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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Kelly Cristina Arrigatto Gonçalves
Do virtual ao real – Um estudo psicanalítico sobre anorexia, bulimia e as
relações familiares
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC – SP
Kelly Cristina Arrigatto Gonçalves
Do virtual ao real – Um estudo psicanalítico sobre anorexia, bulimia e as
relações familiares
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
Dissertação apresentada à banca examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção do título de Mestre
em Psicologia Clínica, sob a orientação do Professor
Doutor Renato Mezan.
SÃO PAULO
2009
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BANCA EXAMINADORA
Dissertação defendida e aprovada em ______ / ______ / _______
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Renato Mezan, que aceitou o meu convite para orientar a minha
dissertação. Ao escrever este agradecimento me recordo que o procurei no ano de
2005, quando ainda estava perdida pelos corredores da PUC, procurando um lugar
que me proporcionasse o aprendizado da psicanálise, como escrever sobre
psicanálise e um orientador que se interessasse pelo meu projeto.
Ainda nesta época, abordei o Prof. Dr. Renato Mezan no intervalo de uma de
suas aulas e me apresentei perguntando se poderia participar de sua aula. Pela
primeira vez na PUC fui recebida de forma calorosa e bem receptiva, e a partir desse
dia iniciei meu percurso no árduo caminho de aprender a escrever com o rigor
necessário para um mestrado. De maneira generosa ele compartilhou comigo sua
experiência da escrita, desde a busca por referencial bibliográfico, quando como e
porque fazer citações, como “amarrar e costurar” um texto, etc. A oportunidade de
tê-lo como orientador foi essencial, tanto no meu caminhar e aprendizado da escrita,
como também no aprendizado da psicanálise, um caminho difícil e áspero que ele
consegue transmitir de forma indiscutivelmente prazerosa. Enfim, um modelo de
professor, que contribuiu para a minha primeira experiência como professora de
graduação, pois aprendi a lecionar com aquele que me orientou e por isso sou-lhe
eternamente grata.
Ao meu querido amigo Rodrigo vora C. F. Rosa, que acabei por conhecer
através do mundo virtual, que a propósito é o tema principal da minha dissertação.
No início da minha pesquisa, quando passava madrugadas no MSN conversando
com os sujeitos da minha pesquisa, recebi um convite para adicionar uma pessoa
com o nome de Rodrigo, era ele, e a partir daí, construímos uma amizade onde
pudemos nos conhecer pessoalmente. Com o passar dos dias, dos anos, não mais
conseguimos nos separar, sempre marcávamos um ca para falarmos de
psicanálise, da minha dissertação e do nosso consultório, que passamos a
trabalhar juntos, como sócios. Este encontro, que antes era virtual, se tornou tão real
que não deixamos mais de conversar, pois se formou um lindo laço de amizade; ele
me acompanhou desde o início do meu mestrado, lendo meus textos, dando dicas
de bibliografia, revisando os textos, enfim, amigo do coração que esteve em todos
os momentos difíceis e angustiantes. Por isto, posso dizer que o meu caminho no
mestrado não foi solitário porque tive comigo o meu amigo Rodrigo, que hoje
também é mestrando na PUC e também está podendo saborear as maravilhosas
aulas do Prof. Dr. Renato Mezan.
A Cybelle Weinberg e Ana Paula Gonzaga pela oportunidade em ser membro
do CEPPAN (Clínica de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia e
Bulimia), lugar onde pude estudar e entender os caminhos psicanalíticos que levam
ao entendimento da anorexia e bulimia.
A minha amiga e sócia Evelin Schiller Chaves, pela ajuda em buscar material
e sempre me instigar a não desistir nos momentos mais difíceis, onde pensava que
não conseguiria.
A minha amiga Rosivânia Barbosa Rodrigues, que sempre me motivou
através de seus elogios e admiração quanto a minha pessoa.
Aos meus pais pelo incentivo aos estudos e pela compreensão da minha
ausência em muitas reuniões familiares durante todos esses anos.
Aos meus amados irmãos Taís e Douglas, que na minha ausência durante as
reuniões familiares, sempre vinham até a minha casa para ficar comigo, mesmo eu
não podendo dar-lhes atenção por estar em constante comunicação com o
computador, pois esta é uma dissertação que envolveu muitas horas no mundo
virtual.
Por fim, agradeço especialmente ao meu esposo Gustavo Arrigatto, que
esteve comigo desde que manifestei o interesse pelo mestrado na PUC. Por não
conhecer São Paulo, ele que me ensinou o caminho, viajou comigo diversas vezes
até que eu aprendesse o trajeto, me apoiou, me instigou, tendo a paciência de ler
muitos dos meus manuscritos, ouviu as minhas inquietações e, muitas vezes, o meu
desespero. Respeitou e compreendeu a minha ausência como um esposo exemplar.
Muito obrigada a todos, por tudo.
RESUMO
Uma pesquisa sobre anorexia e bulimia, que teve início no mundo virtual e acabou
transbordando para o real constitui o verdadeiro resumo do que a presente
dissertação de mestrado apresenta. A pesquisa teve início através do site de
relacionamento Orkut, onde busquei comunidades virtuais de anoréxicas e
bulímicas, e as convidei a participar de uma entrevista pelo MSN. Ao entrevistar as
jovens com transtornos alimentares, tentei manter o foco na relação entre a etiologia
dos transtornos alimentares e as relações familiares. Aos poucos, coletei um amplo
número de entrevistas, tanto de anoréxicas quanto de bulímicas. Ao mesmo tempo
em que pesquisava pela internet, comecei a freqüentar uma instituição que oferece
tratamento psicanalítico para jovens com anorexia e bulimia, o CEPPAN, Centro de
Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia e Bulimia. Através do CEPPAN e
também da internet acabei tendo experiência clínica com casos de anorexia e
bulimia. Portanto, o resultado foi uma pesquisa que misturou experiência clínica com
uma análise estatística cuidadosa dos dados coletados através da internet. A
pesquisa teve sucesso ao confirmar algumas das principais hipóteses da psicanálise
sobre os transtornos alimentares e propor um novo dado, que é a alta prevalência de
anorexia e bulimia entre o que chamei de primeira filha do casal, isto é, a primeira
mulher que nasce, independentemente da presença ou não de irmãos.
Palavras-chave: Anorexia – Bulimia – Internet – Transtorno Alimentar.
ABSTRACT
A research about anorexia and bulimia that had its start in the cyberspace and
overflowed to the real world, this is the true abstract of what the present paper
represents. The research started through a website known as Orkut, where I
searched for online communities of anorexic and bulimic girls, and also where I
invited them to take part in my research, through an interview using MSN. When I
interviewed the young women with eating disorders, I tried to keep as my focus the
relationship between the etiology of eating disorders and the family relations. As the
research went on, I collected a wide variety of interviews, both of anorexics and
bulimics. While I was researching on the internet, I enrolled in an institution that
offers psychoanalytic treatment to the youth that suffers from anorexia and bulimia,
called CEPPAN, Centro de Estudos e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia e
Bulimia. Due to CEPPAN and the internet, I was able to achieve clinical experience
in cases of anorexia and bulimia. Therefore, my research ended with data that
blended clinical experience with a careful statistical analysis of the interviews
collected using the internet. The research was successful in confirming some of the
major psychoanalytical hypothesis about eating disorders and to offer a new finding,
which is the high prevalence of anorexia and bulimia among those which I called the
first daughter of the couple, that is, the first woman to be born, regardless of the
presence or absence of brothers.
Key-words: Anorexia – Bulimia – Internet – Eating Disorders
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 10
CAPÍTULO I: VIVÊNCIAS DA PESQUISADORA NO MUNDO VIRTUAL......................... 12
A) Do Orkut ao MSN, ou de um virtual para um virtual ainda mais real...................... 38
B) Um exemplo de conversa virtual – Anorexia.......................................................... 43
C) Um exemplo de conversa virtual – Bulimia ............................................................ 61
D) Luciana e Bianka, demonstrações do mínimo ....................................................... 73
E) Análise estatística dos dados coletados ................................................................ 75
F) Os dados das entrevistas coletadas pela internet.................................................. 77
G) Um olhar psicanalítico sobre os dados da internet ................................................ 80
H) Dados do CEPPAN................................................................................................ 84
I) Comentários sobre os dados do CEPPAN .............................................................. 85
J) Comparação entre o CEPPAN e a net ................................................................... 86
K) Comentário Psicanalítico dos dados CEPPAN X NET........................................... 91
CAPÍTULO II: UM PANORAMA HISTÓRICO E DA ATUALIDADE................................... 94
A) Joan Jacobs Brumberg......................................................................................... 94
B) William Withney Gull (1816 – 1883).................................................................... 107
C) Charles Lasègue (1816 – 1883) ......................................................................... 110
D) Cybelle Weinberg ............................................................................................... 119
E) Táki Cordás ........................................................................................................ 123
F) Susan Bordo ....................................................................................................... 127
G) Hilde Bruch (1904 – 1984).................................................................................. 134
H) A correção de peso segundo Hilde Bruch .......................................................... 149
I) A psicoterapia dos transtornos alimentares segundo Hilde Bruch ....................... 151
J) Tratar a família e a anoréxica.............................................................................. 152
K) Uma breve discussão sobre os autores citados neste capítulo .......................... 157
CAPÍTULO III: CONCEITO PSIQUIÁTRICO DE TRANSTORNO ALIMENTAR.............. 159
A) O mecanismo da fome e seus problemas........................................................... 162
CAPÍTULO IV: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE.................................................... 164
A) Charcot (1825 – 1893)........................................................................................ 164
B) Sigmund Freud (1856 – 1939) ............................................................................ 165
C) Pierre Janet (1859 – 1947)................................................................................. 169
D) Karl Abraham (1877 – 1925) .............................................................................. 170
CAPÍTULO V: DO VIRTUAL PARA O REAL, RELATO DE CASOS CLÍNICOS ............. 173
A) Uma terapia real, que começou pelo virtual........................................................ 188
B) Uma jovem em busca do sentido – um caso clínico de bulimia.......................... 200
C) A impossibilidade do pensar na ausência da mãe – caso clínico de anorexia ... 213
CAPÍTULO VI: CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................... 228
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 231
ANEXO I.......................................................................................................................... 233
ANEXO II......................................................................................................................... 236
10
INTRODUÇÃO
Uma dissertação que transbordou do mundo virtual para o real bem
poderia ser o título desta pesquisa, pois nesta frase estão contidos os dois
elementos que acabaram por nortear meu caminhar pelo tema dos Transtornos
Alimentares (TA), em especial a anorexia e a bulimia, sendo que comecei a
pesquisa através da internet e acabei com casos clínicos reais. Portanto, foi
desta polaridade entre o virtual e o real que minha pesquisa sobre anorexia e
bulimia começou. O objetivo principal dela foi estudar a relação entre a
dinâmica familiar e a eclosão de um transtorno alimentar.
O mundo virtual foi uma fonte prolífica de dados, pois diversas
pessoas aceitaram participar da pesquisa, o que gerou um fato inesperado, isto
é, um número inesperadamente alto de entrevistas disponíveis para análise.
Devido a este alto número de entrevistas, acabei tendo que desenvolver uma
metodologia própria para a análise delas, complementada por uma análise
estatística realizada por uma profissional da área.
Após algum tempo de imersão no mundo virtual, casos clínicos
chegaram até mim, o que permitiu que eu pudesse estudar, na prática clínica, o
assunto que vinha estudando através de entrevistas. A oportunidade de
confrontar o virtual com a prática clínica mostrou-se uma experiência crucial,
pois permitiu que diversas de minhas idéias fossem comprovadas na prática.
Outro dado que deve ser mencionado é que a análise estatística dos dados do
mundo virtual foi comparada com uma base de dados de uma instituição que
trata de anoréxicas e bulímicas, o que possibilitou uma análise aprofundada
dos dados. As semelhanças entre o virtual e o real são muitas, mas as
diferenças também estão presentes e precisam ser apontadas.
Por fim, optei por não escrever um capítulo sobre os autores da
Psicanálise que trataram do assunto, por sugestão de Maria Helena
Fernandes, que compôs a banca que avaliou minha dissertação, quando ainda
estava escrita aos pedaços. Maria Helena me lembrou, gentilmente, que vários
trabalhos fizeram tal revisão bibliográfica e que o meu se beneficiaria de
autores diferentes. Assim, escrevi um capítulo com contribuições de autores de
outras áreas, como uma historiadora, uma socióloga e outros profissionais. Os
autores da Psicanálise foram lembrados através do trabalho de Fernandes
11
(2006) e de algumas citações pontuais, quando sua contribuição era essencial
para a minha escrita.
Entre o virtual e o real, com elementos de estatística, história, sociologia
e prática clínica, o presente estudo tem a ambição de apresentar o tema dos
transtornos alimentares através de uma nova perspectiva. Espero que o leitor
possa, junto comigo, percorrer o mesmo caminho que percorri, da internet para
o atendimento clínico e que, nesta caminhada, uma contribuição sobre o
assunto dos transtornos alimentares possa ser vislumbrada.
A dissertação atende o compromisso da deliberação do Conselho
Nacional de Saúde 196 do Ministério da Saúde e a resolução 16/2000 do
Conselho Federal de Psicologia, com aprovação do comitê de Ética em
pesquisa da PUC de São Paulo sob número 057/2009.
12
CAPÍTULO I
VIVÊNCIAS DA PESQUISADORA NO MUNDO VIRTUAL
Após minha graduação surgiu o desejo de pesquisar a respeito da
abordagem clínica dos transtornos alimentares. Diante da impossibilidade de
encontrar estas pacientes de imediato, recorri ao mundo virtual como um
espaço em que estes encontros se tornam mais viáveis. Assim, iniciei esta
pesquisa, cujo objetivo geral é entender a relação entre transtornos alimentares
e dinâmicas familiares, com base nos dados que pude coletar no mundo virtual
e na clínica, utilizando o referencial psicanalítico.
A internet é uma rede mundial que interliga milhões de computadores
e usuários. Como esta rede cresce a cada dia de maneira acelerada, nosso
vocabulário acabou incorporando domínios que antes faziam parte do meio
científico, ou seja, hoje ao nos referirmos à internet utilizamos o termo
ciberespaço, ou espaço virtual. Ciberespaço é um termo menos conhecido,
mas sua utilização tem crescido entre teóricos do mundo virtual, inclusive por
ser uma tradução direta do termo cyberspace, considerado pelos falantes da
língua inglesa como um sinônimo para internet.
Meu ingresso no mundo virtual foi através do Orkut. O Orkut foi criado
em 19 de janeiro de 2004 pelo projetista chefe, Orkut Büyükkokten, engenheiro
turco. O principal objetivo do Orkut é proporcionar aos seus membros novas
amizades, e com isto, manter relacionamentos virtuais. Levando em
consideração que o início e parte da pesquisa ocorreram no Orkut, optei por
transpor diretamente, do virtual para este trabalho, alguns diálogos e
mensagens. Desta maneira, algumas citações que serão encontradas no
decorrer da dissertação são cópias fiéis do material que foi utilizado ou
encontrado no mundo virtual, mantendo deste modo sua formatação e
padronização originais. O sistema do Orkut possui um perfil onde cada
usuário constrói o seu, o qual é dividido em três partes:
- Social: o usuário pode descrever um pouco de si mesmo, e também
características pessoais como, por exemplo, dizer do que gosta, cidade natal,
livros preferidos, músicas, programas de TV, filmes, etc.
- Profissional: este espaço serve para descrever que profissão exerce, podendo
acrescentar informações sobre seu grau de instrução e carreira.
13
- Pessoal: nesta etapa, o indivíduo coloca algo com o objetivo de facilitar as
relações interpessoais. Existe um espaço para apresentar como é a sua forma
física, e também pode ser apresentado o tipo de pessoa com quem se deseja
relacionar (amizades, namoro, casamento, etc.). Na construção do meu
Orkut, segui todos os passos acima descritos, inclusive apresentando-me como
pesquisadora em transtorno alimentar. Segue-se a descrição da minha página:
Quem sou eu:
Sou Psicóloga e faço Mestrado em Psicologia Clínica. O tema da minha
dissertação são os transtornos alimentares, anorexia e bulimia
. O
assunto me interessa, pois estou escrevendo um trabalho sobre ele.
Peço, por favor,
que quem queira falar sobre sua experiência, ou
apenas conversar sobre o assunto, siga meu MSN
Obrigada
PS: O anonimato é assegurado.
Procurei ser o mais autêntica possível, inclusive apresentando minha foto. A
foto de garotas anoréxicas e bulímicas nos perfis de Orkut ou comunidades não
é comum. Elas acabam por colocar fotos de modelos famosas; fotos de corpos
esqueléticos e até mesmo figuras chocantes, como um corpo esquálido e
ensanguentado e, por muitas vezes, retratam parte do corpo onde mostram
uma automutilação. Copiei e colei algumas fotos das comunidades dos perfis
do Orkut para uma melhor visualização:
Começa então a minha entrada no mundo virtual, passeio este que quero
compartilhar com o leitor. Apesar do foco do trabalho não ser apenas o contato
virtual, mas também relato de casos atendidos, acredito que algumas das
impressões e informações que obtive no meu percurso virtual e sua relação
com a psicanálise são de interesse de todos.
14
Após a construção da minha página no Orkut, passei a buscar por
comunidades de transtorno alimentar. Levy (1996, p.38) salienta o que é uma
comunidade virtual, explicando que:
Uma comunidade virtual pode, por exemplo, organizar-se sobre uma
base de afinidade por intermédio de sistemas de comunicação
telemáticos. Seus membros estão reunidos pelos mesmos núcleos de
interesses, pelos mesmos problemas: a geografia, contingente, não é
mais nem um ponto de partida, nem uma coerção. Apesar de não-
presente”, essa comunidade está repleta de paixões e de projetos, de
conflitos e de amizades.
Deparei-me com um grande número de comunidades e, a partir daí,
iniciei meus contatos. Para fazer parte de uma comunidade no Orkut é
necessário pedir autorização a um usuário, chamado de dono da comunidade,
o qual pode aprovar ou desaprovar. o houve impedimentos para que eu
participasse das comunidades de transtornos alimentares e este fato me
chamou a atenção, pois imaginava que encontraria comunidades fechadas,
pouco abertas a não-anoréxicas ou bulímicas.
Dentro das comunidades encontrei um grande número de meninas, às
quais inicialmente eu deixava um scrap
1
e, em seguida, recebia a resposta,
aceitando o meu convite para participar da pesquisa. Outras meninas que
faziam parte das comunidades, vendo recados em meu Orkut, começaram a
me escrever; querendo, de alguma maneira, contribuir e participar da pesquisa.
Será que essa boa receptividade acontece porque estamos no mundo virtual?
Como seria o contato na clínica?
Pensando em questões estatísticas, verifiquei que o encontro na clínica
com essas meninas não seria assim tão fácil. Ainda com o mesmo raciocínio
estatístico, e pensando em termos populacionais, a anorexia não chega a 1%
da população, a bulimia fica em torno de 3%, ou seja, um número
pequeno. E associei que este também poderia ser um dos motivos pelo qual eu
ainda não estava atendendo uma pessoa com transtorno alimentar.
1
O termo scrap designa recados que um usuário pode deixar no perfil do outro, no Orkut. A utilização
deste mecanismo está em constante evolução, pois o que começou como um simples sistema de troca de
mensagens, permite o envio de imagens, fotos, links para outras páginas, a saber, é o principal meio de
comunicação dentro do Orkut.
15
Através da pesquisa estatística, algumas perguntas me envolveram: Se
o número de anoréxicas encontra-se em torno de 1% da população mundial,
com quem elas irão conversar e compartilhar seu pensamento? Quem poderá
ouvi-las e enxergar o mundo de maneira semelhante a elas, podendo
compreender seus problemas? Estas perguntas se repetiam e constatavam o
que a literatura confirma, que elas negam sua doença aos familiares. Concluí
então: “essas meninas estão ilhadas”, e o acesso à internet poderá facilitar
meu encontro com elas.
A internet possui peculiaridades linguísticas, e um exemplo delas é a
comunidade que cito acima. Nesta comunidade, assim como em outras,
encontrei as palavras “ana e “mia”, que em um primeiro momento me
confundiram. Ana é um apelido para anoréxica e Mia para bulímica. É comum
que estes termos sejam utilizados na net para designar tanto a pessoa que tem
o transtorno alimentar, como também a patologia em si. Através da
comunidade que citarei abaixo, e inúmeras outras que dizem a mesma coisa,
podemos imaginar que as “anas” e “mias” passaram por relacionamentos
difíceis, encontrando no virtual a saída para compartilhar com outras pessoas
que as compreendam e pensem como elas.
Algo que devo acrescentar é que, devido às peculiaridades linguísticas
da internet, esta dissertação contém diversas citações retiradas diretamente do
Orkut ou do MSN, portanto, ela pode conter palavras grafadas de forma
incorreta ou até mesmo bizarra. Ressalto que tal maneira de escrever é típico
das comunicações pela internet, e que mantive o estilo original para que o leitor
pudesse ter uma noção de como ocorre a comunicação entre as anas e mias.
Retomando as questões estatísticas e considerando a questão de
como as “anas”
2
e “mias”
3
poderiam se encontrar, pensei num exemplo simples
e fictício, mas que serve para ilustrar a questão da estatística e do porquê o
acesso a essas meninas não é tão cil. Moro em Sorocaba, cidade que tem
em torno de 600 mil habitantes, ou seja, 600.000/100 = menos de 6.000
anoréxicas, estatisticamente falando. Considerando postos de trabalho,
2
Ana é um termo genérico para anoréxica, utilizado em comunicações pela internet. É comum que as
anoréxicas se autodenominem anas.
3
Mia é um termo genérico para bulimia ou bulímica, utilizado em comunicações pela internet. Devido à
prática de mito entre as bulímicas, o termo também pode funcionar como verbo, no exemplo “preciso
miar”, o que significa, “preciso vomitar”.
16
posição social e todos os fatores que compõem as oportunidades de
socialização, elas provavelmente nunca irão se encontrar.
Esta minha hipótese se confirma ao encontrar a seguinte descrição em
uma das muitas páginas de comunidades do Orkut:
ñ falo p/ ngm q tenho Ana/ mia
descrição:
Comunidade para as pessoas q tentam esconder da família e de amigos
q sofrem de Ana ou Mia... muitas vezes para ñ serem criticadas e
rejeitadas pelas pessoas...
(esta comunidade não apoia atitudes prejudiciais à saúde... é apenas
uma forma de ajuda)
mta força pra todos(as) nós!!
Esta comunidade, assim como outras que encontrei, demonstram que
as estatísticas apontam um isolamento, não apenas numérico, mas social. As
pessoas com anorexia ou bulimia evitam o assunto com os familiares e amigos,
tornando a internet um veículo privilegiado de encontro para elas, onde podem
falar sobre seus problemas, sonhos e suas identidades, encontrando pessoas
com idéias e problemas semelhantes. O isolamento social das anoréxicas e
bulímicas é comprovado pela clínica com estas pacientes, como explicarei em
outra parte da dissertação.
Freud, em “O mal-estar na civilização”, explica os diferentes caminhos
que o homem busca em direção à felicidade, procurando a todo momento
evitar o desprazer. No mesmo texto, Freud diferencia a felicidade da
infelicidade, dizendo que esta última é mais fácil de experimentar que a
primeira. Sobre a infelicidade, Freud adverte que a mais sofrida e a mais
penosa é aquela advinda de relacionamentos com outros homens, onde a
defesa mais imediata deste ser em sofrimento é o isolamento voluntário,
mantendo-se a distância de outras pessoas.
Pesquisando através do Orkut deparei-me também com um outro grupo
de comunidade, que é parcialmente distinto das comunidades “ana” e “mia”.
Quando me refiro a este terceiro grupo, não estou afirmando que ele existe em
separado na net, eles coexistem, e somente através da pesquisa foi possível a
17
constatação de que há vários “departamentos “ dentro da “empresa ana e mia”,
ou seja, funciona mesmo como uma organização. Não é meu objetivo aqui falar
de todos esses “departamentos”, e sim ilustrar um “departamento” que parece
ser interessante para a pesquisa. Ressalto que este novo grupo não será
objeto da minha pesquisa, mas irei descrevê-lo com o propósito de demonstrar
a diversidade de manifestações dos transtornos alimentares no mundo virtual.
No início da pesquisa observei que existiam comunidades chamadas
“Pró-ana”
4
, ou melhor, que faziam apologia do transtorno alimentar, mas depois
da morte de várias garotas ocorreram denúncias dessas comunidades e elas
foram excluídas do Orkut. Como a internet parece ser o único meio viável onde
essas garotas podem se encontrar, acabou acontecendo que as antigas “Pró-
ana” voltaram, mas agora de forma diferente, ou seja, não usam mais essa
antiga denominação, e sim outros nomes que no entanto acabam pregando o
mesmo objetivo. Não utilizei o nome dessas comunidades porque são muitos e
diversificados, mas passei a denominá-las como aspirantes.
Segue-se um perfil para que o leitor consiga acompanhar minha reflexão
e diferenciá-la da descrição do perfil anterior:
anna meu diario
Início > Comunidades > anna meu diario
descrição:
Bom gente
todos nos sabemos q a opçao por ser ana
pode parecer ate doidera d nossa parte..mas a culpa n e nossa...fizeram-nos ficar
assim...afinal devemos dançar conforme a musica para sermos aceito na sociedade e n
ficarmos para tras..por isso estamos sempre correndo atras da eterna perfeiçao....afinal ser
gorda e tudo d ruim alem d ser mt feio..GORDAS N TEM VEZ NA SOCIEDADE GORDAS N SAO
AMADAS D VERDADE GORDAS SAO SEMPRE PALHAÇAS E KEREM APARECER
SER MAGRA E TUDO....
COMER E VICIO TEMOS Q NOS LIBERTAR
AFINAL COMIDA NAUM TEM GRAÇA
VEJO MT MAIS GRAÇA EM ROUPAS D NUMERO 38
NAUM EH??
POR ISSO CRIEI ESSA COMU
PARA COLOK MEU DIARIO DE DIETA
EU AINDA N SOU TOTALMENTE ANNA..OU SEJA ELA AINDA N ENTROU MT EM MIM
MAS JA ESTA PARCIALMENTE
MEU OBJETIVO AKI E POSTAR MEU DIA A DIA NA BUSCA CONSTANTE DA PERFEIÇAO E
4
Este termo aparece grafado de várias formas na internet, como: Pró-ana, pró-ana, pro ana e outras
variações. Optei por Pró-ana por ser o mais comumente encontrado.
18
ASSIM PODER AJUDAR E TBM RECEBER AJUDA
AFINAL ESTAMOS TODOS JUNTOS NESSA LUTA . SONHO Q SE SONHA JUNTO E REAL
VAMO LA GENTE FORÇA
TODO DIA VAMOS COMENTAR SOBRE MEUS EXERCICIOS E AS DIETAS
Comprovando a existência desse novo grupo, encontrei na Wikipédia
(biblioteca virtual) mais uma comprovação que de fato essas garotas existem e
são as chamadas Wannarexia. Wannarexia é um termo cunhado recentemente
para designar garotas que querem ser anoréxicas e buscam informações sobre
o assunto. O termo Wannarexia, surge da contração “wanna”
5
(want to = querer
algo) e “anorexic” (anoréxica), ou seja, em tradução livre, são pessoas que
“querem ser, desejam ser anoréxicas”. o pessoas que dizem ter anorexia
nervosa ou gostariam de ter. O neologismo wannarexia possui, portanto, uma
junção de duas palavras. Em alguns casos, pode ser utilizado como um termo
pejorativo. Wannarexia é um fenômeno cultural e não possui critério
diagnóstico, apesar de que algumas wannaréxicas possam ser diagnosticadas
com Transtorno Alimentar Não Especificado, pois preenchem alguns dos
critérios diagnósticos para anorexia ou bulimia. Wannarexia é encontrada entre
garotas adolescentes que desejam ser populares, e é provavelmente causada
por uma combinação de influências da cultura e da mídia.
Este novo grupo, que denominei de aspirantes ou wannaréxicas (em
uma adaptação para o português), apareceu na análise das conversas, mas
não será objeto da pesquisa, pois como falado anteriormente, o grupo de
interesse são as chamadas “anas e mias”. Outro fato que deve ser ressaltado
sobre as wannaréxicas é que elas possuem uma outra peculiaridade, pois
parecem ser o único, ou talvez um dos pouquíssimos grupos de pessoas que
aspiram a ter uma doença específica. No mundo atual são comuns grupos de
apoio a pessoas portadoras desta ou daquela doença, mas o fato de encontrar
pessoas que querem ter uma doença específica parece significativo do
potencial que a anorexia tem para se inscrever na sociedade atual.
Para escrever sobre o mundo virtual, um dos autores que ajudou a
compreendê-lo foi Pierre Levy, filósofo da informação que nasceu na Tunísia
em 1956 e tem se dedicado ao estudo da relação entre internet e sociedade.
5
Todas as traduções do inglês para o português foram feitas por mim, com revisão de Rodrigo Távora e
César Fröhlich Rosa. Em certas partes da dissertação utilizarei livros que não foram traduzidos para o
português, aos quais se aplica o mesmo critério.
19
Um dos pontos-chave que Levy desenvolve em seus textos é o conceito de
virtual. A palavra virtual é derivada, por sua vez, de virtus, força, potência; veio
do latim medieval virtualis. Existe uma relação também com a palavra
virtude, pois esta deriva igualmente da mesma raiz, virtus, com um significado
relativamente parecido, porquanto virtude costuma significar “o hábito ou
maneira de ser uma coisa, bito que se torna possível por haver previamente
nela uma potencialidade ou capacidade de ser de modo determinado” (Mora,
1994, p.3.027). No decorrer do texto irei explicar um pouco melhor a relação
que percebo entre virtude e virtual.
Quando a palavra “virtual” é utilizada, normalmente a associamos com
algo que não existe, que é falso ou fantasioso. Levy discutirá o termo virtual em
seus textos, mas acredito que o significado que é mais importante para este
projeto é justamente um sentido oposto ao de “irreal”. Levy (1996, p.2) salienta
que o virtual tem pouca afinidade com o falso, imaginário ou ilusório. Diz que,
ao contrário, “trata-se, de um modo de ser fecundo e poderoso, que e em
jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a
platitude da presença física imediata”.
O autor tamm diferencia o “real” como da ordem do “tenho”, enquanto
o virtual seria da ordem do “terás”, ou da ilusão, permitindo assim as diversas
formas de enxergar de forma irônica o termo virtual. Um ponto expressivo, ao
utilizar as palavras “real” e “virtual”, por se tratar de uma dissertação de
psicanálise, é deixar claro que a palavra real, aqui, não tem nenhuma relação
com o sentido lacaniano de “real”, significando apenas o usual da palavra,
aquilo que existe de fato, de maneira concreta.
Assim, três sentidos para a palavra virtual, sendo um como termo
técnico ligado à informática, um que se associa com a idéia de “irreal”, e o
terceiro, filosófico, que é o que Levy utiliza e que pessoalmente me encanta
pela sua oposição com o “irreal”, sendo então considerado “aquilo que existe
apenas em potência e não em ato, o campo de forças e de problemas que
tende a resolver-se em uma atualização” (Levy,1999, p.47). Desta forma, Levy
destaca o sentido de virtual como uma palavra que evoca potência ou diversas
potências, e não algo ilusório. Um exemplo seria o momento em que uma
pessoa se conecta à internet. Se pensarmos em possibilidades, é fácil perceber
que aquele primeiro instante de conexão pode se desdobrar em diversas
20
facetas, acessando, por exemplo, páginas científicas, de notícias, bate-papo e
outras.
Deste modo, o virtual oferece à pessoa inúmeras escolhas potenciais.
Aí também é possível pensar no termo virtude, pois quando dizemos que
alguém “nasceu com este ou aquele talento”, estamos falando de virtudes, e
também queremos designar o fato de que aquela pessoa possuía tal
possibilidade em si de forma inexplorada, pronta para emergir e se manifestar.
Continuarei a falar sobre virtude e virtual ao comentar os casos das anoréxicas
e bulímicas.
Compreender o virtual como algo diametralmente oposto ao que
comumente pensamos, no caso o irreal, pode parecer difícil, mas os exemplos
que corroboram a potência do ciberespaço são muitos. A revista Veja, de 18 de
abril de 2007, publicou uma reportagem intitulada “A vida como ela não é”,
discutindo uma das novas febres da internet, um mundo virtual chamado
Second Life. Utilizarei o exemplo do Second Life para demonstrar certos
aspectos que apontam quanto o virtual ultrapassa o ilusório ao qual
normalmente associamos a palavra.
O Second Life é considerado um mundo virtual, onde pessoas de todo
o planeta, após se cadastrarem, escolhem um pseudônimo, montam um
personagem com as características “físicas” que desejam, e passam a existir
nesse espaço, dialogando com outros usuários do sistema espalhados pelo
mundo. O Second Life possui moeda própria cuja cotação é relacionada ao
dólar americano, e conta com o primeiro milionário que ganhou dinheiro
através do virtual, uma usuária que arrecadou um milhão de dólares vendendo
terrenos virtuais para novos membros do Second Life.
Portanto, fica cada vez mais claro para mim que o mundo virtual em
muito ultrapassou o significado de algo ilusório, estando cada vez mais próximo
do real, pois existem pessoas que passam tanto ou mais tempo de suas
vidas no mundo virtual do que no real, e nem por isto são classificadas como
doentes ou desviantes. Parece haver nessas pessoas uma escolha pelo mundo
virtual, pois este oferece algumas coisas que o real não faz, ou faz em
excesso. Por exemplo, no caso do Second Life, a pessoa pode moldar o seu
corpo virtual da maneira como quiser, o que nenhuma cirurgia plástica pode
21
oferecer. Uma pessoa africana pode criar um corpo loiro de olhos azuis, caso
este seja seu desejo.
O virtual também está constantemente em funcionamento, visto que a
qualquer momento em que a pessoa se conectar haverá pessoas com quem se
relacionar. O fato de não haver contato face a face também elimina os casos
nos quais as pessoas são, no mundo real, tímidas ou introvertidas.Vale dizer, o
mundo virtual oferece e está se desenvolvendo cada vez mais para oferecer
a possibilidade para que o que existe na pessoa, em potência, possa aflorar da
maneira como ela bem entender. O que existiu virtualmente ou em virtude
agora existe em realidade, mas em uma realidade virtual.
Por exemplo, a reportagem explica que as pessoas que participam do
Second Life constroem casas, compram carros, casam e têm filhos neste
mundo virtual. Empresas como IBM, Petrobrás e outras gigantes contam
com escritórios virtuais dentro do Second Life para atender os clientes. Uma
das curiosidades do Second Life é o fato de que certos usuários utilizam o
mundo virtual por 8 horas diárias, preferindo o contato com outras pessoas no
virtual ao invés de vivenciarem experiências no real. Desta forma, o termo
virtual demonstra um alcance maior do que normalmente lhe é atribuído..
Na verdade, diversas metáforas podem ser desenvolvidas para explicar
o termo virtual. O adulto está virtualmente presente na criança, a árvore está
virtualmente presente no grão, e assim por diante.Todavia, existe uma
contradição, pois ao nos referirmos ao virtual como algo que inexiste seria
como dizer que a potencialidade para existir do adulto não está presente na
criança.
Pensar no mundo virtual não como um mundo irreal, mas como um
mundo de potências que se multiplicam a cada instante, nos ajuda a entender
melhor o assunto. Ele é uma chance, provavelmente única, para que qualquer
pessoa possa se comunicar, com o nome que quiser, a foto que quiser, o peso,
o tamanho e até mesmo com quem quiser. A única comparação de tamanha
liberdade que consigo imaginar é com o teatro, no qual as pessoas vivem
personagens. Ressalto, entretanto, que se no teatro existe sempre um roteiro e
um espaço físico a serem seguidos, no mundo virtual o espaço e o roteiro são
definidos pelo próprio usuário.
22
Se é uma característica do mundo virtual o fato de que diversos
conteúdos coexistem e podem estar ativos ao mesmo tempo, isto pode ser
relacionado com alguns aspectos do funcionamento do psiquismo humano.
Freud, em seu texto “O Mal estar na Civilização”, discute a permanência ou não
de estruturas físicas e psíquicas no humano. Ao comentar as estruturas físicas,
Freud assegura que não é mais possível reconhecer o embrião no corpo do
adulto, por exemplo. Contudo, Freud no mesmo texto afirma que “só na mente
é possível a preservação de todas as etapas anteriores, lado a lado com a
forma final, e o de que não estamos em condições de representar esse
fenômeno em termos pictóricos”.
Freud quis dizer que é difícil, para a capacidade imaginativa humana,
conceber uma realidade na qual todos os estados, passado, presente, futuro
coexistam, sobrepostos. Desenhar ou dar uma forma pictórica a tal estado
parece realmente impossível, pois estamos falando aqui das qualidades do
inconsciente, que mantém simultaneamente todos estes estados, segundo as
leis de atemporalidade e não-contradição. O mundo virtual, por outro lado,
apresenta características que se aproximam destas qualidades, como
explicarei adiante.
Freud desenvolve este raciocínio dando como exemplo uma construção
imaginária da Roma Antiga, na qual prédios de todos os seus momentos
históricos estariam presentes um ao lado do outro. Eventualmente Freud
conclui que este é um exercício de pensamento difícil, o de representar
diversos tempos e épocas simultaneamente. Entretanto, se levarmos em conta
o comentário sobre a coexistência de diversas etapas anteriores no processo
mental, talvez possamos fazer uma analogia com o mundo virtual, pois nele
coexistem vários tipos de conteúdo, desde os primórdios da comunicação
digital até os atuais.
Levy comenta que cada vez mais a tecnologia tem se aproximado dos
sentidos humanos, tentando integrá-los à experiência virtual. Aparentemente a
organização do virtual não apenas integra os sentidos, mas também se
organiza de forma semelhante ao psiquismo, possuindo diversos conteúdos e
tempos coexistindo simultaneamente. No virtual não existe passado, presente,
futuro; um texto de dez anos atrás ali permanece como se escrito hoje, lado a
lado com uma notícia em tempo real do que ocorreu agora. O virtual abriga as
23
tendências mais diversas, desde as que são favoráveis a um assunto até as
que são diametralmente opostas a ele. Tais condições não lembram o
funcionamento inconsciente, e não ajudam a compreender o fascínio do
virtual? Não estaríamos exercitando nossas próprias fantasias ao clicar de
página em página, pulando de um assunto para outro, com a mesma
velocidade com que pensamos?
No caso das pessoas que eu procurava encontrar, se considerarmos o
potencial de encontro entre elas no chamado mundo “real”, ele realmente é
baixo. Entretanto, ao entrarem na rede e digitarem num site de busca, algo do
tipo comunidades de anorexia ou bulimia, rapidamente elas encontrarão links
que as levarão aos outros 1% que existem em outras cidades, incluindo
possivelmente uma outra anoréxica que mora em Sorocaba. Desta forma,
mesmo usando uma situação fictícia, acredito que esta associação é válida, e
talvez a internet seja uma possibilidade para elas se encontrarem. Ou seja,
mais uma vez a internet demonstra sua proximidade para que as coisas se
tornem reais, e não ilusórias. A possibilidade de encontro destas pessoas na
internet é muito mais “real” do que no mundo real em si.
Anas e mias ao se encontrarem pela internet, normalmente passam a
buscar um ideal de corpo, mas não conhecem efetivamente ninguém que tenha
atingido esse ideal. A busca pela magreza ideal é feita por modelos, capas de
revistas, receita de dietas, etc.
Os relacionamentos que ocorrem no ciberespaço costumam ser de dois
tipos. Alguns ocorrem entre pessoas que se conhecem no chamado mundo
real, sendo que as pessoas se encontram de fato, mesmo que este encontro às
vezes demore um tempo para ocorrer, no caso de pessoas que se conhecem
pela primeira vez no mundo virtual. O outro tipo desperta maior curiosidade,
que são os relacionamentos que apenas ocorrem no virtual, sendo que muitas
vezes os envolvidos não desejam se conhecer.
Na reportagem sobre o Second Life é citado o caso de dois paulistanos
que se casaram no mundo virtual, que conversam todos os dias virtualmente e
que, apesar de residirem na mesma cidade, não se conhecem fora do
ambiente virtual. Este tipo de relacionamento parece se basear em um prazer
solitário, semelhante ao auto-erotismo, pois o indivíduo busca satisfação
24
apenas em sua imaginação e não deseja sair desta modalidade de
relacionamento.
Ao estudar o mundo virtual, percebi que esses encontros que parecem
mágicos possuem razões de ser. Com o advento da internet a noção de grupo
se modificou, pois pessoas que antes estavam isoladas podem agora encontrar
outras com os mesmos gostos e ideais. Ao pensar em grupos na atualidade, as
idéias de Freud em “Psicologia de grupo e análise do ego” mantêm-se
atualizadas. Freud (1921, p.87) avalia:
Segundo nosso ponto de vista, não precisamos atribuir tanta
importância ao aparecimento de características novas. Para nós,
seria bastante dizer que, num grupo, o indivíduo é colocado sob
condições que lhe permitem arrojar de si as repressões de seus
impulsos instintuais inconscientes. As características aparentemente
novas que então apresenta são na realidade as manifestações desse
inconsciente, no qual tudo o que é mau na mente humana está
contido como uma predisposição. Não há dificuldade alguma em
compreender o desaparecimento da consciência ou do senso de
responsabilidade, nessas circunstâncias. muito tempo é asserção
nossa que a “ansiedade social” constitui a essência do que é
chamado de consciência.
A meu ver, Freud fala das “novas” características que o indivíduo
assume no grupo. No caso das garotas com transtornos alimentares, penso
que elas dificilmente teriam um grupo para expor suas “novas” características,
se o fosse pela internet. Diversas reportagens publicadas sobre o
comportamento das pessoas no virtual, como a reportagem sobre o Second
Life, demonstram que as pessoas ao utilizarem a internet costumam exacerbar
certas características ou sonhos seus, escolhendo suas melhores fotos ao se
apresentarem na internet, por exemplo. Ao analisar os perfis das anas e mias
pude notar que muitas delas não colocam fotos, preferindo utilizar cartoons ou
fotos de artistas.
A maneira de se apresentar das anas e mias é, de forma geral, uma
ampliação da sua maneira de se enxergar, de seus ideais inalcançáveis, ou da
tristeza que vivem em certos momentos de suas vidas. Aparentemente o
mundo virtual, quando utilizado por essa população, não serve como uma
maneira de criar um mundo “melhorado”, mas sim para criar uma ampliação da
25
dor em que vivem constantemente, demonstrando virtualmente um sofrimento
real.
Apesar de muitas anas e mias não falarem sobre seus problemas com
a família, elas falam sobre eles de forma explícita ou indireta na internet,
expondo seu universo para todos aqueles que acessam seus perfis de Orkut,
blogs e homepages. É possível identificar aqui também uma inversão na
relação entre o público e o privado. Se logo após a Revolução Industrial teve
início a difusão do costume de as pessoas estabelecerem espaços privados,
com cada filho tendo seu quarto, entre outras coisas, talvez seja possível
afirmar que a internet responde a uma necessidade de exposição, de inverter
tal situação, pois ao mesmo tempo que a pessoa continua tendo seu quarto e
sua casa, sua vida está aberta, literalmente, para o mundo inteiro que estiver
conectado.
Ademais, as relações entre público e privado foram alteradas
significativamente também pela internet. A internet tem a peculiaridade,
igualmente, de transformar o que é blico em algo que pode ser falso ou
verdadeiro, o que era mais difícil em outros meios de comunicação. Por
exemplo, um jornal, por mais tendencioso que seja, tem que se ater ao fato de
que o que escreveu está escrito, que as fotos são imagens reais do local
retratado, e assim por diante. Na internet, uma pessoa pode tornar algo
público, mudar o que escreveu, modificar a foto original ou até usar uma foto
falsa, uma vez que na internet não existem meios de censura para tal
manipulação de conteúdos.
Ao considerar a evolução da escrita, Levy explica que a comunicação
virtual remete à escrita as maneiras orais de transmitir histórias. Com o
surgimento da escrita, as idéias passaram por uma padronização constante no
intuito de manter o sentido das palavras ali contidas, de forma que o texto
pudesse ser compreendido pelo leitor sem que este necessitasse conhecer o
autor.
As comunidades e os blogs trazem a escrita para um registro
semelhante ao das histórias contadas oralmente, porque existe uma perda da
formalidade da escrita como a conhecemos em livros e jornais, sendo que esta
é expressa de forma coloquial, assemelhando-se a um diálogo. Outra
característica das comunidades é que os membros podem comentar as
26
mensagens uns dos outros, e estas ficam gravadas, constituindo assim uma
espécie de memória coletiva daquele grupo, formando um registro que
normalmente se perderia caso a mesma discussão ocorresse no mundo real.
Sobre as discussões que acontecem em comunidades, Levy (1999, p.
100) considera que
(...) quando sistemas de indexação e de pesquisa são
integrados a elas e todas as contribuições são gravadas, (...)
funcionam como memórias de grupo. Obtemos então bases
“vivas” de dados, alimentadas permanentemente por coletivos
de pessoas interessadas pelos mesmos assuntos e
confrontadas umas às outras. Os grupos começam a construir
suas próprias estruturas, abordando assuntos de interesse
comum.
Estas bases “vivas” de dados variam, portanto, de acordo com as
pessoas que participaram da discussão ou criação da comunidade. No caso
das comunidades relacionadas a transtornos alimentares é comum que os
grupos falem sobre dietas, maneiras de emagrecer e discussões sobre
modelos, e ocasionalmente mortes que ocorrem dentro do grupo. A obsessão
com as dietas e as diversas maneiras de manipulá-las para influenciar o
consumo de calorias, parece lembrar um momento lúdico vivido por essas
pessoas, no qual a comida muda de estatuto, sendo manipulada em torno de
seu valor calórico e não de sua função como alimento.
Este “brincar” com as calorias que ocorre nas receitas de dietas,
encontradas nas comunidades on-line, irá se repetir no comportamento
individual das jovens com transtornos alimentares, que diariamente modificam
suas dietas, revelando uma verdadeira obsessão pelo valor calórico da comida.
Para entender a evolução da internet é necessário pensar um pouco sobre a
evolução não apenas dos computadores e seus acessórios, comumente
associados à internet, mas torna-se necessário pensar na evolução de todo um
momento histórico.
Segundo Levy (1999, p.13), “durante uma entrevista nos anos 50, Albert
Einstein declarou que três grandes bombas haviam explodido durante o século
XX: a bomba demográfica, a atômica e a bomba das telecomunicações”. Desta
forma, Einstein associava três eventos numa previsão que parece se confirmar
27
cada vez mais. Parece realmente difícil pensar no desenvolvimento de
qualquer técnica, como as telecomunicações ou a nuclear separadas de um
contexto, no caso a explosão demográfica.
A população mundial vem passando por um crescimento vertiginoso. Em
1950 existiam 2,5 bilhões de pessoas no planeta, e após o ano 2000 já existem
mais de 6 bilhões. As previsões mostram que teremos 7 bilhões de habitantes
em 2012, 8 em 2028, etc. Se compararmos com o dado inicial, de que habitava
o planeta um bilhão de pessoas em 1800, podemos ter uma idéia da taxa de
crescimento pela qual passamos.
É justamente a essa taxa de crescimento populacional que se associa
uma explosão de técnicas. Para usar um termo com o qual estou lidando
virtualmente, em tantas pessoas existem mais e mais possibilidades de
desenvolvimento de idéias, técnicas e interações.
Os primeiros computadores eram na realidade calculadoras que podiam
ser programadas e armazenar esses programas. Eles surgiram em 1945 e
ficaram restritos ao uso militar, sendo que sua utilização para fins civis teve
início na década de 60. Nesse momento, esses computadores eram utilizados
para lculos de maior porte, como de grandes empresas ou agências
governamentais.
Nos anos 70 surgiu o microprocessador, o conhecido chip, que
impulsionou uma série de processos, como a robótica, linhas de produção
automatizadas, controles digitais e outras evoluções que foram aparecendo.
Mas o movimento social que se encontra por trás do computador que
conhecemos, o computador pessoal, é o da chamada “contracultura”, que se
relacionou com a popularização do computador como instrumento de uso
pessoal. Um exemplo das relações entre cultura e cnica pode ser visto na
história do Personal Computer (PC):
Em 1975, surgiu o Altair 8800, o primeiro "computador doméstico".
Vendido por uma pequena empresa do Novo México (EUA) em forma
de kit para montar, custava cerca de U$ 400, não tinha teclado ou
monitor
[1]
e possuía apenas 256 bytes de memória. Apesar de sua
capacidade irrisória, comparando com os padrões atuais, o
"brinquedo" atraiu a atenção de centenas de pessoas que tinham a
eletrônica como hobby.
28
Entre esses primeiros usuários estavam o calouro da Universidade de
Harvard, William Gates III, e o jovem programador, Paul Allen, que
juntos desenvolveram uma versão da linguagem "Basic" para o Altair.
Pouco tempo depois, a dupla resolveu mudar o rumo de suas
carreiras e criar uma empresa chamada Microsoft.” (computador
pessoal, Wikipédia).
Desde que os processadores foram inventados, eles têm se tornado
cada vez menores, mais baratos e mais potentes, o que parece óbvio. O que
normalmente desconhecemos é que existe uma razão para esse crescimento,
a chamada lei de Gordon-Moore, que de acordo com Levy (1999, p.15), “prevê
que, a cada dezoito meses, a evolução técnica permite dobrar a densidade dos
microprocessadores em termos de números de operadores lógicos
elementares”, o que se traduz no fato de que em aproximadamente dez anos, a
potência do melhor computador do qual dispomos hoje estará disponível em
computadores pessoais para o público geral. O avanço da velocidade e da
integração dos computadores e seu mundo virtual ocorre em progressão
geométrica, sendo difícil imaginar que tipo de tecnologia estará presente em
cinco ou dez anos.
A evolução das técnicas relacionadas à informática levam a discussões
sobre os efeitos da internet, sendo que alguns a consideram nociva, e outros,
uma tábua de salvação. Quanto a esta discussão, Levy opina que as técnicas
não são boas ou ruins, e que podem ser utilizadas de diversas maneiras.
Entretanto, Levy aponta que a presença ou não de uma técnica, num
determinado momento histórico, condiciona a humanidade para certas
situações e pode restringir o surgimento de outras formas de existir.
Considerando a internet e outras técnicas que surgiram na história da
humanidade, Levy (1999, p.123) observa que “o desejo é o motor. As formas
econômicas e institucionais dão forma ao desejo, o canalizam, o refinam e
inevitavelmente, o desviam ou transformam”. Se prestarmos atenção na
relação que as anas e mias mantêm com o mundo virtual, é possível notar que
realmente o desejo é um motor, pois passam horas utilizando o mundo virtual.
Desta forma, considerando que cada pessoa ou grupo utiliza a internet
à sua maneira, qual é o desejo que impele os grupos de pessoas com
transtornos alimentares a utilizarem a internet? Acredito que uma resposta
preliminar pode ser dada, que é a possibilidade de romper ou o romper
29
com o isolamento social dessas pessoas. A internet permite que o isolamento
social no mundo real permaneça, enquanto a pessoa continua tendo diversos
“contatos” no mundo virtual.
Também, se for considerado que o sintoma quer expressar algo, parece
lógico utilizar um meio de comunicação no qual o sintoma se expressa para
todos, sem, entretanto, se expressar para o rculo familiar próximo. Assim, a
anoréxica e a bulímica podem dizer o que pensam, o que sentem, mas sem
entrar em conflito com suas famílias. Protestam, se expressam, mas não com
os interlocutores, que são provavelmente as pessoas com quem elas por certo
gostariam de se expressar e protestar.
Outros aspectos dessa utilização já foram apontados, como o isolamento
social que parecem experimentar e a necessidade de formarem bancos de
dados vivos sobre seus pensamentos e subjetividades. Creio que existe um
outro dado interessante sobre anas e mias, sobretudo se considerarmos que “o
ciberespaço visa, por meio de qualquer tipo de ligações físicas, um tipo
particular de relação entre as pessoas” (Levy,1999, p.124).
Retomando a idéia de que “anas e mias” formam um grupo ao se
relacionarem virtualmente, surgem as questões referentes à estrutura deste
grupo. Freud, ao comentar os grupos em seu texto “Psicologia de Grupo e
Análise do Ego”, afirma a importância do líder no grupo, escrevendo que o
líder
:
(...) com frequência precisa apenas possuir as qualidades típicas dos
indivíduos interessados sob uma forma pura, clara e particularmente
acentuada, necessitando somente fornecer uma impressão de maior
força e de mais liberdade de libido. (Freud, 1921, p.47)
A meu ver, ao considerar o grupo de pessoas com transtornos
alimentares, surge a questão sobre sua liderança. o existe, por assim dizer,
a anoréxica ou a bulímica que possa servir a este papel. Assim, a liderança do
grupo não está presente nesta ou naquela pessoa, mas muito mais em um
ideal, um objetivo, uma representação do que gostariam de ser. Talvez este
seja o terceiro motivo pelo qual os transtornos alimentares utilizam o mundo
virtual como forma de expressão, pois ele permite uma relação entre a pessoa
e um ideal, algo fluido, imaginário, o ideal de magreza que tanto buscam. É
30
ilustrativo desta idéia o fato de que pelo ciberespaço trafegam “a carta da ana”
e “a carta da mia”, textos anônimos que conclamam as jovens com transtornos
alimentares a seguirem um modo espefico de enxergar o mundo.
Carta da Ana
QueridaLeitora,
Permita-me apresentar. Meu nome, ou como sou
chamada pelos também chamados ‘doutores é Anorexia.
Anorexia Nervosa e meu nome completo, mas você pode me
chamar de Ana. Felizmente nós podemos nos tornar grandes
parceiras. No decorrer do tempo, eu vou investir muito tempo
em você, e eu espero o mesmo de você.
No passado você ouviu seus professores e seus pais falarem
sobre você. Diziam que você era tão madura, inteligente, e que
você tem tanto potencial. E eu pergunto, aonde tudo isso foi
parar? Absolutamente em lugar algum! Você não é perfeita,
você não tenta o bastante! Você perde muito tempo pensando
e falando com amigos! Logo esses atos não serão mais
permitidos.
Seus amigos não te entendem. Eles não são
verdadeiros. No passado, quando inseguramente você
perguntou a eles:- Estou gorda?- E eles te disseram:- Não,
claro que não!-você sabia que eles estavam mentindo! Apenas
eu digo a verdade! E sem falar nos seus pais! Você sabe que
eles te amam e se importam com você, mas uma parte é
porque eles são pais, e são obrigados a isso. Eu vou te contar
um segredo agora: Bem no fundo, eles estão desapontados
com você. A filha deles, que tinha tanto potencial, se
transformou em uma gorda, lerda, e sem merecimento de nada!
Mas eu vou mudar isso. Eu espero muito de você. Você
não tem permissão para comer muito. Eu vou começar
devagar: Diminuindo a gordura, lendo tabelas de nutrição,
cortando doces e frituras, etc. Por um tempo os exercícios
serão simples: corridas, talvez exercícios localizados. Nada
muito sério.Talvez você perca alguns quilos, tire um pouco de
gordura deste seu estomago gordo! Mas não irá demorar muito
até eu te dizer que não está bom o suficiente. Eu vou te fazer
diminuir calorias consumidas e vou aumentar a carga de seus
31
exercícios. Eu vou te forçar até o limite! Eu preciso fazer isso,
pois você não pode me derrotar! Eu estarei começando a me
colocar dentro de você. Logo eu já vou estar lá. Eu vou estar
quando você acordar de manhã e correr para a balança.
Os números começam a ser amigos e inimigos ao
mesmo tempo, e você em pensamento reza para que eles
sejam menores do que ontem à noite. Você olha no espelho
com enjoo. Você fica enjoada quando tanta banha nesse
seu estomago, e sorri quando começam a aparecer seus
ossos. E eu estou quando você pensa nos planos do dia:
400cal e 2h de exercícios. Sou eu quem está fazendo esses
planos, pois agora meus pensamentos e seus pensamentos
estão juntos como um só. Eu te sigo durante o dia. Na escola,
quando sua mente sente vontade, eu te dou alguma coisa para
pensar! Recontar as calorias consumidas do dia. Elas são
muitas. Eu vou encher sua cabeça com pensamentos sobre
comida, peso e calorias. Pois agora eu realmente estou dentro
de você.
Eu sou sua cabeça, seu coração e sua alma. As dores
da fome, que você finge não sentir, são eu dentro de você!
Logo eu não vou estar te dizendo o que fazer com comida, mas
o que fazer o tempo todo! Sorria, se apresente bem. Diminua
esse estomago gordo, Droga!
Deus, você é uma vaca gorda!!! Quando as horas das refeições
chegarem, eu vou te dizer o que fazer. Quando eu fizer um
prato de alface, será como uma refeição de rei! Empurre a
comida em volta! Faça uma cara de cheia...Como se você
tivesse comido! Nenhum pedacinho de nada...Se você comer,
todo o controle será quebrado,e você quer isso? Ser de novo
aquela vaca gorda que você era? Eu te forço a ver uma revista
de modelos. Aquele corpo perfeito, magro, dentes brancos,
essas modelos perfeitas te encaram pela pagina da revista! E
eu te faço perceber que você nunca será uma delas. Você
sempre será gorda, e nunca vai ser tão bonita quanto elas!
Quando você olhar no espelho, eu vou distorcer sua
imagem, e te mostrar uma lutadora de sumo, mas na verdade
existe apenas uma criança com fome. Mas você não pode
saber da verdade, pois se você souber, você pode começar a
comer de novo e nossa relação pode vir a cair, e me destruir!
Às vezes você vai ser rebelde. Felizmente não com muita
frequência. Você vai forçar aqueles últimos pensamentos, e
32
talvez entrar naquela cozinha escura! A porta vai se abrir
devagar, você vai abrindo a porta do armário e colocando sua
mão naquele pacote de biscoitos, e você vai simplesmente
engoli-los, sem sentir gosto nenhum na verdade, você faz isso
pelo simples fato que você está indo contra mim. Você procura
por outra caixa de biscoitos, e outra e outra. Seu estomago
está cheio de massa e gordura, mas você não vai parar ainda.
E o tempo todo eu vou estar gritando para que você pare, sua
vaca gorda! Você realmente não tem controle, você vai
engordar!
Quando isso acabar, você vai vir desesperada para
mim de novo, e me pedindo conselhos porque você não quer
ficar gorda! Você quebrou uma regra, e comeu, e agora você
me quer de volta. Eu vou te forçar a ir no banheiro, ajoelhada e
olhando para a privada! Seus dedos vão para dentro da sua
garganta, e com uma boa quantidade de dor, a comida vai toda
sair. Você vai repetir isso várias vezes, a que você cuspa
sangue e água, e saiba que toda aquela comida se foi! E
quando você se levantar, você vai sentir tontura. Não desmaie!
Fique em pé agora mesmo! Sua vaca gorda! Você merece
sentir dor!
Talvez a escolha de te fazer ficar cheia de culpa vai ser
diferente. Talvez eu escolha te fazer se encher de laxantes, e
você vai ficar sentada na privada até altas horas da manhã
sentindo seu estomago se revirar. Ou talvez eu faça você se
machucar, bater sua cabeça contra a parede, até você ganhar
uma dor de cabeça insuportável! Cortar também é bem útil. Eu
quero ver sangue, quero ver ele cair sobre seu braço, e
naquele segundo, você vai perceber que merece qualquer tipo
de dor que eu te dou! Você vai ficar deprimida, obcecada, com
dor, se machucando e ninguém vai notar? Quem se
importa?!?!? Você merece! Ah, isso é muito duro? Você não
quer que isso aconteça com você? Eu sou injusta? Eu faço
coisas que apenas vão te ajudar! Eu vou fazer que seja
possível parar de pensar em emoções que te causam stress.
Pensamentos de raiva, tristeza, desespero e solidão
podem ser anulados, pois eu vou tirar eles de você, e encher
sua cabeça com contas metabólicas de calorias. Vou te tirar a
vontade de sair com pessoas de sua idade, e tentar agradar
todos eles. Pois agora eu sou sua única amiga, eu sou a única
que você precisa agradar! Mas nós não podemos contar a
33
ninguém. Se você decidir o contrário, e contar como eu te faço
viver, todo o inferno vai voltar! Ninguém pode descobrir,
ninguém pode quebrar esta concha que eu tenho construído
com você! Eu criei você, magra, perfeita, minha criança
lutadora! Você é minha, e só minha! Sem mim, você é nada!
Então, não me contrarie. Quando outras pessoas
comentarem, ignore-as! Esqueça delas, esqueça, todos
querem me fazer ir embora. Eu sou seu melhor apoio, e
pretendo continuar assim. Com sinceridade, Ana.
Na carta é curioso notar o tom do discurso, como se realmente estivesse
sendo dirigido a um leitor específico, as palavras de ordem, o incentivo à
resistência por um ideal, todas as partes que poderiam ser encontradas no
discurso de um líder que conclama seus seguidores a efetuarem uma tarefa. A
carta da mia também segue por um caminho parecido, ao dizer:
Carta da Mia!
descrição:
Oi! Meu nome é Bulimia, mas os íntimos me chamam de Mia. Sou sua companheira e
vou estar com vc nas horas de mais aperto e desespero. Estou com vc e quase sempre
com a Anna. Somos o trio perfeito e espero que vc não nos decepcione, pq nós sim
somos suas verdadeiras amigas! Não te decepcionamos e vamos sempre te ajudar.
Vc com certeza terá momentos de extrema tristeza, mas passa pq nossa amizade é
mais forte.
Vc tem aquelas amigas q não te entendem, e se vc contar pra elas, nossa amizade
estará em risco, elas irão kerer te "ajudar", mas não é isso o que elas kerem... elas
kerem é destruir nosso laço e eu tenho certeza q vc não ker isso, portanto fike de boca
fexada, pq vc não tem permissão da Anna de comer, e tem permissão minha de botar
tudo pra fora se for necessário!
A escolha é sua, mas nós estaremos SEMPRE com vc e nunca iremos te abandonar! Vc
é forte o bastante para dizer não a seus familiares e "amigos", nós sabemos disso. Te
amamos...
Ambas as cartas tocam em um ponto interessante da formação dos
grupos de anas e mias, que é o da não-existência de um líder direto e de fato,
34
mas sim de serem guiadas por um ideal que se mostra imperativo e tirânico.
Este ideal manifesta-se por meio de cartas anônimas, fotos de modelos e
outros exemplos que dão uma sustentação simbólica à busca pelo corpo ideal
que ocupa os pensamentos dessas jovens. Ao se guiarem por um pensamento
idealizado e não encontrando de fato o que buscam, pois seu ideal corporal é
praticamente inatingível, anas e mias optam por seguirem um padrão que será
sustentado mutuamente, utilizando a comunicação entre os membros dos
grupos.
A prevalência dos ideais, nos transtornos alimentares, é uma
característica com que diversos autores concordam. Está outro motivo para
a utilização da internet, pois além de ali elas encontrarem o ideal que buscam,
elas controlam este ideal, pois são elas que editam as imagens, inventam as
dietas e padrões corporais. Temos aqui, portanto, dois elementos importantes,
que são a existência do controle e da busca pelo ideal, duas características
psicopatológicas das anoréxicas e bulímicas. As cartas lembram um discurso
quase militar, que normalmente associaríamos ao superegóico, mas no caso
destas garotas, me parece muito mais que elas são tiranizadas por seu eu
ideal.
Tanto a carta da Ana como a da Mia só poderiam ser dirigidas a pessoas
com enormes carências e uma subjetividade pouco estabelecida, pois quantas
pessoas gostariam de ler uma carta que as chama de gordas, preguiçosas,
nojentas, e que lhes diz o que fazer? Em minha opinião, apenas pessoas que
possuem um vazio de referências tão grande, que é necessário um referencial
externo violento que possa preencher estruturas que, provavelmente, tiveram
sua formação prejudicada. Refiro-me aqui à constituição do auto-erotismo, do
narcisismo, das relações objetais. Por conseguinte, é assim que compreendo
ambas as cartas, como próteses psíquicas que ocupam o lugar do que não se
instaurou.
Desta maneira, as jovens portadoras de transtornos alimentares
parecem utilizar a comunicação virtual como uma defesa de seu modo de ser,
muitas vezes advogando que não estão doentes, mas que apenas escolheram
um estilo de vida, e parecem não entender por que as pessoas se preocupam
com elas e não aceitam suas escolhas.
35
Anas e mias oferecem umas às outras apoio, trocando dicas de como
emagrecer, como comprar remédios controlados para emagrecimento, como
ocultar dos outros sua condição e como evitar uma hospitalização. Ao
formarem seus bancos de dados vivos, constroem uma identidade on-line
própria, como se formalizassem no virtual o status que muitas vezes não
podem oficializar no chamado mundo real.
Sendo assim, acabam construindo suas comunidades “sobre as
afinidades de interesses, de conhecimentos, sobre projetos mútuos, em um
processo de cooperação ou de troca, tudo isso independentemente das
proximidades geográficas e das filiações institucionais” (Levy,1999, p.127). É
óbvio que diversos grupos realizam o mesmo procedimento no mundo virtual,
mas o que chama a atenção em anas e mias é o uso extensivo do virtual,
provavelmente estimulado pela impossibilidade de exercerem suas relações no
real.
Minha afirmação sobre o uso excessivo do virtual pelas anoréxicas e
bulímicas provém da minha observação de outras comunidades, das quais faço
parte, onde pude comprovar que não existe o mesmo frenesi na troca de
mensagens e companheirismo. Então, em minha experiência, pude observar
que o mundo virtual habitado pelas anoréxicas e bulímicas apresenta um
tráfego de recados, fotos, links e vídeos que supera, em muito, o de outras
comunidades. Ressalto que esta é uma observação pessoal e que seria
necessário uma pesquisa com várias comunidades para comprovar
cientificamente o fato de as comunidades de anas e mias serem mais utilizadas
do que as outras. De qualquer forma, minha experiência pessoal assim o
indica.
Outra característica que pode ajudar a explicar a presença de “anas e
mias” na rede é a questão da imagem. Um traço onipresente das pessoas com
transtornos alimentares é a distorção da imagem corporal, e isto parece
combinar-se com o desenvolvimento do mundo virtual. A despeito dos avanços
da informática com vistas a aumentar a integração entre os sentidos humanos
e as máquinas, como, por exemplo, a presença de som nos computadores ou a
extensão do uso da mão através do mouse, o sentido que predomina nas
comunicações virtuais é o da visão.
36
Levando em consideração a relação conturbada que anas e mias m
com o próprio corpo, penso que o mundo virtual oferece possibilidades de lidar
com a própria imagem. Ao utilizar a internet, o corpo pode ser substituído por
outras imagens, como já mencionei acima, ou a própria imagem pode ser
editada para realçar os detalhes que a pessoa considera interessantes, ou
seja, ela fabrica sua própria imagem, a seu bel prazer.
Talvez seja possível considerar que o mundo virtual oferece a
oportunidade de manipular a imagem corporal, assim como as jovens com
transtorno alimentar tentam fazer no mundo real, com a vantagem de que nos
relacionamentos virtuais o corpo não se encontra exposto diretamente, dando
ao frequentador da comunidade o poder de escolher de que forma sua imagem
será exibida. A questão da distorção da imagem é percebida pelas próprias
anas e mias, que chegam a questionar em alguns momentos o que ocorre com
elas. Uma ana deixou um scrap no Orkut para mim onde escreve:
Ana volta......:
*Espelho embaçado
A menina está no espelho e se olha, mas não gosta do que vê.
Queria ser outra. A moça da revista.
Não exatamente aquela, mas uma que não existe.
Existe nela mesma, na verdade. Mas é outra.
As mãos no rosto são um pouco de desespero.
De querer arrancar algumas coisas e entender onde foi o que já esteve lá.
Não tanto do reflexo. Do reflexo a menina gosta. Mas do que está dentro dele.
É o que há dentro do espelho que incomoda.
Incomoda, não. Perturba, angustia, inquieta.
37
Por quê, ela pergunta? Por quê?
Por que, de repente, essa solidão blindada, esse vazio silencioso, esse frio?
Ela é MENINA, não entende.
Diversos elementos da anorexia encontram-se neste scrap, como a
distorção da imagem corporal que aparece ao dizer que a menina não gosta do
que vê no espelho. A busca por um ideal aparece ao dizer que queria ser outra,
como a moça da revista. Acima de tudo, existe a menção a um desespero, um
sofrimento, um não entender exatamente o que se passa. O final do texto
aponta para uma conclusão à qual diversos autores que trabalham com
transtornos alimentares chegam. É a prevalência de um modo de
funcionamento infantil em certos aspectos da vida, como escreve a autora do
scrap, ao dizer que diante de tantas questões a resposta que aparece é “ela é
menina, não entende”.
Neste predomínio da imagem como mediadora das relações, diversas
considerações podem ser feitas. Ao comentar a configuração das
subjetividades na atualidade, Birman (2000, p.23) escreve que “a subjetividade
assume uma configuração decididamente estetizante, em que o olhar do outro
no campo social e mediático passa a ocupar uma posição estratégica em sua
economia psíquica”.
Desta forma, não é surpreendente que as descrições das patologias que
ocupam a atenção das ciências se encontrem relacionadas com questões de
imagem, inclusão e exclusão, pois vivemos em um momento histórico que
Debord denominou de “A sociedade do espetáculo”. Quando Debord cunhou o
termo, defendia a idéia de que estaríamos vivendo um uma sociedade que
caminha para uma substituição do ser pelo parecer, e onde o grande valor está
no espetáculo, ou seja, na exibição. As patologias da clínica moderna diversas
vezes são chamadas de patologias narcísicas, e a associação com o raciocínio
de Debord parece inevitável:
O conceito de espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de
fenômenos aparentes. As suas diversidades e contrastes são as
aparências organizadas socialmente, que devem, elas próprias,
serem reconhecidas na sua verdade geral. Considerado segundo os
38
seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a
afirmação de toda a vida humana, socialmente falando, como simples
aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espetáculo
descobre-o como a negação visível da vida; uma negação da vida
que se tornou visível. (Debord, p.12, 1998)
Birman comenta as idéias de Debord sob um ponto de vista psicanalítico
e aponta a existência de uma svociedade centrada no eu, onde predominam
arranjos masoquistas e perversos, sendo que esta estrutura social se mostraria
em diversos aspectos da atualidade, como o culto ao corpo, a homogeneização
exacerbada dos indivíduos em busca de ideais fálicos, como o consumismo, e
uma existência baseada em si mesmo. Mas uma das consequências dessa
estrutura atual da sociedade, conforme Birman, é que
(...) sem o outro a ordenação do circuito pulsional seria
impossível, pois a força pulsional seguiria inevitavelmente a via
da descarga. Com efeito, por intermédio do outro a ligação
entre a força pulsional, os objetos e os representantes daquela
seria promovida” (Birman, 2000, p.122).
Ou seja, vivemos em uma atualidade que não promove o outro, mas a si
mesmo, e as consequências desse movimento encontram-se nos sintomas das
patologias da atualidade, entre elas os transtornos alimentares.
A) Do Orkut ao MSN, ou de um Virtual para um Virtual ainda mais Real
Voltando ao meu ingresso no virtual, isto é, no Orkut, importante
salientar que através dele eu pude ter acesso às diversas comunidades de
transtorno alimentar, e a partir daí fiz meus primeiros contatos. O Orkut é
público, todo mundo que tem Orkut pode acessar sua página e ler seus
recados. Com isto o Orkut ficou somente para nos conhecermos e
combinarmos dias e horários para conversar no MSN.
O MSN Messenger, ou apenas MSN, é um programa de mensagens
instantâneas criado pela Microsoft Corporation. Este programa permite que um
usuário da internet se comunique com outro que tenha o mesmo programa em
39
tempo real, podendo ter uma lista de amigos "virtuais" e acompanhar quando
eles entram e saem da rede.
Nossas conversas pelo MSN foram ricas, quase todas tiveram
continuidade, ou seja, ao final combinávamos outro dia para nos encontrarmos.
Até hoje, ao acessar o MSN ou mesmo o Orkut, muitas pessoas me chamam
perguntando se ainda me lembro delas. Elas me procuram quando me ausento,
deixando por vezes “scraps” como estes:
O mundo foi cres
ila:
O mundo foi crescendo, as pessoas se distanciando cada vez mais.
Cada uma carregando uma solidão, encobrindo seus sonhos,
esquecendo de rir, escondendo suas lágrimas. Trancando seus
melhores sentimentos numa caixa escura, sem coragem para abri-la.
Nosso mundo interior não cabe mais no mundo exterior. Ninguém
tem tempo nem espaço. Todos têm compromissos, horários, agendas
lotadas... E Deus pensou:
Neste mundão enorme ainda existem pessoas que querem abrir sua
caixa escura, mostrar para uma outra o que ela guarda tão
escondido, e ainda tem pessoas que gostariam de conhecer o
conteúdo dessas caixas e poder abrir as suas também.
Então Deus concedeu ao homem o poder de estabelecer contato
imediato com aqueles que desejavam abrir suas caixas.
Surgiu a internet.
E assim conheci você!!!!!!!
Obrigado por existir em minha vida, sendo virtual ou real, você tem
seu espaço em meu coração!
bj sincero
Ei Kelly, você sum
Quel:
Ei Kelly, você sumiu, nem dá um oizinho no MSN!
Eu to bem graças a Deus.
E você? Como andam as coisas???
Já terminou o trabalho sobre t.a.?
Beijão
oi miga tdbem???
GleiCe &:
Oi, miga, tdbem???
saudades das nossas conversas e awe como vc está???
40
bjoo
Responder
Você tá no msn a
Quel:
Você tá no MSN agora????
se puder falar por lá!
Beijoka
desculpe ter said
Mirtila:
desculpe ter saído e demorado para voltar, fui atender o portão,
estava com visitas mais espero podermos conversar
mais....obrigado...abraço
oiee..te vi na com
Day.•°Kátillen:
oiee..te vi na comuna da anamia por regiao, posso te add..ah jah
add...bjim pra ti..estou procurando novos amigos
soh..hehe..txaummm boa semana pra ti ;)
só pra avisar que
Dannie:
só pra avisar que essa anna. dark aí é um perfil falso usando a minha
foto.
acho absurdo.
O MSN apresenta a vantagem de ocorrer de forma privada, ou seja,
ninguém poderia ter acesso às nossas conversas, prezando o anonimato,
como eu reassegurei em meu perfil, e com a vantagem de nos encontrarmos
com dia e horário definidos. Desta forma se estabeleceu um setting virtual que
possibilitou uma proximidade, facilitando a expressão de fantasias das
entrevistadas e da entrevistadora.
Inicialmente me perguntavam se minha pesquisa era em forma de
questionário, e que se fosse assim, eu poderia mandar o questionário por e-
mail que elas responderiam e me mandariam de volta. Expliquei a todas que a
proposta era diferente, que seria conversa aberta, que eu gostaria que elas
ficassem livres para falar de suas experiências. Ao contarem suas
41
experiências, eu procurava buscar na dinâmica familiar dados sobre a
patologia. Desde o início das minhas conversas pelo MSN eu apresentava
como a pesquisa seria feita: atráves de uma entrevista aberta, mas que
conteria perguntas sobre a estrutura familiar, pois o objeto da pesquisa era
buscar a relação entre a dinâmica familiar e os transtornos alimentares.
Dessa forma, as entrevistadas sabiam que poderiam falar livremente,
mas que eu faria perguntas sobre suas famílias. Acredito que este foi um
método de aproximação que apresentou duas vantagens, pois permitiu a elas
que falassem sobre o que bem entendessem, algo que se aproximava da livre-
associação, ao mesmo tempo em que elas tinham consciência de que, caso
escolhessem conversar, receberiam perguntas sobre suas famílias, o que me
pareceu uma maneira ética de conduzir a entrevista.
Permaneci durante um ano e meio conversando com diversas meninas e
mulheres com transtorno alimentar. Durante esse tempo foi possível montar um
dossiê onde tive a oportunidade de conversar com 100 meninas. Este material
será utilizado ao longo da dissertação. Aproveito para inserir aqui um
comentário que me parece pertinente, diante das conversas exibidas e das
imagens que as jovens com transtornos alimentares mostram em seus perfis
na internet. Volich (2005) escreveu um belo artigo na revista “Viver Mente &
Cérebro”, que parece se encaixar com perfeição no material a que já me referi.
O autor comenta quanto vivemos em um mundo mediado pela imagem, pelo
sensório, no qual as fotos, os deos e as biografias sempre exaltam a
perfeição e o sucesso, duas qualidades que cada vez mais são apresentadas
pelo corpo.
Na realidade, tal demonstração pelo corpo parece até mesmo lógica,
pois é o corpo que constitui nossa primeira fonte de comunicação, a primeira
ponte de contato entre o que nasceu e a cultura que o circunda. Entretanto,
perante um mundo dominado por ideais, não é de causar estranheza que o
corpo seja chamado a dar testemunho dos sucessos e insucessos pessoais, “e
particularmente como porta-voz privilegiado das dificuldades do sujeito em lidar
com o outro, com suas expectativas, com sua própria condição de vida” (Volich,
2005, p.30).
Volich (2005) comenta a quantidade exasperante de transformações
corporais às quais as pessoas se submetem atualmente, desde o simples
42
creme para celulite até cirurgias altamente invasivas, como algumas plásticas e
gastroplastias feitas sem necessidade. Segundo ele, 86% das mulheres
francesas se declararam “insatisfeitas com suas formas anatômicas” (p.30). O
Brasil, por sua vez, é o segundo país do mundo em número de cirurgias
plásticas, sendo metade delas puramente estéticas e realizadas em pessoas
cada vez mais jovens. Ao comentar tais cirurgias, o autor escreve que “diante
das dificuldades de encontrar em si mesmo uma imagem que satisfaça, busca-
se no olhar do outro, no social a imagem que possa agradar” (p.31).
Creio que cabe aqui uma pergunta: Será que as anas e mias, ao
assumirem suas identidades falsas, modificarem suas fotos e realizarem suas
outras peripécias pelo mundo virtual, não fazem também uma espécie de
plástica virtual? Afinal, ali, naquele mundo, elas podem possuir um ideal que
nenhuma clínica de cirurgia ou emagrecimento pode oferecer. E é ali, também,
que elas encontram o olhar de um outro capaz de entendê-las, que são outras
anas e mias.
Se, como bem lembra Volich (2005), nos tempos antigos a galera era
uma embarcação de guerra, na qual grandes remos eram movimentados por
grupos de escravos por períodos de 12 a 16 horas, não podemos dizer que o
mundo em que vivem essas moças se constitui também uma galera? Não
remam elas, metaforicamente, com seus exercícios sem fim, suas dietas e seu
purgar, em águas pouco amistosas? E não são elas, no mundo virtual,
companheiras na direção deste navio?, pois é através do virtual que elas
podem formar um coletivo e remar, remar contra as angústias do indizível.
Volich (2005) denomina todo tipo de atividade frenética, como a das
garotas com transtorno alimentar, de “procedimentos autocalmantes, são fruto
da precariedade da organização subjetiva, carente de recursos psíquicos para
lidar com as exigências da vida. Eles curto-circuitam a via representativa e de
fantasia, utilizando a realidade de forma específica, bruta, factual, operatória,
sem carga simbólica” (p.35).
Incluiria nos procedimentos autocalmantes, fora os mencionados
exercícios, a troca incessante de mensagens virtuais, carentes de conteúdo,
mas que alcançam um outro e até mesmo os processos de mutilação corporal,
que parecem garantir a essas moças a confirmação de suas existências. o
momentos nos quais o corpo assume a dianteira da vida porquanto o
43
psiquismo e suas respostas hierarquizadas não podem dar conta da
realidade, e é necessário “corresponder a suas expectativas e a seus ideais, [o
que é] vivido muitas vezes como uma questão de sobrevivência” (p. 36).
Portanto, anas e mias formam uma “galera”, nos dois sentidos possíveis,
tanto da embarcação quanto do grupo. Mas, nos dois sentidos, elas remam
incessantemente contra as águas do ideal, do olhar desaprovador do outro, da
falta de estrutura interna. Nestes momentos, remar por 16 horas, como faziam
os antigos escravos, não é suficiente. É necessário remar por 24 horas, e
acredito que a internet auxilia tal movimento ao fornecer as condicões para a
formação de um grupo, os meios de comunicação, organização e até mesmo
de defesa.
Enfim, todo grupo se defende dos ataques externos, e talvez possamos
enxergar nas afirmações de que “apenas seguimos um estilo de vida”, um
modo de se defender de um mundo que exige a perfeição, mas reprova
aquelas que parecem tentar buscá-la mais a fundo. A seguir, gostaria que o
leitor acompanhasse dois exemplos de conversa com uma ana e uma mia que
obtive atráves do mundo virtual, para que as palavras que foram ditas nos
últimos páragrafos, sobre a formação da “galera” ana e mia, façam mais
sentido para o leitor.
B) Um Exemplo de Conversa Virtual – Anorexia
Pretendo, neste subcapítulo, incluir uma conversa virtual e
apontar nela alguns dos traços que considero característicos dos
transtornos alimentares. Escolhi esta conversa por considerá-la
exemplar, dentre as rias que colhi. Portanto, primeiro a conversa, na
íntegra, e depois um comentário.
Kelly Cristina diz:
oi luciana
6
Luciana... diz:
oi Kelly
Kelly Cristina diz:
oi luciana, nós não conseguimos nos falar mais
Kelly Cristina diz:
6
O nome Luciana é fictício, pois a jovem entrevistada utilizava seu nome real no MSN, o que não ocorre
sempre. Esta entrevista, assim como a próxima, não foram corrigidas do ponto de vista ortográfico, para
manter a idéia do tipo de comunicação que ocorre no mundo virtual.
44
procurei seu Orkut pra deixar um scrapt e não encontrei
Luciana... diz:
pois é, mais eu não tenho mais Orkut
Kelly Cristina diz:
é que na última vez que conversamos vc tinha
Luciana... diz:
não, eu tinha te falado que não tinha
Kelly Cristina diz:
e aquele endereço que vc havia passado?
Kelly Cristina diz:
lembra?
Luciana... diz:
acho que vc ta si confundindo
Luciana... diz:
heheheh
Luciana... diz:
Ahhhhh Kelly
Luciana... diz:
verdade
Luciana... diz:
lembra que eu não podia falar com vc?
Luciana... diz:
deu uns rolo
Luciana... diz:
e eu exclui naquele dia
Luciana... diz:
deu umas confusão com o meu namorado
Luciana... diz:
ai eu exclui
Kelly Cristina diz:
ah, então não estou confundindo
Kelly Cristina diz:
olha sobre a conversa, a gente parou quando vc disse que foi para Blumenau com 17
anos
Luciana... diz:
então, fui pra blumenau com 17 estuda, conheci um monte de gente diferente, que a
minha cidade é interior sabe,
Luciana... diz:
assim, não meio do mato, mais comparado com blumenau
Kelly Cristina diz:
Qual cidade mora?
Luciana... diz:
e foi que eu resolvi que ia emagrece, porque não tava em casa, morava sozinha, então
eu comia o que eu queria
Luciana... diz:
sou de Videira Santa Catarina
Luciana... diz:
porque eu sempre quis ser magra mais morando em casa é complicado,
Luciana... diz:
como que te disse, que nunca gostei de ser popozuda sabe
Luciana... diz:
não gosto de chamar a atenção
Kelly Cristina diz:
Conte-me conta mais detalhadamente esse fato de sempre querer ser magra e em
casa não dava?
Luciana... diz:
acho as magras mais bunitas, as roupas ficam bem,
Luciana... diz:
porque não podia fica sem comer, as refeições eram feitas sempre todos juntos
Luciana... diz:
e si eu não comesse ou alguma coisa, a mãe ja pegava no meu pé
Luciana... diz:
45
então quando fui mora sozinha, tive a oportunidade
Kelly Cristina diz:
como foi quando queria perder peso?
Luciana... diz:
como foi em casa com os meus pais?
Luciana... diz:
foi em blumenau
Kelly Cristina diz:
em casa? na casa com os pais? como foi que apareceu esta idéia? vc se recorda?
Luciana... diz:
na verdade eu me matriculei numa academia na frente da minha casa, ai eu tinha uma
dieta, mais sempre comia menos do que tava lá, antes de ir pra blumenau eu ja tinha
perdido alguma coisa, uns kilinhos, mais foi que eu realmente não comia, comi pra
aguentar a rotina, mais depois das 17 eu já não comia nada, e cortei todos os carboidratos,
Luciana... diz:
só os ingeria quando eu tava muito fraca
Kelly Cristina diz:
vc tinha problema com peso nesta época?
Luciana... diz:
não, eu nunca fui gordinha, era bonita acho, mais eu não me gostava,
Luciana... diz:
na verdade eu nem sei porque isso veio na minha cabeça, um dia eu acordei me olhei no
espelho e resolvi que ia emagrece
Luciana... diz:
assim nunca tive problema com meninos ou discriminação nada disso,
Kelly Cristina diz:
o que viu no espelho? alguém falou alguma coisa? tinha algum garoto?
Luciana... diz:
mais um dia achei que ser magra era bunito, alias sempre achei mais nunca tive a
pretensão de fica magra ate esse dia
Kelly Cristina diz:
entendi...
Kelly Cristina diz:
quantos anos tinha?
Luciana... diz:
não, eu até tinha um namorado nessa época, e ele era prof. de natação, era todo sarado
Luciana... diz:
gatão mesmo,
Luciana... diz:
e ele nunca me disse nada
Luciana... diz:
ou emagrece ou ingorda
Kelly Cristina diz:
qual era a sua idade?
Luciana... diz:
eu tinha 17 anos
Kelly Cristina diz:
pode continuar
Luciana... diz:
então, a gente termino o namoro, e eu fui embora
Luciana... diz:
pra blumenau
Luciana... diz:
e dai começo
Luciana... diz:
eu parei de janta
Luciana... diz:
comia fruta
Luciana... diz:
não ia de ônibus pro cursinho ia a
Luciana... diz:
essas coais
46
Luciana... diz:
coisas
Luciana... diz:
e fui perdendo peso
Luciana... diz:
ai quando a minha família ia pra lá eu fazia compras
Kelly Cristina diz:
vc sentiu quando terminou o namoro? Por que terminaram?
Luciana... diz:
eu senti
Luciana... diz:
foi meu primeiro namorado
Luciana... diz:
tudo
Luciana... diz:
eu realmente gostava dele, O Eduardo, nem sei porque terminamos, um dia ele disse que
não dava mais ,
Luciana... diz:
e acabo
Luciana... diz:
eu sofri, chorei
Kelly Cristina diz:
namoraram quanto tempo?
Luciana... diz:
e foi esse um dos motivos que a mãe quis que eu saísse de videira
Kelly Cristina diz:
nossa? foi assim? ele não explicou?
Luciana... diz:
foi quase um ano
Luciana... diz:
ele disse que tava fazendo pós, e não tinha tempo pra nada
Kelly Cristina diz:
sua mãe quis que vc saísse de Videira por isso? pelo namorado?
Luciana... diz:
na verdade, eu ja tava com planos de ir, ai aconteceu isso, e dai eu fui mesmo, porque eu
não tava querendo ir, por ele
Luciana... diz:
ai não tinha mais ele, e eu fui
Luciana... diz:
ai lá tinha uma tia que morava, mais a gente morava em condominios separados
Luciana... diz:
digamos que ela é a tia que eu mais amo, e ela me animo, e logo eu superei
Kelly Cristina diz:
entendi...
Kelly Cristina diz:
vamos retomar...
Kelly Cristina diz:
vc tinha planos de ir pra Blumenau pra estudar... estava adiando por ter um
namorado,
Luciana... diz:
é
Kelly Cristina diz:
aí terminaram e vc começou a sofrer, e sua mãe incentivou sua ida, por conta de estar
sofrendo, é isto?
Kelly Cristina diz:
aí chegou lá, começou a restringir mais ainda a alimentação
Kelly Cristina diz:
chegando lá.. e?
Luciana... diz:
exatamente
Luciana... diz:
e dai lá, eu só estudava
47
Luciana... diz:
e caminhava hehehe
Luciana... diz:
e fui parando de comer, e cada vez comendo menos, então eles ia me ver lá, e eu fazia
compras, e a mãe me falava que eu tava emagrecendo
Luciana... diz:
que eu não devia estar me alimentando
Luciana... diz:
mais eu enchia ela de desculpa
Luciana... diz:
e ia enrolando
Luciana... diz:
então nesses
Luciana... diz:
nesses dias, eu comia mais ou menos, mais tomava laxante
Luciana... diz:
porque morria de arrependimento
Luciana... diz:
eu tinha vontade de morrer, ficava super mal humorada
Luciana... diz:
chorova
Luciana... diz:
chorava
Luciana... diz:
a mãe pedia que estava acontecendo, eu falava que eles iam embora e eu ficava triste
Kelly Cristina diz:
como era esta vontade de morrer? vc ficava com mais alguém lá?
Luciana... diz:
eu morava sozinha lá, ai ficava muito mal, só de pensa que eu podia engorda
Luciana... diz:
eu ficava dias sem comer
Luciana... diz:
comendo mal e pouco, e dai num fim de semana
Luciana... diz:
eu tinha que comer
Luciana... diz:
isso me deixava loca
Kelly Cristina diz:
sozinha? e aquela sua tia? porque resolveu ficar sozinha?
Luciana... diz:
ela morava com o marido e com o filho, num outro condomínio
Kelly Cristina diz:
entendi
Luciana... diz:
eu ficava lá na casa dela as vezes
Luciana... diz:
ou íamos pra Balneario Camburiu, nos fins de semana
Luciana... diz:
mais sabe Kelly, quando vc tem esse transtorno, o que vc mais quer é fica sozinho
Luciana... diz:
si vc sai com amigos, sempre tem uma batata frita
Luciana... diz:
um sorvete
Luciana... diz:
um refri
Luciana... diz:
então eu gostava de fica sozinha
Kelly Cristina diz:
quanto tempo vc ficou lá?
Luciana... diz:
seis meses
Luciana... diz:
48
mais até hj, eu gosto de fica sozinha
Luciana... diz:
odeio aniversários
Luciana... diz:
eventos
Luciana... diz:
comilança
Luciana... diz:
coitado do meu namorado
Kelly Cristina diz:
luciana? vc tem redordações da sua infância? como era? qualquer coisa que falar é
importante
Luciana... diz:
olha na verdade o que eu me recordo
Luciana... diz:
que sempre fui muito alegre
Luciana... diz:
e por mais engraçado que seja
Luciana... diz:
sempre fui muito magra, mais muito magra, tanto que as minhas amigas tinham ficado
mocinha menos eu, eu chegava a usar duas calças, pra fica com perna
Luciana... diz:
acredita
Luciana... diz:
e coloca algodão no sutiã pra ter peito heheheh
Luciana... diz:
so um pouco vou no banheiro
Kelly Cristina diz:
Luciana... diz:
pronto
Kelly Cristina diz:
luciana, tem alguem que faz ou fazia dietas em casa?
Luciana... diz:
sim
Luciana... diz:
a mãe
Luciana... diz:
ela ja fez plástica, lipo
Kelly Cristina diz:
quando que percebeu que ela se preocupava com o peso?
Luciana... diz:
a mãe
Luciana... diz:
desde sempre ela si preocupa
Luciana... diz:
agora que ela deu uma parda
Luciana... diz:
parada
Luciana... diz:
mais ela faz academia, e sempre vejo laxante na bolsa dela
Kelly Cristina diz:
ela tem ou já teve sobrepeso?
Luciana... diz:
sobrepeso não, mais na gravidez do meu irmão ela engordo muito
Luciana... diz:
26 kilos
Luciana... diz:
dai ela fez plástica, e tudo
Kelly Cristina diz:
quantos anos vc tinha quando ela engravidou?
Luciana... diz:
49
Tinha 8
Kelly Cristina diz:
vc lembra como foi?
Luciana... diz:
aiiiiiiiiiiiii eu queria muitoooooooo um irmãoooooooo,
Luciana... diz:
e eles me deram de presente
Luciana... diz:
heheheh
Kelly Cristina diz:
eles falaram que era presente?
Luciana... diz:
sim
Kelly Cristina diz:
como foi isto? vc pedia um irmãozinho?
Luciana... diz:
pedia
Luciana... diz:
ai a mãe paro de si cuida e veio o Henrique
Luciana... diz:
um lindo ele é
Kelly Cristina diz:
como é a relação com ele?
Luciana... diz:
olha a gente briga neh, como todo irmão, mais a gente si ama muito, ele cuida de mim, tem
ciume, até nas baladas
Kelly Cristina diz:
ele tem 17 anos hoje ?
Luciana... diz:
eu to levando ele
Luciana... diz:
ele tem 14
Kelly Cristina diz:
vc tem 21?
Luciana... diz:
23
Kelly Cristina diz:
é verdade. sou mal de conta (risos) e quando a gente conversou em 2006 vc tinha 23
né?
Luciana... diz:
Hehehehe, sim
Kelly Cristina diz:
como é a sua relação com a mãe?
Luciana... diz:
ruim
Luciana... diz:
péssima
Luciana... diz:
a mãe tem um gênio muito difícil
Luciana... diz:
e eu não fico quieta
Kelly Cristina diz:
pode contar mais detalhamente?
Luciana... diz:
eu não sei si é muito preocupação ou pegação no pé
Luciana... diz:
por exemplo, ela tem ciúme de mim com o meu pai
Luciana... diz:
porque a gente si da muito bem
Luciana... diz:
somos muito parceiros
Luciana... diz:
50
o pai até hj é de pega no colo
Luciana... diz:
ve si ta coberto
Luciana... diz:
essas coisas
Luciana... diz:
e ela tem ciúme
Luciana... diz:
na verdade a minha mãe é o xerox da mãe dela
Luciana... diz:
e a mãe, ela quer ser muito nova, faze coisa que não da certo pra idade dela
Luciana... diz:
e eu reprovo algumas coisas
Kelly Cristina diz:
como vc percebe o ciúmes dela com seu pai?
Luciana... diz:
é nítido
Luciana... diz:
a gente não pode si da um abraço na frente dela ela já pira sabe
Luciana... diz:
e eu e o pai, somos muito de dizer eu ti amo pai, sabe, e ele as vezes tbém do nada filha o
pai ti ama
Luciana... diz:
a mãe nunca disse que me ama
Kelly Cristina diz:
vc disse que ela é xerox da mãe dela, como assim?
Luciana... diz:
a minha vó era assim
Luciana... diz:
preferia os meus tios ao invés da mãe
Luciana... diz:
e ela prefere meu irmão também
Luciana... diz:
tipo
Luciana... diz:
ela me da tudo o que eu quero
Luciana... diz:
tudo
Luciana... diz:
mais carinho atenção
Luciana... diz:
essas coisas
Luciana... diz:
colo sabe
Luciana... diz:
nunca
Luciana... diz:
até nos meus namoros o pai sempre foi o ombro amigo
Luciana... diz:
que deu conselho
Luciana... diz:
minha ligação é muito forte com o pai
Luciana... diz:
tanto que eu me ajudei na recuperação mais por ele
Luciana... diz:
porque ele tava morrendo sabe, em me ver daquele jeito
Luciana... diz:
sempre no hospital
Kelly Cristina diz:
luciana vc pode contar mais sobre a doença? a evolução? o hospital? o que os pais
diziam?
Luciana... diz:
51
Kelly vc, vai ta on line de tarde, que ja está quase na hora de sair, eu não fecho o MSN
Luciana... diz:
e falamos a tarde
Kelly Cristina diz:
pode ser
Luciana... diz:
quero muito conta minha historia pra vc
Kelly Cristina diz:
olha, eu tb tenho que fazer umas coisas agora
Luciana... diz:
ta
Kelly Cristina diz:
aí eu entro se vc estiver on-line
Luciana... diz:
sim quando for 13:15 to on line
Kelly Cristina diz:
eu não fico on-line porque estou escrevendo a dissertação
Luciana... diz:
então oh 13:15 to aqui
Luciana... diz:
pode entra
Kelly Cristina diz:
combinado
Kelly Cristina diz:
bjs
Luciana... diz:
até depois
Luciana... diz:
bjo
Kelly Cristina diz:
até
Luciana... enviou 29/9/2008 13:09:
ja cheguei tá
Kelly Cristina diz:
oi luciana
Luciana... diz:
oi querida
Kelly Cristina diz:
oi, a gente ia começar sobre a história da doença...
Luciana... diz:
sim, no começo, a gente nem sabe que é doença neh, na verdade é uma dieta, que vai
ficando cada mais restritiva a cada dia que passa, e a cada grama que si perde é uma
conquista que vai te dando força pra luta e continua
Luciana... diz:
quando eu voltei pra casa, eu ainda continuei com a "dieta'
Luciana... diz:
mais não sabia que tava doente,
Luciana... diz:
em 2003 nem falavam disso
Luciana... diz:
então meus pais perceberam que tinha algo errado, porque eu tomava muito laxante, tudo
escondido, mais eles acabavam percebendo
Luciana... diz:
e foi ai que a minha mãe me levo no medico
Luciana... diz:
fiz uma série de exames
Luciana... diz:
meu medico me encaminhou pra uma psicóloga
Luciana... diz:
e ela me encaminhou pra um terapeuta
Luciana... diz:
52
que foi aonde eu fiquei sabendo que tinha um transtorno alimentar
Kelly Cristina diz:
como foi? e seus pais? ficaram sabendo?
Luciana... diz:
sim minha mãe ficou sabendo junto comigo
Luciana... diz:
aii foi um xoque pra todos
Luciana... diz:
até eu fiquei assustada
Luciana... diz:
mais eu queria emagrece
Luciana... diz:
então não me preocupei
Luciana... diz:
achei que era exagero
Kelly Cristina diz:
quem falou pra você e pra sua mãe? vc falou que ficaram sabendo juntas?
Luciana... diz:
sim então, fui no terapeuta, depois da gente conversa muito, ele pediu si podia chama a
minha mãe
Luciana... diz:
porque eu falei pra ele o que eu falei pra vc
Luciana... diz:
das dietas da mãe
Luciana... diz:
da minha vergonha em ter bunda e perna
Luciana... diz:
de chama atenção
Luciana... diz:
isso
Luciana... diz:
e ele conversou com a gente
Luciana... diz:
disse que eu tinha uma doença que eu precisava de ajuda, que eu podia até morre
Luciana... diz:
falo um monte coisas desse tipo, mais eu não fiquei preocupada, disse que não comia
porque não tinha fome
Luciana... diz:
e ele disse que é o que todas dizem
Luciana... diz:
então, começo meu tratamento
Luciana... diz:
que não surgiu efeito por um bom tempo
Luciana... diz:
nossa, me lembra até da uma coisa ruim
Luciana... diz:
porque é muito sofrido
Luciana... diz:
eu lembro que as pessoas falavam de mim
Luciana... diz:
a mãe até me proibiu de sai de casa
Luciana... diz:
porque as pessoas vinham pedi pra ela o que eu tinha
Kelly Cristina diz:
o que as pessoas falavam?
Luciana... diz:
falaram até que eu tinha AIDS
Luciana... diz:
que usa droga
Luciana... diz:
eu me lembro que teve uma época que eu tava verde
Luciana... diz:
53
ao redor da boca
Luciana... diz:
dos olhos
Luciana... diz:
mais eu me achava bunita
Kelly Cristina diz:
quando percebeu que tinha alguma coisa errada? quantos quilos perdeu nesta
época?
Luciana... diz:
bom eu cheguei aos
Luciana... diz:
43
Luciana... diz:
perdi quase 20 kilos
Kelly Cristina diz:
hoje, tem quanto?
Luciana... diz:
eu tenho 1.71
Luciana... diz:
53
Kelly Cristina diz:
e quando começou a melhorar? como foi?
Luciana... diz:
eu começei a melhor em 2006
Luciana... diz:
quando eu conheci meu namorado hj
Luciana... diz:
que é o amor da minha vida
Luciana... diz:
ele me ajudo muito
Luciana... diz:
minha ultima internação foi a um ano
Luciana... diz:
e ele me disse, no hospital
Luciana... diz:
que não queria mais me ver no hospital
Luciana... diz:
que queria uma mulher do lado dele
Luciana... diz:
e que daquele jeito eu não ia consegui
Luciana... diz:
ai ele disse que quem que ia mora com ele em florianópolis, e quem que ele ia leva anda de
moto, nossa, ai eu fiquei com medo de perde ele, de machuca mais e de novo meus pais
Luciana... diz:
e levei tudo mais sério
Kelly Cristina diz:
que bom que ele apareceu na sua vida...
Luciana... diz:
sim que bom
Kelly Cristina diz:
conte-me conta mais da internação? foi mais de uma?
Kelly Cristina diz:
teve
Luciana... diz:
sim ahh kelly, eu não sei exatamente, mais com certeza mais que 10
Kelly Cristina diz:
nossa! muitas
Luciana... diz:
eu cheguei a fica 8 dias sem comer absolutamente nada
Luciana... diz:
no famoso NF
Kelly Cristina diz:
54
em 2006, foi quando a encontrei no MSN
Luciana... diz:
quando eu tive uma ameaça de infarte
Kelly Cristina diz:
vc tinha Orkut falso? participava daquelas comunidades?
Luciana... diz:
tinha Orkut, mais não falso, era meu mesmo
Luciana... diz:
na verdade eu nunca escondi minha doença
Luciana... diz:
nunca menti nada sabe
Luciana... diz:
sempre falei quando me perguntavam
Luciana... diz:
tinha gente que dava risada, que achava que era besteira
Luciana... diz:
que não come porque não quer
Luciana... diz:
mais eu nunca liguei pra ignorância das pessoas
Luciana... diz:
acho que cada uma pensa da forma que acha certo
Kelly Cristina diz:
mas vc participava daquelas comunidades? ana e mia?
Luciana... diz:
sim participava
Kelly Cristina diz:
e por que resolveu participar das comunidades?
Luciana... diz:
no começo quando eu entrei eu queria saber mais de dietas porque uma da força pra outra
Luciana... diz:
mais depois com o tratamento queria mesmo ajuda elas
Luciana... diz:
mais sabe que ana mesmo tem poucas
Luciana... diz:
tem varias que tem bulimia e compulsão
Luciana... diz:
porque ana são poucos
Luciana... diz:
pode ver nos tópicos, elas tem compulsão dia sim dia não
Kelly Cristina diz:
sim, é verdade
Kelly Cristina diz:
mas vc falou que depois do tratamento queria a ajuda delas, ajuda em quê?
Luciana... diz:
dar conselhos, falar das minhas experiências
Kelly Cristina diz:
na verdade, eu queria entender melhor porque foi buscar ajuda na internet, que na
sua casa todos sabiam?
Luciana... diz:
quando eu comecei a fuça nas comunidades eu não queria melhora, eu queria perde mais
peso, eu precisava de apoio nisso entende?
Luciana... diz:
não sei exatamente, mais quando eu conheci o tiago, eu ja tava nessas comunidades, e eu
só comecei a me ajuda no tratamento quando a gente começa a namora
Kelly Cristina diz:
entendi, nas comunidades vc não encontrou ajuda, então?
Luciana... diz:
pra melhora não
Luciana... diz:
fora a maria clara
Luciana... diz:
55
todas as meninas que eu tinha contato queriam emagrecer, teve uma apenas que me deu
dicas, pra emagrece que era uma Luciana tbém, que nunca mais on line
Luciana... diz:
nossa a gente si dava super bem
Luciana... diz:
ela até mando pra mim, uma fita vermelha com strass coisa mais linda
Kelly Cristina diz:
fita?
Luciana... diz:
é, as anas usam uma fita vermelha, e as bulímicas uma roxa
Kelly Cristina diz:
eu não sabia disso. Mas por que esta marca? esta fita?
Luciana... diz:
olha, é uma marca, muitas falam que é pra quando der vontade de fraqueja olha pra fita e
pega forla
Luciana... diz:
força
Kelly Cristina diz:
e a fita? funciona mesmo?
Luciana... diz:
funciona
Luciana... diz:
usei por muito tempo minha
Luciana... diz:
mais meu terapeuta pediu que a jogasse fora
Kelly Cristina diz:
e a terapia? como ajudou? ainda faz?
Luciana... enviou 29/9/2008 15:8:
faço, mais vou mais na psicologa que ta perto de mim, ele mora em Curitiba
Kelly Cristina diz:
? Pensei que ele fosse psicólogo?
Luciana... diz:
não o rodolfo é terapeuta, e a Helena psicóloga
Luciana... diz:
até esses dias ela brigo comigo
Kelly Cristina diz:
qual a função dele?
Luciana... diz:
porque eu falei pra ela que queria comer um pingo de ouro
Luciana... diz:
ai ela foi comigo na padaria e eu comprei um pacote, dali uns 4 dias fui no consultoria dela,
e ela pediu si eu tinha comido, mais eu não tinha aberto ainda porque fiquei com medo
Kelly Cristina diz:
e o rodolfo? terapeuta? qual a função dele?
Luciana... diz:
como assim, Hum eu sei que ele trata meninas com T.A
Luciana... diz:
té ele foi fazer especialização nos EUA
Kelly Cristina diz:
ele é psiquiatra?
Luciana... diz:
não, acho não
Kelly Cristina diz:
é que não estou entendendo por que 2?
Kelly Cristina diz:
vc chegou a passar por psiquiatra?
Luciana... diz:
não, porque o DR rodolfo mora em curitiba, e foi a Helena que me encaminhou pra ele
Luciana... diz:
tinha vezes que eu precisava fala sabe
Luciana... diz:
chorava muito
56
Luciana... diz:
então eu ia fala com ela
Kelly Cristina diz:
então, houve uma época que a Helena encaminhou vc para o Rodolfo, é isto? Fez o
tratamento com ele e depois foi tratada pela Helena?
Luciana... diz:
sim,
Luciana... diz:
eu converso com o Rodolfo tbém,
Luciana... diz:
quando a mãe vai a Curitiba,
Kelly Cristina diz:
e qual é o tratamento que ele propõe?
Luciana... diz:
hum não entendi
Kelly Cristina diz:
porque tem a Helena e o rodolfo não é?
Luciana... diz:
Kelly Cristina diz:
o que vc trata com ele? que é diferente da Helena?
Luciana... diz:
na verdade não é diferente, o que acontece que eu tenho medo muitas vezes de comer
sabe,
Luciana... diz:
e eu gosto de fala com rodolfo,
Luciana... diz:
parece meio meu pai
Luciana... diz:
hehehehe
Luciana... diz:
é tão ruim parece que a gente fica com isso, a vida inteira, ontem por exemplo eu comi
peixe na minha sogra aiii hj tava mau humorada, com peso na consciência
Luciana... diz:
hj ja diminuiu um poco, mais meu pensamento gira em torno disso muitas horas do dia
Kelly Cristina diz:
entendi... ainda bem que vc faz acompanhamento psicológico. conseguiu entender
o porquê da sua preocupação com a comida?
Luciana... diz:
olha eu falo pra Helena, parece automático, eu coloca na boca parece que as calças
apertam, que minha bunda cresce
Luciana... diz:
eu sonho que to bem gorda
Luciana... diz:
aiiii é horrível
Kelly Cristina diz:
luciana, tem alguém com problema de peso em casa? fora a sua mãe? mais alguém?
Luciana... diz:
não
Kelly Cristina diz:
fale-me fala mais da relação com seu pai?
Luciana... diz:
Ahhhhhhh o meu pai
Luciana... diz:
ele é um amor
Luciana... diz:
a gente briga as vezes, porque ele ainda acha que tenho 10 anos, mais fora isso
Luciana... diz:
ele é praticamente uma dona de casa
Luciana... diz:
da carinho pra mim e meu irmão
Luciana... diz:
57
é um amor com a minha mãe
Kelly Cristina diz:
como assim? dona de casa?
Luciana... diz:
ja tem 51 anos então ele é meio ranzinza as vezes
Luciana... diz:
porque ele faz tudo que vc imagina
Luciana... diz:
só não lava roupa,
Luciana... diz:
o que ele tiver que faze ele faz
Luciana... diz:
na verdade, ele ajuda muito minha mãe sabe
Luciana... diz:
não deixa ela faze nada sozinha
Luciana... diz:
parceiro mesmo
Kelly Cristina diz:
que bom...
Luciana... diz:
ele só não gosta de coisa de álcool
Luciana... diz:
assim
Luciana... diz:
ele não bebe não fuma
Luciana... diz:
gosta de assistir jornal, é superrrrrrrrrr inteligente e bem informado
Luciana... diz:
é presidente da APP na escola do meu irmão
Luciana... diz:
lá elas não fazem nada sem pedi pra ele
Luciana... diz:
minha mãe é contadora, trabalha no maior escritório de contabilidade da região, é chefe do
departamento fiscal
Luciana... diz:
é bem inteligente também
Luciana... diz:
responsável
Kelly Cristina diz:
e seu pai? qual a profissão dele?
Luciana... diz:
meu pai é autônomo, por incrível que parece ele tem uma distribuidora de coisas boas,
chocolate bala, essas coisas
Luciana... diz:
coisa que engorda
Luciana... diz:
e na minha casa sempre tem isso
Kelly Cristina diz:
interessante, então em casa tem bastantes coisas gostosas
Luciana... diz:
sim muitas
Kelly Cristina diz:
luciana, há mais alguma coisa que vc acha importante falar? pra pesquisa?
Luciana... diz:
assim, nõ sei si eu te ajudei em alguma coisa
Luciana... diz:
parece que por MSN é estranho neh?
Luciana... diz:
acho que não, em resumo era isso
Luciana... diz:
mais si vc quiser me pergunta, outra dia ou hj mesmo mais alguma coisa
Luciana... diz:
58
estou sempre aqui
Kelly Cristina diz:
é, pelo MSN é muito distante...
Luciana... diz:
sim
Luciana... diz:
eu to escrevendo tudo errado, quero escrever depressa
Luciana... diz:
hehehe
Kelly Cristina diz:
está com pressa?
Luciana... diz:
não
Luciana... diz:
é porque tem bastante coisa
Luciana... diz:
hehehehe
Luciana... diz:
nossa da pra escreve um livro
Kelly Cristina diz:
como está aí no trabalho hoje?
Kelly Cristina diz:
vc faz direito não é? já terminou a faculdade?
Luciana... diz:
ta calmo hj aqui, a chefe não tá
Luciana... diz:
faço, termino ano que vem, na verdade estou devendo matéria no começo da facul eu
faltava bastante ,
Luciana... diz:
em função da doença
Luciana... diz:
e acabei perdendo umas matérias
Kelly Cristina diz:
espere um pouco...
Luciana... diz:
ta
Kelly Cristina diz:
luciana
Luciana... diz:
oi
Luciana... diz:
Kelly ja venho, vou comer uma laranja que a mãe e o tiago ligaram (risos) pra ver se eu
comi
Kelly Cristina diz:
faltou uma coisa
Kelly Cristina diz:
conte-me conta um pouco da relação dos seus pais? dos dois? do casal
Luciana... diz:
ixiiiiiiiiiiiiii é feia, meu pai faz tudo pela minha mãe, mais ela não, na verdade minha mãe diz
que eles vivem de aparência, que eles não são um casal
Luciana... diz:
são amigos
Kelly Cristina diz:
e vc? o que acha?
Luciana... diz:
eu acho que ela fala a verdade, isso que ela mostra, mais eu queria que fosse diferente
claro
Luciana... diz:
mais o pai aceita sabe
Luciana... diz:
ele gosta muito da mãe
Luciana... diz:
59
na frente de pessoas que ela não conhece parece o casal mais feliz basta um pouco de
convivência pra ver que de feliz não tem nada
Kelly Cristina diz:
vc acha que eles não são um casal?
Luciana... diz:
acho que não
Kelly Cristina diz:
é uma pena...
Luciana... diz:
sim verdae
Luciana... diz:
Verdade
É possível, ao ler a conversa de Luciana, perceber alguns dos fatores
que são identificados pela maioria dos autores que escrevem sobre a anorexia.
Ressalto que, em outro momento da dissertação, farei uma descrição precisa
da evolução do quadro, mas, por enquanto, acredito que a conversa de
Luciana tem pontos que merecem destaque.
A garota associa o início do transtorno com um evento traumático, como
parece ser um padrão nos casos de anorexia, o que é confirmado por Urribarri
(1999, p.25), que afirma que no caso das anoréxicas “tenho observado a
importância das vivências prematuras de perda, tanto quanto perdas
observáveis e objetivas (...) como as mais sutis ou ocultas modificações do
ambiente”. Para Luciana, o evento traumático foi a separação do primeiro
namorado. Os pais o descritos de maneira idealizada, como superpais, que
dão tudo o que ela poderia precisar. A relação conflituosa com a mãe é nítida e
também aparece com clareza o aspecto transgeracional do transtorno, quando
ela afirma que a e é xerox da avó, o que confirma as palavras de Urribarri
(1999, p.25) que assegura: “pude rastrear as dificuldades ao longo de três
gerações (tanto do pai como da mãe) que confluem para gestar a anorexia”.
O pai, não obstante descrito como super-inteligente, aparece como um
cidadão de segunda classe na casa, que faz tudo para a mãe, menos lavar.
Esta condição de mãe poderosa e pai pouco potente também é típica da
anorexia. O aspecto familiar é nítido, pois a e é preocupada com peso, usa
laxantes, o pai conduz uma firma que trabalha com alimentos e as refeições
têm que ser sempre feitas com todos juntos. Este tipo de família, na qual
parece haver uma confusão entre quem é quem, também é padrão na
anorexia.
Outro detalhe: o sentimento de poder em que o controle sobre a fome
aparece com clareza, quando Luciana diz que cada quilo perdido lhe dava
60
forças para continuar. Por fim, uma das características da anorexia é que ela
costuma ser precedida por um isolamento social, normalmente de um ano,
antes da eclosão da doença. Luciana relata que, ao mudar de cidade, começou
a morar sozinha e frequentar a academia e que ficava muito sozinha. A
permanência do isolamento é outro fator que aparece quando ela fala que
nenhuma anoréxica gosta de contato social, pois sempre tem algum tipo de
comida envolvido.
Um último detalhe, a mãe é descrita como alguém que dá tudo, mas que
não algo essencial, colo, afeto. Esta parte ficou delegada ao pai, figura
desvalorizada nos papéis familiares. O pai submisso também é descrito com
frequência nos textos sobre anorexia como, por exemplo, quando Urribarri
(1999, p.72) comenta que “em lugar de constituir um elemento de
ajuste/diferenciação no interior das funções parentais, o pai desempenha um
papel paralelo/antanico ao materno”, ou seja, se a citação for transportada
para o caso de Luciana, é fácil perceber que o pai não exerceu a atividade de
diferenciador, daquele que poderia ter imposto uma nova lei que não a da mãe
como regente do psiquismo da filha.
A tenacidade do transtorno também pode ser vista, uma vez que a
garota relata dez internações. A condução do tratamento parece igualmente
confusa, pois Luciana o sabe nomear qual é a função do Dr. Rodolfo e da
Helena. Luciana, ao dizer que estava com um aspecto esverdeado, lembra as
antigas descrições de clorose, a doença verde, que médicos vitorianos
diagnosticavam em moças com severa deficiência de ferro. A internet, como
formadora de grupos entre as anoréxicas e bumicas, também aparece sob a
forma da distribuição da fita, vermelha para anoréxicas e roxa para bulímicas.
Assim como nas cartas da Ana e da Mia, estamos diante dos ideais e
dos padrões anônimos, pois quem inventou esta tradição? E mais
impressionante é o comportamento imitativo das jovens, que passam a usar a
tal fita vermelha ou roxa. Enfim, Luciana, um caso que ilustra todas as
descrições sobre a anorexia nervosa, sua evolução e manutenção. Sobre o
comportamento imitativo, utilizarei em outra parte da dissertação as idéias de
Hilde Bruch (1978) para embasar teoricamente minha afirmação sobre o
comportamento imitativo das jovens anoréxicas.
61
C) Um Exemplo de Conversa Virtual – Bulimia
Bianka
7
se apresenta como bulímica, com a possibilidade de ter
desenvolvido anorexia recentemente. Procederei da mesma forma que
fiz com Luciana, ou seja, primeiro irei demonstrar a conversa na íntegra,
para logo em seguida comentar os aspectos mais marcantes do diálogo.
Bianka diz:
Oi Kelly!
Bianka diz:
Desculpe sempre a demora em responder, mas quase não entro no MSN, fora que os
horarios sao diferentes
Kelly Cristina diz:
Olá, já conversamos pelo MSN?
Bianka diz:
Ainda nao, sou a Bianka (Claviceps Purpurea), rs.
Bianka diz:
Amiga da Eliana.
Kelly Cristina diz:
Lembrei!! Estou mesmo querendo falar contigo! Como está?
Bianka diz:
Ah,vai indo,como sempre Kelly...(desculpe,teclado sem acentos)
Bianka diz:
Mas pode perguntar, no que eu puder ajudar...
Kelly Cristina diz:
Vc tem algum tipo de transtorno alimentar?
Bianka diz:
Tenho sim...tive Bulimia por 7 anos e Anorexia nervosa a 1 ano
Kelly Cristina diz:
Tem anorexia há um 1 ano?
Bianka diz:
Foi diagnosticado ha 1 ano a Anorexia, mas fiquei em duvida...
Bianka diz:
Pois tive Bulimia por 7, mas realmente mudei bastante mesmo.
Kelly Cristina diz:
Qual a sua idade? Consegue descrever como tudo começou?
Bianka diz:
Tenho 25 anos,consigo sim, posso descrever agora?
Kelly Cristina diz:
Pode, estou aqui
Bianka diz:
Sempre fui "gorda"(odeio essa palavra) na adolescencia, cheguei a pesar 80 kg. Bom,
nao sei se tem a ver, mas tive diagnostico de depressao e TOC na infancia,
Bianka diz:
alias tenho ate hoje
Bianka diz:
Vim pro Japao aos 16 anos e com 17 comia normal, nem me importava muito com o
peso, mas 1 dia me senti muito angustiada e como, como sempre e quando vi estava
no banheiro vomitando.
Bianka diz:
Nem sabia o que era Bulimia e a principio nao foi com intencao estetica alguma,
parecia que eu vomitava ALGO mais...
7
Neste caso não é necessário substituir o nome da entrevistada, pois se trata de um apelido ou
“nickname”, que também pode ser escrito apenas “nick” no mundo virtual. Uma tradução possível para
nickname é pseudônimo, nome alternativo, alcunha e muitas outras, mas com o mesmo sentido.
62
Bianka diz:
Depois disso virou rotina, comia muito e chegava a vomitar 20 vezes por dia, ate
agua, mas alternava dias em que somente comia 1 banana e nada mais.
Bianka diz:
Tomava muitooooo laxante,10 vezes, cheguei ate a defecar (desculpe sei que e
nojento) dormindo. Em 6 meses eu estava com 60 kg e uma depressao brava.
Bianka diz:
Assim fiquei, ate que cheguei aos 57kg e parei nesse peso. Tenho 1,63 de altura.
Mantive esse peso por 6 anos,+ ou -,mas era dificil, meu organismo estava uma
M***,meu metabolismo tambem e isso me deixava mais e mais obcecada com o peso
e passei a exagerar, pois queria emagrecer mais!!!
Bianka diz:
O pior e que nao conseguia e comecei a tomar laxantes o dia inteiro, logico que eu ja
tinha ulcera gastroduodenal ha muito tempo, mesmo assim, com advertencias eu
seguia tomando e treinando na academia de 2 a 3 horas por dia, cheguei a desmaiar
diversas vezes.
Bianka diz:
Fiquei nisso por 6 anos, sabia que havia perdido mais de 20kg, mas me sentia um
poco de gordura, minha obsessao era essa, tinha pesadelos em que eu comia muito e
eu acordava achando que TINHA que vomitar, um horror!
Bianka diz:
Eu quando comia, sempre segurava minha barriga, como se medisse o tamanho, mas
mesmo assim eu sempre depois ia vomitar, me sentia um lixo por comer qualquer
coisa. Olho calorias de tudo, perguntava obsessivamente para meu namorado tudo o
que eu havia comido o dia inteiro. Em restaurantes eu sempre vomitava, mesmo que
comesse "pouco" para mim isso era muito.
Bianka diz:
Usava uma cinta de borracha (nem sei se e normal), para apertar minha cintura, eu
somente tirava ela para tomar banho...eu dormia, fazia tudo com ela muitooo apertada
e por causa disso tenho 1 desvio de costelas, pois apertei muito.
Bianka diz:
Alias, uso a cinta ate hoje, nao vivo sem ela...so para sair e tomar banho que nao uso,
parece que assim nao sinto toda a minha gordura pulando da barriga e ela tambem
me lembra que nao posso comer, pois se como a barriga aperta dentro da cinta...
Bianka diz:
Ano passado, em marco, me descuidei, comia e ja nao vomitava...logico que eu nao
estava satisfeita com meu peso, mas preferia manter, sempre vomitando+laxantes e
academia. Mas nao sei pq, estanquei e nao conseguia ficar sem comer, isso acabava
comigo, eu passei a evitar de me pesar, mas um dia nao resisti e vi que estava com
65kg!!!
Bianka diz:
Surtei Kelly...completamente! Decidi que teria que mudar, que eu estava imensa, a
partir desse dia eu passei a ficar dias so com 3 torradas bem pequenas e 1 xicara de
cafe com leite e adocante. As vezes, se eu comia algo mais, tipo um danone, eu
vomitava, mas sempre tomava laxantes.
Bianka diz:
Em 5 meses fui para 45kg...
Bianka diz:
Perdi muita massa muscular e todos falam que pareco uma doente, mas me vejo
OBESA, imensa mesmo, e nao digo isso no sentido de querer receber "elogios", digo
pq vejo e sinto...fiquei mal esse ano, em agosto, pois nao sei pq os laxantes nao
faziam efeito. Antes eu tomava e ia ao banheiro, depois nem ia mais.
Kelly Cristina diz:
Está com 45 quilos?
Bianka diz:
O medico disse que eu nao ia, pq eu nao comia, logo nao havia o que "soltar". Mas eu
nao aceitava e 1 dia eu tomei laxantes, estava indicando 15 gotas para adultos, mas
eu tomei 100 gotas mais 10 comprimidos de outro que poderia ser tomado no maximo
2.
Bianka diz:
Sim, estou com 45kg...vc acha que estou muito gorda?
Kelly Cristina diz:
63
Não, não, deve estar abaixo do peso...
Bianka diz:
Nesse dia passei muito mal, com taquicardia e desmaiei e fui parar no Hospital, fiquei
internada 15 dias, por deficiencia de potassio, anemia, etc.
Bianka diz:
Fiquei 15 no total, mas no segundo dia eu fugi, pois queriam me colocar soro e eu
nao aceitava, pois iria me engordar!!! Mas voltei obrigada pelo meu namorado
Bianka diz:
Sai do hospital com 48 e queria morrer, para mim era muito. Mas voltei aos 45kg de
novo, mas esta dificil perder mais
Kelly Cristina diz:
Vc falou que foi para o Japão com 16 ou 17 anos. Morava aqui no Brasil? E seus pais?
Bianka diz:
Estou com hernia e osteoporose...o medico disse que perdi massa muscular demais
Bianka diz:
Eu sou neta de japones, do lado materno. Meu pai eu nao conheci, pois se separaram
quando eu era bebe e fui morar no RJ com minha mae e familia. Meu pai continuou
em SP. Vim ao Japao com minha mae, em 98, pois ela veio trabalhar.
Bianka diz:
Minha mae ficou aqui ate 2002...minha Bulimia iniciou em 99, mas ela so descobriu,
alias eu contei em 2001 e ela nunca entendeu ou aceitou, somente criticou, mas
entendo que e dificil para ela.
Bianka diz:
Ela foi embora pq a doenca dela piorou e eu quis ficar, apesar de nao gostar do
Japao, nao me dou muito bem com minha mae, ela e muito possessiva. Alem disso,
moro com meu namorado desde 99.
Kelly Cristina diz:
Ela veio embora para o Brasil?
Kelly Cristina diz:
O que ela tem?
Kelly Cristina diz:
Como é a relação com sua mãe?
Bianka diz:
Sim...ela tem Lupus Eritematoso Sistemico, mas desde que eu tinha 5 anos de idade
Bianka diz:
Minha relacao nao e muito boa, alias nunca foi, desde que eu era pequena.
Kelly Cristina diz:
Por que ela veio embora?
Kelly Cristina diz:
Fale mais da relação com ela...
Bianka diz:
Devido ao Lupus e o descuido dela, td o organismo dela estava muito maltratado. Em
95 ela veio ao Japao sozinha, eu fiquei no Brasil com minha tia, por 2 anos. Nesse
periodo minha mae teve 3 infartos aqui.
Bianka diz:
Quando viemos juntas ela ja estava pior, em 2001 teve que operar e implantar 3
pontes de safena no coracao e 1 na perna, iria ficar internada 15 dias, mas por causa
do Lupus ficou 101.
Bianka diz:
Ela nao podia mais trabalhar, mas como eu ja disse, eu morava com meu namorado
desde 99...e com ela, nao pq eu quisesse, mas ela fazia chantagem e ameacava se
suicidar, sempre foi assim, se eu a deixasse e eu sempre ficava
Bianka diz:
Ela ama trabalhar e nesse 1 ano que ela ficou em casa sozinha ela ficou muito
deprimida e juntando a minha depressao, eu nao conseguia aguenta-la, mas ela me
perseguia, revistava minha carteira, roupas, armarios e eu disse para ela que ou ela
parava com aquilo ou eu me mudaria de apto. Ela decidiu ir para o Brasil, mas sempre
alardeando que eu havia abandonado ela.
Kelly Cristina diz:
Por que ela mexia nas suas coisas?
Bianka diz:
64
Segundo ela, era pq ela queria ver o que eu havia comprado de novo, o que tinha em
minha carteira (na de meu namorado tambem). Mas segundo minha vo (mae dela e
minha mae que amo), ela sempre foi assim, desconhece a palavra "privacidade".
Bianka diz:
Ela briga com todos em minha familia, sempre foi assim e quando eu era pequena,
moravamos com minha vo, pois minha mae nao confiava em babas e a casa de minha
vo era grande.
Bianka diz:
Minha mae trabalhava e ganhava muito bem, posso dizer que tive de tudo, nao era
rica, mas acho que afortunada, mas quase nao a encontrava e quando sim, ela
sempre me batia bastante, pois dizia que eu era respondona.
Kelly Cristina diz:
Batia em você? Como se sentia? Vc tem irmãos?
Bianka diz:
Sempre, desde pequena eu era antissocial, sabe. Não, eu nao tenho, sou filha única
(segundo ela sou mimada e ingrata, bom pode ate ser). Quando ela me batia eu sentia
raiva, dor, tristeza, medo, pq ela se alterava e nao sabia o limite, batia ate chegar a
arfar.
Bianka diz:
Mas o mais comico e que ela me batia e se algum tio ou tia fosse castigar e nao bater
em algum primo meu, ela interferia e nao deixava de maneira alguma!
Kelly Cristina diz:
Acho que não é cômico, vc sofria muito com isso...
Bianka diz:
Mas como disse, minha mae nao tinha controle, batia bastante, desde que eu tinha
uns 3 anos, muitas vezes meus tios entravam no meio, mas ela ameacava me bater
mais se alguem interferisse
Bianka diz:
Aos 6 anos comecei a me "punir", me queimava com vela, passava agulha com linha,
como se costurasse a minha mao, ate sangrar.
Kelly Cristina diz:
Ainda faz isso?
Bianka diz:
Como se eu realmente fosse ruim. Mas apesar de td, criou-se uma co-dependencia de
minha parte naquela epoca tao grande que meu maior medo era que ela me deixasse.
Kelly Cristina diz:
Co-dependência em apanhar?
Bianka diz:
Nao, acho que fiz ate os 12 anos, mas ninguem nunca soube, para minha idade eu era
bem "madura" e nao deixava que percebessem. E tambem estudava em 2 escolas de
manha e outra a tarde.
Bianka diz:
Nao...em querer sempre ter minha mae ao lado, no medo doentio de ela me deixar.
Kelly Cristina diz:
Não chegou a conhecer seu pai?
Bianka diz:
Pq sempre que ela me batia, ela dizia que eu deveria arrumar minhas malas, pois me
mandaria p/ morar com meu pai.
Bianka diz:
Uma vez ele foi a trabalho no RJ e o encontrei, eu tinha 6 anos, mas durou 5 minutos,
eu nao queria muito e tinha medo de magoar minha mae
Kelly Cristina diz:
Esse encontro foi combinado por sua mãe? Ela quem levou vc?
Bianka diz:
Pq ela sempre deixou claro que ele nao fazia o menor esforco em me conhecer. Nesse
dia ganhei 1 maquina fotografica e logico que eu adorei.Tirei fotos etc., me sentia
"adulta", rs, mas no terceiro dia, quando voltei da escola e fui procurar, ela havia
sumido. Encontrei ela no lixo e deixei la. Depois disso, todos os meses chegava
presente de meu pai, mas eu nunca abria, achava que magoaria minha mae.
Kelly Cristina diz:
65
Acho que ele gostaria de conhecê-la sim! Parece-me que ela é quem tinha mágoa dele e de
alguma forma isso era passado para vc....
Bianka diz:
Meu pai pediu e ela aceitou, mas ela ficou com muito medo que ele quisesse me levar
que foi junto com 1 amigo delegado que ela tinha.
Bianka diz:
Tambem penso isso, que ela de certa maneira "descontava" um pouco as frustrações.
Kelly Cristina diz:
É acho também! Ela fala da relação com ele? Como foi?
Bianka diz:
Mas passei a entender, nao aceitar a maneira dela, sempre foi assim, ela nunca
pensou antes de falar ou agir. Nao sou santa Kelly, respondia e respondo ainda, rs,
mas nunca xinguei ou levantei 1 dedo para me defender e tampouco nunca ofendi.
Mas quando eu falava algo que eu nao gostava e queria que ela mudasse, ela me
culpava POR TUDO na vida dela, por nao haver vivido mais, por ser doente, por
fumar, etc., etc,
Bianka diz:
Ate meus 22 anos nunca falou, mas depois um dia falou um pouco, mas eu nunca vi
uma foto dele.
Bianka diz:
Porem minha vo sim, nossa, ela que me cuidou. Com ela nao existe segredo, sempre
conversamos muito, ela era meu abrigo, conforto.
Kelly Cristina diz:
O que ela falou dele?
Bianka diz:
Ela so falou da familia, que sao portugueses com franceses (meu avo) e espanhois
com italiano (avo), fora isso ela disse que nao deu certo pq meu pai nao era
empreendedor como ela, que tudo o que tinham para ele estava bem e ela sim, queria
mais
Bianka diz:
Quando te falei sobre o TOC, comecou quando eu tinha 7 anos. Primeiro veio o medo
obsessivo de perder minha mae, dela morrer... ela chegava em casa do trabalho,
20hrs, se passasse 5 minutos disso, eu tinha certeza que ela havia morrido e chorava
desesperada no banheiro, com uma toalha enfiada na boca para nao fazer barulho.
Bianka diz:
A partir daí comecei com rituais, antes de dormir ficava 1 hora urinando no banheiro,
verificava o gas 10 vezes cada botao, fechadura 15 vezes, etc
Kelly Cristina diz:
Pelo que parece ela sempre foi doente, então vc tinha medo de perde-la...
Bianka diz:
Acho que comecou na epoca em que escutei dizer que Lupus matava igual ao cancer
e isso juntou com as ameacas de me mandar embora para morar com meu pai.
Bianka diz:
Sabe Kelly,de todos os meus rituais, o que mais me atormentava era ficar contando
cada silaba, era o dia inteiro, se vc dissesse "ele morreu de caxumba", na mesma
hora quase eu ja respondia "18 letras", isso acabava comigo na escola.\
Kelly Cristina diz:
E agora? Como estão os rituais? Faz algum tipo de tratamento?
Bianka diz:
Nao, estou sem tratamento para nada, o medico nao da importancia a Anorexia,
apesar de haver diagnosticado, ele disse que tenho muitos problemas e nao sabia
qual comecar a tratar e as misturas que ele fazia eram do tipo "sossega leao", eu nao
aguentava
Bianka diz:
Sou Bipolar tambem e tenho periodos de Mania, mas que tende mais a agressividade
Kelly Cristina diz:
Vc trabalha? Não faz análise?
Bianka diz:
Nao consigo trabalhar desde abril, alias nem saio de casa, so fim de semana, junto
sempre com meu namorado, tenho medo de sair e nao gosto, as vezes odeio tudo. Ah
,saio as noites, td dia, mas e pq tenho que malhar.
Bianka diz:
66
Nao faco analise, aqui somente tem psiquiatra, o outro que seria como psicologo aqui
se chama "aconselhamento", mas foi um horror, ele nao falava, nao perguntava e eu
nao sabia o que fazer!!!
Kelly Cristina diz:
Que ruim... seria tão bom que pudesse fazer análise! Quantas vezes foi nesse profissional
que falou?
Bianka diz:
Tenho periodos de depressao grave tambem, mas nunca fico prostrada na cama
direto, pois tenho meus animais, que amo.
Bianka diz:
10 vezes...no psiquiatra, afff, nem sei, muitas vezes!!! Mas ele nao sabia o que me
receitar...
Bianka diz:
Ele misturava tantos remedios e eu trabalhava, somente em Lexotan eu tomava 30mg
diarios!!! Fora uns 8 mais.
Bianka diz:
Eu nem conseguia abrir os olhos e sempre parava...
Kelly Cristina diz:
Em que trabalhava?
Bianka diz:
Agora nem tenho mais forcas para buscar médicos.
Bianka diz:
Trabalhei em tantos lugares!!! Como hostess em hotel, restaurante, trabalhei na Sony,
Toshiba...mas eu enjoo, o maximo que aguento sao 6 meses.
Bianka diz:
Ultimamente comecei a piorar e faltava ate 2 vezes por semana.
Kelly Cristina diz:
Vc consegue associar seus problemas a quê?
Bianka diz:
Ate que parei...quem me da apoio e meu namorado, que por infeliz coincidencia tem
uma irma com todos os problemas que eu.
Bianka diz:
Vc se refere associar no motivo desencadeador ou agora, de todos eles qual e o pior?
Kelly Cristina diz:
Uma irmã com todos os problemas parecidos com os seus, mas a história de vida é
diferente não?
Bianka diz:
*Pior.
Kelly Cristina diz:
Vc associa o seu histórico de bulimia, anorexia, com a sua história de vida?
Bianka diz:
E mais ou menos...os pais tambem tiveram problemas na relacao. Ela tem TA desde
os 15 anos, hoje ela tem 30. Ela tem TOC, superdepressiva, e boderline, mas a
diferenca e que ela tomava muito tranquilizante com bebida.
Bianka diz:
Pensando racionalmente, tirando o "estetico" que seria meu medo mais que
excessivo de engordar, vejo meu T.A. de origem com minha vida como se eu me
sentisse "pesada".
Kelly Cristina diz:
Sim, pesada mesmo a sua história e sua mãe como está?
Bianka diz:
Sempre digo que eu e minha mae nos damos bem, desde que distantes. Ela de saude
nao esta muito bem, mas ligo a cada 2 dias, nao pq eu sinta saudades, gosto muito
dela, mas me distanciei, mas sim pq ela precisa de mim.
Kelly Cristina diz:
Aqui no Brasil ela mora com alguém? Trabalha?
Bianka diz:
Mas o que mais me marcou foi quando minha mae comecou a namorar, eu tinha 11
anos, minha vo foi conversar com ela, etc. e elas sempre brigaram, sabe Kelly, morei
10 anos com minha avo, uma casa linda, que eu amava, pq estava com a minha avo,
nesse dia da briga eu havia saido para almocar fora e quando voltei minha mala
67
estava pronta, minha mae ANUNCIOU que no dia seguinte nos mudariamos para
nossa casa
Kelly Cristina diz:
O que marcou quando ela começou a namorar?
Bianka diz:
Ela havia construido uma casa tambem grande e linda, mas que era so para ficar la,
mas de uma hora para outra minha vida mudou toda!!! O mundo que eu havia
construido de protecao desmoronou, eu implorei que ela me deixasse com minha vo,
mas ela nao deixou. O que marcou foi que por causa disso, de um dia para outro fui
morar com minha mae e o namorado dela em uma casa estranha e sem minha vo
Kelly Cristina diz:
Entendi, foi uma mudança muito grande, era protegida por sua ae se sentiu insegura
por ela arrumar um namorado
Bianka diz:
Ela nao pode trabalhar. Ela mora em 1 apto que ela tem e uma moca mora junto e a
acompanha, mas ela esta bem fisicamente. Ela tem 2 aptos e essa casa, tudo alugado
e a aposentadoria, ela vive disso
Bianka diz:
Acho que nessa epoca eu nem me importava com o namorado, mas sim por estar
sem minha vo comigo, eu dormia junto com ela, ela me pegava na escola, etc.
Kelly Cristina diz:
A família dela está no Brasil?
Kelly Cristina diz:
Vc tem família aí no Japão?
Bianka diz:
Tenho 1 tia, mas moramos longe. Sim, toda minha familia esta la, minha vo, tios, tias,
primos, primas, alias com eles sempre foi td otimo, pois morei um pouco com cada
um e sempre estive com meus primos
Bianka diz:
*1 tio
Bianka diz:
Financeiramente tive de tudo, ela mesma sempre fala, mas isso nao e o suficiente
Kelly Cristina diz:
E o seu pai? Agora que está adulta não vai procura-lo?
Kelly Cristina diz:
É, o financeiro sempre fica em segundo plano, o que importa mesmo, como vc falou é o
carinho, atenção, compreensão....
Bianka diz:
Penso que sim, mas so quando eu voltar pro Brasil, acho que nao voltei pq nao quero
encarar a todos, embora sejam otimos, ninguem entende e nem sequer sabe direito o
que tenho. Fora isso, gosto de independencia em certa parte, nao consigo morar com
ninguem, so com meu namorado, pq sao muitos anos
Bianka diz:
Meu namorado se preocupa bastante com meu T.A. Kelly o que vc acha que
realmente e Anorexia?
Bianka diz:
Existe Bulimia e Anorexia juntos?
Kelly Cristina diz:
Talvez vc precisasse de uma boa avaliação...
Kelly Cristina diz:
Vc ainda vomita?
Bianka diz:
Meu primeiro diagnostico foi Bulimia Purgativa...dessa vez foi Anorexia nervosa
Purgativa/Restritiva
Bianka diz:
Sim
Kelly Cristina diz:
Toma algum redutor de apetite?
Bianka diz:
Nao
Bianka diz:
Estava pensando em tomar, pois necessito emagrecer
68
Bianka diz:
Mas aqui nao vendem
Kelly Cristina diz:
Mas vc já está bem emagrecida...
Bianka diz:
Ah Kelly, nao vejo nada disso, me sinto imensa
Kelly Cristina diz:
Não é o corpo, é a mente que parece imensa...
Bianka diz:
So tomo cuidado com a ulcera, pois o medico avisou que pode perfurar
Bianka diz:
Ah,e fogo
Kelly Cristina diz:
Como é a relação com o namorado?
Bianka diz:
E muito boa, tranquilo, ja tive muitos ataques agressivos, ele sempre tenta entender e
ajudar ao maximo, ja brigamos muito sim, mas sempre foi bom, o unico problema
agora e que ele me obriga a jantar junto com ele e ai eu brigo, tenho um genio dificil.
Mas como a lata de atum,de 190 calorias e as vezes consigo cuspir metade
Bianka diz:
Durante o dia e mais facil, pois fico sozinha...ele quer que eu va ao medico, mas nao
quero, pois com certeza me dara vitaminas e vou engordar
Kelly Cristina diz:
O que ele faz?
Kelly Cristina diz:
Que bom que ele a ajuda!
Bianka diz:
Ele sim trabalha como gerente de producao em uma montadora de carros importados
Kelly Cristina diz:
Ele se preocupa com vc, mas me parece, vc contando... que pra vc não é fácil aceitar
ajuda...
Kelly Cristina diz:
Ele é japonês
Bianka diz:
Acho que cansei de tentar tantas vezes com o psiq e nunca adiantar que desisti
Bianka diz:
Naoooo, ai credo!!! rs...ai me matava de vez. Ele e metade espanhol com peruano
Kelly Cristina diz:
Por que se mataria??
Bianka diz:
Ah, sem preconceito, ainda mais que meu avo materno era japa, mas nao gosto, sao
muito machistas e frios, fora que nao fazem meu tipo
Kelly Cristina diz:
Bianka, muito obrigada por colaborar com minha pesquisa, penso que podemos conversar
mais vezes pelo MSN. O que acha?
Bianka diz:
Acho que seria otimo sim!!! Vc esta fazendo a pesquisa somente em relacao ao T.A.
com a historia pessoal ou outras coisas?
Kelly Cristina diz:
Não, é somente sobre transtorno alimentar e relação familiar.
Bianka diz:
Kelly, vou dormir, sao quase 5 da manha e apesar de nao ter sono, acho que devo
ne? rs
Kelly Cristina diz:
Vc tem insônia?
Bianka diz:
Muito legal...no que der para ajudar, se quiser perguntar mais pode falar, so que
quase nao entro no MSN...
Bianka diz:
Nossa, se tenho...durmo de 3 a 4 hrs por noite so
Bianka diz:
Maximo, maximo 5 hrs
69
Kelly Cristina diz:
Quero poder conversar mais vezes sim! Mando um scrapt pra vc e então combinamos....
Bianka diz:
Ok entao!!! Obrigada pela atencao entao.
Bianka diz:
Quero sim, obrigada!
Kelly Cristina diz:
Obrigada vc pela disposição, está me ajudando muito com a pesquisa
Bianka diz:
Beijo Kelly e bom feriado pra vc!!!
Kelly Cristina diz:
Bjs, boa noite!
Bianka diz:
De nada... acho muito bom!
Bianka diz:
Beijos!!!Tchau
Kelly Cristina diz:
Tchau.
Acredito que a fala de Bianka também pode ser considerada como uma
descrição exemplar da bulimia. Ela relata que teve bulimia por sete anos e
anorexia há um ano. Este é um ponto importante, pois vários autores
notaram que a passagem bulimia anorexia ou, anorexia bulimia é comum,
sendo a primeira o caminho mais comum para a anorexia plena, conforme
observou Jeammet (1999, p.31) ao escrever que “a dupla antagonista
anorexia/bulimia é sua expressão mais manifesta. Não anoréxica que não
tema tornar-se bulímica”, sendo que o autor comenta, em seu texto, que tal tipo
de transição acontece em 50% das anoréxicas, no decorrer da doença.
O comentário de Jeammet (1999) é de suma importância porque ilustra
quanto anorexia e bulimia devem ser encaradas como cada uma sendo um
lado da mesma moeda, com a possibilidade real de transição de uma patologia
para outra. Esta díade bulimia/anorexia tem sido reconhecida, mais e mais,
como uma das características dos transtornos alimentares, isto é, que a bulimia
leve a uma anorexia e que muitas anoréxicas, ao começarem sua recuperação,
desenvolvem uma bulimia. A permanência do transtorno também é condizente
com a bulimia, pois como a ingestão de calorias não é cortada de maneira
abrupta, como na anorexia, a perda de peso não é tão rápida e progressiva
quanto na anorexia, o que faz com que o caso possa passar despercebido pela
família, amigos e namorado.
70
A descrição de ser “gorda” desde o início também combina com o perfil
das bulímicas, que costumam ter um peso maior, tanto no início da doença
quanto durante sua manutenção, ao contrário das anoréxicas. Ao descrever
seu hábito de vomitar a20 vezes por dia, Bianka nos uma idéia clara de
como funciona o purgar bulímico, pois o número é expressivo. Os efeitos
colaterais que ela descreve como decorrentes da bulimia também são
característicos. Enquanto a anoréxica padece, em geral, da restrição de
calorias e nutrientes, a bulímica sofre de desequilíbrios eletrolíticos e lesões
gástricas
8
.
Bianka, com sua úlcera, hérnia, osteoporose e perda de massa
muscular, demonstra bem os efeitos da bulimia. A deficiência de potássio e a
anemia são também comuns em quadros de bulimia. A obsessão por
emagrecer chegava ao ponto de ter pesadelos com o comer, também um dos
pavores de toda bulímica, o de perder o controle e cair em uma farra alimentar,
o que é o contrário da anoréxica, que manm um controle mais rígido sobre a
alimentação.
Após os sete anos de bulimia, ao descrever que de repente decidiu que
tinha que perder peso, e perdeu 20 quilos em 5 meses, temos uma amostra do
que realmente parece ser uma anorexia. Uma semelhança entre a conversa de
Bianka e Luciana que deve ser notada, de acordo com meu ponto de vista, é
que ambas começam a sua recuperação por intermédio de um namorado, que
8
A bulímica, ao provocar o vômito ou utilizar laxantes em excesso, impõe um esforço
gigantesco sobre todo seu aparelho digestório, que não está adaptado para vômitos tão
frequentes ou até mesmo as evacuações constantes causadas pelo uso de laxantes. Portanto,
na bulimia existe uma tensão excessiva (em termos físicos) sobre todo o aparelho
gastrointestinal. Esta tensão excessiva pode resultar em “fácies de lua cheia (em virtude da
hipertrofia das glândulas paratirótidas, em face dos vômitos constantes), lesão da pele do
dorso da mão, causada pelo atrito ao provocar o vômito, desgaste dentário e outros” (Busse,
2004, p.45), assim como sangramentos do tubo digestivo e hérnias.
Eletrólito, por sua vez, é toda substância que, ao ser ionizada, gera um íon e um cátion,
auxiliando na condução de eletricidade. Ao vomitar ou utilizar laxantes em excesso, a bulímica
perde uma grande quantidade de eletrólitos comuns em nosso corpo, como sódio, potássio e
cálcio (é possível comparar com uma pessoa que esteja com vômito e diarréia frequente,
devido a outros motivos, como uma infecção alimentar, mas que se prolonga por um tempo
indefinido). O organismo tenta compensar a perda dos eletrólitos, mas, devido ao distúrbio
alimentar, tal tentativa é uma verdadeira luta de Davi e Golias, uma vez que a bulímica perde
mais eletrólitos do que seu corpo consegue repor. Com o passar do tempo ocorre um
desequilíbrio eletrolítico, causado, em geral, pela deficiência de um ou mais eletrólitos.
Por estarem relacionados com a condução de eletricidade (e, em nosso corpo, com o
funcionamento do sistema nervoso central e da musculatura), o desequilíbrio eletrolítico pode
levar a paradas cardíacas, cãibras e outras alterações da atividade cerebral. A subida
constante do sugo gástrico, em razão do vômito forçado, leva a lesões no esôfago e problemas
na cavidade bucal.
71
parece desenvolver o papel de cuidador. Neste caso, duas interpretações são
possíveis. A primeira é que o namorado seja o cuidador que elas julgavam não
ter, exercendo uma função materna que se encontra prejudicada nos casos de
anorexia e bulimia. A segunda possibilidade é que o namorado, por ser uma
pessoa de outra família, introduza no psiquismo dela uma nova maneira de ser,
uma nova lei simbólica, um instrumento de diferenciação que tanto tempo
era buscado.
Acredito que essas hipóteses se complementam, pois as duas
descrevem os namorados como pessoas carinhosas, cuidadosas, que parecem
lhes dar a atenção que nunca tiveram ou, talvez, a possibilidade de existirem
pela primeira vez. A relação conturbada com a mãe, assim como na anoréxica,
está presente de forma patente, pois a mãe tinha o costume de espancar a
garota de maneira intensa. O medo de perder a e, que parece ser uma das
causas do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), pode ser interpretado
como uma reação à quantidade de ódio e sentimentos ambíguos que esta mãe
despertou em Bianka. É curioso que a mãe tenha uma doença psicossomática
e que a filha, desde pequena, tenha se sentido no dever de não atrapalhar, não
machucar a mãe, não se expressar.
A falta da capacidade de expressão é também um traço bulímico, como
assevera Brusset (2003, p.49) ao afirmar que
(...) é porque a boca não pode articular certas palavras,
enunciar certas frases (...) que se assumirá como fantasia o
inomeável, a própria coisa. O vazio da boca, que chama em
vão, para se preencher, palavras introjetivas, torna-se boca
ávida de alimentos de antes da fala.
Temos aqui, portanto, uma mãe que é intrusiva, que ameaça a garota a
todo instante caso a garota resolva ter uma vida diferente dos planos da mãe,
controladora ao extremo. A mãe, ao não cuidar do próprio corpo, parece
mostrar bem os aspectos que enfatizam como deve ter sido a relação que esta
mãe teve com Bianka em seus primeiros momentos, pois se a mãe não sabia
cuidar e interpretar os sinais do próprio corpo, como interpretar os sinais do
corpo do outro? É bem provável que Bianka tenha ficado presa nas
interpretações aleatórias da e, que a tornaram refém da vontade do outro, o
72
que é condizente com seu medo infantil de perder a mãe, de se afastar da
mãe.
A presença da automutilação novamente aparece como um elemento
típico, corroborando a frase de Fernandes (2006), que observou que “não é
rara na clínica a associação entre bulimia e condutas de automutilação”
(p.165). A automutilação parece ser uma tentativa desesperada de reinstalar
um auto-erotismo que não se constituiu, uma espécie de repetição ao contrário
do que deveria ter ocorrido. O pai de novo aparece como uma figura
enfraquecida perante a mãe, que simplesmente não consegue quebrar o
relacionamento mãe filha, por mais que tente. Ou seja, novamente estamos
falando do pai que é tratado como um cidadão de terceiro mundo nos papéis
familiares. A presença de um trauma que precede a doença também parece
associada na memória da garota, que no caso é a perda da ae a mudança
para a casa da mãe com o namorado dela. A avó, no caso, parecia exercer um
papel de contraponto bom com a figura da e, que era cáustica desde o
início.
Ao perder a avó, talvez seu “seio bom”, Bianka provavelmente deve ter
caído em uma descompensação gigantesca. Por fim, é curioso que, mais uma
vez, o transtorno seja precedido por um período de isolamento social de
aproximadamente um ano. No caso de Bianka, ela o descreve como o período
1998 – 1999, quando saiu do Brasil e foi morar no Japão.
Bianka também relata uma série de comorbidades
9
psíquicas, o que
dificulta outros comentários sobre a sua situação. É difícil saber se alguém
realmente pode receber o diagnóstico de bipolaridade, estando em tamanho
estado de desequilíbrio corporal. Enquanto o quadro metabólico
10
não for
restabelecido, e um peso mínimo adquirido, qualquer afirmação sobre outras
características psíquicas de Bianka pode ser um tiro no escuro, porquanto tais
9
Ao tentar realizar um psicodiagnóstico, a presença de outras patologias psíquicas, ou seja,
comorbidades, impõe um desafio clínico, pois corre-se o risco de tomar como uma característica da
bulimia ou da anorexia algo que pertence a outra patologia, como o TOC, no caso citado. É por essa razão
que acredito que é necessário se ater apenas às características típicas dos transtornos alimentares para não
comprometer a qualidade do trabalho diagnóstico.
10
Por metabólico quero designar o conjunto de transformações e reações químicas que ocorrem no
interior das células do corpo humano e dos órgãos em geral. As anoréxicas e bulímicas, ao interferirem
com a ingestão de alimentos, que é a fonte principal de elementos químicos com que o metabolismo do
corpo irá trabalhar, acabam por gerar uma reação em cascata que compromete o funcionamento de
diversos processos orgânicos.
73
complicações podem ser decorrentes dos desequilíbrios fisiológicos que seu
corpo tem sofrido por um período de oito anos.
D) Luciana e Bianka, Demonstrações do Mínimo
Inicialmente gostaria de fazer um comentário mais amplo sobre os casos
de Bianka e de Luciana. Fica claro, na conversa de ambas, que surge um
desejo inexplicável, súbito e incontrolável de emagrecer. Fica a questão de,
diante de histórias de vidas diferentes, o porquê da escolha do emagrecer
como a resposta adequada para os dilemas de suas vidas. Ao comentar os
dois casos acredito já ter apontado facetas psicodinâmicas de cada uma delas,
mas pretendo agora discutir um pano de fundo cultural, que talvez ajude a
lançar alguma luz sobre a escolha da magreza como sintoma de preferência
pelas duas, e por todas as que chegam até um transtorno alimentar.
Armênio (2008) comenta a relação entre os ideais da beleza magra, os
últimos 100 anos da humanidade e a chamada cultura minimalista. O
minimalismo é um movimento artístico que tem como fundamento expor a arte
em seus elementos mais essenciais. A pintura apresenta um número limitado
de cores e, normalmente, formas geométricas. A escultura prima mais pelo
material do que pela arte do esculpir. Uma das razões para associar o
minimalismo e a magreza, para a autora, é a proximidade histórica entre os
dois fatos, pois, segundo ela, o ideal contemporâneo de magreza começou
com a modelo Twiggi, na década de 60, e o minimalismo como movimento
ambém data da mesma década. Portanto, por associação, é possível que as
duas manifestações se relacionem.
Para ela o minimalismo, ao lidar com a arte, “subtraindo as marcas do
passado, do humanismo, das significações, de qualquer ilusão, da angústia,
dos mistérios, das paixões e da loucura” (Armênio, 2008, p.111), criou uma
forma de expressão que é exemplar e amesmo porta-voz da condição atual
de nossa cultura, que se encontra desprovida de signos e simbolismos, sendo
apenas o que se é, sem que tal afirmação carregue qualquer conotação
positiva, mas sim denunciando uma pobreza da subjetividade. O surgimento do
minimalismo, para a autora, se relaciona com as desilusões por que o ser
74
humano passou, com as Grandes Guerras, os genocídios, o holocausto, e
muitas outras formas de destruição da subjetividade humana em nome de uma
homogeneização do humano.
A autora faz uma comparação interessante entre uma reação antes do
minimalismo e após o minimalismo perante um túmulo. Para ela, no passado, a
reação ante tal imagem seria completa de simbolismos, como os dados pelas
religiões, em especial o cristianismo. A visão minimalista enxerga “apenas um
buraco –o que eu vejo é o que eu vejo apoiando-se na razão mais estrita
para eludir a angústia e a questão deflagrada por esta cena” (Armênio, 2008,
p.112). Esta visão simplista, desprovida de signo e simbolismo, não se parece
em muito com o que observamos nas patologias do corpo, em especial a
anorexia e a bulimia? Não seria a modelo, ideal máximo de beleza, um
exemplo minimalista no qual o humano pouco se vê, o que está em evidência é
o cenário, a roupa, o desfile, assim como em uma obra de arte minimalista?
São perguntas provocantes, é claro. Também é obvio que não se podem
reduzir as manifestações artísticas ao minimalismo, mas é curioso que o
padrão magro de beleza tenha surgido em paralelo com a percepção
minimalista da arte. Ou melhor, é como se a humanidade, diante de traumas
coletivos que não puderam ser processados e nem podem, pois ultrapassam o
limite do que pode ser nomeado, tivesse incorporado em sua cultura uma forma
de culto à sobrevivência e ao mínimo, sofrendo os efeitos de quando em uma
sociedade “uma palavra, quando não é processada nem apreendida por uma
metáfora.” (Armênio, 2008, p.118).
Que palavra ou arte poderia se contrapor aos corpos esqueléticos do
holocausto ou dos horrores nucleares? O minimalismo parece ter sido uma
resposta, uma reação que denota uma cultura que perdeu seus antigos
símbolos e ainda não encontrou novos. Tal cultura se apoia no “vejo o que
vejo”, o que não é diferente da anoréxica ou bulímica, que “vê porque vê” o fato
de sua gordura não corresponder ao ideal e ser causa de suas misérias.
Tal mal-estar da cultura contemporânea, expresso nos corpos femininos
em desgaste, revela que “a presença da magreza no lugar glamurizado da
moda tem seu reverso nos sintomas anoréxicos. Supomos que na anorexia
encontraremos as mesmas questões sociais constituintes desse mal-estar”
(Armênio, 2008, p.120). Acredito que tal raciocínio não é, de forma alguma,
75
uma tentativa de defender uma explicação meramente cultural para os
transtornos alimentares, mas sim de denunciar como a sociedade atual sofre
de uma carência, que tem encontrado expressão de diversas formas. Na arte, o
minimalismo; no corpo, a magreza; na psicopatologia, os transtornos
alimentares, e assim por diante. Eventos que ocorrem em paralelo, se
influenciando mutuamente.
Meu desejo, com esse pequeno comentário, é situar o sofrimento destas
jovens em um panorama mais amplo, no qual, realmente, o sofrimento delas
parece encontrar eco em nossa cultura atual, sem que seja necessário recorrer
a explicações simplificadoras da influência da mídia sobre as jovens ou
argumentos deste tipo. Muito mais do que isso, a anorexia e a bulimia de
Luciana e Bianka parecem denunciar um mal-estar que se encontra além do
dizível, como muitas outras coisas em nossa sociedade.
E) – Análise Estatística dos Dados Coletados
Ao iniciar as entrevistas pela internet, não poderia imaginar o volume de
material que conseguiria coletar. Entretanto, quando chegou o momento de
analisar esse material, deparei com um total de 100 sujeitos, o que me deixou
desnorteada, sem saber como proceder a uma análise tão complexa e de
material tão vasto. A primeira idéia que tive foi a de analisar as entrevistas
utilizando categorias, como é comum em pesquisas do tipo qualitativo.
Entretanto, uma questão se impôs desde o início, que foi a de qual tipo de
categorias utilizar.
Enfim, tive uma idéia que norteou toda a análise estatística, que foi a de
transformar o que se observa em um tratamento clínico- psicanalítico, isto é, as
relações familiares, as repetões, os sintomas psicológicos, a vida social e
algumas outras idéias, nas categorias que busquei ao analisar as entrevistas.
Portanto, posso dizer que tentei dar um tratamento clínico ao material que
obtive através das entrevistas, ao transformar alguns princípios norteadores do
atendimento psicanalítico em categorias a serem analisadas em cada
entrevista.
76
Assim, surgiram 7 grupos básicos de categorias, cada um com várias
subcategorias. O grupo 1 se refere a como a pessoa se identifica na internet,
sua linguagem no mundo virtual e alguns detalhes que o peculiares à
comunicação via internet. O grupo 2 trata dos dados pessoais, como idade,
peso, se é casada ou solteira e outras informações do mesmo tipo. O grupo 3
se refere à presença ou não de tratamento psicológico e/ou psiquiátrico para o
transtorno alimentar, incluindo se toma alguma medicação, se existe aderência
ao tratamento, etc. O grupo 4 trata dos sintomas psicológicos que puderam ser
observados na entrevista, em especial sintomas relacionados aos transtornos
alimentares, como presença de vômito, jejum, etc. O grupo 5 se refere aos
dados familiares, incluindo se os pais são casados, se tem irmãos e se houve
alguma morte na família. O grupo 6 aborda a vida social e as relações
familiares, tendo como foco se a relação é positiva ou negativa com o pai, a
mãe e outras pessoas pertinentes. Por fim, o último grupo, o 7, é uma categoria
que engloba uma análise psicanalítica da entrevista, ao observar a descrição
da infância, como são os papéis familiares, e outras idéias importantes dentro
do referencial psicanalítico.
Não tenho a intenção de descrever aqui, nesta introdução à análise
estatística, todas as subcategorias que criei, pois são muitas e elas irão
aparecer na própria análise dos dados. Devo acrescentar que após a criação
das categorias tive que recorrer a uma profissional
11
da área, formada em
estatística, para dar o tratamento adequado aos dados, pois não possuo
domínio sobre tal tipo de análise de dados de maneira tão aprofundada. Assim,
as próximas ginas foram elaboradas com o auxílio da profissional da área
mencionada. Após a análise estatística em si, retomarei a palavra para realizar
uma interpretação psicanalítica dos números encontrados.
Outro dado de vital importância a ser informado ao leitor é que os dados
coletados via internet foram comparados com uma base de dados de uma
instituição que trata de anoréxicas e bulímicas, o CEPPAN (Clínica de Estudos
e Pesquisas em Psicanálise da Anorexia e Bulimia), coordenado por Ana Paula
Gonzaga e Cybelle Weinberg, que funciona na região da Grande São Paulo
11
Meu agradecimento a Mitti Ayako Hara Koyama, bacharel em Estatística pelo IME-
USP, mestre em Estatística pelo IME-USP, que realizou a análise estatística de maneira
tão adequada.
77
desde 2000. Agradeço também a toda a equipe do CEPPAN, por gentilmente
fornecer os dados que precisei para uma verdadeira comparação estatística
dos dados obtidos pela internet, pois, de outra forma, não poderia ter um
critério de comparação confiável para julgar os dados da internet apenas pela
internet.
Portanto, o que quero dizer é que se eu tivesse analisado apenas o
material da internet já teria sido uma bela análise, mas a possibilidade de
comparar um grupo de dados do mundo virtual com o real ofereceu uma
oportunidade única para validar meus achados de forma mais consistente. A
seguir, a análise estatística, na qual ficará claro para o leitor as subcategorias
que foram utilizadas e, após esta parte do trabalho, uma interpretação
psicanalítica dos dados.
12
F) Os dados das entrevistas coletadas pela internet
Foram entrevistadas, via net, 100 mulheres, das quais 19% e 78% se
identificaram respectivamente com anorexia e bulimia. Apenas 3% se
identificaram como apresentando simultaneamente anorexia e bulimia. A
maioria das mulheres (79%) é solteira, não fazendo tratamento PSI
13
(66%).
Mais da metade (59%) declarou esconder os sintomas da família.
Com relação a medicamentos, 63% declararam fazer uso de
medicamentos para emagrecer. Além disso, 86,7% das mulheres afirmaram
usar remédios sem prescrição médica e 68,4% disseram ter conhecimento
sobre a medicação. Verificou-se também que todas as mulheres afirmaram ter
uma relação distorcida com a auto-imagem e 58% têm conhecimento sobre o
próprio TA.
Ao avaliar as relações familiares verificou-se que 46% das respondentes
têm pais separados, e a maioria tem relacionamento negativo com a mãe
(77%), com o pai (65%) e com os irmãos (76,5%). Também 66% afirmaram
possuir família conturbada e 82%, a falta de olhar do outro. Verificou-se ainda
que 46,8% têm alguém com TA na família.
12
O relatório estatístico completo pode ser encontrado nos anexos. Por questão didática, escolhi as partes
relevantes do relatório e citei-as neste trecho da dissertação.
13
Incluo nesta categoria o tratamento psicológico e/ou psiquiátrico.
78
Observou-se que 73% das respondentes usam a comida para manipular
situações/relações, e todas afirmaram sentir culpa relacionada a alimentos.
Para avaliar a pressão ou cobrança feita pela família, procurou-se analisar o
fato de ser filha única, primeira filha da família ou ser primogênita. Assim
sendo, verificou-se que 16% das respondentes são filha únicas, 69% primeira
filha da família (sem ser filha única) e 69% são primogênitas.
A média das idades das respondentes foi de 19,9 anos (DP=4,9), com
idade mínima de 13 anos e máxima de 38 anos. O IMC médio foi de 22,01
(DP=4,2) e a idade média de início dos sintomas foi de 13,9 anos (DP=3).
Constatamos associação entre status e adesão ao tratamento
(p=0,0054), ocorrência de internação (p=0,0001), uso de medicamentos para
emagrecer (p=0,0004), conhecimento sobre a medicação (p=0,0107), vômito
(p=0,0028), situação dos pais (p=0,0227), relacionamento com a mãe
(p=0,0136), presença de TA na família (p=0,0074), descrição na infância
(p=0,0003), família conturbada (p=0,0200), uso da comida para manipular
situações/relações (p=0,0144) e ordem de nascimento (p=0,0312).
Desta forma, comprovamos que:
- quase a totalidade (94,7%) das respondentes com anorexia não aderiu ao
tratamento, diferentemente das com bulimia (58,8%);
- as respondentes com anorexia sofreram mais internação (42,1%) que as
bulímicas (3,8%);
- as bulímicas fizeram mais uso de medicamentos para emagrecer (70,5%) e
afirmam ter mais conhecimento sobre a medicação (73,3%);
- conforme esperado, as bulímicas (73,1%) forçam mais vômito que as
anoréxicas (36,8%);
- as respondentes que têm bulimia apresentam mais pais separados (50%) que
as anoréxicas (21,1%);
- as bulímicas têm mais relacionamento negativo com as mães (82,1%) que as
anoréxicas (52,6%);
- as bulímicas têm mais casos de TA na família (55,6%) que as anoréxicas
(21,1%);
- as bulímicas descrevem mais a infância (44,9%) que as anoréxicas (21,1%);
79
- as bulímicas afirmam ter mais famílias conturbadas (70,5%) que as
anoréxicas ( 42,1%);
- 94,7% das anoréxicas afirmam usar a comida para manipular
situações/relações, enquanto este percentual é de 66,7% nas bulímicas;
- 73,1% das anoréxicas são primogênitas, enquanto nas bulímicas este
percentual é de 47,4%;
- verificamos que o peso médio das bulímicas foi superior ao das anoréxicas
(p<0,0001), o mesmo ocorrendo com a variável IMC (p< 0,0001). Para as
demais variáveis (idade, altura e idade de início dos sintomas) não foram
verificadas diferenças entre os dois grupos.
Estes resultados podem ser observados nas Figuras 1 e 2.
Figura 1
5,3%
41,2%
42,1%
3,8%
26,3%
70,5%
41,2%
73,3%
36,8%
73,1%
0,0%
10,0%
20,0%
30,0%
40,0%
50,0%
60,0%
70,0%
80,0%
Adere ao tratamento Houve internação Toma medicamentos
para emagrecer
Conhecimento sobre a
medicação
Foamito
anoexia bulimia
80
Figura 2
78,9%
50,0%
52,6%
82,1%
21,1%
55,6%
21,1%
44,9%
42,1%
70,5%
94,7%
66,7%
47,4%
73,1%
0,0%
10,0%
20,0%
30,0%
40,0%
50,0%
60,0%
70,0%
80,0%
90,0%
100,0%
Situação dos pais -
casados
Relacionamento
negativo com a
mãe
Alguém com TA na
família
Existe descrição
da infância
Família conturbada Usa a comida para
manipular
situações/relações
Primogênita
anoexia bulimia
G) Um olhar psicanalítico sobre os dados da internet
Tantos dados, tantas possibilidades. Em meio aos números, tentarei
demonstrar alguns fatores que me chamaram a atenção. Como a descrição da
evolução da anorexia e bulimia será feita em um momento posterior da
dissertação, vou me abster de fazer citações excessivas durante o comentário
sobre os dados estatísticos. Acredito que é mais interessante indicar, com
sutileza, para que partes da teoria psicanalítica os dados apontam, e depois
fazer considerações gerais.
O primeiro fato que chama a atenção é de todas as pessoas que
responderam ao questionário pela net apresentarem distorção da imagem
corporal. Apesar de este ser um dado que é sempre sinalizado como
característico dos transtornos alimentares, impressiona o fato de estar presente
em todas as respondentes. Baseada no livro de Fernandes (2006), acentuo
que o esquema que forma a imagem corporal está relacionado com as
81
primeiras experiências sensoriais vividas entre o bebê e seu cuidador principal,
normalmente a mãe. É a mãe que irá, ao tocar o corpo da criança, interpretar
suas mudanças e sinais fisiológicos, e gradualmente permitir a existência de
pequenas experiências de frustração, que irá garantir a formação de uma
imagem corporal, tratando-se de uma verdadeira libidinização do corpo do
bebê.
Se a mãe não teve capacidade de efetuar esta nomeação dos
sentimentos a partes do corpo da criança, esta ficará presa nas interpretações
aleatórias que a mãe faz, a saber, presa nas interpretações das sensações
corporais que a mãe faz com base em seu próprio corpo. Assim, desprovida de
uma tão necessária autonomia psíquica, a criança se torna refém do olhar do
outro, algo que também apareceu nos dados, pois suas sensações não
puderam se consolidar como autônomas, sendo sempre dependentes do outro.
A questão da falha da função materna, ampliada pela falha da função
paterna, é demonstrada claramente pelos números. Se a mãe teve uma falha,
ou por falta, excesso, ou uma mistura de ambos, o pai poderia ser uma
alternativa que diminuísse os danos causados ao jovem psiquismo. Entretanto,
como mostram os números, os pais o conseguiram exercer sua função, o
que serve como um catalisador para as falhas da função materna, aumentando
ainda mais a dependência da criança em relação ao seu primeiro cuidador, a
mãe.
Um indicativo de que essas famílias devem ser disfuncionais como um
todo é o alto índice de problemas com os irmãos. A despeito de este dado
apontar também para prováveis sentimentos arcaicos, como a inveja entre
irmãos, é possível considerar que a falha das funções materna e paterna deve
ter ocorrido ainda com outros membros da família, gerando problemas
diferentes de um transtorno alimentar, mas fomentando um ambiente familiar
disfuncional.
Um dado que pode ser considerado um achado original da minha
pesquisa é o que denominei de alta prevalência de transtornos alimentares na
primeira filha do casal. Com tal termo, quero designar a primeira filha que o
casal tem, independentemente de ter tido antes filhos homens. Se
continuarmos com o raciocínio da família disfuncional, da falha das funções
82
materna e paterna, o que será que levou a uma manifestação tão intensa na
primeira garota a nascer?
Minha hipótese é que uma mãe que é incapaz de exercer seu papel, ao
ser confrontada com um corpo que é anatomicamente semelhante ao seu,
deve ter suas deficiências ampliadas, pois a presença do igual deve remetê-la
aos seus próprios problemas, à sua sexualidade não recalcada, ao
desenvolvimento do seu Édipo. Com certeza a sensação deve ser ambígua,
despertando sentimentos de amor e ódio, produzindo o que Fernandes (2006)
denominou de “os efeitos nefastos da mãe de extremos” (p.222), ou seja, uma
mãe que às vezes está presente em excesso, e em outros momentos, ausente
também em excesso.
Se utilizarmos como metáfora a capacidade de investimento de libido da
mãe, como se fosse um espaço no qual esta libido pode ser investida (o corpo
do bebê), e também levarmos em conta uma mãe de extremos, é possível
visualizar que esta libido acaba se perdendo, pois nos momentos nem sempre
necessários a criança é inundada, enquanto em outros momentos muito
necessários o investimento não ocorre, num verdadeiro ciclo de
transbordamento e ausência de libido.
Portanto, em minha opinião, a alta incidência na primeira filha do casal
demonstra as dificuldades da relação mãe-filha, que provavelmente
deveriam estar latentes no ambiente familiar, mas que são aguçadas pela
confrontação de dois corpos semelhantes, o que remete aos registros arcaicos
da mãe, que por certo já não soube elaborá-los em seu primeiro momento.
A idade média é baixa, provavelmente relacionada com o alto número de
pessoas jovens que utilizam redes sociais na internet. Não quero dizer que não
existam anoréxicas mais velhas na internet, mas que em termos de
probabilidade, se as redes são mais utilizadas pelas novas gerações, a isto
devemos somar o fato de que os transtornos alimentares têm uma taxa de
mortalidade alta, o que pode explicar a ausência de pessoas mais velhas na
internet.
O IMC médio não revela alguns dos casos mais extremos que encontrei
na internet, pois o peso das bulímicas acabou por contrabalançar o das
anoréxicas. Aliás, se pensarmos que o cálculo foi feito entre anoréxicas e
bulímicas e o IMC médio está dentro do “normal”, na realidade este é um dado
83
preocupante, pois as bulímicas são conhecidas por pesarem mais que as
anoréxicas. Assim, se a média está dentro do normal, é porque tanto
anoréxicas quanto bulímicas estão pesando muito pouco neste grupo.
O fato de as anoréxicas aderirem menos ao tratamento e sofrerem mais
internações deve ser relacionado com a gravidade de cada patologia. Se fosse
possível colocar a anorexia e a bulimia em uma linha temporal, na qual está
colocada a formação do auto-erotismo, do narcisismo, enfim, dos eventos
formadores do psiquismo, seria necessário considerar as anoréxicas como
pessoas com uma falha na instalação do próprio auto-erotismo, enquanto as
bulímicas, até mesmo devido ao seu quadro, apresentam um auto-erotismo ao
contrário, ao tentarem reviver o processo, mas de maneira dolorosa.
Ademais, em termos psicopatológicos, a anorexia deve ser situada como
tendo um início anterior ao da bulimia, e então, mais grave. O fato de as
bulímicas utilizarem mais medicação, na verdade deve ser visto como um dado
preocupante, pois deve indicar que entre as anoréxicas existe um predomínio
do tipo restritivo, que é muito grave.
O dado que demonstra que as anoréxicas têm menos conflitos familiares
e menos conflitos com a mãe deve ser analisado com cuidado. Será que, e
esta é a minha hipótese, justamente por ser uma patologia mais regredida que
a bulimia, o que ocorre é que as anoréxicas não conseguem
perceber/manifestar/simbolizar a sua relação com a mãe, pois estão tão
fusionadas e ao mesmo tempo tão paralisadas, que não conseguem nem
descrever a relação como ela é?
Talvez as bulímicas, por terem um pouco mais de movimento na escala
imaginária de desenvolvimento psíquico que mencionei pouco, consigam
manifestar um pouco mais de sentimentos negativos do que as anoréxicas, o
que não significa que, em estado latente, as anoréxicas também não pudessem
chegar a descrever um número tão alto quanto o das bulímicas, caso tivessem
a chance de pensar sobre o fato, como, por exemplo, em uma psicoterapia.
Essa ligação extrema com a mãe pode ser vista como reforçada pelo
fato de que a maioria das anoréxicas é primogênita, ou seja, deve ter
experimentado a mãe de extremos a todo vapor, enquanto o percentual é
menor entre as bulímicas. Portanto, como conclusão geral da análise
psicanalítica dos dados, acho importante apontar meu achado original, que é o
84
da alta prevalência de transtornos alimentares na primeira filha do casal,
enquanto os outros dados corroboram muito do que a literatura fala sobre os
casos.
H) Dados do CEPPAN
Foi analisado o prontuário de 75 mulheres do CEPPAN, das quais 41,3%
e 57,3% se identificaram respectivamente com anorexia e bulimia. Apenas uma
paciente (1,3%) se identificou como apresentando simultaneamente anorexia e
bulimia. A maioria das mulheres (93,3%) é solteira, fazendo tratamento PSI
(91,9%). Apenas 25% declararam esconder os sintomas da família.
Com relação a medicamentos, 42,7% declararam fazer uso de
medicamentos para emagrecer. Além disso, 51,4% disseram ter conhecimento
sobre a medicação. Verificou-se também que 87,7% das mulheres afirmaram
ter uma relação distorcida com a auto-imagem, e apenas 28,4% têm
conhecimento sobre o próprio TA.
Avaliando-se as relações familiares, verificou-se que 40,5% das
respondentes têm pais separados, e a maioria tem relacionamento negativo
com a mãe (57,9%), com o pai (73,7%) e com os irmãos (45,2%). Também
70,7% afirmaram possuir família conturbada, e 77%, a falta de olhar do outro.
Verificou-se ainda que apenas 25,4% têm alguém com TA na família.
Observou-se que 70% das respondentes usam a comida para manipular
situações/relações e 92,1% afirmaram sentir culpa relacionada a alimentos.
Para avaliar a pressão ou cobrança feita pela família, procurou-se
analisar o fato de ser filha única, primeira filha da família ou ser primogênita.
Assim sendo, verificou-se que 13,3% das respondentes são filha únicas, 60%
primeira filha da família (sem ser filha única) e 48% são primogênitas.
A média das idades das respondentes foi de 20,3 anos (DP=6,6), com
idade mínima de 9 anos e xima de 41 anos. O IMC dio foi de 22,012
(DP=3,64) e a idade média de início dos sintomas foi de 13,8 anos (DP=2,7).
Verificou-se associação entre status e ocorrência de internação (p=0,0101), e
vômito (p< 0,0001). Desta forma, comprovou-se que as respondentes com
anorexia sofreram mais internação (46,7%) que as bulímicas (18,6%);
85
Estes resultados podem ser observados na Figura 3.
Figura 3
46,70%
18,60%
0,0%
5,0%
10,0%
15,0%
20,0%
25,0%
30,0%
35,0%
40,0%
45,0%
50,0%
Houve internação
anoexia bulimia
Verificou-se que a média das idades das bulímicas foi superior à das
anoréxicas (p=0,0106), e o peso médio das bulímicas foi superior aos das
anoréxicas (p<0,0001), o mesmo ocorrendo com a variável IMC (p< 0,0001).
Com relação à idade de início dos sintomas, observou-se que em média as
bulímicas começam mais tardiamente que as anoréxicas (p=0,0152). Para as
demais, não foi verificada diferença entre os dois grupos (p=0,1724).
I) Comentário sobre os dados do CEPPAN
O primeiro dado que chama a atenção é o maior número de pacientes
com anorexia, na base de dados do CEPPAN. Um fator que pode ter
influenciado este dado é que, por ser uma instituição que cuida de anorexia e
bulimia, o número de casos graves que devem procurar a instituição, por
encaminhamento, deve ser alto. Portanto, talvez na internet estejamos lidando
com um grupo que, malgrado as histórias muito tristes, ainda não tenha
chegado até o limite de uma internação/encaminhamento para uma instituição
especializada.
Minha hipótese parece se confirmar com o fato de que o número de
pessoas do CEPPAN que passavam por tratamento PSI é
86
consideravelmente maior que o grupo da net. O fato de poucas esconderem os
sintomas da família parece estar associado diretamente ao alto número de
pessoas que passam por tratamento PSI, pois deve ser considerado difícil
tanto manter um tratamento às escondidas, como também ocultar uma
patologia que chegou a ponto de necessitar de tratamento institucional.
Os indicadores, por assim dizer, negativos, estão diminuídos neste
grupo, como o uso de medicamentos e a distorção da imagem corporal.
Especular sobre o porq dessa diferença é tarefa do próximo subcapítulo,
mas talvez um dos motivos seja a diferença entre estar ou não passando por
tratamento PSI, o que pode ser relacionado com menor uso de medicação e
redução dos distúrbios de imagem corporal.
Não obstante as diferenças, é um grupo que sustenta a hipótese da
família disfuncional, com a peculiaridade de uma exacerbação no fator pai, no
grupo do CEPPAN. Na realidade, este dado é muito mais fonte de perguntas
para mim do que indicativo de respostas. A questão da primeira filha do casal
se manteve. A idade máxima foi um fator que variou, o que pode corroborar
minha hipótese da internet como um veículo (ainda) preferencial para pessoas
mais jovens, sobretudo no caso de estar expondo uma patologia.
J) Comparação entre o CEPPAN e a net
Ao comparar os dados das duas fontes, observou-se que as
distribuições de TA (p=0,0040), estado civil (p=0,0034), tratamento Psi (p<
0,0001), adesão ao tratamento (p=0,0210), o fato de esconder os sintomas da
família (p<0,0001), internação (p=0,0065), uso de medicamentos para
emagrecer (p=0,0075), conhecimento sobre a medicação (p=0,0268),
diagnóstico (p< 0,0001), jejum (p=0,0248), descrição de perfil alimentar
(p<0,0001), relação com a auto-imagem (p=0,0003), conhecimento sobre o
próprio TA (p=0,0001), relacionamento com a e (p=0,0120), relacionamento
com irmãos (p=0,0022), alguém com TA na família (p=0,0048), relato da vida
social (p=0,0126), descrição da infância (p=0,0002), descrição da relação com
a mãe (p=0,0001), descrição da relação com o pai (p=0,0044), inveja (p<
0,0001), culpa relacionada aos alimentos (p=0,0078), e o fato de ter ordem de
87
nascimento 1 (p=0,0050) são diferentes segundo o grupo. Desta forma,
verificaram-se:
- presença de mais bulímicas (78%) no grupo net que no CEPPAN (57,3%);
- presença de mais mulheres solteiras no grupo CEPPAN (93,3%) que no
grupo net (79%);
- como esperado, no CEPPAN as mulheres fazem mais tratamento de PSI
(cerca de 92%), assim como se observa maior adesão ao tratamento (47,3%)
que no grupo net (34% e 27,3%, respectivamente);
- 59% das mulheres do grupo net escondem os sintomas da família, enquanto
no CEPPAN foram 25%;
- há mais casos de internação no CEPPAN (29,7%) que no grupo net (13%);
- no grupo net, 63% das mulheres fazem uso de medicamentos para
emagrecer, enquanto no CEPPAN são apenas 42,7%;
- no grupo net 68,4% das mulheres declararam ter conhecimento sobre
medicação, enquanto este percentual é de 51,4% no grupo CEPPAN;
- 98,6% das mulheres do CEPPAN tiveram diagnóstico, no grupo net foram
só 49,5%;
- no CEPPAN, 86,3% das mulheres fazem jejum. Já no grupo net são 72%;
- 89,2% das mulheres do CEPPAN fazem descrição de perfil alimentar, sendo
que no grupo net são apenas 36,6%;
- no grupo net mais da metade das mulheres (58%) tem conhecimento sobre o
próprio TA, sendo que no grupo CEPPAN são somente 28,4%;
- a porcentagem de relacionamento positivo com a mãe e irmão é maior no
grupo CEPPAN, superior a 40%, enquanto no grupo da net fica em torno de
23%;
- observa-se uma porcentagem maior de TA na família no grupo net (46,8%)
que no CEPPAN (25,4%);
- no grupo net as porcentagens de mulheres que não relatam vida social
(68,5%) e não associam as perguntas sobre a família ao TA (81,8%) são
maiores que no grupo CEPPAN;
- no grupo CEPPAN as porcentagens de descrição da infância e da relação
com o pai são superiores às do grupo net;
- quase a totalidade das mulheres do grupo CEPPAN citou a inveja (95%), e no
grupo net foram 67,8%;
88
- mais mulheres com ordem de nascimento 1 no grupo net (69%) que no
CEPPAN (48%).
Estes resultados podem ser observados nas Figuras 4 a 9.
Verificou-se apenas no grupo de bulímicas que em dia a idade de início do
CEPPAN é superior à do grupo net (p=0,0239). Para as demais variáveis não
foram verificadas diferenças nas médias.
Figura 4
19,0
41,3
78,0
57,3
3,0
1,3
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
anorexia bulimia ambos
Net Ceppan
Figura 5
19,0
4,0
79,0
93,3
2,0
1,3
1,3
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
Casada Solteira Mora junto Separada
Net Ceppan
89
Figura 6
34,0
91,9
27,3
47,3
49,5
98,6
13,0
29,7
63,0
42,7
68,4
51,4
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
Faz tratamento Psi Adere ao tratamento Houve diagnóstico Houve internação Toma
medicamentos para
emagrecer
Conhecimento sobre
a medicação
Net Ceppan
Figura 7
72,0
86,3
36,6
89,2
100,0
87,7
58,0
28,4
100,0
92,1
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
Faz jejum atualmente Descrição de perfil
alimentar
Relação distorcida com a
auto-imagem
Conhecimento sobre o
próprio TA
Culpa relacionada aos
alimentos
Net Ceppan
90
Figura 8
59,0
25,0
23,0
42,1
23,5
54,8
41,0
55,6
100,0
85,2
31,3
52,5
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
80,0
90,0
100,0
Esconde os sintomas
da família
Relacionamento
Positivo com a mãe
Relacionamento
Positivo com irmãos
Existe descrição da
infância
Descrição da relação
com a mãe
Descrição da relação
com o pai
Net Ceppan
Figura 9
32,2
5,0
46,8
25,4
31,5
50,7
69,0
48,0
0,0
10,0
20,0
30,0
40,0
50,0
60,0
70,0
Inveja Alguém com TA na família Relata vida social Ordem de nascimento
Net Ceppan
91
K) Comentário psicanalítico dos dados CEPPAN X net
A presença de mais bulímicas na net do que no CEPPAN não parece ser
um dado que esconda interpretações significativas, sendo a única interpretação
em que posso pensar é que, se existe uma prevalência maior de bulímicas do
que de anoréxicas, e a internet é um meio através do qual se faz contato com
as pessoas de maneira aleatória, como eu fiz ao buscar em uma rede social, só
posso concluir que as chances de conversar com uma bulímica são maiores do
que as de conversar com uma anoréxica.
O fato de mais mulheres serem solteiras no grupo CEPPAN do que no
grupo net talvez seja um indicativo da gravidade do quadro das pessoas que
chegam até o CEPPAN, o que parece uma presunção lógica que será
corroborada por outros dados. Com isto quero dizer que se o quadro é mais
grave, as chances de a pessoa conseguir estabelecer e manter um
relacionamento estável, que leve ao casamento, diminuem. Aliás, é
impressionante como em ambos os grupos a quantidade de mulheres solteiras
é alta, o que confirma a noção psicanatica de que os transtornos alimentares
podem estar relacionados com uma sexualidade pouco desenvolvida.
O fato de as mulheres do grupo net procurarem pouco tratamento
especializado parece ser um indicativo de que existe uma diferença na
gravidade dos quadros, pois, se considerarmos o padrão familiar típico da
anoréxica e da bulímica, isto é, famílias que o basicamente reconhecidas
pela incapacidade de olhar e perceber as diferenças entre os filhos, é um
raciocínio coerente que o nível dos sintomas tem que estar elevado para uma
família com este padrão ser capaz de reconhecer a doença e incentivar a
busca de tratamento.
Fica a questão sobre se as mulheres do grupo net possuem uma
capacidade incrível de esconder seus sintomas da família, o que me parece
pouco provável. A hipótese que me parece mais lógica é que o grupo CEPPAN
apresenta pacientes em estado mais grave, até mesmo devido à presença de
pessoas mais velhas, portanto com mais tempo de doença, o que deve elevar o
nível dos sintomas a um patamar que nem mesmo a família mais disfuncional
consegue deixar de perceber. Um dado que talvez dê suporte a esta hipótese é
que o grupo CEPPAN apresenta mais que o dobro de número de internações
92
por causa do transtorno alimentar, um claro indicativo, na minha opinião, da
gravidade do quadro.
O dado de que menos mulheres do grupo CEPPAN utilizam medicação
do que as do grupo net, provavelmente se deve ao fato de que o grupo
CEPPAN está passando por tratamento PSI, o que pode atuar em duas
áreas. A primeira é uma diminuição dos sintomas, enquanto a segunda é o fato
de que muitos remédios podem estar associados ao tratamento dos transtornos
alimentares, o que pode ter contaminado a coleta de dados nos grupos net e
CEPPAN. A questão da gravidade do quadro do grupo CEPPAN também
parece encontrar suporte no fato de que este grupo apresenta alta taxa de
diagnóstico, enquanto o grupo net apresenta uma taxa abaixo de 50%.
O fato de um alto número de mulheres do grupo CEPPAN descrever seu
perfil alimentar não deve ser considerado como algo anormal, visto fazer parte
da rotina da instituição uma anamnese completa, que inclui o perfil alimentar.
As mulheres do grupo net provavelmente não têm contato com este tipo de
instrumento, como é demonstrado pela baixa taxa de diagnóstico e de
tratamento PSI. É curioso que o grupo net apresente mais conhecimento sobre
os transtornos alimentares do que o grupo CEPPAN. A única explicação que
consigo encontrar para este dado, no momento, é que a “geração internet” tem
ficado famosa pela sua tendência de buscar informações sobre doenças na
internet e se automedicar, o que deve influir muito na diferença entre os dois
grupos, o que é sustentado pela diferença da idade média entre os dois grupos.
O relacionamento com a mãe e com os irmãos se encontra melhor no
grupo CEPPAN do que no grupo net, o que, como disse, pode ser um dos
dados mais misteriosos da análise estatística. Uma especulação é o fato de
que o grupo CEPPAN passa por tratamento em maior proporção do que o
grupo net, que, em termos psicanalíticos, a relação com a mãe e a inveja
dos irmãos pode estar na base do transtorno, e talvez este tipo de sintoma
tenha passado por algum tipo de intervenção que o diminuiu. Entretanto, a
manutenção da taxa de problemas com o pai poderia ser um bom indicador de
que o tratamento está apenas lidando com sintomas e não com a etiologia da
doença.
Sobre a maior porcentagem de transtorno alimentar no grupo net do que
no grupo CEPPAN, é preciso indicar que considerei como transtorno alimentar
93
uma ampla variedade de sintomas, desde a obesidade até transtornos da
alimentação infantil. Como a análise do CEPPAN foi feita por meio dos
prontuários e tais prontuários são preenchidos por psicólogos, psiquiatras e
psicanalistas, é possível que certos transtornos alimentares que eu incluí como
critério da minha pesquisa não tenham sido anotados em prontuários do grupo
CEPPAN (por exemplo, a presença de obesidade em uma prima de primeiro
grau).
Em minha opinião, as situações pelo fato de o grupo net não apresentar
vida social e não associar perguntas sobre família ao TA se devem à não-
existência de tratamento e diagnóstico neste grupo, o que reforça a percepção
de que é necessária uma intervenção precoce nos casos de transtorno
alimentar. Como comprovação deste raciocínio, posso apresentar o fato de que
o grupo CEPPAN descreve mais a infância e consegue “enxergar” o pai, o que
deve ser uma decorrência do tratamento, lembrando que o CEPPAN trabalha
com uma abordagem psicanalítica, isto é, um interesse sobre a inncia e a
relação com o pai devem fazer parte da rotina de trabalho da instituição.
O que me faz ter mais certeza de que o tratamento está relacionado com
essas variações entre os dois grupos é o fato de o grupo CEPPAN reconhecer
a inveja, enquanto o grupo net, não. Acredito que este é um resultado claro da
psicoterapia.
Portanto, existem duas conclusões básicas que podem ser apresentadas
nesta comparação. A primeira é que parece haver uma gravidade maior nos
casos do CEPPAN, o que influencia diversas variáveis coletadas. Por outro
lado, se os casos são mais graves, eles também estão passando por
tratamento mais tempo, em contraste com o grupo net, no qual muitas
declaram nunca terem passado por tratamento. Essa diferença deve ser
considerada essencial, pois também influencia diversas variáveis, como
expliquei.
94
CAPÍTULO II: UM PANORAMA HISTÓRICO E DA
ATUALIDADE
Este capítulo tem dois objetivos, sendo o primeiro o de trazer um
histórico detalhado da anorexia nervosa e da bulimia, e o segundo é trazer
autores contemporâneos, que lidam com o tema, para demonstrar a
diversidade de opiniões que existe sobre o assunto dos transtornos alimentares
e realizar uma discussão sobre as diversas idéias de cada um. Como foi dito
na Introdução desta pesquisa, optei por utilizar autores que não são
necessariamente do meio psicanalítico. A primeira razão para fazê-lo foi, como
explicado, a sugestão de Maria Helena Fernandes, que participou da banca de
qualificação da minha dissertação, e que lembrou que um histórico dos
diversos autores da psicanálise que lidam com o tema dos transtornos
alimentares havia sido feito em vários trabalhos, o que tornaria a minha
explanação pouco original.
Portanto, ao concordar com tal sugestão, remeto o leitor ao livro
“Transtornos Alimentares”, escrito por Fernandes (2006), para uma leitura
detalhada sobre os autores psicanalíticos relacionados ao tema. Em segundo
lugar, devo ressaltar que em minha busca por uma contribuição original
procurei inserir autores que são reconhecidos no campo dos transtornos
alimentares, mas que não são necessariamente psicanalistas. Assim, na leitura
que se segue será possível encontrar uma historiadora, um psiquiatra, duas
psicanalistas e uma socióloga. Acredito que tal combinação se aproxima mais
de uma leitura original dos transtornos alimentares.
A) Joan Jacobs Brumberg
14
Dentre os diversos autores que estudaram a história da anorexia,
Brumberg (1989), historiadora americana, escreveu um dos relatos mais
detalhados sobre a anorexia e sua trajetória, da suposta santidade até a atual
condição de patologia, com critérios diagnósticos e procedimentos de
tratamento. A autora traz contribuições não apenas sobre a história européia da
14
Durante este capítulo, apenas colocarei a data de nascimento do autor se este tiver falecido. Pelo
contrário, não indicarei a data de nascimento e fica subentendido que o autor continua em atividade, como
é o caso de Brumberg (1989).
95
doença, mas também sobre o seu crescimento na América do Norte e no resto
do mundo. Ela está presente nesta dissertação por sua incontestável
contribuição à história da anorexia. Um detalhe importante é que Brumberg
(1989) é uma historiadora, não uma profissional da saúde, o que delimita o seu
olhar sobre a anorexia nervosa. Enfim, vamos às idéias da autora.
Brumberg (1989, p.6) afirma que “a anorexia nervosa é uma doença
historicamente específica, que surgiu no ambiente distinto, tanto social quanto
econômico, do final do século XIX”. A doença foi identificada, quase
simultaneamente, na França, EUA e Inglaterra, emergindo durante as
turbulências do desenvolvimento capitalista, “nutrida pelos aspectos centrais da
vida burguesa: intimidade e conforto material, amor e expectativa dos pais em
relação aos filhos, a divisão do trabalho por gênero e idéias populares sobre
gênero e classe” (Brumberg, 1989,p.8).
Existe, portanto, uma transição “da santidade para a condição de
paciente, um processo que os historiadores descrevem com duas palavras
familiares, secularização e medicalização” (Brumberg, 1989, p.7). A partir do
século XIX, o declínio da fé e o aumento da autoridade da ciência conseguiram
transformar o que era considerado “um ato religioso em um estado patológico”
(idem). Tal transição, entretanto, não foi simples, pois envolveu um intenso
debate entre religiosos e cientistas, que acabaram por transformar as
anoréxicas em um ponto central de sua discussão. Afinal, a recusa dessas
garotas em se alimentar trazia à tona a questão: corpo, mente ou alma, ciência
ou religião, a quem caberia explicar o fenômeno?
A expansão de casos, a partir da década de 1960, se justifica por
motivos históricos. “Durante a grande depressão e a Segunda Guerra, tempos
de escassez, recusar comida de forma voluntária tinha pouca eficácia como
uma estratégia emocional” (Brumberg, 1989, p.13). Registros médicos indicam
que na Itália, durante o peodo da Segunda Guerra, não ocorreu um único
caso de anorexia. Entretanto, assim que a recuperação econômica da Itália
começou, os casos começaram a crescer de forma exponencial.
Nos anos 80, o debate médico sobre a anorexia chegava aos manuais
de diagnóstico. A primeira versão do DSM-III mencionava a bulimia apenas
como um sintoma. Foi apenas com o DSM-III-R que anorexia e bulimia
96
obtiveram status de doenças diferenciadas, com critérios distintos (Brumberg,
1989).
Em 1983, a morte da cantora Karen Carpenter, 32 anos, aumentou o
interesse do público sobre a doença. A mídia enfatizou que “os mais caros
tratamentos, de costa a costa, foram ineficazes contra a doença” (Brumberg,
1989, p.18). Ao mesmo tempo, começavam a surgir no mercado americano
livros e filmes com personagens anoréxicas, com especial atenção a
autobiografias de anoréxicas.
O fato de Jane Fonda, também em 1983, ter tornado pública a sua
condição de bulímica, causou um fenômeno de “estampagem da bulimia e
anorexia na consciência nacional” (Brumberg, 1989, p.21). Em torno das
celebridades que declaravam seus transtornos alimentares, as organizações de
apoio a anoréxicas e bulímicas, que começavam a ser fundadas, estavam
ansiosas por divulgar mais e mais casos, como uma forma de angariar dinheiro
para suas atividades. Para Brumberg (1989), transformar uma doença que
atingia uma pequena parcela da população em algo visível tornava necessária
uma atitude de marketing agressiva.
Atualmente, graças aos avanços no entendimento da patologia, as
abordagens terapêuticas estão integradas, sendo que “diferentes abordagens
médicas e psicoterapêuticas são integradas” (Brumberg, 1989, p.23). Brumberg
(1989) acredita que, em uma sociedade na qual cinco bilhões de dólares são
gastos anualmente em dietas, não é nenhuma surpresa que o tratamento dos
transtornos alimentares também esteja sendo comercializado.
O que causa, então, a anorexia? Existem hoje três modelos explicativos,
o biomédico, o psicológico e o cultural. A opinião de Brumberg (1989) é que
nenhum destes modelos, isolados, é capaz de explicar a doença, pois a
anorexia “é claramente um transtorno multideterminado que depende da
vulnerabilidade biológica, predisposição psicológica, familiar e ambiente social”
(p. 26). Ou seja, Brumberg (1989) é uma das proponentes do diálogo entre os
paradigmas que incentivam um modelo diversificado para explicar a anorexia.
Os proponentes do modelo biomédico apontaram diversas causas
para a anorexia, como distúrbios hormonais, problemas no hipotálamo, lesões
no sistema límbico do cérebro, etc. “Se a anorexia nervosa é associada com
alguma anormalidade orgânica, o hipotálamo é o local mais plausível para a
97
origem desta disfunção” (Brumberg, 1989, p.27). O hipotálamo é responsável
pela regulação do sistema homeostático do corpo, incluindo os centros que
regulam a ingestão de água e comida. Os profissionais da medicina têm
tentado diversos tratamentos farmacológicos, alguns com mais sucesso do que
outros.
Enfim, “a questão que os profissionais da medicina devem responder,
entretanto, não é se a doença tem ou não componentes somáticos (ela
obviamente tem), mas se os sintomas são primários ou secundários na
etiologia da anorexia”. Isto significa que não foi encontrada ainda uma condição
biológica nas anoréxicas que seja a causa da doença, e não uma
consequência da inanição. Apesar da proposta hipotalâmica, é difícil saber o
que veio primeiro, a inanição ou a lesão cerebral, e assim por diante.
Os modelos psicológicos sobre a anorexia costumam vir de três
correntes: psicologia social, teoria dos sistemas familiares e psicanálise.
Brumberg (1989) cita o modelo freudiano de maneira simplificada, apontando
que “em termos freudianos, comer, como todos os apetites/desejos, é uma
expressão da libido” (p.30), completando que a observação clínica das
anoréxicas confirma que elas não o, geralmente, ativas sexualmente. A
autora lembra também a associação que Freud fez entre anorexia, melancolia
e um desenvolvimento pobre da sexualidade.
Brumberg (1989) termina sua explicação do paradigma psicológico
dizendo que “[ele] é incompleto, como o modelo biomédico, pois falha em
fornecer uma resposta adequada às mesmas questões espinhosas (...) [como
prevalência de] gênero, aumento de incidência e afinidade com certa classe
social” (p.33). É importante lembrar que, quando a autora escreveu, realmente
havia uma prevalência clara por certas classes sociais. Tal situação, entretanto,
se modificou, mas a proporção de casos masculino/feminino ainda continua
desequilibrada, com a balança apontando para o feminino, numa proporção de
10 casos femininos para um masculino (GEATA, 2009).
Alguns autores, como veremos adiante, também sugerem que os poucos
casos masculinos estão, em sua grande maioria, localizados em homens cujas
profissões envolvem o cuidado com o corpo, como modelos, dançarinos, etc.
Portanto, apesar do argumento de Brumberg (1989) estar defasado, ele pode
ser atualizado e transformado em
98
(...) como o modelo psicológico explicaria a prevalência de 10
casos para um entre homens e mulheres e no fato de que os
poucos homens que sofrem da doença estão envolvidos em
atividades que, de alguma forma, envolvem o universo feminino
e o cuidado com o corpo?
Surge, portanto, o paradigma cultural, como uma via de explicação sobre
a anorexia. Este paradigma “postula que a anorexia nervosa é gerada por um
imperativo cultural poderoso, que torna a magreza atributo central da beleza
feminina” (Brumberg, 1989, p.33). Este traço cultural seria alimentado pela
“moderna mídia visual (...) a socialização feminina, nas mãos da mídia
moderna, coloca ênfase em qualidades externas, como a aparência”
(Brumberg, 1989, p.35). Desta forma, não comer seria um protesto contra a
maneira como as mulheres o vistas e tratadas pela cultura contemporânea.
Tal comentário parece ingênuo, mas existe uma grande corrente de
pensadoras feministas que o defendem, o que demonstrarei com a exposição
de outra autora contemporânea.
A autora propõe, então, pensar na anorexia como sendo uma doença de
duas fases. A primeira fase envolve “o contexto sociocultural, o recrutamento
para o comportamento de jejuar; a segunda fase incorpora a carreira de
anoréxica e inclui mudanças psicológicas e fisiológicas que condicionam o
indivíduo a viver em um estado de inanição” (Brumberg, 1989, p.41). Desta
forma, a primeira fase pode ter ocorrido em diversas épocas da história, por
motivos diversos. A segunda, aquela que é discutida por médicos e psicólogos,
teria algo em comum para a ocorrência da doença, através do tempo.
Exemplificando, tanto uma “santa” quanto uma garota contemporânea
podem começar a jejuar devido a contextos sociais, o que seria o primeiro
estágio. Após algum tempo jejuando, mudanças fisiológicas (como o dano ao
hipotálamo) e psicológicas ocorrem, mantendo certa semelhança, não obstante
o abismo histórico que separa uma da outra. Ou seja, estamos falando de
pressões culturais em constante interação com fatores biológicos e
psicológicos. Portanto, retomando a questão principal de Brumberg (1989),
existe ou não uma continuidade entre a anorexia santa e a anorexia nervosa?
A autora responde com um longo panorama histórico, como se pode observar a
seguir.
99
“Na Europa medieval, particularmente entre os anos de 1200 e 1500,
muitas mulheres se recusaram a comer, e o jejum prolongado era considerado
um milagre feminino” (Brumberg,1989, p.43). O exemplo mais divulgado destas
santas é o de Catarina de Siena (1347 – 1380), que comia apenas um punhado
de ervas todo o dia. Conforme os registros históricos, caso a forçassem a
comer, ela usava galhos na garganta para vomitar a comida que lhe fora
imposta. Outras, como Beatriz de Nazaré, vomitavam na presença de comida,
ou até mesmo de seu cheiro. A santa Columba de Rieti chegou a morrer de
auto-inanição. A autora comenta que, apesar de diversas santas terem trilhado
o caminho do jejum prolongado, existem poucos casos de homens santos que
utilizaram a mesma tática.
Brumberg (1989) acredita que o jejum das santas era vital para o
pensamento medieval, pois se alguém conseguia viver sem comida, isto
poderia ser explicado através de outras formas de comida, como “a oração e a
eucaristia” (p.44). Foram os médicos do século XVII e XVIII que começaram a
revisar os relatos das santas medievais, nomeando-os de anorexia mirabilis
(anorexia miraculosa) ou de inedia prodigiosa (uma grande fome). Durante a
época da Reforma protestante, entretanto, a abstinência era vista como uma
consequência demoníaca. A anorexia passava, então, a deixar seu aspecto de
santidade para ser associada à heresia ou até mesmo à insanidade. Contudo,
todo suposto caso de abstinência prolongada provocava um processo de
investigação, pois “sugeria a possibilidade de milagres (ou influência satânica)
(...) também sugerindo uma forma de santidade radical, um conceito perigoso
na altamente estruturada e diferenciada sociedade do início do período
moderno” (Brumberg, 1989, p.49).
Havia também, em torno dos casos de anorexia, uma disputa de poder
entre a Igreja católica, suas rivais protestantes e a medicina, que começava a
despontar como uma força científica. As histórias sobre as mulheres que
jejuavam “eram religiosas, pois elas testemunhavam a divina providência, mas
não eram teológicas, pois não faziam distinção entre a doutrina católica e a
protestante” (Brumberg, 1989, p.50). Diante de tantas histórias, que
começavam a se espalhar devido à popularização da imprensa, alguns casos
chamaram a atenção.
100
Por exemplo, em 1600 o dico francês Jacob Viverius observou uma
garota de 14 anos que dizia não ter comido nada em três anos. O próprio rei
Henrique IV “mandou seu melhor médico para avaliar a garota, para confirmar
se ela o fazia [o jejum] de maneira real ou enganosa” (Brumberg, 1989, p.51).
Este caso demonstra como, na época citada, tanto médicos como religiosos
eram considerados aptos a julgar tais casos. Começava, portanto, a
medicalização do corpo humano.
A teoria científica da época, mais utilizada para explicar a sobrevivência
das mulheres que jejuavam, se baseava na “teoria da fermentação”, que
acreditava que “as vesículas seminais e as partes genitais, assim como órgãos
de grande porte, estavam cheios de partículas que fermentavam feitas de sal,
enxofre, terra, água e espírito” (Brumberg, 1989, p.54). A fermentação seria a
responsável pela nutrição do sangue. Nas mulheres, em especial, o sangue
que estava por demais fermentado era expelido através da menstruação.
Pelo raciocínio de Reynolds, o fato de Martha não produzir excreções
aumentava a quantidade de elementos conservados em seu corpo. “Assim, o
fermento dentro do corpo enriquecia o sangue que circulava novamente, sem a
necessidade de alimento novo” (Brumberg, 1989, p.55). Curiosamente, devido
à teoria da fermentação, os médicos da época ligavam a anorexia à
adolescência das garotas, pois era nesta época que o processo de
fermentação começaria no corpo feminino (uma alusão à menstruação).
Outra preocupação dos médicos era saber quanto tempo uma pessoa
poderia viver sem comer. A maioria dos médicos acreditava que o tempo de
jejum pelo qual uma pessoa poderia sobreviver seria variável, dependendo da
constituição e do ambiente de cada um. “De qualquer forma, vários médicos
passaram muito tempo tentando calcular o número exato de gramas de comida
sólida necessária para manter a vida por certos períodos” (Brumberg, 1989,
p.56). Tal exemplo, o de calcular quanto um ser humano pode ou deve comer
para sobreviver, demonstra quão antigo é o hábito de se mensurar
matematicamente a relação entre o humano e o alimento. Durante o século
XVIII, o procedimento básico dos médicos era vigiar a pessoa continuamente,
medir a quantidade de excrementos diários da pessoa e, desta forma, tentar
empiricamente comprovar ou não o caso de jejum prolongado.
101
O termo fasting girls (garotas que jejuam, garotas jejuantes, em
tradução livre) era “usado pela sociedade vitoriana em ambos os lados do
Atlântico, para descrever casos de abstinência prolongada, onde havia
incerteza sobre a etiologia e ambiguidade sobre as intenções da pessoa”
(Brumberg, 1989, p.62). A escolha da palavra “girl” (garota, menina) parece
apropriada, pois os médicos da era vitoriana tentavam de diversas formas
associar o quadro à histeria, considerando que as épocas da infância e pré-
adolescência femininas eram particularmente propícias para o desenvolvimento
da anorexia. O termo anorexia mirabilis continuava aparecendo em dicionários,
mas era considerado antiquado, sendo rejeitado pelos médicos da época.
Outro aspecto importante a ser considerado é que as garotas jejuantes
se transformaram em fontes de inspiração para as diversas correntes da fé que
existiam na Europa e nos EUA durante o século XIX. Católicos e protestantes
utilizavam os casos das anoréxicas como fontes de inspiração e fé. As
anoréxicas acabaram por se tornar o pivô de uma grande discussão entre
ciência e religião, corpo e mente, e como essas esferas poderiam se
comunicar. Tal debate, típico da era vitoriana, recebia combustível constante a
cada nova anoréxica encontrada, que desafiava os pressupostos científicos
mais básicos, ou seja, “que a vida requer comida” (Brumberg, 1989, p.64). As
garotas acabavam, ao jejuar, por negar as leis científicas e promover um
resgate da religiosidade de eras passadas.
É interessante notar como a anorexia e a bulimia, como doenças, ainda
suscitam debates semelhantes em nosso mundo contemporâneo, contrapondo
cultura, psicologia e medicina, ou seja, o problema filosófico que elas
denunciavam continua, de certo modo, sem resposta. Voltando à era vitoriana,
alguns casos foram emblemáticos da época, como o de Sarah Jacob.
Os médicos vitorianos começavam a se incomodar com os constantes
relatos sobre Sarah Jacob, uma garota cujo jejum se tornara tão famoso que
desafiava a medicina da época. Os médicos, “citando estudos metabólicos, se
recusavam a admitir que qualquer ser humano pudesse sobreviver por mais do
que algumas semanas sem comida e água” (Brumberg, 1989, p.67). De
maneira geral, a opinião dos médicos era a de que Sarah era uma fraude,
recusando a idéia de anorexia mirabilis. Durante esse embate para provar ou
não a possibilidade de jejuns tão longos, não foi incomum, durante essa época,
102
que os médicos utilizassem casos do passado, comprovadamente
fraudulentos, como uma tentativa de desacreditar os casos que então estavam
sendo investigados.
O médico Robert Fowler, membro do Royal College of Surgeons, decidiu
investigar o caso de Sarah, o que mais tarde se transformou em um livro, cujo
título em inglês é A Complete History of the Welsh Fasting Girl (A história
completa da garota jejuante Welsh). Fowler tentou examinar a garota, “que ele
considerou bonita, mas cujos movimentos constantes dos olhos caracterizavam
uma histeria” (Brumberg, 1989, p.67). Eventualmente, a situação da garota
Welsh gerou tamanha comoção que a sociedade médica “providenciou para
que quatro enfermeiras confiáveis acompanhassem Sarah Jacob” (Brumberg,
1989, p.68). As enfermeiras fizeram uma revista completa no quarto, onde não
encontraram comida. Fazia parte da instrução delas o oferecer comida, não
importasse o que ocorresse.
Em um prazo de 36 horas, as enfermeiras registraram que perceberam
traços de fezes e urina, o que sugeria o consumo de comida previamente. A
situação cnica da garota piorava a cada hora que decorria, o que levou os
médicos a aconselharem a família a permitir que a garota recebesse comida. O
pai da garota recusou, perguntando: “Como podem vocês, médicos de
Londres, fazer com que minha criança coma, sem criar um buraco nela?
(Brumberg, 1989, p.69). Após dez dias de vigia das enfermeiras sobre a garota
Welsh, ela morreu de inanição.
O caso Welsh (que recebeu este nome devido à cobertura do jornal
Welshmann) foi importante na época, pois novamente pairava a sugestão de
que a anorexia mirabilis não era uma possibilidade real, indicando que os
casos de jejum prolongado não passavam de farsas bem elaboradas. O caso
também serviu como base de sustentação para certas crenças médicas da
época. Fora o consenso que a garota morrera de desnutrição, os médicos
acreditavam que ela estava em perigo devido à sua idade, pois “a puberdade e
o início da menstruação eram considerados como o começo de uma profunda
crise psicológica e fisiológica” (Brumberg, 1989, p.70). Acreditava-se que o
corpo da mulher apenas se recuperaria quando os períodos menstruais
estivessem regulares. É interessante pensar que, nos dias de hoje, o retorno
da menstruação é um indicativo de que a anorexia está no caminho de uma
103
melhora terapêutica, pois a mulher voltou a ter um funcionamento metabólico
adequado.
Fazia parte da crença da época que o desenvolvimento sexual feminino
exigia grande força” do corpo da jovem mulher. Desta forma, “os médicos
recomendavam que os pais supervisionassem a dieta, vestuário, atividade
física, sono e treinamento moral das garotas”. Atividades como ler e estudar
eram consideradas perigosas, assim como histórias românticas, pois tais
ocupações seriam estimulantes em excesso para o frágil corpo feminino. Havia
também a crença de que a chance de a histeria se manifestar nesta idade era
alta, devido às demandas excessivas sobre o sistema nervoso da garota.
nessa época, um jovem médico, que mais tarde teria seu nome
permanentemente associado à anorexia nervosa, William Withey Gull,
descrevia casos de problemas do apetite em jovens mulheres, utilizando o
nome “apepsia histérica”.
Devido à repercussão da morte de Sarah e de outras garotas, cujas
autópsias revelavam mais e mais casos de fraude e conluio familiar, teve início
uma preocupação sobre como tratar as jovens anoréxicas, que atingia até
mesmo as esferas governamentais. Uma nova luta começava entre duas
classes distintas: os neurologistas somáticos e as mulheres religiosas. Os
neurologistas afirmavam que o único intérprete adequado para o corpo humano
era a medicina, constantemente lembrando para o público casos antigos, como
o de Sarah, onde havia ficado clara a existência de manipulação das
evidências.
Para a medicina vitoriana, o diagnóstico de anorexia mirabilis era uma
maneira de conferir poder simbólico às mulheres, contrariando as leis da
ciência do mundo moderno. O que era chamado de espírito divino era
compreendido por eles como “apenas outro nome para epilepsia, catalepsia,
êxtase, histeria ou insanidade” (Brumberg, 1989, p.75). Os neurologistas
demonstravam particular irritação com milagres, experiências religiosas e
pensamento irracional, em qualquer situação.
No século XIX, um dico se dedicou a escrever sobre os casos de
anorexia e os paradoxos do viver sem se alimentar: chamava-se William
Hammond (1828-1900) e escreveu o livro “Garotas jejuantes: sua fisiologia e
patologia”. Afirmava que “nem as santas nem as garotas jejuantes eram
104
milagrosas. Elas eram simplesmente histéricas, e necessitavam de intervenção
médica” (Brumberg, 1989, p.77).
Hammond defendia a idéia de um tipo de distúrbio capaz de interferir
com várias partes do corpo, particularmente com a contratibilidade dos
músculos. Esta patologia, associada à histeria, recebia denominações como
catalepsia
15
e epilepsia histérica. A disputa entre neurologistas, ecléticos e
correntes religiosas acabou tendo um efeito positivo e outro negativo. Por um
lado, as questões relativas a como realizar uma experiência sobre abstinência
de comida, controlar tentativas de enganação e validar os sintomas
prosperaram.
Na perspectiva de Brumberg (1989, p.98), o culo XIX pode ser
considerado um divisor de águas para a interpretação do ato feminino de jejuar.
No começo do século em questão, o ato era considerado um símbolo de
piedade. Ao final do XIX, o mesmo ato já era considerado um sintoma médico:
Em 1910 os delírios religiosos haviam desaparecido totalmente
das classificações sobre indivíduos mal-nutridos. Este
acontecimento sugere que (...) o controle do apetite e a recusa
alimentar haviam se movido, do reino da religião para o secular
(Brumberg, 1989, p.98).
Os médicos vitorianos, buscando a racionalidade e a afirmação de sua
autoridade, classificavam os novos casos como doenças, sem considerar
qualquer possibilidade sobrenatural. Ocorria, portanto, a transição da anorexia
mirabilis para a anorexia nervosa, no século XIX.
Portanto, existe aí uma questão, isto é, como e quando a anorexia
passou a realmente ser considerada uma doença independente? Durante o
século XIX a medicina era altamente estratificada, sendo que a classe média
evitava instituições públicas, como asilos e hospitais, pois os ambientes eram
considerados adequados apenas para os pobres. Os médicos que trabalhavam
em tais hospitais eram tidos como de menor status. A anorexia foi observada
tanto em instituições públicas como particulares, mas em geral ela “se encaixou
no perfil dos praticantes [médicos] de alto status, devido a considerações
15
A catalepsia é, de maneira geral, uma condição na qual a pessoa perde a capacidade de se movimentar,
apresenta rigidez muscular, mas mantém a consciência. Foi associada, em certas épocas, com fenômenos
histéricos ou com a esquizofrenia.
105
sociais que moldavam a doença, as possibilidades de acesso do indivíduo ao
sistema de saúde e a natureza do tratamento em si mesma” (Brumberg, 1989,
p.101).
O primeiro problema era diferenciar quando a falta de apetite se devia a
causas orgânicas ou mentais. O Dr. Luther Bell, médico do hospital McLean,
perto de Boston, dizia que esta era uma “dificuldade muito embaraçosa”
(Brumberg, 1989, p.102). De qualquer forma, a diferenciação costumava ser
baseada em sintomas externos e não em uma classificação etiológica.
Entretanto, o desenvolvimento da psiquiatra trouxe evoluções para a maneira
como a falta de apetite e outros sintomas eram encarados. Era comum que
jovens dicos de asilos fossem informados que “ao estudar doenças mentais
nós devemos levar em conta instintos e apetites, como amor pela vida, funções
sexuais e reprodutivas, instintos sociais e apetite pela comida e bebida”
(Brumberg, 1989, p.102).
Presente no pensamento psiquiátrico em desenvolvimento estava uma
associação entre anorexia e melancolia. Os melancólicos incluíam um amplo
espectro de transtornos depressivos, que “realmente inibiam o apetite normal”
(Brumberg, 1989, p.103). Os melancólicos também eram conhecidos por suas
tentativas de suicídio nos asilos e perda da voz.
Na realidade, no início, o tratamento da anorexia começou a ser
direcionado pelos asilos. “De forma inquestionável, os médicos dos asilos veem
muito mais e têm, portanto, mais experiência em debelar tentativas de inanição
que qualquer outra parcela da profissão [médica](Brumberg, 1989, p.103). A
alimentação forçada era encarada com relutância pelos médicos dos asilos,
mas utilizada quando o quadro clínico era considerado preocupante.
“Em 1859, no American Journal of Insanity, William Stout Chipley (1810-
1880) publicou a primeira descrição americana de sitomania, uma fase de
insanidade caracterizada pelo pavor à comida” (Brumberg, 1989, p.104). O Dr.
Chipley era chefe do asilo para lunáticos do Kentucky e cunhou o termo ao unir
a palavra grega sito, que significa grão, com mania, provavelmente tentando
designar a intensidade do momento de aversão pela comida que ele observara
em seus pacientes. Quando ele assumiu o asilo, sua primeira preocupação foi
sua organização, criando termos e siglas que facilitassem a classificação dos
pacientes internados. Sua intenção, ao criar o termo sitomania, era obter
106
clareza na classificação dos doentes, para conseguir diagnósticos mais
precisos. Tal intenção, por exemplo, pode ser encontrada ainda hoje nos
manuais diagnósticos, como o DSM-IV e o CID-10.
O médico J. A. Campbell, por exemplo, relatou casos semelhantes em
sua prática no asilo Garlands, na Inglaterra. Para ele, as garotas histéricas, que
recusavam comida, deveriam ver os procedimentos de alimentação forçada, o
que geralmente levava à aceitação da comida. Ambos os médicos, entretanto,
apontavam uma diferença entre as sitofóbicas e as antigas garotas jejuantes,
que era o fato de que as sitofóbicas, apesar de apresentarem sintomas
semelhantes, não acreditavam possuir nenhum poder especial ou necessidade
religiosa que justificasse a recusa do alimento.
“Os pais não faziam nenhuma declaração pública sobre a duração de
sua abstinência ou sua inspiração milagrosa. (...) Seu local de exposição era a
residência privada, a família e amigos” (Brumberg, 1989, p.106). A negação da
necessidade alimentar era interpretada, por esses médicos, como uma maneira
de tais garotas chamarem a atenção, a simpatia, e exercerem poder sobre
seus amigos e familiares. Os médicos dos asilos estavam ansiosos para obter
o aval da sociedade para tratar as anoréxicas, pois eram provenientes de
famílias ricas, o que significaria dinheiro e prestígio para os asilos.
Ocorria, entretanto, que os pais das sitofóbicas relutavam em levá-las
para os asilos, pois estes eram vistos como locais adequados para os loucos e
pobres, não para garotas respeitáveis da classe dia ou alta. Portanto,
apesar da experiência dos médicos dos asilos em tratar a anorexia, o status
social do asilo não era conveniente para essas famílias, que preferiam que
suas filhas frequentassem outras instituições. Outra questão envolvida era que
“as garotas descritas por Chipley não eram, certamente, tão loucas como os
outros pacientes que se recusavam a comer no asilo” (Brumberg, 1989, p.108),
e assim, não estavam enquadradas nos quadros graves que eram tratados nos
asilos da época.
Em termos modernos, poderíamos dizer que Chipley percebia que elas
não eram psicóticas, mas também o sabia como classificá-las
adequadamente. Essas garotas não ouviam vozes e não tinham
comportamento indecente. Enquanto seu corpo não atingisse um grau
excessivo de magreza, elas poderiam continuar seu convívio social, o que as
107
diferenciava dos outros pacientes do asilo. Este fato era incentivado pelo
comportamento esperado das mulheres vitorianas, que deveriam comer pouco
e aparentar fragilidade.
Desse modo, ocorria uma conjunção de fatores que dificultava a inclusão
das anoréxicas nos asilos para lunáticos. Em primeiro lugar, existia um estigma
em relação ao local e à hospitalização em tais locais. As famílias das
anoréxicas, normalmente com boas condições econômicas, preferiam soluções
alternativas, como clínicas particulares, viagens para locais considerados
terapêuticos ou para a casa de familiares distantes. Quando, entretanto, os
recursos financeiros da família começavam a se esgotar e o estado físico da
garota era preocupante, uma outra instituição começava a despontar como o
local adequado para o tratamento, que era o hospital geral.
“Quando na entidade médica moderna anorexia nervosa foi nomeada e
identificada, ela se auto-recomendava para médicos (e famílias) precisamente
porque ela era um diagnóstico médico que se ajustava aos aspectos clínicos e
sociais do hospital” (Brumberg, 1989, p.109). A seguir, Brumberg (1989) irá
descrever as atuações de Gull e Lasègue, dois grandes nomes relacionados à
anorexia. Por serem os primeiros a conceder à doença um estatuto autônomo,
nomearei o capítulo como sendo o das primeiras contribuições médicas para a
constituição da anorexia como uma patologia autônoma.
B) William Witnhey Gull (1816-1890)
Embora com a atuação dos asilos e seus superintendentes, a anorexia
ainda não havia encontrado um local para seu tratamento. As idéias de
Chipley, apesar de sua divulgação, não conseguiram provocar atenção na
classe médica, pelo menos não a ponto de causar uma mudança na maneira
como a doença era entendida ou tratada. Entretanto, “após 1873, como
resultado de dois relatos clínicos influentes um de um famoso médico
londrino e o outro de um neurologista francês de alta reputação –, os médicos
começaram a falar sobre uma forma especial de anorexia” (Brumberg, 1989,
p.109). Ou seja, a influência de dois grandes nomes na história da doença, Gull
e Lasègue, começou a fazer efeito no mundo médico.
108
Naquela época, “a virtuosidade de um médico era demonstrada pela
diferenciação bem-sucedida de uma doença da outra” (Brumberg, 1989, p.110).
A capacidade de diagnóstico era, de fato, considerada o ápice da atividade
profissional daquele período. A grande conquista de Gull neste campo foi
“conceber a anorexia nervosa como uma entidade patológica distinta da
inanição entre os insanos e/ou o relacionada a causas orgânicas, como
tuberculose, câncer ou diabetes” (idem). O objetivo de Gull era o de realmente
nomear uma nova patologia, com critérios diagnósticos próprios e não
relacionada a outros tipos de desnutrição causados por outras doenças.
Gull, assim como outros antes dele, apontara a necessidade de realizar
um diagnóstico diferencial, eliminando possíveis causas orgânicas e também
da insanidade. Para ele, o diagnóstico proposto por Chipley, a sitofobia, era
uma categoria ampla e imprecisa. Porém, a anorexia nervosa “era associada
com uma faixa etária específica e sugeria algo importante sobre a etiologia do
comportamento: a falta de apetite era nervosa em sua origem” (Brumberg,
1989, p.111). Assim se concretizavam algumas das diferenças que a
experiência do asilo havia trazido, como: o fato de as anoréxicas não
apresentarem sintomas psiquiátricos comparáveis com outras classes de
insanos; o fato de essas garotas estarem doentes demais para permanecer
sem cuidado médico, mas não loucas a ponto de necessitarem da internação
em um asilo.
Assim, a anorexia começava a ser encarada como uma doença “na
fronteira da insanidade” (idem). É interessante pensar que começava o
dilema sobre o local que a anorexia deveria ocupar, tanto em termos de
tratamento quanto perante os diagnósticos em geral. Estar na fronteira da
insanidade lembra diversas descrições atuais que, para explicar a anorexia,
citam a neurose, a psicose, a perversão, mas rapidamente esclarecem que a
anorexia não estaria, propriamente, em nenhum destes campos.
Aparentemente a noção de que a anorexia é uma doença de fronteira teve e
continua tendo repercussão no mundo científico.
Para Gull, a anorexia era uma espécie de aberração moral ou mental,
cujas raízes se encontravam no sistema nervoso, mas que eram reforçadas
pela idade da paciente e estilo de vida. Estava começando a se tornar
percepção corrente entre os dicos que certos casos de doença estavam
109
associados às classes abastadas. O cirurgião Benjamin Brodie observou que
ele nunca havia visto um caso de histeria “entre mulheres que comem pão com
suor em suas faces” (idem). Assim, a associação entre histeria e as classes
ricas começava a se cristalizar, uma ligação que se estenderia à anorexia.
Uma das primeiras constatações dos médicos é que as anoréxicas do
século XIX vinham realmente de famílias ricas e não precisavam realizar
atividade remunerada. “Na realidade, estas garotas eram privilegiadas com
lazer, mesmo se auxiliassem suas mães com as tarefas da casa” (Brumberg,
1989, p.112). As doentes também pareciam estar em busca de ajuda algum
tempo em clínicas, médicos particulares ou viagens, o que demonstrava o
potencial econômico de suas famílias.
Para evitar a internação, especialmente em asilos, as famílias seguiam
os tratamentos prescritos pelos clínicos gerais ou médicos da família, como
“banhos quentes, massagens, tentativas deliberadas de estimular o apetite com
quitutes desejáveis. Em casos extremos, a alimentação forçada poderia ocorrer
em casa ou no consultório médico” (idem). Outro procedimento recorrente era a
estimulação com choques elétricos, conhecido na época como “aplicação da
corrente farádica
16
”. O uso de viagens continuava sendo utilizado como
procedimento terapêutico, sendo incluído nas medidas necessárias para
restaurar a moral da garota adoentada.
Entretanto, quando as medidas recomendadas pelo clínico geral não
eram suficientes para interromper o emagrecimento, outra classe médica era
convidada a intervir, que eram os especialistas. Estes, famosos por seus
conhecimentos aprofundados de diversas moléstias, “providenciavam a maior
parte da literatura dica profissional do século XIX” (Brumberg, 1989, p.113).
Este fato, infelizmente, fez com que as experiências dos clínicos gerais tenham
se perdido, restando poucos relatos de como eles lidaram, com sucesso ou
não, com os casos de anorexia.
Gull era um membro da Clinical Society of London “pela virtude de seu
status social e reputação profissional” (idem). Ele era médico em diversos
16
A corrente elétrica farádica é um tipo de fenômeno elétrico do tipo bifásico e de curta duração. Devido
à duração curta do pulso elétrico, a corrente farádica é especialmente indicada para o tratamento de dores
musculares, melhorar a resposta muscular em casos de lesões e diversos outros tipos de tratamentos que
envolvem a musculatura em geral. Atualmente, a definição de corrente farádica varia muito, mas, em
geral, se trata de uma corrente com frequência baixa, entre 50 a 100 hertz e com duração de 1 a 20
microssegundos, a cada pulso.
110
hospitais de Londres e dirigiu alguns deles. Professor de fisiologia, sempre
esteve preocupado com a incorporação do conhecimento científico à prática
médica. Em 1868, Gull foi convidado para proferir uma palestra na Clinical
Society. Esta palestra não mencionou o termo “anorexia nervosa”, mas se
referiu ao problema do diagnóstico diferencial, utilizando fatos realmente
capazes de nortear o diagnóstico.
O exemplo de Gull, nessa primeira apresentação, foi “uma condição
nervosa do estômago um tipo de indigestão, que ele chamou de apepsia
histérica” (Brumberg, 1989, p.114). Durante a palestra, Gull enfatizou como o
conhecimento de outros quadros do estômago e a ausência de tuberculose
eram suficientes para o diagnóstico diferencial entre as outras patologias e a
que ele recentemente nomeara.
Portanto, quando Gull anunciou que proferiria outra palestra na Clinical
Society, o fato prontamente chamou a atenção da sociedade inglesa. Gull não
seguiu o procedimento-padrão, não preenchendo o formulário da palestra uma
semana antes, o que teria indicado aos médicos o tema de sua próxima
conferência, onde o que antes fora chamado de apepsia histérica receberia um
novo nome, anorexia nervosa.
C) Charles Lasègue (1816 – 1883)
De acordo com Brumberg, existiam diferenças grandes entre as
descrições de Gull e Lasègue. “O relatório de Gull era fundamentalmente
médico, mantendo o foco em como o médico poderia concluir que a condição
envolvia o simples emagrecimento e nenhuma outra doença orgânica”
(Brumberg, 1989, p.118). Lasègue, por outro lado, teceu um comentário
psicológico, descrevendo os estágios mentais pelos quais a anoréxica passava,
comentando o curso da doença e a influência da família. Outra diferença de
opinião era em relação à gravidade da doença. Gull acreditava que a anorexia
poderia resultar em morte, enquanto Lasègue afirmava nunca ter visto algo do
tipo ocorrer. No embate Gull X Lasègue já era possível antever um embate que
continua nos tempos de hoje entre a medicina e a psicologia, sobre a etiologia
da anorexia nervosa.
111
Outra diferença entre Gull e Lasègue ocorreu no campo da denominação
da patologia. Gull se opunha ao termo histeria, pois acreditava que devido à
sua derivação (hysteros=útero) a doença ficaria restrita ao gênero feminino.
Gull chegou a afirmar que, apesar da alta predominância feminina, ele havia
presenciado casos de anorexia masculina. Brumberg (1989, p.118) afirma que
Gull o apresentou casos de anorexia masculina e que nenhum outro
pesquisador do culo XIX também o fez. Para Gull, o termo histeria não seria
também uma boa escolha devido “à imprecisão da categoria, particularmente
pelo seu uso frequente pelos neurologistas” (idem). No final, perante um
grande público em Londres, Gull assegurou que o real valor da pesquisa de
Lasègue foi o de ter obtido uma verificação independente da mesma patologia
que ele descobrira.
Uma audiência de médicos que ouviu Gull pareceu “absorver a
mensagem central, que a anorexia nervosa era essencialmente uma condição
mental e não uma doença [orgânica]” (Brumberg, 1989, p.123). Os colegas de
Gull, todavia, levantaram questões com relação à etiologia, ao tratamento e ao
grau de insanidade que acometeria as anoréxicas. Sir William respondeu a
poucas perguntas, mas uma de suas respostas foi que não existe “grande
quantidade de histeria na anorexia nervosa, mas ela dificilmente também
poderia ser chamada de insanidade” (idem). Ou seja, na resposta de Gull é
possível enxergar novamente a problemática da anorexia como uma doença de
fronteira, que não é bem uma insanidade, mas que possui uma certa
quantidade de histeria, ou seja, uma descrição fronteiriça.
De qualquer forma, a anorexia começava a ganhar seu status de doença
independente, com critérios diagnósticos, e que deveria ser tratada fora do
asilo para lunáticos, e todo um movimento que ocorria em torno da doença
se concretizou. Ela adquiriu uma descrição sob o aspecto de patologia, e foi
associada a uma condição nervosa, mas não à insanidade característica das
outras patologias que frequentavam os asilos de insanos, e também assumia
outra característica importante, a de ser uma doença típica da burguesia da era
vitoriana.
“Ao final do século XIX, as famílias de classe média se diferenciavam
das outras pelo seu tamanho decrescente e pela maneira como elas criavam
seus filhos” (Brumberg, 1989, p.124). Começava a surgir uma classe de filhos e
112
filhas que viviam com seus pais aa época do casamento, o que se tornaria
conhecido como fase da adolescência. Este período de dependência estava
em contraste com o modo de vida das classes pobres, que costumavam viver e
trabalhar fora de seus lares de origem desde a infância. Ocorria, portanto, um
fenômeno inesperado, que era o fato de que os filhos de classe média
adquiriam um valor emocional alto para a família, ao mesmo tempo em que seu
valor econômico era nulo. A vida de tais filhos recebia uma atenção por parte
dos pais que não acontecia em outras classes sociais, ao mesmo tempo em
que as regras e normas que incidiam sobre elas aumentavam. Era o início da
adolescência, como a compreendemos hoje.
Neste novo modelo familiar, as mulheres eram orgulhosamente mantidas
a distância do mercado de trabalho. Isto ocorria pois elas poderiam “comprar
(em vez de produzir) as coisas que elas precisavam ou desejavam” (idem). As
mulheres se tornavam, assim, um símbolo do status da nova classe social que
emergia, demonstrando a capacidade burguesa de manter suas filhas em casa,
sem a necessidade de trabalhar. Assim como em relação ao trabalho, as
atividades que envolviam o romance e a sexualidade eram adiadas ao máximo:
“os médicos encorajavam as garotas a adiar o casamento até o início dos 20
anos, baseando-se na idéia de que o desenvolvimento pélvico estava
incompleto até esta idade” (Brumberg, 1989, p.125).
É possível argumentar que essas jovens viviam sob um verdadeiro
escudo de proteção, não expostas à sexualidade ou ao trabalho. Em
contrapartida, os pais investiam nas garotas econômica e emocionalmente.
Apesar de tal situação ser motivo de orgulho para a burguesia emergente,
“poucos paravam para levar em consideração que o abrigo que protegia as
mulheres do mundo impiedoso tinha seus próprios problemas” (idem). Não
existia ainda uma percepção de que a dependência prolongada que essas
mulheres viviam poderia suscitar tipos específicos de psicopatologias.
A descrição de Lasègue sobre a anorexia torna-se valiosa justamente
nesse ponto, pois o médico francês observou com atenção o padrão das
famílias e das jovens que eram acometidas pela anorexia em sua época. “Foi
Lasègue, e não Gull, que produziu o primeiro olhar sob o ambiente familiar em
que viviam as anoréxicas” (idem). Lasègue participava de uma corrente
francesa de psiquiatria, os chamados médicins-alienistes, cujo interesse era
113
descrever grupos de sintomatologia que se encaixavam em um quadro maior,
que era o da histeria.
É por este motivo que Lasègue escolheu denominar a anorexia de
“anorexia histérica”, em consonância com sua idéia de que esta seria uma
forma peculiar de histeria do centro gástrico. Embora este médico utilizasse
diversos conceitos dos neurologistas da época, seu trabalho enfocou o
ambiente familiar das anoréxicas, o que foi uma contribuição valiosa para o
entendimento da doença. “A dependência prolongada adicionada ao amor dos
pais parecia preparar o palco para a anorexia nervosa nas filhas de classe
média” (Brumberg, 1989, p.126). O fato é que a anoréxica, ao recusar a fartura
que a posição social de seus pais poderia oferecer, acabava por controlar toda
a família, transformando-se no centro de preocupação dos familiares.
Lasègue, percebendo a influência familiar, defendia a idéia de que a
condição histérica das anoréxicas ocorria sempre em conjunto com “as
preocupações daqueles que estão à sua volta. Estas duas circunstâncias estão
intimamente conectadas e nós teremos uma idéia errônea sobre a doença se
nos restringirmos a [apenas] examinar a paciente (idem). Lasègue, na
verdade, afirmava algo que Gull apenas sugeria, isto é, que as anoréxicas
pertenciam a famílias com recursos financeiros e com disponibilidade
econômica e emocional para se dedicarem às suas famílias. De fato, ele foi o
primeiro médico a identificar a recusa alimentar como uma forma de conflito
intrafamiliar “entre a garota em desenvolvimento e seus pais” (idem).
Brumberg (1989, p.127) sugeriu que o fato de Lasègue ser um
admirador da culinária francesa também contribuiu para que ele percebesse a
relação entre amor e comida presente na recusa alimentar. O dico francês
parecia ficar estarrecido com a recusa dos melhores pratos que uma família
poderia oferecer ao paladar de suas filhas.Então, pelas contribuições de
Lasègue sobre a anorexia, parece importante detalhar melhor suas
observações.
Lasègue acreditava que a doença surgia entre as idades de 15 e 20
anos, devido a causas emocionais. Tais causas não foram documentadas
extensivamente, pois não era prática corrente dos médicos dessa época anotar
os depoimentos das próprias pacientes. De qualquer forma, Lasègue ligava o
início da anorexia a eventos, que hoje em dia ligaríamos à transição para a
114
idade adulta, como “expectativas românticas fracassadas, oportunidades
sociais ou educacionais não realizadas e brigas com os pais” (Brumberg, 1989,
p.127). Para ele, a doença se desenvolveria em não menos do que dezoito a
vinte e quatro meses, englobando três estágios diferentes.
“No primeiro estágio, a jovem mulher começava a expressar um
desconforto geral após a refeição” (idem). O relato costumava ser somático,
como uma sensação de estar com o estômago cheio ou com dor após a
ingestão de alimentos. A dor, nesses casos, “era abrupta e sem relação com o
tipo de alimento consumido, e costumava estar acompanhada por vômito ou
disfunções do intestino” (idem). Aos poucos, a garota começava a reduzir a
alimentação, suprimindo este ou aquele item da dieta, fazendo com que
refeição após refeição se tornassem cada vez mais empobrecidas e
espaçadas. Para Lasègue, quando “o repertório alimentício estava reduzido a
quase nada, a doença está declarada” (Brumberg, 1989, p.128).
Durante o primeiro estágio, apesar de a ingestão alimentar ser
consideravelmente menor, a saúde da paciente costumava se manter em bons
patamares. “O lento processo de inanição era, entretanto, acompanhado de
uma hiperatividade observável” (idem). As pacientes de Lasègue mantinham,
nesse estágio, uma agenda social considerada “fatigante”. O fato de serem
capazes de participar de tantos eventos e compromissos costumava ser
utilizado pelas próprias pacientes para argumentar que sua saúde era boa.
Contudo, a despeito de a paciente manter um ritmo acelerado de atividades e
não demonstrar doenças observáveis, seu comportamento começava a
despertar desconforto em sua família. O ato de cear em família, considerado
essencial para a família burguesa da França nessa época, era perturbado pelo
comportamento da anoréxica. Os pais costumavam, nesses casos, oferecer-lhe
comidas apetitosas ou utilizar o argumento de que se alimentar era uma
expressão de amor filial.
Lasègue notava que “o excesso de insistência alimenta o excesso de
resistência”, demonstrando que ele percebia que a oferta dos mais variados
alimentos em nada contribuía para a mudança do quadro. O fato de a culinária
francesa ser reverenciada também atribuía à recusa um caráter simbólico ainda
maior. Conforme a jovem continuava a recusar os melhores alimentos, os pais
começavam a “induzir culpa pelo ato de não comer, transformando o ato de
115
comer em um ato de amor, uma prova soberana de afeição” (Brumberg, 1989,
p.129). Se a filha realmente amava seus pais, ela voltaria a comer, este era o
argumento dos pais das anoréxicas que Lasègue observou. Para ele, o fato de
o argumento emocional dos pais não surtir efeito indicava que “uma perversão
mental havia se instalado” (idem). A recomendação aos médicos, neste
estágio, era que observassem, pois uma doença de longa duração estava
apenas começando.
Durante o estágio dois, “o médico permanecia nos bastidores, enquanto
o estado mental da paciente se intensificava e sua anorexia se transformava no
objeto único de preocupação e das conversas [da família]” (idem). A paciente
se tornava o centro das atenções da família e isto deixava a patologia ainda
mais forte, segundo Lasègue. A anoréxica parava de desejar sua cura,
assumindo uma postura de contentamento em relação a seu quadro. Os
desconfortos físicos presentes no primeiro estágio cessavam. A jovem
anoréxica, neste estágio, concordava em participar das refeições familiares, “se
sentando ali, visível mas abstêmia, (...) indiferente à qualidade, quantidade ou
atratividade da comida que sua família oferecia” (Brumberg, 1989, p.130).
Lasègue observou uma mudança no discurso das pacientes entre os
estágios. Enquanto no primeiro estágio a jovem reclamava de sintomas físicos
que a impediam de comer, no segundo estágio ela dizia: “Eu não sofro,
portanto devo estar bem” (idem). O médico ficava estarrecido com este
otimismo inabalável das pacientes. Outra observação significativa do médico é
que a menstruação começava a se tornar irregular ou ausente, sendo que “a
constipação crônica não mais respondia aos laxantes comuns” (idem).
O estágio três era caracterizado pela debilidade física evidente da
paciente, pois a “magreza exagerada, debilidade e anemia começavam a
aparecer” (idem). Lasègue também anotou outros sintomas, como amenorréia,
sede crônica, pele seca, constipação prolongada, estômago atrofiado, anemia,
vertigens e desmaios. Era nesse estágio, segundo Lasègue, que as famílias
começavam a buscar ajuda especializada. O terror e medo que a família sentia
eram percebidos pela paciente, que também começava a temer sua morte.
Para o dico, era neste estágio que o médico tinha maiores chances de
intervenção e de impor sua autoridade moral. A anoréxica poderia, então,
seguir dois caminhos: ou ela se tornava obediente ao médico, sem restrições, o
116
que era raro; ou ela assumia uma postura semidócil, acreditando que ao
modificar ligeiramente seu comportamento ela poderia escapar à morte, sem
renunciar ao seu estilo de vida. A segunda opção era, para Lasègue, a mais
comum.
Infelizmente Lasègue nunca detalhou sua estratégia de nutrição das
anoréxicas. Ele apenas mencionou a dificuldade em restabelecer um estômago
atrofiado, dizendo que “a mudança ocorria de forma lenta, com sucessivas
tentativas” (Brumberg, 1989, p.131). Diferentemente de Gull, Lasègue
acreditava no potencial da anorexia em causar a morte. Outro aspecto notado
por Lasègue era a quantidade de recursos, econômicos e emocionais, que os
pais do final do século XIX estavam dispostos a gastar com suas filhas, e filhos
também, em outras ocasiões. Isto evidenciava que os adolescentes estavam
conseguindo atingir demandas econômicas e sentimentais, demonstrando uma
quebra do patriarcado em seu poder absoluto.
Apesar da descrição detalhada de Brumberg (1989) sobre as idéias de
Lasègue, acredito que é justo ir direto à fonte e procurar alguns detalhes que,
certamente, podem ser encontrados no texto original
17
. Portanto, no
parágrafo seguinte, comentarei o texto do próprio Lasègue, ressaltando
algumas de suas observações mais importantes, que ilustram, assim, o que
Brumberg (1989) escreveu.
Lasègue (1998) deixa claro, desde o início de seu texto, que está
tratando de um caso relacionado à histeria. Ao apresentar um caso que ele
considera como “esquemático da doença” (p.160), ele fala que se trata de uma
moça entre 15 e 20 anos, o que provavelmente é um indicativo da
observação de que a anorexia tem início em idade jovem. O autor é claro ao
dizer que existe um evento, algo que contraria a garota, uma paixão não
satisfeita ou algo semelhante, que desencadeia o transtorno. Tudo começa
com um desconforto após as refeições, que não chega a causar espanto, nem
à jovem nem à sua família. Após a repetição do mal-estar por rios dias, “a
doente chega à conclusão de que o melhor remédio para esse mal-estar
indefinido, particularmente penoso, consiste em diminuir sua alimentação”
(p.160).
17
Utilizarei a tradução para o português do texto de Lasègue, que foi feita por Mario Eduardo Costa
Pereira, para a revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental.
117
Normalmente, uma pessoa que começasse tal jejum, após sentir uma
real fome, logo voltaria a alimentar-se. Tal classe de doentes, entretanto,
continua a recusá-lo, até que “passadas algumas semanas, não são mais
repugnâncias supostamente passageiras, mas uma recusa da alimentação que
será prolongada por tempo indefinido” (Lasègue, 1998, p.161). O autor adverte,
em especial, contra a intimidação da garota, na tentativa de fazê-la comer, pois
isto aumentaria sua repugnância pelo alimento. É um momento no qual o
médico pode apenas presenciar o que se passa, segundo Lasègue, mas
sabendo que uma verdadeira moléstia se instalou.
Causa espanto a Lasègue que o mal-estar gástrico das jovens, diferente
do de outras pessoas que sofrem de problemas do estômago, se constitui por
uma forma de “sensação dolorosa [que] não existe apenas por causa da
comida, mas persiste mais ou menos viva no intervalo entre as refeições”
(Lasègue, 1998, p.161). O autor não tem dúvidas ao atribuir tal sensação a
uma forma de perversão do sistema nervoso central, pois não existe nenhuma
causa, localizada nos órgãos digestivos ou adjacentes, que justifiquem as
dores e o mal-estar.
O autor afirma que não relação entre o tipo de alimento consumido e
a sensação, sendo que o tipo de alimento pode ser o mais variado possível e
causar o mesmo tipo de efeito em várias moças. Após um período, para
espanto do autor, os sintomas histéricos desaparecem e surge uma “espécie
de alacridade que não lhe era costumeira: um pouco como se tomasse
precauções para os períodos ulteriores e preparasse argumentos aos quais
não deixará de recorrer” (Lasègue, 1998, p.162).
Os alimentos começam a ser cortados progressivamente, um a um, o
que dura semanas ou meses, “sem que a saúde geral pareça
desfavoravelmente influenciada” (Lasègue, 1998, p.163), com o sono em ritmo
regular e pouco sinal de emagrecimento. O autor associa este não-
emagrecimento súbito, nem um empobrecimento geral das funções orgânicas à
retirada gradual dos alimentos, e compara a situação com os franceses que
resistiram ao cerco de Paris em 1871, e que, apesar de reduzirem sua
alimentação gradualmente, não apresentaram danos severos à sua saúde.
Outra consequência observada é o aumento dos movimentos das pacientes, o
que em geral as leva a ampliar suas atividades sociais.
118
É importante que Lasègue tenha observado que, com o avançar da
doença, “as disposições de seus familiares modificam-se” (idem), e que junto a
esta mudança familiar, o quadro da jovem também se agrava. O autor alerta os
médicos para que não prometam uma cura rápida, pois caso o façam, perderão
sua autoridade moral perante a doente e sua família. Conforme os meses
passam, a doença piora e é que “vai se desenhar a perversão mental que,
por si, é quase característica e justifica o nome que propus, por falta de opção
melhor, de anorexia histérica” (Lasègue, 1998, p.164). Apesar de as famílias
suplicarem ou ameaçarem as garotas, os únicos recursos dos quais dispõem, a
moça nada come, fazendo com que toda as atenções familiares se voltem para
ela. Quanto mais os familiares e amigos se concentram na doença, mais o
quadro se agrava.
A resposta das garotas parece padronizada para Lasègue (1998), pois
todas respondem que se sentem satisfeitas, que não sentem fome, que
comeram o suficiente, o que deixa suas famílias sem resposta, pois o
argumento delas é definitivo. Na realidade, elas afirmam “que o sentem
sofrimentos e que esses receios são desmentidos pelo seu bem-estar” (p.165).
As dores gástricas, neste estágio, sumiram, o que reforça os argumentos da
doente. O autor é categórico ao dizer que tal jejum não tem relação com a
melancolia, pois “a doente assiste com prazer às refeições da família, contanto
que a deixem comer segundo sua vontade” (idem). Ou seja, a anoréxica
continua participando da vida familiar, não se retrai como um melancólico,
apenas não come. E malgrado apresentar sintomas orgânicos da
desnutrição, a anoréxica sofre de um “contentamento verdadeiramente
patológico” (idem).
Em seguida, o autor compara o quadro das anoréxicas com outros tipos
de histeria nos quais, a despeito de não haver lesão orgânica, pacientes
deixaram de falar, cantar e até mesmo andar, por reclamarem de um mal-estar
semelhante ao da anoréxica, mas localizado em outra parte do corpo. Lasègue
explica que o quadro das anoréxicas é, realmente, um “conjunto de sintomas
inquietantes” (1998, p.167), porque reúne dores gástricas sem motivo,
seguidas de mal-estares generalizados, assistidos por toda uma reação familiar
em seguida. Após meses, até anos, começa o terceiro estágio, quando a
menstruação cessa e a paciente reclama de sede. A pele, a cavidade
119
abdominal e outras partes do corpo finalmente estão alteradas pela
desnutrição, e a constipação não responde mais aos remédios.
Por causa do evidente enfraquecimento da garota, as preocupações da
família aumentam ainda mais, o que para Lasègue deve ser analisado, pois
teríamos “uma noção errônea da doença ao limitarmos o exame à doente”
(1998, p.169). Mas é justamente quando a doente percebe que seu estado
comove sua família é que o médico deve intervir, segundo Lasègue (1998). Em
casos raros a doente seguirá o tratamento proposto, mas é mais comum que
tente agir como se concordasse com o tratamento, no entanto sem renunciar
ao seu jejum. O tratamento, para o autor, é longo, e muitas mulheres nunca
chegam a se recuperar totalmente dos efeitos da desnutrição. Lasègue conclui
dizendo: “Ainda não vi caso de anorexia com desfecho mortal” (1998, p.169). O
autor assinala uma outra frase, em seu último parágrafo, que certamente deve
parecer chocante aos que lidam com anoréxicas, que é: “Nunca vi casos de
recidiva; uma vez estabelecida a cura se mantém” (Lasègue, 1998, p.171).
D) Cybelle Weinberg
Cybelle Weinberg (2006) realizou um interessante estudo sobre a
evolução histórica do conceito de anorexia nervosa, efetuando um percurso
preciso, que parte das tradições alimentares de povos antigos, como egípcios e
gregos, e comenta em detalhes os controversos casos das santas que
jejuavam durante a Idade Média, mostrando a possibilidade de tais jejuns
milagrosos serem uma manifestação de um transtorno alimentar, e termina seu
estudo com um panorama atual da anorexia nervosa. Apesar de Brumberg
(1989) e Weinberg (2006) utilizarem o termo “histórico” para descreverem seus
trabalhos, é essencial lembrar que a primeira é uma historiadora, enquanto a
segunda é uma psicanalista. Acredito que este é um dos motivos pelos quais a
visão das autoras sobre a anorexia se aproxima (pelo caráter histórico) e ao
mesmo tempo se afasta (pela formação de cada uma). Ao comentar o trabalho
de Weinberg (2006), vale ressaltar que muitas informações são semelhantes
ao citado trabalho de Brumberg (1989), o que faz com que este subcapítulo
tenha como foco as contribuições adicionais de Weinberg (2006), a fim de
evitar uma repetição incessante de fatos históricos já listados.
120
Weinberg (2006) acredita que o controle do apetite é um denominador
comum entre diversos povos e eras históricas, sendo que o propósito de tal
controle variou e varia de cultura para cultura. Mas o simples fato de tantos
povos e tantas culturas apresentarem o controle do apetite como algo ao qual
se destina um lugar de destaque faz com que seja enfatizado o local central
que a alimentação ocupa na estruturação dos costumes e hábitos. A autora
explica que entre os egípcios era necessário um jejum da vários dias para que
uma pessoa pudesse ser iniciada nos mistérios da deusa Ísis. O propósito de
tal jejum era “entrar em um estado de transe e receber visões sagradas”
(Weinberg, 2006, p.21).
Na Índia do século VI a.C. surgiu uma corrente religiosa e filosófica
denominada janismo, que pregava um controle rígido da natureza humana
inferior (as paixões e emoções em geral). O jejum, entre os janistas, era
considerado uma forma de mortificação para se alcançar um estado de
espiritualidade próxima ao dos homens santos, aqueles que venceram as
paixões.
Os gregos, por sua vez, apresentavam uma relação moderada quanto a
dietas e regimes, sendo estes prescritos com fins médicos e terapêuticos. É
interessante notar que os gregos associavam a alimentação aos exercícios
como uma maneira de alcançar um corpo saudável. O aspecto equilibrado que
os gregos tinham em relação à alimentação era condizente com uma
sociedade que, em geral, tinha como ponto de vista a moderação, e máximas
como “mente em corpo são”. Até na mitologia o tema da privação alimentar
aparece apenas em um único mito, o de Deméter e Perséfone, o que pode
demonstrar que a abstinência alimentar não era um ponto principal das crenças
gregas.
Mais tarde, tendo como panorama a expansão do cristianismo, ocorreu
uma associação entre o ascetismo, com os primeiros “pais do deserto”,
homens que viviam em grande privação e solidão no terreno árido, e as santas
jejuadoras da Idade Média. O surgimento do ascetismo entre os cristãos pode
ser entendido como uma reação à Igreja, que com fins de aumentar o número
de fiéis, começava a relaxar as regras para segui-la. Aos poucos, homens de
origem simples, “de origem camponesa, praticavam a ascese e submetiam-se
121
a tal nível de privação e mortificações que ficaram conhecidos como ascetas,
ou santos do deserto” (Weinberg, 2006, p.28).
Tal comportamento, além de uma tentativa de restaurar as supostas
bases do cristianismo, também permitia que homens de origem simples, que
estariam condenados a uma vida de pouca glória, recebessem dignidade e até
mesmo a admiração que se reserva a um santo. Acredito que, neste ponto, é
possível reunir algumas tendências que Weinberg (2006) enumerou para o
jejum e que podem, até hoje, ser consideradas como existentes em nossa
sociedade: o jejum com fins de obtenção de poderes místicos; o jejum com
propósito de depuração de um corpo impuro; o jejum com finalidade médica e
terapêutica; e, finalmente, o jejum que responde a um objetivo político ou causa
social.
Justamente após o surgimento dos “pais do deserto” é que apareceram
as mulheres ascéticas, o ponto central do trabalho de Weinberg (2006). Tais
mulheres seguiam um padrão de vida austero, que primava pela castidade,
oração e diversas mortificações corporais. Ao seguir os padrões ascéticos, “as
mulheres criavam para si uma vida livre dos padrões de comportamento
socialmente aceitos, e renunciando à sexualidade, podiam conquistar algum
grau de poder sobre seu corpo e sobre sua vida” (Weinberg, 2006, p.29). Por
meio de exemplos a autora mostra como diversas santas, como Catarina de
Siena, Clara de Assis e Rosa de Lima conseguiram escapar dos ditames
patriarcais, dobraram as exigências de suas famílias no que se referia ao
matrimônio, e até mesmo conseguiram um grau considerável de poder sobre
uma sociedade marcada pelo poder masculino.
Catarina de Siena, por exemplo, atingiu tamanho grau de respeito devido
às mortificações que impunha ao próprio corpo, que conseguiu influenciar o
retorno do papado para Roma (pois estava em Avignon), incentivou a
organização de cruzadas para libertar a Terra Santa e chegou a ponto de exigir
que o papa fizesse o que ela ordenava, pois sua fala era inspirada pela
“Verdade” (inspiração divina).
Se for considerado o papel que a mulher representava na Idade Média e
a influência que Catarina de Siena exerceu, é possível ter uma dimensão do
abismo que separava a camponesa ou a mesmo a mulher da nobreza da
influência que uma santa jejuadora poderia exercer. Catarina se transformou,
122
inclusive, em um modelo para as religiosas seguintes, influenciando diversas
santas posteriores e até jovens da época vitoriana, que liam sua biografia como
fonte de inspiração.
Embora com a força que obtiveram, as santas jejuadoras começaram a
ser combatidas pela própria Igreja, que passou a considerar que “não era o
jejum que fazia a santidade, mas a santidade do jejuador que determinava a
santidade do jejum” (Weinberg, 2006, p.55). Esse movimento representava
tanto uma tentativa de diminuir o poder de tais mulheres, como também uma
mudança nos ideais que deixaram de valorizar em excesso a mortificação e
passaram a valorizar a ajuda, o ensino e a caridade. Após a Reforma, o
número de mulheres que jejuavam declinou consideravelmente, voltando a
assumir uma relevância na era vitoriana, como já explicado por Brumberg
(1989) em citação anterior.
Por fim, algumas considerações finais sobre o trabalho de Weinberg
(2006). Ao expor, em forma de tabela, os sintomas relatados na anorexia
nervosa desde sua primeira descrição em 1691, com John Morton, até os
critérios do século XX, é possível perceber algumas constâncias e algumas
mudanças. A perda de peso deliberada e a resistência ao tratamento são
constantes desde a primeira descrição. A distorção da imagem corporal apenas
aparece com Janet, em 1903. O uso de atividade física excessiva como critério
diagnóstico sofreu alterações constantes, sendo considerado para logo ser
desconsiderado pelo autor seguinte.
Tais fatos podem levar a certas avaliações, como por exemplo: talvez a
questão da imagem corporal seja uma das que mais caracterizam a anorexia
nervosa, o que seria condizente com os padrões culturais da atualidade. Uma
santa, por exemplo, quer atingir um estado no qual seu corpo pouco importe,
chegar a um êxtase espiritual. A anoréxica atual parece o possuir um
objetivo de tão longo prazo, estando com o foco centrado no peso e nas
calorias do hoje e do agora. A alternância da atividade física também pode
refletir o valor que se dá ou não ao trabalho e ao corpo.
Possivelmente em uma época histórica em que existe um imperativo
para produzir, ou para ter um corpo perfeito, a prática física seja uma
manifestação adequada para o quadro, o que não se repete em outros
momentos. A diferenciação que tento estabelecer aqui é que, talvez, dentro de
123
um modelo pulsional, seja provável considerar que os transtornos alimentares
possuem algumas características de base e outras que mudam conforme a
época, ou, em outras palavras, de acordo com o apetite da pulsão.
Weinberg (2006) demonstra, com diversos exemplos, o potencial que a
alimentação exibe para alterar drasticamente os laços sociais em diferentes
épocas. Ao descrever casos antigos, como os das santas jejuadoras, a autora
demonstra que é necessário cuidado ao se atribuir a anorexia simplesmente
aos mandamentos culturais do século XXI. Algo que também surpreende, por
se manter como uma constante no tempo, é o comportamento “da imitação”.
Nas biografias de santas e beatas medievais são frequentes os relatos de que
elas teriam iniciado seu comportamento ascético tendo como inspiração santa
Catarina de Siena” (Weinberg, 2006, p.101). Estudos recentes, como o de
Hilde Bruch, que será abordada em outro momento deste trabalho,
demonstram que o comportamento imitativo continua frequente entre as
anoréxicas modernas, porém com algumas diferenças, o que discutirei em
outro capítulo.
E) Táki Cordás
O livro “Fome de Cão”, organizado por Táki Cordás (1993), que é
psiquiatra e possui amplo trabalho relacionado à área dos transtornos
alimentares, tem uma importância para esta dissertação, não apenas por seu
valor intrínseco, mas por se tratar de um dos poucos livros que abordam a
bulimia. Existem, é claro, mais e mais publicações sobre transtornos
alimentares, mas em minhas pesquisas bibliográficas constatei que o
referencial sobre a bulimia é menor do que sobre a anorexia. Portanto, apesar
do livro de Cordás (1993) também abordar a anorexia e a obesidade,
restringirei meus comentários aos dados que o livro fornece sobre a bulimia,
pois acredito que a anorexia foi bem explorada por outros autores que citei na
dissertação.
Cordás (1993) inicia seus escritos com um comentário curioso sobre a
cultura cristã-ocidental, ao dizer que “desde que Eva teve o primeiro acesso
bulímico da História e comeu a maçã proibida, a mulher, a comida e o pecado
parecem caminhar juntos” (p.13). Tal comentário, obviamente espirituoso,
revela uma associação que a maioria dos autores pesquisados também faz,
124
que é a relação entre o feminino, a comida e questões relativas ao proibido e
ao tabu, que parecem fazer parte do “mistério feminino”.
Ao expressar o histórico da obsessão pela magreza, o autor apresenta
como o pensamento grego, com os pitagóricos e Platão, que forneceram
posteriormente as bases intelectuais para que a Igreja católica, em sua
expansão após a queda do Império Romano, considerasse a alma como uma
entidade presa ao corpo, que “apenas se libertará se este corpo for
abandonado e não alimentado” (Cordás, 1993, p.14). Um pedaço da filosofia
grega unida ao poder de uma religião em ascensão parece ter sido o
combustível adequado para transformar o cuidado com o corpo em algo
condenável, apresentando a gula como um dos pecados capitais, não tão
distante da primeira mulher, portanto.
A bulimia, literalmente fome de boi, possui, entretanto, um histórico mais
profundo do que as considerações anteriores, o que nos remete à Antiguidade.
Existe um papiro egípcio, chamado papiro de Eber, que é dedicado ao
estímulo e às virtudes do ato de vomitar” (Cordás, 1993, p.23). O historiador
grego Heródoto, ao comentar os hábitos egípcios, conta que era comum o uso
de purgantes e a prática de vômitos por dias consecutivos, pois tal povo
considerava que as doenças humanas tinham origem na comida. está uma
das associações mais antigas entre a ingestão de alimentos e a causa de
doenças, algumas provavelmente reais, outras imaginárias.
O grande médico grego, Hipócrates, “também recomendava a indução
de vômitos por dois dias consecutivos todo mês, como um todo de prevenir
diferentes doenças” (Cordás, 1993, p.23). Os romanos, por sua vez, ficaram
conhecidos por utilizar o vômito após a ingestão excessiva de alimentos,
criando até mesmo o vomitorium, que era utilizado durante os banquetes para
receber o vômito e continuar a comilança. Dando um salto histórico, o autor nos
lembra o uso de eméticos,
18
os quais “dominaram o arsenal terapêutico por
muitos anos, sendo tudo o que um médico podia prescrever na época” (idem).
Portanto, apesar de tais hábitos não poderem ser associados diretamente com
a bulimia, eles revelam que o vomitar tem uma longa presença na humanidade,
assim como o controle do apetite.
18
Emético é qualquer fármaco com a capacidade de produzir vômito.
125
Sobre as sucessivas descrições da bulimia por parte de médicos,
recorro a Fernandes (2006), que listou com precisão a tentativa de diversos
médicos para precisar o que seria uma síndrome bulímica. Com base na autora
pude traçar a cronologia a seguir.
Em 1708, Blankaart afirmou existir nos casos de bulimia um “apetite
extraordinário”, acompanhado frequentemente de “fraqueza de espírito”.
Em 1743, R. James diferenciou a forma de bulimia com vômitos e
admitiu que a bulimia estava relacionada a uma disfunção digestiva, devido a
um “humor gástrico”, sugerindo a utilização de opiáceos para acalmar a
sensação de fome.
Em 1785, G. Motherby distinguiu três formas de bulimia: uma pura,
uma que termina com vômito, e por último aquelas que são acompanhadas de
perda de consciência. Curiosamente durante alguns séculos a bulimia
apareceu em relatos médicos, passando por um período de esquecimento em
relatos americanos, até reaparecer em relatos médicos no século XX.
Entretanto, como citado na Europa, descrições sobre a bulimia ocorreram
durante esse período. P.F. Blachez, em 1869 classificou e diferenciou a bulimia
das seguintes formas: cinorexia formas com vômitos, e licorexia
corresponderia a um trânsito intestinal acelerado. Importante ressaltar que este
autor assevera que os sintomas acima citados se alternam na mulher com
anorexia.
Ou seja, vários médicos parecem ter tido contato com uma síndrome
como a bulimia e tentaram descrevê-la, não obstante o termo apenas ter
entrado para os manuais diagnósticos da psiquiatria em época muito posterior,
como explicarei em outro capítulo da dissertação. Retornando a Cordás (1993),
o autor aponta a distorção da imagem corporal como um fator relevante na
bulimia e sua predominância no sexo feminino, malgrado o número crescente
de casos no sexo masculino. Ao comentar sobre os motivos que levaram a
bulimia e a anorexia a despontarem recentemente com maior intensidade, ele é
taxativo ao dizer que “o aumento de ambas as doenças está indubitavelmente
ligado a influências sociais e culturais” (Cordás, 1993, p.25). Cordás (1993)
denuncia como uma tentativa infantil a de tentar transformar tais causas sociais
e culturais em uma mera luta contra o poder feminino, como alguns autores
sugerem, entre eles Susan Bordo (1993), que será mencionada a seguir.
126
Para Cordás (1993), existe uma influência, de fato, entre magreza,
sucesso, autocontrole e a busca pelo corpo ideal em nossa cultura.
Infelizmente, junto de tais idéias surgem outras, como a de que o corpo
humano pode ser moldado à vontade, através de dietas, exercícios ou
procedimentos médicos, o que não é verdade. A segunda idéia, talvez mais
perniciosa, seja a de que ao efetuar uma mudança corporal “haverá grandes
recompensas, uma mudança radical de vida, algo como o reino dos céus,
reservado para quem alcançar este objetivo” (Cordás, 1993, p.25).
De maneira ponderada, o autor lança a seguinte questão, que
reformulo em minhas próprias palavras: “Se tantas pessoas estão expostas a
dietas, regimes, academias e cirurgias plásticas, por que apenas uma parcela
tão pequena desenvolve um transtorno alimentar?” (Cordás, 1993, p.26). Ou
seja, sem desmerecer o aspecto cultural, o autor também não lhe credita a
etiologia total da bulimia e da anorexia.
Para ele, tal etiologia só poderá ser encontrada em uma confluência de
fatores, incluindo predisposições orgânicas, psicológicas e influências
familiares. Ao falar das famílias, o autor deixa claro que existe um aspecto
genético, pois já foi demonstrado que “pais de bulímicos apresentam uma
maior frequência de obesidade do que a existente na população geral” (idem).
Como tipo de personalidade, as bulímicas são descritas como pessoas
extrovertidas, impulsivas, com tendência ao abuso de álcool e com frequentes
sintomas de ansiedade e depressão. O outro aspecto familiar são os padrões
de relacionamento, que serão bem detalhados e expostos a seguir.
São famílias
19
com pouco contato externo e pouca troca com outros
grupos, o que faz o autor chamá-las de “famílias-caramujo” (Cordás, 1993,
p.57). O nível de comunicação entre os membros da família também é pobre,
sem haver sintonia entre a fala dos vários membros do grupo familiar. São
famílias que apresentam os papéis familiares pouco definidos, ou seja, não
está claro o que cada um deve ser e fazer. Parece-me importante citar que as
famílias são descritas como pessoas que “parecem valorizar, em demasia, a
própria aparência como grupo e o status social que conseguem atingir” (idem).
A expressão de sentimentos é quase nula e o casal parental não consegue
19
Chamo a atenção do leitor para o fato de que a descrição que Cordás (1993) faz das famílias das
pessoas que sofrem com transtornos alimentares é semelhante às conclusões que atingi com a análise
estatística que fiz previamente sobre as relações familiares das anoréxicas e bulímicas.
127
exercer sua autoridade, sendo um casal também com pouca união, em termos
afetivos e sexuais.
Como os papéis familiares são pouco definidos, não é incomum que os
filhos acabem sendo “puxados ora pelo pai, ora pela mãe para serem seus
aliados” (Cordás, 1993, p.58), o que é denominado pelo autor de triangulação
patológica. A presença de doenças psiquiátricas em outras pessoas da família,
além da anoréxica ou bulímica, também parece ser frequente. O autor repete a
descrição de outros quanto ao pai e à mãe. A mãe é descrita como preocupada
com a aparência, com dietas, ou que pode até ser obesa, mas inclui suas filhas
em suas dietas e consultas endocrinológicas. O pai é considerado omisso do
dia-a-dia da família, o que não difere das descrições que Bruch (1978) fez do
casal parental. Uma observação importante do autor, entretanto, é que os “os
pares mãe/filha e irmã/irmã são os mais comprometidos. Isto nos faz pensar
nas figuras e relações femininas do grupo familiar” (Cordás, 1993, p.59).
Uma proposta interessante do autor, ao lidar com a família, é que se
substitua o termo “culpa” por “responsabilidade”, pois as famílias, ao se
sentirem culpabilizadas pelo transtorno alimentar de suas filhas, costumam
ficar paralisadas e desenvolver reações defensivas. Entretanto, um convite a
assumir responsabilidades da família como um todo pelo ocorrido parece ser
uma abordagem mais eficaz, ao valorizar um entendimento e modificação da
trama familiar, como uma estratégia válida de suporte ao tratamento da
bulímica e da anoréxica.
F) Susan Bordo
Susan Bordo é uma filósofa contemporânea americana, famosa por seus
estudos sobre a relação entre corpo, gênero, cultura e patologia. Um detalhe a
ser levado em conta sobre a abordagem de Bordo (1993), concernente aos
transtornos alimentares, é que ela se vale de um enfoque cultural, com um
diferencial, um enfoque feminista-cultural. Para esta autora, a relação entre o
feminino e os transtornos alimentares, como uma questão cultural, assume
proporções muito maiores do que para outros autores. Ao analisar a questão
dos transtornos alimentares, Bordo (1993) inicia com uma crítica ácida aos
outros profissionais que trataram do assunto, fazendo referência ao fato de
que normalmente são homens teorizando sobre problemas femininos. Faltaria
128
a esses teóricos “o reconhecimento de um elemento crucial: é o
desenvolvimento do corpo feminino que está sendo impedido” (Bordo, 1993,
p.45).
Para ela, a maior parte dos autores que estudaram a anorexia e a
bulimia incluiu a cultura, mas esta sempre apareceu como um fator menor, um
dos que podem contribuir, podem manter ou podem causar o quadro. Assim, a
cultura nunca recebe o estatuto de algo que realmente fornece a base para o
surgimento de um transtorno alimentar. A autora critica a ênfase excessiva que
cada abordagem deu ou à relação com a mãe, ou a padrões familiares, como
se estes ocorressem em um vácuo cultural. As próprias tentativas de abordar
as patologias por um viés cultural também são criticadas, pois a autora as
considera infantis, ao designar uma mídia e uma indústria da moda todo-
poderosa, capazes de manipular a mente de centenas de jovens. Em tal tipo de
abordagem cultural não há uma exploração do real significado do que ser
magra significa.
Entre as diversas linhas que se dedicam ao trabalho com a anorexia e a
bulimia, Bordo (1993) reconhece que o “freudismo é, de longe, o mais
conectado com a natureza simbólica dos sintomas anoréxicos, do que outros
modelos” (p.46). Mas, apesar do elogio, a autora acredita que a psicanálise tem
se preocupado demais com argumentos como a fantasia da gravidez, os
desejos sexuais dentro do ambiente familiar, e esquecendo das torturas
domésticas e sociais pelas quais as mulheres passam constantemente em
nossa cultura. Para corrigir tal falha, tanto na psicanálise quanto nas outras
correntes, a autora afirma que foi necessária a intervenção de pensadoras
feministas, que pudessem demonstrar pontos esquecidos pelos outros
pensadores.
Entretanto, para mostrar como a própria autora se contradiz em seu
texto, ela afirma que vivemos em uma sociedade cuja constelação de fatores
sociais, econômicos e psicológicos produziu mulheres com vergonha de seus
desejos e necessidades, que sentem que devem se transformar para alcançar
um estatuto realmente merecedor de reconhecimento social. ”A relação mãe-
filha é um meio importante neste processo” (Bordo, 1993, p.47). Ou seja,
embora critique a ênfase que é dada à relação mãe-filha, a própria autora a
reconhece logo em seguida.
129
Alguns dos argumentos de Bordo (1993) são interessantes e devem ser
levados em consideração. Por exemplo, ela questiona a medicalização do
corpo humano, onde tudo é transformado em patologias que precisam ser
descritas, analisadas e classificadas. Tentar ligar a anorexia e a bulimia a
algum tipo de padrão ou causa é algo inútil para ela, pois os casos estão em
crescimento nos mais diversos ramos da população, o que eliminaria um “perfil
típico de anorexia”. A autora diz que o meio médico responde ao crescimento
de casos com a criação de subtipos, quando uma categoria não é mais
suficiente para descrever o processo. Assim, surge a anorexia restritiva, a
purgativa, a com comorbidades, a sem comorbidades, com abuso sexual, sem
abuso sexual, etc.
Em sua opinião, todas as tentativas desesperadas de encontrar uma
causa apenas geraram mais e mais categorias infrutíferas, e os pesquisadores
se esquecem “de um elemento unificador que realmente existe o contexto
cultural, em especial a ideologia e o imaginário que medeia a construção da
noção de gênero” (Bordo, 1993, p.49). Ela compara os transtornos alimentares
com a histeria, que também teria a cultura como elemento unificador, pois
ambos ocorreram em mulheres, em sociedades industrializadas e nos últimos
150 anos.
Portanto, seria a cultura que agiria na organização das famílias,
personalidades e no treinamento da percepção, que deveria ser considerada o
elemento que unifica os transtornos alimentares e a histeria como doenças do
feminino. A diferença seria a ligação entre a histeria e a cultura vitoriana e os
transtornos alimentares e a cultura contemporânea. Olhar a histeria como um
produto vitoriano pode ser fácil hoje, pois os ideais daquela época parecem
“empoeirados, resquícios de uma era distante” (Bordo, 1993, p.50). Para ela,
temos a pretensão de acreditar que as relações entre o masculino e o feminino
mudaram significativamente da era vitoriana para a nossa. Bordo (1993)
acredita que tal luta contra o feminino continua, com a diferença de que para
uma mulher vitoriana, desenvolver uma paralisia histérica seria um protesto
mais eficaz naquela época, enquanto na atualidade os transtornos alimentares
são uma expressão muito mais eloquente do drama feminino.
Um argumento da autora é que a maioria das pessoas que procuram
dietas, programas para perder peso e cirurgias plásticas é de mulheres. Outro
130
argumento é que os homens que desenvolvem transtornos alimentares
pertencem a um grupo seleto, como “modelos, lutadores e bailarinos, e outras
profissões que exigem um controle rígido do peso e do apetite” (Bordo, 1993,
p.53). Ou seja, os homens que desenvolvem a anorexia ou a bulimia
pertenceriam ao mesmo nicho cultural das anoréxicas e bulímicas. Não
enxergar tal fato, para ela, é fruto do poder dico, que tem ensinado a seus
alunos o que enxergar e o que o enxergar em seus pacientes, mantendo o
corpo como uma propriedade exclusiva da medicina.
O modelo médico presume um especialista que compreende o corpo e
um paciente que nada entende sobre seu corpo e sua doença. Para a autora, é
impressionante como a histeria e a anorexia devolveram para os médicos um
corpo opaco, sobre o qual eles não entendem, mas sobre o qual elas, as
mulheres, têm muito a dizer.
Desta forma, a anorexia e a bulimia não deveriam ser vistas como
psicopatologias, mas sim como expressões exacerbadas de uma cultura que
desperta sentimentos confusos nas mulheres. Em relação à psicopatologia,
Bordo (1983) argumenta que em uma pesquisa feita com 33.000 mulheres
norte-americanas, 75% responderam que se sentiam gordas, enquanto ¼
estava abaixo do peso e apenas 30% delas poderiam ser classificadas como
com obesidade. Então, questiona a autora, todas estas mulheres possuiriam,
por exemplo, distorção de imagem corporal? Ou, como ela argumenta,
poderíamos dizer que a anoréxica e a bulímica são aquelas que melhor
aprenderam a ler a imagem corporal que circula em nossa cultura, realmente
enxergando o corpo que é desejado? O argumento é instigante e tratarei dele
logo mais.
Por conseguinte, a classificação de distúrbio da imagem corporal não
passaria de uma forma de desmoralizar e diminuir a percepção das mulheres,
que de fato vivem em uma sociedade na qual a magreza está associada ao
sucesso, inteligência e sexualidade. Não haveria nada de bizarro na visão das
anoréxicas e bulímicas, mas sim a real percepção do que uma sociedade
estaria injustamente exigindo das mulheres. A maioria das mulheres da cultura
ocidental seria, realmente, “transtornada” com o tamanho e formato de seus
corpos.
131
Os pensamentos ditos bizarros das anoréxicas, por exemplo, acreditar
que não se deve ingerir nada para não engordar, ou caso se coma algo o
controle seperdido, e outros, são para a autora percepções reais, pois as
pesquisas indicam que “as pessoas permanecem em dietas se não lhes é
permitida comida lida alguma, ao invés de uma quantidade limitada de
comida” (Bordo, 1993, p.59). Portanto, o controle total do apetite seria uma real
percepção biológica sobre como fazer uma dieta e não um pensamento sem
sentido. A anoréxica e a bulímica seriam, então, as porta-vozes do peso
colocado sobre o feminino pela cultura atual.
Não se pode negar o sofrimento das anoréxicas e bulímicas, mas ao
invés de “patologizá-lo”, o que deveria ser admitido é que existe uma forma de
linha imaginária sobre a magreza, na qual em uma extremidade estão as
bulímicas e anoréxicas, e na outra as mulheres que não se importam com o
peso. Entre tais extremos estaria a maior parte das mulheres, desconfortáveis
com seus corpos, mas funcionais, retendo a habilidade de manter uma vida em
sociedade, um emprego, relacionamentos, etc. Para compreender a influência
da cultura em tal processo é necessário perceber que ela não se apresenta de
forma única para todas as mulheres, sendo fruto de uma combinação múltipla
de fatores, o que dificulta a pesquisa de um ou dois fatores culturais que
causem os transtornos.
Assim, cada mulher, individualmente, estaria exposta a questões como
raízes étnicas, religião, padrões domésticos, influências escolares e muitas
outras, que combinadas gerariam o solo rtil para um transtorno alimentar. O
que tais mulheres teriam em comum seria uma imagem homogênea e ideal
sobre o que uma mulher deve ser e parecer. O resto, segundo a autora, jaz na
influência cultural de cada uma.
O pensamento feminista, na visão de Bordo (1993), foi responsável por
inverter a ordem clínica de pensar nos transtornos alimentares, incentivando
estudos referentes a comentários abusivos sobre o corpo feminino feitos por
namorados, maridos e a mesmo pais. Outro fator que a autora aponta na
gênese dos transtornos alimentares é a presença de abuso sexual em muitos
casos, também responsável por mostrar como a cultura sempre manteve o
corpo feminino sob controle, ou através da depreciação e desvalorização, como
na Idade Média, ou pelo ideal de beleza nos tempos atuais.
132
Vale dizer, existe aí “uma batalha política sendo travada sobre as
energias e recursos do corpo feminino” (Bordo, 1993, p.66), uma batalha na
qual as mulheres normalmente perdem. Não é levada em conta a tentativa
destas mulheres de personificar, em seus corpos, um “corpo que fala por si”,
que demonstre poder e sucesso. Outro argumento da autora é que, como os
significados são dados pela cultura, a anoréxica não poderia simplesmente
“inventar” o poder do corpo magro. Este é, de fato, um corpo de maior sucesso
no mundo contemporâneo.
Aceitar o modelo cultural, na verdade, seria algo difícil, pois implicaria
dizer que “o estudo do corpo transtornado é propriedade tanto dos o
especialistas, dos cidadãos comuns, e não apenas dos especialistas” (Bordo,
1993, p.69). Gostaria, agora, de comentar as idéias de Bordo (1993). Acredito
que a autora traz uma enorme contribuição ao denunciar o fato de que o
elemento cultural tem sido pouco pesquisado e utilizado no estudo dos
transtornos alimentares.
Bruch (1978), que será a próxima autora a ser mencionada como uma
contribuição ao estudo dos transtornos alimentares, reclamava da falta de
estudos sociológicos sobre o assunto. A autora também denuncia a criação de
categorias sem fim, numa tentativa de encaixar os diversos casos que
aparecem, o que certamente denuncia, para mim, o estado de confusão que
paira sobre qual é a real definição de um transtorno alimentar.
Entretanto, acredito que Bordo (1983) exagera em algumas de suas
afirmações ao dizer que 75% das mulheres se sentem gordas, e por isto
deveriam ser classificadas como portadoras de distúrbio da imagem corporal. A
autora se utiliza de uma falácia, pois as 75% mulheres que se sentem gordas
não deixam de trabalhar, comer, namorar, ou seja, de funcionar, tanto em nível
individual quanto social. Assim, talvez o que não fique claro para Bordo (1983)
é que quando se fala de distorção de imagem corporal se está falando de algo
muito maior do que um simples “se sentir gorda”. Está-se falando, na realidade,
de encarar 100 gramas como 10 quilos, uma leve curva como sinal de gordura,
ou seja, de uma verdadeira incapacidade de julgamento perante os sinais. A
anoréxica não se sente gorda e continua com sua vida, mas em seu
pensamento ela é gorda e não pode continuar desta forma, não importa se está
esquelética ou com peso normal.
133
Bordo (1983) parece não levar em consideração uma questão de grau
quando se fala de distúrbio da imagem corporal. Uma coisa é achar que um
quilo deveria ser perdido e que seria melhor comer menos, mas nem por isso
perder um dia de trabalho ou um relacionamento amoroso. Outra coisa é parar
toda a ingestão de alimento devido a um quilo, terminar um relacionamento
porque aquele um quilo a torna gorda em excesso, e assim por diante.
Em relação à combinação múltipla de fatores que se juntam na formação
cultural de cada mulher, não estaria Bordo (1983) falando do óbvio? A maior
parte dos autores parece concordar e valorizar a individualidade cultural de
cada anoréxica. Bruch (1978), por exemplo, ao descrever cada um de seus
casos, apontava a formação familiar, religiosa e econômica de cada anoréxica.
E, além do mais, não é por que infinitos fatores estão se combinando, que a
busca por uma sequência de combinações que favoreçam um distúrbio seja
infrutífera.
A própria genética, por exemplo, demonstrou em inúmeros casos que
certas combinações podem elevar ou diminuir a probabilidade da ocorrência de
determinadas patologias, sem afirmar que aquela combinação é totalmente
responsável pela doença. Então, não vejo qual seria o problema em buscar
perfis e padrões que realmente auxiliariam no diagnóstico, tratamento e
prevenção da doença. É obvio que existirão anoréxicas e bulímicas que
escaparão dos padrões, e é que cabe a análise individual de cada caso,
como bem preconiza a psicanálise.
Em relação ao papel que a cultura tem desempenhado sobre os
transtornos alimentares, acredito que Brumberg (1989) o explica de forma
muito melhor, com sua teoria dos dois estágios. Em termos explícitos, o
primeiro estágio, de recrutamento, seria praticamente explicado pela cultura.
Ou seja, na Idade Média, mil mulheres iniciam um jejum por questões
religiosas, enquanto na contemporaneidade mil mulheres o fazem por razões
estéticas. Entretanto, tanto no primeiro como no segundo exemplo, a maioria
das mulheres não levará tal jejum a extremos.
O porquê de um grupo pequeno manter o jejum, levá-lo até a
desnutrição e sofrer os efeitos tóxicos da fome, pode ser explicado por uma
análise mais próxima do individual. É o segundo estágio de Brumberg (1989),
no qual um grupo pequeno de mulheres, por questões biológicas e
134
psicológicas, permanece em tal jejum, podendo chegar à morte. Tal modelo
parece muito mais adequado ao unir cultura, medicina e psicologia sem
extremismos.
G) Hilde Bruch (1904 – 1984)
Bruch nasceu na Alemanha e se mudou para os EUA, fugindo dos
horrores do nazismo. Seu trabalho inicial foi com crianças obesas, na
Universidade de Columbia. Em 1941 mudou-se para Baltimore, onde pós-
graduou-se em Psiquiatria e Psicanálise, retornando para Nova York e
Columbia dois anos depois. Permaneceu no Departamento de Psiquiatria da
Universidade de Columbia até 1964. Seu principal conceito para o
entendimento da anorexia recebeu o nome de “busca incessante da magreza”.
As pesquisas de Bruch acabaram por revisar a clínica e a teoria relacionadas à
anorexia, diferenciando os quadros da esquizofrenia e da psicose.
Escrever sobre a anorexia nervosa sem mencionar o trabalho de Hilde
Bruch é um contra-senso, uma vez que poucos terapeutas tiveram tanto
contato e sucesso no tratamento de pessoas com anorexia, homens e
mulheres, quanto ela. É importante mencionar que a autora é psiquiatra e
psicanalista, tendo dedicado décadas de seu trabalho à observação e
tratamento de indivíduos com transtornos alimentares. Apesar de Hilde Bruch
possuir diversos textos sobre anorexia, pretendo citar seu último trabalho sobre
o assunto, o livro “The Golden Cage”, que pode ser traduzido como “A gaiola
dourada”, em tradução livre. Publicado em 1978, o livro de Bruch (1978)
mantém uma atualidade que impressiona, pois sua leitura passa a idéia de ser
fruto de um trabalho recente sobre anorexia, dado o vigor e a precisão do texto.
Uma ressalva deve ser feita, entretanto, pois na época em que Bruch
(1978) escreveu seu livro, o termo bulimia nervosa ainda não constava dos
manuais de diagnóstico psiquiátrico da época. O entendimento da autora sobre
os transtornos alimentares foi tão apurado que ela anteviu o quadro da bulimia,
descrevendo-o em detalhes, malgrado não nomeá-lo desta forma. Tal ressalva
é importante, pois em algumas citações de Bruch (1978) é fácil identificar um
quadro bulímico sem que o termo seja empregado.
A autora inicia seu texto com a constatação de que uma verdadeira
epidemia de casos de anorexia está em curso, tanto nos EUA quanto no resto
135
do mundo, mas questiona o termo “epidemia”, pois “não agente contagioso”
(Bruch, 1978,p.20) que explique a disseminação da patologia. Uma lacuna no
estudo da doença é a falta de estudos sociológicos de grande porte, que
fossem capazes de fornecer material científico sobre as influências culturais
que permeiam a anorexia. Porém, mesmo com a falta de tais estudos, Bruch
(1978) atribui a ênfase que a moda consagra ao corpo magro como um dos
determinantes sociais da doença. A indústria da moda está bem servida pela
mídia em geral, que propaga as virtudes do corpo magro e das dietas.
Se, normalmente, a anorexia é considerada uma falta de apetite, a
autora é direta ao apontar que, na realidade, tais garotas vivem ocupadas e
preocupadas com a comida, sonhando com alimentos o tempo todo. O que
ocorre é que a busca pela disciplina e pela negação das próprias necessidades
corporais assume o papel de virtude principal, o que transforma a ingestão de
alimentos em algo vergonhoso. As pessoas com anorexia têm uma
preocupação excessiva com o corpo e seu tamanho, sendo que o controle do
apetite deve ser compreendido como um sintoma tardio de jovens “que estão
em uma luta desesperada para levar uma vida por conta própria” (Bruch, 1978,
p.22).
Existem três fatores que podem ser chamados de preexistentes nas
anoréxicas, que são: distúrbios da imagem corporal; interpretação errônea de
estímulos internos e externos, incluindo a fome; e, por último, “uma sensação
paralisante de ineficácia, a convicção de ser incapaz de promover qualquer
mudança em relação à própria vida” (idem). Contra estes três fatores é que o
controle do apetite e do corpo irá se estabelecer, numa forma de protesto
inconsciente que demonstra, sim, que a pessoa pode controlar sua vida e seu
corpo.
Para escrever o livro, Bruch (1978) contou com a experiência de
atendimento de 70 anoréxicos, sendo 60 mulheres e 10 homens. Apesar de
serem de localizações geográficas distantes e possuírem níveis
socioeconômicos distintos uns dos outros, a autora se espantou com a
semelhança marcante que existia entre todos os casos atendidos, tanto na
aparência quanto no modo de se expressar. Ela também demonstrou certo
espanto com o fato de que a anorexia deixou de ser uma doença individual
para se transformar em uma “reação de grupo” (p.24).
136
Antes, segundo ela, cada anoréxica que aparecia em seu consultório
poderia ser considerada como autora individual de seu próprio distúrbio, sem
nunca ter ouvido falar dele ou conhecido alguém com um problema parecido.
As últimas pacientes de Bruch (1978), entretanto, chegam ao consultório de
posse de inúmeras informações sobre a doença, às vezes conhecem outras
pessoas que também se queixam do mesmo problema, o que caracteriza, de
fato, uma reação grupal, pois a anoréxicas são, hoje em dia, co-autoras de
suas doenças e não mais autoras.
Uma especulação de Bruch sobre o futuro da doença é que se a doença
está se tornando cada vez mais popular, e a busca pela magreza envolve um
sentimento de diferenciação e de atingir algo que os outros são incapazes de
atingir, é possível prever que no futuro a doença perderá sua força de
expansão, pois o aumento no número de casos fará dela uma doença “comum
que não exibirá mais atrativos para as futuras adolescentes.
A despeito de eu estar apenas no início da análise sobre o livro de Hilde
Bruch, gostaria de salientar alguns pontos que condizem com os achados de
minha dissertação. Ao classificar a anorexia como uma reação de grupo, Bruch
(1978) antecipou o que realmente está acontecendo, pois grande parte das
anoréxicas atuais, consoante minha pesquisa, tem contato com a doença e
com outras anoréxicas, sendo a internet um meio importante de disseminação
das informações sobre a doença. Se em 1978 as garotas tinham acesso à
doença, através de revistas direcionadas ao público feminino ou pela televisão,
não é difícil imaginar o impacto que a internet teve sobre o “agente contagioso
que falta”, para usar as palavras da própria Bruch.
A autora registra ênfase no sentimento de poder, realização e orgulho
que a magreza gera nas jovens anoréxicas: “Existe um quê de exibicionismo na
anorexia, apesar de poucas garotas admitirem tal idéia no começo”
20
(Bruch,
1978, p.3). Após longos períodos de psicoterapia, muitas anoréxicas
reconhecem o papel crucial que o emagrecimento teve ao exercer uma espécie
de controle sobre a atenção da família como um todo, que passava a existir em
torno dela. Algo que impressiona a autora é que muitas anoréxicas dizem que,
na realidade, comem muito, todavia não quantificam o que seria “muito”. Ainda
mais impressionante é que suas mães costumam concordar que a filha come
20
O exibicionismo é um dado que a minha pesquisa também encontrou, como pode ser lido na análise
estatística que fiz das entrevistas coletadas.
137
“muito” ou “o suficiente”, o que aponta para o papel que as mães exercem ao
não olharem para os aspectos mais básicos de suas filhas.
Sobre o fato de não sentirem fome, Bruch (1978) explica que a maior
parte das anoréxicas fa tal afirmação, até mesmo dizendo que se sentem
bem em perceber o estômago totalmente vazio. Existe uma confusão de
sensações e percepções e a autora faz um alerta que está presente em poucos
livros sobre anorexia, que é o fato de que “o processo de emagrecimento tem
um efeito desorganizador sobre o funcionamento geral do corpo e das reações
psicológicas” (Bruch, 1978, p.4).
A opinião da autora é que, certamente, as garotas sofrem do pânico de
engordar e utilizam uma verdadeira lavagem cerebral para treinar suas
respostas, orgânicas e fisiológicas, diante da fome. Em garotas que sofrem a
falta de um núcleo da personalidade, não comer pode ser sentido como a
primeira real manifestação de possuir uma personalidade, ou de estar
conectada com suas verdadeiras sensações, não misturadas com os desejos e
sensações dos outros. A perda de peso físico é acompanhada pelo ganho de
peso psicológico, pois as anoréxicas começam a experimentar um orgulho por
seu corpo magro, que nunca antes fora sentido.
A filosofia de que a mente deve prevalecer sobre o corpo é comum entre
as anoréxicas, que enxergam o jejum e os exercícios físicos como parte de um
objetivo maior, o de se tornar alguém especial. As atividades físicas, no
entanto, se tornam cada vez mais solitárias, conforme a doença avança. Outro
fato importante para o qual Bruch (1978) chama a atenção é que a fome
prolongada gera uma exacerbação dos sentidos, fazendo com que a luz do dia
incomode ou que barulhos baixos sejam sentidos como altos demais. “Ela se
sentia melhor à noite do que durante o dia, quando havia muita luz e barulho à
sua volta” (Bruch, 1978, p.6), escreve a autora sobre uma de suas pacientes.
Este dado referente à hipersensibilidade dos sentidos das anoréxicas confirma
algo que observei durante minha própria pesquisa, pois a maior parte das
pessoas que entrevistei estava disponível apenas durante a noite. Era raro
encontrar uma anoréxica disposta a conversar durante o dia, o que parece ser
explicado pelo que Bruch (1978) afirma sobre as preferências noturnas das
anoréxicas.
138
Um claro divisor de águas entre a anorexia e outras doenças que
causam a perda de peso é que, para as anoréxicas, a perda de peso é motivo
de orgulho, enquanto em outras doenças “o paciente irá reclamar da perda de
peso ou se indiferente ao fato” (Bruch, 1978, p.6). Ao observar uma
anoréxica não se pode esquecer que se está perante um organismo em
processo de perecer devido à não-ingestão de alimentos, sendo que diversas
características das anoréxicas o idênticas às de pessoas que passaram por
privações alimentares severas. Os pontos em comum são: preocupação com
comida e com o comer, não falar sobre mais nada a não ser sobre comida,
interesse na arte da culinária ou apetrechos de cozinha.
Essas características são encontradas tanto em anoréxicas quanto em
pessoas que, por desastres naturais ou algo do tipo, foram privadas de comida.
A diferença é que tais pessoas irão devorar o primeiro alimento que lhes for
servido, enquanto a anoréxica continuará a recusá-lo. Esta observação é
importante, demonstra que certos traços da anorexia são decorrentes do
processo fisiológico que ocorre em um organismo moribundo, e não por causas
psicológicas profundas. Para Bruch (1978), é possível realmente saber o
que pensa uma anoréxica quando esta já retornou a um estado de peso
mínimo, suficiente para restabelecer o funcionamento básico de seu sistema
nervoso central.
Portanto, para a autora, conversar com uma anoréxica durante seu
estado de desnutrição profunda é o mesmo que conversar com uma pessoa
intoxicada ou sob efeito de drogas, o que não fornece nenhuma pista sobre o
real pensamento das anoréxicas. O estado tóxico chega a tal ponto que a
autora o compara com uma desorganização psicótica. Tal estado inclui os
sentidos exacerbados, o que pode levar a anoréxica a acreditar que ela
realmente está alcançando algo que os demais seres humanos não possuem.
Algumas, após o retorno ao peso normal, chegam a reclamar que o mundo não
possui mais o colorido de antes, ou que as músicas não soam tão intensas
quanto antigamente, o que nos uma idéia do poder fisiológico e psicológico
que o estado de desnutrição pode acarretar. Junte-se a isso o fato de que
“todas as anoréxicas esperam algo especial como uma recompensa por seu
jejum, algo sobre-humano” (Bruch, 1978, p.15). Durante o estado tóxico é
139
comum que as sensações e percepções estejam descoladas do pensamento
racional, ou seja, está posta a cisão entre sensação e cognição.
A autora observou casos que, hoje em dia, seriam classificados como de
bulimia nervosa, que ela descreveu como sendo de anoréxicas que comem
quantidades imensas de alimento e depois vomitam. O comportamento de farra
alimentar, com expulsão do alimento, é encarado por muitas como uma
solução perfeita, pois lhes proporciona a sensação de comer sem aumentar
seu peso. Em pouco tempo, entretanto, o ciclo se transforma em “uma
compulsão dominadora. Uma vez estabelecido tal ciclo, ele é extremamente
difícil de ser interrompido” (Bruch, 1978, p.10). As jovens que recorrem à orgia
alimentar são consideradas por Bruch (1978) como de difícil acesso à
psicoterapia, porque a farra alimentar envolve, desde o início, a mentira e o
engano ante a família, o que é transposto para o setting terapêutico.
Para Bruch (1978), portanto, muitos dos efeitos psicológicos da
anorexia, como “a cisão do ego, despersonalização, defeitos egóicos são
relacionados diretamente ao processo de desnutrição em si” (p.20). Contudo,
se o processo persistir por anos, os efeitos da desnutrição serão incorporados
à personalidade da anoréxica, transformando-a em paciente que dificilmente
poderia ser diferenciado de esquizofrênico ou borderline. A autora lembra que,
para que a anorexia comece, é necessária uma participação ativa da pessoa,
que conduz os primeiros passos da doença. Ela não é, por conseguinte, uma
doença que acomete uma jovem de uma hora para outra, mas sim um
processo firmemente guiado por um ideal.
Bruch (1978) utiliza muito a expressão “Sparrow in a Cage”, ou “pardal
em uma gaiola”, em tradução livre, para argumentar que muitas anoréxicas se
sentem pouco dignas perante suas famílias, passam uma imagem de sucesso
ou são guiadas pela busca do sucesso. Foi assim que uma paciente de Hilde
Bruch descreveu sua vida, como a de um pardal que vivia em uma gaiola
dourada, sem liberdade, mas cercado de tudo que é bom ou associado ao luxo.
Entretanto, a paciente não se sentia um pássaro digno de habitar uma gaiola
dourada, pois não era um belo pássaro, mas apenas um pardal.
A autora utiliza a metáfora da gaiola dourada para expor o fato de que as
anoréxicas em geral sentem que suas vidas foram “uma tentativa de atingir as
expectativas de suas famílias, sempre temendo não ser boa o bastante quando
140
comparada com outros e apresentando falhas que eram fonte de
desapontamento” (Bruch, 1978, p.23). São garotas, portanto, que sentem que
tudo de bom lhes foi dado, que elas precisam atingir o grau de sucesso que
lhes foi outorgado desde cedo, mas que não sentem que esta é uma demanda
realmente sua ou que possuem recursos para tal. Apesar de a maioria das
pacientes da autora ser de classe média ou alta, algumas vêm de famílias de
baixa renda. O ponto em comum, entretanto, consiste na busca e na exigência
do sucesso, em todas elas.
Bruch (1978) faz uma descrição precisa das famílias, que são
apresentadas como tendo tamanho pequeno, com uma média de 2,8 filhos por
família. A idade dos pais, quando a futura anoréxica nasceu é considerada alta,
com o pai tendo 38 anos e a mãe 32, em média. No caso de filhas únicas, os
pais se casaram e tiveram a filha ainda mais tarde, tendo uma vida sexual
praticamente nula. “Mais de dois terços destas famílias tinham filhas apenas. A
maior parte negava que isto era um problema” (Bruch, 1978, p.24), mas após
algumas sessões de psicoterapia, várias famílias revelaram o desejo por um
filho.
No caso de a anoréxica possuir irmãos, geralmente ela é a mais jovem
filha do casal, com dois ou três irmãos mais velhos. Quando existem irmãos,
parece ser uma tendência de a anoréxica tentar competir com os irmãos em
esportes e nas atividades acadêmicas. As considerações da autora fornecem
suporte para a teoria da filha única que encontrei durante minha pesquisa, o
que explicarei em mais detalhes em outro capítulo.
“Uma característica comum nestas crianças é que elas acreditam que
precisam provar algo sobre ou para seus pais, que é sua missão fazê-los se
sentir bem, bem-sucedidos e superiores” (Bruch, 1978, p.25). Mas quanto mais
os pais ascendem, mais as anoréxicas sentem o ambiente familiar como
excessivo e bastante exigente. A e da anoréxica é descrita como uma boa
mãe, que fez o melhor por sua filha. O discurso do pai é semelhante, e ambos
podem ser descritos como devotados e ambiciosos em relação à criança. “Por
razões pessoais e sutis, esta criança em particular foi valorizada ao extremo”
(Bruch, 1978, p.26).
Segundo a autora, é comum encontrar mães que exerciam profissões
importantes e abandonaram suas carreiras para cuidar da filha. Apesar de
141
estas mães serem submissas ao marido, na aparência, este não é respeitado
realmente, sendo visto na casa como o “segundo em comando” (Bruch, 1978,
p.26). Tais características, comuns em muitas famílias, são levadas ao extremo
em famílias de anoréxicas. As mães também são descritas como muito
preocupadas com o próprio corpo e peso, incluindo a filha em dietas,
observação corporal e uso excessivo de produtos de beleza.
21
A despeito de os pais se orgulharem da criação da filha, a anoréxica em
si não parece ter vivido a infância como algo bom e saudável, pois sentia que,
constantemente, era responsável por manter o ambiente sempre perfeito que
seus pais criaram para ela e para eles também. A “obrigação da anoréxica”
com os pais parece ser ainda maior com a mãe, mas, de qualquer forma, a
jovem sente que “não tem o direito de expressar ou atuar seus próprios
sentimentos e desejos” (Bruch, 1978, p.30).
O comportamento polido é enfatizado nas famílias, sendo que a não-
expressão de sentimentos, em especial os negativos, costuma ser uma regra
familiar, um tabu. A eclosão da anorexia modifica o quadro totalmente, visto
que a filha perfeita em pouco tempo se transforma em alguém que desafia,
responde, fala mal e quebra todos os protocolos familiares.
Vivendo em famílias que se preocupam com o que os outros pensarão
ou dirão sobre seus atos, a idéia de manter uma imagem perfeita já começa na
própria dinâmica familiar. Fora a imagem perfeita e o bom comportamento,
também é colocada “grande ênfase nas conquistas acadêmicas, e elas são
enviadas para as melhores escolas e expostas à cultura muito cedo” (Bruch,
1978, p.33). Bruch (1978) comenta que muitos pais têm lido sobre a anorexia
nervosa e que, ao trazer suas filhas para uma consulta, sabem que muita
ênfase tem sido dada às questões familiares. As famílias, em geral, resistem à
idéia de que algo de errado tenha ocorrido na criação da anoréxica.
A autora diz que, realmente, muitas famílias viveram com suas filhas
momentos de felicidade e calor humano, mas que as filhas eram vistas como
alguém “valorizado principalmente como alguém que tornaria a vida de seus
pais em algo mais satisfatório e completo” (Bruch, 1978, p.34). Na realidade,
tais famílias costumam ser muito próximas, o que gera o que Bruch (1978)
denominou de uma família com “confusão de pronomes”, pois quando se fala
21
Esta conclusão sobre a mãe e as famílias das anoréxicas é semelhante às de Cordás (1998).
142
com a família inteira, é comum que a mãe responda pela filha, que a filha
corrija a frase do pai e que o pai diga o que a e realmente quer dizer. Caso
a anoréxica tenha irmãs, elas costumam ser distantes dela, pois esta é vista
como a boazinha da casa que consegue toda a atenção dos pais.
A autora indica como papel fundamental do terapeuta o desvelamento
dos conflitos familiares para a própria família, mesmo com a negação violenta
que muitas expressarão. É comum que os pais tentem pôr toda a culpa na filha,
pois a vida era perfeita “antes” de a anorexia aparecer. De qualquer forma, a
luta que se instala dentro da casa após o surgimento da doença deve ser
encarada como
(...) um exagero do que estava presente o tempo todo. Um
desequilíbrio de poder existiu por toda a vida da criança. A
aceitação total e completa da criança perante as demandas
dos pais esconde a realidade de que ela foi privada de viver
sua própria vida (Bruch, 1978, p.37).
A negação dos pais e a dificuldade de deslocar a anoréxica de seu
papel familiar, como aquela que realiza os desejos do casal parental, faz parte
de um padrão que dificulta a cura da doença.
Para a autora, tamanha deficiência em processos básicos do ser
humano deve estar ligado à maneira como a alimentação se desenvolveu,
certamente de maneira inadequada. Bruch (1978) repete o argumento de
diversos autores sobre o assunto, de que as anoréxicas, ao serem alimentadas
enquanto bebês, sofreram com cuidadores que não interpretavam os sinais
emitidos pelas crianças, sendo sempre alimentadas “com o alimento errado”,
por assim dizer. Assim, quando sentia fome o bebê era agasalhado, quando
com frio recebia comida, e assim por diante.
Desde o início, portanto, a criança se sente perplexa ante o poder do
outro, com a incapacidade de diferenciar suas sensações das do outro, sem
saber se um impulso parte de dentro ou de fora, sem conseguir estabelecer
uma separação clara entre o eu e o não-eu. A autora acredita que este
processo deve ter-se repetido durante toda a infância, mas que a alimentação é
o momento no qual o processo tem início, um momento no qual a criança se
torna incapaz de perceber os sinais emitidos pelo seu próprio corpo.
143
Quando as mães são questionadas sobre a alimentação de suas filhas,
as histórias costumam ser corriqueiras, com descrições do tipo “a criança
nunca deu trabalho, comia qualquer coisa que lhe era oferecida” (Bruch, 1978,
p.41). Várias mães se orgulham de terem sido capazes de antecipar a fome de
suas filhas, nunca permitindo que elas sentissem fome. Conforme a criança
crescia, o bom comportamento alimentar se espalhava para outras áreas, como
limpeza, fala e obediência.
Vale a pena lembrar que todo este quadro de perfeição mudaria em
breve, com o surgimento da patologia. Apesar de a anoréxica ter fama de
orgulhosa e teimosa, com a psicoterapia Bruch (1978) começou a perceber
que, na realidade, essas jovens não possuíam nenhuma substância interna ou
valor e que estavam sempre presas ao julgamento externo.
Outro aspecto familiar a ser ressaltado é que, devido à incapacidade de
pensar por conta própria, muitas anoréxicas viviam situações “felizes” como
extremamente desprazerosas. Bruch (1978) também acrescenta um
comentário sobre o desempenho acadêmico das anoréxicas, tido como acima
da média. Embora concorde com o fato, a autora sinaliza que muitas
anoréxicas atingem tais feitos através de um esforço descomunal, fruto de seu
medo de não atingir o ideal imposto pela família e que ela própria se impôs.
Não é incomum, a autora observa, que anoréxicas que tiram notas altas
durante toda a sua vida escolar tenham resultados medíocres em testes de
inteligência, constatando que realmente muito de seu sucesso escolar advém
de um estudar quase obsessivo e não de uma inteligência acima da média. Ao
mesmo tempo, uma anoréxica pode se desvalorizar em outras áreas da vida,
como quanto ao tipo de roupa que ela merece ou a comida que deve ser
comprada.
O livro de Hilde Bruch contém diversos casos de garotas ricas, mas que
compravam as piores comidas e roupas, pois o seriam dignas de nada mais
do que o mínimo necessário. Aqui se encontra também uma explicação para
algumas anoréxicas que comem restos de comida, pois o hábito é tanto secreto
quanto reforçador do sentimento de baixo valor que elas sentem.
É espantoso, no entender da autora, que poucos pais tenham percebido
o nível de concretude do pensamento de suas filhas. A vida social das
anoréxicas também revela quanto elas se esforçam para se adaptar ao outro e
144
não expressar seus desejos. Bruch (1978) explica que é comum que elas
tenham apenas uma amiga por vez, e que “a cada nova amizade as anoréxicas
irão desenvolver novos interesses e personalidades. Elas se percebem como
um vazio que simplesmente acompanha o que a sua amiga gosta de fazer”
(Bruch, 1978, p.48). As amizades costumam ser curtas, muitas vezes pela
intervenção dos pais, que desaprovam as amigas da filha. A desaprovação
normalmente ocorre quando os pais, ou um deles, sentem que a nova amizade
está começando a retirar a anoréxica de casa, da presença da família ou de
sua posição como guardiã da calma familiar.
Outro padrão que a autora encontrou sobre a doença é que
“normalmente as anoréxicas ficam socialmente isoladas durante o ano que
precede o aparecimento da doença” (Bruch, 1978, p.51). As razões para tal
isolamento são várias, mas em geral a anoréxica apresenta uma atitude e um
julgamento rígido, baseado em seu próprio ideal infantil de perfeição. Assim,
outros adolescentes são classificados como infantis, burros, superficiais, muito
interessados no sexo oposto, e certos argumentos que justificam o fim de todo
contato social. Apesar das amizades conturbadas, a autora é enfática ao dizer
que a grande fonte de tensão para a anoréxica é o ambiente familiar, o medo
de deixar de ser reconhecida e amada pela própria família.
Portanto, até o momento a autora falou sobre garotas que não
conseguem se sentir como um ser unificado, possuidor de desejos e direitos.
“Quando a anorexia se desenvolve, elas sentem que a doença é causada por
alguma força misteriosa que as invade ou que controla seu comportamento”
(Bruch, 1978, p.55). É comum que se inicie então um sentimento de separação
entre o corpo e a mente, sendo que a mente tem o dever de controlar o corpo.
Ainda que seja difícil encontrar anoréxicas que reconheçam o fato,
algumas, após o tratamento, reconhecem que durante a doença surgiu nelas
uma “outra pessoa”, uma espécie de tirano interior a quem não podem resistir.
“Normalmente esta parte secreta e poderosa do self é uma personificação de
tudo que elas tentaram esconder ou negar como coisas não aprovadas por elas
ou pelos outros” (idem). Não é incomum que esta segunda entidade que povoa
145
o pensamento da anoréxica seja descrita como masculina, pois muitas sentem
que ser mulher é uma desvantagem, uma condição depreciativa.
22
É decisivo, Bruch (1978) declara, considerar que o evento traumático ao
qual as anoréxicas associam o início do seu emagrecimento nada mais seja do
que a gota d’água que fez o copo transbordar, o sendo o evento em si o
causador da anorexia. Poucas anoréxicas realmente podem ser classificadas
como obesas ou com sobrepeso antes do início do transtorno, mas todas
relatam que não se sentiam bem com o próprio corpo, que ele estava anormal,
gordo. Elas agem como se ninguém nunca tivesse lhes dito que desenvolver
curvas é parte de uma puberdade normal” (Bruch, 1978, p.58). Comentários
normais entre adolescentes sobre o corpo um do outro são considerados pelas
anoréxicas como verdadeiras ofensas, prova de que elas possuem um corpo a
ser corrigido.
A preocupação com peso e dieta ocorre normalmente quando a
anoréxica é exposta a um ambiente ou pressão nova, como mudar de escola, ir
a um acampamento ou começar a faculdade. o todas situações que
envolvem um afastamento do ambiente familiar e a necessidade de exercer
sua própria vontade, algo para o que as anoréxicas se sentem em
desvantagem. A primeira perda de peso pode se dar de maneira acidental em
virtude de tristeza ou isolamento social, mas em pouco tempo elas passam a
ser elogiadas por suas novas formas, o que gera um circuito de jejum que não
mais se quebra. O que aparece na psicoterapia sobre esta fase da vida delas é
que “estas jovens chegaram a um impasse: continuar como antes se tornará
impossível (...) incapazes de promover reais mudanças em suas vidas, seus
próprios corpos se transformam na arena em que exercitam seu controle”
(Bruch, 1978, p.59)
23
.
O início da anorexia pode ser no final da infância, mas normalmente ele
coincide com a puberdade. As mudanças corporais são sentidas como uma
perda total de controle. A opinião de Bruch (1978) é que quanto mais cedo a
anorexia eclodir, melhores as chances de tratamento. Tal opinião é embasada
no fato de que se a anorexia começou cedo, isto significa que a garota
22
Associo a descrição que a autora faz do superego tirânico das anoréxicas com a Carta da Ana e a Carta
da Mia, que apresentei anteriormente, pois tais cartas, anônimas, parecem expressar bem o discurso de um
superego tirânico.
23
A descrição deste parágrafo e do anterior é semelhante ao processo pelo qual Luciana passou, a garota
que citei como exemplo de conversa virtual com uma anoréxica.
146
começou seu “protesto” contra a perfeição familiar e contra seus ideais logo
cedo, o que implica uma estrutura psíquica mais saudável do que de uma
anoréxica que foi capaz de suportar a situação até o início da faculdade, por
exemplo.
Outro fator que auxilia as que começam cedo é que elas ainda moram
com os pais, o que facilita um tratamento de toda a família, “o que pode levar
ao término do intenso envolvimento com os pais” (idem). Caso a anorexia
comece na puberdade, como geralmente ocorre, os sinais de maturação são
interpretados como algo anormal e associados à gordura. É aqui que Bruch
(1978) apresenta uma visão original do problema, pois é normal ler ou ouvir
que as anoréxicas têm medo da vida adulta, enquanto, para a autora, “elas, na
realidade, têm medo de se tornarem adolescentes” (Bruch, 1978, p.62).
Perante as transformações não desejadas do corpo, resta à anoréxica
transformá-lo em objeto de controle e transformação, encontrar uma maneira
de impedir as mudanças. É assim, e este raciocínio é meu e não da autora, que
a anorexia se transforma em um sintoma sobredeterminado, porque ao mesmo
tempo em que serve ao propósito de fornecer uma identidade precária para a
jovem, ele também serve como instrumento para congelá-la no estado mental
em que seus ideais residem. É assim que o corpo magro serve a um duplo
propósito.
Outro fator importante a ser notado é que existem diferenças na maneira
com que cada anoréxica irá encarar a adolescência. Algumas se preocupam
com o convívio social da adolescência, pois, em geral, não foram preparadas
para tal durante a infância. A anoréxica pode chegar a expressar sua crença de
que a doença consegue “garantir o amor e cuidado eterno dos pais” (Bruch,
1978, p.67). E mais um fator precipitante pode ser uma doença na família, em
especial se a doença exigir da anoréxica um grau elevado de cuidado e/ou
respeito pelo doente. Em diversos casos a mãe, após alguma doença, como
câncer de mama, se transforma em uma espécie de “objeto sagrado” da casa,
a quem a filha deve especial respeito. Este tipo de situação familiar aumenta os
conflitos preexistentes, pois a anoréxica fica ainda mais proibida de se
expressar perante uma mãe convalescente (ou um pai doente).
Por fim, Bruch (1978) identifica que em algumas garotas “atingir a
puberdade pode significar o fim do sonho secreto de crescer e se transformar
147
em um garoto” (Bruch, 1978, p.69). Segundo a autora, poucas anoréxicas
admitem explicitamente o desejo de ser um garoto, mas o comuns os
comentários depreciativos sobre o corpo e costumes femininos.
O jejum provoca a sensação de ser diferente, e em pouco tempo o
orgulho por tal diferença surge, e começa um treinamento mental que chega a
envolver horas na frente do espelho repetindo frases do tipo “eu gosto de sentir
fome” (Bruch, 1978, p.73). Provavelmente neste momento os efeitos da
desnutrição começaram e o pensamento se encontra alterado por razões
fisiológicas. Os sentidos se expandem, o que no começo é descrito como uma
experiência maravilhosa. Aos poucos a hipersensitividade se transforma em
algo irritante, que a retira do convívio social, pois todos estão gritando com ela
e toda luz é forte demais. O quarto e a vida noturna passam a ser ambientes
seguros para uma pessoa que percebe as coisas com tanta intensidade.
Conforme a desnutrição progride, os sintomas aumentam e novos
podem surgir, que logo são integrados aos que já existiam. A experiência
temporal também se altera, junto com os sentidos. Os demais sintomas
dependem da história de cada anoréxica, de seu passado, mas são
relacionados “à imaturidade pessoal e a conceitos sociais rígidos” (Bruch,
1978, p.74). Para Bruch (1978), o isolamento social é um dos piores elementos
no desenvolvimento da doença, pois a ausência de pessoas da mesma idade
impede a anoréxica de passar por experiências que corrijam seus falsos
conceitos sobre o corpo e sobre a vida. Não ter um grupo ou um amigo
significa mais uma oportunidade para ficar isolada, ruminando sobre peso,
comida e calorias. O isolamento faz com que “seu pensamento e objetivos se
transformem em algo bizarro e elas constroem idéias estranhas sobre o que
acontece com a comida [quando ingerida]” (Bruch, 1978, p.75). As tarefas
escolares começam a ser supervalorizadas porque o desempenho escolar
reforça a sua superioridade, mas ela não consegue mais se concentrar em
atividades acadêmicas porquanto sua mente só pensa em comida.
24
Este é o momento em que a distorção da imagem corporal já se instalou
também. A anoréxica dirá que seu corpo está ótimo, do jeito que ela quer, e
poderá até mostrar um pedaço do corpo que ainda está gordo. Bruch (1978)
24
As meninas entrevistadas pela internet me contaram, em diversas entrevistas, fantasias sobre o que
ocorria com a comida, como pensar que toda a comida se dirigia para uma parte específica do corpo e
outros raciocínios do tipo.
148
comenta que isso envolve muito treino; elas “praticam se olhar no espelho, vez
após vez, se orgulhando de cada quilo perdido e de cada novo osso que fica
aparente” (Bruch, 1978, p.77).
Ao pesquisar o que as anoréxicas sentiam antes da distorção da
imagem corporal, a autora encontrou que muitas se sentiam felizes com seus
corpos durante a infância e até mesmo sentiam surpresa ao ver mulheres ou
adolescentes reclamando sobre peso e altura. Entretanto, ao entrar na
adolescência, normalmente coincidindo com o primeiro regime, a anoréxica
deixa de ser feliz com seu corpo, passando a vê-lo como gordo em excesso.
“Assim que o orgulho em ter uma aparência de esqueleto se
estabelecer, é extremamente difícil remover este orgulho(Bruch, 1978, p.79).
A anoréxica, quando esquelética, parece não ter pudor de mostrar seu corpo
nu para médicos, terapeutas e familiares. Mas a autora notou que quando a
nutrição começa a fazer efeito e algumas poucas curvas voltam a aparecer, a
anoréxica fará questão de esconder seu corpo. Algumas sentem a
menstruação como uma experiência bizarra que deve ser interrompida, não
aceitando o fato como um fenômeno natural.
Ao falar sobre pacientes que recorrem a farras alimentares e depois ao
vômito, provavelmente bulímicas, a autora percebeu que elas têm uma fantasia
de que a comida ingerida “não pode ser integrada ao corpo, ou que ela é, de
alguma forma, causadora de dano ao corpo, portanto, ela tem que ser
removida através do vômito” (Bruch, 1978, p.84). O ato de vomitar adquire
características individuais; algumas simplesmente vomitam, outras usam
objetos macios para provocar o reflexo do vômito. Ao vomitar, a fome volta, o
que causa uma nova orgia alimentar e um novo vômito, diversas vezes por dia.
Às vezes o vômito se transforma numa maneira de aliviar as tensões em geral.
Algumas garotas começam a ter medo de que não haja comida suficiente para
o vômito, ou privacidade para provocá-lo. Tais medos geram tensão, que irá
postergar qualquer atividade até que o vômito ocorra.
25
Outro pensamento distorcido comum é o efeito que os exercícios têm
sobre o destino da comida ingerida. Algumas anoréxicas possuem a fantasia
de que, ao se exercitarem, podem mandar a gordura para este ou aquele lugar
25
A descrição deste parágrafo lembra o processo pelo qual Bianka, que citei como um exemplo de
entrevista com bulímica pela internet, passou. É preciso lembrar que Bruch (1978) não utilizava o termo
bulímica, portanto, é provável que ela tenha tratado bulímicas e as designado como anoréxicas, devido à
época em que escreveu seus textos.
149
específico. O mesmo acontece com o uso de laxantes e diuréticos; elas sentem
que seus corpos não mais funcionam sem os estímulos químicos. Em resumo,
com o passar do tempo, as anoréxicas “desenvolvem uma grande variedade de
sintomas para manter a magreza total” (Bruch, 1978, p.85). Aos poucos a
própria explicação dada é que o estômago não aceita a comida, que comer faz
mal, que ingerir qualquer alimento é causa de sofrimento.
Certas maneiras de alterar a percepção temporal foram descritas por
Bruch (1978). anoréxicas que tentam adiar os eventos, deslocando-os para
um futuro distante. Outras planejam o tempo meticulosamente e ficam
extremamente irritadas quando a realidade não condiz com sua noção
temporal. Outras ainda fazem listas, com as tarefas diárias descritas em
cronologia precisa, para se “proteger de algo que é muito aterrorizador para
mim espaços em minha vida” (Bruch, 1978, p.88). Na realidade, todas essas
tentativas de alterar o corpo, a percepção do tempo, têm, segundo a autora,
suas origens na infância precoce, que foi vivida pela criança de uma maneira
extremamente passiva, apenas absorvendo o mundo, sem integrá-lo à sua
personalidade.
Durante o amadurecimento da criança, em alguns casos ela não
consegue evitar confusões, pois suas atitudes de extrema conformidade e
também de auto-afirmação positiva não são suficientes para integrá-la ao grupo
de pessoas da mesma idade. São esses instantes que geram um desespero na
criança, que não sabe como reagir e que revelam o vazio da sua
personalidade. “A perda de peso conquista muito: os pais são levados de volta
à posição protetora, sem exigir nada da criança, e a criança tem, pela primeira
vez, a experiência de ter poder e de estar no controle” (Bruch, 1978, p.89).
Para que uma psicoterapia possa começar, a nutrição deve ser restaurada, os
padrões de interação familiar devem ser expostos e trabalhados e o eu não
diferenciado da anoréxica deve ser exposto, retirado de sua posição de eterno
escravo do desejo alheio e amadurecer em um eu que deseja, por si só.
H) A correção de peso segundo Hilde Bruch
Por meio de alguns exemplos, Bruch (1978) demonstra que em casos
nos quais apenas o peso foi restaurado ao normal, assim que a anoréxica
150
deixou o hospital, a clínica ou os cuidados da enfermeira particular, seu peso
caiu drasticamente. Corrigir o peso deve “ser parte de um programa de
tratamento integrado” (Bruch, 1978, p.93). É importante ressaltar para a família
e para a paciente que, apesar da aparência, a anorexia não é uma doença
sobre peso e tamanho, mas sim sobre “dúvidas internas e falta de
autoconfiança” (Bruch, 1978, p.93). Entretanto, a autora é clara: antes que
qualquer um desses tópicos possa ser trabalhado, o peso deve ter sido
restaurado a um patamar mínimo.
Durante a nutrição, a paciente deve receber informações de que o fato
de estar sendo nutrida terá efeitos também sobre sua maneira de pensar, o que
a auxiliará com suas angústias. Outro ponto crucial é garantir que a quantidade
de comida que lhe está sendo administrada não é suficiente para deixá-la
gorda, mas apenas o suficiente para que seu corpo volte a trabalhar de
maneira adequada. A autora é contra hospitais que permitem dietas totalmente
livres, onde a paciente pode comer bolos, doces e outras guloseimas à
vontade, pois o excesso alimentar pode ser fonte de tensão para a anoréxica,
que ou regredirá ou entrará em um ciclo de farra alimentar seguido de vômito.
Sobre o tipo de dieta, Bruch (1978) concorda que o princípio básico é
aumentar a ingestão de calorias e diminuir as atividades das garotas, mas que
a maior parte dos dicos revela frustração ao tentar prescrever dietas. É
necessária, então, uma abordagem que faça com que elas comam sem se
sentirem ameaçadas pela gordura excessiva. Em relação à hospitalização das
pacientes, a autora entende que, caso o hospital não seja especializado em
anorexia nervosa, é melhor não internar a garota em tal instituição, tanto em
hospital geral quanto psiquiátrico. Em instituições não especializadas a
paciente provavelmente irá comer, na tentativa de sair o mais cedo possível do
local e, ao sair, retomará sua rotina de restrição calórica.
Por outro lado, se a equipe do hospital tiver treinamento adequado,
demonstrando “entendimento caloroso para a situação dolorosa na qual a
paciente se encontra, o ganho de peso em um hospital pode ser benéfico”
(Bruch, 1978, p.95), pois traz a paciente de volta a um estado mínimo de
funcionamento metabólico, reduz a ansiedade da família e permite o início de
um processo psicoterapêutico.
151
I) A psicoterapia dos transtornos alimentares segundo Hilde Bruch
Em relação a qual seria o peso mínimo para que uma anoréxica possa
sair do hospital e iniciar a psicoterapia, Bruch (1978) pondera que esta é uma
variável que depende da altura e compleição física da anoréxica, mas que
costuma ser de 45 a 50 quilos, que apesar de ser um peso baixo, já é suficiente
para o início de um tratamento psíquico. A questão de como nutrir uma
anoréxica, caso seja internada, deve ser centralizada em um único profissional,
como um clínico geral ou pediatra, que mantenha contato ativo com os outros
profissionais, como o psiquiatra, o psicoterapeuta e a nutricionista.
A autora é extremamente ácida ao comentar os efeitos dos tratamentos
de modificação de comportamento sobre as anoréxicas. É verdade que o
sistema de punição e recompensa realmente induz ao ganho rápido de peso,
mas Bruch (1978) alerta que a própria eficiência do sistema aumenta o
sentimento de “desamparo destas jovens, que se sentem privadas dos últimos
vestígios de controle sobre seus corpos e vidas” (Bruch, 1978, p.102).
Ou melhor, em pacientes que sofrem por o terem tido um
sentimento de ser independentes, capazes de levar uma vida própria, um
sistema de punição e recompensa pode ser considerado como um reforço do
trauma inicial. A autora alega que muitas anoréxicas que são liberadas de
hospitais, após programas de modificação de comportamento retornam ao
estado de nutrição em dias ou semanas. Quanto mais coercitivo for o método,
mais rápida será a recaída, diz Bruch (1978, p.102).
Quanto mais especializado for o hospital ou a instituição que receber a
anoréxica, maiores as chances de o tratamento ser rápido e bem-sucedido.
Não se preocupar com o peso, “como algumas vezes é feito no tratamento
psicanalítico, permitindo que a paciente sobreviva em um nível de desnutrição,
é prejudicial e resulta em um estado crônico da doença” (Bruch, 1978, p.103).
A última recomendação do capítulo é que as anoréxicas em tratamento tenham
contato com anoréxicas que se recuperaram, pois isto posibilita que elas “se
sintam encorajadas a permitir seu próprio peso a atingir um nível normal”
(Bruch, 1978, p.105).
152
J) Tratar a família e a anoréxica
Em relação à família, é obvio para a autora que a anorexia é uma
doença tão relacionada a padrões familiares que um tratamento que não
envolva a família tem grandes riscos de fracasso. Ao se aproximar da família,
não existe uma regra única, senão “clarificar os conflitos e problemas
subjacentes da família, como uma parte necessária do tratamento”
(Bruch,1978, p.106). Bruch (1978) costumava usar a pergunta: “O que torna
necessário para a paciente se infligir tamanho grau de desnutrição para
conseguir atenção das famílias?” (p. 107), repetindo a pergunta durante várias
sessões.
Algumas famílias são menos defensivas e concordarão em falar sobre
seus problemas, o que acelera o tratamento da anoréxica. Enquanto as
sessões com a família ocorrem, é importante explicar para a anoréxica que não
é um mau comportamento contradizer a família ou expor seus sentimentos.
Outro fator importante é ressaltar que alguns prazeres da vida, por mais bobos
que possam parecer, são justos e podem ser desfrutados, sem a necessidade
de um pedido de desculpas em seguida (como comer um chocolate ou querer
um brinquedo específico).
Quando a família é muito rígida, utilizando expressões idênticas para um
se referir ao outro e até mesmo um falar pelo outro, o terapeuta deverá
formular uma lista simples de ações que quebrem tamanha rigidez, com tarefas
como “que cada um apenas poderá falar em nome próprio, que ninguém
poderá explicar o que o outro quis dizer” (Bruch, 1978, p.114). Outra questão
no tratamento das anoréxicas é que, às vezes, enquanto elas melhoram, os
problemas familiares pioram. Isto ocorre porque a filha, que era o sustentáculo
de uma família perfeita, está se distanciando dos pais e adquirindo vida própria.
A negação é um dos mecanismos mais comuns das famílias que se recusam a
“se envolver no tratamento. Algumas se preocupam que falar sobre seus
problemas pode ser mais prejudicial do que saudável” (Bruch, 1978, p.117).
Em outra situação típica, os pais negam qualquer responsabilidade, pois
admitir algum grau de culpa seria o mesmo que admitir que houve uma falha na
criação da garota. Portanto, o trabalho principal é a psicoterapia individual,
153
enquanto as sessões familiares ocorrem em paralelo e a anoréxica começa a
adquirir a capacidade de se expressar.
Conforme a técnica analítico-clássica, que interpreta o simbolismo do
não comer, fantasias e sonhos são considerados inadequados pela autora, pois
ela acredita que tais interpretações são sentidas como
(...) reencenações das experiências prejudiciais do passado. As
anoréxicas crescem em ambientes harmoniosos, mas ao
mesmo tempo em que são a filha mais valorizada são também
a mais controlada. (...) Elas sentem as interpretações como um
indicativo de que uma outra pessoa sabe o que elas realmente
sentem e pensam, que elas próprias não entendem seus
pensamentos” (Bruch, 1978, p.123).
O objetivo da terapia deve ser, portanto, restabelecer na anoréxica a
capacidade de desenvolver os próprios pensamentos e ações. O terapeuta é
aquele que a ajuda a encontrar habilidades esquecidas, capacidades pouco
lembradas, como o pensamento, julgamento e a própria capacidade de sentir.
Ao interpretar, o analista confirma o medo da paciente de que ela seja
defeituosa, que algo lhe falte, que esteja destinada à dependência, pois até
mesmo para entender seus próprios sentimentos ela precisa de um terceiro.
A doença deve ser explicada em detalhes para a anoréxica. Ao ouvir um
relato sobre a psicodinâmica da anorexia, não é incomum que a anoréxica se
espante que são tão conhecidos o seu quadro e seus problemas mais íntimos,
e que outras garotas usaram palavras idênticas para expressar os mesmos
problemas. Esta explicação detalhada cria um clima de entendimento
preliminar entre a anoréxica e o terapeuta. Porém, ao esmiuçar a doença, é
preciso explicar que tudo o que está sendo dito “foi aprendido através de outras
anoréxicas. Elas não gostam disso, pois desejam ser únicas” (Bruch, 1978,
p.127). Desta maneira, tal explicação é necessária, porque caso contrário, o
terapeuta será visto como um ser onisciente, capaz de ler pensamentos ou ter
algum tipo de poder extraordinário.
Após a explicação sobre a psicodinâmica da doença, o terapeuta deve
perguntar à anoréxica o que ela gostaria de obter da terapia. E assim que ficar
claro que os focos da terapia são “suas vidas internas e incertezas, não um
transtorno alimentar, este entendimento se transforma em um laço no qual se
154
agarrar em meio ao labirinto de negação, contradição e determinação em não
alterar o próprio comportamento” (Bruch, 1978, p.132).
Conforme o tratamento continua, o terapeuta deve manter atenção
especial nas variações de peso da anoréxica, pois “as subidas e descidas no
peso costumam refletir o que esse passando em sua mente” (Bruch, 1978,
p.135), como a aproximação de um conflito essencial, a entrada em um estado
de negação, etc. Apesar de o peso não ser o foco da terapia, Bruch (1978)
considera antiterapêutico que os problemas suscitados pelo peso não sejam
analisados durante as sessões.
Entretanto, ao se aproximar de tais problemas, como o peso, o
terapeuta deve ajudar a anoréxica a compreender sua dificuldade em se
expressar, em ter autonomia em relação aos próprios impulsos e sentimentos.
Auxiliar o pensamento, a expressão, a autonomia, este é o foco terapêutico de
uma psicoterapia com anoréxicas. Mostrar-lhes que elas próprias podem gerar
conceitos, idéias, pensamentos e atitudes que modifiquem suas vidas é
essencial, até mesmo para que possam se relacionar com outras pessoas.
Toda vez que a anoréxica esboçar um leve traço de pensamento ou
comportamento individual, o terapeuta deve estar alerta e reconhecer essa
expressão como algo importante e valioso. “Para atingir tal objetivo o terapeuta
deverá prestar atenção em cada minuto da fala e das discrepâncias da fala da
paciente sobre seu passado” (Bruch, 1978, p.136). O terapeuta deve ser
honesto ao expressar suas opiniões e corrigir as impressões distorcidas da
anoréxica, como quanto a peso ou imagem, por exemplo. A anoréxica, então,
ao perceber que alguém a ouve pela primeira vez, “algo do qual ela foi privada
durante seu desenvolvimento” (idem), irá lentamente desenvolvendo suas
capacidades.
É justamente a sutileza entre independência e dependência, interpretar
ou não interpretar, sugerir ou não sugerir, que faz com que a psicoterapia das
anoréxicas seja tão difícil. O terapeuta tem que desfrutar de um estado de
alerta total, apto a reconhecer qualquer movimento independente da paciente,
mostrar-lhe que ela conquistou algo por conta própria e continuar. Aos poucos
a paciente começará a acreditar em sua capacidade para a mudança. É
também importante que, aos poucos, ela tome contato com o papel ativo que
as pessoas tiveram em sua doença, que esta foi resultado de uma submissão
155
exagerada e de expectativas irreais, das quais a anoréxica participou
ativamente.
Toda a comunicação, segundo Bruch (1978), deve ser feita de forma
simples, sem ambiguidades e, se possível, utilizando linguagem coloquial. Se
algo pode ser dito de maneira leve ou engraçada, assim deve ser, pois “as
anoréxicas levam seus sintomas e a si próprias tão a sério que elas podem
reagir como se elas estivessem sendo atacadas por sarcasmo” (p.142), ou
seja, uma dose leve de cinismo ou sarcasmo do terapeuta pode ser catastrófica
para a comunicação.
A anoréxica, com sua atitude de sempre concordar com o terapeuta,
assim o faz para evitar qualquer forma de conflito. Mas como o que está em
jogo são idéias e conceitos distorcidos, o terapeuta deve prestar atenção às
respostas, definir os conceitos da anoréxica, e até mesmo desafiá-los para que
possam ser abandonados. Tal processo é lento e muitas vezes o terapeuta irá
perceber que, apesar de acreditar que algo já foi assimilado, o mesmo conceito
distorcido retorna em outro exemplo. Respostas concretas e episódios reais
são valiosos para responder a tal mundo distorcido. O sentimento de
inferioridade, normalmente escondido sob um ar de superioridade, é um dos
falsos conceitos a serem explorados.
Conforme a terapia progride, tendo como base as dúvidas, indecisões e
depreciações a que a anoréxica se impõe, o terapeuta poderá perceber a
melhora em várias áreas da vida como, por exemplo, “o desenvolvimento de
novas amizades” (Bruch, 1978, p.147). Vale lembrar que a anoréxica esteve
isolada do convívio social por muito tempo, o que demandará de seu terapeuta
ajuda até para resolver questões práticas, e ainda o que esperar de uma
amizade. Pelo fato de terem sido supervalorizadas quando crianças, as
anoréxicas “se sentem rejeitadas caso não sejam sempre elogiadas e
reforçadas positivamente” (idem).
O desenvolvimento de um relacionamento heterossexual costuma ser
lento, apesar de muitas gostarem de ter vários namorados, como uma prova de
seu valor e beleza. Entretanto, a entrada em um relacionamento real, com
possibilidade de casamento, costuma ser “adiada até que elas tenham testado
sua capacidade para ser independentes e livres”. Bruch (1978) também explica
que costuma, ao final do tratamento, perguntar como foi o processo da
156
anorexia e que papel a psicoterapia desempenhou. “Nenhuma expressou
arrependimento sobre a anorexia, pois a maioria sente que teria permanecido
extremamente dependente de suas atitudes perante a família e o mundo”
(idem). Muitas expressam vergonha por terem tido pensamentos tão infantis e
concordam que não teriam ultrapassado tal tipo de pensamento sem ajuda. A
maioria responde que os benefícios da terapia foram uma maior compreensão
de si, dos outros, e das relações que elas estabeleceram com suas famílias.
Apesar da lentidão do processo, dos retrocessos, a autora diz que “não
existe nada mais gratificante do que ver aquelas criaturas ingênuas, rígidas e
isoladas mudar para seres humanos espontâneos, com interesses variados e
uma participação ativa em suas vidas” (Bruch, 1978, p.149). Por fim, a autora
retoma a história da garota que usara a expressão “gaiola dourada”. Ao
terminar o tratamento, a moça disse que ainda sentia que crescera numa
gaiola, mas que a gaiola fora construída por ela própria. A paciente sentiu que
a psicoterapia a auxiliou a romper tal gaiola, a se ver livre de idéias distorcidas
e se sentir liberta, na realidade, ao ar livre. Ela está apenas contente por liderar
sua própria vida.
Na acepção de Bruch, as anoréxicas atuais parecem carecer da “paixão”
que caracterizava as anoréxicas antigas, que buscavam ser únicas, especiais,
e acreditavam que, pela doença, estavam atingindo algo extraordinário. As
atuais não possuem a característica de auto-isolamento das antigas
anoréxicas, mostrando apego umas às outras, participando de comunidades,
grupos de auto-ajuda, ou seja, considerando o contexto atual. O Orkut confirma
as idéias de Bruch. Ela observou que as anoréxicas, ao tomarem conhecimento
dos aspectos da doença, chegam ao consultório com todo um padrão de
sintomas e de fala, característicos da doença, o que estaria causando uma
distorção dos quadros individuais. O fenômeno ocorreria justamente para
compensar a falta de referenciais de identidade e individuação, o que as levaria
a ter um comportamento imitativo. Deste modo, na atualidade o Orkut seria
uma professora ideal, que oferece todos os elementos para um comportamento
de imitação.
157
K) Uma Breve Discussão sobre os Autores Citados neste Capítulo
Ao comparar o que cada um dos autores citados trouxe como
contribuição ao entendimento dos transtornos alimentares, é possível perceber
como o tema “anorexia e bulimia” é passível de diversas interpretações, o que
aponta para a própria definição das doenças como síndromes determinadas
por diversos fatores, incluindo uma mistura de ambiente e cultura. Brumberg
(1989) e Weinberg (2006) podem ser consideradas duas representantes da
corrente que analisa a anorexia como uma patologia que possui um longo
encadeamento na história da humanidade, em particular na cultura ocidental.
Entretanto, enquanto Brumberg (1989) apóia uma visão que, no final,
leva em conta movimentos históricos como os grandes disparadores da
doença, Weinberg (2006) efetua uma tentativa de ler a história com o olhar de
psicanalista, a saber, levando em conta fatores intrapsíquicos. Considero as
duas autoras equilibradas em suas análises, tendo em mente que cada uma
teve uma leitura mais próxima de sua área.
Bordo (1983), por outro lado, leva a questão cultural a limites máximos, e
isto transforma suas idéias em algo passível ou de aceitação incondicional ou
de rejeição total, o que parece ser o preço de idéias extremas. O que quero
dizer é que, ao tomar conhecimento das idéias de Bordo (1983), ou se acredita
que a anorexia e a bulimia fazem parte de um grande movimento cultural
contra o poder feminino, ou não se acredita nisso. De qualquer forma, não se
pode negar que a autora possui o mérito de defender o eixo cultural dos
transtornos alimentares como poucos autores fazem, o que talvez seja um
contrapeso necessário em um ambiente no qual, muitas vezes, o fator cultural
é apenas citado quase como se fosse algo que tem que ser dito por obrigação,
com exemplos óbvios, mas sem profundidade. Entre Bordo (1983) e Brumberg
(1989), acredito que a última apresenta uma visão da cultura mais equilibrada
porque não descarta os fatores biológicos e psicológicos, como é feito por
Bordo (1983).
Cordás (1998) e Bruch (1978) têm o mérito de falar sobre as famílias das
pessoas com transtornos alimentares. Se Bruch (1978) possui o mérito de ser
uma pioneira, não se pode esquecer que é uma autora que lidou com a
questão por um certo tempo, o que faz com que algumas de suas idéias
158
possam estar ultrapassadas, sendo um dos exemplos a idéia da autora de que
a excessiva liberdade que foi dada às mulheres, graças à revolução dos
direitos femininos, poderia ser uma das causas dos transtornos alimentares.
Cordás (1998), ao estar mais próximo de nossa realidade, descreve um quadro
familiar mais conhecido, mas é inegável que Bruch (1978) deve receber o
crédito por seu pioneirismo, tanto ao se interessar como em tratar os
transtornos alimentares, e de ser capaz de descrever a evolução da doença em
termos simples, sem precisar recorrer a uma linguagem rebuscada. A
descrição de Bruch (1978) é simples e clara, acessível, com conselhos práticos
sobre quase todas as áreas relativas ao tratamento dos transtornos
alimentares.
Assim, não se trata de julgar o mérito dos autores, pois cada um
enxergou a questão sob um ângulo próprio. O interessante, ao lê-los, é
encontrar as semelhanças e perceber que elas ainda podem ser vistas hoje em
dia como, por exemplo, ao comparar o que encontrei em minha pesquisa com o
que os autores descrevem. Talvez, realmente, possamos pensar nos
transtornos alimentares como uma longa linha no tempo, em que cada autor
pôde enxergar o assunto de acordo com seu ponto de vista e com suas
limitações teóricas e pessoais. Com certeza, meu próprio estudo não foge de
tal regra, sendo um ponto a mais a ser acrescentado na longa linha temporal
mencionada.
159
CAPÍTULO III: CONCEITO PSIQUIÁTRICO DE TRANSTORNO
ALIMENTAR
De acordo com o DSM IV e a clínica psicanalítica, na anorexia existe
uma recusa alimentar, enquanto a bulimia apresenta um padrão de descontrole
em relação à alimentação, alternando ingestão excessiva de alimento com
períodos de restrição. Em ambos os casos existe também uma distorção da
imagem corporal, e por este motivo afirmo que essas síndromes estão
articuladas, nos confrontando de saída com as questões da oralidade e do
corpo.
Sob um ponto de vista biológico, o comportamento alimentar é
considerado um dos mais simples de serem observados. Grande parte do
conhecimento dessa área advém da experimentação em animais, no que
concerne a zonas cerebrais e neurotransmissores, conhecimentos estes que
depois são utilizados com seres humanos.
Estatisticamente a anorexia está presente em 0,5% das mulheres e a
bulimia apresenta uma variação entre 1% e 3% de prevalência nas sociedades
atuais. Conforme o DSM-IV, “mais de 90% dos casos de anorexia nervosa
ocorrem em mulheres”. Quanto à bulimia, sabe-se que a taxa de prevalência
entre homens é de “um décimo da que ocorre em mulheres”.
Apenas em 1979 a bulimia recebeu o tratamento de síndrome
específica por parte da psiquiatria, através de um trabalho de Gerald Russel,
sendo reconhecida como tal pela “Associação Americana de Psiquiatria desde
1980” (Bulimia, Wikipedia, 2007). A utilização do termo anorexia nervosa foi
adotada oficialmente pela psiquiatria em torno de 1980, com os termos
anorexia nervosa e bulimia nervosa sendo aceitos pelo DSM-III.
Ao levar em conta o percurso do diagnóstico e tratamento dos
transtornos alimentares, tanto por parte da medicina quanto por outras
ciências, noto um movimento histórico de serem mais ou menos aparentes, ou
talvez posto de outra forma, de serem sintomas que surgem e desaparecem de
tempos em tempos. Pensando em termos cronológicos, surge a pergunta da
relação entre a cultura e estes sintomas. Embora relatados desde a Idade
160
Média, a frequência dos relatos muda bruscamente, com aumentos e declínios
desses casos.
A anorexia normalmente ocorre na adolescência, na faixa dos 14 aos 18
anos, e raramente após os 40 anos. O DSM-IV enfatiza que o aparecimento da
doença está associado a um evento estressante, ressaltando que o curso da
doença é variável, podendo assumir características diferentes de paciente para
paciente. É considerada uma das patologias psiquiátricas com mais alto índice
de mortes, sendo que mais de 10% dos pacientes internados com o quadro
vêm a falecer.
Por sua vez, a bulimia é descrita como tendo um início no final da
adolescência ou no início da vida adulta. É comum que o transtorno apareça
durante ou após uma dieta severa. Este comportamento persiste por vários
anos, sendo que algumas pacientes são consideradas crônicas e outras
intermitentes, apresentando períodos de remissão e recorrência. O DSM-IV
considera que “períodos de remissão mais longos do que um ano estão
associados a melhores resultados a longo prazo”, indicando que se um
desaparecimento dos sintomas por mais de um ano, o prognóstico é
considerado favorável.
Como acima citado, cabe lembrar que existe um critério diagnóstico
estabelecido para a anorexia e a bulimia. Não obstante existirem diferenças
entre o CID-10 e o DSM-IV no que se refere ao diagnóstico, ambos mantêm
uma descrição semelhante dos quadros. O padrão diagnóstico DSM-IV para
anorexia e bulimia pode ser resumido no quadro a seguir:
161
Compulsão
alimentar
Comportamentos
compensatórios
Frequência
mínima cpt.
compensat.
Auto-
avaliação
baseada
em
forma/peso
corpo
Amenorréia
TCAP + -
2x/sem
6 meses
- -
BN + +
2x/sem
3 meses
+ -
AN + ou - + ou - - + +
Fonte: Adaptado de BORGES, Maria Beatriz.
A despeito da inegável contribuição que os manuais diagnósticos
trouxeram para o desenvolvimento da clínica, auxiliando na detecção precoce
de certos quadros, ao comparar os critérios DSM-IV com a descrição
psicanalítica das mesmas patologias, existe um estranhamento. Este advém do
fato de que nos casos DSM-IV e CID-10 existe uma mera descrição
sintomatológica dos quadros, enquanto os autores psicanalíticos buscam e
sempre buscaram uma etiologia.
Outro ponto importante é se observamos os critérios resumidos do DSM-
IV e compará-los com as descrições dos pesquisadores que remontam ao
século XV, poderemos ao longo desta pesquisa observar uma semelhança
assustadora. Amenorréia, perda de apetite, compulsão alimentar, todos
sintomas que haviam sido descritos, e que agora começam a ser aceitos
pelos manuais diagnósticos. Para facilitar a compreensão dos transtornos
alimentares, decidi escrever uma breve introdução ao mecanismo da fome em
termos biológicos e sua relação com os transtornos alimentares.
162
A) O Mecanismo da Fome e seus Problemas
Parece óbvio, mas é importante dizer que a fome é descrita como a
sensação que o organismo experimenta quando precisa repor suas reservas
nutricionais ou manter funções essenciais ligadas à vida. Para entender o
mecanismo da fome é essencial ter em mente que o cérebro está em constante
ligação com diversos indicadores da fome ou da saciedade, atuando no sentido
de buscar comida ou parar de ingeri-la.
Ao fazer experiências com animais, ou observar seres humanos com
lesões ou tumores, cientistas logo perceberam que aqueles que tinham lesões
numa área denominada hipotálamo apresentavam problemas de apetite.
Dependendo da área do hipotálamo lesionada, a cobaia ou o ser humano
poderia comer muito ou pouco, o que indicava que esta área cerebral deveria
ser considerada como o centro da saciedade e da fome. Um hormônio liberado
pelo aparelho digestório, a grelina, ativa os centros de fome, enquanto outro, a
leptina, faz com que a busca de alimentos cesse.
Outro indicador importante para o cérebro sobre como estão nossas
reservas nutricionais é a quantidade de açúcar no sangue, que ao baixar,
também ativa a busca por alimentos. É interessante que a fome em animais é
acompanhada de uma ativação intensa de todo o sistema muscular para a
busca de comida. Acredito que aqui é possível fazer um paralelo com a
anoréxica, que tem fome, não consegue evitar a hiperatividade muscular, mas
não a utiliza para a busca de alimentos, e sim para a queima de ainda mais
calorias, uma verdadeira inversão do propósito biológico da resposta muscular.
Assim, estando o cérebro em contato com o aparelho digestório, tanto
por meio de feixes do sistema nervoso central quanto por receber sangue, e
este sangue contém elementos que o alertam para o excesso ou falta de
alimento, ele reage a este conjunto de sinais, iniciando ou inibindo a busca por
alimentos. Claudino (2005) denomina a área da saciedade como núcleo
ventromedial do hipolamo, enquanto o centro da fome é a região hipotalâmica
lateral. O mesmo autor explica que as pacientes com anorexia “raramente
apresentam supressão completa do apetite, mas, sim, uma resistência
geralmente voluntária à ingestão de alimentos” (p.6). Atualmente, diversos
estudos foram conduzidos sobre o mecanismo da fome em anoréxicas e
163
bulímicas, explorando desde áreas cerebrais, neurotransmissores, hormônios
relacionados à fome, etc. Apesar dos estudos, ainda não foi encontrada uma
base neurológica ou bioquímica que explique os transtornos alimentares por
completo.
A bulimia, por sua vez, poderia ocorrer em razão de um desequilíbrio
entre os centros de fome e a saciedade, mas esta é uma hipótese teórica.
Assim como na anorexia, o que se sabe é que existe uma disfunção cognitiva.
De acordo com Claudino (2005), “comportamentos alimentares restritivos e
cognições disfuncionais com relação ao peso e à forma do corpo são comuns
aos dois transtornos” (p.6). A frase anterior, retirada de um manual médico
sobre transtornos alimentares, revela quão pouco ainda se sabe sobre as
bases neurológicas e bioquímicas dos transtornos alimentares, se é que
uma que possa explicá-los completamente.
26
26
Sobre aspectos médicos da fome, saciedade e suas bases biológicas, remeto o leitor ao livro escrito por
Angélica de Medeiros Claudino, “Transtornos Alimentares e Obesidade”, citado em minhas referências
bibliográficas.
164
CAPÍTULO IV: CONTRIBUIÇÕES DA PSICANÁLISE
A) Charcot (1825 – 1893)
Charcot trabalhou na Salpitrière, reconhecendo na anorexia um sintoma
puramente histérico. O termo histeria, utilizada pelos médicos antes de Freud,
se situava como uma perversão do sistema nervoso central. Charcot proferiu
uma palestra intitulada “O isolamento no tratamento da histeria”, enfatizando “a
influência curativa do tratamento”, que nessa época havia uma discussão
entre isolar as anoréxicas em asilo mental, em casas para anoréxicas ou na
casa de pessoas distantes. Era necessário remover a paciente do lugar onde a
doença se originara, cortando visitas dos pais e parentes da paciente. “Uma
mão gentil, porém firme, uma postura profissional e muita paciência o
condições indispensáveis” (Weinberg, 2006, p.168).
Charcot expôs o caso de uma adolescente de 13-14 anos que não
comia, embora não apresentasse problemas orgânicos. Charcot nessa época
assegurava que o caso estava no limite da histeria, mas mais próximo do
que Gull e Lasègue chamaram de anorexia. Os pais da garota solicitaram a
ajuda de Charcot, que pediu que a adolescente fosse internada sob seus
cuidados, descrevendo que a aparência da moça era um “espetáculo
lamentável”.
Os resultados do isolamento
27
foram “rápidos e maravilhosos”,
recuperando sua força. A menina confessou:
Enquanto papai e mamãe não me deixaram, enquanto você
não triunfou, porque eu sabia que você gostaria de me internar,
eu acreditava que minha doença não era séria, e como eu tinha
horror a comer, eu não comia. Quando eu vi que você era o
mestre, eu tive medo, e apesar da minha repugnância, eu
tentei comer e consegui fazê-lo pouco (Weinberg, 2006, p.70).
27
É curioso notar que as idéias de Charcot e Bruch (1978) sobre o isolamento não são as mesmas, pois a
última acredita que a família deve ser inserida no tratamento o mais rápido possível, respeitando o tempo
necessário para que a anoréxica se recupere.
165
Charcot mencionava Gull e Lasègue, mas parecia discordar de Lasègue, pois
este defendia uma postura mais distante do médico no início do tratamento,
enquanto Charcot defendia uma postura firme e atenta à paciente. Tendo como
base a fala da paciente e também a postura que Charcot defendia para o
tratamento, penso que é possível dizer que Charcot intuía a necessidade de
uma função paterna no processo de cura da anorexia. Sobre a função paterna,
gostaria de ressaltar que, em minha análise estatística, pude encontrar a falha
da função paterna como um denominador comum dos transtornos alimentares,
assim como a presença da mãe intrusiva, que é uma condição facilitadora da
falha da função paterna.
28
B) Sigmund Freud (1856-1939)
Freud, assim como Lasègue, deve ter tido seus primeiros contatos com
a anorexia pela via da histeria, pois esta era uma opinião compartilhada por
diversos neurologistas da época. Freud demonstrou atenção pelo tema,
associando a falta de apetite com uma falta de libido, mas isto ocorreu apenas
em uma época posterior, quando também a associou à melancolia.
Em “Um caso de Cura pelo hipnotismo” (1893), Freud descreve uma
jovem que apresentava sintomas anoréxicos após o nascimento de cada um de
seus filhos. Freud utilizou a sugestão, e classificou o caso como uma “histeria
ocasional”. E talvez, pela primeira vez, se tenha sugerido uma perturbação
mãe-filho no aparecimento do sintoma, com uma possível ênfase na influência
do parto e da maternidade sobre o aparecimento dos sintomas. Atualmente
pode-se considerar que tal situação era relacionada a um quadro de depressão
puerperal.
Em “Estudos sobre a Histeria” (1895) aparece o caso de Emmy Von N,,
que relata diversos sintomas relacionados à alimentação, como dores de
estômago, medo de beber água e também amenorréia. É curioso notar que
Emmy exibia alguns comportamentos semelhantes aos das anoréxicas
atuais, como jogar a comida que lhe era dada, às escondidas, e expressar uma
28
Quero dizer que se a mãe é onipresente na vida da criança, já é de esperar a dificuldade que o pai terá
para romper o relacionamento fusional entre mãe-filha. Se o pai tem um aspecto pouco presente, como
apareceu em minha pesquisa e como Cordás (1998) também menciona, é justo presumir que a entrada do
pai fica duplamente prejudicada.
166
certeza sobre seu funcionamento corporal como, por exemplo, dizer que
associava seu mal-estar às suas apreensões apenas porque Freud lhe havia
dito isso, ou seja, ela deveria ter suas próprias teorias sobre o funcionamento
corporal. Esta afirmação parece ser corroborada quando ela se enfurece ao
receber uma ordem de Freud para se alimentar, e retruca dizendo que “isso vai
acabar mal, porque é contrário à minha natureza e meu pai era como eu”.
Assim, Emmy demonstra uma idéia sobre o funcionamento de sua natureza
corporal e também uma identificação com o pai.
Um outro caso foi relatado por Breuer, de um menino de 12 anos que
confessou que os sintomas começaram após um homem, em um banheiro
público, mostrar-lhe o pênis e pedir que ele o colocasse em sua boca. O
menino fugiu, mas se recuperou após relatar o ocorrido para a mãe. É
importante que Breuer já salienta que para o surgimento dos sintomas foi
necessária a conjunção de muitos fatores, como a constituição neurótica inata
do menino, a expressão da sexualidade em sua forma mais crua, seu grande
medo e a idéia de repulsa. A doença ocorreu, pois o silêncio do menino
impediu a excitação de encontrar sua saída normal”. Na descrição de Breuer
aparece um início de explicação sobre a sobredeterminação do sintoma, que
hoje é adotada para a explicação de muitos casos relacionados à alimentação.
Em “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos” (1893),
Freud afirma que “um dos sintomas mais comuns da histeria é uma
combinação de anorexia e vômito”. Freud associa repulsa por comida e asco.
Fala sobre o caso de uma paciente que leu uma carta humilhante pouco antes
de uma refeição. A pessoa também poderia ter que comer a refeição em
presença de alguém que ela repudiava, transferindo sua repulsa da pessoa
para a comida.
Em “Carta a Fliess” (1899), Freud explica o sintoma que seria “onde o
pensamento reprimido e o pensamento repressor conseguem juntar-se na
realização do desejo”. Freud pensa na repulsa por alimentos como um sintoma
de conversão. Ele menciona o caso de uma mulher que precisava acreditar que
estava grávida, e por isto sentia fome. Ao mesmo tempo, ela vomitava. Freud
explica que assim o sintoma atende aos dois desejos, pois atende à
gravidez/sexualidade e também expia a culpa pela sexualidade.
167
Em “Fragmentos de análise de um caso de Histeria” (1905), Freud
comenta a perda de apetite de Dora. Freud retoma as idéias do texto de 1895,
no qual os sintomas histéricos são fruto do recalcado. A preocupação de Freud
no caso foi a histeria e não a anorexia.
Em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), ao sugerir as
zonas erógenas, Freud liga a sexualidade à alimentação. Freud compara o ato
de mamar, o contato dos lábios do bebê com a mãe e um consequente prazer.
No início, o ato e a sexualidade atendem apenas à autopreservação. mais
tarde é que haverá uma separação entre a sexualidade e as funções da
autopreservação.
Em “Rascunho G” (1895), Freud afirma que existem correlações entre
melancolia e anestesia sexual, ao dizer que
(...) a neurose nutricional, paralela à melancolia, é a anorexia.
A famosa anorexia nervosa de moças jovens, segundo me
parece (depois de cuidadosa observação), é uma melancolia
em que a sexualidade não se desenvolveu. A paciente
afirmava que não tinha se alimentado simplesmente porque
não tinha nenhum apetite, não havia qualquer outro motivo.
Perda de apetite – em termos sexuais, perda da libido.
Quanto ao “homem dos lobos”, publicado em “Historia de uma neurose
infantil” (1918), Freud liga a falta de apetite à fobia, em contraste com a
associação à melancolia de Rascunho G. No caso do homem dos lobos ele se
refere à fase oral ou canibalesca, “durante a qual predomina ainda a ligação
original entre a excitação sexual e o instinto nutritivo”. Também fala:
É sabido que existe uma neurose nas meninas que ocorre
numa idade muito posterior na época da puberdade ou pouco
depois, e que exprime a aversão à sexualidade por meio da
anorexia. Essa neurose te que ser examinada em conexão
com a fase oral da vida sexual.
Freud apresenta, nesse texto, uma evolução de pensamento, pois começa a
considerar os problemas de uma organização pré-genital da libido.
168
Em “O Método psicanalítico de Freud” (1903) e “Sobre a Psicoterapia”
(1904), Freud discute qual o melhor método para abordar ocorrências em que é
necessária uma rápida supressão do sintoma, como no caso da anorexia. Ele
se pergunta se o tratamento analítico, demorado, seria indicado nestes casos.
Em “Atos obsessivos e práticas religiosas” (1907), Freud antecipa as questões
dos comportamentos obsessivos das anoréxicas, demonstrando que os rituais
obsessivos poderiam ser uma proteção contra um suposto mal futuro, que no
caso da anoréxica estaria exposto em seu medo de comer e nos inúmeros
rituais que podem surgir durante sua parca alimentação.
É importante ressaltar que Freud, ao se questionar sobre a eficácia do
método psicanalítico em casos de anorexia, parece ter antecipado o
pensamento de Bruch (1978), que diz claramente que a análise clássica não é
adequada para os casos de transtornos alimentares, ao defender a utilização
de uma psicanálise apropriada para as especificidades deste tipo de caso,
como mencionei no subcapítulo sobre a obra da autora.
Freud não estudou profundamente a anorexia e a bulimia, mas através
da leitura de sua obra é possível traçar paralelos entre diversos de seus textos,
a maior parte não sendo diretamente relacionada a transtornos alimentares,
mas cujas contribuições teóricas abriram caminho para o entendimento e a
continuidade da cnica da anorexia e da bulimia. Apesar de apenas em forma
embrionária, é possível notar que Freud havia percebido a ligação com a
sexualidade pouco desenvolvida, a relação mãe-filho, os comportamentos
obsessivos e a relação com a oralidade. Diversos autores que estudaram a
anorexia acabaram se atendo a um ou outro desses aspectos.
Talvez Freud tenha tido contato com pacientes anoréxicas que estavam
em um estado fronteiriço, mas tal expressão não era utilizada em sua época.
Portanto, não parece impossível que Freud tenha detectado, em cada
anoréxica que tratou ou sobre a qual escreveu, uma variedade de
manifestações patológicas e suas causas, o que combina muito bem com a
idéia de que a anorexia é uma patologia transnosográfica
29
.
29
Nosografia é uma palavra que une dois termos gregos, grafein (que significa escrever, descrever) e
nosos (significando enfermidade ou doença, em sentido amplo); portanto, é uma descrição detalhada de
uma doença. Em diversos casos o termo nosografia também tem sido utilizado não apenas para abarcar a
descrição de uma doença, mas também a etiologia. Assim, quando autores como Janet (1999) escrevem
que os transtornos alimentaresm uma “característica transnosográfica” (p.35), é possível apreender que
se trata de uma tentativa de situar a anorexia e a bulimia entre os eixos nosográficos clássicos da
psicanálise, como a neurose, a psicose e a perversão.
169
Minha concepção é: se pegarmos todas as pistas deixadas por Freud e
as desenvolvermos, chegaremos ao ponto de vista de vários autores
posteriores ao mestre vienense. Assim, mesmo sem ter se dedicado
exclusivamente aos transtornos alimentares, Freud certamente abriu as portas
da psicanálise para sua compreensão, ao apontar caminhos que foram
seguidos.
C) Pierre Janet (1859 – 1947)
Os médicos ficaram durante muito tempo presos aos aspectos físicos da
anorexia, apesar de os aspectos emocionais começarem a chamar alguma
atenção. No início da última década do século XIX, os praticantes da psiquiatria
dinâmica começaram a prestar atenção ao histórico de vida do paciente. Freud
e Janet foram importantes, enquanto Janet a ligou a um quadro obssessivo-
compulsivo e Freud a um quadro de neurose. Os dois lançaram a questão: “O
que a falta de apetite significa?”
Janet foi aluno de Charcot, diretor do laboratório de psicologia
experimental da Salpitrière. Praticou a psiquiatria dinâmica. Teve importantes
diferenças com Freud. Considerava a perda de apetite como uma dificuldade
emocional subjacente. Para Janet, o controle do apetite poderia ser uma
estratégia consciente, em vez da repulsa por comida de Freud.
Citava casos de mulheres ansiosas, que antecipando as dores de
estômago que a ingestão de comida causava, o queriam, portanto, comer.
Outras tinham escrúpulos em comer carnes, e outras deixavam de comer
devido a eventos dolorosos da vida. No caso das anoréxicas, Janet pensa que
era o resultado de “um distúrbio mental ou derio que tornou-se uma idéia
obsessiva, a que ele chamou de idée fixe” (Weinberg, 2006, p.76). Em 1903 ele
escreveu uma obra chamada “A obsessão e a psicastenia”, que hoje seria um
diagnóstico próximo ao do TOC (psicatesnia). Estabeleceu três estágios para a
doença: o primeiro contém sentimentos de insuficiência física e psicológica,
sensação de que coisas estão incompletas e que algo pode ser feito para
melhorá-las. Estas sensações costumam remontar à infância. O paciente
também pode alegar amnésia, dizendo que não lembra se arrumou a cama ou
a casa, dizendo que por isso precisa de ordem e uniformidade. Sintomas
170
físicos incluem dor nas costas, na cabeça e impotência sexual; o segundo
são os atos repetitivos, fobias, ruminações, tiques e ansiedade, e o terceiro
estágio é a fase das obsessões e compulsões que dominam a vida mental do
paciente: acreditar que está gordo quando está magro, etc. É o estágio mais
avançado da doença.
Janet acreditava que a hereditariedade possuía um papel importante na
psicastenia, onde um fator precipitante poderia dar origem à moléstia. Ele
enfatizou o “tratamento moral” (ligação com Pinel), com ênfase em um papel
ativo e diretivo, e no aqui e agora, porém menos interpretativo. Acumulou uma
descrição de mais de 300 casos que formaram suas observações sobre a
psicastenia, onde detalhou o caso de Nádia (diagnóstico de anorexia histérica).
Nadia se achava grande desde a infância. Na puberdade, ela tomou
consciência do tamanho de suas pernas, braços, quadris e pés, que eram
muito grandes e musculosos. Imaginava ter excesso de espinhas, mas sua
pele era limpa e clara. Ao perceber que nasciam pelos púbicos, achava que era
a única pessoa do mundo a tê-los, sendo que se depilou até os 20 anos para
fazer desaparecer o “ornamento selvagem”. Cortava os cabelos curtos e usava
roupas que escondiam as formas do corpo. O crescimento dos seios aumentou
seus medos de obesidade e os problemas sexuais. Ela se parecia com um
garoto, mas Janet dizia que isto não era uma homossexualidade, mas sim o
desejo de anular totalmente a sexualidade e não ter corpo algum.
Nádia não queria engordar, crescer, nem parecer com uma mulher, pois
desejava ser sempre uma menina. Janet e Freud atribuíam significados
simbólicos ao apetite dos sujeitos, dando origem à idéia de que anoréxicas
recusam comida para manter seus corpos infantis e magros. Ambos defendiam
a idéia de que a falta de apetite era um comportamento simbólico. Uma
diferença essencial entre os dois autores é que Freud acreditava em uma
questão sexual histérica conversão, enquanto Janet pensava que as
crenças obsessivas da anoréxica derivavam da crença de ser feia, ridícula e
não poder ser amada como todo mundo.
D) Karl Abraham (1877 – 1925)
Amigo, discípulo e divulgador da obra de Freud, criando conceitos
novos, discutiu a questão das fixações nas fases e suas consequências em
171
cada tipo de personalidade. Ele foi responsável pela implantação da
psicanálise nos meios psiquiátricos da época, modificando o tratamento
daquele momento para pacientes psicóticos, esquizofrênicos e com psicose
maníaco-depressiva. Algumas de suas idéias continuam na psiquiatria e no
pensamento popular, como a do caráter oral, que seria otimista e
despreocupado, e do anal, controlador e possessivo. Abraham teve uma
contribuição importante sobre as consequências das fases primitivas do
desenvolvimento psicossexual e auxiliou Freud a formular sua teoria da libido,
comentando que, à primeira vista, o melancólico seria uma pessoa sem desejo
de viver, que parava de comer em uma tentativa suicida.
Abraham desenvolveu a descrição da fase oral-canibalística e também
da fase anal, e tentou associar tais fases à gênese dos transtornos alimentares,
enveredando pelo caminho da análise de mecanismos presentes em tais fases,
como o “sadismo, a ambivalência, a oralidade e a culpabilidade inerente ao
desejo de incorporação do pênis paterno” (Fernandes, 2006, p.119). É notável
que certos elementos, como o da incorporação do pênis paterno, tenham
retornado mais tarde como uma das principais explicações para a anorexia,
nas cadas de 1940 a 1960. Acredito que é possível ver uma influência do
trabalho de Abraham em tais trabalhos.
Retornando ao pensamento de Abraham, se considerarmos que a fase
oral-canibal, que é a mais primitiva do ser humano, se refere a um desejo de
incorporar e destruir o objeto amado, desta forma, em um transtorno alimentar,
não comer seria a única maneira de se manter afastado dos desejos
reprimidos e da possibilidade de destruir o objeto amado. Associo este
pensamento de Abraham ao de Bruch (1978), quando ela descreve a busca por
autonomia, a necessidade de auxiliar as pessoas com transtornos alimentares
a conseguir uma identidade própria. Explico minha associação, pois acredito
que, se aplicarmos as idéias de Abraham sobre a destruição do objeto amado,
e como isto deve gerar uma paralisia na constituição do psiquismo, é possível
continuar o raciocínio e chegar até o pensamento de Hilde Bruch (1978) sobre
a autonomia não constituída, os pedaços infantis do psiquismo, o estado
congelado em que as anoréxicas e bulímicas se encontram, e assim por diante.
Abraham, ao se dedicar ao estudo da oralidade e sua psicopatologia, é
um autor que produziu material diretamente relacionado aos transtornos
172
alimentares. Assim, a contribuição deste autor contemporâneo de Freud é
essencial para a metapsicologia que envolve a anorexia e a bulimia. Sobre a
atualidade da obra de Abraham, gostaria de citar Mezan (1999), que afirma:
“muitos dos problemas que ele se coloca são perfeitamente atuais, embora
algumas das soluções que propõe não o sejam”. Mezan (1999) está se
referindo ao fato de que alguns conceitos de Abraham, como o de relações de
objeto, são tão atuais que até hoje se constituem como uma base para a escola
de relações de objeto.
Por outro lado, a teoria das pulsões em Abraham perdeu um pouco de
seu interesse (até mesmo devido à sua morte precoce, pois a luta entre pulsão
de vida e pulsão de morte caracteriza a segunda tópica freudiana), assim como
a noção de que a regressão passa pelos mesmos estágios da evolução da
libido, o que não se aplica aos dias de hoje. De qualquer forma, a leitura de
Abraham mostra quantos temas ele deixou, assim como Freud, em estado
latente, ou, para usar a linguagem da minha pesquisa, em potência, em uma
virtualidade. Tais temas seriam melhor explorados mais tarde, como as
relações de objeto e as influências das experiências arcaicas sobre a
constituição do psiquismo. Devido à associação entre transtornos alimentares,
oralidade e relações de objeto, Abraham pode ser considerado como uma
leitura essencial para aqueles que se dedicam ao assunto.
173
CAPÍTULO V: DO VIRTUAL PARA O REAL, RELATO DE
CASOS CLÍNICOS
Durante os contatos virtuais, em meio às conversas acabei acessando o
Orkut de uma pessoa que me chamou a atenção. Fiquei curiosa em poder
conversar com essa pessoa, que a relação de seus amigos girava em torno
de 434 pessoas, todas com perfil de ana ou mia.
Escrevi a ela perguntando se havia interesse em participar da pesquisa.
Passados alguns dias recebi um e-mail com a resposta dessa pessoa
mostrando-se interessada em participar da pesquisa. Ela se recusou a
conversar pelo MSN, mas aceitou o convite para uma entrevista em meu
consultório.
Após as entrevistas e passadas duas semanas, essa mesma pessoa
entrou em contato telefônico comigo solicitando atendimento, e permaneceu
durante um ano e meio, confirmando a idéia de Levy que o virtual não se trata
do “irreal”, do ilusório ou imaginário.
Ainda sobre a descrição do perfil dela, que se tornou minha paciente,
pude notar que aceitava como amigos/as no Orkut as chamadas “anas” e
“mias”, ou seja, anoréxicas e bulímicas. Outro fator que chamou minha atenção
ao ler o perfil dessa pessoa, a quem chamarei de Carolina
30
, foi que se
apresentava como autora de um blog chamado “Diário de minha outra
personalidade”. Ao ler o blog, deparei com muitas informações sobre anorexia
e bulimia e também com um fato curioso, que foi o de que ela assinava o blog
como Ana Carolina Fathin (em inglês, fat é gorda e thin, magra). Ao ler trechos
do blog pude perceber que muitas pessoas liam-no e deixavam comentários,
elogiando a escrita, identificando-se com a autora ou, em alguns casos,
tecendo críticas a ela. Para evitar qualquer ambiguidade na leitura do material
clínico, esclareço que Ana, Carolina e Ana Carolina são a mesma pessoa,
pseudônimos que a jovem criou e que utilizava, dependendo da situação.
Segue a cópia do primeiro e-mail que Carolina me enviou, quando se
recusou a conversar pelo MSN:
30
Nome fictício.
174
Vamos direto ao que interessa!!
Oi Kelly!!
Tenho 31 anos. Meus pais são casados até hj numa relação estável e feliz.
Tenho 1 irmã 1 ano mais nova que eu. Na minha casa, desde criança, sempre
percebi que eu era considerada a inteligente, com personalidade forte, com
iniciativa e que meus pais esperavam que eu fosse uma profissional bem
sucedida, que eu era mais agressiva e, talvez, eu não conseguiria me casar,
que nenhum homem aguentaria uma mulher mandona. Minha irmã mais
nova era a bonita, feminina, que gostava de fazer os serviços domésticos pra
ajudar a minha mãe. Porém, isso nunca, nunca mesmo, chegou a ser dito,
percebia o tratamento diferente para comigo e para com minha irmã.
Inconscientemente, eu aceitei que era feia, mas que teria uma carreira
profissional, maravilhosa, brilhante!
Ainda na infância, muitas vezes por vários dias, sentia tristeza, como
uma depressão e até pensava que se eu morresse não faria falta. Não tenho
como explicar o porquê disso, que sempre tive atenção e amor dos meus
pais. Atualmente, lembrando aquela época, não consigo saber por que, mas
não penso nela como um período feliz. Eu realmente era triste, melancólica.
Não me dava muito bem com as pessoas, não por ser retraída ou tímida, mas
simplesmente não achava que me dariam atenção.
Quando estava no pré, tive uma professora ssima. Numa ocasião, fizeram
uma festa de aniversário para um dos alunos da minha classe e a professora
me obrigou a comer 2 brigadeiros que eu não queria, pois não gostava.
Lembro-me de ter passado mal e vomitado dentro da sala de aula. Nem deu
tempo de avisar que os docinhos tinham me enjoado. Eu simplesmente não
consegui segurar. Levei uma bronca dessa professora que jamais me
esquecerei. Me senti perdida, pois respeitava a autoridade dela e não sabia o
que dizer.
Na adolescência, minha ircomeçou a namorar bem antes de mim e
sempre foi bem mais sociável, com muitas amigas. Eu tinha poucos amigos, na
grande maioria meninos, pois sempre achei as meninas muito traiçoeiras, que
175
zombariam de mim pelas costas. (Só tinha 1 amiga menina que hj é bulímica).
Quando tinha 14 anos, em 1989, me apaixonei por um cara e resolvi fazer um
regime para melhorar o meu visual. foi o começo. Fui numa farmácia e
comprei o Moderine. Na época não havia remédio de tarja preta e o moderine
tinha em sua fórmula diazepan também. Comecei a tomá-lo e ele funcionava.
Emagreci 16 kg em 40 dias, mas ao invés de ficar contente, ia ficando mais
triste e resolvi não sair de casa até que estivesse magra o suficiente. Para
enganar meus pais, eu fazia de tudo... Eu estudava à noite e ia bem mais cedo
pra escola com a desculpa de estudar ou fazer algum curso extra. Além disso,
fazia academia 2 horas por dia e coincidia com o horário de almoço da minha
casa. Minha dieta era: 1 dia- nada / 1 dia - 1 maçã/ 2 dias - nada/ 1 dia-1 maçã
/ 3 dias - nada / 1 dia - 1 maçã... Até que quando eu estava no oitavo dia de
jejum (quando era para completar 10 dias), desmaiei na academia. Fui
encaminhada ao Pronto-Socorro e queriam me colocar para tomar soro, mas
eu não deixei. Me debatia tanto que chamaram a médica e ela, após conversar
comigo e com o treinador da academia que me acompanhou, me diagnosticou
anoréxica (na época não tinha essa divulgação que tem hj e eu nunca tinha
ouvido falar).
Fui pesquisar sobre a doença para decidir se contaria ou não para os
meus pais. Como não me considerava doente, optei por não falar nada. Depois
disso, deixei a academia porque não tinha mais forças e nem vontade. Passava
o dia todo deitada, chorando, e ia para a escola. Todos os dias minha mãe
vinha conversar comigo, querendo saber o que eu tinha, etc., e eu nunca
falava. Sabia que ela ficaria brava por causa do remédio e do regime - que para
mim, ela nem tinha percebido, pois não tocava no assunto. Eu sabia que ela
estava muito preocupada, mas eu não queria parar de emagrecer. Depois que
eu estava há um ano nesse estado e nem conseguia mais emagrecer nada, ela
entrou no meu quarto e me falou em tom muito bravo: "Você tem tudo: amigos
que vêm aqui todo dia e vc nem quer ir falar com eles, roupas, estuda numa
escola excelente, eu todos os dias venho aqui falar com vc e vc nunca quis se
abrir. Tá na hora de parar com isso."
Não sei bem por que, mas funcionou. Melhorei e voltei a ter uma vida
mais próxima do normal, mas sempre me preocupando com o corpo. Morava
em Campinas e me mudei para São Paulo. Um ano depois de sair daquela
176
depressão, em dezembro de 91, recebi uma carta muito triste daquele cara por
quem eu era apaixonada e novamente caí em depressão e, ao mesmo tempo,
fiquei anoréxica de novo, que sem usar remédio nenhum. Perdi muito peso
e fiquei com uma aparência tão ruim que meus pais me levaram ao hospital
para saber o que acontecia. que eles disseram que eu provavelmente
estava com algum problema no fígado. Pediram alguns exames e não deu
nada e ficou por isso mesmo.
Após uns 2 meses, comecei a melhorar de novo. Em 1996 reencontrei
aquele cara que eu ainda era apaixonada e começamos a namorar. Em 2000,
fomos morar juntos. Alguns meses depois, comecei a ficar anoréxica
novamente e fui ficando cada vez mais obcecada com o meu peso. Virou uma
obsessão o grande que eu passava o dia pensando no que eu ia fazer pra
perder mais peso. que não estava triste como das outras vezes. Todos
estavam me elogiando, me achando mais bonita, etc....
Mas em 2003 comecei a ter depressão de novo. Eu sempre fui
perfeccionista e não aceitava errar. Todas as vezes que cometia o menor erro,
queria me punir de alguma forma e sempre me achava egoísta, incompetente,
um lixo em pessoa e, sinceramente, apesar de saber que isso é uma coisa
irracional, eu achava que era porque estava gorda. É claro que minha mãe
achava que eu estava muito magra, que eu tinha que engordar. Meu namorado
nunca reclamou e sempre me apoiou, tanto se eu quisesse emagrecer ou não.
Em 2005, cheguei a uma situação insuportável. pensava que queria
morrer, que eu não prestava pra nada, que era inútil no mundo, etc.... O que eu
mais queria era que alguém me oferecesse ajuda, mas como ninguém percebia
ou não sabia como fazer, ninguém se ofereceu. Resolvi procurar ajuda
profissional sozinha. Como não tinha com quem desabafar, contei para minha
irmã tudo que eu tinha passado, tudo que aconteceu e, para minha surpresa,
ela disse que já sabia que eu estava doente desde a primeira crise, em 1989, e
que minha mãe também sabia. Disse que fiquei surpresa pois minha mãe
nunca tocou no assunto comigo e nunca ofereceu para me levar ao médico -
oferta que eu teria aceitado de imediato.
Enfim, depois de muita procura, encontrei um psiquiatra especializado
em Tas. Atualmente tomo antidepressivo, mas tive que parar o tratamento
porque estou desempregada.. Sinto-me bem melhor, apesar de ainda ter uma
177
parte de mim que luta contra o tratamento, que não quer se curar. fiquei
alguns dias sem tomar o antidepressivo, pois sei que quando estou melhor,
mais alto astral, não tenho toda aquela vontade de ficar sem comer direto.
Quando estou deprimida ou com algum problema mais sério, busco na fome
a saída mais fácil (eu diria que troco uma dor por outra). Claro que o peso
ainda é um pensamento obsessivo na minha cabeça e isso não vai acabar de
uma hora para outra, mas acredito que pelo menos ainda conseguirei ter
controle sobre essa doença.
Kelly, raramente entro no MSN porque detesto. Se vc for de São Paulo,
pode me ligar: XXXX-XXXX é o tel da minha casa. Espero ter ajudado. Caso vc
queira mais informações, pode me escrever ou ligar, tá?
Não será nenhum incômodo pra mim!!
Bjks!!
Ana Carolina.
Ao ler este longo e-mail, confesso que fiquei instigada a conhecer Ana
Carolina. No entanto, o hesitei e enviei outro e-mail, perguntando se ela se
interessaria em participar de uma entrevista pessoal a ser realizada em meu
consultório, e ela respondeu com um e-mail curto que dizia:
Oi Kelly!!
Nossa, fico muito grata pelo seu convite. Podemos
marcar, sim!
Espero seu contato para combinarmos, então, tá?
Vc já tem meu telefone. Pode me ligar quando quiser,
ok? (Pelo amor de Deus, não antes do meio-dia!!! rs...)
Fiquei feliz mesmo!!
Bjks e boa semana!!
Combinamos um horário por e-mail e ela compareceu, como combinado.
Ana Carolina, uma moça alta e magra, entrou na minha sala com um livro
sobre anorexia nas mãos, perguntando se eu conhecia aquele livro. Ana estava
agitada, gesticulava e mexia os braços a todo instante, tentando arrumar a
blusa que escorregava do seu ombro. Uma das primeiras coisas que Ana disse
foi que após aceitar meu convite para a entrevista ficou preocupada, não
178
conseguindo dormir na noite anterior, pois ficava pensando em quanto estava
enorme e com olheiras.
Logo associei esta primeira apresentação de Ana Carolina ao que
Brumberg (1989) discute em seu livro. A autora explica que, nos anos 80,
vários grupos resolveram se assumir perante o grande público como
homossexuais, drogados, pessoas que foram abusadas, e que as anoréxicas
também “saíram do armário” e começaram a contar suas histórias ao público.
Ao perceber quanto esta garota escrevia e falava sobre sua vida, pude admitir
que tal fenômeno deve realmente estar ocorrendo no universo das anas e
mias.
Durante a entrevista comentei que lera seu blog e que pude notar
quanto ela se interessava pelo assunto dos transtornos alimentares. Ana
respondeu que “Lá no blog eu escrevo como se fosse outra pessoa, como se
usasse uma máscara”. Neste momento pude associar que o e-mail que Ana me
mandou antes de nos conhecermos estava mascarado, ou seja, parecia um
texto elaborado para o seu blog. Ainda sobre a “máscara”, durante a conversa,
também me recordei do título do blog de Ana, que menciona outra
personalidade, que é “Diário de minha outra personalidade” , bem significativo
das tentativas de Ana tentar personificar uma outra pessoa em determinadas
situações.
Ana mostrava-se ainda muito ansiosa, falava que apesar de ter 31 anos
sua cabeça funcionava como a de uma pessoa com 15 anos. Esta fala de Ana
correspondia ao seu perfil. De fato, se eu fechasse meus olhos, estaria ouvindo
uma adolescente que gesticulava com gírias diversas, e ao mesmo tempo
parecia uma pessoa de 31 anos altamente intelectualizada, com um rico
vocabulário. Pedi-lhe que me contasse como teve início a sua anorexia. “Não
sei ao certo”, respondeu Ana, “mas sempre tive apelido de gorda, a hoje”.
Senti-me chocada com a fala, pois a pessoa que estava em minha frente não
aparentava nenhuma gordura em seu corpo, estando na realidade com uma
aparência extremamente magra. Aqui novamente veio em minha mente seu
blog chamado “Diário de minha outra personalidade”, que desde o início me
deixou curiosa. Parecia que nesse momento alguns dados estavam fazendo
sentido para mim. No blog ela descrevia de forma intelectualizada, ou melhor,
desafetada, seu sofrimento durante a infância e adolescência. Fiquei
179
impressionada como a presença da mãe controladora era descrita de forma
sem paixão, como se fosse algo corriqueiro, normal:
Quando eu tinha 15 anos fiquei muito magra. Certa vez,
durante uma festa, alguns primos me disseram que eu estava
muito magra. Na mesma festa minha mãe me disse que eu
ficava mais bonita gordinha. Minha mãe é contraditória, quando
eu estava gorda e ela me pegava comendo alguma bolacha,
falava: olha, você vai ficar igual à sua avó. Essa avó é mãe de
meu pai, ela sempre foi muito obesa e quase não conseguia
andar, ela ficou bem melhor e conseguiu caminhar quando
desenvolveu um câncer.
Em meio à conversa, Ana disse que trouxera duas fotos para me
mostrar. Tirou da bolsa duas fotos e pediu que eu apontasse quem era ela na
primeira foto, quando tinha doze anos. Apontei uma menina magra e Ana falou:
“Esta é minha irmã, todo mundo confunde mesmo”, explicando que sua irmã é
um ano e alguns meses mais nova que ela. “Esta aqui sou eu”, disse Ana ao
apontar uma garota gorda, com cabelos crespos e curtos. Olhei para a foto e
não conseguia encontrar semelhança alguma entre a garota gordinha da foto e
a moça alta, magra, com cabelos avermelhados, lisos e compridos que estava
em minha frente, exibindo uma tatuagem no pulso. Esforcei-me por encontrar
alguma semelhança entre a Ana de 12 anos da foto e a de 31 anos que estava
ali. Não parecia que se tratava da mesma pessoa, foi impactante, somente
depois de olhar fixamente para a foto e para ela é que pude notar que se
tratava da mesma pessoa. No entanto, fotografei em minha mente duas
pessoas quase completamente diferentes uma da outra; as semelhanças eram
mínimas e estava difícil para eu integrar as duas imagens em uma só pessoa.
Ana disse que certa vez, em uma conversa com sua irmã, contou
quanto foi difícil para ela crescer sendo a forte e mandona da casa. A irmã
respondeu que para ela havia sido difícil crescer como a feminina e frágil da
casa. “Minha irmã descobriu em terapia que tem TOC” e nesse momento
pensei que Ana poderia estar solicitando a mim um processo psicoterápico.
Assim, indaguei se gostaria de iniciar psicoterapia, ao que concordou de
imediato.
180
“Atualmente tomo 127 gotas de laxante e comprimidos de anfetamina e
faço tratamento com um psiquiatra.” Continuamos conversando e perguntei
sobre sua estrutura familiar. “Moro junto com a mesma pessoa, aquele que
relatei no e-mail, muito tempo. Sou mandona e autoritária na minha relação
com ele. Também gosto muito de gatos, tenho doze em meu apartamento, eles
dormem na cama com a gente. Minha mãe tem muitos defeitos, mas eu a amo.
Minha mãe sempre se sentiu feia e eu sempre soube disso, o problema é que
todo mundo diz que sou parecida com ela. Meu pai é uma pessoa muito boa .”
Acredito que aqui é possível perceber o aspecto transgeracional do transtorno,
desde a avó que melhora quando adoece, a mãe que se sente feia e que
possui uma filha que dizem que é a cara da mãe portanto, feia também, se
pensarmos em um tipo de pensamento familiar.
Esta relação entre mãe e filha aparece em um caso narrado em diversas
falas dela, muitas vezes contadas entre risos e gargalhadas. Ana disse que
certa vez, ao visitar os pais, foi dormir na mesma cama com a mãe, pois seu
pai estava usando dentadura e sentia vergonha de dormir com a mãe. Ana
relata que durante o sono com a mãe começou a apalpá-la, pois pensou que
estava na cama com seu marido. Este é um fato que pode ter várias
interpretações, e é difícil não cair em conjecturas vazias. Entretanto, minha
aposta seria a de que podemos enxergar nesse movimento os aspectos mais
regredidos que a psicanálise descreve como parte do que o bebê sente perante
a mãe amor e ódio. Assim, ao se aproximar da mãe, Ana estava em um
movimento sexualizado, mas que ao mesmo tempo a retirava da figura de mãe,
o que constitui um ataque à figura materna, até mesmo como aquela que ajuda
a estabelecer a lei simbólica dentro da família.
Após esse primeiro contato iniciei a psicoterapia de Ana. No desenrolar
dos seis primeiros meses do tratamento, ela me enviou diversos e-mails e
trouxe vasto material escrito, utilizando folhas avulsas e cadernos. Em virtude
da abundância desse material escrito e pelo fato de que seu conteúdo seguiu,
de certa forma, os conteúdos trabalhados nas sessões, irei utilizá-lo para
ilustrar o início do tratamento.
Ana contou que havia sido convidada para ser entrevistada, falando algo
sobre sua anorexia, mas que a pessoa que a convidara através do Orkut era
sua conhecida em seu antigo trabalho, o que a levou a não aceitar o convite.
181
“Eu prefiro que as pessoas me conheçam sem saber o meu problema, pois se
elas ficarem sabendo eu não consigo me relacionar. Sabia que meu nome não
é Ana Carolina?” perguntou Ana, rindo. Fiquei surpresa com a revelação e Ana
explicou que tem dois perfis no Orkut, um com seu nome real, Carolina, e o
outro que pertence a Ana Carolina, a anoréxica. Ela pediu para eu acessar sua
outra gina no Orkut, explicando que não tem nada sobre anorexia, que
ninguém sabe, e que aqueles poucos amigos são reais. “A página da Ana
Carolina é imensa! Você vai ver a diferença, como ela tem muito mais amigos e
em seu blog mais de quinhentos acessos diários, depois da morte dessa
modelo por anorexia.” Após essa revelação, fiquei confusa e me perguntei:
quem será que está aqui comigo? A Ana Carolina ou a Carolina? Pensei que
talvez fosse a Ana Carolina, que ela acabara de me afirmar que preferia que
as pessoas a conhecessem sem saber de seu problema. O que desejo dizer é
que Ana associou a imagem da anoréxica ao poder, aquela que tem muitos
amigos no perfil, a que é entrevistada. A pessoa real, para ela, é feia e com
poucos amigos.
Assim, retomei em pensamento as duas imagens fotográficas que
naquele primeiro momento eu não conseguia integrar. Carolina estava me
comunicando que ela também o estava integrada e que de fato se
relacionava tanto no virtual como no real, como se fosse duas pessoas.
Senti-me como montando um difícil quebra-cabeça, com cores que
faziam confundir; algumas peças pareciam se encaixar, mas eu não tinha a
certeza se estavam no lugar certo. A cada encontro com Carolina, não sabia ao
certo se era a menina de 12 anos da foto ou se era a magra de 31 anos. Muitas
vezes eu tinha a impressão de estar com a Ana Carolina do blog, que os
assuntos trazidos para dentro da sessão eram sobre o que ela havia escrito no
seu blog e quanto era solicitada por entender do assunto.
Em meio a tantas peças desse quebra-cabeça, lembrei-me da foto que
Ana trouxera no primeiro encontro, quando a confundi com sua irmã, o que me
fez pensar em seu desejo de ser magra como a irmã. Comuniquei isto a ela,
que concordou, e por isto com teve lembranças de quanto bateu em sua irmã
quando eram crianças. Mesmo tendo concordado com o que eu falei, ainda
assim parecia que eu estava conversando com o blog dela e não com ela.
Minha sensação foi essa durante muitos atendimentos, tinha algo inacessível,
182
irrepresentável e obscuro. Não sentia nenhum vestígio de uma relação
transferencial.
Joyce McDougall (1996) explica o fenômeno da desafetação em certos
pacientes, propondo que “trata-se, enfim, de uma ignorância da parte do
indivíduo de grande parcela de sua vivência afetiva” (p.120). Esses pacientes
parecem não possuir consciência de que sofrem de uma inabilidade em
identificar suas próprias experiências emocionais, passando ao analista a
noção de que “predominava nesses analisandos (...) a sua constatação de um
fracasso: ter passado ao largo da própria essência da vida” (McDougall, 1996,
p.120).
Ainda de acordo com McDougall (1996, p.124), “esses analisandos
revelavam um terror de sua realidade psíquica, da qual, de alguma maneira,
estavam desconectados”. Parecia que Carolina (ou Ana, dependendo do
momento), estava constantemente afastada de suas emoções, comportando-se
durante todas as sessões de uma maneira que as permeava de uma sensação
de vazio. O próprio fato de utilizar dois nomes e até mesmo se relacionar com
as pessoas através destes dois nomes não parecia lhe causar nenhuma
estranheza, quase como se isto fosse uma ação impensada e considerada
normal por ela.
Esta situação me levava a pensar: quem é o “eu” no mundo interno de
Carolina? Seria a própria Carolina, seu pseudônimo ou uma fusão de ambas?
McDougall (1996, p.125), ao comentar o caso de pacientes com este tipo de
característica, afirma que
(...) tudo acontece como se essas experiências não fizessem
parte dele”: estão excluídas daquilo que ele pensa ser seu
“verdadeiro eu”. Seu “eu” íntimo sofre de um profundo
sentimento de morte interior, como se nunca tivesse chegado a
estar realmente vivo. Além disso, caso essa parte morta
ameaçasse tornar-se viva, era preciso, quase no mesmo
instante, torná-la outra vez sem vida, sem sensibilidade e,
consequentemente, sem significação.
183
Conforme o atendimento ocorria e algumas peças se juntavam, utilizei o termo
“personalidade fictícia” para me referir a Ana, que agora eu sabia chamar-se apenas
Carolina. O termo “fictícia” desencadeou um processo em Ana Carolina, que escreveu
um longo e-mail sobre suas duas personalidades. Quando recebi este e-mail, no campo
assunto estava escrito “As maluquices de Carolina”:
Ontem fui à análise e fiquei chocada com algumas coisas que rolaram. A
Kelly disse que a Ana Carolina é a minha “personalidade” fictícia e eu
achei que essa era eu, mas na verdade, é a personalidade que esconde os
defeitos e que evita que eu enlouqueça. Agora eu não sei mais mesmo quem
eu sou. A Ana Carolina é quem eu quero ser. Resolvi, então,
conscientemente, criar uma terceira personagem que observará as outras
duas e dirá o que está achando delas.
31
Ana Carolina – 31 anos
Ela tem qualidades. Ela é demais. Segura, confiante e sempre sorrindo.
Está sempre disposta a ajudar todo mundo. É cil ser ela. Ela o precisa de
nada, nem de ninguém. Ela nunca erra. Toma atitudes bem pensadas. É
madura. Ela é bonita, sim, mesmo sem produção nenhuma. Além disso tudo,
ela é tão cool e descolada que as pessoas vão procurá-la pra pedirem
conselhos e tal... E ela sempre sabe dar o conselho certinho! Ela é demais!
Carolina
Ela tem uma irmã gêmea idêntica super bem-sucedida, chamada ANA
CAROLINA. Mas a Carolina a odeia porque elas são gêmeas idênticas, mas
Ana Carolina é muito mais bonita. Como pode? A Carolina é uma gorda, feia,
que sabe chorar e não consegue entender como pode ser tão looser
enquanto a irmã é tão tudo de bom... Ela tem sentimentos estranhos em
relação à irmã, porque ao mesmo tempo em que a ama demais, até de maneira
obsessiva, pode-se dizer, tem tanta inveja dela que nem dá pra falar. A Ana
Carolina é tudo que a Carolina quer ser. Uma vez ela sonhou ser a Ana
Carolina e como foi bom! Ela arrumou amigos - muitos deles, todos fiéis e
gente boa - era tipo um mundo de Barbie, sabe? Nossa, como foi gostoso ser
31
Associo o talento literário de Carolina e a criação de seus personagens ao que grandes escritores
fizeram, como Fernando Pessoa, que escrevia com diversos nomes. Carolina, de fato, escreve muito bem
e se vale disso para expressar seus sentimentos.
184
perfeita e nem fazer força pra isso. Dava uma sensação de leveza, sabe?
Como era bom ser assim. Mas a mãe dela a acordou para a realidade jogando
água gelada na cara dela. Ela não entende porque a mãe as trata de maneira
tão diferente, principalmente por elas serem gêmeas, afinal são a mesma
pessoa, praticamente... Mas muitas vezes ela pensa que queria matar a irmã.
Judiar mesmo. Acabar com ela. Quanto mais ela tenta ser a Ana Carolina, mais
ela fica diferente. Mais ela erra, mais ela faz bobagens e dá mancada e mais
fica com vergonha de si mesma e volta no caminho do progress; não adianta,
ela não tem capacidade pra aprender. Ela se confundiu e achou que era a irmã,
mas como sempre dá as mancadas típicas de sua incompetência, ela se
lembra que é ela mesma e volta a viver um pesadelo. Ela lembra que ninguém
a ama e nem ela mesma - por maioria de votos.
Ela faz de tudo pra ter o corpo igual ao da irmã, porque essa é a única maneira
de ninguém descobrir quem é quem. Pra isso, ela se priva de comer e faz mais
outras cositas pra ninguém saber quem ela é... Essa é a única maneira de não
perceberem que ela não é a Ana Carolina e então pararem de gostar dela...
A partir deste e-mail, Carolina me comunicava como estava se sentindo.
Certo dia me falou que se sentia drogada, “não consigo sair de dentro de mim e
todo o resto parece surreal, imaginação, sonhos, sei lá...” Conta que o mais
louco é saber que não se drogou e que ficou assim por conta de seus
pensamentos, vale dizer, ela percebia que sua loucura partia de seus próprios
pensamentos e o de agentes químicos. Diz nunca ter se sentido tão
estranha: “Tenho a impressão de estar me enganando, de que a minha mente
está trabalhando por conta própria e refazendo uma terceira Carolina que
estará protegida dessas duas que ficaram loucas, e de tanto se espancarem
estão nocauteadas, jogadas no chão sem consciência.” Carolina fala da
vontade de morrer por sentir tudo aquilo de novo. De lembrar-se daquela
criança dentro dela:
Minha memória está complicada. Parece que estou num nada
e que as minhas memórias não são mais minhas. Eu estou
trancada dentro de mim de tal forma que não consigo prestar
atenção em outra coisa que não seja eu mesma e as minhas
sensações e estranhezas.
185
Neste momento do trabalho, em que Carolina começa a se referir a
diversas sensações classificadas por ela como marcadas por um sentimento de
estranheza, penso que cabe recorrer às idéias de Fontes (2006, p.15) que
afirma: “As sensações que foram registradas onto e filogeneticamente podem
reaparecer na transferência com o analista, quando o paciente encontra o
espaço apropriado às cenas mais precoces.” Carolina fala reiteradamente
durante as sessões, que às vezes seu ódio é tamanho que ela passa a sentir
dores por todo o corpo, ou um medo de começar a chorar e não parar nunca
mais.
Essas sensações difusas e prolongadas que Carolina relata parecem se
ligar a algo que fica em uma dimensão anterior à dimensão simbólica, algo
primitivo e inexprimível. Segundo Fontes (2006, p.17): “Freud (1939), em seu
“Moisés e o monoteísmo afirma, ao falar em trauma, que as experiências
inaugurais produzem fortes impressões e são relativas ao corpo próprio ou às
percepções sensoriais principalmente de ordem visual e auditiva.” Para citar o
próprio Freud (1939), num trecho que bem se aplica às anoréxicas:
“denominamos traumas aquelas impressões, cedo experimentadas e mais
tarde esquecidas
32
, a que concedemos tão grande importância na etiologia das
neuroses” (p.87), que aborda exatamente uma problemática do tratamento das
anoréxicas e bulímicas, pois estas desenvolvem um aspecto cognitivo muitas
vezes satisfatório, como é o caso de Carolina, mas apresentam falhas
estruturais grandes, mas que, por remontarem ao arcaico, são tão difíceis de
acompanhar, situar, simbolizar e interpretar.
Em outra sessão, Carolina se compara a uma mulher que sofre de
violência doméstica:
Dói muito, magoa, mas ela não quer se separar porque ama o
cara e um dos fatores de admiração é que ele bate nela e a
humilha. Ela se faz de vítima, é vítima, mas deve achar que o
ódio e o amor que sente por ele não vai ter igual. Que é ele que
ela merece. Mesmo sendo violento, machucando a mulher, ele
é um cara bom e só está ensinando pra ela. Ela acha que não
merece a felicidade, então sua felicidade é continuar
apanhando. É forte e fraca, porque ser vítima tem muitas
32
Grifo da autora.
186
vantagens, como ter pessoas que ficam com dela, ter
amigos, as pessoas querem ajudá-la, se compadecem. Se ela
não estivesse com ele, ela não teria nada disso. Ou teria? Não
sei... Acho que traz benefícios, sim, é como se essa mulher
soubesse de todos os benefícios que a surra traz, assim ela
toma a segunda surra por se sentir culpada de ter tirado
vantagem da situação, e ela recebe mais atenção e assim
por diante...
Em outro encontro, Carolina diz que se iludiu e mentiu para si mesma a
vida inteira. Diz que pensou que fosse uma pessoa independente, mas que
caiu sua ficha de que é totalmente dependente. Fala do medo de gostar das
pessoas, de se entregar, porque sempre acaba sozinha. No discurso de
Carolina, vou percebendo que ela não consegue falar de si, parece que está
sempre contando uma história de outra pessoa. Contou-me que não sabe
ainda quem ela é e se sente abalada por não saber se é alguém. Fala que é
culpada e ao mesmo tempo se compadece de si mesma. Carolina diz sempre
estar em dúvida: “Será que algum dia eu realmente existi? Será que eu
estou me reinventando?” Fala de um bicho domado que volta pra selva. E se
pergunta: “Será que ele sobrevive? Teoricamente é o natural dele, é onde ele
sempre deveria ter estado, mas ele não sabe e nem conhece a selva, não
conhece as leis de lá. Será que ele sobrevive?”
Carolina novamente me conta que é muito estranho simplesmente o
sair de dentro de si mesma. “Por isso que parece viagem de maconha. É
incontrolável, mas ao mesmo tempo não é ruim nem bom. Se alguém falar
comigo, vou me fixar em uma palavra e viajar nisso e vou perder todo o resto
que a pessoa falar.”
Conta da sua visão extremista e radical do tipo “preto ou branco; tudo ou
nada; gorda baleia assassina ou magra linda e bem-sucedida”? Acaba se
perguntando se antes ela era normal e agora está pirando...
Nessa sessão percebo que Carolina está se dando conta de suas
sensações. Fala que o que mais detesta nesse momento da vida dela são as
variações de humor:
Eu estou tão frágil que ninguém pode me falar nada que eu já
acho que fiz algo errado. Hoje mudei de humor umas cinco
187
vezes. Estava estranha de manhã com sensações de estar
lembrando as memórias de outra pessoa, depois voltei ao
normal. Agora eu estou com muito medo. Medo de mudar,
medo de curar, medo de perder tudo, medo de saber quem sou
eu e me odiar de novo. Sempre acho que estou dando
“mancada” com as pessoas sem perceber, porque sei que sou
chata.
Carolina fala que quer sair disso e traz um novo pensamento:
Caramba, se tenho essa sensação de escravidão, de estar
presa, então ser normal dever ser a sensação de liberdade. Ter
liberdade, na minha definição, seria não precisar de nada nem
de ninguém, ser autossuficiente, mas olha o raciocínio torto:
ser normal é igual a ser louca.
E me diz: “Kelly, é estranho ter medo sem saber do quê”? Carolina tenta
explicar a confusão que está em sua cabeça:
Tenho a impressão de que todas às vezes que precisei ser
salva, não vinha ninguém, isso me liga ao fato de sempre achar
que estou mesmo me enganando, me supervalorizando. Acabo
usando o que a mamãe fazia comigo, ela não levava a sério,
me zoava e minimizava o que eu sentia e pra me proteger
desse tipo de agressão, passei a não contar mais as coisas pra
ela, nem pra ninguém, fui me fechando e pensei que sozinha
com meus pensamentos eu me bastaria (...) Passei por vários
empregos e sinceramente não sei me relacionar, gostaria de
trabalhar sozinha.
Com esta fala de Carolina, pensei que ela tamm poderia achar, mesmo que
inconscientemente, que eu minimizava suas coisas e lhe comuniquei isto. Ela
se espantou e disse que precisava pensar mais sobre isso. Também pude
perceber o desenrolar do relacionamento mãe-filha, com a filha se
refugiando em seu próprio mundo por não suportar algo da mãe.
188
Encontramo-nos novamente e ela retomou o último assunto sobre sua
mãe:
Como será que aconteceu, qual será que foi o processo que
me levou a realmente acreditar que os meus sentimentos, as
minhas emoções não valem nada? Estranho, porque a
princípio eu considerava que a mamãe me agredia por fazer
isso. E agora, como eu repito dentro de mim tudo que eu sofri
tanto pra me livrar?
Tal fala revela uma sagacidade imensa por parte de Carolina, pois ela colocou
em palavras simples o conceito psicanalítico de compulsão à repetição, ou
seja, ela percebia que repetia dentro dela tudo o que ela havia sofrido de
uma maneira passiva, no passado.
McDougall (2000, p.21) comenta as relações precoces entre mãe-filha,
mencionando uma mãe cuja relação com o bebê não possibilita uma
representação interna de uma mãe dedicada. Desta forma,
(...) a imagem da mãe está, então, cindida em duas partes,
uma das quais é idealizada e inacessível, e portanto
persecutória (porque a criança nunca poderá atingir por si
mesma esse ideal grandioso), e a outra é uma imagem e,
mesmo, mortífera, com a qual a criança, quando adulta, se
identificará com si mesma.
Após algumas sessões, discutindo as personagens que Carolina trouxe nos
primeiros encontros, uma mudança ocorreu, pois ela passou a utilizar apenas
um nome nos e-mails que continuou enviando. Assim a Ana que conheci nas
primeiras sessões começou a assinar com seu nome real, Carolina. Portanto,
deste ponto em diante irei me referir a ela como Carolina, seguindo a
cronologia de meu trabalho terapêutico com ela.
A) Uma Terapia Real, que Começou pelo Virtual
Através desses encontros, logo senti uma relação transferencial positiva.
Carolina não costuma faltar, sempre chega no horário, e apesar de muitas
189
vezes se sentir confusa, deprimida, triste, com muita raiva, afirmo existir um
investimento libidinal e uma busca por se conhecer internamente. Um dia me
falou:
Acho que fui criada pra sempre reprimir esses impulsos de ódio
que tem dentro de mim, e ao invés de achar algo para
extravasar, acabei fingindo que estava tudo bem e,
secretamente, fui usando esse impulso contra mim mesma,
acho que foi isso que criou a tal da máscara que carrego. Por
isso acabo me odiando, me acho um monstro. Sinto-me
desprotegida porque todas às vezes que pus pra fora minha
agressividade levava bronca. Então acho que cortei o
processo, não agredia e não levava bronca, com isso fico
sempre com ódio de mim. É por isso que eu sempre acho que
todos estão certos e eu, não. Toco a campainha e saio
correndo.
Fica evidente, na fala de Ana, a quantidade de agressividade que ela carrega e
quanto pelo menos uma parte dela está consciente deste componente
agressivo.
Em uma sessão seguinte pude perceber Carolina como uma pessoa
mais integrada, trazendo conteúdos infantis de forma um pouco mais
organizada. A seguir, uma breve descrição desta sessão com Carolina:
No começo dos anos 90, quando eu tinha uns 12 e 15 anos,
muita gente começou a usar umas camisetas em que estava
escrito eu sou mais eu, mas eu não conseguia entender o que
significava. Quase uma década depois de tê-la lido pela
primeira vez, e de ter desencanado de pesquisar seu
significado, um dia usei-a sem querer, pela primeira vez na
vida! Foi aí que consegui captar a mensagem! Eureka! Eu
prefiro a mim mesma. Eu devia ter uns 20 anos quando
finalmente fui perceber que a gente deveria gostar de si
mesma. Mas como assim?
Carolina perguntou.
190
Bom, passei alguns anos da minha infância, literalmente
assombrada. Morava no Rio de Janeiro em uma casa grande,
com quintal enorme. Pra mim, aquilo era a mesma coisa que
um castelo mal-assombrado. Me diverti bastante lá, mas
lembro que eu era, na verdade sempre fui, muito medrosa e
tinha pavor de fantasmas e monstros. Durante alguns anos,
não ia a lugar algum sozinha, apenas no banheiro. Só que
minha mãe ou minha irmã tinham que ficar na porta me
esperando. Lembro-me de que não era levada muito a sério e,
invariavelmente, era deixada sozinha enquanto as duas se
escondiam e riam de mim, porque eu ficava paralisada na porta
do banheiro com medo. Não sei bem o começo disso, mas
nessa história toda, eu tinha um certo hábito, digamos assim:
não passar na frente de nenhum espelho da casa por medo de
ao invés de ver-me refletida, me deparar com um monstro ou
um fantasma ou alguma figura horrenda e terrível. Tenho
arrepios até hoje só de pensar nisso.
Acredito que, ao contar sobre este conluio entre a mãe e a irmã, Ana me
contava que sentia que sua mãe e irmã se uniam contra ela, na trama familiar.
Conforme Ana continuava a falar, ela retomou seu raciocínio sobre o
significado do que estava escrito na camiseta, dizendo:
Mas pensando bem, apesar de eu não ter apreendido o
conceito de auto-estima até os 19 / 20 anos, talvez
inconscientemente, tinha medo de eu mesma “ser o monstro”.
Fiquei anos fugindo do espelho, da minha imagem refletida.
Não me entendia bem... Sempre tive uma auto-imagem
péssima e me ver era, em geral, uma surpresa, às vezes boa e
muitas vezes ruim. Durante a minha infância toda eu era
obrigada a usar os cabelos bem curtinhos pra não dar trabalho.
que me fazia parecer um menino. Como sempre fui
estabanada, mandona e nervosinha, ganhei um outro apelido
“carinhoso” lá pelos 10 / 12 anos: “Sargento”. Devo admitir que
até gostava dele! Me divertia quando pisava duro no meu
quarto e a minha mãe gritava da sala: “Ô Sargento,
manera!!Eu ria disso. Porém essa sempre foi a minha auto-
imagem: Grandalhona, abrutalhada, nervosinha, gorda, de
cabelos curtos, óculos fundo de garrafa. Um monstro... não
191
como o que eu tinha medo de ver refletido no espelho, mas um
monstro...
Creio que é justo entender que Carolina fala, aqui, de dois monstros. Um
monstro é o que ela enxerga em si própria e o outro monstro surge de se sentir
enclausurada pela aliança mãe-irmã versus Carolina, ou seja, no final a figura
do monstro é, na verdade, um composto de sensações. É uma pena que,
perante a presença do “monstro”, Carolina não contou com o apoio de nenhum
membro da família, em especial da ala feminina. O descaso pelo seu medo, em
minha opinião, demonstra a distância entre Carolina e sua mãe e também sua
irmã.
Penso, neste momento, sobre o significado de ver a própria imagem
refletida em um espelho, tanto para Carolina quanto para as outras anoréxicas.
O problema da imagem, da distorção da imagem ou, utilizando uma expressão
de Fernandes (2006), da hipocondria da imagem que está sempre presente
nos relatos de anorexia. Entretanto, Carolina, ante a possibilidade de ver a
própria imagem, temia enxergar um monstro. Mas penso que, diante da
presença onipresente da mãe pouco diferenciada na vida dela, talvez o grande
medo fosse o de mais uma vez não conseguir enxergar a si mesma. Dolto
(2004, p.121) comenta a importância que tem para a criança poder enxergar a
si mesma, completando que “não é suficiente que exista realmente um espelho
plano. De nada serve se o sujeito é confrontado, de fato, com a falta de um
espelho de seu ser no outro. Pois é isto que é importante”. Ela prossegue:
Nessa mesma época da infância, eu e minha irmã muitas
vezes brincávamos de concurso de miss, principalmente
quando nossos parentes iam nos visitar. Eu não pensava mais
nisso, talvez porque eu mesma tenha bloqueado essas
lembranças, talvez porque elas doam muito mais do que eu
consiga suportar... Mas há uns 2 anos, batendo papo com uma
prima que tinha sido muitas vezes jurada desses “maledetos”
concursos, ela disse que eu sempre ganhava porque se
perdesse ficaria nervosa, brava e o queria mais continuar a
brincadeira. Depois de ela falar isso rindo, num momento de
boas recordações de sua própria vida, a minha reação interior,
emocional foi a de ter levado uma facada nas costas... Lembrei
192
de toda a porcaria que sentia quando eu “ganhava” o concurso
e via a minha mãe e ela dando uma piscadela pra minha irmã,
como se estivessem dizendo deixa ela ganhar, mas você é a
mais bonita. É só pra ela não ficar brava.
Mais uma vez é possível perceber como o ambiente familiar tem uma
conotação de ameaça e falsidade para Carolina, pois a figura mãe-irmã
aparecem, denunciando suas supostas falhas, tanto no corpo quanto no
comportamento. Não é à toa que Carolina tenha sentido uma punhalada nas
costas, pois, realmente, se trata de um trauma a posteriori, para utilizar uma
expressão psicanalítica, pois, no instante em que sua prima lhe fez a
revelação, toda a sua fantasia de ter sido um dia bela, por um instante, se
converteu em uma sensação de que quem na verdade desfilava era o
“monstro”.
Como se não bastasse, ainda fazíamos sessões de fotos, com
aquelas poses de “telemoça” . Após a revelação era sempre a
mesma conversa: mamãe falando pra minha irmã: “Nossa,
como você é fotogênica, olha só!!” e pra mim, um silêncio
sepulcral. Nem um comentariozinho, a não ser aqueles do tipo
“Hahaha!! Que pose é essa?”. Claro que me sinto até na
obrigação de dizer que minha mãe jamais fez isso pensando
que fosse me afetar como afetou. Eu não duvido de seu amor
por mim de maneira alguma. Mas sei que ela nunca me achou
bonita. Eu sempre a achei bonita, mas ela é a minha mãe e
quando se é criança, você não fica duvidando ou discutindo
das conclusões dos seus pais.
Ou seja, interpretando sua fala, constata-se que existia uma onipotência na
sentença materna sobre a beleza ou não das filhas, que parece ter sido
absorvida por Carolina. O silêncio, provavelmente, doeu mais do que as
palavras, pois a preferência pela irmã ficava, a cada instante, mais nítida.
Pensando nisso tudo, consigo enxergar o paralelo com meus
complexos de inferioridade, feiúra e gordura... Sempre que
recebo elogios, agradeço, mas por dentro “sei” que a pessoa
193
não quer me ver nervosa... Toda vez que “ganho” alguma
concorrência, como um emprego, por exemplo, sei que não
merecia, mas era só pra eu não me sentir muito humilhada.
Toda vez que falam que gostam de mim independente da
minha aparência, é mais uma confirmação da minha
aparência horrorosa. Sempre me senti o “prêmio de
consolação”.
Carolina, aprisionada nos desfiles de moda familiares, não conseguia
mais enxergar um elogio como elogio, mas sim como um falso elogio, no qual
todos que falavam se transformavam no júri “comprado” que lhe dava boas
notas quando desfilava enquanto criança.
Após seis meses de psicoterapia, Carolina se recorda de quando e como
chegou à terapia, rindo das personagens que ela havia inventado para si
mesma. Falou sobre o uso de anfetaminas, dizendo que tem dia que toma mais
de cinco cápsulas, ficando extremamente agitada e o conseguindo dormir.
“Sei o mal que causa... li que é pior que cocaína.” Nessa sessão acrescentei a
fala dela sobre que além do mal que causava, também tinha efeitos
alucinógenos. Ela respondeu: “Estranho, Kelly, eu sei disso, mas ouvindo você
falar pensei em algumas coisas... lembra que contei sobre minha imagem
refletida no espelho do carro? Que vi uma pessoa que não era eu? Será efeito
da anfetamina?”
Terminada essa sessão, no outro dia recebi um e-mail de Carolina onde ela
mostrava certos progressos e um pedido para mim:
Kelly,
Sabe, não consigo ver outra maneira de eu ser uma pessoa saudável
mentalmente sem me dar a liberdade de expressar o que quero, me
desculpando antes, pois sei que vc sabe isso que vou te falar, mas preciso
deixar claro mais pra mim mesma, pra não me enganar e te dotar de
superpoderes, e não te colocar num pedestal também e continuar naquele
circulo vicioso...
Sabe, o peso que tem eu pedir a sua ajuda pra parar de tomar as anfetas é o
peso da minha vida. de pensar que poderia parar com a sua ajuda,
nasceu uma chama de esperança em mim - é o que sobrou e que eu fico
poupando... eu sei que você sabe, mas a minha cabeça fica dizendo que,
194
teoricamente, os meus pais também tinham que saber isso pra me criar, me
educar, mas mesmo assim, fui uma decepção e fiquei com medo de perder o
amor deles, enfim... todas essas coisas. Sabe, tenho medo de deixar implícito
um compromisso e que eu acabe parando de tomar as anfetas mais pra vc
gostar de mim do que pela minha vida, sabe? Ou mais pelo medo que tenho de
fracassar, de não ser capaz, sei lá... e continuar fazendo as coisas pelos
motivos errados.
Eu preciso ter uma certeza clara que se eu me jogar nisso de cabeça, vc pode
me esperar embaixo e me salvar de me quebrar inteira e desistir de vez...
Se eu souber, tiver uma confirmação sua disso e souber que vc tb acredita
nessa chaminha tímida, que eu posso cultivá-la, que eu ainda tenho potencial
pra viver de verdade, eu poderei falhar e saber que tem volta, que eu não
preciso me acabar, que eu não preciso mentir pra vc e pra mim mesma tb.
Que se eu tiver uma recaída não é porque sou uma fracassada e sim porque
ainda não aprendi todo o conteúdo da lição, sabe? É ser honesta comigo
mesma e começar a me gostar e me respeitar por saber que tem alguém
que vai ter a paciência de ensinar a lição pra mim quantas vezes forem
necessárias, e que eu não vou precisar colar na prova porque a professora
acredita no meu potencial e não me acha uma burra, sabe?
Desculpa te falar tudo isso, tá? Tudo que escrevi é pra me sentir segura e
ter certeza da sua posição pra mim e não pra questionar a sua competência,
dedicação e cuidados para comigo, porque isso eu já sei, mas tenho medo dos
“segredos”, das entrelinhas, sabe? Nem sei se esse é o método, mas enfim...
socorro! Me salva! Bjsks Carolina.
Como o leitor deve perceber, a paciente descrita possui um caráter oral,
quando não está em análise, ou me mandando e-mail; ou escrevendo grandes
textos em seus cadernos, pedindo que eu os lesse e que poderiam ficar
comigo. Percebia o tempo todo em Carolina certamente uma grande sedução
com seus discursos e seus textos, querendo ocupar não somente o horário de
análise dela, mas uma necessidade de estar “dentro de mim” o tempo todo.
Como neste último e-mail, senti uma transferência positiva, mas de certa forma,
no final do e-mail parece que estava me testando, querendo ver quanto eu
195
poderia suportá-la, deixando, como ela mesma disse, o peso de sua vida em
minhas mãos.
Esta grande solicitação por parte da paciente, usando o termo aqui de
“paciente adesiva”, adaptado do termo “identificação adesiva”
33
de Meltzer
(1986), provocou num determinado dia de atendimento uma
contratransferência por parte da analista, que por mecanismos inconscientes
não pude perceber... Como relatei acima, Carolina era uma paciente
assídua, não perdia um único dia de sua análise, mostrando grande
investimento. Certo dia, ela não compareceu em seu horário, não avisou e,
durante a semana não recebi nenhum e-mail e nenhum telefonema. Na
semana seguinte, estava eu novamente à espera dela, e novamente ela faltou.
Compareceu somente na terceira semana, atrasada alguns minutos. Naquele
dia pediu para se sentar, estava com um de seus caderninhos onde costumava
escrever e pediu para ler, porque se não fosse assim ela não conseguiria falar.
Sua expressão era de angústia e nervosismo e suas mãos estavam trêmulas.
Começou então a ler em voz alta o que havia acontecido na última sessão:
umas semanas, me peguei chorando porque estava gorda,
e depois tendo compulsões. Estava passando o dia sem comer
e à noite comendo bolo de chocolate inteiro, pacotes de
bolachas, sem controle total e me sentindo megamal. A Kelly
falou para eu ir a uma nutricionista que estava tratando outra
paciente dela, que estava mal e abaixo do peso e que se
tratava de uma boa profissional. Fui pra casa dos meus pais
nesse mesmo dia, e chorei por não estar magra, estar feia e
relaxada. Voltei e falei pra Kelly sobre isso e sobre a menina
que ela estava tratando. No último domingo resolvi fazer uma
dieta de fibras pra parar com os laxantes e resolvi fazer uma
tabela pra controlar o que eu comia, anotando cada caloria.
Hoje, um dia antes da terapia, me peguei pensando: o que falar
para Kelly? Levar o caderno ou não? Se eu levar o caderno,
ela vai falar: A Carolina está copiando a outra menina. o,
não estou copiando; claro que estou. Tijolada: caiu a ficha de
que se a Kelly fosse a minha mãe, a outra menina seria minha
irmã, mais magra, bonita e eu perdi de novo. Ridículo, me
33
A identificação adesiva é definida por Meltzer (1986) como anterior à identificação projetiva, pois esta
requer uma noção de interno e externo, enquanto a identificação adesiva se refere a um psiquismo que
apenas tem a noção de estar próximo, perto, grudado a um outro. Trata-se de um mecanismo muito
precoce e primitivo.
196
peguei competindo com minha irmã e, perdi de novo,
humilhante, incontrolável. Muito ódio de mim. Se eu melhoro,
logo perco a atenção, ficar saudável significa ficar sozinha
novamente, não sou a predileta e as pessoas se decepcionam
comigo, sou uma farsa. Mandei um e-mail sem explicação pra
ela, queria que ela me procurasse para saber se es tudo
bem, embora eu não atendesse ao telefone porque eu não
tenho coragem de falar a verdade. Agora, parece que tudo
voltou de novo como se o tempo de melhora nunca tivesse
existido. Parece que é isto, não comer é estar preparada.
Pensando na “tijolada” de Carolina, acredito que ela sofreu uma
repetição do trauma mãe-irmã, no qual a minha outra paciente, que já havia ido
à nutricionista, se tornara a irmã e eu a mãe, ambas conspirando contra
Carolina, ou seja, ela perdia novamente.
Nessa sessão em especial, o clima era bastante tenso, a analista
causou uma contratransferência, acabou falando demais na hora do
encaminhamento, trazendo a “suposta” irmã de Carolina para dentro da
sessão. Carolina entendeu que a outra paciente era a “preferida”, assim como
ocorria em sua casa, optando por uma dieta restritiva para ficar tão mal como a
“irmã” de consultório. Algo que era constantemente trabalhado em terapia era o
fato de que eu, como terapeuta de Carolina, podia sentir e investir
libidinalmente em nosso vínculo, a despeito de se tratar de um vínculo diferente
dos outros. Era difícil explicar tal distinção, pois a própria noção de
sentimentos, quando se tratava do relacionamento mãe-filha, era uma
construção muito mais intelectual do que sensível por parte de Carolina.
Entretanto, aos poucos, foi possível que ela compreendesse que ali, durante as
sessões, ocorria uma experiência emocional, diferente das anteriores que ela
havia experimentado, mas, mesmo assim, de grande importância emocional.
Passada essa etapa, consegui construir uma imagem de quem era a
Carolina. Constatei isso, quando certo dia ela me perguntou: “Você reparou
que eu nunca falo do Du”? Du é seu marido e raramente ela falava sobre ele.
Falou de muitos rapazes por quem se apaixonara na adolescência. Começou
explicando qual o tipo de homem que ela gosta e por quem se sente atraída.
“Gosto de homens de cabelo comprido e que usam maquiagem.” Carolina me
197
falou de diversas bandas de rock onde os integrantes têm este visual. Mandou-
me por e-mail várias fotos das bandas de que ela gosta e chegou a gravar um
CD com as músicas e me deu antes das rias. “O Du também tem cabelo
comprido, o cabelo dele é maior que o meu; esses dias eu estava na casa da
minha mãe e ela falou: Olha aquele cara gato da novela! Não acredito que você
não acha bonito!” Carolina continua:
Kelly, sempre gostei de homem assim, eles têm cabelo
comprido, usa maquiagem, mas não é bicha, é macho. Eu
gosto de homem, mas cabelo comprido e maquiagem é coisa
de mulher, né? Será que sou lésbica? Nossa, que papo louco,
Kelly!
Carolina diz issp rindo. Estes pensamentos de Carolina referentes à sua
sexualidade e a uma possível homossexualidade encontram-se na literatura
sobre anoréxicas. Bidaud (1998, p.92) comenta que as primeiras trocas
eróticas entre a mãe e a criança têm um sentido diferenciado nas meninas, ao
opinar que:
(...) parece que a impressão desse erotismo originário é
inscrita mais profundamente na menina. O salto estrutural
constituído pela mudança de objeto por ocasião do Édipo situa
a menina numa relação diferente daquela do menino quanto à
liquidação desse laço primário, que é definitivamente
homossexual para ela.
Este traço de confusão quanto à sexualidade aparece em vários momentos da
fala de Carolina. Por exemplo, quando ela era criança, ela era menina ou a
“sargentona”, identificada com uma figura masculina? Ao ser colocada para
desfilar, em um falso desfile no qual a competição com a irmã estava perdida
desde o início, com quem deveria se identificar, que sua mãe claramente
preferia a irmã, segundo a percepção de Carolina? Portanto, acredito que Ana
ficou presa em uma confusa relação com a mãe, sem poder realmente se
desprender da mãe e constituir uma verdadeira feminilidade.
A fala e a escrita de Carolina revelam muito sobre sua relação com o
casal parental. Em um primeiro momento é possível observar que a mãe é
198
sempre citada, criticada ou lembrada, ou melhor, está sempre presente no
relato, mesmo nas ausências. Em um segundo momento, é possível perceber
que a figura paterna praticamente não aparece nos escritos ou nas sessões,
sendo que quando o pai aparece, este se mostra revestido de uma maneira
idealizada e quase desprovido de conteúdo, sendo descrito como alguém
“bom”, para logo em seguida ela retomar outros assuntos. Sobre os pais das
anoréxicas, Gorgati (2002, p.119) explicita:
O pai é um objeto-esboço que serve para confirmar a fidelidade
do relacionamento com a mãe. Nenhum homem pode substituí-
lo ou vir a fazer-se presente, porque ele nem alcança o status
de objeto a ser desejado e substituído, nem pela mãe, nem
pela filha.
Nesta relação em que mãe e filha se posicionam de maneira a formar um
cordão entre ambas e o mundo, é possível antever fatores referentes ao
homossexualismo baseados em uma relação com a figura da mãe primitiva e o
processo de desligamento desta, que parece apresentar falhas em seu
desenrolar. O que desejo dizer é que, talvez no caso de Carolina, ela parece
ter ficado estacionada no campo da identificação adesiva com sua mãe e com
muitas outras figuras de seu mundo, sem diferenciar o dentro e o fora, apenas
percebendo que um outro está por perto, às vezes assustador, às vezes
desejado.
A mãe, portanto, é simultaneamente objeto de identificação e de repulsa,
pois ao mesmo tempo em que é o referencial feminino, ela é um referencial
inalcançável, cujos olhos se voltam apenas para uma outra mulher, a irmã.
Então, se pensarmos neste caso, Carolina não conseguiu se desligar do
julgamento materno acerca de seu corpo, não obstante repudiar tal julgamento
em outros momentos.
Quando Carolina começou a abordar esse assunto, eu a tinha
convidado a se deitar no divã. Ocorria que havia dias que ela chegava e dizia
que não queria se deitar, que precisava ficar sentada me olhando para falar.
Por vezes ia até o divã, mas ficava sentada olhando para mim.Certa vez,
conversando com colegas, descobri que não é incomum este trânsito poltrona
divã, mas no caso de Carolina às vezes me surpreendia. Nessa sessão,
199
quando ela falou do marido, pediu para se deitar no divã: “Preciso deitar e não
olhar pra você, porque tenho vergonha do que vou contar, mas preciso contar”.
Carolina começou a falar da desconfiança da sexualidade do marido,
ressaltando que ela é a culpada de não ter percebido antes. Disse estar
sempre preparada para o pior:
Eu sei que qualquer dia ele me larga e vai embora. Transamos
ontem à noite e ele pediu que eu introduzisse meu dedo em
seu ânus, tenho vergonha e nojo de fazer isso, mas ele sempre
pede, não sei mais o que fazer porque é nojento, me incomoda
e não gosto. Também, se eu for trocada por um homem, com
certeza vai doer menos do que ser trocada por uma mulher. Se
eu fosse trocada por uma mulher jamais me perdoaria, acho
que me mataria.
Em seguida Carolina diz que não consegue pensar sobre esse assunto que
está falando, que é muito difícil e acha que não vai aguentar. Muda de assunto
e fala da culpa que sente; a culpa é um traço importante da personalidade de
Carolina, ela diz que tudo que ocorre de mau em sua vida foi ela mesma quem
causou, “é como se fosse um bate e volta, sabe... tudo volta contra mim,
porque eu sei que eu tenho que pagar, é uma coisa justa... por isso paro de
comer, é como se eu tivesse que pagar pelo mal que eu causei”.
Sobre a culpa das anoréxicas e bulímicas, acredito que é necessário
salientar a relação ambígua que existe com a mãe como fonte dessa culpa, o
que Fernandes (2006) explica ao afirmar que existe um “impasse no qual se
encontram essas jovens: não podem perceber-se sem a mãe e, ao mesmo
tempo, desejam intensamente separar-se dela” (p.225).
Ainda em atendimento, curioso ressaltar que ela parou de mandar
material escrito em cadernos e também por e-mail. Interessante também que
mais ou menos quatro meses que não escreve absolutamente nada em seu
blog. No Orkut da Carolina hoje seu álbum de fotos, algo que antes a
horrorizava. Em uma das últimas sessões falou de um show a que foi, e que
colocou suas fotos no Orkut e até se achou bonita. A preocupação com o peso
sempre aparece em sua fala, o uso de anfetaminas vem diminuindo, realça que
há dias que não toma nenhuma. O fato de Carolina mostrar suas fotos no Orkut
me parece significativo de quanto ela passou a aceitar sua imagem, em
200
especial como uma imagem que pode ser vista sem estar sob um olhar severo
ou satírico.
Carolina permaneceu em atendimento até o início deste ano, ou seja,
2008. Houve uma interrupção do tratamento porque es empregada, o que
dificulta as vindas para Sorocaba, onde acontecia o atendimento.
Recentemente entrou em contato comigo, e pensa em retornar à análise,
faltando somente uma organização nos horários de trabalho. Apesar da
interrupção da análise, considero que a paciente está em um momento de
progresso em sua vida como um todo, pois ao iniciar o trabalho analítico ela
estava desempregada e com medo dos relacionamentos que poderiam surgir
caso arrumasse um emprego. O atual emprego da paciente é em uma empresa
de grande porte, onde tem contato com diversos funcionários, o que parece ser
um avanço na sua maneira de estabelecer relações interpessoais.
B) Uma Jovem em Busca do Sentido – um Caso Clínico de Bulimia
Na mesma época em que comecei a atender Carolina, recebi um
encaminhamento do CEPPAN de uma garota com diagnóstico de bulimia. Ao
ler a triagem dela fiquei surpresa, e minha hipótese inicial mais uma vez estava
se confirmando: “elas estão ilhadas”, conforme descrevi no primeiro capítulo,
no qual faço um raciocinio sobre a impossibilidade de as anoréxicas se
encontrarem no mundo real sem a ajuda da internet.. Essa pessoa foi
encaminhada para o atendimento através de uma comunidade de transtornos
alimentares no Orkut, que tem como responsável uma psicóloga que forneceu
o contato do CEPPAN, ou seja, o mundo virtual, mais uma vez, era fonte de
comunicação entre elas.
Amanda, 23 anos, iniciou um atendimento comigo com diagnóstico de
bulimia. Em nosso primeiro encontro, logo percebi que ela não é brasileira e
sim de um país latino-americano, devido ao seu sotaque. Ela possuía certa
familiaridade com o português, mas apresentava um pouco de dificuldade para
entender o significado de algumas palavras. Como os significados das palavras
diferem bastante de uma língua para outra, esses momentos acabavam sendo
muito divertidos: brincávamos com as palavras e seus significados, o
atendimento ficava lúdico e colorido, regado a muitas gargalhadas. Muitas
201
vezes a sala de análise se transformava num espaço protegido onde podíamos
“brincar”, ela buscava o conhecimento da linguagem, onde numa hora eu era a
professora, depois era a vez dela.
Explicou que estava no Brasil fazia um ano e meio e que veio para para
cursar mestrado em engenharia, ressaltando que sempre teve “um sonho de
morar sozinha em outro país”. Durante os atendimentos fui entendendo que o
que ela trouxe como “sonho” não era somente cursar um mestrado numa
universidade renomada fora do seu país de origem, mas também uma busca
por autonomia psíquica, e para que isso pudesse ocorrer, antes era necessário
“sonhar”. O convite então era para que eu fizesse parte do “sonho”, para
restaurar algo que ainda estava no estágio pré-verbal, ou seja, anterior à
linguagem. Amanda estava tomada por um excesso de excitações mentais que
não sabia traduzir e nomear, e isto parecia que poderia ser traduzido por
intermédio dos vômitos. Assim, faz sentido todo o processo de nomear
sensações e sentimentos que ocorreu nos primeiros meses.
O processo de nomear sensações e sentimentos foi de extrema
importância na terapia de Amanda, e esta eficácia terapêutica encontra
respaldo na cnica psicanalítica da anorexia e da bulimia. Em momentos
anteriores desta dissertação, fiz menção à dificuldade que as anoréxicas e
bulímicas têm em estabelecer uma diferença entre o dentro/fora, o eu/outro,
bem representado pela confusão entre os limites da anoréxica e sua mãe
Fernandes (2006) refere-se à confusão que as garotas com transtornos
alimentares experimentam em relação aos limites entre seus corpos e o que
lhes é externo, o que elas sentem e o que é sentido pelos outros, ao afirmar
que “tem sido assinalado que as jovens anoréxicas e bulímicas, quando são
indagadas a respeito de algo, frequentemente respondem o que a mãe pensa
sobre o assunto” (p.212), completando, em seguida, que tal dificuldade é um
espelho de uma indiferenciação que ocorreu no passado, quando a mãe
deveria ter sido capaz de escutar e nomear as sensações corporais do bebê,
como sendo sensações provenientes dele, mas que, no caso das anoréxicas e
bulímicas, tais sensações são interpretadas de acordo com as necessidades
da própria mãe. Assim, o bebê se desenvolve “preso na impotência e na
dependência desse objeto primário” (p.215).
202
Portanto, uma das tarefas da clínica da anorexia e bulimia é justamente
permitir que a paciente possa sentir suas sensações como suas, nomeá-las e
se apropriar delas. Acredito que foi por este processo de nomeação que
Amanda iniciou seu processo de análise, o que permitiu a formação de um
vínculo entre nós.
Sobre sua infância, diz que sempre foi muito sozinha, que dormia no
mesmo quarto que a irmã, que sempre ia se deitar na cama junto com ela
porque sentia medo. Com o passar do tempo a irmã se irritou, pedindo que ela
não viesse mais dormir junto dela, uma vez que tinha a sua própria cama.
Relata não ter lembranças de brincadeiras ou passeios com a família, pois
desde que se recorda, os pais nunca foram felizes.
Certo dia, Amanda retornou à terapia depois de um período de férias
junto de seus pais, em seu país de origem. Chegou feliz na terapia e, como das
outras vezes, me presenteou com café e alguns biscoitos típicos de seu país.
Falou nesse dia que até tentou conversar com a mãe sobre o que se passava
com ela, mas que a mãe nunca tinha tempo para conversar e nem mesmo para
passear. Estava sempre cansada, e nas horas que passava dentro de casa
ficava abraçada com o seu cachorro, ou ficava no computador jogando
paciência.
seu pai, ao voltar da faculdade na qual lecionava, ficava dentro do
quarto vendo televisão, assim como a irmã. Contou que todos são muito
distantes, que ninguém conversa e que cada um fica dentro de um cômodo da
casa. Amanda disse que procurou conversar, estar próxima, mas sentiu que
era difícil, pois cada um ficava em seu quarto com a sua televisão.
Nos atendimentos fui percebendo quanto Amanda repetia comigo o
padrão de comunicação da família; ela abria um assunto e permanecia a maior
parte do tempo querendo me ouvir. Sim, ela sentia fome, mas era fome de uma
relação ali comigo. Da minha poltrona eu a observava deitada no divã numa
posição fetal, com o rosto virado para a parede. Muitas vezes me peguei
imaginando que parecia que ela estava dentro de um berço, embalada, devido
à posição de seu corpo, pronta para dormir. Ela obedecia a um ritual para
iniciar as sessões: parecia que chegava com muita vontade de se deitar, logo
tirava o tênis, a mochila das costas, desligava o celular e se deitava para me
ouvir falar, como se minhas palavras fossem uma canção de ninar.
203
Fedida (1991, p.61) nos alerta que “a situação analítica pode ser
descrita como um lugar, caso estejamos de acordo para reconhecer-lhe uma
organização cênica cujo paradigma é o sonho”. Comparo essas sessões com
um sonho, porquanto em diversos momentos tinha dúvida se Amanda estava
me entendendo ou apenas ouvindo minhas palavras, como um bebê em seu
berço. Insisto na metáfora do sonho em virtude do aspecto que tinha que ser
trabalhado com Amanda, que era algo precoce, que remonta às primeiras
etapas da formação do psiquismo. Parece que, diante do trabalho de análise,
às vezes Amanda se recolhia em uma espécie de estado onírico, realizando
uma assimilação de todos aqueles conteúdos, para depois fazer retornar sua
atenção à sessão.
Amanda conta que seus pais ficaram no seu país de origem, que sua
mãe é nutricionista num grande hospital, seu pai é engenheiro e trabalha dando
aulas numa universidade. Também tem uma irmã um ano mais velha que
provavelmente sofre de algum tipo de transtorno alimentar, pois vive de dietas
e está com sobrepeso. Este é um caso que parece ilustrar bem o aspecto de
quanto os transtornos alimentares estão relacionados com a dinâmica familiar,
tema ressaltado por alguns autores que citei, como Bruch (1978) e Cordás
(1986).
Outro aspecto que observei é que exceto a mãe, todos (ela, a irmã e o pai)
sofrem de um problema de tireóide chamado hipotireoidismo. A tireóide é uma
glândula do nosso organismo que controla o metabolismo do corpo, e a
medicina explica que o tratamento para esses casos requer uso de medicação
contínua acompanhado de uma dieta balanceada, pois conforme o alimento
que se ingere, o medicamento pode perder sua eficácia durante o tratamento.
Nesse cenário familiar temos a mãe de Amanda, que é nutricionista e é
descrita pela filha como uma excelente profissional, mas que parecia
impossibilitada de exercer seus cuidados nutricionais com o marido e as filhas.
A paciente descreve a mãe como uma pessoa deprimida, sozinha, que nunca
teve e nunca fez questão de ter amigas. Depois do expediente, a mãe chega
em casa, quase não fala com ninguém, e fica o tempo todo carregando e
dando atenção ao seu cachorro.
204
Ao pensar na dinâmica inconsciente de Amanda, que demonstra certa
dificuldade com a ingestão de alimentos e ao mesmo tempo mostra “fome” de
uma relação comigo, reporto-me à reflexão citada por Luccioni (1990):
Sabe-se, e isto é verdade ao pé da letra, que um recém-nascido
morre se não recebe com o leite sua ração de amor. Isto prova que o
homem não se nutre somente de alimentos sólidos, mas também de
significantes.
Ora, com isso podemos afirmar que o processo de maternagem não se
trata apenas de suprir a fome biológica, mas também a fome de amor.
Considerando que Amanda apresenta dificuldade em ingerir, fica a pergunta:
como foi internalizado esse alimento?
No início, o bebê não possui recursos para solicitar satisfatoriamente o
que precisa, ele não conhece a linguagem do adulto, já que todo o seu aparato
psíquico está em construção. Por ainda estar em construção, ele precisa
adquirir recursos psíquicos, e como irá adquiri-los? Os olhos voltam-se para
aquele que cuida da criança, seu primeiro objeto, a mãe. É ela que poderá
transformar o alimento-necessidade em alimento-desejo, instituir a capacidade
de sonhar-desejar. Amanda, ao quase “sonhar” nas sessões e apresentando
dificuldades na alimentação, parece apontar para uma dificuldade com a mãe
em um primeiro nível de relacionamento.
Ela relata que seus dias no Brasil se resumiam em acordar pela manhã,
caminhar ou andar de bicicleta e estudar. Já apresentava desde a adolescência
fortes dores no joelho pela longa jornada esportiva que exercia. As dores
apareciam no seu discurso, mas ela não buscava ajuda médica. Certo dia, a
instruí a buscar ajuda especializada, porque aquilo estava ocorrendo muito
tempo, podendo ser uma inflamação que prejudicaria sua saúde.
Na sessão seguinte, Amanda disse ter iniciado um tratamento com
medicação e fisioterapia, comunicando que era bem melhor viver sem aquelas
dores, reconhecendo e me agradecendo pelo cuidado que tive com ela. Mais
uma vez demonstrava uma dificuldade em identificar as sensações, dar-lhes
um nome e até mesmo um destino, ou seja, diante de um estímulo doloroso,
Amanda parecia perdida, primeiro como se não o reconhecesse, e depois sem
saber o que fazer com aquilo. Novamente retomo a idéia de que é necessário
um trabalho lento e minucioso com essas jovens, não muito diferente do que
205
faz o primeiro cuidador ao perceber uma sensação no bebê, mas agora tal ato
ocorre em um setting analítico.
A partir desse dia, Amanda começou um outro movimento, falando sobre o que
se passava dentro dela, que não era descrito como dor e sim como algo sem
nome e vazio:
Tudo na semana passada estava muito bem e não sei o que
acontece comigo que tenho momentos muito bons e de repente
chega tipo uma depressão. Eu não consigo entender por que
não posso ter um estado de ânimo constante. Quando estou
mal parece que existe outra pessoa dentro de mim,
desesperada pra sair, não sou racional com meus atos, com
minhas palavras, é como se tivesse alguém dentro de mim
desesperada pra sair. Sinto que sou grosseira com os meninos
que divido apartamento, eles sabem que não gosto que usem
as minhas coisas sem permissão, acredita que usaram o meu
sabonete? Quando estou assim, é como se eu não
conseguisse pensar antes de atuar. Estranho que quando
tenho vontade de vomitar, sempre penso muito antes de fazê-
lo, penso em tudo o que vai acontecer depois, a depressão, a
tristeza, o sentimento de derrota. Parece que eu sempre fico
com tudo de ruim das situações, me sinto sozinha, e parece
que não sou lembrada. De verdade, é como se o sentimento
de felicidade fosse algo estranho dentro de mim...
Comunico-lhe quanto ela não consegue ficar com coisas boas dentro de
de si, quanto o estado de felicidade parecia ser estranho; estar feliz para ela
era descrito como não estar em seu estado normal, que quando estava
muito feliz ficava com muito medo, tendo a certeza de que depois viria um
momento bem ruim. Ao me ouvir, Amanda considerou que por muitas vezes
sentia que procurava situações em que pudesse estar triste como, por
exemplo, se no dia anterior discutira com alguém por alguma bobagem, mesmo
a situação ficando bem, ela trazia em suas lembranças o que de ruim a pessoa
havia falado, dizendo que sempre fora assim em sua vida. Percebo que é
possível pensar que o bem-estar, a felicidade, também podem ter sido
206
percebidos por Amanda como um excesso, algo indevido, que seria
acompanhado de uma punição ou algo semelhante.
Amanda disse que sofre de bulimia desde a adolescência e acha que
seu estado se agravou quando veio para o Brasil e passou a morar sozinha.
Conta que seus vômitos vêm de forma automática e não se lembra exatamente
como tudo começou. Relata um último episódio que ocorreu no sábado:
Discuti com a dona do lugar onde moro, pois ela queria que a
conta telefônica fosse dividida entre todos; fiquei muito, muito
nervosa e disse pra ela que não achava justo, pois eu não
usava o telefone; fui para o quarto, chorei muito e aí vomitei.
Nesse mesmo dia, à noite, Amanda disse que combinou com uma colega para
sair e “bailar”: me troquei, olhei no espelho e, me achei feia e gorda”. Durante
o baile não conseguia se divertir, conseguia pensar em quanto estava feia,
lembrando da sua imagem no espelho. Depois do baile foi para casa, e ao
acordar mal no domingo, saí de manhã para caminhar e falava para mim
mesma que não tinha motivos para estar me sentindo assim, e ficava pensando
na discussão de ontem”.
Em relação a seus pais, fala que são casados, mas acha que eles o vivem
bem:
Acho que meu pai tem outra mulher, eu ficava mexendo no
celular dele para ver as ligações. Um dia ouvi meu pai
conversar no celular com uma mulher, mas não deu pra ter
certeza de nada. Um dia liguei pra esta pessoa do celular dele,
mas não consegui falar nada e desliguei. Teve um dia que
segui meu pai e vi ele conversando com uma mulher, ela
estava do lado de fora do carro e ele dentro, eles faziam gestos
um para o outro. Eu tenho certeza que ele tem outra e isto me
muita raiva. Um dia perguntei para meu pai com quem ele
estava falando no celular e ele disse que era com uma aluna e
me falou o nome dela. eu fui investigar na faculdade e não
207
tinha ninguém com este nome. Eu nunca contei nada disso
para minha mãe.
Amanda fala do medo de contar à mãe as suas desconfianças a respeito de
seu pai, pois receia que o casamento deles se acabe por conta disso, mas na
verdade eles o parecem viver bem. Acredito que aqui é possível fazer duas
interpretações das considerações de Amanda, uma baseada no complexo de
Édipo e outra na dificuldade de obter autonomia psíquica, ocupando lugares
conflitantes na dinâmica familiar, ora atuando como filha, às vezes como mãe.
Este comportamento de se sentir responvel pela felicidade dos pais foi
bem detalhado por Bruch (1978), que percebeu a tendência das jovens com
transtornos alimentares de tomarem para si a responsabilidade pela vida
emocional e psíquica dos pais.
Portanto, acredito que os comportamentos de Amanda podem sempre
ser analisados por dois ângulos, tanto o edípico como o daquela que, devido a
uma incapacidade de perceber seus limites entre eu/outro, acaba por assumir
certas responsabilidades familiares como se fossem suas, quando, na
realidade, pertencem aos pais ou a outras pessoas.
Utilizando a linguagem do complexo de Édipo, entendo que Amanda
relembra que constantemente acabava ficando no meio da relação com os
pais, e que sua mãe sempre lhe dizia: “Olha! seu pai está chegando tarde do
trabalho.” Com isso, sentia muita raiva e discutia com seu pai, exercendo
nesse momento o papel de “mulher” dele. Conta que chegou a se abrir com a
irmã, relatando tudo o que percebia em relação ao pai, como um pedido de
união de forças contra ele, mas que a irmã nem se importou com o assunto.
Amanda de fato achava que tinha de tomar alguma atitude em relação ao pai,
ocupando o papel de filha-mulher que a mãe cedia a ela, relação esta que se
repetiu posteriormente em seus relacionamentos.
Quando Amanda começa a falar sobre seus vômitos e que vomita quando está
muito nervosa, seus olhos se enchem de lágrimas, inclina seu corpo entre as
pernas, passa as mãos no rosto e mostra um estado de apavoramento,
dizendo não gostar de vomitar. Acredito que o vômito aparece como uma
expressão do recalcado, do que não podia ser simbolizado, pois caso Amanda
208
resolvesse morar em outro país, ela estaria se separando de sua família, mas
como isso seria possível, se a separação psíquica ainda não havia ocorrido?
Em meio ao discurso Amanda retoma seu estado de solidão, diz que
sempre se sentiu sozinha desde pequena e que gostaria de ter alguém que
ficasse mais perto dela, uma amiga para poder falar de tudo o que se passasse
com ela. Digo a Amanda que acredito que ela estava me dizendo que
precisava de alguém que pudesse ouvi-la, e de alguma forma participar de sua
vida, e que a minha figura, como terapeuta, poderia exercer esse papel, apesar
de o vínculo terapêutico não ser o de uma amizade, mas ser um vínculo real,
onde experiências emocionais eram bem-vindas e poderiam ser
compartilhadas.
Em relação a namoros, contou que namorou um rapaz durante oito
anos, desde os catorze anos, mas que sua família não gostava dele porque ele
fumava maconha. Na época ela estava com 14 anos e ele com 21. No decorrer
das sessões, Amanda chegou um dia e disse que não poderia deixar de me
contar um fato. Falou que este primeiro relacionamento que ela teve foi
bastante tumultuado e que ele chegou a agredi-la fisicamente, e que ela foi
parar no hospital. Durante sua fala, disse que se sentia envergonhada de
contar isso pra mim. Explicou que mesmo com essa história complicada não
conseguia largar dele, que ocorreram mais agressões e no final foi ele quem
pôs fim a esse relacionamento.
A descrição de sua relação conflituosa com o namorado revela,
novamente, a dificuldade de Amanda em conseguir se separar dos que a
cercam, pois mesmo estando envolvida em uma relação na qual era agredida,
ela não conseguia se separar do namorado, sendo que a separação acabou
vindo dele, e não dela. Ou seja, até no sofrimento Amanda continuava em um
estado de fusão, e quando este estado era quebrado pela vontade de outro,
ocorria uma repetição do que já ocorrera anteriormente em suas primeiras
relações, em que era prisioneira da dinâmica familiar, não conseguindo
escapar dos papéis que lhe eram determinados.
Falou que seus relacionamentos com o namorado lembravam muito o de
uma prima dela com o namorado, a qual também sofre de anorexia. Amanda
sempre se deu muito bem com esta prima, que para ela é como uma irmã.
Disse que elas têm quase a mesma idade, que cresceram juntas, e um dia,
209
numa das sessões, falou rindo que tinha conversado com a prima pela internet
e que ela lembrara que tinha aprendido a vomitar com Amanda. Amanda não
se recorda deste fato e se mostra muito preocupada com a prima, que tem um
histórico de várias internações.
O relacionamento de Amanda com o namorado não lembra o da
prima com o namorado, mas de todas as mulheres da sua família com seus
companheiros, pois ela enfatiza que todos os homens da família já traíram suas
mulheres e que “homem é assim”, o que aponta para um aspecto de repetição
do histórico familiar na vida de Amanda e das mulheres de sua família. Mais
uma vez, é possível perceber aspectos da dinâmica familiar, onde os homens
são taxados de “assim”, enquanto as mulheres ocupam um lugar específico, o
das que são traídas mas que mantêm os relacionamentos.
Ainda sobre a história de seus namoros, conta que depois de um tempo
que tinha terminado com o primeiro namorado, conheceu um outro de 38 anos,
e que continuaram namorando mesmo ela vindo para o Brasil.
Houve uma época que eles chegaram a terminar e ela arrumou outro
namorado aqui no Brasil. Este namoro durou uns três meses e ela acabou
terminando por ainda gostar do ex. Conta que foi bom ter namorado um tempo
com este rapaz do Brasil, porque ela conheceu os pais dele, que para ela era
como se fossem seus pais. Este casal se preocupava com ela, levava-a à
igreja, ou para viajar e conhecer outros lugares. Relata que logo que terminou
com este rapaz do Brasil, reatou o namoro com o de 38 anos que mora no
mesmo país que ela, mantendo uma relação somente com os pais do ex
namorado, que para ela eram como “meu pai e minha mãe aqui no Brasil”.
Esta relação de Amanda com o namorado atual é importante, já que este
assunto permeou praticamente maior parte dos seus horários. Amanda
descrevia o Ricardo, namorado do seu país de origem, como uma pessoa difícil
de se relacionar, que a acusava de utilizar o problema da bulimia para não
resolver sua vida. Descrevia-o como um indivíduo que não demonstrava afeto,
que era irônico, e ela também desconfiava de ele ficar sozinho em outro país
porque poderia sair com outra mulher.
Certo dia, as fantasias de traição por parte de Amanda se confirmaram
quando ela foi passar um peodo de férias na casa do namorado. Numa noite
de sexta-feira saíram para dançar com mais um casal de amigos, e na boate
210
havia uma moça que a todo momento vinha falar com o amigo do seu
namorado. Lembra-se que inicialmente não desconfiou de nada, todavia essa
mesma moça resolveu seguir seu namorado até o banheiro da boate. Após,
Amanda abordou-a, perguntando quem era ela e a moça assumiu um
relacionamento com seu namorado. Amanda sentiu-se muito mal, começou a
chorar, e ao questionar Ricardo ele acabou confessando que havia saído
algumas vezes com a garota. Mesmo muito mal com toda aquela situação,
Amanda explica que Ricardo ficou bem pior e implorou seu perdão, e por fim
ela teve que acabar cuidando dele devido ao seu estado de tensão.
Neste momento entrelaço de novo o discurso da paciente à dinâmica
familiar, ou seja, anteriormente a esse fato, Amanda comentava as
desconfianças sobre o pai, e chegou a segui-lo para saber com quem ele
mantinha uma relação extraconjugal. Agora, a mesma cena se repete no
namoro de Amanda, que se utilizou do mesmo recurso inicial: investigar o
“namorado-pai”, e o que antes era fantasia se transformou em realidade,
invertendo a situação novamente como uma forma de punição contra si
mesma.
Ainda recordando os fatos de sua vida, Amanda começava a expressar
um medo, mas de forma diferente, o medo tinha nome e era medo da morte.
Discorria que tinha medo de que alguém muito querido pudesse morrer.
Amanda começava a trazer esse assunto justamente quando a mãe ia passar
por uma bateria de exames, que não estava bem de saúde. Amanda
começava a mencionar um histórico de câncer na família e dizia estar
preocupada com a mãe. Os exames pareciam não ter confirmado nada de
anormal com a saúde da mãe, mas Amanda continuava a manter os
“pensamentos ruins”, como ela mesma chamava: “Kelly, sempre tenho medo
de que alguém que amo possa morrer, como o Ricardo, por exemplo. Por que
será que esses pensamentos me acompanham?”
Amanda sempre foi uma paciente comprometida com a análise, nunca
perdeu um único dia de sua sessão durante um ano e meio, e sempre dizia
gostar dos atendimentos, que a estavam ajudando muito para que
compreendesse o que estava acontecendo. Ela teve apenas uma recaída no
tempo em que estava sendo atendida, ou seja, os vômitose a preocupação
com o corpo desapareceram de seu discurso. O que permanecia nas sessões
211
era o trabalho de nomear sensações, de transformar seu corpo em um “corpo
falado”, usando o termo de Piera Aulagnier.
Quatro meses antes do término da análise, Amanda tinha dúvidas se
ficaria ou não no Brasil. Muito feliz, contou-me sobre a proposta que recebeu
de sua orientadora de mestrado, sendo convidada a trabalhar junto dela. Mas
esta situação deixava Amanda num impasse, pois se ficasse no Brasil
continuaria distante de Ricardo, mas nutria planos de voltar ao seu país a fim
de morarem juntos. Por nenhum momento Amanda falava que voltaria por sua
família, mas sim pelo Ricardo. Raramente conversava com seus pais, dizia que
para falar com eles era ela quem ligava. Ela não encarava essa situação com
os pais como uma queixa, mas como algo normal; o que ocorria era que eu me
espantava com a despreocupação e desinteresse desses pais, mas para ela
parecia que sempre foi assim.
No terceiro mês antes do término da análise, Amanda solicitava mais
dias de atendimento para poder ficar comigo, e passou a começar a chorar por
pensar que iria me perder. Dizia ter muito medo de como seria conviver a dois,
morar junto com o Ricardo, mas que por amá-lo muito, gostaria de tentar.
Interessante que nesse período ela vinha para a análise bastante sonolenta,
dizendo-me que não sabia o motivo de tanto sono, o que parece confirmar
minha idéia de que Amanda utilizava o sono e o sonhar como espécies de
esconderijos psíquicos, momentos necessários para a absorção e assimilação
dos eventos ocorridos na análise. Devido à dificuldade de separação, o sono
de Amanda parecia aumentar, buscando uma alternativa para mais uma
separação em sua vida.
Ainda nesse mesmo período, depois de uma discussão telefônica com
Ricardo, Amanda resolveu prestar atenção num rapaz que tinha acabado de
conhecer. Sentia-se atraída por ele, e ao mesmo tempo achava-se também
muito culpada por sentir isso, que a pessoa que ela queria era mesmo o
Ricardo. Associo este fato a uma tentativa de Amanda querer ficar no Brasil.
Depois de alguns atendimentos, Amanda resolveu arriscar e passou então a se
encontrar com o rapaz. Dizia nas sessões que nunca tinha tido uma pessoa
assim ao lado dela, que se preocupava, que lhe mandava flores e presentes e
a levava para passear, um companheiro mesmo, como ela observava.. Enfim,
confirmando o funcionamento de Amanda, ela não conseguiu sustentar essa
212
relação, pois como ela mesma dizia, estar feliz, sentir-se bem era muito
estranho para ela, algo desconhecido e que dava muito medo.
Durante esse período, Amanda falou que seus pais viriam ao Brasil para
assistir à sua defesa, e nesse momento manifestou o desejo de que me
conhecessem. Reconhecia que nunca conseguira contar detalhadamente a
seus pais o que se passava com ela desde a adolescência. Lembrou que
durante a adolescência os pais ficaram sabendo dos seus vômitos, e que
depois de uma consulta médica foi encaminhada a uma psicóloga, mas que
desistiu do tratamento, pois a psicóloga não a compreendia. Finalizou dizendo
que nunca mais ninguém comentou esse assunto em sua casa e ela também
se calou. Nesse momento, quando ela externou o desejo de trazer seus pais
para me conhecer, coloquei-me à disposição para caso ela quisesse marcar
um horário, mas esse encontro acabou não acontecendo. Quando seus pais
chegaram, ela não tocou mais nesse assunto e eu também não o retomei. Mas
não deixei de pensar nisso, por que passou pela cabeça de Amanda o desejo
de que seus pais me conhecessem? E por que ela não os trouxe? Acredito que
aí apareceu um conflito familiar, pois se Amanda me apresentasse a seus pais,
não estaria ela lhes mostrando que começara um processo de separação, que
alguém, um outro que não eles, havia cuidado de sua filha? Talvez, em razão
do conflito, Amanda tenha sentido o desejo de me apresentar a seus pais como
uma conquista, mas que logo em seguida desistira da idéia, pois tal
apresentação significaria o rompimento de uma longa trama familiar.
Defendida a tese, Amanda optou por continuar no Brasil mais dois
meses. Solicitava horários, parecendo querer ficar mais junto de mim, e eu
mais junto dela. Chegava sempre me dando fortes abraços, cheios de afagos,
e logo corria a se deitar em seu “berço”, ficava encolhida e pedia para deixar a
cortina bem fechada para que não entrasse luz. Nessa época ela falava
algumas poucas palavras do seu dia-a-dia, parou de se referir à relação com o
namorado e parecia somente querer ouvir minha voz. Sim, era somente a
minha voz, porque na verdade o assunto não estava importando.
Fui surpreendida nesse dia ao olhar para ela deitada: estava com os
olhos fechados e com o polegar na boca, toda molhada, pois viera caminhando
e naquele dia chovia. Ao vê-la deitada com o dedo na boca, molhada de chuva,
senti vontade de cobri-la. Para ilustrar tudo o que disse sobre Amanda,
213
gostaria de citar Fernandes (2006), quando esta compara o setting analítico
que tem que ser criado para o acolhimento de pessoas com transtornos
alimentares a
(...) um espaço no qual o segredo dessa descoberta pode ser
preservado todo o tempo necessário. É esse ninho para o
segredo que permite à situação analítica, entre vulnerabilidade
e ternura, funcionar como restauradora da função de contato
do auto-erotismo, guardiã da qualidade da relação de prazer
consigo mesmo e com o outro (Fernandes, 2006,p.262).
De que descoberta fala a autora? Da descoberta da própria existência da
anoréxica ou bulímica como um ser autônomo, com necessidades e desejos
próprios. Acredito que o termo “ninho para o segredo” se aplica muito bem ao
que vivenciei com Amanda, como é possível ler na descrição do caso, pois em
diversos momentos ela parecia realmente estar vulnerável como um recém-
nascido, e em outros, clamava por ternura.
Era evidente que a escolha saudável para Amanda seria ficar no Brasil,
onde tinha um bom emprego e um namorado que a tratava bem. Entretanto,
repetindo um padrão de sua família, ela retornou para um namorado que se
encaixava na descrição dos homens de sua família, ele era “assim”, isto é,
infiel, e deixava o namorado brasileiro, que não seguia os mesmos passos que
os homens de sua família. Amanda continua mantendo contato comigo por e-
mail e MSN, e diz que a vida a dois está muito difícil. Em meio a uma conversa
pelo MSN, Amanda pergunta se tenho microfone, pois queria ouvir minha voz...
mais uma vez.
C) A Impossibilidade do Pensar na Ausência da Mãe Caso Clínico
de Anorexia
Juliana
34
, 14 anos, chegou até mim através de uma colega de trabalho
que sabia da minha pesquisa em transtornos alimentares. Em conversa
telefônica com a colega, foi dito que o estado da garota era preocupante, que a
família tinha o diagnóstico de anorexia e que a e estava resistente em
34
Nome fictício.
214
procurar ajuda psicológica para a filha, insistindo num atendimento psiquiátrico
que o convênio médico oferecia. Prontifiquei-me a atendê-la e, passado mais
ou menos um mês recebi a ligação da mãe de Juliana.
Em conversa telefônica, a e relatou que a filha estava com anorexia,
sem comer um mês e emagrecida. Alice solicita um horário para a filha no
mesmo dia, mas expliquei que antes de iniciar a psicoterapia era necessário
conversar com ela para entender o que estava ocorrendo com sua filha, e
assim agendamos um dia e horário.
No dia e horário combinados, fui ao encontro de Alice na recepção do
consultório e me surpreendi ao vê-la. Diante de mim estava uma bela moça,
bem vestida, aparentando uma adolescente na flor da idade. Confusa,
perguntei se ela era a Juliana, e sorridente, Alice se disse mãe de Juliana.
Pedi-lhe que contasse o que estava acontecendo com a filha, e curiosa,
perguntei-lhe qual era a sua idade, que aparentava ser muito jovem e me
confundia. Alice, novamente sorridente, sentindo-se elogiada, disse ter apenas
28 anos.
Assim, iniciei buscando dados sobre a história de Juliana. Alice contou
que engravidou quando tinha 14 anos e na época o pai de Juliana tinha 18
anos. Falou que até o quarto mês de gestação não sabia que estava grávida, e
que nesse período sofreu um acidente de moto, onde seu rim foi afetado e teve
que tomar vários medicamentos. Ainda sem saber da gravidez, sentia muito
enjôo e vomitava bastante, e desconfiou que a menstruação houvesse parado
no quinto mês de gestação. Quando a criança começou a mexer em sua
barriga, “achava muito estranho, achava que era coisa da minha cabeça; eu
não queria mais ir à escola porque sentia vergonha”.
Alice escondeu a gravidez dos pais até o sétimo mês; usava roupas
largas e “ninguém perguntava e nem percebia nada”. No momento em que fez
a revelação a seus pais diz que “eles ficaram bravos”, e somente nessa época
começou com os exames de pré-natal. Juliana nasceu de parto normal, e Alice
após o nascimento “incorporou” o ser mãe, cuidava e fazia de tudo para a filha.
Segundo a mãe, nos primeiros três dias de vida Juliana não mamava e
dormia; depois ficou mais espertinha, mas tinha continuamente cólicas
intestinais. ”Sempre foi muito boazinha, parecia que era uma adulta”, explicou.
Alice amamentou a filha até os três meses; “ela sugava e depois de meia hora
215
já estava com fome de novo, aí que percebi que não tinha leite e então
substituí pelo leite que o médico recomendou”. Diante do discurso de Alice, fui
entendendo que Juliana não fora desejada e tampouco planejada pelos pais. A
mãe, diante de mim, o associava a vergonha que sentiu pela filha com o
problema que estava ocorrendo hoje, e ficava uma questão: que lugar Juliana
ocupava no inconsciente desses pais? Acredito que cabe aqui uma observação
retirada de Fernandes (2006), que ao comentar o relacionamento entre a mãe
e o bebê que futuramente será uma anoréxica, se pergunta: “De que ignorância
se trata? Da ignorância da mãe sobre o desejo seu e de seu bebê” (p.122).
Acredito que esta citação é crucial para o entendimento do caso de Juliana,
pois sua mãe demonstrou desde o início que Juliana era fruto de um acidente,
de algo que não deveria ter ocorrido e que poderia, portanto, ser ignorado
quase até o momento do parto. Fica a minha observação de que Alice
provavelmente desconhecia os desejos, seus e de Juliana, no momento em
que afirmou ter “incorporado” o papel de mãe.
Alice conta que se casou com o pai de Juliana com 15 anos de idade.
Na época Juliana tinha seis meses e foram morar na casa dos avôs paternos
de Juliana, em outra cidade. Nesse período, Alice voltou a estudar e Juliana
ficava sob cuidados do pai e dos avôs. Passados dois anos, o casal com a filha
retornou para a cidade de Alice; ela continuou os estudos, entrou na faculdade
e Juliana ficava sob os cuidados do pai.
O casamento durou nove anos e então decidiram pela separação. Alice
revela que não estava feliz na relação, que sempre ficava em dúvida sobre
seus sentimentos com o marido, que ele era impulsivo, tomava decisões sem
lhe comunicar, sendo este um dos motivos da separação. E qual era o
sentimento dela pela filha? Na ocasião, a dúvida a confundia, pois se
preocupava com o valor dos honorários, não mostrando em nenhum momento
uma preocupação maternal.
Após a separação, Alice e a filha retornaram à casa de seus pais, onde
moram até hoje, explicando que chegou a encontrar outra pessoa, que se
casou novamente, entretanto durou apenas seis meses. Nesse período, do
segundo casamento, Juliana ficou sob os cuidados dos avôs maternos. Assim
ficou evidente a incapacidade de maternagem da mãe, pois cada vez que se
216
envolvia numa relação, Juliana era deixada de lado, novamente sob os
cuidados de outros familiares.
Continuou relatando que entrou numa depressão profunda após o
término desse segundo casamento, e além disso começou a vomitar, “não
precisava nem comer para vomitar, tinha uma sensação ruim e precisava r
alguma coisa para fora”. Alice fala que sempre teve preocupação com o corpo
e que hoje esbem melhor. passou por duas cirurgias de lipoaspiração e
numa delas aconteceu uma inflamação que a deixou acamada. Também
colocou próteses de silicone e sempre vive de dietas. Hoje parou com as
dietas, que descobriu que está com hipertireoidismo e perdeu 12 quilos. É
importante enxergar na fala da mãe uma descrição da sua própria dificuldade
para lidar com as situações corporais e com as experiências e desafios da vida
em si, como um antecedente para o que irá ocorrer com Juliana. Sobre este
ponto, acredito que é fundamental citar Fernandes (2006), que escreve:
(...) se a mãe falha nessas funções, se não tem a condição
psíquica necessária para perceber as necessidades do bebê,
para discriminar suas sensações corporais, ela interpretará os
apelos dele segundo suas próprias necessidades, não
estabelecendo uma diferenciação entre ela mesma e seu bebê”
(p.215).
Por fim, imagino se Alice também não desejou, diversas vezes, “pôr para fora”
Juliana, tanto enquanto estava em gestação, como também depois, quando a
filha parecia ter se tornado um “pedaço” incômodo em sua vida.
Conforme o que Alice vai relatando é possível antever que Juliana veio
para ocupar um lugar de união entre o casal, e o bebê foi colocado como uma
“prótese” para resoluções edípicas da mãe. Nessa curiosa conflitiva temos a
mãe que engravida com 14 anos e a filha que desenvolve uma anorexia
também com 14 anos.
Sobre o estado de saúde da filha, Alice conta que um ano ela e
Juliana procuraram uma nutricionista para emagrecerem juntas oito quilos,
que sua filha “era gordinha”. Explica que ela e a filha perderam o peso
desejado, mas que Juliana não parou com a dieta e que a cada dia que
217
passava diminuía mais e mais a alimentação. Nos últimos três meses Juliana
parou de se alimentar de forma radical, comendo esporadicamente apenas
frango e salada. “Nas últimas semanas parou também com o frango e a salada
e mal toma água.”
35
Bidaud (1998, p.87) aprofundou seus estudos na relação de domínio
entre mãe e filha na anorexia, dizendo que “é como se elas dissessem uma à
outra, no silêncio de um diálogo amoroso: eu sei o que você pensa, e o que
você pensa é o que eu penso”. Quando Juliana não parou com a dieta, mesmo
perdendo os quilos desejados pela e, parecia uma tentativa de querer
conhecer seus próprios desejos, que até então desconhecia.
Juliana, pesando 42 kg, com 1,65 m de altura, iniciou psicoterapia
comigo três vezes por semana. Permaneceu em atendimento por dez meses,
não continuando por motivos que discorrerei a seguir.
Alta, magra, linda, pele branca, cabelos longos e pretos, com um belo
sorriso no rosto, porém emagrecida, Juliana chegou para atendimento. Essa foi
a minha primeira experiência com uma anoréxica “clássica”. Digo isto porque
ela preenchia todos os requisitos da doença, ou seja, adolescente, IMC abaixo
do normal, amenorréica diagnosticada, vale dizer, um perfil diferente dos dois
casos descritos anteriormente e correspondendo ao que a literatura dita sobre
esses casos: a relação mãe-filha.
Juliana falava baixinho, devagar, parecendo bem intimidada. Sobre o
seu estado, não sabia ao certo o que estava acontecendo, não se achava
doente, comunicando de antemão que não queria engordar. Juliana parecia
não saber que também é possível se “alimentar” através de relações e, assim,
iniciei os atendimentos pontuando delicadamente quanto o apetite estava
associado às nossas relações. Juliana havia se isolado, não ia para a escola e
não tinha amigos, e este fato me chamava a atenção porque ela não se
mostrava entristecida com isso; seu semblante era de uma garota feliz.
Juliana relatou que desde o início do ano vinha comendo pouco, que
começou uma dieta e que passados cinco meses, acabou parando no hospital
para tomar soro. No hospital, diz que sua mãe ficou bastante brava, e falava:
“Eu vou internar você num hospital de louco, isto sim!” já que Juliana se
35
É importante ressaltar aqui que Bruch (1978) já havia identificado o padrão de comportamento no qual
a filha e a mãe procuram atividades juntas, funcionando como uma espécie de irmãs siamesas. O caso de
começar um jejum ao mesmo tempo, com a mesma nutricionista e com a mesma meta de redução de peso
parece ilustrar bem o caso.
218
recusava a tomar soro por medo de engordar. “Aí veio o médico e falou que eu
teria que tomar soro, sim”! Juliana olhou para mim sorrindo e desconfiada, e
me perguntou o que eu achava da história. Ao perceber que poderia estar se
formando uma transferência negativa, dise-lhe que talvez ela estivesse se
perguntando se eu também compartilhava de algum tipo de pensamento sobre
ela ser ou não louca, e lhe respondi que não, que diante de mim estava uma
jovem com uma história que possuía diversos capítulos, alguns alegres e
outros tristes, mas que isso não a qualificava como louca, mas sim como ser
humano.
Juliana reside na casa dos avôs junto com a mãe. Ela é filha única e
seus pais se separaram quando ela estava com cinco anos. Na casa residem
os avós, Juliana, sua mãe, duas tias (irmãs da mãe) e um primo, filho de uma
das tias que não chegou a se casar. Todas as mulheres da família são
extremamente preocupadas com o corpo, todas passaram por cirurgia
plástica, lipoaspiração e também colocarem próteses nos seios, inclusive a
avó. Durante os atendimentos, percebo quanto existem traços
transgeracionais na dinâmica de Juliana, confirmando-se quando ela diz:
Chiii... acho que na minha casa todo mundo precisa de
psicólogo, ninguém pode engordar, todo mundo faz
academia e dieta; minha avó já sofreu duas paradas cardíacas
num centro cirúrgico de estética dizendo: se for pra morrer, que
eu morra fazendo isso.
Aos poucos vou me sentindo num terreno infértil, ora sentia como a Juliana
queria se diferenciar do resto da família, ora pensava que Juliana também
pertencia a essa família “estetizante”, onde todos pareciam ter dificuldade em
perceber o corpo. Sobre a família dessas meninas recorro a Weinberg (2006,
p.132), que afirma: “Na sua gênese, estudos mostram que as famílias de
meninos/meninas anoréxicos tendem a ter muita dificuldade em estabelecer
limites, expor seus conflitos, lidar com as situações de separação e luto e viver
uma sexualidade adulta.” Sobre a família de Juliana, em especial as mulheres,
(mãe e tias) mesmo adultas, apresentam dificuldades numa relação conjugal
219
com forte resistência para sair da casa dos pais. Todas trabalham na empresa
do avô de Juliana, dependentes psíquica e financeiramente dele.
Em relação ao seu pai, diz que a relação é boa, que o ama muito, que
ele a compreende, diferentemente de sua mãe. Marcelo, pai de Juliana, mora
em outra cidade, e Juliana costuma visitá-lo somente nas férias da escola. Seu
pai constituiu uma nova família e ela tem um irmãozinho de um ano e meio.
Aos poucos, Juliana diz querer melhorar, que precisa voltar para a
escola e recuperar as notas e começa a falar do seu dia-a-dia e de suas
relações. Traz boas recordações da infância, quando seus pais eram casados
e sua mãe começou a estudar, e ela ficava junto do pai que era muito bom e
era quem lhe dava comida. Ela era gordinha desde pequena e associa que
passou a comer mais quando seus pais se separaram, enfatizando que na
época não tinha preocupação de engordar. Pergunta: “Por que agora estou tão
preocupada com isso?”
Juliana não se acha doente e acrescenta que no ano passado foi a uma
nutricionista e passou a fazer exercícios, perdeu alguns quilos, querendo
sempre perder mais, sem saber o porquê. Comprou uma balança e a colocou
em seu quarto para se pesar e começou também a pesar numa balança
doméstica o que comia. Ainda sobre seu pai, sente muito a falta dele, gostaria
que ele morasse mais perto, ao mesmo tempo não sabe se seria bom, que
seus pais discutem muito. Juliana não sabe explicar porque brigam, sabe
que uma das coisas é que a mãe exige que ele pague a pensão.
Sobre a pensão, Juliana explica que o combinado é que seu pai pague a
escola, e se recorda de uma época em que precisou sair do colégio por conta
do pai não poder pagar. Percebo que isso entristece Juliana; ela muda
imediatamente de assunto, afirmando ter novos amigos. Juliana parece que
entrou num processo de negação por causa de tantas perdas na vida: chegou
ao mundo de forma não desejada e era negada no ventre de sua mãe,
adolescente, confrontada com a sexualidade. Juliana entrou numa cisão,
contando calorias e recusando-se a sentir emoções.
O aspecto da cisão, que mencionei acima, é extremamente importante para se
compreender os casos de transtornos alimentares. Fernandes (2006) explica
tal importância ao dizer que “a separação entre o ego e o corpo altera a relação
do sujeito consigo mesmo e com os outros que o cercam, alterações que
220
parecem se expressar de forma eloquente no próprio corpo” (p.150). O caso de
Juliana parece ilustrar bem a fala da autora, pois o sofrimento de Juliana
aparecia principalmente em duas instâncias. A primeira, que ficava mais óbvia,
era o corpo, que definhava lentamente. A segunda eram as alterações nas
relações com todos que a cercavam, pois ela se sentia uma estranha, sem um
local naquela família, vagando da mãe para o pai, do pai para a avó, da avó
para a tia e, no fim, de volta para a mãe. Juliana vivia numa espécie de curto-
circuito relacional, em que era sempre jogada de um lado para outro, sem
nunca encontrar um local para se instalar. A fim de suportar uma realidade
deste tipo, e considerando as condições nas quais ela nasceu e cresceu, não é
de espantar que a palavra cisão explique como o seu psiquismo se defendeu.
A e mostra grande indiferença pelo ex-marido, sustentam uma
relação odiosa e Juliana fica no meio do triângulo ouvindo os dois lados, ora o
pai hostiliza a e, ora a mãe hostiliza o pai, sendo o sintoma de Juliana a
denúncia de uma relação doentia. A despeito de Juliana se referir de maneira
cordial ao pai, fico me questionando se este pai pôde, em algum momento,
realmente ser pai de Juliana. Segundo Fernandes (2006), “é uma constatação
clínica que as mães dessas jovens parecem ser particularmente eficazes em
dificultar a entrada do pai, o que, às vezes, torna-se possível justamente
quando eclode a dificuldade com a alimentação” (p.123). Esta previsão sobre
uma possível entrada do pai irá quase se confirmar no decorrer da história.
De volta a Juliana, ela diz que não tem diálogo com a mãe, que ela se
irrita com tudo e por este motivo resolveu se calar. Nesse mesmo dia
compreendi o silêncio de Juliana, quando no final de uma das sessões a mãe
entrou para fazer o pagamento e comentou que o namorado que Juliana teve
gostava dela e não da filha. Fico impactada, e a minha hipótese se confirmou:
Juliana não ocupava um lugar de filha no psíquico da mãe e sim de uma irmã.
Em outros momentos, a e me comunicava que a filha estava mais
estranha, não falando com ninguém em casa, trancafiada em seu quarto,
mostrando-se cansada do comportamento da filha e fazendo uma espécie de
crítica velada ao processo terapêutico. Acredito que o impacto que senti é bem
explicado por Fernandes (2006), que ao comentar o tratamento psicanalítico
das anoréxicas e bulímicas, explica que “essas jovens solicitam de nós uma
capacidade para habitar o vazio e a incompletude” (p.263), o que, com certeza,
221
requer um manejo e a necessidade do próprio analista ser capaz de manejar as
angústias que tais condições angustiantes trazem à tona. Foi importante para
mim tomar contato com autores da psicanálise que têm prática clínica com
transtornos alimentares, e perceber que as situações vividas na minha prática
clínica foram, em muitos aspectos, semelhantes.
Passado mais ou menos um mês, Juliana retomou os estudos e os
assuntos nesse período foram em torno das provas que ela precisava fazer, e
dos amigos que passou a rever. Queria melhorar, ficar como antes, sem
precisar contar calorias, mas o medo de engordar ainda assombrava seus
pensamentos.
Conta que nessa época que ficou afastada da escola, muitas amigas a
procuraram querendo saber o que estava acontecendo, que a diretora da
escola foi visitá-la e, admirada, não sabia que era tão querida.
Voltando às aulas, relata que está comendo um pouco mais, que montou
um cardápio novo com algumas coisas de que gosta e que não engordam; está
sem menstruar mas não se preocupa com isto, e deseja saber neste momento
de qual grupo faria parte. Começa a descrever suas amigas de classe e o
grupo de garotas de que fazia parte, e isto era percebido por mim como se ela
quisesse saber o que eu achava das meninas.
Muito correta, Juliana se afastava das meninas que ela sabia que
bebiam, fumavam ou transavam, mas sem mesmo perceber, acabava se
envolvendo com as garotas das quais queria se distanciar. Juliana tinha muito
medo de ficar parecida com essas colegas, e não contente, passou a trazê-las
para o consultório. Fazia questão de me apresentar como sua psicóloga.
Juliana levou um total de três garotas; os encontros foram divertidos e Juliana
ficava cada dia mais à vontade, compartilhando comigo sua entrada na
adolescência.
Com a melhora de Juliana, a mãe começou a desmarcar seus horários
e passamos a nos ver com menos frequência. Quando Juliana vem, sempre
conseguimos continuar um assunto anterior, ou seja, das amigas, dizendo ter
medo de sair com elas porque todas vão comer e ela não conseguirá. Reluta
durante umas três semanas e acaba saindo com sua turma, e na lanchonete
não resiste e saboreia a metade de um lanche com batatas fritas.
222
A mãe se recusa a levar a filha à terapia mais de uma vez por semana,
dizendo que está cansada e que pretende mandar a filha para morar com o pai
porque ela não comia e não tomava o medicamento que a psiquiatra havia
receitado. Alice não podia reconhecer a melhora da filha. Juliana diz que a
psiquiatra trata de toda a sua família (mãe, tias e avó), mas recusa o remédio
prescrito por essa profissional.
Por ocasião do aniversário de Juliana, a mãe veio me pagar e pediu
minha opinião se devia dar-lhe a sandália que ela queria, pois acha que ela não
merece porque é mal-educada. Sempre está fazendo os gostos dela, mas está
cansada, e também reclama que atendimento três vezes por semana é muito,
atrapalha o horário de trabalho dela; insisto, porém Alice reluta e não abre mão.
Em outra sessão, no dia seguinte, a avó paterna trouxe-a para a terapia;
Juliana me apresentou à avó e esta disse que a neta gosta muito de mim, que
é o único lugar a que ela vai, que não vai à psiquiatra e nem a outro médico.
Fiquei sabendo, mais tarde, que o remédio que Juliana recusava era um
antidepressivo, que ela não o tomava por medo de começar a sentir fome e por
não acreditar que estivesse deprimida. Também descubro, através da mãe,
que me conta a história rindo, que a avó paterna de Juliana prepara vários
doces para ela, e que ela não os come, os embrulha e guarda na geladeira, e
não permite que ninguém os coma. Conforme a terapia continua, Juliana relata
que ganhou vários ovos de Páscoa e que conseguiu comer algumas lascas de
chocolate, o que me pareceu um progresso.
A mãe, que aparecia para pagar pelas sessões da filha, reclamava
continuamente que não podia sair com a filha, pois ela não comia nada, o que
a irritava durante as saídas. Alice insiste que gostaria que Juliana morasse com
o pai, proposta que ouço também do pai, que ao me telefonar diz que aceita a
proposta, mas que para ele seria muito mais difícil receber Juliana, pois na
casa dos avós “Juliana tem tudo”, e que ele não poderia oferecer uma vida tão
confortável à filha.
citei, em termos teóricos, a incapacidade do pai de estabelecer uma
relação com a filha, e acredito que na fala do pai de Juliana é possível perceber
que ele não entende a solicitação da filha, pois quando esta deseja passar
algum tempo com ele, na realidade ela está pedindo algo mais do que uma
vida confortável e cheia de prazeres materiais, como os que existem na casa
223
da mãe. Infelizmente o pai também parece não conseguir diferenciar desejo e
necessidade no que diz respeito à sua filha.
As faltas de Juliana se tornam frequentes. Ao conhecer a avó materna,
que a própria Juliana traz em uma sessão para que eu a conheça, ouço com
consternação a avó dizer que falou para Juliana voltar a comer, caso
contrário ela ficará com aparência de uma pessoa portadora do HIV e que “os
peitinhos dela vão cair”. Algumas sessões adiante, fico sabendo que Juliana foi
a um show junto com a mãe e que se perdeu da mãe durante o show, o que lhe
trouxe uma sensação de desespero. Ao encontrar a mãe, esta estava
alcoolizada, e isto fez com que discutissem. Juliana, após a discussão, enviou
um torpedo à mãe pedindo-lhe que parasse de beber, o que causou um acesso
de fúria em Alice, pois seu celular estava com um “amigo” que leu a
mensagem.
Assim como conheci a avó Marcela, vi que Juliana também tinha um
padrão de levar para as sessões as diversas pessoas que conviviam com ela.
Interpretei tal fato como uma tentativa de Juliana demonstrar para mim, no
plano do real, que diversas situações que ela descrevia sobre seus familiares
realmente correspondiam à verdade. Ou seja, retornando para a ocasião em
que ela me perguntou se eu a achava louca, talvez mostrar seus familiares e
pessoas próximas fosse uma forma de me dizer: “Viu, o que eu digo sobre
minhas experiências pessoais é uma realidade, eu não estou louca.”
Conforme as sessões passam, fico sabendo de outro evento que demonstra
quanto a anorexia está imbricada nos comportamentos familiares dessas
pessoas. Juliana me conta, depois de um dia que faltou, que não pôde vir à
terapia porque sua tia a levara a uma loja de roupas, e que a dona da loja
perguntou se a garota não gostaria de tirar algumas fotos para a loja como
modelo, pois a tia de Juliana era modelo da marca também. A família achou
o convite uma ótima idéia, o que foi um dado chocante para mim, pois
demonstrou quanto a família não associava o transtorno alimentar aos padrões
familiares.
A paciente começou a pedir, durante as sessões, que eu indicasse uma
terapeuta para sua mãe. Ao conversar com a mãe sobre a necessidade de
acompanhamento psicoterápico da família em casos de anorexia, a mãe se
224
recusou e disse que uma vez tentou falar com um psicólogo e que apenas se
sentiu “pior do que quando entrei”.
Logo em seguida o pai de Juliana veio visitá-la e me ligou expressando
o desejo de me conhecer, e compareceu à sessão seguinte com a filha. Pouco
depois ele me revelou que a mãe de Juliana não queria mais pagar as sessões
da filha e que ele ia começar a custear o tratamento. Tentei marcar uma
sessão com os pais de Juliana, mas a recusa foi imediata, em especial por
parte da mãe. Aos poucos Juliana faltava mais e mais à terapia, e quem
desmarcava as sessões era sua mãe, que sugeria, em algumas ligações, que
Juliana saía das sessões chorando, mais triste do que quando entrara. Tais
afirmações me confundiram muito, pois as sessões de Juliana eram
agradáveis, dinâmicas, e nada parecia indicar que ela não gostasse de estar
ali. Comecei a ter a sensação de que algo ocorria dentro do ambiente familiar
de Juliana, mas este “segredo familiar” não estava chegando até as sessões.
Percebi também que o transtorno alimentar trouxe o pai para mais perto de
Juliana, e que ele tentava exercer alguma autoridade sobre o tratamento da
filha. Entretanto, sua autoridade parecia limitada perante a presença constante
da mãe.
Nessa ocasião Juliana entrou em férias escolares e viajou com os avós.
Ela trouxe as fotos das férias e contou uma história que a entristeceu muito.
Durante as férias, uma garota que os acompanhava saiu com um rapaz e pediu
que Juliana não contasse nada a ninguém. Entretanto, ao retornar, a menina
exibia marcas de beijos no pescoço, o que fez com que Juliana, pressionada
pelos pais da garota, acabasse contando toda a verdade. A garota se
enfureceu com Juliana, que se sentiu muito triste por ter “dedurado” a colega. A
tristeza de Juliana, neste caso, parece indicar que a situação que viveu com a
amiga ilustra uma espécie de Édipo reencenado, na qual ela se encontrava no
meio de um casal (os jovens que estavam saindo às escondidas), tendo que
exercer uma função punitiva contra os amigos. Ao levar em conta como é
difícil a relação de Juliana com o seu casal parental, não é difícil imaginar
quanto ela deve ter sofrido por ficar na posição, mais uma vez, daquela que é
causa para o desentendimento de um casal.
Os próximos atendimentos foram desmarcados sucessivamente, sendo que a
mãe de Juliana alegou que o carro da família quebrara. O pai de Juliana, ao
225
conversar comigo, disse que isso era mentira, pois a família de Juliana possui
cinco carros, e na realidade era a mãe que não queria mais que a filha fosse à
terapia. Por fim, o pai de Juliana me ligou e disse que a filha não iria mais
porque se cansara. A mãe também ligou e falou que tentou levá-la uma vez,
mas que a garota não quis sair do carro. Percebi que participar ou não da
terapia se transformou, para Juliana, em um motivo para se transformar em
alvo de discussão entre os pais, ou seja, mais uma vez ela era tratada como
um joguete do desejo alheio. Juliana não compareceu mais à terapia, e
pretendo agora discorrer brevemente sobre a psicodinâmica de Juliana e sua
família.
Um aspecto que me parece importante abordar no caso de Juliana é o da
relação mãe-filha, por diversos motivos. O principal é que Juliana tem,
obviamente, um conflito manifesto com sua mãe e com as mulheres da família
em geral, e isto suscita a questão do porquê de tal relação ser complicada.
Tendo por base a teoria freudiana, lembro que a mãe tem uma relação especial
com o filho e a filha; ela é, realmente, o primeiro objeto de amor e ódio da
criança, pois ao manipular o corpo de recém-nascido ela transmite sensações
agradáveis e desagradáveis, primeiras marcas a serem gravadas no psiquismo
infantil.
Se é a mãe quem primeiro desperta as sensações corporais na criança, e por
consequência acaba sendo também o primeiro alvo dos desejos e dos ataques
infantis, acredito que a relação mãe-filha tem um potencial para ser mais
complicada do que a da mãe-filho, pois o corpo da menina é idêntico ao da
mãe, enquanto o corpo do menino possui uma diferença anatômica. Assim, ao
amar a filha, a mãe experimenta um sentimento ambivalente, pois é “uma
relação marcada por um profundo vínculo homoerótico” (Rejani, 2007, p.221)
O corpo feminino da menina coloca a e em frente de sua própria
história, como ela lidou (ou não) com sua própria angústia de castração.
Espelho de seu próprio corpo, a menina pode despertar angústias profundas
em uma mãe que não tenha resolvido adequadamente a própria sexualidade,
entendendo por isto a efetuação do recalque da sexualidade infantil.
A mãe tem que realizar uma tarefa difícil ao lidar com a menina, pois ao
mesmo tempo em que ela deve permitir a entrada do pai, logo ela sentirá, de
maneira inconsciente, uma rival na filha. A filha, por sua vez, também estará
226
com os olhos voltados para a mãe, em busca de um ideal feminino que possa
satisfazer o pai. Se o menino, por sua diferença anatômica, não desperta
tantos sentimentos ambivalentes na e, a mãe ao se relacionar com a filha
experimenta um misto de “satisfação e identificação narcísicas que misturam-
se num jogo de espelhos, o que pode determinar para a dupla uma maior
ambivalência e a presença de paixões mais violentas, tanto para o amor como
para o ódio” (Rejani, 2007, p.222).
Uma mãe que não tenha lidado bem com a própria castração, ao ser
confrontada com seu espelho-rival, pode reviver as intensas angústias do seu
passado, do seu se tornar mulher, prejudicando a transmissão do feminino para
a filha. É possível que tal filha tenha seu corpo envolvido em um processo de
deslibidinização e não de libidinização, como deveria ocorrer. Ao continuar sua
maturação, a filha novamente poderá colocar a mãe perante seus próprios
fantasmas, com o despertar da sexualidade na adolescência, o que fica bem
comprovado pelo fato de a mãe disputar o namorado da filha. Desta forma,
podem surgir jovens que possuem um comportamento confuso em relação à
mãe, e às vezes não conseguem ficar longe da mãe, mas, ao mesmo tempo,
suplicam por um espaço em meio a uma relação tão conturbada.
Ora, no caso de Juliana, os cuidados que a mãe teve com a menina
desde a gestação indicam para este processo que é o oposto de investir libido,
pois a menina foi, desde o começo, escondida e repassada, para que outros
cuidassem dela. O espelhamento é nítido, pois a mãe se veste e se comporta
como uma adolescente, o que acaba despertando na filha um comportamento
“maduro”, além da sua própria idade. O fato de mãe e filha irem juntas a uma
nutricionista para emagrecerem juntas, parece significativo deste espelhamento
do qual falei. Com relação ao resto da família, parece haver um funcionamento
feminino “em bloco”, no qual todas as angústias são colocadas no corpo, o que
aparece em uma família que exibe cirurgias plásticas e próteses como
medalhas.
O pai de Juliana, desde o início, parece alguém que não pôde entrar na
relação e que ainda não pode. Afastado da filha, suas intervenções são
tímidas, e quando começam a surtir algum efeito como, por exemplo, quando
ele resolve custear o tratamento da garota, são logo cortadas pela mãe, que
não permite a expressão do pai. Acredito que Juliana, ao pedir que eu
227
conseguisse uma psicoterapeuta para a mãe, pedia desesperadamente para
que um terceiro entrasse na relação entre ela e a mãe, demonstração do fato
de que seu pai o era capaz de interditar a relação mãe-filha. Acredito que
Juliana, desde o começo, cresceu presa a uma noção de necessidade e não de
desejo, pois tudo estava depositado no corpo e pelo corpo, mas o corpo da
mãe, da avó, da tia, não o dela, pois seu próprio corpo é totalmente
desconsiderado quando, embora tenha um diagnóstico de anorexia, a família
incentiva sua entrada no mundo da moda, fator de risco para os transtornos
alimentares.
Fruto de uma gestação não desejada e até mesmo escondida,
embaraçosa, Juliana parece ter se transformado em um joguete da dinâmica
familiar, ora sendo a modelo que poderá tirar fotos para uma loja famosa, ora
sendo o motivo para a briga entre os pais ou para a infelicidade atual da e.
Presa ao desejo materno, creio que Juliana poucas vezes saiu do domínio da
necessidade, não tendo como expressar nenhum “eu quero”, pois até mesmo a
terapia se transformou, para ela, em algo que representa o desejo do outro (no
caso, a briga pai X mãe), mas não seu próprio desejo.
228
CAPÍTULO VI: CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluir uma dissertação de mestrado pode levar a vários rumos. No
meu caso, acredito que tive uma grande felicidade, que foi o de ter contato com
casos que confirmaram as principais hipóteses da psicanálise sobre os
transtornos alimentares, como as dificuldades na relação com a mãe, a falha
da função paterna e os sintomas típicos. Acredito que ter tido a chance de
confirmar tais dados, tanto na clínica quanto na análise estatística, foi de suma
importância para o meu entendimento da anorexia e bulimia.
Por outro lado, acredito que minha pesquisa apresentou um dado que,
até onde sei, é original, que é o da maior prevalência de transtornos
alimentares no grupo que denominei de primeira filha do casal. Tal dado
levanta muitas questões, abrindo a porta para uma pesquisa futura, que
provavelmente teria que envolver as jovens com transtorno alimentar e os pais,
a fim de que seja possível avaliar, de forma científica, o porquê de este grupo
ser suscetível à anorexia e à bulimia. Como disse, o fator explicativo mais
provável, no momento, são as dificuldades da maternagem que a mãe
experimenta no primeiro contato com um bebê cuja anatomia a remete aos
seus próprios dilemas pessoais. Entretanto, tal assunto deverá ser melhor
explorado no futuro.
Apesar da hipótese da maternagem, acredito que o dado da filha única
aponta para a necessidade de uma pesquisa com os pais, assim como com as
filhas, pois minha pesquisa também sugere que a primeira filha deve ter sido
uma depositária de projeções do casal parental, que podem ter sido excessivas
ou não terem se realizado. Como exemplo, cito as grandes cobranças das
anoréxicas e bulímicas que utilizei como exemplos durante a dissertação, que
relatam diversas pressões sofridas por parte da e e às vezes do pai, para
atingir um certo peso, ser de uma maneira que não é, atingir um ideal de
beleza e outras demandas que podem beirar o impossível.
Uma das implicações que visualizo para a minha descoberta sobre a
prevalência de casos de anorexia e bulimia entre a primeira filha do casal é a
sua utilização em procedimentos psicodiagnósticos. Apesar do dado ser novo e
merecer maiores estudos, acredito que, diante de um caso cuja suspeita é um
229
diagnóstico de transtorno alimentar, será útil observar se a pessoa em questão
se encaixa no padrão, ou seja, se é a primeira filha. Caso seja, profissionais da
área que lidam com anorexia e bulimia terão um dado a mais para suspeitar da
existência de um transtorno alimentar. Assim, não advogo que o critério da
primeira filha seja utilizado para diagnóstico diferencial, mas sim como um
indício a mais para que o profissional efetue seu diagnóstico com um dado a
mais, fornecendo maior segurança ao diagnóstico.
Parafraseando Fernandes (2006), que termina seu livro o com uma
conclusão, mas sim com uma reflexão sobre as inúmeras perguntas que seu
belo trabalho levantou, também optei por finalizar minha dissertação com
considerações finais e o com uma conclusão, pois também encontrei dados
que lançaram perguntas, assim como algumas respostas. Acredito que é
importante ressaltar o quanto meu trabalho buscou uma relação entre as
relações familiares, a cultura contemporânea e a eclosão dos transtornos
alimentares. Na realidade, a busca por elementos da cultura contemporânea se
tornou um imperativo, pois acredito que é impossível lidar com um instrumento
tão novo como a internet, sem levar em consideração os aspectos sociais que
cercam e moldam a utilização deste instrumento. Pude observar como as redes
sociais facilitam a difusão de padrões estéticos contemporâneos, e que tais
padrões são difundidos de uma maneira anônima, o que lhes confere uma
estranha aura de poder, uma exigência cultural que não é referendada por uma
pessoa específica, mas que é aceita por muitos.
Entretanto, as demandas culturais excessivas que as redes sociais
podem impor aos seus usuários apenas encontram terreno fértil em famílias
propensas à entrada de uma lei externa, pois o famílias com uma ausência
de função paterna, permeada por uma mãe de extremos, o que facilita a
aceitação da figura imaginária da Ana e da Mia como porta-vozes da identidade
cultural, do certo e do errado, do como se deve ser para poder existir.
Assim, com pedaços do real e do virtual, com a clínica e a estatística,
consegui confirmar, por conta própria, as principais teorias sobre a etiologia
dos transtornos alimentares, segundo a clínica psicanalítica. Somente tal
confirmação, por si só, seria motivo para considerar minha pesquisa como
proveitosa, como uma boa contribuição sob o aspecto de pesquisa de
230
mestrado. Entretanto, acredito que fui além ao encontrar um dado novo que,
por enquanto, necessita de mais estudos para ser melhor compreendido.
231
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAHAM, Karl. Teoria Psicanalítica da Libido. Rio de Janeiro: Imago, 1970.
AULAGNIER, Piera. Que desejo, por que filho? Revista do núcleo de estudos e
pesquisas em psicanálise do Programa de Estudos Pós-Graduandos em
Psicologia Clínica da PUC-SP, São Paulo, n. 21, 2004.
BIDAUD, Eric. Anorexia mental, ascese, mística. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud, 1998.
BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000.
BORGES, Maria Beatriz. Evolução histórica do conceito de compulsão
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BUCARETCHI, Abramides Henriette. Anorexia e bulimia nervosa, uma visão
multidisciplinar. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.
BRUMBERG, Joan Jacobs. Fasting girls. Vintage publisher: New York, 1988.
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COELHO, Marcelo. Magreza, “karoshi” e Guiness. Folha de S. Paulo, São
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CORDAS, Táki Athanássios; CLAUDINO, Angélica de Medeiros. Transtornos
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Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-
44462002000700002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 21 mar. 2007. Pré-
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FERNANDES, Maria Helena. Transtornos Alimentares. São Paulo: Casa do
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232
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FREUD, Sigmund. Um caso de cura pelo hipnotismo, vol I, Obras Completas,
Rio de Janeiro: Imago, 1998.
______________ . Rascunho G, vol I, Obras completas, Rio de Janeiro: Imago,
1998.
______________ . Estudos sobre a Histeria, vol II, Rio de Janeiro: Imago,
1998.
______________ . A sintomatologia clínica da neurose de angústia, vol III, Rio
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Janeiro: Imago, 1998.
http://www.estadosgerais.org/encontro/padecimentos_contemporaneos.shtml
(sobre patologias)
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JOYCE. McDougall. Teatros do Corpo. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
LEMOINE- Luccioni, E. Las ujeres tienem alma? Barcelona: Argonauta, 1990.
LEVY. Pierre. O que é o virtual?
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MEZAN, Renato. Interfaces da Psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras,
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MEZAN, Renato. Sobre a Pesquisa em Psicanálise. Revista Psyché, São
Paulo, n. 2, pp. 87-98, 1998.
SANCHES, Gisela Paraná. Sándor Ferenczi e a ampliação dos limites
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VEJA. A magreza que mata. São Paulo:Abril, n. 46, 22 nov. 2006.
VIOLANTE, Maria Lúcia. Piera Aulagnier. Uma contribuição contemporânea à
obra de Freud. São Paulo, Via Lettera, 2001.
WEINBERG, Cybelle; Cordas, Táki Athanássios. Do altar às passarelas: da
anorexia santa à anorexia nervosa. São Paulo: Annablume, 2006.
233
Anexo I – Modelo das categorias para análise das entrevistas
GRUPO 1: IDENTIFICAÇÃO – NET
- Orkut falso: ( )sim ( )não
- MSN se identifica? ( )sim ( )não
- Resposta à entrevista: ( )positiva ( )negativa(ataque à entrevista)
- Usa linguagem virtual: ( )sim ( )não
- Refere-se como Ana/ Mia: ( )sim ( )não
- Utiliza Orkut para formar grupos com o objetivo de ser anoréxica ou bulímica:
( )sim ( ) não
- Os sintomas tiveram início através da utilização da net? ( )sim ( )não
- Falar sobre TA pelo virtual é mais fácil: ( ) sim ( )não
- A conversa com a entrevistadora é escondida? ( )sim ( )não
- A conversa é interrompida? ( )sim ( )não
- Se é interrompida, por quem?
- A conversa tem continuação num outro dia: ( )sim ( )não ( )se propõe
a continuar
- Como se identifica? ( ) anorexia ( ) bulimia
- Fala pronta sobre o TA: ( ) sim ( ) não ( ) às vezes
- Exibicionismo por estar participando de uma pesquisa; exacerba os sintomas
com o objetivo de causar impacto: ( ) sim ( )não
- Necessidade de contato virtual imediato/ Oralidade: ( )sim ( )não
GRUPO 2: DADOS PESSOAIS
- Nome: ( ) sim ( ) não
- Foto: ( ) sim ( )não
- Idade:
- Peso:
- Altura:
- Quanto quer pesar?
- Casada ( ) solteira ( ) mora junto ( )
- Trabalha: ( ) sim ( ) não
- Estuda: ( ) sim ( )não
- Qual profissão: ______________
GRUPO 3: TRATAMENTO
- Faz tratamento Psi: ( ) sim ( ) não
- Adere ao tratamento: ( )sim ( ) não
- Esconde os sintomas da família: ( )sim ( )não
- Houve internação: ( )sim ( )não
- Toma medicamentos para emagrecer: ( )sim ( )não
- O medicamento é com prescrição médica: ( )sim ( )não
- Conhecimento sobre a medicação: ( ) sim ( )não
- Houve diagnóstico: ( )sim ( )não ( ) não acredita no diagnóstico
GRUPO 4:. SINTOMAS PSI
( ) vomita ( )vomita em excesso ( )vomita raramente
234
( ) força vômito
( ) faz jejum atualmente ( ) já fez jejum anteriormente
( ) faz exercícios
- Descrição de perfil alimentar: ( )sim ( ) não
- Relação com a auto-imagem: ( )distorcida ( ) não distorcida
-Existe uma parte do corpo que a incomoda? ( ) Sim ( ) Não
Qual:_______________
- Idade do início dos sintomas?
- Conhecimento sobre o próprio TA: ( )sim ( )não
- Pratica modificações corporais ( ) Sim ( ) Não
Tipo:__________________________
- Uso de bebida alcoólica ( ) sim ( )não
- Fuma ( )sim ( )não
- Outro tipo de droga ( )sim ( ) não
- Tentativa de suicídio ( )sim ( )não
- Idéias suicidas ( )sim ( )não
GRUPO 5: DADOS FAMILIARES
- ( ) Pais casados
- ( ) Pais separados
- Morte de algum dos pais: ( )sim ( ) não ( ) quando
- Irmãos: ( )sim ( ) não ( )quantos
- Idade e sexo dos irmãos:
- Morte de algum irmão: ( )sim ( )não
GRUPO 6: AS RELAÇÕES FAMILIARES/ Vida Social
- Mãe: ( ) positiva ( ) negativa
- Pai: ( ) positiva ( )negativa
- Irmãos: ( ) positiva ( )negativa
- Alguém com TA na família ( )sim ( ) não
- Relata vida social ( )sim ( )não
GRUPO 7: ANÁLISE PSICANALÍTICA DA ENTREVISTA
- A entrevistada associa as perguntas sobre a família ao TA? ( ) sim ( ) não
- Existe descrição da infância? ( ) sim ( ) não ( )pouco
- Como é? ( ) solitária ( ) ridicularizada devido ao corpo ( ) sempre foi magra
- Descrição da relação com a mãe ( )sim ( )não Aspectos principais da
relação:
_______________________________________________________________
_______________________________________________________________
_______________________________________________________________
_____________________
- Descrição da relação com o pai ( )sim ( )não ( )pouco
Aspectos principais da relação:
_______________________________________________________________
_______________________________________________________________
235
_______________________________________________________________
_____________________
- Existem trocas de papéis na família? ( ) Sim ( ) Não
Qual? ___________________
- Família conturbada? ( ) Sim ( ) Não
- Falta de olhar do outro? ( ) Sim ( ) Não
- Existe necessidade de ser cuidada? ( ) Sim ( ) Não
-Conflito edípico ( ) Sim ( ) Não
Especificar: ________________________________
- Família incestuosa ( ) Sim ( ) Não
Exemplo: ________________________________
- Abuso sexual ( ) Sim ( ) Não
Por quem: ____________________________________
- Inveja ( ) Sim ( ) Não
De quem: _________________________________________
- Mecanismo de defesa
( ) Negação da doença
( ) Negação da relação entre família e TA
-Usa a comida para manipular situações/relações
( ) Sim ( ) Não
Culpa relacionada aos alimentos ( ) Sim ( ) Não
Evidência de deslocamento da culpa da família para o alimento? ( ) Sim ( )
Não
Presença excessiva de objetos parciais na fala ( ) Sim ( ) Não
Qual ________________
-Existe fala sobre a vida sexual? ( ) Sim ( ) Não
- Vida sexual precoce? ( ) Sim ( ) Não
Quando:_______________________________
236
ANEXO II - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E
ESCLARECIDO
Pesquisador (a): Kelly Cristina Arrigatto Gonçalves
Título da pesquisa: Transtornos Alimentares – Anorexia e Bulimia
Instituição: Pontifica Universidade Católica de São Paulo – PUC – SP
Número de matrícula da pesquisadora: 06100955
Nome do participante: ____________________________________________________
Caro participante:
Eu, Kelly Cristina Arrigatto Gonçalves sou psicóloga CRP 06/ 77334 e
gostaria de convidá-la a participar como voluntário da pesquisa intitulada Transtornos
Alimentares Anorexia e Bulimia, que refere-se a um projeto de Mestrado em
Psicologia Clínica, o qual pertence ao curso de s-graduação stricto senso da Pontífica
Universidade Católica PUC SP. Os objetivos deste estudo são estudar as dinâmicas
familiares de meninas/ mulheres acometidas pela patologia.
Seu nome não será utilizado em qualquer fase da pesquisa o que garante seu
anonimato. Gostaria de esclarecer que sua participação é voluntária e que poderá
recusar-se a participar ou retirar seu consentimento, ou ainda descontinuar sua
participação se assim, o preferir.
Desde agradeço sua atenção e participação e coloco-me à disposição para
maiores informações.
Em caso de dúvidas e outros esclarecimentos sobre esta pesquisa você poderá
entrar em contato com a responsável principal: Kelly Cristina Arrigatto Gonçalves
fone: (15) 9113.0061/ (15) 3234.6671/ (15) 3234.1731.
Sobre sua participação:
Estou ciente do motivo desta pesquisa, estando claro os termos pelos quais
participo.
Sorocaba, 25 de setembro de 2009.
_____________________________________
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