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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
RETRATOS DO COTIDIANO:
AS MULHERES DO ASSENTAMENTO RURAL SANTA VITÓRIA
JANETE MONTEIRO DE SOUZA
Natal, RN
2001
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2
JANETE MONTEIRO DE SOUZA
RETRATOS DO COTIDIANO:
AS MULHERES DO ASSENTAMENTO RURAL SANTA VITÓRIA
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do título de
Mestre, junto ao programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais, da
Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, sob a orientação da Profª. Dr.ª.
Brasília Carlos Ferreira.
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BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Brasília Carlos Ferreira /UFRN
Orientadora
Prof. Dr. Antonio Ribeiro Dantas
1° Examinador
Profª. Drª. Maria Lina Teixeira
2° Examinador
Prof. Dr. Aldenôr Gomes
(Suplente)
4
RESUMO
O presente trabalho mostra trajetórias de vida de mulheres assentadas
rurais, com o objetivo de apreender aspectos ligados à vivência de sua
sexualidade. O cotidiano da mulher assentada é construído em um espaço
novo, chamado de assentamento rural cuja formação se apresenta com
singularidades próprias a um contexto socioeconômico e político do Rio
Grande do Norte. Os seus percursos de vida são permeados por diferentes
violências sofridas em seu cotidiano e sua sexualidade é tecida por um
conjunto de regras que mantém a naturalização da subordinação da mulher
em relação ao homem. As sociedades usam os sistemas das relações entre
homens e mulheres e transformam a característica biológica em atividades
humanas.
5
ABSTRACT
The present work shows trajectories of life of seated women agricultural,
with the objective to apprehend on aspects to the experience of its sexuality.
The daily one of the seated woman is constructed in a new space, called
agricultural nesting whose formation if presents with proper singularity to a
social and economic context and politician of the Great River of the North.
Its passages of life are permeaty by different violences suffered in its daily
one and its sexuality is weaveeed by a set of rules that the naturalization of
the subordination of the woman in relation to the man keeps. The societies
use the systems of the relations between men and women and transform the
biological characteristic into activities human beings.
6
AGRADECIMENTOS
Este trabalho não seria possível sem a ajuda e compreensão de muitas
pessoas com quem convivi nos últimos anos. Ao Dr. Antonio Ribeiro
Dantas, com quem tive o prazer de ensaiar os primeiros passos, e a Dra.
Brasília Carlos Ferreira, que me acompanhou até o fim dessa dissertação. A
ambos agradeço por todas as qualidades que existem nesse trabalho.
A Elane e a Ester que dividiram suas vidas comigo.
Agradeço com mais profundo amor e respeito á minha mãe, Alice, e a
minha tia, Fátima.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................................08
I- O ASSENTAMENTO SANTA VITÓRIA............................................................16
1- Sobrevivências rurais do Rio Grande do Norte.
2- A conquista da terra de Santa Vitória.
3- O cotidiano, o trabalho e a política.
II- FRAGMENTOS DE MULHERES........................................................................45
2.1- Os limites do ser mulher.
2.2- A mulher, a sexualidade e a família.
III- TRAJETÓRIAS FEMININAS..............................................................................68
3.1- As entrevistadas.
3.2- As entrevistas.
IV-CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................95
V- BIBLIOGRAFIA..........................................................................................................100
VI- ANEXOS.....................................................................................................................104
8
INTRODUÇÃO
Neste texto, analisamos trajetórias de vida de mulheres rurais
assentadas, buscando apreender aspectos ligados à vivência de sua
sexualidade.
A escolha desse objeto de pesquisa se deveu, em primeiro lugar, ao
interesse em investigar a experiência de mulheres residentes em um
assentamento rural. A constatação da rara produção acadêmica sobre o tema
acabou por defini-lo como objeto de pesquisa e reflexão com vistas à
elaboração da dissertação de mestrado.
Os estudos sobre sexualidade fundamentados em metodologias mais
experimentais, descritivas, interpretativas dos fenômenos sociais, são
encontrados principalmente nos anos oitenta e noventa, com o advento da
epidemia do HIV-Aids. No interior dessa produção, pode-se observar uma
variedade de enfoques e abordagens à temática, delineando-se nessa
construção interesses variados decorrentes de discussões e divergências
entre pesquisadores. Um árduo processo de legitimação acadêmica fez da
temática da sexualidade um objeto de pesquisa e reflexão no interior das
universidades.
Consideramos que tais avanços são frutos da longa jornada
disseminada, principalmente, na década de setenta, palco de nova
9
visibilidade social, destacando-se o pensamento feminista, que inculcou
discussões sobre as relações de gênero e o papel social da mulher. Eles são
conseqüência também de inovações tecnológicas, como a pílula
anticoncepcional que, ao promover a separação entre sexualidade e
procriação, permitiu novos desenhos das relações afetivas-sexuais.
As disciplinas que primeiramente se ocuparam do assunto como a
Psicanálise, a Biologia, a Medicina, a Zoologia, a Botânica, a Antropologia,
(com exceção da última citada) centraram-se em análises sobre o
funcionamento do corpo sexual e comportamental dos humanos e dos
animais. A Antropologia trouxe à tona conexões até então desconhecidas,
como a de que os seres animais na terra são dotados de corpos sexuados e
práticas sexuais, mas que somente os animais humanos obedecem a regras,
exigências naturais e sociais. Suas sociedades o portadoras de todo um
conjunto de interdições, permissões, normas e valores estabelecidos
histórico e culturalmente para controlar o exercício da sexualidade.
As disciplinas ou as formas de pensamento que se ocuparam do tema
atribuíram-lhe um caráter ético ou normativo/terapêutico: o catolicismo, a
medicina e a psicanálise. A antropologia se constituiu como exceção, pois se
ocupou da sexualidade como forma de pensar o social e a sociedade.
Segundo Chauí (1984), o termo e a idéia conceitual de sexualidade
surgiram tardiamente. Os dicionários registram a palavra sexualidade a partir
do momento em que a palavra sexo passa a ter um sentido mais alargado;
especialmente quando os estudiosos começam a distinguir e diferenciar entre
necessidade física, biológica, prazer (físico, psíquico) e desejo (imaginação,
simbolização). Essa expansão fez com que o sexo deixasse de ser encarado
apenas como função natural de reprodução da espécie ou como fonte de
prazer (ou desprazer), para ser encarado como um fenômeno mais global
10
que envolve nossa existência como um todo.
A posição de desnaturalização da sexualidade, assim como as relações
estabelecidas entre homens e mulheres, mostra a sexualidade não como
força natural e sim como um sistema socialmente construído. A sexualidade
se constituiria, portanto, como um operador de mediações sociais. A partir
dos sistemas de gênero, as sociedades transformam a característica biológica
em atividades humanas, a partir das quais as necessidades humanas são tanto
satisfeitas, quanto transformadas.
Nas abordagens dos historiadores e sociólogos, principalmente, é
presente a tentativa de desconstrução ou revisão dessa concepção
naturalizada da sexualidade, que a mantém ligada à reprodução biológica da
espécie.
Compartilhando o amplo processo de mudança social global sobre as
questões e debates emergentes da reconceituação da sexualidade, atualmente
tem-se uma pluralidade de abordagens e estilos sobre a temática. A
problemática teórica apresentada faz parte de uma visão considerada
moderna da sexualidade: que se coloca como um objeto de estudo autônomo;
fundamentalmente porque a sexualidade, enquanto tal, constitui ainda um campo a ser
delimitado, um objeto em pleno processo de construção. (Loyola: 1998, p. 11) Essa
abordagem se enquadra na postura metodológica denominada construtivismo
autonomista, que tenta desfazer a relação sexualidade versus reprodução,
presente na abordagem tradicional da sexualidade. O construtivismo
autonomista confere à sexualidade um estatuto autônomo, no qual as formas
de vivência sexual e sentidos relacionados à sexualidade erotismo, prazer,
se apresentam como centro das relações entre a sexualidade e os domínios
sociais a que ela esteve historicamente ligada. O construtivismo tenta
construir ou reconstruir a sexualidade como objeto de estudo,
11
desvinculando-a do essencialismo que reifica homens e mulheres em
identidades fixas, determinadas pela natureza.
Diante desse quadro conceitual, vários autores se posicionaram,
tentando imprimir uma definição para o que seja sexualidade. Elegemos
esta reflexão para explicitar o que entendemos por sexualidade:
(...) a sexualidade não está sujeita ao determinismo
animal, restrita ao mundo natural. É uma esfera
que passa além disso, ela contém a intencionalidade,
no sentido de consciência e de experiência de sentido,
no sujeito humano. É portanto dimensão
existencial, original e criativa em sua expressão e
vivência. E esta dimensão é dinâmica, dialética,
processual. Não se pode reduzir a sexualidade a um
substrato único, imutável, eterno (...) é histórica,
processual e mutável. (Cabral apud Nunes: 1995,
p. 152).
Dessa forma, o mundo da sexualidade é construído dentro do
complexo cultural e social no qual os homens e mulheres estão inseridos, os
quais constróem isoladamente suas concepções de vida, a partir de um
mundo social preestabelecido. Segundo Goldemberg (1996, p. 124) masculino
e feminino, ser homem e ser mulher assumem significados diferentes em cada cultura, são
socialmente construídos, produtos de determinada ordem social. A construção social das
relações entre homens e mulheres, se apropria da distinção fisiológica do
sexo masculino e do sexo feminino, selecionando os fatos naturais,
exacerbando-os ou anulando-os.
12
Sujeitos da Pesquisa e Estrutura da Dissertação
O cotidiano e a sexualidade da mulher do Assentamento Santa
Vitória nos foram revelados nos anos de 1999-2000. Seus relatos
favorecem o percurso do mundo pensado e vivido, juntamente com seus
maridos e filhos, pais, amigos.
Essas pessoas fazem parte de um contigente rural nordestino que
formou correntes migratórias em direção a fazendas improdutivas com a
intenção de calçar ali seus objetivos de novos padrões de trabalho,
disciplinas, ritmos e tarefas. Algumas dessas pessoas tomaram, pela primeira
vez, contato com formas de organização coletiva. Após a conquista da terra,
estas pessoas criaram uma comunidade denominada Assentamento Santa
Vitória-RN, produto de um intenso processo de mobilização de
trabalhadores(as) rurais que estavam insatisfeitos com as atuais condições de
trabalho no campo.
Segundo Caldart (1999), a palavra assentamento é de uso recente,
aparecendo no Brasil em meados da década de 60. Do ponto de vista dos
movimentos sociais que fazem a luta pela terra, um assentamento é
sinônimo de luta conquistada. Do ponto de vista do Estado, o termo indica
uma área de terra destinada a um conjunto de famílias sem-terra, como
forma de solucionar um problema fundiário. (Caldart: 1999, p. 120)
O local da pesquisa foi escolhido propositadamente, pelo fato de a
constituição de um assentamento rural envolver um projeto de luta política
e por ser um espaço novo com relativo isolamento social.
Os sujeitos envolvidos na pesquisa são mulheres, moradoras do
13
Assentamento Santa Vitória. Nosso contato com elas se deu através de dez
entrevistas. As entrevistas foram gravadas e tiveram de uma a três horas de
duração. As identidades das mulheres entrevistadas foram preservadas e
substituídas por nomes fictícios, visto que consideramos a questão de
valorizar alguns fatos peculiares à intimidade das entrevistadas. No geral, as
mulheres se mostraram surpreendentemente abertas com relação às
perguntas feitas. Além disso, contamos com a aprovação destas no que diz
respeito à gravação das entrevistas. Apenas uma das entrevistadas sentiu-se
inibida com a gravação; resolvemos, então, expô-la parcialmente.
Também apresentamos trechos de duas entrevistas concedidas por
Cícero Gomes, cientista social, assessor da Federação dos trabalhadores
Rurais do RN e Joaquim Alves dos Santos, presidente da Associação de
moradores do assentamento.
A dissertação está composta de três capítulos, ao longo dos quais,
buscamos sempre respaldar nossas argumentações a partir do diálogo com
os teóricos das ciências sociais. Acreditamos que um olhar sobre a
sexualidade da mulher assentada poderá ser uma contribuição ao debate que
hoje se trava, sobre a especificidade da questão feminina no meio acadêmico
e fora dele.
No primeiro capítulo, que descreve O Assentamento Santa Vitória,
procuramos mostrar a saga dos trabalhadores e trabalhadoras Sem Terra,
que através de muita luta encontraram nesta região árida o seu pedaço de
chão. Relatamos o processo de constituição desse assentamento, localizado
no município São Bento do Norte -RN e as condições socioeconômicas
atuais das famílias instaladas nessa área. Para isso, recorremos a vozes
distintas, homens e mulheres, com ênfase aos que participaram ativamente
do processo de luta e conquista da terra.
14
Procuramos, ainda que parcialmente, descrever a trajetória coletiva
dos assentados e assentadas até a chegada ao assentamento definitivo, que
ocorreu alguns meses após a formação do grupo destinado à ocupação da
área. Durante esse período, as famílias que se reuniram para fazer a
ocupação estavam desprovidas de bens materiais e, gradativamente, foram se
desfazendo do pouco que ainda tinham para se manterem no acampamento.
Ao receberem os lotes definitivos, os assentados se defrontaram (e
defrontam-se ainda) com vários problemas, entre eles: solos extremamente
degradados, escassez de recursos, lotes em área de mata cujos donos estavam
impossibilitados de desmatá-los, etc. (Bavaresco: 1999).
No capítulo II,- Fragmentos de Mulheres- procuramos descrever o
processo da construção da identidade da mulher no percurso da história,
mostrando os caminhos das diferentes violências sofridas em seu cotidiano.
O outro ponto abordado é a posição teórica que assumimos em
desnaturalizar a sexualidade assim como as relações estabelecidas entre
homens e mulheres. Consideramos a sexualidade e a relação entre homens e
mulheres como um sistema socialmente construído e não força natural. As
sociedades usam o sistema de gênero, e transformam a característica
biológica em atividades humanas. E a sexualidade se constituiria, portanto,
como um operador de mediações sociais das necessidades humanas.
No terceiro capítulo, -Trajetória Femininas,- buscamos mergulhar na
vida da mulher assentada, apresentando as entrevistadas e mostrando o
caminho seguido por elas na sua passagem de menina para mulher.
No quarto capítulo, apresentamos as Considerações Finais, onde
evidenciamos que o Assentamento Santa Vitória é um espaço novo
limitado pelas frágeis estruturas econômicas e sociais. As mulheres desse
assentamento estão distantes de debates que questionam a desigualdade de
15
gênero, a subjugação à sua sexualidade e ao seu corpo físico. Ou seja, elas
estão inseridas em uma estrutura social arcaica e economicamente
subdesenvolvida, que as leva a uma situação desprivilegiada, porque existe
todo um conjunto de efeitos produzidos pelas instituições (Família, Igreja,
Estado), que ditam normas, leis e mecanismos econômicos e que
fundamentam a coletividade e a individualidade da identidade e a
sexualidade da mulher.
16
I - O Assentamento Santa Vitória
1- Sobrevivência Rural no Rio Grande do Norte.
O Assentamento Santa Vitória é um pequeno núcleo de população
localizado a 24 KM do município de São Bento do Norte- RN, a uma
distância de 75 Km de João Câmara-RN e 155 Km de Natal.
Este assentamento é proveniente de áreas de terras improdutivas
divididas entre famílias Sem Terra. Esta área foi desapropriada pelo
Governo Federal para fins de Reforma Agrária, posteriormente à pressão
exercida pelos pequenos produtores(as) da região numa ocupação em terras
pertencentes ao Estado.
Os estudos sobre assentamentos rurais registram que até a década de
70 prevalecia a convicção de que estes não passavam de remendos sociais, cuja
função principal era a de atenuar a miséria crescente no campo e de reduzir os fluxos
migratórios para as cidades, sem possibilidades de alcançar a menor expressividade no
plano econômico. (Bavaresco: 1999, p. 262). Para Bergamasso e Norder (1996),
o termo assentamento apareceu pela primeira vez no vocabulário jurídico e
sociológico da reforma agrária venezuelana em 1960 e se difundiu em
inúmeros outros países.
Estes autores definem os assentamentos rurais como,
criação de novas unidades de produção agrícola, por
meio de políticas governamentais visando o
reordenamento do uso da terra, em benefício de
trabalhadores rurais sem terra ou com pouca terra.
Como seu significado remete à fixação do
trabalhador na agricultura, envolve também a
17
disponibilidade de condições adequadas para o uso
da terra e o incentivo à organização social e à vida
comunitária. (Bergamasso e Noder: 1996, p. 7-8)
Segundo dados do INCRA, no Rio Grande do Norte existe
atualmente algo em torno de 15.982 famílias assentadas, distribuídas em 231
núcleos (estimativa para 2002). As pessoas assentadas são, em sua totalidade,
filhos e filhas de pequenos proprietários rurais, trabalhadores assalariados,
meeiros, bóias-frias, todos eles também trabalhadores que guiaram sua vida
nos mesmos passos de suas famílias, tendo todos um histórico familiar
ligado ao trabalho no meio rural.
A classificação dos assentamentos, pelo autores supracitados, dá-se
em cinco tipos, em razão das diversas origens:
a) projeto de colonização formulados durante o
governo militar, a partir dos anos 70, visando a
ocupação de áreas devolutas e a expansão da
fronteira agrícola; b) reassentamento de
populações atingidas por barragens de usinas
hidrelétricas; c) planos estaduais de valorização
de terras públicas e de regularização possessória;
d) programas de reforma agrária, via
desapropriação por interesse social, com base no
Estatuto da Terra (de 1964), parcialmente
implementado a partir de 1986 sob a égide do
Plano Nacional de Reforma Agrária, iniciado
no governo Sarney; e) a criação de reservas
extrativistas para seringueiros da região
amazônica e outras atividades relacionadas ao
aproveitamento de recursos naturais renováveis.
(Bergamasso e Norder: 1996, p. 8-9)
A partir da segunda metade da década de 80, alguns estudos sobre as
questões relacionadas à vida econômica dos assentados tomaram maior
18
relevância. Esse período também foi palco de um notável desenvolvimento
do setor produtivo agropecuário brasileiro, que se transformou num
modelo de crescimento agro-industrial excludente provocando, do ponto de
vista social, um aumento drástico na concentração de renda no campo, cujo
resultado foi um crescimento na proporção de pobres que se tornaram
relativamente mais pobres.
Segundo Bavaresco (1999), no Brasil nunca houve de fato um
verdadeiro programa de reforma agrária capaz de alterar a estrutura de posse
e uso da terra. O que existe são agrupamentos de pessoas, assentadas pelo
Governo Federal, classificadas por Graziano (1993) como programas
pontuais de assentamento resultantes das lutas pela posse da terra de
trabalhadores rurais e não como resultado de um processo amplo de
reforma agrária. (Bavaresco: 1999, p. 261).
A maioria dos assentamentos existentes no Brasil são produtos de
intensos processos de mobilização dos trabalhadores rurais sem terra que
conseguem ser assentados após longos períodos de acampamento e alguns
despejos de áreas ocupadas, momento esse muito importante, pois define o
número de pessoas que conseguem permanecer.
O Rio Grande do Norte, a partir dos anos oitenta apresenta o
surgimento de várias áreas de assentamentos rurais, conquistadas em lutas
pela posse de terra, muitas delas dirigidas pelo Sindicatos dos Trabalhadores
Rurais-STR. Cícero Gomes, sobre os conflitos da região nos diz que,
nesta época, os trabalhadores queriam a legalização da posse de
terra, para evitar a ação de grileiros, esses grileiros diziam que as
terras eram suas, e também estavam chegando algumas empresas de
fruticultura e expulsando o pessoal, os pequenos produtores
também não queriam mais trabalhar no sistema de patronato.
19
O histórico da luta política dos assentamentos rurais do Rio Grande do
Norte não escapa à realidade descrita por Bavaresco (1999), uma vez que
estes também se constituíram como produtos concretos de uma luta dos
trabalhadores rurais pela terra.
O processo de luta pela terra, situado entre a ocupação das áreas, o
acampamento e a espera de crédito para a implantação do projeto, ocasiona
uma degradação econômica das famílias, principalmente, nos primeiros anos
de um assentamento, tendo em vista que os recursos iniciais destinados à
produção são muitas vezes utilizados para aquisição de eletrodomésticos,
reposição de animais e equipamentos, alimentação, etc. (Bavaresco: 1999, p.
268)
As pessoas envolvidas no processo de ocupação de terras devolutas
são, na sua maioria, portadoras de uma tradição rural. São personagens que
antes lidavam com o trabalho no seu núcleo familiar, cultivando culturas de
subsistência, além das que têm experiências do meio urbano. As pessoas
assentadas têm, pelo menos, pretendido construir viabilidade econômica e
social, a partir do trabalho dentro de um projeto produtivo, desenvolvido
de forma coletiva. Esse projeto nem sempre é concretizado por falta de
políticas de crédito agrícola suficientes para satisfazerem à demanda de mão
de obra existente, principalmente das mulheres e dos jovens.
Assim, os resultados do desempenho socioeconômico dos
assentamentos estão calçados em uma série de variáveis nem sempre
quantificáveis, como a trajetória de vida das pessoas e a forma de
intervenção do poder público na definição dos projetos, as quais, segundo
Bavaresco (1999), podem ter um peso bastante expressivo na dinâmica
interna do assentamento.
20
Construir um projeto de trabalho coletivo de assentamento rural exige
um modo específico de produzir e viver em sociedade, em alguns casos,
provocando uma ruptura total e definitiva com formas de produção
anteriormente usadas, como o sistema de produção individual e de
subsistência, característica, por exemplo, do pequeno produtor do Rio
Grande do Norte.
Uma outra dimensão sociológica que podemos destacar é a perspectiva
que as pessoas envolvidas em projetos de assentamentos têm com relação à
construção do futuro que possa garantir as condições de sobrevivência das
gerações seguintes. Principalmente, porque parte destas famílias se
desfizeram de pequenas posses para o investimento na vida em coletividade
que, para Wanderley (1999 apud Jollivet e Mendras, 1971, p.209):
É por um lado, estabelecimento humano de valorização do meio
natural: a população local utiliza o território para a sua
subsistência; a aldeia (Village) é um atelier de produções
correspondentes a um território e também uma unidade de
habitação, de resistência, um quadro de vida familiar e social,
caracterizado, notadamente, pela sua fraca dimensão e pela
estabilidade da população.
A coletividade rural permite definir a sociedade rural como mantenedora
da diversidade e homogeneidade, visto que o agrupamento de pessoas
apresenta diferenciadas formas de agir e pensar em relação à coletividade.
Segundo Bergamasso (1996), discutir assentamentos rurais implica
vê-los como parte de uma história de distintos tempos, vivida por múltiplos
atores sociais que têm as fronteiras de seu mundo demarcadas por pressões,
atritos e, conseqüentemente, por lutas. O trilhar desse caminho não obedece
a padrões lineares de desempenhos, sucessos ou insucessos, alocados
21
unicamente no plano econômico ou no embate desses atores com outros
agentes, dentre eles, o Estado. Exige o repensar das condições objetivas e
subjetivas que poderiam provocar a explosão de conflitos e o
desencadeamento de mudanças. (Presvelou: eti ali, 1996)
Pensar em assentamentos rurais, como o que estamos estudando,
significa ver as relações sociais estruturadoras do processo de
modernização da agricultura na exclusão/participação dos trabalhadores
rurais, nas suas práticas sociais de resistência, no qual exista ou não
visibilidade. (Presvelou: eti ali, 1996)
No Assentamento Santa Vitória, por exemplo, o percurso que
precedeu o assentamento definitivo envolveu dificuldades, desânimos e
desistências. Na formação inicial, muitas pessoas desistiram de permanecer
no Projeto por possuírem poucos pertences e pelo grau de desestruturação.
Algumas famílias, por exemplo, tiveram que vender os poucos bens para
garantir o sustento.
Embora este assentamento não estivesse diretamente ligado ao
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), este colaborou com o
processo de organização e formação do grupo que inicialmente ocupou a
terra; quanto às negociações pela posse da terra, estas foram coordenadas e
intermediadas pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Riachuelo-RN,
procedimento comum na região do Mato Grande. Para cero Gomes esse
fato é proveniente da forma de organização rural da região.
Os sindicatos rurais da região pensavam muito na legalidade, era
muito discutida essa questão, e tinham esta postura para driblar a
ditadura militar, eles tinham que usar o estatuto da terra, no que
era possível. Era uma das estratégias da Contag, das Federações.
Essa visão legalista era uma cultura da região usada pelos
sindicatos de trabalhadores rurais. Após esse período, os sindicatos
22
começaram a ensaiar ocupações de terra, esse pensamento fez parte
dos Sindicatos da região. Temos inúmeros casos de produtores que
ocuparam a terra e foram imediatamente despejados pela polícia,
aconteceram muitos conflitos. Na região também existia um grupo
muito grande que antes pertencia a ACR (Animação dos Cristãos
do Meio Rural) e depois passou a ser do MST ( Movimento Sem
Terra). Essas pessoas tinham uma consciência diferenciada da
atuação dos sindicatos, mas inicialmente trabalharam em conjunto:
os Sindicatos chamavam o pessoal do MST, emprestavam a
máquina (estrutura) do sindicato e eles articulavam e conheciam o
pessoal da região. A diferença era que o MST tinha uma visão
inversa aos Sindicatos, eles diziam o estatuto da terra
desempenhou um papel, na realidade a discussão travada pelo MST
era sobre o que de fato era legal. O MST teve desgastes internos
muito grandes que o enfraqueceu na região. E os Sindicatos da
região tinham divergências a metodologia do MST, e claro também
que aconteceram problemas internos. No período de 1991/92,
aconteceram muitas ocupações de terras na região, e também muitos
conflitos, ainda é uma região fogo de monturo, de repente poderá
ainda estourar alguma coisa.
Esta declaração de Cícero nos mostra que, no Rio Grande do Norte,
os Sindicatos Rurais da região potencializaram a luta pela posse de terra a
partir da sua relação com o MST. Apesar dos princípios e práxis social
distintos, sem dúvida, esta aliança conflituosa foi a base histórica para o
aumento de ocupações de terras na região.
Segundo Joaquim Alves dos Santos, atual presidente da associação
de moradores do Assentamento Santa Vitória e uma das pessoas que
participou do processo de organização e ocupação da terra, a formação do
assentamento Santa Vitória não ficou à parte dos conflitos da região.
*
Essa história começou porque a situação estava muito difícil, os
fazendeiros cada dia mais não permitiam que o pessoal continuasse
trabalhando. Eles não expulsavam diretamente, mas não liberavam
mais terra, não liberavam mais condições de trabalho. Nossa
23
condição de trabalho em Riachuelo era pagando meia, ou seja, era
metade para a gente, metade para o dono da terra. E não
estávamos mais querendo esse negócio, porque não tínhamos
nenhum resultado. Para muitos nem havia trabalho, uns iam para
o campo, e outros ficavam olhando os outros trabalhando. Não
sabíamos o que fazer. A situação começou a se agravar mais ainda,
parecia uma panela de pressão que estava prestes a explodir, nós
pais de família, estávamos desesperados, pois como íamos trabalhar
se não havia trabalho? existia uma solução ou ir para a cidade
tentar a vida lá, ou tentar uma forma de arranjar condições para
ficar por aqui mesmo. E nós sabíamos que a vida na cidade não
iria ser fácil, até porque muitos de nós teve essa experiência. Eu
sei o que nos esperava lá, era morar nas favelas, trabalhar como
pedreiros ou servente (construção civil), ou algum trabalho desse
tipo. Mas somos daqui e não queríamos sair. Não que a vida no
campo seja fácil, mas queríamos trabalhar e viver por aqui, e
sonhávamos em ter um lugar com condições para tirar o sustento de
nossas famílias, e claro também ter escola para nossos filhos, e a
garantia de que não íamos passar necessidades. Nós nos reuníamos
e conversávamos muito, assim sem muita formalidade, na casa de
um ou outro, sobre as notícias da televisão e do sindicato. Foi
quando tivemos informação do sindicato rural e do município que
algumas pessoas sem terra estavam se organizando e trabalhando
em algumas comunidades, pessoas que de uma certa forma tinha
uma estória parecida com a nossa. O sindicato rural de
Riachuelo(RN) convidou as pessoas do movimento Sem Terra para
darem informação sobre a Reforma Agrária, e a gente, na época,
ouvia falar, não tinha idéia de como dar um passo. Então, através
do sindicato, tivemos contato com o movimento sem terra e com
outras comunidades; pegamos informações que a gente precisava, e
através dessas reuniões, de o que fazer e como fazer dentro das
informações baseadas no estatuto da terra; o que a gente podia
fazer, por aqui mesmo nesta região.
No processo de ocupação e direito à terra do Assentamento Santa
Vitória, segundo Joaquim Alves dos Santos, foram percorridos os seguintes
passos:
24
A gente se organizou, eram três comunidades, trabalhador de
fazenda, morador e alguns pequenos proprietários. No início eram
100 famílias, ficamos procurando, chamando os vizinhos,
conseguimos nos reunir. a gente foi procurar uma área que
pudesse fazer uma ocupação. Era 30 de setembro de 1991. A data
da nossa primeira saída para procurar uma área, a ocupação foi
neste mesmo dia, agente tinha mapeado a área que íamos nos
estabelecer, pelo menos à princípio, para a notícia poder chegar lá
na Secretaria de Agricultura, na Polícia, na Prefeitura, seja onde
fosse. A primeira área ocupada, era uma terra da União Era a
fazenda Rockfeler no município de São Gonçalo-RN que era do
Estado. Sabíamos que era da União, por isso tivemos essa escolha
por essa área desocupada e improdutiva, do Estado. Não tínhamos
preparo nem a intenção de nos confrontar com nenhum fazendeiro
da região, sabíamos que eles contratavam pistoleiros para matar,
queríamos um negócio mais fácil, pois quem estava no grupo eram
trabalhadores rurais e suas famílias em busca de uma terra para
trabalhar. (...) Logo quando chegamos mandaram o pessoal da
polícia fazer investigação. Começamos a negociação com o Secretário
da Agricultura de São Gonçalo. Tudo isso depois da ocupação. O
confronto foi muito difícil, eles diziam que a gente estava na área
da União. A gente insistia que queria uma área não importava
onde. Nesses dias a gente ia fazendo nossas barracas, fazíamos
fogueira, e começamos a plantar uma horta. O pessoal da cidade e
da igreja mandava feira, tinha umas irmãs (freiras) que vinham
trazer coisas (alimentos e roupas) para a gente. Não tivemos
resultados, os homens da Secretária de Agricultura, não cederam,
eles perguntavam: se vocês concordaram em sair porque estavam
plantando e limpando o local? Nós respondíamos queríamos a
indicação de uma terra para fazer nosso acampamento. Essa
discussão levou algum tempo, foi um momento de muito nervosismo,
eu não sei ao certo mas ainda ficamos uns trinta dias. Depois
desse tempo tivemos que procurar outra área para fazer uma
segunda ocupação. O pessoal estava ficando desanimado, mas
ninguém tinha desistido ainda, algumas mulheres foram com suas
crianças pequenas para a casa de seus pais e parentes em
Riachuelo, mas continuávamos resistindo. A Segunda ocupação foi
na região do Marajó-RN, era uma terra desocupada, eles falaram
que iriam nos dar uma área para a construção de um assentamento
rural, mandaram um caminhão de comida, mas o resultado da
terra ainda não tinha sido acertado. Nós ficamos um pouco
25
aperreados, pois o tempo estava passando e eles não nos davam
nenhuma definição, a comida também estava acabando.
permanecemos mais um tempo, construímos barracas, para não
ficarmos dormindo ao relento. Nós revezávamos à noite, para ficar
pastorando quem estava dormindo, não só de outras pessoas, mas de
algum animal do mato. Nesse período as negociações com o
Governo Federal foram sendo melhores, eles começaram a falar em
uma área para nosso futuro assentamento. Foi então, que
arrumaram essa terra que hoje estamos. Enviaram um caminhão,
para nos levar. fomos nós! Nos colocaram lá, era uma área
muito árida, e estava com muito mato. Tinha um galpão que
abrigou uma famílias, e outras ficaram nas barracas de lona preta.
O período seguinte foi e está sendo o mais difícil, pois sabíamos que
a luta estava só começando.
A ocupação inicial aconteceu com cem famílias, a maioria homens, pais
e filhos; apenas algumas famílias mantiveram-se com todos os seus
membros no período da peregrinação. As demais famílias se separaram
temporariamente: as mulheres, juntamente com os filhos menores,
visitavam os maridos no acampamento e voltavam para a região de
Riachuelo, para a casa de parentes.
As ocupações e acampamentos das cem famílias foram três: o primeiro na
fazenda Rockfeler, o segundo na região de Marajó e o último, na área onde
se constituiu o assentamento definitivo. E obedeceram a seguinte trajetória:
as famílias saíram de Riachuelo em direção à fazenda Rockfeler no
município de São Gonçalo. Sendo esta uma área do Governo Federal,
foram orientados a saírem de lá, pelos representantes do Governo Federal;
os trabalhadores e trabalhadoras, em seguida, se deslocaram para uma outra
fazenda improdutiva, localizada no município de Marajó. Mas esta ainda
não se constituiu como área definitiva para a implantação do Projeto de
Assentamento e eles permaneceram neste local até que o Governo Federal
26
os transferisse em um caminhão para uma área localizada em São Bento do
Norte, onde se formou o assentamento Santa Vitória.
Esse momento de ocupação e acampamento se constituiu em um
conjunto de lições que levaram a consolidar a estrutura organizativa do
Projeto de Assentamento. No acampamento, as famílias habitavam barracas
de lona preta, que se instauraram como uma simbologia da luta dos Sem
Terra. Existiam, ainda, os núcleos de base, através dos quais eram
organizadas as divisões das tarefas necessárias para garantir a vida diária do
acampamento: alimentação, higiene, saúde, religião. Havia também as
reuniões para tomar decisões sobre os próximos passos de luta e as frentes
de trabalho. Durante o período dos dois primeiros acampamentos, as
pessoas conseguiram seu sustento através de doações de pessoas ou
entidades simpáticas à luta. No terceiro acampamento, mais longo, os
assentados permaneceram inertes e sem condições de trabalho por um
período de dois anos, à espera da construção das casas de alvenaria e do
acesso ao crédito, proveniente das resoluções do Governo Federal.
Nestes movimentos de acampamentos, houve desistência de 35% das
famílias, em decorrência das dificuldades por que passavam como falta de
água, alimentos, trabalho e moradia precária nos barracos de lona, além de
doenças.
1.2- A conquista da terra de Santa Vitória.
O assentamento Santa Vitória foi registrado no ano de 1992, com 65
famílias. Nos anos seguintes, mais cinco famílias tornaram-se assentadas.
Cada família recebeu uma área que corresponde ao seu lote individual de 25
ha. também uma área coletiva com 160 ha, destinada à produção
27
comunitária, onde são executados projetos de emprego e renda financiados
pelo Governo Federal, sendo que é dado a apenas um único membro da
família o acesso ao trabalho nessa área - geralmente o associado, ou seja,
aquele que é registrado como responsável pelo lote de terra do
assentamento.
Num período de dois anos os (as) assentados (as) distribuíram-se em
barracas de lona e em um galpão que existia no local. O início da
construção da agrovila foi em 1994, com material cedido pelo Governo
Federal. Foram construídas 65 casas em processo de mutirão; depois
foram construídas mais cinco casas. Também há uma escola, uma creche e
uma associação de moradores.
Atualmente, a estrutura física se apresenta como uma agrovila com
área total de 1.968,00 há, dividida em 70 lotes individuais, com áreas de 25
ha, cada. Também lotes destinados à reserva florestal e às atividades
coletivas, como criação de animais e cultivo de hortaliças. Sua distribuição
demográfica apresenta o total de 243 pessoas ( 105 pessoas de 0 a 14
anos, e 134 acima de 14 anos).
A escola que funciona na agrovila é de a séries e conta com três
professores contratados pela prefeitura de São Bento do Norte. No período
da pesquisa, os professores estavam sob contrato provisório, com salário
de 180 reais, visto que não havia acontecido nenhum concurso público da
prefeitura desde a construção da escola até o ano de 2000. A fala de uma das
professora expressa a angústia da incerteza de serem ou não recontratados a
cada ano letivo que iniciava:
Desde quando eu entrei para ensinar na escola ainda não houve
concurso, quando chega dezembro é um aperreio, porque eu dependo
do meu trabalho para tudo, meu marido trabalha na agricultura,
28
mas sabe como é a agricultura é hoje, não é amanhã e agora
mesmo não nenhum projeto para esses” homens trabalharem.
Então quando chega dezembro que eu páro de receber, e nós ficamos
aqui esperando o resultado da prefeitura, para saber se ela vai ou
não nos contratar ou mandar os professores de São Bento que
são concursados. (Professora do assentamento)
O assentamento contou com projetos de geração de emprego e
renda financiados pelo Governo Federal, como o de criação de vaca
holandesa e porcos, cultivo de gergelim, de mandioca, hortaliças, entre
outros. Os trabalhadores e trabalhadoras também produzem em seus lotes
individuais, mandioca, feijão, hortaliças. Essa produção é individual e
pertence à cada família dona do lote. A produção do assentamento, seja ela
cultivada nos lotes individuais ou coletivos, esbarra em muitos entraves para
comercialização. Essa situação se agravou nos anos 1999 e 2000, pois os
produtores (as) o conseguiram comercializar sua produção de farinha de
mandioca ao preço de mercado.
Após a conquista ao direito à terra, os assentados buscam o direito ao
trabalho e a uma vida digna dentro do assentamento. Por isso, a luta deles
não cessa. Os assentados encontram muitas barreiras na organização da
coletividade e nem sempre conseguem manter-se firmes no direcionamento
às suas conquistas. O processo organizativo na relação família rural,
propriedade e trabalho, orientado para a manutenção da unidade de consumo e
produção, é considerada o principal eixo de entusiasmo dos assentados rurais.
29
1.3- O cotidiano, o trabalho e a política.
Quem chega à Santa Vitória visualiza casas construídas uma ao lado
da outra, em ruas largas. Os moradores designam as áreas em duas: os lotes
individuais onde, juntamente com os outros membros da família, trabalham
no roçado, e a área coletiva, onde trabalham em projetos coletivos, no geral
somente uma pessoa por família.
O termo roçado designa um conjunto de cultivos, onde predominam a
mandioca, o milho, o feijão, as frutas e hortaliças, culturas que no Nordeste
costumam se caracterizar como de subsistência, pois se trata de produtos
que são consumidos pelos próprios membros da família. Estes produtos
provenientes do roçado, por serem consumidos diretamente ou vendidos a
terceiros, são responsáveis pela subsistência familiar, isto é, pela provisão
dos bens necessários à reprodução física e social das famílias dos
pequenos(as) produtores(as).
As casas compreendem a área construída e o espaço livre em sua
volta, denominado de quintal ou terreiro. Esta parte da casa está destinada,
fundamentalmente, às aves domésticas, à casa do cachorro e ao abrigo para
os porcos, denominado de chiqueiro. Em algumas há também árvores
frutíferas, mas de tipo diferente das plantadas nas suas frentes. Na frente
das casa, geralmente, estão plantadas espécies de árvores que propiciam
abundante sombra, embora a agrovila não apresente uma arborização
uniforme das ruas.
Nos fundos, estão os mamoeiros e bananeiras, pés de acerola e pinha,
bem como roseiras e ervas medicinais. Em alguma parte deste espaço, as
mulheres lavam louça, roupas e fazem a higiene das crianças. Em algumas
casas, cujas instalações sanitárias não estão concluídas, uma espécie de
30
banheiro feito com paredes de lona ou tijolo, apresentando uma acintosa
precariedade de higiene.
As casas são habitadas por indivíduos ligados entre si por laços de
parentesco: pai-mãe e filhos, solteiros e agrega-se, excepcionalmente, o
cônjuge de um dos filhos que ainda não conseguiu uma casa para morar.
Essas pessoas que habitam o mesmo espaço compõem o grupo doméstico. Os
membros do grupo doméstico residem numa mesma casa e executam as
tarefas no roçado. Segundo Herédia(1979, p.37) grupo doméstico é:
o conjunto de indivíduos que vivem na mesma casa e possuem uma
economia doméstica comum. O grupo doméstico é a unidade de
residência e é dentro dele que tem lugar a reprodução física e, em
grande parte, a reprodução social de seus membros. Os filhos
quando casam passam a residir em outra casa e constituem
unidades de trabalho separadas. Por conseguinte, é através do
casamento que se forma um novo grupo doméstico.
As atividades dos membros do grupo doméstico são executadas de
acordo com o calendário agrícola e com os projetos de geração de emprego
e renda destinados para o assentamento pelos Governos Federal e
Municipal.
No assentamento, durante o inverno, realiza-se o plantio de quase
todos os produtos e logo segue-se o período da colheita. O verão para eles é
considerado o momento de escassez de chuvas e é consequentemente
marcado pela escassez de comida e de trabalho. O inverno é o período de
maior atividade agrícola, quando homens, mulheres e crianças vão trabalhar
no roçado ou no lote individual. Existe uma divisão de tarefas que corresponde
à separação por sexo e por idade dos diferentes membros, e nem todos os
membros do grupo doméstico participam de todas as atividades
desenvolvidas no roçado.
As atividades do roçado são organizadas principalmente pelo pai,
31
enquanto a mãe é a encarregada da organização das tarefas que se relacionam
com a casa. Para as mulheres são designadas tarefas como o cuidado com a
casa, com a horta, com a produção de artesanato e com criação de animais,
cuja venda contribui para o sustento da família. Essas atividades favorecem
o sustento da unidade de consumo (a casa). Além dessas atividades elas também
trabalham no lote individual, o que demonstra o quanto é ampla a
responsabilidade da mulher na comunidade.
As crianças começam a ir para o roçado geralmente entre 09 e 10
anos de idade, desenvolvendo algumas tarefas no período do dia em que
não vão para a escola. As pessoas com mais de 60 anos alegam não ter mais
forças para ir ao roçado, evidenciando o grande desgaste acarretado pelo
trabalho no campo.
Os dias transcorrem no assentamento sem grandes diferenças, com
exceção do dia de feira, ao sábado, quando as pessoas, na maioria os
homens, se deslocam para o município vizinho de São Bento do Norte-RN,
para fazer compras. O domingo, tido como dia de descanso, é destinado ao
lazer. Os homens, geralmente, se reúnem na casa de algum deles, para beber
aguardente e conversar. As mulheres não tinham nenhum tipo de lazer nos
finais de semana e os jovens e as crianças organizam jogos de futebol.
Invariavelmente, o dia de trabalho comum começa às cinco e meia da
manhã, hora em que todos os membros da família se levantam. Aqueles que
estão em alguma atividade agrícola, no lote individual, se deslocam para o
local de trabalho, às vezes o marido e a mulher. Quando a mulher não vai
para o trabalho no campo, ela ou alguns dos filhos permanecem em casa
preparando as refeições do dia para todos que moram na casa.
As mulheres que trabalham na escola e na creche não costumam
exercer atividades ligadas à terra, com exceção dos finais de semana. Elas
32
acordam por volta das cinco e meia da manhã para preparar o café da
manhã, o almoço, organizar a casa e cuidar dos filhos. Estas tarefas têm que
serem feitas com rapidez, pois às sete horas precisam chegar ao local de
trabalho.
Também nas primeiras horas da manhã, as mulheres abastecem os
recipientes de água dentro de casa, pois mesmo havendo água encanada, a
tubulação se estende apenas até a parte externa da casa. A água não é de boa
qualidade, pois é salinizada.
A primeira refeição do dia é servida por volta das seis e meia; quando
trabalho no roçado, é servido antes das pessoas saírem. Essa refeição
compõe-se de café, torta de mandioca (beijú), leite ou alguma outra variação
como cuscuz, batata. Depois disso, as pessoas ocupadas com as tarefas
agrícolas vão ao campo, retornando na hora do almoço. Em período de
pouca produção, as pessoas ficam ociosas. As mulheres ocupam-se com as
tarefas domésticas e os homens, às vezes, procuram trabalho em regiões
vizinhas. Os homens e mulheres adultos buscam com mais freqüência outras
estratégias de sobrevivência, devido ao compromisso de contribuir para a
manutenção do grupo doméstico. Os jovens, apesar de contarem com maior
força física, têm menos compromisso de contribuir com o grupo doméstico
e também menos perspectivas de trabalho.
Após a refeição, as mulheres encarregadas das tarefas da cozinha
escolhem manualmente o feijão para o almoço e o preparam. As crianças
geralmente vão para a escola. Em todas as tarefas, as mulheres do mesmo
grupo doméstico se ajudam e também são ajudadas pelas crianças. Numa
família em que todas as filhas já tinham saído de casa, e a mãe trabalhava no
roçado, o cuidado com as crianças menores e as tarefas domésticas eram
designadas ao filho de quatorze anos.
33
O almoço é servido por volta do meio-dia. Suspendem-se as
atividades no campo para o almoço. Esta refeição é composta de uma
variação de carne de galinha ou bovina, como complementos do prato
principal que é composto de feijão, farinha de mandioca e macaxeira. Estes
últimos alimentos citados constituem a alimentação básica. O jantar
compõe-se de sopa ou mingau de milho e café.
Ao entardecer, toda a família encontra-se outra vez reunida em casa.
As mulheres preparam o jantar e cuidam das crianças, enquanto os homens
assistem aos noticiários na televisão ou do rádio, nem todas as casas do
assentamento possuem uma televisão.
Nas noites, as ruas são desertas e iluminadas com luzes fracas. As
pessoas usam agasalhos, pois a brisa é gelada e faz redemoinhos de areia. O
céu é limpo e claro, sem sinais de poluição, mostrando massas cinzentas
formadas por estrelas. As famílias ficam nas suas casas, com exceção de
alguns jovens que se reúnem em frente à televisão coletiva, situada no
centro de uma rua do assentamento.
As atividades cotidianas que descrevemos acima dependem da
produção agrícola que está acontecendo no assentamento. Por exemplo,
o período de farinhada, quando a mandioca é colhida e transformada em
farinha. A farinhada é tradicionalmente, na região, um momento de grande
sociabilidade entre as pessoas. O assentamento se organiza e dividem por
turnos, entre as famílias, os dias de uso da casa de farinha. Elas trabalham
individualmente no cultivo e duas ou mais famílias reúnem sua colheita de
mandioca e produzem a farinha. As mulheres, homens e jovens se
mobilizam para participarem do trabalho de transformação da mandioca em
farinha.
Uma de nossas visitas coincidiu com este período. Fomos à casa de
34
farinha à noite e vimos que essa atividade reúne algumas famílias por noites
inteiras. Costuma ser um ambiente animado; os rapazes tomam aguardente,
as pessoas se divertem e conversam sobre a organização do assentamento, a
situação política do país, o plantio. Esse momento também é propício para
a aproximação entre as pessoas e a possibilidade de um futuro encontro
amoroso. As pessoas falam de suas inseguranças e insatisfações, projetos e
desejos. É um importante momento de trocas de idéias sobre a vida e os
problemas de todo o grupo, presenciamos também discussões entre algumas
pessoas sobre os dissabores da gestão e organização da Associação de
Moradores de Santa Vitória.
Outras ocasiões importantes são as datas festivas. Os moradores e
moradoras comemoram duas datas em especial: o São João, quando
festas com música de forró e danças folclóricas e a segunda data
comemorada é a festa da padroeira. A comemoração do São João é muito
respeitada porque marca o período da colheita de milho. O grupo de danças
é comandado por uma professora da comunidade, e saem para outras
comunidades para disputar campeonatos, tendo sido premiados com troféus
na última apresentação. É um momento que também favorece o enlevo
amoroso, visto que o assentamento é visitado por outras pessoas das
comunidades próximas. Uma das mulheres nos relatou que veio para o
assentamento assistir a uma quadrilha e nunca mais saiu, pois casou-se e está
cinco anos. Outra também conheceu seu companheiro no período das
festas juninas, resolvendo casar-se uma semana depois.
A comemoração religiosa é o festejo da padroeira, Santa Vitória,
quando vem um pároco realizar missa, batizados, casamentos, etc. A festa da
padroeira, às vezes, coincide com as datas festivas do final do ano
(novembro ou dezembro, a depender da agenda do pároco). Também é um
35
momento propício ao encontro de pessoas.
O reveillon é comemorado na casa de uma assentada juntamente com
sua festa de aniversário. Não há bailes, carnaval, nem outras datas festivas.
Uma outra forma de divertimento é o futebol e o jogo de voleibol,
praticado pelos jovens nos finais de semana. Eles também se deslocam para
outras comunidades para disputar campeonatos. As crianças se divertem
com brinquedos improvisados ou fabricados por elas mesmas, como por
exemplo carro de lata.
O assentamento é uma organização coletiva de trajetórias individuais,
compondo-se em uma grande família. É um lugar onde o engajamento social
se manifesta através da arte de conviver entre parceiros que estão ligados
entre si visando à luta pela sobrevivência. Para que possam manter a
vivência coletiva, faz-se necessário a regulação dos comportamentos sociais e
dos níveis simbólicos, criando, portanto, uma conveniência adequada. Esta
convivência é representada no nível dos comportamentos por um compromisso pelo
qual cada pessoa, renunciando à anarquia das pulsões individuais, contribui com sua cota
e seu engajamento para a vida coletiva, com a intenção de tirar daí benefícios simbólicos
necessariamente protelados. (Mayol: 1996, p. 49). Assim sendo, observa-se que
as pessoas do assentamento tornam-se signatárias de um contrato social
implícito que estão obrigados a respeitar para que seja possível a vida
cotidiana sobre a qual se fundamenta a comunidade.
O cotidiano no assentamento é construído tendo como cenário um
espaço novo, formado por pessoas provenientes de comunidades diferentes,
se constituindo em um centro de confluência de culturas rurais e urbanas,
com predominância de pessoas oriundas do meio rural. Elas sofrem
influências de agentes externos como ONGs, Cooperativas e Programas
Estaduais e Federais de Assistência Social e de geração de Emprego e
36
Renda.
O assentamento rural se constitui num lugar onde as pessoas não
convivem com outras categorias sociais e onde se desenvolve uma forma de
sociabilidade específica, que ultrapassa os laços de familiares e de parentesco.
Como em toda relação de vizinhança, ocorrem conflitos na vida cotidiana
que, geralmente, são motivados pela gestão e organização do assentamento.
O patrimônio comum de todos os associados provoca por vezes desgastes
no trato diário, pois suspeitas a respeito dos que exercem cargos na
diretoria da associação. Enfim, como ocasiões em que o presidente faz
compras de utensílios e outras transações comerciais, (como comprar um
reparo para a bomba da caixa de água comunitária), os assentados e
assentadas entram em atritos entre si geralmente em função das finanças do
assentamento.
Nas famílias, percebe-se uma diferente valoração do trabalho
executado pelos homens e pelas mulheres. Por exemplo, as mulheres que
trabalham junto com seus maridos e filhos no lote individual, ficam muitas
vezes responsáveis pela produção naquela área, enquanto os homens vão
trabalhar no lote coletivo. Mesmo assim, seu trabalho é considerado
como ajuda, característica que pode ser comparada à das formas de
organização cultural do campesinato tradicional. (Abramovay: 1992)
Não há dúvida de que o lugar que os diferentes membros ocupam
dentro do grupo doméstico está estreitamente ligado às atividades que estes
desenvolvem no processo produtivo. Enquanto o roçado se materializa
como unidade de produção, a casa é tida como unidade de consumo.
(Herédia:1979)
Assim, o campo é considerado um lugar masculino. O pequeno
produtor, como pai de família, é o responsável pelas atividades que se
37
realizam no roçado, pois de vêm os bens necessários ao consumo,
enquanto o da mulher, mãe de família, é em casa, embora também trabalhe
no roçado. Segundo Herédia: (1979, p. 79),
a casa é concebida como lugar da mulher por excelência. No
entanto, por ser o homem o pai de família, quem, através do roçado,
providencia os meios necessários para a existência dos alimentos que
serão consumidos na casa, é ele o responsável, em última instância,
pela casa e esta não é concebida sem a sua presença, delineando-se
desta forma o esquema de autoridade doméstica. (...) As atividades
do roçado, a medida em que possibilitam a produção de bens
essenciais para o consumo familiar, são consideradas trabalho, em
oposição às ligadas à casa, não reconhecidas como tal.
Assim, o determinante para o trabalho das mulheres não é a força
física necessária para executá-lo, mas o papel social de quem o realiza.
No conjunto das mulheres entrevistadas, constatamos que todas elas
desenvolvem uma atividade ou mais atividades dentro do núcleo familiar.
Todas as mulheres m um cotidiano multifuncional quanto às suas
atividades. Por exemplo, a partir do depoimento das dez mulheres
entrevistas, vimos que, todas estão presentes no trabalho doméstico e no
trabalho do lote individual, quatro mulheres atuam no funcionalismo
público, duas no lote coletivo, duas mulheres também são estudantes, e
quatro fazem atividades como, cabeleira, manicure, costureira, doceira e
diarista.
A descrição dos seus cotidianos revela que elas começam muito
cedo a se ocuparem dos afazeres na casa e nos arredores desta . Ou seja, por
volta dos cinco ou seis anos de idade são de suas responsabilidades
atividades domésticas significativas: elas levantam-se pela madrugada,
38
ajudam as outras mulheres da família a prepararem o café, varrem o quintal,
lavam roupas e engomam (em algumas casas o ferro é a carvão), ou vão
para o roçado. Essa realidade é descrita pelas mulheres mais jovens e
também pelas mulheres que têm mais idade. Também foi observado,
durante o período da pesquisa, que as meninas entre 9 e 14 anos ( idade
variante) desenvolvem uma trajetória semelhante quanto às atividades
domésticas.
Segundo uma de nossas entrevistadas, de um modo em geral as
atividades sempre estiveram presentes em sua realidade: Eu trabalhava sim, no
campo ou em casa, sempre estava ocupada, como é até hoje. (Ifigência, 45 anos).
Entre as crianças o tempo livre é alternado com períodos de trabalho,
principalmente para as atividades domésticas. Encontramos alguns pais que
resguardam as filhas dos trabalhos no roçado e outros que as incentivam.
E eu me lembro eu pequenininha, em cima de um fogão a lenha,
fazendo comida para meus irmãos, porque pai estava no roçado e
mãe ia também, eu tinha a responsabilidade de cuidar dos meus
irmãos porque eu era a mais velha, hoje eu até me sinto um pouco
mãe deles, eu o deixo nenhum levantar a voz para mim.
(Catarina)
No atual momento, percebe-se a falta de envolvimento das mulheres
com o desenvolvimento político do assentamento; elas não fazem parte dos
momentos de discussões e resolução dos problemas do assentamento. Elas
não têm espaço nem voz na assembléia geral que discute a situação política e
sócio econômica do assentamento. Essa assembléia, chamada pelas
entrevistadas como a Assembléias dos Homens, é considerada um espaço
tipicamente masculino e mesmo aquelas que são as proprietárias do lote de
terra não fazem parte das decisões que lhe dizem respeito.
39
Elas formaram uma Assembléia das Mulheres, uma associação formada
por vinte e duas mulheres, na intenção de conseguirem projetos de renda ou
outras condições de trabalhos. Nesse caso, observamos que as mulheres
desejam participar de uma política não-excludente, que reconheça seus afazeres.
A atividade agrícola é a fonte de renda da maioria das mulheres.
Todas as entrevistadas trabalhavam junto aos pais, maridos ou parentes
antes da formação do assentamento, tendo formação cultural ligada à vida
rural, apesar de não desconsiderarmos que algumas delas tiveram uma
experiência ligada à vida urbana. A identidade da mulher assentada é
construída tecendo uma harmonia entre o urbano e o rural, visto que elas
são filhas de pequenos trabalhadores rurais, tendo sua infância e
adolescência vivida no ambiente rural, e algumas delas também moraram
em pequenas cidades ou até na capital do Estado.
A organização de uma Associação à parte por iniciativa das mulheres
vem expressar motivações econômicas e, principalmente, a prática de
exclusão dos homens para com as mulheres. período longos de poucas
perspectivas de ganhos econômicos na atividade agrícola desenvolvida no
assentamento, e outros em que a oferta de mão-de-obra é bem superior à
demanda. Elas estão sempre presentes, apesar de ficarem à margem dos
ganhos da produção do assentamento. Ou seja, quem tem direito a
trabalhos nos projetos de geração de renda são as pessoas que são
associadas, sejam elas homens ou mulheres. As pessoas que não são
associadas, na sua maioria mulheres, não fazem parte desse processo
empregatício.
Segundo as mulheres entrevistadas, a formação das associação para as
mulheres aconteceu primeiro por estas não disporem de espaço na
Associação Geral – Associação dos Homens e, segundo, por elas sentirem a
40
necessidade de implementar algumas alternativas de geração de emprego e
renda.
Acho que aqui deveria ter mais produção para o trabalho, eu acho
que deveria de se encontrar uma forma, uma delas é a irrigação,
mas eu gostaria de que tivesse também para as mulheres, não
para os homens. É claro que a partir do momento que tiver a
irrigação, as mulheres que são donas de lotes também vão ter sua
irrigação, mas as mulheres dos assentados que são excluídas até
para as reuniões. Nós não temos direito a voto, nem a opinar, nem
a assinar uma ata. Foi por isso que desejamos fundar uma
associação, para ver se conseguimos algo para nós. As mulheres
daqui são totalmente discriminadas, a não ser que sejam assentadas
que têm o direito de votar, porque falar, quase nenhuma fala.
(Penélope).
Analisando as condições sócioeconômicas das famílias do
assentamento Santa Vitória, as considerações dos moradores é que, a partir
da formação do assentamento, de certa forma, houve uma melhoria nas
suas condições de vida, apesar de que falta ainda muito a construir. A
melhoria é referente à moradia e à educação aos filhos. Os problemas
relacionam-se à falta de trabalho e recursos para a produção e alimentação.
Também falta posto de saúde, transporte e alternativas de lazer, onde os
assentados e assentadas possam desenvolver um maior convívio social.
Das mulheres entrevistadas, algumas exercem ou exerceram atividades
remuneradas, são professoras, merendeiras, auxiliar de serviços gerais,
secretária da escola, vendedoras, cabeleireira. Essas mulheres são ocupadas
em atividades consideradas essencialmente femininas, além de todas estarem
junto a seus maridos, pais ou filhos nos trabalhos da agricultura.
Embora todas participem financeiramente das despesas do lar, ao
41
menos de forma indireta, três delas m consciência de sua importância na
manutenção da casa e do grupo doméstico, mesmo assim, reportaram-se ao
ideal de ter um homem que possa ajudá-las na provisão da casa,
principalmente as mulheres separadas. Todas as entrevistadas têm em
comum a referência de um forte contexto familiar em torno de si.
Os homens jovens dessa comunidade estão mais ausentes da escola
do que as garotas. Vários rapazes trabalham como arrendatários nas fazendas
e sítios vizinhos, vendem lenha, fazem trabalhos de roça (capinar, arrancar
tocos, plantar, colher). As experiências profissionais se diferenciam das
meninas pela função; elas são as responsáveis pelo cuidado da casa,
alimentos, roupas, crianças. Entre as entrevistadas, uma tem o ensino
superior, uma está concluindo o ensino médio, uma com primeiro grau
completo e sete com o primeiro grau incompleto.
Ao expressar suas opiniões sobre o que é morar na zona rural
(assentamento), as mulheres dividiram-se em dois blocos: primeiro composto
pelas que consideram que a vida do assentamento é muito boa, calma e
tranqüila, porém falta o que todos esperam: que haja trabalho para atender a
demanda dos moradores da comunidade.
A vida aqui é tranqüila, esses meninos passam o dia brincando no
terreiro, ninguém mexe, dizem que tem uns assentamentos por aí
que tem gente roubando, mas aqui não. Aqui é muito diferente da
cidade. (Ariadne)
O segundo bloco apontou que deficiências como falta de trabalho e
moradia, transporte e lazer, além de um posto dico no assentamento
dificultam e empobrecem a vida dos moradores. Não foi citado nenhuma
referência quanto à existência de um posto policial, nem foi considerado
42
importante ao ser perguntado por nós, o que demonstra o grau de adesão da
comunidade ao contrato social.
As mulheres saem da comunidade com menos freqüência que os
homens. Estes sempre vão à cidade mais próxima fazer a feira semanal. - Nós
parecemos um bando aqui dentro, isolado do mundo, os homens saem mais, vão na feira,
ali na cidade, mas nós ficamos a maior parte do tempo aqui. ( Penélope)
Mas, apesar dos problemas citados, a perspectiva da grande maioria
das pessoas entrevistadas é continuar morando no assentamento. Uma
exceção foi uma entrevistada que afirmou estar pretendendo mudar com o
marido e os filhos para outra cidade, caso não consiga uma casa para morar,
pois está residindo na casa de seus pais. Foi unânime nas respostas a falta de
perspectiva de trabalho para todos, homens, mulheres e jovens, como o
principal motivo para abandono do Projeto de Assentamento Santa Vitória.
É necessário também uma reflexão sobre os efeitos da ação dos
agentes externos na vida dos assentadas e assentadas. Existem expectativas
depositadas nestes. Assim, quando chega algum carro com pessoas estranhas
na comunidade, há logo um ajuntamento de pessoas curiosas sobre as
notícias: se há algum projeto, ou sobre os últimos projetos aprovados
(projeto de geração de emprego e renda ou de melhoria para a comunidade).
Os agentes externos agem como pontes na resoluções de problemas,
mobilizações e reivindicações das famílias assentadas. Essa interferência
externa provoca, entre os assentados, perspectivas de trabalho e mudança,
como também, a instabilidade de depender de pessoas estranhas ao
assentamento para tomadas de decisões e resoluções importantes em suas
vidas.
43
II- FRAGMENTOS DE MULHERES.
1- Os limites do ser Mulher
As mulheres brasileiras têm sido personagens de uma história marcada
pela exclusão social. Registros da história mostram que as mulheres do meio
rural tiveram ainda menos experiências de intervenção pública e acesso ao
exercício da cidadania plena do que as mulheres urbanas.
Numa breve viagem ao passado lembramos que o marco inicial da
exclusão feminina, no Brasil, é representado pelas mulheres indígenas,
tragadas pela violência do processo de colonização, vítimas da exploração
sexual e da mão-de-obra escrava, quando foram expulsas de sua própria
cultura e consideradas um elemento oculto, anônimo, ignoradas na história e tratadas
como seres não-humanos. Em seguida veio o alijamento da mulher negra que,
como as primeiras, resistiram e resistem à opressão do domínio
colonizador/masculino e ao preconceito racial e étnico. (Schumaher: 2000,
p.12)
No século XIX foram firmados os modelos a serem escolhidos pelas
mulheres. Neles podemos perceber como imagens predominantes: a de mãe
piedosa da igreja, a mãe educadora do estado positivista, a esposa-companheira do aparato
médico-higienista. O apostolado positivista no Brasil se fez defensor da
dependência econômica da mulher, uma vez que dinheiro era um objeto
próprio à natureza masculina, essencialmente contrário à natureza feminina.
Os espaços femininos e masculinos na família foram claramente
delimitados, criando uma dicotomia conceitual mulher/casa, homem /rua.
Mesmo que nos contextos de baixa renda, as mulheres sempre tenham
trabalhado na casa e nos seus arredores, suas atividades foram sempre
44
vistas como complementares à atividade masculina.
Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, um clássico sobre o estatuto
das mulheres na história, nos remete a uma longa trajetória da construção
do sentido da opressão das mulheres. Para a autora, a mulher está presa no
chamado mito da feminilidade em que o ser mulher é construído a partir da
caracterização de uma natureza feminina. Então a mulher ao nascer mulher
compo o arcabouço de normatização das mulheres na sociedade. A
história mítica constituída no início dos tempos também é a de submissão
da mulher. As religiões buscaram argumentos nas lendas de Eva, Lilith,
Pandora, colocando a filosofia e a teologia, a serviço de seus desígnios.
Desde a antigüidade, moralistas e satíricos deleitaram-se com pintar o quadro das
fraquezas femininas. Conhecem-se os violentos requisitórios que contra elas se escreveram
através de toda a literatura francesa. ( Beauvoir: 1980, p. 16)
Essa autora parte da teoria de que a mulher foi criada na história, a
partir da determinação masculina, que procurou salvaguadar seu posto de
dono da humanidade, colocando a mulher numa situação de Outro. A
autora ainda desconstrói a oposição binária de macho e fêmea, que se utiliza
dos aspectos da biologia para conformar a historicidade do ser mulher. Ela
nos diz que:
O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de
dizermos ‘os homens’ para designarmos os seres humanos, tendo-se
assimilado ao sentido singular do vocabulário vir o sentido geral da
palavra homo. A mulher aparece como o negativo, de modo que
toda determinação lhe é imputada como limitação, sem
reciprocidade. um tipo absoluto que é o tipo masculino. A
mulher tem ovários, um útero; eis as condições singulares que a
encerram na sua subjetividade; diz-se de bom grado que ela pensa
com suas glândulas. O homem esquece soberbamente que sua
anatomia também comporta hormônios e testículos. Encara o corpo
como uma relação direta e normal com o mundo que acredita
45
apreender na sua objetividade, ao passo que considera o corpo da
mulher sobrecarregado por tudo o que o especifica: um obstáculo,
uma prisão. A fêmea é fêmea em virtude de certa carência de
qualidades, diz: Aristóteles. (...) a humanidade é masculina e o
homem define a mulher não em si mas relativamente a ele; ela não é
considerada um ser autônomo. A mulher o ser relativo. (Beauvoir:
1980. p.10)
Beauvoir apresentou para as mulheres uma teoria para repensar sua
condição de ser humano. A primeira condição dada é o reconhecimento
delas a sua condição de Outro, na relação tanto no mundo público como no
privado. Assim, a autora nos coloca que todos os meios educacionais e
normativos do formato do mundo humano, são construídos visando à
hierarquização do masculino em detrimento do feminino.
Destacamos, de Simone de Beauvoir, o que representa, na
humanidade, a condição imposta às mulheres milenarmente, à condição de
Outro.
A categoria Outro é tão original quanto a própria consciência. Nas
mais primitivas sociedades, nas mais antigas mitologias, encontra-se
sempre uma dualidade que é a do Mesmo e a do Outro. A divisão
não foi estabelecida inicialmente sob o signo da divisão dos sexos,
não depende de nenhum dado empírico: é o que se conclui, entre
outros, dos trabalhos de Granet sobre o pensamento chinês, de
Dumézil sobre as Índias e Roma. Nos pares Varuna-Mitra,
Urano-Zeus, Sol-lua, Dia-Noite, nenhum elemento feminino se
acha implicado a princípio; nem tampouco na oposição do bem e ao
mal, dos princípios fastos e nefastos, da direita e da esquerda, de
Deus e de Lúcifer; a alteridade é uma categoria fundamental do
pensamento humano. Nenhuma coletividade se define nunca como
Uma sem colocar imediatamente a Outra diante de si”. (...) Para
os habitantes de uma aldeia, todas as pessoas que não pertencem ao
mesmo lugarejo são “outros” e suspeitos ... (Beauvoir: 1980, p.11)
Mas em este legado teórico nos aproxima do nosso objeto de
46
pesquisa? O primeiro ponto é que a humanidade, ao destacar uma natureza
feminina primordial, imutável a partir do dado biológico, propõe à mulher
normas sociais estabelecidas a partir das representações sociais construídas
em relações binárias do macho e fêmea. O segundo ponto é que estas
relações binárias de supremacia do homem sobre a mulher lança um campo
de relações de poder e de autodeterminação cultural, marcada na nossa
sociedade pela instituição do patriarcado. O patriarcado, quanto mais poderoso ele
se torna, mais a mulher decai, (...), agora ele tem sua alma, terras; liberto da mulher, quer
uma mulher e uma posteridade para si próprio. ( Beavouir: 1980, p. 99-100)
Concordando com a posição da autora pensamos que as mulheres
assentadas, compartilham uma situação dada a elas como natural, a de ser
mulher, sendo que este termo designa todo um conjunto de significados
pertencentes ao mundo criado para as mulheres. E, compreendem que a
diferença entre ser homem e ser mulher se apresenta como uma situação
singular, a mulher se constitui como um indivíduo de determinado sexo,
enquanto que o homem não se apresenta como tal, pois ser homem é
dado como natural, é um homem, portanto historicamente criado com um
traço definitivo para sua masculinidade e sujeito ativo da sociedade, podendo
portanto ditar suas leis. (Beauvoir: 1980)
Essas leis são por vezes, no espaço íntimo da casa, ditados através de
atos de violência sica à mulher. Entre as mulheres entrevistadas no
assentamento, apenas três entre as dez, declararam que nunca sofreram
violência doméstica.
A violência física na convivência conjugal faz parte da vida de alguns
casamentos, no interior do Nordeste, onde perduraram tradições e costumes
antigos e específicos, onde se gestou uma sociedade altamente estratificada
entre homens e mulheres, entre ricos e pobres, escravos e senhores, brancos
47
e negros. O homem/marido deve cumprir com regalia o seu papel de
macho, de marido provedor, inclusive de ser o dono da mulher que pode e
deve usar da força sica que também é empregada pelos seus pais e mães
contra as filhas, quando se julga necessário impor à menina ou mulher a
condição de ser uma mulher.
A história também registra que o intenso nível de violência nas
relações conjugais, entre as famílias do interior do Nordeste, não limita-se
apenas à violência física (surras, castigos, açoites), mas à violência do
abandono, do desprezo, do malquerer. (Falci: 1997, 269) Esse aspecto nos
foi concretizado, principalmente, através das falas de cinco das mulheres
entrevistadas.
Constatamos que as mulheres do grupo estudado vivenciam três tipos
de violência: a física doméstica que acontece com freqüência ( na média de
duas vezes por semana). A física/psicológica praticada também pelo
desprezo dado às mulheres com graus diferenciados de crueldade, visto que
as mulheres assentadas vivem na situação de Outro, mesmo quando elas são
dependentes do provedor ou não, se submetendo à situações degradantes
dentro do seu cotidiano. E a violência subjetiva, esta se apresenta num
sentido mais complexo e abrangente. Pois se trata da imposição subjetiva de
seu papel social, como pré-requisito para a sua sobrevivência e legitimidade
na comunidade.
Apesar da evidência da condição de violência e exclusão das mulheres
no assentamento, a resistência delas a esta realidade tem sido pouco
acentuada. Uma das formas de resistências é a associação de mulheres, na
qual elas se reúnem em busca de atividades com retorno financeiro para elas,
dado que os projetos de geração de emprego e renda são destinados apenas
para os homens, ficando as mulheres e jovens sem alternativas de trabalho.
48
Nas relações afetivas, desenvolvidas no âmbito do privado, iniciativas como
esta, ainda são inexistente.
Mas a não percepção de ser o Outro, tal como citado por Beauvoir,
não se processa para estas mulheres em uma linearidade. As mais jovens
apresentam um discurso cheio de contradições, ambigüidades, incoerências,
tensões e conflitos, ao se verem em uma situação de desigualdade no
casamento. Nestes discursos, justapõem-se o velho e o novo, o tradicional e
o moderno, o hierárquico e o igualitário.
Meu marido come se eu cozinhar, a maioria desses não ajuda
em casa, depende da gente pra tudo, se eu viajar ele pode até fazer
mas, se eu tiver tem que ser eu. (Ifigênia )
Quando estou trabalhando ele me ajuda, mas as coisas mesmo são
feitas por mim.(Catarina)
Minha mãe, diz que é para eu, agüentar tudo de homem, para me
manter casada, mas eu não sei se agüento não. (Fermina)
Os papéis, as identidades e as referências perdem-se num emaranhado
de questionamentos e incertezas, demonstrando que, apesar do modelo
preestabelecido dado às mulheres, existe um outro modelo que pode estar
sendo construído, na perspectiva da superação de seu papel como Outro.
2- A mulher, a sexualidade e a família.
O sexo, numa perspectiva histórica, tem sido abordado por diversas
disciplinas como a Biologia, a Zoologia, e a Botânica. Os seres vivos,
animais e plantas têm sua reprodução através da atividade ou de órgãos
sexuais, como também existem as especificidades dos seres vivos
49
assexuados que não possuem órgãos sexuais e se reproduzem de outras
formas. animais e plantas portadores do sexo macho, do sexo fêmeo, e
como portadores de ambos os sexos, existem os hermafroditas. Segundo
Dantas (1999), há uma determinação inerte na natureza que fixa para cada
espécie uma forma de reprodução. A natureza o órgão reprodutor, fixa a
forma como esse órgão funciona e as relações entre machos e fêmeas que
conduzem à reprodução da vida.
O substantivo sexualidade aparece nos dicionários no século XIX.
Na Biologia, ele foi registrado em 1838; na psicanálise foi lembrado por
Freud em 1905, quando este escreve. - As três conferências sobre a teoria da
sexualidade- e encontram-se registros da palavra nos dicionários de
psicanálise, a partir de 1924. Em discordância, os dicionários de vernáculos e
os de psicanálise atribuem ao termo dimensões diferentes. O primeiro
denota sentidos de cunho puramente biológico, fisiológico ou anatômico. O
segundo, estende-se não apenas às atividades e ao prazer que dependem do
funcionamento do aparelho genital, mas de toda uma rie de excitações e
atividades, caracterizado-se pela plasticidade, invenção e relação com a
história pessoal de cada indivíduo.
As últimas décadas m acumulando uma grande produção de
saberes sobre a temática da sexualidade. Conforme Foucault (1998), a
sociedade moderna não teve uma postura repressiva com relação ao sexo.
Pelo contrário, houve uma intensificação dos discursos ao longo do culo
XIX, se consubstanciando no século XX. Desde então, vem ocorrendo a
proliferação de discursos através das instituições que não se fundamentam
no objetivo de reduzir ou proibir a prática sexual em todos os níveis ou
formas, como a normal ou desviante, heterossexual, familiar, pervertido,
homossexual, masturbação. Mas isto não indica que tenha havido, a partir de
50
então, uma liberação com relação ao sexo, mas sim, estratégias da sociedade
moderna para controlar o prazer mediante a liberação dos discursos,
havendo assim uma ampliação sobre as possibilidades de relacionamento no
plano sexual, sob o controle das instituições. Portanto, o tema da
sexualidade está na pauta do dia.
Nesses discursos difundidos, procuramos não confundir a
sexualidade apenas com um instinto, nem com um objeto (parceiro), nem
com um objetivo (relação sexual). Ela é polimorfa, polivalente, ultrapassa a
necessidade fisiológica e tem a ver com a simbolização do desejo. Não se
reduz aos órgão genitais (ainda que estes possam ser privilegiados na
sexualidade adulta), porque qualquer região do corpo é susceptível de prazer
sexual, desde que tenha sido investida de erotismo na vida de alguém, e
porque a satisfação sexual pode ser alcançada sem a união genital. (Chauí:
1984, p. 15).
Embora, a partir dos anos 80 e 90, com o advento da pandemia,
HIV-AIDS, tenha havido um vertiginoso crescimento da reflexão e da
pesquisa voltadas à sexualidade e a experiência sexual, em particular no
campo das Ciências Sociais, os saberes produzidos, a partir de então,
ofereceram elementos para uma nova compreensão acerca da sexualidade.
Ou seja, as prescrições morais e oficiais, neste âmbito, têm sofrido
mudanças profundas, uma vez que se tem posto em questão os valores
tradicionais que regulam as relações afetivas e sexuais entre os gêneros.
Os seres humanos, ao contrário do outros animais, tanto em relação à
sua vida sexual, como nas demais esferas da vida, agem por atitudes movidas
pela vontade, não apenas instintivas. A vida do seres humanos está
elaborada numa grande variação de criação, a qual chamamos de cultura.
Desse modo, os seres humanos constróem a sua determinação sexual
51
imersa numa temporalidade e nela recebendo sua relação vivencial, suas
formalizações conceituais, criando uma expressão estética e um tratamento
moral e social. A sexualidade é uma elaboração, uma busca. É a descoberta do corpo,
como dimensão da afetividade. A elaboração pessoal e criativa dessa dimensão afetiva que
não nasce determinada como o sexo biológico. A sexualidade é voltada para o outro,
marcando-se como essencialmente erótica. (Chauí: 1985, p. 15)
Nos princípios definidores da sexualidade vemos as implicações
socioculturais, que por vezes nos colocam diante dos instrumentos
considerados pertencentes à esfera biológica e psíquica. Consideramos,
portanto a sexualidade como algo que se concretiza nos limites da relação
natureza/cultura, a determinação natural constituindo-se em apenas uma
parte, dentro das sociedades humanas. (Dantas, 1999)
Nessa perspectiva, a sexualidade é construção histórica, ou seja, o ser
humano, ao nascer, não traz uma determinação natural completa de
comportamento. Sua conduta é construída numa relação dialética com a
natureza. Dantas (1999) nos fala que o ser humano não pode negar a
existência de um aspecto natural na sexualidade e não o faz, o indivíduo
reconhece e firma-se num complexo cultural e social, dentro de vivências
individuais, elaborado com material e método do mundo humano. Assim,
os aspectos psíquicos da sexualidade podem ser tomados como uma
reelaboração individual de um mundo social preestabelecido. Segundo
Dantas (1999, p. 02):
... o ser humano é um ser inacabado, como quer Berger (1985:17),
necessitando da cultura que é uma construção artificial para
poder se relacionar com a natureza. A cultura, da qual a sociedade
é criadora e parte, é o instrumento pelo qual o homem percebe e
controla a natureza de forma a se sentir um ser completo. A
completude humana, por ser produto do próprio homem, é
52
transitória, necessita de se pôr sempre em equilíbrio, resultando
como produto de um processo social de constante elaboração, que
caracteriza o mundo humano. No processo que resulta no mundo
humano, a sexualidade configura-se como parte desse mundo que se
liga à relação com o sexo (determinação biológica), mas que
também, como veremos adiante, se institui concatenadamente com
outras esferas do sociocultural. Ressalta-se, portanto, que a
concepção de sexualidade como produto cultural fundamenta-se
também na existência de um sexo, fator biológico pertencente à
esfera da determinação cultural.
Os gêneros masculino e ou feminino se constituem, nas relações,
significados pela cultura, despregados do sexo biológico, embora
culturalmente referidos a ele. Nesse sentido, feminilidade e masculinidade
são culturalmente marcados por valoração desigual, com padrões
diferenciados (e diferentemente valorados) nos comportamentos e funções,
atribuídos como próprios de cada gênero nas diferentes culturas. As
identidades de gênero são socialmente atribuídas.
Na perspectiva da sexualidade, os gêneros reúnem qualificações e
expectativas de ações que definem culturalmente o ser masculino e o ser
feminino. As construções sociais das relações entre o homem e a mulher se
erigem sobre qualidades biológicas, na qual a cultura se apropria da
distinção fisiológica da diferença dos sexos, selecionando os fatos naturais,
exacerbando-os ou anulando-os. (Goldenberg: 1997)
A construção sexo/gênero fabrica na sociedade sistemas de poder,
transformações culturais, sociais, políticas e econômicas. A relação
homem/mulher e ser-humano/natureza corresponde à totalidade de
arranjos com os quais as sociedades transformam a sexualidade biológica em
atividades humanas e a partir dos quais as necessidades humanas são tanto
satisfeitas, quanto transformadas. (Correia: 1996).
53
A partir de tais considerações, para perceber o processo de formação
da sexualidade das mulheres do assentamento Santa Vitória, recorremos a
uma abordagem a partir do contexto relacional com a família.
A história de vida dessas mulheres, nos foi detalhada, traçando uma
grande heterogeneidade de argumentos, de forma que não podemos apenas
concluir que a sexualidade, apreendida através de seus padrões corporais,
desejos, anseios e relacionamentos afetivos-sexuais agrupam ou se destinam
ao modelo da sociedade tradicional, ou ao modelo moderno, visto que a
sexualidade delas apresentam características que vagueiam entre o lícito e o
ilícito, e estes são também valorados a partir das condições sócio-culturais e
do limite geográfico-simbólico que transitam ou transitaram aquelas pessoas.
Na sexualidade da mulher assentada, existe a dicotomia visível entre o
universo feminino e masculino, - para as meninas é ensinado que nada
podem no que se refere ao expressão da sexualidade-, como também entre
o espaço público e privado, construindo-se num processo com conflitos e
contradições.
Ao considerarmos o ser humano como um ser eminentemente
simbólico e produto/produtor de cultura, outras possibilidades explicativas
de sua constituição enquanto sujeito estão colocadas num universo onde o
sujeito constitui-se na e pelas relações sociais. Através da apropriação (tornar
próprio) das significações de suas ações e interações com o mundo, em
contato com a linguagem, que permite ao sujeito localizar-se no tempo e
no espaço, regular intencionalmente suas ações no mundo, refletir sobre si
mesmo e suas ações com o exterior. A sexualidade é a linguagem através da
qual o ser humano externaliza a simbolização do desejo, a dimensão de afeto
com o objeto desejado.
54
Segundo Michel Foucault (1988), a família é responsável pela
construção de um saber sobre o sexo, marcado pela forma eficaz de
produção e reprodução do discurso que retrata e constrói a sexualidade de
acordo com o que é conveniente para estabelecê-la dentro dos seus moldes
sociais e culturais. A família constituiu-se e fixou-se a partir do século
XVIII, tendo a sexualidade como seu suporte permanente:
A família é o permutador da sexualidade com a aliança:
transporta a lei e a dimensão do jurídico para o dispositivo de
sexualidade; e a economia do prazer e a intensidade das sensações
para o regime da aliança.
A família é o cristal no dispositivo de sexualidade: parece difundir
uma sexualidade que de fato reflete e difrata. Por sua
penetrabilidade e sua repercussão voltada para o exterior, ela é um
dos elementos táticos mais preciosos para esse dispositivo. (Foucaul:
1988, p. 105)
Foucault (1988) atribui ao dispositivo de sexualidade o reflexo de uma
estrutura social, econômica e política de aliança. O dispositivo de aliança
está presente em toda sociedade; no sistema do matrimônio, de fixação e
desenvolvimento dos parentescos, de transmissão dos nomes e dos bens,
reproduz a trama de relações e mantêm as leis que as rege. O dispositivo de
sexualidade funciona de acordo com as técnicas móveis, polimorfas e
conjunturais de poder, as sensações do corpo, a qualidade dos prazeres, a
natureza das impressões que são pertinentes, articula o corpo à economia e o
explora como principal fonte. Desse modo, ele afirma que a função dos
dispositivos de sexualidade é de proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos
corpos de maneira cada vez mais detalhada e de controlar as populações de modo cada vez
mais global. (Foucault: 1988, p. 101)
Para Foucault: (1988, p. 100)
55
A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico:
não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à
grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a
intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos
conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências,
encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de
saber e de poder.
Estes dispositivos de sexualidade aos quais Foucault (1988) se refere são
quatro grandes conjuntos estratégicos sobre os dispositivos de saber e
poder: a histerização do corpo da mulher que a retrata, sobretudo, como
mãe a mulher nervosa, histérica; a pedagogização do sexo da criança,
percebendo-a como possível de se dedicar a uma atividade sexual, sendo,
portanto, moldada, primeiro pelos pais, escola, médicos, etc.; a socialização
das condutas de procriação sobre o controle da fecundidade dos casais,
visando medidas econômicas de desenvolvimento estatais; e a
psiquiatrização do prazer perverso que se resume ao isolamento do instinto
sexual, busca de uma normalização e patologização de toda a conduta
humana.
Desse modo, Foucault (1988) articula a sexualidade como uma
construção humana edificada no cotidiano e pertencente ao mundo social
preestabelecido que se consolida a partir de uma contínua efusão do homem
sobre a sociedade. A sexualidade envolve contatos corporais entre as pessoas
do mesmo sexo ou de sexos diferentes, ligados ou não à atividade
reprodutiva e pode ter significados radicalmente distintos entre as culturas,
ou mesmo entre grupos populacionais de uma determinada cultura.
(Heilborn: 1999)
Assim, a família é uma instituição construtora da identidade das
mulheres, fazendo uma relação dialógica entre o individual, o coletivo e o
56
social. A comunidade modela os passos dos moradores, limitando-os às regras
de bom comportamento, direcionando sobretudo à mulher o poder histórico de
vigiar a sua conduta sexual.
Considerando a proposição teórica de Mayol (1996), as mulheres são,
portanto, neste espaço, a base para a existência da coletividade.
No assentamento, o modelo de família encontrado é o nuclear,
representado pela figura paterna, o cabeça da família cujo poder de decisão
suplanta a mãe, dona-de-casa e os filhos. Nas famílias do assentamento
Santa Vitória também podemos encontrar netos, frutos de uma relação sem
casamento dos filhos, e por vezes, os filhos utilizam-se dessa estratégia para
trabalharem em outra comunidade.
Fica também sob o jugo do chefe da família os filhos que, mesmo
casados e trazendo seus cônjuges, ainda não possuem casa própria e residem
no lar paterno/materno. Essa é uma situação não rara na comunidade
estudada.
Outro modelo encontrado no assentamento é de mulheres separadas
que vivem com seus filhos, tendo uma união consensual, morando ou não
com o companheiro na sua casa. Algumas das mulheres entrevistadas
tiveram mais do que duas uniões consensuais, tendo filhos também de pais
diferentes. Apesar de termos encontrado mais de uma mulher separada, que
mora na sua casa e se encontra em outro casamento ou com namorado, esse
modelo de família não é a regra nessa comunidade e sim exceção dentro dos
padrões morais esperados. Foi observado no discurso das mulheres a
vontade de encontrar um homem com quem compartilhar o dia-a-dia, sua
afetividade, sua realização sexual, com quem que divida a responsabilidade
da criação dos filhos ( de ambos ou de casamentos anteriores) e que lhe
o status de mulher casada.
57
Existem comportamentos diferenciados adotados por algumas
mulheres, como por exemplo, ter mais encontros afetivos e sexuais ou ter,
ao longo de sua trajetória, mais de duas ou três uniões consensuais. Esse
tipo de comportamento é diferente das expectativas sociais e é reforçado na
comunidade positiva ou negativamente, recebendo sanções e acionando um
sistema de acusações e rótulos, que não se enquadra no modelo adotado
pela comunidade.
Essa questão pode ser compreendida dentro da postura teórica do
interacionismo simbólico. Na perspectiva interacionista, a cultura prescreve
postura e scripts para os membros da comunidade; não existe a atividade
desviante em si, sendo o desvio fruto de um processo interativo entre
acusadores e acusados. O comportamento desviante é o comportamento
assim rotulado pelas pessoas. As mulheres que, portanto, não se enquadram
num modelo de casamento tradicional do assentamento são consideradas
desviantes, inapropriadas para o tipo de modelo familiar, possuem um
estigma, uma marca diferencial negativa quando contrastam com os outros
tipos de arranjos conjugais percebidos como possíveis.
Segundo Goffmam (1985), o termo estigma é usado como referência a
um atributo profundamente depreciativo que está vinculado a uma
linguagem de relações, e não ao atributo em si próprio.
O estigma envolve não tanto um conjunto de indivíduos concretos
que podem ser divididos em duas pilhas, a de estigmatizados e a de
normais, quanto um processo social de dois papéis no qual cada
indivíduo participa de ambos, pelo menos em algumas conexões e em
algumas fases da vida. O normal e o estigmatizado não são as
pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais (...)
em virtude de normas não-cumpridas. (Goffmam: 1985, p.161 )
58
Deduz-se então que a família o tom na convivência dessa
comunidade. É ela quem vigia e continuidade às vidas das pessoas.
Assim é completado o ciclo daquelas pessoas: o pai, a mãe e os filhos, os filhos dos
filhos, os filhos dos filhos dos filhos ...
As trajetória femininas no assentamento revelam que a vida conjugal e
os filhos parecem viabilizar o projeto de (re)constituição de uma vida
familiar harmoniosa e feliz, capaz de fornecer apoio, segurança, companhia,
além de um reconhecimento público na sociedade. Casamento e
maternidade aparecem como valores centrais em seus projetos de vida.
Foi observado que a saída da casa dos pais tende a definir a entrada da
moça na vida adulta. Essa constatação, também observada por
Monteiro(1999), em uma pesquisa realizada em Vigário Geral-RJ, diz que
ao sair de casa, a garota tem como base a aquisição do controle familiar e o
controle das novas funções que ela passa a ocupar na sua própria casa.
Segundo Heilborn (1999, p.122-125):
a despeito de as atividades guardarem semelhanças haja vista que as
tarefas exercidas na casa dos pais não o diferentes daquelas
realizadas no seu lar – lavar, cozinhar, arrumar, cuidar das
crianças, trabalhar com sua família, tais compromissos adquirem
um novo significado. Como esposa e/ou mãe, a jovem altera o seu
status social de filha e põe em prática o ideal do casamento e da
maternidade. As funções assumidas estimulam o abandono da
escola com mínimas perspectivas de retorno e inibem atividades de
lazer, como idas a bailes, restringindo, dessa forma, a circulação da
mulher no âmbito público.
Para as jovens, a saída dos seus lares, devido ao casamento e/ou
maternidade, permite a independência do grupo familiar, a realização de um
ideal e a aquisição de novas funções sociais, quais sejam, mãe e/ou esposa.
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Essa passagem não está associada à autonomia financeira ( como mostra as
pesquisas sobre mulheres das camadas médias e altas) e sim à reprodução do
papel feminino tradicional. (Lavinas: 1997, p.123). A gravidez não planejada,
que não vem acompanhada de casamento, retira das jovens a consideração
de moça pura, virgem, menina.
A moça passa a ser uma mulher, porém não corresponde à autonomia
feminina; ela geralmente deixa os estudos para criar os filhos com os outros
irmãos, o filho tende a ser um meio-irmão; são os pais quem assumem e
compartilham os cuidados com a criança. A jovem perde algumas de suas
funções sociais. Quanto ao lazer, ela passa a ser mais vigiada ou não
enquadrada no conjunto das moças virgens, pois vigília para ela não se
tornar uma pessoa completamente perdida, e ainda conservar alguma
possibilidade de obter um casamento. Ainda nessa trajetória, situações
em que a vida conjugal se inicia na casa dos familiares e é depositada no
marido a expectativa dele (homem) assumir o papel de provedor em
conjunto com os outros homens da casa. Quando esse papel não é
cumprido, os familiares se sentem no direito de cobrar, em casos extremos
podem até mandar o rapaz ir embora da casa. (Monteiro: 1999)
Um dos modelos de casamento encontrado no assentamento
compreende o tipo de casamento tradicional em que o contrato formal é
estabelecido entre as partes. O amor é a categoria central na relação.
necessidade de uma vida compartilhada, com os desejos de um projeto
comum coexistindo com os projetos individuais, ao mesmo tempo em que
reivindicação de privacidade e do espaço do casal. O respeito às
mudanças individuais é tido como imprescindível para o crescimento a dois,
porém, se o divisão do trabalho doméstico, divisão do trabalho
extradoméstico, uma vez que as mulheres atuam com seus maridos nas
60
tarefas da agricultura.
Outro modelo encontrado é o da união consensual, a mulher e o
homem não estabelecem um contrato formal, mas coabitam e
estabelecem-se nos mesmos moldes do contrato formal.
Vale destacar que essa coabitação que depende mais da idéia do
amor-romântico e menos da idéia de contrato, foi encontrada
principalmente no grupo de mulheres mais jovens. No grupo de mulheres
com mais tempo de casamento é muito forte a concepção de que o
casamento não seja efêmero, que seja obrigatório e definitivo. Para as
mulheres mais jovens, a família conjugal, pai, mãe e filhos, serve como
modelo, sendo presente no discurso delas o casamento como finito, se não
corresponder aos seus sentidos e expectativas.
Em todo caso, percebe-se que as mulheres, apesar das sanções e
cobranças do meio para não extrapolação das normas de boa conduta da
comunidade, não ficam sem parceiro afetivo e sexual; forte conotação
da mulher falada, mas não corresponde à prática em si, pois elas discursam e
contam casos de que a mulher não deve se permitir muitas experiências
sexuais. Entretanto e contraditoriamente a esse fato, elas logo que saem do
casamento mergulham em outro relacionamento. O quadro analisado
apresenta pessoas que não permanecem sozinhas, casam-se cedo e, no caso
de instabilidade conjugal, experimentam vários casamentos. uma
necessidade de encontro com o outro dentro de uma conjugalidade.
A situação dos homens do assentamento foi captada pelo paralelo
feito com as perguntas às mulheres, ou seja, a trajetória deles é apresentada
conforme o discurso delas. Há, no assentamento, uma insatisfação geral da
comunidade porque o tem vida economicamente ativa para todos, sendo
os homens mais jovens os mais prejudicados e ociosos. O momento atual é
61
de muita insegurança e instabilidade, pois espera-se um programa de geração
de emprego e renda que atenda à demanda da comunidade, que no geral é
algo relacionado à agricultura. um descrédito na comunidade,
especialmente pelos próprios jovens, quanto à possibilidade de que algo
seja feito a fim de gerar ocupação e emprego para essa parcela da
comunidade.
Monteiro (1996) analisa que a trajetória masculina, na passagem do
momento de rapaz para homem adulto e provedor, é diferente da feminina,
porque ela, a mulher, enquanto adulta, pode pertencer ao mundo público, e
os homens não, eles sempre pertenceram a este universo. que no
momento de transição para a vida adulta dos homens, é substituído a vida
pública exemplificada pelo lúdico, para o profissional. Segundo Monteiro
(1999, p. 125):
A trajetória masculina é distinta da feminina e a ela complementar.
Entre os rapazes, a saída da infância não corresponde à limitação
da ocupação do mundo público, e sim a alteração na percepção desse
espaço, devido às pressões sociais para assumir atos e compromissos
e à entrada no mercado de trabalho. O início da vida adulta
masculina guarda, assim, uma relação com a mudança de sentido
da rua; mesmo mantendo o significado de lazer (futebol, baile), o
espaço público passa a representar a concepção de local de trabalho,
responsabilidade e busca da atividade remunerada (“quando a gente
começa a trabalhar deixa de ser criança”).
A função social masculina, como foi citado é de compromisso
pela subsistência da família e incorpora uma forte conotação moral positiva,
abrigando os significados de responsabilidade, inteligência e conduta moral
(Heilborn: 1997, p. 308). Tais qualidades são requisitos importantes para o
papel social de provedor e protetor da mulher e se opõem ao
62
descompromisso dos tempos de criança. Isso significa dizer que, a falta de
investimento na educação formal, e a não participação nas tarefas
domésticas, são percebidas pelo grupo como tendências naturais da trajetória
masculina, reproduzidas e atualizadas. (Bourdieu, apud Monteiro, 1999.
p.125)
A paternidade e a criação de um núcleo familiar harmônico também
integram o projeto de vida dos rapazes, mas em comparação com as
meninas, são mais tardios. Os casos de gravidezes não planejadas aceleram o
convívio conjugal, mas há casos em que os rapazes não se sentem com a
obrigação e a necessidade de casar.
Quando a gestação é mantida e não uma continuidade do vínculo
amoroso, na visão masculina a mulher tenderá a assumir sozinha a criação
do(a) filho(a). O vínculo com a criança é mais forte quando um
comprometimento afetivo com a mulher, quando essa ligação se torna nue
há uma maior probalidade de desligamento também do (a) filho(a).
No caso em que o homem esteja interessado em manter um vínculo
conjugal com a mulher, o reconhecimento do filho(a) poderá acontecer
legalmente e integralmente, considerando a obrigação moral e material. No
caso contrário, ou seja, quando não tem o interesse de manter o vínculo
conjugal com a mulher, o reconhecimento da criança acontece parcialmente,
sendo atribuído que para os homens desta comunidade a obrigação moral
de assumir materialmente e emocionalmente a criança depende da relação de
proximidade que se tem com a mãe.
Ariés (1991) apresenta as alterações na imagem da família e nas
relações sentimentais nos séculos XVI e XVII, considerando-se que a
família transformou suas relações internas com a criança. A alteração desse
sentimento de família, como está representado hoje, teve seu início desde o
63
século XV até o século XVIII. Até então, ela não tinha destruído a antiga
sociabilidade, mas a partir do século XVIII o sentimento de família impôs-se
tiranicamente às consciências de todas as classes, ressaltando o triunfo do
individualismo sobre as obrigações sociais, entre as quais figurava a família.
Todos os costumes contemporâneos tornam-se incompreensíveis se
desprezamos o crescimento do sentimento da família. De acordo com Ariés
(1981, p. 274):
Na idade média a família cumpria uma função assegurava a
transmissão da vida, dos bens e dos nomes mas não penetrava
muito longe na sensibilidade. Os mitos como do amor cortês (ou
precioso), desprezavam o casamento, enquanto as realidades como a
aprendizagem das crianças afrouxaram o laço afetivo entre pais e
filhos. Podemos imaginar a família moderna sem amor, mas a
preocupação com a criança e a necessidade de sua presença estão
enraizadas nela.
Partimos da suposição de que a família do assentamento destaca-se
entre as demais relações estabelecidas, para permitir àquelas pessoas
escaparem de uma solidão moral. O assentamento tem uma sociabilidade
parcial com o mundo exterior, em virtude do isolamento geográfico e
inércia social. Somente as pessoas de maior poder aquisitivo m condições
de um convívio mais constante com as outras comunidades, somando-se a
isso o fato de não haver transportes freqüentes do assentamento para os
outros locais. Nos dias de feira, geralmente no sábado, nove entre as dez
disseram que quem se desloca é o marido, o pai ou os filhos, apenas, uma
mulher respondeu que ela mesma e não é dado as filhas adultas esse direito.
os jovens que se deslocam diariamente para a escola situada em
São Bento do Norte. também os jogos de futebol, organizados pelos
64
jovens, sendo estes um dos momentos em que saem as moças e os rapazes
para desfrutarem de algum lazer.
O acesso a outras comunidades não se torna fácil, pois o transporte é
particular e escasso. O assentamento se apresenta como uma sociedade
fechada, onde seus membros gostam de permanecer, sendo perturbados
pelos problemas econômicos que assolam todos os membros da
comunidade. A família age em conjunto com as relações de vizinhança,
amizade e tradições, além de mediadora e reguladora das relações sociais
entre os moradores, tornando-a mais visível em nível das relações
afetivo-sexuais entre os homens e as mulheres.
Segundo Ariés (1981), a história registrou a família como responsável
de uma função moral e espiritual de formar corpos e almas. Ela extrapola a
sua função de ser uma instituição do direito privado. No assentamento, a
família se constitui num amplo quadro de permissão ou repressão às ações
sociais.
Nesse aspecto, é sabido que a família se instaurou historicamente
como uma instituição patriarcal, transformou a humanidade no ser
masculino, definindo a mulher relativamente reflexa a ele, não a
considerando um ser autônomo, mas um ser relativo. No assentamento
estudado, as relações se apresentam de forma a colocar a mulher à abstração
da figura masculina.
Um exemplo disso e a divisão sexual do trabalho. As mulheres estão
em todas as fases do plantio, mas ficam de fora do processo de negociação
do produto, pois é considerada uma atividade exclusivamente masculina,
mesmo as assentadas que são donas dos lotes transferem o poder de
negociar a um membro da família mais próximo, como foi citado
anteriormente.
65
III- TRAJETÓRIAS FEMININAS
3.1- As entrevistadas
Foram realizadas dez entrevistas com mulheres que residem no
assentamento rural Santa Vitória. São elas; Ariadne, Carmem, Catarina,
Penelópe, Fermina, Ema, Helena, Ifigênia, Isis, Celina.
Apenas uma das mulheres entrevistadas é separada e mora sozinha
com os filhos. As demais moram com o marido e os filhos. Uma mora com
o marido e dois filhos na casa da mãe, e quatro tiveram a experiência de mais
de um casamento. Entre os casais o homem/ marido é mais velho, do que
a mulher, havendo apenas um casal cuja idade da mulher é maior que a
do homem. Então, temos nove mulheres casadas, uma separada, quatro
delas tiveram experiência sexual antes do casamento, sendo duas delas com
outros homens que não seus maridos.
As trajetórias de vida apresentadas pelas mulheres, através de suas
falas, nos permitem refletir sobre o processo de constituição de ser mulher
num assentamento rural. A realidade vivida pelas mulheres do assentamento
sofre, sem dúvida, forte influência da moralidade da ideologia burguesa e
do catolicismo. Mas também está presente, principalmente, nas falas de
Fermina e Carmem, mulheres mais jovens, a vontade de romper com a
rigidez dos costumes. Constatamos na comunidade um enorme descompasso
entre a moralidade oficial e a realidade vivida pelas nossas entrevistadas,
principalmente entre as moças mais jovens do assentamento.
Duas das entrevistadas falam sobre um modelo de vida diferente do
esperado, ou seja, desejam conviver com o namorado sem a necessidade de
coabitarem na mesma casa. Atitudes e desejos como estes demonstram que
66
no assentamento acontece, por vezes, uma moralidade alternativa.
No assentamento há também casos considerados destrutivos à
própria dignidade da mulher. Um exemplo foi uma situação vivenciada por
Penélope, na ocasião em que seu atual companheiro hospedou a ex-mulher
por uma semana, na casa de ambos. Esse fato foi inédito e considerado
inaceitável no assentamento. Em sua fala declarou: Nós estávamos juntos, ele
trouxe a ex-mulher para passar uma semana na minha casa, foi horrível, achei uma falta
de respeito, com a educação que eu tinha eu não tive coragem de expulsá-la. (Penélope)
Outro exemplo é de Carmem, que por ocasião da separação teve um
filho com um namorado, voltando meses depois para o antigo marido.
Como dissemos a iniciação sexual de quatro entrevistadas
aconteceu antes do casamento. E uma delas não casou com o pai de seu
primeiro filho. A vida das mulheres é transpassada por acontecimentos mais
ou menos fugidios da moralidade oficial. As mulheres mais jovens são mais
aptas a modificar a sua realidade conjugal.
Entre as mulheres desinformação sobre o corpo sexual, como
também falta de comunicação entre os pais e filhos sobre assuntos ligados
às questões sexuais. Tampouco a escola age como mediadora dessas
questões. Heilborn (1999) em uma análise sobre as políticas de intervenção
social sobre a esfera sexual em categorias de baixa renda conclui que o
diálogo mundial da problematização da sexualidade, que reitera um discurso
moderno sobre direitos sexuais e reprodutivos e (des)igualdade dos gêneros,
não é comum nessa realidade.
A seguir nos deteremos um pouco nos depoimentos de cada
entrevistada, de modo a traçar um painel das individualidades pesquisadas.
67
3.1.1. Celina
Celina, 62 anos, casada, três filhos, mora no assentamento desde o
início, dez anos. É trabalhadora rural desde criança dedicando-se as
tarefas no campo e sempre residiu em comunidades rurais. Ela foi a mais
tímida das entrevistadas ao contar sua trajetória de vida. Casou-se aos
dezoito anos, quando seu marido, hoje com 65 anos, foi visitar uns parentes
na comunidade em que ela residia. Foi uma mulher criada dentro dos
costumes da região, ajudava a família no trabalho do campo, casou-se
virgem, com o consentimento dos pais e suportou do marido anos de
ausência deste na família.
Criou os filhos por alguns anos sozinha, e não quis nos contar
quantos, pois hoje o marido reside em casa, e não quis falar das dificuldades
do seu casamento, pois considera ter reconstituído o núcleo familiar.
Teve resistências a fazer o primeiro exame médico ginecológico em
sua vida. E argumenta que: essa negócio de ir para o médico é só de uns anos para cá,
pois tive todos os meus filho em casa com a parteira, e a gente se tratava com remédio feito
em casa mesmo, como por exemplo uma inflamação no útero, fazia uns chás de arueira,
lavava também( banhos de assento), e ia levando. As doenças era mais do trabalho pesado,
isso sim arreava agente mesmo. Atualmente diz que vai por vezes a sede do
município para fazer consultas. Também diz não suportar mais o trabalho
pesado no campo e diz que vai apanhar um feijãozinho se tiver, considerado
uma tarefa leve por ela.
3.1.2.Ariadne
Ariadne tem 45 anos e 13 filhos, reside no assentamento seis anos.
Ela casou-se aos 16 anos e veio para o assentamento acompanhando o
68
marido. Das entrevistadas foi a única que morou em outro Estado, a
procura de trabalho, mas não se sentiu bem em morar numa cidade grande.
Deduz que, apesar das dificuldades da vida do campo, o assentamento ainda
é um lugar calmo e que seria perfeito se lhe proporcionasse uma vida
material digna.
Ariadne I:
Eu vim para cá, quando meu pai vendeu a terra dele, começaram
uma pedreira, e meu pai não podia continuar morando com uma
pedreira vizinho a casa dele, então teve que vender a terra, e nós
tivemos que sair, hoje ele mora em Parnamirin, e o lugar que tinha
era esse aqui mesmo, tinha aqui para vir. Eu não queria vir, eu
achava difícil, mas eu tinha vindo aqui uma vez a passeio, eu
achei que era pior, por final aqui eu ainda não me acostumei com o
sol, o sol nasce do lado errado, nada está bem aqui não, para
João Câmara, para de Queimada é diferente, tem um ar
diferente, mas dali para diante para mim o sol nasce errado. Eu
não sei o que é norte, sul, leste, oeste eu não sei, era como lá em São
Paulo, no Sul, eu também não sabia o lado certo do sol, era tudo
virado, era tudo o contrário. Logo quando eu casei, fui para são
Paulo, o povo dizia que São Paulo era o paraíso, se juntava
dinheiro com o gancho, fomos para lá melhorar a situação.
A experiência de morar numa grande cidade causou a Ariadne
estranheza, principalmente sobre o fato de não poder tirar da natureza
alguns elementos para sua sobrevivência. Ela se contraria com a vida
complicada da cidade grande e as dificuldades da vida do campo. As
precárias condições de vida em ambas as experiências lhe deixaram
insatisfeita com as poucas possibilidades disponíveis às pessoas do meio
rural.
Ariadne II:
69
(em São Paulo) eu não trabalhava em nada, era doméstica,
mas meu marido trabalhava como auxiliar de eletricista. Tinha um
filho e estava esperando essa outra. Depois a gente viu que não era
nada disso que o povo falava, a gente ganhava razoável, mas
gastava muito mais do que ganhava, era com aluguel, luz,
transporte, ele trabalhava distante, era muito difícil, tínhamos
muitas despesas, aqui no norte era melhor, nós somos mais libertos,
temos mais liberdade, por exemplo, se faltar um gás a gente vai nas
matas traz a lenha e queima, no caso da água, a gente pode ir nos
açudes, tudo era comprado, não achei bom não, a gente morava
em barraco, na favela, vida de favelado não é boa não. Isso foi em
78 para 79. No outro ano a gente veio embora, ainda passei quase
dois anos lá.
Além de trabalhar na agricultura, ela também desenvolveu muitas
atividades informais para conseguir algum dinheiro. Como ela cursou o
primeiro grau completo, foi professora de grau em escolas isoladas no
meio rural. Atualmente, trabalha na secretaria da escola do assentamento e
é membro da associação de mulheres- fui quase tudo, eu fui professora,
professora de creche, de Mobral, já vendi produtos de beleza e cosméticos, já vendi
artesanato, e sempre trabalhei na agricultura. Mas é o seu casamento que se
constitui um marco na sua vida. Eu sempre choro quando falo disso, às vezes eu nem
penso que é para não enlouquecer.
Embora o marido não more na casa de ambos, não existe uma
condição de separação legal ou verbal. No seu casamento não a violência
física, mas sente-se agredida e enganada psicologicamente com a situação do
casamento, porque o marido se mostrou ausente durante toda a vida de
casados. Associa o seu modelo de casamento a um relacionamento mal
sucedido.
Ariadne III:
Depois que eu cheguei aqui ele até que passou uns tempos
70
em casa, mas sempre ia lá, mas passou uns tempos em casa,
mas de uns dois anos para cá ele se desligou muito da gente,
e agora ele vive praticamente lá, ele vem aqui passa quatro
dias, cinco, às vezes volta no mesmo dia, agora que o velho(o
pai do marido) está doente, ele diz que vai ajudar o pai,
mesmo tendo duas senhoras dentro de casa que podem tomar
conta do pai dele, mas ele acha que deve ir, sei lá, eu não
sei nem explicar.
O modelo de casamento vivenciado por esta entrevistada foge à regra
do casamento convencional em que o casal coabita no mesmo espaço. Sua
concepção de relacionamento é que o homem deve residir na mesma casa
com a mulher, sendo que sua vida de casada não é considerada por ela
normal e o a satisfaz. Ela não se posiciona a favor de uma separação
oficial, pois declara que possivelmente a relação dela com o marido e do
marido com os filhos se tornaria impossível.
Ariadne IV:
A separação é essa dele viver no meio do mundo, e só vem em casa
quando bem entende. Eu queria que ele tivesse sido um marido,
mas ele sempre estava para a casa do pai dele. Ele sempre me
feriu com as palavras, e também nunca cumpriu os deveres de
marido como era para ser. Uma vez eu pensei em separar, mas eu
pensei nos meus filhos, porque quando um casal separa os filhos
ficam muito distantes do pai, meus filhos o tem um bom
relacionamento com ele, mesmo com problemas mas forma uma
família, eu acho que havendo uma separação vai haver uma
distância maior, e se separar que eles vão ficar longe do pai,
(...)eu não penso em separação não, e para ele seria ótimo, porque
ele ficaria livre de tudo, assim eu estou acostumada mesmo, mas
o que eu estou fazendo da minha vida, o povo diz que quando ele
ficar velho ele volta, mas quando era novo e sadio não quis saber da
família, mas quando não puder mais vai voltar, ali tem uma
mulher com a história igualzinha, ela teve uma vida como a minha,
ele passou a vida quase toda fora, ela apanhava mangaba para
vender para comprar a alimentação dos filhos. Eu não posso ficar
71
pensando nos problemas porque eu fico nervosa, então eu tenho que
tomar remédio para me acalmar.
Ariadne sofre com os desencontros de seu casamento. Sua situação
identifica-se com a de mais cinco mulheres entrevistadas, apresentadas a
seguir. Há a idealização do relacionamento amoroso, como sendo um
convívio construído sob os pilares do companheirismo, fidelidade,
sinceridade, entre outras qualidades levantadas pela entrevistada. Mas ao
contrário, o seu casamento se apresenta com incoerências, tensões e
conflitos. A entrevistada enfatiza uma possibilidade de escolha entre o estar
casada e ser uma mulher separada, mas busca fugir do estigma de mulher separada,
pois os valores rígidos apreendidos através de seus pais são considerados
importantes, ante a tomada de uma decisão.
Ariadne V:
Eu nem mesmo queria casar, eu me casei mais por causa de meu
pai, por que naquele tempo o povo era muito ignorante e meu pai
era muito, hoje ele é velhinho, mas é muito ignorante, ele dizia que
homem nenhum alisa banco na minha casa, namorou casou, ele fez
isso com a mais velha e comigo e com a outra, meses depois do
namoro ele mandou a gente casar, era um namoro que nem parecia
namoro, era um aqui outro acolá, ninguém tinha nem contato físico,
ele foi falar com o rapaz para casar, era um namoro sem amor,
sem conhecimento, não era nem namoro, era só porque a gente bateu
um papo, teve que casar, assim o namoro existia. Tinha, beijos
e abraços, mas olhe lá, não existia aquela vontade de casar,
minha vontade era de estudar, eu só não fui alguém na vida porque
meus pais não deixaram, eu ainda estrebuchei para não casar mas
a família todinha queria, eu tive que casar para fazer o gosto da
família.
Ela valoriza a relação entre a família e não entre o casal. este último
item ficou secundarizado em sua vida. Apesar de Ariadne apresentar um
72
discurso consciente de sua desvantagem enquanto mulher, pois
considera-se manipulada em muitas situações de sua vida, desde não poder
estudar e ser obrigada a casar, ela elabora sua estratégia de fugir das
acusações internalizadas de desvio e discriminações sociais, em especial a dos
familiares. Desse modo, ela situa-se, a partir da identidade de mulher casada
a ela atribuída, na nue fronteira entre o certo e o errado no
relacionamento. Essa fronteira desfaz-se quando o casamento ultrapassa os
limites da intimidade que é considerado anormal e se apresenta ao grupo
buscando um papel favorável de mulher casada. Perguntamos se seu marido
mantinha outro relacionamento com outras pessoas, sua resposta foi que
possivelmente teria, no local em que ele residia.
Desse modo, para esta entrevistada, o casamento é mantido porque
se constituiu como um compromisso obrigatório, e também para pertencer
modelo nuclear de família.
3.1.3.Ifigênia
Ifigênia, 45 anos, casada, reside no assentamento sete anos.
Também acompanhou toda a trajetória do nascimento da comunidade, mas
mudou-se definitivamente para lá alguns anos depois. Ifigênia diz ter uma
relação amigável com o marido. Eles se dão bem, mesmo depois de 27 anos
de casada e com oito filhos. Os problemas apareceram depois do
nascimento dos filhos.
Foram eles (os filhos) que provocaram algumas dificuldades na
relação do casal, pois os maiores atritos eram sobre a questão da iniciação
das filhas na vida sexual fora do casamento, fato não aceito pelo casal. Essa
entrevistada surpreende-se com a precocidade das garotas do assentamento,
73
nos relacionamentos afetivos e sexuais.
O filho também causou um problema parecido, quando engravidou
uma moça fora do casamento. E complementa com as situações de falta de
trabalho ou doenças na família. São sobre esses fatos que Ifigênia se refere
ao seu casamento. A relação pessoal com o marido, segundo ela, é muito
boa.
3.1.4.Helena
Helena, 44 anos, é uma das mulheres que está desde o início da
constituição do assentamento. Percorreu várias comunidades rurais e
trabalha como agricultora desde criança. Alguns de seus filhos são casados,
uma filha mora na sua casa com o marido e dois filhos.
Está casada 25 anos e refere-se a sua vida de casada como simples
e sem conflitos. Os filhos às vezes brigam entre si, mas nada muito grave.
Citou que houve apenas uma situação de violência doméstica no seu casamento
Uma vez eu briguei porque ele não tinha trazido da feira o que era para trazer, mas a
cachaça ele não esquecia, ele apontou uma faca em minha direção. Saí correndo entrei no
mato, e as pessoas pediram para ele não fazer aquilo.
Segundo ela, essa foi a situação mais crítica; as demais o apenas
pequenas discussões sobre os filhos ou os problemas do cotidiano. Diz que
também briga com ele porque ainda tem ciúmes, mesmo depois de 25 anos
de casada.
Helena não consegue explicar as causas do sentimento de ciúme, que
para ela traz algumas insatisfações, apesar de seu marido não ter outras
mulheres.
A entrevistada afirma que faz exames preventivos periodicamente.
Apresentou alguns problemas, como cistos no ovário e excesso de
74
menstruação.
Helena reclama da falta de diversão no assentamento. Diz que a
experiência de mudar-se para teve suas melhorias, mas também algumas
perdas.
Helena I:
Somos como um bando, aqui dentro não tem nada para
fazer. Agora, não tem nem trabalho, apanhamos lenha
para vender, mas a renda é muito pouca,(...) estou doente
com esses problemas no ovário, mas mesmo assim não paro
de fazer as tarefas, tem sempre algo para fazer. Mas agora,
apesar de tudo, tem uma roça e uma farinhazinha. Na
época do galpão, a gente via anoitecer e amanhecer sem
nada.
3.1.5. Ema
Ema, 42 anos, três casamentos, reside no assentamento nove
meses. Casou-se a primeira vez aos dezessete anos, convivendo com o
primeiro marido quinze anos. Segundo ela, a história de seu casamento não
foi das mais felizes. O marido a agredia física e verbalmente. Teve um filho
com o primeiro marido. Após o falecimento do marido, casou-se
novamente. Esse casamento foi acompanhado por muitas intempéries
conjugais. Segundo a entrevistada, a violência doméstica também era
presente. Teve dois filhos com o segundo marido e um aborto espontâneo.
Separou-se após alguns anos. O terceiro casamento é recente, tem menos de
um ano. A entrevistada ressalta um fato considerado por ela muito
importante. Ela justifica que está casada com um rapaz mais novo. Ele tem
28 anos e ela, 42. Segundo a entrevistada, ela não tem a intenção de ter
filhos, mesmo havendo esse desejo por parte do atual marido. Mas como
fez a laqueadura, a alternativa seria adotar uma criança, mas ela se recusa,
75
justificando que o fato do marido ser mais novo pode haver uma futura
separação.
Para Ema, manter um relacionamento sexual com um com um
homem quando há agressões físicas é muito difícil. Esse atual casamento,
segundo a entrevistada não tem violência doméstica, ele a respeita e
compartilha com ela os problemas do cotidiano, sem violências. Diz estar
cansada de um relacionamento marcado pela violência doméstica, sendo isto
decisivo para o rompimento da relação.
apenas uma amiga com quem compartilha as questões da
intimidade. Relatou para a entrevistadora como foi a sua primeira relação
sexual e do casamento obrigatório, em virtude de ter ficado grávida. Antes
do casamento, tomou comprimidos anticoncepcionais, mas interrompeu o
uso por sentir efeitos colaterais, ficando grávida logo em seguida. Depois do
primeiro filho, continuou, mas não quis mais este método contraceptivo. No
segundo casamento também usou a pílula por pouco tempo. Tem grande
rejeição ao método por alegar que ele traz inúmeros males à saúde da
mulher. Tem o hábito das consultas ginecológicas, fazendo-o
semestralmente desde que fez a ligação de trompas.
3.1.6.Penélope
Penelópe, 35 anos, reside no assentamento cinco anos, está no
terceiro casamento. Ela trabalhou na agricultura dos oito aos quatorze anos.
Mas como queria estudar, foi trabalhar como doméstica em Poço Branco.
Aos dezoito anos, mudou-se para Natal-RN, onde trabalhou como
doméstica, faxineira, lavadeira de roupa e em um restaurante. Na época que
passou trabalhando no restaurante, abandonou os estudos na sétima série,
76
retomando-os quando voltou para Poço Branco. Atualmente cursa o
segundo grau; é professora no assentamento e a presidenta da associação de
mulheres.
Penelópe I:
Eu comecei desde criança, era uma criança da agricultura, tinha
uns oito anos, até quatorze anos, mas como eu queria estudar, eu
fui ser empregada doméstica, para estudar, passei onze anos como
empregada doméstica, depois disso fui trabalhar em restaurante, fui
lavadeira de roupa, fui faxineira. Nessa época eu fiz até a sétima
série, depois quando fui trabalhar no restaurante, era à noite e
parei, quando voltei a Poço Branco terminei a oitava série, quando
cheguei aqui fui fazer o segundo grau, e estou no último ano,
atrasada, mas estou fazendo.
Penélope está casada cinco anos. Teve dois casamentos anteriores
e não casou com o pai de seu primeiro filho. Diz que o relacionamento com
o atual marido é bom e estão sempre de acordo, pois ele não se incomoda
com os seus filhos.
Penelópe II:
Eu vim rezar uma novena, teve uma festa que vai fazer cinco anos
agora no mês de novembro, conheci um rapaz que morava aqui,
fiquei com ele e até hoje estou aqui. Eu tinha dois filhos e um
casamento, porque eu não casei com o pai do meu primeiro filho,
mas não deu certo, teve um que quis me bater, e eu disse tudo
menos agressão física, nunca apanhei de meu pai, vou apanhar de
macho, eu dizia se me bater eu vou procurar meus direitos, eles
tinham medo da minha língua, mas vontade eles tinham, o primeiro
simplesmente disse que ia embora e foi.
Penélope compõe a Associação Comunitária Mulher em Ação. Para ela,
criar esta associação foi de extrema necessidade, pois as mulheres não eram
aceitas na associação geral da comunidade a associação dos homens. A
associação está ativa. Atualmente está tentando obter um projeto de 58
77
caixas de água, uma bomba e um dessalinizador para a comunidade.
Também tem a intenção de fazer um mini-projeto para formar uma criação
de peixes, exclusivamente para gerar emprego e renda para as mulheres da
associação, além de fundar um Pesque e Pague, para fazer do assentamento um
local de turismo.
Penélope espera melhorias para o assentamento, grande ênfase à
situação econômica e demonstra interesse em resolver os problemas, pois as
famílias estão praticamente sem renda nenhuma. Para ela, é preciso que haja
uma perspectiva concreta de futuro para os homens, como também para as
mulheres do assentamento. Não pretende sair do assentamento, porque diz
que apesar da falta de trabalho para o seu marido, tem uma tranqüilidade de
vida, como casa e educação para os filhos.
3.1.7.Fermina
Ela, tem 22 anos, há cinco reside no assentamento, teve quatro
uniões consensuais e cinco filhos. Nunca casou com o pai do seu primeiro
filho. Tem uma história de muito sofrimento durante seus casamentos. Um
fato agravante é a violência doméstica, presente em todos eles. Segundo ela,
é isso que faz os casamentos acabarem. Ela diz suportar a situação a
quando não agüentar mais. Também sofre pressão da família. Sua mãe a
aconselha a perdoar a pessoa com quem ela está morando, para que não
haja outra separação, pois para a família é importante que ela esteja na casa
com um homem, sendo uma mulher casada” e portanto, não causando rupturas das
normas.
Fermina I:
O problema das pessoas é, qualquer uma das mulheres solteiras
ou casadas, não se conformam quando vêem uma mulher sozinha,
78
por mais que eu não faça elas me condenam, teve uma vez que uma
mulher disse que eu estava namorando com o marido dela, eu me
criei com ele, não tinha nem lógica, eu posso até fazer mas eu penso,
eu não ia querer um homem que eu sabia que era um pai de
família.
As separações causaram abalos profundos no seu psiquismo. Todos
os casamentos tiveram muitos conflitos e em um dos casos ela tomou a
resolução da separação. Na primeira separação, desenvolveu um problema
psicológico de depressão, tentando o suicídio. Passou por inúmeras
dificuldades financeiras. Numa das separações ficou grávida, mas, por não
casar com o pai da criança, deu para outra família criá-la. O filho mais velho
mora na casa dos pais dela. No relato de Fermina fica evidente o ônus para
as mulheres pela falta de educação sexual, de acesso à uma medicalização
apropriada para os seus problemas, somada às dificuldades financeiras.
Atualmente escasada nove meses e que ter um filho com o atual
marido para fazer a laqueadura das trompas. Acha importante ter um filho
com ele, pois isso é mais um motivo para o casamento durar. Ressaltamos
que na primeira conversa que tivemos com Fermina, ela se mostrava muito
satisfeita com o atual marido, visto que ele assumiu os filhos dela e as
responsabilidades da casa. No mês seguinte, quando retornamos ao
assentamento, ela nos relatou que a situação de bonança começava a
mudar, pois que nas duas semanas seguintes à nossa primeira visita tinham
ocorrido cenas de violência doméstica contra ela e seus filhos.
Fermina II:
Mulher faz dois bados que minha vida ficou um inferno, ele
chegou aqui na boca da noite, pediu para eu colocar a janta dele, eu
coloquei a comida no fogo, foi para o mato caçar, quando chegou
acho que ele se enraivou-se porque eu estava dormindo, quando eu
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pensei que não eu estava no chão porque ele cortou a corda da rede,
parece que veio endemoniado, ele disse que foi porque ele pediu para
eu colocar a comida dele e não coloquei, quando ele bebe fica
chateado, dizendo as coisas comigo, porque eu já sofri muito hoje em
dia eu não agüento mais não, eu disse a ele que se ele chegar com
estas arengas eu vou para casa de minha mãe. Agora ele reclama
por causa dos meninos, então eu disse, quando você se juntou comigo
sabia que eu tinha um bocado de filhos, minha porta está aberta
para qualquer um dos meus filhos, não é para você dizer nada.
Sua concepção sobre o casamento é de que o homem deveria assumir
a esposa e as responsabilidades da casa enquanto provedor. Sua posição
diante do acontecimento com o atual marido é de espera. Contou-nos que
gostaria que ele voltasse a ser o que era antes, pois segundo a entrevistada,
nunca tinha estado com um homem tão bom, que não deixava faltar a
comida no dia-a-dia.
3.1.8.Carmem
Carmem, 22 anos, moradora do assentamento dez. Aos quatorze
anos, fugiu de casa, onde sofria muitas surras dos pais, para ir morar com o
primeiro marido. Com ele teve três filhos. Tem um filho de outra união,
depois que se separaram. Também teve muitos casos amorosos e quatro
uniões conjugais.
Carmem I:
Com nove anos comecei a namorar, foi quando a minha
vida deu n’água, eu completei quartorze anos num dia
quando foi no outro eu fugi, fomos para São Paulo do
Potengi, passamos poucos dias lá, e nós ficamos de
assentamento em assentamento , fomos para o Zabelê, que
na época ainda era acampamento, foi que eu adoeci para
ganhar nenen, debaixo de barraca de lona preta.
80
Separou-se do primeiro marido por quatro vezes e foi morar com
outra pessoa. Diz que preferia um homem que a assumisse junto com os
filhos. Mas acha muito difícil encontrar alguém que aceite seus quatro filhos.
Apesar de também querer voltar com o marido por causa dos filhos, o
principal motivo é estar ainda apaixonada. Julga-se com uma personalidade
muito forte e diz não suportar muita coisa de homem. É isso que por vezes
provoca brigas e discórdias nos seus relacionamentos. Relata seu casamento
como bom até o momento em que aconteciam as situações de violência
doméstica. Esse fato também foi presente em todos os casamentos que teve.
3.1.9.Catarina
Catarina, 22 anos, casada, professora, estudante, mora no
assentamento há quatro anos. Ela está fazendo o curso universitário.
Casou aos 18 anos, três anos atrás. Ela nos descreveu o seu casamento com
muita satisfação, mas justifica que pode ser porque o casamento ainda está
recente. Compara a vida atual com a sua vida de solteira e diz que a vida de
solteira era bem melhor. Quando se casou, passou por uma transformação
muito grande e teve que encarar os problemas de casa, filho e marido.
Atribui as responsabilidades do casamento às duas partes envolvidas:
ela e o marido. Faz elogios a ele, dizendo que por muitas vezes é ela que
entra em atrito, por estar muito estressada com o excesso de trabalho. No
seu casamento não há violência doméstica. Segundo a entrevistada, a
presença de violência doméstica é um fato decisivo para a separação com o
parceiro.
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Catarina fez questão de casar com cerimônia religiosa e civil. Relatou
que isso era uma tradição de família. Todas as mulheres de sua família
casavam-se de verdade, mas o aconselhava a ninguém, pois é um ritual que
causa muitos gastos e muito trabalho. No momento, está afastada da vida
política porque está com muitas tarefas, mas diz participar sempre que pode.
É a organizadora das datas festivas que são comemoradas, no assentamento:
a festa da Padroeira Santa Vitória e as festas juninas. Também mobiliza um
grupo de jovens.
3.1.10. Isis
Isis, 19 anos, reside no assentamento dez anos. Está no primeiro
casamento. cinco anos conheceu o marido em uma quermesse que
aconteceu no assentamento na época das festas de São João. Levou menos
de uma semana entre conhecer o atual marido e o casamento. Na época
tinha dezesseis anos, período da sua primeira relação sexual. Isis exemplifica
como o casamento redime a mulher do falatório que pode acontecer,
mesmo quando esta não se casa virgem, como no seu caso. Para casar-se,
ela não esperou consentimento da família e fugiu de casa com o namorado.
Para esta assentada a vida no assentamento apresenta-se também com
muitas dificuldades:
Irís I:
Eu gostaria que as coisas aqui fossem mais fáceis, não
transporte, e falta um mercado, às vezes a gente procura comprar
um pacote de café não tem, uma mistura não tem, às vezes a gente
que viajar e não tem o transporte, quando se adoece é difícil, se
aparecer um problema urgente, mas está melhor do que era antes, o
transporte é assim, às vezes a gente precisa sair daqui e não tem o
82
transporte, a gente tem que alugar, é vinte reais e tem dias que
mesmo pagando a gente precisa e não tem, no caso de urgência ou
aluga um carro ou morre, porque o prefeito de São Bento manda
um transporte para consultas uma vez por semana, às vezes tem
um carro da feira mas, vai se tiver o dinheiro na hora. (o carro
que o pessoal aluga coletivamente para fazer feira em São Bento)
Diz que o seu casamento é bom, às vezes ele briga, às vezes ela
briga com ele, sendo que esse fato acontece com mais freqüência. E sente
estresse e cansaço com os filhos pequenos. Esse é o motivo que a leva a
discutir. Segundo esta entrevistada, os problemas do cotidiano como o
desemprego do marido e dela, e também pelo fato deles não terem uma
casa própria, moram então na casa da mãe dela, acarretam muitas situações
de desânimo e preocupação. Os planos são de se não conseguirem uma
casa até o final do ano de 2000, eles se mudariam para outro lugar.
3.2- As Entrevistas.
As primeiras informações sobre sexualidade foram adquiridas pelas
mulheres mais velhas em conversas com amigas e na observação dos
animais. Elas citaram com freqüência que não sabiam exatamente do que se
tratava. As mais novas iniciaram sua vida sexual dentro ou fora do
casamento, também com parcial ignorância sobre o assunto da relação
sexual. Os meios que as moças encontram para obter informações sobre
sexo são a televisão, as colegas, os filmes, a observação aos animais ou
alguma leitura permitida ou escondida, somadas à curiosidade e às
experiências pessoais ou compartilhadas. No entanto, nesse quadro obscuro
83
de palavras não ditas, subentendidos e repressões, a iniciação sexual das
mulheres do assentamento dá-se em meio a possibilidade de gravidez
indesejada e doenças sexualmente transmissíveis-DSTs, a aversão à pílula
anticoncepcional e raríssimo uso dos preservativos de látex.
As mães são referidas a propósito do seu grau de informação ‘sobre o
sexo’ quando iniciaram suas carreiras amorosas/sexuais. Essas mulheres não
citam suas mães como fontes das informações obtidas sobre as
transformações do seu corpo da infância para a puberdade e sobre a
informação das questões sexuais. A falta de comunicação entre mães e filhas
torna-se um problema que persegue as gerações. As mães destacaram a
existência de uma falta de intimidade, no passado, nas questões relacionadas
ao sexo, com as suas mães. As filhas das entrevistadas destacaram situação
semelhante no sentido de que praticamente nada veio delas que se pudesse
considerar como informação; omissões, constrangimentos, sobretudo
interdições relacionadas ao assunto. Sobre essa passagem, recortamos:
Eu não tinha conhecimento de nada, a gente foi criada vendo os
animais, quando eu tinha uns treze ou quatorze anos, uma colega
minha me mostrou uma revista pornô, era uns desenhos, tinha
aquelas arrumações de um homem com uma mulher. Minha mãe
nunca falava disso, não era nem para a gente falar, eu lembro que
uma vez eu fui em uma casa vizinha e vi umas coisas, uma mulher
me disse que isso era normal, acontecia todo mês, eu disse como pode
como elas não morrem, então ela me explicou tudo,(...) me
disseram que não era nunca para falar disso, minha mãe também
era assim, eu e minhas irmãs todas éramos assim, a gente nem
conversava sobre isso, as mais novas elas tinham um contato
melhor, se falavam sobre isso, mas as mais velhas a gente nem
via uma a outra, nem sabia quando a outra estava menstruada.
(Ariadne)
84
Eu diria quase que ninguém me ensinou nada, eu sempre fui
curiosa. Desde os sete anos eu ficava curiando tudo, eu via os
preservativos de minha mãe, eu ficava querendo saber o que era
aquilo, eu rasgava para saber o que era, tinhas umas primas mais
velhas que elas iam me dizendo alguma coisa. Sobre a menstruação
quem me passou foi uma prima que tinha menstruado, minha
mãe nunca conversava, quando eu estava com dez para onze anos
foi que ela aos poucos ela veio me falar alguma coisa, mas nunca
chegou assim para contar mesmo não, quando ela veio me contar eu
sabia de muita coisa, e ela tinha umas revistas e livros que
falavam essas coisas, eu lia tudo, ela tinha um livro que falava tudo
de sexo, o que era prazer, onde tocava que excita o homem e a
mulher, com dez anos eu já tinha lido todo. ( Catarina)
A moral sexual dominante no assentamento coloca às mulheres
solteiras a virtude relacionada à contenção e à virgindade. O código de
moralidade é de domínio geral, as pessoas se sentem aptas a julgar os
comportamentos de uma mulher. As moças de família devem manter-se
como modelo das garotas prescrito antes da revolução sexual.
O tempo de namoro teria de seguir alguns padrões, não devendo
durar muitos anos, mas tampouco deveria precipitar uma decisão séria e
definitiva. Até porque o noivado ou namoro longo não se coloca muito
favorável à reputação da moça que se tornava alvo de opiniões da
comunidade. A opinião do grupo é importante, e essa cobrança tem um peso
relevante na decisão de cada um. O depoimento de Catarina retratata este
fato:
Quando eu era solteira, uma vizinha de minha casa, pode
acreditar, se eu fosse dormir de uma hora da manhã, ela ia
dormir quando eu fosse, ela ia dormir na hora que o meu atual
marido, fosse embora. Um dia houve uma festa, minha mãe foi
com minhas irmãs, meu pai não foi, eu e ele não fomos porque
85
estávamos sem dinheiro. No outro dia, ela disse onde tinha um
monte de mulheres lavando roupa, que eu tinha passado a noite
com ele dentro de casa, como que eu iria fazer isso se meu pai
estava em casa comigo, depois daí começou a surgirem as conversas.
Minha mãe disse: é melhor casar logo,- a gente estava ainda
ajeitando essa casinha, e ela disse, deixa de sofrer vai embora logo.
Às vezes eu dizia o corpo é meu, a vida é minha, e sou maior de
idade, mas quando não tinha ninguém da minha família por perto.
(Catarina)
Os fatos dentro da comunidade caminham entre a convenção e a
contravenção. Por oposição ao discurso difundido es o fato da precoce
iniciação sexual, das muitas separações e uniões constantes. O flerte ou o
namorico galanteios e gestos sedutores, podem não ter grandes
conseqüências, mas também podem, em questão de semanas, conduzir à
união entre os casais. Como foi o caso de duas entrevistadas, que nos
descreveram o curto período de tempo de uma semana, entre o namoro e
sua união conjugal.
A necessidade de encontro com o outro é uma constante na vida das
pessoas. Não existe por exemplo, a situação de moças que ficam sem
namoros ou sem pretendentes. As moças também procuram namorados
nos vilarejos vizinhos, por ocasião de alguma saída do assentamento.
Quando cheguei aqui (...) eu passei uns quinze dias trancada
dentro de casa sem querer comer, porque eu não tinha costume, era
um esquisito tão grande, eu pensava que aqui era outra coisa, eu
chorava demais, uma tristeza, eu entrei numa depressão tão grande
de não querer ficar aqui no esquisito, mas aí quando foi com oito
dias eu conheci ele ( o atual marido), com três dias a gente começou
a namorar, e estamos aqui até hoje, com 11 meses de namoro nós
nos casamos. (Catarina)
Um aspecto é comum a todas, com exceção de Catarina que tem
86
maior grau de instrução escolar, elas não se mostram conscientes e
suficientemente informadas sobre a questão da gravidez e não se previnem.
Aqui se incluem tanto as mulheres que estão com parceiros fixos ou que
tiveram namoros esporádicos. As razões indicadas variam conforme
diferentes faixas etárias e situações de vida. Assim, entre as mais jovens,
encontramos em duas a disposição de usar preservativos, enquanto as mais
velhas e os parceiros de faixa etária superior, manifestam claras dificuldades
em usá-lo, seja por motivo de terem feito a laqueadura das trompas, seja
pela vontade de engravidar, ou ainda pela falta de posicionamento de ter o
preservativo como algo presente nas suas relações sexuais. Este grupo
também têm uma forte concepção formada contra o uso de preservativos
de látex.
Nunca uso nada para evitar filho. Eu tive um pessoa para ter
relação usando anticoncepcional mas durou pouco tempo e
camisinha também nunca usei, nem com meu marido, nem com os
outros homens que tive. (Carmem)
Quanto ao uso do comprimido anticoncepcional, a resposta
encontrou uma unidade absoluta, elas não os usam porque é algo
completamente prejudicial à saúde. Todas haviam usado o comprimido
anticoncepcional, mas atestaram algum tipo de efeito colateral, fato
responsável pelo abandono do método anticonceptivo. O que é presente na
concepção dessas mulheres é que o anticoncepcional provoca doenças
graves para a mulher. Segundo as entrevistadas a pílula anticoncepcional é
meio de sujeição da mulher a diversos males de saúde, físicos e psíquicos.
No início foi que eu evitei, mas antes de ter nenhum filho, mas eu
não me dei, eu pegava no posto tirava pra não pegar menino, mas
eu olhava para os peste dos comprimido e cismava, e não tomava
87
não. (Ifigênia)
Eu passei janeiro e fevereiro tomando pílula, veio aquela estória
de que pílula faz mal que provoca câncer de útero, me pediram para
não tomar. _Quem pediu? Minha mãe, minha avó também falou,
uma das minhas irmãs escondeu para que eu não tomasse mais,
então eu engravidei, e depois que eu tive o nenen eu senti que ele
estava me ofendendo, quando eu tomava eu sentia vontade de
vomitar. (Catarina)
Não estão presentes nos discursos das mulheres assentadas, todos
para a interrupção da gravidez, e sim o uso de chás de ervas para fazer a
menstruação descer. Essa prática não é considerada abortivas por elas, pois
chás de ervas são considerados meios naturais, no contrário da pílula
anticoncepcional, considerada como antinatural e pecaminosa e causadora de
diversos males, inclusive de agressão à sua crença religiosa, que é conivente
com o discurso do religioso cristão que condena os métodos contraceptivos.
O número de abortos provocados é, portanto, quase inexistente entre
as entrevistadas. Apenas duas tiveram abortos espontâneos e nenhuma o
aborto provocado, mas o uso de chás no período de atraso do mênstruo.
A outra situação é de que quando é detectada a gravidez, não há mais
nada a fazer a não ser esperar o nascimento da criança. Presenciamos um
diálogo entre duas mulheres, em que uma delas perguntava a outra-se se ela
já tinha comprovado a gravidez. A sua resposta foi quefazia dois meses
de atraso da menstruação, mas que ela não poderia engravidar pelos
próximos quatro meses pois havia tomado a vacina contra rúbeola, existindo
a possibilidade de uma formação fetal. A moça, supostamente grávida,
disse que:
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Já que está aqui, que Deus mandou, ele só sai quando completar
os noves meses, seja lá o que Deus quiser.: ¬ Mas a você sabia que
não poderia ficar grávida? ¬ Sim, mas eu não tomo comprimido,
comprimido eu não tomo não, eu não me dou com eles. ¬ eu
também sei da camisinha, mas também eu não uso. (Isis)
Reforçamos a afirmação de que não existe uma identidade natural de
mulheres, como também uma natureza feminina. Essas são expressões
marcadas como princípios teóricos-históricos na elaboração de um
sujeito–mulher, visto que este sujeito apresenta-se mutante, assim como o
tempo, mostrando que a mulher apresenta-se nos momentos da história de
maneira diferenciada, de acordo com as possibilidades e do processo dado a
sua existência.
Bassanezi (1997, p. 610), em um estudo sobre mulheres no Brasil dos
anos 50, descreve a literatura e ordem vigente na época:
A mulher que não seguisse seus caminhos, estaria indo contra a
natureza, não poderia ser realmente feliz ou fazer com que outras
pessoas fossem felizes. Assim, desde criança, a menina deveria ser
educada para ser boa, mãe e dona de casa exemplar. As prendas
domésticas eram consideradas imprescindíveis no currículo de
qualquer moça que desejasse se casar. E o casamento, porta de
entrada para a realização feminina, era tido como o ‘o objetivo’ de
vida de todas as jovens solteiras.
A identidade subjetiva da mulher assentada, a que dá o sentimento
do eu, o que a faz particular e única naquele universo é influenciada
diretamente pelos elementos históricos e econômicos que são categorias
de coerção, como classe social e econômica, raça, nacionalidade,
proveniência cultural, como também os elementos mais próximos ou
89
visíveis, como as conversas entre os familiares, atitudes e ensinamentos da:
a mãe e do pais, dos tios(as), dos amigos(as) e do(as) vizinhos(as).
Na realidade das entrevistadas, cria-se a identidade de uma mulher
única, pertencente ao mundo rural, mas, sob a influência da vida urbana e
dos meios de comunicação de massa, que emitem influências nas
representações econômicas e sociais da vida das mulheres e também na
construção da sua identidade sexual-afetiva.
Levando em conta que o sujeito mulher é criado e recriado pelas suas
condições de existência, ou seja, pela realidade sócio-econômica e histórica a
qual está inserida, não podemos deixar de mencionar que esses elementos
em número elevados já ditaram às sociedades o seu modelo.
Nos grupos populares do século passado, se processavam
transgressões da norma. Por exemplo, a norma oficial de casamentos em tais
grupos aconteciam em um número restrito. Historiadores nos mostram que,
a concubinagem no Brasil colonial não se restringia, somente, à população
negra e a seus descendentes. Entre a população pobre brasileira do século
XIX, eram os matrimônios oficiais e não a concubinagem que se realizavam
num círculo limitado, devido aos escassos recursos financeiros.
As nossas entrevistadas nos mostraram que o ritual exigido em uma
cerimônia de casamento não é possível às pessoas do assentamento, apesar
da identidade coletiva posicionar-se a favor da celebração do ritual para a
oficialização do casamento. O cerimonial e a festa custam caro, o que não
condiz com a realidade financeira dos assentados e assentadas. A maioria das
vezes o casamento é realizado após o casal ter fugido da casa de seus pais.
Na década de 50 acontecia também com muita freqüência o
rapto/sedução ou casamento por fuga, tática acionada por homens que queriam
obrigar a família da moça a consentir a união ou o casamento a partir do
90
fato consumado. Fonseca (1997, p.530) nos fala que:
Desde a casa-grande nordestina, onde o quarto das filhas se
localizava sempre no centro do edifício justamente para evitar esse
perigo, até a capitania de São Paulo, onde o rapto era ‘um crime
comum praticado por homens de todas as condições sociais, solteiro
ou mesmo casados’.
A moral dominante no Brasil exigiu que a mulher construísse sua
imagem em torno dos ideais de honra familiar, castidade e pudor. Os
homens estabelecem as regras e as mulheres se submetem ao jogo. E a
subjugação da mulher se atrela à garantia de sustento para si e para seus
filhos, ficando com ela a tarefa de manter a imagem pública do homem, não
deixando minar as bases da autoridade masculina.
A imagem principal a ser conservada pelas mulheres é da pureza
sexual, e para as casadas, a honestidade inabalável. A maternidade,
casamento e dedicação ao lar foram instituídos como inerentes à natureza
feminina. (Fonseca; 1997) A vocação prioritária é destinada à maternidade,
marcas da feminilidade de uma mulher, enquanto que a iniciativa, a
participação no mercado de trabalho, a força e o espírito definiriam a
masculinidade.
As condutas e os sentimentos ambivalentes das mulheres no que diz
respeito à sua sexualidade se constróem nas imagens de Eva e Maria. Eva
está vinculada ao pecado e ao mal, a figura da mãe virgem, atribuída à Maria,
faz a junção da maternidade com a anulação do sexo, ou sua ligação com o
casamento e, consequentemente com a procriação. As novas informações
que a mulheres vão adquirindo sobre a sexualidade são ditadas, ao contrário
de ser um direito e uma dimensão prazerosa da vida, aparecendo como um
91
direito que deve ser exercido de forma cuidadosa e posterior ao casamento.
Esse sentimento é expresso até pelas mulheres que são representadas pela
imagem de Eva. O cuidado com o corpo sexual é exercido dentro dos
limites econômicos do assentamento. O uso de contraceptivo, maternidade
indesejada e a problematização das doenças sexualmente transmissíveis e do
HIV/Aids não fazem parte da realidade das mulheres estudadas.
92
IV- CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fio condutor que orientou nosso estudo sobre a sexualidade da
mulher residente no Assentamento Santa Vitória não foi o de tratar o
feminino em si mesmo, mas ressaltar a especificidade feminina dentro de um
contexto mais abrangente.
Todas as mulheres aqui em estudo têm vida sexual ativa e, quanto ao
início da vida amorosa/sexual, atestam um discurso que reitera a ‘repressão
sexual’. Acatam tal versão sustentando que as informações obtidas sobre
sexualidade raramente foram obtidas no círculo familiar, tendo sido
adquiridas em aulas, livros e junto a amigas ou parentes, como primas ou
tias, ou a partir da observação de animais do meio onde vivem.
Elas apresentaram ainda distanciamento em relação ao prazer
sexual, pelo menos em algum momento das suas vidas. Sete entre as dez
mulheres disseram só conhecê-lo após alguns anos de iniciação sexual,
ocorrendo apenas esporadicamente. Contudo, a falta do prazer sexual é uma
questão intocável, não conversada, pois para elas a constituição familiar é o
elemento fundamental de concretização de suas vidas.
A função da mãe como referência moral nos remete à predominância
dos papéis sociais tradicionais femininos e masculinos nas expectativas
dessas mulheres. O pai (o homem) aparece como o provedor e articulador
com o mundo público; a mãe (mulher) representa a força moral e a
referência do mundo privado (a casa). A mãe é o sinônimo da punição, a
responsável pela segurança da filha, sobretudo na ausência do pai. A
responsabilidade e o cuidado com a honra e a moral das filhas são da mãe,
sendo ela mesma sujeita a sanções, se algo acontecer com as filhas, como,
93
por exemplo, uma gravidez indesejada.
Com os rapazes, o controle acontece de forma diferenciada ao
disposto às filhas. Espera-se que ele não cometa a imprudência de engravidar
alguma moça, porém esse problema é considerado de maior relevância para a
moça e para sua família.
Em todos os casos, espresente o receio de que a filha inicie a sua
vida sexual muito cedo e fora do casamento. Em estudos antropológicos
voltados para segmentos populares urbanos, a estatística comprova que;
A dia do país é de: 16,7 entre os homens e 19,5 entre as
mulheres, sugerindo estudos subseqüentes capazes de identificar a
idade do início da vida sexual nos diferentes grupos sociais. Tais
investigações devem enfocar a inter-relação entre adiamento da vida
sexual, estrutura e controle do grupo familiar, local de moradia,
escolaridade e espaços de interação social. (Heilborn, 1999, p. 131)
As entrevistas mostram que a vida sexual dessas mulheres se inicia
entre os treze e os dezoito anos.
A primeira relação sexual é relatada, destacando-se a problematização
da perda da virgindade, referida à perda de valor no mercado matrimonial e à
categorização moral negativa. Esses destaques são subjacentes ao problema
da moralidade que envolve todo o círculo familiar, sobretudo o pai e a mãe,
sendo esta a grande responsável pelo cuidado da moral das filhas, e a
comunidade inteira, visto que isso é um reflexo que abrange todos os
moradores locais. Porém, também foi relatado que nenhuma mulher deixou de
obter uma união consensual ou casamento em virtude da experiência sexual anterior.
Observa-se, assim, que não há uma mudança significativa em termos
geracionais.
Apesar da influência dos meios de comunicações de massa, não
94
podemos considerar que há uma modernização de costumes no interior da
comunidade. No máximo, podemos dizer que acontece uma flexibilidade a
determinados casos isolados de transgressão das normas tradicionais
impostas pela comunidade.
Ao analisar a iniciação sexual e amorosa no Brasil e na França,
Bozon e Heiboln (1996) destacam que a expressividade corporal
brasileira, contraposta à valorização da troca verbal na realidade
francesa, insere-se num universo social controlador que tem origem
na herança de uma organização relacional e hierárquica da vida
social, na qual os papéis de gênero são claramente delimitados.
Considerando que os contatos físicos conjugais movimentam-se em
um sistema social potencialmente rígido, compreende-se por que tais
práticas não aceleram a passagem para o ato sexual. Esse ponto de
vista oferece uma explicação para a permanência (ainda que tenha
havido uma redução) do valor moral e social da virgindade
feminina, enquanto uma passagem essencial que leva à mudança no
status social feminino. (Monteiro,1999, p. 132).
É a presença da coletividade e da individualidade que formam a
identidade masculina e feminina. São formas impostas aos homens e
mulheres de como se portarem no seu mundo e se relacionarem entre si.
Sendo assim, existe um conjunto de efeitos produzidos nos corpos, nos
comportamentos, nas relações sociais, produzidos por instituições, normas,
leis e mecanismos econômicos, uma tecnologia política complexa, cuja
finalidade é captar, normalizar e usar, em seu benefício, as sexualidades
individuais e coletivas. (Foucault: 1980).
Os espaços de convivência e sociabilidade, caracterizados pela
ausência da vigilância familiar, pela concentração de jovens e, às vezes, pela
distância de casa, favorecem o relacionamento entre os pares e a
experimentação sexual. Mas, na comunidade, dois momentos durante
95
o ano em que a comunidade se reúne para um baile coletivo: a festa da
padroeira e as festa de São João no s de junho. Também os jogos
esportivos, quando os rapazes vão disputar campeonatos de futebol nas
comunidades próximas. As moças também vão junto, favorecendo assim o
possível relacionamento amoroso entre essas pessoas. Outro momento
facilitador são as noites de trabalho na casa de farinha, onde se cria um
clima festivo e propício para o enlevo amoroso entre os pares. Sendo que os
encontros se concretizavam nos caminhos para os roçados, ou nas
migrações para outros locais.
Dessa forma, sugere-se que a interação limitada com outros espaços
sociais da cidade – potencializada pela geografia e pela vigilância da
rede familiar e de vizinhança integra os fatores de controle do
comportamento feminino que colaboram para o adiamento ou
aceleramento da iniciação sexual. (Heilborn: 1999, p.131)
Essas questões nos apontaram duas situações encontradas na
realidade pesquisada. Havia moças que se mantinham dentro da condição
tradicional familiar e, além da existência dessas, as que guiam suas carreiras
sexuais conforme a busca de uma autonomia para suas vidas, como uma
questão de opção de vida, motivadas por questões financeiras. As escolhas
dos parceiros da mulher assentada segue uma relação de vínculos e
afetividade, porém espera-se que este exerça o seu papel de provedor da
família.
Em resposta à indagação sobre se havia algo na fala das mulheres
sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e AIDS, foi citada
apenas uma referência em uma das moças entrevistadas. Mas, levando em
conta que ela é uma figura representativa dentro da comunidade
96
(professora), as pessoas aproximavam-se a fim de esclarecer algumas
dúvidas. Ela, por sua vez, alerta para a existência de DST/AIDS. O uso de
preservativos não foi citado como prática freqüente entre as entrevistadas,
sendo que a maioria delas já fez a laqueadura de trompas, e outras não vêem
isso como questões que fazem parte de seus cotidianos.
Ao longo dos relatos não foi detectada preocupação com a gravidez. Falam
do início de sua vida sexual, de seu preparo ou despreparo e nada
acrescentam, de maneira espontânea, quanto a qualquer aspecto de
‘precaução’ ou ‘prevenção’ em relação às DST’s. No caso, o início da vida
sexual ativa remete mesmo ao caso de uma gravidez, a preocupação com
as DST/AIDS, não se coloca no cotidiano dessas pessoas. As entrevistas
não conduziram as mulheres que falassem de prevenção da AIDS.
Esperávamos encontrar, no discurso dessas, direcionado para essa questão,
porém esse assunto não foi mencionado.
97
V- BIBLIOGRAFIA
ABRAMOVAY, Ricardo. Os Paradigmas do Capitalismo Agrário em Questão.
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100
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WOLF, Eric R. Sociedades Camponesas. 2° ed. Rio de Janeiro: Ática, 1976.
101
ANEXO 01
SIGLAS DAS ENTIDADES CITADAS NESTE TRABALHO
RN – Rio Grande do Norte
EMATER- Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural.
FETARN Federação dos trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio
Grande do Norte.
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
LUMIAR – Assistência Técnica e Produtividade nos Assentamentos.
PAPP – Programa de Apoio ao Pequeno Produtor Rural.
STR- Riachuelo - Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Riachuelo.
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