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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Silvia Luciana Montoro
Narrar o Passado: as Matrizes do Conto Popular na Literatura Infantil em
De Morte de Angela Lago
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS
EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
SÃO PAULO
2009
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SILVIA LUCIANA MONTORO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de Mestre
em Literatura e Crítica Literária
sob a orientação do Prof. Dr.
Biagio D’Angelo
São Paulo
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO – PUC-SP
Banca Examinadora:
...............................................................................
...............................................................................
...............................................................................
...............................................................................
DEDICATÓRIA
Ao meu marido por partilhar das aflições e alegrias por que passei ao
longo desta jornada...
À minha mãe e irmãos pela paciência, incentivo e por acreditar em mim...
Ao meu pai, por estar presente mesmo estando tão longe...
Aos meus professores pelos brilhantes ensinamentos...
Ao meu orientador por trilhar meu caminho...
Aos meus amigos pela força...
E a Deus por permitir que estas pessoas façam parte da minha vida...
Dedico!
RESUMO
A pesquisa objetivou estudar as matrizes do conto popular na literatura
infantil mostrando como a narrativa de Angela Lago se estrutura com uma
leitura múltipla da expressão verbal e visual. O corpus de análise foi o livro De
Morte. Com a perspectiva de abordagem do problema orientado com o aparato
teórico de estudiosos como Teresa Colomer, Sonia Salomão Khède, Regina
Zilberman, Marisa Lajolo, Alceu Maynard Araújo, levou-se em conta a análise
do percurso gerativo da literatura infantil e a tradição popular voltada para o
exame das características que constitui o plano de expressão dessa obra.
A pesquisa ainda se constitui na proposta de explorar o fazer literário de
Angela Lago relativo ao conto maravilhoso e ao conto popular, analisando as
personagens típicas do folclore cristão, cujas ações seguem a linha do
maravilhoso proposto por Vladimir Propp.
Como resultado pontuou-se como as matrizes do conto popular
influenciam a literatura infantil contemporânea, em especial a criação de
Angela Lago, demonstrando a riqueza do folclore na literatura. As personagens
arquetípicas do conto popular, inscritas num conto maravilhoso, propõem uma
totalidade de sentidos construída pela articulação dos dois sistemas, popular e
erudito. Dessa maneira os procedimentos de análise do livro observado
exploram dois discursos que se fundem no conto: no primeiro, verbal e visual
representam a multiplicidade da leitura e no outro, a análise da personagem
pelas funções do conto maravilhoso segundo o estudo “morfológico” do conto
de magia de Propp.
Por isso, o projeto gráfico da obra foi examinado tomando a intenção
manifesta do conto popular. Por fim, a pesquisa considerou como a matriz do
conto popular se apresenta determinante na literatura infantil brasileira e como
isto se na obra De Morte, destacando como as figuras macabras e atitudes
desvirtuosas podem ser apresentadas ao leitor infantil e não influenciar
negativamente o seu contexto sócio-cultural.
Palavras-chave: conto popular, literatura infantil, Propp, imagem, conto
maravilhoso.
ABSTRACT
This research purposes to study the matrices of the popular story in
children literature, showing how the narrative of Angela Lago is based on a
multiple reading of the verbal and visual expression. The analysis corpus was
the book De Morte. By the perspective of the theoretical approach of scholars
as Teresa Colomer, Sonia Salomão Khède, Regina Zilberman, Marisa Lajolo,
Alceu Maynard Araújo, we was considered the analysis of children literature
and popular tradition, directed toward in order to examinate the characteristics
that constituting the plan of expression of this work.
The research still consists in the proposal to explore Angela Lago is
fiction about the wonderful story and the popular story, analysing the typical
characters of the Christian folklore, which actions follow the line of the
wonderful tall according to Vladimir Propp.
As a result we focused how the matrices of the popular story influence
the contemporary children literature, specially of Angela Lago’s fiction,
demonstrating the importance of folklore in literature. The characters of the
popular story, inscribed in a wonderful story, construct a new literary totality by
the articulation of these two systems, the popular and the erudite. In this way
the analysis would explore two strategies that are linked in the story: in the first
one, verbal and visual represent the multiplicity of reading and, in the other one,
the analysis of the characters by the functions according the “morphologycal” of
study Propp.
For these reason the graphical project of Angela Lago’s work was
examined within the intention of the popular story. Finally the research
considered how the matrices of the popular story are presented in Brazilian
children literature, particularies in De Morte, emphasizing how evil characts and
vicious attitudes can be presented to children, without influencing negatively his
cultural context.
Keywords: popular story, children literature, Propp, image, wonderful tall.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO…………..………………………...…………………………………08
CAPÍTULO I – Recontar o Passado……………….....………………………….16
1.1 O papel da literatura escrita para crianças..................................................16
1.2 Angela Lago e as contribuições da cultura popular....................................25
1.2.1 O Fazer literário de Angela Lago: características onde o elemento da
tradição oral e traços da modernidade se apresentam......................................30
1.2.2 Angela Lago e o tema da “morte” na literatura infantil..............................44
1.3 Antecedentes do folclore para a cultura erudita..........................................50
1.3.1 Um conto maravilhoso: a construção da personagem no percurso da
morfologia do conto maravilhoso proposto por Vladimir Propp.........................54
CAPÍTULO II - Leitura do conto De morte de Angela Lago: A escrita e sua
relação com a ilustração.................................................................................67
2.1 Uma leve mãozinha: A linguagem verbal e visual na narrativa De Morte...67
2.1.1 A Múltipla Interpretação das figuras: ambigüidade e complexidade.........76
2.2 Perfil da Personagem Protagonista: o herói dos contos populares.............90
2.3 A influência do recontar...............................................................................96
CONCLUSÃO..................................................................................................104
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................108
8
I
ntrodução
"A originalidade é impossível. No máximo, podemos variar
muito ligeiramente o passado, dar-lhe um novo matiz, uma
nova entonação. Cada geração escreve o mesmo poema,
conta o mesmo conto. Com uma pequena diferença: a voz."
Jorge Luís Borges
tradição popular na Literatura Infantil brasileira se formou no
decorrer de uma longa trajetória. A discussão desta trajetória e as heranças do
passado inseridas nos textos infantis contemporâneos, onde o verbo-visual
predomina, é motor que despertou o estudo do presente texto que se constrói a
partir de histórias de Angela Lago, escritora e ilustradora mineira. Trata-se de
obras em que predominam a visualidade e criatividade, com abordagem da
fantasia e do maravilhoso, explorando a imaginação do leitor.
Resultante da relação entre texto verbal e a imagem
,
a obra de Angela
Lago
permite-nos refletir sobre a multiplicidade das leituras que se desprende
de sua inserção no gênero infantil.
A literatura infantil, com efeito, não se obtém somente por meio da
palavra escrita, mas graças a uma fusão de códigos de linguagem e recursos
que permitem ao leitor infantil participar da leitura, reconhecendo o passado ou
descobrindo o novo, e sempre explorando o imaginário. Sobre este imaginário
infantil Palo e Oliveira escrevem:
O pensamento infantil é aquele que está sintonizado com este
pulsar pelas vias do imaginário. E é justamente nisso que os
projetos mais arrojados de literatura infantil investem, não
escamoteando o literário, nem o facilitando, mas enfrentando
sua qualidade artística e oferecendo os melhores produtos
A
9
possíveis ao repertório infantil, que tem a competência
necessária para traduzi-lo pelo desempenho de uma leitura
múltipla e diversificada.
(PALO, OLIVEIRA, 2006)
Explorar este imaginário é característica marcante de Angela Lago, o
que será possível verificar no decorrer do trabalho, analisando o livro De Morte.
Ao refletirmos sobre o gênero Literatura infantil, retomamos o percurso
que esta fez desde o seu nascimento, o processo de adaptação que sofreram
as obras infantis, de acordo com as concepções de criança que foram
construídas através dos diferentes momentos históricos. Com efeito os textos,
no início da criação deste gênero, eram de cunho moral e educativo, porém
atualmente reconhecemos as obras de literatura infantil como objeto, pela
forma e ilustrações.
As opções de mudança se acentuaram desde que a pedagogia propôs
que se publicassem textos adequados ao mundo da criança, sendo, então,
uma produção cultural que vem sendo alimentada à medida que novos valores
foram instaurados na sociedade. Assim, o próprio conceito de criança foi
reconstruído, se é verdade que é estático no meio social.
Os primeiros livros dedicados às crianças, que se transformaram nos
clássicos infantis, foram adaptados da literatura popular. Todos eles
pretendiam mostrar, através do mito e do maravilhoso, como os indivíduos
devem se comportar destacando, portanto a moral e os bons costumes. Alceu
Maynard Araújo no livro Cultura Popular Brasileira (2007), revela que a
literatura oral tinha, além de preencher as horas de lazer contando histórias,
outras funções como:
[...] ensinar as mnemonias, preparar a eulália, exercitando a
boa pronúncia com o trava-línguas, dar orientação moral, ou
dar ensino através da literatura popular exagerada nos
provérbios; além dessas também a de estabelecer a
comunicabilidade, entre gerações [...] (ARAUJO, 2007, p.178)
10
Estas narrativas que vieram da cultura popular e que antigamente eram
destinadas aos adultos estão inseridas nos clássicos infantis e presentes no
cotidiano das crianças até hoje.
Os valores morais e educativos que estão presentes nos livros sofrem
transformações com o passar do tempo, mas não deixam de existir. De acordo
com a época e com a evolução humana, percebemos as diferenças nos textos
quanto à visão sociológica, política e econômica atual, mas não a extinção
destes valores nas narrativas. Podemos perceber nos contos de fadas mais
conhecidos reflexões sobre temas, como a inveja em Branca de Neve e os
Sete Anões, o ciúme e vingança em A Bela Adormecida, os maus tratos em
Cinderela, as conseqüências por não atender aos conselhos da mãe em
Chapeuzinho Vermelho, o preconceito em o Patinho feio, entre outros. Esses
contos hoje chamados de contos de fadas, eram contos populares na
sociedade medieval e não possuíam um público específico, como, ao contrário,
tem a literatura infantil. Os contos, os mitos, as lendas circulavam
indistintamente entre adultos e crianças, ou seja, as crianças tinham contato
com as narrativas marcadas pela crueldade, ódio, inveja, adultério e conflitos
do mundo adulto. Ariès (1981) explica que isto acontecia pelo conceito
diferente de infância:
O sentimento da infância não significa o mesmo pelas crianças:
corresponde à consciência da particularidade que distingue
essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem. Essa
consciência não existia. Por essa razão assim que a criança
tinha condições de viver sem solicitude constante de sua mãe
ou ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e o se
distinguia destes. (ARIÈS, 1981, p.99)
Os contos populares desta época expunham marcas de violência, mas
quando transformados em literatura infantil perdem toda a agressividade.
No século XVII o texto verbal uniu-se ao texto visual para contar
histórias. No início as ilustrações serviam somente para reafirmar o que estava
escrito, ma hoje as imagens permitem uma leitura particular. Com a leitura das
11
imagens do livro contemporâneo é possível inferir informações implícitas e
intertextos. A imagem consegue contar a história sem uso das palavras,
permitindo que o leitor participe ostensivamente do jogo lúdico proposto nas
narrativas.
A pluralidade lingüística e a hibridização dos gêneros também são
características marcantes na literatura infantil contemporânea, além de
reconhecermos a fragmentação da narrativa, onde o narrador se dirige ao leitor
se justificando, explicando ou ainda questionando algo.
Os textos da antiguidade exploravam a oralidade, os recursos da
linguagem poética como as figuras de linguagem e entonação faziam parte do
contar histórias, pois ajudavam a manter a atenção do expectador.
A oralidade nas obras corrobora com a inscrição do conto popular nas
histórias infantis. Mesmo na atualidade nos deparamos com ditados populares,
provérbios, trava-línguas, parlendas, fábulas, poemas, e contos que passam de
geração para geração, inseridos no discurso narrativo.
A inscrição do Folclore na literatura é marca indelével, mas também uma
escolha do escritor como cada leitor tem sua própria busca, explica Khède
“Tendo o artista inúmeros caminhos, um destes caminhos encontra o folclore,
ou recolhe das tradições populares ou temas e, muitas vezes, o recorte
linguístico do discurso.” (KHÈDE, 1986, p. 59)
Essa inscrição pretende participar da formação cultural da criança
valorizando a cultura popular:
Nos estudos de folclore procura-se recordar as tradições que
se perdem, os costumes que se esquecem e os vestígios de
remotas idades. Sobre estes aspectos a literatura infantil pode
ser considerada como fonte folclórica, pois recolhe, em mitos,
lendas, canções e outros textos, o material sobre o qual
estabelecerá o processo de criação. (KHÈDE, 1986, p. 60)
Ainda pensando na tradição oral e sua influência na literatura num
estudo mais atual Teresa Colomer nos lembra que:
12
faz muito tempo que a literatura de tradição oral perdeu sua
caracterização de “popular”, no sentido de compartilhada pela
população de uma cultura. Foi precisamente, seu
extravasamento para uma nova audiência, a constituída agora
pela infância, que lhe permitiu manter a presença no imaginário
coletivo das sociedades contemporâneas. (COLOMER, 2003,
p.55)
E reafirmando as considerações feitas por Khède, podemos perceber
que “pode afirmar-se, pois, que o folclore como forma literária viva está
enraizado essencialmente na literatura infantil e é parte da descrição deste
fenômeno.” (COLOMER, 2003, p.55)
No Brasil a literatura infantil surge no século XIX, seguindo os moldes
europeus. A necessidade de materiais brasileiros se dá pela circulação de
textos adaptados ou traduções européias, onde o leitor brasileiro encontrava
dificuldades com a linguagem como explicam Lajolo e Zilberman:
Os textos que justificam as queixas de falta de material
brasileiro são representados pela tradução e adaptação de
várias histórias européias que circulando muitas vezes em
edições portuguesas, não tinham com os pequenos leitores
brasileiros, sequer a cumplicidade do idioma. Editadas em
Portugal, eram escritas num português que se distanciava
bastante da língua materna dos leitores brasileiros. (LAJOLO,
ZILBERMAN, 2007)
Essas queixas quanto à linguagem dos textos foram discutidas por todos
que defendiam a nacionalização literária.
Segundo Colomer, as características da narrativa infantil e juvenil “se
define em função de seu destinatário e responde aos propósitos sociais, que
lhe foram atribuídos em cada momento histórico.” (COLOMER, 2003, p.159)
13
Sendo assim, para caracterizar estas narrativas se estuda o processo de
mudança, sabendo das variações de funções que lhe são atribuídas em cada
período histórico e a adaptação de seus destinatários.
As transformações literárias pelas quais passam a literatura infantil são
relacionadas aos contextos de cada época: “A necessidade de definir critérios
para selecionar os livros que se deviam oferecer às crianças, provocou os
primeiros estudos sobre literatura infantil e juvenil” (COLOMER, p.23) deste
modo, a literatura infantil e juvenil é definida em função de seu destinatário, a
criança.
O ponto que causa polêmica é ainda aceitação da literatura infanto-
juvenil como um gênero marcado historicamente; por isto é pertinente lembrar
as palavras de Sonia Salomão Khède sobre as polêmicas do gênero: “A
literatura infanto-juvenil continua sendo uma questão de adultos que vão
pensá-la partindo da necessidade histórica da revisão de como lhes foi imposto
o próprio ato de ler.” (KHÈDE, 1986, p. 8)
Daí vale lembrar que nesse estudo sobre literatura infanto-juvenil
passando por transformações, o autoritarismo perpetuou:
É indiscutível que, por ter nascido essa literatura sob o signo da
sociedade burguesa, veja na criança uma das formas de
consolidação da norma familiar. Em conseqüência, seu
discurso se reveste de um autoritarismo presente sob a forma
pedagógica, lúdica e moralista. (KHÈDE, 1986, p.9)
Mesmo sabendo que hoje as obras dedicadas ao público infantil já
fogem da idéia de atender questões de faixa etária e de ensinamentos morais é
válido lembrar os estudos de Khède:
Os autores da literatura infanto-juvenil contemporâneo, ao se
conscientizarem das peculiaridades dessa produção, procuram
um meio de não repetir as formulações autoritárias dos textos
precursores. Mas não deixam, no entanto, de tematizar o
14
autoritarismo, o que vem a se construir em mais uma prova de
existência do problema. (KHÈDE, 1986, P.11)
Estes fatores contribuíram para o repensar no modo em que a literatura
infanto-juvenil havia sendo colocada.
Tomando isto como elementos fundamentais para a discussão sobre a
Literatura Infantil, esta pesquisa pretende mostrar como a literatura
contemporânea destinada à criança se ocupa artisticamente do passado
literário, ou seja, se ocupa da tematização, da matriz popular dentro do gênero
infantil. Para isto acompanharemos o trabalho verbo-visual de Angela Lago,
tomando como corpus do trabalho o livro De Morte, onde o visual e o verbal se
unem para recontar o passado. A história colhida das narrativas populares do
nosso folclore se funde com a estrutura clássica do conto maravilhoso. Para
compreender o maravilhoso no conto faremos uma análise da construção da
personagem no percurso da morfologia do conto maravilhoso proposto por V.
Propp.
No primeiro capítulo “Recontar o Passado”, destacamos a importância
do fazer literário de Angela Lago pontuando as características onde se inscreve
o elemento da matriz popular e as contribuições na literatura infantil,
discorrendo sobre as influências deste popular em suas obras. Em seguida,
mostraremos os antecedentes do folclore para a cultura erudita e o papel da
literatura escrita para crianças, apresentando o interesse que diversos
estudiosos manifestaram sobre essas formas de arte. Ainda neste capítulo
onde se destaca a matriz do conto popular faremos uma análise da
personagem no texto De Morte usando como instrumento A Morfologia do
Conto Maravilhoso de Propp que segundo Juliana Loyola:
pode ser considerado um exemplo de resgate acadêmico do
material de origem oral popular, no que foi seguido por muitos
outros estudos importantes que apresentaram novas
perspectivas de leitura dos contos populares, sugerindo outros
15
modelos de análise para essas narrativas. (Disponível em
<letras de hoje> acesso em 19/03/2009)
Para este capítulo fundamentamo-nos principalmente nos estudos de
Regina Zilberman, Marisa Lajolo, Teresa Colomer, Joseph Luyten e, como
mencionamos Vladmir Propp.
No segundo capítulo intitulado “Leitura do conto De Morte de Angela
Lago: A escrita e sua relação com a imagem” tratar-se-á de analisar um corpus
significativo de uma narrativa dirigida às crianças da contemporaneidade,
que sabemos que “a literatura infantil e juvenil se define em função de seu
destinatário e os livros infantis refletem os pressupostos sociais sobre esses
destinatários” (COLOMER, 2003, p. 173). Mostraremos como se a
linguagem verbal e visual na narrativa De Morte, abordando ainda a múltipla
interpretação das figuras e suas complexidades. O capítulo apresentará o perfil
da personagem protagonista inferindo o herói típico dos contos populares,
examinado como procedimento final a personagem picaresca.
Dentre os estudiosos que nos auxiliaram a desenvolver esses assuntos
estão Walter Benjamim, Teresa Colomer e Sonia Salomão Khède.
16
Tudo o que incita a pensar é adequado,
qualquer que seja a idade do leitor.
Oscar Wilde
1.1 papel da literatura escrita para criaas
literatura infantil contemporânea corresponde à utilização de uma
linguagem ltipla, pois, apesar do livro poder contar uma história
adequadamente sem o uso de imagens, acredita-se que o leitor infantil
compreende melhor as imagens do que as palavras.
pouco tempo, a função da ilustração seria elucidar o texto, reafirmá-
lo. Hoje a ilustração é tomada como objeto artístico. o é raro encontrarmos
obras em que a linguagem visual e a linguagem verbal tenham a mesma
responsabilidade na narrativa. Existem casos da imagem sobrepor o texto
verbal destacando-se. E ainda narrativas que são construídas pela imagem
onde o verbal aparece apenas no título.
Exemplo de narrativa construída somente com imagens.
Página de Cena de Rua / Angela Lago
C
APITULO I - RECONTAR O PASSADO
A
17
Atentando para a recepção que as crianças dispõem ao livro infantil
contemporâneo veremos alguns aspectos relacionados ao gênero literatura
infantil.
Considerando as raízes da literatura infantil, ou seja, os textos que
culminaram no que foi chamado de “literatura infantil”, tratava-se inicialmente
de obras não destinadas às crianças e, posteriormente, adaptadas para
elas. Por isso, pode-se dizer que os livros de literatura infantil não são “tão
infantis”. Por serem aceitos pelo público infantil e juvenil, apesar de serem
livros que não se destinavam inicialmente a eles, esses livros terminaram
sendo publicados em coleções infanto-juvenis. Esse problema acabou sendo
invertido nos últimos tempos como explica Teresa Colomer (2003):
Nos últimos tempos, começaram igualmente inverter-se os
termos do problema, que estão aparecendo livros que, ainda
que adotem as características formais de uma obra infantil,
parece dirigir-se, na realidade, a um público adulto, motivo pelo
qual argumentou-se que não deviam formar parte da história da
literatura infantil e juvenil. Trata-se de produtos editoriais que
se propõem, deliberadamente a apagar fronteiras entre
crianças e adultos através dos chamados livros-presente,
livros-objeto, livros-jogo, com um importante componente da
imagem ou uso de materiais diversos, assim como também de
livros teoricamente dirigidos aos pequeninos, mas que suscitam
muitas dúvidas sobre a possibilidade de compreensão por parte
destes destinatários por causa do tema, das referências
culturais, da complicação formal, etc. (COLOMER, 2003 p. 36)
Freqüentemente o livro infantil sofre adaptações tanto no conteúdo,
como nas formas de ilustração. Hoje com o trabalho feito com a tecnologia
digital, estes livros são fáceis de identificar quanto ao gênero infantil.
No site pessoal de Angela Lago um espaço criado pela autora onde
ela discorre sobre os primeiros impressos dedicados às crianças. Estes
impressos tinham objetivos de ensinamentos, morais e educativos, tinham por
nomes: hornbooks, batledores ou catones.
18
Páginas coladas a um suporte, que podiam servir também de
palmatória. Começam a ser usadas em 1440 e continuam a aparecer
até 1850. Além do ABC incluíam orações, ensinamentos morais ou
políticos (<www.angela-lago.com.br
>
Acesso em 03 set. 2008.)
Os livros voltados para o público infantil no século XVII eram
educacionais e moralizantes. Angela Lago argumenta que a publicação de “The
New England Primer”, que, aparentemente seria, pelo tulo, um guia de fácil e
agradável leitura, era na verdade uma exposição de mortes horríveis.
Lago explica as primeiras formas de apresentação da literatura infantil:
Mas logo a criança descobre os "chapbooks", "pliegos sueltos",
"fliegende blätter", "folhas volantes" ou "de cordel" com as baladas,
xácaras, anedotas, contos maravilhosos, episódios de cavalaria. E se
apossam dessas narrativas populares, que o foram escritas
especialmente para elas. “Chapbooks” eram folhas ou
folhetos vendidos nas ruas por "tu' penny". Valentine and Orson. é um
exemplo típico desses livros baratos que não eram feitos para
crianças, mas as conquistaram. Os personagens são dois irmãos
gêmeos separados ainda pequenos. Orson, criado por um urso,
Valentine, pelo rei da França. Valentine captura seu irmão e os dois
depois de muitas façanhas se casam com belas princesas. Sem
dúvida os "chapbooks" são mais atraentes que Primer”, esses sim,
destinados às crianças. (LAGO, Angela. Disponível em:
<www.angela-lago.com.br> Acesso em 03 set. 2008.)
Lago nos explica que com a transição que a literatura infantil atravessa
pelo tempo não como “pensar a ilustração isoladamente. Não se trata mais
de fazer um desenho para estampar um livro, mas do desenho do próprio livro.”
(Disponível em: <www.angela-lago.com.br> Acesso em 03 set. 2008).
Ela ainda considera alguns aspectos importantes do livro de imagem
como: a linearidade, o livro como objeto não plano e a digitalização.
19
Tradicionalmente o caminho para a leitura é começando pela esquerda e
seguindo, mas Lago nos explica que “é possível acentuar ou subverter esta
linearidade com variações cromáticas ao longo da seqüência de páginas, por
exemplo, ou com a composição dos desenhos.” (<www.angela-lago.com.br>
Acesso em 03 set. 2008). Quando fazemos uma leitura tanto de texto verbal
como visual iniciamos da esquerda para a direita e de cima para baixo, a
personagem segue da esquerda para a direita se ocorrer o contrário, implicará
na volta, ou seja, um trajeto de volta da personagem na narrativa. Ao contrário
Lago coloca que “através da composição, podemos interferir também no
sentido do olhar e agregar novos significados à narrativa”
(<
www.angela-
lago.com.br
> Acesso em 03 set. 2008).
Outro aspecto que deve ser considerado na narrativa infantil é o livro
como objeto não plano, pois o livro nunca é um objeto somente em plano reto
Angela Lago coloca que:
O ângulo de abertura das folhas modifica a forma como vemos
o desenho. Com o movimento da passagem das páginas
podemos destacar a composição e o sentido de uma ilustração.
Usando a dobra do meio do livro e a curvatura da folha aberta
como recurso podemos enfatizar perspectivas, acentuar
movimentos, assinalar aspectos da narrativa. O livro de
imagem, vale repetir, é um campo de experimentação.
(Disponível em: <www.angela-lago.com.br> Acesso em 03 set.
2008)
Quanto à digitalização o livro impresso foi há um tempo, tido em grande
consideração pelo conservadorismo que, porém, rejeitava de suas bibliotecas
os que não eram manuscritos. Hoje a era digital apesar de caminhar devagar,
agiliza a distribuição de um livro digital. Segundo Lago “algumas experiências
na Internet apontam caminhos revolucionários para a criação”. (Disponível em:
<www.angela-lago.com.br> Acesso em 04 set. 2008). A literatura
contemporânea caminha para a era digital, mesmo que com agravantes,
20
pretendendo esclarecer que não briga para substituir o livro impresso, mas
quer conquistar o seu espaço. Para isto conta com o recurso da rede:
Apenas começamos a compreender que a descentralização do olhar
que acontece na Internet é resultado de uma nova leitura do mundo.
A "perspectiva afetiva" utilizada pelos iluministas da Idade Média foi
substituída pelo corte fotográfico da perspectiva renascentista, como
se houvesse sido descoberta a representação perfeita. Todo o século
XX se dedicou a procurar novas perspectivas, novas maneiras de
olhar o mundo que não a fotográfica, como num prenúncio da era
digital. Agora percebemos que de fato a perspectiva “científica” da
Renascença era apenas mais uma possibilidade de representação. É
uma moldura que enquadra e limita o olhar. A tridimensionalidade do
espaço virtual, o tempo simultâneo, a transparência no desenho dos
micros e macros universos, são veios de uma nova possibilidade de
enxergar o mundo. Um mundo não linear. As crianças parecem à
vontade com esses veios. Talvez os artistas mais uma vez as
acompanhem. LAGO, Angela. (Disponível em: <www.angela-
lago.com.br> Acesso em 04 set. 2008).
O livro infantil foi originado da tradição oral e dos contos populares. No
Brasil, a literatura infantil se consolidou em função da escola. Iniciaram-se
as adaptações das obras européias materializando uma fusão entre o nacional
e o europeu. Regina Zilberman recorda, a esse propósito, que “O livro Contos
da Carochinha (1894), de Figueiredo Pimentel, é um exemplo da mistura de
várias procedências utiliza fontes portuguesas e o folclore nacional”
(ZILBERMAN, 2005, p.181).
Apesar de recentes, os aprofundamentos nos estudos sobre a recepção
dos textos infantis e as relações entre o verbal e o visual permitem perceber
como a narrativa contemporânea interfere no desenvolvimento do leitor criança
que, infere também ela, os intertextos, participa dos jogos lúdicos, questiona os
espaços em branco e sua sugestionabilidade, e todas as camadas de
significados propostas pelo texto.
21
As formas tipográficas nesta fusão com as ilustrações geram as
múltiplas leituras que caracterizam o livro infantil contemporâneo, que além das
disposições do texto que produz vários efeitos visuais, destacam o livro como
objeto e como expressão, a partir de formatos pouco convencionais que
rompem com o tradicional.
É importante observar como a tecnologia vem influenciando o
desenvolvimento do gênero literatura infanto-juvenil:
Em várias outras histórias de Angela Lago, como A Banguelinha e Indo
não sei onde buscar não sei o quê, a autora utiliza a figura do computador,
mostrando que estamos lendo um conto de fadas moderno.
Aí a autora expõe sua afinidade com a informática:
O computador tem sido um bom companheiro para minhas
experimentações com o livro, e eu deveria falar aqui sobre ele.
Pelo menos foi essa a encomenda: que eu falasse sobre o
micro e a programação visual do livro. Tarefa difícil. Porque a
minha sensação é, cada vez mais, de que o computador é o
instrumento das novas mídias. Não do livro
. (
Depoimento
retirado do site oficial de Angela Lago, www.angela-lago.com.br
acesso em 10/05/2008 às 23h.)
A concepção e o uso do computador, que se valem das linguagens
verbal, visual, fazem-nos pensar no lugar que essa tecnologia vai ocupar cada
vez mais na vida contemporânea.
A possibilidade de leitura não linear e o recurso de códigos
simultâneos estão explodindo numa nova revolução da
comunicação, que ainda não podemos avaliar. Apenas
começamos a compreender que a descentralização do olhar
que acontece na Internet é
resultado de uma nova leitura do
mundo. (< www. angela-lago.com.br > acesso em 10/05/2008).
22
Ocorreu uma sintonia entre o verbal, o visual e o sonoro constituindo um
código híbrido com a imagem, a música, a palavra oral ou escrita, que hoje
chamamos de “hipermídia”, e que se caracteriza pelo processo de digitalização.
Pelo meio toda fonte de informação pode ser homogeneizada, promovendo
assim a universalização da linguagem.
Os elementos antes separados por serem incompatíveis, como o
desenho, a pintura e a gravura nas telas, o texto e as imagens gráficas no
papel, a fotografia e o filme, o som - enfim todos os campos e processos de
comunicação humanos, após a digitalização - juntaram-se constituindo a
hipermídia.
Esse universo virtual se alastrou rapidamente buscando uma nova forma
que resulta da nova passagem de cultura, a ciberliteratura.
O site de Angela Lago mostra, neste cenário, como a Literatura Infantil e
Juvenil já está em pleno entrosamento com esta nova cultura.
A seguinte colocação de Lúcia Santaella em seu texto A Leitura Fora do
Livro, manifesta as observações acima:
Fora e além do livro, uma multiplicidade de modalidades de
leitores. o leitor da imagem, desenho, pintura, gravura,
fotografia. o leitor do jornal, revistas. Há o leitor de gráficos,
mapas, sistemas de notações. o leitor da cidade, leitor da
miríade de signos, símbolos e sinais em que se converteu a
cidade moderna, a floresta de signos de que já falava
Baudelaire. o leitor espectador, do cinema, televisão e
vídeo. A essa multiplicidade, mais recentemente veio se somar
o leitor das imagens evanescentes da computação gráfica, o
leitor da escritura que, do papel, saltou para a superfície das
telas eletrônicas, enfim, o leitor das arquiteturas líquidas da
hipermídia, navegando no ciberespaço. (Disponível em
<www.pucsp.br/pos/cos/epe/mostra/santaell.htm)
Deste modo, a mistura de várias modalidades de linguagem, textos,
imagens, sons, ruídos e vozes em ambientes multimidiáticos é capaz de
promover o acesso a espaços comuns entre produção e recepção, simular
23
encontros antes inimagináveis e intocáveis, além de providenciar mecanismos
de interação e de manipulação.
Um exemplo notável de encontro inimagináveis entre autor e leitor é o
livro que Angela Lago escreveu virtualmente com crianças. A obra é parte de
um projeto iniciado pelo banco Real, chamado Coleção Brincando na Rede.
Página do livro E agora? de Angela Lago – Coleção
Brincando na rede.
24
A utilização da tecnologia é uma característica marcante nos textos de
Angela Lago, mas como comenta André Mendes a autora procura instaurar em
seus textos a transgressão:
Sempre em busca de novos meios de expressão, explorando
técnicas e caminhos diferentes, desde as possibilidades do
papel colado até a criação de imagem por computador, Angela
Lago tem superado a si mesma ao aceitar novos traços e
desafios. (MENDES, 2007, p. 32)
25
1.2 – ngela Lago e as contribuições da cultura popular
ngela Lago é uma escritora que, se dedica em escrever para
crianças, como ela mesma declara num depoimento em seu site oficial,
permitindo que seja conhecida um pouco melhor:
Em meados dos anos 70, larguei meu emprego de Assistente Social
trabalhava numa clínica para crianças com dificuldades psico-
pedagógicas e, depois de passar uns tempos fora do Brasil, voltei
disposta a fazer o que queria na vida: contar histórias para crianças.
Com os originais do texto e das ilustrações do meu primeiro livro, O
fio do riso, debaixo do braço, saí à cata de editor. Curti dois ou três
anos de decepções até conseguir publicá-lo. Hoje me pergunto se
não teria saído ganhando deixando esse livro inédito. É um livro a
lápis de cor, com um texto rimado contando uma viagem por um fio
de telefone. A heroína é loura, a empregada da sua casa usa
uniforme completo, e se alguma coisa se salva é o tulo, que não é
meu, mas de uma amiga. A melhor crítica a esse trabalho escutei, por
acaso, de um desconhecido que o folheava em uma feira de livros: -”
Parece que as fadas preferem as louras.” Comecei em seguida a usar
referências mais nossas. Um gosto pela cultura popular veio à tona e
passei a referendar meus textos no nosso folclore, embora
continuasse a utilizar tons pastéis e linhas suaves nos desenhos.
(Disponível em <www.angela-lago.com.br> Acesso em 10 abril de
2008)
Lago propõe, com muita naturalidade, em seus textos, temas como a
morte, a vingança, o preconceito e a solidão até a figura do diabo. A forma é
tão espontânea que encanta tanto crianças quanto adultos. Podemos apreciar
isto em seus textos como De Morte, onde as figuras da morte e do diabo
aparecem comicamente ludibriadas por um astuto velhinho; em Um Ano Novo
Danado de Bom, onde a crueldade do tempo da escravidão é suavizada pelo
encantamento e magia proposto no texto; a história de Uni duni e que tem
A
26
como núcleo central uma investigação criminal, que envolve roubo,
envenenamento e prisão, num jogo onde o leitor investiga por meio das
parlendas no decorrer da história; o abuso de poder exercido pela princesa em
Sua Alteza a Divinha, que enforca qualquer pretendente que não acerte as
adivinhas ditas por ela, tudo dentro de uma brincadeira de adivinhas; Cena de
Rua, ao contrário, faz o leitor refletir sobre um cotidiano muito atual com
vendas no semáforo, onde a emoção de cada página varia definitivamente com
modo pessoal de leitura de cada um, principalmente por não ser uma narrativa
verbal.
Lago é uma autora que se destaca em suas marcas textuais em muitos
aspectos: recolha de textos da tradição oral; proposta de personagens
picarescas, heróis criados ao acaso sem beleza ou força física, mas com
esperteza, agilidade, comicidade e muita sorte; trânsito constante entre o
fantástico e o maravilhoso; inserção num contexto histórico de valores morais e
religiosos, utilizando-se numa imagem cômica, de figuras como a morte e o
diabo. Figuras que acabam se igualando a seres comuns como os homens,
dotados de defeitos naturais aos seres humanos; presença da temática
amorosa aparece, na maioria das vezes entrelaçada ao tema central.
O texto Sua Alteza a Divinha (2005) de Angela Lago, por exemplo,
elucida as considerações acima. Trata-se de um texto que conta a história de
uma princesa que irá se casar quando encontrar um noivo que decifre suas
adivinhas e proponha outras à ela num duelo. Todos aqueles que tentam
morrem enforcados, pois a princesa é muito hábil no seu jogo. Até que aparece
um candidato chamado Louva-Deus, por sua religiosidade, um simples matuto
que com sua astúcia consegue vencer a princesa.
Como em De Morte, o herói de Sua Alteza a Divinha, é desprovido de
músculos e beleza. Até mesmo o nome Louva-Deus foi lhe dado por causa de
suas atitudes, ou tendências religiosas. Para este tipo de herói o acaso é de
extrema importância, é ele quem os socorre nas horas difíceis. A maior
qualidade deste tipo de personagem é a astúcia.
27
Página do livro Sua Alteza a Adivinha de Angela Lago
Tem-se uma retomada da estrutura mítica do candidato a herói que
vence vários obstáculos para conseguir sua recompensa, como comenta André
Mendes em O amor e o Diabo em Ângela Lago, texto que foi dissertação e
ganhou o Prêmio Moinho Santista Juventude/2002:
Podemos fazer analogia ao mito de Perseu: assim como homem
algum jamais venceu Medusa, também homem algum derrotou a
princesa. O matuto, assim como Perseu não realiza a tarefa
impossível por ser herói, mas é herói por realizar esta tarefa
impossível. Assim como Perseu conta com a ajuda de Hermes e
Atenas, o herói caipira conta com o acaso em seu favor. Como foi
notado a personagem heróica na mitologia grega não é um ser ideal,
invencível, perfeito, mas, ao contrário, alguém falível e humano. No
entanto sabe como atrair, nos momentos de perigo e necessidade,
certas forças que independem dele e que existem ao seu redor e
acima dele. Angela Lago busca essas características para o seu
herói. (MENDES, 2007, p. 50)
28
A estrutura mítica do candidato a herói pode também ser observada nos
cordéis como os folhetos com a personagem João Grilo do poeta João Martins
de Athaide, célebre recolhedor de literatura oral. Bráulio Tavares nos apresenta
esta personagem no ABC de Ariano Suassuna:
A personagem de Athaíde é uma “personagem cabide” da tradição
picaresca, a qual podem ser atribuídas as mais variadas aventuras de
qualquer origem, desde que não entre em contradição com seu perfil
básico. [...] (TAVARES, 2007, p. 48)
Em uma de suas aventuras esta personagem é chamada a uma corte
por um Sultão para provar que é um decifrador de enigmas, contando com a
sorte e o acaso ele decifra os nove enigmas propostos. A sorte e o acaso que
também auxiliam o matuto Louva-Deus em Sua Alteza a Divinha.
Por serem recolhidos da tradição oral, muitos escritores utilizam estas
histórias artisticamente em suas obras como Malba Tharan com a personagem
Beremiz em O Homem que Calculava. Malba Tharan faz que em quase cada
página do livro, tanto a personagem como o leitor se deparem com enigmas. E
como Bráulio Tavares ainda nos lembra:
Ocorre algo parecido com João Grilo do Auto da Compadecida, que
vira herdeiro das três artimanhas colhidas por Ariano no Folclore (o
enterro do cachorro, o gato que descomia dinheiro, a gaitinha
mágica). (TAVARES, 2007, 55)
Angela Lago nos apresenta textos que nos remetem aos clássicos da
literatura e à memória.
Depois de ler vários textos de Lago, é possível dizer que descobrimos
uma escritora, ilustradora e poeta, enfim, uma criadora que trabalha com o
popular e a universalidade dentro do texto. Lago depara às vezes com um
conto de fadas moderno, quase sempre buscando a poética popular dos
29
cordéis, folhetos, ditados, folguedos, brincadeiras e danças populares típicas
das regiões brasileiras, contribuindo assim para o objeto artístico de suas
obras. Refere ao que nós propomos nesse trabalho, onde o aspecto principal a
ser desenvolvido será um estudo sobre a relação entre a escrita e a ilustração
com a tradição oral e a inscrição do conto popular na obra De Morte (2005).
30
1.2.1 Fazer literário de Angela Lago: características onde o
elemento da tradição oral e traços da modernidade se apresentam
ratando-se da literatura infantil contemporânea, onde o leitor é
convidado a participar ativamente da leitura, o podemos abdicar do desejo
de Angela Lago de que a leitura seja para o leitor “um gesto ativo de
descoberta” (MENDES, 2007). Mendes ainda explica:
Para criar sua poética, Angela Lago a tradição, atualiza-a,
reverifica-a por meio de um olhar contemporâneo, num gesto
em que a literatura, a ilustração, enfim a arte se alimenta de si
mesma como matéria-prima, revisitando suas origens nunca
totalmente perdidas. (MENDES, 2007, p. 31)
Podemos assim pontuar os elementos textuais com relação às
características das obras de Angela Lago que se encaixam nas matrizes do
conto popular vinculados aos traços da contemporaneidade da literatura infantil
e juvenil:
A presença da personagem picaresca, o cômico:
Angela Lago costuma apresentar seus heróis aparentemente fracos. Sei
Não, de Indo não sei onde buscar não sei o q (2004) cujo nome é
emblemático, é chamado pelo narrador de “zonzo” logo no início da história.
Acreditou na piada da princesa e foi “não sei onde”, buscar “não sei o quê”. Foi
com muita determinação, fez um acordo com o diabo, o que indica coragem e
conseguiu o impossível.
T
31
Nas obras Sua Alteza a Divinha e De morte a personagens também o
apresentadas como frágeis, mas tanto o matuto Louva-a-Deus de Sua Alteza a
Divinha, como o Velhinho de De Morte são astutos e conseguem atingir seus
os objetivos ludibriando e contando com a sorte e o acaso. O velhinho da obra
De Morte consegue enganar até a morte e o diabo, quando faz três pedidos
estranhos ao menino Jesus, e está arquitetando um plano para ludibriar a
morte, quando ela vir buscá-lo; conseqüentemente ludibria também o diabo
com o terceiro pedido. Ele pede para que qualquer um que se encoste à sua
cama e à poltrona fique grudado aque ele consinta que saia. O trecho a
seguir mostra como ele fez com a Morte:
_Vim buscar você.
Conversa vai conversa vem, a Morte deixou o velho rezar um único
Padre Nosso, ele foi rezando tão, tão devagar, que a morte, cansada
de esperar, sentou na beirada da cama. Beleléu! Ficou grudada.
(LAGO, 2005)
Depois disso, o Velhinho continuou sua vida dando um cansaço na
morte que ficou grudada na sua cama, sendo obrigada a fazer um acordo com
ele para poder ser solta. Com isso o velhinho vive na terra o tempo que
pretende, e na seqüência consegue que o diabo também caia em sua
armadilha, fazendo com que este não o queira ver nunca mais. Assim quando
se cansa de viver, as portas do céu terão que obrigatoriamente se abrir para
ele, mesmo depois de tantas trapaças em vida.
Uma proposta lúdica
Angela Lago gosta que seus leitores participem diretamente propondo
jogos em suas obras, intencionando com a mistura dos gêneros que o leitor
utilize seus conhecimentos sobre formas literárias para qualquer tipo de
32
referências, desmistificações e busca do novo, abandonando os moldes
literários tradicionais. Segundo Colomer:
O jogo entre dois âmbitos narrativos abre a possibilidade de
complicar a narração a partir da coexistência dos dois
imaginários em níveis narrativos distintos, e, mais
concretamente, a partir da inter-relação entre realidade e
fantasia. (COLOMER, 2003, p. 314)
É o que acontece constantemente nas obras de Lago, como no Cântico
dos Cânticos (2005), onde ela coloca o labirinto e também a possibilidade
de leitura a ser iniciada por qualquer uma das capas. Em Cena de Rua (1994)
também podemos iniciar a leitura do fim, do meio ou início do livro.
na obra Indo Não Sei Onde buscar Não Sei O Quê (2004), o mistério
de não revelar o que tem no pacote é um desafio à imaginação que ela propõe
ao leitor.
Em Sua Alteza a Divinha, De Morte e Uni Duni e (1998), fica clara a
proposta de jogo que a autora expõe como decifrar as adivinhas, reconhecer as
parlendas e ajudar a descobrir um assassino.
No jogo das adivinhanças, podemos verificar que as personagens,
como, por exemplo, Louva Deus de Sua Alteza a Divinha, têm que adivinhar e
propor adivinhas para que consiga sua salvação e evita de ser enforcado. A
personagem com astúcia e sorte consegue sua salvação.
Na proposta estética de Angela Lago as personagens são marcadas por
duas características peculiares: o desejo e a busca. Tanto o leitor criança como
o leitor adulto, conforme sua necessidade absorvem estas virtudes.
Em Indo Não Sei Onde Buscar Não Sei o Quê, a autora trata das
incertezas que calcam nossos valores, e propõe uma ética do desejo, que
atende principalmente ao imaginário da criança. Embora aparentemente
absurdas as situações de uma princesa que pede o impossível para um
"zonzo" que vai a lugar nenhum, a história conduz a personagem a perseguir
sua prova, com todas as dificuldades impostas. Haveria o “não sei o quê”? Isso
33
é o que nos mostra Seinão, motivado pela crença de que conseguiria realizar o
seu desejo.
É aqui que a criança utiliza-se do seu imaginário e vai torcer pela
personagem realizar seu desejo, vencer o jogo.
É bastante observada também nas obras desta autora a ambigüidade
tanto lingüística como imagética, ainda que numa proposta lúdica.
A frase final “O embrulho segue embrulhado!” em Indo não sei onde
buscar não sei o q, pode representar que o embrulho ficará embrulhado para
não deixar de ser “não sei o quê” e, também, que a curiosidade de se saber o
que tem num embrulho do diabo não será satisfeita.
Em Um Ano Novo Danado de Bom os meninos por medo de se
aventurarem a voar, cruelmente jogaram a pena ao vento e a escrava saiu a
procurar. “Pois a menina fugiu e continuou procurando” (LAGO, 2003 p.8):
Percebemos claramente a ambigüidade lingüística: “enfrentepodendo
indicar que não desista, para enfrentar a situação ou “em frente” siga em frente,
mostrando o caminho. Isto o próprio narrador expõe falando com o leitor.
34
Intertextualidade / Textos da Tradição Oral e Literatura Universal.
Coletar textos da tradição oral e inseri-los nos seus é outra marca que
caracteriza Angela Lago. Cantigas, cordéis, lendas, provérbios, parlendas,
folguedos, ditados populares estão sempre presentes nos seus textos
A
existência de um duplo destinatário nos livros infantis criança e adulto é
facilmente verificável nesta literatura caracterizada também por uma inclusão
abundante de alusões culturais e literárias”. (<www.angela-lago.com.br>
Acesso em 10 abril de 2008)
Em Indo o Sei Onde Buscar Não Sei O Quê percebemos a
inscrição de um ditado popular, “Pernas para que te quero!”. E nas histórias
Uni Duni e Tê, Festa no Céu (2005), Tampinha e Sete histórias para sacudir
o esqueleto (2007), O Bicho Folharal (2005) e De Morte, se apresentam
totalmente coletadas de contos populares.
Em Uni Duni e Tê, Lago insere as cantigas de roda no texto criando
uma história de suspense policial. Todas as personagens têm os nomes e
ações das cantigas de roda como O cravo brigou com a rosa, Atirei o pau no
gato, Sambalelê, Uni Duni e Tê, entre outras.
Página de Uni Duni e Tê, de Angela Lago
35
Em muitos de seus livros Lago conversa com o leitor e explica seu
carinho pela tradição popular, em especial ao regionalismo mineiro. Se não o
faz na capa do livro, deixa para o final e tem uma conversa mais reservada
com o leitor após a leitura da história:
Folha de rosto do livro Festa no Céu por Angela Lago
No livro Festa no Céu, Lago brinca com a imagem e explica ao leitor
o que pode acontecer com sua leitura, ou seja, uma nova velha história está
por vir. Ela coloca o aviso na capa em meio a muitas personagens e na folha
de rosto do livro destacando um pouco mais seu bilhete. Utiliza a mesma
técnica nas capas de Sua Alteza a Divinha e em De Morte.
36
Nos livros Tampinha e Sete Histórias Para Sacudir o Esqueleto, Lago
escreve no final, numa conversa descontraída; contando até segredos de
família ao seu leitor:
Última página do livro Tampinha.
37
Última página do livro Sete Histórias Para Sacudir o Esqueleto.
Quanto ao contexto histórico observamos na autora essa característica
de remeter à história tanto do mundo, como do Brasil ou de sua própria
naturalidade em Minas Gerais.
Lago remete ao tempo da escravidão no Brasil em Um Ano Novo
Danado de Bom; aos contos populares que ouvia quando criança em Minas na
obra Sete histórias para Sacudir o Esqueleto; em Outra Vez os desenhos
trazem detalhes da cidade de Ouro Preto e Diamantina de Minas Gerais.
38
Desenhei uma cidade baseada nas construções de Ouro Preto
e Diamantina, com direito aos arcos do Palácio da Alvorada na
varanda de uma casa. E jabuticabeiras, bananeiras e
coqueiros. No entanto, talvez pelos tons claros, ouvi, de gente
que aprecio muito, que o livro tinha uma cara européia.
(Disponível em <www.angela-lago.com.br> acesso em
10/02/2008).
Página de Outra Vez de Angela Lago
Quanto aos textos da literatura universal, comumente percebe-se uma
superabundância de citações implícitas e explicitas, especialmente aos
contos de fadas. No caminho de aceitar novos traços e desafios, Angela
Lago:
[...] não se limita em dialogar com outros artistas e linguagens; ao
contrário, transforma essa atitude num gesto artístico e cria uma
obra mais rica, capaz não apenas de atualizar a vio de mundo do
leitor como também desautomatizar o seu olhar. (MENDES, 2007,
p.32)
39
Observando este “não se limitar” em dialogar com outros artistas um
estudo de Biagio D’Angelo, intitulado Turandot e Divinha: mito e paródia em
Sua Alteza a Divinha, de Ângela-Lago, discute também o diálogo que Lago
faz com outras obras tomando como eixo a figura feminina:
Protagonista deste breve conto é uma princesa, cujo nome,
Divinha, joga com suas camadas fônicas e culturais: diminutivo
de Diva, uma “divina” sem “h”, e honrada como uma deusa.
Divinha não vem apenas de Minas Gerais, mas é uma
personagem de antiga linhagem. A princesa que adivinha
remonta, de fato, a uma das tramas poéticas do poeta persiano
medieval Nezami. Em sua obra de 1198, Haft Paikar, (As Sete
Belezas), na qual são relatadas as histórias das sete mulheres
do rei Bahramgur, aparece a figura feminina da princesa que
sabe-tudo e somente irá se casar com aquele que conseguir a
sua derrota em uma pérfida brincadeira feita de adivinhações.
Essa “princesa de gelo” seo exemplo arquetípico da mulher
fatal, onde Eros e thanathos se reúnem numa perspectiva que
poderia chegar, ao usarmos a teoria do mal de Georges
Bataille, até o sadomasoquismo. A figura mítica da femme
fatale de Nezami (um pouco Semiramis, um pouco Cleópatra)
será recuperada por Schiller, pelos fabulistas românticos
alemães, pelo rival de Goldoni, Carlo Gozzi, e, na ópera lírica,
por Giacomo Puccini, com Turandot. (D’Angelo, “Palestra ainda
não publicada, gentilmente concedida pelo autor”)
A hibridização dos gêneros.
Angela Lago utiliza-se da mistura dos gêneros em suas obras. O
poema, a imagem e a prosa compondo o texto. Vários poderiam ser citados,
mas os que muito se destacam são: O Cântico dos Cânticos, Um Ano Novo
Danado de Bom, Cena de Rua, De Morte, Sua Alteza a Adivinha, Uni Duni e
Tê, A Banguelinha, Tampinha, A festa no Céu, O Bicho Folharal, Sete Histórias
para Sacudir o Esqueleto, Outra Vez.
40
Lago é ilustradora e faz este trabalho também para outros autores. O
destaque está nas leituras diversas que as imagens propõem, pois elas não
são criadas para reafirmar o texto e sim para que haja um preenchimento por
parte da imaginação do leitor, provocando, assim, uma cumplicidade entre
leitor e imagem. A artista trabalha também com a iluminura, unindo, desta
maneira, duas formas e duas técnicas específicas: a poesia e a gravura.
A mescla dos gêneros obedece também aos pressupostos
educativos da literatura infantil e juvenil quando se introduzem
temas sociais em gêneros literários habitualmente usados para
outras problemáticas, com o propósito de sensibilizar de
passagem” o leitor sobre o tema apresentado. (COLOMER,
2003, p. 315)
Angela Lago de um jeito muito especial para sensibilizar o leitor quanto
aos temas sociais. A moral e os bons costumes geralmente aparecem
invertidos em suas personagens, porém fica reconhecível a mensagem. A
autora destaca em seus textos as injustiças sociais. Evoca a moralidade e
protesta contra as injustiças, como nos exemplos que seguem.
No texto O Bicho Folharal (LAGO 2005), se destaca o poder dos mais
fortes e a astúcia dos considerados fracos:
Página do livro O Bicho Folharal de Angela Lago, onde o Macaco engana a Onça.
41
Em Cena de rua (LAGO, 1994), se enfatizam o preconceito e a precipitação
da opinião do ser humano e até mesmo do leitor.
Página de Cena de rua de Angela Lago
Página de Cena de rua de Angela Lago
42
Final Imprevisível
O final imprevisível é outra importante marca textual de Ângela Lago:
quem de fato pode prever se o Sei Não vai chegar a “não sei onde” e encontrar
“não sei o quê”? A mesma estratégia de surpresa ocorre com o final no Cântico
dos Cânticos e em Cena de Rua. Também o Velhinho de De Morte é aceito no
céu depois de tudo que fez.
Tomando a leitura do Cântico dos Cânticos, que a autora adota como
um poema, ou uma série de poemas, onde dois apaixonados se encontram e
se perdem e novamente se aproximam e se afastam, é justamente o propósito
final imprevisível, que interessa ressaltar à própria autora:
O ponto chave de concepção deste projeto, é, por isto, o de
tentar criar um livro sem final, funcionando como a Banda de
Moebius, numa construção ininterrupta. Um livro que possa ser
lido em qualquer direção, de cabeça para baixo, de trás para
frente. (
<
www. angela-lago.com.br > acesso em 10/05/2008).
O Cântico dos Cânticos é uma das obras de Angela Lago que convida o
leitor a participar e criar um desfecho particular para a história. Neste caso, os
amantes ficam juntos no final, somente se o leitor permitir.
No capítulo A importância da Imagem nos Livros de Literatura Infantil e
Juvenil de Literatura Infanto-juvenil um gênero polêmico, Regina Yolanda
Werneck discute a importância da ilustração explanando nossas
considerações:
A ilustração confere ao livro, além do seu valor estético, o
apoio, a pausa e o devaneio tão importantes numa leitura
criadora. Chamamos de leitura criadora o resultado da
percepção única e individual, graças às combinações
perceptivas que se realizam e que fazem com que nunca uma
43
pessoa descreva o que leu exatamente como o outro.¹
(WERNECK, apud Kède,1986, p. 148)
Página do livro Cântico dos Cânticos de Angela Lago
Mendes explica que “A definição de jogo que mais se aproxima do
trabalho desenvolvido por Angela Lago é aquela associada a uma disputa na
qual o final é imprevisível.” (MENDES, 2007, p.33)
______________
¹ Transcrito de Literatura Infantil Um Gênero Polêmico (1986)
44
1.2.2 – Angela Lago e o tema da “morte” na literatura infantil
Morte é o fim da vida, e toda a gente teme isso, só a
Morte é temida pela Vida, e as duas refletem-se em
cada uma.
Oscar Wilde
á narrativas que contêm elementos sobrenaturais, mas
em que o leitor nunca se interroga acerca de sua natureza, pois o foco
narrativo se encarrega de dizer ao leitor que não deve tomá-los ao da letra.
Se os animais falam, nenhuma dúvida nos assusta: sabemos que as palavras
do texto devem ser tomadas num outro sentido que se chama alegórico, pois
quase sempre as fábulas ou os contos de fada onde naturalmente os animais
são personagens se encontrará importantes verdades de efeito moral.
A narrativa com elementos sobrenaturais como contos fantásticos e
maravilhosos convidam o leitor a encarar os fatos reais como “a morte”, com
mais naturalidade.
Alguns autores contemporâneos da literatura infantil vêm abordando o
tema da morte em seus textos no intuito de que a morte deve ser tratada
espontaneamente, cotidianamente e de uma maneira até humorada, como faz
Angela Lago em alguns de seus textos que aqui destacaremos: De Morte, e
também Sete Histórias para Sacudir o Esqueleto.
Em De Morte, sendo um conto maravilhoso, a figura da morte é vista
com mais naturalidade como dissemos, mas o que se destaca neste tema é
que a personagem velhinho não quer morrer no prazo determinado; com a
intervenção do conto popular na narrativa a personagem consegue mudar o
curso natural da vida, onde a autora coloca uma boa dose de humor.
Não falar nunca sobre a morte a uma criança pode dificultar seu
entendimento sobre o ciclo da vida, pois a morte é a única situação que não
podemos evitar. A literatura infantil pode fazer este trabalho com bastante
delicadeza quando se trata de obras como as citadas de Angela Lago e as
H
45
de outros autores como Menina Nina de Ziraldo. Neste livro Ziraldo trata o tema
da morte necessária, visceral, dramática com a perda da avó de Nina. O autor
coloca o fato real para que o leitor reconheça esta naturalidade do ciclo da vida
mesmo sentindo junto com a personagem a emoção e a dor que causa a morte
de alguém essencial na sua vida.
Quanto a este tema a ser discutido com a criança, Abramovich explica
que há:
[...] tantas espécies de vida, tantas possibilidades de morte...
[portanto] é fundamental discutir com a criança, de modo
verdadeiro, honesto, aberto, como isso acontece e como
poderia não acontecer... Compreender a morte como um
fechamento natural dum ciclo, que não exclui dor, sofrimento,
saudade, sentimento de perda [...]" (ABRAMOVICH, 1989,
p.113).
A enciclopédia digital Wikipédia traz a seguinte definição para o tema:
Morte, óbito, falecimento ou passamento são termos que
podem referir-se tanto ao término da vida de um organismo
como ao estado desse organismo depois do evento. As
alegorias comuns da morte são o Anjo da Morte, a cor negra,
ou o famoso túnel com luminosidade ao fundo.
A morte é o fenômeno natural que mais se tem discutido tanto
em religião, ciência, opiniões diversas. O Homem, desde o
príncipio dos tempos, tem a caracterizado com misticismo,
magia, mistério, segredo.
(
Disponível em
<www.wikipédia.com.br> acesso 23/03/2009)
Referente a este misticismo, magia, mistério e segredo característicos
ao tema da morte, Angela Lago colheu mais uma vez da literatura popular
contos que expõem fenômenos sobrenaturais narrados e ilustrados com a
46
delicadeza que não assusta apesar de colocar o leitor num mundo imaginário
onde o fantástico prevalecerá. Em Sete Histórias para Sacudir o Esqueleto o
leitor e personagens se deparam com o questionamento de que se aquilo
realmente pode acontecer ou não, envolvendo crenças do universo cultural
de cada sujeito.
Vejamos nas pranchas a seguir, retiradas de Sete Histórias para Sacudir
o esqueleto, como Angela Lago corrobora com este mistério do sobrenatural na
literatura infantil.
47
Encurtando o Caminho, conto transcrito de Sete Histórias
para Sacudir o Esqueleto de Angela Lago.
Observando que mais uma vez o projeto gráfico se manifesta de
maneira exuberante, o livro traz as páginas em tom cinza esverdeado em papel
cintilante. Ao final de cada história a página é preta ajudando a demarcar a
obscuridade do desfecho. As personagens são desenhadas com finos traços
prateados e o branco aparece nos tulos das histórias ou ainda destacando
algum objeto ou personagens mortas.
Todos os contos apresentados neste livro abordam o sobrenatural
enfocando o cômico na história encaminhando o leitor à descontração. Isso
48
acontece na capa do livro, como característica marcante de Angela Lago,
onde esqueletos dançam em volta do título.
As narrativas que compõem Sete Histórias para Sacudir o Esqueleto se
diferem do maravilhoso onde não se questiona o que está acontecendo. As
personagens não têm medo dos seres sobrenaturais que estão no seu meio. Já
na narrativa fantástica ocorre a dúvida, as personagens hesitam quando se
defrontam com o sobrenatural, “ a ambigüidade se manterá até o fim da
aventura: realidade ou sonho? Verdade ou ilusão? (TODOROV, 2006, p.148).
Todorov nos explica ainda que “O Fantástico é a hesitação experimentada por
um ser que não conhece as leis naturais, diante de um acontecimento
aparentemente sobrenatural. (TODOROV, 2006, p.148)
49
1.3 Antecedentes do folclore para a cultura erudita
esse sub-capítulo vamos analisar a trajetória da
literatura popular, incorporando elementos teóricos de suas origens, com o
propósito de contextualizar aspectos de vida e obra da escritora Angela Lago.
Em suas origens, a literatura popular se constrói da linguagem oral, com
valor informativo e histórico. Ela pode ser considerada como um importante
veículo de expressão popular, de acordo com Joseph M. Luyten (2005, p.14).
As histórias da tradição oral deram origem às cantigas de roda, brincadeiras,
folguedos e cordéis.
Produzido inicialmente em Portugal, o termo “cordel” vem do provençal
corde, uma forma especial de fazer literatura antigamente, em cadernos
manuscritos e em folhas soltas ou volantes de impressão rústica, sendo
elaboradas para venda em feiras, praças, ruas e romarias.
Os cordéis eram expostos para venda, pendurados em cordas e varais,
o que deu origem ao nome “cordel”, pois os portugueses mantinham a tradição
de expor folhetos pendurados em barbantes (justamente os “cordéis”).
Por meio da colonização portuguesa, o cordel criou raízes no Brasil,
principalmente no Nordeste, devido às condições sociais e culturais peculiares.
O surgimento de cantadores populares deu-se pelo costume de narrar histórias
cantadas em que normalmente havia a presença do sobrenatural, do mito, do
lendário popular e da grande variação de críticas políticas e sociais, já que toda
temática do cordel gira em torno do interesse popular e preocupações da
comunidade. O texto é apresentado sem complicações, o vocabulário e a
escolha de temas são retirados da vivência da população e ilustram a
sabedoria de um povo sem ensino sistematizado.
De acordo com Joseph M. Luyten (2005, p.18), as origens populares da
literatura de cordel aparecem no ocidente em duas etapas. A primeira, a partir
do século XII, é considerada como uma manifestação leiga, independente do
sistema de comunicação eclesiástico, que se opunha aos sistemas tradicionais
e religiosos da época, e se caracterizava por ser uma linguagem informal e
regional, pois não era produzida em latim, língua oficial da época. A segunda
N
50
etapa surge após o desenvolvimento industrial, a ascensão da burguesia e a
Revolução Francesa em meados do século XVIII, com mudanças que geraram
um distanciamento entre a cultura conhecida como erudita e a denominada
cultura popular. É por esse distanciamento que a cultura não latina ficou
caracterizada por cultura popular. Ocorreu também um grande atrito entre
essas duas concepções de cultura, pois o regime feudal limitava a passagem
das pessoas, sendo apenas permitida a saída dos feudos em duas ocasiões: a
guerra e a peregrinação. A intervenção do regime feudal tinha a intenção de
evitar pontos de manifestações populares entre os não falantes da linguagem
erudita com os denominados falantes de uma linguagem popular. Dessa forma,
no Ocidente esses focos de convergência humana, tornaram-se fonte de
produção cultural regional se espalhando pelo restante da Europa.
Luyten acredita que quando se estuda qualquer tipo de literatura é
sempre possível encontrar manifestações poéticas e, por ser considerado um
dos elementos de grande comunicação entre as pessoas mais pobres, a
literatura popular era feita do “povo para o povo”. Assim, originou-se uma
literatura mais voltada aos problemas urbanos, do que relacionada aos
problemas individuais. Podemos caracterizar essa cultura popular mais
consciente dos problemas políticos, porém mais agressiva, por englobar à sua
linguagem popular críticas ostensivas e reivindicatórias.
As vertentes da literatura popular brasileira passaram por um significante
período de desvalorização e incompreensão, devido a problemas históricos e
evolucionais, como o reconhecimento remoto e tardio da imprensa brasileira. O
Brasil foi o último país das Américas a dispor desses recursos, permanecendo
por um longo período sem o reconhecimento dessa modalidade literária.
(Luyten, 2005, p.16).
Sob a luz de sua teoria, é possível saber que a literatura de cordel
marcou o fim do século XIX, como literatura popular e, ainda hoje, é
desconhecida em grande parte da população, devido à distribuição dos
folhetos. No Brasil, o cordel é produção típica do nordeste, porém em outros
estados encontramos precariamente a distribuição dos folhetos em lojas de
produtos nordestinos e alguns, inclusive, com sua produção mais sofisticada,
como computadorizados e ilustrações mais desenvolvidas.
51
O hábito de vender os folhetos no Brasil revela formas de exposições
bastante inusitadas, pois era comum expor os trabalhos no chão ou sobre
folhas de jornais e ainda em malas abertas, para permitir a locomoção fácil e
ágil do vendedor, caso aparecesse algum fiscal ou guarda.
Países como México e Argentina valorizam esse tipo de produção
literária e a incluem nos estudos oficiais de literatura, o que não ocorre no
Brasil. A maior parte da população desconhece essa cultura, que passa por
diversas fases de incompreensão e preconceito. Outro exemplo notório da
valorização da cultura brasileira no exterior foi o francês Raymond Cantel
(ASSARÉ, 2005) que a partir de 1959, passou a percorrer o Brasil estudando
as produções dos folhetos em cordel. Para Cantel: “A literatura popular existe
em outros países, Mas nenhuma é tão relevante quanto à do Nordeste [...]
Aqui, no Nordeste, ela resiste e se transforma cada vez mais.” (CANTEL, apud
ASSARÉ, 2005, p.9)
Enquanto um grande pesquisador sai de seu país de origem para
pesquisar e tentar entender mais essa cultura popular, no Brasil, onde ela se
desenvolve e se reestrutura, grande parte da população desconhece essa arte.
Luyten (2005, p.12) acredita que as elites estão acostumadas a
novidades exteriores a um contexto habitual, ao passo que o povo vai se
acostumando com aquilo que é novo e moderno na medida em que vai
precisando disso. A literatura popular manifesta a apresentação de fatos
históricos, utilizando como veículo o folhetim popularesco, geralmente para
adaptar-se às classes literárias, para atingir a população, funcionando como
reconstituições de fatos históricos. É possível perceber esse engrandecimento
dos fatos históricos, por meio da grande contribuição poética popular, que
desenvolve uma vasta divulgação do Brasil afora.
Como dito anteriormente, a poesia popular caracterizada por cordel, por
ser publicada em folhetos, expõe duas expressões populares, cordel e repente.
Os cantadores geralmente recebem uma platéia e um tema, chamado “Mote”,
que transformam o pensamento expresso em versos, manifestados em rodas.
São conhecidos como “repentes” o ato de desenrolar longos assuntos e
desafios.
O fato é que essas improvisações poéticas possuem alguns fatores em
comum, pois em vários momentos é possível encontrar a mesma forma e
52
abordam toda espécie de assunto. Uma diferença significativa é que nesse tipo
de manifestação poética não há registro dessa poesia espontânea e a única
participação indispensável além dos repentistas é a do publico que interage.
Caso o repentista hesite em algum verso, é interrompido pela platéia com
muitas vaias.
Com o passar do tempo, também houve o desejo de ilustrar a produção
dos folhetos; então cerca de quarenta anos, o entalhador de estátuas de
Juazeiro do Norte (Ceará), o renomado Mestre Noza produziu uma escultura
em uma tabuinha, com o propósito de servir para capa a um dos folhetos. A
idéia foi aceita com sucesso e a xilogravura se tornou um dos meios mais
criativos para ilustrar um folheto de cordel.
Observado esse panorama, podemos perceber uma grande contribuição
poética e literária que a literatura popular pode oferecer com a produção de
suas obras por seus autores, e especialmente para o fazer literário de Angela
Lago.
53
1.3.1
U
m conto maravilhoso: a construção da personagem no
percurso da morfologia do conto maravilhoso proposto por V. Propp
ste item tem como principal objetivo analisar a obra De
Morte de Angela Lago à luz da estrutura narrativa dispostas em funções dos
personagens estabelecidas por Vladmir Propp no livro A Morfologia do Conto
Maravilhoso. Propp estudou, no conto de magia, “uma morfologia, isto é, uma
descrição do conto maravilhoso segundo as partes que o constituem, e as
relações destas partes entre si e com o conjunto.” (PROPP, 2005).
Propp participou do formalismo russo. Publicou Morfologia do conto
maravilhoso em 1928, obra que influenciou diversos pesquisadores em todo o
mundo, principalmente após 1950 quando ocorreu sua publicação em língua
inglesa. Suas pesquisas tornaram-se referência ou objeto de crítica para
autores importantes, como Tzvetan Todorov, Claude Brémond, Greimas,
Haroldo de Campos, Philip Rhodes e Claude Lévi-Strauss.
O conto De Morte apesar de ter uma estrutura gráfica contemporânea,
foi colhido da literatura oral por Angela Lago e apresenta as funções da
personagem na seqüência estudada por Propp. É importante lembrar que
“nem todos os contos maravilhosos apresentam todas as funções. Mas isto não
modifica de forma alguma a lei da seqüencia.” (PROPP, 2005, p.23)
Podemos dizer que o conto maravilhoso é o instrumento transformador
da realidade: apresenta naturalmente objetos mágicos e acontecimentos
sobrenaturais inseridos no cotidiano das personagens, o que o diferencia do
conto fantástico onde a personagem hesita em acreditar no que está
acontecendo. Assim o maravilhoso abre as portas da imaginação, faz com que
o leitor participe ativamente da leitura com um elo entre imaginário e processos
racionais.
A análise do conto De Morte segundo as funções descritos por Propp é
pertinente nesta pesquisa por permitir buscarmos através desta análise as
origens das discussões do conto maravilhoso e a repecursão deste na
contemporaneidade.
E
54
Num texto intitulado Morfologia de Agora é que São Elas, Ricardo
Silvestrin faz considerações retomando Propp de forma que possamos
entender melhor a realidade da problemática suscitada pelo pesquisador russo:
Morfologia do conto nasce de uma analogia que Propp fez com
os avanços da botânica. Era possível a um estudioso entender
perfeitamente as partes que constituem uma planta. O trabalho
de isolar as partes, descrevê-las e analisar as relações entre
elas tinha sido levado a cabo. A morfologia, o estudo das
formas, na botânica, inspirou Propp a buscar o mesmo nas
narrativas folclóricas, nos contos maravilhosos. Na época, os
estudiosos de literatura centravam suas análises
predominantemente nas questões de origem, de história. Mas
Propp alerta: o se pode partir para a origem antes de
entender o objeto a ser investigado. Era preciso primeiro
entender o que era o conto para depois analisar seu
comportamento através dos tempos. Assim, com base em uma
análise de um grupo de cem contos populares de origens
diversas, Propp descobre que todos se estruturam da mesma
forma. Todos, segundo demonstrado em seu livro, seguem
uma seqüência idêntica de ações a serem preenchidas pelas
personagens. A essas ações ele o nome de funções das
personagens. E mais: descobre também que elas são em
número fixo: 31. Sua análise é descritiva. As funções são
retiradas da observação das narrativas, como se Propp tivesse
se dado conta de que , na verdade, uma única narrativa
atualizada por diferentes personagens em diferentes situações,
criadas por anônimos, ao longo do tempo, pela tradição
folclórica de diferentes nações.¹ (Disponível em <
www.sibila.com.br> Acesso em 07/02/2009).
______________
¹ Texto de Ricardo Silvestrin presente no livro A linha que nunca termina (org. André Dick e Fabiano
Calixto). Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004.
55
Silvestrin diz no final do trecho de que o estudioso se deu conta de que
“na verdade, uma única narrativa atualizada por diferentes personagens em
diferentes situações, criadas por anônimos, ao longo do tempo, pela tradição
folclórica de diferentes nações”. Justamente é essa perspectiva que
observamos quanto ao conto popular na narrativa de Angela Lago, em
especial, De Morte. Neste conto a autora apresenta uma personagem híbrida,
que se vale do mal para alcançar o bem, um herói que aparentemente se
mostra como um simples velhinho, mas é capaz de ludibriar o diabo e a morte.
O herói não se destaca por sua força física e beleza, e sim por sua esperteza e
astúcia. A descrição da personagem interfere diretamente em suas ações que
são repetidas por outras personagens de outros contos, pois são ações do
típico anti-herói, o que nos leva ao estudo das funções. “Por função,
compreende-se o procedimento de um personagem, definido do ponto de vista
de sua importância para o desenrolar da ação”. (PROPP, 2005)
A repetição de funções por personagens diferentes havia sido
observada nos mitos e nas crenças, mas até então não havia sido observada
no conto maravilhoso.
Assim como as propriedades e funções dos deuses se
deslocam de uns para outros, chegando finalmente até os
santos do cristianismo, as funções de certos personagens dos
contos maravilhosos se transferem para outros personagens.
(PROPP, 2005)
Propp considera, portanto, as funções das personagens como as partes
fundamentais do conto maravilhoso, e baseia seu método de análise das
narrativas nelas.
Para representar cada função Propp criou símbolos que permitem
comparar, de modo esquemático a construção dos contos. Como exemplo: α
β1 δ1 A1 B1 C H1 -J1 K4 w3.
56
Situação Inicial α
Segundo Propp “o conto maravilhoso, habitualmente, começa com certa
situação inicial. Enumeram-se os membros de uma família, ou o futuro herói é
apresentado simplesmente pela menção a seu nome ou indicação de sua
situação”. (PROPP, 2006,p.26)
α - O herói é apresentado com a indicação: “Vinha passando um velhinho [...]”
(LAGO, 2005), como podemos verificar nas figuras 1 e 2.
Figura 1 Figura 2
II. Impõe-se ao herói uma proibição.
É apresentada uma situação de bem estar particular, como podemos ver
nas figuras 1 e 2: “Vinha passando um velhinho, bem alegre, carregando lenha”
(LAGO, 2005) A personagem está feliz com sua vida, mas a condição
“velhinho” a certeza de que este bem estar irá acabar logo e a Morte está
próxima.
_ a proibição é portanto, a continuação da vida feliz.
III. A proibição é transgredida.
57
Ao brincar com o menino Jesus, o velhinho pensa em continuar a vida
na terra, e despreza até o fato de ir para o Céu neste momento.
VIII. Falta alguma coisa a um membro da família, ele deseja obter algo
(definição carência)
a
6
- várias outras formas
Falta tempo de vida ao velhinho, ele deseja viver mais. Para isto
arquiteta um plano quando o menino Jesus lhe concede três pedidos.
XI. O herói deixa a casa
Neste conto nosso herói não sai de casa em busca de algo. Propp
explica esta situação: “Em alguns contos maravilhosos falta o deslocamento do
herói no espaço: toda ação se desenrola num só lugar.” (PROPP, 2006, p.38)
Ainda nesta função podemos perceber o menino Jesus como o “doador”
“entra no conto um novo personagem que pode ser denominado doador,
provedor. Geralmente ele é encontrado na mata, no caminho etc.”
(PROPP,2006, p.39). Jesus resolve brincar e o velhinho o encontra no seu
caminho. O menino Jesus é o doador, pois, concederá três pedidos ao
velhinho.
Figura 3 Figura 4
58
XII. O herói é submetido a uma prova; a um questionário; a um ataque,
etc., que o prepara para receber um meio ou um auxiliar mágico.
d
7
- A prova é indireta: Ao brincar com o menino Jesus, o velhinho não sabe
que está prestes a ter desejos realizados.
Segundo a designação d
7
“Às vezes simplesmente uma situação de
impotência, sem formulação de pedido [...]. Nestes casos, é dada ao herói a
oportunidade de prestar um serviço. Objetivamente, existe aqui uma prova,
mesmo que subjetivamente o herói não a perceba como tal.” (PROPP, 2006,
p.40)
XIII. O herói reage diante das ações do futuro doador.
- O herói superou a prova: “E o velhinho largou o seu trabalho e jogou uma
pelada com o menino Jesus” (LAGO, 2005)
A reação pode ser também representada pelo não atendimento aos
apelos de São Pedro, que fica inconformado pelo herói não pedir o u
imediatamente isto se considerarmos São Pedro doador ao lado de Jesus,
que parece ser responsável pelo menino Jesus neste momento.
Jesus – doador agradecido.
XIV. O meio mágico passa às mãos do herói.
- O objeto se transmite diretamente. Os dons dessa espécie geralmente têm
um caráter de recompensa.
Mesmo estranhando o pedido do velhinho, Jesus o atenderá. Como
podemos verificar nas figuras 5 e 6:
Figura 5 Figura 6
59
XVI. O herói e seu antagonista se defronam em combate direto.
- Encetam uma competição. Nos contos humorísticos o verdadeiro combate
não chega a ser realizado. Depois de um bate-boca (em alguns casos
exatamente análogos à discussão que precede o combate), o herói e o
antagonista iniciam uma competição. O herói vence pela esperteza.
O velhinho tenta convencer a Morte de que não é a sua hora e
astutamente ele a convence em deixá-lo rezar um “pai-nosso”, que reza bem
devagar conseguindo assim cansá-la para que ela se senta na cama
encantada. Podemos conferir nas figuras 7, 8 e 9.
Figura 7 Figura 8
Figura 9
60
XVIII. O antagonista é vencido
J² - Vencido numa competição
Competição: uma conversa cara a cara com a Morte o primeiro
pedido do herói ao menino Jesus, com a esperteza do velhinho ao encarar a
sua inimiga.
XIX. O dano inicial ou a carência são reparados.
- O objeto da busca se consegue ou mediante a força ou mediante a
astúcia.
Neste caso o herói consegue reparar o dano mediante a astúcia. O dano
é o término da vida do velhinho, ao enganar a Morte deixando-a presa em sua
cama por muito tempo. Ele repara o dano inicial ou a carência, pois o Velhinho
quer viver mais.
XXII. O herói é salvo da perseguição.
Com a Morte sem poder de ação “o velhinho continuou vivendo
alegremente sua vidinha” (LAGO, 2005).
Figura10
61
X – XI. bis _ O herói reinicia sua busca.
As reclamações do povo pela falta da Morte (figura 10) levam o velhinho a
negociar com ela, o que podemos apreciar na figura 11.
Figura 11
XII. bis O herói passa novamente pelas ações que o levam a receber um
objeto mágico.
O velhinho consegue mais vinte anos de vida e o poder de médico.
XIV. bis. Coloca-se à disposição do herói um novo objeto mágico.
O herói tem a seu serviço um espírito invisível a Morte, e consegue ganhar
comida, bens materiais ao exercer a profissão de médico. Poder mágico que
conseguiu da Morte. As figuras abaixo afirmam isto:
Figura 12 Figura 13
62
XXV. É proposta ao herói uma tarefa difícil.
O herói agora, além da Morte também terá que se livrar do Diabo, pois, a
Morte pede ajuda ao Diabo para trazer o velhinho. O Diabo aceita a tarefa, pois
os vinte anos de vida, (acordo do Doutor com a Morte) haviam se passado.
Vejamos:
Figura 14 Figura 15
XXX. O inimigo é castigado.
U - Leva um tiro, é desterrado, é amarrado à cauda de um cavalo, suicida-se,
etc.
Nesta função o inimigo agora é o Diabo, ao qual a Morte pediu ajuda. Preso à
cadeira era submetido às atitudes do velhinho que às vezes jogava água
fervendo no “dito cujo” para ele sentir na pele o que fazia com outros no
inferno.
Figura 16 Figura 17
Figura 18
Figura 18
63
Castigando seus antagonistas o velhinho só morreu quando quis.
Figura 19 Figura 20
XXXI. O herói se casa e sobe ao trono. caso nº 6
- Às vezes o herói recebe, em lugar da mão da princesa, uma recompensa
em dinheiro ou uma compensação de outro tipo
Neste conto a compensação é o céu. Mesmo depois de ludibriar a Morte
e o Diabo e mesmo não tendo dado ouvidos aos conselhos de São Pedro o
velhinho no final conseguiu o céu.
64
Figura 21 Figura 22
Contrariando o santo, o velhinho foi ser feliz como sempre no céu.
Figura 23
65
Com efeito, Propp esclarece:
“Do ponto de vista morfológico podemos chamar de conto de
magia a todo desenvolvimento narrativo que, partindo de um
dano (A) ou uma carência (a) e passando por funções
intermediárias, termina com o casamento (W0) ou outras
funções utilizadas como desenlace. A função final pode ser a
recompensa (F), a obtenção do objeto procurado ou, de modo
geral, a reparação do dano (K), o salvamento da perseguição
(Rs), etc.” (PROPP, 2005, p.24).
“Do ponto de vista morfológico podemos chamar de conto de
magia a todo desenvolvimento narrativo que, partindo de um dano
(A) ou uma carência (a)” = o final da vida do velhinho
“e passando por funções intermediárias, termina com o
casamento (W). A função final pode ser a recompensa (w³) = o
velhinho consegue ir para o céu quando decide que já pode
morrer.
Como pudemos observar o conto De Morte de Angela Lago atende a
estrutura proposta por Propp quanto aos contos de magia e aos contos
populares. Este estudo fechado, pesquisado por Propp que mostra que a
estrutura não muda e o que muda é tema dos contos maravilhosos, é
transgredido por Lago quando fazemos a leitura narrada pelas imagens. Na
narrativa contemporânea o texto visual transforma os efeitos narrativos. Em De
Morte o texto verbal segue as funções do ponto de vista morfológico, com a
leitura do texto visual do mesmo livro percebemos o rompimento com qualquer
estrutura fechada em que se explica com uma análise que segue um roteiro.
Assim, mais uma vez percebemos o trabalho transgressor e moderno de
Angela Lago ocupando-se da tradição.
66
"Em meus textos, quero chocar o leitor, não deixar que ele
repouse na bengala dos lugares-comuns, das expressões
acostumadas e domesticadas. Quero obrigá-lo a sentir uma
novidade nas palavras!"
João Guimarães Rosa
2.1 Uma leve ãozinha: A linguagem verbal e visual na narrativa
De Morte.
s imagens são de fundamental importância na
construção do sentido da narrativa: “Os recursos não-verbais têm sido um dos
motores de mudança da literatura infantil moderna.” (COLOMER, 2003, p. 316),
pois a aparência estética na literatura infantil está associada a um dado
mistério proposto por ela. Mistério que convida o leitor a participar ativamente
da história. Na narrativa De Morte Angela Lago propõe que o leitor fique atento
à voz do narrador e ao que as imagens dizem, como, por exemplo, a fala do
Velhinho. Mostrando suas características psicológicas que estão às avessas, o
velhinho engana quem for preciso para se dar bem, e na sua imagem,
mesclam-se barba e vestimentas, lembrando um santo cristão enquanto usa
tênis, e às vezes aparece com os pés voltados para trás. O que queremos
observar é que temos um narrador “visual”, termo que a própria Angela Lago
usa. Diferente de narrativas em que o narrador não está atento às imagens,
onde o leitor percebe que o não-verbal explica o que o narrador não percebe.
Como explica Teresa Colomer:
C
APITULO II - Leitura do conto De morte de
Angela Lago: A escrita e sua relação com a ilustração
M
A
67
No outro extremo, os recursos não-verbais são usados para
estabelecer um discurso complementar ou aparentemente
contraditório com o texto e para incluir a participação do leitor
na construção da obra e nos jogos que dela se derivam.
(COLOMER, 2003, p. 317)
Neste caso apesar de convidar o leitor ao jogo não é a mesma proposta
do narrador de De Morte.
Personagens invadindo o texto verbal
A invasão das personagens no texto verbal proporciona a leitura de que
algo está fora do comum e o Diabo “esconjurou a Morte que aparecesse e
desse jeito na situação.” (LAGO, 1992)
68
Podemos observar que os recursos gráficos, em algumas passagens,
reforçam o texto verbal, enriquecendo-o. É o caso da brincadeira que Angela
Lago faz com as letras que retira das palavras e as coloca no bico do pássaro,
ou mesmo as personagens desenhadas invadindo e participando do texto
verbal, ou ainda pelos sinais de pontuação ou pela tipologia das letras, como
podemos ver nas figuras que destacamos neste capítulo.
A inicial “O” com o tipo que remete aos escritos antigos; o santo no meio
da frase; o pássaro carregando o “o” da palavra santo. A mistura do moderno
ao antigo e os pequenos detalhes chamam muito a atenção do leitor desde a
capa do livro como pode ser observado na próxima prancha.
69
Assim podemos considerar o que Colomer afirma sobre os recursos
visuais na narrativa infantil:
A acumulação de elementos literários, recursos não verbais e
diferentes tipos textuais constitui, assim, uma via experimental
de renovação das propostas imaginativas da narrativa infantil e
juvenil de hoje em dia. (COLOMER, 2003, p. 318)
O pássaro e a mãozinha auxiliam na composição do verbal, carregando as letras
70
que se observar ainda uma proposital confusão expressada pela
linguagem visual, entre épocas e sujeitos que transcendem o tempo colocados
num mesmo espaço, pois o visual apresenta as personagens com mantos e
túnicas lembrando uma época antiga e, ao mesmo tempo, acessórios
contemporâneos como o tênis usado pela personagem do Velhinho.
Personagem Velhinho/ Túnica (antiguidade) e tênis (modernidade)
71
A autora ainda intertextualiza o pintor renascentista Albrecht Dürer,
emprestando dele, “mantos, roupas, uma copa de árvore...” como ela mesma
explica na última folha do livro.
Última folha do livro
Gravura de Albrecht Dürer
72
Esse empréstimo feito por Lago é uma transformação do real passado.
Em estudos sobre a imagem em Walter Benjamim, Sandro Roberto Maio
aponta:
Benjamin cita a montagem literária como forma de acesso ao
conhecimento de um tempo. Utiliza os procedimentos literários
como revelação do saber incrustado em diferentes épocas: o
mostrar e não o demonstrar; tornar presente o que fora perdido;
no lugar do contexto o próprio texto (o que fica evidente no
mosaico de citações que preenchem o corpo de seu texto).
Esta montagem é usada para interromper, ou mesmo romper a
imagem anterior, já sedimentada. Por isso literário: a forma
desloca os conteúdos temporais e espaciais petrificados como
verdade. (<www.pucsp.br/revistafronteiraz> Acesso em
16/03/2009)
As considerações de Benjamim revelam que a idéia de transformar o
passado permite que os fragmentos formem algo que seja passível de
mudança quando atinge a contemporaneidade, o que nos leva à multiplicidade
da leitura.
Sendo assim, nota-se pelo visual que a morte, ao ser mostrada com
acessório feminino como o sapato de salto, além de recuperar a figura maléfica
no conto, também remonta à figura da mulher, cujo detalhe está no sapato e
nas curvas das pernas, o que justifica a força da figura feminina nas narrativas
infantis, mesmo quando se trata de personagens malvadas. Para André
Mendes diz que Angela Lago quer desafiar o leitor:
Se o leitor aceita o desafio, procurando dar sentido ao caos
aparente que se apresenta a ele, novos interpretantes são
produzidos nessa tensão entre o que deveria ser e o que é ou
que ele acha que é. (MENDES, 2007, p. 34)
73
As figuras em preto e branco, ou, quase em preto e branco - que as
figuras são pretas, mas as páginas não são brancas, com um papel vergê bege
que lembra o pergaminho - constroem a visualidade do livro, retomando a
caracterização de textos de épocas antigas, enquanto o traçado e as imagens
imitam ilustrações da antiguidade
Lago sugere ainda neste trabalho a pluralidade textual, inserindo vários
tipos de textos. Podemos verificar na página abaixo um elemento de história
em quadrinhos, o balão de pensamento em que a personagem morte reforça
uma característica da personagem velhinho com um ditado popular,
enfatizando a linguagem coloquial que também é característica da HQ.
Página em que aparece o recurso das H.Qs.
74
Do mesmo modo, a letra utilizada nas iniciais das palavras figuratiza a
escrita com o uso da pena, pela forma da letra, e os traços que nos remetem a
um dado tempo histórico, onde as letras eram desenhadas delicadamente. Na
seqüência das palavras utiliza um outro tipo de letra “times new roman” nos
propondo o moderno dentro da mesma história. A construção de sentido pelo
visual é reforçada com outras figuras como dissemos, por exemplo, o tênis
que o velhinho usa ao mesmo tempo com uma nica antiga. Isso coloca o
leitor a ver um novo (moderno) jeito de se contar um conto popular, o que de
certo modo, pode ser enfatizado pelas imagens.
75
2.1.1 A Múltipla In erpretação das figuras: ambigüidade e
complexidade
s imagens dispostas na narrativa ultrapassam o conceito
usual que temos de personagens como a morte e o diabo. Todas as
personagens da obra se apresentam com um duplo sentido que se destaca
também através das ilustrações.
O conto De Morte abre caminho para ativar nossos conhecimentos e a
imaginação para uma série de linguagens e representações, atendendo-se aos
aspectos mais abrangentes que dizem respeito a todas as linguagens, verbais
e não verbais. Então para entendermos a obra mais produtivamente é preciso
conhecer como a autora propõe sua arte para garantir ao leitor a descoberta de
um mundo novo, onde o cruzamento das mensagens que criamos e recebemos
nos identifica como leitor participante, com aspirações de criador junto ao texto.
Para essa compreensão dividimos a análise em tópicos que pretendem
ler esta múltipla linguagem em cada uma das personagens apresentadas e no
espaço físico do livro chamando a atenção para o inesperado e o inusitado dos
fatos, onde a autora cria um efeito cômico.
Atribuindo consistência a essas observações André Mendes nos lembra
que:
Assim, apesar de o texto como objeto artístico se dar numa
relação (ele terá existência se os leitores estiverem
dispostos a percebê-lo, ou seja, se os leitores estiverem
dispostos a interpretar seus significados), ele possui um
potencial interpretativo que está na sua materialidade.
(MENDES. 2007, p.23)
A
76
Angela Lago propõe ao leitor: perceber a descrição ambígua do perfil
das personagens. As figuras o um pouco confusas, escuras, mas com
detalhes preciosos. Observemos:
A Morte
O perfil da morte é traçado por uma fusão da maldade com a
humanização; o aspecto de caveira, o manto preto e a foice nos remetem à
imagem tradicional que temos deste ser, ainda corroborando com a maldade
da presença de ratos saindo do seu manto e do cigarro que ela não larga.
Os ratos invadem as páginas representando a presença da morte, do
mal, ao mesmo tempo em que são traçados delicadamente. O cigarro faz
77
alusão ao vício, às doenças, mas também pode dar charme à personagem,
como bem lembra André Mendes: “Também podemos pensar que o cigarro
empresta à Morte um certo charme, como fazia com os artistas de Hollywood
até pouco tempo, antes da cruzada contra o tabaco.” (Mendes, 2007)
Apesar de usar o manto preto e ter o rosto de caveira, a morte aparece
com pernas e sapatos femininos, além de uma expressão de tristeza ou dó,
causando assim um estranhamento que permite ao leitor fazer uma leitura
múltipla. A humanização da morte se choca com o mal que provém desta.
Elucidando essas referências Mendes sublinha:
Angela Lago, ao sintetizar uma figura da Morte em que signos
tradicionais e outros nem tão tradicionais estão fundidos,
reconstrói a retórica desse ícone, tornando-a mais rica,
ampliando o campo de produção de sentidos do leitor e
exigindo-lhe mais do que uma leitura simples. (MENDES, 2007)
Ícones mais comuns à morte:
Dona Morte
Maurício de
Sousa
78
O Diabo
Esta figura causa o estranhamento também por não transmitir medo,
nem pelas ações e menos ainda pela imagem que a autora lhe deu. O capeta
de Angela Lago remete à imagem do demônio medieval, isto é, à imagem
ridicularizada que propõe ao leitor uma leitura cômica, pois se assemelha a um
bobo da corte, com um chapéu de pontas e um pé e rabo de boi e não de bode
como a imagem tradicional da nossa memória.
79
Alfredo dos Santos Oliva comenta em seu livro A história do Diabo no
Brasil (2007), no capítulo “O mal na era medieval”, os aspectos físicos
atribuídos ao diabo:
Quando uma pessoa pronuncia a palavra Diabo, certamente
uma imagem mental acompanha o som de sua pronúncia. Que
imagens acompanha a palavra? A mais tradicional é de um ser
de cor escura, com chifres, rabo, portando um tridente em uma
das mãos, com aparência assustadora e bestial. (OLIVA, 2007,
p. 48)
Esses aspectos nada têm a ver com o diabo apresentado em De Morte,
mas sim com a descrição que este tinha na Idade Média como expõe Oliva:
Na Idade Média o Diabo não assume ainda um papel de
invasor que se assenhora das pessoas, mas sua função é
muito mais a de um servo familiar das pessoas. Especialmente
para as camadas populares, o Diabo medieval nem sempre é
uma figura assustadora, como viria a ser para os eruditos
modernos. A face de Satã predominante nos últimos séculos da
era medieval poderia ser a de um personagem “familiar,
humano, muito menos temível do que assegura a Igreja e isso
é tão verdade que se chega tão facilmente a enganá-lo.
(OLIVA, 2007, p.55)
Oliva ainda nos explica que um exemplo menos monstruoso do Diabo
pode ser encontrada nas encenações teatrais da era medieval onde ele era
ridicularizado por sua fraqueza e cômico por ser tolo e se deixar enganar
facilmente:
Essa visão tipicamente medieval do Adversário, como um
personagem familiar, que dialoga com as pessoas, podendo
80
ser, inclusive enganado, está bem estampada na assimilação
que a cultura católica brasileira fez dele. Auto da
compadecida”, originalmente uma peça teatral de Ariano
Suassuna, nos traz um Diabo com um juiz muito próximo dos
personagens humanos. (OLIVA, 2007, p. 55)
A imagem medieval onde o diabo parece mais um bobo da corte se
assemelha com o desenho de Angela Lago, pois não transmite medo, não
possui traços de maldade além do mau humor, e os ratos que brotam de suas
vestes, como na morte, aparentemente representam o mal e a sujeira. Tirando
isto, toda a “caracterização do diabo é mais uma imagem que foge do
convencional.” (MENDES, 2007, p.42)
Com freqüência, Angela Lago expõe a imagem do capeta
desmistificando a idéia de que esta imagem aparece para reverenciar o
“mal”. Vemos em Muito Capeta, De Morte e Indo Não Sei onde Buscar Não Sei
o Quê, a sua imagem cômica, herança da imagem do diabo medieval. O leitor é
levado a refletir sobre a religiosidade. em Muito Capeta ele se transfigura
num moço bonito nos remetendo à lenda do boto, e é revelado apenas pelo
seu de bode, mas é facilmente ludibriado por uma mulher, o que colabora
para torná-lo uma figura cômica.
Capa do livro Página do livro Muito Capeta de Angela Lago
81
Na história do Sei Não, “ele”, o diabo, aparece como um funcionário, que
tem obrigações para cumprir num departamento, como um comum funcionário
público.
Página de Indo Não Sei Onde Buscar Não Sei O Quê
Observamos aqui representações icônicas do diabo que comumente
aparecem na literatura e em nossa mente quando ouvimos ou lemos as
palavras diabo, demônio, capeta, entre outros nomes que foram dados a este
ser.
Ilustração do livro A história do Diabo
no Brasil (2007)
82
Velhinho
A caracterização do velhinho remonta a um tempo antigo, pela túnica
que utiliza e a longa barba, lembrando mais uma imagem de santo católico.
Mas, ao mesmo tempo, ao usar tênis, evoca o moderno. Apesar de ter
aparência de um velhinho, à qual dificilmente ligaríamos essa personagem a
um ser capaz de praticar atos ilícitos, nosso herói é bastante esperto e se
utiliza desta esperteza para enganar a morte e o diabo, e, conseqüentemente,
às pessoas que acreditavam que era médico e lhe presenteavam,
83
proporcionando-lhes uma vida tranqüila sem precisar trabalhar. Como
dissemos antes, o velhinho, herói deste conto, é o típico herói dos contos
populares, que de aparência frágil, ora se faz de ingênuo, ora de matreiro.
Essa capacidade de ser e não ser ao mesmo tempo marca
esse texto: o velho é bom ao brincar com o Menino Jesus, ruim
ao maltratar a Morte e o Diabo; a Morte é má e é coitada, o
Diabo idem; a Morte é ao mesmo tempo perseguidora e
perseguida, o rato é rato e é Morte. (MENDES, 2007, p. 37)
Completando a multiplicidade de leitura que podemos fazer desta
personagem é preciso observar que num dado momento o velhinho aparece
com os pés voltados para trás, aludindo aí ao Curupira, figura do folclore
brasileiro que protege a fauna e a flora, mas que também se utiliza de castigos
aos seus inimigos, como o velhinho ao diabo, quando joga água fervendo nele
para que sinta na própria pele o que costuma fazer no inferno.
Assim fica clara a manifestação da múltipla leitura na imagem do
velhinho. É esta indecisão propositada que o leitor pode ter do caráter da
personagem observando os detalhes do desenho, como os pés voltados para
trás, ou mesmo o tênis, que não combina com o resto da roupa, mas que
provoca o “sabor” da história:
Essas subversões, além de contribuírem para renovar os
símbolos do leitor, tornam a história mais saborosa . Sabor
esse que experimentamos quando torcemos para o time mais
fraco e ele se consagra vencedor ou quando nosso time vence
o rival. (MENDES, 2007, p. 38)
São Pedro
84
São Pedro aparece com os objetos que o consagram iconicamente,
como o guarda-chuva, que lembra sua responsabilidade para com as chuvas, e
as chaves que o representam como guardião do céu. Também usa uma túnica
e a barba como sua imagem tradicional. O estranhamento aí é causado no final
da narrativa na porta do céu, pois o Santo está de óculos e aparentemente
lendo uma história em quadrinhos.
O Menino Jesus
85
O traçado da imagem do Menino Jesus é muito delicado: ele é
desenhado como um anjinho Barroco, gordinho como um bebê, o que causa
mais questionamento.
As complexas ilustrações de Angela Lago não intencionam mostrar algo
pronto, fechado, mas convidam o leitor a participar da história interpretando as
imagens desvendando as misturas causadas pelas imagens.
Ao dialogar com outros artistas como Albrecht Dürer nesta obra, a autora
cria fazendo essas “confusões” imagéticas que proporcionam novas relações
na rede textual como observa André Mendes (2007). O dialogo entre texto e
imagem esclarece a própria construção do conto enquanto resgate de outros
textos que nele estão intertextualizados, e portanto, reorganizados como
elementos que constituem o sentido da obra.
Outras leituras no espaço físico do livro.
86
ainda que se observar o jogo de imagens feitas nas páginas que se
abrem e se duplicam no início e no final da história revelando os segredos das
personagens. No início a morte aparece com a sua caracterização da maldade
com o manto, a foice e os ratos, mas ao abrirmos o pedaço solto da página ela
revela as pernas torneadas e os sapatos femininos, além da pose sensual de
revelação abrindo a capa.
Página com corte no meio fechado propondo uma imagem.
Representar o espaço físico de uma forma não convencional é
outra característica de Angela Lago, perceptível desde os seus
87
primeiros trabalhos. Nesse livro, essa influência mesmo não
sendo explícita como em outros trabalhos (Cântico dos
Cânticos, Outra Vez e Chiquitita, por exemplo), podemos
encontrar ainda um tratamento singular do espaço quando
cabe ao leitor “abrir” a porta do céu para o velhinho e também
quando o leitor despe a Morte. ( MENDES, 2007, p. 45)
No final da narrativa quando o Velhinho resolve ir para o céu, encontra
São Pedro à porta. Esse objeto pode ser manuseado para depois descobrir
Página com corte no meio aberto propondo modificação na imagem
88
anjos e Jesus com a mão na maçaneta da porta interferindo na decisão de
São Pedro.
Página com corte no meio fechado
89
Página com corte no meio aberto.
O corte da página cria um efeito de revelação, nos remete ao ditado
popular “nem tudo é o que parece ser”, além de provocar o leitor quanto às
surpresas que as múltiplas leituras das imagens proporcionam.
A seqüencia das páginas ocorre sem numeração, conferindo à obra um
efeito de desordem.
A este propósito, André Mendes observa que as ilustrações de Angela
Lago “não buscam comunicabilidade, mas questões, sensações; estimulam o
pensar ltiplo e dessa forma, possibilitam ao leitor alterar sua sensibilidade.”
(MENDES, 2007, p.96)
90
2.2
P
erfil da Personagem Protagonista: o herói dos contos
populares
narrador apresenta o velhinho como sendo o típico herói dos contos
populares, longe do aspecto dos heróis dos contos de fadas que se mostram
fortes, belos, corajosos, destemidos, fiéis e honestos defensores dos fracos e
oprimidos. Sem esses atributos a personagem velhinho, é um dos aspectos
que torna De Morte diferente dos contos de fadas. Ele lembra o herói das
narrativas populares que ao contrário é covarde e fisicamente fraco, mas muito
esperto e astuto. É suficiente pensar em João Grilo personagem tradicional dos
cordéis e da obra O Auto da Compadecida de Ariano Suassuna.
De outro modo, essa personagem, dada à manipulação que exerce,
manifesta-se, por meio do jogo enunciativo, como um ser com poderes tão
importantes quanto à força física e beleza dos heróis dos contos de fadas.
Assim o velhinho obtém o objeto mágico (particularidade do conto maravilhoso)
através dos desejos que lhe são concedidos.
No entanto o que parecia colocar o velhinho em conjunção com seu
desejo realizado, desperta agora uma nova polêmica. Com efeito, sem a morte,
começa-se a ter mudanças no rumo natural do ciclo da vida. Começaram assim
as reclamações do padre, do carpinteiro, do coveiro. O velhinho inicia um novo
percurso em busca da solução para o seu problema e, novamente, com sua
astúcia consegue persuadir a morte, negociando com ela mais vinte anos de
vida, neste trato planejando um bem estar para sua vida como se nas
figuras seguintes:
O
91
92
Passado os vinte anos o velhinho se longe do seu objeto de valor (a
vida longa), mas entra o seu segundo pedido, para que enfim possa concluir
o seu desejo de viver o quanto quiser. O Velhinho agora ludibria o diabo
prendendo-o também em sua casa, novamente sem pensar no caos que
causaria a ordem comum do curso da vida.
93
Contudo é somente quando o velhinho deseja descansar que ele se
permite ir para o céu.
O conto mostra um final típico da cultura popular. Se o herói é fraco, ele
confirma como o de convencimento do seu público leitor de que é uma
personagem que astutamente não perde oportunidades de se dar bem na vida
e acaba ganhando.
Aliás, o fato de se tratar de um conto maravilhoso se constitui pela
história ser recontada nos moldes que recuperam os clássicos. Apesar de a
narrativa ser apresentada com um narrador visual, onde percebemos a
narração das imagens, o conto inicia com a frase típica “Um belo dia”, tal qual o
“Era uma Vez” dos contos de fadas. Mas no final, a frase “Até hoje o velhinho
está no céu, feliz como sempre” propõem uma nova leitura: ele está feliz
94
como sempre foi. É o herói das histórias que o povo conta, o herói que se vale
de qualquer meio para ser feliz. “Feliz como sempre” compreende também o
“feliz para sempre”, estruturado pelos contos de fadas tradicionais e pela
palavra “fim” ao final da narrativa.
95
Nas palavras de André Mendes o herói velhinho:
Como no turfe, o velhinho, o simples mortal, o azarão do páreo,
faz uma corrida discreta na carreira da vida, correndo pelas
bordas ( ou seria comendo? Não importa mineiramente), vence
a Morte, o Diabo, e, no final, até a intransigência de São Pedro
entrando no céu. O velhinho se faz de bobo, mas tem sempre
um coringa na manga. (MENDES, 2007, p. 37)
96
A
Influência do Recontar...
conto abordado no livro De Morte de Angela Lago cria sentidos de
tempo indeterminado, por meio do tempo marcado no passado, e recupera, no
início do enunciado do livro, a abertura comum aos contos de fada: “Era uma
Vez”. Instaura assim o seu conteúdo como obra ficcional acontecida no
pretérito imperfeito, indeterminado, mas com uma duratividade, marcada na
estrutura com a qual se constrói o tempo verbal: era, chamava, tinha.
A aceitação do leitor com o recontar o passado, estabelecido desde a
capa do livro, se consolida e, enquanto enunciado, coloca-nos diante do
problema conflitual, que irá não justificar o título da obra, mas o próprio
conteúdo. Nessa observação temos a constante reiteração do espaço infantil,
cheio de magia e acontecimentos fantásticos vistos nas figuras mais próprias
do adulto e de seus medos, reestruturadas e inseridas também na infância.
Com efeito, apesar da apresentação de figuras naturalmente macabras no
mundo adulto, como a morte e o diabo, essas personagens são apresentadas
com a desmistificação do mal, e como personagens que estão apenas
cumprindo suas obrigações. Desenhadas com traços cômicos as personagens
reiteram a comicidade do conto popular.
A criança que pertence ao universo do fantástico e do maravilhoso
administra com naturalidade o contato com o livro de personagens típicas do
conto popular. o adulto que trata estas personagens com menos
naturalidade, não admite os acontecimentos maravilhosos dos contos de fadas.
Para este adulto, fazer parte deste mundo de fantasias, terá que aderir à
crença em seres imaginários dentro das histórias.
A referência aos contos populares e aos contos maravilhosos é
enfatizada no decorrer da narrativa. Aliás, esse fato começa pela própria
construção da capa, nas imagens, e no próprio título que anuncia a temática
do conto. Coloca-se portanto um pacto com o leitor, uma explicação prévia do
que ele vai ler. O leitor imagina tratar-se de um conto, cuja estrutura tradicional
é passível de ser reconhecida desde o primeiro momento, pois sabe que a
história foi retirada do folclore cristão. Nesse caso, mais especificamente, a
O
97
narrativa do conto é mostrada como conto de encantamento, pelas figuras que
representam os elementos da história como Jesus, São Pedro, a morte e o
diabo. Tais narrativas parecem propor um mundo imaginário ou de fantasia,
sobretudo pelo fato de que nessas narrativas não há propriamente contos de
fadas: não fadas que aparecem, e sim encantamentos propostos por outros
seres que auxiliam na construção do maravilhoso no conto.
O espaço na narrativa recupera efeitos de sentido de recordações de
outros tempos e outros espaços. Basta observar sobretudo os desenhos dos
móveis da casa do velhinho e o quadro na parede de Albrech rer,
“emprestado” para complementar o visual antigo e reiterar as questões dos
valores, e dos ensinamentos passados de geração em geração.
Ainda tratando destes ensinamentos percebe-se também a fusão do
conto maravilhoso com o conto popular. No conto De Morte, o velhinho com
ajuda do menino Jesus, (que se instaura com o papel das fadas ou dos
gênios), tem finalmente seu desejo realizado. Tal percurso se constrói, pela
organização da narrativa (a história mesma do Gênio da Lâmpada),
corroborada nas primeiras páginas pela linguagem verbal: com efeito o Menino
Jesus concede três pedidos ao Velhinho que faz pedidos estratégicos que irão
proporcionar a realização de outros desejos e não realizações instantâneas .
O percurso narrativo de De Morte é apresentado pelas primeiras páginas
com personagens assustadoras como o diabo e a morte sob imagens que
contradiz em suas naturezas pois o diabo, na primeira página, está correndo
sozinho e assustado, e a morte se exibindo numa pose feminina.
O que encontramos aqui não pode ser confundido com o que Khède
explica sobre o chamado “angelismo” que “se liga à preocupação ético-estética
que se associa, quase sempre, ao maniqueísmo do bem e do mal.” (KHÈDE,
1986, p.151). O “angelismo” é como foi chamado o mascarar os aspectos de
racismos e preconceitos na ilustração. E como Khède mesmo explica “cresce o
número de ilustradores que abandonam o sentimentalismo, a simples
decoração ou a fiel representação do texto” (KHÈDE, 1986, p. 150), e Angela
Lago é uma ilustradora que propões a múltipla leitura, como podemos observar
nas imagens a seguir:
98
Figura do Diabo por Angela Lago em De Morte
Na imagem proposta o leitor infere que o conto, apesar de trazer
figuras macabras, não pretende assustar, pois, como explica Khède, é natural
que:
Na consolidação da imagem a criança cria uma interpretação
para as imagens representadas e estabelece relação entre
elas. Numa atitude ativa, a criança compara, discrimina,
enumera, descreve, recria e interpreta segundo o que sabe.
Em outras palavras, a criança descobre a imagem graças a sua
experiência de mundo. Ela aprende, sobretudo, a se acostumar
à enorme diferença que separa a realidade da sua
representação num espaço em duas dimensões, submetido a
99
critérios específicos de seleção e de organização. (KHÈDE,
1986, p. 150)
Assim, a partir dos conhecimentos prévios que o leitor tem das figuras,
ele entra no jogo de descobertas que os desenhos de Lago propõem,
começando por observar os ricos detalhes que compõem: “Entre o olhar e a
obra, muita coisa acontece.”(KHÈDE, 1986, p.151)
Quanto ao recurso verbal uma “praga” rogada a quem por ventura
“roubar” o livro. Com estes elementos o texto cria para o enunciatário grande
expectativa e curiosidade, que nega a função do livro de contar apenas uma
história. A autora deixa claro de que se trata de um conto do “folclore cristão”
que estará sendo recontado.
Figura da Morte por Angela Lago em
De Morte
100
A imagem acima elucida a intenção da autora em deixar claro que o
brincar com o texto e a imagem da começa na capa do livro.
O início da narrativa dada pela expressão do visual não se refere à
questão de mostrar a história num contexto consagrado. De fato, apesar de
sabermos que se trata de um conto conhecido, contado por outros autores
como Câmara Cascudo em seu livro Contos Tradicionais do Brasil
(CASCUDO,2003), onde o conto se intitula O Compadre da Morte, a escolha
de Angela Lago é revelar o processo de construção das histórias infantis e do
conto popular com a intencionalidade de relembrar o fato de elas sobreviverem
ao tempo e continuarem sendo recontadas por vários autores de diferentes
culturas e nacionalidades.
Ao leitor cabe participar do processo de resgate da história, além de
partilhar da relação de crença do universo que se constitui, ora como real - o
livro enquanto objeto de desvelamento e desencantamento, particularmente
quando sugere a ridicularização de figuras consideradas “fortes” como o diabo
101
e a morte sendo ludibriadas por um velhinho - ora como ficcional imaginário
através da interação do velhinho com figuras ficcionais da crença cristã como
Jesus, São Pedro e o diabo.
Esse contar histórias de Angela Lago, instaurado tanto pelas imagens
quanto pelo verbal, reflete a contextualização do folclore brasileiro no qual foi
fundamentado o conto popular. É possível observar além das personagens, os
provérbios e regionalismos inseridos no texto.
Regionalismo
102
A expressão “tiririca” é típica do coloquialismo mineiro, representando na
obra um elemento lingüístico da tradição oral.
Provérbio Popular
Assim como o regionalismo, o provérbio popular da prancha acima
reafirma as considerações feitas.
Temos as categorias do imaginário popular e do imaginário infantil
fundidos num conto. O leitor é obrigado a ver tal situação tanto pelo visual
103
como pelo verbal. Além disso, essa construção leva-nos a pensar na questão
do conto popular posicionado como produção que pode ser destinada à
criança.
C
ONCLUSÃO
104
Adoro as coisas simples. Elas são o último refúgio de um
espírito complexo.
Oscar Wilde
o decorrer deste trabalho evidenciamos a presença das matrizes
do conto popular na literatura infantil contemporânea, o que é indelével, que
muitos estudos comprovam suas heranças desde as raízes da literatura infantil
e juvenil. O que a pesquisa procurou mostrar foi como essas matrizes do
popular ainda perpetuam e agradam o leitor infantil. Para isto o estudo do fazer
literário de Angela Lago foi um importante indicador.
Pontuar as características mais marcantes da autora corroborou com o
estudo que teve como um alicerce o lúdico, o cômico, o intertexto que
amarraram as principais idéias às características mais pessoais de Angela
Lago como o final imprevisível do texto, a presença da tecnologia e
principalmente a multiplicidade da leitura.
A análise das imagens, no conto De Morte, foi feita explanando os
detalhes que levaram a uma nova leitura, ou uma leitura paralela à história do
conto.
Com base nos estudos de Vladimir Propp analisamos a personagem
seguindo às funções propostos na obra A Morfologia do Conto Maravilhoso
(PROPP, 2005), Propp demonstrava em suas obras um grande interesse pelos
contos populares, em especial pelos contos folclóricos russos. Pesquisando
tais contos, percebeu a semelhança entre contos originados de culturas e
localizações geográficas distantes, ao redor do mundo. Buscou então, em suas
pesquisas, desvendar os mecanismos por trás desta abundância de contos
populares a partir de três questões que lhe pareciam fundamentais serem
abordadas a forma dos contos de magia, as transformações ocorridas entre
contos e as origens destes contos.
Com a análise feita na estrutura das funções de Propp, foi possível
verificar que o conto popular contemporâneo não se distancia de suas origens
N
105
históricas “O estudo da estrutura de todos os aspectos do conto maravilhoso é
a condição prévia absolutamente indispensável para seu estudo histórico. O
estudo das leis formais pressupõe o estudo das leis históricas.” (PROPP,
1984:22).
Na obra analisada temas como o da vida e da morte são propostos sem
causar espanto, medo ou terror. A forma pela qual o narrador transmite as
ações mescla-se com o riso, dando à obra um efeito mais cômico do que sério.
A ausência do terror entre o leitor e as figuras da morte e o diabo é dada
pelo modo descontraído com que o narrador conduz a história, fato também
que recorre à estrutura do conto maravilhoso, onde o leitor aceita o
sobrenatural com naturalidade desde o início da narrativa. Não por parte do
leitor, nem das personagens, um questionamento, uma dúvida de que os
acontecimentos sejam reais ou não, como acontece no início do conto De
Morte quando o velhinho larga o que está fazendo e vai jogar uma “pelada”
com o Menino Jesus ou mesmo quando está na presença da morte e do diabo.
Leitor e personagens aceitam o sobrenatural como se fizesse parte do
cotidiano. Nesta obra as duas figuras maléficas e poderosas o enganadas
pelo homem, reiterando aqui um elemento do conto popular. Segundo mara
Cascudo, folclorista brasileiro, “em todos os contos e disputas poéticas o
Demônio intervindo, perde a aposta e é, infalivelmente, logrado.” (CASCUDO,
1984, p. 262.)
A derrota do demônio na novelística é quase universal. Nos contos
populares brasileiros, portugueses, espanhóis, africanos, árabes, Câmara
Cascudo escreve que não existe uma vitória do Demônio, em matéria de
aposta, “aceitando desafio ou firmando contratos”. (CASCUDO, 1984, p. 262).
Trata-se de uma narrativa de estrutura lingüística simplificada, com uso de
vocábulos e frases, subtraídos da oralidade. Assim as personagens fazem uso
constante da linguagem coloquial, como no momento em que a morte desabafa
“Eta velho de morte” (Lago, 2005) A esse respeito, foi possível observar o
efeito do riso à linguagem.
A pesquisa considerou na imagem que o livro não é um objeto plano. O
movimento de abertura da segunda e da penúltima folha do livro modifica a
forma como vemos o desenho. Na passagem das páginas podemos observar
uma leitura paralela na composição e o sentido da ilustração. Usando o corte
106
na página, o desenho que transpassa a dobra do meio do livro, Lago enfatiza
perspectivas e destaca aspectos da narrativa.
Biagio D’Angelo assinala as considerações acima quando nos lembra
que:
O texto de Ângela-Lago sempre se acompanha assim como
em outros textos, como Sete histórias para sacudir o esqueleto
ou De morte de uma ilustração lúdica que organiza o livro em
um objeto performático completo. O recurso à imagem
semelhante à estratégia de teatralização da narração oral e da
cultura popular – funciona como meio de transformação textual.
As letras e as palavras são coisificadas”, mas na proposta de
desarticulação adquirem uma força narrativa maior. ¹
Ainda foi possível observar quanto ao trabalho gráfico De Morte nos
surpreende a cada página, pois, o desalinho das sentenças indica a ação das
personagens. A ludicidade presente no livro prende-se no resgate de
fundamentos do acervo popular que tratam de aspectos culturais trazidos ao
longo dos anos, através do ato de contar e recontar. São costumes, crenças,
brincadeiras com as imagens que alinhavam não permitindo a real identificação
do período da história.
____________
¹ Citação retirada do texto: Turandot e Divinha: mito e paródia em Sua Alteza a Divinha, de Ângela-Lago
escrito pelo Prof. Dr. Biagio D’Angelo para comunicação em palestra proferida em 2008, ainda não
publicada. Gentilmente cedida pelo autor.
Foi pertinente também comentar a intimidade de Angela Lago com a
ciberliteratura e como estes trabalhos contribuem para literatura infantil e
juvenil contemporânea.
107
O exemplar E Agora? (2004) de Angela Lago que selecionamos para
ilustrar a observação é fruto das criações engenhosas da artista em parceria
com o site “Brincando na Rede”, e reflete o acompanhamento da evolução da
linguagem.
Angela Lago transgride o habitual em seus textos, incluindo a hipermídia
uma linguagem que nasce em um novo ambiente no qual ver, ouvir, ler,
perceber, falar, escrever, pensar e sentir passa a adquirir características
inéditas.
O poder definidor dessa linguagem está na mescla das matrizes de
linguagem (verbal, visual e sonora), na hibridização de mídias que aciona, e,
conseqüentemente, na mistura de sentidos acolhidos na medida em que o
receptor interage, participando ativamente de sua realização.
R
EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
108
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Scipione, 2005.
ARANTES, Antonio. O que é Cultura Popular. São Paulo: Editora Brasiliense,
1987.
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1981
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal Edição 4ª. São Paulo: Martins
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109
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COLOMER, TERESA. A formação do leitor literário. São Paulo: Global, 2003.
D’ANGELO, Biagio. Turandot e Divinha: mito e paródia em Sua Alteza a
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2008, ainda não publicada. Gentilmente cedida pelo autor.
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