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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Carmen Medeiros Lima
O fascínio da morte e o alumbramento:
O Belo Belo de Manuel Bandeira
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2009
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CARMEN MEDEIROS LIMA
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre
em Literatura e Crítica Literária sob a
orientação da Profa. Dra. Olga de Sá.
São Paulo
2009
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BANCA EXAMINADORA
_______________________________
_______________________________
_______________________________
A
Ailton e Samanta
AGRADECIMENTOS
À Professora Olga de Sá pelas preciosas orientações e incentivo.
Aos professores Maria José Palo e Paulo César Carneiro Lopes pelas
sugestões feitas durante exame de qualificação.
Aos professores do curso de Literatura e Crítica Literária da PUCSP,
professor Fernando Segolin e Maria Aparecida Junqueira, pelas brilhantes
aulas que favoreceram a minha pesquisa.
Ao professor Gerson Tenório dos Santos pelas discussões
enriquecedoras sobre a poesia.
À amiga Vânia Rufino pelas leituras e sugestões.
À Secretaria de Estado da Educação de São Paulo pela bolsa
concedida.
Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.
-Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.
MANUEL BANDEIRA.
RESUMO
O propósito desta dissertação é apreender o processo da lírica de Manuel
Bandeira na obra Belo Belo. Os poemas enfatizados são: “Poema para
Jaime Ovalle”, “O Homem e a Morte”, “Tempo-será”, “A Mário de Andrade
ausente”, “O lutador”, “Esparsa triste”, “A realidade e a imagem”, “Visita
noturna”, “Nova poética”, “Unidade”, “Arte de amar” e “Infância”. Esses poemas
estão agrupados em dois núcleos temáticos: morte e alumbramento. Dentro
deles, procura-se resgatar os elementos que operam como recursos na poética
de Manuel Bandeira e como o eu lírico, diante da morte, relaciona o
alumbramento com esse tema. A Fenomenologia como método auxilia o
entendimento do ser-no-mundo e da existência finita, traduzindo os
sentimentos em relação à morte. Observa-se a semelhança entre
alumbramento e epifania relacionando-os ao item biográfico, à experiência
marcada pela morte, à infância e ao corpo. Para as análises dos poemas
trazemos Davi Arrigucci Jr., Antonio Candido, Paul Zumthor, Cristovão Tezza,
Alfredo Bosi, Olga de Sá, Georges Bataille e outros. Das análises, conclui-se
que o ritmo é um dos elementos mais importantes na poesia de Manuel
Bandeira, pois estabelece conexões com a poesia humilde, com a memória da
infância, com o corpo e com o mundo. O que parece estar ligado ao tema da
morte é justamente o que conduz ao alumbramento. O tema da morte, para
Manuel Bandeira, adquiriu outro significado: o motor que iluminou o medo da
morte.
Palavras-chave: morte, Fenomenologia, ritmo, alumbramento, poesia.
ABSTRACT
The purpose of this Master dissertation is to apprehend the Manuel Bandeira’s
process of lyric poetry in Belo Belo work. The emphasized poems are: “Poema
só para Jaime Ovalle”, “O Homem e a Morte”, “Tempo-será”, “A Mário de
Andrade ausente”, “O lutador”, “Esparsa Triste”, “A realidade e a imagem”,
“Visita Noturna”, Nova poética”, “Unidade”, “Arte de amar” and “Infância”. Those
poems are divided in two thematic nucleus: death and alumbramento. Inside
them, this study tries to explore the elements that effect like resources in
Manuel Bandeira’s poetics and how the self lyric, before death, connects the
alumbramento with that theme. The Phenomenology as a method helps the
understanding of the being-in-world and of the finite existence, explainning the
feeling regarding to death. Observ itself the similarity between alumbramento
and Epiphany connectinning to the biography, to the experience of death, to the
childhood and to the body.To the poems analysis we bring Davi Arrigucci Jr.,
Antonio Candido, Paul Zumthor, Cristovão Tezza, Alfredo Bosi, Olga de Sá,
Georges Bataille and others. From analysis, we can conclude, the rhythm is the
most important element in Manuel Bandeira’s poetry because it establishes
connections with the humble poetry, the childhood memory, the body and with
the world. What seems connected to the death theme is exactly what leads to
alumbramento. The death theme to Manuel Bandeira, acquired another
meaning: the motto that ligthed up the fear of death.
Key words: death, Phenomenology, rhythm, alumbramento, poetry
Sumário
Introdução.................................................................................................... 9
Capítulo 1 - A morte à luz da Fenomenologia........................................... 14
1.1 Breve delineamento da Fenomenologia como método................ 14
1.2 A importância do conceito de morte para a compreensão do
tema na poesia de Manuel Bandeira................................................. 18
1.3 A morte e o que ronda a morte: panorama geral do tema
na obra de Manuel Bandeira............................................................... 20
Capítulo 2 – O Belo Belo e a liberdade poética: entre a poesia
e a prosa............................................................................................ 28
2.1 Nasce o Belo Belo........................................................................ 28
2.2 Poesia, prosa poética ou poema em prosa?................................ 30
2.3 Ritmo, voz e corpo: a poesia em tudo.......................................... 36
2.4 Elementos históricos, filosóficos e estéticos................................. 47
Capítulo 3 - O alumbramento..................................................................... 57
3.1 Momentos epifânicos: instantes de alumbramento....................... 57
3.2 O alumbramento da paixão: uma fenomenologia do corpo........... 64
3.3 O alumbramento da infância: “reminiscências”.............................. 71
3.4 O alumbramento final: “O lutador”................................................. 75
Considerações finais................................................................................... 78
Referências................................................................................................... 82
Anexos........................................................................................................... 87
Anexo A................................................................................................. 88
Anexo B................................................................................................. 89
Anexo C................................................................................................ 90
Anexo D................................................................................................ 91
Anexo E................................................................................................. 92
Anexo F................................................................................................. 93
Anexo G................................................................................................ 95
Anexo H................................................................................................ 96
Anexo I.................................................................................................. 97
9
Introdução
Não faço poesia quando quero e sim
quando ela, poesia, quer.
Manuel Bandeira.
Como leitora de Manuel Bandeira
1
muitos anos e, ao me aproximar
cada vez mais das suas poesias, deparei-me com uma leveza das palavras
que a arte literária é capaz de expor. Pacientemente, percorri toda a sua
obra e a minha admiração fez crescer. A primeira oportunidade de estudar
mais a fundo sua obra surgiu na graduação com a realização de um curso de
análise de texto, ministrado pelo professor Dr. Gerson Tenório dos Santos. O
poema trabalhado foi A maçã e, novamente, fui envolvida por aquela leveza.
Percebi que para entendê-la seria necessário aprofundar-me na simplicidade
das suas poesias. Foi essa simplicidade que aguçou mais a minha curiosidade
a respeito das suas obras e que me levaram justamente aos questionamentos
que sempre foram complexos: a morte e o alumbramento. Como esse
paradoxo poderia ser possível num poeta, cuja humildade é inerente as suas
poesias?
Com a evolução das minhas leituras pude perceber que essa humildade
tem o sentido de humus chão como diria Arrigucci (2003, p. 84) e que é
resultante de um conhecimento e domínio técnicos. A musicalidade e o ritmo
inerentes aos seus poemas são produtos da reflexão sobre a arte. É fácil
perceber essa afirmação ao iniciar a leitura das suas obras. Seus primeiros
livros têm influências parnasianas e simbolistas e, aos poucos, Manuel
Bandeira reflete sobre a arte literária e torna-se um dos poetas que mais
absorveu os movimentos de toda a moderna Literatura do século XX.
Este estudo propõe uma reflexão sobre os poemas do livro Belo Belo,
fruto da maturidade lírica de um dos mais importantes poetas da literatura
brasileira, Manuel Bandeira. O poeta passou por muitos lugares, procurando
climas que melhor o ajudassem no tratamento da tísica, como por exemplo,
Clavadel, na Suíça. Lá, o poeta teve contato com Paul Éluard. O convívio com
1
Para o conhecimento da cronologia de Manuel Bandeira, sugerimos a 12ª edição
comemorativa do centenário de nascimento do bardo, in Estrela da vida inteira, 1987.
10
esse poeta contribuiu para M. Bandeira iniciar sua poesia, ainda simbolista,
como se em Cinza das horas (1917). A partir de Carnaval (1919), seu
segundo livro, surgem influências de outros autores estrangeiros e também
questionamentos da forma vigente de se fazer poesia, decorrentes, por sua
vez, dos contatos do poeta com os futuros modernistas, como os escritores
Mario de Andrade e Oswald de Andrade, Ribeiro Couto, o sico Villa-Lobos e
a pintora Anita Malfatti. Essa obra contém o poema “Os sapos”, lido por Ronald
de Carvalho no segundo dia da Exposição da “Semana de Arte Moderna de
1922”. É um poema de ataque ao Parnasianismo, corrente literária ainda muito
forte na época. É o início da libertaçao das formas fixas e difusão dos versos
livres, que se tornam marcas de sua poesia.
É no seu terceiro livro de poesias, O ritmo dissoluto (1924), que as
manifestações do movimento Modernista começam realmente a se incorporar
na sua obra. O próprio poeta o definiu como “um livro de transição entre dois
momentos da minha poesia” (1984, p. 75). Os versos metrificados e os livres
são estudados, pelo poeta, com um novo olhar, o da modernidade.
Em Libertinagem (1930), o aprofundamento desse olhar com a
consolidação da sua poesia. A incorporação dos versos livres aos temas
corriqueiros ilustra uma mudança no modo de se fazer poesia. É a liberdade
estética. Rosenbaum (1993, p. 31) destaca que o Movimento Modernista foi
muito importante para a vida do poeta:
[...] é pela fenda modernista que o poeta escapa da vivência de
uma dor enclausurada para largar-se no descampado dos
telegrafismos, do humor, da ironia, dos sonhos e da vivacidade
de, afinal, ter sobrevivido.
Igualmente em Estrela da manhã (1936) e Lira dos cinqüent’anos (1940)
também a presença do humor e a linguagem popular próprias do
Modernismo. Essas obras mostram o poeta na sua plenitude literária com “a
perfeita homologia entre o sentimento e o ritmo” (BOSI, 1994, p. 364).
Em seguida, veio a primeira edição da obra Belo Belo, em 1948, o autor
contava 62 anos bem vividos. Após essa, ainda vieram Mafuá do malungo
(1948), Opus 10 (1952) e Estrela da tarde (1963). Todas foram reunidas num
único volume intitulado Estrela da vida inteira (1966), acrescido de outros
11
poemas. Realizou, também, muita produção em prosa como crônicas e
antologias.
Os temas, sugeridos neste estudo, morte e alumbramento fazem parte
dos questionamentos do homem em todas as culturas. Manuel Bandeira
perpassa esses temas na sua obra, progredindo de forma relevante.
Vale lembrar que a temática da morte de que M. Bandeira trata nas suas
poesias pode parecer que se deve unicamente ao fato da sua doença ser fatal,
sem nenhuma perspectiva de cura. Isso é muito pouco, quando se trata de um
poeta que utilizou a temática da morte e chegou aos alumbramentos.
As imagens são tiradas da mente e Manuel Bandeira é um poeta que se
deixa levar pela intuição, entendida como um conhecimento que ultrapassa o
raciocínio. A memória, os sentimentos, as imagens e as relações são as
experiências que o poeta tem, são suas vivências. Essas vivências são
entregues ao eu lírico e transformadas em linguagem poética.
A poesia exige que se tenha uma visão e uma voz de fora para poder
ser arte. Indiscutivelmente isto se aplica ao Bandeira-criador e ao Bandeira-
pessoa e decorre de todas as suas experiências, segundo Faraco (in: BRAIT,
2007, p. 37).
O eu lírico de Bandeira apresentou muitos poemas, nos quais se refere
às pessoas da família, ao seu círculo de amizades ou personalidades que, de
alguma forma, significaram muito em sua vida. São suas vivências. Somente
em Belo Belo podem citar-se Escusa, Sextilhas românticas, Improviso, Letra
para uma valsa romântica, No vosso e em meu coração, A Mário de Andrade
ausente, Esparsa triste, Resposta a Vinícius, JoCláudio e o belo Poema
para Jaime Ovalle.
Bandeira foi um importante precursor dos versos livres, numa época
dominada pelo parnasianismo. Começou a romper com essa métrica tradicional
por volta de 1912. Os versos livres servem justamente para relatar a vida
corriqueira, humilde, de Bandeira, que a métrica não podia expressar. O
parnasianismo, vigente nessa época, era muito artificial e os versos livres
significaram a volta ao natural, ao simples cotidiano vivenciado na poesia de
Bandeira. Mas o poeta não se reduziu a fórmulas acabadas do verso livre,
usando-os como uma obrigação. Tanto que retomou, mais tarde, o verso
tradicional.
12
Os poemas do livro Belo Belo, apresentam uma seqüência de imagens,
que vão sendo produzidas, como se fossem uma pequena narrativa, como no
poema O homem e a morte.
Ao trabalharmos com a comparação entre poesia e prosa nos
remetemos a Moisés (1984, p. 102) que diz “a distinção entre poesia e prosa
ultrapassa o aspecto formal”. textos narrativos que são poéticos da mesma
forma que um poema pode não ser poético. Cristovão Tezza servirá de base
para fundamentar distinção e/ou semelhança entre a poesia e prosa.
Para nortear e esclarecer o caminho que nos levará ao estudo da lírica
de M. Bandeira, especialmente na obra Belo Belo, procurei um método que
permeasse o movimento da sua poesia. Para tanto, fui buscar na Filosofia
elementos para a minha proposta metodológica. Esse caminho levou-me a
encontrar na Fenomenologia a base conceitual desse estudo.
O método fenomenológico traz luz à consciência de uma pessoa
maravilhada pelas imagens poéticas. Tudo o que passa pelos sentidos
transforma-se em intuição, como as imagens, os pensamentos, a memória e os
sentimentos. A tomada de consciência é um crescimento. M. Bandeira é um
poeta que utiliza a consciência, nas suas poesias, sem intencionalidade realista
ou idealista; deixa-se levar pela intuição. Nesse sentido, a Fenomenologia pode
esclarecer como esse movimento da poesia de Manuel Bandeira se dá, pois o
mais importante, nessa ciência, é o fenômeno, ou seja, como se manifesta a
imagem da consciência.
A Fenomenologia sublinha a interpretação do mundo que surge
intencionalmente à consciência, enfatizando a experiência pura do sujeito.
Essa
intencionalidade da consciência é apresentada como reflexo da vivência
que se concretiza nos atos voltados ao questionamento do ser.
O método fenomenológico propõe uma reflexão exaustiva e contínua
sobre a importância e validade desses questionamentos e respostas. Edmund
Husserl e Martin Heidegger também nos fornecerão elementos para esses
posicionamentos, principalmente quando se referem ao tema da morte.
A discussão sobre poesia é enriquecida pelo poeta que se julgava
menor. Nesse sentido, precisamos ter novos olhares para o gênero poesia,
pois está relacionado com as mais antigas formas de expressão humana, como
o trabalho, a dança e a canção, marcados pela cadência do ritmo.
13
Diante do tema da morte tão evidente na poesia de Manuel Bandeira,
minha curiosidade a respeito da sua obra aumenta, pois a presença da morte,
para algumas pessoas, pode fazer com que se possa tomar atitudes positivas
ou negativas enquanto se vive. Diante disso, procuro esclarecer:
-Quais elementos, segundo a Fenomenologia, operam como recursos
poéticos para traduzir a atitude do eu lírico diante da morte e qual a relação
com o efeito que se caracteriza como alumbramento?
A poesia De Manuel Bandeira encaminhou-se para atitudes positivas
diante da vida, porque ela iluminou o medo da morte, restabelecendo a paz ao
eu lírico. Os elementos constitutivos da poesia de Bandeira devem-se à
aproximação com a prosa e recriam, assim, uma construção resultante do ato
intencional da consciência. O alumbramento é uma súbita revelação do interior
do eu lírico e é dificil de ser apreendido pela palavra, resultando daí a poesia e
a sua aproximação com a prosa. A temática da morte tem relação profunda
com o alumbramento, porque este advém daquela.
No primeiro capítulo, A morte à luz da Fenomenologia, realizo uma
apresentação do conceito de Fenomenologia de Edmund Husserl,
aprofundando o tema morte em Martim Heidegger. Elaboro considerações
gerais a respeito do método fenomenológico hermenêutico como subsídio para
analisar os poemas que compõem o corpus da pesquisa.
No segundo capítulo, O Belo Belo e a liberdade poética: entre a poesia e
a prosa, realizo o estudo dos elementos poéticos, acompanhando uma análise
mais estética, com a finalidade de aprofundar esses elementos que o poeta
utiliza para esclarecer o tema do nosso estudo: morte e alumbramento.
O terceiro, O alumbramento, trata de modo geral da semelhança do
termo com a epifania, tendo como base principal os estudos de Olga de
(1979). Para tanto, ao realizar essa comparação, novos elementos vão
surgindo para constatar nossas hipóteses e os poemas analisados continuarão
ilustrando nossas descobertas.
Nas considerações finais, procuro resgatar os pontos trabalhados e
apontar como a poesia de Manuel Bandeira revela os elementos que traduzem
a morte na visão do poeta e qual é sua relação com o alumbramento.
14
Capítulo 1 - A morte à luz da Fenomenologia
O tempo é a face da morte. A morte é a pele do tempo.
Nossos processos temporais só se explicitam e se completam
na forma como constituímos a idéia ou a imagem da morte.
Gerson Tenório dos Santos
Nas considerações que se seguem, serão apontadas as idéias
essenciais de Edmund Husserl no que se refere ao conceito de Fenomenologia
e fenômeno e à consciência, enquanto fluxo temporal de vivências, cuja
capacidade é conceder significado às coisas exteriores. Igualmente, também,
as idéias de Heidegger na obra Ser e Tempo
2
, com a finalidade de
contextualizar e, em seguida, elucidar a importância do conceito de Dasein
3
,
bem como o método fenomenológico hermenêutico, para a sustentação do
tema morte.
1.1 Breve delineamento da Fenomenologia como método
Em Husserl, o pai da Fenomenologia”, uma unidade entre o ato de
conhecer e o objeto que é conhecido. É a possibilidade de conhecimento, de
apenas apreender o significado do acontecimento. Em outras palavras, é o que
acontece na consciência imediata, anterior a qualquer explicação. A
Fenomenologia se propõe a uma descrição das experiências vividas da
consciência, tal como se vêem a primeira vez, ou seja, natural e
espontaneamente. E cada indivíduo vê e sente de forma diferente do outro.
2
Utilizarei ST para me referir à obra Ser e Tempo de M. Heidegger, 2007.
3
Dasein: Esse termo alemão começa a ser usado no século XVIII. [...] Ele significa, na origem,
existência real, tanto das coisas finitas quanto à de Deus. [...] Em palavras mais simples, o
Dasein é o ser com determinado caráter ou qualidade, aquilo que se chama em geral de
“alguma coisa. [...] Mas, no uso filosófico contemporâneo, essa palavra ingressou com o
significado atribuído pelo existencialismo, sobretudo por Heidegger, que a usou para designar a
existência própria do homem.”Esse ente, que nós mesmos sempre somos e que, entre as
possibilidades de ser, possui a de questionar, designamos o termo Dasein”. [...] Com
significação semelhante, foi usado por Husserl, que com ele designa a existência da
consciência, considerada privilegiada porque necessária.(ABBAGNANO, 2007, verbete Dasein,
p. 268).
No decorrer do presente trabalho, utilizarei o termo Dasein, em itálico, com o propósito de
manter a designação do conceito de Heidegger.
15
A Fenomenologia estuda, assim, as essências da consciência, suas
estruturas e seus atos. Husserl denominou “mundo” a região exterior e
“consciência” a região interior. Para a compreensão de como as imagens da
região exterior passam para a região interior, o filósofo levou em conta um
procedimento que ele denominou de redução ou epoquê (2005, p. 10):
[...] é a operação pela qual a existência efetiva do mundo
exterior é “posta entre parênteses”, para que a investigação se
ocupe apenas com as operações realizadas pela consciência
sem que se pergunte se as coisas visadas por ela existem ou
não realmente.
Dessa forma, a visão das coisas das regiões exteriores é tal como se
vêem espontaneamente, naturalmente. Assim, a Fenomenologia indaga
primeiro como a consciência funciona e se estrutura para justificar o modo de
ver e viver de cada um, ou seja, a naturalidade do modo de viver cotidiano de
cada ser. Exemplificando: cada indivíduo tem uma maneira diferente de ver, do
outro.
Martin Heidegger, aluno de Edmund Husserl e fortemente influenciado
por ele, aprofunda mais o problema do ser. Em ST, a pergunta é sobre o
sentido do ser
4
e a possibilidade de se interrogar e compreender esse ser que
nós somos e sobre o qual nos indagamos. Heidegger busca, na História da
Filosofia, o conceito de ser, a partir dele mesmo, sem vinculação com outros
conceitos e que serviu para elaborar o método fenomenólogico. Outro aspecto
encontrado por ele é o estudo das estruturas do Dasein a partir da elaboração
obtida acerca do conceito de ser.
Esse filósofo percebeu que precisava muito mais do que a teoria e
interpretação da história e da vida para a compreensão do ser. Para tanto, essa
necessidade foi buscada pela via ontológica
5
. Dessa forma, desdobrando as
estruturas fundamentais e a explicitação do método, poder-se-ia chegar ao
sentido do ser.
4
Essa discussão sobre o sentido do ser é encontrada na introdução e nos capítulos I e II da
referida obra.
5
Ontológico: que se refere à essência ou natureza geral de cada particularidade; doutrina do
ser e das suas formas; estuda o ente como ente; oposição a ôntico: múltiplo e concreto;
existente, ciência. (ABBAGNANO, 2007, verbete ontológico, p. 848).
16
Esse método fenomenológico hermenêutico
6
, fundamentado na
ontologia, conduziu a um novo caminho, na questão do sentido do ser,
revelando um novo caminho de compreensão do Dasein, pois clareia e
recupera os sentidos dos fenômenos: “para as coisas elas mesmas!”
(HEIDEGGER, 2007, P. 66). Em outras palavras, fenômeno é o que se mostra
em si mesmo.
No método de investigação, Heidegger aponta dois aspectos essenciais
para a compreensão e discriminação entre a explicação dos modos de ser do
Dasein e o próprio método. No primeiro, as estruturas fundamentais do Dasein
são descritas como fenômenos, ou seja, o modo como se mostra e ou se
encobre. No segundo aspecto, os fenômenos podem ter diferentes tipos de
compreensão, como as condições de possibilidade de algo se dar, chamados
de pré-ontológico e ontológico; e, também, a consideração do cotidiano das
experiências humanas, ponto de partida do Dasein.
Ao falar das estruturas fundamentais do Dasein, o filósofo o compreende
como ser-no-mundo
7
, que significa dizer que é constituído por uma tríplice
unidade: um ente que compreende a si mesmo, junto às coisas e junto com os
outros no mundo. Não há, pois, separação entre o Dasein, as coisas e o
mundo. O Dasein é um ente que interpreta o mundo e descobre a si mesmo.
Em outras palavras, a nossa condição de Dasein é pertencer ao mundo. A essa
relação de Dasein com o mundo, Heidegger (2005, p. 124) denominou de
transcendência
8
:
Transcendência concebida como ser-no-mundo, quer atribuir-
se ao ser-aí humano [...] Transcendência significa então: fazer
parte do resto do ente que subsiste puramente ou que
respectivamente pode ser multiplicado continuamente até o
ilimitado. Mundo é, então, a expressão que resume tudo o que
é, a totalidade, como unidade que determina o tudo” como
uma reunião e nada mais além. Se se toma para o discurso
6
“Fenomenologia da presença é hermenêutica no sentido originário da palavra em que se
designa o ofício de interpretar. [...] A hermenêutica da presença torna-se também uma
“hermenêutica” no sentido de elaboração das condições de possibilidade de toda investigação
ontológica.” (HEIDEGGER, 2007, p. 77).
7
Em itálico por se tratar de um conceito de Heidegger, conf. a tradutora Márcia Sá C.
Schuback.
8
Em outros termos, é pelo ato de transcendência que o homem, como ente no mundo, se
distingue dos outros entes ou objetos e se reconhece como “ele mesmo”. Heidegger, portanto,
considera a transcendência como o significado de ser-no-mundo. (ABBAGNANO, 2007,
verbete transcendência
, 1158).
17
sobre o ser-no-mundo este conceito de mundo, então, sem
dúvida, a “transcendência” deve ser atribuída a cada ente como
puramente subsistente. Puramente subsistente , isto é, o que
ocorre entre outras coisas, “está no mundo”.
Heidegger (2005, p. 121) explica, também, a terminologia da palavra
“transcendência”, que significa “ultrapassagem”. Ou seja, “uma relação que se
estende de algo para algo” e que “em cada ultrapassagem, algo é
transcendido”.
O Dasein descobre os entes por meio de sua compreensão, assim como
descobre os outros. O ser-com
9
constitui existencialmente o ser-no-mundo. Os
outros fazem parte da presença e todos descrevem o modo de ser do Dasein
na cotidianidade. Essa compreensão
10
que constitui o modo de ser e descobrir
o mundo não diz respeito à razão, mas apenas ao modo de ser e existir.
Com a compreensão, as coisas são encontradas no mundo tendo
sempre um ‘para quê’. Esta serventia projeta as possibilidades de poder se
decidir e se conhecer acontecendo em conjunto com os outros, com as coisas
e com o mundo numa totalidade.
No cotidiano, o Dasein se envolve em suas tarefas junto com os outros,
se familiarizando em uma conformidade. É o discurso denominado de
impessoal, conforme Heidegger (2007, p. 184):
Assim nos divertimos e entretemos como impessoalmente se
faz; lemos, vemos e julgamos sobre a literatura e a arte como
impessoalmente se e julga; também nos retiramos das
“grandes multidões” como impessoalmente se retira; achamos
“revoltante” o que impessoalmente se considera revoltante. O
impessoal, que não é nada determinado, mas que todos são,
embora não como soma, prescreve o modo de ser da
cotidianidade.
A convivência é uma condição necessária para o conhecer-se e para o
envolvimento no cotidiano. O modo como ocorre esse envolvimento encobre a
angústia do existir, pois o Dasein se refugia nesse mundo, quando cuida e
interage consigo mesmo e com os outros. Ao falar da noção de cuidado,
Heidegger demonstra que as nossas atitudes, quando nos ocupamos das
9
Conceito de Heidegger.
10
Sobre a compreensão ver § 32 de ST.
18
coisas, se referem ao nosso próprio modo de ser e, assim, viabilizam a nossa
existência. O cuidado também pode ser compreendido como um conjunto de
disposições que compõem o existir humano como antecipar-se a si mesmo,
ater-se a uma certa situação ou ocupar-se com as coisas. É a totalidade das
estruturas ontológicas do Dasein.
Essas breves explicitações das estruturas fundamentais do Dasein e do
método fenomenológico, de forma geral, são para dar suporte e fornecer os
elementos necessários para a próxima abordagem que será o ser-para-a-
morte, fundamental para o entendimento do tema morte na poesia de Manuel
Bandeira.
1.2 A importância do conceito de morte para a compreensão do tema na
poesia de Manuel Bandeira
Um tema importante descrito na obra de Heidegger, ST, é o tema da
angústia, no qual o filósofo aponta uma característica fundamental da
existência humana ser-para-a-morte
11
. Este conceito existencial aparece
fortemente aderente à poesia de Manuel Bandeira.
O conceito de angústia foi inspirado na filosofia de Soren Kierkegaard.
Segundo ele, a angústia pode ser entendida como a atitude do homem em
relação a sua situação no mundo. É o sentimento que se apresenta de forma
sonhadora, sem nenhuma garantia de realização e que sempre está presente
no homem. Kierkegaard considera que o surgimento da angústia é a questão
central da situação humana, quando se refere que o homem é dotado de corpo,
alma e espírito. A alma e o corpo são imagináveis se o espírito estiver junto,
pois este é o que equilíbrio, como no sonho. Contudo o espírito também
provoca a angústia na medida em que confunde a relação entre a alma e o
corpo. É uma potência ambígua e, por este motivo, provoca a angústia. Nas
palavras daquele filósofo (2007, p. 50):
[...] porém existe, ao mesmo tempo, outra coisa que, entretanto,
não é perturbação nem luta, porque não existe nada contra que
lutar. O que existe então? Nada. Que efeito produz este nada?
Esse nada nascimento à angústia. está o mistério
11
Em itálico por se tratar de um tema desenvolvido por Heidegger.
19
profundo da vida: é, ao mesmo tempo, angústia. Sonhador, o
espírito projeta a sua própria realidade, que é um átimo, e a
inocência vê sempre e sempre, diante de si, esse nada.
Diante disso, Heidegger também considera que a angústia é a
disposição afetiva que revela o nada da existência, ou seja, a possibilidade da
impossibilidade de existir. Segundo esse filósofo, “na angústia, se está
“estranho” [...]: o nada e o “em lugar nenhum” (2007, p. 255). Assim, o Dasein
se angustia com a indeterminação da sua morte e, ao mesmo tempo, possibilita
a liberdade de escolher a si mesmo, pois ao assumir o vazio e a sua finitude no
mundo, compreende essa morte.
Nesse contexto situa-se Manuel Bandeira e o tema da morte recorrente
em sua poética.
Em seus vários momentos de escritura e leitura, a poesia tem o poder de
influir, de comover, de clarear idéias, de repercutir continuamente na memória
e mexer com a imaginação dos homens. Quando a total entrega ao poema,
seja na sua leitura ou escrita, a realidade poética torna-se o momento em que
se vive. A poesia procura revelar ao mundo o íntimo, as preocupações, os
sentimentos, a transformação, os valores e o conhecimento. Ela nos põe em
diálogo com o outro, pois exprime aquilo que não foi possível ser revelado por
outros meios. Poesia é uma alternativa de vida.
Considerando essa alternativa, Cunha (2000, p. 61) observa Manuel
Bandeira e a sua poesia:
Assim, Bandeira, mesmo sentindo-se ameaçado por uma
sensação desconfortável, até mesmo perigosa e intimidativa,
minora o peso da constante convivência com a morte e resolve,
em parte, a sua angústia. É que, a partir do momento em que
ela, a morte, está no ar, ele não é mais o responsável direto por
ela, e não exerce, conseqüentemente, domínio algum sobre o
que vem do exterior. Essa é, portanto, uma forma de resolver,
emocionalmente, aquilo que a penosa realidade cotidiana não
permite que seja solucionado, devolvendo ao poeta a alegria e
o prazer de uma vivência normal e saudável.
A autora nos informa que Manuel Bandeira poetiza a sua biografia,
coloca suas vivências na poética e traduz seus sentimentos em relação à morte
iminente. É uma forma de embate entre o sentimento e seu estado físico,
20
saindo vitorioso por meio da arte. É, também, a maneira de amenizar a
angústia em razão da doença prolongada.
O Dasein se angustia, tendo sido afetado pela possibilidade da morte e
essa compreensão, no sentido ontológico, revela ao Dasein que ele não é uma
totalidade acabada, mas em vias de se findar. É no momento da morte que o
Dasein se descobre como duração, pois a existência inclui a morte. A isso
Heidegger denomina de ser-para-a-morte. A morte é, pois, um acontecimento
da vida e que faz o Dasein assumir sua condição mais própria, ou seja, é um
ente temporal, porque a compreensão da morte vem por meio do tempo.
O poeta se projeta para o futuro, ao se dar conta do seu fim e volta ao
seu estar-aí
12
e toma o sentido ontológico do cuidado, ou seja, o poeta toma
outra atitude para compreender sua finitude: volta-se para si e para suas
possibilidades, assumindo sua facticidade e decide enfrentar sua existência.
Ele se projeta na poesia.
1.3 A morte e o que ronda a morte: panorama geral do tema na obra de
Manuel Bandeira
Ao pensar nos primórdios do que significava a poesia, atribuia-se aos
poetas a inspiração divina. Ao se fazer poesia, havia a invocação das musas,
ou seja, de supostas divindades ou gênios que inspiravam a poesia. Será que a
morte pode ser considerada uma musa para o poeta Manuel Bandeira? A
tísica
13
não é nada bonita, portanto jamais seria uma musa perfeita.
De acordo com Cunha (2000, p. 70), Manuel Bandeira tem uma
“fragilidade diante da idéia de morte e da necessidade de se aprender a
morrer” e “essa ameaça serve ao poeta de adaptação à ambígua e sofrida idéia
de morte em vida”. Esse pensamento da autora justifica-se nas primeiras obras
do poeta, como Cinza das horas e Carnaval, mas nas posteriores, esse
pensamento se transforma. Não mais a sombra ameaçadora da morte. Esta
morte que o perseguia passa a ser a “amada que mais amou”
14
. É o momento
12
Em itálico por se tratar de um tema desenvolvido por Heidegger.
13
M. Bandeira descobriu que tinha tuberculose aos dezoito anos. Uma doença incurável na
época.
14
Verso do poema O homem e a morte do livro Belo Belo, 1948. In: BANDEIRA, Manuel.
Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1987.
21
de intensa revelação do espírito movido pelo desejo, trazendo pensamentos à
consciência, expressando essa revelação, interior, poeticamente.
Espinheira (2004, p. 64) colhe essa transformação do tema da morte
para Manuel Bandeira:
Sem dúvida suas temáticas foram-se ampliando e
diversificando, mas isto à medida que o poeta via tornar-se
menos ameaçadora a sombra da morte e ficava, com a idade,
mais filosoficamente conformado e atento ao mundo exterior,
de que aos poucos foi também participando, o que de início lhe
fora vedado. Claro que muitas vezes [...] se limita a exercitar
técnicas, mas a sua poesia propriamente dita é toda fundada
na “experiência”- e procurando expressá-la.
Esse estudioso afirma que Manuel Bandeira passa por estágios que o
crítico denomina de “naturezas” da morte. A saber, a primeira natureza seria a
da juventude, em que o inconformismo com a notícia de que está
desenganado. Esse inconformismo torna-se seriedade e é bem percebido no
seu primeiro livro A cinza da horas. na segunda natureza, o processo de
aceitação da morte, trocando-se a seriedade pela alegria, expressas também
nos poemas a partir da sua segunda obra Carnaval. o amadurecimento do
poeta, facilmente percebido nos demais poemas das outras obras que se
seguiram. A terceira natureza é a velhice, não no sentido de decrepitude, mas
ao contrário: na sua plena realização intelectual, a plena maturidade. Essas
naturezas também podem ser comparadas com os pensamentos do homem,
pois eles mudam ao longo dos anos. Muda-se o modo de pensar a morte tal
qual se transformou ao longo de toda a história literária ocidental. É na terceira
natureza, que está localizado o livro Belo Belo. A relação do poeta com a morte
não é mais a de inconformismo e nem de aceitação. O eu-lírico toma
consciência da sua vida .
Poderíamos comparar essas naturezas com o pensamento do homem,
pois o modo de pensar a morte mudou ao longo da história Ocidental. A esse
respeito, Áries (2003, p. 100), estudioso do tema morte, afirma que na Idade
Média, a morte era aceita de maneira muito natural, como um destino. Os
mortos faziam parte do cotidiano familiar. Assistia-se à morte como um
espetáculo grotesco, mas que não causava estranheza nem para as crianças.
O moribundo sofria com uma doença terminal e todos ficavam ao seu redor até
22
que ele desse o último suspiro. Isso lhe daria a glória de herói, que logo era
esquecida pela morte de outra pessoa. no Romantismo, a morte toma outra
forma. A morte é exaltada, pois inspira lembrança. Ela não é mais coletiva. A
morte de um ente querido era muito bonita e a dor da perda era demonstrada
nas vestes de quem o amava, o luto. A morte, é menos aceita do que na Idade
Média, pois temia-se a morte do ente querido, mas ao mesmo tempo, a dor que
a morte causava nas pessoas era bonita. Na Modernidade, a morte foi afastada
das famílias, levando-se as pessoas doentes ao hospital, escondendo-se o seu
verdadeiro estado de saúde. A morte, pois, agora é solitária, as crianças são
afastadas dela, o hospital e os médicos é que cuidam de tudo. As famílias se
encarregam apenas de pagar.
Diante disso, observa-se que a morte, ao longo dos séculos, vai
perdendo completamente a sua familiaridade. Toda ostentação que se fazia em
torno da pessoa que estava morrendo foi cedendo lugar ao silêncio. É uma
ruptura dentro da cultura da morte.
Qual é o significado da morte para Manuel Bandeira? O que se constata
em tantas das suas poesias é que ele não se afasta da ameaça da morte,
antes mantém um diálogo com ela e, por meio da intuição, a transforma em
poesia: “A Indesejada das Gentes”, “A Dama Branca”, “Iniludível” etc.
Wilson Castello Branco (In: Lopes: 1987, p. 103) classifica a poesia de
Manuel Bandeira, semelhantemente ao que fez Espinheira, em estágios:
A primeira fase é de submissão ao sentido e à forma clássica
(A cinza das horas, Carnaval e Ritmo dissoluto); a segunda, de
libertação da forma e quase autonomia do sentido
(Libertinagem); a terceira, de superação de ambas as coisas,
ou melhor, de plenitude artística (Estrela da manhã e Lira dos
Cinqüentanos).
Esse estudioso explica que essas fases distintas são caracterizadas não
somente pela sua história de vida, mas também, pelas marcas da forma
literária vigente na época em que viveu. Na primeira fase estão contidas
marcas pessoais da vida do poeta, portanto com ligações diretas com sua
condição de saúde e, também, ligada à rima e à métrica convencionais. O tema
da morte é fixado, segundo Branco (ibidem), por meio de um “lirismo
melancólico, desprovido de quase nenhuma revolta” e isto é apresentado
23
segundo os moldes literários da forma vigente (da época) de se fazer poesia.
No poema que vem a seguir, Desencanto, há a visão de como o tema da morte
está presente e, por meio dele, M. Bandeira não abandona a rima e nem a
cadência rítmica
Eu faço versos como quem chora
De desalento...de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa...remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
-Eu faço versos como quem morre.
(BANDEIRA, 1987, p. 4)
É um estado de aceitação da sua condição de saúde. Mesmo nos
poemas em que há uma reação de enfrentamento à doença, como por
exemplo, no poema Plenitude com a crença na natureza, percebe-se a
angústia. Isso é revelado logo nos primeiros versos:
Vai alto o dia. O sol a pino ofusca e vibra.
O ar é como de forja. A força nova e pura
Da vida embriaga e exalta. E eu sinto, a fibra a fibra,
Avassalar-me o ser a vontade da cura.
(BANDEIRA, 1987, p. 26)
Na obra Carnaval, o poeta mais simbolista, fala do tema morte
começando a se libertar das formas, com transgressão de sons, sem
abandonar o tom melancólico. Vale a pena verificar essa afirmação de Branco
(idem, p. 104), nos primeiros versos do poema “A silhueta”, a seguir:
Na sala obscura, onde branqueja
A mancha ebúrnea do teclado,
Morre e revive, expira, arqueja
O estribilho desesperado.
(BANDEIRA, 1987 p. 55)
24
A palavra “obscura” denota o sentimento de solidão do poeta, pois está
em seu quarto, sozinho. O que começa a clarear a sua mente é a percepção do
único objeto que o mantém vivo, a máquina de escrever, simbolizada no verso
“mancha ebúrnea do teclado”. Entre um verso que produz e outro, respira
profundamente procurando uma forma certa para o poema, mas ao mesmo
tempo, percebe que a forma perfeita está desgastada: “o estribilho
desesperado”.
Acrescentando, ainda, mais alguns versos do poema “A Dama Branca”,
da mesma obra Carnaval:
A Dama Branca que eu encontrei,
Faz tantos anos,
Na minha vida sem lei nem rei,
Sorriu-me em todos os desenganos.
[...]
Em desejo? – Credo! De tísicos?
Por histeria...quem sabe lá?...
A Dama tinha capríchos físicos:
Era uma estranha vulgívaga.
[...]
[...]
A Dama Branca levou meu pai
(BANDEIRA, 1987, p. 62)
Está mais claro, nesses versos, que o poeta procura se desvencilhar das
formas em uso, como as rimas e o metro. Observa-se que, mesmo procurando
outras formas de se fazer poesia, o tema da morte e todos os outros temas que
M. Bandeira trabalha, não perdem jamais a musicalidade
15
. O verso-forma vai
sendo superado por novas expressões, mostrando a sua reflexão perante a
Literatura e a Arte do momento. O simbolismo está fortemente presente. No
livro O ritmo dissoluto (BANDEIRA, 1987, P. 72) também muitos poemas
que demonstram nossas afirmações no que se refere ao tema da morte.
para citar alguns poemas dessa obra: Felicidade, Os sinos, Madrigal
melancólico, Quando perderes o gosto humilde da tristeza etc. Em todos eles,
15
A musicalidade e o ritmo serão vistos no capítulo 2.
25
a libertação das formas se torna mais concreta, com quase todos eles sendo
feitos de versos livres
16
.
Sobre a segunda fase do poeta, Branco (idem, p. 105) nos revela que
em Libertinagem (BANDEIRA, 1987, P. 93) “a tristeza quase desaparece deste
livro, enquanto a amargura continua presente.” O exemplo que melhor visualiza
essa afirmação é, sem dúvida, o poema Pneumotórax:
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
-Diga trinta e três.
-Trinta e três...trinta e três...trinta e três...
-Respire.
......................................................................................................
-O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão
[direito infiltrado.
-Então. Doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
-Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
(BANDEIRA, 1987, p. 97)
O tom irreverente e teatral sobre o tema da morte toma outro caminho,
paradoxalmente: se não se pode vencer a morte, então vamos viver dela.
Sobre essa fase, Branco (idem, p. 107) nos diz: “A causa dessa renovação
deve-se ao fato de ter ele substituído a descrição objetiva das coisas pela
sugestão íntima que elas produzem.” É a experiência artística transformando o
tema da morte em motivo de realização vital. Em outras palavras: inspiração.
Na terceira fase, completa maturidade do poeta e da pessoa M.
Bandeira; as preocupações objetivas são deixadas de lado, fixando-se na sua
intimidade, aceitando a morte. A forma da poesia clássica é retomada em
muitos poemas, sugerindo-nos que o poeta, realmente, questionava o belo, na
Arte e na Literatura. Na sua inspiração, o tema da morte é paixão, constatado
neste poema da obra Lira dos cinqüent’anos:
Pousa a mão na minha testa
16
No subtítulo “Elementos estéticos: a linguagem”, do capítulo 2, falarei mais sobre os versos
livres de M. Bandeira.
26
Não de doas do meu silêncio:
Estou cansado de todas as palavras.
Não sabes que te amo?
Pousa a mão na minha testa:
Captarás numa palpitação inefável
O sentido da única palavra essencial
-Amor.
(BANDEIRA, 1987, p. 147)
O significado da morte toma um outro sentido: o eu lírico inverte o
sentimento do medo, transformando-o em coragem. As palavras, ou seja, toda
a poesia anterior se referia à morte com temor. Cansado de combatê-la, revela
que a morte significa e significou sempre o amor, que é o sentimento maior do
lirismo e ele convida a morte a sentir essa paixão que palpita no seu ser.
A morte, para o poeta, é vida. Sua doença não foi prolongada, mas a
sua vida sim. O contexto histórico, bem como sua biografia, foram elementos
de criação poética.
No conceito de morte em Heidegger são explicitados, do ponto de vista
fenomênico, o sentido vulgar do fenômeno, isto é, o sentido comum
compartilhado com todos no cotidiano e o sentido originário, por meio da
análise fenomenológica, na qual se procura compreender como o fenômeno se
dá. A morte é conhecida pelo Dasein, no entanto, o modo como se lida com a
morte, no dia-a-dia, não chega a atingí-lo, pois é uma possibilidade constitutiva,
que cedo ou tarde o atingirá. Heidegger constata que a experiência da morte
compartilhada, no cotidiano, diz respeito a todos e a ninguém, ao mesmo
tempo, ou seja, todos morrem, mas enquanto o Dasein não for atingido,
somente se experimenta a morte junto ao que se foi:
A morte se desvela como perda e, mais do que isso, como
aquela perda experimentada pelos que ficam. Ao sofrer a
perda, não se tem acesso à perda ontológica como tal, “sofrida”
por quem morre. Em sentido genuíno, não fazemos a
experiência da morte dos outros. No máximo estamos apenas
“junto”. (HEIDEGGER, 2007, p. 313).
Com a concordância dos estudos heideggerianos, sugere-se que a
morte sempre rondou e esteve presente na vida de Manuel Bandeira. Levou
sua mãe (1916), sua irmã (1918), seu pai (1920), seu irmão (1922) e muitos
dos seus amigos mais queridos como Mário de Andrade (1945) e Jaime Ovalle
27
(1955). O poeta vivenciou a dor dessas perdas e procurou ele mesmo assumir
o jeito da sua própria morte. Buscou na familiaridade da morte a conformidade
para o seu existir.
Ao tratar desse assunto, Jorge Antonio Torres Machado
17
(2006, p. 155)
publicou uma tese abordando o método fenomenológico de Martin Heidegger.
Quando fala da morte como fenômeno existencial afirma:
[...] O fato é que a morte experimenta quem morre, portanto
essa experiência é incomunicável por definição. Disso resulta a
impossibilidade de descrever a experiência de dentro do
fenômeno, como deveria exigir a analítica existencial e a
intencionalidade fenomenológica. O recurso mais comum para
compreender a morte é sempre a partir a morte do outro,
segundo a perspectiva do filósofo, o ponto de vista existencial
não ajuda muito.
Essa concepção da morte como possibilidade sempre presente é tratada
pelo poeta não só como o fim do ciclo da vida, mas como um modo que limita
sua existência e, ao mesmo tempo, torna-se decisiva para a compreensão de
toda a sua vida. Compreendendo o porquê da morte, o poeta dispõe seu tempo
para cuidar de si, pois ele existe, apesar de ter uma duração. O poeta, assim,
ganha tempo. Suas possibilidades são os poemas. Transportando à
Fenomenologia, o Dasein é finito, mas não acabado.
Heidegger (2007, p. 339) explica que “o ser para a possibilidade
enquanto ser-para-a-morte, no entanto deve relacionar-se para com a morte de
tal modo que ela se desvele nesse ser e para ele como possibilidade”.
Portanto, a morte é a possibilidade mais próxima da vida. A morte acontece em
algum momento, mas não agora. Da mesma forma, Manuel Bandeira
compreendeu sua finitude como ser e adiantou-se a ela, dando sentido ao seu
existir. Desdobrou-se nas possibilidades que tinha: suas poesias.
17
Professor de filosofia e Direito da PUCRS.
28
Capítulo 2 – O Belo Belo e a liberdade poética: entre a poesia e
a prosa
Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Manuel Bandeira
O presente capítulo pretende expor a importância do estudo da poética
bandeiriana, considerando os elementos históricos, filosóficos e estéticos que a
compõem e a afirmação de que Manuel Bandeira é um poeta da modernidade.
O objetivo, também, é fazer uma ponte entre o método fenomenológico e as
questões da lírica moderna. A escolha da obra Belo Belo, corpus do presente
estudo, justifica-se por ser fruto da maturidade lírica de um dos mais
importantes poetas da Literatura Brasileira. Com o objetivo de evidenciar a
importância do ritmo, da voz e do corpo no poema e os elementos que o
aproximam da prosa, considera-se que esses elementos não são apenas
enfeites ou recursos técnicos, mas sim, essenciais para que o leitor entenda a
linguagem poética. Para tanto, as pesquisas dos formalistas russos serão
referenciadas para a compreensão do estudo do ritmo e do verso livre,
estabelecendo correspondência com Antonio Candido. Paul Zumthor para
esclarecer os termos corpo e voz em relação à poesia; Para os estudos dos
elementos poéticos, a teoria de Mikhail Bakhtin, apresentada por Cristovão
Tezza, se comparada com a tese sobre o poema em prosa de Fernando
Paixão; Massaud Moisés no trato do texto como o poema narrativo; na questão
do ritmo, semântica e da lírica os estudiosos Antonio Candido, Alfredo Bosi,
Davi Arrigucci Jr. e Paul Valéry darão o suporte necessário para as análises
dos poemas que servirão de ilustração às exposições.
2.1 Nasce o Belo Belo
O livro Belo Belo
18
foi editado em 1948, no Rio de Janeiro pela Editora
da Casa do Estudante do Brasil. Ele foi acrescentado à edição de Poesias
Completas, que continha, também, a matéria da primeira edição.
18
Na introdução do presente estudo, aparece a ordem cronológica das outras obras de Manuel
Bandeira.
29
Manuel Bandeira (1984, p. 123-124) relata no seu Itinerário de
Pasárgada, que o nome desse livro surgiu de um poema com o mesmo título
que está na obra anterior, Lira dos Cinqüent’Anos. Para editar esse livro, o
poeta passou por atribulações. Como sua edição anterior havia se esgotado
rapidamente, o editor pediu-lhe que preparasse antecipadamente uma nova
obra. O que foi feito e entregue pelo poeta, mas com o fim da guerra, a editora
foi fechada e quase não conseguiu resgatar os originais dos seus poemas.
Por conta disso, preparou uma edição dos poemas com o nome de
Poesias Escolhidas para um outro editor, “os irmãos Pongetti”. Como estava
demorando muito a sair, Bandeira resolveu aceitar outra proposta da Editora
Casa do Estudante, com o título Poesias Completas. As duas edições
ocorreram ao mesmo tempo, receando o poeta que uma atrapalhasse a outra.
O que, definitivamente, não ocorreu. O sucesso foi estrondoso, pois ambas se
esgotaram rapidamente, mesmo tendo Poesias Completas um custo maior
para o leitor do que Poesias Escolhidas, que custava a metade do preço
daquela. Em 1951, houve outra edição das Completas que se esgotou
rapidamente e em 1952 mais uma com um número de exemplares bem maior.
A uma grande curiosidade o poeta responde relatando sobre a feitura
dos seus poemas. Alguns deles ficaram “de quarentena”, porque ele hesitava
se poderia classificá-los como poesia ou precisavam ser melhor elaborados.
Nota-se a preocupação constante do poeta em refletir sobre o momento do
fazer poético.
Buscando ampliar o âmbito da sua visão, o poeta de Consoada confessa
que os versos desse poema haviam sido esquecidos numa pasta qualquer e,
quando os reencontrou por acaso, não sabia exatamente o porquê de tê-los
escrito. Ao se dar conta de que não se tratava de nenhuma tradução e sim de
“uma tentativa fracassada de poema”, incluiu-o na edição de Belo Belo.
Outro poema curioso no relato das memórias sobre a obra Belo Belo é
sobre Infância. Por achar que tinha um verso que causaria muita estranheza
por parte das “fãs menores de dessezeis anos”, o poeta optou por não publicá-
lo na edição de 1948, porque “[...] É que nele certo verso em que conto um
episódio impossível de suprimir no poema porque seria uma mutilação de todo
o quadro evocado.” (BANDEIRA, 1984, p. 124). Apesar desse verso o estar
registrado no seu Itinerário de Pasárgada, transcreve-se o nosso palpite:
30
[...]
Uma noite a menina me tirou da roda de coelho-sai, me levou,
[ imperiosa e ofegante, para um desvão da
[casa de Dona Aninha Viegas, levantou a
[sainha e disse mete.
(BANDEIRA, 1987, p. 189).
Note-se ainda, que sua preocupação não era com a recepção da crítica
vigente, mas com o momento poético. Por isso não quis publicá-lo omitindo o
verso acima, o que resolveria todo o problema. O poema foi incluído na edição
de 1951, com todas as palavras, corajosamente.
No Belo Belo outros poemas sem data determinada, porque foram
escritos e guardados sem motivo aparente, como Céu, Brisa, Minha terra e
Poema para Jaime Ovalle. Nas memórias do Itinerário, Bandeira revela,
ainda, muitos outros poemas que surgiram durante o sono, dos quais, ao
acordar lembrava partes e, às vezes, precisava completá-los. Especialmente
ao citar o poema O lutador, o poeta declara ter lembrado de todos os versos e
palavras que o compõem quase integralmente, quando despertou. A esse
fenômeno, dá o nome de “curiosidade psicológica”. Essa informação pode
sugerir a reflexão do poeta sobre a forma, já que este poema saiu como
soneto, totalmente rimado e outros surgiram em versos livres e brancos.
Percebe-se sempre que sua preocupação maior é com o momento poético,
conforme citado anteriormente. Ou seja, se surge como poesia ou como poema
em prosa... o importante é que nasceu sempre poesia e bela.
2.2 Poesia, prosa poética ou poema em prosa?
As definições para os significados de poesia e prosa não podem ser
exatas, pois esses gêneros literários muito são confundidos e, mais
precisamente, a partir do Modernismo, isso se torna mais relevante. Um poeta
como Manuel Bandeira flagra constantemente a indefinição de poesia e prosa.
Seus poemas ora são perfeitas odes, ora são descrições de sentimento
musicadas e ritmadas em forma prosaica.
Os estudos do Formalismo Russo, em linhas gerais, abordaram as
questões do fenômeno poético segundo os princípios da ciência. Os formalistas
31
tentaram mostrar a funcionalidade da poesia, elaborando uma teoria interna da
literatura, baseada na análise do automatismo da percepção e consideraram os
aspectos renovadores da arte poética. O objetivo geral era dar mais ênfase à
forma do que ao conteúdo e entendiam que o som se vinculava ao sentido.
Dessa forma, julgavam mais importante os elementos sonoros da poesia, que
denominaram de “autonomia da função estética.” Os conceitos desenvolvidos
pelo Formalismo Russo influenciaram várias gerações de estudiosos no mundo
inteiro. Cristovão Tezza, crítico literário brasileiro recuperou a importância
desses estudos. Os conceitos a seguir foram extraídos da obra Entre a prosa e
a poesia: Bakhtin e o formalismo russo (2003).
A questão principal analisada pelos formalistas era: o que faz de uma
obra literária uma obra de arte? Roman Jakobson, preocupado com o uso
especial da linguagem, formulou o conceito de função poética e funções da
linguagem ao desenvolver suas pesquisas de classificação dos eixos da
linguagem, paradigmático e sintagmático. Para responder à questão dos
formalistas, Jakobson (1975, p. 9) afirma: “A poesia é linguagem em sua
função estética. Desse modo, o objeto do estudo literário não é a literatura,
mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra
literária.”
Outro conceito importante para o formalismo é o estranhamento, ou seja,
a ação de estranhar o objeto representado, levando o leitor a buscar novas
percepções, novos sentidos. Viktor Chklovski é o estudioso que ressalta a idéia
central a esse respeito, pois rompe com a idéia de automatismo da recepção
dos textos literários. Ao chamar a atenção para a própria palavra leva à
linguagem poética, afastando-a da linguagem comum prosaica.
As figuras da linguagem são meios que o poeta utiliza, mas não é
essencialmente isso que caracteriza fundamentalmente a poesia. Essa
afirmação é de Eikenbaum, importante formalista, que trouxe outro objetivo
para a arte: gerar a sensação do objeto. A literatura é o objeto de estudo, é o
texto que o caminho e a obra literária é distinta da livre interpretação. É o
método formal, difundido pelo Formalismo Russo. Seus principais momentos
são: a distinção entre a linguagem poética e a linguagem cotidiana; delimitação
do modo de formar a linguagem; afirmação de que os elementos literários são
concretos e análise dos procedimentos sobre esses materiais.
32
O conceito formalista mais importante para o estudo da poética
bandeiriana é o ritmo. Desenvolvido por um dos principais organizadores do
formalismo russo, Osip Brik, ressalta a construção poética e define o verso
como unidade rítmica e sintática ao mesmo tempo. Esse estudioso dá a
definição de ritmo como sendo a alternância regular de sons, quando se trata
de ritmo musical, e de alternância de sílabas, quando se trata do ritmo poético.
Ressalta, também, que o ritmo é uma conseqüencia natural das obras
artísticas.
Significativa é a afirmação de Brik quando critica os estudiosos do ritmo
poético, os quais acreditam que a perfeição da arte poética consiste em
inscrever as palavras no verso sem alterar a estrutura da língua. Sobre isso,
ressalta que “O movimento rítmico é anterior ao verso. Não se pode
compreender o ritmo a partir da linha dos versos; pelo contrário, compreender-
se-á o verso a partir do movimento rítmico.” (apud TODOROV, 1965, p. 14).
É pelo verso, que é a unidade rítmica, que se deve começar o estudo da
poética, segundo esse formalista. Na visão modernista, defendida por ele,
entende-se que a imagem se articula em palavras significantes e transforma as
inspirações do poeta em sentido, aos leitores. O ritmo aparece na combinação
das palavras tanto semânticas quanto fônicas. A ordem das palavras na língua
poética requer entonação que enriquece a sintaxe. Ao poeta, em primeiro lugar,
ocorre a imagem lírica e toda a estrutura fônica e rítmica e, somente depois, “é
que essa estrutura transracional se articula em palavras significantes.” (Idem,
p. 19).
Para comprovar a afirmação anterior, Brik ressalta que se fossem
substituídas por sinônimos as palavras que seriam as ideais para a constituição
desse ritmo, a poesia seria destruída e dela restariam palavras da
linguagem vulgar cotidiana.
Este conceito de ritmo sugere uma questão: ao pensar nos versos livres,
o ritmo será o fator principal? Yuri Tinianov, outro importante formalista sobre
este tema, lembra que o ritmo é o fator principal do verso, porém acrescenta
mais um fator determinante para o reconhecimento da poesia: o metro. Esse
estudioso ressalta que a representação gráfica, juntamente com o ritmo, é um
importante fator para a unidade poética. A essa consideração, acrescenta:
33
[...] A grafia é aqui o signo do verso, do ritmo, e
conseqüentemente também da dinâmica métrica, que é a
condição indispensável do ritmo [...].
Destarte, o vers libre torna-se uma espécie de forma métrica
“variável”. (apud TEZZA, 2003, p. 128).
O pensamento de Tinianov sugere a leitura do poema Nova poética, de
Manuel Bandeira (1987, p. 184):
Vou lançar a teoria do poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem
[engomada, e na primeira esquina passa
[um caminhão, salpica-lhe o paletó ou a
[calça de uma nódoa de lama:
É a vida.
O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.
Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens
[cem por cento e as amadas que
[envelheceram sem maldade.
O belo poema é composto de versos livres e brancos. Os versos são
compostos de forma prosaica, bem como toda a construção sintática, porém,
não se pode negar o momento poético. A linguagem é cotidiana, repete termos
e evidências narrativas. Esses indícios seriam condenáveis na linguagem
poética pelos padrões formalistas. Contudo, os efeitos sonoros decorrentes da
disposição dos longos versos, proporcionam alternância do timbre na leitura.
Esse aspecto visual sugere um ritmo próprio que, propositadamente, destaca a
acentuação fônica de forma regular. Porém, o ritmo é quebrado
constantemente, nem por isso, o poema deixa de ser poema. É isso que
Tinianov chama de “metro variável”, ou seja, um sistema rítmico no qual o
poema se realiza, embora os traços gráficos não sejam estritamente poéticos
e, ao mesmo tempo, a alternância mecânica de sons confunde-se com o metro.
Abstratamente (ritmo e acentuação fônica) não é prosa e concretamente
34
(disposição dos versos e palavras cotidianas) não é pura poesia. Chega-se a
um impasse na teoria dos formalistas.
Fazendo referência a isso, o poema sugere o sentido de poeta sórdido,
como “aquele que tem a marca suja da vida”. Transportando historicamente, há
um novo pensamento sobre o que é a poesia moderna: não é mais metrificada,
perfeita na cadência rítmica e não tem mais forma (ou talvez tenha, mas com
nova visão). É o poema moderno que modificou a linguagem sem perder o
ritmo. Observa-se o pensamento do poeta sobre essa questão, logo no
primeiro verso. Para a crítica vigente, ainda havia os que pensavam a poesia
somente nas questões da forma. O Modernismo foi uma “nódoa de lama” para
os poemas “de brim branco” engomados.
O poema, segundo o que Bandeira expõe, deve provocar no leitor uma
diferença, que pode ser o “desespero” de poder falar abertamente, sem
estruturas prontas, ou seja, o poema deve causar um estranhamento. O poema
com versos prontos, que ele define como orvalho” deve ficar para trás, pois
não faz mais parte do pensamento moderno. É a liberdade poética.
Uma tese importante, também, para o entendimento do poema em prosa
é a de Fernando Paixão, nascido em Portugal, com Doutorado pela PUCSP.
Esse estudioso define como “gênero híbrido” o poema em prosa, porque seria
um gênero novo, que servisse como resposta aos anseios da Modernidade.
Contudo, o poema em prosa diferencia-se da prosa poética. Segundo o autor, o
que difere um “gênero” do outro está, primeiramente, no significado da primeira
palavra de cada termo: prosa poética – poema em prosa.
No caso da prosa poética, claro está que sua característica
principal relaciona-se com a prosa; por isso mesmo, apresenta
uma tendência para dar voz a textos maiores podendo ser
narrativo ou não -, ainda que persigam uma qualidade de
natureza poética. A escolha das palavras e das frases
pressupõe, inclusive, essa dinâmica extensiva do texto e das
idéias, mesmo que se aproveite de imagens líricas.
[...]
Já o poema em prosa, [...], o princípio regente seria o da
concisão, bem mais característico da poesia do que da prosa.
(PAIXÃO, 2004, p. 96-98).
35
Conforme esse autor, qualquer enunciado a que se chegue, parece
inevitável que muitos exemplos trariam dúvidas quanto a um ou outro gênero.
Ao mesmo tempo, sugere um outro modo de ver a poesia moderna, ampliando
horizontes sobre a questão. No poema A Mário de Andrade ausente (anexo D),
há traços marcantes para a distinção entre prosa poética e poema em prosa.
O primeiro a ser apontado é justamente o uso de versos livres e
brancos, que, por si só, não se definiriam nem como prosa poética e nem como
poema em prosa. O momento poético está claro, os versos não são breves e
aspiram a uma narratividade. A disposição dos versos está em estrofes não
definidas e a leitura conduz a pausas não marcadas graficamente, porém é
inegável a musicalidade neles. Ou seja, continua a indefinição entre um gênero
e outro.
Por ser, ainda, um modelo contemporâneo, o poema em prosa fornece
considerações valiosas que evitam a superficialidade de uma definição
fechada. Manuel Bandeira, mostrou-se à frente do seu tempo. Os movimentos
da consciência artística desse poeta, transformados em poesia, revelaram a
forma do poema em seu estilo humilde, provenientes da experiência da vida e
da ameaça constante da morte. A reflexão e o trabalho profundo dessa
experiência transformaram-se na forma que adquiriu a sua poesia. O poeta
altera as formas dominantes transformando-as numa espécie de dialética entre
a prosa e a poesia constituindo a base da sua lírica.
Os temas que M. Bandeira expressa são do cotidiano e exigem um nível
correspondente de linguagem. Ele desentranha a poesia do prosaico
recorrendo ao ritmo, este sim muito importante e não o metro, e explora as
múltiplas direções das palavras e os seus efeitos no poema. É o movimento do
simples ao complexo.
Portanto, a indefinição entre prosa poética e poema em prosa continuará
fazendo parte dos questionamentos da Modernidade e Manuel Bandeira foi
uma figura central e decisiva para os caminhos da poesia moderna brasileira,
pois manifestou a ansiedade de liberdade da linguagem sem ser impactante,
mas sublime, com atenção ao cotidiano e sustentado pelo ritmo, musicalidade
e paixão.
36
2.3 Ritmo, voz e corpo: a poesia em tudo
O termo Literatura, no sentido atual, começou a ser usado no século
XIX. Na Antigüidade, os gregos usavam esse termo para designar poesia.
As primeiras manifestações poéticas da história acontecem com os
primeiros homens. o conhecimento de danças e cantos para comemorar,
adorar deuses, atenuar o sofrimento da morte, a guerra, o nascimento e as
atividades laborais. O canto ritmado facilitava o cumprimento das tarefas, pois
a produção era mais rápida, associando-se a cadência de sons com os
movimentos dos instrumentos de trabalho. Os cantos fúnebres eram comuns
para preparar o morto para a sua viagem (rituais). É nesses momentos que a
poesia começa a aparecer, ainda no seu estágio ancilar antes do surgimento
do poeta, conforme denominou Spina (2002, p. 15). Palavra, canto e
movimento corporal sempre estiveram ligados à poesia:
É a poesia no seu estágio ancilar, isto é, subordinada à música
e às vezes à coreografia, mais especialmente àquela. (...) A
função ancilar da poesia está representada pela associação em
que viveu com a música, de certo modo com a dança, antes
que surgisse a pessoa do poeta, a poesia individual.
Essa manifestação dos antigos era, pois, uma forma do homem
dialogar com os deuses e explicar o que não tinha explicação, como saber por
que e o que ele era, por que a morte acontecia sem que ele quisesse, por que
nasciam os seres, por que existiam os astros, por que cresciam as plantas, os
animais etc. A explicação começa a ser procurada no canto, na dança e no
ritmo que serviam para “imitar” o movimento do Cosmo. O homem começa a
falar por meio da voz, das cores (tintas nas cavernas, por ex.), da imagem
(desenhos) e dos movimentos corporais, ao mesmo tempo em que ele, por
meio da consciência, procura entender o seu universo até então e procurar
estabelecer um contato com o que era inexplicável.
Para Platão, o poeta nasce nesse contexto das cerimônias ritualísticas.
As pessoas que se dedicavam à poesia entravam num outro mundo, movidas
pelo desejo de contato com os seres superiores, o divino, o Cosmo, o outro ou
o que não tinha explicação. Segundo ele diz, no Ion, o poeta era um ser
37
diferenciado, porque era capaz de ouvir a língua dos deuses, reproduzindo-a
nos poemas e o comparava, dessa forma, a um médium, com função profética.
Na sua República, Platão diz que toda a poesia é mimese e viu as
atividades miméticas da arte como imitação. Como a vida era uma imitação
do mundo ideal platônico, a mímese era uma inclinação vocacional natural.
Essa experiência poderia ser nociva, já que a vocação para a mímese é
passional e poderia desequilibrar o homem, pois esse mesmo homem é uma
sombra do homem real e, como tal, deveria apenas trabalhar em função de
melhorar a sociedade. Nesse sentido, Platão (2006, p. 299) afirma que esse
poeta não é bom para a sociedade, porque promove a desmemória da
verdade, do mundo das Idéias que devemos sempre procurar:
(...) a principiar em Homero, todos os poetas são imitadores da
imagem da virtude e dos restantes assuntos sobre os quais
compõem, mas não atingem a verdade.
Para Aristóteles, o poeta não é esse imitador deformador da realidade.
Para ele, mímese significa criar, conferindo significado e sentido, ou seja,
novos significados ao real ou a representação do possível (verossimilhança).
No que se refere ao objeto de imitação, que é representado nos homens em
ação, Lígia Militz da Costa (2006, p. 12) afirma que a imitação que o poeta faz,
será a “de homens melhores, piores ou iguais as”. As causas para o
aparecimento da poesia são ditas, segundo a autora, como naturais, tendo o
homem uma tendência natural e encontrando prazer nas imitações, utilizando-
se da melodia e do ritmo que já nascem com ele.
Segundo José Guilherme Merquior (1972, p. 5-7), “a história da poética
moderna é, em grande parte um retorno a Aristóteles”. E o que é mais
importante é a “preservação do caráter imitativo da poesia” . Esse autor reitera
que a poesia é uma linguagem especial em que as palavras proporcionam
sensibilidade e estados de ânimo, fornecendo conhecimento ao homem no
interior lingüístico do poema, recuperando significados a partir de sua forma, ou
seja, o “espelhamento paradigmático das palavras entre si”. Concorda com
Aristóteles no que se refere à verossimilhança e à mímese:
A mímese é regulada pelo verossímil, não pelo verdadeiro;
pelas normas do espírito, não pelas da realidade fora do poema.
38
Por outro lado, a poesia é mais filosófica” do que a história (...),
porque narra o geral e não o particular.
Costa (2006, p. 59) afirma que Aristóteles é inovador com essas
proposições e , por isso, são importantes para a análise literária moderna.
Partindo dessas considerações, o poema O homem e a morte (anexo A)
trará as linhas a seguir.
Ao ler o poema, observa-se uma seqüência de imagens em cada um dos
versos que vão sendo lidos como se fossem uma pequena narrativa. É
composto de versos livres, com rimas e com muita musicalidade. Não deixa de
ser um poema fanopaico, por causa das imagens, mas é essencialmente
melopaico, por causa do ritmo que é marcado e por causa da tonicidade nas
últimas palavras de cada verso, tornando-os cadenciados.
Nos primeiros versos, o poeta nos situa no tempo e no espaço. O
ambiente do quarto, tão presente nas poesias bandeirianas, em muito contribui
para dar uma visão real do que (ainda) não existe, ou seja, a verossimilhança.
Em outras palavras, o ambiente virtual, que está na consciência do eu lírico é
transformado em espaço físico visível e pode-se ter até a noção da cor desse
ambiente: escuro. O poeta permeia o espaço com o sentimento que o habita. É
o espaço que ele sente e vê. Não é o espaço que define o eu lírico, mas está a
serviço dele. O espaço em que se processa o poema não é cópia do real, mas
converte-se na realidade por meio das sensações que o leitor tem. O olhar de
um ambiente sombrio, tenebroso, seguido da imagem pavorosa da morte, que
esperava que fosse feia e no final aparece-lhe com um anjo, o ouvir a batida da
porta, que mesmo sem ser forte o assustou; a mente movimentando-se,
trazendo à luz as imagens do poema, comparando, ao mesmo tempo, o
sentimento com o ambiente em que se projeta.
Essas sensações do poema são transmitidas por meio do ritmo inerente
à sucessão dos versos. O ritmo cria a unidade sonora, conferindo sentido ao
poema e Antonio Candido (1967, p. 56) salienta:
[...] mostra como o ritmo é algo visceral em relação à
sensibilidade do homem, e não um mero recurso técnico. Ele
espelha toda a inquietação, as alterações do espírito e da
sensibilidade, a concepção do mundo, sofrendo influências das
transformações da arte e do pensamento.
39
Isso significa que o ritmo é o movimento do poema e cada um tem o seu
próprio movimento como num ritual. Em outras palavras, os versos estão
dispostos em cada poema e o que os materializa é o ritmo.
No poema de M. Bandeira, a marca de tonicidade nas últimas palavras
de cada verso é semelhante aos movimentos coreográficos que,
seguidamente, alternam-se numa dança. Cada verso é uma imagem diferente
do verso anterior, mas ao mesmo tempo, o verso posterior complementa e dá a
seqüência ao verso que o antecedeu. São as palavras que se incorporam no
ritmo com o objetivo de tornar mais sensível o leitor para as imagens que se
sucedem.
de se observar que não são os versos em si que dão o sentido ao
poema, mas é o ritmo que os versos adquirem que faz com que o leitor sinta o
seu significado. Para exemplificar, Brik (1978, p. 132), estudioso que faz parte
dos formalistas russos, revela que “o movimento rítmico é anterior ao verso.
Não podemos compreender o ritmo a partir da linha do verso; ao contrário,
compreender-se-á o verso a partir do movimento rítmico.” Nesses termos,
Candido (1967, p. 59) também concorda:
A palavra, portanto, é a unidade de trabalho do poeta e a peça
que compõe o verso. Palavra como conceito, como ligação,
como matiz do conceito, como unidade sonora que desperta um
prazer sensorial pela sua própria articulação (...). O ritmo cria a
unidade sonora do verso; as palavras criam a sua unidade
conceitual; a unidade sonora e a unidade conceitual formam
a integridade do verso, que é a unidade do poema.
19
No poema O homem e a morte, as imagens vão surgindo na mente do
leitor causando suspense, desde o início, fazendo com que o ritmo aumente a
velocidade da leitura para que o desfecho chegue rapidamente e possa
desvendar o mistério que sugere o poema. É o ritmo do poema que provoca a
tensão no leitor.
O ritmo é um elemento icônico que estabelece ligações com os
elementos, levando o leitor a pensar que o ritmo é uma prova de que a poesia
é sensorial. Até os poemas metrificados se revelam por causa do ritmo que
o movimento ao metro. Nesse ponto, Manuel Bandeira (1984, p. 79) é um
19
O grifo é nosso.
40
mestre, pois, sendo um dos precursores dos versos livres, soube que a
importância do poema estava na musicalidade inerente ao ritmo e revela isso
no seu Itinerário de Pasárgada:
nessas palavras do crítico uma nota preciosa: é qua
ndo ele
fala na musicalidade de música propriamente dita inserida
na musicalidade subentendida, por vezes inexpressa, ou
simplesmente indicada, da poesia. A isso eu havia chegado
em minhas reflexões, estudando a música a que os meus
versos serviram de texto. Foi vendo “a musicalidade
subentendida” dos meus poemas desentranhada em música
propriamente dita” que compreendi não haver verdadeiramente
música num poema, e que dizer que um verso canta é falar por
imagem.
Para confirmar essas colocações, o poeta revela, na página seguinte,
dessa mesma obra, que “nunca a palavra cantou por si só, e com a música
pode ela cantar verdadeiramente”. Ao ler o poema de M. Bandeira, a
musicalidade é evidente. O ritmo do poema é o que conduz o leitor.
Manuel Bandeira refletia constantemente sobre a poesia e a Literatura.
Prova disso, além do Itinerário, são as inúmeras cartas que trocou com vários
escritores, especialmente com Mário de Andrade, por muitos anos, de maio
1922 até outubro de 1944
20
, organizadas por Marcos Antonio de Moraes. As
opiniões de ambos guardam uma grande teoria a respeito do ritmo, prosa e
poesia. Em uma dessas cartas, M. Bandeira disserta profundamente com o seu
grande amigo Mário de Andrade a respeito do verso livre e do ritmo:
(...) Entendo que para explicar o verso-livre é preciso partir do
conceito tradicional do verso e mostrar depois que ele é um
caso particular de verso-livre. Você tem razão nas objeções
que fez à definição: “Verso é linguagem metrificada”. Mas não
tem razão quando pensa: Antes metro é medida. Sim. Mas
nunca os poetas mediram. Os poetas têm o sentimento dos
ritmos (ritmos de decassílabos, ritmos de alexandrinos, etc.) e
não metrificam coisa alguma.
(MORAES, 2001, p. 193.)
A importância do ritmo, para o poeta, é muito maior do que a
metrificação. Esta serve apenas para dar sentido, ou seja, para verificar se o
ritmo está de acordo com o poema e não é necessário que se utilize dela
20
Mário de Andrade faleceu em 17 de fevereiro de 1945.
41
constantemente. O mesmo método era utilizado pelos poetas gregos e latinos
que se apropriavam do ritmos para distribuir as palavras nos poemas. O poeta
continua a sua reflexão para a procura da definição exata de ritmo:
Assim a definição pode abranger não os versos das línguas
modernas, como o verso antigo, cujo critério de ritmo era a
quantidade, o verso parabólico hebraico. Um verso é um ritmo.
Mas a prosa também tem ritmo, a frase prosaica também tem
ritmo. (...) O estado lírico tanto pode exprimir-se em prosa como
em verso, em música, em cores, em linhas, em pedra, etc.
(MORAES, 2001, p. 193).
A definição mais importante para o poeta, muito próxima do significado
de ritmo para o formalista O. Brik e da qual também compartilho, é a expressão
do movimento lírico. Se o texto é ou não poesia, o que irá definí-lo é o lirismo
do qual o ritmo dará o sentido. Ao se fazer Literatura, na prosa constaum
ritmo contínuo com nexo dentro do contexto. Na poesia, o verso é um elemento
em que o ritmo dá força emotiva e essa é expressa por meio da voz.
Paul Valéry (1991, p. 206-207), na obra Variedades, descreve uma
história real, ocorrida com ele próprio, em que ele descobriu o que é “estado de
poesia” e que efeito causou nele. Ao andar pela rua em que morava, deu-se
conta de um ritmo, enquanto caminhava e murmurava, com “funcionamento
estranho”. Outro ritmo surgiu combinando com o anterior, causando-lhe
extrema estranheza. Observou que esses movimentos proporcionavam-lhe
sons musicais que duraram cerca de vinte minutos e o encantaram. Ao chegar
a margem do Sena, extasiado, o “encanto se desvaneceu bruscamente” e
observou um cisne saído de um ovo chocado. Essa bita visão aclarou seu
pensamento e pode, assim, perceber que havia uma “reciprocidade” no ritmo
que surgiu entre o passo e o pensamento:
(...) meu movimento de caminhada se propagou para a minha
consciência através de um sistema de ritmos bastante
engenhoso ao invés de provocar em mim esse nascimento de
imagens, de palavras internas e de atos visuais que
denominamos Idéias. Quanto às idéias, são coisas de uma
espécie que me é familiar; são coisas que sei observar,
provocar, manobrar...Mas não posso dizer o mesmo de meus
ritmos inesperados.
42
É interessante essa história, porque nos remete aos primórdios da
poesia. A dança e os passos ritmados provocavam (e ainda provocam)
sensações profundas no ser e, por meio da criação (no caso a poesia) torna-se
linguagem.
Valéry faz uma diferenciação entre prosa e poesia, afirmando que
ambas servem-se das mesmas palavras, porém o que as distingue é o ritmo,
timbre, sons, movimentos e associações com o nosso corpo. O poema não se
desvanece, antes renasce constantemente em cada leitura. A diferença crucial,
reside na palavra em que há “a troca harmoniosa entre a expressão e a
impressão,” ou seja, a poesia une a palavra e o espírito. O poema nunca
dissolve o som e o sentido e o que proporciona isso é, essencialmente, seu
ritmo.
O ritmo é o que emana da voz. É a voz que dá o ritmo, a melodia, o
efeito da linguagem e revela o estilo do poeta. Ler um poema é entendê-lo com
a voz. Ainda que não se leia um poema em voz alta, consegue-se entendê-lo
por meio da voz introspectiva que o leitor faz dele. Na própria leitura
silenciosa, criam-se imagens e sensações que não se vêem somente nas
palavras escritas.
A voz sai do corpo e é dele a origem da materialização da poesia. É por
meio do corpo que a voz transforma as palavras em matéria. Ao falar, todo o
corpo reage com a boca, a língua, as mãos, os olhos, os ombros etc. Mesmo
sem utilizar a voz que sai da boca, o homem fala por meio dos gestos, do olhar,
das expressões faciais, dos enfeites usados no seu corpo (roupas, maquiagem,
penteado, jóias, tatuagens, piercings, etc.)
No início desse subcapítulo, situamos os primórdios da poesia. O corpo
estava ligado aos cantos dos rituais por meio da dança ritmada. Eram as
danças de adoração ao sol, à lua, à morte, ao nascimento etc. Mesmo nos
desenhos primitivos podemos pensar no corpo, pois ao desenhar reúnem-se
vários movimentos do corpo ao mesmo tempo. Os antigos gregos, também,
tiveram essa consciência da importância dos movimentos corporais, canto e
voz e transpuseram isso para a poesia, pois partes cantadas, faladas e
gestuais nos poemas gregos com o intuito de tornar o espectador sensível e
fascinado.
43
Dessa forma, é do corpo que sai a voz que lê o poema; é a voz queo
ritmo para o poema; o ritmo transforma as palavras do poema em voz
sensorial; a voz leva as sensações do poema de volta ao corpo; o corpo reage
inteiramente. É exatamente o que nos diz Zumthor (2007, p. 99): “a voz
repousa no silêncio do corpo. Ela emana dele, depois volta.”
Platão percebe essa sensorialidade explorada pelo poeta e, como o
corpo deveria ser negado por ser perigoso esse prazer para a sociedade, o
poeta era considerado nocivo. Essa idéia do prazer sensorial do corpo não ser
boa foi e ainda é vista até hoje no Cristianismo, por exemplo. O prazer do corpo
é somente relacionado com o sexo como pecado. Recuperar o verdadeiro
sentido do corpo, com o objetivo de transmitir e sentir sensações é um passo
importante para o entendimento do que é poesia e Literatura, de modo geral.
21
Todo poema pode ser dirigido especificamente a algo ou a alguém, mas
espera-se que seja lido por outras pessoas. Certamente, os poetas querem
sempre que seus leitores conheçam a emoção que os domina ou dominou. O
eu lírico se expressa justamente para se comunicar com o seu leitor e não
apenas um leitor individual, mas também um leitor universal. NO homem e a
morte, o poeta utiliza um tema universal - a morte - para conduzir o leitor ao
mesmo sentimento que decorre das palavras. Ao situar o leitor no tempo,
definir o ritmo com as palavras e dar voz ao eu lírico, o poeta tenta transportar
o leitor para dentro do poema. A sensação da musicalidade (ainda que não se
leia em voz alta), a descrição da morte, o ambiente em que se passa a visão e
o sentimento, a mudança de atitude do homem, são intenções do poeta e ele
leva isso a seu leitor. Ao leitor cabe o estranhamento do texto, que revela algo
mais do que uma simples historinha grotesca, ou uma leitura automatizada,
que definitivamente não é o que o poeta tenta mostrar nesse poema. É a prova
de que essa obra é bela, porque faz o leitor captar as sensações externas e
não o deixa indiferente à leitura.
Zumthor (2007, p. 102) reforça o papel do leitor e o situa no movimento
da leitura:
Ora, a leitura do texto poético é escuta de uma voz. O leitor,
nessa e por essa escuta, refaz em corpo e em espírito o
percurso traçado pela voz do poeta: do silêncio anterior até o
objeto que lhe é dado, aqui, sobre a página.
21
Voltarei a falar do corpo no capítulo 3: “O alumbramento”.
44
[...] A leitura torna-se escuta, apreensão cega dessa
transfiguração, enquanto se forma o prazer, sem igual.
O leitor é o canal de transformação das palavras do poeta em
sensações. Esse leitor poderá fazer isso se tiver sensibilidade em todo o
seu corpo, tal qual no início da história da poesia. Ao poeta, cabe escrever as
idéias, e ao fazê-lo transcreve a linguagem do corpo. Transforma as palavras
em imagens e estas indicam movimento.
No poema de Manuel Bandeira, os três primeiros versos transportam o
leitor para a cena. Em seguida, esse leitor faz parte do poema e todas as
atitudes posteriores do homem (personagem do poema), também são vividas
juntamente com ele. Por meio da sua leitura, que é a sua voz, transforma os
verbos “adormecendo”, “se assustou”, “levantou-se”, “ao leito voltou”, “se foi
abrindo” etc., em matéria que se move. Esses verbos indicam as reações do
homem diante da situação. A cadência rítmica dos versos indica a seqüência
dos acontecimentos. Até poderia ser comparada a uma dramatização.
Sobre essas sensações que a voz da leitura do poema provoca no leitor,
Paz (2001. p, 143) complementa:
[...] o poema não mostra imagens, nem figuras: é um conjunto
verbal que provoca no leitor, ou no ouvinte, um fornecedor de
imagens mentais. A poesia se ouve com os ouvidos mas se
com o entendimento. Suas imagens são criaturas anfíbias: são
idéias e são formas, são sons e são silêncio.
O leitor dO homem e a morte, também o esqueleto armado de foice,
sente os membros gelados, vê a luz invadindo o ambiente escuro. Na pergunta:
“uma mulher ou anjo?” o leitor também se confunde. Afinal, ele (leitor) também
tem a idéia de que a morte é a imagem de um “esqueleto armado de foice”. Faz
parte da sua cultura, está na sua Literatura. O leitor torna-se mais próximo das
sensações que o poema provoca, por causa das suas experiências.
A própria poesia também minimiza a rigidez que as palavras provocam.
Morte, já é uma palavra obscura, que transmite medo e afastamento. No
poema, ela se torna “figura iluminada”, “anjo”, “mulher”, “suave luz interior”, “a
amiga melhor”, “que não engana”. É a verossimilhança: uma morte que não é
real, mas que pode ser, basta querer.
45
A personificação da morte faz com que a imagem se torne mais forte na
voz do leitor. A pergunta: Tu és a Morte?”, torna os próximos versos
reveladores, pois se destacam por causa da tonicidade. E, novamente, é
repetida em outro verso:
És mesmo a Morte? Pergunta
A leitura do poema até este verso era feita com tonicidade maior nas
últimas palavras de cada verso. Ao chegar nesta pergunta, a palavra tônica
principal do verso muda, justamente, na personagem do poema e todas as
vezes em que aparece no poema é com o mesmo recurso.
O peso desta palavra Morte leva a voz rítmica a se modificar. Não é
algo pensado, mas que sai naturalmente do corpo sensorial do leitor, porque
faz parte da sua existência, da sua cultura. Zumthor (2007, p, 89) mais uma vez
explica o sentido da palavra:
[...] as palavras resistem, elas têm uma espessura, sua
existência densa exige, para que elas sejam compreendidas,
uma intervenção corporal, sob a forma de uma operação vocal:
seja aquela voz percebida, pronunciada e ouvida ou de uma
voz inaudível, de uma articulação interiorizada. É nesse sentido
que se diz, de maneira paradoxal, que se pensa sempre com o
corpo.
É para isso que a tonicidade regular dos versos do poema foi alterada
quando encontrou a palavra Morte: o corpo se manifestou, por meio da voz e
fez a intervenção, colocando mais ênfase nessa palavra, justamente pelo que
ela significa culturalmente.
Dependendo de cada leitor e de como seu corpo reage sensorialmente
ao poema, ele poderá tomar a posição ora de uma personagem o Homem
ora de outra a Morte. De qualquer uma das duas maneiras, chega-se a uma
mesma observação: o mais importante para o entendimento da poesia é o
sensorial.
O poema descreve a Morte entrando pela porta e pela frente se
anunciando, sem se esconder ou mentir, porque a Morte é uma verdade, não é
uma ilusão. Por isso, o eu lírico sempre amou a Morte sem o saber. Ela vem
46
agora, finalmente, levar o homem ao seu descanso de uma espera muito
prolongada.
Semelhantemente, no poema “Visita Noturna” (anexo B), há a
personificação da morte, chegando mesmo a ser nomeada: “bendita”. O título
sugere o ambiente mórbido e obscuro das imagens que virão do poema.
Alguém bate à porta, criando um suspense e o ritmo dos versos provoca uma
alteração na respiração no momento da leitura.
Esse poema igualmente traz a lembrança do poema “O corvo” de Edgar
Allan Poe (anexo I), principalmente a primeira estrofe:
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais
«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.
É só isso e nada mais
O
ritmo nos dois poemas tem o mesmo tom tenebroso e sombrio. A
pontuação marca paradas criando um suspense e, ao mesmo tempo,
curiosidade. Na estrofe seguinte da “Visita” de Bandeira, o eu poético afirma
que não havia ninguém à porta, porém a certeza de que algo havia entrado no
seu quarto ficou evidente, porque o quarto estava diferente. Apesar de não
relatar o quê mudou, a sua sensação de algo presente sentado a sua cama era
nítida.
Começa o seu questionamento na terceira estrofe. A indagação sobre
quem estaria batendo à porta é uma metáfora sobre o questionamento do eu
poético: será que chegou a hora da minha morte? É uma verdadeira visão em
que a preocupação não é com a morte, simplemesmente, mas o que o
sujeito fez da sua vida. Analisa as fases da sua vida ao citar as palavras
“inocência?”, “infância?” e “distância?” A inocência morreu e a infância não
existe mais, ficaram para sempre distantes, no passado.
O ritmo da última estrofe adquire um tom mais intenso, num momento de
revelação. A aliteração é um elemento muito importante para definir o ritmo
desse poema. A palavra “porta” ecoa por todo o poema e tem um significado
muito grande para o ritmo e, também, como metáfora: um dia a morte vai bater
à porta, ou seja, todos irão morrer.
47
As palavras notURna, pORta, mORta, quARto, desERto, pERto e
abORtou, provocam sensações de desequilíbrio e de impotência, tornando a
“morta” um ser onipresente, que poderá estar em qualquer parte do quarto,
mesmo que o sujeito não a veja.
O poeta trouxe uma nova realidade e uma outra visão da morte. Apenas
diante da morte é que vida. Em outras palavras, a morte é a possibilidade
mais peculiar que sentido à vida e a ilumina. É uma realidade que existiu
nos poemas, embora o deixe de ser possível. Conforme Arrigucci (1990, p.
270) “a poesia – a forma poética – seria, assim, uma mediação para a morte.
A verdadeira missão da poesia e das artes, de modo geral, é esta:
transmitir o conhecimento de que, pelos sentidos do corpo pode-se aprender e
apreender as sensações, preparando para a vida, a fim de melhorá-la,
representando uma outra realidade de um mundo melhor, que ainda não existe,
mas que é possível.
2.4 Elementos históricos, filosóficos e estéticos
Toda a bela obra de Manuel Bandeira nos chama a atenção justamente
pela singeleza, ou em outras palavras, pela humildade, como afirma Davi
Arrigucci Jr (2003, p. 84), a humildade de Manuel Bandeira refere-se ao
pensamento com os pés no chão, ou seja, mais realista, pois humilis vem de
humus, que significa chão.
O estilo humilde, dito mais simples, contém mistérios sublimes que vão
se revelando aos poucos, por meio das leituras e da reflexão em torno da
poesia. A humildade tornou Manuel Bandeira majestade em termos da lírica, à
medida que a simplicidade do seu estilo conduz a um efeito de realismo e, ao
mesmo tempo, cercado de mistério. O modo de compor as palavras simples é
eficaz, inteligível e muito agradável. Erich Auerbach (2007, p. 43), no capítulo
Sermo humilis faz uma descrição mais detalhada do termo humilis, que está
relacionado a humus, com o significado de “solo” ou “lugar muito baixo”. Ao se
expandir, o termo pode adquirir alguns significados mais gerais como
“insignificante”. Em termos políticos, “falta de prestígio”. Morais, “indigno” e até
“covarde”. E, ainda, pode significar uma “morte degradante”, “deselegante” ou
“subalterno”.
48
Todos esses significados estiveram fora da literatura cristã. Nela, o
significado de humilis exprime o “nível da vida e dos sofrimentos de Cristo
(AUERBACH, 2007, p. 45). O significado pejorativo cede lugar ao sublime, ou
seja, ao comparar com os motivos cristãos, humilis ligou-se a humilhação
divina do Cristo e torna-se sublime.
Essa concepção pode, também, ser observada na linguagem que os
tradutores latinos utilizaram para traduzir a bíblia: era uma linguagem mais
simples ao invés da clássica. E, mesmo assim, formaram uma tradição
permanente. Analogamente, a linguagem humilde tornou a poesia acessível a
todos, pois traduziu sentimentos. O significado de humildade é penetrar em
sentido profundo com palavras acessíveis a todos, aprimorando a
compreensão. É importante frisar que, em seu estudo sobre sermo humilis,
Auerbach chama a atenção para a característica do assunto começar humilde
e avançar no constante mistério, tornando-se sublime.
O sublime no discurso cristão avança no oculto e a compreensão
aproximada dos seus mistérios serão possíveis se não houver leviandade,
ou seja, se houver humildade o entendimento seprofundo. O mesmo ocorre
na poética bandeiriana: a acessibilidade ao oculto é possível, porque a
humildade se instaura nos temas dos poemas, decorrentes das palavras
simples. O simples cotidiano torna a sua poesia sublime, pois permanece um
realismo, que é a ameaça constante da morte e a paixão encarnada na
linguagem dos pés no chão. Fica claro porque Manuel Bandeira se reconhece
humildemente como “poeta menor”.
22
No que se refere ao tema da morte como valor, sentido e sabedoria de
quem suporta com serenidade os acidentes da vida, o que se constata em
tantas das poesias de M. Bandeira, segundo Arrigucci (2003, p. 225), é que o
poeta não se afasta da morte, antes mantém um diálogo com ela e consegue
ter revelações por meio das intuições que a ameaça da morte traz:
...trata-se de um tema cuja forma de tratamento implica, como
se viu, um meio de instaurar ou manter a familiaridade
tradicional com a morte. Quando se imagina então a situação
de um poeta moderno como Bandeira, cuja obra rica nasce
22
“Sou poeta menor, perdoai”. Verso do poema “Testamento” da obra Lira dos Cinqüent’Anos de Manuel
Bandeira.
“Tomei consciência de que era um poeta menor.” (BANDEIRA, 1984, p.30)
49
diante da circunstância dramática da ameaça da morte
iminente, como se preenchesse o vazio de uma existência
condenada pela doença fatal, na obrigada espera do desfecho
iniludível, pode-se avaliar a importância não do
aproveitamento de um tema como esse, casado à condição
básica da experiência poética bandeiriana, mas também de
toda a linha de reflexão que ele envolve como um fator
essencial para a compreensão do sentido mesmo da poesia na
existência desse poeta.
O enfoque do estudo da morte, para esse estudioso, firma-se mais no
fato da reflexão e compreensão do sentido que o tema tem para o poeta. O que
o envolve é a afirmação da vida.
Em muitos dos poemas de M. Bandeira, o eu lírico encontra a felicidade
plena, com repouso e erotismo, no fato apenas da aceitação total da morte. É
uma “paixão erótica”
23
como definiu muito bem Arrigucci (2003, p. 198).
Quando M. Bandeira fez o “Poema para Jaime Ovalle” (1987, p. 166)
(Anexo B) o poeta colocava em dúvida se havia atingido o momento poético. O
poema trata de um momento banal, descrevendo atos rotineiros...Será, pois
poesia? Sim, o texto se afirma como poesia pela disposição tipográfica, mesmo
não sendo rico em rimas e pela musicalidade que é sentida, mesmo sem ler em
voz alta. Mas esta simplicidade pode ser considerada poesia? Para sentir esta
poesia é preciso lê-la mais de uma vez e, assim, constatar que o simples pode
incluir mistério.
O título revela um vínculo com o mundo exterior de Bandeira, pois Ovalle
é um músico do Modernismo, um amigo distante, que resgata a memória do
passado do poeta. Essa evocação de Ovalle não é casual. Bandeira sempre
lança mão de amigos e pessoas do seu círculo familiar como inspiração. Uma
espécie de “musa” evocada em seus poemas. Ovalle estabelece uma ligação
entre o externo e o interno no poema. Bandeira fez poemas lindos sobre ele,
como, por exemplo, “O noturno da rua da Lapa”, da obra Libertinagem, um
perfeito poema em prosa.
Existe, no “Poema para Jaime Ovalle”, uma seqüência de imagens
que vão sendo produzidas como uma pequena narrativa. Contudo, não caberia
um julgamento de valor no sentido de dizer que o eu lírico estaria interessado
em nos contar uma história. A preocupação não seria com o fio narrativo, pois
23
Voltarei a falar sobre a “paixão erótica” no capítulo “O alumbramento”.
50
não haveria então a preocupação com a musicalidade, que é evidente no
poema, mas a intenção mais forte é a descrição do sentimento que culminou
na tranqüilidade. Pode até deduzir-se que essa comparação com a narrativa
deve-se ao efeito maravilhoso dos versos livres com ritmo.
Os versos livres não são os mais fáceis, pois a musicalidade requer
muito mais artifícios do que a trica. Affonso Romano de Sant’Anna (1957)
constata:
Está em historiadores da linguagem e em filósofos a idéia de
que poesia e música surgiram juntas como forma de expressão
do indivíduo e da comunidade. E nisto o canto guerreiro, o
canto religioso, o canto laborial e o canto festivo demonstram
essa integração de canto e palavra.
Se focalizarmos o espaço, observamos logo no primeiro verso:
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
Supomos, que o espaço revelado é o quarto. É um espaço obscuro, que
pode ser observado por meio das palavras que sugerem experiências
negativas, como escuro, chuva, tempestuoso, que aparecem na primeira parte
do poema. O verso acima nos uma idéia de um ambiente fechado, ilustrado
na palavra escuro e nas outras palavras que vêm nos versos seguintes, como
chuva e tempestuoso, que ecoam na primeira. A própria palavra tempestuoso
(violento, que traz ou é sujeito à tempestade) por si traz um significado
sombrio, carregado. Segundo Bosi (2000, p. 56) “[...] uma vogal grave, fechada,
velar e posterior, como /u/, deva integrar signos que evoquem objetos
igualmente fechados e escuros”. O quarto parece ser o lugar em que melhor
pode divagar, lembrar-se das emoções de um passado que ainda está vivo, por
meio de reminiscências.
Mas, além do espaço interno, temos também um espaço externo,
definido pela natureza, que é a chuva:
Chovia uma triste chuva de resignação
51
Essa imagem vem para reforçar o ambiente fechado, vazio e solitário. É
a força da natureza que o eu lírico busca para ilustrar o seu ambiente e esse
espaço exterior se reflete no interior, como um espelho. A imagem externa se
reflete na interna e uma confirma a outra. É o poeta que procura a sensibilidade
do leitor, fazendo com que este sinta essa chuva e o ambiente escuro.
As ações levantei, preparei, deitei e a obscuridade do ambiente
preparam um espaço de meditação. O espaço está interligado ao tempo
cronológico. Ligando o primeiro verso ao segundo:
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada)
Evidentemente, o eu lírico, embora expressando-se por meio de versos
contrastantes, nos situa numa manhã de um qualquer hoje dia, porque a
palavra hoje, apesar de nos transmitir um tempo ocorrido muito próximo,
também pode significar muito distante. Os verbos do passado acordei,
levantei, bebi, preparei, deitei, acendi, fiquei, amei também nos fornecem a
mesma impressão de algo que passou, mas que ainda pode estar muito
próximo, porque está nas lembranças.
Há, ainda, uma outra dimensão de tempo que é o tempo psicológico,
remetendo-nos a uma cena em que não lógica, que aparentemente nada
diz, que é sem importância e talvez faça mais sentido como explicação do
poema. A primeira impressão do poema é de imobilidade. Uma cena
corriqueira, num quarto de uma pessoa simples. Mas, após outra leitura,
observa-se uma reflexão marcada pelo tempo passado (amei, bebi, preparei,
etc), um tempo obscuro (fazia escuro) e o espaço (quarto). Estes elementos
mostram o movimento do pensamento, da consciência. O quarto e a rotina
diária levam ao despertar da consciência e do eu lírico. São as atitudes
simples, a mesmice de todos os dias que fizeram o eu lírico despertar para o
que é ou se transformou a sua vida:
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
52
O verso acima, também pode revelar, além da simplicidade do eu lírico,
esse movimento da mente, sem tirar os pés do chão. Conforme nos diz
Arrigucci (2003, p. 84) é ser simples, discreto: Humildemente (humus =
terra/chão). A palavra pensando é um gerúndio que indica um movimento do
pensamento, como um alumbramento, ligando o passado ao presente. A
palavra novamente, também pode trazer à tona essa discussão de uma nova
visão, uma nova maneira de ver as coisas, um novo pensar:
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei
pensando...
Esse movimento da mente é o de ir e voltar e está expresso nestes
outros elementos temporais, que também são contrários:
-Ausência e presença: o eu lírico evoca o amigo que está distante
(Jaime Ovalle);
-Presente e passado: o título da evocação do amigo para as lembranças
e as palavras quando/hoje.
Essa questão do tempo com a evocação de Jaime Ovalle, pode ser
semelhante à evocação das musas dos poemas épicos.
Ao observar mais atentamente os dois primeiros versos, aparecem
termos contrastantes: escuro/manhã. Quando o eu lírico acorda pela manhã e
tudo escuro, haveria um indício de tempo cronológico se a leitura parasse
no primeiro verso, pois ele poderia ter acordado e ser ainda madrugada, o que
pressupõe a escuridão que ainda se fazia. Mas, o segundo verso vem para
romper essa informação, pois o eu lírico já informa que é amanhecer.
Portanto, essa escuridão seria da mente dele que ainda está fechada e as suas
idéias ainda não estão claras como a manhã.
O acordei do início ecoa no fim amei, demonstrando mais uma vez o
movimento da mente.
Os encontros vocálicos aparecem muitas vezes. O EI aparece sempre
como uma sílaba forte, produzindo a musicalidade do poema, juntamente com
as rimas. O poema apresenta rimas internas em assonância (EI):
Bebi o café que eu mesmo preparEI,
53
Depois me deitEI novamente, acendi um cigarro e fiquEI
pensando...
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amEI.
Podemos ver, nestes versos, aliteração (CH), para sugerir o ruído da
chuva (onomatopéia) e também uma anáfora:
CHovia.
CHovia uma triste CHuva de resignação
A palavra resignação apesar de não encontrar rima, casa perfeitamente
com a exposição feita do espaço e tempo, pois significa paciência com os
sofrimentos. É como se fosse uma personificação da chuva (embora não venha
com letra maiúscula, como encontramos em outros poemas de Bandeira).
Há aliterações (C) no seguinte verso:
Como Contraste e Consolo ao Calor tempestuoso da noite.
E ainda (T):
Como conTrasTe e consolo ao calor TempesTuoso da noiTe.
E outra assonância (vogal anasalada):
COMo cONtraste e cONsolo ao calor tempestuoso da noite.
Tudo isso serve, também, para marcar o ritmo no poema e dar-lhe
sentido.
Todo o poema é um alumbramento
24
, uma revelação. A rotina diária,
transformou o eu lírico em um pensamento que tenta ser colocado no papel, no
exato instante em que ocorre. Ao acordar, percebe algo diferente, pois a mente
ainda estava anuviada, apesar do clarão do amanhecer. Na realidade, era sua
mente que estava escura.
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada)
24
Sobre a questão do alumbramento na poesia de Manuel Bandeira, ver capítulo 3 do presente
trabalho.
54
Ouve somente a chuva e começa a movimentar o pensamento,
comparando-a com a noite que já se foi. Há uma comparação com o sofrimento
que está sentindo no momento, quando fala da chuva de resignação:
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Toma a atitude de levantar-se como se tomasse uma nova decisão na
vida. É por meio dos atos rotineiros de todo o dia, que toma esta decisão.
Essas coisas que o eu lírico faz todos os dias tomam um novo significado para
ele, pois há implícita nelas uma grande revelação: a sua consciência está
alerta. Ele percebe o que faz, pois já não são mais atitudes automáticas,
impensadas e sem importância:
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Consciente dos seus atos, volta ao ponto inicial para o (re)conhecimento
do Eu e toma uma decisão de não parar a mente, de mantê-la em contínuo
movimento. O fumar prepara para o alumbramento, a revelação final que fará
novo sentido da sua mente: nova (mente).
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei
pensando...
E na própria simplicidade das ações cotidianas (humilde), reconhecendo
seus limites (a mente consciente), que acorda finalmente, o que não havia
ocorrido no início, pois sua mente ainda estava escura:
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
Com as mesmas ferramentas com que o escritor forma e espaço a
sua narrativa, criando um sujeito que narra uma verdade que é uma mentira,
também o poeta cria igualmente um eu lírico para narrar o seu sentimento que
é um fingimento, como Pessoa
25
já escreveu.
25
“O poeta é um fingidor”, verso do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa.
55
O poema é a história de uma emoção de algo que passou e tenta ser
descrita por meio das palavras. Narrar um sentimento, um devaneio, um
alumbramento é algo muito difícil ao eu lírico seja na prosa ou na poesia.
Talvez a tentativa de um poema-narrativo seja a última alternativa para um
poeta-escritor.
Segundo Antonio Candido (1967, p. 24), toda a sonoridade dos poemas
bandeirianos “importa decisivamente para a individualidade do poema”. O
objetivo do eu lírico é comunicar-se com o seu leitor, por meio das sensações
que as palavras do poema provocam em ambos.
O tema da morte está implícito no poema. As lembranças que o eu lírico
revela são decorrentes do novo olhar. O tema ganhou novo rumo que é
aproveitar-se das lembranças boas. Assim, a angústia que tomava conta do
seu ser dissipou-se como a fumaça do cigarro.
Essa angústia toma o caráter do “nada”, pois, segundo Heidegger (2007,
p. 253):
Naquilo com que a angústia se angustia revela-se o “é nada e
não está em lugar nenhum”. Fenomenalmente, a impertinência
do nada e do em lugar nenhum intramundanos significa que a
angústia se angustia com o mundo como tal.
A angústia, pois, se faz presente em decorrência do eu lírico sentir-se no
mundo. Não se torna algo prejudicial, mas o ser-no-mundo percebe o seu
vazio, mesmo abrindo-se a mente, sente que nada há mais importante a fazer.
Assim, advém a angústia. Heidegger (2007, p. 256) continua:
A angústia pode surgir nas situações mais inofensivas.
Também não necessita da escuridão onde alguma coisa
comum facilmente se torna estranha. Na escuridão não
“nada” para se ver especialmente,e embora o mundo esteja
ainda e de maneira mais importuna “por aí”.
A escuridão do quarto, que ilustrou essa angústia do eu lírico no poema,
ao final significou nada. Portanto, foi-se dissipando, trazendo um novo sentido,
ou seja, uma liberdade. É como afirma Kierkegaard (2007, p. 51): “[...] a
angústia é a realidade da liberdade como puro possível.”
O eu lírico, ao tomar conhecimento de que a própria morte ocorrerá,
porque é um fato inevitável, oculta a incerteza que o angustia, pois desconhece
56
o quando e o como essa morte virá. De fato, essa fuga revela o receio do fato
que poderá acontecer a qualquer momento. Semelhantemente, a morte, como
término do Dasein é certa, porém indeterminada. Manuel Bandeira no poema
O homem e a Morte, mostrou a ceteza da finitude e a incerteza do tempo em
que ocorrerá sua morte. No Poema para Jaime Ovalle, o poeta mostrou a
angústia, decorrente da indeterminação da morte, mas assumiu o vazio
compreendendo essa morte iminente.
No poema “Esparsa triste” (BANDEIRA, 1987, p. 175) (Anexo C), a
repetição da palavra triste em quase todos os versos, conduz a pensar no
sentimento de imensa tristeza do poeta pela morte do grande amigo Jaime
Ovalle. Outros poemas foram escritos em homenagem a esse amigo querido
bem como outros amigos e parentes que a morte foi levando, deixando marcas
no poeta. Essas marcas proporcionaram uma nova linguagem, ritmos, sons e
novos modos de ver a morte e a vida e nos conduzem ao que de mais
elevado no sentimento, proporcionando assim, uma admirável beleza.
57
Capítulo 3 – O alumbramento
Dado a alumbramentos em seu quarto pobre
de solteirão solitário, inventou um estilo
humilde para falar simplesmente de coisas
cotidianas, embora sempre visitado por
momentos de volúpia ardente e a obsessão
constante da morte.
Davi Arrigucci Jr.
O objetivo deste capítulo é apresentar o conceito de Epifania, de acordo
com os estudos de Olga de Sá, e aproximá-lo do significado do termo
Alumbramento de Manuel Bandeira. Para isso, a Fenomenologia como método,
conforme exposto no capítulo 1, será suporte juntamente com a concepção de
corpo e alma como voz de resposta cultural da poética bandeiriana dada por
Davi Arrigucci Jr., com a observação das intervenções do lirismo de Bandeira,
juntamente com a sua trajetória, conforme exposto no capítulo 2. O efeito do
alumbramento será observado, também, com as teorias de Georges Bataille,
Gaston Bachelard, Mircea Eliade, Paul Zumthor e Paulo César Carneiro Lopes.
Sobre o item “o alumbramento da infância”, o enfoque terá por base, também, o
estudo de Yudith Rosenbaum.
3.1 Momentos epifânicos: instantes de alumbramento
O grande poeta Manuel Bandeira dedicou sua vida à poesia. Envolveu
nela o olhar, paixão e desejo. Os traços característicos da concepção da sua
poesia estão ora implícitos na forma poética e ora aparecem numa leitura mais
detida. Também, ocorrem nas reflexões formuladas na sua obra em prosa:
Itinerário de Pasárgada, nas Cartas a Mário de Andrade, nas crônicas e nos
compêndios por ele organizados.
NO Itinerário de Pasárgada, obra de memórias do poeta, estão as
maiores revelações sobre a concepção crítica de se fazer poesia. É um relato
de experiências que se revelam à luz da consciência, que lhe deu forma.
Segundo o método fenomenológico, essa investigação é possível, pois traz à
plena luz a tomada de consciência de um sujeito maravilhado pelas imagens
58
poéticas. Manuel Bandeira transforma em palavras estas imagens poéticas,
clareadas de teoria simples e humilde, mas muito densa.
Gaston Bachelard (2006, p. 1-3), filósofo e ensaísta francês, na
introdução da obra “Poética do Devaneio”, afirma que o universo do devaneio
de um poeta é o germe do mundo e as imagens de “maravilhamento” desse
mundo estão carregadas de mistério nas quais tentam se achar as verdades.
Uma das formas de encontrá-las é por meio das imagens poéticas:
(...) o método fenomenológico leva-nos a tentar a comunicação
com a consciência criante do poeta. A imagem poética nova
uma simples imagem! torna-se assim, simplesmente, uma
origem absoluta, uma origem de consciência.
de se destacar que, por ser a imagem poética a que ilumina de tal
forma a consciência, esta se põe em movimento, ativando a memória e
tranforma em palavras simples os “instantes de iluminação”. A iminente
realidade em seu humilde cotidiano é palco para os sonhos e os desejos do
poeta. A reflexão e o trabalho constante com as palavras fazem da inspiração o
momento de revelação. Eis a origem do mistério sublime a que Manuel
Bandeira chama de alumbramento.
Convém fazer um parêntese sobre a distinção entre sonho e devaneio.
Apesar das imagens poéticas também surgirem dos sonhos e dos devaneios,
Bachelard (2006, p. 11) esclarece que é por meio da Fenomenologia que essa
distinção é feita: “A estranheza de um sonho pode ser tal que nos parece que
um outro sujeito vem sonhar em nós.” Diferentemente do sonho, o devaneio
não se conta, pois ele deve ser descrito com palavras escritas para que possa
ser revivido. E, ainda: “o devaneio é uma fuga para fora do real, nem sempre
encontrando um mundo irreal consistente.” (2006, p. 5).
Embora haja essa diferenciação, as recordações (sejam devaneios ou
sonhos) desde a infância tornam-se imagens, matéria de obra poética,
movimentam a memória e a imaginação e provocam a inspiração.
Itinerário de Pasárgada explica o surgimento da poesia em M. Bandeira,
como veio a inspiração para seus versos, de que forma os poemas foram se
formando, as técnicas utilizadas para a feitura dos poemas, suas relações com
os amigos, suas opiniões sobre as artes e quais os momentos que foram
59
cruciais para a visão da poesia, ou seja, seus instantes de alumbramento. Está
escrita em prosa, numa linguagem simples, aberta e bela com momentos de
ironia e bom humor e com explicações profundas sobre a teoria da sua poesia.
Bandeira ao expor, nessa obra auto-biográfica, a raiz da sua poética,
transcreve as emoções que ele detectou desde menino e se transformaram em
diferentes imagens que ora vieram do sonho ora do real. O início, certamente,
foi na memória da infância. O desejo infantil, implícito na memória adulta,
trouxe uma ligação entre o passado concreto e um futuro incerto. É uma tensão
entre los extremos, ou seja, o real e o imaginário que pretendem se fundir. É
o desejo do poeta. O instante de alumbramento ocorre quando essa fusão:
o desejo puro e ardente que veio da infância, recuperada no instante da
inspiração, com a paixão desenfreada pela vida que deveria ter tido e que foi
interrompida pela ameaça constante da morte. Tudo isso ocorre no chão do
mais humilde cotidiano, que aparece oculto mas de forma sublime.
O Itinerário traz as reflexões sobre essa inspiração poética entendida,
pois, como uma iluminação, ou seja, o alumbramento tal como será observado
adiante.
O termo alumbramento, de origem latina, significa luz. Entre seus vários
significados
26
“iluminação, “revelação” e “inspiração”. Por entendermos que
o significado do termo “alumbramento” está muito próximo do significado de
“epifania”, destacaremos o estudo de Olga de (1979) e, assim,
aprofundaremos mais o conhecimento da poética de Manuel Bandeira.
O termo epifania vem do grego epi = sobre e phaino = aparecer, brilhar.
Epipháneia significa manifestação, aparição. Epifania também tem o sentido de
aparecimento ou manifestação reveladora de Deus ou de uma divindade. No
Antigo Testamento, esse conceito está ligado aos fenômenos que se
manifestaram ao povo hebreu como o nascimento de Moisés, por exemplo,
pois é a própria manifestação divina que revela o primeiro passo para a
libertação do povo de Deus. Também, as teofanias, que o as
manifestações divinas por meio de sinais, como o episódio da sarça ardente e
dos trovões, que representaram a visão e a voz de Deus, respectivamente, no
Monte Sinai. A igreja cristã ocidental comemora a “Festa da Epifania” em que
26
HOUAISS, 2001, verbete alumbramento, p. 172.
60
a aparição dos Magos por ocasião do nascimento de Jesus Cristo,
anunciando a salvação a todos os povos. O próprio Cristo é epifania no sentido
de encarnar Deus sob a forma terrena e revelar a salvação.
Olga de (1979, p. 163) fornece pareceres críticos de alguns autores
para esclarecer o termo epifania. Ao falar de Álvaro Lins, observa: “Um dos
aspectos por ele abordado é a representação da realidade com um caráter de
sonho.” Essa afirmação é comparável a teoria de Bachelard (2006, p. 12): “Em
vez de sonho no devaneio, buscaríamos devaneio no sonho. (...) A beleza do
mundo sonhado lhe devolve, por um momento, a sua consciência.” Ou seja,
uma intermediação entre os aspectos realistas e as visões oníricas.
No poema A realidade e a imagem (BANDEIRA , 1987, p. 177), os
pontos observados acima:
O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela chuva
E desce refletido na poça de lama do pátio.
Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa,
Quatro pombas passeiam.
A imagem coloca em estado de solidão. É disso que o sonhador precisa
para que sua alma se manifeste. uma sobrecarga estranha de êxtase, pois
nos parece que a solidão não é do poeta, também é nossa. A imagem ajuda
a escapar do tempo. É o estado em que a alma se encontra, pois se entrega
totalmente ao universo do poeta. O passado parece estar muito longe. É um
devaneio que leva a imagem a se iluminar e revelar que, apesar do que parece
inútil, sem vida, sem memória, como um indivíduo inerte, a vida ressurge
diversas vezes em situações simples, basta buscá-la. O chão seco,
aparentemente sem vida, revela exatamente o contrário. É o que Bachelard
(2006, p. 15) afirma: “Como é simples reencontrar a própria alma do fundo do
devaneio! O devaneio nos põe em estado de alma nascente.” O devaneio
provocou a inspiração, o alumbramento.
Ao citar o estudo de Roberto Schwarz sobre Clarice Lispector, Olga de
(1979, p. 165) indaga se, nas afirmações do crítico a respeito da
personagem Joana de Perto do Coração Selvagem, “os efeitos de luz e
brilho, os instantes de iluminação tão próprios do processo epifânico?” E, na
61
mesma página, cita Massaud Moisés que se refere ao “instante existencial” das
personagens clariceanas:
(...) por uma súbita revelação interior que dura um segundo
fugaz como a iluminação instantânea de um farol nas trevas e
que, por isso mesmo, recusa ser apreendida pela palavra.”
Esse “momento privilegiado” não precisa ser excepcional” ou
“chocante”; basta que seja “revelador, definitivo, determinante”.
(...) o momento da lucidez plena, em que o ser descortina a
realidade íntima das coisas e de si próprio”.
Outros autores, ainda, são citados nesse estudo para aproximar o termo
epifania de uma definição exata, como João Gaspar Simões que usa o termo
“fosforescente” e Benedito Nunes “descortino silencioso”. Luis Costa Lima e
Affonso Romano de Sant’anna falam que a epifania converge para a
linguagem. O primeiro considera que, para a revelação de um instante, a lógica
da prosa deve ser extrapolada e estar mais a fim do poético. Para o segundo “a
linguagem alude, é a possibilidade do impossível, o êxito do fracasso, a
tentativa da fala diante do silêncio.” (SÁ, 1979, p. 165-167).
Esses pareceres, embora críticos, são meios de abordagem
compreensivos sobre epifania. Na tentativa de penetrar neles, buscamos em
quais o alumbramento bandeiriano se aproxima da epifania e constatamos que
uma semelhança significativa entre ambos. Começando pela epifania como
sinônimo de manifestação do sagrado.
Bandeira, no início da juventude, com plenos sonhos de se tornar um dia
arquiteto e um grande profissional, toma consciência da sua doença e,
conseqüentemente, da sua condição de ser finito. Aqueles versos, que fazia
apenas por divertimento, desde a mocidade, passam a ser um meio de
afugentar o ócio inevitável, enquanto espera a morte iminente. Esta não vem,
pelo menos não tão cedo quanto ele esperava, pois viveu até os oitenta e dois
anos. Mas, conviveu com ela (a ameaça da morte) durante todos os anos de
sua vida, ironicamente. Assim, aqueles versos passam a fazer parte do seu
cotidiano, preenchendo a parte que foi esvaziada pela doença. Aprimora a sua
técnica, primeiramente pelo convívio com Paul Eluard, na Suíça, depois por
meio da amizade com artistas, músicos e outros escritores e poetas. O receio
da morte transforma-se em palavra que, por sua vez, torna-se tema poético
62
percorrendo lembranças nascidas desde a infância e experiências acumuladas
no humilde cotidiano. Pois é justamente por tomar conhecimento que é um ser-
para-a-morte
27
, que “coloca” os pés no chão, assumindo a humildade e, num
impulso de buscar respostas para a sua finitude, nasce, da palavra suspensa
pela idéia da morte, sua poesia.
Essa é a primeira epifania, ou seja, o alumbramento de Manuel Bandeira
e está inerente ao sagrado à medida que a poesia, tornando-se uma
necessidade de resposta à morte, irradia-se trazendo imagens da infância, da
memória e do real. É uma iluminação do espírito do poeta movida pelo desejo
de resposta à finitude e que toma conta de todo seu ser, revelando o seu poder
de criação pela palavra, transmudada em poesia.
Pertencendo a palavra à própria natureza de Deus, não existem
epifanias mudas. O portador da palavra está sempre no centro
da manifestação divina. Escondido talvez, sua voz ecoa através
da sarça ardente (Ex 3), do ciciar do vento (1Rs 19,13) e da
nuvem (Mc 9,7). A epifania sempre traz salvação. O descrente
pode a ela subtrair-se, mas atrai sobre si o pólo oposto, isto é,
a perdição e o juízo.
(SÁ, 1979, p. 169)
A palavra tem que se traduzir em poesia, para Manuel Bandeira,
revelando a sua finitude, fazendo-o buscar a sua essência. O poeta tem o
“poder divino”, como vimos em Platão, de fazer da palavra exaltação do
espírito, semelhante ao que se via nas religiões não cristãs da Antiguidade, ou
seja, o estado de profunda sensibilidade da pessoa que recebia o dom da
palavra por meio da inspiração divina.
Arrigucci (1990, p. 133) faz uma perfeita comparação ao falar do
alumbramento bandeiriano e da epifania no abrangente trabalho Humildade,
paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira:
O alumbramento seria, portanto, uma espécie de epifania,
forma de manifestação do sagrado, que faria do poeta o ser
maníaco, possuído pelo furor das musas, “loucura”,
momentânea, de origem divina, como se observa na concepção
platônica da inspiração poética, cujos ecos atravessaram, como
se sabe, os séculos, ressurgindo, com variantes e modulações,
até em nossos dias.
27
Em itálico por ser um tema desenvolvido por Heidegger, conforme o capítulo um.
63
Por ser a inspiração de origem divina, o poeta transforma o difícil
caminho do encontro inevitável com a morte em poesia humilde e, por meio
dela ( a poesia) consegue a revelação de aceitar o que julgava inaceitável: a
simplicidade natural da morte. Não se deve confundir isso com conformismo
perante a morte. Ao morrer um parente próximo ou pessoa amiga, as pessoas
constantemente falam que o tempo fa com que a pessoa próxima do
falecido fique inteiramente conformada. Ao contrário disso, o alumbramento ou
a epifania é algo muito superior, requer uma elevação de espírito contida num
instante, um momento de bita revelação, ainda que seja sob a circunstância
da morte, como é o caso de Bandeira.
A grande revelação advinda do alumbramento ou da epifania é esta: a
salvação da pessoa cercada pela “indesejada das gentes”, proveniente de uma
súbita iluminação das imagens da memória, acumuladas nas experiências do
cotidiano desde a infância e traduzidas em forma poética. O estilo humilde das
suas poesias, humilis, conforme exposto no item 2.4, aproxima o poeta do
sagrado, à medida que a linguagem simples cotidiana permite penetrar nos
sentimentos e no sofrimento, decorrente da ameaça constante da morte,
tornando possível a compreensão do ser finito.
Arrigucci (2001, p. 131) afirma que o momento de alubramento, que é o
instante epifânico, revela um milagre, embora apresentando um paroxismo,
pois sendo um instante iluminado intensamente de vida, contém a “violência
extrema” da morte:
Ao que parece, o poeta faz coincidir o momento da inspiração
poética com uma manifestação epifânica, como se se tratasse
de uma “sacralização do instante”; no entanto, sua linguagem
para dizer o poético evita toda elevação, buscando na
humildade do chão humano as palavras simples com que
parece exorcizar a grandeza dominadora e a violência do
sagrado, como que pressentindo nela a força destruidora da
morte.
Conforme exposto no capítulo 2, os recursos da poesia e prosa com
estilo humilde em Manuel Bandeira, visam elevar a linguagem do simples ao
complexo, ou seja, elevar o oculto ao sublime. Esse recurso, juntamente com o
componente biográfico e a experiência do poeta marcado pela morte
onipresente, designam para o alumbramento e ligam-se à memória da infância,
64
à doença, à pobreza, à solidão do quarto da Rua do Curvelo e, especialmente,
à raiz material do corpo. As imagens vindas desses recursos são
transformadas em poesia irradiadas de desejo.
3.2 O alumbramento da paixão: uma fenomenologia do corpo
Arte de amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
(BANDEIRA, 1987, p. 185)
Os antigos tinham a consciência de que o corpo estava ligado com a
percepção do poético, pois havia partes na retórica com o objetivo de produzir
efeitos sensoriais nos ouvintes, como a pronunciatio e a adio. Ao pronunciar
palavras ou cantarolar todo o corpo reage. Na escrita, esse corpo desaparece,
mas, se a escrita for poesia, ela serecuperada num grau de dramatização,
por meio do corpo, por causa das sensações.
O ato de cantar, por exemplo, de produzir signos verbais também pode
ser feito com movimentos da cabeça, dos braços e de todo o corpo. O ouvido
capta sons e ruídos fazendo que se consiga memorizar. O olho percebe
detalhes. Escrever poesia é transcrever a linguagem do corpo e a poesia
fornece, por meio dessa linguagem, um toque sensório e corporal com o
mundo. Grande parte dessas sensações é dada por meio do ritmo.
Conforme exposto no item 2.3, o ritmo existente na poesia é um
elemento que estabelece conexões com a natureza e marca intensidades. Ele
é a prova de que poesia é sensorial e interage com o corpo e com o mundo. O
corpo reage ao ritmo e à entonação da voz que o profere, reconhece a escuta
dessa voz e confere poeticidade ao texto.
65
O suíço Paul Zumthor (2007, p. 79), estudioso da oralidade, afirma que
sempre se pensa com o corpo e não só com a cabeça. O corpo traz sensações
do mundo que o rodeia:
O corpo dá a medida e as dimensões do mundo; o que é
verdade na ordem lingüística, na qual, segundo o uso universal
das línguas, os eixos espaciais direita/esquerda, alto/baixo e
outros são apenas projeção do corpo sobre o cosmo. É por isso
que o texto poético significa o mundo. É pelo corpo que o
sentido é aí percebido.
O texto poético proporciona ao corpo energias, revela algo profundo,
despertando lembranças que suscitam sensações. O corpo é estranho à
consciência, porém, é o ambiente em que se desenvolve a sensorialidade.
Portanto, as sensações do corpo são levadas à consciência, exigindo um
empenho sensitivo do leitor.
Uma das formas do poema nos “dizer” algo é a vocalidade, ou seja, a
voz é concreta. A voz é a palavra desnudada e revelada, que permite que os
caracteres do corpo se manifestem. A voz é o que estabelece o intercâmbio
entre a palavra e o leitor. Ela é uma “ruptura da clausura do corpo”
(ZUMTHOR, p. 84) que leva a linguagem estática da escrita para dentro do
corpo, possibilitando as sensações. Por essa razão, a voz é um índice erótico e
também seduz. Ela ocorre também na leitura do texto poético, pois, mesmo se
não houver a leitura em voz alta, ainda assim, ela será a escuta de uma voz,
pois é essa a sensação do corpo.
O que liga a poesia ao nosso corpo é a escuta e a leitura que são
realizadas por meio da voz. Com efeito, a leitura pode ser visual ou vocalizada.
A primeira é solitária e exige um investimento de energia corporal que somente
a pessoa que está em contato com aquela escrita poética pode ter. A leitura
vocalizada, na escuta coletiva, emerge trazendo sensações diversas e de
formas diferentes para cada participante. A poesia assemelha-se, dessa forma,
à sica, à dança e à pintura, em que cada corpo participante reagirá de um
jeito diferente. A sensação é única para cada um, mesmo sendo transmitida
coletivamente por uma única voz. As sensações também podem variar se a
voz, que interliga a poesia ao corpo, não for única. Em outras palavras, as
sensações de um mesmo texto poético podem ser diferentes em cada corpo,
66
dependendo da tonalidade vocal da pessoa que o lê, que o transmite. A isso
Zumthor definiu como performance. Não é a voz que é performance, mas o
desdobramento dela, juntamente com a sua propagação e o movimento do
corpo.
Do movimento rítmico e da voz, aos quais o corpo reage, caminharemos
por outra dimensão do corpo que é o sagrado e o profano. Conforme dito, a
voz, por meio do poema, é um índice erótico. Nesse sentido, Arrigucci (1990, p.
152) afirma que “a inspiração poética, visão sublime, nasce do corpo. Em sua
gênese, a lírica, para Bandeira, se prende ao erótico, a um impulso que tem o
poder de mudar o mundo, ao convertê-lo em imagem.” Ele afirma que a noção
do termo alumbramento nos poemas bandeirianos é essencialmente erótico,
portanto profano, por estar ligado diretamente à raiz do corpo. O apóstolo
Paulo afirma a valorização desse mesmo corpo, semeado em fraqueza e
corrupto, o qual deve morrer para nascer um novo homem, ou seja, um novo
corpo espiritual (1Cor 15, 42-49), corpo sagrado. A imagem do corpo “celestial”
virá da imagem do corpo terreno. Paulo César Carneiro Lopes, autor da
obra Utopia cristã no sertão mineiro, reafirma o pensamento do apóstolo Paulo
no que se refere à valorização do corpo:
(...) E mesmo quando ele fala em desejos da carne que se
opõem aos desejos do espírito não existe nenhum dualismo;
viver segundo o espírito significa viver conforme os valores de
Jesus, aberto para os outros e para Deus em busca da vida
plena; viver segundo a carne é viver fechado em si mesmo,
impedindo, desta maneira, a vida de ser plena. (...) E é
justamente ao corpo psíquico que ele associa os instintos
egoístas e por isso diz da necessidade da alma morrer.
Alma para ele é a personalidade individualista que não se
percebe e não se aceita como parte do todo, o espírito que
se realiza através da história.
28
(LOPES, 1997, p. 122)
O que marcou a cultura ocidental cristã foi o dualismo da realidade do
homem em alma e corpo, razão e emoção. Por sua vez, esse pensamento é
associado ao homem e à mulher, respectivamente; O homem é mais alma
razão e a mulher é mais corpo emoção. Deve-se a isso a desvalorização do
corpo e, conseqüentemente, da mulher. No entanto, o ser humano – homem ou
28
O grifo é nosso.
67
mulher é dotado de razão e emoção, portanto possui alma e corpo. O corpo,
em um primeiro momento da vida, pode estar associado apenas ao prazer
egocêntrico. Após alguma experiência relacionada com a morte, o corpo,
antes vil e subordinado apenas aos seus próprios interesses, passa a
reafirmar-se com a vida plena, ou seja, com a sua alma. Esse estudo de Lopes
talvez seja o que mais se aproxima do poema bandeiriano a “Arte de amar”.
O título sugere erotismo e, no desenvolver do poema, deixa transparecer
vínculos com a tradição cristã, observados nas palavras “alma”, “Deus”,
“corpo” e “mundo”. Vamos analisar esse paradoxo e verificar como se o
alumbramento.
O belo poema, em versos livres e brancos, apresenta um ritmo reflexivo.
À primeira leitura, talvez se a voz for um pouco mais rápida, não assimilará
totalmente o conteúdo denso, que os versos do poema propõem. Por ser
simples, palavras de fácil entendimento, talvez passe despercebido o instante
iluminado do último verso.
Na releitura, numa voz pausada e lenta, observa-se que o eu poético, no
seu devaneio, dirige-se a si mesmo ou a alguém. O início do verso deixa isso
transparecer: “Se queres...esquece...A condição de se optar pela felicidade
causará o afastamento da alma, pois as hipóteses apresentadas no poema,
sugerem isso: se queres a alma, esquece a paixão; se queres Deus, esquece a
arte de amar; se queres satisfação do corpo, esquece a alma; se queres Deus
esquece o corpo. Mesmo que uma palavra se associa a outra, as duas juntas
seriam inadmissíveis, por serem “opostas”, segundo o que sugere o poema.
Em outras palavras, uma seria profana e a outra sagrada, ou seja, uma seria
completamente diferente da outra. Porém, observamos que o sagrado e o
profano constituem duas modalidades de ser no mundo, ao longo da história
ocidental.
Mircea Eliade, grande estudioso de religiões, afirma que a distância que
separa o sagrado do profano é a mesma que designa os dois modos de ser do
homem. O cristianismo, segundo esse autor, valorizou muito essa questão,
porque a partir do momento que “Deus encarnou” foi possível mostrar ao
homem que seu corpo antes profano, torna-se santificado pela presença do
Cristo:
68
(...) (Acrescentemos porém que para o cristão o Tempo começa
de novo com o nascimento do Cristo, porque a encarnação
funda uma nova situação do homem no Cosmos.) Em resumo,
a História se revela como uma nova dimensão da presença de
Deus no mundo. A História volta a ser História sagrada tal
como foi concebida, dentro de uma perspectiva mítica, nas
religiões primitivas e arcaicas.
(ELIADE, 2008, p. 98).
Os modos do sagrado, do ser, são apresentados de diversas formas e
surgem da vida terrena do homem e sua relação com o cosmo. Assim acontece
com a assimilação do corpo humano em seus atos fisiológicos e sua
correspondência sagrado/profano. Por exemplo, o ato sexual foi valorizado
religiosamente em diversas regiões e épocas históricas, por ter um significado
de semeadura divina. Órgãos e funções do corpo foram valorizados, também,
por imitarem modelos divinos como soprar, referente aos ventos; cantar,
imitação dos diversos sons da natureza; dançar, relativo ao movimento do sol,
estrelas e lua; cabelos semelhantes às ervas; ossos que lembram pedras.
A união sexual, como ritual, têm grande demonstração na Índia. “A
verdadeira união sexual é a união da Shakti suprema com o Espírito (âtman)
(ELIADE, 2008, p. 140). Essa experiência transforma o que é profano, num
plano sagrado, pois as pessoas que participam desse ritual sexual iluminam-se
e libertam-se iguais aos deuses.
Na “Arte de amar”, o eu poético reflete sobre o ser que vive num mundo
aberto com desejo de aproximar-se do divino, porém chega à conclusão de que
seu corpo é centro do prazer eterno. Não consegue imaginar o prazer do corpo
associado com os valores cristãos aos quais foi submetido desde a infância.
Tem uma visão desligada do mundo e, ao mesmo tempo, procura reorganizar
esse mundo de forma que caiba o seu prazer (profano) e Deus (sagrado). O
instante de alumbramento nasceu do corpo, numa visão sublime, conseguindo
separar a satisfação do corpo com os vestígios da memória religiosa da
infância. A alma não cabe no mundo profano, pelo menos por enquanto, pois
esta pertence ao sagrado, provém de Deus. Contudo a “incomunicação” entre
alma e corpo é apenas momentânea:
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
69
Esse momento de elevada inspiração poética, iluminando a
complexidade do mundo com a plenitude do corpo, também trouxe outro
momento alumbrado: o poema “Unidade”, do qual não se tem informação, se
este foi escrito antes ou depois da “Arte de amar”, mas considerando Manuel
Bandeira um grande crítico da sua própria obra, observa-se que o poema
contém reflexões mais complexas e instigantes do que o anterior, sugerindo
que realmente tenha sido escrito depois
29
. A imagem alma/corpo e
sagrado/profano parece estar mais bem delineada do que no poema anterior.
Minh’alma estava naquele instante
Fora de mim longe muito longe
Chegaste
E desde logo foi verão
O verão com as suas palmas os seus mormaços os seus
[ventos de sôfrega mocidade
Debalde os teus afagos insinuavam quebranto e molície
O instinto de penetração já despertado
Era como uma seta de fogo
Foi então que minh’alma veio vindo
Veio vindo de muito longe
Veio vindo
Para de súbito entrar-me violenta e sacudir-me todo
No momento fugaz da unidade.
(BANDEIRA, 1987, p. 184)
Ao analisar o belo poema de versos livres e brancos e repleto de ritmo,
há a impressão primeira de um instante erótico seguido do ato sexual. A
primeira estrofe revela a reflexão do poeta discutida acima com outro enfoque:
a alma estava separada do corpo no momento erótico, porém ela voltou ao
corpo para encontrar a revelação do momento final. Na segunda estrofe, o
“chegaste” sugere um alguém que imediatamente ilumina a imagem que se
forma no poema, trazendo o erotismo desse momento único, fazendo surgir o
sentimento profundo que os seres almejam. Com esse alguém veio o desejo
descrito sob a metáfora do verão e do que a ele está associado: o que torna
mais quente, a planta viçosa, a neblina quente e úmida e a voracidade da
juventude.
29
Na obra Belo Belo o poema “Unidade” vem antes de “Arte de amar”.
70
Na terceira estrofe, os “afagos” buscam o outro para si. É o corpo
libertando-se do seu egocentrismo, possibilitando o reencontro com a alma. A
“seta de fogo”, metáfora revelante do ardente desejo, associa o corpo ao
cosmo. É o momento de intensa revelação do corpo movido pelo desejo
erótico. A imagem poética figura em um espaço imaginário, confundindo-se
com imagens reais de dois seres unidos em um único corpo atingindo a
plenitude. O momento em que a alma “retorna” ao corpo é descrito de maneira
muito violenta. Esta erupção da paixão ao encontrar este corpo em um instante
epifânico, revela o desejo ardente de algo que não se espera e é equiparável à
morte.
O reencontro da alma com o corpo pode significar, assim, a tentativa de
conviver harmoniosamente com a morte. Ele se dá em um instante que dura
pouco, mas transforma para sempre o ser. Este é o alumbramento, uma
iluminação profana, vinda de baixo, do corpo, contudo transformada pela visão
do poeta em iluminação espiritual e sublime.
Georges Bataille escreveu exaustivamente sobre erotismo e religião,
fugindo da sistematização tradicional. Sua insistência nesses conceitos está na
visão humana da religião cristã e afirmou que o erotismo se como a forma
de se encontrar o sagrado. O erotismo é uma manifestação natural do corpo de
buscar o outro para si, é um desejo que estimula e direciona para esse fim. É
como uma comunicação, ou seja, uma abertura para se entregar ao outro.
Segundo Bataille, o erotismo é uma forma particular da atividade sexual
de reprodução e esta é a chave do erotismo, pois coloca em jogo dois seres
descontínuos, que são distintos um do outro. Entre um ser e outro um
abismo, que é a descontinuidade, um estado fechado. Somos seres
descontínuos, porque morremos isoladamente, porém temos a melancolia da
continuidade perdida e a buscamos nos religando ao ser.
A reprodução leva à descontinuidade dos seres, mas ela coloca
em jogo a sua continuidade, quer dizer, ela está intimamente
ligada à morte (...) reprodução e morte são, uma e outra,
igualmente fascinantes, e esta fascinação domina o erotismo
(...)
“Há na passagem da atitude normal ao desejo uma fascinação
fundamental pela morte. O que está em jogo no erotismo é
sempre uma dissolução das formas constituídas.
(BATAILLE, 2004, p. 22 e 25).
71
O erotismo suscita a idéia de prazer e morte, porque sendo desejo,
busca algo que supere o corpo e a alma. A revelação do corpo aparentemente
profano, por meio do erotismo, surge sacralizado. O poder erótico une-se ao
poder do corpo e ambos revelam o momento fulgurante da paixão. Isto é a
abertura para o sagrado, segundo Bataille.
No poema “Unidade”, a união do corpo com a alma no instante de
alumbramento da paixão, deu-se de forma violenta, comparável à morte
instantânea. Na experiência religiosa do sagrado, nas cerimônias de sacrifício
poderia haver dilacerações do corpo ou até mesmo a própria morte. É uma
visão mística de comunhão com o outro, nascendo do corpo profano e se
transformando na “unidade” sagrada. “Aprovação da vida até na morte”, como
o próprio Bataille (2004, p. 18) definiu o erotismo. O que parece ser profano e
libertino é na realidade o que conduz ao alumbramento bandeiriano. Sobre
isso, Arrigucci (1990, p. 198) reafirma que “a paixão erótica faz com que a
poesia se torne um meio para o poeta se familiarizar com a idéia de morrer”.
A poesia de Manuel Bandeira estimula o leitor a participar desse ritmo
erótico que estimula e movimenta o nosso corpo. É a revelação do ser finito,
descontínuo, mas que incessantemente procura a sua continuidade.
3.3 O Alumbramento da infância: reminiscências
É muito bom recordarmos a infância, principalmente quando seu
significado marcou definitivamente nossas lembranças. São boas as sensações
quando nos recordamos dos brinquedos, das brincadeiras, dos tios que traziam
doces, dos passeios, das brigas com os irmãos, do despertar do primeiro
amor...De acordo com Bachelard (2006, p. 122) a “infância, soma das
insignificâncias do ser humano, tem um significado fenomenológico próprio, um
significado fenomenológico puro porque está sob o signo do maravilhamento.”
São recordações aparentemente simples, mas fundamentais para reaquecer a
nossa alma, reacender sentimentos latentes e religar a maturidade atual aos
desejos da criança do passado com o objetivo de nos reconhecer a nós
mesmos.
Manuel Bandeira utiliza muito das sensações da sua infância nos
poemas. É o passado revisitado a ser revelado. O poema “Infância” (anexo E)
72
revela imagens do tempo de menino do poeta. Parece que são flashes que vão
e vem na mente e que o poeta vai traduzindo em forma de versos. O ritmo dos
versos livres e brancos dissolvidos em musicalidade trazem, ao leitor, alegria
com um toque de bom humor. As recordações são buscadas no profundo da
mente, fazendo esta parar em diversos momentos das imagens poéticas, como
em êxtase, procurando o verdadeiro significado delas. Observa-se isso na
forma expressa das muitas reticências do poema.
As imagens latentes da infância reacendem-se mais vivas, e o eu
poético busca respostas dessas imagens...para o questionamento do ser. É
comparável à “relação de se estende de algo para algo”, em que cada imagem
do passado religa-se a uma no presente. É ultrapassagem, transcendência.
30
No início do longo e belo poema, o eu lírico parece ter uma vaga
recordação do momento em que tinha por volta de três anos. Ele mesmo se
pergunta se essa idade era a real, observada pelo ponto de interrogação, mas
tem a absoluta certeza do lugar em uma afirmação veemente. A sua mente não
pára neste ponto, antes procura aprofundar-se mais nas lembranças:
Procuro mais longe em minhas reminiscências.
Ele se esforça para lembrar, mas a mente ainda está obscura. A sua
memória e a sua imaginação lutam entre si para devolver essas imagens. A
Iluminação deve chegar para que possa vencer essas barreiras que tanto o
atrapalham. Após algumas reticências, parece que as imagens desenvolvem-
se paulatinamente e detalhadas.
Ao recordar a primeira pessoa de sua infância, a ama-de-leite, deixa-se
transparecer o erotismo ligado ao corpo, desejo que permanecerá latente,
começando a desabrochar, como aparecerá ao final do poema (verso 57) ao
seu “primeiro alumbramento”
31
.
30
Conceito de Heidegger, conf. exposto no capítulo 1 do presente trabalho.
31
No poema “Evocação do Recife”, da obra Libertinagem, Manuel Bandeira revela o seu
primeiro alumbramento:
“Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
(BANDEIRA, 1987, p. 106).
73
A partir do nono verso, pode-se perceber um período mais longo. No
entanto, ainda paradas marcadas pela pontuação que traduzem a visão
alumbrada, dos instantes repentinos de luminosidade em espaços breves de
tempo cada vez mais intensos.
O aprofundamento das lembranças clareiam cada vez mais a mente do
eu rico. O obscuro vai se aclarando e as imagens vão se formando conforme
o ritmo da poesia. O poema solicita uma aceleração na leitura mesmo nos
versos mais longos, equiparando-se às visões que vão surgindo para o poeta.
A uma imagem sobrepõe-se outra trazendo figuras humanas, figuras da
natureza, objetos da infância, animais e lugares suscitando, no próprio leitor,
curiosidade e recordações semelhantes a do eu poético possibilitando
reflexões a respeito do ser.
A leitura proporciona a impressão de que se está vendo um filme da
própria vida, um longa metragem, embora a leitura demanda apenas cinco
minutos. Esse é o tempo do alumbramento um instante mas a sensação é
de eternidade.
As imagens do passado são comparadas aos destroços que precisam
ser reunidos como em um acidente aéreo, por exemplo, em que a perícia
recolhe os pedaços espalhados da aeronave e analisa-os procurando em qual
parte deu-se a falha. Segundo Yudith Rosenbaum (2002, p. 62), grande
estudiosa da poesia de Manuel Bandeira, o verso “Poesia dos naufrágios” é
ambíguo e :
permite duas leituras diversas: ou se trata da poesia que fala,
tematiza o naufrágio, ou é pela poesia que o náufrago se salva,
ao ancorar-se na palavra. Em ambos os casos, o dizer poético
é a porta de acesso a um sentido submerso (“o jardim
submerso”?) que pode emergir pela evocação. O poder mágico
que habitava a infância se entende, agora, ao ato integrador da
poesia, cuja magia está em recolher os destroços rumo a uma
unidade.
Ao recolher esses “destroços” do passado, o eu poético vai se
descobrindo, a mente vai se iluminando trazendo a revelação do tempo
Não só neste poema, mas em muitos outros ao longo da obra de Manuel Bandeira, há elementos
abundantes para desenvolver mais reflexões a respeito dos temas infância, alumbramento, erotismo e
corpo. Nos restringimos aos poemas do livro Belo Belo, nosso corpus.
74
imensurável, comparável ao “equinócio”, fazendo com que o dia (a claridade da
infância) e a noite (a presente realidade) tenham a mesma duração. O eu
poético recupera os momentos apreendendo as sensações por meio dos
fragmentos misteriosos revelados ao lembrar dos parentes e dos amigos:
As marés de equinócio.
O jardim submerso...
Meu tio Cláudio erguendo do chão uma ponta de mastro
[destroçado.
É uma atitude existencial revelando a compreensão do ser consigo
mesmo, junto às coisas do mundo, as quais o eu poético procura reunir e,
também, junto com os outros seres que estiveram com ele desde a remota
infância. Interpreta o mundo, dessa forma, com nova visão e descobre-se a si
mesmo. É o Dasein descobrindo-se parte do mundo, ser-no-mundo, ou seja, a
transcendência.
No Itinerário de Pasárgada, Manuel Bandeira (1984, p. 17) revela que
adquiriu maturidade mesmo em Petrópolis, sendo este o lugar que mais
recordava a sua infância no Recife, porque os prédios para os quais olhava
suscitavam essas imagens do passado de criança e procurou colocá-las no
poema “Infância”:
(...) um bambual debruçado no rio (imagino que era o fundo do
Palácio de Cristal), o pátio do antigo Hotel Orleans, hoje Palace
Hotel (...) O que de especial nessas reminiscências (...) é
que, não obstante serem tão vagas, encerram para mim um
conteúdo inesgotável de emoção. A certa altura da vida vim a
identificar essa emoção particular com outra a de natureza
artística. Desde esse momento, posso dizer que havia
descoberto o segredo da poesia. (...) Verifiquei ainda que o
conteúdo emocional daquelas reminiscências da primeira
meninice era o mesmo de certos raros momentos em
minha vida de adulto (...)
32
Essa e outras revelações o expostas no poema. A partir do verso
qurenta e seis, há a voz da pessoa Manuel Bandeira reafirmando que, se
soubesse cantar, poderia se expressar melhor nos poemas. O “núcleo de
mistério” começa a se desvendar nos lugares mais íntimos e recônditos da
32
O grifo é nosso.
75
infância. É das lembranças desses lugares, da sua casa materna, que ele se
enche de força apaixonada e descobre que a poesia habita regiões pouco
nobres, ou seja, lugares humildes:
A casa da Rua União.
O pátio – núcleo de poesia.
O banheiro – núcleo de poesia.
O cambrone – núcleo de poesia
A alcova de música – núcleo de mistério.
São as respostas para o segredo da sua poesia: humus. É a descoberta
de que nas pequenas coisas da infância é que o sentido para a vida. Para
que se fazer poesia? Para aprender a conviver com a morte:
Depois meu avô...Descoberta da morte!
Com dez anos vim para o Rio.
Conhecia a vida em suas verdades essenciais.
Estava maduro para o sofrimento
E para a poesia.
Como diz Bachelard (2006, p. 106): “Vida e morte são termos muito
toscos”, que não cabem no mesmo lugar, mas as imagens da infância
“emanam fontes”, as quais redescobrimos um sentido para o destino da
finitude.
No poema “Minha terra” (anexo F), o eu lírico tem a consciência da
importância dessas imagens da infância, pragueja contra as pessoas que
modificaram a terra natal. É a saudade que tem desses tempos, que só estarão
vivos nas suas reminiscências...
3.4 O alumbramento final: “O lutador”
No “Itinerário de Pasárgada”, Manuel Bandeira descreveu como foi feito
o poema “O lutador” (anexo G). Como ele mesmo disse “fez-se em mim
durante o sono” (BANDEIRA, 1984, p. 125). Ele não soube explicar como
conseguiu a forma de soneto com as rimas nos lugares certos e a mesma
quantidade de sílabas poéticas. Na nossa opinião, ocorreu alumbramento. Mas
76
como o alumbramento não se durante o sono, a não ser que seja num
transe ou devaneio, permanece um mistério.
Este poema retoma vários temas expostos no presente trabalho. A
começar pelo título: “O lutador” é o próprio poeta. Embora Bandeira tenha
revelado no “Itinerário” que não saberia dizer quem seria a personagem que
título ao belo poema, arriscamos sem medo de que é o próprio poeta que lutou
pela Literatura Brasileira do século XX, para ser liberta de preocupações sobre
regras de métrica, transformando os seus temas em naturais, humildes,
sublimes e belos.
Na primeira estrofe, em um olhar mais subjetivo, referência ao jovem
que tinha o desejo de ser arquiteto, metaforizado na palavra “amor”. Teve que
mudar por completo a sua vida por causa de uma doença fatal (referências às
palavras veneno e morte do segundo verso). Abandonou os estudos e não
sabia o que iria fazer da sua vida desse momento em diante. É o “deserto
(terceiro verso), o qual raramente haverá vegetação (forma de vida), lugar
completamente vazio e isolado. A roca-forte, com seu movimento de fiar,
quebrou a linha e a parte bojuda. Não tem mais conserto. Neste caso,
analogamente ao sonho do jovem, deve ser jogada fora, no mar bem longe,
para ser esquecida.
Na segunda estrofe, o poeta, por meio do eu lírico, diz que venceu um
monstro que soltava uma voz triste e plangente. É a Quimera, referência ao
monstro da mitologia grega, com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de
dragão. Na linguagem popular, é qualquer figura absurda e monstruosa. Seria
uma referência à morte ou ao que representou na vida do poeta: uma luta a ser
vencida. Ele descobriu que poderia vencê-la (não a morte carnal, que jamais
será vencida, mas a morte da consciência) quando lhe veio uma linda visão
alumbrada. É como se o céu se abrisse e ele pudesse enxergar o que estava
obscuro pela presença iminente da morte que o atormentava. O “monstro”
agora foi vencido, por meio da poesia, não pode mais aborrecer.
Na terceira estrofe o alumbramento, propriamente dito. A imagem
poética iluminou a consciência, comparada com a imagem de fogo tomando
“todo o céu”. A Quimera (temor da morte) foi vencida. O fogo cósmico tem o
significado de purificação da consciência, segundo Bachelard (2006, p. 186),
revelaria ao homem parte de sua essência: “Diante desse fogo que ensina ao
77
sonhador o arcaico e o intemporal, a alma não está confinada num canto do
mundo. Está no centro do mundo, no centro do seu mundo.”
Na última estrofe, as imagens dos ventos se propagam trazendo outras
e, também, música (coro). A marca do gerúndio longamente, indefinidamente
nos a sensação do movimento do vento. E, semelhantemente a Santa
Teresa de Ávila
33
, a qual tinha visões de um anjo que perfurava seu coração
com um dardo de ouro, levando-a ao êxtase, assim se sentiu o eu lírico
acometido por uma iluminação tal que todo o seu coração sentiu trespassado
de revelação, transverberado. A revelação de que a morte não é o fim, mas o
início, o motor da poesia de Manuel Bandeira.
33
Manuel fez um poema no livro Libertinagem intitulado “Oração a Terezinha do Menino
Jesus”. O poema faz referência a Santa Teresa de Ávila.
78
Considerações finais
A vida é um milagre...
-Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.
Manuel Bandeira.
A partir deste estudo, procuramos resgatar elementos que operam como
recursos na poética bandeiriana e como o eu lírico, diante da morte, relaciona o
efeito do alumbramento com esse tema.
A escolha da Fenomenologia como método auxiliou a pesquisa à medida
que conduz a um novo caminho para o entendimento do ser, aclarando e
recuperando os sentidos dos fenômenos. O entendimento do termo Dasein
desvelou o ser-no-mundo: o que compreende a si mesmo, junto às coisas e
junto com os outros no mundo. O Dasein descobre-se no mundo e, por esse
caminho, é que descobre a si mesmo. Ele, também é o ente finito que possui
sua morte, ou seja, em seu sentido original Dasein é o ser-para-a-morte,
descobrindo sua existência finita.
Nesse contexto, encontramos o sentido da poesia de Manuel Bandeira.
Ao tomar conhecimento da sua finitude, o poeta coloca na poética suas
vivências, traduzindo os sentimentos em relação à morte que julgou próxima a
ele. É no momento da morte que o Dasein se descobre como ente temporal.
Volta-se para si e para as suas possibilidades, assumindo a sua finitude. Tudo
isso é projetado na poesia.
O significado da morte para Manuel Bandeira é exatamente o não
afastamento dela, mas o diálogo constante transformado em poesia. Nas fases
do poeta, o entendimento da morte adquire um sentido de aceitação, diferente
de conformismo, ou seja, um novo significado: reconciliado com a morte torna-
a sua inspiração vital, permitindo-se a vida intensa, experimentando novos
modelos, procurando novos modos de se fazer poesia, pois o Dasein é finito
mas não acabado.
Os versos livres precursores juntamente com a reflexão de outros
elementos constitutivos da poesia moderna, como o poema em prosa e a
questão da musicalidade, fizeram da obra bandeiriana o resultado de uma
longa e difícil aprendizagem de vida humana e artística.
79
Nos elementos de linguagem comprovamos que o poeta foi um grande
crítico da arte literária do seu tempo. A beleza esplêndida das suas palavras,
dos seus versos, da musicalidade, do ritmo, do metro e dos versos livres o
tornam um poeta à frente do seu tempo e inovador também na
contemporaneidade, à medida que a cada leitura de suas poesias surgem
novas idéias que elevam nossos sentidos e nossos sentimentos. Eis o êxtase
sublimador.
Desses elementos estudados na poesia de Manuel Bandeira, o que
consideramos mais relevante é a questão do ritmo, pois suscita outras
questões como a da voz e a do corpo. O ritmo é um elemento icônico que
estabelece ligações com o corpo, porque nos transforma sensorialmente.
Nascido do trabalho, conforme relatamos, o ritmo unidade, existe na própria
natureza, nos nossos movimentos, no andar, na dança, nos liga ao mundo do
cosmo. Esse elemento se liga à sensibilidade do homem, porque mexe com o
corpo sensorial: ouvidos, olhos, voz, membros etc., são acionados na leitura da
poesia. Ainda que o metro cedeu lugar à versificação livre na poesia moderna,
Manuel Bandeira resgatou novamente a regularidade silábica com novos
rumos. Isso é parte integrante do Modernismo e foi proporcionado pelas
reflexões profundas a respeito do ritmo, as quais Manuel Bandeira apresentou
tão bem na sua obra.
A musicalidade da poesia bandeiriana está intimamente ligada ao
domínio da voz. A voz não é ouvida com a audição, mas é entendida com o
sentimento. É a voz que leva as imagens ao leitor bem como o ritmo e a
melodia. É sublime, porque mesmo sem rimas e sem a leitura oral o efeito da
linguagem no poema é perfeito. Dessa forma, é do corpo que sai a voz que lê o
poema e sendo ela que dá o ritmo para o poema, ela faz o corpo reagir
inteiramente, conforme observamos nos estudos de Zumthor.
A aproximação do prosaico provou que o poema moderno de Bandeira
não perdeu a essência de poesia. Antes, tornou-se evidente que a rima e a
métrica são apenas alguns recursos e que podem ou não ter o ritmo. O que faz
a poesia ser bela é a proximidade com o natural.
No item sobre os elementos filosóficos, a humildade foi esmiuçada,
dando um novo sentido àqueles que ainda consideram a poesia de M. Bandeira
fácil. A humildade está relacionada com as questões existenciais complexas,
80
não apenas individuais, mas também, universais. Ela é apresentada como uma
grande inovação moderna de se resolver questões que não têm explicação
como o fato do ser humano ser finito. A grande paixão do poeta foi o sofrimento
de criação poética de forma a ter a sua essencialidade, ou seja, a busca do
significado da existência humana. O estilo humilde organizou a experiência do
medo da morte, tornando-a aceitável à medida que as coisas simples da vida
iam ficando com o tempo mais claras à mente do poeta.
No capítulo sobre o alumbramento, observamos a semelhança com a
Epifania destacando que, em ambas, o significado de iluminação, revelação
e inspiração, conforme os teóricos apresentados. Resgatamos nossas
colocações ao relacionar o item biográfico, a experiência marcada pela morte,
a memória da infância, a questão do corpo, do desejo e da paixão com a
manifestação do sagrado.
Sobre isso, destacamos o erotismo, relacionado diretamente com o
corpo e identificando-o com a experiência religiosa, por ser ele um elemento
que leva o homem a colocar o ser em questão, conforme observamos em
Bataille.
Conforme o item 2.3 e 3.2, observamos que o ritmo existente na poesia
estabelece conexões com a natureza. É, por isso, a prova de que a poesia é
sensorial e interage com o corpo e com o mundo. Assim, reiteramos que o
corpo reage ao ritmo e à entonação da voz que o profere, reconhece a escuta
dessa voz e confere poeticidade ao texto.
Por ser o movimento rítmico associado à voz e ao corpo, colocamos que
o alumbramento é essencialmente erótico, pois é a inpiração poética, ligada à
raiz terrena (portanto humilde) do corpo e familiarizada com a idéia natural da
morte. O erotismo é uma forma de se encontrar o sagrado, é uma manifestação
natural do corpo de buscar o outro para si. Portanto, o poder erótico une-se ao
poder do corpo revelando a paixão. O que parece ser profano é, na realidade, o
que conduz ao alumbramento, sendo dessa forma, sagrado.
Na memória da infância descobre-se que a poesia habita nas pequenas
coisas que parecem insignificantes, mas que são o sentido e a resposta da
vida. É por meio das imagens da infância que se revela o sentido da finitude.
Por tudo o que estudamos, concluímos que a poesia nunca deixou de
estar ligada ao corpo, porque o ritmo que advém da voz que emana do corpo é
81
a herança dos rituais antigos de manifestação do homem para se entender o
Cosmo.
Para que a poesia seja entendida pelo seu leitor, este tem que convocar
o seu corpo sensorial. Se o leitor não for capaz de sentir, não será capaz de
entender a poesia, porque a poesia é toda corpo. Para a voz se tranformar em
ritmo, esse leitor deve recuperar a imagem de que o corpo é todo prazer, mas
não é pecado. Assim, as palavras de um poema tranformam-se em matéria
viva.
As nossas hipóteses de que Manuel Bandeira teve uma atitude positiva
diante da vida, mesmo com a notícia da morte iminente, foram confirmadas
com o estudo apresentado. A poesia foi o motor que iluminou o medo da morte,
restabelecendo o eu lírico. Dos elementos constitutivos da poesia bandeiriana,
o ritmo é o principal deles, pois leva aos outros.
Manuel Bandeira converteu seus versos em voz rítmica e, por isso, as
experiências tornam-se imagens que são a verdadeira arte do poeta. O tema
morte na poesia bandeiriana adquiriu um outro significado. Se o leitor não for
sensível e não descobrir o ritmo na voz do seu corpo se perdenas letras
impressas e a poesia não lhe terá acrescentado nada, em termos de
conhecimento sensorial.
A todos os que se dedicam ao estudo da poesia e da Literatura de uma
forma geral, cabe a missão de transmitir conhecimentos com o intuito de
mudança do pensamento inerte. A poesia é extremamente necessária, pois ela
desequilibra, equilibra e liberta o lado negativo que a humanidade tem.
Muito ainda de se estudar sobre este tema, que aparentemente é
simples. As possibilidades o infinitas. Assim como Manuel Bandeira,
procuramos nos momentos poéticos nos reconciliar com a morte, tentando
encontrar nas coisas simples o verdadeiro sentido da vida, tranformando-a
plenamente bela.
(...)
Belo Belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.
34
34
Versos finais do poema “Belo Belo”, corpus da presente pesquisa.
82
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87
ANEXOS
88
Anexo A
O HOMEM E A MORTE
O homem já estava deitado
Dentro da noite sem cor
Ia adormecendo, e nisto
À porta um golpe soou.
Não era pancada forte.
Contudo, ele se assustou,
Pois nela uma qualquer coisa
De pressago adivinhou.
Levantou-se e junto à porta
-Quem bate? Ele perguntou.
-Sou eu, alguém lhe responde.
-Eu quem? Torna. – A Morte sou.
Um vulto que bem sabia
Pela mente lhe passou:
Esqueleto armado de foice
Que a mãe lhe um dia levou.
Guardou-se de abrir a porta,
Antes ao leito voltou,
E nele os membros gelados
Cobriu, hirto de pavor.
Mas a porta, manso, manso,
Se foi abrindo e deixou
Ver – uma mulher ou anjo?
Figura toda banhada
De suave luz interior.
A luz de quem nesta vida
Tudo viu, tudo perdoou.
Olhar inefável como
De quem ao peito o criou
Sorriso igual ao da amada
Que amara com mais amor.
-Tu és a Morte? Pergunta.
E o Anjo torna: - A Morte sou!
Venho trazer-te descanso
Do viver que te humilhou.
-Imaginava-te feia,
Pensava em ti com terror...
És mesmo a Morte? Ele insiste.
-Sim, torna o Anjo, a Morte sou,
Mestra que jamais engana,
A tua amiga melhor.
E o Anjo foi-se aproximando,
A fronte do homem tocou,
Com infinita doçura
As magras mãos lhe compôs.
Depois com o maior carinho
Os dois olhos lhe cerrou..
Era o carinho inefável
De quem ao peito o criou.
Era a doçura da amada
Que amara com mais amor.
(BANDEIRA, 1987, p. 170).
89
Anexo B
Visita Noturna
Bateram à minha porta,
Fui abrir, não vi ninguém.
Seria a alma da morta?
Não vi ninguém, mas alguém
Entrou no qurto deserto
E o quarto logo mudou.
Deitei-me na cama, e perto
Da cama alguém se sentou
Seria a sombra da morta?
Que morta? A inocência? A infância?
O que concebido, abortou,
Ou o que foi e hoje é só distância?
Pois bendita a que voltou!
Três vezes bendita a morta,
Quem quer que ela seja, a morta
Que bateu à minha porta.
(BANDEIRA, 1987, p. 180).
90
Anexo C
Poema só para Jaime Ovalle
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
-Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
(BANDEIRA, 1987, p. 166).
91
Anexo D
Esparsa Triste
Jaime Ovalle, poeta, homem triste,
Faz treze anos que tu partiste
Para Londres imensa e triste.
Ias triste: voltaste mais triste.
Ora partes de novo. Existe
Um motivo a que não resiste
Tua tristeza, poeta, homem triste?
Queira Deus não voltes mais triste...
(BANDEIRA, 1987, p. 175).
92
Anexo E
A Mário de Andrade ausente
Anunciaram que você morreu.
Meus olhos, meus ouvidos testemunham:
A alma profunda, não.
Por isso não sinto agora a sua falta.
Sei bem que ela virá
(Pela força persuasiva do tempo).
Virá súbito um dia,
Inadvertida para os demais.
Por exemplo assim:
À mesa conversarão de uma coisa e outra,
Uma palavra lançada à toa
Baterá na franja dos lutos de sangue,
Alguém perguntará em que estou pensando,
Sorrirei sem dizer que em você
Profundamente.
Mas agora não sinto a sua falta.
(É sempre assim quando o ausente
Partiu sem se despedir:
Você não se despediu.)
Você não morreu: ausentou-se.
Direi: Faz tempo que ele não escreve.
Irei a São Paulo: você não virá ao meu hotel.
Imaginarei: Está na chacrinha de São Roque.
Saberei que não, você ausentou-se. Para outra vida?
A vida é uma só. A sua continua
Na vida que você viveu.
Por isso não sinto agora a sua falta.
(BANDEIRA, 1987, p. 174).
93
Anexo F
INFÂNCIA
Corrida de ciclistas.
Só me lembro de um bambual debruçado no rio.
Três anos?
Foi em Petrópolis.
5 Procuro mais longe em minhas reminiscências.
Quem me dera recordar a teta negra de minh’ama-de-leite...
...Meus olhos não conseguem romper os ruços definitivos do tempo.
Ainda em Petrópolis...um pátio de hotel...brinquedos pelo chão...
Depois a casa de São Paulo.
10 Miguel Gimarães. Alegre, míope e mefistofélico,
Tirando reloginhos de plaquê da concha de minha orelha.
O urubu pousado no muro do quintal.
Fabrico uma trombeta de papel.
Comando...
15 O urubu obedece.
Fujo, aterrado do meu primeiro gesto de magia.
Depois...a praia de Santos...
Corridas em círculos riscados na areia...
Outra vez Miguel Guimarães, juiz de chegada, com os seus presentinhos.
20 A ratazana enorme apanhada na ratoeira.
Outro bambual...
O que inspirou a meu irmão o seu único poema:
“Eu ia por um caminho,
Encontrei um maracatu.
25 O qual vinha direitinho
Pelas flechas de um bambu.”
As marés de equinócio.
O jardim submerso...
Meu tio Cláudio erguendo do chão uma ponta de mastro destroçado.
30 Poesia dos naufrágios!
Depois Petrópolis novamente.
Eu, junto do tanque, de linha amarrada no incisivo de leite, sem coragem
[de puxar.
Véspera de Natal... Os chinelinhos atrás da porta...
E a manhã seguinte, na cama, deslumbrado com os brinquedos trazidos [pela
fada.
35 E a chácara da Gávea?
E a casa da Rua Don’Ana?
Boy, o primeiro cachorro.
Não haveria outro nome depois
(Em casa até as cadelas se chamavam Boy).
40 Medo de gatunos...
Para mim eram homens com cara de pau.
94
A volta a Pernambuco!
Descoberta dos casarões de telha-vã.
Meu avô materno – um santo...
45 Minha avó batalhadora.
A casa da Rua da União.
O pátio – núcleo de poesia.
O banheiro – núcleo de poesia.
O cambrone – núcleo de poesia (“la fraicheur des latrines!”).
50 A alcova de música – núcleo de mistério.
Tapetinhos de peles de animais.
Ninguém nunca ia lá... Silêncio... Obscuridade...
O piano de armário, teclas amarelecidas, cordas desafinadas.
Descoberta da rua!
55 Os vendedores a domicílio.
Ai mundo dos papagaios de papel, dos piões, da amarelinha!
Uma noite a menina me tirou da roda de coelho-sai, me levou,
[imperiosa e ofegante, para um desvão da casa de Dona
[Aninha Viegas, levantou a sainha e disse mete.
Depois meu avo... Descoberta da morte!
Com dez anos vim para o Rio.
60 Conhecia a vida em suas verdades essenciais.
Estava maduro para o sofrimento
E para a poesia.
(BANDEIRA, 1987, p. 187-189).
95
Anexo G
MINHA TERRA
Saí menino de minha tera.
Passei trinta anos longe dela.
De vez em quando me diziam:
Sua terra está completamente mudada,
Tem avenidas, arranha-céus...
É hoje uma bonita cidade!
Meu coração ficava pequenino.
Revi afinal o meu Recife.
Está de fato completamente mudada.
Tem avenidas, arranha-céus.
É hoje uma bonita cidade.
Diabo leve quem pôs bonita a minha terra!
(BANDEIRA, 1987, p. 179)
96
Anexo H
O lutador
Buscou no amor o bálsamo da vida,
Não encontrou senão veneno e morte.
Levantou no deserto a roca-forte
Do egoísmo, e a roca em mar foi submergida!
Depois de muita pena e muita lida,
De espantoso caçar de toda a sorte,
Venceu o monstro de desmedido porte
-A ululante Quimera espaforida!
Quando morreu, línguas de sangue ardente,
Aleluias de fogo acometiam,
Tomavam todo o céu de lado a lado,
E longamente, indefinitivamente,
Como um coro de ventos sacudiam
Seu grande coração transverberado!
(BANDEIRA, 1987, p. 175).
97
Anexo I
O Corvo
(Trad. Fernando Pessoa)
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de algúem que batia levemente a meus umbrais.
"Uma visita", eu me disse, "está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais."
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais -
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundido força, eu ia repetindo,
"É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais".
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
"Senhor", eu disse, "ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi..." E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais -
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isso só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
"Por certo", disse eu, "aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais."
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
"É o vento, e nada mais."
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
"Tens o aspecto tosquiado", disse eu, "mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
98
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais."
Disse o corvo, "Nunca mais".
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, "Amigo, sonhos - mortais
Todos - todos já se foram. Amanhã também te vais".
Disse o corvo, "Nunca mais".
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
"Por certo", disse eu, "são estas vozes usuais,
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de seu canto cheio de ais
Era este "Nunca mais".
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu'ria esta ave agoureia dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele "Nunca mais".
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sobras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sobras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
"Maldito!", a mim disse, "deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, a esta noite e este segredo,
A esta casa de ância e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!
Disse o corvo, "Nunca mais".
"Profeta", disse eu, "profeta - ou demônio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
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"Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!", eu disse. "Parte!
Torna á noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!"
Disse o corvo, "Nunca mais".
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca mais!
(POE, 2000, p. 43)
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