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não restringe o emprego do futuro somente a esse caráter
narrativo, profético ou anunciativo. Serve-se também da
mesma forma verbal artificiosamente, referindo-se a fatos ou
intenções que se passam na atualidade, mas que convém
expor como se pertencessem ao domínio vago e indefinido
do porvir.(SAID ALI, 2001, p. 233).
Para Said Ali (2001, p. 236), os diferentes usos do futuro podem ser
conseguidos somente com a forma sintética do verbo; em situações diferentes, ele
tem valor semântico diferente. O autor cita, no entanto, a forma perifrástica com
haver de e traz o seguinte exemplo de Gil Vicente: “Vós não haveis de fallar com
homem nem com mulher que seja (3,145) – vós não haveis de mandar em casa
somente hum pello; s’eu disser isto he novello, haveil-o de confirmar. E mais
quando eu vier de fora, haveis de tremer (3, 146)”. Para o autor, essa construção
tem caráter categórico, no sentido de funcionar claramente como um imperativo.
Se é como diz Said Ali, porque a forma perifrástica estaria substituindo a
sintética e não o contrário?
Essa questão faz-nos retomar as idéias do filósofo Flusser (2004), quando
ele diz que, somente agora, com essa forma perifrástica -auxiliar ir + VP-, é que o
português está de fato assumindo marcação de tempo. Vamos à sua explicação:
Em 1963, Flusser arrisca uma profecia sobre o verbo haver, que, pelo que
estão demonstrando as descrições contemporâneas, parece estar se
concretizando: “Os dois refúgios mais importantes do haver são, atualmente, o há
impessoal e a formação do futuro. Ambos estão periclitando. O há impessoal está
ameaçado pelo tem e a formação do futuro pelo verbo ir” (FLUSSER, 2004, p. 93)
O autor argumenta que o sufixo “ei” reconhecido como o verbo “haver”,
apesar de transformado em morfema, sempre esteve muito associado ao verbo
ter, prova disso é que é muito freqüente a alternância de um pelo outro no
português (tanto de lá quanto de cá); assim “haver algo” é o mesmo que “ter algo”.
Então se tenho algo, esse algo me pertence e marca ou qualifica a minha posição
perante ele, o que leva Flusser a concluir que “O futuro nessa forma portuguesa,
é, portanto, uma propriedade, uma qualidade do presente”, além da relação do
haver/ter com dever, no sentido de obrigatoriedade (op. cit., p. 93-94). É essa
relação que, segundo Flusser, causa descontentamento do falante da língua
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