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SIMONE ROSELY TORRES PESSOA
O SIGNO POÉTICO NA POESIA DE
HENRIQUE SILVESTRE:
SIGNIFICAÇÃO, SONORIDADE E
VISUALIDADE
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE
2008
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SIMONE ROSELY TORRES PESSOA
O SIGNO POÉTICO NA POESIA DE HENRIQUE
SILVESTRE: SIGNIFICAÇÃO, SONORIDADE E
VISUALIDADE
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação da Universidade Federal
do Acre para obtenção do grau de Mestre
em Letras: Linguagem e Identidade.
Orientadora: Profª. Drª. Maria do Perpétuo
Socorro Calixto Marques.
(Universidade Federal do Acre)
Rio Branco
Universidade Federal do Acre
Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade
2008
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© PESSOA, S. R. T. 2008.
Ficha catalográfica preparada pela Biblioteca Central da Universidade Federal do
Acre
P475s
PESSOA, Simone Rosely Torres. O signo poético na
poesia de Henrique Silvestre: significação, sonoridade e
visualidade. 2008. 84f. Dissertação (Mestrado em Letras
Linguagem e Identidade) Pró-Reitoria de Pesquisa e
Pós-Graduação, Universidade Federal do Acre, Rio
Branco – Acre, 2008.
Orientadora: Profª. Dra. Maria do Perpétuo Socorro
Calixto Marques
1. Signo poético, 2. Memória, 3. Identidade, I. Título
CDU 869.0(81)-
1
SIMONE ROSELY TORRES PESSOA
O SIGNO POÉTICO NA POESIA DE HENRIQUE SILVESTRE:
SIGNIFICAÇÃO, SONORIDADE E VISUALIDADE
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação da Universidade Federal
do Acre como requisito para a obtenção do
grau de Mestre em Letras: Linguagem e
Identidade.
Aprovada em 9 setembro de 2008.
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Dr.ª Maria do P. S. Calixto Marques (UFAC) - Orientadora
Prof.ª Dr.ª Laélia Maria Rodrigues da Silva
Examinadora externa
Prof. Dr. Gerson Rodrigues de Albuquerque
Examinador interno
Rio Branco - AC
2008
RESUMO
A literatura, como toda forma de arte, ao longo dos tempos, tem servido ao
homem, entre outras coisas, como fonte de representação identitária, ainda que
provisória, ou ilusória, pois permite a expressão da historicidade dos sujeitos e a
recuperação de seus arquivos de memória individual e coletiva. Desse modo,
sendo a poesia uma forma de manifestação literária, ela possibilita ao poeta e aos
leitores, por meio da imaginação, reencontrar e reinventar aquilo que eles
guardam como suas lembranças, constituindo-se assim como um lugar simbólico
de memória e uma referência de identidade para os sujeitos. Ao estudar o signo
poético na poesia de Silvestre, busca-se analisar, além dos aspectos estruturais,
temáticos e sonoros, como os textos simbolizam visualmente o espaço e o sujeito
amazônida, e como representam, por meio da memória literária, traços identitários
desse sujeito, que é tamm acreano. De um arquivo de setenta poemas, o
corpus da pesquisa abraça como amostragem para leitura e análise seis textos:
Abunã, Voz distante quase silêncio, Cicatriz, Todos os rios navegam, Em
qualquer quarto ou hotel e Enchente. Os poemas selecionados foram agrupados
em três capítulos, de acordo com a temática que abordam. O critério de seleção
dos poemas foi fundamentado na visualidade imagética das lembranças afetivas
da voz poética, que traz na memória a presença marcante da imagem das águas
do rio e de outros elementos naturais comuns ao espaço amazônico, quase
sempre relacionados a representações identitárias do sujeito inserido nesse
espaço. Como ferramenta teórica para o estudo do signo poético, a semiótica de
Charles Peirce e sua a cadeia triádica do signo lingüístico será utilizada aliada à
análise dos elementos formais e expressivos servindo-se de autores como Décio
Pignatari, Antonio Cândido, Fernando Paixão. No eixo analítico poesia e memória,
buscar-se-á dialogar com Jacques Le Goff, Paul Zumthor, Henri Bergson. No que
tange à tessitura de discursos identitários, valer-se-á de teóricos como Stuart Hall,
Rogério Haesbaert e Édouard Glissant.
PALAVRAS-CHAVE: signo poético, memória, identidade.
ABSTRACT
As any form of art, literature has been serving men throughout history as source of
identity representation, though temporary or illusory once it allows the expression
of historicity of subjects and the recovery of their files of individual and collective
memory. As a form of literary manifestation, poetry enables the poet and his
readers to reinvent and meet once again through imagination what they keep as
memory. So it establishes as a memory symbolic space and a identity reference
for those subjects. This way, the poetic sign in Henrique Silvestre’s poetry is
analyzed here concerning not only to the structure, theme, and sound aspects but
also to the way it symbolizes the Amazon space and subject in that poetic
imaginary and how it represents through literary memory the identity features of
this person, who is ultimately from Acre. From a set of seventy poems, the
research defined seven of them for reading and analyzing: Abunã, Distant voice
almost silence, Scar, All the rivers sail In any room or hotel and Flood. The
selected poems were arranged into three chapters according to their themes. The
criteria for that selection were based on the imagery force of poetic voice’s
affective remembrances, which carries in memory the remarkable presence of the
images of river water as along as other natural elements common to Amazon
space. They are quite always related to identity representations of the subject
inserted in that space. Charles Peirce’s semiotic and his triadic chain of linguistic
sign will be used as theoretical tools for the study of the poetic sign, along with the
analysis of forma and expressive elements for what will be used authors such as
Décio Pignatari, Antonio Cândido, Fernando Paixão. For the poetry and memory
analytical axis the study dialogues with Jacques Le Goff, Paul Zumthor, Henri
Bergson. Concerning the identity discourses it will be used the theorists such as
Stuart Hall, Rogério Haesbaert and Édouard Glissant.
KEY-WORDS: poetic sign, memory, identity.
À eterna Aurora
que me trouxe a primeira luz
de um jeitinho tão inusitado...
Ao velho Leo
que me trouxe a doçura da poesia
pelas encantáveis histórias de cordel.
À linda Luna
que faz mais claros meus dias
e enluara minhas noites de alegria.
AGRADECIMENTOS
Impossível não começar por ela: “tia” Calixto, minha orientadora também na
pesquisa de Pós-Graduação Lato Sensu em Estudos Literários. Ela, que soube
orientar com tamanha sabedoria, tamm soube abrandar os momentos de
formalidade do estudo com alegres conversas “desformadas” e inventivas. Uma
maravilha seus comentários, sempre tão pertinentes. Minha gratidão sem par,
Profª. Maria do Perpétuo Socorro Calixto Marques.
Meus honrosos agradecimentos vão para a Profª. Laélia R. da Silva, sobretudo
por ter me mostrado, de modo apaixonante, as veredas da literatura acreana.
Além disso, foi nela que encontrei minhas fontes de pesquisa sobre a poesia
produzida no Acre.
Ao poeta da água doce, meu “objeto”, Henrique Silvestre, por ter me
proporcionado, durante o tempo de pesquisa, inefável deleite com a leitura e
estudo de seus fluidos poemas. Agradeço-o grandemente ainda por ter me
disponibilizado gentilmente o seu acervo de poemas, bem como um variado
material de pesquisa.
Dedezinho, a ti não agradeço. Seria pouco. Fica com meu enorme apreço, “Fie”,
tu, o mais imaginativo, criativo e poético amigo que tenho.
Agradeço ainda à Universidade Federal do Acre por me conceder a oportunidade
de cursar o Mestrado, permitindo-me prosseguir meus estudos e construir novos
conhecimentos por meio da pesquisa acadêmica.
Os rios são fluxo permanente
Dos sonhos da natureza
E de seu mistério líquido.
Álvaro Pacheco
Solstício de inverno
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Da nascente à foz ............................................................................................10
CAPÍTULO I
NAVEGANDO PELAS ÁGUAS TEÓRICAS
No curso da Poesia ........................................................................................... 15
No curso da Memória ........................................................................................ 18
No curso da Identidade ...................................................................................... 26
CAPÍTULO II
A ÁGUA COMO ESPELHO DO TEMPO
Abunã e Voz distante quase silêncio ................................................................. 31
CAPÍTULO III
A MEMÓRIA COMO ESPAÇO DE SAUDADE
Cicatriz e Todos os rios navegam ...................................................................... 44
CAPÍTULO IV
O RIO ACRE COMO REFERENCIAL DE IDENTIDADE
Enchente e Em qualquer quarto ou hotel ........................................................... 66
O ENCONTRO DAS ÁGUAS DOCES COM UM MAR DE IDÉIAS ................... 76
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 81
10
DA NASCENTE À FOZ
O interesse em estudar a poesia acreana nasceu junto à disciplina optativa
Literatura Acreana, ministrada na graduação do curso de Letras. Naquele
momento, o estudo pretendeu catalogar produções literárias poéticas
contemporâneas do Acre. Para o desenvolvimento do projeto de Especialização,
no curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Letras, com área de concentração
em Estudos Literários, oferecido pela Universidade Federal do Acre, optei por
investigar a produção poética de Henrique Silvestre, poeta e dramaturgo acreano,
cuja produção artística integra um variado arquivo de poemas e peças teatrais,
estas conhecidas do blico-leitor acreano e analisadas por Marques (2005 e
2006), podendo ser encontradas no Grupo Amazônico de Estudos da Linguagem
GAEL. Na intenção de aprofundar os estudos científicos na área de poesia e da
literatura de expressão amazônica, decidi desenvolver o projeto do curso de
Mestrado dando continuidade à pesquisa voltada para a investigação da produção
poética de Silvestre, integrando assim o elenco de projetos do GAEL, grupo do
qual participo.
A pesquisa teve como objetivo o estudo do signo poético na poesia de
Henrique Silvestre, analisando-se, além dos aspectos temáticos, estruturais e
sonoros, o modo como os textos simbolizam o espaço e o sujeito amazônida, e
como representam, por meio da memória, traços identitários desse sujeito, que é
tamm acreano. Para essa observação, interessou explicitar aspectos
caracterizadores da visão do poeta sobre o espaço e o sujeito amazônida,
revelados através da forma como ele traduz a natureza afetiva de suas vivências
configuradas numa linguagem lírica e em imagens que traduzem sua relação com
o eu, com o outro e com o meio.
A opção pela investigação da produção poética de Silvestre se deu por ela
revelar um desprendimento quanto à organizão formal, deixando livre o vagar
poético para a criação de imagens que presentificam o espaço e o tempo em que
se insere a voz poética, o que foi possível confirmar após análise dos poemas,
pois se observou que estes o se prendem a nenhum esquema de rima,
apresentam métrica irregular e ritmo solto, assimétrico.
11
Outro fator considerado foi a ausência de estudos sobre suas poesias,
enquanto as produções de outros autores acreanos já constituíram objeto de
análise em trabalhos de pesquisa. Por isso, diante dos critérios arrolados acima,
acredito que a produção poética de Silvestre merece um registro acadêmico e
sistemático.
Atualmente, as fontes de pesquisa sobre a poesia acreana restringem-se a
um número limitado de trabalhos documentais, donde avulta duas obras de Laélia
Maria Rodrigues da Silva, Acre: Prosa e Poesia - 1900 a 1990, tese de
doutoramento publicada em 1998 pela EDUFAC, e Um caminho de muitas voltas,
obra ensaística publicada em 2002 pela FEM/Printac. Além destas, ainda a
tese de doutoramento de Margareth Edul Prado de Souza Lopes intitulada
Motivos de mulher na ignota Floresta Amazônica: a produção de escritoras
acreanas nas décadas 80 a 90, apresentada ao Programa de Letras e Lingüística
da Universidade da Bahia em 2005.
Em Acre: Prosa e Poesia - 1900 a 1990, a autora mostra a literatura
acreana das origens às fontes de influências de obras e movimentos literários que
determinam a relação dos contextos regional e nacional, evidenciados pelas
linguagens e pelo ambiente. Em Um caminho de muitas voltas, a autora escreve
onze ensaios, nos quais explicita aspectos de individualidade da literatura
acreana que a singularizam como sistema em relação ao contexto mais amplo da
literatura nacional. Para tanto, são articuladas criações literárias de vários autores
de diferentes épocas, a fim de demonstrar que nas relações entre os textos e
suas histórias de produção, tanto na análise da evolução literária quanto na
simultaneidade, é possível identificar alguns desses aspectos.
Já Margareth E. P. de Souza Lopes, em Motivos de mulher na ignota
Floresta Amazônica: a produção de escritoras acreanas nas décadas 80 a 90,
discute a produção ficcional das escritoras e poetas do Acre, surgidas nas duas
últimas décadas do século XX. Segundo a autora, o trabalho se justifica por
estudar uma produção literária desconhecida no país, cuja história oficial da
literatura, ao longo do século, ignorou sistematicamente a experiência social das
mulheres. A pesquisa resulta numa leitura da condição da mulher e das relações
de gênero presentes na literatura de autoria feminina no Acre, a qual se articula
com as tendências regionalistas que compõem o universo das manifestações
culturais e literárias produzidas na Amazônia.
12
Em consonância com as considerações das autoras citadas, penso que a
literatura amazônica e, de modo especial, a acreana, ainda se situam no campo
do anonimato e da marginalidade o só em relação ao âmbito nacional, mas
tamm no contexto local. Da importância em analisar a produção poética de
Silvestre, pois, com o registro acadêmico e sistemático dessa produção, acredito
estar contribuindo com o limitado conjunto de pesquisas e publicação de estudos
sobre a literatura produzida no Acre. Os resultados da pesquisa podem colaborar
com a documentação e preservação da meria literária e com o delineamento
dos discursos identitários constantemente produzidos e veiculados em nosso
meio cultural.
De um arquivo de setenta poemas, o corpus da pesquisa abraça como
amostragem para leitura e análise seis textos: Abunã, Voz distante quase silêncio,
Enchente, Em qualquer quarto ou hotel, Cicatriz e Todos os rios navegam. O
critério de seleção dos textos foi fundamentado na presença da imagem das
águas do rio como elemento significativo da realidade concreta do espaço de
vivência do autor e do povo acreano, assim como também na força imagética das
lembranças afetivas da voz poética recuperadas através da memória. Como os
poemas de Silvestre, em sua maioria, não trazem título, no trabalho, intitulo pela
primeira linha poética os que apresentam tal particularidade.
Os textos selecionados foram agrupados em três capítulos, de acordo com
a temática que abordam. No segundo capítulo, A água como espelho do tempo,
estão os poemas Abu e Voz distante quase silêncio, escritos em primeira
pessoa, textos de pouquíssimos versos, que aproximam simbolicamente a
imagem do rio com um espelho d’água, refletindo o curso da vida e do tempo da
voz poética. O capítulo três, A memória como espaço de identidade, traz os
poemas Cicatriz e Todos os rios navegam, que revelam um sujeito poético
tomado pela lembrança de um espaço e marcado pelos traços/rios identirios
que carrega consigo após assimilação do outro. O quarto capítulo, O rio Acre
como referencial de identidade, apresenta os poemas Enchente e Em qualquer
quarto ou hotel, também textos curtos, nos quais a imagem do rio Acre surge
compondo uma estreita relação simbólica com as memórias afetivas do eu
poético.
Como ferramenta teórica, sirvo-me do estudo do signo poético,
especialmente o de Charles Peirce sobre a cadeia significativa do signo
13
lingüístico, cuja escolha é orientada pela própria natureza do gênero poético.
Assim é que, valendo-se da semiótica peirciana, volto-me para a investigação de
como a união de conceitos, sons e imagens corroboram o caráter e valor estético
do signo poético nas poesias de Silvestre, que para o estudo analítico do
poema é preciso estabelecer relações entre todos os aspectos do texto, quais
sejam: fundamentos como sonoridade, ritmo, verso; unidades expressivas como
vocabulário, imagem, figuras, tema, mbolo; princípios estruturais e
organizadores e significados.
Além desse percurso que o estudo do nero solicita, estabeleço diálogo,
no eixo analítico poesia e memória, com Jacques Le Goff, Paul Zumthor, entre
outros, na tentativa de mostrar como o sujeito poético constrói as imagens
mnemônicas do meio, do outro e de si mesmo. Sendo estas imagens reveladoras
de traços identitários do sujeito poético em sua relação com o espaço e com os
outros sujeitos, sirvo-me das discussões de Stuart Hall, Rogério Haesbaert e
Édouard Glissant, dentre outros estudiosos dos discursos identitários, posto que o
espaço real a que a voz poética se remete é, dada a devida diferença temporal, o
mesmo de que se valeram as produções realizadas até meados do século XX,
quando vimos a região amazônica representada discursivamente por textos que
configuraram discursos cujo vs foi engendrado, conforme nos atesta a
professora Laélia M. R. da Silva, por uma literatura de maravilhamento, na qual o
elemento humano esteve colocado como pano de fundo no quadro que compunha
a paisagem, sempre exuberante, de uma natureza ameaçadora em sua grandeza.
A abordagem permitiu perceber que a poética de Silvestre não se relaciona
com a poesia muito produzida no Acre, cujo universo de imagens vinculou-se
corriqueiramente à expressão da cor local, tendo como referencial básico os
elementos naturais, próximos e distantes da realidade urbana, presentes na vida
de nossa gente. As constatações, nesse sentido, levaram em consideração o fato
de que a voz poética que se instaurou na história da produção discursivo-literária
na e sobre a Amazônia quase sempre reproduziu, desde as narrativas inaugurais,
um discurso identitário voltado para a relevância dos elementos naturais na vida
do habitante da região, cristalizando a imagem de dependência e subjugo do
homem em relação à portentosa natureza.
Assim é que a linguagem dos textos que inauguraram discursivamente a
Amazônia, registrou, legitimou e propagou um construto identitário para o homem
14
amazônida e, por conseguinte, para o acreano, sacralizando uma imagem
muito carente de redimensionamento diante do processo de transformações no
campo político, econômico e sócio-cultural da sociedade local. Esse processo de
transformações nos exigiu novas formulações de identidades, mediante um
projeto de sociedade fundamentada na dinâmica do percurso histórico.
Diante de tais considerações, busco demonstrar neste trabalho como a
poesia de Silvestre se relaciona com tais discursos, apontando traços de
semelhança e de contraste entre a sua produção e a dos poetas acreanos de
períodos passados.
15
I - NAVEGANDO PELAS ÁGUAS TEÓRICAS
NO CURSO DA POESIA
A poesia, enquanto ser de linguagem, carrega significações possíveis que
permitem estabelecer uma consciência da realidade a partir de uma visão
discursivo-ideológica do sujeito lírico situado num tempo e num espaço. Na
linguagem poética, o signo verbal, além de instrumento de comunicação, é
tamm forma de representação do real, do universo interindividual e histórico do
poeta e, por extensão, do leitor.
Paixão (1983, pp. 8-9) afirma que sabendo que linguagem e realidade são
duas coisas bastante distintas, mas que se interpenetram, o poeta tenta realizar
na sua poesia uma nova realidade construída de palavras, que estimulam o vôo
da imaginação e, ao mesmo tempo, permitem conhecer de modo mais atento e
cuidadoso a própria realidade vivida pelo homem. O autor ainda ressalta que o
universo simbólico e vital da poesia é constantemente atravessado por um diálogo
com o tempo e o lugar em que é gerada. Refletindo o sofrimento de um povo,
subjugado a instituições arbitrárias, ou revelando a riqueza de sua cultura e
tradição, a voz do poeta é sempre a de procura de identidade, simultaneamente
individual e plural. (idem, p. 36)
Dentro da produção literário-poética na Amazônia é indisfarçável essa
procura de identidade desde os tempos mais distantes, seja pela aceitação e
reiteração das imagens discursivamente criadas a partir de uma realidade
paradisíaca ou diabólica, constante nos relatos inaugurais de representação da
região, seja pela tentativa de reconhecimento e recriação dos elementos
formadores da realidade cultural a partir de um olhar empírico situado
historicamente, cujo referencial é a interação concreta homem-natureza.
Para Loureiro (1995, p. 33), o sentido de identidade é o de auto-
reconhecimento, auto-estima, consciência do próprio valor, conjugados à
consciência da própria inserção no conjunto da sociedade nacional e, mais
amplamente, na sociedade dos homens. A sociedade amazônica tendo
consciência de si mesma, reconhecendo-se com relação inter-humana, inter-
social e, ao mesmo tempo, com a natureza e a história. Interpretando
16
resumidamente as palavras de Loureiro: a identidade da sociedade amazônica
esnão na imitação do cânone nacional ou no processo mitificador do imaginário
regional, e sim na expressão representativa dos elementos referenciais de sua
cultura, através de uma linguagem que simboliza a realidade humana e natural do
espaço determinado social e historicamente.
Loureiro assegura que a cultura do povo é fonte inesgotável de inspiração,
de símbolos, de experiências, de trabalho acumulado, de beleza, de utopias, e
que, ‘para Ocvio Paz, a preservação da memória coletiva por um grupo, ainda
que seja pequeno, é uma verdadeira tábua de salvação para toda a comunidade.
(...) Por cima de cada cultura, também por baixo, há idéias, crenças e costumes,
que são comuns a todos os membros da sociedade. É o fundo – espiritual,
mental, afetivo de cada povo; e dessa maneira, é o fundamento das artes,
especialmente da poesia’ (op. cit., pp. 75-76). Daí Loureiro afirmar que é possível
identificar-se na cultura amazônica um imaginário poetizante e estetizador
governando o sistema de funções culturais, tendo como suporte material a
natureza e desenvolvendo-se através da vaga atitude contemplativa própria do
homem da região em sua imersão no devaneio (p. 75).
No estudo da significação da poesia amazônica, os elementos de
sonoridade e visualidade representam, junto aos elementos temáticos culturais,
um grande valor para o reconhecimento da identidade do sujeito, pois a poesia na
Amazônia e sobre a Amazônia é agraciada por um lirismo natural, presente na
beleza contemplativa da paisagem e na riqueza sígnica, simbólica e mítica da
linguagem.
Cara (1989, pp. 7-8) considera que o lirismo é uma maneira especial de
recorte do mundo e de arranjo da linguagem. Para o poeta e crítico moderno a
poesia lírica vai concretiza-se, de fato, no modo como a linguagem do poema
organiza os elementos sonoros, rítmicos e imagéticos. Dessa forma, apóio-me nos
estudos de Charles Peirce sobre a cadeia significativa do signo lingüístico, cuja
escolha é orientada pela própria natureza do gênero poético.
Para a semiótica, todo e qualquer fenômeno produz significação e sentido,
nos quais ela busca divisar e deslindar seu ser de linguagem, isto é, sua ação de
signo. Segundo Santaella (1998, p. 18), uma das definições de signo para Peirce é
que signo é uma coisa que representa outra coisa: seu objeto. Ele só pode
funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra
17
coisa diferente dele. Peirce elaborou a tríade de sua teoria a partir do seguinte
esquema:
interpretante
signo objeto
O signo pode ser definido como o representante do objeto para um
intérprete, produzindo na mente desse intérprete um outro signo que traduz o
significado do primeiro. Esse processo relacional que se cria na mente do
intérprete é denominado interpretante. Como mencionamos, o significado de um
signo é outro signo pode ser uma imagem mental, uma ação, um sentimento.
Peirce define como três as categorias ou modalidades universais e gerais
(modos de operação do pensamento-signo que se processam na mente) possíveis
de apreensão-tradução de todo e qualquer fenômeno: primeiridade, secundidade e
terceiridade. A primeira diz respeito à apreensão das coisas pelo nosso estado
primeiro de consciência presente e imediato, num momento refratário de
impressão indivisível como pura qualidade de sentir. Por conseguinte, qualquer
sensação é secundidade: ação de um sentimento sobre s mesmos e nossa
reação específica, comoção do eu para com o estímulo (idem, p. 48). Entendendo
sensação como o sentimento e sua força inerente num sujeito. Santaella esclarece
que qualquer coisa, por mais fraca e habitual que seja, atinge nossos sentidos, a
excitação exterior produz seu efeito em nós. A terceiridade aproxima o primeiro e o
segundo numa síntese intelectual, corresponde à camada de inteligibilidade, ou
pensamento em signos, através da qual representamos e interpretamos o mundo.
Peirce diz que diante de qualquer fenômeno, isto é, para conhecer e
compreender qualquer coisa, a consciência produz um signo, ou seja, um
pensamento como mediação irrecusável entre nós e os fenômenos. O homem só
conhece o mundo porque, de alguma forma, o representa, e só interpreta essa
representação numa outra interpretação que Peirce denomina interpretante da
18
primeira. Daí que o signo seja uma coisa de cujo conhecimento depende o signo,
isto é, aquilo que é representado pelo signo. Daí que para nós, o signo seja um
primeiro, o objeto um segundo e o interpretante um terceiro. Para conhecer e se
conhecer o homem se faz signo e interpreta esses signos traduzindo-os em
outros signos (idem, p. 52). O signo é, ao mesmo tempo, a representação do que
esfora de si, seu objeto, e a interpretação de quem o processa (o intérprete),
levando em conta outro signo onde seu sentido se traduz (denominado
interpretante do primeiro). Tem-se, assim, um processo ininterrupto em que um
pensamento se traduz por outro pensamento, entendendo-se daí que o
significado de um pensamento-signo é um outro pensamento-signo.
Nesse sentido, no que tange à memória, podemos entendê-la como um
pensamento-signo que produz um outro pensamento-signo, porque os objetos que
constituem a realidade das imagens arquivadas na memória do sujeito/intérprete,
ao serem rememorados, podem provocar-lhe novas emões, com diferente
intensidade e significação. O poder sugestivo das imagens lembradas altera-se ao
conectar-se com as imagens da vigília atual, porque o atual estado psicológico e o
conjunto de idéias do sujeito são outros, o que o impede de recuperar, no contexto
do presente, exatamente as impressões e os sentimentos experimentados no
pretérito. Daí o sujeito interpretar seu passado traduzindo-o em novos signos ao
atualizá-lo no instante da rememoração, criando-se assim o processo ininterrupto
de pensamento-signo-memória, porque constantemente, ao reviver um evento, por
meio da memória, o sujeito o re-faz no pensamento.
Vygotsky (1996, p. 58) ressalta a importância dos signos na constituição da
memória: A verdadeira essência da memória humana esno fato de os seres
humanos serem capazes de lembrar ativamente com a ajuda de signos.”
NO CURSO DA MEMÓRIA
Poesia e Memória
Para falar do signo memória, faz-se necessário enfatizar que ele constitui-
se em um fenômeno que perpassa toda a história do pensamento ocidental. As
19
reflexões em torno do conceito de memória eso presentes nas mais diversas
áreas do saber humano, desde a Antigüidade até os dias atuais, mas foi no
século XX que as pesquisas sobre o tema ganharam contornos de caráter mais
científico a partir de investigações de estudiosos como de Freud, na psicanálise,
Proust, na literatura, Bergson, na filosofia, Le Goff, na história.
Para fazer uma viagem no tempo da memória, voltemos à época arcaica,
quando os gregos fizeram da memória uma deusa, Mnemosine, mãe das nove
musas que ela procriou no decurso de nove noites passadas com Zeus. Sua
missão era lembrar aos poetas a recordação dos heis e dos seus altos feitos,
informando a verdade sobre os acontecimentos a serem cantados nos poemas,
presidindo assim à poesia lírica. (Chevalier e Gheerbrant, 2006). Assim, naqueles
tempos, a memória constituía um signo cujo objeto apontava para os altos feitos
dos heróis, reservando-se ao poeta o papel de intérprete, pois cabia a ele
processar e cantar os acontecimentos passados, legando para a posteridade
arquivos de memória, exercendo, dessa maneira, o poder de sustentar, de
controlar, de certa forma, a cultura, a tradição de seu povo. A memória toda do
povo grego é assim poetizada. Memória humana e história tornam-se, entre os
antigos, possíveis pelo discurso poético.
Jacques Le Goff (1996), ao referir-se à memória e seu significado entre os
gregos, diz que o poeta [...] é um homem possuído pela memória, e a poesia,
identificada com a memória, faz desta um saber e mesmo uma sageza, uma
sophia. [...]. A memória aparece então como dom para iniciados, e a anamnesis, a
reminiscência, como uma técnica ascética e mística. [...] Ela é o antídoto do
esquecimento" (p. 21).
Em Platão e em Aristeles a memória é um componente da alma, não se
manifesta, contudo ao nível da sua parte intelectual, mas unicamente da sua parte
sensível. Platão argumentava que a imortalidade da alma nos possibilitava acesso
ao “mundo das idéias”, onde teamos contato com as formas perfeitas.
Reencarnados, depois de nos banharmos no “rio do esquecimento”, ao
depararmo-nos com as imperfeições deste mundo, acudiria nosso espanto a
reminiscência daquelas formas perfeitas contempladas no Hadén. Portanto, não
conhecimento; reconhecimento. a memória a nos conduzir na busca
pela verdade, pelo bem viver. (Platão, 1999).
20
No Teeteto, Platão usa a metáfora de um bloco de cera para falar da
memória há um bloco de cera em nossas almas. É presente de Mnemosine,
e das Musas. Em cada indivíduo o bloco de cera tem qualidades diferentes. A
cera o é nem tão fluida quanto a água, que não permite reter, nem tão dura
quanto o ferro, que o permite marcar. Guarda impressões por excelência. Mas
para Platão, um conhecimento que o é derivado das impressões sensoriais.
Estão latentes em nossas memórias as Formas das Idéias, Formas de realidades
que a alma conheceu antes de cada um nascer. O verdadeiro conhecimento
consiste em ajustar as marcas das impressões sensoriais à forma da realidade
superior, da qual as coisas são meros reflexos. Todos os objetos sensíveis têm
referência em certos (arque)tipos aos quais se assemelham. Nós não vimos ou
aprendemos esses arquétipos nessa vida. O conhecimento deles é inato em
nossa memória.
Já para Aristóteles o ofício do poeta era o de representar o que poderia
acontecer, ou seja, o que seria possível de acordo com a verossimilhança,
retirando assim à poesia a detenção da Verdade sobre o que realmente
aconteceu, o que constitui a matéria da memória.
O poeta grego Simônides de Céos (cerca de 556-468 a. C.) fixa dois
princípios da memória segundo os antigos: a lembrança das imagens, necessária
à memória e o recurso a uma organização, uma ordem, essencial para uma boa
memória.
A memória cristã se manifesta essencialmente na comemoração de Jesus,
anualmente na liturgia que o comemora do Advento ao Pentecostes. A um vel
mais popular, cristaliza-se sobretudo nos santos e nos mortos. Na Idade Média,
Os mártires eram testemunhos. Depois da sua morte, cristalizava-se em torno
dessa recordação, a memória dos cristãos.
A partir do século XVII, no Ocidente uma revolução da memória pela
imprensa. Com o impresso, não só o leitor é colocado em presença de uma
memória coletiva enorme como tamm uma exteriorização da memória
individual. O século XVIII assinala um papel decisivo no alargamento da memória
coletiva: com os dicionários e enciclopédias. Todavia, Scholes (1977) discute a
invenção da escrita, apresentando os dois lados desse processo, através da
21
estória de Sócrates sobre Tote, deus egípcio que inventou a escrita
1
. Como
aspecto positivo ele aponta o fato do homem ter se tornado independente com a
escrita, uma vez que ele vê o livro como símbolo de liberdade e verdade, numa
sociedade em que os iletrados eram considerados cultural e economicamente
carentes. Já como aspecto negativo ele diz que o homem tornou-se menos sábio,
pois perdeu a capacidade de memorizar suas experncias e transmiti-las às
gerações posteriores, além dos seus conhecimentos, inclusive os culturais,
perdendo, dessa maneira, traços de sua tradição, já que a sociedade, em especial
a Grécia, era predominantemente oral e com a invenção da escrita passa a
privilegiar apenas os registros escritos.
A memória até então acumulada é relegada nos tempos que primam o
advento da Razão. Enquanto os vivos agora dispõem de uma memória técnica,
científica e intelectual cada vez mais rica, a memória parece afastar-se dos
mortos, pois as comemorações fúnebres entram em declínio, e os túmulos,
incluindo os dos reis, tornam-se muito simples. Porém, o mulo separado da
igreja voltou a ser o centro da lembrança imediatamente após a Revolução
Francesa, momento em que o Romantismo acentua a atração do cemitério ligado
à memória, de modo mais literário que dogmático.
Os românticos, no século XIX, retomam a mitologia grega que dizem serem
as Musas virtudes da imaginação e filhas da memória, encontrando-se
novamente a ligação entre memória e imaginação, memória e poesia.
Na acepção moderna de memória temos o britânico Frederic Bartlett
(1961), para quem o conceito deve ser entendido enquanto percepção,
reconhecimento e reminiscência, pensado num constante processo de interação
entre indivíduos e entre estes e seu meio.
1
Em Fedro, Sócrates conta a história de Tote, deus egípcio que inventou a escrita.
Querendo dividir sua invenção com o povo, Tote foi à presença do deus Tamus que reinava sobre
todo o Egito. Quando mostrou suas letras ao rei, alegando que elas viriam aumentar tanto a
memória quanto a sabedoria dos egípcios, Tamus respondeu:
Ó mui talentoso Tote, enquanto um homem tem a capacidade de criar uma nova
habilidade, outro a tem para julgar se ela será beão ou maldição para seus usuários. Agora
você, o pai das letras, com sua afeição, nelas o oposto de seu verdadeiro poder. Pois esta
invenção fará com que aqueles que a usam percam o saber em suas mentes, negligenciando suas
memórias; visto que através desta confiança nas letras, que são externas à mente, eles perderão
sua capacidade de recordar coisas dentro de si mesmos. Você não inventou um medicamento
para fortalecer a memória, mas um substituto inferior para ela. Você está proporcionando aos seus
alunos uma maneira de parecerem sábios sem verdadeira sabedoria; (...).” (SCHOLES, 1977, p.
12).
22
Para o historiador Michel Pollak (1992), a memória deve ser pensada, ao
mesmo tempo, “como um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno
construído coletivamente e submetido a flutuações, transformações, mudanças
constantes” (p. 201). Em outros termos, a memória está sujeita a transferências e
projeções daquele que recorda em relação àquilo que é recordado, misturando
eventos, espaços, personagens e tempos históricos. Na esteira do pensamento
de Pollak, Halbwachs (2004) demonstra “que a memória de um grupo se
apresenta sob a forma concreta de um fato, de um personagem ou de um lugar”
(p. 147).
Distanciando-se da antiga concepção grega na qual o poeta era um ser
iluminado que detinha a memória mítica e divinizada, modernamente a poesia
passou a ser compreendida como produto da imaginação e da experiência de
sujeitos sociais situados em espaço e tempo históricos, o mais tendo a função
de criar memória ou de representar textualmente a memória de uma época ou do
poeta em suas circunstâncias de vida ou de sua relação com o mundo.
Todavia, para Sofia Paixão, a poesia pode, numa espécie de jogo de
identificação e de estranhamento que se instaura no ato da leitura, desenvolver a
função de ativadora da imaginação e das capacidades de interpretação,
problematização e reinvenção, as quais atuam sobre o que é recordado pelo
sujeito. Nesse sentido, o que viria a ser então a poesia?
A poesia constrói-se, nesse sentido, como um lugar simbólico de memória,
não porque revela um conteúdo, uma verdade ou um conhecimento, mas porque
permite aos leitores, por meio da imaginação, reencontrar e reinventar suas
reminiscências encerradas em seu construto anímico. Assim, o próprio signo
poético constrói-se como um interpretante peirciano, porque sendo uma
representação da interpretação que o poeta faz do mundo, é interpretado pelo
leitor resultando numa outra representação, pois este, ao lê-lo, pelo jogo de
identificação e de estranhamento do qual fala Sofia Paixão, entra em contato com
as imagens ali evocadas e as traduz imprimindo-lhes novo significado no contato
com suas imagens mnemônicas.
É nessa perspectiva que a poesia pode vir a ser suporte físico de uma
memória individual que ganha sentido através de sua relação com memórias
coletivas; ela tanto pode se apresentar como o espaço da ativação da memória,
vista como possibilidade de resgate de certo reconhecimento identitário, quanto
23
como o espaço da construção de um legado, transferido às gerações que chegam
e que será gradualmente somado a este edifício identitário, em formão
permanente.
Portanto, quanto mais referências mnemônicas o leitor encontrar no poema
mais ele poderá ativar o seu arsenal de memória, de imaginação, de
conhecimentos particulares de sua cultura, tentando manter um diálogo com as
suas referências identitárias pessoais e sociais, reinterpretando suas
reminiscências no contato com o presente e redirecionando-as para a construção
do futuro.
Poesia e memória: construção de uma identidade acreana
O breve percurso histórico traçado acerca da memória desde os antigos
até os modernos demonstrou que a variedade de perspectivas e concepções em
torno da conceituação de memória – individual e coletiva – envolveu, muitas
vezes, a sua relação com a poesia e com a representação de um construto
identitário.
Transportando as referências conceituais de memória individual e memória
coletiva para o campo de estudo da identidade do povo acreano via produção
poética podemos nos colocar diante de inúmeras veredas, se levarmos em conta
que a poesia, enquanto arte, participa da dialética representação-realidade,
mantendo um constante diálogo com as condições sócio-histórica e cultural do
espaço donde emerge, e se concebermos, em consonância com o pensamento
de Stuart Hall (2004), a identidade como um processo em permanente
construção.
De acordo com Silva (1998, pp. 29-44), as manifestações literárias no Acre,
sobretudo as que emergiram no cenário local durante as primeiras décadas do
século passado, se ligam aos aspectos naturais da paisagem e ao tema da
conquista relacionado às origens da formação histórica do território. Um pouco
mais tarde, em decorrência da crise econômica extrativista, muitos autores
acreanos passaram a eleger como temática de suas produções a imagem
decadente da realidade, que trouxe consigo o esgotamento dos recursos, a
miséria e o abandono.
24
A partir da década de 70, a ordem econômica que se instaura no Acre,
imposta pela frente de expansão agropecuária, provocando visíveis e irreversíveis
modificões na paisagem natural da região, leva, conforme Silva, os poetas à
busca por outras referências para registrar os novos traços definidores da
natureza e da cultura locais. A denúncia, nesse contexto, passa a ser razão da
poesia inconformada com a devastação trazida pelo progresso à região
amazônica
2
. Assim, muitos poetas contemporâneos àquele momento histórico
incorporam aos temas sociais a defesa da ecologia como caractestica no
registro dos traços particularizantes da cultura local.
3
Nesse mesmo período e nos anos que se seguem, alguns poetas
acreanos, sem abandonar os motivos telúricos, voltam-se para a idealizão do
passado vislumbrando a contemplação idílica da paisagem da região anterior ao
processo de humanização e degradação na tentativa de se distanciarem das
desilusões do presente em visível desordem. Outros buscam expressar em suas
produções poéticas a ampliação, num contexto mais universal, dos problemas
sociais e existenciais do homem acreano, que parece sempre em busca de
superar o isolamento e se reinventar como ser pertencente a um universo bem
maior.
4
Essa trilha poética no âmbito das produções literárias do Acre, desde as
primeiras manifestações até a contemporaneidade, demonstra que os poetas
acreanos, seja por uma atitude de conformismo, de denúncia ou de fuga, na
tentativa de instituir um discurso de representação da realidade sócio-histórica
local, foram registrando, por meio de uma linguagem artístico-poética, suas
memórias individuais e elaborando um construto identitário arraigado nos
referentes do território, isto é, nos elementos da natureza e em suas forças
simbólicas, que funcionaram como objeto sígnico da realidade local e que
passaram a ser interpretados como signos de representação identitária.
Por isso, ao produzir seus textos tematizando a realidade circundante, os
poetas estão participando da construção de um projeto de memória coletiva,
porque ao registrar suas vivências e impressões sobre essa realidade,
possibilitam a ativação da memória da comunidade de leitores de outras
2
Silva, op. cit., p. 166.
3
Idem, ibidem, p. 185.
4
Idem, ibidem.
25
gerações, que encontrarão nas poesias um espaço para o reconhecimento dos
seus referenciais identitários atualizando-os no contato com a atual representação
do sistema cultural da sociedade em que se inserem, reformulando, dessa forma,
a própria identidade, que se articula, constrói e reconstrói permanentemente na
relação com o outro e com o meio.
26
NO CURSO DA IDENTIDADE
A voz poética que se instaurou na história da produção discursivo-literária
na e sobre a Amazônia quase sempre reproduziu, desde as narrativas inaugurais,
um discurso identitário voltado para a relevância dos elementos naturais na vida
do habitante da região, cristalizando a imagem de dependência e subjugo do
homem em relação à portentosa natureza, como nos assegura Silva (1998). Este
é bem o caso de escritores de produção científica e literária como Euclides da
Cunha, Inglês de Souza, Peregrino Júnior, Alberto Rangel, Gastão Cruls, Eustasio
Rivera, entre outros.
Essa visão se configurou como legitimadora de uma realidade
simbolicamente representada a partir de imagens que polarizam paraíso/inferno
verde, assim como a representação de um sujeito tão imerso na natureza
misteriosa que, em alguns momentos, acaba confundindo-se com ela. Tal
concepção deu-se a partir das viagens empreendidas na região por viajantes,
desbravadores e cronistas, que registravam em seus relatos o que viam ou
vivenciavam, e muito do que imaginavam ou fantasiavam, e o faziam
normalmente sob a ótica de quem observa de fora e que, tomando a si próprio
como parâmetro, compõe uma imagem diferenciada do outro. O outro é um
homem estreitamente ligado e dependente do meio natural, imerso num espaço
onde a força da natureza se impõe à ação humana.
Essa foi a representação lingüística e cultural que se formulou inicialmente
para definir o espaço e determinar a identidade do sujeito amazônida, e que se
manifestou por uma produção discursivo-literária tradutora do pensamento
ideológico calcado numa visão científica e religiosa da realidade. A leitura
interpretativa do contexto histórico-cultural calcada em tais parâmetros
ideologizantes constitui-se em um interpretante cristalizado da época e funcionou
como um artifício mnemônico necessário para transmitir os discursos elaborados
culturalmente naquele momento.
Moura (2005, p. 82) diz que elaborar versões sobre o que se experimenta é
uma atuação fundamental em toda sociedade. Algumas versões podem ser
chamadas textos identitários. São aqueles que anunciam, mais explícita e
nitidamente, o perfil de um sujeito, um grupo ou uma sociedade de milhões de
27
pessoas. Assim é que os aventureiros, pela experiência - concreta ou imaginária
do desconhecido - passaram a elaborar, segundo suas visões e versões, textos
identitários do território e dos habitantes do círculo geográfico amazônico. A partir
daí, é possível afirmar que o texto é ele mesmo produto que configura, reproduz e
representa a sociedade que o engendra.
5
As produções literárias e/ou histórico-documentais, sobretudo do século
XIX e meados do século XX, cuja temática central voltou-se para a Amazônia,
contribuíram significativamente para o processo de construção discursiva da
identidade dessa região, que até hoje, em seus textos identitários, vive os
resquícios daquela linguagem instauradora da realidade amazônica pela via dos
referenciais da natureza, como aspectos que refletem sua imagem. O Acre segue
a mesma trilha aberta para a representação de toda a região, pois, como território
da Amazônia, apresenta, desde as suas origens, características comuns ela como
um todo, tanto relativas ao processo de exploração e povoamento quanto à
caracterização da natureza.
6
Nesse sentido, a contribuição dos relatores que inauguraram
discursivamente a Amazônia ainda no século XIX e dos escritores que, no século
XX, sacralizaram a linguagem desses discursos, é significativa para afirmão de
um ideário de identidade acreana, pois registram, legitimam e propagam um
construto identitário que nos serviu como referência carente de
redimensionamento diante das transformações ocorridas no campo político,
econômico, social e cultural da sociedade acreana ao longo do século XX, e que
provocaram novas formulações de identidade para nosso povo, mediante um
novo projeto de sociedade fundamentada na dinâmica do percurso histórico. Por
isso mesmo Moura
7
afirma que a sociedade jamais deve configurar seus textos
identitários como produções definitivas e prontas, e o sujeito social, tomando aqui
as palavras de Larrosa
8
, como um indivíduo acabado, acomodado e satisfeito na
sua identidade firme, fechada e segura, porque o próprio processo de
identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais,
5
Moura, op. cit., p.83.
6
Silva, op. cit., pp. 49-50.
7
Op. cit., p. 85.
8
Jorge Larrosa, ¿Para qué nos sirven los extranjeros? Educação e Sociedade. Revista
Quadrimestral de Ciência da Educação, ano XXIII, n° 79, agosto/2002.
28
tornou-se mais provisório, variável e problemático, conforme nos assegura Hall
(2004).
Num mundo contemporâneo, tudo parece mais móvel, mais mutável e
menos seguro. E parece tamm cada vez mais rápido. Esta aceleração da vida,
como diz Paul Virilio (apud MOURA, 2005, p. 89), nos impele cada vez mais a
formular nossa própria afirmação de identidade humana como leve, precária e
provisória. E a arte, como linguagem que recria a realidade acompanhando a
dinâmica do tempo e do espaço, reflete essa aceleração da vida, assim como a
poesia que, construindo-se enquanto linguagem artística, o está livre dessa
constante volubilidade e movência do mundo e das coisas, que espelha, em
certa medida, a exterioridade do real, esta, objeto presente na consciência do
homem em forma de signos, através dos quais ele representa e interpreta o
mundo fazendo surgir novos signos como resultado dessa interpretação, criando-
se assim um processo de semiose ilimitada. E esta semiose ilimitada acaba
facilitando a representação do mundo e das coisas em seu constante estado de
movência e volubilidade, porque também o sujeito intérprete move-se com o
mundo, sempre buscando outros significados para os signos.
Assim é que as manifestações poéticas surgidas atualmente na sociedade
acreana, mesmo que presentifiquem ainda elementos simbólicos dos sistemas de
representação do passado, revelam as atuais marcas dos eventos históricos da
sociedade local, nacional e, mais amplamente, da sociedade dos homens, pois se
vive na atualidade uma nova realidade, portanto, a exterioridade do real é
diferentemente interpretada e representada. São outras as referências culturais,
as relações sociais, a organização política e o panorama econômico, já que a
aceleração da vida não pára e torna cada vez mais provisória o processo de
identificação dos sujeitos. Nesse novo contexto, a identidade torna-se uma
“celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas
pelas quais somos representados e interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam
9
. Por isso, a busca pela identidade, individual ou coletiva, é uma das
atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades hoje, na febre e na
angústia
10
.
9
Hall, op. cit., p. 13. grifo (‘’ “) do autor.
10
Le Goff, 1996, p. 46.
29
Mais que nenhum outro
elemento talvez, a água é uma
realidade poética completa.
Gaston Bachelard
A água e os sonhos
30
II - A ÁGUA COMO ESPELHO DO TEMPO
Neste capítulo trago como objeto de análise os poemas Abunã e Voz
distante quase silêncio. O estudo dos poemas consiste em investigar como o
poeta expressa sua afetividade e um construto identitário tomando como
referencial o signo rio, cujo objeto aponta para um elemento de presença
marcante na realidade geofísica e sócio-cultural da região amazônica, lugar de
vivência e experiências do poeta. Interessa aqui, para o estudo da significação
dos signos rio e águas, a tríade peirciana interpretante, representamen e objeto,
para perfazer e compreender o processo de semiose através do qual os signos
ganham sentido dentro dos poemas, explicitando como se dá a aproximação
simbólica da imagem do rio com um espelho d’água que reflete o curso da vida e
do tempo. A análise busca demonstrar como a sonoridade, elemento expressivo
do poema, se articula com o processo de significão verbal na construção da
visualidade das imagens.
Entremos, portanto, na leitura dos poemas de Silvestre, iniciando por
Abunã:
Abunã
O menino e o rio
Miram-se
Abunã – espelho d`água
E do tempo
Lava o homem
Resgata
Um e (no) outro.
Relendo os versos que constroem esse poema, o leitor poderá entrever
algumas imagens relevantes para a compreensão do modo representativo do
homem amazônida dentro do campo literário de produção circunscrita à região.
Abunã aborda a relação natureza-homem, sendo o rio o sujeito agente do poema
e não o homem, pois a voz poética imprime um valor metafórico àquele,
atribuindo-lhe um animismo significativo ao escolher verbos que denotam ação
“mira” o menino; “lava” e “resgata” o homem – para falar do rio.
Essa personificação da natureza é comum na literatura de expressão
amazônica, desde as narrativas inaugurais, nas quais o rio e a floresta quase
31
sempre representaram os dois elementos mais significativos, análise constatada
por Silva (2002, p. 52) quando nos diz que “as descrições da paisagem e a
importância do rio na identidade do homem da região são aspectos de consenso
nas representações discursivas, incluindo a história e a literatura.” Um aspecto
importante nesse contexto é que esses elementos naturais, dentro da produção
literária sobre a região, quase que consensualmente subjugaram as ações do
homem imerso na grandiosidade de uma selva capaz de oprimi-lo ou mesmo
aniquilá-lo. Grande parte daqueles que escreveram, até meados do século
passado, sobre o universo amazônico, assim o fizeram, a exemplo de Alberto
Rangel (Inferno Verde), Gastão Cruls (Amazônia Misteriosa), Ferreira de Castro
(A selva), Eustasio Rivera (A voragem), entre outros.
No entanto, em Abu, a relação entre homem e meio não é conflituosa, ao
contrário, nessa relação uma cumplicidade em que menino e rio confundem-se
numa imagem, um reflete o outro, contemplam-se: O menino e o rio/ Miram-
se”, porque um está no outro (o pronome se surge com a função de objeto
direto de mirar, tornando-o um verbo reflexivo recíproco, o que marca bem a
cumplicidade entre o menino e o rio). Esse desdobramento semântico do signo
lingüístico, aqui, poético, encontra respaldo no que Peirce diz sobre a semiose,
processo no qual o signo tem um efeito cognitivo sobre o inrprete, já que o leitor
de Abunã passa a conhecer uma outra possibilidade de interpretação do verbo
mirar, pois sua ação é tamm atribuída a um ser inanimado, o rio. Desse modo,
cria-se na mente do leitor um novo signo, porque essa nova função do verbo mirar
sugere uma significação não prevista fora do campo de ação do signo poético.
O rio, em Abunã, não assume as características de um simples elemento
da natureza, uma fonte natural de água que preenche a paisagem e auxilia o
homem na sua sobrevivência cotidiana, tornando-o seu dependente. Ele se
configura como um portal para o mundo interior do menino/homem, refletindo
muito mais que a matéria; é como se lhe fosse fonte de explicação existencial, o
que é possível na imagética da linguagem poética. É assim que, num processo de
semiose, o signo rio surge como a representação de um objeto real cuja
significação o está nele próprio, mas na interpretação do leitor (intérprete),
sendo este, por sua sensibilidade e experiência, capaz de atribuir um significado
(interpretante) ao signo rio, fazendo surgir um novo signo. Todo esse percurso
sígnico performático leva a análise a Santaella (1998, p. 18), quando afirma que
32
“uma das definições de signo para Peirce é que signo é uma coisa que representa
outra coisa: seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder
de representar, substituir uma outra coisa diferente dele.”
Reiterando, na teoria peirciana, o signo pode ser definido como o
representante do objeto para um intérprete, produzindo na mente desse intérprete
um outro signo que traduz o significado do primeiro. Esse processo relacional que
se cria na mente do intérprete é denominado interpretante. Como já
mencionamos, o significado de um signo é outro signo pode ser uma imagem
mental, umaão, um sentimento.
Na composição do poema, o verso Abunã espelho d`água constrói-se
como um forte componente visual, onde o signo espelho, na apreensão subjetiva
do leitor, pode representar, por similaridade, um outro signo portador de um novo
significado: memória. Assim cria-se um novo signo, construindo um processo de
semiose ilimitada (NÖTH, 1995, p. 74). Uma das possibilidades dessa semiose,
traduzida por Nöth, revela-se, no poema Abunã, no seguinte processo: as águas
do rio são o espelho do qual a imagem não se apaga mesmo diante da movência
temporal, ou seja, elas simbolizam a própria memória, que possibilita o retorno a
um passado distante, onde o sujeito, mirando suas águas (da memória), vê nelas
espelhado um tempo de vida ido, o tempo da infância, incapaz de ser
experienciado novamente na materialidade concreta do mundo, já que o tempo é
contínuo e irreversível e a memória; na elucidação de Cha(2003, p. 138), uma
evocação do passado, a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se
foi, salvando-o da perda total. Portanto, Abunã não é somente espelho d’água,
mas também espelho do tempo da memória, criando assim um novo signo, ou um
novo interpretante, como no processo de semiose peirciana.
Essa cadeia sígnica que interliga rio-espelho-passado-memória-infância é
perfeita para ilustrar o fenômeno da infância em um poema de Mário de Oliveira
11
que,ao lado de Silvestre, é mais entre tantos outros poetas acreanos que se
inserem na extensa lista dos que elegeram o rio como motivo de uma série de
textos que compõem seu acervo ptico. Vejamos um trecho do texto em
questão:
11
Mario de Oliveira, cidadão e poeta do Acre, publicou, durante a década de sessenta, seus
poemas em jornais locais, textos que foram coletados e editorados no livro Jardim Fechado, de
1971, organizado a partir de imagens definidoras do espaço e do sujeito poético, que na
paisagem as referências de sua própria terra natal. (SILVA, 1998, pp. 157-159).
33
Vestindo o escafandro da saudade,
a memória mergulha no passado,
e eu revejo – olhos d’água enamorado –
o modesto lugar onde nasci.
A beira-rio, de águas turvas e barrentas,
- o seringal, de vida remansosa,
toda poesia e encantos meus olhos tranqüilos...
12
Poema publicado em Jardim Fechado (1971), conduz o leitor para um
tempo passado, em que o eu poético busca se encontrar nos idos da infância. A
saudade é a medida para as idealizações do espaço e do tempo da felicidade que
a voz poética atualiza na memória por meio de suas reminisncias. Assim como
em Abunã, também aqui o sujeito vê as águas do rio como um espelho, olhos
d’água enamorado, através do qual a memória mergulha no passado para
recuperar as imagens da infância, onde toda poesia e encanto do tempo de vida
ido encontra-se depositado magicamente nos olhos tranqüilos do sujeito. Essa
leitura nos leva ao pensamento de Bruni quando assevera que “de fato, a água
atrai para o fundo da natureza com seus encantos mágicos, mas só reflete para o
homem a sua própria imagem. A água é a imagem do olho humano - a água é o
espelho natural do homem” (apud QUEIROZ, 2006, p. 720).
É importante, todavia, aqui apontar uma diferença entre os olhares que os
dois sujeitos poéticos lançam sobre o rio. Enquanto no poema de Mário de
Oliveira o olhar é apenas contemplativo, porque o sujeito põe-se à beira do rio, de
águas turvas e barrentas para enamorar” o seringal, de vida remansosa, onde
nasceu, em Abunã o sujeito se detém diante do rio não apenas para contemplá-lo,
mas tamm para buscar-se interrogativamente no reflexo das águas que
refletem suas reminiscências. Tem-se a impressão de que o espelho d’água,
funciona como uma fonte de respostas sobre o verdadeiro ser do sujeito poético.
Lembrando que “o espelho, do mesmo modo que a superfície da água, é utilizado
para a adivinhação, para interrogar os espíritos. Sua resposta às questões
colocadas se inscreve por reflexo” (CHEVALIER e GHEERBRANT, op. cit., p.
395).
Essa condição de busca por respostas no reflexo do espelho convida para
um diálogo o clássico conto infantil Branca de Neve. Nele, a bruxa tem o espelho
12
Mário de Oliveira, Poema da saudade infinita. O Juruá, Cruzeiro do Sul, 12 maio 1968.
(SILVA, 1998, p. 160).
34
gico como a própria consciência, para a qual dirige sua eterna pergunta,
esperando sempre a mesma resposta. Existe, portanto, uma configuração entre o
sujeito contemplado e o espelho que o contempla. Sendo o rio o espelho em
Abunã, é nele que o sujeito poético busca a consciência de si ao mirar-se no leito
do tempo da memória.
Nesse sentido, a narrativa A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa,
da mesma forma, constrói um sujeito que parece buscar-se tamm no leito do rio
do tempo, um pai de família que toma a decisão de se colocar dentro de uma
pequena canoa e isolar-se por tempo indefinido no rio. Essa atitude conota a
necessidade da personagem em conhecer as profundezas de seu próprio espírito,
se levarmos em consideração que nas culturas orientais, conforme Chevalier e
Gheerbrant
13
, o rio simboliza sempre a existência humana e o curso da vida. Na
narrativa, o filho conclui: Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma
parte. executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio.”
(ROSA, 2001, p. 80). Ao que parece, nos espaços de si mesmo, de sua busca
existencial.
No poema em análise, para além do espaço-tempo, dentro da paisagem
natural, o rio condiciona o sujeito contemplador o próprio passado. O reencontro
com o rio provoca um resgate do que foi o menino do doce contato com as águas
correntes do rio, possibilitando ao homem retornar às raízes, à infância, fazendo-o
reconhecer-se, encontrar a si mesmo, ajustar-se no espaço e no tempo, o que
parece ser possível somente pela imagem refletida no espelho d`água, isto é,
pelas águas da meria, que remetem o homem ao passado, levando-o ao
menino, ao mesmo tempo em que trazem o menino ao presente, através das
lembranças do homem. Assim, um e outro são resgatados.
Essa interpretação aponta para Eliade (1991, pp. 151-152) ao dizer que “no
simbolismo das águas, o contato com a água supõe sempre uma regeneração: de
um lado, porque a dissolução é seguida de um ‘novo nascimento’, uma espécie
de batismo; de outro, porque a imersão fertiliza e multiplica o potencial de vida”.
Assim, na leitura aqui apresentada, o poema Abunã simboliza esse “novo
nascimento”, porque menino e homem renascem um e (no) outro, como que num
ritual de batismo nas águas do rio Abunã.
13
Op. cit., p. 782.
35
Essas imagens associam-se às apresentadas no texto de Ziraldo (1996),
Menino do rio doce, no qual tamm o menino feito de água cresce
acompanhando o curso do rio. Ao tornar-se homem, suas histórias confundem-se,
“pois que o rio tem a idade de quem brinca, vive ou morre no rio que, passando
sob a ponte, é o tempo feito de água”, é presença eterna na vida do menino.
Esse processo intertextual rompe as barreiras temáticas do território amazônida,
projetando o poema de Silvestre em um universo mais universal. Vejamos um
trecho do texto de Ziraldo:
O menino tinha certeza
de que havia nascido
no dia em que viu o rio.
Na sua memória
não havia nada antes daquele dia.
O menino amou o rio
Pois acreditou que o rio
Havia também nascido
No dia em que ele o viu.
O menino olhava o rio: o rio era seu irmão.
Em Abunã, o leitor pode entrever uma outra condição do sujeito
amazônida: o sentimento de identificação e de pertencimento em relação a um
espaço onde o rio é elemento de relevância na vida da população. Ao tomá-lo
como material poético, o autor transfere para o campo da linguagem imagética um
elemento concreto da realidade geofísica e sociocultural de seu território,
proporcionando ao leitor uma visualidade semelhante à atitude contemplativa e
devaneante, no dizer de Loureiro (1995), o que é inerente a muitos sujeitos
imersos na região, que o rio constitui-se como um dos componentes naturais
mais presentes na paisagem e na vincia do povo da Amazônia. Portanto, o rio
surge no poema não apenas como elemento da paisagem, mas como um
referencial de construção de identidade para o sujeito poético.
Nesse sentido, o diálogo que a voz poética de Abunã estabelece com a
realidade, apesar de ainda trazer um referencial da natureza como temática,
distancia-se daquele delineado pelas vozes que se instauraram e cristalizaram na
história da produção discursivo-literária na e sobre a Amazônia a exuberância da
36
floresta e a abundância das águas como algo que minimiza o homem
14
, porque
reflete um projeto de sociedade fundamentada no dinamismo do percurso
histórico ao longo do século XX, quando os elementos da natureza, como o rio e a
floresta, aos poucos foram deixando de representar entidades desconhecidas e
ameaçadoras para o homem da Amazônia.
Sendo outras as representações culturais, as relações sociais, a
organização política e o panorama econômico da sociedade acreana no cenário
local e nacional, Abunã, enquanto poesia, traduz, de certo modo, uma nova
formulação de identidade para nosso povo, porque, como linguagem artística,
recria a realidade acompanhando a dinâmica do tempo e do espo, espelhando
a constante volubilidade e moncia do mundo e das coisas, alternado entre o
que já foi (passado da voz poética/passado do sujeito amazônida), o que é
(ambos à procura de identificar-se na interioridade de si e na exterioridade do
real) e o que será (busca de um porvir na medião entre o silêncio do passado e
a voz do presente). Em Abunã, a dinâmica entre presente e passado o homem
do presente busca-se no menino do passado sugere certa desaceleração do
ritmo do tempo, dada pelo momento de silêncio reflexivo por parte do sujeito que
se mira nas águas do rio. Essa idéia de desaceleração do ritmo do tempo está
expressa tamm no ritmo do poema, que se alterna entre o som e silêncio, entre
o movimento e a pausa.
no poema dois fatores que desaceleram o ritmo, exigindo do leitor, no
momento da leitura, pequenas pausas ou paradas, que exercem um papel
intimamente ligado ao movimento inteiro da significação do poema. Um desses
fatores rítmicos é o fato de os versos estarem dispostos em espécies de blocos.
Os dois primeiros formam um bloco: O menino e o rio/ miram-se; o segundo e o
terceiro formam outro bloco: Abunã espelho d’água/ e do tempo; o quinto bloco:
lava o homem, isolado, compõe mais um bloco; e os dois últimos versos o último
bloco: Resgata um e (no) outro. Cada bloco abriga uma pausa que deságua no
silêncio final do segmento rítmico.
O outro fator que desacelera o ritmo da leitura é a presença dos travessões
e o uso dos parênteses isolando e enfatizando a contração no no último verso.
Isolando o espelho d’água e do tempo, os travessões desaceleram o movimento
14
Silva, 2002, p. 55.
37
rítmico da leitura parecendo também suspender temporariamente o movimento
das águas do rio para refletir melhor a imagem no menino/homem. Os
parênteses, ao isolar a contração no, colocam-na em segundo plano, numa
espécie de silêncio momentâneo, sugerindo que primeiramente o rio resgata
menino e homem, um e outro o menino que ficou isolado no passado, nas teias
da memória, e o homem que se encontra isolado em si mesmo, num mundo onde
talvez o se reconheça , para depois, num momento posterior, integrá-los
num só ser, um no outro, resgatados e renovados através do espelho d’água.
As pausas provocadas por esses sinais de pontuação e pela blocagem dos
versos assumem uma função abertamente semântica, convergindo para a
unidade significativa do poema, porque cada pausa, gráfica ou virtual, suspende o
tempo e deixa no ar um momento de expectão enquanto o rio da memória
desemboca no silêncio e produz eco no estado reflexivo do menino/homem
enquanto mira-se na água, tendo-se assim a breve impressão de que um rosto,
uma identidade emerge no poema, porque o homem busca nas águas doces do
rio a imagem perdida do menino que fora um dia, para renovar-se em um novo
ser, talvez dotado de certa inocência e doçura própria da infância. Nessa
perspectiva, a instância poética tira do passado uma nova existência, um novo
ser, mas não do passado do tempo cronológico, e sim de um passado cujas
dimensões míticas atualizam na memória o modo de ser da infância gravado no
inconsciente do homem refletido no espelho d’água.
Apesar da forte presença de pausas alternando som e silêncio e
desacelerando o movimento do poema, o ritmo não se torna monótono porque
uma alternância de tonicidade e atonicidade dentro dos grupos silábicos que
formam as unidades rítmicas, sendo que ora a sílaba tônica recai no interior do
verso, ora no início, e o número de sílabas fortes varia a cada verso. Vejamos:
O meNIno e o Rio 2
MIram-se 1
AbuNÃ – esPElho D`Água 3
E do TEMpo – 1
LAva o HOmem 2
ResGAta 1
UM e (no) OUtro. 2
38
A numeração indicada marca quantos segmentos rítmicos há em cada
verso, variando-se alternadamente entre um e três, dentro do seguinte esquema:
2, 1, 3, 1, 2, 1, 2. Essa variação torna o ritmo ainda mais dinâmico porque uns
segmentos são mais lentos e outros mais rápidos, sendo este andamento
auxiliado pela métrica irregular (número diferente de sílabas poéticas para cada
verso), que alterna versos curtos, de apenas uma sílaba, com versos um pouco
mais longos. Assim é que as pausas, a irregularidade métrica, a disposição
assimétrica de momentos fortes e fracos vão permitindo uma riqueza rítmica ao
poema, embora com menor sonoridade, devido a ausência de rimas (versos
brancos). Essa variação rítmica sugere a própria variação de velocidade da água
do rio, que ora corre mais aceleradamente, ora mantém-se numa certa lentidão,
dependendo do relevo e de outros fenômenos geofísicos.
E Voz distante, o que nos diz sobre as imagens das águas e da poética de
Silvestre?
Voz distante, quase silêncio
Silencio
Rio afogando os rostos, espelho
Águas mansas correndo
Rostos do passado
Dois espelhos boiando
A imagem do rio volta a materializar-se como temática nesse poema. O
leitor novamente poderá observar como são desenhadas, através desse espelho
líquido, no qual as imagens não se apagam, as vozes cotidianas do sujeito
poético, uma vez que elas se dispersam nas lembranças do leito do tempo, como
se a movência das águas acompanhasse a movência da vida.
A presença do rio, veia temática de Voz distante quase silêncio, é uma
constante na produção artística amazônica. Nessas plagas, sempre foi marcante
a necessidade das águas fluviais como recurso vital para as atividades
domésticas e para o cultivo de subsistência, além de importantes vias de tráfego.
Loureiro
15
afirma que
15
Op. cit., p. 121.
39
os rios na Amazônia constituem uma realidade labiríntica e
assumem uma importância fisiográfica e humana excepcionais. (...)
Dele dependem a vida e a morte, a fertilidade e a carência, a
formação e a destruição de terras, a inundação e a seca, a
circulação humana e de bens simbólicos, a política e a economia, o
comércio e a sociabilidade. O rio está em tudo.
Assim como Loureiro, muitos outros pesquisadores, estudiosos e
escritores, reconhecendo a singular relevância dos rios na vida do povo
amazônida, se debruçaram sobre a temática, fazendo registros, tanto científicos
como literários, das particularidades dessas águas. Leandro Tocantins, só para
citar um dentre tantos, em sua obra O rio comanda a vida (1952), apresenta um
estudo da realidade do homem e da região, dando destaque para a presença
marcante dos rios no contexto da vida na Amazônia: “Nos rios abre-se um cenário
de terras e de florestas. A Amazônia nasce, desenvolve-se, perdura, segundo o
evangelho escrito pelo rio.” (p. 277). O autor declara, numa voz poética e quase
profética, que na Amazônia “a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do
rio, e a água uma espécie de fiador dos destinos humanos.” (p. 278).
No poema em análise, a presença do rio cria imagens ligadas ao espelho
d’água, no qual o sujeito poético mira suas reminiscências. O signo rio traz aqui,
como em Abunã, a representação da memória, pois é por meio dele que o sujeito
recupera simbolicamente as experiências de um tempo vivido, representadas
pelos rostos do passado que, por um processo de semiose, como aponta
Peirce, retornam ao presente como imagens refletidas no espelho líquido, isto é,
como lembraas recuperadas através da memória. Se as águas que correm no
leito do rio, assim como os eventos vividos, têm sua movência sempre numa
mesma direção, não voltam, pois tanto o curso das águas como o curso da vida é
inexorável,ão para frente, contínua e linear, o curso da memória é um eterno ir
e vir. Por isso, sendo impossível na materialidade do real voltar ao tempo
transcorrido, em Abunã, isso se torna possível a partir da transposição metafórica
do signo rio representando a memória, cuja ação de “afogar os rostos do
passadorepresenta, num processo de semiose, o ato de jogar no esquecimento
lembranças de vivências do sujeito.
Esse processo semiótico pode ser realçado em Bachelard (2002) quando
explica que “uma função psicológica essencial das águas é absorver as sombras,
oferecer um mulo cotidiano a tudo o que, diariamente morre em s” (p. 58), ou
40
seja, “não é uma morte que nos leva para longe com a corrente, é a lição de uma
morte imóvel, de uma morte em profundidade, de uma morte que permanece
conosco, perto de nós, em nós(p. 72). A imagem do afogamento dos rostos
Rio afogando os rostos, espelho representa, portanto, uma espécie de
sepultamento do próprio sujeito, pois a correnteza do tempo, ao levar os eventos
passados para o fundo das águas da memória, afoga também o sujeito cuja
existência condicionou-se a tais eventos.
O renascimento do sujeito poético é simbolizado pelo último verso do
poema dois espelhos boiando que representa o reflexo dos próprios olhos do
sujeito boiando na superfície das águas depois dos rostos afogados. O rio, ao
afogar as sombras do passado, como num ritual, lava o sujeito, renovando sua
alma, agora refletida nas águas através dos olhos, o que nos leva à lebre frase
de Leonardo Da Vinci: Os olhos são o espelho da alma”, sentença arraigada na
tradição da cultura popular. Essa interpretação encontra apoio em Chevalier e
Gheerbrant, quando esclarecem que “o espelho, segundo a tradição do
hinduismo, simboliza a “sucessão das formas, a duração limitada e sempre
mutável dos seres”
16
. Daí justificar-se a mutação do sujeito poético numa nova
identidade após materializar-se na superfície das águas a imagem dos dois olhos
boiando, que espelho não tem como única função refletir uma imagem;
tornando-se a alma um espelho perfeito, ela participa da imagem e, através dessa
participação, passa por uma transformação.
17
Desse modo, em Voz distante quase silêncio a água apaga a história, pois
restabelece o ser num estado novo
18
, ou seja, a memória (rio) redireciona as
lembranças (os rostos do passado) ajustando-as à percepção da atual da
consciência do sujeito que as processa mediante os novos eventos, as novas
experiências, porque ele em si já é outro. Essa leitura corrobora o dizer de
Heráclito
19
quando anuncia que “não se pode banhar duas vezes no mesmo rio”,
porque tanto o rio como nós mesmos estamos em constante mutação, nunca
somos os mesmos, e cada mudança representa simbolicamente morte e
16
Ibidem, p. 392.
17
Idem, ibidem, p. 396.
18
Idem, ibidem, p. 18.
19
Apud CHAUÍ, op. cit., p. 105.
41
renascimento. Não nos banhamos duas vezes no mesmo rio porque, em sua
profundidade, o ser humano tem o destino da água que corre
20
.
Daí a relação da memória com o renascimento do sujeito, porque
... lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com
imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A
memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da
sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no
inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem
construída pelos materiais que estão, agora, a nossa disposição,
no conjunto de representações que povoam nossa consciência
atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um antigo
fato, ela não é a mesma imagem que experimentamos na
infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque
nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos
juízos de realidade de valor. O simples fato de lembrar o
passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de
um e de outro, e propõe sua diferença em termos de ponto de
vista. (BOSI, 1994, p. 55)
As águas do rio, sempre correntes, em Abunã, são mansas águas
mansas correndo o que sugere ao leitor que o sujeito poético contempla-as
longe da fonte do rio, por isso o também silenciosas, porque o rio, quanto mais
longe de sua fonte, mais silencioso torna-se. Sua voz baixa, progressivamente, do
murmúrio ao silêncio, é uma voz distante, quase silêncio que proporciona a
meditação, o devaneio e o reflexo, razão por que o sujeito poético também
silencia Silencio concentrando-se na miração das imagens refletidas no
espelho d’água.
As águas calmas dos rios significam a paz e a ordem
21
. Novamente esse
processo de leitura aqui apresentado é referendado nas idéias de Bachelard
22
ao
afirmar que se o olhar das coisas for um tanto suave, um tanto grave, um tanto
pensativo, é um olhar da água. Então, se o sujeito de Voz distante quase silêncio
silencia ao mirar as imagens refletidas no espelho d’água, isso demonstra que
seu olhar, tal qual o olhar do sujeito de Abunã, é não só contemplativo, mas,
sobretudo, reflexivo, portanto líquido, é o olhar de que fala Bachelard.
Essa idéia de silêncio está implícita na própria estrutura rítmica do poema em
análise, o que pode ser notado, por exemplo, pelo uso do ponto final no segundo
20
Bachelard, op. cit., p. 6.
21
Chevalier e Gheerbrant, op.cit., p. 19.
22
Op.cit., p. 33.
42
verso silencio. Aí o ponto marca uma pausa rítmica, um silêncio momentâneo,
recurso que concorre para o reforço do sentido anunciado pelo próprio signo que
compõe o verso: silencio, construindo-se assim a imagem do silêncio, que em si é
a própria suspensão de todo e qualquer movimento. Esse jogo com o som e com
o sentido dos signos “silêncio” e “silencio” corrobora a assertiva de Fernando
Paixão quando diz que a linguagem na poesia contém uma polaridade essencial
em que surge a imagem: silêncio/palavra
23
. Também a quase ausência de artigos,
as vírgulas no primeiro e terceiro verso, a falta de elementos conectores
encadeando as idéias, tudo isso torna a leitura entrecortada e o ritmo arrastado,
pausado, em certos momentos, silencioso.
Os verbos usados na forma nominal gerúndio afogando”, “correndo” e
“boiando” vão produzindo aos ouvidos do leitor a sensação de um som que se
prolonga, sugerindo que a ação do tempo sobre o sujeito poético não pára, pois o
fluxo temporal vai incessantemente imprimindo à condição humana novas
mudanças, simbólicas mortes e ressurreições, realidade metaforizada no poema
pela imagem do rio afogando os rostos.
Voz distante, quase silêncio apresenta, como Abunã, composão livre,
distanciando-se do metro fixo e de qualquer esquema de rima. O ritmo é solto e
assimétrico, levando o leitor a sentir a musicalidade pela sensibilidade que a
mensagem poética nele desperta e não pela combinação laboriosa de elementos
tricos, sonoros e rítmicos. Esse desprendimento formal é também percebido
nos poemas Cicatriz e Todos os rios navegam, que também encontram no signo
rio um elemento metafórico para a construção da imagem interior do eu poético
perpassada pelo tempo da memória. Penetremos então na leitura de Cicatriz e
Todos os rios navegam no capítulo que segue.
23
Op. cit., p. 86.
43
A memória é um elemento
essencial do que se costuma
chamar identidade, individual ou
coletiva, cuja busca é uma das
atividades fundamentais dos
indivíduos e das sociedades de
hoje, na febre e na angústia.
Le Goff
História e memória
44
III - A MERIA COMO ESPAÇO DE IDENTIDADE
Neste capítulo analiso os poemas Cicatriz e Todos os rios navegam,
procurando mostrar como esses textos, simbolicamente, representam a
identidade do sujeito por meio da memória, e como esse mesmo sujeito traduz a
natureza afetiva de suas vivências na relação com o meio, com o outro e consigo.
A análise dos dois poemas complementa o estudo aqui desenvolvido, mais uma
vez demonstrando como, na poesia de Silvestre, o sujeito poético, em suas
relações com os outros e com os espaços, constrói a sua memória identitária não
apenas enquanto sujeito amazônida, mas como um sujeito que é tamm
universal.
Os dois poemas, Cicatriz e Todos os rios navegam, expressam-se por meio
de uma linguagem lírica, tecida de imagens que revelam a proximidade do sujeito
poético em relação ao meio, aos outros e a si mesmo, sempre reatualizando a
memória por meio de reminiscências. Para fundamentar a análise, apoio-me ora
no processo de semiose da teoria peirciana, ora nos discursos sobre identidade,
que enfocam a importância do espaço social na formão de um construto
identitário do sujeito. Na leitura analítica dos textos busco ainda demonstrar como
o percurso discursivo se articula com a musicalidade, uma das características
fundamentais da poesia, construindo a unidade simbólica do poema.
Comecemos por Cicatriz.
CICATRIZ
Para Saulo Ferrante
Mais uma vez em tantas vezes
ouvirei as cigarras
Longe.
Às tardes, o sol descerá sobre as matas
e os rios correrão
em minhas veias e retinas
Indomáveis.
O canto melancólico dos pássaros,
o calor das tardes selarão as noites
Sempre.
E a cidade teimará
perpétua tatuagem na memória.
45
O poema es organizado em uma única estrofe de doze versos, sendo
possível, porém, perceber que há uma certa divisão das linhas poéticas em
blocos, cada um encerrado por um ponto final. No total, são quatro blocos; o
primeiro, composto por três versos, sugere que o sujeito vive uma recorrente e
amiúde rememoração de algo do qual ele se encontra distante; no segundo e
terceiro blocos, as imagens conduzem o leitor para uma imediata visualizão do
objeto da rememorão, isto é, as paisagens, e para a confirmão de que elas
serão sempre lembradas pelo sujeito poético. O último bloco, um dístico, ratifica a
idéia contida nos anteriores, isto é, reafirma a persistência das imagens que vão
perpetuamente surgindo e ressurgindo na memória do sujeito, qual uma tatuagem
na pele, que não se apaga com o tempo, remetendo dessa forma à carga
semântica contida no signo que intitula o poema, cicatriz, cuja imanência é a
inexorabilidade ante o tempo.
Quanto à métrica, cada verso possui um número diferente de sílabas
poéticas. Observemos os três primeiros versos:
Mais / u/ma / vez / em / tan/tas / ve/(zes)
Ou/vi/rei as / ci/gar/(ras)
Lon/(ge)
É visível como o metro varia de verso para verso. No primeiro oito
sílabas poéticas (contam-se as sílabas até a última tônica); o segundo é menor,
com cinco sílabas; e último verso é ainda bem menor, compondo-se de uma única
sílaba poética. Essa metrificação irregular está presente nos doze versos do
poema, produzindo um contraste com a própria idéia de regularidade da
lembrança na mente do sujeito, que ele recorda mais uma vez em tantas vezes
das coisas da cidade, como se as recordações fossem reiteradas simetricamente
em sua memória.
Quanto à acentuação, não obedece às regras métricas clássicas, isto é, os
acentos não são fixos. Vejamos:
Às TAR/des, o sol desceRÁ/ sobre as MA/(tas)
e os RI/os correRÃO
em minhas VEI/as e reTI/(nas)
IndoMÁ/(veis).
46
Nota-se que a alternância de tonicidade e atonicidade dentro dos grupos
silábicos que formam as unidades rítmicas não segue o mesmo esquema, que
o acento nico de cada segmento rítmico recai em posição diferente em cada
verso. Mesmo porque o número de sílabas métricas dos versos, como
demonstrado acima, não é regular. Essa liberdade de cadência que torna o ritmo
do poema solto e assimétrico, característica marcante na produção poética do
Modernismo, se ajusta ao sentido de liberdade próprio das lembranças, que fluem
em ritmo livre e alternado nos interstícios da memória do sujeito.
Não se percebe no poema a presença de rimas encadeando os versos e
dando a impressão de maior fluência à leitura. No entanto, o leitor o é privado
de sentir a musicalidade do poema devido a essa ausência, pois, como uma
forma de compensá-la, tem-se a aliteração dos fonemas consonantais sibilantes
(/s/ e /c/ - fricativas alveolares surdas e /z/ - fricativa alveolar sonora), formando
uma constante sonora ao longo do poema, conferindo-lhe encadeamento,
sobretudo porque a maior parte da ocorrência da fricativa /s/ aparece como
indicador de plural, o que torna o ritmo mais solto e deslizante, além de provocar
a sensação de prolongamento dos versos. Observemos o efeito aliterativo
sibilante provocado pela recorrência dos fonemas /s/ e /c/ no segundo bloco de
versos do poema:
ÀS tardeS, o Sol deSCerá Sobre aS mataS
e oS rioS correrão
em minhaS veiaS e retinaS
IndomáveiS.
No bloco acima a fricativa /s/ se repete por doze vezes, estando presente
nos quatro versos, comprovando-se assim as constatações feitas no parágrafo
anterior. A substância acústica decorrente das recorrências dos fonemas
sibilantes ao longo das linhas poéticas de Cicatriz, ao produzir sensação de
leveza e prolongamento do tecido acústico do poema, concatena-se com a idéia
das recordações da cidade deslizando e se alongando na memória do sujeito
poético. Desse modo, coaduna-se na tessitura dos versos valor sensorial e valor
expressivo num todo significativo, construindo-se a unidade do poema.
Ainda a quase auncia de pontuação contribui para a fluência da leitura, já
que não paradas ou interrupções prolongadas. Igualmente a ausência de
47
inversões na ordem dos vocábulos e a linearidade nas construções sintático-
semânticas favorecem a fluidez do ritmo, pois o leitor não se depara com
novidades ou estranhezas que lhe desviem do percurso natural da leitura.
Verifica-se, portanto, que o poema é de composição livre, pois não
obedece a nenhuma regra preestabelecida quanto ao metro, à posição das
sílabas acentuadas em cada verso nem à presença ou regularidade de rimas.
Essa assimetria do plano de expressão, que permeia toda a estrutura formal do
poema, acaba por constituir um contraste com a composão das imagens
construídas simetricamente no que se refere à combinação harmoniosa dos
elementos naturais cigarras, sol, matas, rios, ssaros, organicamente
equilibrados, emoldurando imageticamente uma paisagem telúrica em que os
elementos terra são colocados em primeiro plano nas reminiscências do sujeito.
Ao mesmo tempo em que privilegia os elementos naturais da paisagem
como matéria das lembranças evocadas, o poeta valoriza a plasticidade das
imagens arquivadas na memória o sol descendo sobre as matas, os rios
correndo, as tardes quentes cedendo ao cair da noite – combinando a visualidade
à sonorização de signos que sugerem os ruídos presentes na natureza – o
cricrilar das cigarras, o canto dos pássaros, o correr dos rios conjunto sinfônico
que proporciona ao leitor uma experiência sensorial auditiva. Esse jogo
associativo entre plasticidade e sonoridade faz do poema Cicatriz um texto
marcadamente lírico.
Para compreender melhor a cadeia relacional entre memória, imagem e
reminiscência no poema de Silvestre, busquemos a relação que Aristóteles
estabelece entre estes três conceitos. Ross (1987, p. 51) explica que Aristóteles
distingue a memória atual contínua e a recordação do que já está completamente
esquecido da reminiscência. Para o pensador grego, a memória referencia o
passado, o tempo e o imaginário por meio da construção de imagens, por isso, na
concepção aristotélica, o se pode conceber memória sem imagem, a que ele
chama de imagem mnemônica. Assim, a persistência da memória se pela
elaboração e conservação das imagens, as quais o sujeito pode recordar,
atualizando o que foi esquecido, o que se encontra adormecido em algum arquivo
da memória. A essa recordação ou atualização, que se dá com ou sem esforço,
do que está ausente da consciência, é que Aristóteles define como sendo
reminiscência.
48
Complementando as elucidações de Ross sobre a memória para
Aristóteles, Zumthor (1993, p. 140) ratifica que, segundo conceão aristotélica, a
memória humana se distingue da reminiscência, estando a primeira ligada à alma
sensível, e a segunda, à alma intelectiva. Desse modo, é possível afirmar que em
Cicatriz a memória da cidade liga-se à alma sensível do sujeito, porque se
relaciona com a percepção sensorial da realidade experimentada, enquanto as
reminiscências afloradas compõem a alma intelectiva, porque o sujeito
regularmente atualiza, por meio de processos seletivos e associativos, somente
os elementos que lhe são significativos dentro do arquivo mnemônico referentes à
cidade, já que a reminiscência “reside no fato de os movimentos deixados nos
nossos órgãos pelas percepções tenderem para se suceder segundo uma ordem
regular e seletiva” (ROSS, 1987, p. 151).
Em Gilson (1995, p. 77), seguindo Aristóteles, encontramos novamente o
estudo da memória relacionado à alma. O autor afirma que a alma possui três
faculdades: a imaginação, o intelecto e a memória. A imaginação é uma faculdade
irracional movida pelo imaginável, este correspondendo ao que cai no domínio da
imaginação, isto é, são as próprias imagens apreendidas pela imaginação. A
memória é a faculdade que conserva a lembrança destas imagens, podendo
assim reproduzi-las. Por vezes, a lembraa das imagens encontra-se imersa no
esquecimento, então a memória consegue recuperá-la, acontecendo o
fenômeno da reminiscência, que é todo aquele conhecimento que, procedente
dos imagináveis ao intelecto, é trazido à tona pela memória.
Tomando as idéias de Gilson sobre as três faculdades da alma, pode-se
dizer que em Cicatriz a cidade é o imaginável para o sujeito porque ela é imagem
apreendida pela imaginação. A cidade também se faz memória porque se
mantém conservada como lembrança para o sujeito poético, apesar de ele
encontrar-se longe signo este que funciona como um indicador de separação
em termo de tempo e espaço. Quando o sujeito mais uma vez em tantas vezes
lembra das coisas da cidade um constante retorno à sua memória, retirando
a imagem mnemônica do campo do esquecimento os sons ainda ouvidos, o
clima ainda sentido, o movimento das paisagens ainda visualizado e trazendo-a
ao intelecto por meio da reminiscência. Tem-se assim o espaço da cidade como
espaço da imaginação e da memória do sujeito poético.
49
Para Merleau Ponty, o espaço é capaz de exprimir a condição do ser no
mundo, e a memória escolhe lugares privilegiados de onde retira sua matéria, sua
seiva
24
. Em Cicatriz, o sujeito tem a cidade da qual ele distancia como o espaço
que exprime a sua condição do ser, mas num processo seletivo, sua memória, por
meio das reminiscências, privilegia, dentre todos os elementos da imagem
mnemônica, apenas os aspectos não humanizados do lugar, que se mantêm
reavivados na memória como um conjunto de impressões sinestésicas
sensações sonoras, táteis e visuais – experimentadas na cidade recordada.
O fato de as lembranças afetivas ainda despertarem no sujeito poético
seus sentidos sugere ao leitor que a cidade representa um espaço onde esse
sujeito viveu acontecimentos significativos, o que podemos chamar de experiência
se tomarmos o dizer de Larrosa (2004, p.154) quando afirma quea experiência é
o que nos passa, ou o que nos acontece, ou que nos toca. o o que passa ou
que acontece, ou o que toca.” Essa idéia remete à possibilidade de que o sujeito
tenha vivido na cidade experiências tocantes, talvez por isso esse espaço ficou-
lhe como lembranças para sempre gravadas em sua memória, tal qual uma
tatuagem, uma cicatriz na pele.
As recordações dão-se não numa atmosfera de conotação nostálgica, mas
numa esfera afetiva em que as imagens são reintegradas continuamente num
quadro de reconhecimento pessoal do sujeito em relação a um espaço no qual ele
se reconhece e se sente pertencer, tomando aqui Haesbaert (1999), para quem a
idéia de pertencimento traduz-se no fato de o sujeito adotar um território e nele
acionar suas representações e referenciais sócio-culturais, re-elaborando sua
auto-imagem a partir do diálogo com esse lugar. Desse modo, a cidade
rememorada pelo sujeito poético constrói-se como um território em que ele
encontra-se reconhecido porque a ela sente-se pertencer.
A cidade é uma totalidade estruturada que traz um sentido de identidade
não àqueles que nela vivem, mas, sim, aos que vivem-na. É um lugar que permite
a dialética da partida e do retorno, da lembraa e do esquecimento. Os que dela
partem, podem ou não levá-la consigo. Se o sujeito sente a ela pertencer,
buscará, de algum modo, a ela retornar, porque lá estão vivências
experimentadas que lhe imprimem referencial identitário. O reencontro com o
24
apud Ecléa Bosi, Memória e sociedade, 2002, p. 57.
50
ambiente familiar pode se dá no campo da materialidade, quando o sujeito retorna
fisicamente ao lugar de onde partira, ou no campo psíquico, quando o retorno dá-
se por meio da memória.
É no campo da memória que se situa o reencontro do sujeito poético de
Cicatriz, pois ele vive uma espécie de eterno retorno à cidade por meio da
rememoração constante, sugerindo ao leitor que o espaço descrito constitui-se
como referência de identidade, por isso mesmo não lhe cai no esquecimento, o
que se acentua pelas escolhas semânticas dos últimos versos: selar, sempre,
teimar, perpétua, tatuagem, que se combinam com o signo que intitula o poema –
cicatriz para mostrar que a cidade está na mente, na maneira de perceber
(sensorial e cognitivamente) o mundo.
Ainda sobre o título do poema, o signo cicatriz possui em sua estrutura
morfológica duas ocorrências de sons consonantais sibilantes /c/ inicial e /z/
final e duas ocorrências do fonema vocálico /i/. Considerando-se que “os sons
vocálicos e consonantais podem sugerir idéias e impressões, expressar
sentimentos e provocar sensações de agrado ou desagrado” (MARTINS, 1997, p.
26), a sugestão fônica advinda da recorrência desses fonemas em duas das três
sílabas poéticas que compõem o signo é bastante expressiva, porque a sensação
de som agudo e prolongado das sibilantes une-se à sonoridade impactante da
vogal /i/ produzindo uma seqüência acústica aguda, longa e penetrante, que se
faz sentir mais intensamente, assim como são sentidos os sons constantes e
penetrantes da cidade, devido à movimentação.
O substrato sonoro do signo cicatriz se ajusta à sua carga semântica, pois
a sensação de som agudo e prolongado remete à dor (aguda e penetrante), ao
sofrimento (longo). No entanto, essa idéia de dor e sofrimento não está explícita
no poema, constituindo um paradoxo com a sugestão de que a cidade é cicatriz,
pois a relação que o sujeito parece estabelecer entre esses dois signos é a de
que cicatriz, por ter a propriedade de fixar-se na pele, perdurando longamente, se
assemelha à cidade, que atravessa, como lembrança, o tempo, fixando-se na
memória do sujeito. Ambas resistem ao tempo.
Sabendo que os discursos se interpenetram, compondo uma unidade
dialógica dentro de uma multiplicidade discursiva, o texto de Silvestre atualiza um
discurso manifestado em produções literárias de outras esferas espaço-
51
temporais, a exemplo do poema A ilusão do migrante, de Farewell, obra stuma
(1996) de Carlos Drummond de Andrade. Comparemo-los:
A ilusão do migrante
Quando vim da minha terra,
se é que vim da minha terra
(não estou morto por lá?),
a correnteza do rio
me sussurrou vagamente
que eu havia de quedar
lá donde me despedia.
Os morros, empalidecidos no
entrecerrar-se da tarde,
pareciam me dizer
que não se pode voltar, porque
tudo é conseqüência de um
certo nascer ali.
(...)
Que carregamos as coisas,
moldura da nossa vida,
rígida cerca de arame,
na mais anônima célula,
e um chão, um riso, uma voz
ressoam incessantemente
em nossas fundas paredes.
Aqui, como em Cicatriz, o sentimento do sujeito poético em relão ao
espaço do qual se distancia não é de nostalgia, mas de pertencimento, pois seu
reconhecimento pessoal é imanente à terra de onde partira, ele está lá, nos
acontecimentos vividos, nos objetos tocados, na natureza experimentada, na
dialética das relações intersubjetivas, porque carregamos as coisas, moldura da
nossa vida... na mais anônima lula. E se, segundo Le Bossê (1999, p. 170), “o
lugar é reconhecido como uma sede uma fonte e refúgio, santuário e cadinho
de identidade”, tudo é conseqüência de um certo nascer ali, o foco identitário está
em um chão, um riso, uma voz, nos mínimos gestos manifestados.
um conceito comum divulgado pelos cientistas sociais de que o
migrante é um ser sem raízes: "O migrante perde a paisagem natal, a roça, as
águas, as matas, a caça, a lenha, os animais, a casa, os vizinhos, as festas, a sua
maneira de vestir, o entoado nativo de falar, de viver, de louvar a Deus... Suas
múltiplas raízes se partem..." (BOSI, 1983, p. 405). Todavia, nesse duplo partir,
52
deslocamento geográfico e distanciamento das raízes, a perda pode se fazer
completa em termos materiais e físicos, mas não em termos identitários, quando o
migrante, tomado pelo sentimento de pertencimento, mesmo distante do lugar de
onde partira, mantém-se preso a lembranças que o identificam com o que deixou
para traz, preservando, desse modo, suas raízes.
Essa capacidade de recordar, preservar e perpetuar um passado faz parte
de um sentimento identitário, este último encontra um local de expressão
privilegiada nos “lugares de memória”
25
, o que para o sujeito migrante será a
paisagem natal, as águas, as matas, as ruas, a casa, os vizinhos, as festas, a sua
maneira de vestir e de falar. Assim, pode-se conceber o cricrilar das cigarras, o
canto dos pássaros, o correr dos rios” como os lugares de memória do sujeito de
Cicatriz, e “o co, o riso e a voz” os lugares de memória do sujeito de A ilusão do
migrante. E como os lugares permanecem na memória e podem ser usados
novamente, muitas vezes,
26
esses elementos, por serem uma constante nas
lembranças do sujeito poético de CicatrizMais uma vez em tantas vezes e de
A ilusão do migrante ressoam incessantemente em nossas fundas paredes –,
denotam fazer parte de um sentimento identitário desses sujeitos, que os
recordam, preservando assim um passado.
Ao sair de sua terra, o sujeito experimenta um novo referencial identitário,
porque o lugar, carregado de valor e de sentido, é outro. Ao participar de práticas
simbólicas e discursivas contextualizadas em outra representação espacial, o
sujeito as articula àquelas que ressoam incessantemente em nossas fundas
paredes, ou seja, às práticas que repousam nos domínios da consciência e da
memória de cada um que busca um novo construto identitário a partir do
cruzamento das novas práticas com os traços de suas raízes, onde residem as
marcas de sua condição de ser. Isso parece justificar a interrogativa da voz
poética de que tenha se quedado morto no local de onde partira, já que agora, ao
cruzar os espaços através do tempo, o sujeito, distanciado de seu começo, já não
é o mesmo, por isso não se pode voltar.
Desse modo, os poetas Silvestre e Drummond expressam o sentimento
daqueles que atravessam as fronteiras de seu lugar natural, mas que retêm fortes
vínculos com seu lugar de origem, em contraste com seu passado e com a
25
Le Bossé, op. cit., p. 168.
26
Smolka, 1997.
53
possível ilusão de um rompimento concreto, essa ilusão de migrante
drummoniana, idéia exemplarmente configurada no poema Estrangeiro, de Efraim
Amazonas
27
, poeta situado no campo da produção literária amazônica, assim
como Henrique Silvestre.
Estrangeiro
Vejo o solo
o espaço
que não conheço.
Prédios bancos estátuas
rostos de homens absortos
no vão dessa cidade
onde não cresci
para decifrar-lhe a atmosfera
permeando cada ponto
ocluso de seus habitantes.
Vê-la é ver
algo que não sou
e nunca serei
com seus jardins perfumados.
Nem com esta capa
cobrindo inteiro o universo
da minha raiz
das flores que nascem de mim
e se espalham pelo corpo
e me falam sempre
de onde sou.
O termo estrangeiro designa, primariamente, o indivíduo que não é natural
do espaço ou território onde mora ou se encontra. No entanto, para os estudiosos
da identidade, estrangeiro é o sujeito social que, independente do lugar onde se
encontre fisicamente sua terra natal ou uma terra adotada –, não o reconhece
como referência de sua historicidade. Esse sujeito sente-se estrangeiro por não
cultivar e assimilar a tradição do grupo social onde se encontra, tendo-se a
idéia de o pertencimento à comunidade. O sujeito poético de o Estrangeiro é
estrangeiro nestas duas concepções, porque além de se encontrar fora do seu
território de origem, o se sente pertencer no vão da cidade onde não cresceu
Vê-la [a cidade] é ver/ algo que não sou/ e nunca serei.
27
Efraim Amazonas, Estação dos espelhos, pp. 12-13.
54
Numa relação dialógica, o eu poético constitui-se ao mesmo tempo como
um migrante desenraizado e um emigrante enraizado, porque sua condição de
estrangeiro revela um desajustamento ao espaço de adoção Vejo o solo/ o
espaço/ que não conheço – e ajustamento ao território de onde partiraNem com
esta capa/ cobrindo inteiro o universo/ da minha raiz/ das flores que nascem de
mim/ e se espalham pelo corpo/ e me falam sempre/ de onde sou. Este
sentimento de desajustamento/ajustamento denota um implícito desejo do eu
poético em voltar para o seu lugar de origem, pois suas representações e
referenciais sócio-culturais não são acionados no território de adoção, por isso
não lhe é posvel re-elaborar sua auto-imagem e nem re-formular a identidade a
partir do diálogo com a nova territorialidade, que a ela na se sente pertencer,
para retomar aqui a idéia de pertencimento de Haesbaert.
Apesar de esse desejo em voltar para o lugar de origem não se manifestar
nos sujeitos poéticos de Cicatriz e de A ilusão de migrante, há um ponto de
intersecção entre os três poemas, ou seja, a idéia de que, mais do que habitar um
território, somos habitados por ele, porque para sempre estamos impregnados de
sua substância.
Voltemo-nos agora para entender como o poema Todos os rios navegam
dialoga com Cicatriz ao trazer como imagens mnemônicas o rio, elemento
presente nos seis poemas em análise e que constitui um referencial de identidade
para a população local, por constituir-se em um aspecto pitoresco da paisagem
natural na descrição das terras acreanas. Em Cicatriz, o signo rio aparece
integrando um quadro paisagístico em que se apresentam outros elementos,
sendo ele apenas um entre os referentes da natureza que se relacionam com o
sentimento de identidade do sujeito poético. Em Todos os rios navegam o signo
rio constrói-se como um elemento metafórico, que não se situa na realidade
externa do meio e sim como matéria de composão da essência da imagem
interior do eu poético. É um texto de caráter filosófico, que leva à reflexão sobre a
identidade na alteridade.
Vejamos como Todos os rios navegam:
Todos os rios navegam
Em mim
Pessoas deságuam e partem
Os rios seguem
Em nós.
55
Para iniciar a análise do poema em tela, vamos antes ao significado do
verbete rio.
Rio: [Do lat. rivu (riu no lat. vulg.)]. Curso de água natural, de extensão mais ou menos
considevel, que se desloca de um nível mais elevado para outro mais baixo,
aumentando progressivamente seu volume até desaguar no mar, num lago, ou noutro rio,
e cujas características dependem do relevo, do regime de águas, etc.
28
Na metalinguagem do verbete acima interessa aqui primordialmente três
atributos do signo rio, quais sejam: sua movência, indicada pelos signos “curso” e
“desloca”; sua capacidade de aumentar de volume; e sua propriedade de
desaguar em outro veio de água. Esses atributos merecem atenção na análise do
poema porque o eles que permitem tecer uma cadeia de sentidos entre o signo
rio e o sujeito poético.
Primeiro, pensemos na imagem do rio como um organismo vivo, cuja
imanência é a movência, já que ele se mantém em curso permanente, criando
veios na terra por onde passa (processo que chega a criar estruturas
monumentais como canions). Essa estrutura imagética pode ser transportada ao
poema, no qual se acentua a dialeticidade de movimento do rio e das relações
interpessoais do eu poético no seu estar-no-mundo.
Da mesma forma que o rio, as pessoas igualmente percorrem um caminho,
um curso ao longo da vida, através do qual vão marcando sua passagem umas
nas outras, como os fios de água o fazem à terra. Isto pode se explicar pela
imagem de que os rios (que são vários, uma vez que várias são as relações
interpessoais que estabelecemos ao longo da vida) navegam e deságuam no eu
poético, também um curso de água que marca sua passagem nos outros.
Assim como os rios, que da nascente à foz vão aumentando
progressivamente seu volume de água, as pessoas, do nascimento à morte
(sobretudo quando ciclo de vida se completa com as quatro fases, da infância à
velhice) vão aumentado o volume de conhecimentos sobre si mesmas, sobre o
outro e o mundo a partir das experiências vividas nas trocas dialéticas com a
realidade exterior, ou seja, na relação sujeito e objeto. Por isso, todos os rios
navegam no sujeito poético, porque sentimentos e sujeitos vários nele deságuam,
com os quais mantém uma identificação, mesmo que provisória, que as
pessoas deságuam e partem.
28
Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0. 3 ed. São
Paulo: Editora Positivo, 2004.
56
Da mesma forma que o rio corre em seu curso adesaguar no mar, num
lago, ou noutro rio, misturando suas águas com outros veios, as pessoas
deságuam em nós, misturando suas experiências e conhecimentos aos nossos,
permeando os meandros de nossa existência com suas marcas, muitas
semelhantes a cicatrizes, porque se fixam profundamente na pele da memória.
Assim, avulta a imagem do curso inexorável do rio, criando os veios de memória
no eu poético, uma vez que os sujeitos, após desaguarem em nossas vidas,
partem para o mar, no poema, figuração eufemística da separação, de fim de
relação ou, em última instância, da morte, deixando em nós suas marcas. Daí, no
poema, o elemento rio manter vínculo com as lembranças das relações que se
estabelecem no percurso de vida do eu poético.
Recorrendo a Bachelard (2002, p. 7), quando diz que “a água é realmente
o elemento transitório. É a metamorfose ontológica essencial entre o fogo e a
terra. O ser voltado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma
coisa de sua substância desmorona constantemente”, é possível dizer que o eu
poético de Todos os rios navegam é esse ser voltado à água, porque enquanto
todos os rios navegam nele, ele próprio vai se metamorfoseando pelo processo
de descoberta do outro e do mundo, constituindo-se um novo ser a cada ponto de
intersecção na sociabilidade sua com os outros sujeitos, que o homem nunca
essó, e não seria o que é sem sua dimensão social (TODOROV, 1973, p. 360).
Assim o é desde nossa primeira infância, pois
...para a criança que acaba de nascer,
seu
mundo é o mundo, e o
crescimento é uma aprendizagem da exterioridade e da
sociabilidade; pode-se dizer, um pouco grosseiramente, que a
vida humana escontida entre dois extremos, aquele onde o
eu
invade o mundo e aquele onde o mundo acaba absorvendo o eu,
na forma cadáver ou de cinzas. E, como a descoberta do outro
tem vários graus, desde o outro como objeto, confundido com o
mundo que o cerca, até o outro como sujeito, igual ao eu, mas
diferente dele, com infinitas nuanças intermediárias... (idem, ibid.,
p. 360).
Importa, todavia, que no encontro das águas do sujeito com o objeto o
desmoronamento seja constante, mas nunca definitivo, uma vez que ao
desaguarmos uns nos outros, conservamos a subsncia de nossa história,
formas sociais e culturais, assim como os rios que deságuam nos oceanos sem
jamais deixar de ser rios porque eternamente se renovam ao brotar
57
incessantemente em sua nascente. Apesar do fato de não nos banharmos duas
vezes no mesmo rio, porque em sua profundidade, o ser humano tem o destino
da água que corre
29
, nós – enquanto eu e os rios que seguem em nós
enquanto o outro –, cada um, em sua alteridade, precisa conservar sua essência
para não perder o fio da identidade própria, ainda que ilusória.
O poema Como um rio, de Thiago de Mello
30
, é um texto exemplar para se
estabelecer um diálogo com Todos os rios navegam, no que se refere à questão
da subsistência de um eu que precisa se resguardar para não desaparecer ao
desaguar no outro. Comparemos a similitude dos discursos na metapoética da
água
31
de Silvestre e Thiago de Mello:
(...)
Como um rio, que nasce
de outros, saber seguir
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com águas grandes
do oceano sem fim.
Mudar em movimento.
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda
como um rio.
Da mesma forma que em Todos os rios navegam, tamm em Como um
rio a estrutura imagética do poema acentua a relação dialética entre o movimento
do rio e as relações interpessoais dos sujeitos sociais. Podemos então aqui
retornar aos três atributos do signo rio destacados no significado atribuído ao
verbete transcrito do dicionário Aurélio: a movência, a capacidade de aumentar de
volume e a propriedade do rio em desaguar em outro veio de água.
Os versos ...seguir/ junto com outros e mudar em movimento deixam
entrever, assim como no poema de Silvestre, a idéia de que a movência é
intrínseca ao ser humano, do mesmo modo que o é ao rio. Já os versos e
29
Bachelard, op. cit., pp. 6-7.
30
Thiago de Mello, A floresta vê o homem, p. 22.
31
Bachelard chama de metapoética da água a poesia em que a água é um suporte de
imagens e logo depois um aporte de imagens, um princípio que fundamenta as imagens. Na
metapoética, em toda sua profundidade, a água marca com seu signo indelével as suas imagens.
(op. cit., p. 12)
58
construir o encontro/ com águas grandes/ do oceano sem fim traduzem a
metáfora dos conhecimentos que adquirimos e dos saberes que construímos que
vão se avolumando ao longo do curso de nossas vidas por meio das experiências
vividas nas trocas dialéticas com o outro e com o mundo, formando-se assim um
oceano sem fim. A linha poética e noutros se prolongando, de Thiago de Mello,
corresponde aos versos Todos os rios navegam/ Em mim, de Silvestre, pois
ambos remetem à nossa capacidade de desaguar no outro, que também em nós
deposita suas águas, desdobrando-se ambos em seres compósitos, para usar
aqui o termo de Glissant (2005)
32
. Este autor, ao falar sobre a consciência diante
da realidade do mundo globalizado, uma comunidade nova que ele chama de
caos-mundo
33
, indaga:
Como ser si mesmo sem fechar-se ao outro; e como consentir na
existência do outro, na existência de todos os outros, sem
renunciar a si mesmo? Essa é a questão que perturba o poeta e
que este necessita debater quando está em sintonia com sua
comunidade, quando está em sintonia com a comunidade que
deve defender. (op. cit., p. 46).
Lendo Todos os rios navegam e Como um rio, poderia dizer que Silvestre e
Thiago de Mello comungam com a comunidade de poetas que se vêem em volta
de questionamentos como estes, pois seus poemas ora analisados demonstram,
cada um a seu modo e em seu estilo, a perturbação da qual fala Glissant. Em
Silvestre, percebe-se que não uma hierarquia entre o sujeito poético e os
outros sujeitos, e sim uma posição de igualdade, o que fica expresso
estruturalmente no poema pelo paralelismo das construções “em mim” e em
nós”. Os outros nos navegam ao mesmo tempo em que os navegamos, ou seja,
assimilamos e somos assimilados no processo de descoberta e aceitação da
alteridade. Já os versos Mudar em movimento/ mas sem deixar de ser/ o mesmo
32
Glissant fala de culturas compósitas em oposição ao que ele classifica como culturas
atávicas. As primeiras são as culturas que nascem da crioulização, isto é, de um processo
histórico-social em que os sujeitos imersos nessas comunidades vivem a dialética da diversidade
de raízes, línguas e culturas, sendo necessário, porém, para que essa “composição” se torne
legitimadora da alteridade, se estabelecer a relação e não a exclusão das múltiplas identidades. As
segundas baseiam-se ou na idéia de Gênese, isto é, de uma criação do mundo, ou na filiação, ou
seja, no elo contínuo do presente da comunidade com essa Gênese. As culturas atávicas, segundo
Glissant, sustentam, portanto, a idéia de que a identidade deva ser uma raiz única, fixa e,
intolerante com a diferença, não havendo assim o reconhecimento da outridade.
33
Para Glissant, nesse caos-mundo, ou mundo caótico, o poeta não mais se defronta com
um mundo organizado, como era a concepção clássica de sociedade, mas descobre que a
realidade, além de fragmentária, é simultânea e diversificada.
59
ser que muda/ como um rio, de Thiago, refletem a preocupação do poeta quanto a
permanência de um substrato de identidade num processo de contínuas
transformações, evitando-se quea descoberta, pelo ‘eu’, dos ‘eles que nele
existem seja acompanhada pela afirmação assustadora do desaparecimento do
‘eu’ no ‘nós’, característica dos regimes totalitários.” (TODOROV, op. cit., p. 366).
Podemos então dizer que os dois poetas amazônidas, Silvestre e Thiago
de Mello, inserem-se no pensamento de Glissant quanto à idéia de que
nos dias de hoje, essa é uma das tarefas mais evidentes da
literatura, da poesia, da arte, ou seja, a de contribuir, pouco a
pouco, para levar as humanidades a admitirem
"inconscientemente" que o outro não é o inimigo, que o diferente
não me corrói, que se eu me transformo em contato com ele, isso
não significa que me diluo nele, etc. No meu entendimento, trata-
se de uma outra forma de combate, diferente dos combates
cotidianos, e o artista, penso eu, me parece ser um dos mais
indicados para essa forma de combate. Porque o artista é aquele
que aproxima o imaginário do mundo... (op.cit., p. 69).
Num sentido inverso, isto é, na busca de aproximar o mundo do imaginário,
o poeta, enquanto artista, vale-se de uma linguagem simbólica que não é só
discurso, é, antes disso, estética, beleza. Por isso, o produto de sua criação, a
poesia, constrói-se pela íntima relação entre forma e conteúdo, expressão e
significação. No que tange a Todos os rios navegam, até aqui a análise centrou-
se em seus aspectos discursivos, mas há que se articular plano de expressão e
plano de conteúdo para se alcançar a unidade significativa do poema.
Repassemos então aos elementos formais, na tentativa de interligá-los aos
aspectos discursivos. Comecemos pela métrica.
Assim como em Cicatriz, a metrificação também é irregular em Todos os
rios navegam. Dos seis versos do poema, somente o segundo e o último
possuem o mesmo número de sílabas poéticas:
To/dos os/ rios/ na/ve/gam
Em/ mim
Pes/so/as/ de/sá/guam e/ par/tem
Os/ rios/ se/guem
Em /nós.
60
Todavia, ao contrário do que se em Cicatriz contraste entre a métrica
irregular e idéia de regularidade da lembrança na mente do sujeito –, aqui há uma
espécie de correspondência harmoniosa entre a assimetria métrica e a idéia de
irregularidade inerente ao rio, signo-chave dentro do poema porque é o elemento
de analogia entre o sujeito poético e os outros sujeitos. O rio, em sua natureza
física, é irregular na profundidade, nas dimensões de largura e no volume, que
suas características dependem do relevo, da firmeza do terreno e do regime de
águas. Além disso, também a sinuosidade torna-o ainda mais irregular, basta
verificar o significado do verbete sinuoso: [Do lat. sinuosu.] Adj. 1. Que apresenta
curvas irregulares, em sentidos diferentes; ondulante, tortuoso, flexuoso
34
.
No campo da tessitura visual, do mesmo modo é possível dizer que há uma
harmonia entre a assimetria da visualidade formal do poema e o signo rio. O
poeta cria um efeito de movimento irregular, sinuoso, semelhante ao do rio, ao
alternar entre um verso e outro a extensão de cada linha poética. Essa disposição
gráfica demonstra como o poeta soube combinar, no poema, percepção visual e
significação verbal. Observemos como o poema move-se ao sabor da
sinuosidade das águas do rio:
Conforme Candido (1983, p. 66), levando-se em conta que a poesia é feita
para os olhos na civilização atual, os poetas modernos passaram a valorizar mais
o efeito visual do que o sonoro. No caso do poema em tela, a visualidade é
valorizada não pelo seu arranjo gráfico, como também no nível da plasticidade
imagética, pois o leitor é levado a alcançar, com os olhos da imaginação,
ancorados pelos olhos da experiência, a imagem dos rios na natureza, sendo
navegados, percorrendo caminhos, desaguando em outro rio ou no mar. Há assim
uma articulação entre a sensação visual e a apreensão imaginativa da imagem do
rio no poema.
34
Holanda, Novo Dicionário Eletrônico Aurélio.
61
Essa dupla articulação da imagem do rio no poema nos leva à cadeia
triádica do signo peirciano. A palavra rio constitui-se enquanto signo porque o
leitor, ao ler e sentir o poema, a elege como uma entidade capaz de suprir o
contato direto com o que está ausente enquanto matéria dada pela realidade.
Essa matéria, que se torna presente pelo signo rio para o leitor, é o
representamen, é o perceptível apreendido instantaneamente pelo estado
primeiro de consciência presente e imediato do intérprete/leitor. “É o veiculo que
traz para a mente algo de fora”, segundo Pierce
35
. Aqui, o rio em sua substância
na natureza. Porém, a matéria assim apreendida transforma-se em forma no
instante em que é percebida, quando atinge nossos sentidos, porque é construída
na mente do intérprete/leitor por um processo de organização perceptiva
resultando numa idéia do objeto ausente. Desse modo, o rio configura-se como
objeto para o sujeito/leitor/intérprete.
Ao ler Todos os rios navegam, o intérprete/leitor busca interpretar, dentro
de suas potencialidades e conhecimento de mundo, as relações comparativas
que o poeta estabelece entre o signo rio e o sujeito poético, aproximando, por um
processo analógico, a imagem do rio, enquanto elemento que compõe a
paisagem natural conhecida e vivenciada por ele, e a do sujeito poético em suas
relações interpessoais com o outro. O resultado ou sentido alcançado pelo
intérprete nesse processo de pensamento analógico/semiótico é o interpretante,
que mantém juntas realidade do objeto em si e sua existência em nós. O
resultado da interpretação revela para o intérprete/leitor um novo signo, que não é
nem imagem do rio e nem o estado interior do sujeito poético, mas uma nova
imagem dada pela articulação da subjetividade e inteligibilidade do
sujeito/interprete/leitor no momento em que lê o poema e sente sua linguagem.
Voltando a Candido, este admite que, além de valorizar mais o efeito visual
que o sonoro, de modo geral a poesia moderna se apóia mais no ritmo do que na
rima, e esta aprece como vassala daquele
36
. Essa assertiva de Candido se ajusta
bem aos poemas de Silvestre, não somente aos selecionados para o corpus de
minha pesquisa o estudo até aqui realizado o comprova –, mas ao conjunto de
sua produção poética, o que pude constatar numa análise prévia quando no
momento de recorte do corpus.
35
rth, op.cit. p. 68.
36
Op.cit., p. 62.
62
Em Todos os rios navegam praticamente não há rimas encadeando os
versos, assim como em Cicatriz. No entanto, conforme demonstrado na análise
deste, essa quase ausência de rimas aqui não compromete o ritmo do poema
porque há outros elementos de expressividade rítmica que produzem efeitos
musicais, como a cadência, a métrica, a repetição de fonemas ou seu contraste.
Analisemos este último:
TodoS oS rioS navegam
Em mim
PeSSoaS deságuam e partem
OS rioS Seguem
Em nóS.
Percebe-se no poema, como em Cicatriz, uma constante sonora produzida
pela aliteração fonética da consoante sibilante /s/, fricativa alveolar surda,
encadeando as unidades signicas no interior do poema, sobretudo quando
aparece como indicadora de plural, o que torna o ritmo mais solto e deslizante,
remetendo à fluidez das águas dos rios e ao próprio curso da vida do eu poético,
além de provocar a sensação de prolongamento dos versos, da mesma forma que
as pessoas/rios prolongam-se pelos seus rastros/resíduo
37
umas nas outras: Os
rios seguem/ Em nós. O verso noutros se prolongando, de Como um rio,
corrobora essa idéia.
Outro fenômeno que ocorre na superfície sonora e que concorre para o
efeito rítmico em Todos os rios navegam é a repetição de fonemas marcantes no
interior dos versos. Vejamos:
Todos os rios navegam/ Em mim/ Pessoas deságuam e partem/
o os os os a e am em m m es/so/as e sa am e a em
Os rios seguem/ Em nós.
os os se em em os
Observa-se claramente que certos fonemas se repetem insistentemente
vogais: o, a, e; consoantes: s, m aparecendo ora isolados, ora juntos, formando
37
No pensamento de Glissant, todos s precipitamos em s mesmos os rastros/resíduo
de nossas histórias ofuscadas; é uma maneira opaca de ser si que deriva do outro.
63
uma seqüência fônica constante que mantém uma regularidade rítmica no interior
dos versos. Esses sons fonéticos são marcantes porque participam da
composição estrutural das palavras-chave que encerram o eixo significativo do
poema: rios, navegam, mim, deságuam, partem, seguem, nós, por isso sua
repetição acaba por tornar-se relevante, pois reitera no tecido sonoro o tecido
semântico das palavras-chave no poema.
Na teoria de Maurice Grammont
38
sobre a correspondência entre
sonoridade e sentimento, o r é considerado uma consoante líquida, que transmite
a impressão de fluidez, escorregamento; a vogal i pode despertar o sentimento de
doçura e leveza; e a vogal o, entre outros efeitos, o de barulho surdo. Na
composição da palavra rio, signo-chave do poema, conforme explicitado, tem-
se exatamente, e somente, esses três fonemas, que combinados, levando em
consideração a “fonética impressiva” de Grammont, transmitem a impressão da
própria doçura, fluidez e barulho da água do rio em seu curso.
Da mesma forma que o rio deságua noutro rio ou no mar, sem perder sua
substância porque permanece veio d’água, mesmo que em outro corpo quido,
tamm as marcas/rios das pessoas que deságuam e depois partem da vida do
eu poético Pessoas deságuam e partem não se perdem enquanto substância
porque as marcas ficam-lhe como barcas naufragadas nos veios da memória
Os rios seguem , mas não apenas do sujeito poético, como também daqueles
que partiram – Em s, porque estes, ao partirem, da mesma forma levam
consigo as marcas daquele. Assim o é porque todos os sujeitos indistintamente,
levam consigo as águas de outros rios, metaforicamente, os rastros/resíduo
deixados por cada um como forma de retorno a uma nova maneira de ser e de
conhecer “um si que deriva para o outro.” Criam-se assim laços identitários que
nos levam à recíproca descoberta, aceitação e assimilação da alteridade nossa e
do outro.
Nestes termos, a imagem mnemônica que guardamos uns dos outros se
constrói como espaço de identidade em que todos os rios navegam. Muitas vezes
essa imagem mnemônica constrói-se alicerçada pelas marcas deixadas o pelo
outro, mas por certos lugares que adotamos como nosso território
39
, a exemplo do
38
Apud Candido, op.cit., pp. 49-60.
39
Glissant propõe a equação “terra eleita” para denotar “território”, quando se reporta ao
fato de que as culturas atávicas buscam uma legitimidade sobre a terra que elegem como símbolo
64
que ocorre em Cicatriz, onde a cidade rememorada é um porto de referência
identitária para o sujeito poético, que a conserva como perpétua tatuagemno
espelho da memória, no qual se refletem as cores, os sons, os movimentos da
“terra eleita.”
Transpondo esse contexto mais universalizante de representação simbólica
do sujeito e seu meio, Silvestre consegue alcançar o contexto sócio-cultural local
ao dar relevância, em seu fazer poético, a elementos naturais significativos da
região em que se insere, como forma de atender as necessidades de identificação
do povo acreano e de imprimir um tom mais ao particularizante ao patrimônio
artístico-literário do Acre. Essa atitude de valoração e de comprometimento com a
realidade que o circunda, Silvestre demonstra nos poemas Em qualquer quarto ou
hotel e Enchente, textos que trazem o rio Acre como referencial identitário para o
sujeito poético e, consequentemente, para o leitor acreano, porque ligados às
marcas do território adotado como “terra eleita” por um e por outro. Naveguemos
pelo rio Acre no próximo capítulo.
de seu enraizamento cultural e identitário. Quando me refiro à cidade de Cicatriz como sendo o
território do eu poético quero salientar que este espaço constitui-se, no poema, como o meio que
ele elege para representar, simbolicamente, suas raízes, já que a cidade ficou como cicatriz
tatuada em sua memória.
65
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-
me
de ti.
Ser-me-ás suave à memória
lembrando-te assim à beira-rio.
Ricardo Reis
As múltiplas faces de Fernando Pessoa
66
IV - RIO ACRE COMO REFERENCIAL DE IDENTIDADE
Aqui desenvolvo a análise dos poemas Em qualquer quarto ou hotel e
Enchente, concentrando-me na investigação de como o rio Acre constitui um
referencial identitário para a voz poética e, por conseqüência, para parte da
população acreana, já que este rio insere-se na realidade geofísica e sócio-
cultural do Estado, banhando, além da capital Rio Branco, outros municípios da
região.
Nos dois poemas, pode-se perceber novamente a presença do rio,
elemento bastante característico da paisagem natural da região amazônica, mas
aqui é acrescentado, como em Abunã, um aspecto particularizante desse
elemento, o nome do rio, Acre, em que o próprio significante sugere que se
trata de uma representação singular e, ao mesmo tempo, simbólica da cultura do
povo acreano.
Vejamos como o poeta materializa a imagem do rio Em qualquer quarto ou
hotel.
Em qualquer quarto ou hotel
sozinho
busco música predileta
na memória
(mais, muito mais que palavras)
Exercício de solidão.
Afogo-me em lembranças
(menos, muito menos que gestos).
Lá fora
O rio Acre dissolve-se no Purus.
No poema em tela, além do rio Acre, o poeta traz ainda a presença do rio
Purus, que deságua no rio Amazonas. Este e seus afluentes formam a maior
bacia hidrográfica da floresta Amazônica, drenando 80% de sua área. Afluentes
do Amazonas, Juruá e Purus o os principais rios do Estado do Acre, formando
as duas principais bacias hidrográficas acreanas.
A exemplo do que aconteceu nos demais estados da região Norte, também
o marco da conquista do solo acreano teve o rio como via de acesso por
67
excelência. Foi o Purus o primeiro a ser percorrido por brasileiros que buscavam
especiarias, as mesmas drogas do sertão, cujo comércio intensificou-se a partir
da descoberta de novos rios, no icio do século XIX. (SILVA, 1998, p. 38). Talvez
por isso, devido a essa realidade intrinsecamente ligada aos cursos de água
doce, muitos historiadores apontam o rio como a principal referência de
identidade do acreano: “Os acreanos são filhos do rio, nunca da terra ou da
cidade, daí expressões como: nasci no Juruá, casei no Purus, vim do Alto-Acre,
morei no Moa, sou filho do Abunã” (TOCANTINS apud SILVA, op.cit., p. 64. -
grifos de Silva).
O rio Acre, o Iaco e o Chandless são os afluentes do rio Purus. Dos três, o
rio Acre é o que assume maior importância para o Estado do Acre por ser o que
banha a capital, Rio Branco. Ele nasce no Peru, atravessa o território acreano no
sentido Sul/Norte e deságua na margem direita do rio Purus, no município de
Boca do Acre, Estado do Amazonas, percorrendo um trajeto de cerca de 1.190
quilômetros, constituindo-se limite natural com os dois países limítrofes ao Acre,
Bolívia e Peru. O vale do rio Acre é a região mais desenvolvida e habitada do
estado, concentrando cerca de cinqüenta e seis por cento da população
acreana.
40
É incontestável a relevância do rio Acre no cotidiano de muitos acreanos,
para o homem ribeirinho e para a parte da população urbana que faz das águas
desse rio ingrediente básico nos cuidados higiênicos, atividades domésticas,
práticas agropecuárias, indústria e via de transporte de pessoas e mercadorias.
Assim, ao incorporar à sua produção poética o rio Acre como signo que identifica
de alguma forma o patrimônio sociocultural da realidade local, ou seja, de sua
comunidade, pode-se considerar que o poeta contribui para o reforço de uma
identidade coletiva do acreano, pois, conforme demonstrado anteriormente, o
rio, ao lado da floresta, constitui referencial identitário na construção de imagens
da tradição histórica e literária amazônica.
Ao eleger o rio Acre como elemento comparativo para o eu poético
expressar sua sentimentalidade e afetividade, revividas através das lembranças,
Silvestre passa a integrar o grupo de poetas acreanos que privilegiaram o rio
como símbolo de representação do espaço local, pois esse elemento da natureza,
40
Informação baseada em dados do IBGE 2007.
68
desde os primeiros registros poéticos da literatura acreana, vem sendo
insistentemente eleito como um espelho que reflete a imagem do homem imerso
nestas plagas. Todavia, isso não faz da poesia acreana um produto de uma
atividade indefinidamente repetida, pois, conforme Dufrenne (1969),
o que o poeta conhece e imita nos outros é a relação sempre
singular à poesia: para cada um, a poesia é uma exigência, mas
esta exigência é apelo e não pressão (...); o poeta é estimulado
pelos outros pela poesia, por intermédio dos outros poetas a
produzir, por sua vez, uma obra singular (pp. 9-10).
Na construção do sujeito de Em qualquer quarto ou hotel, tem-se no poema
um eu solitário sozinho – que procura nos desvãos da memória a música
predileta, estímulo que produz em sua alma a lembrança íntima das sensações
experimentadas em um tempo ido. Portanto, para o eu poético, mais, muito mais
que palavras, a música é somente o objeto que presentifica a voz do passado. O
sujeito olha e sente os acontecimentos passados arquivados na memória na
presença do que a música predileta lhe traz como essência, o que não é a
mensagem subscrita na letra, e sim a intimidade entre o instante da música e o
acontecimento ora rememorado.
O sujeito, enclausurado, parece não dar tanta importância ao espaço da
exterioridade, que se encontra em qualquer quarto ou hotel”. O que parece de
fato importar é a própria interioridade, as lembranças buscadas na memória
Afogo-me em lembranças –, que atualizam as imagens no pensamento. O sujeito
encontra-se livre dos importunos do espaço aberto e social, pois se fecha no
espaço de si, isola-se, põe-se alheio aos acontecimentos do plano físico e do
tempo enquanto pratica exercício de solidão. Não é por acaso que Eliade (1991,
p. 86) afirma que “todo exercício de concentração ou de meditaçãoisola’ o
praticante, retira-o do fluxo da vida psicomental e consequentemente enfraquece
a ação do Tempo.”
O poeta faz um jogo com a realidade interior do sujeito e com a realidade
exterior da paisagem: o eu poético está sozinho, é solidão; encontra-se
duplamente isolado: no ambiente físico Em qualquer quarto ou hotel entenda-
se “dentro do quarto ou do hotel”; e no interior de si: é memória e lembrança
busco música predileta/ na memória/ Afogo-me em lembranças. Todavia,
enquanto ele contempla as imagens mnemônicas, condensa-se “lá fora” a
69
imagem da paisagem externa fora/ O rio Acre dissolve-se no Purus. Num
tempo, ação da memória e ão da natureza materializam-se: o sujeito busca
lembranças na memória como numa espécie de retorno ao passado; o rio
dissolve-se noutro rio, seguindo o destino cíclico do eterno retorno das águas.
Assim, o poema sugere a repetição infinita do mesmo fenômeno: a renovação das
forças afetivas do homem e das formas da natureza diante da transitoriedade do
tempo.
Nessa perspectiva, Em qualquer quarto ou hotel traz implícito o tema da
transitoriedade do tempo, metaforizado no fluxo do rio que deságua e se dissolve
noutro rio – O rio Acre dissolve-se no Purus –, os eventos dissolvem-se no tempo,
porque o próprio tempo se esvai, desfaz-se em seu curso inexorável assim como
o curso do rio que, inevitavelmente, caminha ao encontro de outro rio ou do mar,
sendo então seu estado de veio d’água puro transitório e passageiro. A memória,
nessa dimensão transitória, por sua vez, surge como um recurso de resistência e
permanência, pois ela permite ao sujeito poético guardar e reviver as impressões
sentidas mesmo diante da efemeridade temporal. Interessante, nesse sentido, é
lembrar que a memória, enquanto mecanismo de continuação do passado e
resistência diante da ão do tempo é tão forte e significativa que os espirituais
hindus, em suas práticas de medição, esforçam-se por libertar-se da memória, ou
seja, abolir a obra do Tempo, e as sociedades arcaicas destroem
periodicamente o mundo para poder “refazê-lo” e, consequentemente para viver
em um Universo “novo”, sem pecado, ou seja, sem “história”, sem memória
41
.
A exemplo dos demais poemas analisados, Em qualquer quarto ou hotel
tamm apresenta composição livre, notemos: não rimas, não métrica regular
e a musicalidade se aproxima da sonoridade discreta da prosa. Todavia, a
atenuação do efeito sonoro é compensada pelo reforço que o poeta ao
significado, construindo-se assim uma correlação funcional entre ritmo e sentido,
o que leva à unidade de cada verso.
Aqui, como em Abunã, aparecem os parênteses na estrutura do poema
desacelerando o ritmo da leitura, pois provocam uma espécie de silêncio
momentâneo. Os parênteses isolam dois versos que m a função de enfatizar
uma elucidação. No primeiro caso, o verso entre parênteses (mais, muito mais
41
Eliade, op. cit., p. 87. (grifos do autor)
70
que palavras) – esclarece que a letra ou as palavras” da música predileta não é o
que de fato o eu poético busca na memória, ela é somente o objeto que torna
presente para o sujeito o acontecimento afetivo do passado; no segundo caso, o
verso entre parênteses (menos, muito menos que gesto) esclarece que dos
acontecimentos rememorados os gestos são menos significativos que as
sensações afetivas que eles próprios representam para o eu poético; portanto, as
lembranças m como matéria os gestos e como essência sensações afetivas
deles resultantes. Assim, as pausas provocadas pelos parênteses assumem um
valor semântico, porque provocam um instante reflexivo no leitor, que é levado a
interpretar o real sentido dos versos isolados por esses sinais de pontuação. Daí
a correlação funcional entre ritmo e sentido.
Além das pausas decorrentes do uso dos parênteses, nota-se ainda a
ocorrência de outro fenômeno rítmico que provoca suspensão momentânea no
movimento inteiro do poema, o pausas advindas da suspensão da voz quando
lidos os versos sozinho/ na memória/ Exercício de solidão./ Afogo-me em
lembranças/ fora. São pausas virtuais, porque não se dão pelo uso de sinais
de pontuação, com exceção do ponto final no verso Exercício de solidão. Cada
uma dessas pausas provoca um momentâneo silêncio e remata sempre uma idéia
cuja tensão e significação é ponto-chave do poema. Essas pausas jogam o
poema para frente, vão abrindo o caminho para o verso seguinte, porque
provocam no leitor a sensação de que falta algo, talvez uma seqüência discursiva
que preencha o silêncio instaurado. Isso o põe o leitor à espera desse algo que
virá ainda para completar o sentido do silêncio e para suprimir a tensão suscitada
pelo momento de expectação e silêncio.
Lido o poema em voz alta, percebe-se que uma inflexão da voz, uma
certa força tônica dos versos dois: sozinho; quatro: na memória; seis: Exercício de
solidão; sete: Afogo-me em lembranças; e nove: Lá fora. O modo de entoar estes
versos concatena-se com a força significativa das palavras que os compõem,
definidoras de um sujeito, sozinho, que busca na memória lembranças afetivas de
seu passado, enquanto a realidade fora de si materializa-se em seu curso natural.
A objetividade semântica das palavras desses versos, portanto, é reforçada pela
energia sonora mais vibrante de sua entonação. Desse modo, cada pausa marca
o compasso da leitura, regula a vibração da voz, potencia o som e o sentido do
poema inteiro.
71
Analisemos agora como a voz poética de Enchente mergulha nas águas
da memória do rio Acre.
Enchente
Nossa história, tinhas razão,
causaria muitos estragos
feito enchente do rio Acre.
Desabrigaria o bom senso
e nos faria náufragos de nós.
Em terra firme, contemplo o rio
- curso sinuoso; águas barrentas,
caudalosas.
A salvo.
E tu, pobre de ti, perdeste
a terra fértil
onde semearias tua vida.
O eu poético, ao comparar sua história de amor com a enchente, acaba por
suscitar na memória do leitor que conhece e vivencia a realidade local, imagens
da paisagem tomada pelas águas turvas e caudalosas do rio Acre quando, no
período das fortes e constantes chuvas, transborda o seu leito provocando
inundações nas terras adjacentes.
As enchentes do rio Acre, como manifestação sazonal, acontecem entre os
meses de fevereiro e março, atingindo em média o nível de 12m, na cidade de Rio
Branco, quando entre dezembro e fevereiro chove normalmente (em torno de 300
mm) na bacia. O excesso de chuva, nesse período, resulta em enchentes. Com a
chegada das cheias, o rio torna-se caudaloso e transborda. A ocorrência desse
fenômeno, sobretudo quando o vel pluviométrico supera muito a média de 300
mm, traz conseqüências desastrosas para a população, prejudicando não os
lavradores ribeirinhos, como também grande parte da população urbana banhada
pelo rio Acre.
Nas cidades tomadas pelas cheias do rio Acre, muitos habitantes acabam
tendo suas residências tomadas pelas águas barrentas, momento em que perdem
parte de seus bens, quando não a própria residência, pois muitas se localizam
próximo às barrancas do rio, onde o terreno, encharcado, cede facilmente,
72
levando abaixo as construções levantadas sobre ele. Na zona rural, igualmente os
estragos são grandes, porque os ribeirinhos que desenvolvem suas culturas nas
áreas próximas ao rio, por serem maisrteis, vêem o fruto de seu trabalho perde-
se submerso no curso volumoso de águas barrentas. Essa realidade vivida pelo
habitante acreano é aproveitada por Silvestre que, também habitando a região, a
conhece de perto, e talvez por isso lhe sirva de matéria de comparão na
expressão confessional de uma história afetiva da voz poética: Nossa história,
tinhas razão,/ causaria muitos estragos/ feito enchente do rio Acre.
As imagens de destruição provocada pela força das águas do rio durante a
enchente são exemplarmente simbolizadas no poema A enchente, de Mário de
Oliveira
42
:
A enchente
Entre regougos e ais ribombos e rugidos
a água vinha em cachão, de pedra em pedra atroando,
como infreme tropel de corcéis incontidos
planuras marginais, invadindo, alagando...
Tudo o rio carrega; e, enorme e formidando,
rompendo a cerração e os plainos impedidos
roças, habitações em seu curso arrastando,
deixa o rio, onde passa, um mundo de gemidos.
Interessante é observar que nA enchente de rio de Oliveira o poeta
privilegia o fenômeno natural em si, colocando em primeiro plano a exterioridade
do real, a natureza que oprime e apavora o homem Tudo o rio carrega,
subjugando-o mediante sua força superior, ameaçadora e esmagadora deixa o
rio, onde passa, um mundo de gemidos, atitude comum às primeiras
manifestações discursivo-literários da região, conforme demonstrado neste
trabalho. Enquanto na Enchente de Silvestre o elemento humano se sobressai ao
natural, pois o poeta se utiliza do referencial da paisagem que circunda o homem
amazônida apenas como forma de explorar o mundo interior do sujeito poético,
42
OLIVEIRA, Mário de Oliveira. A enchente. Folha do Acre, Rio Branco, 5 agosto. 1960. In:
SILVA, Laélia M. Rodrigues da. Acre: prosa & poesia de 1900 a 1990. Rio Branco UFAC,
1998, p. 310.
73
criando uma analogia entre as particularidades de sua relação afetiva e da
enchente: Nossa história, tinhas razão,/ causaria muitos estragos/ feito enchente
do rio Acre. Silvestre evita assim a imagem cristalizada da condição de
superioridade da natureza sobre o homem na relação sujeito/meio.
Um tom confessional e reflexivo permeia todo o poema, denotando uma
necessidade do eu poético em expressar sua sentimentalidade mediante uma
atitude avaliativa e mais racional, já que a história confessada remete ao passado,
a uma relação afetiva chegada ao fim, veja-se os verbos no pretérito na primeira
estrofe: “tinhas”, causaria”, “desabrigaria” e faria”. O leitor é levado a perceber,
pelo tom da confissão tinhas razão –, que desde o princípio da relação havia
uma espécie “tragédia anunciada” causaria muitos estragos/ feito enchente do
rio Acre, o que fatalmente a levaria ao fim, desequilibrando os sujeitos nela
envolvidos Desabrigaria o bom senso/ e nos faria náufragos de nós.
Metaforicamente, a força do sentimento que naufraga esses sujeitos amantes é a
mesma força incontida das águas volumosas do rio Acre durante as enchentes,
que desequilibra e desabriga muitos habitantes nas terras acreanas.
A “tragédia anunciada” revelada na confissão da relação afetiva do eu
poético de certo modo também é pressentida na história de vida da população
local que, acostumada com o clima chuvoso da região amazônica, prevê os
períodos mais propensos à ocorrência do fenômeno das enchentes do rio Acre.
No entanto, os estragos decorrentes da relação afetiva dos sujeitos são de ordem
sentimental, enquanto os estragos decorrentes das cheias o tanto de ordem
material quanto sentimental, o que se confirma nos versos de Mário de Oliveira:
roças, habitações em seu curso arrastando/, deixa o rio, onde passa, um mundo
de gemidos.
Felizmente, parte da população não chega a ser atingida diretamente pelas
cheias do rio Acre, livrando-se dos estragos por elas causadas. Aqueles que
habitam em terra firme, nos terrenos mais altos e mais distantes das margens,
não se tornam “náufragosdas torrentes de águas barrentas e caudalosas do rio.
O poeta aproveita-se dessa realidade para construir a imagem do sujeito poético.
Observemos a segunda estrofe do poema em análise:
Em terra firme, contemplo o rio
- curso sinuoso; águas barrentas,
caudalosas.
A salvo.
74
Nesses versos, ao mesmo tempo em que a imagem do eu poético
simboliza os habitantes das terras não alagadas pelas enchentes, representa
tamm a imagem do amante que, na maioria dos relacionamentos afetivos,
consegue superar com maior equilíbrio ou mais rapidamente o fim da relão,
mantendo-se em terra firme”, “a salvo. As águas barrentas, caudalosas
contempladas pelo sujeito, analogicamente, estão no lugar dos sofrimentos e
desilusões vividas no curso da relação afetiva por ele confessada. Essas águas
são, portanto, signos de sua hisria de amor.
Já as condições de perda e de sofrimento dos habitantes da região
atingidos diretamente pelas cheias do rio Acre são simbolizadas, no poema, pela
terceira estrofe:
E tu, pobre de ti, perdeste
a terra fértil
onde semearias tua vida.
Aí constrói-se, na confissão do eu poético, o outro sujeito da relação,
aquele que, terminada a história afetiva, carrega consigo as marcas amargas das
águas impiedosas desilusão sofrida, águas que levam pelo rio da vida a terra fértil
onde um dia se erigiu os sonhos e se sonhou semear a vida.” Essa construção
imagética faz lembrar o sofrimento dos ribeirinhos que vêem seus esforços
desabarem rio a dentro quando as enchentes alagam as terras onde semeiam
suas culturas, levando correnteza abaixo o fruto de seu trabalho.
Desse modo, a presença do rio Acre em Enchente, a exemplo do poema
Em qualquer quarto ou hotel, demonstra que Silvestre incorpora ao seu discurso
poético o recorrente motivo temático ao eleger a imagem do rio Acre como
conteúdo de seus poemas. Todavia, o poeta o faz por meio de uma experiência
particularizante, porque sente o mundo afetiva e subjetivamente de um modo
único, individual, pois “o enunciado, de um lado é gesto; de outro liga-se a uma
memória, tem uma materialidade; é único mas está aberto à repetição e se liga ao
passado e ao futuro”
43
. Portanto, o poeta é capaz de produzir, pela articulação
pessoal e criativa do material lingüístico e histórico a ele disponível, novas
imagens, mesmo em face da recorrência dada pela regularidade do discurso do
rio como símbolo de representação do espaço local.
43
Foucault apud Gregolin, ano 2003, p. 28.
75
Um aspecto diferenciador da poesia de Silvestre diante dessa regularidade
do discurso do rio como símbolo de representação do espaço local e da
identidade do sujeito na tradição literatura acreana é o fato de ele centrar-se não
na matéria, como fez grande parte de nossos poetas ao longo do século XX, mas
na essência desse elemento como forma de representação das imagens
interiores do sujeito, privilegiando assim a interioridade humana em detrimento da
exterioridade natural.
E se o rio aparece na poesia de Silvestre dentro dessa nova formulação de
representação é porque a percepção do poeta projeta-se na dinâmica do tempo
histórico que permite um novo olhar sobre o espaço e, conseqüentemente, sobre
a própria construção identitária do sujeito imerso nesse tempo-espaço. Daí pensar
que a “moldagem e a remoldagem de relações espaço-tempo no interior de
diferentes sistemas de representação m efeitos profundos sobre a forma como
as identidadeso localizadas e representadas.”
44
44
Hall, op. cit., p. 71.
76
V - O ENCONTRO DAS ÁGUAS DOCES COM UM MAR DE IDÉIAS
À guisa de conclusão, o estudo dos poemas de Silvestre permitiu perceber
como a poética materializada em seus textos se relaciona com a poesia muito
produzida no Acre, cujo universo de imagens vinculou-se corriqueiramente à
expressão da cor local, tendo como referencial básico os elementos naturais,
próximos ou distantes da realidade urbana, presentes na vida do povo acreano.
Por um lado, a presença marcante do signo rio como referência privilegiada
em cinco dos seis textos analisados funciona como um vs de aproximação da
poesia de Silvestre com a tradição temática de valorização dos elementos
naturais, sobretudo rio e floresta, na produção poética amazônica e, por extensão,
acreana. Por outro lado, os recursos expressivos da linguagem e a relação que o
sujeito poético estabelece com esses elementos constituem aspectos
diferenciadores no conjunto da significação dos poemas em análise. Estes se
constroem a partir de uma linguagem condensada em poucos versos, porém
capaz de traduzir uma visualidade imagética surpreendentemente plástica voltada
para a expressão da realidade interior do sujeito poético.
Os poemas analisados, exceto Cicatriz, constroem a imagem de um sujeito
que se reconhece numa relação de diálogo com o rio, seja ele um elemento da
realidade material de seu espaço familiar, a exemplo do rio Abunã e do rio Acre,
seja um signo cujo objeto aponta para uma referência icônica de cater mais
universal, como em Voz distante quase silêncio e em Todos os rios navegam.
Essa constatação possibilita entrever que nos textos em análise a imagem do rio,
espelho d’água da memória do eu poético, antes de representar uma
peculiaridade na identidade cultural do habitante da Amazônia, representa as
inquietações de um sujeito que, para se reconhecer, busca incessantemente no
leito de suas imagens interiores o curso de sua história e de sua vida.
Por meio de versos tecidos com o fio evanescente da memória, o poeta
permite ao leitor um mergulho nas águas profundas do passado, capazes de
trazer à superfície da consciência, por meio da reminiscência, fatos e sentimentos
possíveis de serem revividos pelas formas mágicas da memória, esse arquivo que
possui o poder de carregar os sujeitos com suas lembranças afetivas para uma
77
outra realidade diferente daquela vivenciada no momento presente,
transportando-os para um tempo passado que permanece sempre atual.
Abunã atualiza a relação natureza-homem, comum à literatura de
expressão amazônica desde as narrativas inaugurais, conforme demonstrado.
No poema avulta a personificação do rio, que se coloca lado a lado com a figura
humana, porém, sem subjugá-la, ao contrário do que costumeiramente ocorreu
dentro da produção literária sobre a região, em que as ações do homem, imerso
na grandiosidade de um espaço adverso, mostram-se impotentes diante de uma
natureza capaz de oprimi-lo ou mesmo aniquilá-lo. Portanto, em Abunã, o poeta
nesse aspecto, se distancia da tradição literária porque, contrariamente, constrói
um espaço onde a relação homem e meio é de cumplicidade, em que
menino/homem e rio/natureza confundem-se numa só imagem, a do espelho das
águas do rio e da memória, um refletindo o outro, completando-se.
Em Voz distante quase silêncio, como em Abunã, o rio cria imagens ligadas
ao espelho d’água, no qual o sujeito poético mira suas reminiscências. Tem-se
assim novamente a representação da memória metaforizada no signo rio, pois é
por meio dele que o sujeito recupera simbolicamente as experiências de um
tempo vivido, representadas pelosrostos do passado.” O rio também simboliza
a possibilidade de re-elaboração da identidade do sujeito poético, porque ele se
configura no poema como uma espécie de sepultamento, que a correnteza das
águas, ao “afogar os rostos”, está afogando o sujeito cuja existência condicionou-
se aos eventos do passado, renovando-o a partir da nova realidade imposta no
presente.
Nos poemas Enchente e Em qualquer quarto ou hotel o poeta reforça o
sentimento de uma identidade coletiva do acreano, porque incorpora à sua
produção poética um signo que identifica, de alguma forma, o patrimônio sócio-
cultural da realidade local, sua comunidade, que o rio Acre constitui o elemento
principal da paisagem geofísica do Alto Acre, região de maior relevo político e
econômico para o Estado, por abrigar a capital Rio Branco. Assim, o poeta acaba
por suscitar nos leitores acreanos o imaginário social e cultural de seu povo,
contribuindo para a memória individual e coletiva dos acreanos, que se faz mais
viva com a circulação de poemas como este.
Em Cicatriz é no campo da memória que se dá o reencontro da voz poética
com um espaço que se constrói para ela como referência de identidade. Essa
78
idéia assim se configura porque o sujeito, por meio da rememoração, vive uma
espécie de eterno retorno à cidade de onde partira, sentimento esse que expressa
seu forte vínculo com o lugar e traz ao leitor a idéia de que aí um sentido de
pertencimento por parte do sujeito com relação à cidade, que materializa-se como
uma cicatriz enquanto marca indelével que não se apaga com a distância espaço-
temporal, ela é “perpétua tatuagem” no espelho da memória do sujeito poético.
Interessante ressaltar que neste poema o autor recupera, por meio da
combinação harmoniosa dos elementos naturais cigarras, sol, matas, rios,
pássaros, organicamente equilibrados, a imagem de paraíso associada à
paisagem da região amazônica, e por extensão acreana, num tempo anterior à
conquista e ocupação do território.
Em Todos os rios navegam temos no signo rio um elemento metafórico que
se constrói como matéria da imagem interior do eu poético. A análise do poema
deixou entrever a idéia de que os sentimentos e pensamentos rios que nos
tomam pelas relações intersubjetivas que estabelecemos com o outro acabam por
suscitar a identidade na alteridade, pois assim como o rio, que em seu curso
natural vai imprimindo marcas pelos vales, planícies e planaltos por onde passa,
sem nunca deixar de ser rio, tamm nós vamos marcando e sendo marcados,
diga-se impregnados, pelo outro que deságua em nós, sem que ambos deixemos
de se reconhecer enquanto sujeito único. A presença do outro que segue seu
curso depois de desaguar em nossas vidas permanece em s como substância
que caminha para o grande mar da memória, espelho em que se refletem as
sombras, as cores, as vozes, os gestos que nos ficaram impressos como imagens
mnemônicas tatuadas na pele do tempo.
Os seis textos de Silvestre foram analisados tendo em vista a articulação
da mensagem poética com a emoção estética, fenômeno inerente ao fazer
poético, porque na poesia, a palavra, para ganhar sentido, depende dos demais
elementos que entram na composição da mensagem. Nas análises dos textos
procurei associar aspecto estrutural, semântico e estilístico na intenção de atingir
a unidade significativa de cada poema.
Todos os poemas são de composição em versos livres, não se
enquadrando em nenhum metro fixo ou esquema de rima. O ritmo é solto,
assimétrico e imprevisível, resultado de uma nova concepção de arte, o que leva
o leitor a associar Silvestre ao grupo de poetas que, adotando uma postura
79
moderna de composição, optou por abolir as formas fixas em favor da liberdade
do fazer poético.
Esse desprendimento quanto à tradição formal concatena-se com o
desprendimento do poeta quanto ao tratamento tradicionalmente dado aos
motivos da cultura local que, ao longo do século XX, resguardadas as exceções,
privilegiou as imagens de representação da relação homem-natureza, colocando-
se em primeiro plano os elementos naturais e não os humanos, estratégia usual
de percepção da realidade desde as primeiras manifestações literárias no Acre.
Silvestre, embora trazendo referências à paisagem local, não se voltou, nos
textos analisados, para a exterioridade do mundo amazônico com sua exuberante
floresta, exótica fauna e rios sinuosos, ao contrário, a análise dos poemas
demonstrou como o poeta centra-se nas imagens interiores de um sujeito
introspectivo e reflexivo que se busca nas lembranças afetivas de seu passado
impresso nos arquivos da memória. Assim, Silvestre acaba sugerindo uma
identidade do eu poético pela ralação entre sentimentos e a paisagem.
A análise dos poemas permitiu, portanto, concluir que Silvestre privilegia na
relação sujeito/meio não a matéria dos referencias da natureza que circunda o
homem amazônida, mas a subsncia neles contida, o que possibilita ao poeta,
pelo seu modo de percepção da realidade, redirecionar os elementos da
exterioridade da paisagem para o interior do sujeito, suscitando uma cumplicidade
entre elemento humano e elemento natural, em que os dois integram-se numa
completude imagética.
que se reconhecer que a poesia de Silvestre, sendo um produto
histórico e social como toda poesia, reflete o lugar e o tempo em que é produzida,
porém, a concepção do ser e do mundo que nela se constrói não se circunscreve
ao espaço amazônico e nem ao tempo atual, porque invoca imagens que
espelham o reflexo de um sujeito atemporal que busca atingir a universalidade de
sua condição de ser mergulhando no tempo mítico da memória.
É assim que o poeta Henrique Silvestre empreende sua participão na
coletividade da sociedade acreana, contribuindo para a memória artístico-literária
de seu povo, sobretudo porque reinventa as marcas da tradição da poesia
acreana pelos novos paradigmas que vão se delineando conforme as imposições
sócio-históricas, culturais e econômicas da realidade local por ele vivenciada. Por
meio de suas produções artísticas, Silvestre encontra diversos espaços
80
diferenciados dentro de sua própria cultura, com os quais ele se articula, constrói
e reconstrói permanentemente referências identitárias para si e para o outro.
E enquanto Silvestre segue produzindo a sua poética da água, para
retomar aqui Bachelard, as águas abundantes no vasto território amazônico
continuam a encharcar o chão da floresta e a inundar de caminhos líquidos a vida
do homem amazônida, ora com o poder de emergir sonhos, ora com a força de
submergir esperanças.
81
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