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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LUTAS E BRINCADEIRAS:
PROCESSOS EDUCATIVOS ENVOLVIDOS NA PRÁTICA DE LUTAR
Victor Lage
SÃO CARLOS
2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
LUTAS E BRINCADEIRAS:
PROCESSOS EDUCATIVOS ENVOLVIDOS NA PRÁTICA DE LUTAR
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação do Centro de
Educação e Ciências Humanas da
Universidade Federal de São Carlos, como
parte dos requisitos para a obtenção do título
de Mestre em Educação, sob orientação do
Prof. Dr. Luiz Gonçalves Junior.
SÃO CARLOS
2009
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Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária da UFSCar
L174lb
Lage, Victor.
Lutas e brincadeiras : processos educativos envolvidos na
prática de lutar / Victor Lage. -- São Carlos : UFSCar, 2009.
207 f.
Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São
Carlos, 2009.
1. Educação. 2. Processo educativo. 3. Luta. 4.
Motricidade humana. 5. Educação física. I. Título.
CDD: 370 (20
a
)
Dedico este trabalho aos meus pais e irmãos
que sempre me deram apoio e nunca me
faltaram.
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho é fruto de um longo processo, no qual fui com certeza
privilegiado ao conhecer algumas pessoas. Muitas delas são especiais, seria uma injustiça
deixar de citá-las... mas acredito numa gratidão que seja expressada muito além das poucas
letras que aqui ficam...
Agradeço...
Ao Sensei Kazuo, pelo carinho e atenção com que pacientemente vem
orientando-me todos esses anos, em todos os passos. A cada dia, sinto-me mais honrado por
tê-lo como Sensei, no significado profundo desta própria palavra, junto ao conceito de Giri,
poucas palavras que trazem uma dimensão da minha eterna gratidão.
Ao Professor Luiz, grandioso orientador e amigo, com o qual aprendo
constantemente não só sobre os estudos e pesquisas na universidade, mas sobre o verdadeiro
compromisso, postura e atitude, sendo um exemplo daquele que busca trabalhar
constantemente para uma educação realmente libertadora, sempre com humildade e
determinação.
A Profa Petronilha, por gentilmente avaliar este estudo e também receber-me
tantas vezes para suas orientações com imensa sabedoria.
Ao grande amigo Fábio Mizuno, pela imensa prestatividade e atenção ao
revisar este trabalho.
As Professoras do PPGE: Aída Victoria Garcia Montrone, Elenice Maria
Cammarosano Onofre, Ilza Zenker L. Joly, Maria Waldenez de Oliveira, Petronilha Beatriz
Gonçalves e Silva, Roseli Rodrigues de Mello e Profa. Convidada Sonia Stella Oliveira, pela
paciência e todas as contribuições durante esta pesquisa.
Aos meus companheiros assíduos do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em
Educação Física (NEFEF), juntamente com os quais pude vislumbrar de forma diferente as
várias possibilidades de se trabalhar as lutas. Em especial a Denise, Regiane Galante, Fábio
Mizuno, Matheus Oliveira (Tchos), Telma, Bianca, Cavalinho, Mário, Adam, Alesandro,
Clovis, Vanderlei, Vicente, Rica, Cae, Paulo, Tiago, Spina e Papito.
A todos os educadores e educadores da Estação Comunitária do Jardim
Gonzaga (ECO) e Centro Comunitário Bernadette Rossi (Pacaembu), pela carinhosa recepção
e por permitir a elaboração deste trabalho. Aproveito a oportunidade para agradecer de
coração à educadora Maria Aparecida Maia, pois sem sua ajuda este trabalho não teria
ocorrido.
Ao educador voluntário na ECO, Prof. Matheus (Tchos), por permitir minha
participação como voluntário em seu projeto, bem como a todos e todas que participam do
mesmo.
A todos os participantes da oficina e toda comunidade do Jardim Gonzaga, por
carinhosamente me acolherem e permitirem o desenvolvimento deste projeto, todos e todas
foram fundamentais para um aprendizado único em minha vida!
Aos educadores Adam, Mauro, Celso, Sebá, Jeika e Fabiano por ministrarem as
vivências aos participantes da oficina de lutas, vocês foram fundamentais!
A Prefeitura Municipal (PMSC), Secretaria Municipal de Esportes e Lazer
(SMEL) e Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social (SMCAS) de São Carlos,
por viabilizarem e apoiarem o transporte utilizado durantes as visitas nas academias e dojos.
A Coordenação (CCEF) do Curso de Educação Física da Universidade Federal
de São Carlos pelo apoio, principalmente na figura de uma pessoa incrível: Maria do Céu de
Andrade.
Aos amigos e companheiros Ivanildo Silva, Antonio Joaquin (Bissau) e Ariadni
Garcia do Departamento de Esportes (DeEsp/SAC/UFSCar), pois acreditaram em meu
potencial e confiaram nos meus trabalhos.
A minha família araraquarense: Sheila, Jesus, Lívia e Irmão Eduardo, por
serem pessoas tão carinhosas e acolhedoras! Vocês são especiais!
Ao Sensei Celso Akira e toda Areikan - Karatê-Do Shotokan, por abrirem as
portas do Dojo, permitindo-me conviver e aprender muito com todos e todas desta grande
Família do Karatê-Do.
Aos karatecas e amigos dos grupos: Shittei (Bauru), Zanshin (Pederneiras),
UKS (Bariri), Shobukan (São José do Rio Preto, José Bonifácio, Mirassol e Andradina),
Arrigone Dojo (Rio de Janeiro), Kobukan (Rio de Janeiro), Lembukan (São Paulo), Toshio
(São Paulo), Rh Fitness (Pirajuí) e Areikan (Araraquara e Ibitinga) pelo companheirismo nos
treinamentos.
Torna-se inexplicável em palavras os meus sentimentos de gratidão pelos meus
pais e irmãos, alicerce de tudo que sou.
Ao CAPES pelo apoio para concretização deste estudo.
Enfim, agradeço a todos e todas com que tive contato no trilhar desta arte do
Karatê-Do e das lutas. Saibam que tenho por todos e todas um sentimento muito forte de
gratidão, pois, decerto, o que sou e faço hoje, e isto inclui a presente pesquisa, é resultado da
inter-relação e convivência com vocês.
RESUMO
Em 2006, participando de alguns encontros com moradores e crianças, conhecendo e
aproximando-me da comunidade no projeto “Vivências em Atividades Diversificadas em
Lazer”, desenvolvido na Estação Comunitária do Jardim Gonzaga (ECO), no município de
São Carlos, inseri-me em 2007 no grupo e, ao observar os gestos e presença dos movimentos
relacionados às lutas, desenvolvemos um estudo com o objetivo buscar uma compreensão dos
processos educativos envolvidos na prática das lutas, em vivências promovidas pelo
pesquisador junto à população frequentadora. Para a investigação destes processos educativos,
após todos os encontros, realizaram-se os registros em diários de campo, analisados com
inspiração na fenomenologia existencial, seguidos das fases: Identificação das Unidades de
Significado, Redução Fenomenológica, Organização das Categorias, possibilitando assim a
Construção dos Resultados, na qual se formaram as seguintes categorias: a)
Aprendendo com o
Outro (os educandos
discutiram e ensinaram suas experiências durante as atividades da oficina,
no contato com lutas de diferentes culturas - indígena, africana, oriental, brasileira - e com
seus praticantes; aprenderam sobre o zelo, a limpeza do dojo e respeito ao outro, bem como o
diálogo entre as diferentes lutas e culturas, o que nos permitiu re-conhecer melhor a nossa
própria, possibilitando-nos o aprendizado do significado de usos, costumes, tradições, respeito
e valorização ao invés do preconceito e discriminação; b) Proximidade (as situações de
empatia, o respeito aos saberes de experiência feitos, a afetividade, a proximidade entre
educador-educando, o caminhar de mãos dadas, o compartilhar do alimento percebido
durantes os encontros); c) Resolvendo os Conflitos (nas resolução dos conflitos, a intervenção
em busca do diálogo ao invés da retaliação; o combinar as “regras”nas atividades e a
motivação para participarem, expressarem-se e construírem com o grupo); d) Lutando pela
Vida (percebeu-se a importância da inserção, compromisso e convívio do pesquisador com o
grupo para perceber, sentir e apreender o seu “mundo-vida” e suas dificuldades,
compreendendo e respeitando a si mesmo e ao outro, seus saberes e experiências para persistir
e não esmorecer diante das adversidades colocadas pela vida). Consideramos ainda que, a
partir das vivências em lutas com aproximação embasada na pedagogia dialógica,
identificamos processos educativos envolvidos/decorrentes que revelaram a importância da
proximidade entre o educador/a-educando/a, o sentir/perceber/apreender a diversidade cultural
pela vivência em grupo, respeitando a si mesmo e ao outro, seus saberes e experiências, e
reconhecer o valor de ser persistente e de não esmorecer diante das adversidades colocadas
pela vida.
Palavras-chave: Processos Educativos; Lutas; Motricidade Humana; Educação Física.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – A brincadeira “quilombo” na vivência em capoeira............................................. 55
Figura 2 – Participantes da oficina compartilhando sua experiência no Karatê com o grupo de
Jiu Jitsu................................................................................................................................... 55
Figura 3 - A reverência durante a prática do Karatê, em vivência junto ao grupo de Araraquara
com o educador Celso ........................................................................................................... 57
Figura 4: A vivência do Huka-Huka entre o educador Jeika Kalapalo e os participantes da
oficina .................................................................................................................................... 58
Figura 5: A educadora Maria e participante lutando, na vivência junto ao grupo de Judô.... 59
Figura 6: Participante da oficina e o educador Jeika Kalapalo durante a vivência dos Jogos
Indígenas e o do Huka-Huka na ECO.................................................................................... 60
Figura 7: Participantes da oficina com o educador Fabiano Maranhão na brincadeira chamada
“Emusi”, durante a vivência dos Jogos Indígenas e o Huka-Huka na ECO
................................................................................................................................................ 62
Figura 8 - Participantes da oficina durante o lanche após a vivência em Jiu
Jitsu........................................................................................................................................ 64
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12
DA PRÁTICA SOCIAL DE BRINCAR E DE LUTAR ..................................................... 18
AS LUTAS NO CONTEXTO DA MOTRICIDADE HUMANA ...................................... 35
TRAJETÓRIA METODOLÓGICA .................................................................................... 46
CONSTRUÇÃO DOS RESULTADOS .............................................................................. 52
CONSIDERAÇÕES ............................................................................................................ 66
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 78
APÊNDICE 1 ..................................................................................................................... 84
APÊNDICE 2 ..................................................................................................................... 122
APÊNDICE 3 ..................................................................................................................... 190
APÊNDICE 4 .................................................................................................................... 196
APÊNDICE 5 .................................................................................................................... 202
ANEXOS 1 ......................................................................................................................... 203
ANEXOS 2 ......................................................................................................................... 204
ANEXOS 3 ......................................................................................................................... 205
ANEXOS 4 ......................................................................................................................... 207
12
INTRODUÇÃO
Desde 2003, ao ingressar na universidade no curso de Educação Física
(EF/UFSCar), venho realizando algumas leituras relacionadas à educação escolar e não
escolar, porém, muitas delas não contemplavam a perspectiva do ser humano discutida nos
grupos de estudos (Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física - NEFEF) bem
como posteriormente nas disciplinas de pós-graduação (Metodologia de Ensino, Linha
Práticas Sociais e Processos Educativos), oferecidas pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGE), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
1
.
Até então, muitas dessas leituras estavam pautadas num olhar biologicista,
higienista, fragmentário, no qual o ser humano é entendido frequentemente como um sistema
fisiológico num encadeamento de funções e relações bioquímicas, ou então numa perspectiva
mecanicista e comportamental, em que ele se encontra imerso em relações de causa-efeito ou
estímulo-resposta determináveis e muitas vezes universalizantes, desconsiderando nossa
integridade (sendo-com-os-outros-no-mundo que está sendo), para não dizer, negando nossa
humanidade.
A partir daí, não satisfeito com essas abordagens e alimentado por uma
indignação com o panorama educacional e social brasileiro, fui procurando aprofundar-me
em leituras e discussões que des-construíssem e re-construíssem outros referenciais para o
ser humano e sociedade.
Nessas leituras, pude perceber o quanto estava impregnado daqueles conceitos
e paradigmas de que então discordava, sem compreender sua profundidade nem correlações.
Na oportunidade fui desenraizando-me e, enraizando-me, des-contruindo-me e re-
construindo-me e ao mesmo tempo, indignando-me ainda mais comigo e com os problemas
sociais, políticos e econômicos.
Em outras palavras, pude refletir melhor sobre nosso passado, a respeito do
qual Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e colaboradores (2007) afirmam:
não podemos desprezar e o entendimento de que produzir conhecimentos na
perspectiva da América Latina exige nos libertarmos de referências dogmáticas,
1
Explicito que, na redação desta introdução e demais tópicos deste trabalho, em algumas ocasiões, utilizo a
primeira pessoa do singular e, em outras, a primeira pessoa do plural, decorrente da fidedignidade aos muitos
momentos compartilhados com outras pessoas inseridas no projeto.
13
construídas a partir de experiências alheias a nossos valores e culturas. Exige que
assumamos com coragem, apesar do sofrimento que cause, nossa condição de
colonizados, oprimidos que nunca perderam sua humanidade. (...), que a
sobrevivência de nossas culturas, modos de ser e viver evidenciam nossa
humanidade, contrariamente ao que apregoaram e apregoam os colonizadores que
nos “inventaram” sem alma, inteligência, valores (p.07).
Encontrava-me encharcado de um passado com raízes eurocêntricas,
machistas e/ou sexistas, impedindo-me de avançar na percepção e compreensão de
fenômenos sociais nos quais estou inserido.
Iniciei-me então no árduo, contínuo e permanente processo de des-construção de
minhas raízes históricas, muito discutido por Enrique Dussel (s/d; 1977; 1984; 1998; 2005),
procurando negar a visão eurocêntrica, que nega o índio, o negro, a mulher, numa história
mundial preconceituosa e mítica, a qual impede o outro de ser ou o mito da modernidade,
tentando contribuir para um novo olhar sobre minhas raízes e identidade latino-americanas.
E foi a partir do debates e discussões do NEFEF, bem como de minhas
experiências anteriores em projetos (acadêmicos ou não), que fui refletindo sobre minha
trajetória educativa até a universidade, os/as educadores/as que conheci, buscando ampliar,
minhas concepções sobre educação e formação do ser humano, procurando visualizar quais
eram construídas não sobre, mas entre e com as pessoas.
Essas experiências educativas anteriores iniciaram-se nos treinos, cursos e
competições nos grupos de Karatê-Do que frequentava em várias cidades do interior de São
Paulo, tais como Pirajuí, Bauru, São José do Rio Preto, Araraquara, São Carlos e em outros
estados do Brasil. Outras reflexões ocorreram sobre as conversas nos intervalos de aulas da
universidade, no restaurante universitário ou nos finais de aula do idioma japonês, que
cursava visando me aproximar da cultura oriental relacionada ao Karatê-Do.
Durante as reuniões do NEFEF, em 2005, discussões e temas relacionados a
projetos desenvolvidos no Jardim Gonzaga (bairro periférico e economicamente carente de
São Carlos) foram abordados, gerando oportunidades das quais participei em muitos
encontros no próprio local (mais especificamente na Estação Comunitária - ECO), onde
auxiliava os/as educadores/as do projeto “Vivências em Atividades Diversificadas de Lazer”.
Segundo Silmara Elena Alves de Campos e colaboradores (2003), apesar de
considerada como cidade polo de alta tecnologia, São Carlos também possui bolsões de
pobreza, entre eles, o Jardim Gonzaga. Área fronteiriça do perímetro urbano da cidade e
14
detentora de altos índices de vulnerabilidade social (pobreza, violência, desemprego, drogas
e baixa escolaridade) da cidade. O local começou a ser ocupado no período entre 1977 e
1979. Considerada “zona crítica”, de acordo com o perfil socio-econômico, os moradores do
bairro são bastante estigmatizados fora daí.
O bairro passou por diversas transformações em sua infraestrutura e
reestruturação das casas, com a edificação de dois Conjuntos Habitacionais e da Estação
Comunitária (ECO) – que possui uma quadra poliesportiva coberta, um minicampo de
futebol, uma sala de projeção, uma área de convivência, um posto de saúde da família e um
parquinho (SÃO CARLOS, 2002).
A Estação Comunitária (ECO) do Jardim Gonzaga é um local destinado à
organização de diversos projetos sociais, educacionais e esportivos, dentre eles, o projeto no
qual me inseri: “Vivências em Atividades Diversificadas de Lazer” que conta com a
participação de um educador voluntário e um estagiário do curso de Licenciatura em
Educação Física da UFSCar.
Participando desses encontros com moradores e crianças, pude conhecer cada
vez mais sobre o bairro e suas particularidades, e em especial sobre as atividades
desenvolvidas na ECO. As discussões junto aos/as educadores/as (membros do NEFEF e
também do PPGE) e vivências, aproximaram-me do grupo, levando-me a conhecer
pessoalmente a comunidade e os bairros vizinhos, sem nenhuma pretensão ou “oportunismo”
acadêmico, como nos alerta Silva e colaboradores (2007), colocado inicialmente nas
pesquisas não para gerar um clima de confiança e empatia necessário à coleta de dados, mas,
sim, como o cerne do “fazer” da pesquisa, explicitado na metodologia, experimentado,
avaliado. Ou, como destacam Maria Waldenez de Oliveira e Eduardo Navarro Stotz (2004):
Conviver é estar junto, olhar nos olhos, conversar frente à frente [...] é a arte de se
relacionar, dá intensidade à relação, sabor ao fazer e gera afetividade e saber [...]
Conviver se aprende convivendo e para essa convivência há algumas moedas:
simpatia, confiança, humildade, sensibilidade, respeito, flexibilidade em relação
aos tempos (p.6-15).
Nas atividades e noutros momentos do projeto, observava uma corporalidade
muito marcante, desde os gestos de afeto entre os/as participantes e educadores/as, até
mesmo os constantes conflitos entre as crianças. Muitas vezes, eslas brigavam efetivamente
15
entre si, outras vezes apenas ameaçavam. Outra característica interessante observada foi a
grande presença dos movimentos relacionados às lutas, seja nas brincadeiras de roda de
Capoeira (muito presente no bairro), seja simplesmente na brincadeira de “lutinha”, mais
presente entre os meninos.
Em 2006, desenvolvia monografia de conclusão de curso Licenciatura em
Educação Física, envolvendo a prática do Karatê-Do durante as aulas deste componente
curricular na escola, em uma unidade pública estadual de ensino fundamental da região
central da cidade de São Carlos. Nesse trabalho, investiguei os processos educativos
envolvidos em aulas com abordagem dialógica dessa luta. Encontrava-me, assim, imerso no
estudo das lutas, mais especificamente do Karatê-Do, e na pedagogia freireana (LAGE,
2006).
Esta imersão proporcionou o amadurecimento de muitas interpretações sobre
a prática não só do Karatê-Do, mas do próprio sentido das lutas para minha vida.
Nesse trajeto pude perceber as lutas não só como um conjunto de técnicas
relacionadas ao combate, mas também como aprendizado da disciplina e responsabilidade
com que procurei organizar e cumprir meus compromissos; da postura como encarava os
desafios no trabalho e estudo; da humildade traduzida em cada gesto dos Senseis que
conheci; do entendimento da origem de distintas lutas com diferentes povos para a conquista
de liberdade e direitos; em suma, do sentido das lutas para além das técnicas.
A partir dessas experiências, propus ao Matheus, educador voluntário do
projeto “Vivências em Atividades Diversificadas de Lazer” e também aluno no
PPGE/UFSCar, que realizássemos uma vivência com o Karatê-Do num dos encontros com
uma das turmas do projeto. Ele concordou sem objeções e discutimos a proposta com nosso
orientador e coordenador do citado projeto, professor Luiz, que apoiou a ideia e autorizou-
nos a implementá-la, com a condição da aprovação dos participantes.
Autorizados pelos responsáveis e participantes, realizamos o encontro e as
atividades com o Karatê-Do, que apresentaram boa aceitabilidade pelas crianças, familiares e
coordenação da ECO.
Motivado por aquilo que Paulo Freire (1996) chama de curiosidade
acadêmico-científica e pelas facilidades para inserir-me e investigar a prática social da
brincadeira de lutar ali observada, decidi discutir a possibilidade de desenvolver um estudo
16
envolvendo a prática das lutas junto aos frequentadores da ECO, visto que possuía certa
aceitabilidade pelo grupo e seus/suas educadores/as.
Ao participar de reuniões entre os educadores/as, funcionários/as e moradores
realizadas mensal ou bimestralmente, nas quais se discutiam as dificuldades e os avanços nas
atividades ali desenvolvidas, observei também a disponibilidade para a apresentação de
novos projetos e oficinas na instituição, algo comum no local e que me incentivou a trabalhar
nessa ideia.
Assim, em 2006, devido às leituras realizadas, às discussões nos grupos de
estudo e congressos, ao fato de que a temática da monografia elaborada para a conclusão do
curso de Educação Física ter gerado indagações relacionadas à educação (LAGE, 2006) e ao
próprio sonho em seguir a carreira acadêmica, resolvi então elaborar um subprojeto para
concorrer ao processo seletivo do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) na área
de Metodologia de Ensino na linha Práticas Sociais e Processos Educativos, com o objetivo
de investigar os processos educativos envolvidos na prática social de lutar no contexto do
brincar das crianças da Estação Comunitária (ECO), localizada no Jardim Gonzaga, na
cidade de São Carlos.
O Karatê-Do não era uma luta presente no bairro; no entanto, nas observações
constatei que seus frequentadores possuíam a experiência das lutas e a vivência cultural
noutras práticas como a Capoeira ou mesmo a própria brincadeira de lutar.
Logo, partindo dessas observações, propôs-se a prática do treino das lutas,
com características metodológicas dialógicas, algo incomum no ensino e prática de algumas
delas, geralmente diretivas e com aspectos militares ou voltadaos ao esporte de alto
rendimento, discutindo-se a cultura corporal envolvida nestas lutas e procurando investigar
os processos educativos que ali se dariam.
A questão de pesquisa que suleou
2
este trabalho foi: quais os processos
educativos envolvidos na prática social das lutas em vivências promovidas pelo pesquisador
junto à população frequentadora da ECO?
2
Paulo Freire em seu livro Pedagogia da Esperança (1992) propõe o uso da expressão “sulear” ao invés da
corriqueira expressão “nortear” decorrente de que a última alude ao hemisfério norte, ideologicamente
apresentado como superior ao hemisfério sul, mais que isso, propõe que tenhamos como referência nosso
hemisfério e nossa cultura.
17
Apresentado o percurso percorrido pelo pesquisador até este projeto,
situaremos o leitor nos próximos capítulos acerca do referencial teórico que fundamenta
nossa compreensão de prática social e processo educativo nesta investigação.
No capítulo seguinte, discutiremos as lutas no contexto da Motricidade
Humana e suas relações com esta pesquisa.
Em seguida, apresentaremos a trajetória metodológica percorrida, a
intervenção junto a comunidade, os respectivos procedimento para confecção dos diários de
campo, suas análises e a construção dos resultados.
Nas Considerações apresentaremos os processos educativos que se deram na
prática das lutas desta pesquisa, a partir das descrições nos diários de campo e de reflexões
feitas pelo pesquisador.
Em apêndice são colocados, na íntegra, os diários de campo, os planos das
aulas por nós desenvolvidos, um exemplar do “Diário do Karatê”, distribuído aos
participantes da intervenção, a lista de presença das crianças durante a oficina, o modelo do
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido entregue aos participantes e seus responsáveis,
um exemplar de jornal construído junto com os participantes do projeto “Vivências em
Atividades Diversificadas em Lazer”, e, por último, o modelo do Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido entregue aos educadores convidados.
18
DA PRÁTICA SOCIAL DE BRINCAR E DE LUTAR
Nas leituras, durante os debates da disciplina, num exercício de olhar,
observar, perscrutar constante, mais criterioso e atento, diferentes compreensões me foram
sendo somadas, permitindo enxergar pontos de vista distintos do próprio significado de
prática social, que até então tinha.
Outro aspecto fundamental foram os relatos dos projetos e pesquisas
realizados pelas professoras e pelo professor da disciplina
3
, junto a grupos de: hip-hop,
trabalhadoras do sexo, aleitamento materno, educação musical, africanidades, lazer, dentre
outros, sensibilizando meu olhar acerca do significado do estudo da prática social que
investigava.
Significado esse que compreende as práticas sociais como sendo construídas
nas relações que se estabelecem entre pessoas, pessoas e comunidades nas quais se inserem,
pessoas e grupos, grupos entre si, grupos e sociedade mais ampla, num contexto histórico de
nação e, notadamente em nossos dias, de relações entre nações com diversos objetivos como:
repassar conhecimentos, valores, tradições; suprir necessidades de sobrevivência, de
manutenção material e simbólica; controlar e expandir a participação política; propor e/ou
executar transformações na estrutura social, nas formas de racionalidade, de pensar e de agir
ou articular-se para mantê-la; garantir direitos sociais, culturais, econômicos, políticos, civis;
corrigir distorções e injustiças sociais (SILVA e col., 2007, p.9), dentre muitos outros
objetivos que, por meio de outros estudos e pesquisas, poderão ser apontados em outras
práticas que venha ser investigadas.
Neste entendimento de prática social, encontramos a ênfase nas relações
estabelecidas entre as pessoas, podendo ocorrer em múltiplos lugares e situações, como por
exemplo, nas conversas em reuniões de bares, nos intervalos escolares, numa caminhada com
amigos ou mesmo durante as compras numa feira.
Se as relações estabelecidas são as práticas sociais, para Fábio Ricardo
Mizuno Lemos (2007), a decorrência dessa convivência, que versa sobre um determinado
3
Aída Victoria Garcia Montrone, Elenice Maria Cammarosano Onofre, Ilza Zenker L. Joly, Luiz Gonçalves
Junior, Maria Waldenez de Oliveira, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, Roseli Rodrigues de Mello e Profa.
Convidada Sonia Stella Oliveira.
19
assunto, contém os processos educativos.
Exemplos desses processos educativos podem ser observados em estudos
realizados pela própria linha de pesquisa
4
sobre a prática social do lazer no próprio Jardim
Gonzaga, desenvolvidos com crianças e adolescentes por Luiz Gonçalves Junior e Matheus
Oliveira Santos (2006), no âmbito de projeto de extensão universitária. O trabalho mostra
processos educativos que se manifestam na atenção dos mais velhos para com os mais novos
durante os jogos, as brincadeiras e o lanche. Neste mesmo estudo, também salientam o
convívio entre meninos e meninas, evidenciando relações de gênero no desenrolar das
atividades. Noutros momentos, por exemplo, havia algumas discussões, o que não
significava desentendimento duradouro; ao contrário, possibilitava negociação em busca de
soluções. Por fim, o estudo destaca que tanto os educadores/pesquisadores como as crianças
e jovens educaram-se ao ensinar e aprender jogos e brincadeiras. Educaram-se porque
tiveram que con-viver, e isto os levou ao respeito mútuo das peculiaridades de gênero, de
idade, de raça/etnia, de condição social, de escolaridade, de situação profissional, de cultura.
Educaram-se em reciprocidade, em experiências concretas, em vivências significativas.
Ainda sobre práticas sociais próprias de grupos populares, é preciso citar
exemplos de segmentos da sociedade marginalizados ou desprezados, tal como o movimento
Hip-Hop; ali se ensinam e se aprendem valores, posturas para se agir na sociedade e se
formulam conhecimentos. Nesse sentido, Cristiano Tierno Siqueira (2006) investigou
processos educativos junto a jovens do movimento Hip Hop de São Carlos, e observou que,
entre danças e cantos, aprende-se a ser comunidade, para o que são indispensáveis o respeito,
o amor, a responsabilidade, o trabalho coletivo. Esses aprendizados, construídos na
convivência com os mais experientes, nas ruas, palco para as ações e fonte de inspiração dos
“manos” e “manas”, resultam em acertos e erros, em coisas boas e ruins, o que é revelado
nas letras das músicas. Nesse contexto, conforme Cristiano Tierno Siqueira e Maria
Waldenez de Oliveira (2004), evidenciou-se que a organização e implementação das ações
do Hip Hop, são um processo educativo crítico e criativo que se contrapõe aos valores de
uma sociedade individualista e competitiva, como aquela em que vivemos.
4
Linha de Pesquisa Práticas Sociais e Processos Educativos, vinculada à área de Processos de Ensino e de
Aprendizagem do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar.
20
Os sujeitos que participam de diversas práticas interconectam o aprendido em
uma com o que estão aprendendo em outra, ou seja, o aprendido em casa, na rua, na quadra
comunitária do bairro, nos bares, no posto de saúde, em todos os espaços por onde cada um
transita, serve como ponto de apoio e referência para novas aprendizagens, inclusive aquelas
que a escola visa proporcionar. Porém, tais experiências e contextos presentes nos escolares e
nos universitários, nem sempre são identificados pela instituição e, no caso de sê-lo, não são
reconhecidos como academicamente qualificados (SILVA e col., 2007).
Desta forma, torna-se compreensível que as aprendizagens não estão restritas
ao contexto escolar, pois, segundo Freire (2005), o homem e a mulher são seres histórico-
sociais, num permanente movimento de busca, tendo consciência de si e do mundo como
inacabados e inconclusos. Considera-os como seres condicionados, mas não determinados; e
que conscientes do inacabamento, podem ir além dele (p.53).
Na conscientização de um ser humano, que não é apenas objeto da história,
mas também seu sujeito, Freire aborda o processo do conhecimento, entendendo que na
inconclusão dos homens e das mulheres e na consciência de que dela têm é que se encontram
as raízes da educação
Daí que seja a educação um que-fazer permanente. Permanente, na razão da
inconclusão dos homens e do devenir da realidade. Desta maneira, a educação se
re-faz constantemente na práxis. Para ser tem que estar sendo. (FREIRE, 2006,
p.83-84).
Segundo Lemos, (2007) o processo de conhecimento implica uma busca
permanente, mas também curiosidade pela compreensão ou inteligência do objeto. Contudo,
uma curiosidade que parte da curiosidade ingênua, que, tornando-se mais e mais
metodicamente rigorosa, transita para a epistemológica.
Na verdade, a curiosidade ingênua que, “desarmada”, está associada ao saber do
senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de
forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna
curiosidade epistemológica. Muda de qualidade e não de essência. (FREIRE, 2005,
p.31).
É o respeito pelo saber de experiência feito resultante da curiosidade ingênua,
seguido também da consciência de sua necessária superação.
Saberes de experiência feitos são entendidos como os saberes que os/as
21
educandos/as trazem consigo, saberes socialmente construídos na prática comunitária, nas
suas experiências anteriores à vida escolar ou não escolar. Segundo Freire (1996), é
necessário que os educadores/as não só respeitem esses saberes dos/as educandos/as, mas
que discutam com eles(as) a razão de ser de alguns desses saberes em relação ao o ensino dos
conteúdos.
Concordando com Freire (1994), não se trata, então, apenas do conhecimento
escolar, construído na escola; trata-se, também, de um saber popular que os/as educandos/as:
trazem consigo de compreensão do mundo, nas mais variadas dimensões de sua
prática na prática social de que fazem parte. Sua fala, sua forma de contar, de
calcular, seus saberes em torno do chamado outro mundo, sua religiosidade, seus
saberes em torno da saúde, do corpo, da sexualidade, da vida, da morte (FREIRE,
1994, p.85-86).
O ensinar e aprender assim não estão restritos aos muros escolares nem a seus
conteúdos, pois para Freire (2005)
Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser possível
ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências
informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos pátios
dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de
pessoal docente se cruzam cheios de significação (p.44).
Reconhecendo o potencial educacional dos processos educativos que se dão
nas múltiplas práticas sociais, como as conversas durante uma roda de bar, num jogo de
futebol; ao conviver com a comunidade do Jardim Gonzaga e ao observar a prática social do
lazer neste bairro, iniciei minha inserção para melhor compreendê-los e investigá-los.
Contudo, nem sempre essa inserção nos grupos se dá de forma adequada, ou
mesmo a postura do pesquisador perante o saber de experiência feito do grupo pesquisado se
faz com a devida cautela.
Segundo Victor Vicent Valla (1996), é necessária uma mudança de ótica com
relação aos trabalhos que são desenvolvidos com as classes populares.
Segundo o mesmo autor, diversas dificuldades e equívocos ocorrem nas
pesquisas que envolvem populações marginalizadas, como por exemplo, a nossa dificuldade
de compreender que o que os membros das classes populares estão nos comunicando está
antes relacionado com nossa:
22
dificuldade de aceitar que as pessoas “humildes, pobres, moradoras de periferia”
são capazes de produzir conhecimento, são capazes de organizar e sistematizar
pensamentos sobre a sociedade e, dessa forma, fazer uma interpretação que
contribui para a avaliação que nós fazemos da mesma sociedade (p.178).
Sendo assim,
a própria forma de relatar uma experiência indica a concepção de mundo de quem
faz o relato. Neste sentido, é possível afirmar que os profissionais e a população
não vivem a mesma experiência da mesma maneira(...). Se a referência para o saber
é o profissional tal postura dificulta a chegada ao saber do outro. Os saberes da
população são elaborados sobre a experiência concreta, a partir das suas vivências,
que são vividas de uma forma distinta daquela vivida pelo profissional. Nós
oferecemos nosso saber porque pensamos que o da população é insuficiente e, por
esta razão, inferior, quando, na realidade, é apenas diferente (VALLA, 1996,
p.179).
Entendendo assim que os processos educativos são inerentes e decorrentes de
práticas sociais e se efetivam, “independentemente de grupo social ou étnico-racial e fazem
parte, historicamente, dos processos de socialização, de formação para a vida presente em
todas as sociedades” . E, “Ao re-conhecer os processos educativos em práticas sociais,
voltamos um olhar crítico a um estabelecido monopólio pedagógico de um sistema, que se
pretende único meio pedagógico para realizar sua finalidade: educar” (SILVA e col., 2007,
p.15-17). Somos, então, levados a re-conhecer também como necessária a re-construção de
nossos referenciais, muitas vezes eurocêntricos e hegemônicos.
Sobre essa re-construção de nossos referenciais latino-americanos, Antônio
Carlos Wolkmer (2007), fortalecido pelos textos de Enrique Dussel (1984) e Gustavo
Gutièrrez (1976), salienta que esse projeto deve ser pautado
pela destruição da dominação interna e externa, bem como, pelo fortalecimento de
sua verdadeira autonomia cultural, prescindindo de modelos alienígenas, ideais e
colonizadores. Trata-se de buscar concepções e estratégias que, rompendo com a
cultura opressora, partam da resistência e dos valores oprimidos; dos excluídos que,
agora libertos de toda servidão, tornam-se agentes que assumam seu próprio
objetivo na história (...) não se trata de negar as formas teóricas de conhecimento
da tradição ocidental, tampouco do as conquistas inerentes às práticas
emancipadoras da modernidade, mas buscar construir um modo de vida assentado
em novos paradigmas de legitimidade e de racionalização. Daí o compromisso por
uma cultura libertadora, fundada em novos critérios e em outra lógica de
constituição, que revele, mais clara e radicalmente, nossa própria identidade
histórica, sociocultural e política (WOLKMER, 2007).
23
Ainda de acordo com o mesmo autor, trata-se de
operacionalizar uma formulação de alcance teórico que permita o profundo
questionamento e a desmontagem das formas hegemônicas de saber e de
representação social que têm mantido a cultura de dominação”, pois uma teoria ou
pensamento de perspectiva crítica “opera na busca de libertar o homem de sua
condição de alienado, de sua reconciliação com a natureza não-repressora e com o
processo histórico por ele moldado. A “crítica”, como saber e prática da libertação,
tem que demonstrar até que ponto os indivíduos estão coisificados e moldados
pelos determinismos históricos, mas que nem sempre estão cientes das inculcações
hegemônicas, das dissimulações opressoras e das falácias ilusórias do mundo
objetivo/real (WOLKMER, 2007).
Nesta busca, concordando ainda com Freire (2005), compreende-se o
conhecimento indo além dos conteúdos, em busca do “pensar certo”, que supera o ingênuo; é
um ato comunicante, de entendimento co-participado – “Só existe saber na invenção, na
reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem do mundo,
com o mundo e com os outros” (FREIRE, 2006, p.67). Um pensar antidogmático,
antisuperficial, um pensar crítico.
Desta forma, os processos educativos tanto podem advir de uma educação em
um contexto de uma cultura autêntica, bem como de uma educação em um contexto de uma
cultura alienada, algo que deve ser cuidadosamente investigado, que nos leva a discutir
também conceitos destacados por Freire (1996), como: a “aderência do opressor ao
oprimido”,
a transformação em “estar sob” o opressor (relação de “dependência”, numa
manifestação “necrófila” que pode ser aproveitada apenas pelo opressor), a “falsa
solidariedade/generosidade”, a distorção do “ser” em “ter” (estimulada pela sociedade do
consumo) e o entendimento de que a reflexão “verdadeira” (por meio de um diálogo crítico e
libertador feito “com” os oprimidos) leva à prática, à luta engajada, sem confundir “reflexão”
com “imobilismo”/”racionalismo” ou a “prática/ação” com “ativismo”.
Prosseguindo com os cuidados a serem tomados pelo pesquisador ou
pesquisadora durante as intervenções ou inserções junto aos grupos, destaca-se a perspectiva
das relações professor-aluno, as quais devem partir da “irrecusável prática de inteligir,
desafiar o educando/a com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua
compreensão do que vem sendo comunicado” (FREIRE, 1996, p.38) respeitando os saberes
de experiência feitos do/a educando/a, “reconhecer que os saberes são construídos
diferentemente, e quando da interação entre sujeitos, estes possam ser compartilhados, e
24
não hierarquizados” (OLIVEIRA e STOTZ, 2004).
Sobre as relações entre as pessoas, e mais especificamente entre educador/a e
educando/a, Dussel (s/d) discute o diálogo e o “ouvir” ao Outro
saber ouvir o discípulo é poder ser mestre; saber inclinar-se diante do novo; é ter o
próprio tema do discurso pedagógico (...) o autêntico mestre primeiro ouvirá a
palavra objetante, provocante, interpelante e até insolente daquele que quer ser
Outro. Somente o escuta com paciência, no amor-de-justiça, é a esperança do Outro
como libertado, na fé de sua palavra (p.193).
Esta postura deve estar presente não apenas na relação “mestre-discípulo”,
mas também “médico-enfermo”, “advogado-cliente”, “engenheiro-população”, “jornalista-
leitor', como alerta Dussel (s/d, p.194)
Um exemplo para esse caminho pode ser presenciado em minha inserção no
projeto do Jardim Gonzaga, quando observava e dialogava com os participantes durante o
projeto de extensão “Vivências em Atividades Diversificadas em Lazer”.
Há uma constante negociação entre os educadores/as e educandos/as deste
projeto de extensão, gerando um ambiente de participação contínua e ativa de grande parte
das crianças, intimamente ligado com a proposta freireana em que o diálogo é um falar
“com” e não um falar “sobre”, respeitando os saberes de experiência feitos e a autonomia
dos/as educandos/as.
Neste projeto, as crianças propõem, modificam, criam e discutem as
brincadeiras, atividades e cronogramas em vários momentos do encontro, e este diálogo é
visto pelos coordenadores como não pretendendo harmonizar, conciliar, combinar posições,
mas convocar cada um dos participantes a se expressar e a, juntos, construírem as atividades
(SILVA e col., 2007).
Uma constante interação nas atividades, juntamente com os diálogos e
propostas de todos, proporciona um ambiente fértil de processos educativos relacionados a
valores e questões cotidianas como competitividade, cooperação, solidariedade e respeito.
Outros processos educativos encontrados durante a leitura dos diários de
campo que confeccionei durante o ano de 2006 e primeiro semestre de 2007 estavam
relacionados às relações de gênero, quando nos jogos e brincadeiras, interagem meninos e
25
meninas, criando a possibilidade de discutir sobre a sexualidade e as diferenças num
ambiente não hierárquico ou machista/falocrático.
O cerne desta perspectiva, da qual buscamos compreender os possíveis
processos educativos que podem se dar, está na necessidade de se reconhecer a cultura
popular, com suas representações sociais e visões de mundo específicas, elaboradas segundo
lógicas e categorias próprias. Ao ignorá-las ou desqualificá-las, corre-se o risco de não
entendê-las em sua essência, pois as classes populares demonstram seus conhecimentos e
eles são importantes para que se tenha mais clareza da realidade. É necessário aceitar que o
conhecimento é produzido também pelas classes populares (VALLA, 1996, p.187).
Durante os encontros de que participei em 2007, um dos maiores aprendizados
se deu pelo con-vívio, no viver “com” os moradores” e “participantes” do projeto,
conversando com a comunidade, funcionários da Estação Comunitária, do Centro
Comunitário, professores, assistentes sociais, psicólogos e educadores/as destas unidades.
Este con-vívio contribuiu para valorizar cada vez mais a importância do
compromisso na inserção do pesquisador com o grupo no qual trabalhou, tendo contato com
o “mundo-vida” daqueles que são os colaboradores imprescindíveis (SILVA e col., 2007)
deste pesquisar.
Nessa experiência, pude entender mais claramente que questões muito
discutidas nos trabalhos com comunidades marginalizadas socialmente, como a fome, a
expressão verbal e corporal dos moradores, a sexualidade, o tráfico de drogas, a violência
policial e o próprio preconceito com o bairro são de uma intensidade e significados únicos
quando vivenciados pelo próprio pesquisador. Muitas vezes, as palavras são limitadas para
expressar aquilo que se viveu, tornando assim fundamental o “ir a coisa mesma”, como é
colocado pela fenomenologia.
Este “ir-a-coisa-mesma” como que interrogando constantemente aquilo que
queremos compreender, ou, como nos alerta José Saramago no filme Janela da Alma (2001):
para conhecer as coisas há que dar-lhes a volta toda”.
É na “con-vivência” com os sujeitos das pesquisa, “dando voltas” entorno
daquilo que se procura compreender, é que devemos ter a
sensibilidade para as dinâmicas da comunidade, sensibilidade para ver, sentir a
paisagem mas também enquanto desejo de entendê-la; um entendimento que vem
26
ao longo do tempo, na convivência [...] A sensibilidade ... é um processo de
aprendizagem. É na convivência que se constrói esse processo, esse desejo de
entender. E as coisas vão se explicando ao longo do tempo, na medida das
convivências. Sensibilidade aliada à simplicidade colocam a pessoa em sintonia
com a necessidade do outro e mais do que isso, muitas vezes colocam a sua própria
necessidade sob avaliação e/ou em compasso de espera (OLIVEIRA e STOTZ,
2004, p.8).
E é nesta mesma convivência que obtemos nossos “materiais” para estudo, e
nestes, segundo Silva e col. (2007), temos de ter cuidado com as
observações/diálogos/entrevistas,
pois não se tratam as pessoas, grupos, comunidades como simples objetos de
pesquisa, mas de seres humanos, ou seja sujeitos de pesquisa, havendo, portanto,
um encontro de consciências, fazendo-se necessário atentar para a coexistência do
eu-e-do-outro-ao-mundo em um exercício de intersubjetividade, ganhando sentido
o próprio social (p.24).
Nesse perscrutar do ambiente, para Silva e col. (2007), devemos procurar não
apenas evidências que nos levem de forma rápida aos possíveis “resultados” dos nossos
estudos, mas sim buscar compreender o caminhar e, nele, compreender-se, e assim, entender
os resultados dentro de processos humanos de construção histórica de mundo, permitindo a
descoberta de novos caminhos que tragam possibilidades de experienciar, refletir com vagar,
pois
Andar em frente nem sempre significa andar em linha reta. Em labirintos, andar em
frente pode significar, inclusive, andar para trás. Neste caminhar o pesquisador e a
pesquisadora poderão optar por traçar uma linha reta, onde o caminhar não permita
tracejar reentrâncias, aclives, declives, curvas; por colocar diante de si um
horizonte previsível, mesmo que distante, onde nada ou ninguém os tirará do andar
firme e reto. Nesse andar perde-se a riqueza do trajeto, do toque, das paradas para
refrescar-se, das conversas detidas, do perguntar-se e do perguntar, do silêncio após
as perguntas (p.20).
Este silêncio, segundo Jorge Larrosa Bondia (2002), tão imprescindível
contemporaneamente, “atropelado” pela falta de tempo, por uma velocidade acelerada,
reduzindo tudo a um estímulo fugaz e instantâneo, imediatamente substituído por outro
estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e efêmera, nos é dado
27
na forma de choque, do estímulo, da sensação pura, na forma da vivência
instantânea, pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são dados os
acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo, que caracteriza o mundo
moderno, impedem a conexão significativa entre acontecimentos. Impedem
também a memória, já que cada acontecimento é imediatamente substituído por
outro que igualmente nos excita por um momento, mas sem deixar qualquer
vestígio. O sujeito moderno não só está informado e opina, mas também é um
consumidor voraz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso impenitente,
eternamente insatisfeito. Quer estar permanentemente excitado e já se tornou
incapaz de silêncio.
Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o
agita, tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade e o que ela
provoca, a falta de silêncio e de memória, são também inimigas mortais da
experiência (p.23).
Sensei Kazuo Nagamine
5
, num dos seus escritos
6
sobre o tempo e o silêncio
deixados em seu dojo
7
, nos apresenta a seguinte mensagem:
A lentidão do tempo certo pertence ao ciclo da vida.
Mudar a forma pelo movimento transforma a ação.
Desde pó, antes da vibração que gera o som, propaga através dos tempos (trans) as
formas e a ação.
TransFormAção.
A persistência muda nos possibilita o silêncio interior, tão necessário ao espírito de
esforço.
Por isto o silêncio quase sempre produz. Mas, quando conseguimos apreendê-lo em
sua magnitude e, com a introspecção necessária, trazer o silêncio do infinito para o
nosso interior, experimentamos a percepção da plenitude.
Silêncio despercebido pela incompreensão da fala dos corpos e do mundo-
vida em que se está inserido, impedindo assim a inCORPOração de experiências únicas,
pois, como relata Ecléa Bosi (1994), "as coisas nos falam, sim, e por que exigir palavras de
uma união tão perfeita?" (p.442).
A esta experiência discutida por Larrosa Bondia (2002) torna-se
imprescindível, no pesquisar, uma busca pelos detalhes do dia a dia (SILVA e col., 2007),
aperfeiçoando nosso olhar junto à comunidade, pois:
5
Sensei Kazuo Nagamine reside em São José do Rio Preto (SP), sendo um dos principais difusores do Karatê
Shotokan no Brasil é Membro da Comissão Científica da ITKF (International Traditional Karate Federation),
CBKT (Confederação Brasileira de Karatê-Do Tradicional) e JKA (The Japan Karate Association), Medical
Judge da ITKF, Técnico da Seleção Brasileira JKA, Assessor Técnico Científico da FPKT (Federação Paulista
de Karatê-Do Tradicional);
6
Trata-se de parte da mensagem contida em um cartão entregue aos alunos no final do ano de 2005.
7
Do significa “caminho” e jo “local”, tratando-se do local para se aperfeiçoar os vários “caminhos”.
KISHIKAWA (2004). Na atualidade, porém, é comum o uso da expressão para designar simplesmente o local
onde ocorrem os treinamentos.
28
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um
gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm:
requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar,
demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a
vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir
os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar
aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e
espaço (LARROSA BONDIA, 2002, p.24).
Fundamental para esta experiência desejada nos estudos em práticas sociais e
processos educativos, é que este “ir-a-coisa-mesma” se dê na “experiência de corpo
encarnado”, do ser dotado de intencionalidade
8
, e que não há experiência vivida sem a
intersubjetividade que se dá no pano de fundo do mundo, já que o encontro de consciência e
mundo é a origem de ambos, ou, de acordo com Maurice Merleau-Ponty (1996):
a consciência projeta-se em um mundo físico e tem um corpo, assim como ela se
projeta em um mundo cultural e tem hábitos: porque ela só pode ser consciência
jogando com significações dadas no passado absoluto da natureza ou em seu
passado pessoal. (...) O movimento não é o pensamento de um movimento, e o
espaço corporal não é um espaço pensado ou representado. (...) Para que possamos
mover nosso corpo em direção a um objeto, primeiramente é preciso que o objeto
exista para ele (p.192-193).
A experiência vivida nos permite, segundo Silva e col. (2007), entender desde
dentro da prática social, onde o pesquisador põe-se e ex-põe-se, perguntando-se “que atitudes
e posturas exige de mim o viver a experiência?”, numa inserção que poderá permitir-se o
estranhamento, respeitar a cultura e o ponto de vista do outro, olhando, investigando
cautelosamente, sem destruir, num pesquisar que não desenrze nem a si nem ao outro
(BOSI, 1994).
O entendimento de práticas sociais adotado por parte da construção coletiva
de Silva e col. (2007) indicam-nas como
um lugar de experiências, onde estas se entrecortam, são construídas e
desconstruídas. Estando, pesquisador/a e pessoas envolvidas naquela prática,
postos como sujeitos de experiência, de conhecimento, de história, conviver é
viver, um viver que transita entre mundos e significados diferentes. Significações
8
Intencionalidade é, segundo Ernani Maria Fiori (1986, p4) “comportamento corpóreo-mundano e existencial,
no qual se constitui e reconstitui o mundo significado”.
29
que se cruzam e se complementam. A experiência, nas práticas sociais, inclusive na
de pesquisar, é uma tessitura de significados que não é tecida sozinha (p.22).
Em outras palavras, conviver com os sujeitos da pesquisa em seu mundo-vida,
envolvendo-se efetivamente com o grupo é fundamental para que a experiência desta prática
social possa ser compreendida nos seus múltiplos significados.
Entendo como importante a experiência efetiva no mundo-vida do
pesquisador, pois, segundo Larrosa Bondía (2002), na sociedade contemporânea “a
experiência é cada vez mais rara” (p.21), e o conhecimento não se dá sob a forma de
informação: tampouco aprender é “adquirir e processar informação”.
Para o mesmo autor, corroborando com a compreensão do significado da
experiência descrito acima, ela
é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que
se prova. (...) é aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao
nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está,
portanto, aberto à sua própria transformação (...) e é incapaz de experiência aquele
que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ‘ex-põe’. É incapaz
de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem
nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o
ameaça, a quem nada ocorre (p.25).
Assim, identificando-se a importância das experiências efetivas, sendo todo
em tudo que se faz, reconhecemos também que a verdadeira educação, segundo Ernani Maria
Fiori (1986, p.3), requer participação ativa neste processo de constituição do ser humano:
“Educar, pois, é conscientizar, e conscientizar equivale a buscar essa plenitude da condição
humana.”.
Participar, para Freire (2005), também requer uma observação criteriosa do
pesquisador, pois pode confundir-se com “ativismo” (ação pela ação, que minimiza a
reflexão, nega a práxis verdadeira e impossibilita o diálogo), “verbalismo” (quando a palavra
é esgotada de sua dimensão de ação, transformando a reflexão em “palavreria”) ou mesmo a
“falsa generosidade”, visto que “inserção crítica e ação já são a mesma coisa” (p.42).
Ainda, o autor, ao falar sobre a reflexão e ação autênticas, diz que a práxis “é
a reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a
superação da contradição opressor-oprimidos” (p.42).
E é nesta práxis que ao produzir-se e reproduzir-se neste movimento, o ser
30
humano constitui-se e assume sua existência. “Neste refazer-se consiste seu fazer-se e seu
fazer.” (FIORI, 1986, p.3).
Portanto, as práticas sociais, de acordo com Silva e col. (2007), podem se
constituir em ações de grupos e comunidades que visam à transformação de realidades que
identificam como injustas, discriminatórias, opressivas, podendo inclusive direcionar a
manutenção de iniqüidades; à renovação de critérios para dividir as pessoas, dentre muitas
outras, indicando inclusive práticas sociais que são opressoras, contribuindo para dividir as
pessoas em “mais” e em “menos” humanas, com mais e menos poder, muitas vezes sob
aparência de generosidade que encobre o desejo de subjugar, negar a humanidade de cada
pessoa.
Ao observarmos a constante proliferação de projetos governamentais e
instituições “camuflados” por essa generosidade, torna-se relevante destacar a emergência de
uma autoconsciência crítica dos povos da América Latina, descrita por Fiori (1986), sendo, para
isso, de vital importância uma reflexão comprometida com a práxis da libertação, que “nos
permita captar com lucidez o sentido último deste processo de conscientização. Só assim será
possível repor os termos dos problemas de uma educação autenticamente libertadora: força capaz
de ajudar a desmontar o sistema de dominação, e promessa de um homem novo, dominador do
mundo e libertador do homem”
(FIORI, 1986, p.3).
A significativa importância desse processo de libertação do ser humano, de tomar
sua existência em suas mãos no caminho da conscientização para libertação de uma “cultura
alienada e alienante” (FIORI, 1986, p.9), vai ao encontro de Freire (2005), quando discute a
libertação do homem:
“ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se
libertam em comunhão” (p.58),
sendo essa conscientização, não uma exigência prévia para a
luta pela libertação, mas a própria luta (FIORI, 1986, p.10).
Reconhece, assim, a importância do conviver com a comunidade, do diálogo
para uma educação realmente libertadora e da compreeno e investigação das práticas
sociais apresentadas, múltiplas e em diferentes contextos, ao inserir-me no projeto
“Vivências em Atividades Diversificadas em Lazer”, foi possível observar suas atividades, as
quais vão desde brincadeiras populares; jogos adaptados de vôlei, basquete e futebol;
contação de histórias; dramatização, pinturas e desenhos livres ou temáticos.
Durante essas atividades, em diversos momentos das brincadeiras, nos seus
intervalos, ou mesmo fora da Estação Comunitária, enquanto caminhava pelo bairro, percebi
31
que seus frequentadores possuíam a experiência das lutas e a vivência cultural noutras
práticas como a Capoeira, manifestados principalmente na brincadeira de lutar, mais
popularmente conhecida como “lutinha” (Diários de Campo II e IV - Apêndice I).
Também me surpreendia durante o período de inserção com novas
brincadeiras, como a “suruba”
9
(Diário de Campo I – Apêndice I), muito praticada pelos
moradores do bairro, que possui uma dinâmica muito parecida com a brincadeira conhecida
como “mãe da rua”. Confesso que estava predisposto a relacionar essa palavra a um sentido
erótico, e assim aprendi uma nova brincadeira e um novo significado para a palavra.
Segundo Nelson Marcellino Carvalho (2003), as brincadeiras são comumente
utilizadas por educadores/as no trabalho com crianças, e apresentam-se, assim como os jogos
e brinquedos, uma das formas de manifestação do lúdico, constituindo o lazer como espaço
privilegiado para acontecerem.
Contudo, nestas manifestações lúdicas, os métodos utilizados modificam-se de
acordo com a proposta dos/as educadores/as, gerando discussões na conceituação sobre o
lúdico e sua compreensão na contemporaneidade.
Tais discussões trazem também muitas perspectivas sobre o conceito de lazer,
que não aprofundaremos neste trabalho, considerando-o como um espaço privilegiado para o
lúdico, e nos ateremos apenas àquelas que despertaram nossa curiosidade como
pesquisadores: a brincadeira enquanto manifestação do lúdico num espaço de lazer.
São diversos os estudos, as questões, bem como as contradições que, segundo
José Alfredo Oliveira Debortoli (2004), envolvem a compreensão do brincar e da brincadeira
com concepções distintas, utilidades e sensibilidades divergentes.
Neste conjunto de concepções, encontramos uma corrente de pensadores que
tomam o brincar como fenômeno cultural, manifestando-se como dimensão simbólica,
constituindo inserção cultural, expressando-se como linguagem e como processo de
elaboração de significados e sentidos coletivos, contextualizados e enraizados no universo
social que o legitima (DEBORTOLI, 2004).
9
“O jogo se desenvolve em um espaço retangular, no qual se desenham três pares de quadrados alinhados,
separados por um corredor, com espaço de aproximadamente 1 metro entre eles. Em uma das extremidades
externas do espaço retangular se escreve céu e na outra suruba, tendo um grupo de jogadores, chamados de
surubas, que deve atravessar da extremidade do céu até a da suruba pulando de um para outro quadrado sem
deixar que o outro grupo de jogadores, chamados pegadores, os toquem e sem pisar fora dos quadrados”
(GONÇALVES JUNIOR e SANTOS, 2006, p.12).
32
Essa expressão como linguagem pode ser percebida, por exemplo, quando
crianças brincam de casinha ou de carrinho, interpretando papéis e realizando ações baseadas
em hábitos, costumes e valores experienciados em seus grupos familiares.
Para Debortoli (2004), sendo o brincar contextualizado, ele carrega marcas do
contemporâneo, pode representar uma sociedade, suas ideias e ideais de prazer,
individualidade, consumo e, nesse sentido, pode servir paradoxalmente não para a produção
e criação do mundo, mas como artefato de reprodução de estruturas que devem ser ensinadas
às crianças tanto no sentido técnico quanto moral, transformados em conhecimentos e padrão
de comportamento futuro.
Em outras palavras, as brincadeiras são, muitas vezes, contempladas a partir
de um paradigma utilitarista, com o intuito de ensinar, estimulando ou inibindo
comportamentos e condutas desejados em determinada sociedade, por exemplo, quando,
numa brincadeira, o/a educador/a incentiva entre os participantes o respeito e trabalho em
grupo ou simplesmente inibe uma atitude agressiva.
Porém, ao dialogar sobre o brincar considerando sua importância como
subsídio para outras aprendizagens e comportamentos futuros, e não por seus temas,
linguagens, tensões e suas relações específicas, Debortoli (2004) considera que muitas
atividades apresentadas por educadores/as adultos/as podem não ser consideradas
brincadeiras pelas crianças. Muitas vezes, ao escolherem suas próprias brincadeiras e jogos,
estas atividades podem ser interpretadas e taxadas como “não sérias”/”improdutivas” ou
“coisas de crianças”. Outro equívoco perpetuado é sua restrição a um único período da vida:
a infância.
Ao atribuir à brincadeira, como manifestação do lúdico, um status de
“seriedade”/“produtividade”, em primeiro lugar reforçamos a crença de que as pessoas de
outras faixas etárias, preocupadas com as coisas “sérias” da vida, não podem se entregar às
chamadas “atividades lúdicas”, que predomina um suposto caráter inútil-improdutivo e, em
segundo lugar, atrelamos o significado do vocábulo lúdico diretamente aos jogos,
brincadeiras e divertimentos das crianças, quando existe, sim, uma infinidade de
manifestações culturais construídas socialmente pela humanidade, as quais, segundo
Christianne Luce Gomes (2004) constituem patrimônio cultural e refletem os valores, regras,
tradições e costumes de determinado grupo social em diferentes contextos e épocas.
33
Para brincar, segundo Silvino Santin (2001), não precisamos de treinamento,
de instrução, de iniciação; quem brinca gosta de liberdade de sonhar e de inventar, o que
significa sentir, amar, viver e vibrar, e não executar tarefas; é uma experiência pessoal, não
se trata apenas de uma emoção, de um sentimento, um prazer, mas de um conjunto de valores
que são experimentados por aquele que brinca. Nela “não se excluem o esforço, o sacrifício,
a frustração, porque fazem parte da paisagem lúdica que é uma forma de viver” (p.57).
Sendo assim, não consideramos as práticas culturais como lúdicas em si, mas
a “interação do sujeito com a experiência vivida, que possibilita o desabrochar da
ludicidade” (GOMES, 2004, p.145), ou, em outras palavras, não se pode dizer que “há uma
atividade lúdica, pois não são as atividades, mas os valores vividos e realizados por aquele
que brinca que torna lúdica a ação” (SANTIN, 2001).
Partindo desta concepção de lúdico como experiência vivida, o lúdico pode
ser entendido como linguagem humana, podendo manifestar-se de diversas formas: oral,
escrita, gestual, visual, artística, dentre outras; e ocorrer em todos os momentos da vida: no
trabalho, lazer, escola, família, política, ciência etc. (GOMES, 2004).
A brincadeira apresenta imprecisões na sua definição, porém, neste estudo, a
compreendemos como possibilidade para o lúdico, o qual é um componente da cultura
historicamente situado e pode significar uma “experiência revolucionária” (GOMES, 2004,
p.144), pois permite ao ser humano não só consumir cultura, mas também criá-la e recriá-la,
vivenciando valores e papéis externos a ela, re-significar o próprio mundo, desconstruir e re-
construir a realidade (MARCELLINO, 2003).
Portanto, este consumo e (re)criação da cultura levantam discussões sobre
quais brincadeiras estão sendo contemplados nas escolas, centros comunitários, espaços de
lazer em geral (clubes, academias, etc.), na própria mídia (revistas, gibis, televisão, etc.)
dentre outros, e quais as concepções de ser humano e sociedade explícitos ou implícitos em
suas vivências, pois, seja nos bairros centralizados, nas praças, nos condomínios fechados,
nos quintais ou nas escolas, as brincadeiras ocorrem entre as mais diversas pessoas e faixas
etárias, as conversas entre si, revivendo brincadeiras antigas, populares, do bairro ou
comunidade, criando e recriando/inventando outras; combinando, discutindo e interpretando
a multiplicidade de oportunidades envolvidas nelas, tornando-as relevantes como prática
34
social a ser investigada, bem como as suas possíveis relações a outras manifestações
culturais: as lutas.
35
AS LUTAS NO CONTEXTO DA MOTRICIDADE HUMANA
Para Elenor Kunz (2004), o movimento humano, ainda hoje, tem sido
interpretado a partir das ciências naturais, ou seja, tem sido compreendido como um
fenômeno físico que pode ser reconhecido e esclarecido de forma simples e objetiva,
independente, inclusive, do próprio ser humano que o realiza, apresentando-se muitas vezes
como um estudo do deslocamento do corpo ou de partes deste em tempo e espaço
determinado, a capacidade do rendimento físico, a aprendizagem e a performance motora:
quantificando, comparando, padronizando e universalizando estes movimentos, muitas vezes
dentro de campos restritos de disciplinas como: fisiologia, cinesiologia, biomecânica.
Tais análises privilegiam apenas a forma e a função do corpo humano, ao
invés do ser humano e sua motricidade, ou seja, suas experiências culturalmente
contextualizadas, a complexidade que engloba o ser que se movimenta intencionalmente,
pois a motricidade supõe uma visão encarnada do ser humano e, segundo Manuel Sérgio
(1994, p.33) é “difícil de ser apreendida, a partir da perspectiva da ciência clássica, porque
requer modificações significativas de muitos conceitos e ideais clássicos”.
Em meados da década de 1960, a ascensão do discurso científico como
referencial privilegiado para a área de Educação Física provocou um redirecionamento da
sua tradição pedagógica contemporânea. Para Mauro Betti (2006), os debates gerariam
oposições e tensões que percorreriam o entendimento acerca dos fundamentos teóricos que a
citada área tem buscado construir a partir de si própria.
No Brasil, em particular, foi durante os idos de 1970 que a Educação Física
teve praticamente o seu surgimento enquanto área de pesquisa, especialmente alavancada
pelo interesse do governo ditatorial no campo esportivo. Os estudos realizados à época, no
entanto, preocupavam-se, predominantemente, com o aspecto anátomo-funcional,
observando crescimento e desenvolvimento (influências da menarca, evolução da aptidão
motora em escolares...), antropometria (somatotipo de atletas, medida de dobras cutâneas...)
e capacidades físicas (potência, força, velocidade...), utilizando-se, de acordo com Luiz
Gonçalves Junior, Glauco Nunes Souto Ramos e Dijnane Fernanda Vedovato Iza (2001),
exclusivamente de mensurações e testes de natureza.
36
No início da década de 1980, afirmava João Paulo Subirá Medina (1992) que
a Educação Física precisava entrar em crise, pois:
A crise é um instante decisivo, que traz à tona, praticamente, todas as anomalias
que perturbam um organismo, uma instituição, um grupo ou mesmo uma pessoa.
(...) Muitas vezes por trás de certas situações de aparente normalidade, escondem-
se as mais variadas distorções ou patologias, que devido àquela aparência não são
colocadas em questão (p.19).
Na esteira desta crise, surge, em meados da década de 1980, a Ciência da
Motricidade Humana, proposta pelo filósofo português Manuel Sérgio Vieira e Cunha
10
, que
teve grande repercussão, tanto em Portugal, originando a mudança do nome da Faculdade de
Educação Física e Desporto da Universidade Técnica de Lisboa para Faculdade de
Motricidade Humana, como no Brasil, onde Manuel Sérgio atuou como professor convidado
da UNICAMP, bem como realizando inúmeras palestras e conferências em eventos da área,
culminando, entre outras coisas, com a criação de cursos de pós-graduação e sociedades
científicas sob o título Motricidade Humana.
Os trabalhos deste filósofo iniciam sua discussão debatendo o paradigma
cartesiano de ser humano fragmentado em corpo e mente, legado de uma visão mecanicista,
na qual Sérgio (1996) afirma ser:
...evidente que o corpo humano não é o que a fisiologia descreve, nem o que a
anatomia desenha, nem o que a biologia, em suma, refere. Porque o corpo é a
materialização da complexidade humana. (...). De facto, ninguém tem um corpo.
Há uma distância iniludível entre mim e um objecto que possuo: posso deixá-lo
fora, sem deixar de ser quem sou. Com meu corpo não sucede o mesmo: sem ele,
eu deixo de ser quem sou. Por isso, o meu corpo não é sico, no sentido cartesiano
do termo (...), mas o fundamento de toda a minha existência da minha própria
subjetividade... (p.125).
Assim, neste novo paradigma, rompe-se com a dicotomia do ser e se
estabelece uma compreensão de corpo encarnado, conforme apresentada por Merleau-Ponty
(1969), ou seja: um corpo que olha todas as coisas e que também é capaz de olhar a si, que se
vê vidente, que se toca tateante. Um corpo que não é objeto para um “eu penso”; ele é um
conjunto de significações vividas, pois, como afirma Merleau-Ponty (1996):
10
O filósofo assina seus livros como Manuel Sérgio, sendo, portanto, assim mais conhecido e referenciado.
37
não reúno as partes de meu corpo uma a uma; essa tradução e essa reunião estão
feitas de uma vez por todas em mim: elas são meu próprio corpo (...). Mas eu não
estou diante de meu corpo, estou em meu corpo, ou antes sou meu corpo (p.207-
208).
Nesta perspectiva, há um corpo (encarnado) e não um físico (no sentido
cartesiano) que se move pela reunião de partes e na ignorância de si, porém irradiando de um
si, percebido no pano de fundo do mundo, com a coesão de uma coisa, de um anexo ou um
prolongamento dele mesmo, incrustados na sua carne, pois o corpo é o lugar de todo o
diálogo que envolve o eu e o mundo, que se movimenta não mecanicamente, mas que é todo
em tudo que faz (MERLEAU-PONTY, 1969; 1996).
A Motricidade Humana, segundo Luiz Gonçalves Junior, Glauco Nunes Souto
Ramos e Yara Aparecida Couto (2003), concebe o ser de modo integral sendo-com-os-
outros-ao-mundo, sem fragmentação e pensando o corpo como "o ser existindo no mundo a
partir dos existenciais básicos: afetividade, compreensão e expressão, que estão sempre numa
mesma dimensão de importância, sendo equiprimordiais, pois são fundantes da constituição
do ser; são modos de existir-aí" (p.28).
E é neste “existir-aí”, nesta compreensão de Motricidade que fica reforçada a
convicção que o corpo tem uma intencionalidade, que se dirige para as coisas e para os seres
humanos, com os quais compartilha o Mundo. O Ser Humano realiza-se e compreende-se na
e desde a experiência (SÉRGIO, 1994).
Conforme Maurice Merleau-Ponty (1996):
o sistema da experiência não está desdobrado diante de mim como se eu fosse um
Deus, ele é vivido por mim de um certo ponto de vista, não sou seu espectador, sou
parte dele, e é minha inerência a um ponto de vista que torna possível ao mesmo
tempo a finitude de minha percepção e sua abertura ao mundo total enquanto
horizonte de toda percepção (p.408).
E prossegue:
A coisa nunca pode ser separada de alguém que a perceba, nunca pode ser
efetivamente em si, porque suas articulações são as mesmas de nossa existência, e
porque ela se põe na extremidade de um olhar ou ao termo de uma investigação
sensorial que investe na humanidade (MERLEAU-PONTY, 1996, p.429).
38
Ou seja, da Educação Física para a Motricidade Humana partimos do corpo-
objeto para o corpo-sujeito, o corpo encarnado, no qual as “essências, o sentido e a
significação do Mundo e das coisas alcançam-se, tão só, através da percepção” (SÉRGIO,
1994, p.28).
Merleau-Ponty (1996) fala sobre perceber como tornar presente qualquer
coisa com a ajuda do corpo, ou, em outras palavras, não é preciso que o indivíduo represente
o espaço ou objeto exterior e seu corpo para mover um no outro, basta que eles existam para
o ser, pois:
todas as ‘funções’ no ser humano, da sexualidade à motricidade e à inteligência,
são rigorosamente solidárias, é impossível distinguir, no ser total do homem, uma
organização corporal que trataríamos como um fato contingente, e outros
predicados que lhe pertenceriam com necessidade. Tudo é necessidade no ser
humano (MERLEAU-PONTY, 1996, p.235).
Este mesmo Ser Humano que percebe e dirige a sua intencionalidade ao Outro
e ao Mundo, na perspectiva da Motricidade não é entendido como um projeto cumprido,
acabado, uma existência determinada, dotada de um sentido polarizado por fora, para o não-
eu, mas sim como uma consciência, por uma disponibilidade, para a busca de um sinal e uma
significação que excedem a Natureza; tem a essência de um ser aberto na busca da
transcendência” (SÉRGIO, 1994, p. 24), da possibilidade do ser-mais, do experimentar
mais, conhecer mais sobre Si, sobre o Outro e o Mundo por uma indivisibilidade entre o ser-
mundo.
Em suma, conforme proposição de Sérgio (1999), entendemos Motricidade
Humana como o “movimento intencional da transcendência, ou seja, o movimento de
significação mais profunda” (p.17) em que o essencial “é a experiência originária, donde
emerge também a história das condutas motoras do sujeito, dado que não há experiência
vivida sem a intersubjetividade que a práxis supõe. O ser humano está todo na motricidade,
numa contínua abertura à realidade mais radical da vida” (p.17-18).
Kunz (2004) também contribui em nossas reflexões sobre as lutas no contexto
da motricidade, com sua proposta crítico-emancipadora, baseada na fenomenologia
existencial e na pedagogia dialógica, que entende movimento humano como “experiências
significativas e individuais, onde pelo seu Se-movimentar o indivíduo realiza sempre um
contato e um confronto com o Mundo material e social, bem como consigo mesmo” (p.165).
39
Segundo Kunz (2004):
a Pessoa do “se-movimentar” não pode simplesmente ser vista de forma isolada e
abstrata, mas inserida numa rede complexa de relações e significados para com o
Mundo, (...) uma conduta significativa, um acontecimento mediado por uma
relação significativa (KUNZ, 2004, p.174)
Focados no Ser, entendemos que é por meio de sua intencionalidade que se
constitui o sentido/significado do “Se-Movimentar”, que tem estreita relação com a
concepção dialógica freireana, pois pode de “diferentes maneiras questionar o Mundo e suas
relações com o mesmo” e assim “superar um Mundo confiável e conhecido e penetrar num
mundo desconhecido” (KUNZ, 2004, p.175).
Em concordância com Freire (2005), o sujeito é fazedor de história e doador
de sentido e se encontra permanentemente no movimento de Humanização, considerada
como vocação dos indivíduos, que, no entanto, pode ser negada na injustiça, na exploração,
na opressão e na violência dos opressores, quando estes procuram imprimir a homens e
mulheres o “ato proibitivo do ser mais” (FREIRE, 2005, p.49).
Contudo,
mesmo a “mais feroz dominação não é capaz de coisificar totalmente o
homem” (FIORI, 1986, p.6) e, por
nos reconhecermos como seres que estão sendo, como seres
inacabados, inconclusos, em e com uma realidade que, sendo histórica também, é igualmente
inacabada (FREIRE, 2005), é possível transformá-la, sendo apenas um desafio. Desta forma,
buscar “transformar a realidade opressora é tarefa histórica” (p.41), é tarefa humana a
“transformação da realidade para a libertação” (p.108) dos homens e das mulheres.
Fiori (2005) reforça esta idéia, afirmando que o
meio envolvente não o fecha, limita-o – o que supõe a consciência do além-limite.
Por isso, porque se projeta intencionalmente além do limite que tenta encerrá-la,
pode a consciência desprender-se dele, liberar-se e objetivas, transubstanciando o
meio físico em mundo humano. A “hominização” não é adaptação: o homem não
se naturaliza, humaniza o mundo (p.13).
Essa consciência não se dá separadamente, “ninguém se conscientiza
separadamente dos demais. A consciência se constitui como consciência do mundo” (FIORI,
2005, p.15).
Esta consciência e mundo se dão juntos:
40
como consciência do mundo, constituem-se dialeticamente num mesmo movimento
– numa mesma história. Em outros termos: objetivar o mundo é historicizá-lo,
humanizá-lo. Então, o mundo da consciência não é criação, mas sim, elaboração
humana. Esse mundo não se constitui na contemplação, mas no trabalho (FIORI,
2005, p.17).
E este trabalho deve ser comunitário entre homens e mulheres, pois:
juntos, re-criam criticamente o seu mundo: o que antes os absorvia, agora podem
ver ao revés. No círculo de cultura, a rigor, não se ensina, aprende-se em
reciprocidade de consciências (FIORI, 2005, p.10).
É por meio da intersubjetividade, do diálogo entre homens e mulheres
mediatizados pelo mundo, portanto na relação eu-tu, que pronunciamos o mundo, fazemos
um “ato de criação” (FREIRE, 2005, p.91).
Para Freire (2005) é neste ato de criação, nesta possibilidade de uma nova
leitura do mundo que se dá a educação dialógica, pois é a educação uma forma de
intervenção no mundo:
Intervenção que vai além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados
e/ou aprendidos implica tanto esforço de reprodução da ideologia dominante
quanto o seu desmascaramento. Dialética e contraditória, não poderia ser a
educação só uma ou só a outra dessas coisas. Nem apenas reprodutora nem apenas
desmascaradora da ideologia dominante (FREIRE, 1996, p.98)
Esta ideologia dominante compreende o saber como “doação” dos que se
julgam sábios aos que julgam nada saber; no entanto, só existe saber na invenção, na
reinvenção na busca inquieta, impaciente, permanente, esperançosa que os “homens fazem
no mundo, com o mundo e com os outros” (FREIRE, 2005, p.67).
Assim, a pedagogia dialógica, freireana ou libertadora implica a superação da
contradição educador/a-educandos/as, de tal maneira que se fazem ambos, simultaneamente,
educadores/as e educandos/as, em relação horizontal e sendo com os outros, com-vivendo
(FREIRE, 2005).
A partir daí, educador/a e educando/a vão desenvolvendo o seu poder de
captação e de compreensão do mundo que lhes aparece em suas relações com ele, não mais
como uma realidade estática, mas como uma realidade em transformação, em processo.
41
De certo, ao tentarmos objetivar nossas ações como educadores/as nas escolas,
bairros e comunidades, deparamo-nos com diversas dificuldades: especialmente as nossas
como pessoas em construção e as impostas pelo sistema de dominação, que nos
condicionam.
Condiciona-nos, mas como seres históricos, inconclusos e incompletos, de vir-
a-ser, não nos limita, sendo sempre possível a transformação nossa, da escola e mesmo do
mundo.
Cientes, portanto, de ideologias dominantes que permeiam o saber da
Educação Física, em particular a quase hegemonia da visão dicotômica do ser e do conteúdo
esportivo nas aulas em ambientes escolares e não escolares.
Segundo Irene Conceição Rangel Betti (1995) os próprios estudantes
costumam estabelecer uma identificação imediata do significado do componente curricular
Educação Física com o esporte. Para a autora não haveria problemas nisso, desde que
houvesse oportunidade para o conhecimento de outras práticas, e o indivíduo tivesse
condições de optar por elas. No entanto, na escolha dos conteúdos encontra-se pouca
variedade nas modalidades esportivas, e por vezes um mesmo grupo de modalidades (ou
ainda apenas uma modalidade) se repetem ano após ano, sem alterações.
Em acordo, Gonçalves Junior (2007) comenta ser comum nas aulas de
Educação Física a predominância do esporte como conteúdo por vezes exclusivo, o que
acaba por reduzir o universo da cultura corporal, circunscrevendo-o, não raro, ao contexto
cultural estadunidense e/ou europeu do futebol, voleibol, basquetebol e handebol, em
detrimento das potencialidades que podem ser exploradas ao propor a vivência de outras
práticas corporais (jogos, brincadeiras, danças, lutas), oriundas da diversidade cultural de
diferentes povos que construíram e constroem o Brasil além dos europeus, tais como os
indígenas e africanos.
Além da excessiva ênfase da educação física escolar em modalidades
esportivas, as próprias lutas, segundo Felipe Marta (2004), têm sofrido com o fenômeno da
esportivização
11
no Brasil, desencadeado especialmente pelo processo de massificação do
esporte pela mídia, sobretudo via cinema e televisão.
11
“Supervalorização da competição e do elemento espetacular-visual costumeiro no âmbito do esporte de
rendimento, vinculado ao interesse da exibição de performance para outrem ou de busca estética compulsiva ao
aspecto físico massificado e padronizado pelos meios de comunicação, em detrimento da realização de práticas
42
Ainda Marta (2004), ao dissertar sobre a o Taekwondo, luta de origem
coreana, relata que, apesar de na atualidade muitas pessoas aderirem à prática de uma luta
pelo interesse na cultura, outros interesses vinculam-se a tal iniciativa, entre eles a prática
pela prática, o convívio social, entre outras, o que pode, no ocidente em geral, e mais
especificamente no Brasil, conforme sua apropriação e desenvolvimento, até mesmo
contrariar as suas raízes originais.
Por conseguinte, em nossa proposta com lutas no contexto da motricidade
também nos defrontamos com: a dificuldade da introdução de conteúdos não esportivos na
educação física escolar ou não escolar; a necessidade do respeito à diversidade cultural; o
perigo da esportivização.
Na perspectiva que ora propomos é fundamental dialogar sobre o
conhecimento dos/as educandos/as acerca das lutas, partindo do seu mundo-vida, respeitando
sua cultura e seus “saberes de experiência feitos” (FREIRE, 1996), procurando envolver a
todos da comunidade.
Conhecer o bairro e sua realidade política, social, econômica e cultural é
fundamental nesta proposta de trabalho, para estabelecermos empatias com a comunidade e
possibilitar-nos contato com o cotidiano dos seus moradores, observando seus costumes e
hábitos, brincadeiras, jogos, e lutas, a partir do qual foi possível elaborar e desenvolver um
conjunto de atividades num formato historicamente distinto daqueles utilizados no ensino e
aprendizagem das lutas
12
.
Sensei Kazuo Nagamine (2004), em uma palestra sobre as lutas e suas
relações com a saúde e educação, discutiu a etimologia da palavra “Budô”
13
, muito utilizada
para designar o conjunto de lutas de origem nipônica e o sentido atribuído a elas.
corporais autônomas e significativas, desenvolvidas pelo prazer desencadeado por elas mesmas, com satisfação
pessoal intrínseca” (RODRIGUES e GONÇALVES JUNIOR, 2009).
12
O histórico das lutas nos apresenta uma grande aproximação com as características de ensino de ambientes
militares, havendo fragmentação do corpo (físico e mente), sistematização dos exercícios em prol da disciplina
e sobrevivência, práticas de punição àqueles que falham ou não se submetem aos superiores. Tais características
se dão, particularmente, devido a serem voltadas as lutas à guerra, em muitas das culturas nas quais se
originaram.
13
Budô é entendido como “essência/espírito” das lutas orientais. Ressaltamos que arte marcial é a tradução
mais aproximada e usual para o ocidente, e decorre de “Marte”, deus da guerra para os gregos. No entanto, a
expressão ocidental arte marcial vincula-se geralmente a técnicas de defesa pessoal, relacionadas ou não a
preparação militar, e, portanto, não contempla a amplitude do sentido vinculado ao Budô no presente estudo,
que envolve uma sabedoria de vida ou modo de viver. (LAGE, 2005)
43
Na sua investigação, Sensei Nagamine, ao desmembrar o kanji
14
desta
palavra, Budô =
, no qual: Bu = , que é constituído pelos kanji = “parar,
prevenir”;
= “arma”; e = Do/Tao, que pode ser interpretado como “caminho”,
demonstrou-nos que a etimologia nos possibilita apreender tais lutas como um caminho para
“prevenir a luta”, entendimento que permite uma percepção mais profunda das lutas
originadas no oriente, num sentido que transcende a compreensão formal da técnica para o
combate “contra o outro”, para a ética e autosuperação pessoal, numa atitude de
enfrentamento da vida e seus desafios em busca da paz no/do ser humano.
A transformação desse sentido se percebe na própria modificação dos kanji
que compunham o nome de algumas lutas japonesas, por exemplo, o “Karatê Jutsu” passa
para “Karatê-Do”, o “KenJutsu” passa para “KenDo”, dentre outras, substituindo o kanji
= Jutsu (técnica, habilidade) pelo kanji Do/Tao.
Na presente proposta, as vivências em lutas no contexto da Motricidade
Humana foram desenvolvidas por meio de brincadeiras estruturadas com os próprios
participantes ou mesmo, propondo-se alguns temas, construindo e combinando-se em grupo
as possíveis situações e “regras”, junto com as implicações acerca das decisões tomadas pelo
próprio grupo.
O questionamento dessas influências e a proposta a partir das brincadeiras,
segundo Dulce Mara Critelli (1981), se fazem na preocupação com a educação mesma e não
com o nosso engajamento num apenas construir técnicas e métodos de ensinar.
Gonçalves Junior, Ramos e Couto (2003) entendem que a instrução e a
educação são fenômenos distintos. A primeira preocupa-se com o treinar, o adestrar, o
informar... Enquanto que a segunda prima pelo tirar de dentro para fora, como indica a
etimologia da palavra, proveniente do latim: ex-ducere, ou seja, “o sair de um estado de
existência para outro” (p.30). Assim, a educação tem como fundamento o cotidiano da
existência do ser, do ser-com-os-outros, do estar solícito, do colocar-se na perspectiva do
outro e estabelecer a intersubjetividade.
14
Kanji são ideogramas utilizados em algumas escritas iconográficas orientais, dentre elas o idioma japonês.
44
Esta solicitude nos remete a Martin Heidegger (1981), que discute as relações
do ser-com-os-outros, afirmando a importância de relacionar-se com alguém de maneira
envolvente e significante, que:
imbrica as características básicas do ter consideração para com o outro e de ter
paciência com o outro. Ter consideração e paciência com os outros não são
princípios morais, mas encarnam a maneira como se vive com os outros, através de
experiências e expectativas. Há duas maneiras extremas de solicitude ou de cuidar
do outro, onde existem, obviamente, também inúmeras variações. Uma delas é o
(...) “por o outro no colo”, “mimá-lo”, fazer tudo pelo outro, dominá-lo, manipulá-
lo ainda que de forma sutil. A outra maneira de cuidado para com o outro é o (...)
possibilitar ao outro assumir seus próprios caminhos, crescer, amadurecer,
encontrar-se consigo mesmo. Todas as maneiras de indiferença, apatia, falta,
competição – sintomas aliás, muito atualizados em nossa vida de grandes cidades –
são maneiras deficientes da primordial característica fundamental – solicitude
(p.19-20).
Desta maneira, o ser-com-os-outros cotidiano mantém-se entre dois extremos
de solicitude – aquele que salta sobre o outro e o domina, e aquele que salta diante do outro e
o liberta (HEIDEGGER, 1981).
Partindo desse entendimento, torna-se importante para o/a educador/a
sentir/perceber esta solicitude na esfera educacional na qual está inserido com-o-outro
(educando/a) e atuar de forma a não “saltar sobre o outro”, mas sim “diante do outro”,
respeitando suas experiências e compreendendo-o como ser em construção dialética com o
mundo, portanto, sendo-com-os-outros-ao-mundo.
Nessa perspectiva, educar torna-se diferente do instruir e do treinar, muito
utilizados nas práticas das lutas quando esportivizadas, os quais trazem consigo relevância ao
“resultado” e não ao “processo”.
No Judô, por exemplo, as transformações advindas de sua esportivização
provocaram distorções acerca do aprendizado de uma das suas principais técnicas ensinadas:
o
= Ukemi-Waza, que pode ser entendido como as “técnicas para amortecer a
queda”.
Nas competições desta luta, ao sofrer um golpe de projeção, um judoca que
executa corretamente a técnica para amortecer sua queda acaba sendo penalizado, pois ocorre
contato de algumas partes de seu corpo como costas ou ombros no solo podendo levar a
perda do combate esportivo. Tal distorção produzida pela esportivização produz situações de
grande risco a lesões cervicais e articulares em seus praticantes ao tentarem evitar que suas
45
costas, por exemplo, toquem o solo. Ou seja, uma técnica característica do judô, aprendida
para proteger o praticante, acaba sendo inibida.
Tanto no judô, como em algumas lutas influenciadas pelo fenômeno da
esportivização, valoriza-se e avalia-se o aprendizado de seus praticantes baseando-se nos
resultados em eventos esportivos (torneios, campeonatos) e exames de graduação, nos quais
o praticante é submetido a um conjunto de movimentos específicos e sistematizados de
acordo com o nível que almeja atingir, e, se apresentar rendimento compatível, é promovido
e troca-se a cor de sua faixa/cordão, como no caso das lutas orientais (Karatê-Do e Judô) e
afro-brasileira (Capoeira).
Compreendemos a organização em faixas e mesmo os exames no âmbito
esportivo, porém entendemos que a interpretação do desenvolvimento do sujeito baseada
unicamente no rendimento ou desempenho no âmbito educacional é inadequada.
Num caminho distinto sobre a valorização dada em algumas lutas orientais
acerca dos exames de graduação, Nagamine (1997) discute os vários signos e significados
relacionados à “faixa preta” no Karatê-Do, dentre eles, os de considerar uma dualidade no
Karatê-Do entre o branco (cor da primeira faixa) e do preto (cor da última faixa), na qual a
faixa preta seria o ponto inicial, pois aquela faixa preta com o passar dos tempos vai se
desgastando, tornando-se novamente branca, ou seja, retornando ao ponto de partida para o
estudo e o aprofundamento no Karatê-Do.
Logo, o ensino e o aprendizado das lutas pode construir e inspirar o ser na
busca de si mesmo, percebendo-se como parte de um todo maior, o mundo, e em constante
relação com os outros.
46
TRAJETÓRIA METODOLÓGICA
Iniciando o elementar movimento do caminhar metodológico, no primeiro
semestre de 2007, me inseri no local de pesquisa, participando, na ocasião, de 11 encontros
do projeto “Vivências em Atividades Diversificadas de Lazer”, do Departamento de
Educação Física e Motricidade Humana da UFSCar, desenvolvido em parceria com a
Prefeitura Municipal de São Carlos (PMSC) na Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
(ECO), acompanhando os educadores Luiz (coordenador do projeto) e Matheus (monitor
voluntário), às quintas-feiras, no horário das 8h00min às 11h00min.
Em junho de 2007, propusemos e realizamos uma reunião com os/as
educadores/as atuantes na ECO, visando discutir a possibilidade de desenvolvimento da
pesquisa naquele local, sendo necessária, para isso, a implantação da prática de vivências em
lutas.
Após aprovação pela supervisora da ECO, Maria Maia, e pela Secretaria
Municipal de Esportes e Lazer da PMSC, iniciei a implantação/intervenção da oficina com
lutas, o que ocorreu em setembro de 2007, tendo a sua conclusão em dezembro de 2007.
Assim, realizamos após o período dos 11 encontros de inserção, mais 13 encontros
específicos da oficina com lutas, ocorridos às segundas-feiras, das 16h30min às 18h00min,
todos registrados em diários de campo. A adesão dos participantes ao projeto se deu de
forma autônoma, após reunião de esclarecimento e assinatura pelos participantes e seus pais
ou responsáveis de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (ver Anexo 1), no qual
concordavam com a intervenção, coleta de dados (diários de campo e imagens dos
encontros) e da posterior divulgação das informações no meio acadêmico. Salientamos que
os/as educadores/as participantes também concordaram e assinaram o Termo.
No total de 13 encontros relativos à intervenção com as lutas, ocorreram 8
diretamente por mim desenvolvidos e outros 5 realizados com a presença de algum outro
educador convidado, sendo este vinculado a alguma luta.
47
Frequentaram os encontros 38 pessoas, sendo 13 do sexo feminino e 25 do
sexo masculino
15
. Destacamos ser relevante a participação feminina na oficina, embora
sendo metade da masculina, pois em práticas de lutas no Brasil ela ainda é pequena.
Neste estudo, as intervenções tiveram como perspectiva as relações entre
educador/a e educando/a, nas quais o educador/a considera a “irrecusável prática de inteligir,
desafiar o/a educando/a com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua
compreensão do que vem sendo comunicado” (FREIRE, 1996, p.38), ou, em outras palavras,
respeita o saber de experiência feito do/a educando/a.
Deste modo, as dinâmicas dos encontros eram iniciadas com uma reunião no
centro da quadra ou no pátio ao fundo do campinho de futebol da ECO, na qual
conversávamos sobre as atividades, discutindo as brincadeiras vivenciadas ou aquelas a
serem realizadas nos próximos encontros, considerando seus saberes e anseios.
Trata-se, segundo Gonçalves Junior (2004):
de uma forma de estimular a participação da criança e fazê-la sentir toda a
importância que tem, favorecendo, ainda, a rica troca de experiências entre elas e
seus respectivos universos de jogos. Resgatando jogos e brincadeiras conhecidas
(...), propostas que visam respeitar o mundo em que a criança vive, considerando as
crianças em seu mundo-vida (aqui e agora) e não como adultos em potencial
(futuro incerto) (p.133-35).
Nesse sentido, as atividades partiam da cultura corporal dos próprios
participantes, perguntando-se-lhes o que conheciam sobre as lutas, seja pela prática em si,
por conhecer outros praticantes ou mesmo pela mídia (programas televisivos, desenhos,
revistas, brinquedos, dentre outros), ocorrendo, assim, o compartilhar dos conhecimentos
entre os integrantes.
A partir desses saberes, formulávamos atividades envolvendo os movimentos
de diversas lutas, como a elaboração de um teatro representando um combate, a re-
elaboração de brincadeiras conhecidas (como o “duro-mole” ou “estátua”, com movimentos
de chutes e socos), aproximando-as da cultura corporal relacionada às lutas.
Assim, na estruturação dessas atividades havia um ambiente de participação
contínua e ativa dos integrantes do projeto, os quais propunham, modificavam, criavam e
15
Lista com os nomes fictícios, idade, sexo e freqüência total dos participantes nos encontros está disponível no
Apêndice 5.
48
discutiam as atividades e cronogramas em vários momentos dos encontros. Esse diálogo foi
percebido como não pretensão de harmonizar, conciliar, combinar posições, mas de convocar
cada um dos participantes a se expressar e a, juntos, construírem as atividades (SILVA e col.,
2007).
Segundo Valla (1996), é necessária uma mudança de ótica com relação aos
trabalhos que são desenvolvidos com as classes populares, pois, para ele, diversas
dificuldades e equívocos ocorrem nas pesquisas que envolvem tal população, pois:
a própria forma de relatar uma experiência indica a concepção de mundo de quem
faz o relato. Neste sentido, é possível afirmar que os profissionais e a população
não vivem a mesma experiência da mesma maneira (...). Se a referência para o
saber é o profissional tal postura dificulta a chegada ao saber do outro. Os saberes
da população são elaborados sobre a experiência concreta, a partir das suas
vivências, que são vividas de uma forma distinta daquela vivida pelo profissional.
Nós oferecemos nosso saber por que pensamos que o da população é insuficiente e,
por esta razão, inferior, quando, na realidade, é apenas diferente (VALLA, 1996,
p.179).
As intervenções com as lutas buscaram proporcionar experiências efetivas no
mundo-vida das crianças, pois, segundo Larrosa Bondía (2002), na sociedade contemporânea
a experiência é cada vez mais rara” (p.21) e o conhecimento não se dá sob a forma de
informação, tampouco aprender é “adquirir e processar informação”.
Nesse sentido, na própria prática do Karatê-Do, Gichin Funakoshi (2002),
considerado o difusor do Karatê-Do contemporâneo, alerta:
Você pode treinar por muito, muito tempo. Se porém apenas mexer as mãos e os
pés e saltar para cima e para baixo como uma marionete (...) você nunca chegará à
essência; você fracassará em captar a quintessência do Karatê-DO (p.113-114).
Larrosa Bondía (2002), corroborando com a compreensão do significado da
experiência desejada nos estudos, afirma que ela é,
em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que
se prova. (...) é aquilo que ‘nos passa’, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao
nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito da experiência está,
portanto, aberto à sua própria transformação (...) e é incapaz de experiência aquele
que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se ‘ex-põe’. É incapaz
de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem
nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o
ameaça, a quem nada ocorre (p.25).
49
Compreendendo e considerando a experiência como fundamental, bem como,
em se tratando de vivências em lutas, a importância do contato com o ambiente e grupos
relacionados a estas, além dos encontros ocorridos no próprio espaço da ECO, com o autor
deste estudo, cinco outros foram organizados junto a grupos de práticas de lutas distintas,
sendo três deles fora da ECO: na cidade de Araraquara, com o educador Celso Akira Oisi
(Karatê-Do Shotokan) e, em São Carlos com o educador Mauro Pacífico (Jiu-Jitsu) e outro
com o educador Sebastião Alexandre da Cunha (Judô). Nos encontros ocorridos na própria
ECO, contamos, em dois deles, com a participação de educadores convidados, os quais
desenvolveram os temas, Capoeira (Adan) e Jogos Indígenas e Huka-Huka (Fabiano
Maranhão e Jeika Kalapalo).
Registramos que nos encontros com educadores convidados, foram servidos
lanches (pão, presunto, queijo e refrigerante) às crianças, com o apoio financeiro de
educadores/as da própria ECO e do comércio da cidade; os transportes para as atividades
realizadas fora da ECO foram providenciados pela Secretaria Municipal de Esportes e Lazer
(SMEL) e Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social (SMCAS); a participação
nestas atividades foram autorizadas pelos responsáveis, em documento próprio, que era
recolhido antes da saída.
Como instrumento de coleta de dados, após todos os encontros, eram
realizados registros em Diários de Campo, sempre elaborados ao final de cada vivência,
quando retornava à minha residência.
Os Diários de Campo confeccionados estão disponibilizados em dois blocos:
no apêndice 1, estão os 12 diários referentes ao período de inserção junto ao projeto
“Vivências em Atividades Diversificadas em Lazer”, e no apêndice 2, estão os 13 diários
referentes ao período da oficina com as lutas, todos numerados em algarismos romanos.
Os diários de campo, segundo Robert Bogdan e Sari Knopp Biklen (1994),
são como um relato escrito daquilo que o investigador percebe, no decurso da recolha e
reflexão sobre os dados de um estudo qualitativo.
Ainda de acordo com Bogdan e Biklen (1994), o objetivo das notas de campo
é captar uma “fatia da vida” (p.152), sem perder a consciência de que qualquer descrição, até
certo grau, representa escolhas e juízos – decisões acerca do que anotar, sobre a utilização
exata de palavras; sabendo que “o meio nunca pode ser completamente capturado” (p.163),
50
porém é tarefa do investigador qualitativo procurar ser preciso dentro dos parâmetros dos
objetivos de investigação do projeto.
Desta maneira, os aspectos descritivos das notas de campo podem englobar:
Retratos dos sujeitos (incluindo sua aparência, roupas, falas, ações); Reconstruções do
diálogo (as conversas e os gestos, expressões faciais); Descrição do espaço físico (através de
desenhos ou mesmo descrições das mobílias, piso, paredes, pintura); Relatos de
acontecimentos particulares (caso ocorram e sejam pertinentes); Descrição das atividades
(incluindo as atitudes dos participantes); O comportamento do observador (considerando-se
a si próprio, suas atitudes, suas suposições e tudo que possa afetar a coleta dos dados); para
posterior Parte Reflexiva das Notas de Campo; Reflexões sobre o método; Reflexões sobre
conflitos e dilemas éticos; Reflexões sobre o ponto de vista do observador e Pontos de
clarificação (BOGDAN e BIKLEN, 1994, p.163-167).
Observamos que na pesquisa qualitativa, concordando com Pais (2001), os
critérios de seleção dos sujeitos são de compreensão, de pertinência e não de
representatividade estatística. Sendo assim, de modo algum temos a pretensão de
generalização dos resultados, mas de um aprofundamento no conhecimento dessa realidade,
“cuja singularidade é, por si, significativa” (p.110).
Para a análise dos Diários de Campo nos inspiramos na fenomenologia
existencial de Joel Martins e Maria Aparecida Viaggiani Bicudo (1989), Merleau Ponty
(1996), utilizada geralmente para análise de entrevistas. Assim, após a sua transcrição e
leitura, a pesquisa passou pelas seguintes fases, conforme descritas por Gonçalves Junior
(2003):
• Identificação das Unidades de Significado e Redução Fenomenológica: após
efetuar diversas leituras dos Diários de Campo, foi realizado o levantamento de asserções
que são significativas para o pesquisador, diante do objetivo da pesquisa.
• Organização das Categorias: ao perceber convergências, divergências ou
ainda idiossincrasias nos trechos destacados dos Diários de Campo, foram estabelecidas
categorias estruturais e, desta forma, foram agrupadas as unidades de significado dos trechos
destacados em análise sob categorias, objetivando a busca da essência do fenômeno que se
revela ou manifesta nos acontecimentos relatados pelo pesquisador. É importante frisar que
na pesquisa fenomenológica, as categorias são levantadas no transcorrer do estudo dos
51
dados, ao contrário, portanto, da pesquisa positivista, que define as categorias de análise a
priori, para posterior constatação de validade ou falsidade, frequentemente após tratamento
estatístico.
• Construção dos Resultados: última fase da pesquisa na qual se apresenta
uma compreensão do fenômeno interrogado a partir dos dados organizados na matriz
nomotética.
52
CONSTRUÇÃO DOS RESULTADOS
Nesta fase da pesquisa buscamos uma compreensão dos possíveis processos
educativos que ocorreram na prática social das lutas, baseando-nos diretamente nos dados da
matriz nomotética, a qual revelou proposições convergentes. Poderia também ter revelado
posições divergentes e idiossincrasias (individualidade de proposições), porém não
ocorreram neste estudo.
A matriz nomotética se compõe de uma coluna à esquerda onde se expõem as
categorias baseadas nas asserções dos Diários de Campo, classificadas e dispostas por letras
maiúsculas de nosso alfabeto (GONÇALVES JUNIOR, 2003).
Na parte superior da matriz, em uma sequência horizontal, estão identificados
os Diários de Campo, através de numeração com algarismos romanos. Abaixo da seqüência
dos Diários, do lado direito das categorias, em números arábicos, estão dispostas as unidades
de significado correspondentes às categorias, não se perdendo, assim, a origem da referida
unidade (GONÇALVES JUNIOR, 2003).
A ausência de unidades de significado denota que naquele diário não houve
asserção correspondente àquela categoria.
Os resultados apresentados, a seguir, foram construídos a partir da
intersubjetividade estabelecida pelo pesquisador com os sujeitos desta pesquisa
(educadores/as e participantes), registrada nos Diários de Campo.
Vale enunciar que os nomes dos educadores vinculados a ECO: Matheus,
Luiz, Fabiano e Maria e dos educadores dos grupos de lutas convidados: Adan, Sebastião
(Sebá), Mauro, Jeika e Celso foram mantidos, a partir da autorização deles pelos termos de
consentimento disponíveis no Apêndice 1.
Aos professores de Educação Física da PMSC e participantes dos encontros foram atribuídos
nomes fictícios, mantendo-se apenas o gênero.
54
A) Aprendendo com o Outro
Nesta categoria, encontramos alguns trechos que evidenciam alguns
processos educativos ocorridos durantes as vivências em lutas, dentre eles, o
aprendizado entre os participantes durante as atividades da oficina, nas quais eles
conjuntamente dialogam, aprendem e ensinam os movimentos aprendidos.
Durante a vivência dos movimentos em Karatê-Do, Michael Jackson
“observava com atenção os movimentos do colega e tentava realizá-los ao seu lado na
roda” (I-8), procurando aprender com Erick, que lhe ensinava os detalhes que
aprendera.
Iracema, durante uma brincadeira envolvendo as lutas Sumo e Huka-
Huka (VI-7), recebia dicas de suas amigas sobre os movimentos, como quando Luana
disse-lhe: “Segura na cintura que é mais fácil!”.
Neste mesmo encontro, Liliam relatou a Iracema preferir empurrar a
colega pela cintura ao invés de puxá-la, durante a brincadeira, compartilhando uma
experiência vivida na oficina da ECO, muito similar ao ocorrido após os encontros com
educadores e praticantes de outras lutas, quando percebemos os/as educandos/as
compartilhando suas experiências com seus amigos e amigas, demonstrando os
movimentos aprendidos (X-2).
Nas brincadeiras que ocorreram durante os encontros na ECO, a
criatividade e imaginação de algumas das crianças estimulava os outros participantes a
inovar e explorar novas situações. Na interpretação dos animais (V-4), por exemplo,
Leandro “escolheu o macaco, e saiu a coçar a cabeça, saltar pelas mesas e banquetas do
espaço”. Roberto ficou motivado ao vê-lo e também interpretou o mesmo animal.
Além do estímulo às novas situações nas próprias brincadeiras, nos
encontros ocorridos com a presença de outros educadores, presenciamos momentos nos
quais eles e elas aprenderam e compartilharam entre si as experiências relacionadas as
lutas.
No encontro com o grupo do Jiu Jitsu, observei esse compartilhamento
em várias duplas, quando um dos colegas não conseguia executar o movimento
demonstrado pelo professor Mauro: Moisés ensinou Amanda e ela, noutro instante,
orientou Letícia no que aprendera com seu irmão (X-7 e 9).
Noutro encontro em que contamos com a presença do professor Adan,
não foi diferente: os/as educandos/as ensinaram e demonstraram diferentes movimentos
e a própria musicalidade da Capoeira para seus amigos e amigas, experiências
55
compartilhadas durante as próprias brincadeiras promovidas por Adan. Gisele aprendeu
um dos golpes da luta com Michael Jackson durante a brincadeira chamada “quilombo”
- ver figura 1 - (XI-4) e Joel procurou ensinar o próprio irmão a tocar pandeiro (XI-8).
Figura 1: A brincadeira “quilombo” na vivência em Capoeira.
O aprendizado em comunhão pode ser identificado quando as crianças do
Jardim Gonzaga compartilharam suas experiências no Karatê-Do com o grupo de
praticantes de Jiu Jitsu (ver figura 2). Ao perguntar para às crianças do Jardim Gonzaga
quais movimentos do Karatê-Do “haviam aprendido e gostariam de ensinar para os
colegas aquele dia, Tomas demonstrou o chute frontal (...) Lauro demonstrou um chute
saltando e Roberto o chute circular” (X-10 e 11); nesta mesma oportunidade, André
também pôde aprender com os alunos do professor Mauro, técnicas consideradas
difíceis na prática do Jiu Jitsu (X-8).
Figura 2: Participantes da oficina compartilhando sua experiência no Karatê-Do
com o grupo de Jiu Jitsu.
As vivências junto aos grupos de Karatê-Do, Judô e Jiu Jitsu,
promoveram o contato dos/as educandos/as com alguns costumes advindos de
56
diferentes culturas, oportunidade na qual vimos a disposição dos seus praticantes com
relação ao zelo e limpeza do Dojo e respeito ao outro.
Após a vivência junto ao grupo de Karatê-Do (ver figura 3), na cidade de
Araraquara, nas vivências seguintes, quando as criança deparavam-se com o “tatame”
16
,
sempre lembraram-se de retirar os sapatos. No Jiu Jitsu, Amanda olhou-me e disse:
“Vamos ter que tirar os sapatos aqui também professor?” (X-6).
No Judô, Michael Jackson fez a mesma pergunta, e o professor Sebá
relatou sobre o praticante de Judô ter sempre de retirar os calçados para não sujar o
“tatame”, mantendo-o sempre limpo para o próximo que viesse praticar (XII-6).
Experiência similar ocorreu na própria ECO, na qual após um dos
encontros semanais, enquanto o pesquisador e Jacó recolhiam os pedaços de bexiga
espalhados pelo chão, Jacó disse: “’Nossa, professor, como tem gente porca né?’,
comentando sobre a própria sujeira das bexigas. (...) O certo é limpar, né professor?’
(...) e comentei sobre a limpeza da ECO ser responsabilidade de todos que frequentavam
o local, e não apenas dos funcionários” (V-11).
Em uma pesquisa de iniciação científica, realizada pelo pesquisador
durante o período de Licenciatura em Educação Física, nas entrevistas com os Senseis
de Karatê-Do Shotokan, percebemos, por meio das falas dos Mestres, que o Karatê-Do
não se restringe apenas ao Dojo.
Sensei Celso (I-1, 3 e 6), por exemplo, comenta que o Karatê-Do
é mais do que uma atividade física, é mais que um exercício, uma ginástica, é
mais do que formação do corpo, mas acima de tudo é formação do caráter...
e, como já dizia o mestre, é um caminho para a vida, é um caminho para... o
hoje, é um caminho para o amanhã. (...) Essa batalha, essa luta... é diária... e é
interior... se faz mais fora do ‘dojo’
17
do que dentro dele... é o nosso
cotidiano, é o nosso dia-a-dia (...) a dignidade... a honra... o trabalho... o
pacifismo (LAGE e GOLÇAVES JUNIOR, 2007, p.37).
16
O “tatame” geralmente é constituído por um conjunto de placas feitas de palha de arroz, revestidas de
uma esteira de junco de arroz tecida, ou totalmente em material sintético, por exemplo, o EVA. No Japão,
o “tatame” é tradicionalmente utilizado para cobrir o chão das casas ou os locais de meditação e prática
das lutas. No Brasil, alguns Dojos/Academias mantêm este costume.
17
Para Jorge Kishikawa (2004), Do significa “caminho” e jo “local”, tratando-se do local para se
aperfeiçoar os vários “caminhos”. Na atualidade, porém, é comum o uso da expressão para designar
simplesmente o local onde ocorrem os treinamentos.
57
Figura 3: A reverência durante a prática do Karatê-Do, em vivência
junto ao grupo de Araraquara com o educador Celso.
A fala do Sensei Celso discute o Dojo Kun e as relações das lutas com o
cotidiano dos/as educandos/as, algo percebido durante os encontros ao abordarmos os
lemas nas rodas de conversa e trabalhos com o “Diário do Karatê”, quando Liliam me
perguntou: “Professor, posso responder assim: é errado brigar com os otros!” (VII-23),
ou Gisele ao falar “A gente não pode falar palavrão!”, Iracema: “Minha mãe disse que é
feio xingar os otros!” (VIII-7) e Amanda: “Minha mãe não gosta quando eu falo
palavrão!” (VI-8), todas relatando suas experiências cotidianas com o grupo.
As diferentes lutas vivenciadas permitiram assim, o contato com culturas
distintas, proporcionando situações nas quais os/as educandos/as puderam conhecer e
discutir a diversidade cultural, elas podem partir de saberes construídos diferentemente,
que possam ser compartilhados e não, hierarquizados.
Nas brincadeiras relacionaram-se várias lutas, criando oportunidade para
se discutir aspectos da luta e a sua cultura de origem. Numa brincadeira envolvendo a
interpretação de imagens, dialogou-se com os/as educandos/as acerca da cultura
oriental, como o Sumô e a indumentária utilizada; da indígena, com as pinturas
corporais festivas; do Huka-Huka (VI-4 e 5). Inclusive, num dos encontros, contamos
com a presença fundamental de Jeika Kalapalo
18
(XIII), ocasião em que vivenciamos o
Huka-Huka e alguns Jogos Indígenas na ECO, conforme ilustra a figura 4 a seguir.
18
Indígena pertence ao povo Kalapalo, atualmente estudando no cursinho pré-vestibular da UFSCar. Ele
é professor de português em sua aldeia (Aiha- Alto Xingu – Mato Grosso) e já ministrou várias palestras e
participou de diversos encontros sobre cultura indígena em escolas de São Carlos, grupos de estudos da
UFSCar e de entidades como o SESC/São Carlos.
58
Figura 4: A vivência do Huka-Huka entre o educador Jeika Kalapalo e os participantes da
oficina.
Nesta experiência com a cultura indígena, as crianças do Jardim Gonzaga
puderam dialogar pessoalmente com Jeika, aprendendo sobre seu povo e sua luta.
Antes de iniciarmos o encontro sobre o Huka-Hukan, enquanto
conversávamos num pátio ao fundo da ECO, Michael Jackson perguntou diretamente
para Jeika sobre a comida do povo Kalapalo; Liliam, sobre os furos nas orelhas e os
brincos utilizados apenas pelos homens, diferentemente da cultura caraíba
19
; Letícia
indagou acerca da moradia nas “ocas” e o dormir em redes (XIII-10).
Além da cultura indígena, contaram com a vivência da Capoeira, que
possibilitou algumas discussões sobre a cultura africana, com conversas relacionadas à
naturalidade e origem étnico racial de seus antepassados e à própria história brasileira.
Na conversa em roda sobre a Capoeira com o professor Adan
20
, ao serem
questionados sobre a origem de seus antepassados, alguns disseram: “Baiano! Meu pai é
baiano!’, outros ‘Meu vô era italiano!’”, e num canto, Roberto disse: “Eu sô de
africano!”. A partir daí iniciou-se uma diálogo sobre a vinda dos negros africanos ao
Brasil e as relações com a origem da Capoeira, os “quilombos” e as “senzalas” (XI-3).
Conhecer outra cultura nos permite também conhecer um pouco mais
sobre nossa cultura, e compreender o outro como diferente, sem discriminá-lo por sua
raça, orientação sexual e as próprias questões de gênero.
Durante uma brincadeira de Judô, proposta pelo professor Sebá no
encontro relacionado à respectiva luta, Moisés e Tomas ficaram surpresos ao verem
uma das alunas da academia de Judô, ganhar de vários meninos, bem como saberem que
19
Uma cultura distinta da Kalapalo, geralmente atribuída a povos não indígenas.
20
Educador convidado pelo projeto a ministrar a vivência em capoeira.
59
a educadora Maria (ver figura 5) é faixa preta nesta luta (XII-17).
Figura 5: Educadora Maria e participante lutando, na vivência junto ao grupo de Judô.
Em algumas lutas, facilmente se encontram como maioria de praticantes
os homens, porém, com a transformação de algumas modalidades em esporte e sua
difusão pela mídia têm oferecido algumas oportunidades para a observação das
mulheres na esfera competitiva. No entanto, a participação de mulheres na prática
educativa das lutas ainda é pequena.
B) Proximidade
Nas diversas asserções referentes a esta categoria, podemos ver situações
em que a empatia, a afetividade e a proximidade do educador ficam evidentes.
Nos encontros semanais, ao comparecer à Estação Comunitária do
Jardim Gonzaga, fui recebido pelas crianças correndo em minha direção e abraçando-
me, principalmente por Michael Jackson, Joel, Liliam, Gilson, Letícia e Jaqueline,
sempre perguntando sobre o que fariam naquele dia, permanecendo abraçadas ou de
mãos dadas enquanto caminhávamos (X-16), conversávamos com outras pessoas ou
entre o grupo. Sempre carinhosas e observadoras, elas percebiam até mudanças em meu
corpo ou minhas roupas e acessórios - relógio, tênis ou corte de cabelo - (VIII-6).
Num dos encontros, Michael Jackson, em gritos, saltos e sorrisos falou:
“‘Professor! Professor! Hoje vai ter Karatê, né?’. Eu brincava, sorria e balançava
Michael Jackson, que abraçou e me puxou pelos braços. Roberto, Mirian e Jericó
também se aproximaram, abraçando-me e perguntando sobre a oficina. Respondi as
perguntas e brincava com aqueles que me puxavam pelos braços, balançando-os para os
lados” (V-1).
60
Inclusive o Fabiano, que atuou como educador durante alguns anos na
unidade, foi lembrado pelas crianças e recebido carinhosamente quando ministrou a
vivência em Jogos Indígenas e Huka-Huka junto a Jeika – ver figura 6 - (XIII-1).
Figura 6: Participante da oficina e o educador Jeika Kalapalo durante a vivência dos
Jogos Indígenas e o Huka-Huka na ECO.
Esta afetividade também foi percebida pelos próprios participantes
durante a oficina, nos momentos em que compartilhavam com o outro aquilo que
aprenderam, falando com atenção, procurando detalhar aquilo que se viu, demonstrando
e às vezes tocando no corpo do outro enquanto lhe ensinava o movimento nos jogos e
brincadeiras, ou nas rodas de conversa, sentados juntos, abraçados ou apoiados no colo
do amigo ou da amiga.
No final do encontro com o grupo de Judô, na caminhada em retorno à
ECO, algumas crianças trouxeram consigo alguns biscoitos e um iogurte. Percebi elas
dividirem tudo entre si, oferecendo e repartindo um pouco daquilo que traziam,
demonstrando um compartilhar seu alimento (XII-18).
A postura dialógica entre educador e educando/a ocorreu principalmente
durante o período de inserção e desenvolvimento das primeiras atividades com as lutas,
nas quais se respeitou o saber de experiência feito da comunidade e sua cultura,
dialogando sobre aquilo que viveram e conheceram sobre a temática, propondo
atividades e brincadeiras que envolvessem a todos e todas; também ocorreu em
discussões durante as conversas de rodas ou mesmo demonstrações dos movimentos
que conheciam.
Uma constante interação nas atividades, juntamente com os diálogos e
propostas de todos e todas, proporcionou um ambiente fértil de processos educativos
61
relacionados a valores e questões cotidianas como competitividade, cooperação,
solidariedade e respeito.
C) Resolvendo os Conflitos
Nos encontros com o grupo, em diversos momentos ocorreram situações
de conflitos verbais ou físicos entre os participantes.
Durante o período de intervenções com as lutas, por exemplo, Michael
Jackson brigou com Jacó (IV-5) durante uma brincadeira; Amanda, com Mirian (V-9)
para compartilhar os materiais da aula; e Pedro com Laura chegou a rasgar o Diário do
Karatê
21
de Laura (VII-18,19 e 20) após uma discussão e conflito físico.
Na resolução destes conflitos, procurei sempre intervir no sentido de
estabelecer o diálogo ao invés da retaliação, ora pela separação dos envolvidos seguida
pela conversa aproximadora, ora em reuniões com os outros educadores (VIII), que
conjuntamente trabalharam esta atitude há anos.
Avanços significativos são notados, visto que o número de incidências
tem diminuído segundo informaram os próprios educadores, durante as reuniões
mensais organizadas na própria Estação Comunitária, das quais participei.
Um exemplo de busca de resolução dos conflitos pelo diálogo ocorreu
durante a atividade com os Diários do Karatê, que Amanda brigou com Mirian,
ofendendo-a com palavras de baixo calão, pois não queria compartilhar com ela os lápis
de colorir. Foi preciso interromper a atividade entre as duas meninas e conversar
calmamente com elas. Disse à Amanda: “’Poxa, Amanda, por que você não quer deixar
ela usar os lápis?’ (...) ‘mas você sabe que o material é da oficina, é de todos! Nós todos
podemos usá-los! Não é?’. Amanda percebeu o erro que cometera e ficou irrequieta,
fazendo “manha”; afastou-se um pouco na mesa, puxou os lábios fazendo “bico” e
respondeu: ‘Tá bom! Tá bom!’, continuando a pintar seu Diário” e Miriam ficou apenas
ouvindo, sem manifestar-se após a resposta da colega. (V-10).
Outra forma de evitar conflitos também ocorreu durante a proposição das
atividades, situação em que o diálogo permitiu modificar as regras ou mesmo a
atividade proposta, criando uma esfera horizontal nos relacionamentos entre educador/a
e educandos/as.
21
Disponível no Apêndice 4.
62
Na brincadeira chamada de “Roubar o pano”
22
, alguns optaram por
colocar a tira de papel nas mangas de suas blusas, e Michael Jackson propôs: “’Deixa
qualquer lugar professor!’. Coloquei a proposta dele em votação, e todos foram
favoráveis à livre escolha do local de fixação da tira de papel”(IV-2). Similar também
foi o encontro sobre os Jogos Indígenas e o Huka-Huka, no qual Fabiano perguntou aos
participantes sobre a extensão do campo em que correriam durante a brincadeira
“Emusi
23
(ver figura 7), e Michael Jackson junto a Gilson propuseram o campo todo
(XIII-12).
Figura 7: Participantes da oficina com o educador Fabiano Maranhão na brincadeira chamada
“Emusi”, durante a vivência dos Jogos Indígenas e o Huka-Huka na ECO.
Num dos encontros, durante a organização da brincadeira dos
“Predadores”
24
, foi necessária uma improvisação desta brincadeira, pois a confusão
ocorrida na distribuição das bexigas e nos tumultos provocados por crianças externas à
oficina quase inviabilizou a sua proposta (V-6); ou mesmo uma simples adaptação da
brincadeira, chamada “Correio”
25
, quando planejei utilizar o giz para desenhar os
círculos no chão, mas a irregularidade do espaço apontou-me outra possibilidade, a de
utilizar o próprio local, como mesas e bancos de cimento (VII-6).
No período de intervenção com as lutas, as alterações em busca de
reduzir os conflitos não consistiram apenas em relacionar as “regras” das atividades aos
participantes, mas também envolveram adaptações no próprio andamento da oficina
com a comunidade, como quando transferimos o local dos encontros da quadra para o
22
Ver descrição da brincadeira no Plano de Aula nº 2, disponível no Apêndice 3.
23
Ver descrição pormenorizada em: Herrero e col. (2006), p.138.
24
Ver descrição da brincadeira no Plano de Aula nº 3, disponível no Apêndice 3.
25
Ver descrição pormenorizada em: Marcellino (2002), p.70.
63
pátio ao fundo do campinho de futebol, devido aos conflitos constantes com os
frequentadores da ECO, que desejavam utilizá-la no mesmo período da nossa oficina
(IV-1 e XIII-5).
As modificações na estruturação das atividades por meio do diálogo entre
os participantes e o educador, numa constante negociação entre si nos vários momentos
do encontro, são vistas pelos/as educadores/as não como forma de harmonizar,
conciliar, combinar posições, mas de convocar cada um dos participantes a se expressar
e a, juntos, construírem as atividades (SILVA e col., 2007).
Essa construção das atividades, muitas vezes, requer do/a educador/a
uma postura flexível durante o próprio diálogo, motivando o/a educando/a a participar, a
expressar-se e a construir com o grupo.
D) Lutando pela Vida
Em várias unidades de significado, podemos observar a grande
importância da inserção, do compromisso e convívio do pesquisador com grupo no qual
vai trabalhar, em processos educativos que se dão na prática em si, tendo contato com o
“mundo-vida” daqueles que são os colaboradores imprescindíveis deste pesquisar
(SILVA e col., 2007).
Essa inserção permite ao pesquisador apreender algumas das dificuldades
vividas pelo grupo no qual se insere, como a marginalização social e econômica.
No período de intervenção com as lutas, na proposta de tarefas escritas
com o Diário do Karatê, compreendi a pouca adesão dos participantes ao material
devido a maioria deles e delas não saberem ler/escrever (V-9; VII-16 e 17).
Na coleta dos termos de consentimento livre e esclarecido junto aos
familiares e responsáveis, deparei-me com uma grande parcela de pessoas que não
sabiam ler/escrever, nem mesmo sua data de nascimento. A condição precária de
algumas famílias fica ainda mais evidente ao conversamos mais calmamente com os
moradores, oportunidade em que, soube com frequência, a partir das próprias crianças,
de casos com parentes desempregados ou em reclusão.
Na Estação Comunitária, em uma das conversas com a educadora Maria,
falávamos sobre Jericó e sua família, quando ela me relatou as constantes reclamações
sobre seu comportamento nos projetos e no bairro, bem como o pai estar preso e a mãe
desempregada. Os desafios desta criança para sobreviver, a luta pela vida que ele
enfrenta diariamente nestas condições podem ser facilmente mal interpretadas, caso o
64
pesquisador não respeite a história e cultura da comunidade (VIII-1).
Conhecer a comunidade e as pessoas envolvidas na prática social na qual
se pretende inserir requer cuidado, atenção, respeito, flexibilidade, sensibilidade e
dedicação do pesquisador, pois apenas por meio disso a investigação pode revelar os
diferentes significados dos processos educativos, como a própria luta pela vida no
enfrentamento de diversas dificuldades.
Essas relações entre a comunidade e os/as educadores/as podem
contribuir na redução de algumas adversidades e melhora da qualidade de vida, por
exemplo, a deficiência auditiva identificada em Horácio durante dos projetos em 2004,
que praticamente impedia sua comunicação verbal, chegando a ser visto pelos familiares
e amigos como um deficiente mental.
A partir daí, ele foi encaminhado para o acompanhamento com
fonoaudióloga na Unidade de Saúde da Família do bairro, que fica situada ao lado da
própria Estação Comunitária. Atualmente, Horácio tem a comunicação verbal por meio
dos gestos e leitura labial e desenvolve-se com ajuda dos colegas e educadores/as.
As contínuas perguntas relacionadas aos horários em que serviríamos os
lanches (ver figura 8) demonstram outro desafio enfrentado pelos/as educandos/as (X-5;
IX-5 e 13; XII-19) e seus familiares: a fome, forçando alguns até a deixarem a oficina
para auxiliarem nas tarefas da casa ou em busca de trabalho que ajude no sustento da
família (I-2).
Figura 8: Participantes da oficina durante o lanche após a vivência em Jiu Jitsu.
Depois de participarem por vários meses da oficina, Joel e Michael
Jackson tiveram de ajudar seu pai a cuidar do irmão mais novo, buscando-o ao final das
aulas na escola, o que ocorria no mesmo horário dos encontros (V-2 e VII-3).
65
Da mesma forma, Erick e Alex deixaram a oficina por terem conseguido
emprego (I-2 e II-1), o qual, segundo eles, era importante para o sustento da família.
Na prática das brincadeiras com as lutas esses desafios podem ser
apreendidos quando Joel praticou um pouco de Judô com o professor Sebá; o seu
esforço e dedicação ficaram visíveis em seu rosto, olhos fixos, atenção nos movimentos
do educador, procurando derrubá-lo e, nos momentos em que caía, não desistia:
levantava-se e voltava a lutar com o professor (XII-15). Noutro encontro, na vivência
em Huka-huka, Tomas brincava com Jeika e demonstrava força de vontade em aprender
com o indígena e dedicava-se para “vencer” o desafio colocado na atividade (XIII-21).
Portanto, a partir da prática social da “brincadeira de lutar” e da
investigação dos processos educativos envolvidos nas intervenções com as lutas, junto à
população frequentadora da Estação Comunitária do Jardim Gonzaga, identificamos
particularidades que revelaram a importância da proximidade entre o educador/a-
educando/a, a sentir/perceber/apreender a diversidade cultural pela experiência em
grupo, respeitando a si mesmo e ao outro, aos seus saberes e experiências, reconhecendo
a importância de ser persistente e não esmorecer diante das adversidades colocadas pela
vida.
66
CONSIDERAÇÕES
As considerações, neste estudo, não possuem a pretensão conclusiva
acerca desta temática, pautadas na fenomenologia; pretendem compartilhar algumas das
inúmeras perspectivas des-veladas, possibilitando reflexões e críticas que contribuam
para novos olhares e novas investigações.
Desde logo registramos que, na convivência com os participantes,
educadores/as, familiares e comunidade frequentadora da Estação Comunitária do
Jardim Gonzaga (ECO), muito aprendemos, particularmente, com duas palavras: desafio
e persistência.
Os desafios se iniciaram com os aspectos físicos e estruturais
(saneamento básico no bairro é algo recente, recursos físicos e materiais na ECO por
vezes são insuficientes), o que remetia o pesquisador a situações únicas, de autocrítica,
de descentramentos, entendidas como fundamentais na construções de novos valores,
novos aprendizados no cotidiano da ECO, do bairro, do grupo de participantes, da
comunidade.
Outro desafio vivido no dia a dia que muito atormentava e doía neste
pesquisador era a impressão de fome que passava parte dos participantes, percebida
desde os encontros ocorridos no período de inserção na comunidade, quando os ouvia
frequentemente perguntarem aos educadores do projeto Vivências em Atividades
Diversificadas em Lazer sobre quando seria servido o lanche, algumas vezes inclusive
no início do encontro, demonstrando avidez pelo alimento. Quando os questionava
sobre estarem com fome tão cedo, alguns relatavam não ter comido nada em casa ao
acordarem e outros até relatavam não terem comido no dia anterior (Diário de Campo I,
II e III – Apêndice I) e, nos próprios encontros na oficina de lutas, nos quais contamos
com lanches apenas quando da visita de educadores de outros grupos de práticas de
lutas (IX, X; XII e XIII).
Dificuldade também encontrada na pesquisa desenvolvida na mesma
comunidade por Matheus Oliveira Santos (2007), que assim relata:
Em relação ao momento do lanche, antes de ser assistencialista, converte-se
em tempo/espaço no qual, além de comermos, dialogamos uns-com-os-
outros, e assim, conhecemos um pouco mais as pessoas. De todo modo, não
posso deixar de salientar o significado que os participantes dão a esse
momento, no sentido de poderem se alimentar, pois muitos deles têm
dificuldades financeiras, sendo o lanche fundamental (p.134)
67
Esta interpretação dada aos momentos do lanche é também por nós
compartilhada, pois durante as caminhadas até o Centro Comunitário, onde eram
servidos os lanches, conhecíamos o bairro e seus moradores, os espaços, as brincadeiras
realizadas pelas crianças em suas casas e na rua. No próprio refeitório do Centro
Comunitário, conversávamos com as crianças sobre seu cotidiano, o que faziam na
escola, ou do que brincavam com seus amigos e amigas, conhecendo um pouco mais do
mundo-vida deles, simultaneamente, estabelecendo um contato mais profundo e sincero.
Em outras palavras, o aprendizado proporcionado pelo desenvolvimento
desta pesquisa para mim foi fundamental e singular, incorporado de uma gratidão a
todos/as os/as envolvidos/as, sem palavras que consigam expressar tal sentimento.
Para além das questões materiais, certamente outro desafio encontrado
neste estudo foi a construção de uma nova perspectiva de trabalho com as lutas. Haja
vista que, em sua maioria, elas se caracterizam pela fragmentação (do simples para o
complexo ou da parte para o todo) e repetição (rotina fixa) dos movimentos, não
necessariamente vinculada à tradição de ensino e de aprendizagem das lutas, mas
apenas a uma esportivização.
A partir daí, envolvido com a pesquisa das lutas em projetos anteriores,
como o da própria monografia envolvendo a prática do Karatê-Do na Educação Física
Escolar, inspirados na pedagogia dialógica e identificando a presença das brincadeiras e
das lutas no contexto de lazer da Estação Comunitária, procurou-se observar e criar
conjuntamente novas brincadeiras e valorizar aquilo que já conheciam sobre o tema.
Desta forma, percebendo como as crianças, e mesmo moradores mais
velhos, brincavam e/ou praticavam lutas no bairro, surgiu nossa opção de construir uma
oficina de lutas que partisse de brincadeiras.
Brincadeiras contextualizadas, trazendo marcas da cultura original
(DEBORTOLI, 2004) e, portanto, segundo Leila Mirtes Santos de Magalhães Pinto
(2007), pressupõem aprendizagem social, fruto das descobertas diárias na família, no
lazer, no bairro, no trabalho, na vida em comunidade e nos outros tempos e espaços
cotidianos.
Como exemplo, a “suruba”, realizada durante o período de inserção
(Diário de Campo I, Apêndice I), com a qual aprendemos além de uma nova brincadeira
um novo significado para a palavra. Já na brincadeira “roubar o pano”
26
, alguns
26
Ver descrição da brincadeira no Plano de Aula nº 2, disponível no Apêndice 3.
68
participantes optaram por colocar a tira de papel nas mangas de suas blusas ao invés de
colocá-las na parte de trás da cintura dos calções, quando o participante Michael
Jackson propôs: “’Deixa qualquer lugar, professor!’. Coloquei a proposta dele em
votação, e todos foram favoráveis a livre escolha do local de fixação da atira de
papel”(IV-2). Similarmente também ocorreu no encontro sobre a Capoeira e o Huka-
Huka, em que se discutiu a extensão do campo a ser utilizada na brincadeira conhecida
como “Emusi
27
, quando Michael Jackson e Gilson propuseram o campo todo (XIII-
12).
Neste estudo, as experiências com a pedagogia dialógica possibilitaram
uma experiência concreta sobre o valor da con-vivência na comunidade estudada. O
cotidiano vivido nas reuniões junto aos/as educadores/as e as conversas com os
participantes e seus familiares permitiram sentir um pouco mais do mundo-vida dessas
pessoas.
Consideramos que o constante diálogo entre todos proporcionou
ambiente a processos educativos relacionados a autonomia, cooperação, solidariedade,
respeito e, partindo do saber de experiência feito. No planejamento e desenvolvimento
das vivências em lutas, houve um ambiente de participação contínua e ativa dos
integrantes, os quais propuseram, modificaram, criaram, discutiram e dialogaram sobre
as brincadeiras, as práticas de lutas, a estruturação do cronograma dos encontros,
favorecendo o harmonizar, o conciliar, o combinar posições, o construir juntos as
atividades e suas regras. Conforme ressalta Pinto (2007) em sua compreensão de lúdico,
ao repensarmos juntos as brincadeiras, nos envolvíamos em um processo de
criatividade, mistério e liberdade.
Nesse sentido, pensarmos o lúdico como expressão humana de
significados da/na cultura referenciada no brincar consigo, com o outro, com o contexto,
reflete as tradições, os valores, os costumes e as contradições presentes em nossa
sociedade. Assim o lúdico é construído culturalmente e oferece oportunidade para
(re)organizar a vivência e (re)elaborar valores (PINTO, 2007), questionando que tipo de
lúdico está sendo provido nesta sociedade e, nesta esteira, que brincadeiras e lutas.
Sobre o tema, Pinto (2007) rechaça a escolha de brincadeiras com
perspectivas utilitaristas, como um meio de “evasão da realidade” (p.143), mascarando
27
Ver descrição pormenorizada em: Herrero e col., 2006, p.138.
69
injustiças sociais e estimulando a passividade, sublinhando as ideologias dominantes
perceptíveis na sociedade de consumo.
Valores, no entanto, hegemônicos que permeiam as próprias instituições
educacionais (escolas, universidade, etc.) e, sutil e ideologicamente, os meios de
comunicação de massa, onde em ambos historicamente se tem apresentado gato -
cultura imperial burguesa - por lebre - natureza humana - (DUSSEL, s/d, p.182-183).
Há, assim, uma mitificação dos costumes e da cultura (DUSSEL, s/d),
uma uniformização cultural que nega a memória e deprecia o cotidiano dos grupos que a
sociedade marginaliza (SILVA, 2003).
O reconhecimento e valorização da cultura do Outro (africana, indígena,
oriental) e não exclusivamente da cultura dominadora (européia e estadunidense) podem
e devem se dar em ambientes não escolares e também escolares, pois também a escola
carece da contextualização de seus conteúdos a partir do povo e com o povo. No caso
específico do nosso estudo, sugerimos a necessidade de tratar o conteúdo lutas na
Educação Física Escolar observando suas origens e aliando a isso reflexão radical sobre
sua prática contemporânea.
Apesar das inúmeras críticas atribuídas às propostas governamentais
estruturadas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), reconhecemos os
avanços obtidos a partir da sua implementação por alguns educadores/as, ainda que o
conceito de lutas indicado no documento
28
não contemple o sentido que desejamos. Ele
sugere vivenciar “diferentes práticas corporais advindas das mais diversas
manifestações culturais” (BRASIL, 1997, p.23), caminhando na mesma perspectiva da
proposta curricular do Estado de São Paulo para o ensino de Educação, a qual aponta as
lutas como integrante do grupo de “grandes eixos de conteúdo” (SÃO PAULO, 2008,
p.43) e acusa a sua transformação em produto de consumo e objeto, por meio de
informações amplamente divulgadas ao grande público, num bombardeio de imagens e
enunciados que propõem um padrão de beleza corporal a ser alcançado por todos.
Concordamos com Suraya Cristina Darido e colaboradores (2001) ao
considerarmos que grande parte dos docentes nas escolas não tiveram, em suas
28
As lutas são disputas em que o(s) oponente(s) deve(m) ser subjugado(s), mediante técnicas e
estratégias de desequilíbrio, contusão, imobilização ou exclusão de um determinado espaço na
combinação de ações de ataque e defesa. Caracterizam-se por uma regulamentação específica, a fim de
punir atitudes de violência e de deslealdade. Podem ser citados como exemplo de lutas desde as
brincadeiras de cabo-de-guerra e braço-de-ferro até as práticas mais complexas da capoeira, do Judô e do
caratê” (BRASIL, 1997, p.37).
70
formações universitárias, as dimensões dos conteúdos apresentadas neste documento
29
,
além de reconhecermos a própria dificuldade relacionada à “tradição que acompanha
cada uma das áreas, o que dificulta a incorporação de outras maneiras para se trabalhar
com os conteúdos” (p.12).
São poucos os cursos de Educação Física, seja de licenciatura, seja de
bacharelado, segundo Luiz Gonçalves Junior e Alexandre Janotta Drigo (2001), que
contemplam as lutas em sua grade curricular. Às vezes, os/as educadores/as não se
sentem aptos a trabalhar algumas modalidades, possivelmente pela crença da
necessidade de um domínio dos movimentos técnicos relacionados a determinadas lutas.
Acaba-se por esquecer os diversos contatos e experiências nas múltiplas
manifestações da cultura corporal relacionada às lutas e suas correlações com o
cotidiano dos/as educandos/as; em outras palavras, desconsideram-se os seus saberes de
experiências feitos, por exemplo, aquelas proporcionadas pela própria mídia em
desenhos animados, rádio, jornais, filmes, canais, revistas e sites
30
, ou mesmo nas
brincadeiras com movimentos similares, como um chute no futebol e os toques do pega-
pega, como foram relacionados nas atividades vividas durante a oficina.
Ao desconsiderar essas experiências ou ter a crença da necessidade de
dominar os movimentos técnicos das lutas para contemplá-las, o/a educador/a se
esquece da possibilidade de construir este conteúdo com o/a educando/a, de aprender
com o educando/a.
Paulo Freire (2005) nos alerta que não há diálogo sem humildade, e esta
última, aliada à solicitude apresentada por Heidegger (1981), torna-se fundamental no
ato de educar. Diferente da expressão conhecida como “dar voz” aos/as educandos/as, é
necessário ouvi-los, reconhecer o Outro e a sua possibilidade de ser mais, partindo do
entendimento de que a autossuficiência é incompatível com o diálogo, e a própria
educação “não pode ser um ato arrogante” (FREIRE, 2005, p.92).
Reconhecemos os desafios e crenças dispostos anteriormente neste texto,
relacionados à formação dos professores de Educação Física, mas identificamos como
primordiais a elaboração e execução comprometidas de novas perspectivas no trabalho
com a Educação Física e com as lutas particularmente.
29
Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997).
30
Alguns exemplos de desenhos animados: “Street Fighter”, “Karate Kid”, “Dragon Ball Z”; Revistas:
“Tatame”, “Fighter Magazine”, “Nocaute”; Canais televisivos: “Premiere Combate”, “SporTV; Filmes:
“Jogo da Morte”, “O grande dragão branco”; “Kung Fu Panda”; Sites: “Bushido-Online.com.br”, “Super
Lutas.com.br”; dentre outros exemplos e formas de comunicação, com seu conteúdo direcionados ou não
exclusivamente para as lutas.
71
Visualizar essas condições de dificuldade para sobreviver nos leva a
refletir sobre quais os caminhos que a educação escolar e não escolar está tomando. E se
se leva em consideração os reais desafios enfrentados por estas crianças e jovens de
comunidades como a do Jardim Gonzaga, quais os princípios e valores suleadores
destas propostas educacionais - sejam elas governamentais ou não - Preparam-nos para
a vida.
Ao dialogarmos com textos de pensadores como Paulo Freire, Ernani
Maria Fiori e Enrique Dussel, com os quais compartilhamos nossos ideais, vemos quão
questionáveis e insustentáveis são as propostas educacionais com valores alicerçados no
eurocêntricos.
Dussel (1977) alerta-nos serem as virtudes e valores do centro e das
classes dominadoras alienação para a “periferia”; logo, repensá-los torna-se
fundamental, pois os métodos de opressão e suas posturas não podem,
contraditoriamente, servir à libertação do oprimido; devemos buscar, não uma
“pedagogia para ele, mas dele” (FIORI, 2005, p.7), que permita sua libertação destes
pressupostos hegemônicos e universalizantes.
Entendemos esta educação libertadora, não como método de ensino, mas
sim de aprendizagem; com ela, o homem não cria sua possibilidade de ser livre, mas
aprende a efetivá-la e exercê-la, “pensar e viver a educação como prática da liberdade”
(FIORI, 2005, p.18).
Pensar estsa educação como prática de liberdade nos faz refletir o próprio
significado do educar-se, o qual possui diferentes compreensões para outras culturas,
como apresentado por Silva (2003) - entendimento compartilhado por nós neste
trabalho.
Segundo a autora, o termo educação é utilizado para se referir a
conhecimentos, valores, posturas ensinados em estabelecimentos de ensino e, essa
mesma palavra não existe nas línguas tradicionais africanas; ela entra em África com as
escolas, tais como concebidas, organizadas e implantadas pelos europeus, trazendo
consigo o emprego dos termos educar e ser educado relacionando a posturas, valores,
comportamentos, conhecimentos reconhecidos pela classe social e grupo racial branco.
No mesmo artigo, tanto para africanos quanto para afrodescendentes, a
palavra educar-se refere-se a um sentido mais amplo de tornar-se pessoa, o que
traduzem como aprender a conduzir a própria vida (SILVA, 2003, p.181), que é
construída no seio comunidade e não adquire seu sentido apenas no avançar individual,
72
mas no fortalecimento do grupo a que pertencem. Caso contrário, na escolarização
formal, teríamos uma pessoa estudada, e não educada, conforme o entendimento
pretendido no estudo.
Sendo assim, o aprender a conduzir a própria vida inicia quando a
criança nasce, passa pelo tempo de escola, num processo de constantes trocas com quem
se convive (família, próprio grupo étnico-racial, trabalho, terreiros, igrejas, sindicatos,
escolar, parques, clubes, dentre outros) e continua sempre até morrer (SILVA, 2003).
Desse modo, a comunidade, como os estabelecimentos de ensino, promove
conhecimentos que serão úteis se responderem de modo consistente às exigências da
vida; e em seu círculo de cultura ambos permitem que não apenas se ensine, mas se
aprenda em “reciprocidade de consciências” (FIORI, 2005, p.10).
As exigências da vida podem se manifestar em diferentes contextos e
situações, implicando nessa reciprocidade, nesse aprender em comunhão/comum-união,
uma superação da contradição educador/a-educandos/as, de tal maneira que se façam
ambos, simultaneamente, educadores/as e educandos/as (FREIRE, 2005).
As categorias “resolvendo conflitos” e “aprendendo com o Outro”
indicam alguns caminhos possíveis para a superação desta contradição, porque, ao se
propor a resolução dos conflitos com o grupo por meio do diálogo e a observação dos
aprendizados entre os/as educandos/as e do próprio educador com a comunidade, seus
costumes, suas vivências e experiências, os aprendizados se deram reciprocamente, e
não linear ou unidirecionalmente.
A postura flexível na construção das atividades com os participantes, o
próprio diálogo antes, durante e depois de cada encontro, motivando os/as educandos/as
a participarem, a expressarem-se nas brincadeiras, compartilharem o que aprenderam
com o/a outro/a e a construírem com o grupo estão no sentido de tornar-se pessoa
citando anteriormente.
Esse mesmo desafio mostrou-se também no aprendizado envolvendo-nos
como pesquisadores ao compreendermos e nos mobilizarmos em busca de alternativas
para superar a resistência em alguns meninos e meninas que haviam praticado as lutas
em ambientes mais formais (como academias ou grupos de treinamento), apresentando
aparente condicionamento por um estilo de ensino mais diretivo. Porém, ao insistirmos
na idéia de compartilharem suas experiências com os mais novos e a relação com as
brincadeiras conhecidas por eles e elas, as atividades desenvolveram-se com fluidez,
havendo participação ativa e constante dos envolvidos.
73
Outros desentendimentos manifestaram-se de diferentes formas, como
discussões e até mesmo conflitos corporais entre as crianças; contudo, houve sempre a
postura de resolvê-los pelo diálogo entre os envolvidos, opinião compartilhada por
todos/as os/as educadores/as da ECO.
As brigas não foram vistas apenas como uma dificuldade, mas como
fonte de diálogo sobre as formas de resolução dos conflitos escolhidas pelo grupo, e
suas possíveis consequências. No encontro
31
em que Pedro brigou com Laura, os
próprios participantes comentaram não aprovar a atitude do colega, gerando uma
reflexão sobre sua conduta e o que aquilo trazia para o grupo.
As reflexões feitas pelo grupo e a forma como procurou resolver seus
conflitos contradizem a ideia equivocada que atrela a baixa condição econômica de
algumas crianças a uma atitude violenta, desmistificando esse preconceito.
Por vezes, a resolução de conflitos também se relacionou com a
brincadeiras, suas “regras”, e procurou-se sempre conversar sobre os jogos e atividades
conhecidas na comunidade, num resgate das experiências junto ao grupo, oportunidade
na qual aprendemos mais de sua cultura e formas de se relacionar, visível nos encontros
em que discutimos as relações do respeito ao outro no Dojo Kun
32
e o comentário das
crianças sobre suas experiências nas escolas ou em casa, com mudanças percebidas por
outros/as educadores/as da própria ECO
33
, ou em cada atividade, pois em qualquer
momento todos poderiam propor modificações e emitir sua opinião.
Essas percepções e aprendizados não se dão instantaneamente, muitas
vezes manifestam-se de distintas formas e situações, como, nos olhares, no jeito de
andar, no ritmo da fala e nas expressões corporais, aperto de mãos, abraços, na própria
afetividade que possibilita sentir/perceber/apreender cada momento na esfera única em
que ocorrem.
As percepções dessa proximidade com o mesmo bairro também
trouxeram um aprendizado a Santos (2008), que é compartilhado por nós, ao dizer que
Os abraços, os apertos de mãos, uma frase dirigida com amor, fizeram com
que me sentisse parte do bairro e da vida daquelas pessoas, que para mim são
“mágicas”, pois com todas as adversidades no dia-a-dia, são pessoas que
transmitem muita vontade de viver e muita alegria (p.134).
31
Diário de Campo VII, disponível no Apêndice 2.
32
Dojo Kun são os princípios, os lemas que guiam o Karateca dentro do seu aprendizado. FEDERAÇÃO
PAULISTA DE KARATÊ-DO TRADICIONAL. Disponível em: <http://www.fpktradicional.com.br>.
Acesso em: 25 abr. 2004.
33
Diário de Campo VIII, disponível no Apêndice 2.
74
Essa vontade de viver, colocada pelo autor, não se difere da própria luta
pela vida, categoria encontrada neste estudo, a qual discute as dificuldades enfrentadas
pelos moradores do bairro, como o analfabetismo, a fome, o desemprego, a
marginalização econômica e social percebidas no dia-a-dia da própria oficina e na
convivência com a comunidade.
Essa convivência e inserção não teriam sentido sem um
comprometimento com o grupo, a partir do qual a afetividade e a proximidade ganham
um sentido coerente com a educação libertadora.
Aproximar-se das coisas, para usá-las, tomá-las, comprá-las, vendê-las;
tocar algo, palpá-lo ou compreender um ser neutro é diferente de aproximar-se de
alguém com fraternidade, de beijar com amor, abraçar o Outro, pois o ser humano nasce
do Outro e não de alguma coisa; ele ou ela é com o Outro no mundo, com seus
costumes que estão aí e, se vividos intensamente pelo/a educador/a na justiça, este se
encarrega da responsabilidade pelo Outro, pelo oprimido (DUSSEL, 1977).
A afetividade e a própria proximidade são dados culturais manifestados e
interpretados de diferentes formas, dependendo do contexto e cultura, como a própria
saudação entre os ocidentais com o aperto de mãos, e a reverência ou vênia, realizada
por alguns povos orientais.
A proximidade foi vivida de muitas formas, desde o período de inserção
no projeto “Vivências em Atividades Diversificadas em Lazer” até a oficina de lutas,
nos beijos e abraços na recepção dos educadores no início dos encontros, durante as
caminhadas de mãos dadas para o lanche no Centro Comunitário ou mesmo durante as
atividades, nas quais sempre havia um participante próximo, abraçado ou de mãos dadas
com algum educador ou educadora.
Encontrar-se com os participantes em meio a gritos dos nomes, abraços e
muitos empurrões e puxões pelos braços, com alegria e sorriso, eram momentos
especiais; traziam, além da satisfação e felicidade no trabalho, a consciência de que ser
aceito e aprender envolve um compromisso legítimo com o grupo.
Esse compromisso está no respeito à autonomia e liberdade do/a
educando/a, sem as quais não haveria sentido no ser humano (DUSSEL, 1977).
Legitima-se no querer bem o/a educando/a, na amorosidade que sela a autenticidade de
nosso compromisso com a educação libertadora, no educar como um ato de amor,
75
daquele que se aproxima em fraternidade e estabelece, solidariamente com o oprimido,
o diálogo verdadeiro.
A amorosidade e a própria solidariedade não podem confundir-se com a
falsa generosidade, apontada por Freire (2005): descobrir-se na posição de opressor ou
mesmo prestar assistência e “racionalizar” sua culpa paternalistamente.
A solidariedade verdadeira com eles está em com eles lutar para a
transformação da realidade objetiva que os faz ser este “ser para outro”, pois:
só na plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua práxis, se
constitui a solidariedade verdadeira. Dizer que os homens são pessoas e,
como pessoas, são livres, e nada concretamente fazer para que esta afirmação
se objetive, é uma farsa (p.40).
Partindo do entendimento de que a solidariedade envolve uma relação
direta e comprometida com o outro, de que ninguém se conscientiza separadamente dos
demais (FIORI, 2005), torna-se fundamental considerar a todos os envolvidos de modo
conjunto, dialogando com a comunidade, periodicamente, selecionando, refletindo e
avaliando de modo compartilhado os conteúdos e formas escolhidos para os trabalhos
no bairro, na escola, no parque ou como na própria Estação Comunitária do Jardim
Gonzaga. Isso vem sendo feito, com a participação das merendeiras, faxineiras,
educadores/as físicos, terapeutas ocupacionais, psicólogos, assistentes sociais,
estudantes da universidade em estágios, membros da prefeitura e organizações não
governamentais ligadas a ECO.
Ao considerarmos todos os envolvidos, tivemos a oportunidade de
vivenciar diferentes manifestações culturais, de perceber, reconhecer e desmistificar
certas ideologias, como no encontro de Capoeira
34
, no qual as crianças inicialmente não
se reconheciam como negras ou descendentes de africanos, ou as relações a origem
indígena dos nomes de alguns participantes
35
.
No encontro para a vivência do Judô
36
, por exemplo, experienciamos a
visão machista de alguns participantes com relação à prática das lutas por mulheres.
Este assunto torna-se relevante ao analisarmos o panorama da prática de
algumas lutas por mulheres. Reconhecemos o histórico militar e sua formação quase
que exclusivamente por homens em algumas das lutas praticadas por diferentes, porém,
34
Diário de Campo XI, disponível no Apêndice 2.
35
Diário de Campo XIII, disponível no Apêndice 2.
36
Diário de Campo XII, disponível no Apêndice 2.
76
na própria atualidade, ainda encontramos uma proporção majoritária de homens
praticando lutas como Judô, Karatê-Do, Kung Fu, Capoeira, dentre outras. E esta
proporção fica ainda mais desigual quando observamos o cenário do ensino ou
competições esportivas profissionais por mulheres. No Sumô, por exemplo, não são
permitidas competições profissionais por mulheres, e no mesmo país, Japão, há a prática
de um estilo de luta utilizando-se de uma arma chamada de Naginata
37
, praticada em
sua maioria por mulheres.
Outra ideologia disseminada é a suposta masculinização ou perda da
feminilidade por parte das mulheres que praticam tais lutas, muitas vezes advindas dos
traços de agressividade de algumas lutas, como se fossem a persistência, determinação,
coragem, ou outros, atributos exclusivos ao homem, e não advindas da construção social
entre os seres humanos.
Tal perspectiva machista tem suas origens na mesma cultura eurocêntrica
e falocrática, a qual domina e desarma o oprimido, com o discurso de debilitá-lo,
docilizá-lo, conduzi-lo habilmente à civilização, usando e manipulando-o com a
pretensão de respeitar sua liberdade, atrelando a natureza humana à cultura imperial,
desprestigiando a cultura popular, como se nada tivesse a dizer ou a ensinar (DUSSEL,
s/d).
No entanto, nem a mais feroz dominação é capaz de coisificar totalmente
o ser humano, sendo ele mesmo o próprio autor de sua libertação quando toma sua
existência em suas mãos, quando protagoniza sua história (FIORI, 1986), como nos
alerta o ditado: “não está morto quem peleja”.
As lutas são uma manifestação desse protagonizar sua própria história,
visto que o ser humano, homem ou mulher, luta não apenas nas guerras e conflitos
bélicos, mas quando cotidianamente busca sobreviver diante das adversidades da vida,
dos desafios colocados em seu caminho.
As tradições ligadas à prática das lutas, sejam no ensino com bases
militaristas ou machistas, sejam na perpetuação de aspectos mercadológicos, não devem
corromper o significado do conceito de tradição, que permeia não só as lutas, mas a
própria história do ser humano.
37
A Naginata é uma arma de origem nipônica, constituída por uma longa haste de madeira e uma lâmina
de metal na extremidade (semelhante a alabarda), possui aproximadamente 2 metros de comprimento.
Historicamente, foi utilizada como defesa por monges budistas, pelas mulheres que integravam as
famílias dos samurais e também destinada nos campos de batalha pelos samurais contra cavaleiros
durante o Japão feudal. Atualmente, as mulheres são a maioria entre os praticantes desta (BUSHIDO
ONLINE, 2009).
77
A compreensão de tradição é equivocadamente feita como a simples
noção de passiva repetição, imitação, recordação, fazendo apenas uma retomada de
costumes antigos, por vezes de forma descontextualizada, ou reconhecendo suas raízes
na cultura e negando-os por não saber o que fazer com eles, ao invés do entendimento
maduro de tradição como re-criação, pois, para resistir, é necessário amadurecer
(DUSSEL, s/d).
Nes,a compreensão de tradição, é fundamental um diálogo intercultural
que fortaleça a autoestima dos povos de origem, sejam africanos, indígenas, orientais,
ou outros. É preciso autovalorizar a alteridade de cada um respeitando e situando sua
história e não negando-a, reconstruí-la procurando reconhecer em nossos dias, as
particularidades das nossas raízes culturais, das suas articulações que nos constroem e
destroem, caminhando para uma educação baseada na construção de novas relações
étnico-raciais (SILVA, 2003), pelo reconhecimento e superação da crença de uma
simetria no diálogo intercultural entre os argumentadores (DUSSEL, 2005).
Consideramos que o contato e conhecimento de diferentes lutas e
culturas nos permitirem também (re)conhecer melhor a nossa própria, possibilitando-
nos o aprendizado do significado de usos, costumes, tradições, desenvolvendo respeito
e valorização ao invés de preconceito e discriminação.
Consideramos ainda que, a partir das vivências em lutas com
aproximação embasada na pedagogia dialógica, identificamos processos educativos
envolvidos/decorrentes que revelaram a importância da proximidade entre o educador/a-
educando/a; o sentir/perceber/apreender a diversidade cultural pela vivência em grupo,
respeitando a si mesmo e ao outro, seus saberes e experiências; a importância de ser
persistente e de não esmorecer diante das adversidades colocadas pela vida.
78
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84
APÊNDICE 1
Diários de Campo realizados entre 15/03/2007 e 21/06/2007, durante o
período de Inserção, junto projeto “Vivências em Atividades Diversificadas de Lazer”,
com o Professor Matheus.
Diário de Campo: I
Data: Quinta-feira - 15/03/2007
Período: Manhã – 8:00h às 11:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
VOLTANDO DAS FÉRIAS
Chegamos aproximadamente às 8 da manhã na Estação Comunitária da comunidade do
Jardim Gonzaga e as crianças foram nos receber no lado de fora, correndo e gritando os nomes dos
monitores e professores do projeto (Luiz, Fabiano), abraçando-nos e saltando sobre nós.
Juntamente com eles, veio Matheus, membro do projeto há muitos anos e também aluno
do mestrado no PPGE, acompanhado de outras duas professoras da rede municipal de São Carlos, Érica e
Rosângela, as quais são contratadas pela prefeitura municipal para atuar na ECO. Além de ministrarem
atividades nos outros dias da semana, auxiliariam nos projetos existentes no local, que era o nosso caso.
Após a calorosa recepção, caminhamos para dentro da ECO e nos reunimos no centro
da quadra, sentamos e conversamos em grupo. As professoras nos foram apresentadas nesta mesma
ocasião.
Matheus então dialoga com as crianças sobre o projeto e o que elas haviam gostado e o
que elas não haviam gostado no ano anterior (2006). Nesta oportunidade, elas comentaram sobre algumas
atividades que gostaram muito, como o futebol, a queimada, a “mãe da rua”, que eles chamavam de
“suruba”, porém, salientaram mais às visitas que fizeram a lugares da cidade, como o SESC, numa
exposição sobre os índios Kalapalo, na UFSCar, com brincadeiras no campus e também uma tarde no
parque esportivo e piscina, citando diversos detalhes e momentos gratificantes.
Matheus então, apresenta-me mais uma vez para o grupo e explica minha presença e
participação no projeto. Disse então qual era o meu nome, expliquei novamente o porquê de estar ali com
eles e também da importância deles para mim e para minha formação na universidade, aproveitando a
oportunidade e pedindo a permissão dos mesmos para realizar este estudo.
Num determinado momento, a Maria (uma das coordenadoras da ECO) aproximou-se e
apresentou duas alunas da UFSCar que iriam desenvolver uma atividade em paralelo com os alunos,
relacionada a desenho e animação com massinha de modelar, fazendo um convite para aquelas crianças
que desejassem participar desta oficina.
Aproveitando a oportunidade, Matheus, Luiz e Fabiano discutiram com eles quais
85
atividades gostariam de realizar naquele dia. Os meninos de imediato votaram no futebol, e as meninas no
vôlei. Matheus negocia então para que todos brinquem de alguma outra atividade antes de partirem para o
vôlei e o futebol e eles escolheram brincar de “suruba”.
Decorridos alguns minutos, iniciamos o futebol e o vôlei. As crianças que optaram por
jogar futebol correram para o campo ao lado da quadra coberta acompanhados pelo Matheus e Luiz, e as
outras ficaram na quadra, ajudando as professoras, o Fabiano e eu a montarmos a rede de vôlei.
Interessante destacar que nenhuma menina foi jogar futebol, ficando inicialmente
apenas dois meninos jogando vôlei conosco, os quais em determinados momentos saíram para jogar
futebol e outros, deixaram o futebol e vieram jogar vôlei, contudo, sempre num número muito pequeno,
entre uma ou duas crianças. Não houve migração das meninas para o futebol. Optei por participar da
atividade de vôlei sem nenhuma intenção prévia, apenas por simpatia pelo esporte.
Nos momentos calorosos do jogo, como disputas de bola ou recepção de saques, muitas
crianças discutiam entre si com atitudes e palavras agressivas, muitas vezes demonstrando hostilidade,
outras apenas fazendo pequenas chacotas sobre as habilidades do outro.
Pela alta temperatura do dia, resolvi beber água numa cozinha disponível no local,
ocasião em que fui abordado por uma criança que perguntou: “Quando a gente vai come?”. Por não ter
certeza do horário em que serviriam o lanche naquele dia, pedi para perguntar a professora, entretanto,
noutros momentos não muito distantes deste, por várias vezes ela voltava e repetia a pergunta,
demonstrando ansiedade para alimentar-se.
A professora então comentou comigo que muitas daquelas crianças vinham aos projetos
apenas pela oportunidade de comer após as atividades, relatando não terem feito nenhuma refeição antes
disto. Acrescentou ainda que até mesmo a quantidade de participantes nos projetos aumentou quando
começaram a servir os lanches diariamente, o que vem sendo feito há alguns anos, mas havia sido
interrompido devido ao período de férias estabelecido.
Outra situação interessante foi a carência de contato físico apresentada pelas crianças,
muitas por diversos momentos ficavam procurando nos abraçar, ficar sentados próximos a nós, andar de
mãos dadas, no colo ou abraçados a nossas costas (popularmente conhecido como “andar de cavalinho”),
chegando, em certos momentos, a brigarem entre si para disputar a oportunidade ou a ordem para obter
um momento próximo aos professores.
Os times se auto-organizaram e então deram início ao jogo. Várias partidas foram
realizadas e trocavam-se a posição nos lados da quadra. As professoras Érica e Rosangela também
participaram, juntamente com Fabiano e eu.
Aproximadamente umas 10 horas da manhã, guardamos as bolas e as redes e partimos
para o Centro Comunitário Maria Bernadette de Rossi, andando conjuntamente com as crianças, algumas
sozinhas, outras de mãos dadas com os monitores e professores.
Ao chegarmos ao local, aproximadamente uns 300 metros da Estação Comunitária, as
professoras pediram para que eles formassem uma fila para entrar no refeitório disponível no local.
Em frente ao Centro, encontramos um garoto sentado à sarjeta, o qual participava do
projeto, mas naquele dia não foi, e relatou-nos o motivo da ausência, comentando morar apenas com sua
irmã. Naquele final de semana (domingo) ela havia desaparecido, deixando-o sozinho, trancado em casa,
86
tendo de sair saltando pela janela, e sem ninguém para pedir ajuda, pois a mãe morava num bairro
distante e, segundo ele, não o ajudaria naquele caso.
Por estar sozinho, ele não conseguiu acordar a tempo de participar do projeto, ficando
também numa situação delicada para comer e ir à escola. Convidamos para lanchar conosco mesmo não
tendo participado do projeto aquele dia, regra estabelecida conjuntamente entre todos os participantes,
porém, ele optou por não comer, mesmo após a insistência dos monitores/professores.
No refeitório do Centro Comunitário, foram servidas as crianças leite com composto de
morango e pãezinhos com geléia.
Antes da refeição todas as crianças rezaram o “Pai Nosso” em voz alta e depois
comeram.
Após o lanche retornamos todos juntos a ECO, onde nos despedimos das crianças.
Combinamos então um reunião entre todos (Érica, Rosangela, Matheus, Luiz, Maria e eu) na sala da
coordenação da ECO.
Matheus inicia a reunião perguntando um pouco sobre o passado das professoras e sua
atuação profissional e estas comentam a participação em outros projetos da prefeitura do município,
destacando algumas dificuldades encontradas, em especial, comentam não ter conseguido executar
efetivamente as atividades que planejavam antes das aulas, muitas vezes partindo para o futebol ou outras
atividades da educação física escolar, na sua maioria esportivos, os quais, segundo elas, muitas vezes nem
“aconteciam”.
Neste momento, o Professor Luiz comenta um pouco sobre o histórico do Projeto
“Vivências Diversificadas em Lazer” e os paradigmas envolvidos nesta proposta, dentre eles, a pedagogia
freiriana pautada na dialogicidade, exemplificando por meio de pequenos comentários sobre como eram
organizadas as atividades do dia ou da semana, nas quais as crianças e os professores negociavam os
mesmos, havia o respeito aos “saberes de experiência feitos” dos alunos, pois estes propunham
brincadeiras e jogos que conheciam, que fazem parte do “mundo-vida” dos mesmos, bem como
conheciam outras que eram propostas pelo professor, gerando maior participação e interesse das crianças.
Outros exemplos foram feitos, na medida em que Matheus foi acrescentando alguns
aspectos históricos do bairro, da estação comunitária e também do próprio projeto, no qual as atividades
não foram propostas e acatadas abruptamente pelas crianças, mas com respeito e consideração foram
gradualmente aceitas pelos participantes, criando oportunidades para novas brincadeiras e jogos.
Destacou por diversos momentos a redução considerável, segundo ele, da agressão física entre os
participantes, a inserção na comunidade aos poucos foi conquistando a confiança e apoio dos moradores,
pais e responsáveis, que acompanham sempre as atividades relacionadas ao projeto.
Comentou-se também o período em que começaram a servir os lanches às crianças, a
época da chacrinha, do antigo e popularmente conhecido “campinho”, hoje, local onde foi construído a
ECO.
Discutiu-se o deslocamento das crianças da ECO até o Centro Comunitário para
receberem o lanche e os transtornos e perigos encontrados no trajeto, como buracos, trânsito constante de
veículos, dentre outros.
Ao final da reunião as professoras demonstraram grande interesse em apoiar o projeto.
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Matheus e Luiz propõem então reuniões quinzenais ou mensais para discutirem o andamento, re-
elaboração e reestruturação do trabalho. As professoras propuseram também a elaboração de
confraternizações (com um bolo e lanches simples apenas para aqueles que participassem do projeto
aniversariantes num período de três meses, por exemplo), a organização das possíveis visitas e as
requisições e documentações necessárias para os mesmos.
A reunião terminou próximo às 11h30min da manhã, quando nos despedimos das
professoras e do Matheus, que ficaria na parte da tarde no Centro Comunitário.
Voltamos de carona com o Professor Luiz até a UFSCar, nos despedimos e lá
prosseguimos com nossas atividades acadêmicas.
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Diário de Campo: II
Data: Quinta-feira - 22/03/2007
Período: Manhã – 8:00h às 11:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
COMBINANDO AS REGRAS
Desta vez contei com a carona de um dos monitores do projeto, Fabiano, para deslocar-
me até o Jardim Gonzaga, distante de minha residência.
Chegamos e encontramos algumas crianças conversando com o Prof. Matheus na
quadra e decidiram iniciar as atividades do dia com a brincadeira popularmente conhecida como
“queimada”. Nesta brincadeira, as crianças se auto-organizaram em duas turmas e iniciaram a atividade.
As equipes eram mistas com relação ao gênero e a idade.
Em alguns momentos, percebi certa tendência entre as crianças em relacionarem-se e
expressarem-se com o corpo, seja através de atitudes mais agressivas, como empurrões, seja atribuindo-
lhes ofensas de baixo calão.
Era freqüente algumas delas, dentro e fora da ECO, também brincarem entre si como se
estivessem brigando, conhecida como “brincar de lutinha”, ficando sempre o cuidado dos educadores ao
perceber se era uma brincadeira ou se era realmente um conflito entre os participantes.
Em determinadas situações, procurávamos simplesmente separar as crianças que
discutiam, porém, muitas vezes procurávamos observar como elas resolviam os conflitos entre si,
oportunidade em que identifiquei as relações de opressão internamente ao grupo, ora por meio da força
física, ora por meio da intimidação do grupo. Geralmente essas opressões ocorriam por motivos tidos
como banais para algumas pessoas durante o jogo, porém, para a criança esses motivos eram mais do que
suficientes para gerar situações de conflito, não demonstrando qualquer afinidade por resolvê-los pelo
diálogo.
Durante a brincadeira de queimada, onde uma criança brincou comigo e disse:
“Professor, você é ninja?”, querendo saber se eu era rápido e possuía boa destreza para desviar da bola
quando tentassem me “queimar” na brincadeira. Respondi: “Por que você quer saber se eu sou ninja?”, no
que ela me respondeu: “Porque eu mato gente ninja!”. Naquele instante entendi o comentário, pois o
mesmo parecia oportuno no contexto da brincadeira, mesmo tendo achado a expressão “matar” um pouco
“pesada”.
Porém, o que me levou a citar isto, foi que num desentendimento entre esta mesma
criança e outra, ele a ameaçava gritando e direcionando um olhar carregado: “Eu te mato! Eu te mato!”.
Torna-se compreensível pensarmos que o uso desta palavra possa ser feito sem se conhecer seu
sentido/significado, entretanto, não podemos deixar de ficar atentos para percebermos o mundo-vida em
que ela se encontra e as vicissitudes de seu cotidiano, às vezes regados de violência, a qual em alguns
momentos torna-se banalizada.
Após a brincadeira inicial, reunimo-nos no centro da quadra e discutimos o que iríamos
fazer naquele dia. Algumas votaram por jogar futebol, outras por vôlei e outras por participar da atividade
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que estava sendo desenvolvida por outras alunas da UFSCar, relacionada a animação com massinha de
modelar.
O Prof. Matheus discutiu com os alunos as diversas atividades possíveis, distintas
daqueles jogos e brincadeiras, comentando ao final que naquele dia eles iriam fazer a proposta deles
(futebol e vôlei) e que na outra semana eles iriam escolher outras atividades, para que todos pudessem
opinar e escolher.
Vejo como interessante a constante negociação entre os professores e monitores e as
crianças, gerando um ambiente de participação contínua e ativa de grande parte das crianças.
Partimos então para os jogos propostos. As crianças se dividiram, indo a sua maioria
masculina para o jogo de futebol, e ficando apenas Fabiano, outro menino e eu na quadra de vôlei. Optei
novamente pelo vôlei, porém, foi devido a uma lesão no pé esquerdo, impedindo-me de correr grandes
distâncias.
Havia cerca de 40 crianças participando do projeto neste dia, contando com a presença
de algumas meninas (adolescentes) do bairro, as quais se juntaram ao jogo de vôlei por alguns momentos,
visto que a maior parte das meninas que integram o projeto tem em torno de 13 anos.
Durante a atividade de vôlei não ocorreram conflitos entre as alunas, somente alguns
comentários e zombarias entre elas, que por diversas vezes, possuíam um cunho sexual implícito, na sua
maioria vinculados a possíveis relacionamentos/“paqueras”.
Uma situação que voltou a se repetir foi a abordagem de uma das crianças me
perguntando sobre o momento em que iriam servir o lanche, contudo, não era a mesma criança, mas
outra, que persistiu num instante próximo, indicando mais uma vez a ansiedade para alimentarem-se.
Perguntei a ela porque estava com fome logo cedo, e surpreendendo-me, disse-me não ter comido nada no
jantar do dia anterior e nem no café da manhã deste mesmo dia, abrindo uma lacuna para discutirmos
novamente a situação familiar das crianças do bairro.
Similarmente a semana anterior, os jogos de futebol ocorreram no campo ao lado e os
de vôlei na quadra. No vôlei, várias partidas foram realizadas e trocavam-se os lados entre os times. Neste
dia, as professoras Érica e Rosângela optaram por ajudar o Prof. Matheus no jogo de futebol.
Próximo das 10 horas da manhã, guardamos as bolas, as redes e nos reunimos num
pequeno balcão de concreto, ao fundo da quadra, chamado pelas crianças de “caracol” por possuir um
formato circular muito semelhante a este animal.
As crianças sentaram-se todas ao redor do “caracol” para discutir um pouco sobre a
atividade do dia. Perguntamos do que eles haviam gostado mais e o que eles gostariam de fazer na
próxima semana, procurando elaborar com eles as brincadeiras e o cronograma a ser seguido. Elas
propuseram diversas brincadeiras, sendo escolhidas pela maioria a brincadeira de “queimada meninos
versus meninas”, “pé-de-lata”, “garrafobol”. Matheus negocia com eles as atividades de futebol e de
vôlei, argumentando que eles deveriam participar das atividades que os outros propusessem, respeitando
aqueles que não gostavam dos mesmos.
No final da reunião, similarmente a semana anterior, levamos as crianças para o Centro
Comunitário. Chegando lá, as professoras pediram para que elas formassem a fila para entrarem no
refeitório. Serviram como lanche uma salada de frutas com abacaxi, banana e maçã. Todas as crianças
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que sentiram necessidade puderam repetir a refeição.
Após o lanche, retornamos todos juntos a ECO, onde nos despedimos das crianças.
Por volta de 11 horas da manhã atividades da manhã foram encerradas.
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Diário de Campo: III
Data: Quinta-feira - 29/03/2007
Período: Manhã – 8:00h às 11:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
BRINCANDO DE QUEIMADA
Nesta manhã, chegamos à Eco e nos reunimos em círculo no centro da quadra com as
crianças, para discutirmos então quais atividades faríamos naquele dia.
Perguntamos sobre o que havia sido combinado na semana anterior. Eles então
responderam as atividades de futebol, queimada, e outros comentaram o jogo de “pé-de-lata”,
“garrafobol”.
Porém, Matheus perguntou quem trouxera as garrafas de plástico e as latas e
pouquíssimos haviam se recordado ou tido condições de fornecer o material.
Diante desta situação, Matheus propõe então uma das atividades negociadas na semana
anterior, a brincadeira de “queimada menino versus menina”, reforçando a parte, para que eles
trouxessem para a semana seguinte o material para a brincadeira.
As crianças se auto-organizaram então nas duas turmas e iniciaram a atividade. Nenhum
desentendimento ou confusão ocorreu durante a brincadeira.
Assim como noutro dia, durante a atividade, uma mesma criança veio perguntar-me
sobre o horário do lanche, algo a ser considerado como na discussão feita no diário de campo anterior.
Após a brincadeira inicial, reunimo-nos no centro da quadra e discutimos sobre o
material a ser trazido para a próxima semana, e a pedido da Maria, conduzimos as crianças até a sala de
vídeo, onde quatro estudantes do curso de terapia ocupacional iriam desenvolver um projeto junto as
crianças durante alguns dias da semana.
As terapeutas pediram para sentarmos em círculo e apresentaram-se para o grupo.
Explicaram sobre o projeto da universidade e propuseram uma atividade de desenho em uma folha de
cartolina. Esta folha de cartolina, segundo elas, seria usada para cada criança sentar-se antes da atividade
de cada dia. Cada uma sentando no seu “tapete”, como nomeou a estudante. Todos então receberam uma
folha (de aproximadamente 40 centímetros de largura por 30 centímetros de altura) para elaborarem seu
desenho e escreverem seus nomes.
Após a atividade de ilustração, as terapeutas combinaram um próximo encontro para a
semana seguinte, recolheram os desenhos e finalizaram a reunião.
Dentro do horário programado, partimos com as crianças em direção ao Centro
Comunitário para o lanche.
No Centro Comunitário, no corredor que dá acesso ao refeitório, estão expostos vários
cartazes e fotos de atividades realizadas no local, onde um dos cartazes chamou-me a atenção, pois havia
sido produzido por adolescentes que ali freqüentam atividades no período da tarde.
Neste cartaz, produzido por meio de recortes de revistas e colagens, observei a presença
de carros importados, mulheres de biquíni, recortes de notas de dólares, praia e outros, relacionando-se
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sempre ao consumo e a visão do corpo como um objeto. Outra situação interessante foi não encontrarmos
nenhuma imagem de pessoas negras nos cartazes, algo que nos leva a refletir as questões raciais naquela
comunidade e como eles se identificam.
Perguntei para as senhoras que trabalhavam no refeitório sobre o nome da atividade de
colagem feita pelos adolescentes bem como o tema daquele cartaz, porém, não souberam informar
precisamente e a responsável pelo Centro não estava disponível naquele horário, encontrava-se atendendo
a outras necessidades do local, inviabilizando a obtenção da resposta naquele instante.
No final da refeição, como de costume, retornamos todos juntos a ECO, onde nos
despedimos das crianças e retornamos as nossas casas.
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Diário de Campo: IV
Data: Quinta-feira – 12/04/2007
Período: Manhã – 8:00h às 11:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
O GARRAFOBOL
Acompanhados pelo Professor Luiz, Fabiano e eu fomos de carro até o Jardim Gonzaga.
Levamos conosco algumas garrafas de refrigerantes descartáveis de 2 litros, algo que
havia sido combinado com as outras crianças na semana anterior a da páscoa, porém, eles não levaram e a
brincadeira nomeada por eles de “garrafobol” não aconteceu.
Contudo, nesta quinta-feira, Algumas crianças e os outros professores (Matheus,
Rosângela e Érica) levaram também o material, o qual foi suficiente para promovermos a brincadeira.
Antes de iniciarmos a atividade do dia, os professores, monitores e alunos reuniram-se
próximo ao “caracol” (balcão de recepção com formato circular), no qual tiraram fotos de todos os
participantes reunidos, como uma forma de registro do projeto no seu dia-a-dia.
Depois disso, distribuímos as garrafas plásticas entre as crianças e iniciamos a
brincadeira, a qual se assemelha muito a queimada, pois nela, os alunos buscarão acertar a bola nas
garrafas, ao invés do corpo do colega, sendo que o mesmo agora deverá proteger as garrafas com as
pernas.
Cada criança possui uma garrafa e deverá protegê-la sempre, caso esta caia (por ter sido
golpeada pela bola ou colisão do corpo daquele que a protege com o objeto) o participante deverá então ir
para o local chamado de “cemitério”, similarmente a “queimada”.
Após disputarem o chamado “par ou ímpar”, Rosângela e Fabiano, juntamente com
duas crianças, foram escolhendo os participantes de cada equipe. No total, havia 16 crianças participando,
6 meninas e 10 meninos, sendo que os times eram mistos.
Inicia-se então a brincadeira com as garrafas vazias e após alguns instantes, o jogo é
interrompido, pois devido a grande força do vento no dia, as garrafas caiam antes mesmo de serem
atingidas, tornando-se necessário enchê-las com água e assim ficarem equilibradas.
O jogo então continuou sem interrupções. A atividade tinha um coordenador geral que
era o Matheus, o qual atuava como se fosse um “organizador”, orientando aqueles que nunca tinham
brincado naquela atividade ou mesmo não haviam entendido alguma “regra” elaborada e acordada entre
todos antes do inicio do jogo.
Entretanto, essa atuação do Matheus se deu de uma forma muito interessante, pois nem
sempre ele agia de imediato com os alunos, mas aguardava alguns pequenos instantes para verificar se
eles próprios se mobilizavam entorno daquilo que havia sido combinado, procurando criar um ambiente
onde eles se auto-organizassem e gerissem.
Em certos momentos da autogestão, algumas crianças demonstravam atitudes agressivas
entre si, mais comuns entre os meninos, contudo, os monitores alertavam sobre estas atitudes, procurando
evitá-las e não incentivá-las.
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Em algumas situações notei alguns meninos brincarem entre si, como se estivessem
brigando, cheguei a pensar que se tratava de um conflito, porém, ao aproximar e observar melhor, percebi
que estavam brincando de lutinha.
Na própria brincadeira do garrafobol, noutras situações, observei que elas
demonstravam certa “malandragem” sobre o jogo, procurando por meio de subterfúgios, camuflarem o
desvio das regras e obter a vantagem sobre o outro, prejudicando o outro. Todavia, quando percebidos
pelos colegas ou monitores, havia a denúncia do ato e também a discussão rápida sobre os benefícios ou
prejuízos para o grupo quando algum integrante agia daquela forma (1).
A atividade foi mantida aproximadamente até 09h30minh, quando conduzimos as
crianças até uma sala de vídeo onde seriam expostos as fotos e filmes antigos do projeto.
Com um televisor pequeno (14 polegadas) e todos sentados nos em colchonetes,
assistimos e comentamos várias vivências do projeto, situação em que pude conhecer muito sobre o
projeto e sua história no bairro.
Nesta oportunidade, conversei com Prof. Luiz sobre diversos aspectos que observei
durante a apresentação e também nos dias em que participei, procurando conhecer e esclarecer mais sobre
a comunidade e as relações com o projeto e a universidade.
Inicialmente comentei com Luiz sobre o vocabulário utilizado pelas crianças, repleto de
palavras agressivas e de baixo calão, oportunidade em que o questionei sobre como eles lidavam com isto
e com a própria atitude física entre si nas diversas situações visualizadas durante as atividades. Ele então
comentou o histórico do bairro e das crianças, destacando a melhoria em diversos aspectos, como o
vocabulário que, segundo ele, apresentou grandes mudanças, pois anteriormente ocorriam ofensas verbais
e físicas com freqüência e amplitude muito maiores, indicando assim uma busca constante pelo
aperfeiçoamento nesta característica.
Outra situação também observada por meio das fotos, foram atividades desenvolvidas
pelo projeto que modificaram alguns hábitos da comunidade, como por exemplo a atividade chamada por
eles de “arrastinho”, na qual os professores, após as atividades do dia, saiam coletando o lixo jogado
próximo ao local da Estação, hábito antigo dos moradores do bairro antes da construção do ECO. Ao
deixarem a ECO em direção ao Centro Comunitário para o lanche, eles também faziam à coleta do lixo
que era jogado na via pública, bem como quando organizavam um piquenique no “buracão”, uma grande
depressão geográfica nas proximidades da comunidade, com pasto, pequeno córrego e árvores, muito
utilizado pelas crianças do bairro para brincarem. A população costumava lançar detritos no local,
poluindo inclusive o córrego, situação que mudou conforme esta atividade foi sendo promovida,
contribuindo para a compreensão da comunidade local sobre a limpeza e preservação do meio ambiente.
Pelas fotos, notamos a participação de algumas crianças desde 2002, no início do
projeto, tornando-se um incentivo às outras a continuarem no mesmo.
Outro acontecimento importante observado durante a apresentação, foram algumas
fotos em que as crianças apresentavam-se em gestos com as mãos simulando “armas”.
Após a apresentação das fotos, arrumamos à sala de vídeo e fomos até o Centro
Comunitário para o lanche. Neste dia foi servido salada de frutas com banana, maçã e abacaxi. Todos
puderam comer a vontade.
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Retornamos então a ECO e nos despedimos das crianças.
Uma reunião foi organizada pelo Prof. Luiz com Matheus, Fabiano e eu, na qual
discutimos um questionário que seria utilizado numa entrevista a ser realizada no bairro. Descreveu então
os vários itens encontrados no mesmo, geralmente de cunho sócio-econômico, alguns procedimentos para
a aplicação do mesmo, como por exemplo o respeito e cordialidade na conversa com os moradores,
esclarecendo alguns pontos relacionados ao contexto da comunidade e os objetivos daquelas perguntas.
Por volta das 11h30min encerramos a reunião e voltamos de carona com o Luiz até a
UFSCar para as outras atividades do dia.
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Diário de Campo: V
Data: Quinta-feira – 19/04/2007
Período: Manhã – 8:00h às 11:00h
Local: Jardim Gonzaga
AS AVENTURAS NO “BURACÃO”
Neste dia combinamos de nos encontrar em frente a ECO para realizarmos o passeio ao
espaço chamado de “Buracão”. Já havia ouvido diversos comentários sobre o local e isto criou uma
grande expectativa e ansiedade sobre como era e como as crianças lá brincavam.
A maior parte das crianças (18 meninos e 17 meninas) que foram no passeio já
conheciam o local, com exceção de algumas meninas e uns poucos garotos, as professoras Érica e
Rosângela, as coordenadoras do projeto de animação e as coordenadoras do projeto relacionado à terapia
ocupacional, disseram também estar ansiosas para conhecer o tão falado “buracão”.
Encontramo-nos assim em frente a ECO para caminharmos juntos até o “buracão”. Ao
chegarmos (Fabiano e eu), muitas crianças correram em nossa direção e pularam sobre nós, abraçando-
nos como costumeiramente acontecia nos encontros semanais, porém, nesta ocasião, eles já se
aproximaram gritando sobre o passeio no “buracão”, com muita alegria e ansiedade, como que
apressando-nos para que logo partíssemos para o passeio.
Combinamos para este passeio que aqueles que pudessem, trariam algum alimento ou
bebida, sendo que alguns mostraram os salgadinhos que haviam comprado para o passeio, e outros nada
puderam levar, alegando que sua mãe não tinha dinheiro, outras numa situação por mim inesperada,
carregavam consigo garrafas plásticas de 2 litros com água, sendo esta a única escolha que tiveram,
levando-me novamente a refletir as condições socioeconômicas do bairro.
O Prof. Matheus tirou algumas fotos do grupo reunido. Enquanto a máquina fotográfica
era o “centro das atenções” por alguns instantes, as crianças e adolescentes empolgados queriam tirar
várias fotos e corriam em direção ao Matheus para ver como havia ficado a foto, pedindo para que tirasse
mais, quando Matheus então comentou que tirariam mais fotos quando estivéssemos no “buracão”.
Partimos para a caminhada que nos levaria até o “buracão” e já no início do trajeto,
sentia a alegria de alguns participantes por poderem ser os nossos “guias” neste passeio, conhecendo os
locais por onde passaríamos e indicando um melhor caminho para seguirmos em diversos momentos,
como por exemplo quando nos deparávamos com um grande aclive de terra ou algum trecho com
barrancos, dizendo os nomes que davam aos locais mais conhecidos (“pastim” por exemplo, onde eles
soltavam pipa). Aprendi e conheci muito sobre estes locais e como a comunidade ali vivia.
Nas ocasiões em que o trajeto era muito íngreme, os mais velhos auxiliavam/ajudavam
as crianças menores e as pessoas que apresentavam dificuldades. Este interesse em ajudar o grupo
impressionou-me muito, pois até mesmo aqueles que durante as atividades correntes do projeto não
aparentavam preocupar-se com os colegas demonstraram atitudes fraternais em diversos pontos do
percurso, como quando passamos por um córrego, por aclives altos e complexos de transpor, agravando-
se por estarmos carregando os alimentos para o lanche.
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Próximo ao córrego, pude notar uma degradação deste meio, especialmente devido ao
lixo/entulho jogado no mesmo. Entretanto, ao longo da caminhada pude sentir a mata mais fechada e
verde, os pássaros a nossa volta, o ar mais fresco numa brisa muito prazerosa.
Finalmente chegamos ao famoso “buracão”, um pasto extenso, com uma grama verde e
bonita, muitas árvores próximas a um riacho e uma sombra especialmente alocada sob elas. Ao
chegarmos, muitas crianças já saíram correndo e brincando no local, algumas delas de imediato já
chamavam os monitores para brincarem de “pega-pega” e outras foram correndo para um enorme galho
de uma das árvores, o qual se estendia muito próximo ao solo e servia para brincar de “balanço”,
pendurando-se ou sentando-se sobre ele, enquanto que os outros o movimentavam-no. Noutro ponto,
algumas meninas brincavam de escorregar na grama sobre alguns pedaços de papelão ou de garrafa pet
que carregavam. Algumas crianças também brincaram de algumas atividades de roda.
Mais tarde duas crianças aproximaram-se e pediram para eu ir até o córrego que ali
passava, para brincar e balançar nos cipós das árvores com eles. Descemos um pequeno barranco que dá
acesso ao córrego e caminhamos nas suas margens. Neste cenário víamos entulhos e lixo, que traziam
consigo um fétido cheiro de degradação. Lembrando as fotos apresentadas pelo Matheus num encontro
anterior, o cenário atual pareceu-me menos poluído, contudo, ainda necessitando de muitos cuidados.
Algumas crianças não se importavam com a questão da sujeira e possibilidade de
doenças transmissíveis e caminhavam nas águas poluídas. Alertávamos para todas as crianças apenas
brincarem próximas ao córrego, mas não entrarem em contato com aquela água. Porém, para aquelas que
já haviam feito isso, solicitamos para lavarem os pés e as mãos com a água que havíamos trazido.
Brinquei com muitas delas nos cipós e fiquei admirado com a quantidade de
brincadeiras e diversão que aquele local oferecia, sem contar as muitas outras que íamos criando como
“esconde-esconde” ou pipa. Surgiam assim outras atividades e íamos mudando e escolhendo as
brincadeiras e jogos conforme nossa vontade. Todavia, o mais interessante é que a proposta das atividades
ocorria por parte das crianças, enriquecendo assim a participação delas nas brincadeiras.
Conversei com uma das crianças se ela vinha sempre no buracão e com quem ela vinha.
Disse que vinha às vezes pois seus pais não deixavam por ela ser muito nova, mas acrescentou que
gostava muito de lá e gostava também de soltar pipa e brincar no galho das árvores e que outras crianças
mais velhas vinham com mais freqüência e também gostavam muito.
Após algum tempo, algumas crianças vieram perguntando aos professores sobre o
piquenique e dizendo que estavam com fome. Algumas nem mesmo resistiram e abriram logo seus
biscoitos e bolachas.
Decidimos então iniciar o piquenique. Reunimos as crianças e começamos a refeição.
Biscoitos, bolachas, refrigerantes, sucos, bolos e sanduíches (cachorro-quente) fizeram parte do
piquenique. Foi uma festa só! Estendemos um pequeno lençol à sombra de uma árvore, algumas crianças
preferiram lanchar abaixo de uma outra árvore próxima. Outras poucas pegavam o que desejavam e saiam
comendo e andando pelo local.
Toda comida foi dividida entre todos sem exceção, e nenhuma criança ficou sem saciar
sua fome naquele momento, e inclusive no retorno alguns levaram biscoitos e lanches para casa.
Logo depois de comermos, ainda brincamos por mais algum tempo no local, correndo e
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pulando pelo morro, subindo e descendo dos cipós e galhos de árvores.
Em seguida, todos ajudaram a recolher o lixo em pequenas sacolas plásticas,
oportunidade em que o Professor Matheus discutiu com eles a importância de mantermos aquele local
limpo, ocasião em que uma das crianças comentou a questão do pequeno córrego que passamos e a
situação poluída encontrada.
Reunimos todos e partimos em direção ao Centro Comunitário. O caminho foi o
mesmo, porém com dificuldades diferentes, pois havia agora, mais aclives que declives a serem
encarados. Todavia, por não estarmos mais carregando toda comida, isto contribuiu para reduzir a
dificuldade, tornando o retorno mais tranqüilo e rápido.
No transcorrer da caminhada, algumas crianças comentavam sobre ter gostado de ir até
o “buracão” e sobre as brincadeiras que haviam feito, argumentando desejarem voltar mais vezes para
fazer piquenique e brincar.
Ao chegarmos ao Centro Comunitário, despedimo-nos das crianças e elas voltaram para
suas casas. Matheus alertou aqueles que tivessem entrado em contato com a água do córrego poluído que
tomassem banho assim que chegassem em casa, esfregando bem os pés.
Conversei um pouco mais com Matheus sobre o passeio e comentei que havia gostado
muito, principalmente pela forma como pude conhecer um pouco mais do bairro, do seu cotidiano e das
próprias crianças, aprofundando ainda mais meu relacionamento com elas e com a comunidade.
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Diário de Campo: VI
Data: Quinta-feira – 26/04/2007
Período: Manhã – 8:00h às 11:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
A “FORÇA” DO FUTEBOL
No dia anterior, Luiz Fabiano e eu combinamos de irmos juntos ao Gonzaga, tendo
como ponto de encontro à lanchonete da área sul da universidade, o Pão de Queijo.
Logo de manhã, encontramo-nos e partimos para o bairro, e no caminho, conversamos
sobre as atividades que estávamos realizando, Luiz perguntou sobre as facilidades e dificuldades que
estávamos tendo, sobre os diários de campo, e assim orientava-nos sobre estes. Neste dia o Matheus havia
ido a um congresso relacionado à temática do lazer e não pode comparecer ao encontro.
Ao chegarmos à ECO as crianças vieram correndo e gritando nossos nomes, pulando e
abraçando-nos. Caminhamos todos juntos até o centro da quadra e aproveitamos para nos reunir e
conversar sobre os encontros anteriores: o passeio no “buracão” e também sobre a festa de páscoa que
tiveram na semana anterior.
Elas comentaram sobre o passeio, dizendo ter gostado muito, contaram sobre as
brincadeiras que fizeram, sobre o lanche e outras atividades que havíamos realizado no dia.
Uma das crianças disse: “Professor... professor... lembra quando a gente balançou no
cipó? Lembra? Vamo voltá lá professor, vamo!”. Colocando com muita alegria e vontade em retornar ao
local. Discutimos sobre voltarmos lá noutro encontro e todos concordaram, e comentamos que
deveríamos esperar o professor Matheus para combinarmos tudo certinho na presença dele e então
faríamos outro passeio.
Conversamos também sobre a festa de páscoa que realizaram na ECO na semana
anterior, em que após as atividades do dia, no momento em que eles subiram para tomar o lanche no
Centro Comunitário, eles receberam de surpresa ovos de páscoa e uma festa com lanche e refrigerante
para todos.
Eles disseram ter gostado muito e ter comido muito chocolate também, sempre
sorridentes ao comentar sobre a festa.
Em seguida, discutimos as atividades que tínhamos para o dia e os da semana seguinte,
procurando negociar, nesta ocasião, a questão do futebol, muito pedido e que acabava sobrepondo a
vontade de outras crianças que faziam a sugestão e gostariam de brincar noutras atividades. Assim sendo,
combinamos que primeiramente em cada encontro, faríamos uma atividade diversificada e escolhida por
todos e posteriormente poderíamos jogar futebol ou vôlei.
A pedido do Professor Luiz, organizei uma vivência com o Karatê para as crianças, e
neste encontro, combinamos com aqueles que desejassem participar desta atividade viriam comigo, e as
outras poderiam jogar futebol no campinho. Para a semana seguinte ficou a atividade de teatro.
O Professor Luiz reuniu as crianças que gostariam de jogar futebol e seguiram para o
campinho com o Fabiano e a Érica, e os outros ficariam comigo e com a Professora Rosângela.
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Outras quatro crianças que não quiseram participar de nenhuma das atividades
anteriormente citadas, ficaram jogando bolinha de gude próximo a um banco de areia, entre o balanço e a
gangorra.
Cerca de três crianças participaram da atividade de Karatê, sendo que uma delas, depois
de algum tempo saiu para participar da atividade de animação com massinha de modelar, na sala de
vídeo.
Após reunir estas crianças interessadas na atividade do Karatê, fomos até um pequeno
espaço abaixo de uma árvore próximo ao campinho de futebol.
Sentamos em círculo e iniciei a vivência perguntando a eles se já haviam praticado
alguma luta/arte marcial, se já haviam visto em algum lugar (televisão, revista, gibi) ou mesmo se
conheciam alguém que tivesse praticado algum tipo de luta/arte marcial.
As três crianças (dois meninos e uma menina) comentaram que já tinham visto na
televisão algumas lutas e uma delas pontuou ter praticado capoeira anteriormente. Outra comentou ter um
irmão que praticou Jiu-Jitsu e Capoeira.
Pedi a eles para mostrarem então os movimentos que conheciam ou que tinham visto
em algum lugar. Elas então foram apresentando chutes e socos e propus para que o grupo todo tentasse
vivenciar aquele movimento apresentado pelo colega, descrevendo o que achavam do movimento e para
que ele poderia servir.
Outro garoto comentou comigo se poderia também jogar um pouco de futebol depois.
Olhei no rosto dos dois e percebi a grande vontade que estavam de jogar futebol, mas ao mesmo tempo,
ficavam na atividade do Karatê mais por respeito a minha pessoa. Ao perceber isso, olhei para a
professora Rosângela e sem dizer nenhuma palavra, ela também entendeu o que eu havia percebido.
Naquele instante, comentei que havia sentido a vontade deles de jogarem futebol, e
combinei com eles de participarem somente mais alguns minutos da atividade do Karatê e eles então
partiriam para as outras atividades como o futebol ou mesmo a bolinha de gude.
Realizamos mais alguns movimentos e sentamos em círculo para conversamos sobre o
Karatê, e perguntei-lhes para que servia o Karatê. De prontidão, um das crianças disse: “Para se defender!
Não é professor?”, a outra ouvindo o colega, acenou com a cabeça concordando. Conversamos juntos
então sobre a importância de não utilizarmos estes movimentos para ferir outras pessoas.
Pedi para numa próxima oportunidade, para que eles conversassem em casa e na
vizinhança sobre as lutas e procurassem conversar com alguém que tivesse praticado alguma forma de
luta/arte marcial, trazendo assim para o grupo discutir num próximo encontro.
Em seguida elas partiram para o futebol. Eu e a Professora Rosângela passamos a
auxiliar os outros professores no futebol.
Na atividade do futebol participaram meninas e meninos conjuntamente, sem divisão
por sexo, criando um ambiente muito amistoso entre elas, apesar de alguns momentos as meninas
reclamarem da posse de bola excessiva dos meninos, mas aos poucos, foram diminuindo esta postura e
elas passaram a participar mais do jogo. O tempo entre as partidas era de aproximadamente 10 minutos
entre cada equipe. As que não estavam participando ficavam assistindo e marcando os gols.
Próximo do horário de tomarmos lanche, reunimo-nos no “caracol” para discutir as
101
atividades do dia. Aproveitando a oportunidade, perguntei se haviam gostado da atividade do Karatê e
disseram que sim e pediram para repetirmos noutro encontro.
Partimos assim para o Centro Comunitário, e no caminho, conversei com as professoras
se elas estavam organizando alguma atividade para semana do dia das mães que seria no dia 10/05. Elas
organizaram a entrega de uma flor artesanal para as mães e também serviriam bolo e salgados para as
crianças. Esta comemoração seria realizada por meio de arrecadações entre os professores e monitores
que participavam de atividades na ECO.
Já no Centro Comunitário, conversei com Luiz sobre as dificuldades encontradas em se
coordenar atividades alternativas simultaneamente ao futebol. Discutimos a necessidade de fazer um
esforço no sentido de modificar isto, caminhando em busca de atividades diversificadas do lazer e
negociar isto sempre com as crianças, ficando assim a pauta para um próximo encontro.
Outro agravante para organizarmos outra atividade diferente do futebol foi a questão da
reforma na quadra, a qual incentivava indiretamente o futebol.
Após o lanche, acompanhamos as crianças até a ECO e lá nos despedimos.
A conversa entre Luiz, Fabiano e eu sobre o projeto prolongou-se por todo o caminho
de retorno a universidade, destacando alguns procedimentos sobre os relatórios e diários de campo, a
proposição de atividades diversificadas como os jogos africanos, por exemplo, procurando sempre variar
as opções nas brincadeiras.
Chegamos à universidade, quando nos despedimos e segui então para minhas outras
atividades acadêmicas.
102
Diário de Campo: VII
Data: Quinta-feira – 03/05/2007
Período: Manhã – 8:00h às 11:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
BRINCANDO DE BOLINHA DE GUDE
Logo pela manhã, Fabiano passou em minha casa e seguimos juntos para o Gonzaga.
Ao chegarmos, já haviam brincado de teatro com Matheus e se dirigiam ao “caracol”, conversando sobre
as atividades da semana passada.
Discutimos o que eles haviam gostado, comentaram sobre o jogo de futebol, alguns
fizeram chacotas sobre o jogo e todos riram muito. Conversamos então sobre o que poderíamos fazer
naquele dia.
Iniciamos após a conversa a atividade de futebol, onde os times foram divididos e
organizados pelas próprias crianças. Um dos times era misto (sendo que havia 3 meninas participando da
atividade, e as outras crianças estavam participando da atividade de animação com massinha de modelar
na sala de vídeo).
As partidas tinham o tempo médio de 10 minutos cada, sendo trocadas as duas equipes
por outros dois times. Todas as equipes jogariam contra todas, independente da vitória ou derrota, caráter
que não era destacado ou incentivado na/pela atividade, mas o próprio jogo em si como uma atividade do
dia.
Durante o jogo, muitas crianças tinham um espírito competitivo exacerbado, deixando
aflorar em certos momentos a questão da vitória a qualquer custo, desrespeitando as regras que eles
mesmos haviam estabelecido.
Nestas ocasiões, eles mesmos paravam o jogo e decidiam o que seria feito, numa
autogestão que muito pouco exigia a interferência do Matheus ou outro educador presente, apresentando
situações de aprendizagem muito interessantes, pois quando alguém desrespeitava alguma regra, o jogo
parava, e só depois da pessoa reconhecer o erro ou a “falta” ser “corrigida” é que o jogo continuava,
demonstrando situações de ensino e aprendizagem entre si.
Achei este aspecto muito interessante, pois o ensino e aprendizado de valores como
respeito e sinceridade, por exemplo, ocorriam em diversos momentos do jogo e não somente com os
envolvidos num “lance” por exemplo, mas com todos aqueles que participavam da atividade como um
todo, inclusive os que assistiam, os quais muitas vezes ajudavam nas decisões das jogadas difíceis de
“arbitrar”.
Depois de certo tempo no campinho de futebol, uma das crianças pediu para que eu
guardasse suas bolinhas de gude enquanto ela jogasse futebol. Nisso, percebi algumas crianças brincando
próximo ao banco de areia e não resisti a imensa vontade de jogar com eles. Pedi a criança, a permissão
para jogar com suas bolinhas sendo que depois as devolveria. Ela autorizou e foi para o futebol.
Aproximando-me do grupo que brincava de bolinha de gude, dois meninos já me
chamaram para uma “partida”. Eu de imediato aceitei e pedi para demonstrarem as regras que eles tinham
103
no jogo. Eles demonstravam de forma criteriosa cada possibilidade do jogo, como a ordem de lançamento
em direção a “birosca”, os lances que envolviam o erro e que eram aceitos ou não. Iniciamos assim as
partidas. Lembrei-me de quando jogava com meus irmãos e amigos em minha terra natal e como eram as
regras e “manhas” do jogo, e pude participar ativamente, procurando visualizar como eles lidavam com o
jogo e com algumas situações imprevisíveis do mesmo.
Dois meninos participavam da brincadeira, e enquanto jogávamos uma terceira crianças
(mais nova que as demais), apareceu e pediu para participar. Naquele momento esperei para ver qual era a
resposta das próprias crianças, e de imediato, os mais velho retirou uma bolinha de gude de seu bolso e
emprestou ao novo integrante da brincadeira, dizendo “depois você me devolve, tá? Mas espera a gente
terminar essa e você entra na outra!”, a outra acenou com a cabeça concordando e ficou acompanhando o
jogo que seguia.
Este mesmo menino que emprestou a bolinha de gude a outra, em vários lances
ensinava e auxiliava os outros dois em algumas jogadas, inclusive opinando em minhas jogadas e
comentando comigo lances que eu poderia ter feito de outra maneira, oportunidade em que, após sentir a
confiabilidade dele na brincadeira, discutíamos juntos então o que poderíamos fazer, o melhor ângulo, se
num lance seria melhor atacar ou não, quando errávamos, já apresentávamos aquela cara de “Hum!
Errei!” o outro já sorria vendo a vantagem no seu lance, dentre muitas outras situações de ensino e
aprendizado entre todos os envolvidos no jogo.
Minutos depois algumas crianças apareceram com uma bola de plástico e brincavam
tocar e arremessar entre si, e as que estavam jogando bolinha de gude resolveram parar e participar
também da brincadeira. Começamos a participar da atividade e de repente uma das crianças lançou a bola
e acertou o cesto de lixo e gritou: “Cestaaaa!”. Deram a idéia então de brincarmos do conhecido “lance-
livre” em que numa determinada distância eles tentariam acertar o alvo, daí, propus que cada pessoa
tentasse uma vez e deixaria a outra tentativa para a próxima. Cerca de 6 crianças de aproximadamente 6
anos brincavam nesta atividade, que durou poucos minutos (perto de 15 minutos), pois estávamos perto
do horário do lanche e o Professor Matheus pediu todos lavarem as mãos e sentarem no “caracol” para
conversarmos sobre as atividades do dia e combinarmos as atividades da semana seguinte, antes de
subirmos para o lanche.
As crianças disseram ter gostado da brincadeira do teatro e também de ter jogado
futebol. Quando questionadas sobre as atividades da semana seguinte, foi combinada a brincadeira do
“garrafobol”. Uma das crianças comentou ter gostado de jogar bolinha de gude e a outra comentou ter
adorado o jogo de futebol.
No final da conversa, subimos todos juntos para o Centro Comunitário, onde tivermos
arroz doce como lanche.
Cerca de 25 crianças participaram do projeto neste dia (6 meninas e 19 meninos).
Durante a refeição, as professoras Érica e Rosângela conversaram conosco (Matheus, Fabiano e eu) sobre
os preparativos da comemoração do dias das mães e solicitaram nossa contribuição financeira para esta,
visto que nada conseguiram arrecadar da prefeitura municipal até aquele momento.
Ao final do lanche, descemos até a ECO e nos despedimos das crianças que seguiram
para suas casas.
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Fabiano e eu deixamos o bairro e voltamos para nossas respectivas casas.
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Diário de Campo: VIII
Data: Quinta-feira – 10/05/2007
Período: Manhã – 8:00h às 11:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
COMEMORAÇÃO DO DIA DAS MÃES
Neste dia não participei devido à presença no e curso intensivo com o Mestre Takenori
Imura (Diretor Técnico da “Nihon Karate Kiokai” - Japão), realizado na cidade de Arujá (São Paulo).
A “Nihon Karate Kiokai” (“Associação Japonesa de Karatê” em português) é a maior
instituição difusora/organizadora desta arte marcial no mundo e a principal escola do estilo de Karatê
chamado de “Shotokan”, sendo fundada em 1949 pelo próprio Mestre Gichin Funakoshi, considerado o
“pai” deste estilo.
106
Diário de Campo: IX
Data: Quinta-feira – 17/05/2007
Período: Manhã – 8:00h às 11:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
CONHECENDO O BARAGÃNDÃ
Logo pela manhã, Fabiano passou em casa de moto e fomos para o Gonzaga. Ao
chegarmos à ECO, encontramos Matheus e entramos na Estação.
Encontramos as crianças próximas à quadra, reunimo-nos para conversar sobre as
atividades da semana anterior e sobre o que havíamos combinado para aquele dia.
Uma das crianças comentou sobre a festa do dia das mães e disse ter comido bastante
comida (lanches). Outra comentou ter gostado muito da festa e do lanche também.
Matheus perguntou se eles lembravam do que havíamos combinado para aquele
encontro e muitos deles não lembravam, mas uma das crianças disse que iríamos ter uma atividade com o
Fabiano, só não lembravam o nome do brinquedo.
Algumas crianças pediram para brincar de “pega-pega” antes, para depois irmos até a
sala de vídeo confeccionar o baragãndã.
Iniciamos assim com a brincadeira do “pega-pega” em que todos participaram, inclusive
algumas crianças que estavam de fora da quadra, ao verem a brincadeira acontecendo, correram para
participar. Cerca de 30 crianças participaram do projeto neste dia.
Foi uma correria para todos os lados, sorrisos e gritos de alegria. Combinamos que só
valeria correr dentro da quadra, e não haveria o chamado “pique”, espaço no qual a pessoa que “foge”
permanece sem a possibilidade de ser “pego” por alguém.
Todos participaram da brincadeira e após alguns minutos, Fabiano alertou Matheus para
o início da atividade com o baragãndã.
Reunimos todos e fomos até a sala de vídeo. Lá Matheus foi trazendo o material para a
confecção do baragãndã (jornal, folhas de papel crepom coloridas, tesouras sem ponta e barbante),
enquanto sentávamos em roda com o Fabiano coordenando a atividade.
Fabiano perguntou se alguém já havia brincado com o baragãndã e algumas crianças
comentaram que sim. Daí ele perguntou se alguém ali sabia de onde era, de que país era e muitos
disseram Estados Unidos, muitos ficaram calados ou balançando a cabeça para os lados, demonstrando
não saberem de onde vinha, quando bem no final uma das crianças disse baixinho: “África!”.
Fabiano continua seu discurso, argumentando sobre a influencia da África em nossa
cultura, dizendo que lá, não havia apenas mata e animais, mas grandes cidades e locais muito
interessantes. Aproveitou e perguntou se alguém sabia mais alguma coisa, brinquedo ou dança que veio
da África e as crianças disseram de imediato a capoeira. Fabiano perguntou se conheciam algo mais e
como nenhuma criança respondeu, fez mais alguns comentários sobre as influências africanas na cultura
brasileira, como o samba, a capoeira, o candomblé, dentre outros citados, e o próprio baragãndã. Dando
então início ao ensino da confecção deste brinquedo.
107
Interessante notarmos a questão da influência norte-americana ou européia na educação,
sendo que não só neste encontro como também na vivência do Karatê, na ocasião em que conversamos
sobre nossas descendências, muitos tinham como referência a Europa ou os Estados Unidos. Isto levou-
me a refletir nas discussões feitas durante a disciplina (Práticas Sociais e Processos Educativos I) com
base nos textos de Enrique Dussel, tanto no que se refere à identidade latino-americana quanto as
problemáticas apresentadas em sua configuração/construção. Pretendo aprofundar mais esta temática no
corpo do próprio relatório, atendo-me neste momento apenas a descrição e registro do ocorrido
Continuando nas atividades, Fabiano foi descrevendo passo a passo os procedimentos
para a construção do baragãndã, perguntando para aqueles que já haviam brincado com o mesmo se
lembravam de como fazer, procurando interagir com eles o máximo possível.
O processo era baseado em dobrar metade de uma folha comum de jornal, até ficar bem
pequeno, aproximadamente uns 7 cm
2
, porém sem uma medida exata, dobra-se o suficiente para se
colocar uma tira de papel crepom de cada cor no meio do pequeno quadrado do jornal, dobrá-lo
novamente e amarrar com o barbante, mantendo uma parte da linha do barbante como um pequeno
cordão, onde numa extremidade ficaria o pedaço de jornal dobrado e na outra seguraríamos e rodaríamos
num efeito muito bonito e divertido de se brincar.
As crianças produziram seus próprios baragãndãs e os mais novos eram auxiliados
pelos professores ou pelos próprios colegas.
Aprendi junto com as crianças que ainda não sabiam, a construir o brinquedo, e isto foi
muito interessante, visto que aprender junto com eles e também daqueles que já sabiam foi uma
experiência muito enriquecedora, dotada de uma interatividade intensa e divertida.
Em paralelo a esta atividade, na sala ao lado, ocorria o projeto de animação com
massinha de modelar, coordenado por duas graduandas do curso de Imagem e Som da UFSCar.
Após a produção dos baragãndãs, as crianças saíram correndo para a quadra brincando
e rodando os mesmos em várias direções, sorrindo e pulando pra todos os lados.
Fabiano, participando da brincadeira, mostrou uma outra possibilidade de brincar com o
objeto, rodando um em cada mão, demonstrando grande habilidade e um efeito visual muito lindo. Logo
em seguida, diversas crianças saíram correndo e pegaram um baragãndã em cada mão, tentando girá-los
ao mesmo tempo. Algumas conseguiam, outras não, algumas apenas olhavam e admiravam, mas todos
participaram da atividade em si.
Durante a brincadeira, algumas meninas que participaram do projeto nos anos
anteriores, passaram na ECO e vieram conversar com as Professoras, comentando sobre o dia-a-dia e
também da saudade de participar no projeto.
Segundo a professora Rosângela, elas completaram 17 anos e não poderiam mais
participar do projeto, o qual se estendia para pessoas entre 4 a 16 anos.
A professora no meio da conversa olhou para a roupa de uma das meninas e disse:
“Você não acha que este shorts está muito curto pra esse frio?”. A menina olhou para suas próprias pernas
e com um sorriso maroto disse: “Ah professora, o que é bonito é pra se mostrar!”. Afirmação seguida de
risos e gargalhadas. A professora chamou a atenção das meninas e educadamente (em separado das outras
crianças e sem chamar a atenção dos demais presentes) pediu para elas evitarem usar aquelas roupas fora
108
de casa, expondo o corpo daquela forma, sem levarmos em consideração o frio que estava naquele dia.
Elas movimentaram a cabeça em afirmação e sorrindo, caminharam em direção a saída da ECO.
A Professora comentou comigo que elas participavam do projeto, nos últimos meses
elas acompanhavam o dia-a-dia destas meninas e algumas delas estavam servindo de “aviãozinho”, jargão
utilizado para determinar as pessoas que carregam as drogas para os traficantes entre os bairros ou mesmo
cidades. Perguntei a ela se já havia conversado sobre isso com as meninas, e afirmou que a justificativa
estava baseada na questão financeira, especialmente aquelas que já possuíam filhos. Acrescentou também
o alto índice de garotas entre 14 e 18 anos com filhos na comunidade.
Comentei com a professora ter visto elas num outro encontro, juntas em um espaço
aberto, próximo a ECO, no qual passamos quando vamos para o lanche no Centro Comunitário. E nesta
ocasião, vi as mesmas fumando e conversando em grupo. Aproveitei a deixa para perguntar se a
professora tinha conhecimento do uso de drogas pelas mesmas ou entre as outras garotas(os) participantes
do projeto.
Ela conta que entre as crianças que participavam do projeto, acredita que não, mas entre
as meninas vistas anteriormente, já não pode afirmar com tanta convicção, pois o envolvimento com as
drogas naquela faixa etária não era algo difícil de encontrarmos, ainda mais com contato próximo entre
elas e os traficantes.
No meio da conversa, fomos chamados pelo Matheus para nos reunirmos e
caminharmos para o Centro Comunitário.
Na caminhada, por coincidência, acabei encontrando novamente aquele grupo de
meninas fumando, porém, estavam em frente a ECO, sentadas na sarjeta conversando.
Apenas acenei com a mão, cumprimentando-as e seguimos para o Centro Comunitário.
Após a refeição, vitamina e pão com geléia de morango, descemos com as crianças até a
ECO e lá nos despedimos de todas, que seguiram para suas casas.
Conversei um pouco com Matheus e Fabiano sobre uma possível data para recolhermos
as entrevistas e os questionários referentes à pesquisa desenvolvida pelo projeto. Combinamos na semana
seguinte, ficarmos depois do projeto para coletar algumas entrevistas e questionários. Fabiano não poderia
ficar naquele dia devido a uma prova que faria em São Paulo, mas ajudaria noutra data a ser combinada
com o grupo.
Despedimo-nos do Matheus e fomos, Fabiano e eu para nossas respectivas casas.
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Diário de Campo: X
Data: Quinta-feira – 31/05/2007
Período: Manhã – 8:00h às 11:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
(RE)VIVENDO O KARATÊ
Para este encontro, combinamos de irmos Matheus e eu juntos de carro, pois Fabiano
não poderia comparecer neste dia, devido a uma prova que prestaria na cidade de São Paulo.
No caminho para a estação, Matheus perguntou-me se poderíamos realizar mais uma
vivência com o Karatê naquele dia, porém, sem atividades paralelas concorrendo, fazendo o que havia
sido combinado anteriormente com a presença do Professor Luiz e do Fabiano.
Concordei de antemão e fui comentando sobre as dificuldades que sempre existem na
coordenação destas atividades, mas destaquei uma questão positiva que estaria relacionada a faixa etária
do projeto ser um muito próxima daquela que realizei meus estudos e projeto de monografia,
apresentando alguma experiência anterior, a qual também é enriquecida pela oportunidade que obtive
quando ministrei aulas como monitor, durante minha formação como instrutor de Karatê.
Matheus gostou da idéia e colocou palavras de apoio, inclusive destacando o grande
aprendizado que vem tendo nos encontros do projeto, iniciados antes mesmo da construção da ECO.
Próximo das 8 horas da manhã, chegamos à ECO e algumas crianças já estavam por lá.
Fomos até a sala da Maria cumprimentá-la e no caminho outras crianças foram chegando e integrando o
grupo.
Matheus foi chamando aquelas que estavam espalhadas pela ECO brincando em outras
atividades e no campinho, soltando pipa ou jogando futebol, para a quadra, onde conversaríamos sobre as
atividades do dia.
Ele iniciou a conversa perguntando sobre o que haviam combinado para aquele
encontro, e elas tinham esquecido de trazer as latas para brincarmos de “pé-de-lata” e o Matheus voltou a
cobrá-las sobre o material, alertando para procurarem em casa, no vizinho ou com os amigos alguma lata
vazia (parecida com a dos achocolatados) para que utilizassem no projeto.
Em seguida, Matheus perguntou se alguém lembrava da proposta que havia sido feita
numa das semanas anteriores com o Karatê. Algumas crianças recordaram e algumas rapidamente
levantaram e saíram demonstrando socos e chutes a todos, quando Matheus então pediu para esperarem o
início da atividade.
Ele passou assim a coordenação do grupo para mim. Inicialmente pedi para sentarmos
mais ao centro da quadra para aproveitarmos melhor o espaço e ficarmos na sombra, onde estava mais
fresco.
Sentados, a perguntei a todos se alguém ali já havia praticado alguma luta ou arte
marcial antes, similarmente ao que fiz na primeira tentativa em vivenciarmos o Karatê, procurando
conhecer o mundo-vida dos educandos e tendo este como ponto de partida para o trabalho. Alguns
meninos disseram ter praticado capoeira, e um deles disse ainda praticar de vez em quando com um grupo
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do bairro, mas que há algum tempo não freqüentava as aulas.
Matheus disse ter praticado capoeira e que gostava muito. Uma menina disse ter um
irmão que pratica jiu-jitsu, e ela disse já ter também praticado capoeira.
Perguntei se eles sabiam de onde tinha vindo o Karatê, e um dos meninos disse:
“Estados Unidos!”, e outro disse: “Brasil!”, quando no fundo um outro garoto disse “Japão!”. No que o
garoto afirmou o Japão, o Professor Matheus disse: “Professor Victor, ele disse Japão! Está certo isto
professor?” Procurando interagir junto com as crianças.
Começamos assim a conversar sobre a origem do Karatê, quando abordei então um
pouco sobre a cultura oriental, seus costumes como, por exemplo, a forma de sentar e cumprimentar,
fazendo sempre uma analogia com a cultura brasileira, sem comparar hierarquicamente as mesmas, mas
apenas destacando as diferenças e resgatando o saber de experiência feito dos educandos, identificando-os
com a temática e trazendo-os para a mesma.
Quando comentávamos, por exemplo, a forma de sentar, muitos perceberam que no
momento em que iniciamos a atividade, eu já não estava mais sentado de pernas cruzadas, mas sim sobre
os joelhos, o que havia passado despercebido antes do comentário que destacou isto.
Aproveitando que todos iam ficando de pé sempre que falavam e demonstravam aquilo
que desejavam dizer, solicitei a todos que ficassem de pé para prosseguirmos numa outra atividade.
Nela, em pé, formamos um grande círculo, e então perguntei a todos se alguém já tinha
visto algum golpe de luta, não necessariamente de Karatê, podendo ser na televisão, filme, revistinha, gibi
ou na rua, que demonstrasse para grupo.
Algumas crianças ficaram um pouco tímidas, outras já estavam socando e chutando sem
mesmo pedirmos. Naquele instante, pedi para um dos meninos que demonstrasse novamente um golpe
que tinha feito, e ele demonstrou para todo o grupo.
Naquela oportunidade, pedi para que repetisse o golpe e então propus ao grupo que
tentássemos todos vivenciarmos aquele golpe demonstrado pelo colega.
Passamos assim a realizar aquele golpe apresentado pelo colega, e em seguida, sem que
eu pedisse, outra criança gritou: “Professor! Professor! Tem esse aqui oh!”, demonstrando o golpe para o
grupo, e em seguida, emendamos a fazer aquele golpe demonstrado pelo outro colega.
Após algumas demonstrações, perguntei a eles se sabiam para que serviria aquele golpe
que eles demonstravam, e muitos disseram: “É um soco!”, “É um chute!”, quando perguntei: “Mas a
gente quando luta, só ataca?”, acrescentando uma analogia com o futebol, procurando aproximar aquilo
de uma atividade mais conhecida, disse: “No futebol você ataca, chuta ao gol, mas você também defende,
não defende?”. E muitos já iam apresentando alguns movimentos de defesa do rosto ou do tórax, e íamos
vivenciando-os um a um, sem uma ordem exata, deixando o espaço livre para que todos pudessem falar e
serem ouvidos.
Depois de algum tempo, vendo que a atividade ia perdendo o fôlego, propus outra
brincadeira popularmente conhecida como “siga-o-mestre”, na qual, em duplas, uma das crianças seria o
mestre, e poderia correr por toda a quadra trocando de direção velocidade conforme sua vontade,
enquanto o outro integrante da dupla deveria segui-la, porém teria uma posição próxima ao “mestre” que
seria fixa. Por exemplo, enquanto a criança que fosse o “mestre” corresse, a outra poderia segui-lo
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ficando ora atrás dela, ora do lado esquerdo, ora do lado direito ou mesmo na frente, dependendo do que
fosse combinado entre eles.
As crianças formaram as duplas entre si e iniciamos a atividade. Foi uma correria e
tanto. Muitos corriam rapidamente, outros iam com mais calma, outros de costas, e assim por diante. Em
pequenos espaços de tempo eu pedia para que trocassem de posição ou trocassem o integrante da dupla
que seguiam, e noutro momento, pedia para que trocassem a própria dupla, procurando interagir todos
com todos. Em certos momentos uma das meninas demonstrou certa rejeição em brincar com alguns
garotos, mas uma das professoras antecipou a divergência e logo trouxe a garota para fazer junto a ela.
Minutos depois, paramos a brincadeira e sentamos no centro da quadra. Novamente,
perguntei se haviam gostado das brincadeiras e todos disseram que sim. Neste instante, um dos meninos
que estava sentado junto com o Matheus perguntou-me: “Você é aluno ou é professor de Karatê?”.
Matheus olhou para mim dizendo: “Você é professor, não é? Sensei ou Sansei? Não sei!”.
Olhei para o menino e disse: “No Karatê somos aluno e professor ao mesmo tempo,
pois estamos sempre aprendendo algo e podemos também ensinar isso para nossos colegas ou também
para aqueles que acabaram de entrar no grupo”.
O menino ficou um pouco surpreso com a resposta, pois aparentemente, acredito que ele
esperava uma resposta mais usual, do tipo “Sou!”, ou “Não sou!”, caracterizando saber ou não alguma
coisa. Entretanto, percebi certa satisfação no semblante do garoto e passamos assim para uma outra parte
da conversa.
Pedi a todos que procurassem conversar em casa, com familiares, e no bairro,
procurando saber quem já tinha praticado algum tipo de luta ou arte marcial, e também o que achavam
daquilo, registrando no papel aquilo que eles diziam e trazendo para um próximo encontro. O intuito
desta tarefa seria utilizarmos destes materiais para discutirmos um pouco mais sobre as lutas/artes
marciais, suas perspectivas e propósitos partindo do entendimento daqueles com quem conversaram,
compartilhando possíveis experiências com o grupo.
Em seguida, Matheus passou a coordenar as atividades e organizou o futebol no
campinho.
As professoras coordenaram a atividade do vôlei na quadra e eu as auxiliei na
montagem da rede e posteriormente na própria atividade.
O jogo seguiu normalmente, e havia poucos meninos participando do vôlei e nenhuma
menina participando do futebol.
Algumas garotas mais velhas, entre 11 e 15 anos, as quais não haviam participado da
atividade do Karatê, mas estavam ali próximas, ao verem o jogo de vôlei entraram na quadra.
No vôlei, uma das meninas (aproximadamente 5 anos) sofria por parte de outras mais
velhas. Quando a mais jovem errava, gritavam ou chamavam sua atenção, alegando que não sabia jogar
ou mesmo pedindo para sair dali.
As Professoras pedia para cessarem com as ofensas/comentários pejorativos, repreendia
as garotas, dizendo que a atividade era para todos, servindo para aqueles que sabem ou não jogar, era uma
brincadeira que não envolvia uma disputa. As recriminações diminuíram, mas logo depois, voltavam a
ocorrer e a professora retornava a pedir que parassem com a implicância.
112
Em outros momentos quando a recriminação persistia a criança aparentava não se
incomodar mais com os comentários e seguia jogando.
Esta recriminação inter-grupal, contra os mais novos, entendo como uma questão a ser
abordada, especialmente em vivências práticas que demonstrem o “aprender COM o outro”, e não
“sobre” o outro, muito discutido nas disciplinas do mestrado. Isto pode ser feito por meio de jogos ou
brincadeiras que possibilitem a troca de experiências efetivas entre eles e que não necessitem
prioritariamente de habilidades motoras, ou mesmo, que apontem a importância do aprendizado do grupo
e com o grupo.
Na atividade do Karatê, procurei trabalhar neste sentido, tirando o foco da minha
pessoa, como se apenas eu soubesse ou tivesse experiências acerca das lutas e artes marciais, partindo das
crianças e de suas experiências. Nesta ocasião, mesmo os mais velhos puderam aprender com os mais
novos e vice-versa, formando assim um ambiente de múltipla contribuição.
Continuando com as atividades do dia, chegamos no horário do lanche. Fomos lavar as
mãos e seguir para o Centro Comunitário.
Lá foram servidos pão com geléia e leite. Cerca de 30 crianças participaram do projeto
neste dia.
Ao observas as crianças comendo, vi uma atitude que as vezes nos passa desapercebida.
Um dos meninos estava com fome ainda, porém, os pães haviam acabado. Um dos colegas percebeu isto
e estendeu sua mão com um lanche que havia guardado.
No final do lanche, caminhamos até a ECO e nos despedimos das crianças.
Matheus e eu não pudemos recolher as entrevistas, contudo, ele iria coleta-las de
algumas crianças e eu o ajudaria nas entrevistas com os pais numa próxima semana.
Despedi-me do grupo e retornei a minha casa.
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Diário de Campo: XI
Data: Quinta-feira – 14/06/2007
Período: Manhã – 8:00h às 11:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
O RAP DO GONZAGA
Com a carona do Fabiano, chegamos ao Centro Comunitário e lá ele estacionou sua
motocicleta. Em seguida, descemos caminhando até a ECO, pelo mesmo trajeto que realizamos quando
conduzimos as crianças para o lanche.
Entretanto, neste dia ocorreu algo inusitado. Próximo à rua que dá acesso a Estação, em
frente a uma casa estavam paradas 5 viaturas da polícia civil. Os policiais estavam tentando acessar uma
casa em busca de uma pessoa, que até aquele momento eu não sabia se era homem ou mulher e o porquê
da prisão. Todos estavam fortemente armados e, posteriormente, numa conversa com um rapaz que
trabalha na ECO, vim a saber que estavam com um mandado de prisão por tráfico de drogas para a pessoa
que morava naquela casa. Achei melhor não insistir na conversa sobre isto e troquei de assunto partindo
para as atividades da ECO e as crianças.
Contudo, gostaria de destacar o comentário de algumas crianças que nos encontraram
no meio do caminho, próximo a casa onde as viaturas estavam paradas e uma das crianças começou a
atribuir ofensas aos mesmos (obviamente, expressando-as apenas para mim, sem ofender diretamente aos
policiais), comentando que não gostava deles. Daí perguntei por que ele não gostava da polícia e ele
apenas afirmou: “Ah! Eu não gosto deles, só isso!”.
Outra criança, também aproximou e ouviu a conversa, dizendo também não gostar da
polícia porque ela agredia as pessoas, os tratava mal.
Aproveito o ensejo para acrescentar a este diário de campo, uma conversa que tive com
uma das pioneiras do projeto, também formada em Educação Física, antes mesmo de existir a ECO e nos
primórdios do projeto, relatou ter passado por diversas situações constrangedoras durante as rondas
policiais no bairro. Um olhar “pesado” dos policias era direcionado a ela quando atuava no projeto
(caminhando para o Centro Comunitário, para o lanche, por exemplo) e isto foi mudando apenas aos
poucos, quando foram se acostumando com sua presença e também, posteriormente por ela estar sempre
vestida com a camiseta do projeto, que, segundo ela, tornou-se importante, pois reduzia o olhar
“incriminante” dos policiais na época.
Antecipando uma conversa ocorrida já na ECO com uma outra criança, a qual tocou no
assunto sozinha, na contramão das opiniões das crianças anteriores, disse gostar da polícia, comentando
que ela protegia as pessoas e tirava os traficantes dali.
A partir destes elementos e com experiências de vida diferentes, acredito ser limitada
minha análise do ocorrido, todavia, entendo o mesmo como complexo devido ao próprio histórico da
comunidade, sendo ela uma das mais discriminadas da cidade, inclusive uma das moradoras, durante as
entrevistas que coletamos, relatou que seu filho chegou a perder o emprego só por saberem que ele
morava no Jardim Gonzaga, ou seja, um preconceito inaceitável contra a comunidade.
114
Outra questão é a própria violência policial, não exclusiva deste bairro, mas de muitos
outros, sendo de vital importância discuti-la até mesmo com as crianças e jovens numa perspectiva que
busque esclarecer as diferenças entre a corrupção na e da polícia e estes enquanto órgãos de segurança do
Estado. Obviamente que não tenho subsídios sólidos para organizar e coordenar uma atividade
relacionada a esta temática, nem mesmo discuti-las neste diário de campo com a maturidade acadêmica
necessária, mas vejo como interessante fomentar iniciativas com a própria comunidade em busca de
discussões e iniciativas para pensá-las e estruturá-las de acordo com a própria história do bairro. Por
enquanto, vou ater-me a descrição das atividades do dia no projeto.
Continuando, chegamos a ECO e encontramos com Matheus já na quadra e juntamo-nos
ao grupo, sentados na quadra.
Matheus comentou sobre os encontros anteriores e a presença de algumas crianças, as
quais estavam faltando muito no projeto. Solicitou para aqueles que morassem próximos ou encontrassem
os mesmos na escola ou na rua, que os chamassem para o projeto, cobrando sua presença.
Conversamos também sobre as festividades juninas e a festa que seria realizada na ECO
no dia 27 de junho. Matheus então perguntou se o grupo gostaria de organizar alguma apresentação,
dança ou algo parecido.
Algumas meninas e meninos disseram que iriam participar de uma quadrilha, e as outras
crianças disseram não querer participar disto.
Matheus, perguntou as professoras se elas estavam organizando esta quadrilha caipira
com o grupo em outros horários e elas disseram que sim, inclusive, colocaram outras informações sobre a
festa para o grupo, como as roupas (quem tinha chapéu ou calça, etc., e quem não tinha para que elas
procurassem obter o material a tempo).
Como algumas crianças não estavam querendo participar da quadrilha, Matheus
perguntou o que eles gostariam de fazer naquela apresentação. Elas ficaram quietas e outras ficaram
dispersas, quando uma criança, apelidada de “mudinho”, começou a dançar o “break”. Matheus então
disse: “Vamos fazer uma quadrilha de rap?”. As crianças toparam de imediato, e ele foi assim até a sala
da Maria para pegar um CD com várias músicas de rap nacional que ele havia gravado.
Junto com um rádio, trouxe-nos para um espaço ao lado da quadra, para ensaiarmos a
coreografia da apresentação.
Inicialmente, organizamos a escolha da música, a qual ocorreu por meio de votação
entre todos. A música escolhida foi “Vida Loca II” do grupo Racionais Mc’s.
Após a escolha, partimos para a coreografia. Matheus perguntou se eles tinham alguma
idéia para começarmos e vendo a inatividade do grupo, começou a propor idéias.
Ele propôs de começarmos todos cumprimentando a platéia de um jeito característico,
batendo as palmas das mãos e tocando depois os punhos fechados.
Caminhando e cumprimentando aqueles que estivessem próximos do palco (sendo este
aquele próximo da quadra, mas, devido à falta de extensão elétrica para a tomada, o ensaio ocorreu no
espaço comentado anteriormente, próximo à cozinha, entretanto, sempre tendo como referencial o palco).
A partir da idéia do Matheus eles foram comentando e dando suas opiniões, não havia
nenhuma formatação ou mesmo estilo fechado para a coreografia, esta ocorria com liberdade tanto na
115
forma quanto na seqüência, que ia ganhando corpo conforme eles iam discutindo e decidindo o que seria
feito.
Cerca de 6 meninos e 3 meninas participaram desta atividade. As outras crianças
ficaram sentadas ou opinando sobre a coreografia ou participando como platéia.
Dois dos garotos apresentavam movimentos típicos do “break” e outras dançavam
conforme sentiam vontade, sem estilo ou norma rígidos, criando um ambiente muito agradável pra todos.
No final do ensaio, reunimos as crianças no “caracol” e conversamos sobre a
apresentação e o que acharam dela. Todas comentaram ter gostado da atividade e concordaram em
apresentá-la na festa junina.
Lavamos as mãos e fomos para o lanche no Centro Comunitário, onde nos foi servido
macarrão com legumes e na sobremesa uma banana. Cerca de 20 crianças participaram do projeto neste
dia, algumas estavam no projeto paralelo de animação e outras ficaram como platéia na dança.
No final da alimentação, descemos até a ECO e nos despedimos.
Neste dia, Matheus e eu pedimos para algumas crianças ficarem conosco para
coletarmos as entrevistas.
Dois meninos eram irmãos e participavam do projeto, Matheus perguntou-lhes se havia
alguém em casa, mãe ou pai, e eles afirmaram que sua mãe estaria em casa.
Partimos assim para a casa deles. Chegando lá, uma pequena casa muita próxima a
ECO, inclusive do seu quintal podíamos ver toda a Estação.
A mãe dos meninos nos recebeu muito bem e educadamente, Matheus iniciou a
conversa explicando qual era o motivo daquela visita, o porquê da coleta de dados das crianças e dos pais,
quais os objetivos da pesquisa (procurar ter um panorama sócio-econômico do público freqüentador da
ECO; verificar a opinião dos pais/responsáveis e também das próprias crianças sobre as atividades
desenvolvidas no local; resgatar brincadeiras antigas vivenciadas pelos pais/responsáveis que possam ser
implementadas no projeto, dentre outros, interpretados e organizados no formato acadêmico), inclusive
apresentando-me e explicando minha presença ali, a participação no projeto e a pesquisa junto à
disciplina do PPGE.
Lemos o termo de consentimento e o Matheus explicou-o detalhadamente, deixando
uma cópia com ela e com todas as pessoas que entrevistou naquele dia, seguindo este procedimento
criteriosamente.
As perguntas de cunho socioeconômico são relacionadas, por exemplo: a renda média
da família, quantas pessoas estavam empregadas, número de cômodos e eletrodomésticos na casa.
Combinamos de antemão que Matheus (por ter maior inserção no bairro e também por já ter realizado
entrevistas nos anos anteriores) faria a aproximação e as perguntas e eu o acompanharia registrando as
informações no formulário, deixando ele e os(as) entrevistados(as) mais a vontade. O formato não era
fechado e havia sempre espaço para que eu, caso julgasse necessário, interagisse também com perguntas.
Porém, minha interação ocorreu mais no sentido de aproximação do público em si, procurando
familiarizar-me com a comunidade, algo que era beneficiado pela figura carismática e positiva que
Matheus possui no bairro.
Matheus conduziu as entrevistas de forma muito descontraída (mas sem deixar de lado
116
os compromissos acadêmico-científicos), e sua inserção na comunidade era algo muito interessante e
admirável. Durante todo o percurso, não só neste dia, mas em todos os outros encontros, cumprimentava a
todos da rua e do bairro por onde passava, parando muitas vezes para conversar com e sobre as crianças
(filhos ou parentes) que não estavam freqüentando o projeto, brincando com os moradores, deixando
sorrisos e gargalhadas por onde passava, tudo feito com muita alegria e sem artificialismos. Era o que
nós, do Núcleo de Estudos de Fenomenologia em Educação Física (NEFEF/UFSCar) carinhosamente
chamamos do “jeito Matheus de ser”, o qual todos admiramos muito.
Prosseguindo com a descrição das entrevistas, a mãe dos meninos comentou trabalhar
cuidando da casa e dos filhos, e que o marido estava desempregado, porém iria trabalhar na safra de
laranja por alguns meses, trazendo uma renda fixa neste período. A casa possuía 5 cômodos, com
acabamento interno e externo rústicos.
Comentou também gostar muito das atividades da ECO, principalmente por retirar as
crianças da rua, colocando-as num projeto em que elas aprendem muitas coisas. Disse não ter nada a
acrescentar com relação às atividades ou ao andamento do projeto, apenas comentou que elas poderiam
ocorrer também no período de férias escolares, pois as crianças gostavam muito do projeto e seria
interessante dar continuidade no mesmo nesta época.
Sobre as brincadeiras que participava quando criança, relatou-nos as brincadeiras de
boneca, “pega-pega” e “esconde-esconde”.
No final da entrevista, Matheus conversou um pouco sobre as crianças, se elas
comentavam em casa sobre o projeto e se estavam gostando ou não. Ela comentou que eles sempre
disseram gostar do projeto e das atividades de lá, ela acrescentou também que sempre busca saber sobre o
dia-a-dia delas, o que fizeram ou aonde foram/irão.
Agradecemos à colaboração e nos despedimos, seguindo assim para a casa de outra mãe
que morava ali perto.
Esta mãe residia em frete a ECO, e naquele instante estava cuidando de um sobrinho,
sentada em frente de sua casa.
Matheus já a conhecia (por acompanhar o projeto há anos e com a facilidade de morar
em frente à estação) e aproximou-se com tranqüilidade. Antes de iniciar a diálogo formal sobre a
entrevista, Matheus conversa um pouco sobre o bairro, perguntando como andavam as coisas, se estava
tudo bem, e assim por diante. Ela disse estar tudo bem e estava cuidando do sobrinho e esperando o filho
e o marido retornarem do trabalho.
Após algumas palavras, demos início à entrevista. Matheus descreve o projeto e a
pesquisa, juntamente com o termo de consentimento. Ela concorda e aceita participar.
Ela trabalha como dona de casa no momento, trabalhou como atendente em lanchonete,
porém, devido à gravidez há três anos, agora cuida dos dois filhos e da casa. A renda mensal da família é
em torno de 500 reais. A casa possui 6 cômodos com acabamento interno e externo.
Ao perguntarmos sobre o que ela gostava de fazer no seu dia-a-dia, disse ter muita
rotina (cuidar da casa e dos filhos), mas gosta muito de ficar com eles (filhos), conversar com eles. Gosta
muito de ir à igreja, especialmente cantar e participar dos cultos, e costuma levar os filhos sempre que
pode. Diz não gostar de morar no Jardim Gonzaga, porém, o filho mais velho gosta, e que, segundo ela, se
117
tivesse oportunidade de sair do bairro, sairia. Relata que o marido e o filho já perderam um emprego
somente por morarem no bairro.
Diz ainda que gostar muito de assistir filmes e não gosta muito de novela, costuma ir
aos finais de semana para o sitio dos pais, ver o verde, colher frutas no pomar com as crianças e ficar mais
tempo perto delas.
Sobre as brincadeiras participava quando criança relata o “pega-pega”, “casinha”,
brincadeiras de “roda” e “passar o anel”. Segundo ela, atualmente não se tem mais brincadeiras como
antigamente e que quando morava no sítio não havia tanta violência, tantas brigas.
Em relação ao projeto, apenas argumenta que poderia ocorrer mais vezes na semana, o
que seria muito legal para todos.
No final da conversa, Matheus entrega o termo de consentimento assinado por ele,
recolhe a assinatura da mãe, agradecemos e nos despedimos.
Logo ao sairmos desta casa, encontramos sentada, conversando com sua vizinha, uma
mãe de outra criança que participa do projeto e aproveitamos a oportunidade para convidá-la a participar
da entrevista. Ela aceita sem cogitar e pede para que nos sentemos e fiquemos mais a vontade.
Matheus explica novamente o projeto e a entrevista, esclarecendo também os motivos e
lendo ao final o termo de consentimento.
A mãe concorda sem problemas e iniciamos assim as perguntas.
Assim como as outras duas mães anteriores, também é dona de casa e está
desempregada há 12 anos. O sustento da casa é feito pelo marido e pelo filho, com uma renda mensal de
aproximadamente 1000 reais, para sustentar 9 pessoas. A residência possui 6 cômodos(contando a
garagem) com acabamento interno e externo.
Acerca do que gostava de fazer no seu cotidiano, ela comenta gostar de passear pelo
bairro, cozinhar, passar roupa, cuidar dos filhos, comer e dormir.
Sobre o projeto ela disse gostar muito do mesmo, comenta que as crianças ficam muito
na rua e com as atividades desenvolvidas eles deixam de ficar na rua e ainda participam de vários
projetos. Vê como muito importante para o bairro a construção da ECO e que as crianças gostam muito
deste projeto e chegam até a chorar quando não tem. Acharia interessante se os lanches fossem servidos
na própria estação e ainda acrescenta que o filho aprendeu a rezar o “pai nosso” durante essas refeições
realizadas durante dentre outras coisas e brincadeiras.
Em sua infância, gostava muito de brincar de elástico, boneca, “fura-fura” (pedaço de
madeira com um pedaço de ferro com o qual se vai desenhando no chão), vôlei, “queimada”, nadar (no
rio que tinha lá no estado do Pará, de onde veio).
Em relação aos projetos desenvolvidos na ECO, ela acharia importante se o pessoal do
vôlei visse também durante o dia e que seria legal se tivessem capoeira, pois as crianças gostam muito.
Ao final, como nas outras entrevistas, Matheus entrega o termo de consentimento
assinado, recolhe a assinatura e agradece a colaboração. Despedimo-nos e seguimos para outras duas
casas, a procura das mães de outras crianças, porém, uma delas estava ocupada e pediu para passarmos
outro dia. Não nos recebeu com hostilidade, muito pelo contrário, suas filhas e seus filhos vieram todos
correndo nos abraçar quando nos viram ao portão entre sorrisos e risadas, ela apenas comentou estar
118
muito ocupada naquele instante, todavia participaria da entrevista sem problemas.
Agradecemos e nos despedimos de todos, seguindo para outra residência, a qual a mãe
não se encontrava. Devido ao horário, Matheus e eu combinamos de continuar as coletas noutro
momento.
Despedi-me assim do Matheus e segui para minha casa.
119
Diário de Campo: XII
Data: Quinta-feira – 21/06/2007
Período: Manhã – 8:00h às 11:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
A QUADRILHA DO RAP
Nesta quinta feira, Fabiano passou logo cedo em casa e seguimos para o Gonzaga. No
caminho, conversamos sobre os encontros anteriores e sobre os diários de campo que estávamos
produzindo para a disciplina, bem como para a própria dissertação.
Chegamos ao Centro Comunitário, Fabiano estacionou sua moto e caminhamos até a
estação. No caminho, encontramos algumas crianças que estavam soltando pipa e chamamos para o
projeto, duas vieram conosco e as outras 2 continuaram no local. Já na ECO, encontramos a Maria e as
professoras Érica e Rosângela procurando um rádio para ensaiar a quadrilha formal e também a quadrilha
de rap que estávamos organizando.
O Matheus logo chegou trazendo consigo o Cd com as músicas e um pequeno rádio.
Cumprimentou-nos e solicitou as professoras uma extensão para ligar o rádio mais ao centro da quadra,
onde ensaiaríamos a coreografia das quadrilhas.
Fabiano e eu reunimos as crianças com a ajuda das professoras no centro da quadra,
quando Matheus chegou e sentou-se conosco. Iniciamos a conversa com os avisos da festa junina. Um
dos meninos, que seria o “noivo” na quadrilha formal, veio correndo e sorrindo entregar uma calça para a
professora Rosângela, para que ela colocasse os enfeites dos retalhos, característicos destas festividades.
O menino parecia muito ansioso para a festa, que seria na semana seguinte.
No assunto das quadrilhas, Matheus anunciou novamente a data, pedindo para que todos
viessem e trouxessem toda a família, amigos e vizinhos. Comentou sobre o ensaio que faríamos no dia e
também alertou novamente para todos aqueles que encontrassem os colegas que estavam faltando muito,
para retornarem ao projeto e a participar das atividades da ECO.
Chamamos todos para participar novamente do ensaio da coreografia da quadrilha de
rap. Desta vez fiquei com algumas crianças sentadas, ajudando na coreografia mais como observador.
Durante o ensaio, perguntei a uma das meninas sentadas próximo a mim, por que não
estava participando da dança, e ela comentou comigo que não gosta de dançar Hip Hop e gosta de ouvir
apenas algumas músicas de rap. Questionei se havia algum motivo e ela comentou gostar mais de Kelly
Key, Ivete Sangalo e músicas do gênero (mais vinculadas pela mídia televisiva) e que o rap ela gostava
apenas de algumas músicas, porém não de todas e que era algo mais de menino.
Interessante observar que, mesmo não apreciando muito aquelas músicas, enquanto
tocavam, ela cantava a letra toda sem errar, inclusive movimentando as pernas sutilmente conforme o
ritmo das batidas. Sob minha percepção, percebi que ela gosta também de rap, cantando e se
movimentando com a música, contudo, afirmava mais sua predileção pelas músicas socialmente vistas
como mais “femininas”, ou seja, carregava consigo imperceptivelmente uma visão machista sobre Hip
Hop. Não que esta perspectiva não possa existir dentro do próprio movimento, mas que nesta ocasião
120
ficou mais evidente esta característica.
Participaram do ensaio mais crianças que no encontro anterior, aproximadamente 12,
com um número também maior de meninas (quatro no total). A formatação geral da coreografia foi a
mesma, sendo que esta apresenta uma grande liberdade nos passos e ritmos individuais. Os participantes
demonstraram grande entusiasmo no ensaio, o qual correu de forma fluida.
A dança rolava e observei ao fundo, alguns moradores (cerca de seis) ouvindo e
aproximando-se da quadra, assistiram a todo o ensaio e tecendo comentários entre si enquanto as crianças
dançavam, demonstrando assim a difusão que este movimento (Hip Hop) possui nesta comunidade.
Fabiano e Matheus conversavam e dançavam junto às crianças, as professoras Érica e
Rosângela ficaram como observadoras, sentadas juntamente com outras crianças na quadra e auxiliando
na programação do som, sob o pedido do Matheus.
Cerca de uma hora mais tarde, as professoras comentaram com Matheus sobre o ensaio
da quadrilha formal, e então, reunimos novamente as crianças em círculo e organizamos os pares.
Nesta atividade, participei junto a uma menina que auxiliou as professoras na “puxada”
da quadrilha, coordenando os passos e lendo as etapas da coreografia. As professoras também
participaram da dança.
A coreografia desta dança possuía as características comuns das quadrilhas caipiras
formais, sendo elaborada em etapas e procedimentos mais formais e “fechados” quanto às possibilidades
individuais de expressão, diferentemente da quadrilha de rap.
No final do ensaio, reunimos as crianças no “caracol” e conversamos sobre a
apresentação toda. Elas disseram ter gostado muito da dança e também da quadrilha de rap. O professor
Matheus pediu para uma das meninas, a qual ajudou as professoras no ensaio da quadrilha caipira, que
também as ajudasse no dia da apresentação. Ela aceitou de pronto e agradeceu ao Matheus. Comentei
com Matheus e Fabiano já ter visto participando do projeto em outros anos esta menina que auxiliava as
professoras. Eles relataram que esta menina era participativa e contribuía bastante, além de ser antiga no
projeto.
No final da reunião, as crianças correram lavar as mãos para o lanche.
Depois de uma série de conversas e reuniões entre Matheus, Fabiano as professoras
Érica, Rosângela, argumentando com a Maria (uma das responsáveis pela coordenação da ECO) sobre as
vantagens em servirmos o lanche na própria estação, ganhando mais tempo para as atividades e também
com relação à segurança envolvida, pois no trajeto para o Centro Comunitário, muitas crianças às vezes
se dispersavam e corriam para todos os lados, brincando na própria rua, um perigo para o trânsito em
certas ruas que eram relativamente movimentado.
Neste dia, num formato experimental, servimos o lanche numa sala de vídeo da própria
estação, com o auxílio dos professores e monitores do projeto. A refeição era uma salada de frutas com
banana, maça e mamão.
Cerca de 35 crianças participaram neste dia, sendo que algumas estavam no projeto de
animação desenvolvido também pela UFSCar com as monitoras da imagem e som.
Após o lanche, despedimos das crianças as quais seguiram para suas casas.
Havíamos combinado de entrevistar mais algumas mães, porém, Matheus tinha que
121
continuar no Centro Comunitário com o projeto, Fabiano e a Maria tinham compromisso naquela tarde e
todos concordamos que não seria adequado eu faze-lo sozinho. Ficamos assim combinados para um outro
encontro, na segunda feira seguinte para realizarmos a coleta.
Despedimo-nos do Matheus e seguimos para o Centro Comunitário, pegamos à
motocicleta do Fabiano e retornamos para nossas respectivas casas.
122
APÊNDICE 2
Diários de Campo realizados entre 19/11/2007 e 07/07/2008, durante o
período de Intervenção com as Lutas.
Diário de Campo: I
Data: Segunda-feira - 12/11/2007
Período: Tarde – 16:00h às 18:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
Eram aproximadamente 16h00min quando cheguei a ECO, e já me deparei com
Michael Jackson correndo em minha direção e abraçando-me, próximo ao carro.
Logo em seguida veio seu irmão, Joel, o qual abraçou-me também, quando caminhamos
juntos até o pátio ao fundo da quadra (1). Chegando lá, encontramos com Carla, a qual me cumprimentou
e foi conosco até o centro da quadra.
Sentamos em roda e iniciei uma conversa sobre a oficina, se eles e ela estavam
gostando, se tinham alguma pessoa que pudessem convidar para integrar ao grupo, aproveitando este
tempo de conversa, para aguardar a chegada de possíveis participantes.
Michael Jackson e Joel disseram estar gostando, porém só conheciam seu irmão mais
novo, o Horácio, que poderia participar, mas no horário da oficina, ele estava na escola. Segundo Carla,
este era o seu mesmo problema, pois sua irmã Letícia, também estava na escola naquele horário.
Pedi-lhes para procurarem outras pessoas conhecidas e convidá-las a participar da
oficina e indicar os horários. Enquanto conversávamos, Aline, Flávio, Alex e Erick chegaram e se
juntaram ao grupo.
Sentaram-se na roda e perguntaram do que estávamos conversando. Disse-lhes para
convidarem os colegas para participarem das oficinas e Aline comentou sobre seu irmão Alexandre, mas
ele está na escola naquele horário. Flávio disse que sua irmã trabalhava cuidando da casa para sua mãe e
não poderia participar da oficina.
Erick e Alex comentaram sobre seus amigos, e a maioria deles estarem trabalhando para
ajudar a família. Nesta oportunidade, Alex aproveitou e comentou comigo talvez não poder mais
participar nos próximos encontros, pois tinha um emprego em vista e caso conseguisse, não poderia
nestes horários.
Procurei não desencoraja-lo nas duas oportunidades, e comentei sobre continuar
participando enquanto não arranjassem emprego e, caso conseguissem, e ficaria muito feliz em saber
disto, devido aos comentários deles sobre a dificuldade em conseguir emprego e ajudar a família (2).
Quando voltamos a conversar sobre a oficina, Michael Jackson perguntou-me se
poderíamos brincar de “nunca-três”. Perguntei a ele se poderíamos primeiro relembrar algumas coisas que
havíamos visto nos encontros anteriores, sobre os golpes aprendidos, para depois brincarmos, e ele
concordou, balançando a cabeça sorrindo (3).
123
Perguntei a eles quem havia trazido o papel com o Dojo Kun, que eu havia entregue nos
encontros anteriores, para que sempre lêssemos e discutíssemos o mesmo a cada final de encontro.
A maioria esqueceu, apenas Erick lembrou-se e mostrou seu papel, e aproveitei para
discutir com eles a responsabilidade com os encontros, pois combinamos algo em grupo e eles não
estavam fazendo. Ao comentar isto, eles e elas ficaram com o olhar baixo, percebendo o erro com o
próprio grupo (4).
Contudo, iniciei uma conversa sobre o próprio Dojo Kun, e conforme havíamos
combinado no encontro anterior, iríamos sempre discutir um dos lemas do Dojo Kun, relacionando-o com
nosso dia-a-dia, tirando dúvidas e conversando sobre situações que desejassem.
O lema a ser discutido no dia era: “Sempre – Respeitar acima de tudo”, quando
perguntei-lhes sobre exemplos que poderiam trazer para a discussão, ou mesmo situações por eles
vividas, alguns ficaram sem graça e Carla comentou sobre uma briga em sua escola.
Carla relatou ter brigado com uma colega após uma bola ter acertado seu rosto. Aline
disse também já ter brigado na escola e principalmente quando davam risada dela.
Perguntei a Carla se ela achava correto o que fizera, e ela convicta disse: “Claro
Professor! Essa menina riu de mim!”. Quando fixei em seus olhos e disse: “Mas isto não resolveu o
problema? Resolveu?”, e fui discutindo com ela a idéia da retaliação nos conflitos e a sua atitude naquele
instante. Carla reconheceu estar errada em brigar com a menina, mas não arrependia-se de ter feito aquilo.
Naquele instante fiquei preocupado com a posição de Carla, quando Flávio comentou com ela: É errado
brigar! Quando a gente briga a gente só se machuca!”. Fiquei feliz ao ouvir o relato de Flávio e com
sorriso, disse a Carla: “Se formos levar tudo pra briga, vamos terminar todos machucados! Não adianta
brigar desta forma! Sempre vai ter alguém que vai se machucar, e uma hora pode ser a gente, você
entende?”. Ela olhou para baixo e ficou pensativa por alguns segundos, mas balançou a cabeça,
concordando com o que dissera e com o grupo (5).
Michael Jackson estava se mexendo sem parar enquanto o grupo conversava e, após o
pequeno silêncio na resposta de Carla, ele levantou-se e correu até mim dizendo: “Vamo brincar
Professor!”. Percebi a ansiedade dos outros participantes e a dificuldade em travar um diálogo, resolvi
iniciar a próxima atividade, na qual relembraríamos alguns movimentos vivenciados nos encontros
anteriores.
Solicitei a todos que ficassem em pé e que demonstrassem ao grupo, os movimentos de
Karatê aprendidos nos encontros anteriores, para relembramos os mesmos. Joel começou a socar e falar:
“Tem esse soco, num tem Professor!”. Surpreso com a vontade com que Joel demonstrava o soco frontal
direto
38
, pedi a todos que fizéssemos o movimento apresentado por Joel (6). Repetimos algumas vezes em
círculo, quando voltei a perguntar-lhes por outro golpe, quando Michael Jackson começou a brincar e
irritar Aline, que brava com ele, começou a correr e tentar chutá-lo. Parei a briga dos dois e pedi para não
fazerem mais aquilo, alertei Michael Jackson que se insistisse em atrapalhar os colegas, ele não brincaria
com os colegas no final da aula. Ele ficou atento e voltou correndo, posicionando-se ao lado do irmão (7).
38
“Choku zuki”: soco frontal direto (NAKAYAMA, 2004, p.143).
124
Em seguida, perguntei sobre algum outro golpe, e Erick demonstrou o chute frontal
39
,
com Alex demonstrando ao seu lado também. Aline sorria enquanto chutava, e quando se desequilibrava,
dava gargalhada.
Realizei com eles cada movimento proposto e seguimos com os chutes lateral
40
(proposto com Alex) e defesas do rosto (Joel) e do tórax (Erick). Perguntei sobre algumas posturas e
Erick comentou a “postura do cavaleiro”
41
, demonstrando para o grupo. Michael Jackson observava com
atenção os movimentos do colega e tentava realiza-los ao seu lado na roda, procurando aprender com ele,
o qual comentou com Michael Jackson sobre os joelhos mais flexionados e conselhos parecidos,
ensinando-o os detalhes que aprendera (8).
Aline aproximou-se e pediu para ir embora, pois teria compromisso em seguida.
Agradeci sua participação e pedi para que voltasse na próxima semana. Ela despediu-se e foi embora.
Passei então para atividade seguinte, com uma vivencia baseada no “Enbu”
42
. Solicitei
que formassem as duplas livremente e Erick ficou com Alex, Michael Jackson com seu Irmão Joel e Carla
com Flávio.
Demonstrei como seria a atividade com a ajuda de Erick, na qual combinávamos um
combate, com ataques e defesas aprendidas. Apliquei então um soco na altura do rosto em Erick, que
executou a respectiva defesa. Comentei com eles que Erick poderia contra atacar ou então, que eu poderia
continuar com outra técnica, dependendo do que combinaríamos entre nós. Perguntei se havia alguma
dúvida ou sugestão e Carla perguntou-me se poderia atacar também com chutes. Disse-lhe que sim e
incentivei-a na execução dos golpes que desejasse, combinando tudo com Flávio, mas deveria executá-los
prestando atenção e ajudando ao outro, caso esquecessem algum golpe (9). No final do encontro, eles
apresentariam a seqüência dos golpes para as outras duplas.
Eles começaram a combinar os golpes entre si. Erick e Alex estavam empenhados em
elaborar uma seqüência cheia de golpes, com socos e chutes. Joel e Michael Jackson começaram a brincar
de lutinha no meio da atividade, e quando olhei, quase começaram uma briga de verdade. Interrompi os
dois, chamando-os pelos nomes e fazendo uma feição de indignado, pedi para voltarem a atividade. Com
um sorriso maroto, eles levantaram-se do chão e retornaram a atividade (10).
Flávio e Carla estavam entrosados na brincadeira, ficaram discutindo os movimentos e
experimentando as seqüências que imaginavam, indo e voltando nos golpes escolhidos.
Esta atividade apresentou-se muito interessante no grupo, pois desenvolveu-se sem
problemas e foi aceita com tranqüilidade, principalmente por verem os golpes desenvolvidos em grupo,
serem aplicados numa “brincadeira de lutar”.
39
“Mae geri”, segundo Nakayama (2004) é o “chute frontal direto” (p.143).
40
“Yoko geri”: chute lateral (NAKAYAMA, 2004, p.144).
41
“Kiba-dachi: postura do cavaleiro ou de quem monta a cavalo” (NAKAYAMA, 2004, p.143).
42
“Enbu”, segundo Federação (2008), trata-se de uma modalidade em seus eventos competitivos, a qual
seria composta por uma “defesa pessoal combinada demonstrada por duplas (masculina, feminina ou
mista). Os dois participantes devem demonstrar habilidades técnicas extremamente eficientes tanto
quanto demonstrar uma realidade de combate. A ênfase recai na criatividade e na performance das
habilidades dos dois competidores envolvidos neste confronto que tem a duração de 60 segundos”.
125
Enquanto combinavam os golpes, passava entre as duplas e discutia com os integrantes
os movimentos, tecia elogios, dicas ou mesmo perguntas sobre os golpes, como por exemplo, se eles no
conheciam um outro ataque ou defesa diferente, mas que gostariam de utilizar com aquelas defesas.
Após alguns minutos, pedi para todos sentarem-se em roda, para as duplas
apresentarem-se individualmente. Erick e Alex perguntaram-me por alguns golpes que haviam esquecido,
como uma defesa para o tórax
43
, ou mesmo a opinião sobre um chute frontal.
Joel e Michael Jackson foram os primeiros. Eles começaram a demonstrar os
movimentos que combinaram, porém, cerca de duas seqüências, eles começaram a brincar entre si,
atacando e defendendo sem ter combinado nada anteriormente.
Entre os risos dos outros participantes, por terem percebido que a dupla não havia
combinado muitos golpes, passamos para Carla e Flávio.
Carla começou defendendo um soco de Flávio, o qual participava pela segunda vez dos
encontros, e com muita determinação, demonstrou grande habilidade nos movimentos.
Feliz em ver a determinação durante a demonstração da dupla, elogiei-os e com um
sorriso no rosto, incentivei a próxima dupla a se apresentar.
Erick e Alex levantarem-se meio encabulados e em pé, começaram a apresentação.
Alex começou com um chute lateral na altura do rosto de Erick, o qual dava risadas enquanto defendia-se,
ambos envergonhados durante a demonstração.
Entre risadas, aplaudimos a apresentação de Erick e Alex, e ao final, pedi para todos
sentarem-se novamente em roda, para conversarmos sobre as apresentações.
Erick comentou gostar da atividade e Alex relatou sentir um pouco de vergonha, mas
gostou também. Flávio e Carla disseram apreciar a brincadeira, Joel e Michael Jackson ficaram mais
brincando entre si que participando da conversa em roda e, quando chamei a atenção de Michael Jackson,
ele correu até mim e abraçou-me (11), perguntando: “Vamos brincar de ‘nunca três’ Professor?”. Em
risadas, respondi positivamente.
Espalhamo-nos todos pela quadra e começamos a brincadeira. Nela, os participantes
ficam em duplas, distantes umas das outras. Duas pessoas ficam em pé, sendo uma o “pegador e a outra o
“fugitivo”. A pessoa que “foge” deve correr e, sem ser tocado pelo “pegador”, sentar-se ao lado de um
dos integrantes da dupla. O integrante da dupla que estiver sentado no lado oposto em que o “fugitivo”
sentou-se, levantará e passará a ser o “pegador”, enquanto que aquela pessoa que estava de pé, passará a
ser o “fugitivo”, e assim por diante. Caso o “pegador” consiga trocar o “fugitivo”, eles trocam de papéis.
Ficamos todos em pé e Joel quis começar como o “pegador” e eu me propus a ser o
“fugitivo”. Foi uma correria só, ficamos o tempo todo rindo e tentando deixar aquele que estivesse como
“pegador”, correr por todos os lados e ficar cansado.
Flávio correu muito até conseguir tocar em Carla, a qual ficou insistentemente querendo
provocá-lo a pegá-la na brincadeira.
Os participantes demonstram apreciar muito esta brincadeira e, depois que fizemos a
mesma num encontro anterior, eles sempre pedem para repeti-la.
43
“Chudan uchi uke” segundo Nakayama (2004) é o “bloqueio com o antebraço contra o ataque ao corpo,
de dentro para fora” (p.143).
126
Com todos cansados da correria, pedi para sentarmos novamente em roda, para passar
algumas informações relativas ao encontro seguinte.
Solicitei a todos que trouxessem o papel do com o Dojo Kun na próxima segunda-feira,
para lermos, e também propus que pensássemos em algum dos lemas relacionando-o com nosso
cotidiano.
Perguntei se alguém tinha alguma coisa par falar ou alguma dúvida, e ninguém se
manifestou. Agradeci a presença deles e dela, e despedimo-nos.
Levantei-me e caminhei até meu carro, de mãos dadas com Carla e Flávio (12)
. Lá
despedi-me novamente dele e dela, e segui para minha casa, por volta de 18h00min.
127
Diário de Campo: II
Data: Segunda-feira - 19/11/2007
Período: Tarde – 16:00h às 16:30h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
O dia estava muito chuvoso, e próximo ao horário dos encontros na ECO, a chuva ficou
ainda mais forte.
Cheguei por volta das 15h50min na ECO, e com o guarda-chuva aberto, fui desviando
das poças e buracos para entrar na Estação. Caminhei até o fundo da quadra, próximo a cozinha e
encontrei apenas Erick, parado com os braços cruzados e encolhido, pelo frio do dia. Cumprimentei-o e
perguntei se havia mais alguém para o encontro, mas ele com desanimo no rosto, disse-me não ter vindo
mais ninguém. Fiquei desanimado ao ouvir, porém, aquela não foi a única notícia do dia. Erick virou-se e
disse: “Professor, não poderei mais vir aos encontros a partir da semana que vem, pois arranjei um
emprego!”. No instante, fiquei um pouco triste ouvir a notícia da sua impossibilidade de participar dos
encontros, porém, pensei também na situação de Erick, o qual noutros momentos, já havia conversado
comigo e comentando a constante procura por emprego e a dificuldade na permanência no mesmo, pois a
maioria era de caráter temporário, mas ajudava consideravelmente no sustento da família. Respondi-lhe
falando sobre essa minha tristeza e felicidade, e ele com sorriso, disse ficar feliz em saber que eu
compreendia e também, deixou avisado que voltaria quando pudesse (1).
Aproveitei a conversa para pergunte-lhe se havia alguma criança no projeto anterior.
Balançando a cabeça e ele disse não, atribuindo como causa para a pouca participação das crianças nos
projetos e oficinas daquele dia: a chuva.
Isto não difere muito da Educação Física Escolar, a qual possui a característica de ter o
seu número de participantes reduzido nos dias de chuva ou frio intensos, devido à “tradição” de que
Educação Física Escolar ocorre apenas nas quadras (muitas vezes sem coberturas), e não nas salas de
aula.
Perguntei sobre Alex, porém, ele disse não ter encontrado-o ultimamente, pois havia
conseguido também um emprego e dificilmente se viam.
Vendo a inviabilidade de termos o encontro naquele dia, despedi-me de Erick naquele
momento e, novamente, voltei a deixar-lhe o convite para a oficina quando pudesse e voltei para minha
casa, por volta de 16h30min.
128
Diário de Campo: III
Data: Segunda-feira - 24/03/2008
Período: Tarde – 16:00h às 17:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
O IMPREVISTO
Na semana anterior ao encontro deste dia, participei de alguns treinamentos intensivos
de Karatê e, numa dessas ocasiões, houve um acidente no qual fraturei o pé direito.
Contudo, só na semana seguinte fui perceber que se tratava de uma lesão complexa,
devido à persistência da dor e diagnóstico pelo exame de raio x. Ao receber o resultado deste exame,
diagnosticou-se a necessidade de uma intervenção cirúrgica no membro. Compreendendo a emergência
do caso e a impossibilidade de continuar com os encontros, compareci a ECO no horário usual da oficina,
para conversar com Maria e as crianças.
Neste dia, poucas crianças estavam presentes na ECO, pois um grupo de funcionários
da prefeitura montava um palco de metal no campinho de futebol, o qual seria utilizado numa
confraternização e show musical no bairro. Ao entrar na ECO, encontrei-me com Amanda e Mirian
brincando no lado de fora. Elas logo vieram correndo e abraçaram-me (1)
. Cumprimentei-as e ao me
verem mancando, perguntaram: “O que aconteceu Professor?”. Expliquei-lhes a lesão no pé direito e
fomos caminhando até o pátio, próximo à sala de Maria.
Lá, reuni as crianças participantes da oficina (Amanda, Mirian, Michael Jackson e Jacó)
junto a Maria, para explicar o acidente e o motivo do afastamento por um período, para minha
recuperação pós-cirúrgica. Ao ouvirem a notícia sobre interrompermos os encontros naquele mês, as
crianças demonstraram tristeza nos olhares e, puxando-me pelas mãos, Michael Jackson disse:
“Professor! Não dá mesmo pra brincar?”, questionando-me se não conseguiria brincar, mesmo com o pé
quebrado. Ainda mais triste, com desânimo na fronte, respondi-lhe: “Infelizmente não!”.
Procurando não desmotivá-los e, simultaneamente, estimulá-los a voltar na oficina
futuramente, argumentei: “Ah, mas é só por um tempo ein! Eu vou voltar, vocês também vão! Não vão?”.
Levantaram e sacudiram as mãos para o alto, dizendo: “Eu vou! Eu vou!”. Mirian abraçou-me pela
cintura com força e indignação no olhar, falando: “Pô Professor! Você tinha que se machucar!”. Não
consegui evitar a tristeza de ouvir aquele comentário, porém, naquele mesmo instante, brinquei com ela,
abrindo um sorrido e falando: “Ah! Mas você vai voltar não vai? É rapidinho! Já já eu to de volta!”,
empurrando e puxando-a pelos braços. Em risadas, ela respondia: “Vou! Vou sim!” (2). Perguntei a Maria
se deveria preencher algum documento ou encaminhar algum ofício a prefeitura, notificando meu
afastamento temporário. Ela balançando a cabeça para os lados, respondeu-me não ser necessário. Eu
deveria apenas avisar com antecedência a data do retorno, para comunicarem as crianças e a secretaria.
Agradeci a Maria e despedi-me dela e das crianças, que voltaram a brincar nos outros
espaços da ECO. Segui para meu carro e retornei para casa, por volta de 17h. Na semana seguinte, passei
por um procedimento cirúrgico, permanecendo em repouso do dia 31 de março até 8 de maio, retomando
os encontros da oficina no dia 12 de maio.
129
Diário de Campo: IV
Data: Segunda-feira - 12/05/2008
Período: Tarde – 16:00h às 18:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
O RETORNO DA OFICINA
Neste dia, por volta de 16h50min, cheguei a ECO um pouco depois do horário antigo
(16h20min), devido a uma orientação feita pela assistente social da Secretaria de Cidadania do município,
a qual solicitou-me para iniciar oficina por volta de 17h00min, para que organizassem adequadamente o
tempo para lanche e higiene bucal entre as crianças.
No entanto, ao andar pelo pátio, encontrei poucas crianças presentes. Cumprimentei
moradores conhecidos, funcionários e dirigi-me até a sala da Maria, onde a encontrei revisando o material
da ECO e, aproveitando a oportunidade, perguntei se havia alguma criança presente para o encontro
daquele dia, no qual iríamos retomar as atividades.
Neste instante, aparecem dois meninos: Leandro e Jacó, encabulados, sorrindo,
empurrando um ao outro, perguntaram: “Hoje vai ter Karatê Tio! Quero faze!”. Respondi-lhes com
sorrido no rosto: “Opa! Vamos sim!”, e pedi para reunirem outros colegas para o encontro.
Perguntei a Maria por que havia poucas crianças presentes. Ela disse-me terem
distribuído os lanches num tempo menor do que estimado, e ao terminarem a refeição, elas foram embora.
Não escondi minha feição de tristeza e Maria orientou-me a retornar os encontros para as 16h30min,
como antigamente. Agradeci a Maria e fui ao pátio, procurar crianças que tivessem participado
anteriormente ou que desejassem participar da oficina naquele dia. Percebendo a pouca presença,
aproveitei para fixar novamente o cartaz contendo o anúncio da oficina aos freqüentadores do local.
Ao terminar, chamei Leandro e Jacó e caminhamos juntos até a quadra. Chegamos lá,
sentamos e começamos a conversar sobre a oficina. Perguntavam-me quando eram as oficinas e se
poderiam ou não participar, comentando já terem feito um pouco de capoeira.
No meio da conversa, cerca de cinco moradores com aparentemente vinte anos,
entraram numa das partes ao fundo da quadra e começaram a jogar futebol.
O barulho e as constantes passagens da bola próximas ao grupo, criaram certo
desconforto para conduzir nossa pequena roda de conversa e, gentilmente, pedi para retornarem noutro
horário, pois estávamos em aula. Indiquei-lhes o tempo que demoraríamos a terminar, deixando a quadra
livre para o jogo. Eles pararam a bola por alguns instantes, porém, minutos depois votaram a jogar.
Procurei visualmente por Maria, mas ela já havia deixado a ECO, visto que passávamos das 17h00min, e
os outros funcionários também não estavam presentes.
Para evitar conflitos, levantei e caminhei com os dois garotos até o pátio ao fundo da
ECO, um espaço amplo, com 4 conjuntos chumbados ao chão, compostos com 1 mesa de cimento e 4
banquetas cada, distantes um do outro, deixando assim um espaço central calçado com octógonos de
concreto, no qual percebi a possibilidade de realizarmos as atividades do dia (1).
130
Ao sentarmos nas banquetas, outras crianças se aproximaram: Laura, Aline, Michael
Jackson, Jericó e Carla (que carregava uma criança de colo, pois cuidava da menina para sua mãe, sendo
assim, não participou das brincadeiras, apenas observou as atividades sentada num dos banquinhos de
cimento).
Reuni todos nas baquetas e envolta da mesa, para conversarmos sobre a oficina, o seu
retorno e os horários dos encontros. Ao ver alguns já impacientes com a conversa, propus a brincadeira do
“Roubar o Pano”
44
, porém, como não havia conseguido pequenas tiras de tecido, utilizei-me de pequenas
tiras retangulares de papel, as quais foram distribuídas uma para cada participante. Leandro e Michael
Jackson não queriam permitir a participação de Jericó na brincadeira, alegando ser muito novo e brigar
constantemente noutros projetos e oficinas.
Conversei com Jericó, o qual me olhava com os olhos cheios de lágrimas, pedindo
insistentemente para participar, e disse-lhe: “Você pode participar, mas promete não brigar com
ninguém?”. Ele com sua chupeta na boca, abriu um grande sorriso, abraçou-me e disse: “Ebaaa!”.
Imediatamente Jericó pega sua pequena tira de papel e sai correndo pelo espaço.
Chamei todos novamente próximos à mesa e comentei como poderia ser a brincadeira.
Ao tirarem suas dúvidas, insisti a eles e elas se gostariam de modificá-la ou mesmo fazer algo diferente
daquilo, alguma brincadeira que conhecessem. Ansiosos, diziam: “Vamos Professor! Vamos Professor!”.
Iniciamos então a brincadeira.
Combinamos inicialmente de todos tentarem “pegar o papel” na cintura, e algumas
meninas optaram por colocar a tira de papel nas mangas de suas blusas. Para acelerar o início da
brincadeira, Michael Jackson propôs: “Deixa qualquer lugar Professor!”. Coloquei a proposta dele em
votação, e todos foram favoráveis a livre escolha do local de fixação da atira de papel (2). Espalhamos-
nos pelo pátio e começamos a correr.
Jericó subiu numa das mesas e ficou rindo e gritando com seus colegas, para que
tentassem pegar sua tira de papel. Laura e Aline ficaram uma contra a outra, numa tentativa constante de
não perderem o papel e ao mesmo tempo, pegarem o papel da outra, com gargalhadas e dribles entre
ambas.
Leandro demonstrava muita energia, corria por todos os lados e quando passava
rapidamente entre os participantes, sempre levava consigo uma das tiras de papel de alguém. A
brincadeira pareceu-me ter sido bem aceita e quando sobrava apenas uma pessoa com a tira de papel na
cintura, iniciávamos novamente todo o processo.
Na segunda vez que repetíamos a brincadeira, quando Jericó teve sua tira de papel
retirada por Leandro, ficou nervoso e começou um incessante choro. Aproximou-se e resmungou comigo
em prantos: “Professor ele pegou meu papel!”. Respondi-lhe: “Mas essa é a intenção da brincadeira
Jericó! Você sabe que a brincadeira é assim! Eu perguntei se você tinha entendido a brincadeira e você
agora você que ficar bravo por que ele pegou seu papelzinho?”. Segurando o choro, Jericó ficou irritado e
saiu a pedir sua tira de papel de volta para Leandro, o qual he entregou e continuo na brincadeira, sem
demonstrar qualquer atitude ofensiva (3). Jericó ficou um pouco mais afastado do grupo, mas procurava
participar e, numa terceira rodada da brincadeira, quando pegaram novamente sua tira de papel, voltou a
44
Ver descrição da brincadeira no Plano de Aula nº 2, disponível no Apêndice 3.
131
chorar e afastou-se, dizendo não querer mais participar. Insisti para que voltasse, mas ele não me deu
atenção e seguiu caminhando para fora da ECO. Pedi para Jacó aproximar-se de mim e perguntei-lhe em
voz baixa: “Você viu algo acontecer com ele? Alguém bater ou chutar, coisa parecida?”. Jacó disse-me
“Não!”, e voltou a brincar. Não percebi qualquer atitude agressiva de nenhum dos participantes com
relação a Jericó e interpretei aquela atitude como “manha”.
Continuando com as atividades, reuni novamente todos envolta da mesa e comentei
sobre a brincadeira do “Tapa na mão”
45
, perguntando-lhes se gostariam de brincar daquilo ou de outra
atividade. Mal descrevia a brincadeira, e Laura disse-me já ter feito algo parecido, porém, não trocavam
de lado quando a outra pessoa conseguia ou não acertar-lhe a mão, mas apenas por opção dos
participantes. Comentei se desejariam modificar a brincadeira de acordo com o comentário feito por
Laura, ou se gostariam de alguma outra modificação.
A maioria optou por deixar a brincadeira mais solta e sem tempo ou “lado” para
“acertar as mãos”, apenas trocando os lados conforme a dupla desejasse. Ao concordarmos, formamos as
duplas à vontade (4).
Michael Jackson foi o primeiro a aproximar-se e fazer comigo. Ele foi muito rápido e
várias vezes acertou-me as mãos. Quando conseguia acertar-lhe, ele dava gargalhadas e demonstrava mais
concentração na brincadeira. O rodízio entre os participantes da dupla foi feito também de forma
autônoma. E o tempo foi deixado livre entre os mesmos. Aline fez várias vezes com Laura e entre
gargalhadas, os insultos verbais eram constantes entre elas (sem atitude ofensiva propriamente dita, mas
como se fossem “comentários” em voz alta durante a brincadeira). Insisti e chamei-lhes a atenção para
não falarem aquelas palavras durante os encontros. Depois de algum tempo pararam ou então, ao
iniciarem a fala, interrompiam-se, cerrando os lábios com expressão de “malandragem”.
Num outro momento do encontro, Michael Jackson brigou com Jacó. Intercedi
imediatamente e perguntei-lhes o motivo da briga. Jacó disse-me que Michael Jackson irritou-o, mexendo
em suas costas e tacando-lhe pedregulhos. Alertei Michael Jackson sobre isto, bem como ambos sobre
deixarem de participar da oficina naquele dia, caso voltassem a brigar. O conflito entre eles não voltou a
ocorrer. Jacó voltou a brincar com Laura e Michael Jackson ficou observando os colegas brincarem (5).
Algum tempo depois, iniciamos a atividade com os Diários. Sentados envolta de uma
das mesas, distribui um Diário para cada participante, e aproveitei para comentar os objetivos de usarmos
os Diários nos encontros do Karatê. Disse-lhes que aquele seria o “Nosso Diário do Karatê”, e nele
escreveríamos ou faríamos outras atividades durante todos os encontros. Comentei sobre o cuidado que
deveríamos ter com ele, pois era nosso, e deveríamos cuidá-lo e fazê-lo com carinho.
Carla, Laura e Aline ao verem a capa, perguntaram: “É pra gente desenhar a capa
Professor?”. Contente pela observação que fizeram, respondi-lhes: “Sim!” e que poderiam fazê-lo com os
lápis de cor e gizes de cera que trouxe comigo. Distribui o material sobre a mesa e deixei-os a vontade.
Perguntaram alguns: “O que é pra desenhar Professor?”. Disse-lhes: “Vocês podem
desenhar algo que tem relação com a oficina ou que vocês quiserem desenhar!”. Leandro falou em voz
alta: “Ah, então eu quero desenhar um carinha gingando capoeira!”. Entusiasmado, disse-lhe: “Ótima
idéia!”, ele sorriu e começou seu desenho. Jacó comentou querer desenhar um homem quebrando uma
45
Ver descrição da brincadeira no Plano de Aula nº 2, disponível no Apêndice 3.
132
tábua e um outro sobre um ringue. A experiência de Jacó remete-nos a mídia e os filmes televisivos, os
quais com freqüência apresentam os praticantes de lutas em ringues ou então fazendo demonstrações de
força por meio de apresentações, nas quais se quebram telhas, tábuas ou outros objetos de materiais
sólidos e resistentes, muitas vezes, distorcendo os objetivos relacionados a execução das técnicas de
“tameshi-wari”
46
, geralmente utilizadas em lutas orientais (6).
Durante a mesma atividade, houveram alguns conflitos relacionados a divisão dos
materiais para colorir. Quando ocorreu pela segunda vez, chamei a atenção de todo o grupo e procurei
dialogar sobre do uso coletivo dos materiais, não havendo um “proprietário” único. Os lápis e os gizes de
cera eram de todos, e deveríamos compartilhar aquilo. Percebi uma enorme dificuldade entre alguns dos
participantes de dividirem entre si estes materiais e intercedi aproximadamente quatro vezes antes de
chamar-lhes para um conversa sobre isto. Interrompi a atividade e disse com voz branda e olhar
indignado: “Poxa, o material é de todos! Vocês não conseguem dividir os lápis de cor? Será que é difícil
assim, ou você que não quer nem tentar?”. Ao finalizar a fala, observei os olhares dirigindo-se para baixo,
não pela agressividade da repreensão, pois não o disse de forma descontrolada, porém, pela expressão de
indignação em minha fala. Percebi, após isso, alguma mudança de atitude entre os presentes, alguns que
antes não dividiam os lápis, passaram a cedê-los e outros, diferentemente, selecionaram um conjunto de
diferentes cores e só compartilharam após utilizarem, como foi caso de Carla e Laura (7).
Não insisti na conversa naquele instante, procurando evitar a criação de uma empatia
negativa entre os novos participantes, porém, observei os mesmos com atenção, para que, numa
reincidência, pudesse argumentar sobre isto com mais cautela.
No decorrer da atividade, Aline desenhava uma flor e um campo enquanto conversava
com Laura, sentada próxima a Leandro. Aline virou-se para Leandro, pedindo para que dançasse o
“break”
47
para que eu visse. Ele ficou de cabeça baixa e escondendo levemente o rosto entre os ombros,
demonstrou certa timidez e nada disse. Ela insistiu no pedido e então Leandro prometeu dançar após
desenhar sua capa, continuando a atividade de colorir.
Enquanto desenhavam, Laura e Aline conversavam e comentavam brincadeiras feitas
com outras pessoas do bairro, cintado apelidos, palavras de baixo calão, com comentários pejorativos de
cunho preconceituoso para denominar alguns indivíduos, entre muitas falas e risadas. Consciente disto,
educadamente, pedi-lhes para não conversarem sobre aquilo e daquela forma durante o encontro e, se
possível, evitarem colocar apelidos nas pessoas, pois aquilo não era agradável/legal com ninguém. Aline
olhou maliciosamente para baixo e nada falou, enquanto que Laura segurou o riso e continuo a colorir,
não voltando a falar do mesmo assunto em voz alta, contudo, percebi alguns comentários em voz baixa,
nos momentos em que falava com outras crianças.
Carla, deixou sua sobrinha sobre a mesa, sentou-se e aproveitou para participar da
atividade com o Diário junto com as outras crianças. Enquanto conversavam entre si e coloriam seus
Diários, aproveitei para perguntar sobre seus desenhos, tecer comentários, elogiar, brincar e inclusive
perguntar sobre as brincadeiras, se haviam gostado ou não, se conheciam outras. Carla comentou ter
46
“Tameshi-wari” =“teste de força das técnicas” (NAKAYAMA, 2004,p.304), geralmente realizado por
lutas orientais, por meio da quebra de objetos sólidos, como madeira e telhas.
47
O "Break" compõe a dança, dentro dos elementos da cultura hip hop, formada pelo: rap, o graffiti e o
break (DANÇA DE RUA, 2008).
133
gostado das brincadeiras e, no próximo encontro, viria sem sua sobrinha, para poder participar
efetivamente da oficina, trazendo consigo sua irmã, chamada Letícia. Sorrindo-lhe, incentivei-a também
trazer outras colegas da escola e do bairro, estendendo o aviso do convite às outras crianças presentes no
encontro daquele dia. Michael Jackson comentou sobre seu irmão, Joel. Laura lembrou-me de seu irmão,
o qual havia participado dos encontros no grupo do Matheus. Ao recordar-me dele, pedi para chamá-lo
também, e junto também, seus outros amigos da mesma idade. Perguntei se poderiam comparecer aos
encontros nas segundas pela tarde, visto que, se necessário, faríamos noutro dia e horário, procurando
desta forma, negociar com eles e elas.
Entretanto, os presentes comentaram poderem comparecer, exceto Aline e Laura, as
quais teriam aulas na escola todas às tardes, a partir da semana seguinte, mas comentaram que
comparecerão se puderem.
Conforme foram terminando as ilustrações, entregavam-me os Diários e despediam-se.
Leandro ao finalizar o seu Diário, a pedido de Aline e Laura, começou a dançar “break”, demonstrando
grande habilidade e afinidade com o estilo de dança, recebendo aplausos de todos os participantes do
encontro. Michael Jackson ficou surpreso com a demonstração de Leandro e tentou imitá-lo, dele
recebendo inclusive dicas dos movimentos (8).
Ao final da demonstração, recolhi os últimos Diários e os materiais utilizados. Avisei-
os sobre o retorno na semana seguinte e fui caminhando com Carla até o meu carro, despedindo-me e
seguindo para minha casa.
134
Diário de Campo: V
Data: Segunda-feira - 19/05/2008
Período: Tarde – 16:00h às 18:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
INTERPRETANDO OS BICHOS
Aproximadamente 16h20min, cheguei a ECO e encontrei algumas crianças no fundo do
pátio, junto às outras professoras e funcionários, durante o horário de lanche, comendo pão com geléia,
acompanhado de suco (groselha). A maioria estava sentada enquanto os educadores recolhiam as canecas
e distribuíam os últimos pedaços de lanche para as crianças que desejassem repetir a refeição. Logo
aproximaram-se de mim, algumas crianças da oficina.
O primeiro a conversar comigo foi Michael Jackson, que em gritos, saltos e sorrisos
falava: “Professor! Professor! Hoje vai ter Karatê, né?”. Eu brincava, sorria e balançava Michael Jackson,
o qual abraçou e puxou-me pelos braços. Roberto, Mirian e Jericó também se aproximaram, abraçando-
me e perguntando sobre a oficina. Respondi as perguntas e brincava com aqueles que puxava-me pelos
braços, balançando-os para os lados (1). Minutos depois, enquanto esperava o término do lanche, Joel,
irmão de Michael Jackson, disse-me não poder ficar para o encontro, pois precisava buscar seu primo na
escolinha no mesmo horário (2). Com tristeza, comentei com Joel sobre a possibilidade de voltar à
oficina, caso pudesse.
Maria apareceu ao fundo, trazendo consigo as escovas de dente das crianças, utilizadas
na atividade de higiene bucal, realizada na própria ECO. Cada criança ganhava a sua escova, escrevia seu
nome e a pendurava em um suporte de isopor, construído pelos próprios participantes e educadores,
mantido nas dependências da ECO. Correndo em direção a Maria, elas pegaram suas escovas e seguiram
para o banheiro, gritando, pulando e sorrindo. Maria colocou um pouco de pasta de dente em cada escova,
e elas seguiram para dentro do banheiro. Ao final da escovação, elas retornaram suas escovas para o
suporte e seguiram para casa.
Os interessados em participar do encontro do Karatê, aproximaram-se e conversaram
comigo. Aproveitei tal oportunidade, para reunir o maior número possível de participantes. Neste
encontro, contamos com Leandro, Michael Jackson, Roberto, Jacó, Amanda, Mirian, Horácio, Gisele,
Horácio e Carla.
Segundo Gisele, sua irmã Liliam não compareceu por motivo de doença (conjutivite).
Aproveitei a presença dos novos e anotei seus nomes e idades, para então reuni-los no mesmo pátio onde
estavam tomando lanche. Visto que a quadra estava novamente ocupada, preferi não entrar em confronto
com os moradores e freqüentadores da ECO (3).
Já no pátio, sentamos em roda envolta de uma das mesas de cimento. Roberto
perguntou-me do que iriamos brincar naquele dia e, pegando minha sacola (na qual carregava os Diários e
materiais dos encontros), olhou as ilustrações das capas dos participantes do encontro anterior.
Preocupado com a dispersão do grupo, pedi para deixarem o material do Diário, reservado para o final do
encontro.
135
Em seguida, iniciei uma conversa sobre o tema do encontro, o qual seria: “os animais e
as lutas”. Perguntei a Roberto, o qual me pareceu agitado naquele dia, se saberia imitar algum animal. Ele
brincou comigo e disse: “Claro, né? O cachorro!”, e imediatamente começou a reproduzir o latido do cão,
dando risadas e provocando risos entre os colegas. Michael Jackson, Gisele e os outros começaram a
imitá-lo e então propus a brincadeira de imitarmos os animais que eles desejassem.
Jacó começou a imitar o cachorro e ficou agachado, de joelhos e palmas das mãos no
chão, andando para os lados e reproduzindo os latidos, interpretando um cachorro urinando, dentre outros
movimentos, enquanto Amanda brincava com Liliam, trocando latidos e caretas, caindo em gargalhadas.
Jericó ficou apenas no início da atividade e depois foi embora, sem motivo aparente, nem mesmo
avisando-me.
Mirian começou a imitar um sapo, saltando e ficando de cócoras, imitando o coaxar dos
sapos. Virei para o grupo e propus que tentássemos imitar o sapo e seus movimentos. Roberto chamava a
atenção para si várias vezes, procurando ser o centro da brincadeira, dizendo: “Professor! Professor! Olha
o sapo Professor!”, reproduzindo os sons e movimentos do animal. Sorria e comentava com ele: “Isso
Roberto! Muito legal!”, brincando e também interpretando o animal.
Jacó começou a andar feito um felino, e parou próximo a Roberto, imitou um rosnado,
fazendo o movimento com as mãos, simulando um ataque do animal com as patas. Roberto sorriu e
começou a interpretar da mesma forma, e disse: “Olha o leão professor!”, demonstrando os seus
movimentos. Amanda, vendo os colegas trocarem de animal, mudou para o gato, imitava-o em seu andar
e miado. Michael Jackson pareceu gostar de idéia de Amanda, assim como Liliam e Mirian, mudando a
interpretação para o mesmo bicho.
Leandro num dos cantos escolheu o macaco, e saiu a coçar a cabeça, saltar pelas mesas
e banquetas do espaço. Roberto ficou motivado ao ver Leandro e também imitou o macaco e, aproximou-
se de uma das mesas, pendurou-se na beirada e disse: “Oh Leandro!”, demonstrando ao colega sua
imitação do animal. Leandro sorriu ao ver e continuo a brincar com os outros participantes (4).
Ainda durante esta brincadeira, aproveitei a oportunidade em que Amanda e Roberto
interpretaram um gato e um cachorro brigando para comentar com o grupo sobre os animais e os ataques
e defesas dos mesmos. Porém, não consegui muita atenção do grupo para essa questão, pois eles estavam
voltados para a brincadeira em si, muitas vezes se dispersando nos outros espaços da ECO, dificultando
até mesmo a proposta da próxima atividade, que seria a brincadeira chamada de “Predadores”
48
,
utilizando as bexigas.
Ao procurar propor esta nova atividade, senti muita dificuldade em conseguir a atenção
dos participantes, e chamava-os pelo nome constantemente, porém, evitando insistir em demasia, visto
que isto desgastaria o próprio grupo, fiquei calado por um instante, esperando para ver se eles
perceberiam meu silêncio, voltando a participar da conversa em roda. Porém, isto não ocorreu, todos
falavam e gritavam bastante, continuaram a brincar e se dispersar pelo espaço da ECO. Vendo a
inviabilidade de buscar construir uma outra brincadeira junto a todos os participantes (devido a pouca
participação durante a conversa e não disposição do grupo para o diálogo naquele instante), reuni apenas
48
Ver descrição da brincadeira no Plano de Aula nº 3, disponível no Apêndice 3.
136
aqueles mais próximos, atentos a mim e propus a nova brincadeira. Levantei-me e peguei minha sacola
com as bexigas.
Ao abrir a sacola e Michael Jackson observar as bexigas dentro dela, foi um alvoroço.
Pararam as brincadeiras paralelas e gritaria, ficando todos ao meu redor, pedindo as bexigas. Inclusive
outras crianças que nem participavam dos encontros apareceram pedindo o material.
Neguei os pedidos aos “não participantes”, pois percebi que faltaria para o próprio
grupo. Antes de distribuí-las, alertei-os que tínhamos apenas duas bexigas por pessoa e deveriam enchê-
las e amarrá-las cuidadosamente nos tornozelos com os fios de barbante, os quais lhes entregariam em
seguida, enquanto enchiam-nas com ar.
Foi como dizer exatamente o contrário. Numa correria e gritaria constante, as bexigas
estouraram, ora por encherem demais, ora pelas brincadeiras entre as próprias crianças. Algumas crianças
“não integrantes” do grupo, por não ganharem as bexigas, passavam correndo e estouravam
propositadamente a bexiga de outros, algumas pegaram escondido várias bexigas da sacola e esconderam
em suas roupas, provocando mais conflitos e brigas. Cerca de 4 garotos presentes na ECO passaram a
maior parte do tempo próximos, atrapalhando o encontro, brigando ou mexendo com o grupo. Chamei-
lhes a atenção, no início com humildade e em voz baixa. Porém, não respeitavam-me de forma alguma,
mesmo quando chamei-lhes com voz mais firme e grossa, contudo, não disse-lhes palavras de baixo calão
nem ameaçadoras, hostis, apenas memorizei as pessoas e seus nomes, para posteriormente, reunir-me com
Maria e verificar os procedimentos mais adequados para evitar que isso se repetisse. A oficina não conta
com nenhum monitor ou voluntário, o qual possivelmente auxiliaria nestes casos e os poucos recursos
financeiros nos impedem de contrata-los. Não havia nenhum funcionário presente na ECO, devido ao
horário, e mesmo um dos moradores, conhecido e respeitado pela comunidade, o qual viu-me neste
impasse com o outro grupo de crianças, não conseguiu ajudar-me neste dia, apesar de ameaçar
fisicamente as crianças, atitude que preferi não comentar ou demonstrar apoio, apenas voltei minha
atenção ao grupo e retomei a atividade (5). Percebendo a situação destes conflitos agravar e quase
inviabilizar a brincadeira, resolvi improvisar. A maioria não agüentava esperar os barbantes serem
amarrados ao tornozelo para estourá-los e as bexigas estavam esgotando-se rapidamente. Desta forma,
resolvi modificar a brincadeira, não mais amarrando a bexiga aos tornozelos, mas apenas inflando e
segurando-as nas mãos, e assim, na brincadeira, protegendo-as dos “predadores”, incentivando os
movimentos de defesas e ataques, fazendo alusão aos animais e, de certa forma, às lutas e seus
movimentos. Comentei rapidamente sobre termos “predadores” e “presas”, como se fossemos “gatos” e
“ratos”, exemplificando, por meio destes, os objetivos desta brincadeira. Perguntei-lhes quem desejaria
ter o papel do “predador” e tentar estourar a bexigas dos outros, os quais seriam as “presas” (6). Leandro
e Roberto se candidataram a “predadores”, iniciando assim a brincadeira. Algumas crianças, mesmo
sabendo anteriormente como funcionaria a brincadeira e concordando com isto, quando tiveram sua
bexiga estourada, saíram irritados e xingavam Leandro ou Roberto. Foi o caso de Michael Jackson, por
exemplo, que ao ter sua bexiga estourada por Leandro, ofendeu-o e veio até mim para maldizê-lo.
Dialoguei com Michael Jackson e os outros, explicando novamente a atividade (7).
Contudo, minutos depois, ao observá-las brincando, percebi aquelas crianças que
tiveram suas bexigas estouradas por outras, saíam perseguindo aquelas que ainda possuíam bexigas
137
intactas, procurando estourá-las, numa grande correria. A partir desta observação, resolvi adaptar
novamente a brincadeira, e com o objetivo de motivá-las a participar da brincadeira e evitar o conflito,
propus que todos deveriam tentar estourar a bexiga do outro e, simultaneamente, proteger sua própria
bexiga. Percebi esta modificação como positiva, pois interagiram mais intensamente e os conflitos foram
quase nulos (8).
Algum tempo depois, distribui novas bexigas e ajudei-as a enchê-las, quando
necessário. Isto levou certo tempo, no qual Leandro e Amanda correram e estouraram algumas que já
estavam cheias, criando um tumulto inicial, contudo, de certa forma, a brincadeira ocorreu de
tranquilamente, sem conflitos.
Após esta atividade, senti uma grande dificuldade em promover uma conversa em roda
ou reflexão sobre a brincadeira. Havia uma agitação muito grande por parte das crianças, correndo e
gritando pela ECO, sem vínculo com as atividades.
Dentro desta situação, resolvi passar a próxima atividade, relacionada à ilustração da
capa do Diário do Karatê e, se possível, a realização de uma das questões contidas no mesmo.
Foi outro momento de surpresa. Poucos sabiam escrever e, mesmo sabendo, não se
propuseram a respondê-la, apenas ilustraram a capa e não demonstraram interesse pela atividade escrita,
algo que dificultou um a utilização do próprio Diário como material de trabalho (9). Similar ao encontro
anterior, durante a atividade de ilustração da capa, houve conflito pela utilização dos lápis de colorir.
Amanda brigou muito com Mirian, situação na qual intercedi na primeira vez apenas comentando apenas
sobre emprestar o material, e, numa segunda, foi preciso parar a atividade entre as duas meninas e
conversar calmamente com elas. Disse a Amanda (a qual não queria deixar Mirian utilizar os mesmos
lápis que ela): “Poxa Amanda, por que você não quer deixar ela usar os lápis?”. Ela Respondeu-me com
“manha”: “Ah Professor, porque essa menina pega tudo!”. Percebi então a “manha” de Amanda e
argumentei: “Poxa, mas você sabe que o material é da oficina, é de todos! Nós todos podemos usá-los!
Não é?”. Amanda percebeu o erro que cometera, e ficou irrequieta, fazendo “manha”, afastou-se um
pouco na mesa, puxou os lábios fazendo “bico” e respondeu: “Tá bom! Tá bom!”, continuando a pintar
seu Diário (10). Na outra mesa de cimento ficaram Roberto, o qual não quis participar desta atividade, e
Leandro, que respondeu rapidamente a primeira questão, entregou-me rapidamente o Diário, despedindo-
se e chamando Roberto para irem embora. Ambos saíram andando pela ECO e foram para rua.
O resto do grupo subiu sobre uma estrutura retangular, de aproximadamente 2,20 m de
altura e largura, feita de tijolos e fechada com grade numa das faces, utilizada para abrigar o equipamento
de bombeamento de água da Estação Comunitária, a qual ficava ao lado da própria torre de água.
Neste formato, oferecia a oportunidade para as crianças subirem (apoiando-se umas nas
outras ou mesmo sozinhos). Lá, sentavam e deitavam com seus Diários e uma parte do material de
colorir. Ilustraram a capa e colocaram seus nomes.
A atividade com o Diário não correu de forma contínua, algumas vezes eles e elas
paravam para brincar entre si, voltando minutos depois para atividade, conforme sentiam vontade.
Procurei incentivá-los na atividade com o Diário, porém, Amanda não demonstrou
muito interesse, pintou um pouco sua capa no início e respondeu rapidamente a primeira pergunta, em
seguida, deixou o Diário comigo e foi brincar nos aparelhos do parquinho ao lado.
138
Horácio, irmão de Michael Jackson e Joel, é deficiente auditivo e possui muita
dificuldade na comunicação verbal. Já o conhecia dos encontros junto a turma do Matheus, e isto
facilitou-me a comunicação e encaminhamento das atividades com ele.
A oficina em si não trabalha com crianças da idade de Horácio, porém como seus
irmãos estavam participando do grupo e insistiram para que ele também participasse, resolvi deixá-lo
junto ao grupo e fortalecer assim os laços de convivência, conhecendo-os e aproximando-me mais de todo
o grupo. Horácio ilustrou a capa do seu diário, mas ainda não sabia escrever, sendo assim, ao terminar o
desenho, ficou ao lado do irmão Michael Jackson enquanto este ilustrava e respondia a primeira pergunta.
Sobre as respostas nos Diários a pergunta: “Você já praticou ou conhece alguém que já
praticou alguma luta?”. Amanda comentou sobre seu irmão Joel, o qual já praticou Karatê na própria
oficina, no começo deste ano. Liliam comentou sobre seu irmão, que havia praticado capoeira. Leandro
escreveu sobre seu primo ter praticado capoeira, Jacó sobre seu amigo Lauro (participou da oficina no 2º
semestre de 2007). Roberto comentou sobre um amigo que praticou Karatê no estado do Paraná e depois
mudou para São Paulo. Gisele descreveu brincar de luta em casa, com seu pai.
Vemos assim a vivência das lutas mais próxima com a capoeira, especialmente em
projetos oferecidos pela própria ECO, os quais, atualmente não ocorrem.
Em conversas anteriores na própria comunidade, durante o período de inserção, ouvi
muitos comentários sobre a prática da capoeira, porém, isto não ocorria de forma sistematizada (em
encontros fixos ou semanais em locais pré-determinados), mas em rodas de amigos ou então em outros
grupos de bairros vizinhos.
Voltando as atividades da oficina, depois de ilustrarem a capa ou responderem a
primeira pergunta, as crianças iam se despedindo e retornando para suas casas ou brincando nos espaços
da ECO.
Ao final, enquanto recolhia os pedaços das bexigas espalhadas pelo pátio, Jacó
aproximou-se para se despedir, e ao ver-me recolhendo o lixo, se propôs a ajudar, demonstrando-se muito
prestativo, relatando sobre o seu dia, de ter ido à igreja com a mãe e gostado. Perguntei-lhe se poderia vir
no próximo encontro, ele respondeu-me positivamente enquanto recolhíamos as bexigas.
Ao ver a sujeira toda, disse: “Nossa Professor, como tem gente porca né?”, comentando
sobre a própria sujeira das bexigas. Respondi-lhe: “É mesmo! E é por isso que a gente tá limpando tudo!
Pra não deixar sujo, né?”. Ele balançava a cabeça e dizia: “É sim! O certo é limpar, né Professor?”. Disse-
lhe que sim, e comentei sobre a limpeza da ECO ser responsabilidade de todos que freqüentavam o local,
e não apenas dos funcionários (11).
Ele concordava e caminhava entre as mesas, recolhendo os pedaços da bexiga e fios de
barbante soltos no chão. Minutos depois, terminamos a limpeza e caminhamos até a frente da Estação,
conversando sobre a oficina, as brincadeiras e os poucos participantes, oportunidade na qual o incentivei-
o a convidar seus colegas e amigos da comunidade e escola. Ele concordou em convidá-los, despediu-se e
saiu a andar pela rua.
Guardei os materiais em meu carro e segui para minha casa, por volta de 18h20min.
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Diário de Campo: VI
Data: Segunda-feira - 26/05/2008
Período: Tarde – 16:30h às 18:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
O DIA DAS MENINAS
Cheguei a ECO próximo das 16h20min e, desta vez, não encontrei as crianças tomando
seu lanche, apenas deparei-me com algumas esperando o início do nossa oficina.
Vendo que haveria poucas pessoas presentes, fui chamando outras crianças que estavam
nos outros espaços da Estação e as reuni no pátio ao fundo, mesmo local onde realizamos dois últimos
encontros.
Neste dia tínhamos apenas meninas presentes, e algumas delas abaixo de 7 anos (idade
inferior aquela escolhida anteriormente, para participar da oficina), entretanto, como elas acompanhavam
sempre as mais velhas, geralmente irmãs ou parentes próximos, caso não participassem, ficaríamos com
provavelmente sem nenhuma criança para o encontro, contribuindo para tal exceção.
Reunimo-nos envolta da mesa de cimento, sentados nos bancos ou em pé, oportunidade
na qual fui anotando os nomes e idades dos participantes e, em seguida, conversei com elas sobre a
oficina e como ocorriam. Elas perguntaram os horários e se poderiam convidar outras crianças. Respondi-
lhes positivamente e aproveitei para iniciar a primeira atividade: a brincadeira do “Teatro com
Figurinhas”
49
.
Comentei como poderia ser a brincadeira e se desejariam modificar algo ou até mesmo
fazer outra atividade (1). Ninguém se manifestou contra e com as figurinhas espalhadas na mesa, muitas
ficaram ansiosas para o início da brincadeira, dizendo: “Vamos Professor! Quero brincar! Anda logo!”.
Sorrindo e vendo todas animadas, iniciamos a brincadeira. Começamos a espalhar e
misturar ainda mais as figurinhas na mesa.
Algo importante foi a presença de Luana, com 15 anos, já participou durante muitos
anos dos encontros na ECO, principalmente junto ao projeto “Vivências em Atividades Diversificadas em
Lazer”, oportunidade na qual lhe conheci durante minha inserção no projeto com o Prof. Matheus, sendo
ela uma pessoa próxima e respeitada por todas as meninas presentes neste dia.
Retomando a descrição das atividades, iniciamos então a brincadeira do “Teatro com
Figurinhas” e, com as figurinhas já dispostas na mesa de cimento, perguntei quem desejaria ser a primeira
pessoa a escolher a figurinha e representá-la.
Muitas levantaram as mãos pedindo para ser a primeira, mas Jaqueline propôs se não
poderíamos fazer as escolhas, na ordem da própria roda, um de cada vez (demonstrando com o dedo
indicador da mão direita, um círculo no sentido horário). As outras meninas também concordaram e
combinamos esta ordem de escolha (2).
Assim, Amanda foi a primeira a escolher, pegou uma figurinha de uma mulher
demonstrando um movimento de soco (boxe), ela ficou tímida para interpretar a imagem, vendo isso,
49
Ver descrição da brincadeira no Plano de Aula nº 4, disponível no Apêndice 3.
140
Mirian pediu para fazer em seu lugar, afastou da mesa e interpretou a imagem, projetando socos com os
braços, enquanto todos olhavam e riam, indicando apreciarem a atividade.
Seguindo a ordem combinada, Jaqueline foi a próxima, escolheu uma imagem de dois
homens chutando juntos (chute lateral no taekwondo). Ficou confusa, por ver duas pessoas, no entanto,
suas amigas lembraram-na que poderia escolher outra colega para juntas interpretarem a imagem. Olhou
para o lado e escolheu sua amiga Iracema. Ambas fizeram a interpretação juntas, chutaram e riram ao
movimentarem-se.
Logo em seguida, Luana escolheu sua figurinha, com um homem saltando e chutando
ao mesmo tempo. Ela julgou muito difícil interpreta-la e pediu para escolher novamente.
Ao retornar a imagem escolhida junto às outras dispostas na mesa, outras crianças
pediram para visualizar como era esta imagem, algo que tornou-se comum na brincadeira, pois sempre
que alguém escolhia uma imagem para interpretar, as outras crianças pediam para visualiza-la e, em
seguida, observar a interpretação da pessoa.
Interessante tornou-se à atitude de Mirian e Letícia ao verem a imagem escolhida por
Luana, pois comentaram conseguir interpreta-la no chão, posicionando-se no solo como se estivessem no
“ar” (saltando), demonstrando criatividade em suas interpretações. Todas sorriram ao presenciar o
exemplo, e pareceram gostar da idéia (3).
Luana, ainda sim optou por escolher outra imagem, e retirou uma na qual uma mulher
executava um soco com as duas pernas igualmente flexionadas, no karatê. Com timidez, ela interpretou
rapidamente o movimento e sentou-se junto ao grupo, em risos e gargalhadas.
Passou a vez para Iracema, que escolheu a imagem de um grupo de sumô, os quais
estavam todos em círculo e com as pernas flexionadas e com as mãos sobre os joelhos. Amanda olhou-me
e disse: “Mas tem muita gente nessa figurinha!”.
Propus em voz alta: “Vamos fazer todos juntos então?”. Elas concordaram.
Levantamos, afastamo-nos da mesa e fizemos à postura em círculo. Neste momento, Mirian aproximou-se
da mesa para observar novamente a foto e comentou: “Credo, esse homi tá pelado!”, dando gargalhadas,
que se perpetuaram por suas colegas, as quais observaram a foto com mais atenção. Aproveitei para
conversarmos sobre o Sumô e algumas de suas características, dentre elas, a vestimenta tradicional
chamada de “mawashi”, uma espécie de faixa de tecido, usada na cintura dos praticantes, durante as lutas
(4).
Elas continuaram a observar e rir da imagem, quando Liliam retirou outra, a qual
provocou novos risos. Tratava-se da imagem de dois índios brasileiros lutando o huka-huka. Liliam disse:
“Nossa Professor, esses também tão pelado!”, dando gargalhadas com suas colegas, as quais pediram a
foto para observar. Em meio as gargalhadas, procurei abordar a cultura indígena como assunto. Disse-
lhes: “Vocês nunca tinham visto a roupa de alguns índios?”. Elas disseram: “Sim! Mas esse tá pelado!”,
rindo novamente. Conversamos rapidamente sobre os diferentes povos indígenas no Brasil, comentei
sobre sua luta e também das aldeias. Quando falava sobre as aldeias, Liliam falou: “Eles moram em ocas,
né Professor?”, respondi-lhe positivamente, exemplificando com os índios Kalapalo, do (Aiha - Xingu –
Mato Grosso), relatando a oportunidade de conhecer dois deles durante uma reunião e discussão no grupo
141
de estudos NEFEF, durante o período em que cursava licenciatura em Educação Física, aproveitando para
comentar sobre a pintura nos corpos durante as festas indígenas (5).
Quando percebi certa dispersão do grupo com relação à conversa, resolvi dar
continuidade à brincadeira e passar a vez de escolher as imagens para Iracema, a qual rapidamente retirou
uma figurinha, uma foto de um karateca chutando lateralmente. Ela interpretou o movimento, com todos
observando e rindo, porém, ao retornar para a mesa, Amanda olhou-me e disse: “Ah Professor, vamos
fazer outra coisa!”, motivando-me a iniciar a atividade seguinte, envolvendo o sumô e o huka-huka
50
.
Perguntei se todas gostariam de trocar de brincadeira. Elas concordaram, ajudaram-me
a recolher as figurinhas.
Após guardá-las em minha sacola, pedi para formarmos um círculo igual a imagem do
sumô. Ao formarmos o círculo, combinei de explicar como poderia ser a brincadeira e, se elas
desejassem, nós mudaríamos (6). Comentei sobre tentarmos empurrar ou puxar a pessoa para fora do
círculo (mais característico do sumô), ou então, tentar tocar seus joelhos ou projeta-la no chão, puxando
as pernas ou pés (mais característico do huka-huka).
Chamei Liliam para demonstrar os movimentos combinados e aproveitei a atenção das
participantes para destacar os movimentos que seriam “proibidos” na brincadeira, procurando evitar
acidentes. Dentre eles, comentei sobre um possível empurrão na região do rosto ou então, derrubar a
colega com força, machucando-a, por exemplo. Todas de acordo com estas “proibições”, perguntei quem
gostaria de iniciar a brincadeira e Liliam gritava “Eu! Eu!”, e Amanda sem demora entrou no círculo para
“lutar” com Liliam. Elas se encararam e não seguravam os risos enquanto se grudaram pelos braços.
Amanda ria e, em seguida, demonstrava um esforço enorme para empurrar Liliam, a qual, não diferente,
tentava deslocar Amanda para fora do círculo. Liliam desviou a força de Amanda para sua lateral e
empurrou-a para fora do círculo, gritando em voz alta: “Êêê!”, levantando e balançando os braços.
Mal terminamos a primeira “luta” e Iracema entrou no círculo. Liliam continuou no
centro e então pedi para deixar a oportunidade para Mirian, que sorrindo entrou no lugar de Liliam, na
brincadeira. Iracema já estava tentando segurar os braços de Mirian, quando Luana disse-lhe: “Segura na
cintura que é mais fácil!” e Iracema ao ouvir a dica, tentava segurar Mirian com força. Enquanto lutavam,
percebi em diversos momentos as crianças comentando umas com as outras, dicas para as “lutas”,
indicando uma situação de aprendizado entre elas durante esta atividade. Liliam, por exemplo, falou a
Luana: “Eu prefiro empurra, acho mais fácil!”, dando sua opinião e compartilhando experiências da
“luta” que fizera (7)
.
Ao perceber certa ansiedade para “lutar” das outras meninas que estavam só
observando, fiz a seguinte modificação na brincadeira. Risquei com o giz branco, vários círculos médios
no chão, e pedi para formarem duplas à vontade, uma por círculo.
Iracema ficou com Alessadra, Amanda com Letícia, Jaqueline com Gisele e Luana,
Mirian com Lívia e eu caminhava entre as duplas. Elas fizeram várias “lutas” com a mesma dupla, e num
determinado instante, combinei que trocariam juntas as duplas, mas ninguém poderia ficar sozinha. Elas
concordaram e ao falar em voz alta: “Troca de dupla!”, e bater uma palma, elas trocavam de dupla
rapidamente, escolhendo um dos círculos para iniciar “luta”.
50
Ver descrição da brincadeira no Plano de Aula nº 4, disponível no Apêndice 3.
142
Liliam aparentava estar muito alegre este dia, brincando e trocando de duplas em vários
momentos. Letícia disse ter dificuldades em deslocar as colegas para fora do círculo, dizendo: “Ah
Professor, mas eu sou magrinha!”. Respondia-lhe: “Mas a Gisele também é! Veja ela lutando, ela tenta e
as vezes consegue! Continue tentando! Tem que ter ‘jeito’, e não ‘força’!”. Ela ria e tentava empurrar a
Iracema para fora do seu círculo. Mirian dizia-lhe: “Empurra com força Letícia! Vai!”, procurando
motiva-la na “luta”.
Repetimos por várias vezes o mesmo procedimento de trocas entre as duplas e, ao vê-
las cansadas, ofegantes, iniciei a atividade com o Diário. Ao comentar do Diário, apenas Mirian, Amanda
e Gisele já tinham participado de sua atividade.
A partir daí, reuni todas envolta da mesa, distribuí os Diários em branco e comentei
sobre o mesmo. Falei sobre o cuidado que deveriam ter com o Diário, pois era “delas”, sobre termos
sempre aos finais dos encontros, uma atividade com os Diários e a leitura do Dojo Kun.
Ao citar a leitura dos Lemas, Gisele imediatamente começou a ler o seu, demonstrando
dificuldade, soletrava as letras em voz baixa, várias vezes até identificar a palavra toda e, só assim, lia em
voz alta. Letícia ao perceber a dificuldade, ajudou Gisele a lê-los.
Amanda lia num tom mais baixo de voz os outros Lemas junto as outras colegas. Gisele
perguntou-me qual atividade fariam naquele dia. Perguntei-lhe se havia terminado de colorir a capa de
seu Diário e ela afirmou positivamente com a cabeça e disse: “E agora Professor? Faço o que tá depois?”.
Respondi-lhe que sim e sentei-me ao seu lado, pedindo para que lê-se a questão seguinte, proposta pelo
diário, que era: “Comente sobre o lema do Karatê: "Sempre - Conter o Espírito de Agressão destrutiva".
Ela procurou ler da mesma forma, soletrando e depois lendo cada palavra
separadamente, formando e lendo toda a frase ao final. Lida a frase, começamos a conversar sobre a
mesma.
Amanda estava próxima e quis participar da conversa. Perguntei-lhes: “O que vocês
acham? O que vocês acham de ficar com ‘raiva’, brigar?”. Gisele respondeu: “A gente não pode falar
palavrão!”. Amanda, em risadas, disse: “Minha mãe não gosta quando eu falo palavrão!” (8). Mirian
ficava lendo seu Diário e olhando as outras crianças colorirem suas capas, também riu ao ouvir o
comentário de Amanda.
Gisele tentou escrever o que disse no diário, mas percebi dificuldades na hora de grafar
as letras e, ao final, ela apenas rabiscou algumas letras fora de ordem e entregou-me seu Diário (9),
sentando e seguida junto às outras meninas. Amanda não quis responder nenhuma pergunta. Apenas
observou as outras pessoas.
Mirian pediu para escrever as respostas em seu lugar, no entanto, procurei insistir várias
vezes para fazê-las sozinha, ela negou-se, percebi que aquilo poderia desmotivá-la a trabalhar com o
Diário e, procurei contornar a situação naquele instante. Negociei a tarefa de responder aquela questão
com outra num próximo encontro. Ela concordou e pedi-lhe para relatar o que gostaria de escrever em seu
Diário (10).
Ela leu novamente a questão proposta (“Comente sobre o lema do Karatê: "Sempre -
Conter o Espírito de Agressão destrutiva") e ficou pensativa, olhou para cima e, após alguns segundos,
disse-me: “Não pode brigar, porque vai machucar e.... e depois levar para o hospital!” (11). Escrevi
143
exatamente o que Mirian pediu e, mal terminei de escrever e mostrar-lhe seu Diário para que conferisse e,
rapidamente, ela levantou, andou para outra mesa e sentou-se junto a Amanda, observando as outras
meninas a colorir os Diários.
Acompanhei a atividade e distribuía os materiais entre elas, levando os lápis de cores e
apontador entre as mesas e a caixa de cimento, olhava os desenhos e comentava-os, elogiando ou
brincando com as ilustrações, interagindo e procurando incentiva-las no trabalho com o Diário.
Por volta de 18h00min elas terminaram e entregaram os Diários, despediram-se e
retornaram a suas casas. Recolhi o material com a ajuda de Gisele, a última a ir para sua casa, e retornei
também a minha residência, por volta de 18h30min.
144
Diário de Campo: VII
Data: Segunda-feira - 02/06/2008
Período: Tarde – 16:00h às 18:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
O DIA DE “BRIGAR”
Ao chegar na ECO, aproximadamente 16h20min, encontrei algumas crianças
conversando e brincando em cima de um trator da prefeitura, que estava estacionado dentro da ECO, ao
fundo do campo de futebol há 3 semanas.
Nele as crianças brincavam e pulavam o tempo todo, hora fingindo estar guiando o
veículo, ora simplesmente se pendurando e pulando de um lugar para outro no próprio trator.
Liliam viu-me e correu e gritando “Professor! Professor!”, quando se aproximou,
abraçou-me e pediu para carregar minha bolsa, na qual carrego o material utilizado nos encontros, como
os diários, os lápis de cor, folhas e canetas (1).
Em seguida, veio Iracema, que me perguntou: “Professor, hoje a gente vai desenhar?”,
respondi sorrindo: “Vamos sim, mas vamos participar de umas brincadeiras antes?”, ela acenou com a
cabeça, dizendo que sim e pegou em minha mão esquerda para caminharmos juntos até o pátio, ao fundo
da ECO (2). Cumprimentei as crianças que estavam terminando seu lanche (pão com geléia e suco de
uva) e os educadores presentes. Alguns foram brincando e cumprimentando-me.
Joel e Michael Jackson aproximaram-se e comentaram não poder participar do
encontro, pois iriam buscar seu irmão mais novo na escola. Deixei o convite aberto para eles voltarem a
participar dos encontros quando pudessem. Eles concordaram e caminharam até a saída da ECO (3).
Voltando-me para os outros participantes, fui brincando com outras crianças que ali
estavam, para convencê-las a participar da oficina. Algumas demonstraram interesse, e perguntaram-me
quais os dias e horários dos encontros. Respondia-lhes e deixava o convite também para ficarem no
mesmo dia.
Pedro, em voz alta, perguntou-me se poderia participar da oficina, respondi que sim e
orientei-lhe antes, a seguir a educadora que ali estava, a qual pediu a todas as crianças para escovarem os
dentes depois do lanche, para em seguida participar da oficina. Ele concordou acenando com a cabeça e
correu para o banheiro junto com as outras crianças.
Minutos depois elas voltaram com as mãos e boca molhados, sorrindo e dizendo: “Olha
professor! Escovei o dente!”.
Letícia aproximou-se e disse: “Professor, do que vamos brincar hoje?”, e respondi-lhe
rindo: “Hoje vamos brincar de várias coisas, você vai participar, né?”. Ela balançava a cabeça
concordando e sorrindo, pegou em minha mão e esperou junto a mim os outros retornarem da higiene
bucal, no banheiro (4).
145
Com alguns já presentes, reuni todos ao redor da mesa circular de cimento, coletando os
nomes e idades daqueles que participavam no dia, iniciando depois, a primeira atividade: a brincadeira do
“Correio”
51
.
Comecei a conversa falando sobre o Brasil, sobre sua extensão territorial, os vários
estados, comentei a imigração estadual, se conheciam alguém de outro estado ou país, se já tinham visto
algum japonês na rua, se sabiam, depois de ter olhado no mapa, de onde seus pais tinham vindo.
A maioria disse Bahia e alguns poucos Paraná, e com o mapa disposto na mesa e os
olhares atentos a ele, as muitas indicações com os dedos e perguntas sobre seu desenho foram constantes,
como por exemplo, quando diziam o nome dos Estados os quais gostariam de saber ou simplesmente
apontavam com os dedos o Estado de onde seus parentes vieram.
Procurando dar exemplos, perguntei se alguém ali já tinha visto algum japonês e Liliam
comentou sobre um colega de sua escola, Iracema, Letícia e Amanda, comentaram sobre um amigo que
morava no próprio Gonzaga.
Neste momento, apresentei-lhes um modelo de mapa mundi, e fomos conversando e
comentando os nomes dos países, apontando e nomeando aqueles que eles tinham curiosidade.
Senti dificuldades em continuar com a atividade e conversa em grupo, pois estavam
muito agitados e começaram a perguntar se iríamos brincar ou não. Eu pretendia discutir alguns aspectos
ideológicos como a divisão e representação “norte” e “sul” nos mapas, dentre outros assuntos, porém,
percebi a inviabilidade do mesmo naquele instante (5).
Recolhi assim os papéis com os desenhos e iniciamos a brincadeira do “Correio”.
Planejei utilizar o giz para desenhar os círculos no chão, no entanto, a irregularidade do espaço apontou-
me outra possibilidade, a de utilizar o próprio local, como mesas e bancos de cimento (6).
Pedi então para cada um escolher uma mesa ou um banco de cimento para ficar, e eles e
elas rapidamente se posicionaram. Comentei então os nomes de vários Estados e solicitei a escolha de um
nome para o local onde estavam.
Pedro escolheu Bahia, sentado sobre uma das mesas de cimento. Iracema escolheu
Ceará para o banco, Liliam optou por Rio de Janeiro, Mirian por Paraná e Amanda por São Paulo.
A brincadeira previa também, num determinado momento, que um terceiro participante
tentasse “ocupar/tomar” o lugar de um dos integrantes da dupla enquanto trocavam de lugar
simultaneamente. No entanto, preferi apenas trabalhar com a troca de lugares entre as duplas, devido às
ocorrências de conflitos pequenos e rápidos entre eles até mesmo para escolher os bancos ou mesas de
cimento, evitando assim mais brigas (7).
Posicionados em seus bancos e mesas, iniciamos a brincadeira. Expliquei como poderia
funcionar a brincadeira e se gostariam de realizar alguma mudança na mesma (8). Disseram mais de uma
vez: “Vamos professor, começa logo!”. Sorrindo, iniciei a atividade, anunciando em voz alta: “Vou
mandar uma carta de São Paulo para Ceará!”. Iracema ficou pensativa e não se identificou, da mesma
forma Amanda ficou pensativa por um instante, mas ao recordar o nome que havia escolhido, correu para
o banco onde estava Iracema, a qual ficou assustada com Amanda aparecendo de supetão, e com os olhos
arregalados virou-se para mim como quem não entendeu direito a brincadeira. Os outros integrantes
51
Ver descrição pormenorizada em: Marcellino (2002), p.70.
146
começaram a gritar: “Vai Iracema, é você! Corre! Corre!”. Ela sorriu e percebendo que era sua vez, saiu
rapidamente em direção a mesa onde estava Amanda.
Perguntei se alguém havia esquecido o nome do lugar onde estava e todos acenaram
com a cabeça ou disseram em voz alta: “Sim!”. Continuamos a brincadeira, e num determinando
momento, Pedro não quis trocar de lugar com Letícia, comentando gostar daquela mesa. Perguntei a ele
se havia entendido a brincadeira. Ele disse: “Sim!”, quando voltei a questioná-lo, do motivo de não querer
trocar de lugar, mesmo depois de já ter feito isso momentos antes. E ele simplesmente balançava a cabeça
para os lados, negativamente. Insisti mais um pouco e, percebendo certa manha de sua parte, junto a
ansiedade dos outros para a continuidade da brincadeira, disse-lhe que poderia voltar a brincar quando
quisesse (9). Todavia, ele permaneceu com olhos apertados, braços cruzados e boca cerrada, sem
participar da brincadeira. As outras crianças continuaram a atividade sem conflitos e a correia foi
constante.
Vendo certo cansaço da brincadeira, perguntei se eles queriam brincar de outra coisa,
Amanda disse-me: “Vamos pintar professor!”, respondi: “Vamos brincar mais um pouco, daí a gente
brinca de pintar, combinado?”. Amanda balançou a cabeça concordando e em seguida, pegou em minha
mão, esperando os outros sentarem-se envolta da mesa junto a mim, para conversarmos sobre a próxima
atividade (10).
Perguntei a todos se conheciam alguma outra brincadeira parecida com esta para
fazermos. Disseram “Não!” e começaram a empurrar um ao outro para colocar os braços sobre a mesa de
cimentou, e Liliam tentou várias vezes sentar sobre a mesma, sendo impedida por Amanda.
Percebendo o início de novas brigas entre os participantes, e a não indicação de outras
brincadeiras a partir deles, propus a brincadeira chamada “Atravessar o Rio”
52
(11).
Primeiro distribui duas folhas de papel sulfite para cada participante e, em seguida,
comentei o funcionamento da atividade. Quando fui demonstrar a brincadeira, na qual pisamos sobre a
folha de papel, todas as meninas e meninos demonstraram indignação, dizendo: “Eu não vou pisar na
minha folha! Eu vou pintar ela!”, segurando as folhas contra o peito. Fiquei assustado com a resposta e
disse-lhes: “Podem pisar, depois darei outra folha a vocês!”.
Porém, insistiram e não quiseram pisar nas folhas. Aproximei-me de Mirian para
motivá-la a fazer a atividade e ela concordou, contanto que entregasse novas folhas no final da
brincadeira. Pedro, ao ver Mirian entrar na brincadeira, saiu de cima da mesa onde estava e também se
juntou a nós. Iracema e Amanda ficaram sentadas no banco.
Liliam participou um pouco, mas ao ver suas marcas de calçado nas folhas, interrompeu
a atividade, dizendo: “Ah Professor, eu vou parar! Ta sujando a minha folha!”, caminhou e sentou-se com
as outras. Percebendo a pouca adesão dos participantes e a inviabilidade da brincadeira, perguntei-lhes:
“Do que vocês querem brincar então?”. Amanda disse de pronto: “Esconde-esconde!”. Iracema e Mirian
concordaram com a proposta e ficavam repetindo: “Esconde-esconde Professor!”.
Perguntei-lhes se não tinham nenhuma outra brincadeira parecida com aquela ou com
movimentos de lutas e Iracema propôs “mamãe-da-rua”.
52
Ver descrição pormenorizada em: Marcellino (2002), p.36.
147
Senti dificuldade em criar uma dialogicidade naquele instante com os participantes, para
a criação de atividades e brincadeiras relacionadas as lutas, diferentemente do semestre anterior, no qual
misturávamos e criávamos a partir daquelas conhecidas pelas crianças.
Procurando evitar uma dispersão do grupo, fizemos uma votação e a maioria optou por
“esconde-esconde”. Negociei a brincadeira do “esconde-esconde” com a atividade do Diário do Karatê no
final do encontro, e ansiosos para iniciar a brincadeira do “esconde-esconde” eles responderam
rapidamente: “Sim! Sim! Vamos logo brincar de esconde-esconde!”. E puxando-me pelos braços,
iniciamos a brincadeira (12).
Perguntei-lhes quem iria começar “procurando” e em gargalhadas eles apontaram para
mim, escolhendo-me para ser o primeiro a “procurá-los”. Sorrindo, concordei, mas perguntei como eles
brincavam de “esconde-esconde” ali no bairro. Amanda e Liliam explicaram-me a brincadeira, na qual eu
ficaria com os olhos fechados e os braços cruzados, apoiados na parede, com o rosto coberto e apoiado
sobre eles, contanto até 10 e saindo a procura dos outros. Quando encontrasse, deveria correr e tocar na
parede onde fiz a contagem, antes da pessoa escondida. Quando conseguisse encontrar todas as pessoas,
escolheriam outra para contar e procurar. Elas demonstraram muita clareza em suas explicações, inclusive
demonstrando como seria e as regras combinadas na brincadeira, comentaram e combinaram entre si a
contagem até 10, dando início a brincadeira (13).
A criançada correu por toda a ECO, debaixo da pia, dentro do banheiro, atrás do banco
de cimento, em qualquer lugar onde coubessem. Depois que “procurei-os” na brincadeira, a segunda
pessoa a procura-los foi Mirian e, em seguida, Amanda.
A brincadeira corria tranquilamente, quando alguns adultos entraram na ECO e percebi
um certo risco de conflito com os mesmos e, calmamente, reuni a todos próximo ao pátio anterior (14).
Durante alguns momentos, Pedro provocou brigas com os outros participantes, cuspindo
e puxando seus cabelos. Chamei-lhe a atenção e pedia para não fazer mais aquilo. Ele parava e,
momentos depois, voltava a brigar. Com a insistência de Amanda e Liliam para brincarem de pintar,
iniciei a atividade com o Diário do Karatê. A irmã mais nova de Pedro, Evelyn, possuía as mesmas
atitudes do irmão e, mesmo não participando do encontro, ficou próxima ao grupo, insultando e cuspindo
sobre os outros participantes, sem motivo aparente, procurando apenas irritá-los e provocar brigas.
Chamei por diversos momentos a atenção de ambos, no entanto, recusavam-se a parar,
apenas saíam correndo pela ECO e depois voltavam a se aproximar, criando um grande desconforto no
andamento das atividades. Quando sentei-me perto de Evelyn, enquanto Liliam e Amanda distribuíam os
Diários a cada participante, perguntei por que ela fazia aquilo. Ela ficou amedrontada, com o rosto entre
as pernas, não respondendo nada. Insisti na pergunta, mas não obtive resposta. Pedi novamente para não
fazer aquilo, pois atrapalhava o grupo, alertando-a que avisaria a Maria sobre seu mau comportamento.
Evelyn afasta-se do grupo, caminhando vagarosamente e com o olhar para baixo, sentou-se num canto
próximo a quadra e ali ficou, brincando com objetos como garrafas e pedras, sem voltar a “incomodar”
(15).
Pedro recebeu o seu Diário pela primeira vez e começou a desenhar a sua capa.
Inicialmente ele não brigou e ficou apenas colorindo e desenhando. Procurei auxiliar as outras crianças
nas atividades do caderninho, pois cada uma estava numa parte diferente do mesmo, devido a freqüência
148
“irregular” na oficina, o qual trabalha com a presença voluntária das crianças. Liliam perguntou-me como
deveria responder uma das perguntas e orientei-lhe a fazê-lo livremente. Percebi uma enorme dificuldade
na leitura das perguntas, e ao aproximar-me dos outros participantes, vi que a maioria não sabia ler nem
escrever. Perguntaram-me o que havia escrito e quando tentaram ler, soletraram as letras e palavras com
dificuldade.
Nas conversas e visitas que fizemos em anos anteriores no bairro, geralmente
relacionadas a características socioeconômicas dos familiares, deparei-me com uma extrema carência
econômica nas famílias moradoras deste bairro, em sua maioria eram as mulheres as chefes de família e a
única fonte de renda da casa, sendo algumas destas pessoas analfabetas, com pouca escolarização ou
mesmo pouco tempo disponível/motivação para leitura, decorrentes de uma vida dedicada ao trabalho e
sustento da casa. A partir disto, vejo como relevante à relação da baixa situação socioeconômica destas
famílias com a criação do hábito da leitura entre seus filhos (16).
Todavia, incentivei a leitura e, muitas vezes, expliquei as perguntas e questionava
aquilo que entendiam das mesmas, pois sempre procurávamos discutir o Dojo Kun nos finais dos
encontros. Nesta oportunidade, percebi certa inviabilidade das perguntas e respostas manuscritas,
propostas pelo Diário confeccionado.
Entretanto, mantive naquele encontro a atividade com os Diários, e algumas crianças
que demonstravam dificuldades em ler/escrever, sentiam-se desmotivadas e pediam folhas de sulfite para
desenhar e pintar. Procurei insistir um pouco na atividade ou então, negociar o trabalho com o Diário para
posteriormente passar a atividade de colorir. Algumas crianças responderam o Diário e outras ficaram
apenas olhando seus colegas fazerem (17).
Neste momento, Laura apareceu e cumprimentou-me. Ela estivera anteriormente em um
encontro, e pediu para participar da atividade com o Diário. Autorizei-a e entreguei-lhe o Diário. Em
seguida, ela sentou-se junto a Aline, a qual estava apenas no local, mas não quis participar desta atividade
ou do encontro, apenas ficou sentada ao lado de Laura.
Minutos depois, Pedro começou a discutir com Laura e, levantando-se com
agressividade, puxou o caderno de Laura e cuspiu sobre ela. Laura levantou-se e partiu para agredi-lo,
quando intercedi e afastei a ambos. Laura ofendeu Pedro que retrucava sem parar e tentava acertar-lhe
com cuspis. Perguntei por que estavam brigando e Laura disse-me: “Ele cuspiu em mim professor!”,
questionei-a novamente: “Por que ele cuspiu em você?”, ela com voz alta e feição indignada, respondeu:
“Eu sei lá Professor! Esse muleque fica cuspindo nos outro!”. Pedi para não ofender mais Pedro e voltar a
atividade. Dirigi-me então a Pedro, o qual sentou-se noutro banco sozinho. Ao aproximar-me, disse-
lhe:”Pedro, por que você cuspiu nela? O que ela te fez?”. Ele não respondeu e pediu para que desenhasse
para ele um “saci-pererê”
53
. Procurei negociar, dizendo: “Você quem tem que desenhar, o caderninho é
‘seu’ e é para você! Eu não posso desenhar no ‘seu’ caderninho!”, ele insiste novamente, quando
modifico a negociação, e digo-lhe: “Se eu desenhar numa folha de papel o que você quer, depois você
desenha a capinha do seu Diário?” ele concorda, acenando com a cabeça e sorrindo (18). Enquanto
desenhava, voltei a perguntar sobre a briga, mas ele nada falou e apenas tecia comentários sobre o
53
O “saci-pererê” é um personagem folclórico brasileiro originado entre as tribos indígenas do sul do
Brasil. Ele possui apenas uma perna, usa um gorro vermelho e sempre está com um cachimbo na boca
(BRASIL ESCOLA, 2008)
149
desenho, como: ”E o chapéu Professor? Ele tem chapéu, não tem?”; “Faz o cachimbo!”, entre outras
coisas parecidas. Ao terminar o desenho, deixo-lhe sozinho na mesa para pintar, e volto a conversar com
as outras meninas que estavam sobre a caixa de cimento, pintando e colorindo seus desenhos.
Quando olho novamente para Pedro, vi-o noutra mesa, pegando uma caixa de lápis de
colorir e cuspindo em Laura. Ela saiu correndo atrás dele e, sem pestanejar, intercedo novamente,
impedindo-os de brigar. Pedro afasta-se de nós e ofendendo a Laura, rasga a folha de papel onde estava
desenhado o “saci-pererê”. Perguntei-lhe por que estava rasgou o desenho e ele respondeu: “Eu não quero
mais desenhar!”, rasgando ainda mais a folha. Disse-lhe com voz mais firme: “Tudo bem! Mas não
entendi você cuspir na Laura!”. Ele fica zangado e corre até a mesa onde Laura estava sentada, pega uma
das caixinhas de lápis de cor e sai correndo novamente, procuro impedir, mas não consegui. Ele corre
rapidamente para fora do pátio, rindo e balançando a caixa de lápis de cor em mãos. Falo em voz alta,
mas sem gritar: “Poxa Pedro, você sabe que essa caixinha não é sua, é da oficina! Devolva para todo
mundo usar!”. Ele afasta-se e balança a cabeça dizendo: “Não!”. Insisto nisso, e quando digo para voltar e
pintar a capa de seu Diário, ele grita: “Eu vou embora!”.
Quando fui insistir novamente para que terminasse a pintura em seu Diário, ele
surpreende-me e rasga o caderno na frente de todos os participantes e me ofende-me em voz alta. Mirian
fica assustada, com os olhos arregalados diz: “Nossa Professor! Ele rasgo tudo!”.
Naquele instante entendi como inviável mantê-lo no grupo, pois não participava das
atividades sem brigar ou atrapalhar os colegas, e a própria Amanda alertou-me dos conflitos que Pedro
causou noutros projetos, dos quais ele não participava mais, por causa da má conduta. Olhei para Pedro
com feição de desgosto e disse-lhe com voz baixa, procurando amenizar a situação: “Poxa Pedro! Não me
lembro de ter te tratado mal, nem de ter te xingado, mas se você não quer participar, não precisa tratar a
gente assim! Você pode ir embora. Amanhã vou conversar com a Maria e com o Matheus sobre o que
você fez hoje!”. Ele ficou um pouco assustado quando falei o nome do Matheus, pois as crianças
demonstram gostam muito dele, desapontá-lo pareceu-me algo ruim para Pedro. Pedi para ele devolver a
caixa de lápis de cor, mas não devolveu e saiu correndo, levando consigo também um dos apontadores
utilizados do grupo. Laura saiu correndo atrás de Pedro. Tentei impedir, mas ambos correram muito
rápido para fora da ECO em direção a rua (19). Ao chegar nos portões da ECO, já estavam muito
distantes.
Neste momento, achei incorreto deixar as outras crianças sozinhas na ECO, pois não
havia nenhum outro funcionário ou educador na unidade para acompanhá-los. Decidi retornar ao pátio e a
atividade com as outras crianças.
Poucos minutos depois, a mãe de Iracema compareceu a ECO para levá-la. Iracema
entregou-me seu desenho e Diário, despediu-se e acompanhou sua mãe.
Enquanto recolhia alguns dos materiais da aula com a ajuda de Liliam, Laura retornou,
trazendo consigo a caixa de lápis de cor que Pedro levara. Colocou-a sobre a mesa e disse: “Tá aqui
Professor! Peguei daquele muleque!”.
Assustado, olhei na calçada, fora da ECO e do outro lado da rua, Pedro sentado e
chorando. Perguntei a Laura: “Você bateu nele?”. Ela com tranqüilidade, disse: “Claro Professor! O
moleque vai robá os lápis de cor?”. Naquele momento, senti um arrependimento enorme por não ter
150
impedido a briga, e fiquei desapontado comigo mesmo. Pedi educadamente para ela: “Por favor Laura,
não faça mais isso! Nem comigo nem com outro Professor! Entendo que você ficou brava com ele, mas
bater não ajuda em nada! Só piora as coisas!”. Ela balança a cabeça para baixo e diz “Tudo bem
Professor!” (20), e volta a sentar e trabalhar com o seu Diário.
Todos continuaram a atividade com o Diário, até que poucos minutos depois, Pedro
reaparece e tenta novamente pegar os lápis de cor da mesa e levá-los embora. Laura impede que ele os
pegue e eu seguro-a logo em seguida, evitando que agredisse fisicamente Pedro. Infelizmente ele
consegue pegar outros cinco lápis e foge da ECO, xingando a Laura e a mim. Irritado, levantei a voz com
Pedro e avisei-o que não participaria mais enquanto não pedisse desculpas, comunicando a Maria e
Matheus. Ele continua a ofender-nos, mas afasta-se com medo de Laura (21). Pedi para os outros
participantes para continuarem com a atividade e não prestarem atenção nele.
Laura entrega seu Diário e caminha com Aline até o campinho de futebol, onde
combinaram uma partida com outras amigas e amigos do bairro. Guardei o Diário de Laura e fui até a
caixa de cimento, perguntar a Amanda e as outras meninas se tinham terminado.
Amanda disse-me não querer responder nenhuma pergunta, só queria uma folha de
sulfite para desenhar. Tentei mais uma vez combinar a resposta do Diário, porém, recusou-se e disse que
não estava com vontade. Insisti mais um pouco, para ter certeza de não se tratar de “manha” (atitude
muito comum desta criança), entretanto, ela optou realmente por não fazer (22). Perguntei a Liliam como
ela estava indo em seu trabalho com o Diário, e olhando-o, ela perguntou: “Professor, posso responder
assim: é errado brigar com os otros!”, respondi: “Sim! Você pode responder como quiser! O Diário é
seu!” (23). Ela sorriu e começou a escrever em seu Diário.
Pouco antes de ir embora, Liliam desceu da caixa de cimento e, antes de entregar-me
seu Diário, abriu o mesmo numa das páginas e apontou com as mãos e leu: “Respondi assim Professor:
‘não pode xingar o Professor!’” (relembrou o caso do próprio encontro, com Pedro, algo que sensibilizou-
a a escrever sobre isto em seu Diário, na questão número dois, que diz: “Comente sobre o lema do Karatê:
‘Sempre - Conter o Espírito de Agressão’”) (24). Disse-lhe com sorriso no rosto: “Isso Liliam! Parabéns!
Ficou ótimo!”. Ela agradeceu e ajudou-me a recolher o material utilizado no encontro.
Mirian e Amanda entregaram-me os desenhos e os Diários, os quais olhei em seguida.
O Diário de Amanda estava mesmo em branco. Ela olhou-me e disse: “Hoje eu não quis escrever
Professor!”, fazendo cara de brava. Perguntei-lhe: “Você não gostou do Diário?”. Respondeu-me que sim,
mas não queria fazer naquele dia. Respeitei sua vontade e falei: “Tudo bem então! Você faz no próximo
encontro, combinado?”. Ela respondeu-me: “Sim! Só que agora vou embora, tá Professor?” (25).
Concordei e despedi-me dela e de Mirian, que caminharam juntas para casa. Recolhi o
restante do material junto com Liliam, que caminhou comigo até a saída da ECO, onde despedimo-nos.
Organizei os Diários na bolsa e retornei a minha casa por volta das 18h00min.
151
Diário de Campo: VIII
Data: Terça-feira - 03/06/2008
Período: Tarde – 9:30h às 11:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
A REUNIÃO COM MARIA
Era uma terça-feira à tarde, quando fui a ECO para conversar com Maria sobre a
possível organização de algumas visitas com as crianças em outros locais da cidade e disponibilidade de
um transporte para a oficina, com o objetivo de promover a vivência das lutas em locais como Dojos de
Karatê, Jiu-Jitsu, Judô, dentre outros.
Nesta oportunidade, cheguei mais cedo, aproximadamente 9h30min, e fiquei esperando
Maria chegar de outra reunião com os coordenadores e supervisores de unidades municipais, organizada
no Centro Comunitário do Pacaembu.
Sendo assim, fiquei conversando com um amigo do grupo de estudos do NEFEF que ali
ministrava seu projeto de com jogo de tabuleiro as crianças da ECO. Cumprimentei ele e a outra
educadora presente e ali fiquei a conversar sobre o seu projeto e como caminhava o mesmo. Fábio
54
disse-me ter alguma dificuldade em trabalhar o jogo de damas na ECO, mas procura da melhor forma
possível, incentivá-los, criando brincadeiras e partidas entre os integrantes do grupo. Comentei com ele as
dificuldades que possuía em nossa oficina, especialmente com relação a conversar e discutir as
brincadeiras, quando Maria retornou de sua reunião e chamou-me para sua sala. Despedi-me então de
Fábio e fui até a sala, onde sentamos Maria e eu, para conversarmos e organizarmos alguns aspectos das
visitas e seus objetivos.
Durante a conversa, apareceu a mãe de Jericó, a qual perguntou se havíamos visto ele
por ali, quando respondemos que não, e ela voltou a procurá-lo pela ECO, Maria comentou comigo das
dificuldades desse garoto (o pai estava preso e a mãe estava desempregada), junto as reclamações sobre
ele e sua conduta nos projetos que participa, apresentando muita agressividade e violência com os colegas
e professores (1).
Comentei com ela que outrora ele participara de um dos encontros da oficina, e não
tinha manifestado nenhuma atitude agressiva, apenas em alguns momentos não quis participar das
brincadeiras ou chorava manhosamente por não acontecer o que desejava.
Maria ficou surpresa sobre o comentário e sorriu quando ouviu. Aproveitei a
oportunidade do assunto sobre os participantes dos projetos e comentei sobre o Pedro, garoto que no
encontro do dia anterior (02/06/2008), demonstrou atitudes muito agressivas e provocou brigas com
outras crianças na Estação.
Maria disse-me que Pedro já faltava há 3 semanas na escola, e inclusive, no dia anterior
(02/06/2008), quando participou do encontro, ele havia faltado também, e sua mãe já havia sido alertada.
Maria com olhar indignado, levantou-se e saiu pela ECO procurando o menino.
54
Nome fictício.
152
Ao encontrá-lo, chamou-o para conversar. Ele saiu correndo, fugindo de Maria, que
chamava: “Vem aqui que eu quero conversar com você!” Ele caminhava de costas e dava um sorriso
maroto, porém com um leve olhar amedrontado. Maria cercou-o num canto do pátio, onde realizamos os
últimos encontros do grupo, porém um pouco mais próximo ao campinho de futebol, e pegou-o pelos
braços (sem agredi-lo, apenas para conduzi-lo até um banco de cimento próximo).
Sentado, ele cobria os olhos com o antebraço, escondendo o rosto. Maria perguntou-lhe,
por que não estava indo a escola, ele respondeu: “Eu num vou pra escola!”, Maria questionou: “E por que
você ontem ficou brigando e xingando o pessoal na aula de Karatê?”, ele disse:”A minina ficou me
chutando!”, repliquei a ele com voz branda: “Eu pedi para você não cuspir nela, e você além de fazer isso
puxou o cabelo dela, você achou isso certo?”, ele não respondia nada. Quando Maria falou: “Por que você
fica brigando com todo mundo?”, ele continuava calado. Perguntei então: “Pedro, por que você me
xingou ontem? Eu fiz alguma coisa pra você?Eu te tratei mal?”. Ele mexia a cabeça para os lados,
negando. Acrescentei: “Então por que você fez aquilo? Você acha certo me xingar? Se eu te trato bem
você me trata mal? Não estou te entendendo! Você trata mal as pessoas que lhe tratam bem?”. Ele ficou
em silêncio e em expressar-se verbalmente, permaneceu apenas cobrindo os olhos e com cabeça baixa.
Maria disse com voz mais firme: “Poxa, se você continua tratando a gente mal, a gente não vai mais
deixar você participar dos projetos! E se não for pra aula, a gente vai ter que conversar com sua mãe e
chamar o Conselho Tutelar na sua casa!”. Ele argumentou: “Não tem ninguém em casa!”. Maria retruca
comentando o nome do pai ou irmão do garoto, que iria chamar para conversar, mas Pedro diz com
desdenho: “Ele tá preso!”. Ela volta a argumentar sobre conversar com sua mãe e, se ele continuasse a
tratar as pessoas daquela forma maldosa, o Conselho iria em sua casa. Ele surpreendendo-nos, disse: “Eu
pego o facão que tem lá!”.
Maria, assustada, olha-me nos olhos sem saber muito o que fazer. Digo ao garoto, com
voz mais calma, procurando apaziguar o diálogo acalorado: “Bom Pedro, se você não quer participar da
oficina, tudo bem, você não é obrigado, nunca foi! Só não queremos você maltratando as pessoas ou
atrapalhando os colegas que estão participando! Ninguém vai te tratar mal, não fazemos isso, mas se você
continuar assim, não temos como deixá-lo participar e agredir as outras pessoas! Se você quiser continuar
participando, então pare de xingar os professores e brigar com seus colegas! A gente gosta muito de você,
mas não dá pra ficar perto de você e ficar sendo maltratado... nem você gosta disso nem a gente!”. Ele
continuou com os braços no rosto, escondendo a fronte, sem responder nada e sem demonstrar qualquer
atitude. Dirijo-me a Maria e digo: “Bom Maria, conversamos com ele. Ele sabe muito bem que não está
certo xingar e brigar com os outros (2).
Maria concordou e alertou-o novamente para voltar a escola. Ao nos afastar, ele voltou
a gritar de longe: “Eu não vô pra escola!!!”. Maria e eu não demos atenção para evitar mais conflitos e
voltamos para sala, procurando resolver os outros problemas das visitas que faríamos na oficina e o
transporte. Descrevi os possíveis locais e datas a serem visitados. Maria anotou-os e registramos os
documentos necessários para isto. Despedi-me de Maria e caminhei até a saída, retornando a minha casa
por volta de 11h30min.
No caminho até minha casa, refleti bastante sobre as dificuldades enfrentadas pelas
famílias desta comunidade. Além da pobreza, muitas crianças estão envolvidas numa violência cotidiana
153
e algumas têm parentes próximos em reclusão (3). Lembrei-me de outros encontros informais na ECO,
fora dos horários e dias dos encontros semanais, quando encontrava crianças brigando e, quando havia a
possibilidade de intervir, interrompendo o conflito, fazia o mesmo imediatamente e procurava dialogar
com os envolvidos.
Nestas conversas buscava esclarecer os motivos do conflito entre os envolvidos,
almejando estabelecer e motivar o diálogo, ao invés da violência entre eles, incentivando o
reconhecimento do erro e o “desculpar-se” ao invés do castigo corporal como solução do conflito.
Quando questionava e discutia com os envolvidos o “porquê” de “brigarem” e os “prejuízos” desse
conflito para ambos, em sua maioria, prevalecia para eles como único meio de solução a “retaliação”. Não
ignorar estas brigas ou desistir de fomentar e estabelecer situações de diálogo, argumentação sobre o
respeito e o “querer bem” o outro, parece-me ter sido interpretado positivamente, visto que contribuiu nos
encontros de Karatê para reduzir o número de conflitos vistos durante o período de aproximação e
inserção na comunidade, obviamente isto só foi possível, devido a um trabalho conjunto com outros
educadores da unidade (4).
Esta postura levou-me também a refletir sobre a “corporalidade” muito significativa
entre essas crianças, uma afetividade e expressão pelo corpo distinta dos outros locais que freqüentei. O
contato físico, nos momentos de conflitos ou mesmo nos afetivos são sempre marcantes (5).
Sempre que visitei a ECO ou deparei-me com alguma criança da oficina, elas corriam e
abraçavam-me fortemente. Enquanto converso com outros adultos (pais, funcionários ou educadores)
houve sempre uma criança abraçada ou de mãos dadas comigo ou outro educador, elas percebiam até
mudanças em meu corpo ou minhas roupas ou acessórios (relógio, tênis ou corte de cabelo) (6).
Nas brincadeiras feitas por eles, o toque corporal fica muito evidente e no qual também
se desencadeiam facilmente conflitos, brigas entre meninos e meninas de diversas idades, algo que me
levou a insistir nas discussões durante os encontros sobre as lutas e o respeito às pessoas, refletindo sobre
as falas de muitas delas sobre os relacionamentos familiares. Iracema, por exemplo, no encontro em que
fizemos as brincadeiras de sumô (DC-XVI) e no final fizemos uma discussão o Dojo Kun, comentou
sobre o respeito em sua casa e na escola, dizendo: “Minha mãe disse que é feio xingar os otros!” (7) .
Esta e outras falas, junto a minha experiência como praticante de Karatê, incentivaram-
me ainda mais a organizar as visitas das crianças as academias e Dojos para o mesmo semestre.
154
Diário de Campo: IX
Data: Quinta-feira - 12/06/2008
Período: Tarde – 16:30h às 20:30h
Local: Dojo Areikan de Karatê-Do – Araraquara (SP)
TROCANDO DE ARES: VISITANDO ARARAQUARA
Hoje foi um dia muito esperado pelas crianças e, com tudo organizado, após entregar
todos os documentos, ofícios e requisições a prefeitura do município, nossa visita ao Dojo de Karatê em
Araraquara estava para acontecer!
Cheguei na ECO por volta das 16h30min e mal saí do carro, já encontrei com três
crianças correndo da Estação, vieram me abraçar e perguntar sobre a visita do dia (1)
.
Toda a criançada já estava lá, vestidos com roupas diferentes daquelas vistas nos
encontros da oficina (indicativos de uma ocasião especial), esperando a chegada do transporte coletivo
(com 12 lugares para crianças e 3 para adultos disponíveis) cedido pela Secretaria Municipal de Esportes
e Lazer (SMEL - São Carlos) para esta ocasião.
Fui até a sala da Maria e encontrei-a organizando os documentos (autorizações e termos
de consentimento) daqueles que iriam viajar conosco. Cumprimentei-a e comecei a ajudá-la.
O tempo inteiro, as crianças apareciam na porta da sala para perguntar-nos se
demoraríamos muito para partir. Maria ou eu sempre procurávamos acalmá-los, comentando sobre a
espera pelo transporte coletivo da prefeitura.
Uma das crianças, Jericó, apareceu na sala chorando, querendo participar da visita.
Porém, ele compareceu aos encontros poucas vezes e sua mãe não havia permitido sua participação na
viagem.
Sendo assim, naquele dia, ficou insistindo e chorando para participar da oficina.
Perguntei a ele se havia trazido a autorização e o termo de consentimento livre e esclarecido para a Maria,
pois sem os mesmos não poderíamos permitir sua viagem conosco, ele então disse-me que não e
esperneava ainda mais, pedindo para ir conosco.
Perguntei então a Maria, se sobrou algum lugar no transporte ou se alguém da lista que
ela compôs, baseada nas autorizações entregues, havia faltado. Ela disse que não e alertou-me não
podermos levá-lo sem os documentos, principalmente com a possibilidade de vistoria policial, algo que
complicaria muito a Prefeitura e os educadores.
Argumentei com Jericó e pedi para que chamasse sua mãe, e ele saiu correndo
procurando-a nas redondezas. Durante esse tempo, arrumei os últimos preparativos com Maria. Todos os
que haviam entregue a autorização e termo de consentimento para Maria, estavam presentes com os
documentos corretamente preenchidos e apenas aguardava-mos o transporte.
Na chegada do motorista, enquanto conversava com Maria, Liliam, Amanda e Gisele já
estavam gritando meu nome, apressando-me para viajar. Mal saí da sala e cheguei ao veículo, quase todas
as crianças já estavam dentro do automóvel, gritando e apressando-me pelas janelas.
155
Fiquei muito feliz ao ver a demonstração de ansiedade deles para viajarmos, e disse-
lhes entre risos: “Agora sim, nós vamos!”. Cumprimentei o motorista, organizamos a entrada das últimas
crianças no transporte, quando pouco antes de fechar a porta do veículo, Jericó apareceu novamente,
querendo entrar e viajar de qualquer forma.
Perguntei-lhe sobre sua mãe, mas ela não estava presente. Sem a autorização dela, não
poderia permitir sua viagem, sendo assim, mesmo com os choros, não permiti o embarque de Jericó, pois
seria incorreto.
Ele não aceitou a justificativa que lhe dei e começou a me chutar e socar com força. As
outras crianças ficaram assustadas com as atitudes de Jericó e, inclusive duas meninas (não participantes
da oficina) que estavam na ECO, puxaram-no pelo braço e começaram a agredi-lo com pontapés.
Interrompi imediatamente aquilo, e pedi para não tomarem aquela atitude novamente. Argumentei não ter
sentido agredi-lo da mesma forma e afirmei: “Não podemos reagir desta forma, não é certo agredi-lo só
porque ele nos agrediu! Se ele faz isso com as pessoas que gostam dele, a gente só deve se afastar, e não
fazer do mesmo jeito!” (2).
Direcionei meu olhar de desaprovação para Jericó, afastei-me dele e andei em direção
ao veículo, quando ele em choro, ainda insistiu em me agredir, tentou inclusive morder meu braço
enquanto estava distraído, contudo, um adolescente puxou Jericó pelo braço e impediu-o, mantendo-o
imobilizado em seus braços, sem agredi-lo. Pedi a Jericó para desculpar-se pelo que fez e, no mesmo
instante, ele desprendeu-se do adolescente e saiu pela rua correndo e xingando. Voltei-me as crianças
dentro do transporte e comentei com o grupo: “Alguém aqui achou certo o que ele fez?”. Quase todos
movimentavam a cabeça para os lados, em sinal de desacordo com Jericó, outros atribuíam palavras de
baixo calão ao menino. Aproveitei a oportunidade e ressaltei: “Não sou eu que não quero a participação
de você neste passeio, apenas não posso fazer isso se o responsável por vocês não autoriza isso! Vocês
conseguem entender?” (3).
Todos concordaram e, com ansiedade, Jacó e Liliam voltam a apressar a Maria e eu,
para que embarcássemos logo e seguíssemos viagem. Já dentro do veículo, autorizamos o motorista e
seguimos viagem.
No meio do percurso, as crianças cantavam: “Corinthians! Corinthians!”, ou então:
“Louco por ti, Corinthians!”, batucando nos bancos e cantando juntos. As meninas riam, mas a maioria
acabava cantando também. Maria, o motorista e eu dávamos risadas, e a cantoria seguiu por todas as ruas
da cidade, até entrarmos na estrada. Lá eles ficaram conversando entre si, e em alguns momentos
distintos, voltavam a gritar a mesma canção.
Durante a viagem, Liliam e Jacó permaneceram perto do banco da frente, no qual
estávamos Maria e eu, devido às orientações do caminho que passaríamos ao motorista. Liliam perguntou
onde ficava Araraquara, e Jacó disse ter um primo que morava por lá. Liliam perguntou se era longe e
Jacó disse que não. Maria sorriu e comentou que alguns nunca tinham saído de São Carlos, muito menos
visitado um Dojo de Karatê (4).
Conversamos sobre a importância desta oportunidade para todos e aproveitei para lhes
falar sobre o Professor Celso Akira Oisi (Sensei de Karatê em Araraquara), o qual tem grande
156
conhecimento sobre esta arte e trabalha com um grupo numeroso de crianças no município desde 1982,
oferecendo uma possibilidade de intercâmbio também das crianças umas com as outras.
Em seguida, Maria comentou sobre o seu professor de Judô, chamado Sebá, residente
em São Carlos, e relatou a oportunidade de combinarmos uma visita nesta academia. Peguei os contatos
do Prof. Sebá com Maria, para que pudéssemos conversar sobre a perspectiva da oficina e
organizássemos um encontro entre os grupos. Maria concordou e ficou de anotar os contatos.
Seguimos pela rodovia e, próximos da entrada para cidade, as crianças voltaram a
cantarolar sobre o Corinthians. Maria e o motorista em risos disseram: “Esse Corinthians!”, com um tom
de voz irônico, brincando com o time de futebol e as crianças. Minutos depois, chegamos ao Dojo de
Karatê.
O automóvel estacionou alguns metros da frente da Dojo, para que todos pudessem
descer do carro com segurança e caminhar em grupo até o local. Combinamos com o motorista o horário
de término da aula e seguimos juntos para a frente do Dojo.
Lá, educadamente pedi para que fizéssemos silêncio, para não atrapalhar a aula em
andamento. Com olhar admirado, as crianças foram sentando na própria calçada em frente a academia,
assistindo a aula com os alunos e alunas mais antigos praticando.
Alguns meninos (Leandro, Jacó, Tomas e Roberto) queriam entrar e participar da aula,
brincando e reproduzindo os movimentos feitos pelos karatecas em aula, sorriam e brincavam entre si.
Enquanto assistíamos à aula, Tomas veio perguntando quando iríamos comer, disse ter
muita fome, e Amanda também ouviu a pergunta e aproveitou para insistir junto a Tomas, sobre o horário
do lanche (5). Disse-lhes que nós havíamos acabado de chegar, e teríamos o lanche somente após a aula
com o Professor Celso. Tomas disse: “Ah professor! Mas eu tô com fome!”, e reafirmei: “Poxa, você
acabou de lanchar na ECO, e você sabe que teremos lanche depois da aula, espere um pouquinho!
Combinado?”. Ele mesmo não demonstrando muita alegria em ouvir, concordou e volto a prestar atenção
na aula.
Aproximadamente 20 minutos depois, a aula terminou, e autorizados pelo Prof. Celso,
entramos na academia. Fui comentando com todos sobre retirarmos os calçados antes de entramos no
Dojo, e alguns costumes japoneses mantidos na prática do Karatê. Eles tiraram os calçados (tênis,
tamancos, chinelos) e entraram no local (6).
Os alunos e alunas adultos saíram do tatame
55
e os alunos e alunas mais novos, que
participariam na mesma aula com as crianças do Jardim Gonzaga, entraram e sentaram em duas filas,
posicionando-se na forma tradicionalmente conhecida como “seiza”
56
(sentados sobre os tornozelos e
55
O “tatame” geralmente é constituído por um conjunto de placas feitas de palha de arroz, revestidas de
uma esteira de junco de arroz tecida, ou totalmente em material sintético, por exemplo, o EVA. No Japão,
o “tatame” é tradicionalmente utilizado para cobrir o chão das casas ou os locais de meditação e prática
das lutas. No Brasil, alguns Dojos/Academias mantêm este costume.
56
“Seiza” pode ser entendido com a forma tradicional de “sentar-se”, utilizada na prática de algumas lutas
orientais e posturas meditativas, muito identificada com a cultura japonesa, chegando a ser chamada
também de “nipon-za” (“nippon”= “Japão” e “za” = “postura sentada”). Há uma multiplicidade de
interpretações para os ideogramas (“kanji”) que compõem a palavra “seiza”, podemos compreender o
ideograma “sei” com o significado de “tranqüilidade”, “repouso”, “correto”, enquanto o ideograma “za”
“postura sentada”.
157
joelhos, com as pernas flexionadas para trás e o tronco ereto, braços alinhados ao corpo e mãos tocando
levemente as coxas).
Logo na continuação desta segunda fila, as crianças do Jardim Gonzaga iam perfilando
junto aos outros alunos e alunas do Dojo, procurando aprender a forma como sentavam, junto aos alunos
do Karatê (7). O Professor Celso cumprimentou-me, junto a Maria, e pediu para averiguar se todos
estavam presentes. Esperamos Liliam e Jacó saírem do banheiro, sentarem-se junto aos outros, para então
iniciarmos a aula.
Professor Celso apresentou-se ao grupo, comentou sobre as aulas de Karatê, e há quanto
tempo praticava. Disse gostar muito de saber o nome de todos com quem conversa, e solicitou a todos os
presentes que falassem seu nome em voz alta. Michael Jackson e Amanda ficaram um pouco tímidos, já
os outros anunciaram seus nomes sem hesitar.
O Professor prosseguiu perguntando se alguém ali já havia praticado Karatê, e a
maioria comentou sobre a oficina do próprio Jardim Gonzaga, disseram gostar da oficina e das aulas.
Professor Celso comentou sobre minha presença no Dojo, e sobre freqüentar suas aulas há 5 anos com o
grupo.
Olhando a forma como estavam sentados, pediu para que todos ficássemos em pé
novamente, para “aprender” a forma de se sentar e posicionar em “seiza” no Karatê. Ele interpretou uma
pessoa desengonçada sentando e disse: “A gente senta assim?” (demonstrando a coluna curvada
demasiadamente para frente ou para os lados, indicativos de patologias na coluna vertebral). As crianças
disseram em voz alta: “Nããão!”, rindo da encenação feita pelo professor. Pediu para que todos se
levantassem, e sentassem novamente, repetindo o movimento de sentar em “seiza”,e destacou a ordem em
que se sentam os alunos numa aula de Karatê, sempre dos mais graduados para os menos graduados,
respeitando os mais antigos na prática, os quais perfilam horizontalmente da direita para esquerda e em
ordem decrescente. Após os destaques do Professor, fizemos todos juntos o movimento de sentar no
Karatê. Realizamos o cumprimento inicial, conhecido como “za-rei”
57
(8), com todos votados para frente
em direção à foto antiga do Mestre Funakoshi
58
(considerado o principal difusor do Karatê Shotokan) e
depois uma saudação entre professor e alunos/alunas.
Professor Celso então iniciou uma conversa sobre o Karatê e o Karateca. Comentou
sobre o Mestre Funakoshi, a disciplina e o respeito que o Karateca tem quando pratica, que vai desde o
momento de “entrar no Dojo” (retirando o calçado, fazendo a reverência para o local e também para o
mais velho) até o momento da prática, quando faz reverência ao professor e ao companheiro de treino.
Falou sobre a saúde do Karateca, o qual deve procurar estar sempre “limpo” (higiene
pessoal), cuidar do seu “corpo” e também do seu “espírito”, para que, segundo o Professor, o Karateca
possa “viver mais e melhor” (9).
Logo após a conversa, ele pediu para todos ficarem espalhados pelo “tatame” e voltados
para frente, onde ele estava. Nesta formação, pediu-lhes para fazerem os movimentos junto com ele.
57
Saudação ou cumprimento realizado em “seiza” (ver nota anterior), feito por meio de uma reverência,
com a inclinação do o tronco e apoio com as mãos abertas, tocando levemente o solo.
58
Encontra-se com freqüência nos dojos de Karatê-Do Shotokan, um quadro com a foto do Mestre
Funakoshi. Em seu respeito e homenagem, antes e depois de cada sessão prática, realiza-se uma
reverência em direção a sua imagem.
158
Devido a flexibilidade admirável do Professor (muito comentada por seus alunos e
alunas), ele executava os movimentos e tecia comentários para descontrair ou elogiar, e criava
brincadeiras nestes movimentos, geralmente relacionado-os a desafios de flexibilidade articular,
motivando-os a alcançar o seu limite individual, e não competindo entre si.
As crianças demonstravam sorrisos, davam gargalhadas quando não conseguiam,
dizendo “É muito difícil!”, chamavam meu nome e falavam: “Olha professor! Eu consigo!” sorrindo e
brincando com os colegas.
Depois de vários exercícios semelhantes, o professor comentou sobre as técnicas de
Karatê, e perguntou para os meninos e meninas da oficina, quais eles conheciam. Michael Jackson, Joel,
Amanda, Lauro, dentre outros, começaram a demonstrar os chutes (frontal, lateral) e o soco que
aprenderam durante os encontros da oficina na ECO. O Professor Celso perguntou sobre o nome dos
golpes para seus alunos e alunas, os quais foram nomeando as técnicas em japonês (costume ainda
mantido na prática do Karatê, servindo inclusive como linguagem comum para o diálogo entre
participantes de diferentes línguas).
Conforme eles respondiam, o Professor pediu: “Vamos fazer todos juntos esses
movimentos? Vamos ver?”. Ele iniciou a contagem numérica de 1 até 10 em japonês, geralmente
utilizada na prática do Karatê, e conforma falava em voz alta um número em japonês, todos socavam
juntos, alternando os braços a cada contagem. As crianças do Jardim Gonzaga demonstraram gostar da
forma como o Professor contava em voz alta e, sempre que dizia um número, em seguida, todas as
crianças repetiam em voz alta, sorrindo e executando o movimento (10).
Seguindo o mesmo modelo, o professor propôs um chute frontal, mas ao mostrar e falar
sobre o chute, sorriu, apontou para Joel e disse: “Faça para os outros verem!”, Joel com determinação
demonstrou o chute e o professor elogiou: “Isso! É assim que se faz esse chute! Vamos fazer todos juntos
então!” (11). E voltaram a contar em voz alta.
Durante a contagem, quando disseram “Jyu” (dez), os alunos e alunas do Professor
Celso fizeram o “Kiai”
59
, e algumas crianças do Jardim Gonzaga deram risadas, acharam engraçado e
pareciam não entender o motivo do “grito”. Quando o Professor Celso perguntou-me se eles já haviam
aprendido o “Kiai”, e disse-lhe ainda não ter abordado este tema na oficina. Ele então explicou como era
feito o “Kiai”, geralmente com força, voz firme e alta e no último golpe da contagem. Olhando para
todos, ele voltou a contar os movimentos para os chutes, e ao chegar ao número 10, todos fizeram o
“Kiai” juntos (12).
Vários movimentos foram feitos como chute frontal, lateral, circular, depois
movimentos em seqüência (chute lateral depois frontal, por exemplo), sempre com dificuldades e
velocidades distintas propostas pelo Professor. As crianças sempre sorriam e davam risadas durante os
movimentos, apresentando feições de alegria durante a aula.
Num determinando momento, Amanda e Tomas aproximaram-se e disseram:
“Professor, eu tô com fome!”. Comentei já estarmos quase no fim da aula, quando faríamos o lanche, e
59
”“Ki”=”energia”; “ai” = “harmonia/unir”. Assim, “kiai” em japonês significa “unir a energia”. Este
termo apresenta complexa descrição e apreensão do sentido, porém, de forma simples, poderíamos
descrevê-lo como um grito sonante, utilizado pelos praticantes quando executam certas técnicas em
algumas lutas orientais
159
pedi um pouco mais de paciência. Amanda e Tomas voltaram a atividade sem reclamar, porém,
demonstrando muita fome nos olhares (13).
O Professor Celso dividiu todos em dois grandes grupos, mesclando a turma de
Araraquara com São Carlos em ambas. Um grupo de cada lado do “tatame” e voltada para mesma
direção. Recrutou dois garotos para segurar os aparadores de chute, e colocou um desafio, no qual todos
chutariam e receberiam uma nota de 0 a 3 para o chute, se ele fosse muito “fraco”, receberia nota 0 e se
fosse “forte” receberia 3. No final, seriam somadas todas as notas e comparadas entre as filas, aquela fila
que obtivesse a menor nota, faria 10 flexões de braço em decúbito ventral no solo. Ele demonstrou o
chute frontal no aparato, inclusive aquilo que ele determinou como chute “fraco” e “forte”. Todos os
integrantes de uma das filas chutariam, e os pontos iam sendo somados. Os grupos estavam bem divididos
e havia um numero igual de participantes em ambas.
A atividade iniciou-se com a fila da direita, e os primeiros da fila eram alunos e alunos
mais graduados do Professor Celso, os quais chutavam indicando determinação, algo incentivador para os
outros. As crianças do Jardim Gonzaga mostravam-se ansiosas para sua vez.
Liliam foi a primeira do Gonzaga a chutar e recebeu a nota 3 do Professor, saiu sorrindo
e dando gargalhadas com os outros colegas. A fila seguiu, até que todos chutaram e passaram a vez para a
outra turma, na fila à esquerda. Da mesma forma, eles chutaram o aparato, e um dos que mostrou mais
determinação para chutar, segundo o Professor, foi Joel, recebendo elogios de muitas crianças.
Somados os pontos, o grupo da esquerda somou mais pontos e a turma da direita,
deitou-se para realizar as flexões de braço. Interessante é que mesmo algumas crianças do Jardim
Gonzaga que estavam na fila da esquerda, fizeram junto com os colegas da outra fila. O Professor falava
que não precisariam, mas o garoto demonstrava querer participar de todas as atividades da aula, não
vendo-a como um “castigo”, e realizou-a como se fosse uma brincadeira.
Em seguida o Professor demonstrou outro chute para eles, o chute “circular”.
Aproveitou para destacar a diferença deste para o chute “frontal”, alertando-os, caso confundissem um
com o outro, que a nota seria “0”. Eles riram e logo ficaram em pé para realizar o “novo” chute.
Lauro enquanto esperou sua vez para chutar, executou alguns chutes antes, para
aperfeiçoar o movimento, e ao chegar sua oportunidade, demonstrou com determinação e força o chute,
recebeu muitos elogios do Professor. Até mesmo Maria participou de toda a aula, realizando todos os
movimentos, sorrindo e brincando com as crianças.
Novamente com os pontos somados, ao comparar os resultados, porém, a fila
“vencedora” foi à outra, e ao começarem a execução das flexões, da mesma forma, algumas crianças do
Jardim Gonzaga no outro grupo, faziam juntos.
Após as flexões, Professor Celso propôs um grande desafio, o de saltar e chutar o
aparador. Demonstrou o chute num aparador (segurado por um aluno) e o outro, colocou no chão do
“tatame”, distante aproximadamente meio metro daquele que segurava. Segundo o Professor, este
aparador localizado no chão não poderia ser tocado (pisando-se ou simplesmente tocando-o com a ponta
dos pés), caso fosse, o chute não seria considerado, eles deveriam saltar sem pisar nele e acertar o outro
aparador enquanto estavam com no ar. Perguntou aos participantes se possuíam alguma dúvida. Ninguém
se manifestou e ele prosseguiu com a proposta, mantendo a mesma seqüência nas filas.
160
Maria comentou comigo achar muito alta a dificuldade para aquele chute, mas foi
incentivada por Liliam, Roberto e Lauro para ao menos tentar. Ela executou o chute e, ao final do mesmo,
escorregou e caiu de costas no “tatame”. Levantou em gargalhada, junto com todo o grupo. Disse não ter
se machucado, rindo da própria situação. Ela não foi à única a cair e tanto as crianças do Dojo, quanto do
Gonzaga, tiveram dificuldades com esse chute, no entanto, demonstravam grande motivação em executá-
lo.
Ao final, o grupo que atingisse menos pontos na soma, deveria fazer 20 polichinelos,
porém, algo surpreendeu ao Professor Celso e eu, quando foram executar os polichinelos, em vez de
apenas uma das filas executar o movimento e algumas crianças do Jardim Gonzaga realizarem juntos, em
poucas repetições, todos os participantes da aula fizeram juntos, numa grande brincadeira, novamente,
sem pensar naquilo como “castigo”. Professor Celso olhou-me e disse: “Eles querem fazer tudo! Tem
uma energia e tanto!” (14) Sorrindo e aproveitando para recolher os aparatos.
Após o exercício, pediu para as crianças do Jardim Gonzaga sentarem-se nas bordas do
“tatame”, para que os outros alunos e alunas da academia, em pé, demonstrassem o primeiro Kata
60
(Heian
61
Shodan) todos juntos e sem contagem para os movimentos. Conforme terminavam o “Kata”,
aprendido durante o período em que o Karateca está na faixa de cor branca
62
, foi solicitando os “Kata”
seguintes e aqueles que não sabiam, poderiam sentar-se nas bordas do “tatame” e assistir a demonstração
com as crianças do Jardim Gonzaga.
No último “Kata”, “Heian Godan”, praticado na faixa de cor verde, ficaram apenas os
dois faixas verdes. Quando terminaram, havia muitos conversando sobre as técnicas que viram e alguns
meninos do Gonzaga (Tomas, Joel e Michael Jackson), ficaram em pé no fundo do Dojo, procurando
reproduzir os movimentos demonstrados (15).
Professor Celso, educadamente, pediu-me para demonstrar um “Kata” diferente para as
crianças. Optei pelo “Kata” chamado “Bassai-dai”
63
, o qual tenho praticado e estudado com mais
dedicação nos últimos anos.
Após a apresentação, perfilamos e sentamos novamente em “seiza”, oportunidade na
qual conversamos um pouco sobre a aula. O Professor perguntou aos meninos e meninas do Gonzaga se
gostaram da aula. Liliam, Joel, Lauro e outros comentaram em voz alta que sim e enfatizaram por meio de
frases como “Gostamos muito!”. Maria também disse ter gostado da aula e elogiou o Professor.
Ele comentou sobre a importância de se praticar Karatê, de não utilizar aqueles golpes
vistos naquela aula, fora do Dojo, evitarem brigas. Argumentou com grande insistência: “Se vocês
puderem sair daqui hoje e lembrar de alguma coisa... de alguma coisa daqui da aula, é que devemos ser
60
“Kata” seria uma combinação de movimentos de defesa, contra-ataques e deslocamentos que se
desenvolvem segundo ordem, ritmo e coordenação precisa e simbolizam um combate real contra vários
adversários (FEDERAÇÃO, 2008).
61
“Hei”= “paz”; “an” = “tranqüilidade”. Assim, “Heian” em japonês é entendido como “paz e
tranqüilidade”, o qual compõe o nome dos cinco primeiros “Kata” praticados pelo estilo Shotokan de
Karatê.
62
No Brasil, a JKA (instituição responsável pela estruturação do ensino do estilo Shotokan de Karatê),
estabeleceu algumas cores para as faixas amarradas ao kimono dos praticantes, as quais servem como
indicativo do estágio em que o praticante encontra-se no aprendizado desta luta. Em ordem crescente, as
cores das faixas são: branco, amarelo, vermelho, laranja, verde, roxo, marrom, preto.
63
“Bassai-Daí” composto pelos ideogramas: “batsu” = “extrair, desobstruir” + “dai” = “grande”, sendo
geralmente traduzido como “penetrar/romper a fortaleza”.
161
‘sempre pessoas de bem’, devemos procurar sempre fazer o bem pras pessoas, ajudar aos outros! Se vocês
saírem daqui e lembrarem só disso, para mim, eu já ganhei meu dia, meu mês, todo o meu ano! Tudo!”.
As crianças demonstraram um olhar de admiração para o professor, seu kimono e a forma como falava
(16), outros ainda ficaram se mexendo e sempre “elétricos”.
O Professor Celso agradeceu-me e elogiou-me pela oficina, atribuindo palavras de
encorajamento a todos os envolvidos, ressaltou a importância da oficina paras pessoas e para o próprio
Karatê. Fiz a reverência em agradecimento aos elogios e aproveitei para agradecê-lo formalmente, bem
como a todo o grupo que ali estava, pela atenção e cuidado em nos receber em seu Dojo. Professor Celso
agradeceu e estendeu o convite para outras possíveis oportunidades.
Após estas palavras, fizemos então os comprimentos finais em “seiza” (com as
reverências iguais ao começo da aula). Ficamos em pé, fizemos outra reverência entre Professor e
Karatecas, finalizando assim com a aula.
Pedi a todos antes de deixarem o “tatame” e o Dojo, que nos posicionássemos e
tirássemos uma foto juntos. Alguns ficaram em pé, outros de joelhos. Maria e eu tentamos organizar os
participantes para que coubéssemos todos na foto.
Os meninos e meninas do Gonzaga ficaram na frente, e não se importaram distante do
grupo de Araraquara (que se encontrava todo sentado e perfilado ao lado do Professor Celso),
demonstravam querer apenas aparecer com destaque na foto. Alguns deles (Jacó, Joel, Roberto e Tomas)
fizeram posturas com as mãos, lembrando armas (17). Pedi para sentarem todos juntos, contudo, não se
importaram e continuaram na frente.
Depois disso, as crianças do Dojo, começaram a se cumprimentar, apertando as mãos e
fazendo simultaneamente uma leve reverência com o tronco e, ao perceberem e aprenderem, as crianças
do Jardim Gonzaga fizeram também o mesmo cumprimento com os outros participantes (18).
Deixamos o “tatame” e fomos para frente do Dojo. Quase todos vieram correndo em
minha direção e perguntaram do lanche (19). Disse-lhes para esperarem até todos estarmos vestidos para
depois lancharmos. Numa correria, todos se vestiram, colocaram seus calçados e blusas, dirigindo-se para
a calçada, fora do Dojo.
Quando estava para sair do Dojo, enquanto despedia-me dos outros Karatecas, olhei
para calçada e lá estavam as crianças do Jardim Gonzaga, com os lanches nas mãos e copinhos de
plástico, próximos a Maria, que distribuía o refrigerante de guaraná. Olhei sorrindo para Maria e disse:
“Já estão atacando!”, e ela respondeu: “Eles estavam quase rasgando a caixa pra pegar o lanche!”, Dei
risada junto com outras crianças que também riram ao ouvir o comentário de Maria.
Ajudei na distribuição dos lanches e refrigerante, a maioria conseguiu repetir o pão com
presunto com queijo e guaraná, e pouco antes de terminarem, o motorista apareceu e encaminhou todos
até o veículo.
Na caminhada até o transporte foi outra correria, sem mencionar o medo dos carros em
alta velocidade na avenida e o risco de atropelamento, quando atravessaram em direção ao motorista.
Maria e eu reunimos o lixo todo dentro de outra caixa, colocamos numa lixeira logo ao
lado do Dojo e entramos no carro para seguir viagem. No caminho, Jacó sentou-se logo atrás de mim, e
ficamos conversando durante a viagem.
162
Ele disse-me que tem um primo em Araraquara, que gostou também da aula e do
Professor. Maria elogiou também o Professor, e aproveitamos para conversamos sobre a organização de
um encontro no Clube da Tecumseh, com o Professor Mauro, com o Jiu Jitsu, e noutra data, um com o
Professor Sebá do Judô.
Organizamos as datas e em momentos distintos, íamos conversando com as crianças
para não colocarem a cabeça pra fora da janela do veículo, bem como para colocarem os cintos de
segurança e permanecerem sentados. Muitos não respeitaram os pedidos e continuavam em pé e
conversando, situação em que negociávamos com eles, relacionado a boa conduta com a permanência da
pessoa nos próximos passeios e encontros (20).
Alguns não chegaram a ouvir os comentários meus ou de Maria e dormiram a maior
parte do caminho, outros cantaram músicas do Corinthians e batucaram nos bancos.
Ao chegarmos a São Carlos, fomos diretamente para ECO. Descemos todos juntos em
frente a Estação e a maioria, quando desceu, já perguntou quando iriam passear novamente. Maria em
risos disse: “Olha ai Professor! Eles mal chegam de um e já querem ir pra outro!”.
Não contive-me e em meio a risos, disse-lhes para na semana seguinte comparecerem a
ECO e pegarem as notificações e autorizações com Maria, pois iríamos conhecer um pouco sobre o Jiu
Jitsu.
Perguntei a Maria se poderíamos fazer a atividade prevista, relacionada a visita (na qual
distribuiria algumas folhas para desenharem ou escreverem sobre o encontro).
Com olhar cauteloso e franco, disse: “Hoje é melhor não! Acho que está um pouco
tarde e é perigoso!”, alertando-me do horário inadequado para ficar por ali. Percebendo a inviabilidade de
ministrar esta atividade naquele dia, combinei com as crianças a possibilidade voltarem na segunda-feira
seguinte, para concluirmos esta tarefa nos mesmo horário dos encontros e eles/elas concordaram.
Despediram-se e seguiram para suas casas. Agradeci ao motorista e a Maria pela ajuda e cuidado, segui
até meu carro, guardei alguns materiais e retornei a minha casa, próximo às 20h30min.
163
Diário de Campo: X
Data: Sábado - 21/06/2008
Período: Manhã – 09:30h às 14:30h
Local: Clube de Campo da Tecumseh – São Carlos (SP)
CONHECENDO O JIU JITSU
Logo pela manhã do sábado, junto com Leandro (Karateca e amigo antigo, o qual se
propôs a auxiliar-me no encontro deste dia), passei na casa de Maria para pegar as autorizações das
crianças que participariam do encontro.
Ao encontrá-la, informou-me que apenas uma das crianças não havia entregue a
autorização e a mãe de Iracema não permitiu sua viagem, sem declarar motivo aparente. Maria disse-me
ter um compromisso em sua academia de Judô pela manhã, no entanto, assim que pudesse, iria ao Clube
da Tecumseh (loca do encontro).
Conferi as autorizações, despedi-me dela e segui para a ECO, por volta de 9h15min. Ao
chegar à ECO, encontrei apenas algumas crianças sentadas nos banquinhos de cimento logo em frente a
estação.
Por um instante, temi a pouca presença das crianças, porém, foi só descer do carro que
todas apareceram, inclusive algumas que não participavam da oficina, desejando passear conosco.
Cumprimentei-as e brinquei com aquelas que se aproximavam. Michael Jackson foi o
primeiro a correr junto com Joel (seu iro) para me abraçar e cumprimentar (1).
Distantes alguns metros, duas ou três demonstravam aos colegas os movimentos
vivenciados do encontro anterior, no Dojo de Karatê, comentando com os colegas aquilo que aprenderam
(2).
Quando fui cumprimentar Liliam, que se aproximava, ela entregou-me sua autorização,
a qual, segundo Maria, estava faltando. Aqueles que encontraram com Leandro, logo conversaram com
ele, perguntando-lhe se era meu amigo e o que fazia ali na ECO. Ele falou sobre nossa amizade antiga, a
prática do Karatê desde a infância, bem como sua participação no encontro do dia.
Guardei as autorizações num envelope, para fins de fiscalização e acompanhamento dos
relatórios.
Minutos após a minha chegada, o motorista apareceu com uma combi, cedida pela
Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social (SMCAS) de São Carlos. Cumprimentei o
motorista e perguntei-lhe quantas crianças caberiam, ele disse-me que no máximo umas 12 crianças.
Naquele momento, olhei assustado para ele, e disse: “Puxa amigo, temos 16 crianças
para irem conosco!”. Ele olhou para as crianças que estavam na frente da ECO, e rindo, disse: “Eles são
pequenos, vamos por dentro da cidade que cabe todo mundo!”.
Com alívio no rosto, agradeci-o e chamei-os pela lista de autorizações. Eles nem sequer
esperaram chamá-los, e tive de observar e preencher a lista com todos já dentro do veículo, gritando e
brigando entre si para sentar neste ou naquele lugar.
164
Conversei e comentei sobre irmos apertados mesmo, pois era rápido e “valeria a pena”
se esforçarem um pouco.
Alguns concordaram e não reclamaram, mas outros como Amanda e Joel continuaram a
reclamar, dizendo não irem apertados e naqueles lugares que sobraram. Disse-lhes que era o único
transporte que possuíamos, se eles não quisessem, não eram obrigados, mas, argumentei: “Vocês vão
perder um passeio muito legal!”. Amanda resmungou um pouco, mas com a insistência das amigas Liliam
e Letícia, ela sentou-se. Joel insistiu um pouco, no entanto percebi que era “manha”, daí disse-lhe: “Olha,
decide logo porque a gente já ta indo! Você vai ficar ou vai com a gente!”. Ele com “cara emburrada”
entrou e sentou-se próximo a Lauro e Roberto, porém, minutos depois já estava brincando com os
colegas, gritando e sacudindo a combi (3).
Com todos embarcados, seguimos o transporte até o Clube da Tecumseh. No caminho,
assim como na viagem anterior, todos ficavam cantando alto “Louco por ti, Coriiiinthians!” ou
“Coriiiinthians!” várias vezes e bem alto.
O motorista olhou-me com risos, ao ouvir a canção sobre o futebol, e começamos a
conversar sobre como seria a visita ao local. Expliquei-lhe da oficina e dos encontros semanais, bem
como dessas visitas que faríamos as academias e locais de prática de lutas. Ele comentou ter viajado no
dia anterior, e se poderia deixar-nos Clube e voltar no final do encontro. Afirmei-lhe não ver problema
algum nisto, tendo como previsão de término do encontro, por volta das 13h00min.
Ele concordou e seguimos no caminho conversando sobre as viagens que ele fazia e
outros assuntos aleatórios. Em diversos momentos, pedia as crianças para não colocarem a cabeça ou os
braços para fora da janela, devido ao risco de acidentes. No momento em que falava em voz alta (devido
ao barulho dos batuques e cantoria, e não de forma agressiva) sobre os braços para fora do veículo, todos
ficavam mais atentos, porém, minutos depois já tínhamos outra criança colocando a cabeça ou as mão
para fora, gritando “Corinthians!”.
Por onde passávamos, as pessoas da rua olhavam e cumprimentavam, acenando com as
mãos, pois a cantoria no interior da combi era enorme, e chamava a atenção dos transeuntes. Alguns
pedestres sorriam, outros não apenas olhavam com atenção.
O caminho até o clube foi longo, localizava-se praticamente do outro lado da cidade,
mas para as crianças, com tanta brincadeira e gritaria dentro do veículo, isto não me pareceu incomodá-
los.
O dia estava muito ensolarado, e o calor intenso, apesar do inverno. Algumas crianças
reclamaram do calor e Lauro chegou a tirar a camiseta do Corinthians e sacudi-la pela janela, pedi então
para vestir-se novamente e agüentasse mais um pouco, pois havia meninas alie era perigoso. Fiz tal
repreensão temendo também que este gesto incentivasse os outros garotos a fazer o mesmo, algo que só
aumentaria o risco de acidentes. Lauro pareceu-me entender bem a solicitação, pois vestiu-se sem
demonstrar ressentimento, voltando inclusive a cantar junto aos colegas (4).
Seguimos a viagem e, chegando ao clube, o motorista estacionou próximo a entrada,
descemos todos e aguardamos um pouco, a chegada do Professor Mauro. O motorista combinou comigo
sobre o horário de retorno com as crianças e foi embora.
165
Aproveitei e pedi auxilio ao Leandro para ficar junto as crianças enquanto conversava
na portaria e perguntava sobre o Professor Mauro. O porteiro disse-me ele chegaria em breve e
poderíamos espera-lo dentro das dependências do clube. Chamei todas as crianças e entramos todos
juntos.
Logo após passarmos pelos portões, os meninos perceberam um grupo de adultos
jogando futebol num campo próximo. Vieram no mesmo instante me perguntar se iriam jogar futebol,
quando alertei-lhes sobre o motivo da visita, destacando a aula de Jiu Jitsu com o Professor Mauro,
alertando-os de que jogar futebol não era o objetivo daquela visita. Tomas e Moisés reclamaram, saíram
correndo e sentaram-se para observar o jogo de futebol.
As outras passearam pelo Clube, que possuía um enorme espaço verde e um parquinho
com brinquedos, como balanço, gangorra, casa com ponte de madeira, tanquinho de areia, trepa-trepa,
argolas, dentre outros.
Passamos também por uma área de convivência, onde havia quiosques e um bar. Ali,
começaram a perguntar sobre o lanche. Tomas, Joel e Letícia perguntaram mais de duas vezes em pouco
menos de 20 minutos (5).
Ao nos aproximarmos da piscina, foi a maior correria. Tomas, Moisés, Roberto, Liliam,
Lauro vieram correndo e pediram para entrar na piscina. Disse-lhes que não tínhamos autorização para
entrar ali, e alertei para não pularem na piscina sem autorização, pois isso causaria muitos problemas para
nós, e até mesmo nos proibiriam de visitar o local.
Chamei o salva-vidas do clube e comentei sobre a piscina e a visita das crianças.
Educadamente, disse-me não ser possível, entretanto, orientou-me a encaminhar um ofício a diretoria do
clube, podendo agendar uma futura visita e atividade no parque aquático.
No início fiquei grande receio e medo que eles pulassem na piscina, e de tempos em
tempos observava e, quando necessário, chamava a atenção daqueles que ameaçavam pular ou jogar o
colega na água.
O mesmo salva-vidas vindo até mim, ofereceu um saco de bolas de futebol vazias,
argumentando não servirem mais para o clube, porém, poderíamos reutilizá-las, sendo que, segundo ele,
muitas ainda estavam em boas condições de uso.
Agradeci a oferta e, no mesmo instante, ele acrescentou: “Imagina professor, tem mais 2
sacos ali para levar!”. Surpreso, agradeci novamente, recolhi os sacos e levei-os até o meu carro, que
havia sido guiado por Leandro.
Após uns 40 minutos, chegou o Professor Mauro, o qual conduziu-nos até a sala onde
ministra as aulas de Jiu Jitsu no clube. Tratava-se de uma sala com aproximadamente 10 metros
quadrados, limpa, com tatame e espelhos disponíveis. Ficava ao lado de um outro salão, no qual havia
aparelhos de ginástica e musculação para os funcionários da indústria.
Ao chegarmos em frente a porta da sala, no momento em que pensei em alerta-los sobre
os calçados, Michael Jackson perguntou: “Aqui também tem que tira o tênis, né Professor?”, lembrando-
se do encontro no Dojo de Karatê com o Professor Celso, na qual tiveram o mesmo procedimento. Olhei
com sorriso para Michael Jackson, aproveitei a oportunidade e disse a todos: “É isso mesmo pessoal, pra
entrar na sala temos que tirar o sapato!” (6).
166
Amanda fez um pouco de “manha” para entrar na sala, pois queria continuar brincando
no parque com as colegas, mas ao ver as mesmas entrando na sala, correndo, virando estrelas e pulando,
tirou os sapatos e entrou na brincadeira.
Alguns minutos depois chegaram cinco alunos do Professor Mauro, assustados com
tanta gente no local e com a correria e agitação das crianças do Jardim Gonzaga.
André juntou-se ao grupo de alunos do Jiu Jitsu, perguntou-lhes sobre as aulas, sobre o
clube, onde moravam, dentre outros assuntos.
O Professor Mauro pediu para sentarem ao fundo da sala para conversarmos sobre o
encontro do dia. Propôs então a apresentação dos nomes dos participantes individualmente.
No final da apresentação, aproveitei e agradeci a presença do grupo no clube e na aula
daquele dia. O Professor comentou ver este encontro como importante, pois eles conheceriam um pouco
do Jiu Jitsu, mas também ensinariam um pouco do Karatê.
Sorrindo, ele aproveitou a atenção de todos e pediu para ficarem em pé e formarem
duplas, solicitou que misturassem os integrantes dos dois grupos (Jiu Jitsu e Gonzaga), escolhendo
preferencialmente pessoas que tivessem a mesma altura, para facilitar o aprendizado, depois poderiam
trocar de duplas a vontade.
O Professor falou sobre alguns golpes do Jiu Jitsu serem muito parecidos ou iguais aos
do Judô e demonstrou comigo uma técnica chamada de “O-soto-gari”
64
, na qual, por exemplo, os
integrantes da dupla, frente a frente, seguram com uma das mãos a gola do kimono ou da camiseta, e com
a outra mão, a manga do kimono ou o antebraço do colega, em seguida, aproxima-se e posiciona o pé
esquerdo na lateral externa do pé direito do outro colega, e com sua perna direita posicionada atrás da
perna direita daquele que é agarrado, ele desequilibra-o e o projeta ao solo.
O professor comenta sobre o desequilíbrio no Jiu Jitsu e no Judô, alertando sobre o
cuidado na execução, pedindo para não derrubarem com força o colega da dupla, para não se
machucarem.
Já em duplas, eles procuraram vivenciar os movimentos. Observei em várias duplas,
quando um dos colegas não conseguia executar o movimento, como Amanda e Moisés, por exemplo,
Moisés ensinou-a como faria o movimento e, Amanda após servir de modelo para ele, procurava fazer o
mesmo movimento em seu irmão (7).
Joel estava muito entusiasmado, e ia rapidamente aplicando os movimentos em seus
colegas. Momentos depois ele seguiu trocando de duplas com os alunos do Professor Mauro, procurou
interagir com os mesmos.
Percebi também um grande envolvimento e aprendizado entre André e os alunos do
Professor, pois, detalhadamente, eles demonstravam e comentavam os movimentos com André, inclusive
noutro instante, notei-os ensinando-o golpes diferentes da aula, ilustrando um pouco mais do Jiu Jitsu
para ele (8).
64
“O-soto-gari” tecnicamente no judô, traduz-se pelo japonês como “grande varredura exterior”.
(GRECO e VIANA, 1997, p.38)
167
O Professor pediu novamente a atenção de todos e demonstrou-lhes outro golpe, para
que fizessem em duplas, o “Uki-goshi”
65
, uma projeção da outra pessoa utilizando os quadris
diferentemente da técnica anterior.
Algumas crianças disseram-me: “Eu sei fazer isso Professor!” e demonstravam em
seguida junto ao colega. Lauro, Moisés, Roberto e Tomas desafiavam entre si, quem conseguiria derrubar
o outro, fazendo pequenas “lutinhas” entre eles. Percebendo isso, pedi para interromperem a brincadeira,
temendo machucarem-se, caso caíssem sobre outros colegas que participavam da aula.
Noutro canto da sala, Liliam ensinava sua irmã Gisele a derrubá-la com os golpes
aprendidos com o Professor, mas ficava nervosa quando sua irmã não conseguia executa-los, e repetia-os
várias vezes. Apenas observei, sem interromper ou intervir, exceto quando fui chamado pelas próprias
crianças. Por exemplo, quando Amanda e Letícia pediram-me para corrigir o movimento, argumentando
não saberem, pedi-lhes que demonstrassem o que haviam aprendido. Amanda segurou Letícia pelos
braços e executou perfeitamente o movimento, apresentou apenas receio de errar. Ao ver a técnica
corretamente realizada por Amanda e a felicidade dela ao ouvir que estava correto aquilo que aprendeu,
incentivei-a a compartilhar aquilo com Letícia, ensinando-a também.
Observei Amanda orientando Letícia na execução da técnica, porém, Letícia apresentou
pouca paciência e reclamava da colega. Intercedi, dizendo a Letícia que muitos estavam ali para aprender,
e se ela não sabia, poderia e deveria aprender junto aos outros. Busquei incentivá-las a continuar
praticando com outras colegas e Liliam apareceu, pediu para fazer com Letícia, que trocou de dupla
naquele instante. Amanda voltou a fazer com Moisés e a atividade continuou (9).
O Professor Mauro pediu para que fizéssemos um pouco de Karatê com as crianças, no
qual demonstraríamos alguns movimentos. Solicitei a todos que se espalhassem pelo tatame e ficassem de
frente para o espelho, aproveitando melhor o espaço.
Perguntei as crianças do Jardim Gonzaga quais movimentos do Karatê haviam
aprendido e gostariam de ensinar para os colegas aquele dia. Tomas demonstrou o chute frontal,
lembrando do encontro em Araraquara (10). Propus que realizássemos aquele chute, repetindo-o várias
vezes.
Ao iniciar a contagem em japonês dos movimentos (“ichi”, “ni”, “san”, etc.), elas
também contaram em voz alta junto comigo, chutando e demonstrando o chute para os colegas do Jiu
Jitsu.
Depois de vários chutes, perguntei sobre outro movimento que desejariam ensinar, e
Lauro demonstrou um chute saltando e Roberto o chute circular (11). Devido ao pouco espaço, combinei
com elas o chute circular, contando e falando em voz alta. Enquanto chutavam, andei entre elas e
incentivava-os na execução do movimento.
Amanda estava sentada num canto, e perguntei-lhe por que não participava da aula.
Disse-me estar com fome e não querer brincar. Pedi para esperar um pouco mais, pois faríamos o lanche
logo em seguida. Entretanto, Letícia aproximou-se e também perguntou sobre o lanche, alegando o
65
“Uki” = “flutuar”; “koshi”/“goshi” = “quadril”. Assim, “Uki-goshi” pode ser entendido como “quadril
flutuante” (JUDO FORUM, 2008)
168
mesmo motivo: fome. Amanda fez uma pouco de manha e permaneceu sentada, recusando-se a continuar
a aula (12).
O Professor Mauro pediu-me para continuar sozinho as atividades com as crianças para
que pudessem organizar o lanche no quiosque do clube. Leandro seguiu com o Professor para auxiliá-lo, e
ambos saíram da sala em direção ao quiosque.
Naquele mesmo instante, Maria apareceu na sala para o encontro, e isso contribuiu
muito para a atividade com as crianças.
Perguntei a todas as crianças se elas conheciam algum soco, e os Roberto e Liliam
fizeram o soco frontal do Karatê. Tomas lembrou dos encontros anteriores em 2007 do soco e comentou
alguns detalhes do mesmo com os colegas. Os alunos do Jiu Jitsu fizeram os movimentos e, mostravam-
se motivados em demonstrá-los, quando passava para observá-los (13).
Depois de alguns minutos, Jaqueline, Amanda, Gisele, Jacó e Lauro vieram todos juntos
pedir para tomar água, e vendo a grande quantidade de crianças, resolvi abrir um intervalo para a água,
pedindo que voltarem em seguida.
Acompanhei-as até o banheiro e fui conversando com alguns, e Jacó perguntou-me
sobre o lanche, dizendo estar com muita fome e não ter comido nada. Disse-lhe para esperar mais alguns
minutos que já teríamos o lanche (14).
Ao retornarmos a sala, pedi para todos sentarem em roda, para conversarmos um pouco.
Agradeci a oportunidade de estarmos ali no clube, agradeci aos alunos do Professor. Mauro e também a
Maria, ali presente. Comentei com eles sobre a oficina, convidei-os anos visitar, conhecer a ECO e os
demais os projetos de lá.
Vendo a euforia que estavam pelo lanche, com Amanda e Letícia perguntando
novamente sobre isto, solicitei a todos que lavassem as mãos e fossem para o quiosque com a Maria (15).
A correria começou e logo saíram correndo para o quiosque. As meninas caminharam
de mãos dadas, comigo e com Maria (16). Chegando lá, estavam todos sentados em cadeiras e mesas de
plástico num belo quiosque do clube.
Ajudei o Professor Mauro, Maria e Leandro na distribuição dos salgados (coxinha,
esfiha e bolinho de queijo) separados todos em saquinhos de papel, e para beber, havia refrigerante de
guaraná.
A maioria sentou-se em grupos conhecidos, apenas André preferiu sentar-se com os
alunos do Professor Mauro, conversando numa das mesas.
Os salgados haviam sido providenciados como cortesia pelo próprio Professor Mauro e,
os refrigerantes por mim.
Alguns repetiram o lanche e muitos até levaram um pouco de refrigerante para casa.
Recolhemos o lixo e caminhamos juntos até a portaria do clube.
No caminho até a saída do clube, Tomas começou a brigar com Roberto e logo chamei
sua atenção. Alertei-o sobre sua conduta e, caso não pedisse desculpas e aquilo se repetisse, não
participaria das próximas visitas com outros grupos. Ele ficou impaciente, demonstrou estar bravo,
andando com passos largos e fortes para longe do grupo, e parou a briga. Roberto, não se manifestou e
permaneceu quieto (17).
169
Durante o trajeto até a portaria, André recebeu o convite do Professor Mauro para
participar das aulas no clube se desejasse, pois tinha idade para treinar com os mais velhos e o Professor
gostou de seu desempenho na aula (18).
André disse-me estar muito feliz, perguntou-me o que achava do convite e do Professor.
Contente também com a notícia do convite, incentivei-o a aproveitar esta oportunidade. Motivado, André
disse-me que pedirá autorização de sua mãe para participar das aulas, caminhou até seus colegas do
Gonzaga e comentava com eles o convite, sorrindo ao falar.
Ao chegarmos à frente do clube, encontramo-nos com o motorista já nos esperando.
Agradeci o Professor Mauro e seus alunos novamente. Entramos na combi e seguimos para a ECO.
No trajeto, foi a mesma cantoria sobre o Corinthians. E num determinando momento,
iniciei uma conversa com eles sobre o encontro. Perguntei-lhes se gostaram ou não, e Jacó disse que sim,
e Lauro, Roberto, Tomas, Moisés e André pediram para retornar ao clube mais vezes, especialmente para
jogar bola e nadar na piscina. Disse-lhes sobre esta possibilidade num próximo semestre.
Liliam e Gisele ficaram o tempo todo colocando a cabeça e os braços para fora da
combi e, constantemente, chamei-lhes a atenção. Muito batuque e gritaria no caminho, e por onde
passávamos, as pessoas olhavam. Era a “combi do Gonzaga” passando, alegria e sorrisos eram tirados dos
transeuntes.
Chegamos e descemos todos em frente à ECO. Os meninos perguntaram: “Cadê as
bolas de futebol, Professor?”. Eu sorria e brincava, dizendo: “Mas não tem bola de futebol, nós fomos
aprender um pouco de Jiu Jitsu!”. Eles ficaram nervosos e com manha, diziam: “O loco professor! Dá as
bolas aí!”.
Brincando com eles, abri o porta-malas do carro e distribui as bolas, sendo que ainda
sobrou um saco cheio delas para deixar na ECO com a Maria. Pedi a todos que voltassem na segunda
feira, para o encontro de Capoeira com o Professor Adan, às 16h00min.
Despedi-me de todas as crianças, agradeci ao motorista e retornei a minha casa
aproximadamente às 14h00min.
170
Diário de Campo: XI
Data: Segunda-feira - 23/06/2008
Período: Tarde – 16:00h às 18:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
A VIVÊNCIA EM CAPOEIRA
Por volta de 16h00min, o Professor Adan e eu chegamos a ECO, e ao descermos do
carro, logo vieram as crianças nos receberem. Liliam chegou e abraçou-me com força (1)
.
Ao ver Adan e sua roupa, característica de quem faz capoeira, perguntou-me se ele era o
Professor de Capoeira. Disse-lhe que sim e aproveitei para apresentar o Professor Adan a ela e as outras
crianças que foram chegando.
Liliam e Amanda ofereceram-se para carregar o material da aula: berimbau, pandeiro,
etc. e o Professor Adan pedia-lhes cuidado ao carregá-los, com um medo especial relacionado a “cabaça”
do berimbau, que segundo ele era frágil. Amanda ficou com o pandeiro e, metros depois, Lauro pediu-lhe
para segurar o mesmo, e saiu tocando e pulando com o pandeiro entre os colegas.
Logo na entrada, alguns moradores perguntaram ao Professor Adan se ele era “mestre”
de capoeira. Ele sorriu e disse que iria apenas ministrar uma vivência as crianças do bairro. Os três
homens adultos que estavam sentados no banco de cimento comentaram praticar capoeira há anos, e ao
serem questionados pelo Professor Adan sobre o local de prática, disseram que às vezes praticavam ali no
bairro ou nas proximidades com outros grupos. O Professor Adan sorriu e disse que também gostava
muito da capoeira e praticava em Araraquara, também integrando um grupo chamado “Aracoara”.
Despedimo-nos dos moradores e seguimos para a quadra. No pátio próximo a quadra,
cumprimentamos Maria e as outras crianças que estavam terminando o seu lanche, um pão com geléia e
suco.
Muitos se aproximavam e queriam ou tocar o berimbau ou então o pandeiro. Professor
Adan brincava e demonstrava como tocar o pandeiro, mas mantinha o berimbau guardado, devido ao
cuidado com a cabaça.
Após terminarem o lanche, coletei os instrumentos e os materiais solicitados pelo
Professor (bambolê, aparelho de som, giz e barbante), deixando-os a sua disposição, caso precisasse.
Reunimos todas as crianças no centro da quadra e iniciamos o encontro.
Neste dia estavam presentes muitas crianças, e a maioria não participavam dos
encontros semanais. Maria perguntou-me se eles e elas poderiam participar neste dia, e estendi o pedido
ao Professor Adan, pois não possuía a noção do número de participantes que ele havia estimado. Ele
concordou sem pestanejar e fizemos uma grande roda no centro da quadra com todos de mãos dadas.
Sentados, pedi a atenção de todos e apresentei-lhes o Professor Adan, agradecendo-o da
presença e oportunidade.
A atenção destinada aos instrumentos musicais era muito grande, chegando, em alguns
momentos, a atrapalhar o andamento da vivência, o que levou o Professor Adan a pedir o instrumento e
171
entrega-lo a mim, para evitar conflitos pela posse do mesmo entre os participantes, ou que atrapalhassem
o desenvolvimento da aula (2).
Ele apresentou-se ao grupo e pediu para que também o fizessem. A partir daí, começou
perguntando quem ali já havia praticado capoeira. O mero de respostas positivas foi enorme, tanto de
meninos, quanto meninas. Especialmente entre os mais velhos. Inclusive citaram parentes (irmãos, irmãs,
primos, etc.) já terem praticado.
Um garoto presente, de aproximadamente 13 anos, não integrante da oficina de
intervenção com as lutas, disse-nos praticar atualmente capoeira num grupo perto do bairro, e o Professor
Adan, sorriu e mostrou-se feliz em saber disto.
Feitas as apresentações, iniciou uma conversa sobre a história da capoeira e suas
origens. Ao serem questionadas sobre a origem, algumas disseram de imediato: “Brasileira!”, outros:
“Africana!”. Professor Adan discutiu a origem, indicando a preferência por uma origem “afro-brasileira”,
e aproveitou para perguntar sobre as descendências dos integrantes.
Alguns disseram: “Baiano! Meu pai é baiano!”, outros “Meu vô era intaliano!”, e num
canto, Roberto disse: “Eu sô de africano! Eu sô pretim!”, rindo com os colegas.
O Professor Adan aproveitou-se do comentário e falou da vinda dos negros africanos ao
Brasil e as relações com a origem da capoeira, perguntando se alguém ali sabia o que eram os
“quilombos”. Surpreendentemente, Roberto disse: “Quilombo é o Zumbi
66
!”.
Professor Adan e eu ficamos surpresos com a fala de Roberto, e questionado sobre
quem foi Zumbi, Roberto dava risadas e dizia: O Zumbi era um zumbi!”, brincando com o nome do
mesmo. O Professor voltou a insistir na pergunta sobre quem havia sido Zumbi para Roberto, mas ele
disse que não sabia, que lembrou apenas por ter ouvido seu nome nas aulas da escola.
Ele perguntou se alguém ali sabia o que era “senzala”, e Lauro e Roberto, quase
simultaneamente, disseram: “Cadeia! Era uma cadeia!”. Professor Adan concordou e então descreveu a
“senzala” como sendo o local onde antigamente se mantinham presos os negros. Comentou sobre a
origem dos quilombos e os movimentos de resistência dos negros no Brasil e suas relações com a origem
da capoeira (3).
A partir daí, propôs uma brincadeira, a qual deu o nome de “Quilombo”. Nesta
brincadeira, algumas crianças ficariam “presas” dentro do círculo central da quadra, chamado de
“senzala”, agachados e com os antebraços encostados na testa, num movimento similar ao de capoeira.
Um outro número de crianças ficariam livres, espalhadas no restante da quadra podendo
correr livremente, devendo soltar aqueles que estivessem na “presos na senzala”. Aqueles que estivessem
soltos, poderiam ser “presos” pelo “pegador”, nomeado na brincadeira pelo Professor como “Capitão do
Mato”, oportunidade na qual ele descreveu quem era o “Capitão do Mato” no Brasil colonial.
Elas já eufóricas, corriam de um lado para o outro e a brincadeira se iniciava. Foi um
corre-corre, muitos sorrisos e gargalhadas, uma brincadeira com muita alegria.
Depois de alguns minutos o Professor Adan solicitou os bambolês e foi espalhando-os
pelo local. Modificou a brincadeira, propondo que os bambolês seriam os “quilombos” e agora, as
66
Zumbi foi um dos principais representantes da resistência negra à escravidão no período colonial
brasileiro (SUA PESQUISA, 2008)
172
pessoas que não estivessem “presas na senzala”, no centro da quadra, poderiam fugir ou ficar dentro dos
bambolês (“quilombos”), agachadas igual estavam dentro da “senzala”, na posição da capoeira, sem
serem “presos” pelo “Capitão do Mato”. Apenas uma pessoa por vez poderia ocupar o “quilombo”
(bambolê). Quando uma pessoa “livre” saísse do “quilombo”, outra poderia ocupá-lo e aqueles que
estavam “soltos”/”livres” deveriam teriam como objetivo, “soltar”/”livrar” os que estavam “presos”. Para
isto, deveriam realizar um chute circular com a perna estendida no ar, por cima da cabeça daquele que
estivesse “agachado”/“preso”, “libertando-o”.
Depois da descrição da brincadeira, ela iniciou-se. Uma correria e diversão entre os
participantes foi visível, pois não ficou ninguém parado. Maria teve de ir embora e não pode participar de
toda aula neste dia, deixou todo o material organizado e foi embora.
Na brincadeira, observei quem parecia não ter entendido seu funcionamento, aprendia
rapidamente com o colega durante o próprio ato de brincar, quando Gisele não soube como “soltar”
Jaqueline, Michael Jackson passou correndo e disse: “Assim ó!”, e demonstrou o movimento das pernas
rapidamente, retornando rapidamente a um dos “quilombos”, continuando a brincadeira (4).
Depois disso, foi a mesma brincadeira, porém com outra modificação feita pelo
Professor. Retiraram-se os bambolês, e com todos correndo pela quadra, aqueles que fossem “pegos”
deveriam apenas ficar agachados e parados, esperando serem “soltos” pelos outros, os quais deveriam
fugir do “fugir” do “Capitão do Mato”.
Em determinados momentos, para dinamizar a brincadeira, o Professor Adan escolheu
mais de uma criança (menino ou menina) para ser o “Capitão do Mato”, dando oportunidade para as
crianças participarem em diferentes papéis na atividade. A
pós alguns minutos, fizemos uma roda no centro da quadra em pé para a próxima
atividade, nela o Professor perguntou se alguém sabia “gingar” e a maioria saiu andando e gingando,
quando o Professor Adan, aproveitou para propor a “ginga” no ritmo do berimbau. Ele tocava e as
crianças iam procurando “gingar” espalhadas pela quadra (5).
Depois de alguns instantes, o Professor propôs um tipo de brincadeira que nos remete ao
“duro-mole” ou “estátua”, só que no ritmo do berimbau. Enquanto ele tocasse, gingariam em seu lugar,
quando ele parasse repentinamente, todos deveriam agachar e colocar um dos antebraços apoiados sobre a
testa.
O ritmo aumentava e diminuía, e muitos davam gargalhadas quando erravam ou viam
alguém se perder na música.
A brincadeira prosseguiu por aproximadamente 10 minutos, quando Professor Adan
reuniu novamente os participantes no centro da quadra, para conversar sobre os instrumentos musicais
utilizados na capoeira.
Apresentou o pandeiro e demonstrou uma forma de tocá-lo. Pediu para cada pessoa
tocá-lo um pouco e depois passá-lo para o colega ao lado.
O primeiro a tocar foi Lauro, o qual apresentou uma grande afinidade com o
instrumento e demonstrava sorrisos e um olhar entusiasmado enquanto tocava. Foi com certa dificuldade
que Roberto pegou o pandeiro das mãos de Lauro, pois este não queria soltá-lo, mas entendo a atividade,
entregou-o ao colega.
173
Roberto ficou tímido e aplicou apenas algumas batidas no instrumento, arriscando o
ritmo de capoeira demonstrado pelo Professor e, em seguida, passou-o ao próximo participante. O
Professor atribuía elogios as crianças quando demonstravam entusiasmo em tocar o pandeiro, e não
necessariamente relacionados a performance com o instrumento ou seu ritmo, mas sim, motivando-as a se
relacionar com a musicalidade da capoeira (6). Alguns ficaram tímidos, outros simplesmente disseram
não querer tocá-lo, como Amanda e Letícia.
Ao completar a roda, o Professor apresentou o berimbau e os materiais que o
compunham
67
, demonstrando um ritmo de toque e ensinando algumas cantigas utilizadas nas rodas de
capoeira. Dentre elas, a mais cantada pelas crianças foi à cantiga nomeada chamada pelo Professor como:
“Moleque é tu”, na qual ele dizia: “Olha tu que é moleque” e as crianças respondiam: ”Moleque é tu”, e
ele voltava a perguntar: “Mas é tu que é moleque”, e novamente elas respondiam: “Moleque é tu”,
gerando risos e gargalhadas entre os participantes, quando o professor cantava e dirigia a pergunta da
cantiga a uma pessoa em específico, procurando motivá-la a cantar e participar da roda (7).
Quando conseguimos acompanhar o ritmo da cantiga, o professor demonstrou o ritmo
das palmas, e em seguida, introduziu o toque do pandeiro, o qual trocava entre as crianças a todo o
momento, sem interromper o canto, para elas tocarem da forma como desejassem, sem obrigação de
seguir o ritmo do berimbau ou da cantiga entoada pelo Professor. Ele cantava e olhava para todos com
atenção, buscava motivá-los a tocar e cantar.
Quando chegou a vez de Michael Jackson tocar o pandeiro, ele tentou duas ou três
vezes o ritmo da música e, ao ver sua dificuldade, Joel, procurou ensinar o irmão, demonstrar como tocá-
lo, demonstrando-o como se faz. Michael Jackson olhou-me e disse: “É difícil! Professor!”, rindo e
observando o irmão. A atividade seguiu até que todos tentaram tocá-lo (8).
Professor Adan ofereceu o berimbau para que os interessados tentassem tocá-lo, mas
deveriam fazê-lo próximo a ele, devido aos cuidados com a cabaça.
Lauro foi o primeiro a tentar tocá-lo e, ao demonstrar dificuldade, resolveu passar a vez
para Roberto, o qual não se preocupou com o ritmo ou dificuldade, apenas segurou-o e bateu com muita
energia, sorrindo e brincando com os colegas a sua volta.
Joel foi o seguinte, ao se aproximar, olhos abertos e vidrados no Professor, que antes de
passar a ele, demonstrou novamente o ritmo da cantiga que entoavam. Joel cuidadosamente tentou
segurar o berimbau e procurou tocá-lo no ritmo demonstrado pelo Professor, sendo que o próprio
instrumento media quase a sua altura, algo que dificultava o equilíbrio inicial, e entre balanços e risadas,
Joel com entusiasmo, tocou por um tempo o berimbau, sorriu e devolveu-o ao Professor, que em seguida,
passou a outra criança (9).
Ao ver o ritmo das palmas e a música sendo cantada por todos, Professor Adan propôs
uma outra atividade no centro da quadra, na qual as crianças formariam duas grandes filas, frente a frente,
posicionadas nas bordas do círculo central da mesma. Com o Professor também posicionado nas bordas
67
O berimbau é constituído por um arco de madeira, medindo geralmente 1,20m. Um fio de aço (arame)
preso nas extremidades da vara. Em uma das extremidades do arco é fixada uma cabaça que funciona
como uma caixa de ressonância. Utilizam-se geralmente uma pedra ou moeda (dobrão), a vareta e o
caxixi (cestos entrelaçados de folhas, geralmente de junco, preenchidos com pequenas contas, conchas,
pedras ou feijões e, por serem feitos à mão eles existem em vários formatos e tamanhos) para produzir os
sons no berimbau (PORTAL CAPOEIRA, 2008).
174
deste círculo, com o berimbau em mãos, pediu para tentarmos realizar em duplas algum movimento livre,
como se estivéssemos numa roda de capoeira.
Ao demonstrar o movimento, os integrantes da dupla deveriam retornar ao final de sua
respectiva a fila, seguindo a ordem e assistindo a demonstração dos outros colegas. Para aqueles que não
lembrassem ou soubessem nenhum movimento da capoeira, o Professor indicou o movimento conhecido
com “aú” ou “estrela”, uma espécie de movimento acrobático no qual o indivíduo apóia-se
sequencialmente sobre os braços e realiza uma rotação lateral completa com as pernas afastadas e
estendidas, lembrando ao animal marinho de nome “estrela-do-mar”.
Aqueles que soubessem algum movimento da capoeira, poderiam escolhe-lo livremente
e executá-lo. Jaqueline e Letícia foram as primeiras e com o toque inicial do professor, saíram
demonstrando a “estrela”, sorrindo e brincando com as colegas, que em seguida também fizeram o
mesmo movimento.
Ao chegar na vez de Lauro e Joel, o Professor Adan incentivou-os a fazer o movimento
que desejassem, e Lauro, demonstrando uma experiência anterior na prática da capoeira, gingou e
executou dois movimentos acrobáticos que surpreenderam a todos, ficando de ponta-cabeça e
equilibrando-se por alguns segundos, gerando elogios e admiração dos colegas até do Professor Adan, o
qual observava e tecia comentários e elogios as demonstrações das crianças, incentivando-os a sentirem-
se livres nas escolhas dos movimentos (10).
Ao observar todo grupo, percebo no cantinho da fila, Jacó treinando o movimento de
equilibrar-se sobre os braços e ficar parado com as pernas e os pés estendidos e apontados para cima,
procurando praticar para depois demonstrar para o grupo, incentivado pelo Professor e pela demonstração
de Lauro (11).
Amanda estava logo atrás de mim na fila, e falou as colegas ao seu lado: “Eu não vô
fazer estrela! Eu tenho medo!”. Ao ouvi-la, disse-lhe: “Ué, mas no Clube da Tecumseh você mesma virou
pra mim e mostrou a ‘estrela’ no ‘tatame’, quando a gente tava lá? Você não lembra?”. Ela com um
sorriso maroto, brincou comigo e disse manhosamente: “Ah professor, mas eu tenho medo!” E voltei a
insistir: “Ah Amanda! Pára de ser ‘cricri’ que eu sei que você sabe fazer “estrela”! Você tá é fazendo
“manha”!”. Enquanto falava, fazia cócegas nela, brincando com e satirizando a manha que sempre fazia
nas aulas.
Ela riu e seguiu na fila, até chegar sua vez, quando demonstrou a “estrela”, dando
risadas e olhando pra mim com a língua pra fora, brincando comigo. Em risos, também mostrei-lhe a
língua e continuamos a rir e participar juntos da atividade (12).
Quando fui demonstrar a “estrela”, minha companheira de dupla foi Lívia, que
improvisou o movimento da “estrela” e, após isso, saiu correndo próximo a sua amiga e disse: “Eu quase
consegui! Você viu?”, comentando ter aprendido o movimento naquele instante (13).
Michael Jackson e Joel aproximaram-se de mim e pediram para sair mais cedo, pois
teriam de buscar o irmão mais novo na escola a pedido de seu pai. Despediram-se e saíram da aula (14).
Durante a música, íamos batendo palmas e seguindo o ritmo do berimbau tocado pelo Professor.
Aproximadamente uns 15 minutos depois, formamos uma grande roda no centro da quadra, para
conversarmos sobre o encontro do dia.
175
Professor Adan perguntou-lhes se gostaram da aula e Lauro manifestou-se, pedindo ao
Professor que voltasse noutros dias e Roberto e Tomas ficavam ao fundo brincando e gingando capoeira.
Devido ao horário e ao compromisso posterior que o Professor Adan teria, agradeci sua
presença e a oportunidade de vivenciarmos a capoeira.
Como não havia conseguido apoio externo a oficina para oferecer lanche às crianças no
encontro deste dia, ficamos sem a refeição após este encontro, algo ruim, pois a primeira coisa que Tomas
e Roberto, após a conversa final, foi se teríamos lanche (15). Disse-lhes o motivo e comprometi-me com
o grupo a providenciar tudo para o próximo encontro, o qual seria na quinta-feira seguinte, na academia
de Judô freqüentada pela Maria.
Ao passar o recado e falar sobre irmos a pé, algumas crianças fizeram “manha”, dizendo
não participar neste dia se tivessem que caminhar até o local. Amanda e Letícia ressaltaram e voz alta
para mim, e então argumentei: “Vocês vão perder uma oportunidade muito boa de conhecer o Judô e a
academia da Maria! Se vocês não querem ir, não tem problema, mas avisem a Maria para ela liberar a
lista para outros participantes!”. Ao tocar no assunto de “liberar a lista“ elas olharam-me com surpresa, e
responderam: “Não Professor, a gente vai sim!”. E vendo a “manha” das duas, disse-lhes com sorriso:
“Mas vocês são ‘manhosas’ ein!”. E elas brincando disseram: “O loco professor!”, rindo da conversa
(16).
No caminho até a frente da ECO com o Professor Adan, muitas crianças rodeavam-no,
relatando suas experiências anteriores com a capoeira no bairro ou nas comunidades vizinhas,
perguntando-lhe sobre sua experiência, onde o professor havia iniciado as aulas em Araraquara, enfim,
sobre a história do Professor com a capoeira.
Ele respondia com atenção e enquanto caminhava até o carro, recebeu novamente o
convite das próprias crianças para retornar a ECO noutra oportunidade.
Despedimo-nos dele, o qual seguiu com seu carro para outro compromisso na
universidade. Aproveitei o grupo formado em frente a ECO para relembrá-los do encontro na academia
de Judô na mesma semana, na quinta-feira, dia 26 de junho. Despedi-me das crianças e fui para minha
casa, por volta das 17h40min.
176
Diário de Campo: XII
Data: Quinta-feira - 26/06/2008
Período: Tarde – 15:30h às 18:00h
Local: Academia de Judô "Fábrica dos Campeões” – São Carlos/SP
A CAMINHADA PARA O JUDÔ
Logo no início da tarde, após organizar o lanche das crianças para o dia, segui de carro
até a ECO.
Ao chegar lá, por volta das 15h00min, muitas crianças que participavam da oficina
anterior, ao me verem, saíram correndo em minha direção e gritando meu nome, abraçaram-me e
perguntaram sobre o passeio do dia (1).
Não consegui responder direto a Michael Jackson e Tomas, pois fiquei envergonhado ao
ter atrapalhado o projeto do Professor de vôlei pela gritaria e correria das crianças ao me verem.
Desculpei-me, com o Professor e falei então a Michael Jackson e Tomas sobre a visita na academia de
Judô, na qual Maria freqüentava as aulas.
Ansiosos e já habituados a trazer as autorizações requisitadas pela oficina para
participar dos encontros fora da ECO, disseram: “Professor, eu já entreguei a autorização pra Maria, eu
vou né?”. Dizia-lhes que sim, e para voltarem a aula do Professor de vôlei, pois não era legal eles saírem
daquela aula sem autorização dele.
Tomas disse-me: “Então tá, Professor! Mas que hora que a gente vai?”, respondi-lhe:
“Às três e meia a gente se reuni aqui no ‘caracol’
68
, combinado?”, eles concordaram e voltaram pra aula.
O Professor de vôlei cumprimentou-me e ao receber minhas desculpas, disse não ter tido problema algum,
e continuou sua aula.
Fui até a sala de Maria, cumprimentei-a e conversamos sobre a organização da visita, as
autorizações dos participantes, dos termos de consentimento da oficina que faltavam, dentre outros
assuntos relacionados ao grupo.
Aos poucos, enquanto conversávamos, as crianças foram aparecendo na ECO, e
aproximadamente às 15h30min, estavam todas presentes. Muitas apareciam na porta da sala e
perguntavam o horário de saída. Maria então achou melhor já reuní-las para conferir os nomes e, assim,
partirmos em caminhada.
Deixei o lanche do dia dentro do carro, estacionado em frente a Estação, pois no retorno
a ECO estaria fechada, daí, combinei com Maria de servirmos o lanche no retorno, em frente a própria
ECO.
Com tudo organizado, as crianças reunidas, seguimos numa caminhada até a academia.
No percurso, alguns ficaram mãos dadas, principalmente as meninas (Amanda, Jaqueline, Letícia foram
ao meu lado e Gisele, Liliam e Iracema junto com Maria) (2), já os meninos foram juntos e conversando
entre si.
68
Pequeno balcão de concreto, ao fundo da quadra, chamado pelas crianças de “caracol” por possuir um
formato circular muito semelhante a este animal.
177
Lauro perguntou-me se passaríamos na escola de Jacó para pegá-lo. Passei a pergunta
para Maria, e questionei se havíamos sido autorizados pela mãe de Jacó a procedermos desta forma. Ela
confirmou a autorização e comentou sobre a escola ficar a caminho da academia, facilitando nossa
caminhada.
Ao chegarmos à escola pública de ensino fundamental, localizada a poucos metros do
Centro Comunitário do Pacaembu. Muitos meninos relataram estudarem lá, e começaram a gritar o nome
de Jacó na grade, próximo ao portão de entrada, deixando a responsável pela escola irritada.
Ela veio com um olhar zangado até André, chamando-lhe a atenção por gritar e apertar a
campainha que ficava próxima ao portão, utilizada por quem desejava entrar em suas dependências. Ela
falou em voz alta e firme a André: “Para de tocar a campainha! Tem gente assistindo aula!”. Ele afastou-
se da campainha e saiu, fingindo não ter sido ele.
A mulher afastou-se da grade e, a pedido de Maria, caminhou em direção a uma das
salas de aula, na qual estava Jacó. Ao sair da sala, Jacó foi chamado por gritos pelas crianças, que
pulavam e gritavam seu nome. Maria e eu tentávamos conter os gritos para não atrapalhar ainda mais as
aulas que ocorriam nas salas, mas isto foi bem difícil, visto que eles pararam apenas quando Jacó saiu
pelo portão (3).
Foi recebido pelos colegas com comentários: “Eba! O Jacó vai!!!”. Ele com sorrisos
olhava para o chão envergonhado e cumprimentava os outros meninos do grupo. Maria agradeceu a
funcionária e seguimos caminhando em direção a academia.
O trajeto foi tortuoso. Algumas ruas eram de pedras, outras de terra, estreitas e às vezes
não apresentavam calçadas, forçando-nos a caminhar na própria rua, o que aumentava nossa apreensão
sobre as crianças, visto que corriam de um lado para o outro mexendo com os cachorros das casas,
brincando nos arbustos em frente às residências, pegando pedregulhos e jogando nos colegas ou
conversando entre si. O movimento dos carros era constante, gerando o risco de acidentes.
Consequentemente, alertas verbais, tanto de Maria quanto meus foram muitos. No Jardim Gonzaga,
próximo a ECO, sempre encontramos as pessoas caminhando pelas ruas, e muito pouco pelas calçadas,
seja pela pavimentação irregular ou inexistente nas proximidades, seja pelo próprio hábito encontrado no
bairro, seguido também pelos automóveis, os quais trafegam numa velocidade menor e desviam dos
pedestres com freqüência. Percebemos este contraste com as ruas pelas quais caminhávamos, e ficamos
mais apreensivos com as crianças.
Michael Jackson estava muito agitado, o tempo todo mexia com as casas durante o
caminho, e mesmo chamando-lhe a atenção, ele voltava a fazer. Foi quando André disse: “Quem der
trabalho o Professor não traz da próxima vez, não é Professor!”, advertindo Michael Jackson, que ficou
pensativo por alguns momentos, e ficou brincando apenas com os arbustos e coisas encontradas pelo
caminho, como pedras, folhas ou gravetos, sem repetir as brincadeiras relacionadas às residências. Ele
sabia que não era correto o que fazia e, mesmo sendo por mim alertado, continuou a fazê-lo. Porém, foi o
comentário de seu próprio colega, relacionado à não participar das visitas e integrar o grupo, capaz de
sensibilizá-lo, interrompendo suas traquinagens (4).
Continuamos a caminhada e ao chegarmos à academia, o Professor Sebá esperava-nos
junto aos seus alunos. Recebeu-nos com polidez e enquanto ele cumprimentava Maria, Amanda olhou-me
178
e disse: “Vamos ter que tirar os sapatos aqui também professor?”, após ver o “tatame” utilizado também
para a prática do Judô, e se lembrar das visitas anteriores, nas quais tínhamos sempre o mesmo
procedimento diante do local (5).
Respondi que sim e em seguida o próprio Professor solicitou a retirada dos sapatos, e
comentou o porquê de fazerem isso. Ele relatou que o praticante de judô deve retirar o calçado para não
sujar o “tatame”, mantendo-o sempre limpo para o próximo que viesse treinar (6). As crianças foram
retirando seus sapatos e sentando próximas a uma das extremidades do “tatame”.
Estavam presentes 8 judocas (6 meninos e 2 meninas) do Professor Sebá, aparentando
terem entre 7 e 10 anos. Professor Sebá apresentou-se as crianças e agradeceu a presença deles naquele
dia. Pediu a todos para falarem seus nomes em voz alta, apresentando-se ao grupo. Com timidez eles
foram se apresentando e dando sorrisos e gargalhadas quando alguém ficava com vergonha em dizer seu
nome.
Em seguida, em pé e de frete para as crianças, o Professor falou sobre o judô e sua
história, seus mestres e também sobre Maria, posicionada em pé ao seu lado, elogiando-a sobre os treinos
e a participação na academia. As crianças olhavam com admiração para Maria, comentando entre si:
“Olha lá, a Maria é faixa preta!”. Maria sorriu e fez a reverência
69
em agradecimento ao professor (7).
Ele deu continuidade à aula, propondo alguns acordos entre todos. Esses acordos
seriam, segundo o Professor, que ninguém pisaria no “tatame” com os calçados, pois sujaria o “tatame” e
o “kimono” de quem lutasse no mesmo. Outro acordo,foi: qualquer pessoa só sairia para beber água se
pedisse ao Professor.
Questionou-os se havia alguma dúvida com relação as “regras” e, com todos de acordo,
propôs uma brincadeira com o nome de “coelhinho”, na qual todos ficariam posicionados numa
extremidade do tatame e deveriam caminhar até o lado oposto, imitando o andar deste animal, ficando
agachados e com as mãos e pés em contato com o chão, lançando as duas mãos ao mesmo tempo à frente
e depois trazendo juntos os pés, próximos as mãos. Eles fariam juntos e após o comando inicial do
Professor.
Ao final da explicação, ele pediu para um de seus alunos demonstrar o movimento, para
depois iniciar a brincadeira. As crianças sorriram e pularam com vontade em direção ao outro lado do
“tatame”, o Professor tecia comentários e elogios do tipo: “Isso! Muito bom!” e, ao ver Roberto fazendo,
brincou com ele, sorrindo e dizendo: “Mas isso aí tá parecendo um sapo! Não um coelho!”. Roberto entre
suas próprias gargalhadas, continuou a brincadeira (8).
O segundo animal a ser contemplado, foi o “cachorro”, no qual caminhavam com os pés
e as mãos no chão livremente. Depois veio o “sapo”, no qual ficavam agachados de cócoras e saltavam
pra frente. Outros animais foram imitados, como o “caranguejo”, caminhando com as mãos e pés em
decúbito dorsal, e o “escorpião”, com as duas mãos e um dos pés tocando o chão, mantendo a outra perna
flexionada e mesmo pé apontado para cima, lembrando o ferrão do “escorpião”.
69
Forma de saudação ou cumprimento utilizada entre os indivíduos, com origem em algumas culturas
orientais e mantidas durante a prática de algumas de suas lutas. Realiza-se a partir da posição ortostática,
seguida por uma leve inclinação frontal do tronco, com os braços estendidos e posicionados lateralmente
junto ao corpo.
179
Nestas atividades as crianças demonstraram motivação e ao final das brincadeiras,
pareciam cansados, ofegantes e respirando intensamente, porém mantendo o sorriso e comentando com os
colegas as dificuldades, como por exemplo quando Tomas disse a Lauro: “Nossa, to cansado! É difícil!”,
e ambos riam e continuavam as propostas do Professor com os outros animais.
Depois de alguns minutos na mesma atividade, Amanda aproximou-se e disse estar com
sede. Perguntei-lhe o porquê de não ter pedido ao Professor, e ela franzindo a testa, disse-me já ter
pedido, e ele não autorizado. Vendo a situação, tentei compreender a atitude do Professor e lembrei-a de
que, provavelmente iria permitir, só que todos juntos. Ela não se convenceu e sentou-se no canto do
“tatame”. Insisti para voltar à aula, contudo, continuo séria e irritada, permaneceu sentada e quieta.
Percebendo certa “manha” dela, preferi deixá-la, e esperar se retornaria ou não para a aula (9).
O Professor continuou com as propostas, e minutos depois, Liliam passou mal e sentou-
se numa cadeira próxima ao “tatame”. Perguntei-lhe o que sentia, e ela disse-me tontura. Questionei se
era por causa da aula, mas ela disse que não, relatou não estar bem quando saiu de sua casa naquele dia. A
partir daí, pedi para que ela permanecesse sentada e notifiquei Maria sobre o caso.
Estranhamente, Iracema também veio sentar-se, dizendo sentir muita coceira no olho, o
qual estava vermelho. Lembrei-me assim, da grande quantidade de crianças e pessoas da comunidade, as
quais foram diagnosticadas com conjuntivite ou febre. Pedi licença ao professor e fui com Iracema até o
banheiro, para lavar seus olhos e mãos.
Voltamos e ela sentou-se junto a Amanda e Liliam, próximo ao tatame. Continuando
com a aula, o Professor Sebá iniciou uma atividade na qual as crianças deveriam executar um golpe do
judô sozinhos, sem o companheiro, interpretando e imaginando realizá-lo junto a um companheiro virtual,
como se estivessem numa luta.
A primeira técnica proposta foi a mesma realizada no encontro de Jiu Jitsu pelo
Professor Mauro, conhecida como “”O-soto-gari”, e Tomas reconheceu o movimento, comentando
comigo: “Ah, é igual aquele dia, né Professor?”. Respondi-lhe “Sim!”, contente por terem lembrado do
que aprenderam (10).
Eles interpretaram os movimentos e davam um passo a frente, caminhando para o outro
lado do “tatame”, repetiram várias vezes, trocando depois para técnica conhecida como “Ippon-seoi-
nage”
70
, na qual de forma simplificada, seria quando os dois integrantes da dupla estão voltados para a
mesma direção, um logo atrás do outro. Aquele que executará o movimento de projeção, segura sobre seu
ombro o braço do outro, ele flexiona o tronco para frente, e com o auxílio do quadril, projeta-o por cima
do seu ombro.
As crianças demonstraram pouca atenção e motivação nesta atividade. Suponho que
seja devido a abstração da atividade em si e a pouca familiaridade com alguns destes movimentos. Algo
parecido, vivenciei em outros momentos, junto ao grupo do Professor Matheus em 2006, enquanto
brincávamos de teatro, na própria ECO, algumas crianças não demonstraram interesse, e Matheus
precisou motiva-los o tempo todo, utilizando-se do seu carisma para incentivá-los a participar da
brincadeira.
70
“Ippon” = “único”/”um”; “seoi” = “ombro”; “nage”=”arremesso”/”projeção”. Assim, “Ippon-seoi-
nage” pode ser entendido como “arremesso por cima de um dos ombros”.
180
Devido a pouca familiaridade com o Professor Sebá aliado a ansiedade demonstrada
pelas crianças em “brincar de lutar”, agarrando-se umas nas outras, foi a partir daí que procurei
compreender a pouca motivação nesta atividade (11).
Enquanto faziam os movimentos, Moisés aproximou-se e perguntei se estava gostando
da aula, ele disse que sim, que o Professor era “rígido”, mas era “legal”.
Tomas, vendo-me conversar com Moisés, aproximou-se também e comentou:
“Professor, eu to com fome! Que horas a gente vai come?”. Respondi-lhe que seria após a aula, quando
voltássemos a ECO. Ele balançou a cabeça concordando e voltou pra aula. Minutos depois, Liliam
também perguntou-me a mesma coisa e, respondi-lhe igualmente, porém, após a resposta, ela apresentou
um desânimo em seu rosto, e virando-se de costas, caminhou até onde estava sentada (12).
Após repetirem várias vezes os movimentos individualmente, o Professor pediu para
formarem duplas livremente entre si, para aplicarem aqueles movimentos que ele demonstraria. Ao
observarem a demonstração dos movimentos de “Uki-goshi” e “O-soto-gari”, algumas crianças que
participaram do encontro com o Jiu Jitsu, olharam para mim e falaram, “Olha professor, igual aquele
dia!”, e outros até demonstravam o movimento nos colegas (13).
Joel foi um deles. Disse em voz alta para os colegas: “Ah, esse é fácil!”, segurou pelos
braços e projetou Michael Jackson, seu irmão mais novo, no chão, rindo com ele depois de executada a
técnica. Michael Jackson, mesmo no chão, continuo a rir, levantou-se e tentou aplicar o golpe em seu
irmão.
As duplas foram escolhidas pelas próprias crianças, e apenas Iracema e Liliam, as quais
não estavam se sentido bem, ficaram sem fazer, permanecendo ao lado do tatame, apenas observando.
Aqueles que conheciam os movimentos, aproveitavam alguns momentos para trocar de
dupla e fazer junto com alunos do Professor Sebá, o qual passava entre as duplas e tecia comentários, ora
com correções verbais e orientações por meio da sua demonstração, ora com elogios a execução dos
movimentos realizados pelas próprias crianças (14).
Joel praticou um pouco com o Professor, e o esforço e dedicação ficou visível em seu
rosto, olhos fixos, atenção nos movimentos do Professor, procurando derruba-lo e, nos momentos em que
era derrubado, não desistia. Levantava e voltava a lutar com o Professor (15).
Neste dia, as crianças do Jardim Gonzaga dispersaram-se várias vezes, não
permaneciam numa mesma atividade muito tempo. Brincavam por alguns minutos numa determinada
atividade e depois começavam outra, como tentar derrubar ou atrapalhar o colega da outra dupla, correr
livremente pelo tatame, fazer o movimento conhecido como “estrela” ou mesmo sentar e conversar com
outra criança.
Aquelas que dispersavam-se, eu procurei motiva-las a fazer a atividade proposta ou
então, pedia-lhes para sentarem, deixando o centro do “tatame”, para não atrapalhar os outros que
participantes. Alguns franziam os olhos, bravos, mas retornavam a aula, outros, quando chamavam suas
atenções, caminhavam para a borda do tatame e sentavam-se. Amanda foi uma delas, pois interrompeu a
atividade e ficou sentada próximo a mim por alguns minutos, depois, vendo-se sozinha, voltou a
participar. Apenas Letícia permaneceu sentada por mais tempo, e resolveu não participar mais da aula.
Perguntei-lhe o motivo, mas ela afirmou apenas estar cansada e não desejar mais brincar. Respeitei esta
181
decisão e deixei o convite em aberto, podendo retornar a qualquer momento, contanto que isso não
ocorresse mais de uma vez, pois isto atrapalharia o Professor e os colegas. Ela concordou, respondendo
“Tudo bem!” e ficou sentada numa cadeira de plástico ao lado do tatame, junto com Iracema e Liliam
(16).
O Professor Sebá, após demonstrar e organizar a vivência dos outros golpes em dupla,
iniciou uma atividade diferente, baseada numa brincadeira que fazia junto aos seus alunos e alunas.
Primeiro ele fez um círculo com fita crepe no chão do tatame, depois ele escolheu dois meninos para
demonstrar e descrever o funcionamento. Lauro foi escolhido pelo Professor, e junto a ele, comentou
funcionaria a brincadeira.
Segundo ele, em duplas, eles deveriam tentar empurrar ou puxar a outra pessoa,
colocando-a para fora do círculo ou derrubando-a dentro do mesmo, com os golpe aprendidos na aula.
Joel voltou-se para mim e disse: “Ah Professor, eu já brinquei disso! Essa eu conheço!”,
sorrindo e levantando a mão para cima. Liliam também reconheceu a brincadeira e disse-me o mesmo.
Iracema sorriu, e levantou-se para brincar com as amigas.
Professor Sebá escolhia uma criança de cada vez para as duplas, sem ordem definida,
misturando crianças do Jardim Gonzaga com crianças da academia, para que “lutassem”. As duplas
faziam apenas uma luta e depois sentavam-se, abrindo a oportunidade para outras pessoas.
Amanda demonstrou alegria e sorrindo, gritava “Professor! Professor! Eu! Eu!”,
pedindo para ser a próxima escolhida por Sebá. Ao ser escolhida, com euforia levantou-se e foi logo em
direção a outra menina, aluna da academia. Com as mãos, Amanda agarrou as mangas do kimono da
menina, esperando apenas o Professor Sebá dar o comando inicial para a “luta”. Logo após iniciada a luta,
Amanda empurrou fortemente a outra criança para frente, colocando-a para fora do círculo com
velocidade. Ao empurrá-la e “vencer” a “luta”, todas as crianças do Jardim Gonzaga gritaram “êêê!”,
comemorando sua vitória. Letícia aproximou-se de Amanda e abraçou-a, ambas com sorrisos e
gargalhadas.
Percebendo a motivação das crianças na atividade, depois de algumas lutas, Professor
Sebá propôs que o “vencedor” permaneceria “lutando” até que alguém o “derrotasse”, substituindo-o.
Nas “disputas”, Roberto “venceu” duas outras crianças, mas “perdeu” para um dos
alunos do Professor Sebá. Joel demonstrou grande alegria, sorrindo e pulando quando “ganhou” sua
“luta”, e comentava com o irmão Michael Jackson, qual movimento executou para “vencer”, ambos em
rindo da atividade.
Minutos depois o Professor Sebá iniciou uma atividade parecida com as lutas de Judô,
na qual uma dupla por vez iria “lutar”, e cada integrante deste dupla deveria buscar derrubar o outro com
os golpes aprendidos no dia.
Quando o professor posicionou uma das duplas frente à frente, composta por Tomas e
Roberto, observou-os por um instante, e voltando seu olhar para a parede (na qual estavam pendurados
dois “blusões” do kimono utilizado no Judô
71
), foi rapidamente pegá-los. Entregou em seguida a dupla,
auxiliando Roberto a colocá-lo. Tomas vendo como o Professor o colocou sobre seu colega, rapidamente
71
O nome correto para designar este tipo de indumentária é “Judo Gi”, ou mais popularmente conhecido
como “kimono”.
182
vestiu a parte superior do kimono, e saltava e mexia os braços como se estivesse preparado para a luta,
olhando fixamente para Roberto.
Ambos vestidos, o Professor Sebá autorizou a “luta”. Seguraram-se pelos braços, um
procurando projetar o outro ao chão, quando Tomas colocou-se numa das posições do Judô e aplicou o
“Osoto-gari” em Roberto, derrubando-o e “vencendo” a “luta”. Roberto levantou-se rindo e quando iam
se agarrar novamente, o Professor Sebá chamou outras duas crianças para formarem uma nova dupla.
Pediu para Roberto e Tomas passarem os blusões para a outra dupla, a qual vestiu-os, iniciando uma nova
“luta”.
Interessante foi o momento em que Roberto voltou a “lutar” e fez dupla com uma
menina, aluna do Professor Sebá, ele sorrindo começou a “luta” e tentou derruba-la, mas ela agarrou
Roberto pelos braços, virou-se e aplicou-lhe o “Osoto-gari”, projetando-o ao solo. Ele ficou assustado e
Joel, ao ver o golpe, olhou-me com surpresa e disse: “Nossa Professor! Como ela é forte!”, e outras
crianças davam gargalhadas do ocorrido.
Moisés e Tomas pareceram gostar da brincadeira, e comentaram estar surpresos ao
verem uma das alunas do Professor Sebá, ganhar de vários meninos (17).
No final das “lutas” em duplas, o Professor Sebá reuniu todos no centro do tatame e
teceu alguns agradecimentos às crianças pela presença e também a Maria (ECO), elogiando-a pelos
treinamentos e pela oportunidade da visita. Aproveitei a situação e estendi os agradecimentos a Maria e
ao Professor Sebá. Tiramos todos algumas fotos juntos e nos despedimos do Professor, seguindo em
grupo para uma caminhada, retornando a ECO.
No trajeto, logo após sairmos da academia, algumas crianças retiraram biscoitos e
iogurtes de pequenas sacolas que carregavam, comendo e bebendo enquanto caminhavam. Percebi elas
dividirem tudo entre si, oferecendo e repartindo entre todos, perguntado quem gostaria de comer ou beber
um pouco daquilo que traziam, demonstrando um “compartilhar com o outro” seu alimento (18).
A caminhada continuou, Michael Jackson e Joel corriam pelas ruas, remexiam tudo que
encontravam pelo percurso, deixando Maria e eu muito apreensivos, pois devido ao horário próximo as 18
horas, o fluxo de veículos estava ainda maior, e o risco de acidentes era também. Ao nos aproximarmos
do bairro,
Letícia disse-me estar com muita fome, questionando sobre o que teríamos de lanche
naquele dia. Ouvindo a pergunta, Liliam e Joel, aproximaram-se perguntando o mesmo (19). Disse-lhes
que teríamos pão com presunto e queijo, para beber, refrigerante saber guaraná Elas comentaram: “Ebaaa!
Pão com presunto e queijo!” e Joel virou-se para Moisés e disse com olhos abertos e sorriso nos lábios:
“Guaraná!”, ambos seguiram rindo e caminhando juntos.
Ao passarmos pelas ruas do bairro, as crianças cumprimentavam os moradores e,
quando deparavam-se com familiares, corriam e abraçavam-nos, avisavam sobre o horário do lanche e
voltavam a caminhar com o grupo.
Já na ECO, paramos próximo ao meu carro, no qual havia guardado o lanche.
Distribuímos os pães e o refrigerante a todos.
Avisei-lhes sobre o encontro com o Professor Fabiano, na segunda feira, dia 7 de julho,
bem como este ser nosso último encontro do semestre.
183
Despedi-me deles, combinei com Maria a organização dos materiais solicitados por
Fabiano e segui para minha casa, aproximadamente às 18h30min.
184
Diário de Campo: XIII
Data: Segunda-feira - 07/07/2008
Período: Tarde – 16:00h às 18:00h
Local: Estação Comunitária do Jardim Gonzaga
VIVÊNCIA EM JOGOS INDÍGENAS E HUKA-HUKA
Neste dia tivemos a presença do Prof. Fabiano Maranhão, amigo do curso de
licenciatura em Educação Física e também de mestrado em Educação, o qual possui conhecimento sobre
a cultura indígena e africana, seus jogos e brincadeiras.
Também contamos com a presença de Jeika Kalapalo, indígena pertence ao povo
Kalapalo, atualmente estudando no cursinho pré-vestibular da UFSCar, o mesmo é professor de português
em sua aldeia (Aiha- Alto Xingu – Mato Grosso) e já ministrou várias palestras e participou de diversos
encontros sobre cultura indígena em escolas de São Carlos, grupos de estudos da UFSCar e de entidades
como o SESC/São Carlos.
Para que eles ministrassem a vivência na Luta Huka-Huka e Jogos Indígenas na ECO,
passei em Araraquara para trazer o Prof. Fabiano e, em seguida, voltamos para São Carlos e passamos no
hotel onde Jeika está hospedado. Seguimos juntos para a ECO.
No caminho fomos conversando sobre as atividades que faríamos com as crianças e
Fabiano comentou com Jeika sobre os nomes dos jogos e interpretações das brincadeiras pelo povo
Kalapalo. Jeika confirmava o que Fabiano dizia e eventualmente acrescentava algo. Conversamos sobre
uma brincadeira chamada “Emusi”
72
, a qual lembra bastante a brincadeira de “pega-pega”, e sobre todos
correrem “fugindo” e, quando “tocados”, poderiam também “pegar” e assim por diante, bem como as
outras formas de se brincar.
Falamos sobre o aprendizado de Jeika sobre a cultura caraíba
73
, e sobre os estudos para
prestar o vestibular e ingressar no curso de Letras na UFSCar, e das dificuldades envolvidas no mesmo.
Já chegando à ECO, estacionei o carro em frente a quadra, e avistamos as crianças
tomando o lanche, um pão com geléia e suco de uva. Poucas crianças estavam participando do projeto
anterior neste dia, provavelmente devido ao período de férias escolares.
Ao conversar com Maria e com outros funcionários da ECO, estes comentaram sobre
algumas crianças visitarem os familiares noutras comunidades nestas datas. Desta mesma forma, re-
encontrei um antigo participante da oficina, Gilson, o qual havia participado em 2007, mas no início de
2008 foi morar com seu pai noutro bairro, impossibilitando sua continuidade nos projetos da ECO.
Ele veio passar as férias com a mãe, e aproveitou para participar do encontro deste dia.
Logo quando me encontrou, veio correndo e pulando para abraçar-me, ao olhar pro lado, reconheceu
Fabiano, e logo abraçou-lhe também (1). Olhou para Jeika e perguntou-me quem era, e assim apresentei-o
72
Ver descrição pormenorizada em: HERRERO et al., 2006, p.138.
73
Uma cultura distinta da Kalapalo, geralmente atribuída a povos não indígenas.
185
a Jeika, e expliquei qual seria o encontro do dia. Gilson perguntou-me se poderia participar e respondi-lhe
que sim.
A outras crianças da ECO chegaram para nos cumprimentar e também pedir para
participar da oficina. Conversei com eles sobre o aquele dia ser o último encontro da oficina deste
semestre, mas que poderiam participar, contanto que não bagunçassem ou atrapalhassem os outros
educadores., dois garotos de aproximadamente oito anos e outra menina de aproximadamente nove anos
concordaram em participar.
Seguimos juntos até o pátio ao lado, onde estavam servindo as refeições e, enquanto
aguardávamos o término do lanche, ficamos reunidos com algumas crianças próximas ao “caracol”
74
.
Muitas crianças chegavam e pulavam para nos abraçar, e ao reconhecerem o Fabiano, pulavam em seu
pescoço e abraçavam-no. Fabiano brincava e com muita empatia entre todos e todas (2).
Letícia chegou até mim, cumprimentou-me e com voz baixa perguntou:”Quem é ele?”,
olhando para Jeika. Disse-lhe: “Ele é o Jeika. Ele é índio e vai nos ensinar sobre sua cultura, sobre um
tipo de luta e algumas brincadeiras!”.
Ela olhou para Jeika e disse: “Eu não vou participar hoje professor! Eu não quero
brincar de brincadeira de Índio!”, perguntei então: “Por que você não quer?”, ela respondeu com
“manha”: “Por que não quero brincar!”. Avisei-lhe sobre a participação voluntária na oficina, e percebi
que se tratava de uma “manha” de Letícia, daí, preferi não insistir e esperar até as atividades começarem.
Essa minha atitude se baseia na própria conduta de alguns participantes dentro da oficina, os quais dizem
que não vão participar das brincadeiras, resmungam sobre a escolha das mesmas, mas ao verem todos
participando, correm para entrar na brincadeira, como se nada tivesse acontecido (3).
Outras crianças que não participavam mais dos encontros, apareceram, como Laura,
Aline e Pedro, mas ficaram apenas assistindo. Pedro no meio das atividades tentou participar, mas as
outras crianças não permitiam e empurraram-no para fora da roda.
Algumas crianças começaram a perguntar por que Jeika tinha a orelha furada, e ele
respondeu: “É pra colocar brinco em dia de festa! Para enfeitar!”, Daí algumas crianças ficavam curiosas
e abraçavam-no e mexiam em suas orelhas, ele sorria e brincava com elas, as vezes ria das brincadeiras
das crianças entre si, as vezes ria de como elas ficavam correndo de um lado para o outro da ECO. Num
determinado momento, formou-se uma pequena roda próxima a Jeika, e as crianças estavam curiosas para
saber sobre sua cultura.
Liliam perguntou novamente sobre a orelha furada e Jeika respondeu da mesma forma.
Gilson perguntou o que ele comia, e Jeika respondeu peixes, farinha e beiju.
Eles ficavam olhando para a pele e para seus cabelos, outros abraçaram-no e ficaram
próximos a ele (4).
Minutos depois o lanche havia terminado e propus ao Professor Fabiano que
começássemos a atividade. Ao concordar, fomos caminhando com as crianças em direção a quadra.
No entanto, a quadra estava com outros garotos do bairro (e não da oficina) jogando
futebol. No momento em que iria solicitar-lhes o espaço, Professor Fabiano propôs a realização do
74
Pequeno balcão de concreto, ao fundo da quadra, chamado pelas crianças de “caracol” por possuir um
formato circular muito semelhante a este animal.
186
encontro no campinho de futebol ao lado. Ofereci a possibilidade da quadra novamente, mas ele preferiu
evitar problemas com os garotos e foi logo formando uma roda com as crianças, pedindo para sentarem
(5).
Professor Fabiano demonstrou uma enorme interação com elas, utilizou algumas
brincadeiras para direcionar a atenção das crianças para ele, inclusive fez brincadeiras musicais, muito
comuns em acampamentos e atividades recreativas desenvolvidas com crianças (6). Jeika ficou conosco e
ficou sempre rodeado de crianças abraçando-o (7).
Todos e todas sentados, Professor Fabiano perguntou se alguém sabia seu nome, e
muitas crianças gritaram e falaram seu nome. Ele então se apresentou como ex-educador do projeto com
Professor Matheus e atualmente atuando como Professor em Araraquara.
Comentou conhecer alguns dos presentes, mas queria que todos e todas se
apresentassem, dizendo seu nome em voz alta. Todos se apresentaram, e ao final, Fabiano apresentou
Jeika, oportunidade na qual começamos a conversar sobre a cultura indígena.
Fabiano perguntou se alguém ali sabia de onde vinham os índios, e Adilson disse: “Da
Índia!”, e outras crianças concordaram, e uma delas, Gilson falou: “Brasil!”, comentando ter índios aqui.
Fabiano disse que sim, e perguntou quem chamava-se “Iracema”, a criança levantou a
mão e Fabiano falou sobre a origem indígena deste nome, a criança sorria ao saber e, comentou com seus
colegas seu nome completo. Fabiano discursou falou sobre os índios do Brasil, e sobre a participação de
Jeika no encontro do dia. Jeika disse-nos morar aqui no Brasil, e algumas crianças mostraram-se
surpresas, e algumas perguntaram: “Aqui? Onde?”. Jeika explicou sobre sua aldeia Aiha, sua localização
no Alto Xingu (Mato Grosso) o nome de seu povo, os Kalapalo (8).
As crianças começaram a fazer várias perguntas ao mesmo tempo e Fabiano solicitou-os
um de cada vez, organizando-os para que todos pudessem ouví-lo (9).
Michael Jackson perguntou sobre a comida do povo Kalapalo, e Jeika falou dos peixes,
da farinha de mandioca e do beiju. Liliam perguntou novamente sobre os furos nas orelhas de Jeika, e ao
responder sobre as festas e os enfeites, Jeika acrescentou e destacou neste momento, sobre os brincos
serem usados apenas pelos homens, e não pelas mulheres.
Algumas crianças riram, e Fabiano comentou: “Aqui a gente também não usa brinco
para enfeitar, ficar mais bonito? (demonstrando com suas mãos a sua própria orelha esquerda, a qual
estava com um brinco)”. Elas balançaram a cabeça para cima e para baixo, em sinal de concordância.
Outras ficaram olhando para Jeika e Letícia questionou-o sobre sua moradia, morava numa “oca”. Ele
respondeu “Sim!” sorrindo e comentando sobre dormirem em redes também (10).
Perguntaram do que eles brincavam, oportunidade que Fabiano propôs uma brincadeira
chamada “Emusi”, a qual lembra a brincadeira conhecida como “pega-pega”, e explicou como
funcionaria, pedindo auxilio de Jeika, para que ensinasse e brincassem com eles (11).
Nesta atividade o “pegador” procura tocar as pessoas, e ao serem “tocadas”, as pessoas
poderiam também “pegar” as outras, criando uma rede de participantes que “pegam” e que “fogem”, sem
características de vitória, derrota ou exclusão.
187
Após a explicação rápida da brincadeira, Fabiano perguntou aos participantes quanto do
campo valeria para correr, quando Michael Jackson junto a Gilson propuseram o campo todo. Fabiano
perguntou aos demais se concordavam, e todos votaram a favor, dando início a brincadeira (12).
Jeika participou, correu e brincou com as crianças. No instante da correria, algumas que
estavam na ECO, mas não participavam da oficina, correram para o campo e começaram a brincar
também.
Estas, depois de um certo tempo começaram a brigar e até mesmo a atrapalhar as
brincadeiras. Ao perceber o incômodo ao grupo, pedi a Fabiano para nos reunirmos noutro canto do
campo, deixando afastados para não participarem, aqueles que brigaram (13).
Com todos novamente reunidos, Fabiano perguntou: “Quem ganhou nessa
brincadeira?”, Alesandra, Michael Jackson e Letícia disseram quase ao mesmo tempo: “Ninguém!” (14).
Adilson brincando disse: “Fui eu!”, e em gargalhadas olhava para Fabiano e se afastava,
como quem havia feito algo apenas para provoca-lo. Fabiano sorriu ao ouvir o comentário de Adilson e
puxou-o para perto de si pelos braços, sacudindo-o em brincadeira (15).
Fabiano disse: “Vocês viram que todos ganharam nessa brincadeira?” Alguns
concordaram acenando com as cabeças e outros nem sequer pararam de correr, para conversar ou ainda
estavam ofegantes (16). Olhando o sorriso nos rostos deles e delas, Fabiano propôs uma brincadeira
chamada “Heiné Kuputsü”
75
, na qual deveriam atravessar o campo todo apenas sobre um pé.
Fabiano destaca o objetivo da brincadeira perguntando-o a Jeika. Ele relata o objetivo
desta brincadeira como apenas chegar ao outro lado e completar o “desafio”, e não o de “chegar
primeiro”.
Fabiano mal disse como funcionava a brincadeira e Adilson falou em voz alta: “Eu sei
fazer isso!” e saiu correndo e pulando em um pé só, seguido assim por outras crianças que estavam ao seu
lado. Algumas que não conseguiam, tentaram imitar seus colegas, sendo incentivados por Fabiano ou
Jeika (17).
Depois de repetir o mesmo procedimento para retornar ao local inicial, no fundo do
campo, Fabiano desenvolveu outra brincadeira, conhecida como “Oto”
76
, na qual as crianças ficariam
deitadas frente a frente e em posição invertida, segurando-se mutuamente pelos tornozelos com ambas as
mãos e rolariam pelo chão.
Elas não conheciam aquela brincadeira e algumas não conseguiam rolar e recebiam
ajuda dos colegas, auxiliando-os a rolar e também a não se machucar (18).
Letícia pegou em minha mão, naquele momento e perguntou-me se teríamos lanche,
pois estava com fome. Disse-lhe que sim, mas que seria no final do encontro. Ela perguntou-me: “O que
tem de lanche Professor?”. Respondi-lhe: “Pão com presunto e queijo e guaraná!”. Ela no mesmo instante
virou para Joel e disse sobre o lanche, este saiu pulando e comentando com outros colegas (19).
Liliam logo puxou Letícia para tentar brincar, e os meninos (Gilson, Adilson, Michael
Jackson, Joel) repetiam um após o outro.
75
Ver descrição pormenorizada em: HERRERO et al., 2006, p.126.
76
Ver descrição pormenorizada em: HERRERO et al., 2006, p.142.
188
Ficaram com as costas sujas de mato e terra, e saíram correndo, pedindo para outro
colega ajuda-los a se limpar. Durante as brincadeiras e em diversos momentos, uns ajudavam os outros,
seja no momento de limparem-se ou mesmo brincarem entre si, havia um auxílio mútuo entre as crianças
(20).
O “Oto” foi feito por quase todas as crianças, algumas fizeram mais vezes e outras
ficaram com receio de sujar a roupa, porém, ao verem os colegas se divertirem, entraram na brincadeira.
Fabiano percebeu a motivação dos participantes nas atividade e propôs o “Huka-
huka”
77
, ou Kindene, uma luta praticada pelos índios do Alto Xingu, dentre eles o povo Kalapalo.
Para esta atividade, Fabiano foi demonstrou com Jeika, como os participantes lutavam:
procurando sempre tocar os joelhos do outro ou tentando desequilibrá-lo e derruba-lo.
As crianças formaram livremente as duplas entre si e brincaram, algumas inclusive
lembraram de uma brincadeira parecida que havíamos vivenciado noutros encontros da oficina.
Gilson e Joel gritaram meu nome e chamaram minha atenção para sua luta, comentando
já saberem da brincadeira e ao mesmo tempo, entre sorrisos com os colegas, tocavam os joelhos do outro
e contavam o número de vezes que conseguiam fazer isto, somando e brincando com os toques nas
pernas.
Amanda estava mais ao lado do grupo, sem participar, porém entrou na brincadeira a
pedido de Letícia, com quem formou dupla e brincou de Huka-Huka.
Jeika brincou e ensinou Tomas, que demonstrava força de vontade em aprender, e
também dedicava-se para “ganhar” de Jeika, tocando seus joelhos (21).
Jeika, Fabiano e eu fizemos um pouco com cada criança. Aqueles que não sabiam da
“luta”/brincadeira aprendiam com os outros e trocavam de duplas livremente, sem ordem definida (22).
Depois, quando a maioria já parecia cansada, perguntei a Fabiano se ele gostaria de
fazer uma roda de conversa, para reflexão final com as crianças. Ele estendeu o pedido a Jeika, que
concordou, e reunimos todos em roda num canto do campo de futebol.
Perguntamos se gostaram das brincadeiras e Gilson e Amanda, dentre outros, foram
comentando sobre as brincadeiras e também de já terem feito algumas delas comigo, durante as oficinas.
Fabiano agradeceu a participação deles e perguntou se alguém gostaria de saber mais
sobre o povo Kalapalo e os índios.
Michael Jackson, impaciente, perguntou sobre o lanche e Fabiano sorriu, e solicitou
para todos caminharmos juntos até o pátio, para recebermos o lanche.
Agradeci a presença de Fabiano e Jeika pessoalmente, fui até a cozinha, ajudar uma
funcionária da ECO (que chamarei aqui de Cristina) a servir os lanches e o refrigerante as crianças.
Cristina disse em voz alta, na porta da cozinha, que só serviria o lanche aquelas que
lavassem suas mãos, e as crianças que já tinham feito isso mostraram as mãos ainda molhadas para ela,
77
"Kindene" é o termo Kalapalo para designar "luta". No ritual do chamado “Kwarup”, o qual tem o
objetivo precípuo de homenagear aos mortos ilustres da aldeia escolhidos. Na cerimônia de encerramento
deste festival, os lutadores preparam-se para seqüências de lutas tradicionais – conhecidas popularmente
por "huka-huka",que é o clímax de todo o ritual, momento no qual todas as etnias (anfitriãs econvidadas)
se interagem de forma mais intensa (LIMA et al., 2007).
189
dizendo: “Já lavei Tia, olha!”, e as outras saíram correndo em direção a uma torneira, outras até o
banheiro, para lavar suas mãos (23).
Voltaram correndo até os banquinhos de cimento e mesas do pátio ao lado da cozinha,
onde distribuímos os lanches e o refrigerante. Jeika e Fabiano comeram com as crianças e se divertiram
umas com as outras, comentando sobre quem havia caído numa brincadeira, discutindo sobre o encontro
do dia.
No final algumas puderam repetir o lanche e outras ficaram satisfeitas. Ajudei Cristina
na lavagem da louça utilizada no lanche e agradeci-a por toda a ajuda e apoio.
Despedi-me das crianças que ainda estavam na ECO e segui de carro, com Fabiano e
Jeika para o Centro da cidade. Deixei Fabiano na casa de amigos e levei Jeika até a UFSCar, onde ele
teria aula no cursinho comunitário oferecido pela instituição. Em seguida, retornei a minha casa, por volta
de 18h30min.
190
APÊNDICE 3:
Planos de Aula elaborados durante as Intervenções com as Lutas, um
referente ao encontro do dia 12/11/2007 e os outros entre 12/05/2008 a 02/06/2008.
PLANO DE AULA
Nº do Plano: 01 Data em que foi ministrado: 12/11/2007
Objetivo Específico: relembrar alguns movimentos aprendidos anteriormente e proporcionar a vivência
de uma atividade baseada na interpretação em duplas das técnicas envolvidas em uma luta combinada.
Conteúdo: movimentos técnicos do Karatê e brincadeira de interpretação de luta.
Estratégia:
a) Parte Inicial:
Diálogo em roda com os participantes, tendo com tema o Dojo Kun e o seu cotidiano, discutindo as
experiências de vida das crianças e as possíveis relações com o Dojo Kun.
b) Parte Principal:
Relembrar os movimentos aprendidos nos encontros anteriores, a partir de questionamentos do educador
aos participantes, procurando incentivá-los a recordar dos golpes e também a ensinar às técnicas
aprendidas aos novos integrantes do grupo.
c) Parte Final:
Atividade de interpretação dos movimentos de luta organizada em duplas. Os integrantes das duplas
combinarão entre si, a aplicação de algumas das técnicas de defesa e ataques vivenciados nos encontros
anteriores, para no final, apresenta-los aos colegas, podendo inclusive discuti-los com os outros
integrantes do grupo, como por exemplo, outras formas de utilizar o mesmo golpe, procurando incentiva-
los a usar a criatividade e imaginação durante a criação da luta.
191
PLANO DE AULA
Nº do Plano: 02 Data em que foi ministrado: 12/05/2008
Objetivo Específico: recordar as atividades realizadas na oficina anteriormente, promover a interação
entre os participantes, vivenciar algumas brincadeiras e atividades com as lutas.
Conteúdo: vivências em brincadeiras relacionadas a diversas lutas.
Estratégia:
a) Parte Inicial:
Diálogo em roda com os participantes, apresentando e discutindo seus objetivos e organização geral aos
novos integrantes.
b) Parte Principal:
Solicitar aos participantes que formem livremente várias duplas espalhadas pelo espaço e, posteriormente,
disponibilizar os materiais para a brincadeira “Roubar o pano”.
Nesta brincadeira, todos os participantes receberão uma tira de pano fina, a qual poderá ser pendurada em
alguma parte do corpo, nas roupas, por exemplo, na frente do estomago, nas costas. Todos deverão
proteger essa tira de pano, impedindo os outros de pega-las. Pode-se então eleger um ou mais
participantes para tentar pegar as tiras de pano dos outros colegas, ou então, todos poderão “roubar o
pano” e proteger oseu ao mesmo tempo. De acordo com o tempo e motivação das crianças, elas deverão
se organizar novamente em duplas (de forma livre, sempre incentivando a participação entre os novos
integrantes), para dar início a brincadeira do “Tapa na mão”.
Nesta brincadeira, as crianças formarão duplas livremente. Frente a frente, um dos integrantes da dupla
ficará com as mãos abertas e com a palma das mãos voltadas para baixo, ele será o “defensor”. O outro
integrante, ficará com a palma das mãos voltadas para cima e tocando as do outro colega. Este último será
o “atacante” e deverá acertar um rápido tapa na mão do outro colega, o qual deverá desviar do tapa,
puxando ou inclinando as mãos. Quando o “atacante” não conseguir acerta-lo, inverte-se o papel dos
participantes. Demonstrar a brincadeira e verificar se propõem alguma mudança.
c) Parte Final:
Na parte final do encontro, serão apresentados e distribuídos os “Diários do Karatê”
78
. Propor como
primeira atividade com o Diário, a confecção das capas e, em seguida, com todos reunidos em roda,
realizar uma leitura e conversa sobre o Dojo Kun (Lemas do Karatê) , disponibilizado ao final de cada
Diário.
78
Disponível no Anexo 3.
192
PLANO DE AULA
Nº do Plano: 03 Data em que foi ministrado: 19/05/2008
Objetivo Específico: discutir a relação dos animais e os movimentos das lutas desenvolvidas pelo ser
humano.
Conteúdo: brincadeira baseada na interpretação dos animais e as relações com as lutas.
Estratégia:
a) Parte Inicial:
Reunião e diálogo em roda com os participantes e os possíveis novos integrantes, apresentando de forma
concisa a oficina, seus objetivos e organização. Em seguida, dispostos em círculo, o professor promoverá
uma discussão com as crianças acerca dos animais e seus movimentos, seus hábitos alimentares,
propondo a interpretação dos animais escolhidos livremente ou em conjunto, a depender da opção dos
participantes.
b) Parte Principal:
A partir desta interpretação, o educador discutirá com o grupo os movimentos dos animais e os
movimentos das lutas, os ataques e defesas, a sobrevivência e a cadeia alimentar entre os bichos.
Posteriormente, propor ao grupo uma brincadeira chamada de “Predadores”.
Nesta brincadeira, cada participante receberá um pedaço de barbante e uma bexiga. Eles deverão enchê-la
e amarra-la com o fio de barbante em seu tornozelo. Com as bexigas amarradas, pode-se combinar e
dividir o grupo em “predadores” e “presas”. Os “predadores” deverão tentar estourar a bexiga das
“presas”, pisando nas mesmas, e as “presas” devem protege-las. Depois disso, podem inverter os papéis
entre os grupos. Pode-se repetir a brincadeira, distribuindo novas bexigas aos participates e reestruturando
os grupos. Distribuir os materiais (bexigas e barbantes). Comentar as possíveis modificações sugeridas
pelo grupo, votá-las e iniciar a brincadeira.
c) Parte Final:
Na parte final do encontro, serão distribuídos os “Diários do Karatê”, para trabalharem com o mesmo
individualmente. Em posteriormente, com todos reunidos em roda, realizar uma leitura e conversa sobre o
Dojo Kun, disponibilizado ao final de cada Diário.
193
PLANO
DE AULA
Nº do Plano: 04 Data em que foi ministrado: 26/05/2008
Objetivo Específico: trabalhar a expressão corporal dos movimentos de diversas lutas, por meio da
interpretação de imagens, seguido de vivência do sumô
79
e huka-huka
80
mesclados a uma brincadeira.
Conteúdo: brincadeira de expressão corporal com figuras/imagens, vivência de uma brincadeira baseada
no sumô e huka-huka.
Estratégia:
a) Parte Inicial:
Diálogo conciso com os todos os participantes em roda sobre a oficina, os horários e colegas antigos. Em
seguida, uma atividade de expressão corporal chamada de “Teatro com Figurinhas”. Baseada em figuras e
fotos de pessoas demonstrando movimentos de diversas lutas, coletados na internet, impressos em
cartolina e depois recortados em retângulos. Estas figuras poderão ser espalhadas sobre uma superfície
plana (uma mesa ou o próprio chão) e com a face impressa da imagem voltada para baixo, ou seja, a
pessoa não consegue ver qual imagem está naquela figurinha. Dispostos envolta do conjunto de
figurinhas, uma pessoa por vez escolherá qualquer uma das figurinhas e então tentará “imitar” o
movimento de luta que está representado ali, caso seja uma figura com dois personagens, ela pode
escolher outro integrante do grupo para representar em conjunto. O grupo deve se auto-organizar com
relação à ordem das retiradas das figurinhas e se poderão ou não repetir a escolha das imagens, caso
ocorra, pois as imagens estão “escondidas” e isto poderá acontecer. Esta atividade pode ser repetida várias
vezes, conforme forem surgindo outras imagens ou o grupo permaneça motivado com a atividade. Nesta
atividade, se possível, o educador poderá resumidamente comentar a cultura envolvida na prática de cada
luta representada nas figurinhas, sua origem e história.
b) Parte Principal:
Em seguida, o professor iniciará a vivência de uma brincadeira baseada no sumô e o huka-huka, na qual
os participantes se organizarão em duplas, uma em cada círculo que será desenhado no chão (com giz ou
fita adesiva). Cada integrante da dupla deverá tentar empurrar o outro colega para fora do círculo,
utilizando as mãos ou o corpo, ou então tentar derruba-lo, realizando previamente um acordo geral com o
grupo, combinando os movimentos “proibidos”, como por exemplo, o contato com os olhos, rosto ou área
genital. Poderão agarrar as pernas ou girar os quadris projetando o colega ao solo, procurando fazê-lo sem
machucá-lo, apenas desequilibrando-o de tal forma que encoste o joelho ou outra parte do corpo que não
sejam as mãos no chão. Caso ele encoste, por exemplo, o joelho no chão (dentro do círculo) ou então seja
79
Sumô é uma luta de origem japonesa, na qual duas pessoas se confrontam numa área circular. O
primeiro lutador a tocar primeiro o chão com qualquer parte do corpo, exceto os pés, ou pisar fora da área
circular, perde a luta.
80
Ver nota 30.
194
empurrado para fora do círculo, a luta pode ser reiniciada ou poderão trocar de dupla quantas vezes for
necessário, criando uma interação entre todos os participantes.
c) Parte Final:
Na parte final do encontro, serão distribuídos os diários aos alunos antigos e os novos receberão os seus
para ilustrarem a capa. Será proposto a todos elaboração da resposta uma das questões contidas no
mesmo. Após esta tarefa, com todos reunidos em roda, será feita uma leitura e conversa sobre o Dojo
Kun.
195
PLANO DE AULA
Nº do Plano: 05 Data em que foi ministrado: 02/06/2008
Objetivo Específico: discutir em grupo as interações entre as diferentes culturas e a própria diversidade
presente no Brasil, relacionando esta diversidade a temática das lutas.
Conteúdo: conversas e brincadeiras contendo imagens geográficas dos países, seus nomes e sua cultura.
Estratégia:
a) Parte Inicial:
Reunião e conversa em círculo sobre os diferentes países e culturas, relacionando-os com as imigrações
para o Brasil. Neste diálogo, o educador buscará promover discussões acerca das diferentes raças/etnias e
a possível auto-declaração dos participantes, onde nasceram seus parentes, se tiveram contato com
pessoas de outros estados/países, discutir as diferentes manifestações e lutas de outras culturas, como a
capoeira, o boxe, o sumô, o kung fu, o huka-huka, dentre outras, apresentando se possível, um mapa dos
outros países e o próprio mapa mundi, sua concepção/criação e ideologias envolvidas em sua construção.
b) Parte Principal:
A partir da conversa inicial, propor uma brincadeira chamada de “Correio”
81
. Após alguns minutos desta
atividade, será proposto a brincadeira conhecida por “Atravessar o Rio”
82
, propondo a migração de um
local para o outro dentro dos próprios locais da ECO, como por exemplo, o banco de areia e a quadra,
sendo escolhidas por meio de votação entre os participantes, procurando observar a interação entre as
crianças, a cooperação para atingir o -objetivo da atividade, podendo citar essas atitudes durante a
discussão posterior com o Dojo Kun, por exemplo, “Sempre – Respeitar acima de tudo”.
c) Parte Final:
Após esta brincadeira, será proposto o trabalho com o Diário do Karatê, seguindo a ordem das atividades
do Diário de acordo com o último dia feito pela criança. Depois da atividade individual, leitura e
discussão do Dojo Kun, na qual o educador conversará sobre as atividades e situações vivenciadas no
encontro e os Lemas lidos.
81
Ver descrição pormenorizada em: Marcellino (2002), p.70.
82
Ver descrição pormenorizada em: Marcellino (2002), p.36.
196
APÊNDICE 4:
Modelo do “Diário do Karatê”, entregue as crianças durante as atividades
de Intervenção com as Lutas.
KARATÊ NO GONZAGA
Meu Diário do Karatê
Nome:
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São Carlos – 2008
Data: ____/____/_____
1) Você já praticou ou
conhece alguém que já praticou alguma luta?
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Data: ____/____/_____
2) Comente sobre o lema do
Karatê:
"Sempre - Conter o Espírito de
Agressão”
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_________________________
Este é o seu diário,
desenhe aqui a sua capa!!!
197
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198
Data: ____/____/_____
3) Fale sobre aquilo que
julgou importante no encontro de hoje.
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Data: ____/____/_____
4) Desenhe algo relacionado ao
encontro de hoje.
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Data: ____/____/_____
5) Fale sobre os lemas do
Karatê:
"Sempre - Respeito acima de
tudo"
"No Karate não existe atitude
ofensiva"
_______________________
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Data: ____/____/_____
6) Fale aobre as Lutas e o seu
dia-a-dia.
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199
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200
Data: ____/____/_____
7) Escolha um dos 5 Lemas
do Karatê e fale sobre ele.
_______________________
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_______________________
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_______________________
_________
_______________________
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Data: ____/____/_____
8) Fale sobre os Lemas:
"Sempre: Esforça-se para a
formação do caráter"
"Sempre: Fidelidade para com
o verdadeiro caminho da razão"
"Sempre - Desenvolver a
persistência e o esforço"
_________________________
_______
_________________________
_______
________________________________
________________________________
________________________________
________________________________
Data: ____/____/_____
9) O que você julgou mais
importante na
oficina?
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_______________________
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_______________________
DOJO KUN
Lemas do Karatê
Sempre – Esforçar-se para a
Formação do Caráter.
Sempre – Fidelidade para
como Verdadeiro Caminho da Razão.
Sempre – Desenvolver a
Persistência e o Esforço.
Sempre – Respeito Acima de
201
_________
________________________________
________________________________
________________________________
________________________________
Tudo.
Sempre – Conter o Espírito
de Agressão.
202
APÊNDICE 5:
Lista de presença das crianças realizada entre 17/09/2007 e 07/07/2008,
durante o período de Intervenção com as Lutas.
NOME FICTÍCIO SEXO IDADE
Nº DE AULAS
PRESENTES
Jean M 11 5
Michael Jackson M 7 15
Joel M 10 12
Carla F 11 11
Amanda F 8 8
Horácio M 24 7
Alex M 23 6
Aline F 13 3
Tomas M 8 7
Flávio M 11 3
Samir M 10 4
Rita F 7 2
Chico M 11 1
Alexandre M 11 4
Leandro M 10 5
Lauro M 13 5
André M 14 3
Gilson M 14 6
Liliam F 8 8
Adilson M 12 2
Robson M 8 1
Wilson M 8 1
Jorge M 9 2
Roberto M 11 7
Gilson M 11 3
Jacó M 10 7
Laura F 14 2
Mirian F 6 8
Horácio M 6 1
Gisele F 7 6
Iracema F 5 6
Letícia F 7 6
Lívia F 8 1
Lauroa F 14 1
Jaqueline F 6 5
Pedro M 7 1
Moisés M 13 4
Jericó M 6 2
203
ANEXOS 1
Modelo do Termo de consentimento livre e esclarecido entregue aos
responsáveis pelas crianças participantes da oficina.
Você, ____________________________________________________________, e seu
Responsável, __________________________________________________, estão sendo
convidados(as) para participar da pesquisa “O Karatê-Do e os seus processos educativos: uma
experiência junto a comunidade do Jardim Gonzaga – São Carlos”. A qualquer momento, até a
conclusão da mesma, vocês poderão desistir de participar e retirar seus consentimentos, suas
recusas não trarão nenhum prejuízo na relação com o pesquisador ou com a instituição. O
objetivo central deste estudo é buscar uma compreensão dos processos educativos envolvidos na
prática do Karatê-Do entre freqüentadores da Estação Comunitária (ECO) do Jardim Gonzaga,
cidade de São Carlos. Suas participações nesta pesquisa consistirão em conceder entrevista
gravada, registro de observações em diários de campo e imagens para uso exclusivamente
acadêmico-científico. Não há qualquer risco com suas participações e poderá haver benefícios
no sentido de melhorarmos a qualidade das ações desenvolvidas na “Estação Comunitária”
(ECO) do Jardim Gonzaga da cidade de São Carlos, bem como na compreensão da dimensão
histórica e de sabedoria de vida do Karatê-Do e das lutas de uma forma geral. Salientamos que
seus nomes serão alterados garantindo sigilo. Vocês receberão uma cópia deste termo onde
constam os dados documentais e o telefone do pesquisador, podendo tirar suas dúvidas sobre a
pesquisa, agora ou a qualquer momento.
______________________________________
Victor Lage
(RG: 26.176.952-2 / CPF: 293.951.878-59 / Tel.: (16)8165-2665 / aluno regular do
PPGE/UFSCar, orientado pelo Prof. Dr. Luiz Gonçalves Junior)
Declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios de minha participação na pesquisa e
concordo em participar.
São Carlos, ____ / _____ /______ .
_________________________________________
Nome do Sujeito da Pesquisa
(RG: _________________ / CPF: ____________________/ Tel.: ___________________ )
_________________________________________
Pai, Mãe ou Responsável pelo Sujeito da Pesquisa
(RG: _________________ / CPF: ____________________/ Tel.: ___________________ )
204
ANEXO 2
Modelo do Termo de consentimento livre e esclarecido entregue aos
responsáveis pelas crianças participantes do projeto, coletados junto à pesquisa
desenvolvida sob a coordenação do Prof. Dr. Luiz Gonçalves Junior DEFMH/PPGE –
UFSCar), sob a responsabilidade do Ms. Matheus Oliveira Santos (PPGE-UFSCar).
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Você, ____________________________________________________________, e seu
Responsável, __________________________________________________, estão sendo
convidados(as) para participar da pesquisa pesquisa “Vivências em Atividades Diversificadas
em Lazer: processos educativos de uma prática social”. A qualquer momento, até a conclusão da
mesma, vocês poderão desistir de participar e retirar seus consentimentos, suas recusas não
trarão nenhum prejuízo na relação com o pesquisador ou com a instituição. Os objetivos deste
estudo são investigar a preferência do que fazer no dia-a-dia para os participantes e seus
responsáveis; os processos educativos envolvidos nas vivências do projeto de extensão
“Vivências de Atividades Diversificadas em Lazer” (DEFMH/UFSCar). Suas participações
nesta pesquisa consistirão em conceder entrevista gravada, registro de observações em diários
de campo e imagens para uso exclusivamente acadêmico-científico. Não há qualquer risco com
suas participações e poderá haver benefícios no sentido de melhorarmos na qualidade das ações
desenvolvidas na “Estação Comunitária” (ECO) do Jardim Gonzaga da cidade de São Carlos,
bem como interferirmos na política pública de lazer da cidade de São Carlos. Salientamos que
seus nomes serão alterados garantindo sigilo. Vocês receberão uma cópia deste termo onde
constam os dados documentais e o telefone do pesquisador, podendo tirar suas dúvidas sobre a
pesquisa, agora ou a qualquer momento.
______________________________________
Matheus Oliveira Santos
(RG: 27.071.032-2 / CPF: 268.800.858-73 / Tel.: (16)8116-4444 / aluno regular do
PPGE/UFSCar, orientado pelo Prof. Dr. Luiz Gonçalves Junior)
Declaro que entendi os objetivos, riscos e benefícios de minha participação na pesquisa e
concordo em participar.
São Carlos, ____ / _____ /______ .
_________________________________________
Nome do Sujeito da Pesquisa
(RG: _________________ / CPF: ____________________/ Tel.: ___________________ )
_________________________________________
Pai, Mãe ou Responsável pelo Sujeito da Pesquisa
(RG: _________________ / CPF: ____________________/ Tel.: ___________________ )
205
BREVE HISTÓRIA DO KARATÊ-DO
Técnica: “Yoko Tobi Geri” (“Salto com Chute Lateral”)
O Karatê-Do, assim como muitas outras artes marciais
orientais, tem sua origem mais antiga relacionada a lutas da
Índia, as quais mais tarde chegaram á China, onde se
desenvolveram outras lutas. Após muitos anos, elas foram se
desenvolvendo e passaram então para a Ilha de Okinawa, no
Japão, e foram mescladas as lutas nativas, formando duas
grandes escolas, “Shuri-Te” e “Naha-Te”, as mesmas se
desenvolveram e posteriormente deram origem a vários estilos
(escolas) de Karatê que conhecemos atualmente.
Em 1922, o Karatê-Do foi introduzido em Tóquio
(Japão), através de Gichin Funakoshi, mestre que destacou as
características educacionais encontradas na prática do Karatê-
Do, procurando formar e aperfeiçoar o caráter, a
personalidade, tendo como objetivo a vida em sociedade.
Diversos valores estão colocados na prática educativa
do Karatê-Do, tais como a persistência, a disciplina, a
determinação, a humildade, a sinceridade e o respeito ao outro,
valores que são apreendidos e ensinados no caminho trilhado
pelo Karateca que educa e se educa, na busca de uma
compreensão mais profunda, amadurecida, do Karatê-Do.
Existem atualmente diversos estilos de Karatê-Do,
porém, esta história refere-se apenas à escola difundida pelo
Mestre Gichin Funakoshi, chamada de “Shotokan”.
Sendo assim, com características genuinamente
orientais o Karatê-Do propagou-se por todo o mundo,
chegando ao Brasil através das imigrações japonesas,
realizadas no começo do século passado, difundindo-se em
todos os estados brasileiros e, possuindo hoje no Brasil cerca
de 1.400.000 (um milhão e quatrocentos mil) praticantes.
ANEXO 3
Jornalzinho produzido pelo projeto “Vivências em Atividades
Diversificadas em Lazer” sob a coordenação do Prof. Dr. Luiz Gonçalves Junior
DEFMH/PPGE – UFSCar), e sob a responsabilidade do Ms. Matheus Oliveira Santos
(PPGE-UFSCar), contendo a participação das crianças.
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Departamento de Educação Física e Motricidade Humana / Universidade Federal de São Carlos
Secretaria Municipal de Esporte e Lazer – Secretaria Municipal de Cidadania e Ação Social / Prefeitura Municipal de São Carlos
Ano 7, Número 25 Maiol 2007
Editorial
Olá galera!!! Estamos de volta com o nosso
Jornalzinho recheado de informações e muito divertimento. O
ano de 2007 começou cheio de novidades, temos professores
novos (Érica, Rosângela e Victor), projetos novos (Roda de
Conversa e Animação com Massinhas), brincadeiras e passeios
muito divertidos.
Nessa edição iremos encontrar matérias sobre o
passeio ao buracão, sobre a comemoração ao Dia do Índio e
uma matéria especial da luta praticada pelo professor Victor, o
Karatê-Do.
Ah! Não percam as fotos, os desenhos e o super
caça-palavras que estão de arrasar. Então boa leitura e bom
divertimento.
Passeio ao Buracão
Mais uma vez realizamos o passeio ao
Buracão. Nesse ano tivemos uma grande surpresa.
Durante todo o caminho nos deparamos com as
temidas aranhas, mas que na verdade não faziam mal a
ninguém.
Novamente o destaque foi o piquenique, todos
se deliciaram com uma variedade de comidas e
bebidas. Fica a saudade no coração e a vontade de
voltar logo.
206
D X D C A N O A T W D D A S E P D D U B X F
R E S D F U I J N BV V V C U Y T R D C F G U
I K M Í N D I O P M G E Q A S E S A A E E G H
D E T Y U H G F R E S A W A A D F V C Z V B
Q U H D R U S D E T E N B A R D O F R D E F
D E A R C O E F L E C H A X F R E S D F U I J
K L U I N D E J E N S U D D N S I O D N D F B
V C F F E D G J J DF O G U E I R AT A E S A D
U B X S P E I X E D F U I J N BV V V C U Y T
R D C F G U I H C A E R C V N J I P O M G E Q
A S E S A P E T E C A Z H G F R E S A W A A
D F V C Z V B Q U M A N D I O C AG H J K L
Caça-Palavras
: Peteca, índio, arco e flecha, peixe,
mandioca, fogueira e canoa.
História do Dia do Índio
Comemoramos todos os anos, no dia 19 de Abril,
o Dia do Índio. Esta data comemorativa foi criada em
1943, pelo nosso presidente Getúlio Vargas. Mas por que
foi escolhido o 19 de abril?
Há muito tempo atrás, em 1940, ocorreu o
primeiro Congresso Indigenista Interamericano no México,
que contou com a participação de autoridades
governamentais e vários líderes indígenas da nossa
América Latina. Esse primeiro congresso ocorreu no dia
19 de abril, que depois foi escolhido, no continente
americano, como o Dia do Índio.
Como vemos os índios
Para nós os índios são pessoas iguais a gente,
mas com costumes diferentes. As brincadeiras são
diferentes, pois tivemos a oportunidade de conhecer
algumas atividades sobre os índios Kalapalos no
SESC/São Carlos.
Outra curiosidade nossa foi quando a gente viu
os índios na televisão, todos estavam com pouca roupa, e
com o corpo pintado. Infelizmente só ouvimos falar dos
índios no seu dia, no resto do ano pouco se falam deles.
Gostaríamos muito de vê-los de novo aqui em
São Carlos e de conhecer melhor os seus costumes,
como a alimentação, família, respeito e carinho.
Abaixo alguns desenhos para relembrar o dia do
índio. A! Não deixem de colorir nossos desenhos...
207
ANEXO 4
Modelo do Termo de consentimento livre e esclarecido entregue aos aos
educadores e participantes voluntários desta oficina.
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
O(A) Senhor(a), ___________________________________________________________,
está sendo convidado para participar da pesquisa “As lutas e os seus
processos educativos: uma experiência junto a comunidade do Jardim
Gonzaga – São Carlos”. A qualquer momento, até a conclusão da mesma, o(a)
Senhor(a) poderá desistir de participar e retirar seu consentimento, sua recusa
não trará nenhum prejuízo na relação com o pesquisador ou com a
instituição. O objetivo central deste estudo é buscar uma compreensão dos
processos educativos envolvidos na prática das lutas entre freqüentadores da
Estação Comunitária (ECO) do Jardim Gonzaga, cidade de São Carlos. Sua
participação nesta pesquisa consistirá em conceder registro de observações em
diários de campo e imagens para uso exclusivamente acadêmico-científico.
Não há qualquer risco com sua participação e poderá haver benefícios no
sentido de melhorarmos a qualidade das práticas desenvolvidas na ECO, bem
como na compreensão da dimensão histórica e de sabedoria de vida das lutas
de uma forma geral. Salientamos que seu nome será referenciado nas
publicações. O(A) Senhor(a) receberá uma cópia deste termo onde constam os
dados documentais e o telefone do pesquisador, podendo tirar suas dúvidas
sobre a pesquisa, agora ou a qualquer momento.
______________________________________
Victor Lage
(RG: 26.176.952-2 / CPF: 293.951.878-59 / Tel.: (16)8165-2665 / aluno
regular do PPGE/UFSCar, orientado pelo Prof. Dr. Luiz Gonçalves Junior)
Declaro que entendi os objetivos e os benefícios de minha participação na
pesquisa e concordo em participar.
____________________, ____ / _____ /______ .
_________________________________________
Nome do Sujeito da Pesquisa: ______________________________________________
(RG: _________________ / CPF: ____________________/ Tel.: ___________________ )
Livros Grátis
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