cabeça daquelas pessoas que estavam ao seu redor pra detonar a
bienal, isso é típico de um mau-caráter, de uma pessoa pequena, mesquinha, que
não pensa no todo, ou a arte passa por mim, ou o que tem de bom passa por mim
ou então não presta, sabe?
186
AV: a gente falou sobre o salão de Abril, sobre o Museu da Arte contemporânea,
sobre a Bienal e eu gostaria que você falasse agora sobre as políticas existentes,
sobre os editais de incentivo, sobre os centros culturais como o do BNB, como o Itaú
Cultural com o rumos, e as próprias leis de incentivo.
JG: eu considero bem positivo, em termo de Ceará, por exemplo, o que o Banco do
Nordeste ta fazendo é uma coisa fantástica, e não é porque eu usufruí disso não, eu
venho acompanhando isso algum tempo e eles estão muito bem
intencionados, agindo de uma maneira muito profissional, o próprio correio também
tem um projeto cultural similar, o Roberto Galvão ta colocando todo o talento dele
nisso e enquanto tem pessoas negativas na cidade tem também pessoas muito
positivas, que estão fazendo, tão levantando a bola, e isso é muito estimulante.
AV: Com relação à autonomia da arte e esses centros serem conduzidos por
instituições financeiras, ícones do capitalismo? Como você analisa isso?
JG: eu acredito que essa coisa do governo sair e essas iniciativas de empresas
privadas prevalecerem não é o ideal, eu acho que tem que ter as duas coisas,
ninguém pode lavar a mãos com relação a isso e o governo tem uma
responsabilidade grande.
Entrevista Ricardo Resende, em 09 de maio de 2006.
Ana Valeska: como foi a sua vinda pra cá?
Ricardo Resende: a minha vinda pra foi bem democrática, embora o conselho
que me escolheu seja todo de homens. A escolha se deu através de edital, e fui
selecionado, em uma seleção composta quase toda de homens, que eu me recorde
tinha duas ou três mulheres apenas. Foi uma maneira inédita de se escolher um
diretor de museu.
AV: como é a cara da sua gestão?
187
RR: infelizmente o museu não tinha uma política de acervos e nem uma dotação
financeira que segure a programação. Então eu tive que ser muito criativo, pra fazer
uma administração minimamente competente.
AV: Você sentiu um machismo maior no nordeste?
RR: a sociedade brasileira é toda machista. No primeiro momento houve um
deslumbramento, e agora, passado um ano eu vejo coisas que antes não via. Da
mesma forma que existe uma gentileza das pessoas, existe uma dureza muito forte,
que tem uma hora que me assusta e eu não sei como lidar, mas é uma questão
cultural, não de desvio de caráter. Mas se percebe mesmo um machismo, uma
retração. A sociedade brasileira é muito arcaica, machista, segregacionista e a
mulher, é claro, está entre os segregados.
AV: e a produção artística feminina local?
RR: se a gente olhar para a história da arte cearense a gente não vai encontrar
nenhuma mulher, você tem Raimundo Cela, Antônio Bandeira, mas os anos 2000
trazem uma produção feminina contemporânea muito forte, você vê isso muito
agora, nas premiações. Se você olhar a arte brasileira como um todo você muitas
mulheres. Mas há uma projeção muito forte da mulher hoje.
AV: quando o planejamento das exposições do museu o critério de gênero é
colocado em pauta?
RR: nunca me passou pela cabeça escolher por critérios de gênero, mas se você for
ver a exposições do museu está bem equilibrado.
Entrevista – Waléria Américo, em 12/01/2006.
Ana Valeska: Como foi que você começou a se interessar pela arte?
Waléria Américo: Essa linha narrativa às vezes é estranha quando as pessoas
fazem essa pergunta, mas desde 98 digamos que eu tenho dedicado as minhas
atenções para isso. Eu comecei fazendo cursos de pintura e de desenho como eu
acho a maioria das pessoas começa, por ter uma sensibilidade de gostar daquilo. Eu
188
tinha na família tios artistas e eu não sei se isso influencia ou não ou até que ponto é
aquela referência que todo mundo quer fazer quando se é pequeno, né, alguma
coisa aconteceu, eu não sei exatamente mapear, eu começo mesmo fazendo cursos
de pintura eu até brinco ahoje com um amigo que eu tenho que eu disse pra ele
na tima série que ele dizia que ia ser historiador e eu dizia que ia ser cartunista, e
eu acho que a minha relação primeira sempre foi com o desenho, eu desenhava
sempre e até hoje eu gosto de desenhar umas coisas meio parecidas com
animação, e daí eu fui tentar desenvolver isso, então eu fiz cursos de desenho e de
pintura, mas eu sempre achava que faltava alguma coisa, pois não me satisfazia e
os primeiros artistas que vão me interessar, dentro da linha de pintura mesmo, são
artistas que estavam quebrando com os conceitos do bidimensional pra uma relação
de rua que é a própria referência que eu tenho do Basquiat, que são artistas que por
mais que eles estejam no suporte eles estão com outra discussão, então eu fui
começando a ver como isso estava chamando a minha atenção para um outro lado e
as pessoas vão indicando, até o ponto que eu disse que eu preciso fazer uma
faculdade ou algo que me direcione melhor, e que crie uma coisa que não seja
necessariamente só do fazer e aí eu entrei na graduação em artes plásticas, terminei
artes plásticas (FGF) e dentro do processo da faculdade foram acontecendo coisas
que foram me chamando e eu começo a fazer as minhas escolhas dentro da
academia mesmo, dentro do processo acadêmico, me tocar exatamente do que é
que eu gosto e do que eu não gosto, do que é moderno e do que é contemporâneo,
do que eu quero mostrar e o que eu não quero mostrar, e eu acho que isso foi
desenrolando e eu terminei a faculdade, paralelo a isso eu trabalhava no museu,
então isso de certa forma pra mim foi uma outra formação porque eu estava dentro
do processo prático e tava vento o que estava sendo construído eu não sei se eu
me deslumbrava em ser artista, mas eu sempre gostei de experimentar várias coisas
então dentro desse processo eu comecei a mexer com fotografia, trabalhei
profissionalmente como fotógrafa, e fui adequando isso e acho que isso responde
dentro do meu trabalho de alguma forma, mas eu não sei dizer se essa coisa de ser
artista é uma escolha muito racional, é muito mais uma questão das escolhas que
vão acontecendo e elas vão se aglomerando e tem uma hora que você olha pra trás
e diz ta, eu to bem aqui, participei de várias exposições e eu agora to com uma bolsa
fora, tipo vai acontecendo como conseqüência, acho que é isso.
189
AV: Como você avalia as políticas públicas que estão aí para você trabalhar
profissionalmente? Política de editais, patrocínios e incentivos públicos e os
privados? Como você avalia isso?
WA: É, isso é meio louco porque na verdade todo mundo diz que artista independe
disso tudo, né? é uma vontade e tal, mas ao mesmo tempo isso é um grande
romantismo, porque tem uma hora que se você bota o e diz - eu vou me
sustentar disso- vo começa a criar links e parcerias, e assim, eu tive uma
experiência muito bacana que foi de estar em segmentos diferentes quando estava
na faculdade, eu estava dentro de uma organização que era o Dragão, que tem uma
ligação com o governo do Estado, que tinha uma política diferente e eu tava dentro
da faculdade que tinha outro caráter, né, ou coisa mais educacional, e que puxa
para outro viés mas que também é uma instituição, e que tem seus embates e tava
dentro ao mesmo tempo do Alpendre, que tinha uma cultura totalmente diferente,
que não tinha mais esses interesses e que parece estar mais próximos dos
interesses artísticos que é a arte pela arte, e isso foi muito formador pra mim
porque eu caí em vários embates a ponto de ficar triste quando ia pra casa, tipo eu
não quero isso, né, porque você cria algo e ao mesmo tempo para esse algo existe
você precisa dessas políticas, então eu não sou uma pessoa radical, isso é pra dizer
que eu não sou uma pessoa radical que acha que você simplesmente é artista
porque quer ser, é, realmente se você quiser ser independe, mas se você quiser
viver e se sustentar disso você vai ter que se relacionar, e aí a gente cai na
sociedade, e aí esse tipo de relação é a que eu procuro preservar pelo menos dentro
do meu caminho de uma maneira mais clara e mais profissional possível, tipo: um
edital que eu ache interessante, vale a pena, entendeu, um edital que eu ache
que não é interessante, eu não participo, eu nem entro, porque entrar simplesmente
por estar no olho do furacão, por estar aparecendo não me interessa, acho que foi
isso o resultado que eu criei dessa experiência toda, então precisa existir o mínimo
de respeito e fazer as parcerias porque quem quer algo em troca e você também
ta dando e quer algo em troca, então essas relações elas precisam ser no mínimo
sadias, então dando nome aos bois e sendo mais claros, por exemplo existem vários
salões no Brasil inteiro o que me interessa são os que dão pró-labore para os
artistas, que são as mínimas condições para eles criarem e mandarem suas obras,
em muitas situações a sua obra ultrapassa aquilo, mas se você quer arcar e acha
190
que aquilo é coerente, você tem um poder de escolha dentro, ta entendendo? É
meio que uma postura de que lugar você vai se inserir mesmo, tipo, todas as
instituições tem problema de grana, e todo mundo tem problema de grana, e nunca
é do jeito que a gente quer, então eu estou dentro de outro programa que é um
programa nacional, que é a bolsa Pampulha, e ele poderia ser melhor, mas a
oportunidade que ele do artista de ficar produzindo com seu tempo e tendo seu
tempo para a produção, e recebendo pra aquilo, a gente vendo numa proporção de
Brasil também é vantagem, então assim, não vai existir esse lugar perfeito, eu não
sou uma artista que briga por esse lugar perfeito, eu tento me inserir nos lugares que
eu acho que vale a pena, onde eu posso ir até ali, ou então eu digo não esse eu não
topo porque é perca de tempo no sentido de que vai ser muito mais cansativo, vai
me tirar muito mais energia do que receber, então eu procuro ser maleável, eu
procuro estabelecer uma relação de troca. Agora nos editais que estão eles tem
que ter cuidado no sentido de que não é dinheiro que resolve as coisas, e não é
também boa vontade que resolve as coisas, elas precisam trabalhar de uma
maneira..., eu fico pensando no profissionalismo, artista é pra tratar com pessoas
que sabem de arte, não é pra tratar simplesmente com pessoas que tem interesses
econômicos ou comerciais, as pessoas que tem interesses econômicos e comerciais
elas tem que fazer parte de uma equipe para as coisas funcionarem, elas devem
fazer parte dessa grande equipe, mas elas tem que estar em uma outra margem,
então quando tem um perfil mais ou menos com essas características em que as
coisas se dividem, você tem uma produção que você pode escoar, mas que você vai
ter que fazer isso a seu favor, mas que tem outra pessoa que vai cuidar mesmo
desse marketing que sempre vai existir, que é a venda, que é também o que faz o
trabalho existir e o artista também existir, que as instituições estão apoiando, mas
elas também estão fazendo a sua propaganda, então eu acho que isso é normal, na
minha cabeça, é normal e eu acho que na verdade eu acho que o artista tem que ter
uma postura de saber o que quer, e você vai escolher os lugares em que você vai
querer trabalhar, acho que é por aí, é uma questão de escolha.
AV: Em algum momento você sentiu dificuldade, preconceito ou discriminação pos
sua condição de mulher artista?
WA: Não, Valeska, eu nunca me deparei com uma situação assim não, que eu me
lembre, por ser mulher, o. Inclusive as mulheres estão em alta nas artes, a gente
191
tem uma porrada de artistas que estão produzindo, tem uma porrada de críticas,
curadoras, de mulheres interessadas, as bienais por é mulher, o Itaú cultural
teve uma banca de mulher, e eu não vejo, eu sei que historicamente se você
pegar e ver que existe um processo que acontece nas artes mas também acontece
em todas as escalas sociais também, então elas estão tendendo a ficarem mais
abertas, mas eu nunca tive nenhum problema, agora que na lista é muito mais
homem que mulher sempre é, se a gente fala de números..., uma bolsa que é para
dez pessoas três são mulheres, três ou quatro mulheres, então sempre é assim, é
uma minoria, mas isso é fato, assim, então eu acho que é você que responde esse
outro lado mais abrangente.
AV: Quais as principais exposições que você participou?
WA: Dragão do Mar, eu participei da Ainda Gravura, que foi uma exposição para a
gravura, eu considero a intervenção que eu fiz no Alpendre no projeto Parede muito
importante, porque eu acho que o Alpendre me deu esse subsídio que eu precisava,
e me deu essa discussão posterior que eu precisava, que eu acho que quando você
faz uma exposição você precisa não mostrar e ter uma festa, faz um vernissage
e isso se acaba, então eu acho que é um lugar importante em que eu apresentei
esse trabalho, que o grupo de estudos depois discutiu isso, participei de outra
exposição no Dragão que eu acho que foi legal que foi a Experimental, e vou
participar agora do Itaú cultural, to no Rumos e to no projeto da bolsa Pampulha
para apresentar exposição, e dia19 a gente abre uma exposição no Dragão de novo,
que é o lugar que mais funciona nessa cidade, que é dentro do II edital da Secult de
incentivo à cultura, que eu acho que está sendo uma experiência muito bacana
também, que é uma hora que você arca com tudo, você faz as coisas do jeito que
você quer, você recebe uma grana pra fazer a exposição e você escolhe com
quem você quer trabalhar, que eu acho que está sendo um puta amadurecimento, a
gente ta arcando com tudo do jeito que a gente quer, então a gente vai ter que se
responder agora.
Entrevista com Cecília Bedê em 20/12/2005
Ana Valeska: Como foi o seu despertar para as artes visuais?
192
Cecília Bedê: Primeiro começou em casa, minha mãe pintava, era artista plástica
(Ana Beatriz Bedê) e sempre convivi muito com música, com esse ambiente artístico
bem presente o tempo inteiro e gostava muito de pintar e tinha um interesse que eu
ainda não sabia direito o que era e depois fui crescendo e meio que ficou apagado,
sabe, estudar, vestibular, esse tipo de coisa me parecia que não existia uma forma
de aliar isso a uma profissão ou a algum estudo mesmo para se ter um meio de vida
e foi aí que apareceu a faculdade que eu comecei a fazer que já foi um pouco depois
eu cheguei ainda a cursar um ano de outro curso, terapia ocupacional, e aí eu
comecei a perceber que eu estudava, mas parava para pintar ou para ler algum livro
de arte e aí descobri que existia a faculdade e fui atrás.
AV: Em qual ano você ingressou na faculdade?
CB: Foi em 2003 e me formo no ano que vem (2006).
AV: Qual a tua idade?
CB: Vinte e dois.
AV: Me fala um pouco como está a tua profissão como artista hoje, como você se
considera? você se considera estudante, você se considera artista, o que você
vislumbra para o seu futuro?
CB: Eu ainda não assumi um papel que não seria uma coisa irreal, mas eu não
poderia dizer que eu me considero artista eu ainda sou uma estudante e acho que
isso acontece naturalmente, estou estudando e estou produzindo para isso, mas eu
acho que por enquanto eu ainda sou estudante e pretendo ainda ser por muito
tempo, mas assim as perspectivas são essas, de repente também partir para uma
outra área, uma área mais acadêmica, uma área de museu mesmo, eu também
tenho muito interesse, que para mim seria ideal que a minha produção artística seria
um paralelo à uma outra função a uma outra profissão dentro do meio cultural, acho
que seria mais legal para mim porque eu teria uma produção mais livre, mais natural,
assim não teria que estar produzindo para vender ou para poder estar na mídia, mas
assim ter um trabalho fixo também no meio artístico, mas também poder fazer meus
trabalhos livremente.
AV: Você considera que existem diferenças de oportunidades para o homem e para
a mulher no que se refere a viver exclusivamente do seu trabalho artístico?
193
CB: Eu nunca parei para pensar essa questão, mas eu acho que não, acho que hoje
em dia tudo mais igual, apesar que eu acho que a mulher talvez seja um pouco
mais sensível pra perceber o mundo de uma forma geral e então talvez eu acho
que a mulher tem mais probabilidade de ser uma artista do que um homem, sei lá,
foi uma coisa que eu pensei agora, mas assim em termo de espaço, de
oportunidade, nesse meio eu acho que igual acho que não tem muita diferença
não, pelo menos hoje em dia, que é o que eu observo, as pessoas que eu observo,
não sei como era uns tempos atrás, eu acho que existiam mais homens a uns
tempos atrás.
AV: Você percebeu se o museu de arte contemporânea alterou a compreensão das
pessoas sobre o universo artístico?
CB: Eu acho que falando de Fortaleza não tem nenhum preparo das escolas ou até
o pessoal da universidade poderia apoiar um pouco mais isso e pelo fato de eu
trabalhar no museu que as pessoas entram meio sem saber onde estão e quanto
mais saber que aquela coisa que ta ali parada pode lhe dizer alguma coisa então
acho que falta assim muita deve-se abrir a oportunidade para gostar de arte desde
criança, como eu que gostava, travou, e fui descobrir depois, muitos anos depois e
isso era para ser uma coisa que se a criança tem a afinidade ir desenvolvendo na
própria infância que é muito legal se tivesse a oportunidade de conhecer.
AV: O Museu de arte contemporânea mudou a produção dos artistas locais?
CB: Eu acho que não o museu mas várias outras instituições que começaram a
abrir espaço para profissionais que estudam essa área de arte contemporânea
essas pessoas sendo jurados de salão, lugares como o Alpendre, com professores
que estão mais inseridos nesse campo, agora o que eu percebo muito é que o
museu de artes visuais causa muito impacto e geralmente quando uma escola sai
daqui que a gente monitora a gente percebe que dá uma balançada assim, dá uma
mexida legal e o que eu percebo também é que a produção cada vez maior,
talvez essa abertura de espaço esteja causando isso, aporque essa abertura faz
com que a gente conheça melhor e saiba que existe, que em todo lugar ta
acontecendo e aqui tá acontecendo agora.
194
AV: Com relação às políticas blicas como você avalia o investimento na área da
cultura e das artes, essa tendência baseada na política de editais, como você avalia
isso?
CB: Eu acho que os editais ajudam muito, de uma certa forma é um incentivo porque
você acaba produzindo mais, você acaba criando um portfólio ou uma prática de
escrever sobre seu trabalho, mas assim tambémisso não funciona, acho que não
sei como explicar isso mas deveria haver uma coisa constante e o você estar
sempre procurando, acho que os editais deveriam ser um complemento de uma
coisa que seria normal todo mundo aqui no seu atelier trabalhando e ganhando em
cima disso agora como fazer isso eu não sei.
AV: Me fala um pouco da tua produção artística.
CB: Participei do Salão de Abril de 2004, foi a primeira exposição com uma maior
visibilidade, com o trabalho pontos são fotografias de sinais de pele e participei de
várias exposições mais alternativas no Alpendre, na própria faculdade, organizada
pelos alunos, pelos professores, e agora uma individual no BNB, o mesmo trabalho
do salão de Abril foi para uma exposição no Maranhão que eu achei isso legal, e a
do BNB que está em cartaz que também foi assim uma oportunidade bem legal de
partir para uma coisa maior com imagens maiores, com uma experiência em
montagem, em curadoria, e também teve uma coisa legal que aconteceu foi o
mapeamento do Rumos (Itaú) que apesar de eu não participar da exposição o meu
portfólio foi visto e foi arquivado poucas pessoas daqui de Fortaleza foram, mas
foram três, cinco foram selecionados e não para mim mas para os artistas de
Fortaleza em geral é uma coisa muito boa porque mostra que tão olhando pra e
que tem qualidade para sair também. Para mim que participei basicamente de duas,
três exposições grandes foi uma surpresa não esperava e me estimulou a fazer
mais, a continuar.
Entrevista com Nice Firmeza, em 21 de junho de 2006
195
Ana Valeska: Como foi o teu começo na arte?
Nice: Eu estudava num colégio de freiras, em Aracati, e elas ensinavam cópia e
eu gostava mais de criar meus desenhos e elas diziam que eu tinha um defeito
visual (risos). E aqui eu fui morar na Jacarecanga, e eu tive uma sorte grande
que o João Maria Siqueira que era da SCAP e era professor, o apartamento dele era
vizinho ao meu, e eu estava olhando a saída de uns operários de uma fábrica,
pelejando para fazer um quadro, eu estava dentro de casa, só uma janela aberta, ele
passou e disse assim: - você gosta de pintar? Gosto, tenho muita vontade; e ele
disse assim: olhe, eu sou professor da SCAP e vai haver uma reunião e eu vou fazer
uma proposta para eles fazerem um curso livre de desenho e pintura, para as
pessoas que tem vontade de aprender. E eu fui a primeira aluna inscrita no curso.
Em 51 eu expus como aluna. De 51 em diante enquanto a SCAP foi SCAP eu
participei.
AV: quantas mulheres participavam?
Nice: Na primeira turma que funcionava embaixo do Bar Americano que hoje em dia
é uma farmácia, na praça José de Alencar, eram só três o resto tudo era homem, era
a Nísia, que era filha de um comandante da força aérea, Eu, e uma menina que
trabalhava na prefeitura éramos só nós três, o resto tudo era homem.
AV: que eram poucas mulheres na época, como sua família reagiu, que ser
artista não era uma coisa comum?
Nice: naquela época eu tive duas decepções na minha vida, a primeira porque eu
queria fazer teatro. Eu cheguei a fazer ainda 7 peças quando eu estudava no Santa
Maria. Eu era louca, louca pelo teatro. Então, meu irmão não morava aqui, eu estava
na casa de um tio, quando meu irmão veio para perguntou: - cadê Nenê? Me
chamava Nenê, e meu tio disse – há você não sabe não? Hoje ela está se
apresentando. Eu estava fazendo um papel que meu nome era o nome do papel.
Minha família era muito católica e a minha mãe não tirava sobrancelha, e a peça que
eu fazia era uma mulher muito sofisticada, quando ele chegou nem me reconheceu,
fizeram uma sobrancelha bem fininha, olha, ele ficou doido, me tirou do colégio! Olhe
eu sofri muito, eu era louca pelo teatro. Quando a gente sobe no palco é outra vida.
Naquele tempo era muito censurado, diziam que as moças artistas iam para o
196
cabaré com os rapazes, mas era tudo mentira, nessa época, anos 30, a coisa era
muito rígida.
AV: como foi então para entrar para a SCAP?
Nice: Ele também não queria. Meu pai já tinha morrido, e ele tinha ficado na direção,
foi preciso minha mãe intervir. Ela disse para ele: olha, você atrapalhou muito a
vida dessa menina, não faça a segunda vez. ela agora vai fazer o que ela quer. E
ele começou a reclamar que eu fazia gastar, era dinheiro pra tela, dinheiro pra
tinta, e eu pensei: vou arranjar emprego. Era outra coisa que naquela época
ninguém queria. E aí eu fui pro dentista e peguei o jornal e tinha dizendo que a
Telefônica tava precisando de funcionário e estava fazendo testes. Olha eu nem
esperei que o dentista me atendesse, corri pra lá. E ligaram da telefônica dizendo
que eu tinha conseguido o emprego. eu disse para meu irmão: Vou trabalhar na
Telefônica, amanhã às 07:00hs. E ele disse: o vai não! E eu disse: desta vez eu
vou para poder comprar minhas tintas, meus pincéis e minhas telas. E minha mãe
disse: ta muito certo, vá. E ele não interferiu mais, mas ele disse: a partir de hoje
você vai se vestir, pagar ônibus, tudo com esse dinheiro que você vai ganhar.
AV: então a senhora estudava na SCAP e trabalhava...
NICE: é a aula na SCAP era à noite. O Campos dizia assim: Nice você tem muita
coragem. Um dia um sujeito, um barbeiro, porque naquela região era comércio,
perguntou ao Campos: eu posso levar a minha também pra lá? Achando que era
outra coisa, sabe? O Campos disse: não! Ali não é o que o senhor está pensando
não, ali são umas moças que estudam arte. Acho que é porque ele via homem
né? Só tinham três mulheres.
AV: como era a vivência na SCAP?
Nice: era muito bom. Tinha uma coisa diferente que hoje não tem. Ninguém
criticava ninguém, e quando falavam era pra melhorar e a gente achava bom,
porque queria melhorar. Hoje em dia não é mais assim, a pessoa pinta o primeiro
quadro e quer ganhar um prêmio. Mas era muito bom, muitos amigos... e eu
conheci o Nilo (Estrigas) na SCAP, só que ele entrou depois de mim.
AV: As duas moças que estudavam com a senhora continuaram com a carreira?
197
Nice: quem continuou fui eu e a Heloísa (Juaçaba). Do tempo da SCAP, de
mulher ficou nós duas. O tempo da SCAP foi um tempo muito bom. Eu o
senti mais porque quando nós casamos nós viemos para o Modubim e fundamos o
mini-museu. E aí vinha muita gente visitar, os artistas sempre vinham por aqui.
AV: quando acabou a SCAP houve um período de pausa e depois foi fundada a
Centro de Artes visuais casa de Raimundo Cela, o que a senhora acompanhou
desta época?
Nice: inclusive a Heloísa foi uma das grandes batalhadoras disso. A Raimundo Cela
deu bons artistas.
AV: quanto tempo aqui funcionou como museu?
Nice: nós moramos aqui há 46 anos. 35 anos nós passamos atendendo tudo que era
de colégio infantil, vinha ônibus lotado de criança. Os meninos chegavam aqui e
saiam sabendo quem eram os grandes artistas do Ceará, a gente passava muita
informação de arte, porque não adiantava entrar no museu e sair sem saber de
nada.
Entrevista Maíra Ortins em 01/02/2006
Ana Valeska: Maíra como foi que nasceu eu interesse pelas artes plásticas?
Maíra Ortins: Eu comecei a trabalhar com artes plásticas ainda pequena, tinha uma
irmã que tinha um dom muito forte, ela trabalhava com desenho, com pintura, mas
nunca tinha ido a uma escola de arte, e isso despertou em mim um interesse. No
começo eu queria mesmo era apreciar a obra porque eu me achava até incapaz.
pelos 12 anos em uma arte de educação artística, eu inclusive não era uma das
melhores alunas, eu tinha esquecido um dever de casa, que era uma figura, e a
professora falou bem brava que quem não tinha trazido ia tirar menos um, uma coisa
assim... e eu malandra, né, peguei um caderno que tinha uma obra de arte e
mostrei pra ela, ela disse: mas isso é a capa do seu caderno, e desde quando
você sabe desenhar? eu disse professora eu sempre soube a senhora é que
nunca percebeu... e aí eu comecei a fazer e quando eu terminei eu percebi que
198
tinha feito um trabalho e tomei um susto pois eu nunca pensei que eu pudesse
desenhar. Desde esse dia ahoje eu trabalho com arte, eu tava nessa época com
uns doze anos. Então quando eu estava com uns quatorze anos eu fui tentar uma
bolsa na escolinha de artes do Recife, passei três meses tentando e consegui a
bolsa, depois de muita insistência. eu conheci um professor de escultura em
argila que tinha vindo da Holanda, eu brincava, fazia alguma coisa com barro, mas
não tinha ainda muita consciência do meu talento para escultura, consegui também
uma bolsa para esse curso e passei uns dez anos fazendo escultura no Recife.
eu vim para Fortaleza em 1998, deixei a escola de arte e fui embora. Vim, passei
dois anos praticamente parada porque estava estudando para o vestibular. Quando
eu entrei na UFC, no curso de Letras, quando eu chego na UFC, coisa de umas
duas ou três semanas antes de começar minhas aulas, eu conheci Pedro Eimar, no
museu da UFC, eu estava visitando uma exposição que era de Eduardo Frota e de
uma artista alemã, na entrada do museu tinha umas telas de Antônio Bandeira, foi
quando eu comecei a retomar de novo meu trabalho, aí eu percebi que tinha uma
pessoa atrás de mim, e ele perguntou se eu estava gostando da exposição e eu
disse é, gostei, mas o que eu mais gostei foi do trabalho desse rapaz aqui da frente
(Antônio Bandeira), o Pedro Eimar achou muita graça. Então ele perguntou o que
é que eu fazia e eu disse que trabalhava com escultura, e ele me perguntou se eu
sabia trabalhar com talha em gesso, e eu disse que sabia, sem saber, mas ele me
disse que ia me arranjar uma bolsa no museu, e o meu sonho era trabalhar no
museu. ele me deu o material, o gesso e me pediu para fazer uma escultura
daquilo, e sem saber direito o que tava fazendo fiz a escultura e ele gostou!
ganhei a bolsa e comecei a trabalhar, nessa história eu passei dois anos e meio no
MAUC, e aconteceram muitas coisas interessantes lá, montei várias exposições.
Então descobri a gravura, uma amiga minha me disse que estava havendo um curso
no Dragão, em 2001, com o Eduardo Eloy. O meu primeiro contato nem foi bom, a
madeira era verde, era muita gente, e uma confusão só. Como foi então que veio
aquela vontade de fazer gravura: foi João Pedro, um xilógrafo bem popular de
Juazeiro, chegou com um taco de umburana, que é super macia, lixada, tratada e
jogou pra mim: toma aí, se você faz alguma coisa, peguei uma ferramenta
bem amolada e comecei, em cinco minutos eu fiz uma gravura, quando ele virou as
costas eu estava imprimindo, foi a partir daí que começou a minha pesquisa com
madeira, com gravura, foi a partir disso que Nauer Espíndola chegou na oficina,
199
achou interessante meu trabalho e disse: Maíra, manda esse teu trabalho pra um
salão, mandei pra Varna, que eu não sabia, mas era a terceira bienal de gravura
mais importante do mundo, e eu botei o trabalho sem fé, um ano depois eu recebi o
catálogo e eu tinha entrado na bienal, e depois disso eu descobri que tinha entrado
em todos os salões que eu tinha mandado, que foi no ano de 2003, eu mandei para
treze salões e eu entrei em todos, depois disso, fiz a bienal daqui com o Nauer,
conheci Maria Bonomi, que foi uma pessoas muito importante pra mim, que me
chamou para fazer um projeto, devo estar indo em São Paulo em março para fazer
esse projeto com ela, e tem Evandro Carlos Jardim que viu meu trabalho numa
oficina que ele veio dar aqui e elogiou bastante, me escreveu, e agora estou aqui na
Galeria Antônio Bandeira tentando desenvolver um trabalho legal porque sempre
tive paixão por essa coisa da instituição, porque eu sempre achei que o artista tem
que estar ligado a isso, e as instituições públicas são fundamentais, são
fundamentais nesse processo, eu digo isso porque quando eu comecei a freqüentar
a escola de arte eu comecei a ver arte de uma maneira diferente, não de uma
maneira ingênua, eu não acredito na maneira autodidata, porque se você pesquisa e
lê sobre outro artista ele já está lhe ensinando.
AV: Maíra você falou na sua paixão pelas instituições e na necessidade que você
sente dos artistas manterem esse contato com as instituições, agora nem sempre
esse contato é muito fácil, você relatou um acerta facilidade de ingresso, mas nem
sempre isso se dá assim, nem sempre o acesso é fácil para os artistas, por inúmeros
fatores, como então vopode analisar meios que favoreçam a participação dos
artistas nas instituições? O próprio museu da Federal, o museu do Dragão, e outras
instituições que se encaixem nesse perfil?
MO: Eu acho que a primeira coisa que tem que acontecer é que o artista tem que ser
não é esperto nem desenrolado, é maduro. O artista tem que ter um
amadurecimento, pra falar, pra agir, pra olhar, eu já tive dissabores, muitos, é que eu
não contei, mas no próprio Dragão do Mar com o José Guedes, ele é muito
arrogante, extremamente arrogante, e eu acho que a pessoa que trabalho dentro de
uma instituição, e é assim que eu sou, não deve ser assim, porque às vezes você
está lidando com uma pessoa relativamente ingênua, jovem, e você tem que
entender que é um processo de vida, ninguém nasce com 100 anos, se fosse assim
não teria nem graça o mundo não mudaria nunca, então eu acho que uma pessoa
200
que trabalha com instituição tem que ter essa visão, mas infelizmente não é assim
que acontece, mas no momento agora tem uma pessoa que trabalha no Dragão que
é o Ricardo Resende que é uma pessoa que tem essa visão, se eu não estivesse a
frente de uma instituição eu teria levado meu portfólio e ele com certeza teria
olhado, ele olha de qualquer pessoa e mesmo que ele não se interesse pelo trabalho
ele lhe atende, ele lhe trata bem, e uma das maneiras de você ser visto ou ser
percebido por uma pessoa que está à frente de uma instituição é você ter um
mínimo de amadurecimento, porque o que acontece muitas vezes é que o artista até
tem talento, o trabalho dele é interessante mas ele não tem noção do que é o mundo
da arte, e o mundo da arte não é ingênuo, não é bobo, não é tolo, pelo contrário,
muitas vezes ele é perverso, cruel, você tem que ser esperto, muitas vezes você tem
que ser amalandro, tem que saber jogar, é um jogo, a vida é um jogo, e o artista
tem que se dar conta disso, eu to fazendo esse trabalho aqui e o que eu quero
alcançar? O que eu pretendo alcançar com nisso? Essa é uma formulo que eu tento,
porque em todas as vezes que eu fui muito ingênua eu consegui as coisas pela
persistência, mas não por outra coisa, e eu percebi que com o tempo a gente vai
amadurecendo e vai aprendendo outras coisas e vai percebendo que de outras
maneiras você consegue chegar mais longe,
AV: Maíra você falou que o mundo da arte não é ingênuo, então eu te pergunto, para
as mulheres, como você sente o mundo da arte para as mulheres? Porque a
participação feminina ativa, como artista, se a gente olhar num contexto histórico é
um fato recente, até então a mulher era representada através de um olhar
masculino, e aos poucos as mulheres foram se inserindo nesse espaço e hoje isso
aumenta cada vez mais, então como você percebe essas mudanças, como você
percebe a participação feminina? Você alguma vez sentiu na própria pele ou viu na
atual circunstâncias ainda alguns resquícios de discriminação por ser mulher e
artista?
MO: Sem dúvida muito. Porque o que acontece quando alguma artista é elogia
“Olha, essa alma quer reza”, às vezes eu fico me questionando se fosse um homem,
se fosse uma mulher fazendo um comentário sobre um artista homem ninguém diria
isso, mas comigo por exemplo isso sempre acontece, eu lembro que eu sempre tive
uma amizade muito grande com o Nauer e a gente fez junto o evento da Bienal e
todo mundo falava “mas o que que você quer com essa moça?” até uma vez
201
Eduardo Frota comentando com Nauer, logo no começinho do meu trabalho ele me
dando chance, fez uma exposição comigo na Aliança Francesa, e foi uma
exposição que deu o que falar porque todo mundo achava que eu era uma artista
idosa,
Isso se porque quando a sociedade incorpora, absorve a mulher como artista é
quando ela ta velha, porque ela tem uma carreira e também se ela vem de fora,
porque mesmo quando ela é idosa e lea permanece no seu lugar, ela não passa de
uma senhora que faz um artesanato ou um trabalhosinho interessante, então ela
precisa sair, ela precisa ser perfeita, excepcional, para ela ser considerada boa, ela
pode ser até muito mais, mas as pessoas dizem “é boa”. Quer ver um exemplo?
Sinhá D’amora, que foi uma mulher extremamete forte, importante, mas o que é que
hoje Sinhá D’amora representa para a história da arte no Ceará? Nada. A única
coisa que ela tem é um memorial decadente na prefeitura, isso que ela tem, e as
pessoas que a conhecem são pessoas que conviveram com ela, ainda é uma
memória ligada a coisa doméstica, o se diz eu reconheço o trabalho de Sinhá
D”amora como reconheço o trabalho de Antônio Bandeira,
Que eu nunca vi, mas que tem um trabalho importante no mundo todo, Sinhá
D’amora também é, que ela era mulher, eis o problema, se Sinhá D’amora fosse
Senhor D”amora a coisa mudava totalmente, ahoje os papas da arte no Ceará
que surgiram na década de 50, 60, são homens, os nomes que ficaram são todos de
homens, de mulher não tem, sempre aquela coisa do deboche, Dona Heloísa
Juaçaba é considerada a madame, a madame que fazia algumas coisas
interessantes, não estou questionando se ela faz ou não faz, o que estou dizendo é
que surgiram diversos pupilos e madamos na mesma época que ela e ninguém fazia
esse tipo de comentário, ninguém tem coragem de dizer: fulano tem tantos anos e
faz um trabalho medíocre, então eu ainda acho muito difícil, ainda hoje eu acho
muito difícil, no Brasil então nem se fala, a mulher sempre quando entra num grupo
de artistas geralmente tem muito mais mulher fazendo arte hoje mas quem
consegue com mais facilidade a fama e o respeito é o homem e não a mulher,
AV: E aqui no Ceará?
MO: Aqui no Ceará é pior ainda, aqui no Ceará você tem que passar pelo fatal teste,
primeiro você tem que ser, as vezes eu acho meio complicado as coisas aqui, se
você já é uma mulher de uma certa idade, com filhos, todo mundo olha com pena “ai
202
meu Deus, vai terminar aquela faculdade, vai fazer umas besteiras, vai participar de
um salão da Unifor, vai fazer umas coisinhas, de vez em quando entra no salão de
Abril por um surto que ela teve, mas nunca vai ser considerada artista, “Ave Maria,
essa mulher abre a boca pra falar besteira, ou então diz assim, nossa não é que
aquela senhora faz uns trabalhos interessantes?” Aquela senhora, não é aquela
artista, aquela pessoa, ou seja, ela ainda é a mãe, ela não é a artista, ela é a mãe de
tantos filhos, casada, e não pode sair à noite pra ir a uma exposição porque o
marido não deixa, a mentalidade ainda é essa, e quando ela é jovem lascada,
porque é o seguinte: os artistas homens que não se interessam por mulheres não
vão dar chance a ela porque não tem nenhum interesse nela, os que se interessam
vão dar chance, mas ela tem que passar por aquele crivo, não passou não, então tu
não presta, então pra que que tu me serve? E mesmo quando ela tem um trabalho
bom e ela tem coragem de passar por tudo isso ela é vista com despeito, com
discriminação, e aí vem o fator que eu te falei também que é o da idade, sempre tem
isso “Essa menina? O que é que essa menina ta fazendo aqui?” eu lembro que uma
vez na Bienal quiseram fazer uma crítica por conta de uma pessoa que não foi
colocada daqui da cidade e o ponto que tocaram em mim, não falaram do meu
trabalho, não querendo me gabar nem coisa nenhuma, mas a pessoa tava a fim de
me ferrar, se ela tivesse visto alguma coisinha que eu tivesse feito que
desagradasse na gravura ela iria falar, o que é que ele falou que foi esse crítico, que
foi Airton Monte, ele me chamou de debutante, de mocinha, aquelas bobagens, que
eu era apenas uma sombra, e é isso muito o que acontece, quando a mulher é
jovem e ela tenta se afirmar nas artes acontece isso e também existe a fugacidade
do tempo, vamos dar o exemplo de Milena, que agora todo o mundo está
comentando porque entrou no salão da Bahia, que é um salão super respeitado,
muitas vezes eu percebo um olhar desconfiado: Será que ela vai adiante? Porque o
que eu percebo que acontece é que a mulher mesmo tendo talento e fazendo, a
própria via e a estrutura da sociedade brasileira faz com que ela pare no meio do
caminho, porque vem as obrigações do casamento, filhos, condição financeira, de
estrutura familiar que impedem dela seguir sua carreira artística,
AV: Devido ao histórico de discriminação e preconceito e de desigualdade, uma das
políticas é a da reserva de um percentual de presença feminina no parlamento e das
203
cotas pra os negros, como você a questão da existência de cotas para mulheres
em exposições e salões públicos?
MO: eu acho que não tem sentido. Porque homem ou mulher quem faz a diferença é
a sociedade e as conveniências dela, essa questão de botar cota para mulher é
uma maneira de dizer que ela não é artista, ela é mulher, então isso aumentaria o
estigma, é como se a mulher o fosse capaz de concorrer com o homem, e isso é
bobagem, isso é balela, isso o existe, o que tem que mudar é a mentalidade das
pessoas e não as leis, as leis estão para serem cumpridas, é livre, qualquer
pessoa pode se inscrever, então o que tem que se mudar é a mentalidade das
pessoas,.
AV: Maíra e com relação às políticas? Existem as leis de incentivo à cultura, tem a
política de editais, além de uma inserção muito grande das instituições financeiras
como patrocinadoras da cultura, essas políticas funcionam? O que seria interessante
para o poder público e para as instituições privadas fomentarem em arte? Uma
política que não há bolsas para os artistas o que proporcionaria a chance dos
artistas não terem que fazer tantas atividades paralelas?
MO: Eu acho essas políticas frágeis. O que é que eu vejo acontecer muito, o artista
viver de salão, por exemplo, o que é uma bobagem, o que é que está acontecendo
com os artistas no Brasil e no mundo todo, eu acho que a arte tem entrado nessa
questão de mecenas e de apoio numa decadência, no ponto econômico que eu digo,
vamos chegar num exemplo: como um artista hoje produz um currículo? Pelo
número de salões que ele entrou, isso é bobagem, não é isso que vai definir se o
seu trabalho é bom ou ruim ou se ele vai perdurar. Então essa questão de bolsa é
muito escasso e não é aqui, aqui principalmente, o BNB tem um projeto muito
interessante, mas do que me vale fazer uma exposição no BNB e depois acabar
tudo? Tem todo o meu processo criativo, é preciso parar, ter maturidade para
mandar o projeto, precisa de tempo, e para ter esse tempo eu preciso de dinheiro!
Ninguém vive de lua, então você precisa de alguém que lhe apóie, que lhe
subsídio para isso. Então o que é que o artista começa a fazer? Atividades
paralelas, vai ser professor, vai decorar, vai trabalhar em eventos, eu conheço gente
em São Paulo que até fazer cenário de peça teatral faz, então é um trabalho que é
pesado, dura meses as vezes o cara fazendo aquilo, então todo esse tempo em que
ele desvia do processo criativo dele tem seus efeitos, então é isso o artista gasta
204
tempo em dinheiro para fazer seu trabalho e essa arte não é vendida e não é
divulgada, e a pessoa consegue se afirmar dentro de um pequeno e seleto grupo
de artistas dentro de salões, tudo isso é muito fugaz isso não funciona, as leis de
incentivo não funcionam, principalmente se não se mudar a mentalidade das
pessoas. tem um edital e se chama três pessoas para compor uma curadoria e o
critério ainda é doméstico, se escolhe e se chama para participar por simpatias, tem
o caso da Interlengui, ela foi participar da curadoria do salão do Pará e o que foi que
ela fez? Ela ligou para as pessoas que ela conhecia aqui e disse: gente manda, que
eu to entrando na curadoria. Isso é uma postura ética? Agora quem idealizou esse
salão não pensou nisso. Como mudar isso? Mudando a mentalidade das pessoas,
mas é preciso muito tempo pra isso, precisa de educação. E não é no campo da
cultura que não existe ética na sociedade, a ética não é cobrada, moralismo sim,
isso é, o que é certo e o que é errado, moralismo, ética não, ética a gente faz por
uma questão de consciência, pra eu ter ética eu não preciso ter religião, eu não
preciso ter medo, se eu tenho uma ética eu vou seguir essa ética independente de
eu ganhar ou não um prêmio no final, porque é a minha consciência que me diz o
que eu deve ou não devo fazer. É isso que falta nas pessoas, principalmente no
Brasil, que é um país que teve uma base de educação de jesuítas, em que o peso
moral é muito mais forte que o peso ético, vai aparecer esses furos em tudo, na
questão da arte, na questão da mulher, falta ética para a sociedade absorver a
mulher no mercado de arte, o que é que falta? Ética.
AV: Me fala sobre as perspectivas de futuro.
MO: Eu sou bastante otimista, sempre fui, se não fosse tinha abandonado. Eu
acho que as coisas tendem a melhorar no Brasil. Principalmente no campo das
artes, porque o Brasil é um país relativamente novo, e a arte no Brasil ta
engatinhando ainda. Nós tivemos grandes artistas e teremos mais. Eu acredito que a
América Latina vai ser o grande pólo das artes no Mundo. Porque a Europa deu o
que tinha que dar, então a Europa agora está bebendo com a América Latina, nas
artes visuais, na literatura, na dança, América Latina, porque a América Latina
é a globalização ana carne, existem muitas coisas que precisam ser melhoradas,
mas no geral e para as mulheres também, existem mulheres artistas entrando em
salões importantes, sendo respeitadas, as pessoas estão começando a ser
205
educadas de uma outra maneira, com uma outra visão, e eu acho que isso tende
a melhorar.
Entrevista Milena Travassos em 12/01/2006
Ana Valeska: Como foi que tudo começou?
Milena Travassos: sempre gostei de arte, não das artes plásticas, parecia até
uma coisa meio esquizofrênica pois estava antenada com tudo que se relacionava a
isso. Tem a música, a dança sempre foi uma coisa que é muito forte no meu trabalho
até ta entrando um pouco agora, mas sempre me interessei por desenho,
geralmente quem começa em arte é mais pelo desenho mesmo, desenhava, copiava
algumas coisas, depois com um desenho mais livre, e depois eu fiz curso de
desenho mesmo, isso ainda em Teresina, nem lembro, acho que noventa e pouco e
depois fui pra Recife, que eu sou de Recife e voltei a morar lá, e foi que eu
senti uma puxada maior pra essa coisa mais ligada às artes plásticas, aí eu entrei no
IAC, que é o Instituto de Arte Contemporânea, onde eles tinham um laboratório de
artes plásticas, onde eles deixavam o atelier aberto que você pudesse estar
desenvolvendo sua pesquisa, fiquei dois anos no IAC, também o lembro direito
a data, que era mais pra gente discutir, como um grupo de estudos, cada um tinha o
seu trabalho individual mas que a gente se encontrava e discutia sobre a história da
arte e um espaço aberto pra você poder estar utilizando. Depois do IAC eu vim
morar em Fortaleza, foi em 2000, e eu tive a notícia que tinha uma faculdade de
artes, a Gama Filho e me inscrevi. Então a partir da Gama Filho, é lógico que tudo
vai construindo, eu já tinha na época de Recife e aqui quando eu fazia o terceiro ano
me inscrito em alguns salões, salão dos Correios, salões lá de Recife, com trabalhos
muito ligados a desenho e a pintura. Aqui eu começo também a ter contato com
outros tipos de arte, gravura, fotografia, vídeo, e muito arte contemporânea, e
embarco mais nessa questão da história da arte e começo a pensar mais sobre meu
trabalho, que linha, que coisa me move mais para estar fazendo, porque tem alguns
focos que eu sigo mas que eles se desdobram em outros e foi a partir de 2000 que
isso começou mesmo, eu estar pesquisando mais, lendo mais, estudando mais.
206
AV: Como você avalia o atual sistema de fomento e apoio às artes: política de
editais, incentivo público, privado...
MT: uma das coisas boas atualmente é justamente essa política dos editais, mas
elas não vão dar conta da tua sustentabilidade como profissional, mas as políticas
de editais são boas, aqui em Fortaleza tem muitas, tem a secult que ta bem
recorrente nisso, todo o ano tem editais para várias áreas, a prefeitura também vai
entrar com a política de editais também que vai ser super legal, agora os museus
poderiam estar contribuindo com bolsas, o que eu sinto no edital é bom, mas a forma
como acontece poderia ser diferente, tem o prêmio Marco Antônio Villaça que ele te
uma quantia boa e você desenvolve seu trabalho por dois anos, um ano de
experimentação outro ano mais expositivo, então uma política que fique com você
mais tempo, não que crie um meio para expor o teu trabalho, mas que crie um
grupo todo envolvido nisso, o artista, o curador, o pesquisador e a própria galeria, o
próprio museu, que tenha esse ciclo dentro dos editais, não como uma forma de
estar expondo o teu trabalho e fim, mas uma continuidade mesmo, e também eu
acho que o dinheiro reservado para as artes, quando abre um edital você ganha mil
reais, mil reais não nem pra você chegar no teu trabalho onde ta, outro dá seis
mil, então eu acho que essa quantia disponibilizada pro produtor de arte é
insuficiente, porque tem todo um envolvimento, às vezes eu sinto uma necessidade
e vejo em outras pessoas também do trabalho crescer mas você não tem um
suporte no edital que viabilize financeiramente aquele trabalho então é isso, a forma
do edital é boa mas tem muitas coisas a serem revistas nele.
AV: Como você tira o teu sustento, como é a tua sobrevivência?
MT: Pois é, acho que foi a Leda Catunda que esteve por aqui e foi curadora do
Salão de Abril, eu sempre pensava muito há, eu quero viver de arte, mas ela colocou
uma questão que às vezes para você viver de arte você toma uma direção que você
não queria tomar no seu trabalho, mas é lógico que existem aqueles artistas que
conseguem fincar e ter uma poesia, ter uma linha de pesquisa e seguir com
aquilo e realmente ter interesse de galeria e de outras coisas mas como eu também
tenho esse viés de gostar de dar aula e de pesquisar é uma outra coisa que eu acho
bom para o artista de estar em sala de aula, então o meu sustento é por conta de
algumas aulas e por estar participando de uma ONG que apóia totalmente essas
produções, essas experimentações e a pesquisa, mas que também vive de projetos,
207
que é o Alpendre, e eu também estou no CAPS, que é o Centro de Apoio Psico-
social, viabilizado pela prefeitura, também como uma pessoa que ta dentro pra
colocar o ponto de vista da arte, não o profissional da psicologia, ou médico, mas
outras vias, pois é importante colocar a arte, lógico, o a arte como uma salvadora
mas é legal criar agrupamentos, os jovens se interessam muito. Então o meu
sustento eu ainda não to vivendo com a produção do meu trabalho como autora,
mas com a produção ligada a arte também, dando aula, fazendo oficinas, projetos.
AV: Em algum momento durante a sua trajetória como artista profissional você sentiu
alguma dificuldade de acessibilidade ao mercado pelo fato de você ser mulher?
MT: não senti não, em nenhum momento, é engraçado que você tinha colocado que
a mulher antes era retratada e que agora estava retratando, agora no meu trabalho
eu estou entrando num momento eu me retratando, mas em nenhum momento eu
senti por ser uma mulher que estivesse produzindo estar sendo vetada ou que
alguém questionasse não, sempre foi super tranqüilo isso.
AV: Quais as principais premiações e exposições?
MT: eu participei de vários salões de Abril, foi a por que eu entrei nas
exposições, Salão de Sobral, participei de duas exposições no Museu de Arte
Contemporânea, to participando da terceira agora então são três, a FUNARTE, ano
passado entrei em Brasília e no Rio de Janeiro e entrei na FUNARTE de novo e uma
coisa que foi super legal esse ano entrar no Salão de Arte da Bahia e também ser
premiada.
Entrevista com Heloísa Juaçaba em 25 de maio de 2006.
Ana Valeska: Como foi seu começo na arte?
Heloísa Juaçaba: eu acho que esse sentimento de arte nasce com as pessoas. Tem
criança que gosta de olhar pra cores e outras não gostam. Então minha mãe
percebeu que eu tinha uma vocação. E meu ambiente familiar era muito favorável,
sem dizer que eu cresci em Guaramiranga, e a natureza era belíssima favorecia. E
depois vim para Fortaleza e papai comprou um sítio aqui pertinho, também cheio de
208
natureza. Então eu acho que a arte é muito da pessoa, como a gente observa a
natureza, o sol, tem gente que olha tudo e o nada, talvez por falta de cultura
artística e a cultura vale muito.
AV: Como foi que a arte virou profissão?
HJ: eu recebi do Haroldo cavalete, estojos de pintura, tintas, pincéis, ele me deu
todo o apoio e me estimulou para ser artista.
AV: a senhora foi uma privilegiada, porque nem toda as mulheres que quiseram ser
artistas tiveram esse apoio.
HJ: nessa época era mais difícil para as bailarinas que as pintoras, as pintoras eram
mais bem aceitas. Mas nos primeiros movimentos de arte tinham muitas pintoras, e
pelo que eu sei a família aceitava, estimulava. Não tinha era lugar para expor, não
tinha casas de arte para expor aqui, os artistas vinham de navio e vendiam os
quadros na casa. Fiquei na SCAP por 14 anos, tinha a presença importante do Mário
Baratta, lê também passaram Antônio Bandeira e Aldemir Martins. O Barrica também
freqüentou a SCAP. na SCAP também fiz amizade com a Maria Nice, amizade
que dura até hoje, admiro muito a Maria, nós duas nascemos na SCAP e depois a
SCAP silenciou e eu fui convidada pelo Dr. Raimundo Girão para integrar o
Conselho Estadual de Cultura. O primeiro Conselho Estadual de Cultura do país foi
montado pelo Dr. Raimundo Girão. Ele formou esse conselho que tinham vários
setores, eram dozes setores e eu era do setor de artes plásticas, fiquei na pintura.
Então ele precisava de uma pessoa no conselho que gostasse muito de arte. Então
o Mário Baratta e o Otacílio Colares indicaram meu nome. E então como estava tudo
silencioso, passou uns dozes anos sem ninguém falar em movimento de arte aqui,
não tinha nada para proteger os artistas, então eu propus ao Dr. Raimundo Girão
fundar uma casa de cultura. Então foi um pouco demorado, demorou uns meses
para estrutura tudo, como eu propus com uma filosofia de ensino, para despertar a
juventude, que todas elas estão precisando, então eu preciso convidar uma pessoa
da mais alta competência, que foi Clarival Prado Valladares, que ele é médico
também, foi um dos homens mais inteligentes que eu conheci, ele tinha uma
cultura fabulosa, então eu o convidei para ele dar uma orientação aqui em Fortaleza.
Então ele veio e fundamos a Casa de Cultura. Então o Dr. Girão sugeriu que
homenageássemos um grande artista do Ceará e foi escolhido o Raimundo Cela.
209
AV: como era a política de incentivo as artes da casa de cultura?
HJ: Clarival deixou todo esse plano escrito. Não existia cópia. As aulas eram livres.
Eles iam se revelando lá. Todos os que vc está conhecendo todos são da Raimundo
Cela. O Galvão, o Sergei de Castro, o Aderson Medeiros, Jussier..., e eles foram se
desenvolvendo culturalmente, e aquilo despertava experiências novas, ninguém
ensinava nada, eles se revelavam.
AV: Existiam muitas mulheres produzindo na casa de cultura Raimundo Cela?
HJ: existiam sim, mas tinha mais homens do que mulheres. Eles se destacavam
mais fácil.
AV: a senhora lembra de alguma mulher que tenha se destacado nessa época?
HJ: .....................................eram muitos homens, uns 90%, tinha o Roberto Galvão, o
José Guedes, mas mulher..........................., eu vou olhar na caderneta. Salete
Rocha e Jane Lane, eram mulheres que freqüentavam a Casa de cultura Raimundo
Cela.
AV: Por quanto tempo a senhora ficou à frente da Casa de Cultura?
HJ: fiquei por lá durante duas gestões, durante oito anos.
Entrevista Érica Zíngano em 25/01/2006
Ana Valeska: Érica, como foi que a arte entrou na sua vida, como foi que você
começou a trabalhar com arte?
Érica Zíngano: Foi em 2000, durante o ano inteiro de 2000 eu participei do grupo de
estudos do Alpendre coordenado pelo artista Eduardo Frota e a partir de então a
gente levantava várias questões e aí foi me dando o interesse de trabalhar de
desenvolver trabalhos e foi quando em 2001 eu participei do primeiro salão que eu
expus de cara que foi o Salão de Abril, Salão de Abril não, Salão de Sobral, e a
partir disso, desde 2001 que eu venho desenvolvendo trabalhos, participando de
exposições.
AV: E você teve algum estudo formal em arte, em instituições ou foi apenas esse
grupo no Alpendre?
210
EZ: Não, formalmente não, participei desse grupo de estudos no Alpendre e a minha
graduação não tem nada a ver com arte, quer dizer, de certa forma tem muito a ver
com arte, mas que não tem uma prática artística, que eu sou formada em Letras,
então ela destoa um pouco, mas dentro do universo que eu pesquiso nas artes
plásticas e na literatura eu venho querendo misturar esse meio de campo.
AV: Como você a participação da mulher nas artes plásticas? Você percebe
alguma discriminação, algum preconceito?
EZ: Eu acho que existem leituras que são feitas a partir do feminino, as pessoas
tendem a ver, a ler no sentido de interpretar os trabalhos com uma aura poética,
uma aura do feminino, inclusive na exposição que a gente trabalhando são cinco
artistas mulheres, e levanta essas questões, mas em trabalhos outros acho que
não, acho que dilui muito, eu não acho que tem essa relação de discriminação não,
eu acho que ela não existe.
AV: E com relação às políticas públicas, como você analisa as políticas que estão
para as artes e para os artistas?
EZ: a gente vem discutindo isso muito tempo, desde a revisão do que foi o
Salão de Abril, quando a gente participou de várias reuniões e lançou várias
propostas que tem o intuito de que mudasse a relação do Estado com aquilo, porque
o que é que o Estado faz: tem o edital agora da Secult e a prefeitura tem o Salão de
Abril, então são os dois grandes, vamos dizer, suportes estatais, suportes do Estado,
né? e a gente queria rever esses estatutos, rever como é que isso acontece, e
propor outras coisas, quando a gente pensava no Salão de Abril a gente pensava
numa relação de bolsas, por exemplo, e que isso não fosse um único evento,
como marco, poderia continuar existindo o Salão de Abril, e concomitante, durante o
ano inteiro, fossem desenvolvidos vários trabalhos, várias exposições, que
ocupassem a Galeria Antônio Bandeira, que diluísse mais isso, porque Fortaleza
tem muito a coisa do evento, um acontecimento único, grandioso, maravilhoso, e
que todas as verbas tem que ir para aquela coisa. Eu achava que tinha, eu como
outros artistas achávamos que tinha, que deve existir uma necessidade permanente,
dessa relação de trabalho, de exposição.
AV: Como você analisa o patrocínio privado?
211
EZ: Valeska, eu não tive ainda nenhuma experiência de pedir através de projeto, né,
porque você tem que aprovar o seu projeto pela Lei Rouanet, para captar recursos,
e aí eu ainda não tive nenhuma experiência de nenhum projeto que eu participei que
fosse feito dessa forma, e eu não posso te dizer como é que funciona, mas eu acho
que é bem vindo, e é uma relação muito estranha da gente observar como a
sociedade vem mudando, porque antigamente o Estado era o pai maior, que ele se
responsabilizava por tudo, e hoje inclusive com o crescimento do terceiro setor, com
as ONGs, a gente que esse papel vai diminuindo, e que a gente vai tomando
mais partido também no orçamento público, que a gente vai tomando mais direitos
de opinar, inclusive a relação do orçamento participativo também trata disso, eu
acho, e eu acho que é legal, a gente pode dividir funções e fatores aí, porque
tende a todo mundo ganhar com essa história, mas ainda é muito pouco, porque o
que eles abatem eu acho que é 4%, eu não tenho certeza, mas é ínfimo em relação
ao que poderia ser dado para a cultura.
AV: você consegue ter um rendimento financeiro com seu trabalho em arte?
EZ: eu não faço parte do mercado de arte, eu não vendo obras, nunca vendi, o que
eu consigo ter é através de premiações, de editais, a gente consegue ter uma renda,
mas ínfima, em relação a tudo que a vida exige: casa, comida, roupa lavada, conta,
aluguel, telefone, então eu não tenho, né, como a gente vem trabalhando a gente
tem que intercalar profissões, tipo eu sou artistas plástica, mas eu sou também
professora, eu faço isso e eu faço aquilo para poder levar, né?
AV: Quando se lança um edital e inclusive quando se lança um edital para salão a
maioria dos que ingressam ainda é composta por homens, inclusive com relação a
bolsas, a premiações. Dentro dessa perspectiva qual sua opinião acerca da
existência de uma política de quotas que garanta uma participação maior feminina?
EZ: eu não sou de acordo, porque aí é aquela velha história, é quando você reafirma
que existe um preconceito, e é quando a gente vai trabalhar essa questão, que é
super mal resolvida essa questão de gênero, quando a gente fez a exposição a
gente pensava assim: não, tem que partir do pressuposto que isso não era mais
para ser discutido, a questão das cinco mulheres porque sempre vem uma
nomenclatura do tipo há eu sou mulher, isso é poético, é feminino, é adolescente,
pois são conceitos que remetem ao feminino, mas a gente não gostaria que essa
questão fosse colocada, porque existe uma diluição, claro que existe, a gente não
212
pode pensar eu sou mulher ele é homem, digamos, existe realmente uma estrutura
corpórea, uma estrutura social, que demarca territórios, mas eu acho que a gente
tem que trabalhar a noção de que isso não existe mais, pra que isso realmente se
esgarce, para que isso realmente se afaste, para que não exista mais essa noção de
diferente, apesar de ter como eu disse, uma relação primordial, física, que por si
já é diferente.
Entrevista Marina Barreira, em 12 de novembro de 2006.
Ana Valeska: Como você sente o papel da mulher na sociedade hoje e no passado?
Marina Barreira: as mulheres da geração dos anos 60, 70, que são as mães da
gente, eu acho que o real pra elas se tornou uma coisa grande demais,
emocionalmente são figuras que vivem sonhos intensíssimos, eu acho que elas
forma criadas de um jeito, voltada para o lar e de repente se abriu um leque de
possibilidades e elas tiveram que ser muito forte, por fora são criaturas que
conseguem se organizar sozinhas e se manter sozinhas, mas na realidade eu acho
que elas foram além da capacidade emocional delas, e hoje em dia são todas, sei
lá, para os critérios atuais são meio desequilibradas, mas por isso mesmo são
mulheres interessantíssimas.
AV: E hoje como é que é ser mulher, artista e mãe ao mesmo tempo?
MB: eu não penso muito sobre isso objetivamente falando. Eu não sinto dificuldade
em ser mulher artista hoje em dia não, acho que tem uma abertura legal pra gente,
acho que a gente ta num momento em que há um interesse sobre o trabalho da
mulher como artista. O que eu vejo que acontece de uma maneira inconsciente é
que todos os meus trabalhos sem eu perceber, falam de questões domésticas,
principalmente domésticas, mais do que de mãe, eu acho. E eu fiquei um bom tempo
nisso sendo dona-de-casa, quando as crianças eram bem pequenas até agora. E
eu não percebia que meus trabalhos tratavam sempre disso, todos os trabalhos são
sobre subversão de cotidiano doméstico. Então no final das contas, artista- mulher-
213
mãe dona-de-casa, eu não faço uma relação muito clara na minha cabeça, mas os
meus trabalhos estão bem relacionados a isso.
AV: você se sente sobrecarregada no cotidiano?
MB: fiz uma espécie de opção né? Eu tive filhos com 23anos, e eu fiquei
realmente tomando conta deles, eu resolvi optar mesmo em deixar a minha vida
profissional um pouco de lado para poder ficar com eles. Mas eu sinto que valeu a
pena adiar a carreira, por que eu vejo que mulheres que não puderam dar atenção
aos filhos pequenos ficam se sentindo mal mesmo, ficam se sentindo em falta, e aí o
que resultou dessa minha opção é que os meus trabalhos começaram a refletir isso,
essa vida doméstica, entendeu? As cadeiras vão subindo pelas paredes, etc. tem
uns trabalhos do salão de Abril que são mulheres com duas cabeças, que eu acho
que tem uma relação com o sobrecarregamento da mulher. Tem um trabalho que eu
desenho olhos em cima dos olhos fechados, que tem haver com esses papéis que a
gente tem que representar como mãe, como esposa, eu me deparo muito com essas
questões entre ter que ser livre e ter que representar uma papel adequado na escola
dos meus filhos, por exemplo. Pois é, é fogo.
Entrevista com Jane Lane, em 19 de junho de 2006.
Ana Valeska: como foi o despertar para as artes?
Jane Lane: isso é um processo criativo que a gente nasce com ele. Tive muito
problema com meus pais, eu pegava qualquer coisa de casa e ia criando, ia fazendo
minhas colagens... até que conheci o Jean Pierre Chabloz, e ele disse que eu era
boa. Eu tinha doze anos. E fiquei mais ou menos dos doze aos dezessete anos
estudando com o Chabloz.
AV: como foi sua participação no campo das artes na época da Casa de Cultura
Raimundo Cela? A D. Heloísa Juaçaba tem seu nome anotado na caderneta como
uma das artistas que freqüentavam a casa de cultura...
JL: você quer a verdade? Você vai se decepcionar. Eu nunca fui da Casa de Cultura.
Eu ia na casa de cultura porque tinha uma pessoa chamada Francisco que fazia
telas e molduras. E eu ia por lá, mas muito pelo contrário, eu não era bem aceita na
214
casa de cultura, não sei porque. A casa de Cultura Raimundo Cela era uma coisa
muito política. Quem era amigo de determinadas pessoas ficava por e ia expondo.
tinha um certo desprezo e eu nunca gostei daquilo. Existia uma apelação muito
grande, uma política muito grande e eu não me sinto pertencendo a essa geração.
Entrevista com Estrigas, em 04 de junho de 2006.
Ana Valeska: Quem eram as artistas no passado em Fortaleza?
Estrigas: nessa época de 63, artistas surgiram, Descartes Gadelha, Sérgio Lima e
Nearco Araújo com trabalhos da melhor qualidade, o Sérgio Lima para mim é o
melhor artista de Fortaleza, os outros também tem um trabalho muito bom.
AV: Nessa época não houve nenhuma mulher que se destacou?
ES: Não. Por incrível que seja, não houve nenhuma mulher que se destacasse, ou
que pelo menos deixasse um nome que a gente não esquecesse, porque se eu
esqueci, é por que esse nome não ficou gravado.
AV: E depois, quem surgiu?
ES: Da geração Raimundo Cela, de 1967, Joaquim Evangelista de Sousa, a própria
Mariza, que morreu ano passado, houve também artistas bons que desapareceram,
Batista Sena, por exemplo. No atual momento temos o Carlos Costa, o Stênio
Burgos, o Cláudio César, o Wando Figueiredo, temos o Antônio Rocha, e mulher
atualmente tem, mas cujo nome não está firmado, não está gravado.
AV: Nessa época da década de 70, 80, nenhuma mulher ficou?
ES: (chama a esposa) Nice, você se lembra de alguma mulher agora, mais recente?
Nice: As que nós temos visto ultimamente é quase tudo arte contemporânea, elas
quase já não fazem mais arte...
215
ENTREVISTA BIA CORDOVIL – 05/01/2006
Ana Valeska: como as artes plásticas entraram na sua vida?
Bia Cordovil: Com quinze anos de idade. Quando a minha mãe montou um espaço
de arte e artesanato e eu ficava xeretando, mas era um espaço de produção
mesmo a nível de repetição não a nível de arte e eu comecei a escarafunchar e
de não parei sabe, tem aquela história na época das senhoras católicas né?
Então eles resolveram fazer caridade e chamar crianças de um orfanato que
ninguém queria ficar com as crianças e eu que ficava com as crianças, até porque
eu também era criança e ficava e na hora que eu via quem dava aula era eu não
sei como e nem porque, então assim de uma maneira muito intuitiva, muito orgânica,
natural, brotou, brotou naquele momento!
AV: E quando você percebeu que você tinha se tornado uma artista?
BC: Não foi fácil essa questão do autorizar-se a ser artista, porque assim, eu
tenho hoje 43 anos, nós estamos em 2006, então era muita petulância você falar “eu
sou uma artista”, né?, muita petulância, até porque a gente não é artista a gente
tem que ser dona de casa, ser mãe, e cumprir aqueles papéis... pelo menos eu
venho de uma família quatrocentona, cheia de histórias, então a arte era vista muito
como um passatempo, então internamente eu tive muita dificuldade em me assumir
como artista plástica, muita dificuldade e muito preconceito social, muito, muito,
muito, muito, muito.
AV: Mas quando foi esse momento em que você se assumiu?
BC: Eu sabia que eu era. Mas quando eu meti a cara foi quando eu mudei para o
Ceará. Porque até então os meus trabalhos eles acabavam acontecendo de uma
maneira indireta, como assim? Eu fazia uma camuflagem, porque eu trabalhava
muito com jovens e através dos jovens eu acabava desenvolvendo junto com eles
um trabalho de criação. Então era assim um intermediário que na época socialmente
se aceitava mas em 96 eu meti a cara como eu mesma quando vim aqui pro Ceará e
me afastei de todas aquelas coisas, aquelas questões sociais que me seguravam
muito como mulher quando eu morava em São Paulo.
216
AV: E aqui no Ceará você sentiu alguma dificuldade para se inserir no cenário
artístico local, a pela própria condição de ser mulher você sentiu alguma
dificuldade maior?
BC: Sim e o. Primeiro não porque aqui no Ceará as pessoas dão muito valor a
quem vem de fora. Existia até um certo paparico pra cima de mim que eu não
reconhecia no princípio porque diziam: ela vem de fora, ela vem de São Paulo, ela é
do sul e traz coisas novas e parará, parará... e assim eu senti que no princípio tinha
uma coisa meio não de reconhecimento tanto pelo trabalho, mas assim: ela é artista
e ela vem se São Paulo então é coisa boa, né, uma falta de reconhecimento eu
sentia das artistas que aqui viviam, estabelecidas aqui ha muito tempo e que aqui
nasceram. Então isso eu senti e isso acabou sendo para mim uma coisa boa porque
as pessoas olharam pra mim mas ao mesmo tempo eu senti que para que fosse
verdadeiro eu precisava trabalhar e muito, e venho trabalhando nestes últimos anos
bastante para fazer merecer tudo isso. Então eu fiz minha primeira exposição,
primeiro eu me lancei bem dentro do contexto socialmente aceito, porque eu
comecei a fazer pintura em seda, então é aquela coisa seda é feminino, seda usa
pra moda, é arte, não é arte, então as pessoas que me conheceram no princípio me
reconhecem muito como estilista, muitas vezes eu fui chamada de estilista porque
eu lancei três coleções, e meu trabalho é legal, o é por nada não (risos), eu
percebi que isso era um caminho, e eu meti a cara e entrei na minha questão
que é a questão de trabalhar o feminino, a questão de trabalhar o certo e o errado, o
bem e o mal, o sagrado e o profano, essas polaridades que a gente na vida e
enquanto mulher a gente sente, foi um canal que eu fui devagarzinho, meio
acovardada, fui entrando pelo socialmente aceito para poder hoje fazer as coisas
que eu faço.
AV: Achei interessante a questão dos processos... você disse que começou com a
seda e o teu trabalho atual também é com seda que de outra forma, você foi
desenvolvendo a sua linguagem. Como você faz para não ceder a tentações
próprias do mercado, de não ter a sua própria linguagem condicionada a tendências
da moda? Com enfrentar essas dificuldades?
BC: Eu acho que quando eu vim para Fortaleza eu tava no limite, no limite de
resignação. Eu estava no limite de viver este conflito interno que era ser eu mesma e
ser uma mulher de família tradicional, casada, com filhos, filha de fulana que era
217
casada com sicrano... e então quando eu vim pra eu tava no limite de subjugar
essa Bia, então acho que essa coisa foi muito forte pra mim, foi um impulso muito
grande porque eu não conseguia mais camuflar, então a seda a muitos anos eu
queria trabalhar com a seda, mas não tinha condição, não tinha tempo, não tinha
nada, sabe, não tinha condição, á vida de São Paulo é muito atribulada, os filhos, a
escola, e depois teve um fato que eu acho que foi muito importante que quando eu
vim para Fortaleza eu deixei toda a história de um trabalho, de pesquisa, de estudo,
de família, e quando eu cheguei aqui eu não era mais eu, eu era a mulher de fulano
de tal, e isso é um peso muito grande porque você perde totalmente a identidade, e
pra mim isso foi terrível, quase enlouqueci, então além de eu não me encaixar como
a mulher de fulano de tal, todas as conquistas que eu tinha, quando eu vim pra cá,
onze anos atrás eu tinha uma história de família, de trabalho, eu me lembro que
nos últimos treze anos antes de 95 eu não tinha ficado nenhum dia sem carteira
assinada, então assim, um trablaho reconhecida na grande São Paulo como arte-
educadora, como coordenadora isso é relevante. eu cheguei aqui eu não tinha
amigos, eu não conhecia ninguém, eu era a mulher de fulano de tal, a sociedade
machista que a gente tem aqui foi muito cruel comigo porque se eu estava
acompanhada do meu ex-marido eu era a mulher do diretor de não sei aonde, e
quando eu tava sozinha, eu não era ninguém, as pessoas me ignoravam e eu não
tava costumada com isso, chegava nas reuniões, os homens no canto e as mulheres
do outro, quer dizer uma coisa muito estranha. E eu falei não! Agora é a minha
hora, ou eu sobrevivo buscando a minha identidade, ou eu piro, ou largo tudo e volto
para São Paulo, e eu resolvi buscar então eu acho que a linguagem do meu trabalho
veio acompanhando essa busca interna, então eu acho que os limites, que os bastas
que eu tinha me dado, as resignações, eu deixei tudo por água abaixo, e sofri
muitas críticas, tentei vender aqui quando eu comecei a trabalhar com seda,
trabalhei a questão da estamparia nas coleções, foi que eu vi que trabalhar a
pintura na seda não era suficiente, não me bastava, então essa questão da
transformação da tinta na seda foi chamando a atenção para a minha própria vida,
percebi o feminino, que eu enquanto mulher também sou assim também era assim,
eu me transformo a cada dia, essa evolução, então assim, um trabalho muito
centrado e que foi me alimentando cada vez mais, trabalhava muito com o colorido,
hoje eu trabalho com preto e branco, pode ser isso mude, a gente nunca sabe,
mas eu sinto que isso foi uma coisa que foi muito importante, que refletir sobre todo
218
esse processo, não só refletir internamente, plasticamente, a sensação que eu
sempre tive é que não dá pra falar, tem que fazer, tem que materializar, essa fala
que eu não consigo traduzir em palavra, em texto, tem que fazer a coisa, tem que
concretizar essa idéia de sentimento, essa reflexão e depois deixa os outros
entenderem como quiserem, né?
AV: Como foi a sua formação, o que você estudou?
BC: (risos) a formação mais porra louca do mundo. Quando eu saí do terceiro
colegial eu queria fazer arquitetura e o papai não deixou, porque eu morava no
interior de São Paulo e a faculdade era na capital, e ele sugeriu que eu
escolhesse qualquer curso na faculdade de Piracicaba, eu estava entre educação
física e educação artística, que era um curso rápido, de dois anos e eu escolhi
educação artística, enquanto isso eu continuei dando aula para crianças, a escola da
minha mãe fechou e as mães falavam que o que eu fazia com as crianças era muito
legal que tinha que continuar e fiquei dando aula nos fundos da minha casa, aí eu fiz
educação artística e comecei a ganhar dinheiro, mas quando eu terminei
educação artística eu estava muito decepcionada com as famílias que o
compreendiam a arte para as crianças, e eu falei, não quero mais, chega, e eu
falei agora vou fazer Direito, porque arte ninguém entende e Lei é Lei, fiz um ano de
cursinho, entrei no Maquenze, e fiz um ano de direito, que nesse momento
comecei a trabalhar numa escola que trabalha expressão corporal e deixei o
direito e me transferi para a FAAP, e fiz artes plásticas, licenciatura plena, e por
perceber o poder da arte fui estudar psico-pedagogia, fui estudar gestalt, fui estudar
Jung, Freud e todas essas outras coisas que eu fiz por aí e ainda faço.
AV: Atualmente você trabalha com o que? Quais os trabalhos que você desenvolve?
BC: Eu acho que eu venho conseguindo materializar meu grande sonho que é esse
espaço Percepção da arte, eu acredito na arte como uma linguagem humana,
independente de cultura, de faixa sócio econômica. Aqui é um lugar onde eu venho
batalhando bastante. Eu sempre penso na questão da paixão: então qual o meu
papel enquanto intermediadora de arte? É provocar o desenvolvimento artístico e
219
dar suporte para que a pessoa possa desenvolver isso, então a pessoa está aqui
para fazer diferença aonde?
AV: Basicamente então o trabalho que você faz é de arte-educação, você avalia que
é possível sobreviver dignamente da sua produção artística? Isso aconteceu na
sua trajetória?
BC: o pra viver de arte, da própria produção, até porque se você for viver da
própria produção você vai entrar na prostituição do trabalho porque você vai produzir
segundo o gosto do consumidor e você não consegue desenvolver seu trabalho
enquanto artista e essa é uma coisa que eu sempre me neguei, pela minha própria
história eu sempre quis que o meu trabalho fosse verdadeiro e isso vem em primeiro
lugar, agora se é vendável ou não é outra conversa, 99,99% não é vendável, mas
a idéia que constitui a execução do trabalho eu sei que ele ta contribuindo de
alguma maneira com a construção da nossa sociedade. Então como é que eu
sobrevivo? Primeiro como eu te falei marido ajudava muito, e durante muito tempo
foi assim, mas eu sempre tentei viver de arte com arte, dando cursos, assessoria em
escola, porque eu tenho uma formação, e então isso me facilita, agora se eu fosse
viver só do que eu produzo eu não teria condições de desenvolver o trabalho que eu
venho desenvolvendo, talvez eu tivesse me prostituído, por uma necessidade de
pagar luz e telefone, que eu não condeno, mas eu não consigo me colocar nessa
situação.
AV: Você considera que esse necessidade de “prostituição” se deve a quê? A uma
falta de política pública? Porque tanto desamparo? Porque o artista sofre tanto para
sobreviver na nossa sociedade?
BC: eu acho que mudou muito, eu tive condições de participar de dois projetos
financiados pelo Estado, então eu participei de um projeto chamado Impressões,
patrocinado pela Lei Jereissati, com o patrocínio de uma empresa privada, então eu
pude desenvolver o projeto Algodão que foi selecionado no primeiro edital das artes
220
visuais então eu acho que as políticas públicas estão começando a se constituir de
uma maneira a preservar a ideologia do artista, eu acho que se se fizer valer essas
leis, efetivamente, a gente vai dar um up grade na produção do estado do Ceará,
porque a gente que ainda existe muito clientelismo e ainda existe pouca cultura
no Estado, porque a gente vem de uma história da cultura popular, da cultura
artesanal, e ainda a sociedade não ta aberta para o contemporâneo, até porque a
condição econômica ainda não permite se consumir arte, são mínimos os que tem
acesso a isso, então quando você as grandes coleções os colecionadores não
passam do modernismo. Já ouviu falar de alguém que já comprou vídeo-arte? Então
ainda falta toda uma discussão sobre a arte que não permite que o mercado seja
viável para sua subsistência, então eu acredito nos projetos, claro que às vezes eles
não funcionam, mas eu acho que é o caminho, às vezes eu vejo que meu trabalho
vai além da compreensão em algumas instâncias, mas eu não desisto.
AV: Como você percebe o papel do Museu e Arte Contemporânea? Como você
analisa a política de exposições adotada pelo museu? E da participação dos artistas
locais?
BC: Eu acho que nesse último ano melhorou demais, porque parece que agora a
gente ta tendo um profissionalismo, porque até então o Dragão do Mar ele era
clientelista, ele atendia uma minoria que se relacionava socialmente com os
diretores do museu e que seguiam tendências, então era assim é amigo de fulano,
ibope, é de fora então entra! Faz parte de uma patotinha, então entra! Eu acho
que agora isso vem sendo quebrado, eu acho que o museu vem sendo
devagarzinho conduzido com profissionalismo, mas eu ainda acho que existe uma
resistência dos artistas chegarem até o museu mas eu não vejo uma resistência do
museu em receber os artistas. Tem a associação dos artistas plásticos que a duras
penas vem tentando espaço e vem conseguindo, mas ainda tem muito isso de olhar
para o próprio umbigo, ainda não um pensamento coletivo sobre arte. Mas eu
acho que a gente ta num momento de amadurecimento. Eu acho que as pessoas
falam muito sem estudar e por isso alguns artistas são tão perenes, muitos são
apenas de onda. Então eu acho que o Dragão ainda pode cuspir muito fogo.
221
AV: Como você avalia a participação feminina nas artes plásticas, ainda existem
privilégios de gênero ou isso já foi superado?
BC: Existe, nossa senhora, se não existe... primeiro as temáticas que as mulheres
chegam mais junto com mais profundidade, a mulher não tem vergonha não, ele diz
é isso e mostra. Taí uma menina nova que é a Cecília Bedê com suturas, a linha e o
ponto na pele, então que sutura são essas da mulher? Por outro lado eu acho que
foi muto legal queimar o sutiã em praça pública mas eu acho que a gente se fudeu
muito, que a gente tem que dar conta do nosso trabalho, do marido dos filhos, do
supermercado, então eu sinto que a mulher em muitos momentos recua sua
produção para poder compartilhar a vida profissional dela enquanto artista e
enquanto mulher porque a gente ainda tem isso aqui no Ceará. Ainda a gente
muitas mulherres que trabalham sua arte como passatempo, então eu acho que
ainda falta muita maturidade com relação a isso e também acho que o mercado é
muito masculino, Brasil e no Ceará é mais ainda, quando falam é o artista, vamos
ver o trabalho dele e quando fala é a artista, ela é bonitinha? É gostosinha? Ou
então vamos ver ela é casada com fulano, vamos dar uma força. Eu acho que
ainda existe muita deturpação, mas nós estamos papoucando, se não é a mulher a
arte estaria muito aquém aqui no Ceará, e com todo respeito às questões de gênero
eu percebo nos homens homossexuais uma grande diferença no seu trabalho, não
aquele feminino de maricagem, mas o feminino da profundidade, da integração entre
o anima e o animus, então essa profundidade a gente não consegue ver em
qualquer artista não, homem, não consegue.
AV: Quais as suas principais exposições e premiações?
BC: houve um prêmio no Salão de Abril, houve os dois projetos, sou selecionada
pelo rumos Itaú cultural, participei de uma individual no palácio da abolição,
participei de exposição nos correios do Rio de Janeiro e em São Paulo, sei lá,
ando com a memória fraca...
222
Entrevista Ana Costa Lima, em 10/06/2006.
Ana Valeska: Quais as principais dificuldades em ser artista em Fortaleza?
Ana: O que falta é incentivo mesmo, é o governo sentir que arte é necessário, o que
falta no empreendimento público e na cabeça das pessoas daqui é compreender
que arte é importante na educação.
AV: E na Europa, como era?
Ana: Uma diferença que existe na Europa nas pessoas que conhecem teu trabalho
na Europa é que se você é artista você é valorizado por isso. Aqui se você diz que é
artista plástico é porque você não deu pra mais nada!
Uma prova maior que você é artista é quando você enfrenta todas as dificuldades e
permanece fazendo a sua arte, aí ta a prova maior que você é um artista porque se
você for, você não consegue deixar, é como uma droga, a partir do momento que
você experimenta você não consegue largar. A arte é mais ou menos isso, sabe, a
partir do momento que eu coloquei ateliê, que eu comecei a freqüentar outros
ateliês, que eu comecei a colocar realmente a arte na minha vida, eu enfrento
qualquer coisa e não abro mão dela de jeito nenhum, é como comer é como respirar
mesmo.
AV: Atualmente as políticas públicas de apoio e incentivo aos artistas consistem
basicamente em uma política de editais, em que os principais fomentadores destes
editais são instituições financeiras, além das leis de incentivo à cultura, que também
dependem do capital privado para poder funcionar.
223
PREMIADOS NO SALÃO DE ABRIL
ED ANO
CATEG CLAS
ARTISTA COM. JULG LOCAL
1943 - -
não houve premiação
-
Livraria Comercial
1946
MH
MH
MH
Raimundo Kampos
Mário Barata
Barboza Leite
Afonso Lopes
Carmélio Cruz
Hermógenes
Matos Pereira
Clovis Matos
Aderbal Freire
Florival Seraine
Braga Montenegro
Livraria Aéquitas
1947 1ºMO
MH
MH
MH
Francisco Matos
Bardoza Leite
Hermógenes
Paulo Alves
Raimundo Kampos
Barrica
Carmélio Cruz
Parcifal Barroso
Emílio Hinko
Antonio Girão
Cine Majestic
1948 Pintura
Desenho
Escultura
MH
Inimá de Paula
Barboza Leite
Cadmo Silva
Floriano Teixeira
Aldemir Martins?
Valter Dantas
Hermogenes da Silva
Barrica
Afonso Lopes
Paulo Pamplona
Antonio Fragoso
Francisco Lopes
Florival Seraine
Otacílio Colares
Jean Pierre Chabloz
João Siqueira
Jaime Silva
Cine Majestic
1949 GMO
PMO
MP
MB
MH
MH
MH
Barboza Leite
Jonas Mesquita
Francisco Lopes
Afonso Lopes
Flávio Phebo
Eduardo Pamplona
J. Figueiredo
Carlos Tavares do
Carmo
Filgueiras Lima
Rdo. Vieira da Cunha
João Siqueira
Jaime Silva
Instituto do Ceasrá
1950 MO
MP
MB
MH
MH
MH
Floriano Teixeira
J. Marzano
Murilo Teixeira
R. V. Cunha
Zenon Barreto
Sérvulo Esmeraldo ?
Aluísio Medeiros
João Siqueira
Antonio Girão
Hall da Assembleia
1951 MO
MH
Barrica
Raimundo Garcia
Cine Majestic
1952 MO
MP
MB
MH
Iedo Saldanha
A. Alves de Almeida
J. Figueiredo
Florivaldo
Joelita Fragoso
R. Melo
João Siqueira
Floriano Teixeira
Zenon Barreto
IBEU
224
1953
DM
DM
Aquarela
Desenho
MO
MH
Barrica
Zenon Barreto
Murilo Teixeira
Heloisa
Juaçaba?Floriano?
Lúcia Galeno
Raimundo Garcia
Paulo Pamplona
Aneliese Tuliola
Sinhá D’Amora
Térreo do Edifício Sul
América
10º 1954
MP
Heloisa Juaçaba?
Estrigas
Saber com Garcia ou
Unitário 14/04/54
Cimaipinto
11º 1955 D.G.
D.M.
MH
José Fernandes
Antonio Fragoso
A. Vidal Gurgel
J. Arrais
Lúcia Galeno
Sinhá D’Amora*
Jonas Miranda
Mário Baratta
Honor Torres
Raimundo Kampos
Paulo Bonavides
Ant. Albuquerque
Ed. Cimaipinto
12º 1956 Goebel Weyne
Zenon Barreto
IBEU
13º 1957 Zenon Barreto
Floriano Teixeira
Palácio do Governo
estadual
14º 1958 Zenon Barreto
Nice
UFC
14º 1964 Pintura
Desenho
Escultura
?
Descartes Gadelha
Nearco Araujo
Nearco Araujo
Zenon Bareto
Sérgio Lima
Nice
Ernando Uchoa
Terezinha Ticky
João Siqueira
J.P. Chabloz
José Maia
Solon Faria
Crasa
15º 1965 Não houve premiação Cidade da Criança
16º 1966 Pintura
Desenho
Escultura
Gravura
MH
MH
Sérgio Lima
Antônio Campelo
Jair Quezado
Kleber Ventura
Alvaro Neto
Ximenes Lima
João Maria Siqueira
Ernest Bormann
José Maia
Sociedade Musical
Henrique Jorge
17º 1967
Escultura
MH
Heloysa Juaçaba
Ricardo Videla
Ascal ?
Descartes?
Cidade da Criança
Dep. de Turismo da
PMF
18º 1968 Pintura
Escultura
Desenho
Gravura
José Américo
Antônio Videla
Antônio Campelo
Kleber Ventura
Cidade da Criança
Dep. de Turismo da
PMF
19º 1969 Zenon Barreto
Tarcísio Félix
Cidade da Criança
Dep. de Turismo da
225
Ascal? PMF –
Sala Antônio
Bandeira
20º 1970 Pintura
Desenho
Gravura
Escultrura
Talha
Tarcísio Félix
Joaquim de Souza
Marcos Alcântara
Sergei de Castro
Ana Lúcia Uchoa
Regina Cavalcante
Zenon Barreto
Arialdo Pinho
Raimundo Athayde
Raimundo F.D.
Aldemir Martins
Antônio Girão
Geraldo Markan
Heloysa Juaçaba
Nilo Firmeza
21º 1971 Pintura
Talha
Escultura
Desenho
Átila Calvet (Ascal)
Cairo Saraiva
Eliana Rocha Lima
Hélio Rola
Joaquim de Souza
Roberto Galvão
Ivaldo Ferreira
Gilberto Gomes de
Moura
Fco. Assis Pereira da
Costa
Clotenes Ponciano Lima
Batista Sena
Rodolfo Markan
Kleber Ventura
Antônio Girão
Artur E. Benevides
João Jacques
Geraldo Markan
Henrique Barroso
22º 1972 Pintura
Desenho
Gravura
Talha
Escultura
AQ
AQ
AQ
AQ
AQ
Aderson Medeiros
Araken Hipolito
Anailse Bezerra
Cavalcante
Heloysa Juaçaba
Margarida Maria da Silva
Pedro Eymar
Alberto Capelo
Antonio Cassiano (Koin)
Batista Sena
Rodolfo Markan
Alberto Castelo Branco
Leão Jr.
Hilton Rabelo
Deoclécio Diniz (Bibi)
23º 1973 Pintura
AQ
Átila Calvet
Arakem Hipólito
Epaminondas Florêncio
Francisco Nogueira
Olavo Vasconcelos
José Pinheiro
Raimundo Mateus
José Julião
J. Figueiredo
José Fernandes
Nilo Firmeza
Henrique Barroso
Geraldo Markan
226
Desenho
Gravura
Escultura
AQ
AQ
AQ
Rubens Albuquerque
Batista Sena
Kleber Ventura
Letícia Parente
Arialdo Pinho
Fco. Paiva Loiola
Roberto Galvão
Flávio Sampaio
Edu
24º 1974 Pintura
Desenho
Gravura
Escultura
Objeto
Art. Dec.
Joaquim de Souza
Francisco Nogueira
Alano Freitas
Kleber Ventura
Raimundo Athaide
Bené Fonteles
Ivan Cunha
Eusélio Oliveira
Henrique Barroso
João Siqueira
Nilo Firmeza
25º 1975 Instalação
Pintura
Gravura
MH
Bené Fonteles
Francisco Nogueira
Kleber Ventura
Marcus Jussier
Mariza
Romilson Lopes
J. Arrais
Mário Barata
Henrique Barroso
Nice
J. Figueiredo
Nilo Firmeza
26º
1976 Pintura
MH
J. Pinheiro
J. Arrais
Luiz Derossy
Alano de Freitas
Nicolas Almeida
Fco. Vidal Jr.
Loinha
Ivan Cunha
Heloisa Juaçaba
Julião Guimarães
Marcus Jussier
Matos Dourado
Nilo Firmeza
27º 1977 Pintura
Escultura
Desenho
MH
Vivaldo Ramos
Ivan Cunha
Batista Sena
João Jorge
Marisa Campos
Loinha
Ricardo Nobre
Heloisa Juaçaba
Julião Guimarães
Marcus Jussier
Matos Dourado
Nilo Firmeza
Rubens de Azevedo
28º 1978 Desenho
Pintura
Escultura
MH
Fco. Vidal Jr.
Cairo Saraiva
Zé Pinto
Alano de Freitas
Ricardo Nobre
Jane Lane
Ant. Oliveira Rolim
Gilberto Cardoso
Loinha
Heloisa Juaçaba
Julião Guimarães
Nilo Firmeza
Rubens Azevedo
Matos Dourado
29º 1979 Desenho
Escultura
Flávio Urquizah Vidal
Fco. Josué Albano
Heloisa Juaçaba
Jane Lane
227
Pintura
Art. Con.
MH
Loinha
Moisés P de Oliveira
Filho
José França Amora
Juçara Fernandes
Ricardo Nobre
Valdenora Sousa Lima
Rubens de Azevedo
Nilo Firmeza
Matos Dourado
30º 1980 Cleoman Fontenele
Bené Fonteles
Luiz Karimai
Ant. Vieira Ferreira
Ivan Pereira Cunha
Ricardo Nobre
Ant. Lucio Leite (Buca)
Daise Grieser
Ricardo Rocha Pinto
Paulo Frota
Descartes Gadelha
Nilo Firmeza
Julião Guimarães
Sérgio Lima
Sérvulo Esmeraldo
Casa de Raimundo
Cela
31º 1981 Pintura
Desenho
Escultura
AQ
Tarcísio Felix
Batista Sena
Zé Pinto
José Guedes
Gilberto Cardoso
Renato Soares
Sigbert Franklin
David Bezerra de
Meneses
Zuleide M. Meneses
Mino
Jane Lane
Heloisa Juaçaba
Nilo Firmeza
Museu da UFC –
MAUC
32º 1982 Pintura
Desenho
Siegbert Franklin
José Guedes
Ivan de Assis
Rodolfo Markan
Eduardo Eloy
Tarcísio Felix
Arlindo Araujo
Eliezer Rodrigues
Henrique Barroso
Roberto Galvão
Roberto Pontes
Casa de Raimundo
Cela
33º 1983 Desenho
Art. Com.
Pintura
MH
Marcos Levy
Ant. Vieira Ferreira
Salete Rocha
Rodolfo Markan
Fco. Vidal Jr.
Michel Oca
Francisco Kunha
Ignez Fiuza
Loinha
Nilo Firmeza
Mauricio Cals Matos
Dourado
Pavilhão Antônio
Bandeira
34º 1984 Pintura
Desenho
Escultura
MH
Fco. Wagner
Nepomuceno
Válber Benevides
Fran
Manoel Neto
Tamara Roman
Fco. Vidal Jr.
Zé Pinto
Ivani Gomes
Júlio Maciel
Joca
Matos Dourado
José Stélio
Rubens de Azevedo
Nilo Firmeza
Descartes Gadelha
Pavilhão Antônio
Bandeira
228
Tania Castro
Salet Rocha
Otacílio Camilo
35º 1985 Paulo Frota
Francisco Cardoso
Mundinha
Roberta Boris
Francisco Costa
Zé Pinto
Mário Sandares
Ricardo Nobre
Digeorgia
Tamara Roman
Barrinha?
Rubens de Azevedo
Heloisa Juaçaba
Roberto Galvão
Descardes Gadelha
Nilo Firmeza
Hotel Praiano
36º 1986 Esculturas
Pinturas
Desenho
Fotografia
1
2
3
Mençã
o
Especi
al
Hélio Rôla
Fransoufer
Mário Sandars
José Cláudio Lima -
Calima
Regina Silveira
Casimiro X.de
Mendonça
Barrica
Nilo Firmeza
Descartes Gadelha
Claudio Pereira
Casa de Cultura
Raimundo Cela
37º 1987 PMF
Pintura
Desenho
Escultura
Fotografia
Conjunto
ME do
Juri
MH
Jorge Luis
Renato Soares
Carlos Colombo
Fran Costa
Gentil Barreira
José Albano
Chico Albuquerque
José Tarcísio
Maurício Cals
José Guedes
Patrícia Veloso
Carlos Costa
Eduardo Almeida
Ricardo Rodrigues
Sandra Burgos
João Jorge
Jane Lane
Roberto Galvão
Dodora Guimarães
Arnaldo Fontenele
Casa da Cultura;
Fotogaleria Gentil
Barreira; Galeria da
Assefaz.
38º 1988 Escultura
Pintura
Fotografia
Desenho
Incentivo
Instalação
M.Francis
.
J.F.Amor
a
J.de
Souza
ME do
Luis Ant. G. Da Silva
Marcus Jussier
Jacques Antunes
Maurício Coutinho
Carlos Otávio
Kazane
Grupo Interferência
Tadeu Bitencourt
Raimundo Nonato
Edmilson A. Pereira
Mári Sandars
Gentil Barreira
José Guedes
Roberto Galvão
João Jorge
Casa da Cultura
229
Juri
39º 1989 PMF
Pintura
Desenho
Fotografia
Escultura
Audifax Rios
Ruth Scheneider
Andre Luiz
Claudio Lima
J. Ribamar Fernandes da
S.
Goebel Weyne
Henrique Barroso
Nilo Firmeza
Galeria Antônio
Bandeira
40º
41º
1990 S de Abril
Art. Com.
Fotografia
Escultura
Pintura
Dante Diniz
Gentil Barreira
Tiago Santana
Luisa Mesquita
Carlos Costa
Jose Nasser Hissa
Sheila Leirner
Nilo Firmeza
Palácio da Abolição
42º 1991 Fotografia
Pintura
Desenho
Gravura
MH
Gentil Barreira
Celso Oliveira
Hélio Rôla
Joelson Bezerra Gomes
Alano de Freitas
Jose Lourenço
Kelson Teles
Jose Nobre
Elias Gomes
José Tarcísio
Júlio Silveira
Sonia Goldberg
Paulo Herkenhof
Pedro Eymar
Pavilhão Antônio
Bandeira; Arte Galeria
(Homenagem a
Masrcus Francisco)
43º 1992
Não houve premiação
Museu da UFC –
MAUC
44º 1993 Escultura
Desenho
Fotografia
Gravura
Instalação
Pintura
MH
Eduardo Frota
Sérvulo Esmeraldo
Alano Freitas
Tiago Santana
Júlio Silveira
Barrinha
José Tarcísio
Maurício Coutinho
Hilton Quiroz
Wando Figueirêdo
Paulo Herkenhof
Nilo Firmeza
??????
45º 1994 GP
P Pint.
P Des.
P Objeto
P Grav
P Foto
Eduardo Frota
José Guedes
Herbert Rolim
Barrinha
Sebastião de Paula
Claudio Medina
Paulo Herkenhof
Nilo Firmeza
Carlos Fajardo
46º 1995 GP
P Des.
P Pint.
P Grav.
P Foto
Sergio Lima
Herbert Rolim
Carlos Costa
Nelson Jorge
Silvana Torelho
Paulo Herkenhof
Nilo Firmeza
Roberto Galvão
47 1996 GP
P Pint
P Objeto
P Des
Edson Landim
José Guedes
Fco. Zanazanam
Tania Kacelnik
Paulo Herkenhof
Nilo Firmeza
Alina Tortosa
230
P Pint
P Des
P Grav
Sérgio Pinheiro
Maurício Coutinho
Evaldo Miranda
48 1997 GP
P Grav
P Grav
Barrinha
Fco. Almeida
Sidney Philocreon
Estrigas
Descartes
Roberto Galvão
49 1998
Não houve a mostra Não houve
50 1999 GP
P Foto
P Grav
P Grav
P Pint
Gentil Barreira
Nicolas Gondim
Mariza Viana
Edla Guedes Maia
Chico Rabelo
Augusto Cesar Costa
Lira Neto
Gilmar de Carvalho
Estrigas
José Albano
51 2000 GP
P Des
P Grav.
P Objeto
Conj Obra
Fco. Almeida
Herbert Rolim
Cláudia Sampaio
Fco. Zanazanam
Audifax Rios
Arnaldo Fontenele
Descartes Gadelha
José Guedes
Estrigas
Dodora Guimarães
Mercado dos Pinhões
52 2001 GP
P Grav
P Pint
P Des
P Aqui
P Aqui
Fco. Zanazanam
Sérgio Helle
Tarcísio Félix
Herbert Rolim
Glauco Sobreira
Galba Sandras
Leonor Amarante
Moacir dos Anjos
José Guedes
Antigo Mercado
Central
53
2002 11
Prêmios
iguais
Ticiano Monteiro, Milena
Travassos, Bosco Lisboa
Gerardo da Silva,
Transição Listrada
(Rodrigo Costa Lima e
Victor Cesar), Kelson
Teles, Fco. Zanazanam,
Telmo
Valença, Jared Domício,
Celso Oliveira, Drawlio
Joca, Igor Câmera,
Herbert Rolim, Celestino
Ramalho, Fco. de
Almeida.
José Guedes
Tadeu Chiarelli
Dodora Guimarães
Antigo Mercado
Central
54 Salão de Abril (2003): 8 prêmios- mulheres: 2
Prêmio Pintor Antônio Bandeira: Bia Cordovil
Prêmio de Desenho: Celestino Ramalho
Prêmio de Escultura: Cícero do Nascimento (Cizin)
Prêmio de Pintura: Daniel Maillet
Prêmio de Manifestação Artística Cultural Contemporânea: Francisco
Zananzanan
Prêmio de Fotografia: Heldon Pedrosa
Prêmio de Gravura: Márcia Moura
231
55º Salão de Abril (2004): 10 prêmios – mulheres: 1
Prêmio de Escultura: Bosco Lisboa
Grande Prêmio Unifor de Artes Plásticas: Francisco Antônio de Araújo
Bandeira
Prêmio de Desenho: Francisco Zananzanan
Menção Honrosa: Jorge da Silva Costa
Menção Honrosa: Telmo Valença
Prêmio de Manifestação Artística Cultural Contemporânea: Maria Denize
Fernandes Oliveira
Prêmio de Gravura: Nauer Spíndola
Prêmio de Pintura Banco do Brasil: Weaver Lima
Prêmio de Fotografia: Yuri Firmeza
56º Salão de Abril: Salão sem premiação, com pró-labore – 30 selecionados, 8
Mulheres
Alexssandra Ferreira Ximenes
Érica Zíngano
Jacqueline Medeiros
Rosãngela Melo
Marina Soares
Milena Travassos
Heloísa Juaçaba
Silãnia Cavalcante
58º Salão de Abril: 30 artistas selecionados
3 premiados: Francisco Zanazanan, Thiago Honório, Daniel Murgel.
232
ANEXO – QUADRO DE EXPOSIÇÕES DO MAC
EXPOSIÇÕES MAC 1998
Exposição Início Término
ACERVO
PERMANENTE
RAIMUNDO CELA E
ANTÔNIO BANDEIRA
07/08/98
31/03/00
CEARÁ E
PERNAMBUCO -
DRAGÕES E LEÕES
07/08/98
31/12/98
EXPOSIÇÕES MAC 1999
Exposição Início Término
ARTE CONSTRUTIVA
NA EUROPA, NO
CEARÁ E IANELLI
07/01/99
11/04/99
PORTUGAL MAR SEM
FIM
27/04/99
31/08/99
PRIMEIRAS OBRAS
DO ACERVO
PERMANENTE
14/09/99
10/10/99
TRÊS GRAVADORES 10/09/99
10/10/99
OS MÚLTIPLOS
BEUYS
28/09/99
05/11/99
RUMOS VISUAIS 14/10/99
30/11/99
FLAVIO-SHIRÓ:
PINTURAS E
MONOTIPIAS
01/12/99
09/01/00
EXPOSIÇÕES MAC 2000
Exposição Início Término
ALDEMIR MARTINS 21/01/00
31/03/00
PANORAMA DA ARTE
BRASILEIRA
15/04/00
04/06/00
QUATRO
VALENCIANOS NO
BRASIL
15/06/00
04/08/00
ARTE POLÍTICA: ISTO 11/08/00
17/09/00
233
SÃO OUTROS 500
DIREÇÕES 26/09/00
22/10/00
Herbert Rolim, Maurício
Coutinho e Sérgio Lima
27/10/00
21/11/00
PROJETO
PASSARELA: VARAL
08/11/00
20/12/00
AUGUSTE RODIN 29/11/00
02/01/01
EXPOSIÇÕES MAC 2001
Exposição Início Término
MUCURIPE E ACERVO 06/01/01
16/01/01
PROJETO PASSARELA:
ILUSÃO
11/01/01
18/03/01
"DESLOCAMENTOS" E
"REDUNDANTES E AS
ELITES DAS CAVERNAS"
19/01/01
11/03/01
EYEGOBLACK 20/03/01
28/05/01
PROJETO PASSARELA: A
FORMA ESCONDIDA DO
SER PRÓPRIO
22/03/01
31/05/01
AQUISIÇÕES 2000/2001 09/06/01
27/07/01
PROJETO PASSARELA: A
ARTE DE ESPANTAR
MOSCAS
01/06/01
31/07/01
JULIO LE PARC - LUZ E
MOVIMENTO
10/08/01
04/11/01
PROJETO PETROBRAS
ARTES VISUAIS: PAÍS
INVENTADO - ANTÔNIO
DIAS
24/11/01
10/02/02
PROJETO PETROBRAS
ARTES VISUAIS:
VISUALIDADES
CONTEMPORÂNEAS -
EFRAIN ALMEIDA
27/11/01
30/12/01
EXPOSIÇÕES MAC 2002
Exposição Início Término
PROJETO PETROBRAS
ARTES VISUAIS:
BRÍGIDA BALTAR
10/01/02
10/02/02
CEARÁ REDESCOBRE O 10/03/02
31/07/02
234
BRASIL
PROJETO PETROBRAS
ARTES VISUAIS:
VISUALIDADES
CONTEMPORÂNEAS -
VIK MUNIZ
11/06/02
31/07/02
AINDA GRAVURA 20/08/02
17/11/02
IRAN DO ESPÍRITO
SANTO
15/10/02
17/11/02
I BIENAL CEARÁ
AMÉRICA
13/12/02
30/04/03
EXPOSIÇÕES MAC 2003
Exposição Início Término
José Patrício - Ars
Combinatória, Cento e
Doze Dominós
13/05/03
31/07/03
VALESKA SOARES 23/05/03
29/06/03
Graça Pereira Coutinho 29/05/03
29/06/03
Experimental [fase I] 14/08/03
21/09/03
ELIDA TESSLER -
HORAS A FIO
21/08/03
07/12/03
REGINA VATER 02/10/03
02/11/03
O Olhar Viajante DE
Pierre Fatumbi Verger
02/10/03
02/11/03
Experimental [fase II] 27/11/03
23/05/04
EXPOSIÇÕES MAC 2004
Exposição Início Término
HETERODOXIA 03/06/04
01/08/04
IBERÊ CAMARGO -
Diante da Pintura
02/07/04
22/09/04
ART DIGITAL VIDÈO 27/08/04
23/09/04
FOTOGRAFIA
CONTEMPORÂNEA
PARAENSE
06/10/04
19/01/05
235
EXPOSIÇÕES MAC 2005
06 - 10.11 a 31.12
Paris em Foco
Objectif Paris
Apoio: Consulado Geral da França para o
Nordeste/ Aliança Francesa
Projeto Paredão – II Edição
Eu Morro Um pouco Toda Vez que Te Digo
Adeus - Paulo Lima Buenoz
Fotopintura
Ensaio Visual
Doações Recentes IV
Clube de Colecionadores da Fotografia do
MAM-SP
Artista Invasor – III Edição
Mitos Vadios - Solon Ribeiro
Obras em Destaque
EXPOSIÇÕES MAC 2005
05 - 15.09 a 30.10
Vidéofresnoy – Productions // Projections
236
Como é doce morrer no mar...
Apoio: Reno Bello Serviços e Equipamentos
Doações Recentes III
Leonilson – 15 obras
Doações Recentes III
Clube da Gravura do MAM – 19 Gravuras
Artista Invasor – II Edição
Marta Neves
O Museu Visto Por Dentro
Obras em Destaque
Escolha das obras pela Equipe de Educadores
do MAC
.
EXPOSIÇÕES MAC 2005
04 - 07.07 a 28.08
Darío Basso
Doações Recentes 2005 – II Edição
237
Apoio: Acriarte
Obra em Destaque – Antônio Bandeira
Escolha da obra pelo mestre em literatura
Carlos Augusto Lima
Exposição da obra “Cidade”, s/d, de Antônio
Bandeira, com texto crítico de Carlos Augusto
Lima.
Projeto Artista Invasor – I Edição
Járed Domício
EXPOSIÇÕES MAC 2005
03 - 27.04 a 26.06
‘Primeiro me deram de presente as
nuvens…’ – Antônio Bandeira
Doações Recentes 2005 – I Edição
Nazareno
Doações Recentes 2005 – I Edição
Frans Kracjberg
Obra em Destaque
Paulo Climachauska
Projeto Paredão – I Edição
Regina Silveira
238
Comodato por 6 meses da obra: Master pieces
in absentia: Calder, (1999)
Regina Silveira, que nasceu no Rio Grande do
Sul, vive e trabalha em São Paulo, se intitula
apenas artista e está sempre investigando os
postulados da arte e os limites de suas
linguagens.
EXPOSIÇÕES MAC 2005
02 - 27.01 a 03.04
Efrain Almeida e Maurício Coutinho
Exposição de 60 trabalhos em aquarela dos
artistas plásticos Efrain Almeida e Maurício
Coutinho.
EXPOSIÇÕES MAC 2006
06 - 26.10.2006 a 07.01.2007
Gravura
Contemporânea
Brasileira
Coleção Museu de Arte
Contemporânea
O expressionismo na
gravura de Goeldi
Coleção privada de
André Buck, de São
Paulo
A obra gráfica de
Sérvulo Esmeraldo
Coleção Museu de Arte
Contemporânea
239
Maria Bonomi
Projeto Artista Invasor
Cláudia Sampaio
Projeto Paredão
Iara Freiberg
Draco Draconalis
Dragão
Bloco E
Ricardo Aderaldo
EXPOSIÇÕES MAC
05 - 04 - 31.08 a 15.10
Rumos Itaú Cultural
nas Artes Visuais
Entre o público e o
privado: transições na
arte contemporânea
Doações Recentes IV
Luiz Hermano
Gabinete de
Curiosidade
"ENTRELINHAS"
240
Adolfo Montejo Navas
(Espanha), Francisco de
Almeida (CE), José
Spaniol (RS), Leya Mira
Brander (SP), Leonilson
(CE), Murilo Maia (CE),
Paulo Bruscky (PE),
Paulo Climachauuska
(SP), Rosana Ricalde
(RJ), Rosângela Dorazio
(MG) e Laura Vinci (SP).
EXPOSIÇÕES MAC
04 - 13.07 a 20.08
Confira as fotos do Coquetel de Abertura, dia
13/julho
Imagem e Paisagem
Percursos Fotográficos
DESignu /
desDOBRAMENTOS
Entre os artistas
selecionados estão:
Wáleria Américo, Vitor
César, Járed Domício,
Efrain Almeida, Iran do
Espírito Santo, Rosana
Ricalde, Felipe Barbosa,
dentre outros.
Doações Recentes III
Fotografia na Coleção
do MAC
Lina Kin, Gentil Barreira,
José Guedes, Bia
Cordovil, Marcos
Guilherme, Rodolfo
Athayde, Solon Ribeiro
e a italiana radicada em
Fortaleza, Francesca
Novicelli,
241
Artista Invasor
Júlio Leite
.
EXPOSIÇÕES MAC
03 - 01.06 a 02.07
Todos os Verbos no
Feminino - Antônio
Bandeira
Projeto Artista Invasor
Daniel Maillet
Instalação: “Rogai”
Zé Tarcísio
Doações Recentes II
Tereza Berlinck,
Rosângela Dorazio,
Sérgio Pinheiro e Zé
Tarcísio
Doações Recentes II
Paulo Lima Buenoz
Obras em Destaque
Escolha das obras por 3
integrantes da equipe
de segurança do
Dragão do Mar
São elas: Andréia
242
Oliveira, Cláudia
Magalhães e Gilmara
Martins.
Livros-objeto-livro
(1994-2006)
Adolfo Montejo Navas
EXPOSIÇÕES MAC
02 - 06.04 a 21.05
Projeto Artista Invasor
Invasor I: Robézio
Marques
Projeto Artista Invasor
Invasor II: Renata
Andrade
Obras em Destaque
Obras escolhidas pela
ONG Arte e Vida da
Comunidade do
Pirambú
.
Carmen Calvo
Sala Especial
Aldemir Martins
243
EXPOSIÇÕES MAC
01 - 19.01 a 19.03
De um lugar a outro
Beatriz Pontes, Érica
Zíngano, Mariana Smith,
Milena Travassos e
Waléria
Obras em Destaque
2005
Escolha das obras pelos
funcionários do MAC
Geijitsu Kakuu
Souzousareta
Geijutsuka
MAC homenageia
Aldemir Martins
Doações Recentes I
Primeiras Doações 2006
.
Livros Grátis
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