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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CCHLA – CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROLING – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA
MINTER–LIN – MESTRADO INTERINSTIUCIONAL EM LINGÜÍSTICA
ADRIANA DI DONATO
O GÊNERO CANTIGA DE NINAR:
DO MUNDO OUVINTE AO MUNDO SURDO
João Pessoa – PB
2008
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ADRIANA DI DONATO
O GÊNERO CANTIGA DE NINAR:
DO MUNDO OUVINTE AO MUNDO SURDO
Dissertação apresentada à Universidade
Federal da Paraíba - UFPB para obtenção do
título de Mestre em Letras (Área de
Concentração: Lingüística Aplicada)
Orientadora: Profa. Dra. Evangelina Maria
Brito de Faria.
Co-orientadora: Profa. Dra. Beliza Áurea de
Arruda Mello.
João Pessoa – PB
2008
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da UFPB. – JOÃO PESSOA
D677g Donato, Adriana Di..
O gênero cantiga de ninar: do mundo ouvinte ao mundo surdo /
Adriana Di Donato.- João Pessoa, 2008.
113p.
Orientadora: Evangelina Maria Brito de Faria
Co-orientadora: Beliza Áurea de Arruda Mello
Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCHLA
1. Linguística. 2. Oralidade. 3. Cantigas de ninar – gênero –
análise. 4. Cantigas de ninar - mulheres ouvintes. 5. Cantigas de
ninar – mulheres surdas.
UFPB/BC CDU: 801(043)
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O GÊNERO CANTIGA DE NINAR: DO MUNDO OUVINTE AO MUNDO SURDO
Por:
ADRIANA DI DONATO
Orientadora: Profa. Dra. Evangelina Maria Brito de Faria.
Co-orientadora: Profa. Dra. Beliza Áurea de Arruda Mello.
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Lingüística, da
Universidade Federal da Paraíba - UFPB, como parte dos requisitos necessários à obtenção
do título de Mestre em Lingüística.
Aprovada por:
________________________________________________
Presidente, Profª Drª Evangelina Maria Brito de Faria – UFPB.
________________________________________________
Profª Drª Maria Claurênia de Andrade Abreu– UFPB.
________________________________________________
Profª Drª– Wanilda Maria Alves Cavalcanti – UNICAP.
João Pessoa
Outubro de 2008
5
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho à Nirma Di Donato, como mãe, por seu amor e dedicação,
em todas as fases da minha vida. Como educadora e pesquisadora, exemplo irretocável;
Ao meu amor Roberto, esposo e companheiro apaixonado, presente e
participativo em todo o processo do meu crescimento neste trabalho e em nossa vida
comum;
À minha sogra, D. Helena, por sua amorosa escolha da cantiga de ninar,
perpassada de geração em geração em nossa família;
Aos meus enteados, Roberto Júnior e Oton, amores meus;
A todas as minhas amigas e amigos, por contribuírem por eu ser quem sou;
Em particular e principalmente, aos meus filhos Natan e Lorenzo, estrelinhas de
amor, que Deus materializou gêmeos e os presenteou durante o processo de construção
desta pesquisa. Aos nossos encontros, diurnamente cantados, acalantados, aconchegados
e profundamente amados, banhados nas águas do lírio branco do meu coração.
A vocês dedico todo o meu trabalho, a minha vida e o meu amor.
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço minha introdução/paixão pela lingüística à Virgínia Colares, pela
inspiração, incentivo e exemplo de generosidade acadêmica e pessoal;
Às queridas orientadoras e co-orientadoras: Evangelina de Faria, pessoa
dulcíssima, por sua paciência e por suas valorosas e pontuais contribuições; e Beliza
Áurea, responsável direta por meu encantamento pelo tema “Cantigas de ninar”, em seu
entusiasmo contagiante;
A todos os meus mestres, sem eles meu presente não se configuraria desta forma;
À Gesilda Leal, companheira de vida, pela grandeza de inserir-me na educação
de surdos;
À Jaqueline Martins, pelas diversas parcerias, por me acolher em seu mundo e no
mundo dos surdos;
À Angela Barbosa, parceira, por acreditar comigo na escolha e no percurso do
tema;
À Cristina Antonino, por sua amizade atemporal e por trilharmos juntas o prazer
do conhecimento;
Ao apoio técnico: Roberto Nepomuceno, Givanildo Amancio, Pr. Neto, Renata
Allain, Evandro Alves e Fábio Freire;
Às surdas e surdos que fizeram e fazem parte da minha vida, meus sinceros e
emocionados agradecimentos;
Hoje e sempre: a DEUS.
7
RESUMO
Esta investigação propõe-se analisar o gênero cantiga de ninar, em mulheres ouvintes e
mulheres surdas, considerando as suas vozes, os seus corpos, as suas performances, as
suas canções e os seus desdobramentos. Como suporte teórico, apóia-se em três
perspectivas centrais: na lingüística, diante da oralidade, os princípios de Zumthor e
quanto às cantigas de ninar, os fundamentos de Leite de Vasconcelos; e ainda a sócio-
antropológica como política da diferença da surdez, com Skliar. Além desta tríade, conta
com contribuições relativas aos estudos de gênero com Bakhtin e Schneuwly; da
psicanálise de base freudiana e lacaniana, com Jorge; e, por último, apóia-se nos estudos
etnolingüísticos de Castro. O estudo consta da análise da canção de domínio público
Neném quer dormir, de influências portuguesa e africana, em performance com duas
mulheres ouvintes e suas variantes; a performance do ninar autêntico de duas mulheres
identitariamente surdas; e as considerações de uma filha ouvinte de pais surdos acerca da
sua experiência como acalantada por cantigas de ninar surdas. Para isto, defendem-se
como hipóteses aspectos divergentes e aspectos convergentes das cantigas de ninar de
mulheres ouvintes e de mulheres surdas, do ponto de vista lingüístico. Este estudo
aponta na direção da possibilidade de um maior conhecimento do gênero cantiga de
ninar na perspectiva da oralidade, como também descortinar o universo do acalantar
pertinentes ao mundo surdo. Não a pretensão de exaustão do tema, mas de trazer
contribuições para o mesmo, quiçá, ampliando o interesse por profissionais da
lingüística e das áreas afins.
Palavras-chave: Lingüística. Oralidade. Cantigas de ninar. Surdos/ouvintes.
8
ABSTRACT
The present research has the purpose to analyse the genre of lullaby with listeners and
deaf women, considering theirs voices, their bodies, their performances, their songs and
things like that. The theoretical bases are supported by Zumthor’s linguistic principles
concerned with oral production; by the ideas of Leite de Vasconcelos, concerned with
lullabies, and also by Skliar whose social anthropological studies investigated the
differences between listerns and deaf people. Besides this triad, this research takes
account of the studies of genre by Bakhtin and Schneuwly; the psychoanalysis bases of
Freud and Lacan described by Jorge, and, finally, the search takes a stand on the
ethonolinguistic studies of Castro. The studies constitute the analysis of the lullaby of
public domain Neném quer dormir, the influences of Portuguese and African culture on
the performance of two listeners women and with subsequent variations; the
performance of two deaf women singing authentics lullabies; and the considerations of a
child of deaf adults and used to sing deaf lullabies to her. In order to do that, the
hypotheses of divergent and convergent aspects of lullabies sung by listeners and deaf
women are analysed under the view of Linguistics. These studies point out to the
possibilities to enlarge the knowledge of the genre lullaby under an oral perspective, as
well as to unveil the range of lullabies prevailing in the word of deaf people. There is no
intention to exhaust the theme, but to bring contributions to it, perhaps to open up
interest of researchers in Linguistics an related areas.
Key-words: Linguistics, oral production, lullabies, deaf/listeners.
9
Quando estou nos braços teus
Sinto o mundo bocejar
Quando estás nos braços meus
Sinto a vida descansar.
No calor do teu carinho
Sou menino-passarinho
Com vontade de voar
Sou menino-passarinho
Com vontade de voar
Prelúdio pra ninar gente grande
Luiz Vieira
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................................12
CAPÍTULO I
QUADRO TEÓRICO........................................................................................................15
1.1 - Importantes registros da oralidade ............................................................................15
1.2 - Sobre as cantigas de ninar, acalantos ou canções do berço.......................................22
1.2.1 - Divindades soníferas ..............................................................................................32
1.2.2 - A presença das amas na cultura do ninar ...............................................................38
1.2.3 - O gênero cantiga de ninar.......................................................................................42
1.3 - A pessoa surda...........................................................................................................47
1.3.1 - A vez do cantar surdo.............................................................................................53
CAPÍTULO II
ASPECTOS METODOLÓGICOS....................................................................................57
2.1 - As condições da pesquisa..........................................................................................57
2.2 - A constituição do corpus...........................................................................................58
2.3 - Sobre os sujeitos da pesquisa ....................................................................................59
2.4. - Instrumentos e coleta de dados.................................................................................60
2.5 - Transcrição dos dados...............................................................................................64
CAPÍTULO III
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ...........................................................70
11
3.1 - A canção....................................................................................................................70
3.2 - As vozes, as performances, os ninares......................................................................78
3.3 - A experiência CODA no ninar..................................................................................93
3.4 - Cruzando dados.........................................................................................................99
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................100
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.................................................................................103
REFERÊNCIA DAS ILUSTRAÇÕES ...........................................................................106
ANEXOS
ANEXO A - Cantigas de ninar........................................................................................110
Variante 1 ou variante de referência; ...............................................................111
Variante 2 .........................................................................................................112
Variante 3; .......................................................................................................113
Variante 4 .........................................................................................................114
Variante 5: Jorge nº 69; ...................................................................................115
Variante Jorge nº 70; nº 71 ..............................................................................116
Variante Jorge e 77 e nº 78...............................................................................117
Variante Leite de Vasconcelos nº 77 e A .........................................................118
Acalanto............................................................................................................119
Partitura “Neném quer dormir” ........................................................................120
12
INTRODUÇÃO
Os estudos sobre as cantigas de ninar ou acalantos, apesar de serem objetos
inscritos em uma gama bastante extensa dos saberes científicos, mais freqüentemente,
tem sido alvo do interesse de musicólogos, pedagogos que atuam na Educação Infantil,
dentre outros. Encontra-se com relativa facilidade publicações onde se dispõem
elencadas, descritas, cifradas. Entretanto, sobre este tema, há escassas investigações pelo
universo acadêmico na área da lingüística, em língua portuguesa. Como resultado do
levantamento bibliográfico, destaca-se Leite de Vasconcelos, lingüista, filólogo e
etnógrafo, com Canções do Berço, publicada pela Revista Lusitana em 1907, sendo até
os dias atuais, a obra mais completa sobre o tema. No percurso dos estudos da oralidade,
incluem-se as cantigas de ninar ou acalantos, como um dos primeiros gêneros de acesso
das crianças, em sua primeira infância.
Inicialmente, o objeto investigado fora trabalhado circunscrito na oralidade,
sobre questões pertinentes à voz, ao corpo, à performance, com uma cantiga de domínio
público de acalanto, a Neném quer dormir. Por ser de domínio público a canção
pesquisada assim será nomeada para fins didáticos. No desenvolvimento da pesquisa, foi
feita uma constatação: mães (ou cuidadoras) surdas também ninam seus filhos com suas
vozes, com suas performances, com suas canções. Um caminho a mais a ser percorrido.
Ao que parece, novo, senão, pouco estudado. Um mundo surdo, possivelmente,
desconhecido por muitos.
Ora, se já se tem em pauta oposicionamentos do tipo escritura e oralidade,
litterati e illitterati, surge um outro, em um lugar um tanto inusitado, o cantar no mundo
ouvinte e o cantar no mundo surdo. Este último vem celebrar a ruptura de mais um
paradigma: a pessoa surda, constituída identitariamente como sujeito surdo, falante
natural da Língua Brasileira de Sinais LIBRAS é usuária e criadora de seu próprio
referencial de voz, de canto. Um referencial, quiçá, latente de uma identidade materno-
cultural do inconsciente coletivo. Não obstante, um canto surdo autêntico.
Diversos setores da sociedade, mesmo que de maneira ainda discreta, já
vislumbram a comunidade surda em um outro lugar, que não o caritativo ou
13
assistencialista, mas o do direito e o da diferença. Uma das maiores contribuições
acadêmicas e que vem refletir para este novo olhar, deve-se aos estudos lingüísticos.
Não se poderia deixar de reconhecer que os movimentos sociais das comunidades surdas
também possuem um braço de força nas relações de poder para estas mudanças.
Para uma leitura mais adequada deste trabalho, cabem aqui alguns
esclarecimentos relativos às terminologias empregadas. O primeiro, refere-se à
terminologia ouvinte, ora como contraposição ao sujeito surdo, ora na perspectiva da
oralidade, como intérprete, ou auditório. Quanto ao segundo, não conflitos
conceituais às nomenclaturas oralidade e oralismo. Oralidade, aqui, reporta-se ao
conceito zumthoriano de modalidade de expressão da comunicação através da voz, do
corpo, da performance; o oralismo, é uma filosofia da educação de surdos,
considerada por alguns como uma metodologia de reabilitação oral para pessoas com
perdas auditivas. Ao se estabelecer relação da voz à pessoa surda, este estudo não se
propõe a um referencial ouvintista, preconizado por autores como Carlos Skliar (1997,
1998, 1999) e Skliar; Quadros (2000). O ouvintismo apóia-se em um modelo de
imposição da cultura de dominação das pessoas ouvintes, em todas as suas implicaturas,
ao qual subjazem os povos surdos como minoria lingüística e minoria nas relações de
poder. Por último, a palavra objeto como objeto de estudo, assunto sobre o qual se a
investigação, neste caso, as cantigas de ninar e objeto em uma perspectiva psicanalítica,
como alvo de uma pulsão que pode ser uma pessoa, ou coisa física, tangível e real ou
imaginária. O uso de objeto para fins deste estudo está vinculado à mãe, à cuidadora ou à
pessoa substituta.
Esta investigação traz como objeto de estudo um lugar singular para a voz, o
corpo, a performance, a canção das pessoas ouvintes e das pessoas surdas. Elementos,
estes, instigantes à pesquisadora: acalantos ouvintes e acalantos surdos e seus
desdobramentos. Para tanto, defende-se como hipóteses aspectos divergentes e
convergentes no gênero cantiga de ninar de mulheres ouvintes e de mulheres surdas, do
ponto de vista lingüístico.
Apresenta-se como suporte teórico três perspectivas centrais: na lingüística, a da
oralidade e a das cantigas de ninar, especificamente; e a sócio-antropológica da surdez.
14
Posicionando-se diante da oralidade, os princípios de Paul Zumthor e sobre as cantigas
de ninar, os fundamentos lingüísticos de Leite de Vasconcelos, como mencionado acima.
Para os estudos surdos como política da diferença, as obras de Carlos Skliar. Além desta
tríade, a investigação conta com contribuições dos estudos relativos à psicanálise de base
freudiana e lacaniana, com a Ana Lúcia Jorge e, ainda, apóia-se nos estudos das
literaturas africanas, com Yêda de Castro.
Nesta perspectiva, este estudo centra-se em sua parte prática na análise do
acalanto em mulheres ouvintes e surdas, demonstrando seus cantares com suas vozes,
suas performances, seus usos particulares das linguagens, a partir de imagens captadas
em residências .
A pesquisa encontra-se organizada do seguinte modo: o primeiro capítulo
discorre sobre o quadro teórico na oralidade, nas cantigas de ninar e na área da surdez.
Trata da oralidade em nosso país e como se deram os seus primeiros registros. Nas
cantigas de ninar, destacam-se os estudos lingüísticos e suas apreciações; as
contribuições das mulheres africanas e afro-descendentes; e algumas considerações de
cunho psicanalítico. No segundo capítulo apresentam-se os aspectos metodológicos,
descrevendo os elementos pertinentes à investigação. Por último, o capítulo III,
apresentando as análises e discussões apoiadas nos resultados obtidos. Seguem-se os
referenciais bibliográficos e das ilustrações e os anexos.
A relevância desta investigação aponta na direção da possibilidade de um maior
conhecimento do gênero cantiga de ninar na perspectiva da oralidade, como também
descortinar o universo do acalantar pertinentes ao mundo surdo. Não a pretensão de
exaustão do tema, mas de trazer contribuições para o mesmo, quiçá, ampliando o
interesse por profissionais da lingüística e das áreas afins.
Por fim, este estudo que traz por título “Gênero cantiga de ninar: do mundo
ouvinte ao mundo surdo” não envereda na relação de grandeza, maior/menor,
contém/está contido. Quem se encontra contido é o gênero cantiga de ninar nestes dois
universos da manifestação humana.
15
CAPÍTULO I
QUADRO TEÓRICO
1.1 - IMPORTANTES REGISTROS DA ORALIDADE
A história da humanidade encontra-se marcada por antes da invenção da escrita e
depois dela. Período comumente denominado por pré-histórico e histórico. Criação dos
sumérios, na antiga Mesopotâmia, a escrita cuneiforme deu o primeiro passo ao registro
de um conhecimento ou dado desejado. A escrita alfabética, inventada na Palestina,
depois de 1700 a.C., originária dos ideogramas, aos poucos assume a função de
representação puramente fonográfica, isto é, relação dos sons da fala para a modalidade
escrita. Este percurso do oral ao escrito perdurou séculos. A respeito deste processo,
muitos autores desenvolveram diversas teses.
Em uma dimensão humana da ciência, o medievalista suíço Paul Zumthor (1993,
2000), desenvolve suas proposições acerca da oralidade sob uma perspectiva onde a
teoria da literatura, de fato, surpreende-se diante de um olhar diferenciador do objeto em
questão. Sua teoria, poética e científica, considera a produção oral em seus diversos
aspectos, afastando-se de um paradigma cartesiano, indo ao encontro de um exercício do
holismo na oralidade.
A oralidade da primeira infância permeia o encantamento e o deleite da
comunicação, singularmente, tanto na linguagem das crianças, quanto nos gêneros a elas
direcionadas. As cantigas de ninar à luz dos princípios zumthorianos, assumem uma
leitura pertinente, onde a performance tem um lugar particular e o mesmo pode-se
colocar em relação à voz. O preconceito literário afastou a intelectualidade da sua
essência oral ou vocal, como prefere Zumthor, derivado da sua materialidade não-
palpável, isto é, longe da escritura. Observa-se a marca da tradição escritural em relação
à oralidade, pelo modo marginalizado como esta vem sendo tratada nos últimos séculos.
16
Daí a dicotomia dos termos popular por letrado ou erudito (Zumthor, 1993, pp.118-
121), carregados por uma ideologia de superioridade da escritura. Mais que isso, o
lettrati e o illettrati assumiam uma conotação além do simples decodificar ou não o
sistema alfabético, relacionava-se à autoridade, à razão e ao poder que aos letrados era
imputada, isto é, uma forma de regular o comportamento social, ao passo que aos não-
letrados a primazia era a sensibilidade do oral com seu corpo, sua voz e sua
performance.
Refletindo sobre o modo de organização cultural e seu trajeto do oral ao escrito,
o autor (1993, 18-19) propõe os seguintes tipos de oralidade: a) primária (imediata ou
pura), onde não há contato com a escrita, presentes nas sociedades ágrafas ou de
isolamento social; b) mista, a escrita e a oralidade existiam de modo simultâneo, mas
ainda o oral com maior peso; c) secundária (ou segunda), a escrita inscreve-se de modo
predominante; d) mediatizada, a expressão oral encontra-se afastada mecanicamente no
tempo e o espaço, não há a presença física.
Os textos de natureza poética direcionados a um auditório de oralidade
secundária, inscrevem-se em cinco operações históricas : a produção, a comunicação, a
recepção, a conservação e a repetição, segundo Zumthor (1993, p.18). Estas operações
efetivam-se através do canal oral-auditivo, podendo também ser por registro visual ou
ainda, no caso dos surdos, via a modalidade espacial-visual da língua. A performance se
constitui à medida que a comunicação e a recepção ocorram no mesmo momento.
Outro ponto de destaque na teoria de zumthoriana é o atribuído ao suporte. De
acordo com o prestígio da tradição de determinado grupo social, em dado período
histórico, a voz ou o livro (na atualidade, também outros suportes midiáticos) podem ser
o objeto ao qual se imputa o poder e a autoridade. Para os estudos de Zumthor, a voz tem
um destaque particular, tanto que em sua obra afirma preferir o termo vocalidade ao de
oralidade. Em A Letra e a Voz (1993, p.21) declara que a vocalidade é a historicidade
de uma voz: seu uso, (...) que na voz e pela voz se articulam as sonoridades
significantes, compreende a voz como a materialidade do texto oral e questiona os
porquês da cisão e afastamento do ser humano da sua essência de vocalidade, de
corporeidade.
17
Não obstante, o que deve nos chamar mais a atenção é a importante
função da voz, da qual a palavra constitui a manifestação mais
evidente, mas não a única nem a mais vital: em suma, o exercício de
seu poder fisiológico, sua capacidade de produzir a fonia e de
organizar a substância. Essa phône o se prende a um sentido de
maneira imediata: só procura seu lugar. (ZUMTHOR, 1993, p.21)
O ato da audição vai significar ao sujeito do discurso a intenção do outro. E é na
superficialidade do texto escrito, que os leitores carecem em vislumbrar o dito sob a
tessitura fluída da vocalidade, com suas marcas não-explicitadas, não-finalizadas. A voz
e sua onipresença. O texto a ser ouvido, visto, sentido. A voz concretiza-se no corpo, que
por sua vez, desencadeia o efeito da performance. Sobre o corpo, Zumthor (2000, p.45)
discorre que existe enquanto relação, a cada momento recriado, do eu ao seu ser físico)
como sendo da ordem do indizivelmente pessoal, estando na ordem da relação de
subjetividade.
Como ponto de reflexão sobre a performance, o autor discute o conceito a partir
do próprio ato, no acontecimento oral e gestual e a indexação do corpo neste processo
final, a obra. Adiante, inclui a discussão do corpo e sua relação com a performance via
espaço. Performance, espaço, corpo, voz, acrescente-se a teatralidade. O conjunto destes
elementos significa na alteridade, em um outro espaço perceptual de um Outro. Por
fim, apreende o conceito de performance como originário, tomado por fonte perceptiva
e não como representação do primitivo, da origem. Originário por ser o lugar inicial do
qual se constrói a obra, a função da cognição.
O Brasil permaneceu na oralidade primária, segundo tipologia de Zumthor, por
quase três séculos. Na primeira metade do século XVIII, por apenas cinco meses,
instala-se na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro a primeira tipografia. A capital
da província retoma as atividades tipográficas em 1808, sob censura do governo
português. Em 1822, o Rio de Janeiro já contava com mais quatro tipografias.
Neste mesmo ano, é editada a “Introdução à História da Literatura Brasileira”, do
crítico, professor e historiador da literatura brasileira, Sílvio Romero. A memória oral
brasileira ganha destaque na “História da Literatura Brasileira”, no capítulo “Tradições
Populares. Cantos e Contos Anônimos. Alterações da Língua Portuguesa no Brasil”,
18
publicada em 1888. Neste tomo, além de registrar a oralidade do universo da literatura
infantil, o autor discorre sobre as contribuições étnicas na formação literária brasileira,
destacando o caso de mestiçamento de nossa literatura popular e anônima, indicando as
várias origens de nossos cantos e contos, destacando as fontes portuguesas, indianas e
africanas (Romero, 1888, p.43). Tece algumas considerações quanto ao menor número
de registros de origem africana e maiores da indígena, pois, objetivando a cristianização,
os estudos tupis desenvolveram-se em maior escala. Aos negros eram impostas uma
nova língua e não despertava interesse dos colonizadores para o estudo das suas línguas
nativas, por conseqüência das relações de poder e dominação pertinentes à escravatura.
Os povos africanos oriundos de diversas regiões, por conseguinte, diversas
línguas, dispostos em um mesmo espaço, aos poucos tinham apenas fragmentos de suas
origens lingüísticas, principalmente, em seus descendentes. O autor descreve este
fenômeno, tomando por exemplo os cantos das tradições populares, como uma
justaposição de duas línguas num mesmo canto, e da existência de certos cantos
espalhados em nosso idioma, os quais são de feição evidentemente tupi ou africana
(Romero, 1888, p.29). Pode-se ler também como uma forma de resistência, para a
preservação da sua língua, diante da língua dominante. Os versos abaixo foram colhidos
em Pernambuco e, segundo o estudioso, foram os primeiros registros do canto
luso/africano (Romero, 1888, p.43):
Você gosta de mim,
Eu gosto de você;
Se papai consentir,
Ó, meu bem,
Eu caso com você...
Alê, alê, calunga
Muçunga, muçunga-ê
A escassa literatura destinada aos pequenos vinha, em sua maioria, de Portugal e
os raros exemplares aqui editados no Brasil não apresentavam a modalidade falada no
país. Com o movimento regionalista brasileiro, destaca-se a questão identitária e são
19
publicadas as primeiras coleções de livros infantis em português do Brasil, em 1894,
pela Livraria Quaresma. A primeira parte da coleção da Biblioteca Infantil da Livraria
Quaresma, foi Contos da Carochinha, oriunda da tradição oral popular organizada pelo
jornalista Figueiredo Pimentel.
O expoente dos registros das tradições orais brasileiras, sem dúvida, foi o
potiguar Luis da Câmara Cascudo, autor da obra mais completa sobre a brasilidade o
Dicionário do Folclore Brasileiro, de 1954. Outra obra relacionada à temática em
questão do Cascudo, trata-se da Literatura Oral no Brasil, de 1956.
No Brasil, as edições oriundas das narrativas orais organizam-se em três
momentos, de acordo com Almeida e Queiroz (2004). As autoras descrevem este
primeiro momento marcado
pela iniciativa particular dos estudiosos e pela prioridade à coleta
sobre a reflexão analítica; o segundo, pela busca de rigor
metodológico, com ênfase no registro de informações sobre o
contador e na fidelidade ao dialeto da narração oral no registro escrito,
de certa forma facilitada pelo desenvolvimento de equipamento de
gravação magnética; no terceiro ciclo, o videofilme e o
desenvolvimento das teorias da enunciação parece voltar a atenção
dos pesquisadores para a cena performática. (ALMEIDA e
QUEIROZ, 2004, p. 123)
Uma parcela expressiva das produções literárias de cunho oral caracteriza-se por
compilações, coletâneas, recriações, atribuindo autoria como anônima, coletiva, como
também desconsiderando o modo pela qual a oralidade se apresenta. Relegam-se os
gestos, a voz, o modo da expressão: a autoria da obra oral. Em 1960, Deoscóredes M.
dos Santos, o Mestre Didi, publica o primeiro registro autêntico das narrativas orais no
Brasil, em Os Contos Negros da Bahia.
Atento a tais questões, o NUPPO Núcleo de Pesquisa e Documentação da
Cultura Popular da UFPB, traz por princípio descrever e arquivar a forma das
narrativas dos contadores. O pesquisador do NUPPO, Altimar A. Pimentel, em 1995,
publica a obra Estórias de Luzia Tereza. Além do próprio título aludir à contadora Luzia
Tereza dos Santos a autoria das 236 narrativas contidas na coletânea, descreve, ainda, o
20
modo de suas narrações. A performance passa a ser um elemento agregador ao conjunto
da obra.
Os tipos de publicações mais encontrados dos gêneros orais são os contos
populares. Almeida e Queiroz (2004) afirmam que o ápice nas publicações dos livros de
contos orais é o período de 1961 a 2000. Observa-se, contudo, que as cantigas de ninar
raramente são contempladas por estas obras literárias. Quando a são, restringem-se em
elencar e registrar as cantigas, que tecer considerações a seu respeito ou analisá-las.
Pode-se, então, levantar algumas reflexões: como já foi posto, as expressões da literatura
oral, de modo geral, são tidas como de menor valor pela intelectualidade; dentre as
manifestações da oralidade, as cantigas de ninar apresentam uma forte característica
performática; por último, na perspectiva dos gêneros discursivos, deve-se considerar
como pertinente ao universo doméstico peculiar aos elementos feminino e infantil. Sabe-
se que homens também podem (e devem) acalentar suas crianças, todavia,
historicamente esta incumbência destina-se ao gênero feminino, particularmente às mães
ou cuidadoras.
Pode-se verificar tal premissa baseado na análise da obra Canções do Berço de
Leite de Vasconcelos (1907), onde em suas 147 páginas, relativas aos posicionamentos
teóricos e as letras das canções de ninar, temos as seguintes citações: 42 vezes para a
palavra mãe, 10 para ama, 06 para a, 02 para madrinha, 01 para tia. Somando-se 61
citações de figuras femininas para apenas 04 citações da palavra pai. Claro está o ano de
edição da obra datar do início do século passado, todavia, reflete em que proporção o
elemento feminino, particularmente a mãe, figura no universo da performance do
acalantar. Hoje, possivelmente este perfil encontre-se com as distâncias diminuídas,
graças ao perfil da mulher e do homem contemporâneos em dividir as responsabilidades
com a criação e educação dos filhos.
A linearidade da modalidade escrita, mesmo que buscando descrever a oralidade,
percorre um caminho diferenciado em seu modo de representação. Mesmo na escritura,
os elementos (extra)lingüísticos pertinentes à palavra oral encontram-se constituídos,
segundo as concepções de Zumthor, nos “índice de oralidade”, compreendendo tudo o
21
que, no interior de um texto, informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua
“publicação” (Zumthor, 1993, p.35).
A preocupação com o uso da oralidade na literatura no Brasil despontou de modo
singular com os modernistas, revisitando e relendo os românticos, todavia, com traços
nacionalistas, de forma a falar a “nossa língua”. Mário de Andrade foi um dos
defensores da tecnologia a serviço do registro oral, através das filmagens, fotografias e
gravações. O sentido vanguardista via-se também nas artes plásticas. Artista brasileiro
por adoção, Lasar Segall, pintor, ou poderia ser dito, o sociólogo dos pincéis, retratou de
modo ímpar a singeleza e os contrates do Brasil. Precursor do modernismo brasileiro,
Segall, em sua obra, Mãe Preta (fig. 1), o arquétipo da ama negra, de tons terra e outros
de leveza tropical, traz a essência da brasilidade e seu povo, suas relações étnicas,
culturais, sociais, humanas.
(Fig. 1 - Mãe Preta; Lasar Segall, 1930)
na peça uma voz murmurada, embalada com o cheiro da voz, parafraseando
Barthes (2004, p. 400). Vê-se uma oralidade performática, percebendo-se o movimento
do embalar. Tem-se um cantar silencioso ou uma canção silenciada, como resposta
apresentada pelos conflitos do poder, dos lugares sociais de dominância. Talvez, uma
resposta silenciosa, amorosa, valente. As relações sociais se entrelaçam em uma
vocalidade zumthoriana, pelos pincéis de Lasar Segall: a “mãe preta”, a escrava, a
cuidadora, a ama-de-leite, a que acarinha o seu senhorzinho, ou melhor, o sinhozinho; o
“filho” branco, prole do dominador, seguro, alimentado, amado que acarinha a sua mãe
22
negra e aos poucos, tomando para si a negritude da sua ama, sua face tomando a cor de
quem lhe permite a continuidade da vida. Não palavras. sons, vozes, corpos,
performance, discursos.
A incursão na oralidade pelos modernistas na literatura, através de uma “língua
brasileira”, segundo reflexões de Dino Preti (apud Almeida; Queiroz, 2004, p.151-152), não
obteve o êxito pretendido devido aos matizes aristocráticos do movimento.
1. 2 - SOBRE AS CANTIGAS DE NINAR, ACALANTOS OU CANÇÕES DO BERÇO
O escritor pernambucano Mário Souto Maior (2007) nomeia o acalanto por
cantiga pra fazer menino pequeno dormir menino chorão, manhoso, malcriado. O
pesquisador pontua as contribuições mais marcantes nas cantigas de ninar brasileiras
como sendo portuguesas, trazidas pelas mulheres que guardavam boa parte da tradição
oral. Outra forte influência foi a dos povos africanos. O contato das mulheres africanas e
afro-descendentes nos primórdios da colonização brasileira, enriqueceu-as com o que
elas já traziam das suas culturas orais, agregando beleza e sonoridade às cantigas de
ninar portuguesas. O ninar malemolente, caminhando e cantando. Línguas que se
entrecruzaram e formaram novas palavras e novos versos nos cantares brasileiros de
novos mundos.
O lingüista, filólogo e etnógrafo português Leite de Vasconcelos, um marco na
cultura lusa dos séculos XIX e XX, apresenta dentre sua vasta obra, em Opúsculos:
Etnologia (parte II) Canções do Berço. Publicada originalmente em 1907, Canções do
Berço foi revista e atualizada em 1938. Justifica a escolha do título por considerar mais
pertinente à primeira infância, uma vez que, segundo o autor, não há em nosso léxico
palavra que defina com precisão o ato de acalantar as crianças no berço, nos braços ou
no regaço, tal como em outras línguas, tal como o francês, com berceuse. Esta obra é
resultado de pesquisa bibliográfica, contando com diversos colaboradores citados, de
coletas em Portugal e no arquipélago da Madeira. Constitui-se, até os dias de hoje, como
uma das obras mais completas sobre a temática, em língua portuguesa.
23
O estudioso descreve o ato maternal do acalantar como um segredo universal,
independente ao grau de civilização. O conhecimento do mélico, tátil-cinestésico e
afetivo resulta em um produto en(canta)tório do adormecer. A transmissão desta
expressão poética da linguagem humana é feita de geração em geração, geralmente por
mulheres, acolhendo a criança para acalmá-la e adormecê-la nos braços, no berço, na
cesta, na rede.
Resultado de suas investigações, Leite de Vasconcelos (1907, pp.782-783)
registra a presença deste gênero além dos limites europeus: nos índios do Chiloé
(província do Chile), nos Dindjie de Alasca, nos Sioux (Lowa), no Haiti, nos Índios do
Brasil, nos Árabes e Berberes, nos Hottentotes, em várias ilhas da Oceania. Segundo o
autor, haveria uma quantidade maior de registros dos acalantos na Europa, porque os
etnógrafos acumulam constantemente grande riquesa de matérias
1
. Já na Grécia
Antiga, encontra-se uma variedade de termos relacionados ao ato do acalantar. No
século IV-III a. C, Teócrito descreve em seu idílio, uma canção de acalanto cantada por
Alcmena para seus filhos gêmeos, Heracles e Íficles (Leite de Vasconcelos, 1907,
p.784):
Dormi, meus meninos,
Um sono doce e brando;
Dormi, almas minhas,
Irmãos um do outro,
Filhos afortunados;
Repousai felizes,
E felizes chegai até amanhã de manhã.
Alguns escritos romanos decorrem sobre o poeta Pérsio, do primeiro ano depois
de Cristo, referindo-se ao cantar de uma ama-de-leite. Em 327, Arnóbio também faz
referência a cantos para ninar crianças, chamando-os por doces cantigas. Na Itália dos
séculos XIII-XIV, o singular poeta Dante Alighieri apresenta alguns versos, reportando-
____________________
1
Todas as citações de Leite de Vasconcelos (1907) nesta pesquisa são transcritas conforme os originais do
português de Portugal em sua data de publicação.
24
se ao termo nanna. A melodiosa palavra nanna e a sua congênere ninna, conjuntas
ninna-nanna, no plural ninne-nanne, “canções do berço”, mostram por si mesmas de
quanta poesia os Italianos revestem o cuidado da primeira infância (Leite de
Vasconcelos, 1907, p.786). As cantigas de ninar italianas podem ser de origem profana
ou religiosa, neste caso, são entoadas nos autos natalinos. A França conta com
considerável número de canções de ninar e são denominadas por berceuses. A memória
das canções francesas, de acordo com os registros de Leite de Vasconcelos (1907,
p.789), está representada em diversas obras, muitas vezes contando com partituras. Além
destes, o pesquisador elenca uma série de outros países onde se encontram registros das
cantigas de ninar, tais como: Suíça, Alemanha, Áustria, Hungria, Croácia, República
Checa, Bélgica, Holanda, Inglaterra, Espanha, Bulgária, Romênia, Rússia, Polônia,
Turquia, Lapônia, Finlândia, Dinamarca.
As canções do berço portuguesas conservam seus escritos a partir do início do
século XVI, segundo os estudos de Leite de Vasconcelos (1907, p.793). Neste período,
ilustres personalidades portuguesas figuram entre os que aludem as canções do berço em
suas obras: o dramaturgo e poeta Gil Vicente, o poeta maior da língua portuguesa Luís
Vaz de Camões e o escritor António Prestes. Neves de Melo, em 1872, publica o
primeiro livro contendo uma relação de cantigas de ninar. Outros autores que tratam da
temática: Rodrigues de Azevedo (1880), Adolfo Coelho (1881), o próprio Leite de
Vasconcelos (1882), Theófilo Braga (1886) e A. Tomás Pires (1905).
apropriação dos acalantos em composições musicais, cartões postais, trovas e
romances, a exemplo de um antigo romance conhecido por “Conde Alarcos (ou Conde
Iano)” ou D. Silvana (ou D. Infanta)”, dentre outros títulos, onde a condessa nina seu
filho amamentando-o com ternura antevendo a sua morte ordenada pelo rei. (Leite de
Vasconcelos, 1907, pp. 798- 799).
A psicanalista Ana Lúcia Jorge (1988, p.38), em O Acalanto e o Horror, relata
alguns depoimentos obtidos pela mesma de Cláudio, Marina e Orlando Villas-Boas
sobre acalantos de povos indígenas do Alto Xingu. Consoante os informantes, esses
acalantos não apresentam textos, apenas um som contínuo sibilado. Pelo chiado –
“como o de cobra”, dizem os três depoimentos a mãe encanta a resistência infantil,
25
encanta a “serpente” que impede o sono (Jorge, 1988, p.39) O som seria produzido
junto ao ouvido da criança ao embalo da rede ou mesmo nos braços. Estes dados diferem
de outras informações de acalantos indígenas contendo letra, como as cantigas de
mucuru, pertencentes à língua indígena amazônica nheengatu (Leite de Vasconcelos,
1907, p. 872 e Souto Maior, 2007). Tais diferenças apenas projetam a diversidade dos
povos da floresta, haja vista as dimensões continentais de um país como o Brasil. A
produção destes sons silabados e/ou silabados, na verdade, podem ser encontrados no
acalantar universal.
O Instituto Auditório Ibirapuera (2008), em São Paulo, dentre outras iniciativas,
conta com o Projeto Acalanto com um arquivo com áudios, textos e vídeos com cantiga
de ninar em diferentes idiomas, dentre eles, em línguas indígenas. Dos Waurá, do Alto
Xingu, há dois registros de acalantos em seu idioma Arawak e outra cantiga de ninar dos
Sateré-Mawé. Como nos acalantos em outras línguas, aparecem personagens míticos do
sono infantil. A Sateré-Mawé de nome Piã deixa registrada em vídeo uma cantiga de
ninar aprendida com sua mãe e cantada para seu bebê que i nascer. A sua
performance consta de uma vocalidade doce e suave em acalanto de um macaquinho
ninado por ela em uma rede de palha. Diz a cantiga de ninar:
“Tonen tonte kukuton”
Tonen tonte kukuton
Tonen tonte kukuton
Tuape w’i milítão
Tuxímaka’tu’ mima’ karato
Tuap’e’te’ru w’i milítão.
“Sapo cururu debaixo do girau” (Tradução)
Sapo cururu debaixo do girau
Empresta teu sono pro nenê dormir
Se ele não dormir
O sapo grande vai te pegar.
Uma cantiga de ninar de notada influência africana, recolhida por Castro (1965,
p. 47) em 1962, em Lagos, Nigéria, de uma senhora recifense carinhosamente chamada
por “tia” Romana, também apresenta os elementos míticos Tutu, um dos sinônimos do
Papão (Souto Maior, 2007), e o sapo como se lê abaixo:
Sum, sum, sum
Dorme, dorme, que vem tutu,
Lá no mato tem um bichinho
26
Que se chama cururu
A repetição constitui uma das principais características das cantigas de ninar
observada independentemente de aspectos étnicos, culturais, sociais. Das cantigas acima,
ambas se iniciam por repetições. Todos os rituais e práticas sagradas privilegiam a
repetição seu efeito, catártico e encantatório, participa do efeito de elaboração de
uma passagem, como pontua a psiquiatra e psicanalista Nayra Ganhito (2001, p.90).
Verifica-se na repetição de um único fonema (vocálico, fricativo ou nasal), de uma
sílaba (ex.: rô, rô, rô), de palavras (ex.: boi, boi, boi) e, finalmente, a repetição da própria
canção como um todo. O uso desse recurso possibilita uma cadência, propiciando o
relaxamento e posterior adormecimento. Leite de Vasconcelos (1907, p.892), seguindo a
linha de pensamento ritualístico, afirma que do mesmo modo que substituição de
umas religiões por outras, as divindades mudam de caráter, quando dormem: as
canções em que as mãis o mandam embora constituirão vestígios de fórmulas mágicas e
excretórias
2
.
O acalanto resulta das ações mecânicas do embalar/cantar e de outros processos
mais complexos, atualizados principalmente através da significação subjetiva que os
temas das cantigas de ninar adquirem no espírito das crianças, segundo Florestan
Fernandes (1959, apud Jorge, 1988, p. 46). O autor privilegia as figuras femininas ao
listar os atores na situação do acalanto, referindo-se à ação paternal como esporádica. Ao
tratar da temática melodia, Jorge (1988, p. 187) analisa as descrições de diversos
pesquisadores e aponta como convergência descrições do tipo simplicidade e suavidade.
A melodia pode ser compreendida como o elemento que traz brilho, que significa a
composição musical.
Os corpos foram censurados em diversas fases da história. O acalantar, trazendo
a criança ao corpo, envolvendo-a com a sensualidade da voz, foi compreendido como
algo inadequado à educação infantil durante séculos, apesar da ação persecutória das
____________________
2
Respeitando o texto original, conforme rodapé 1.
27
mães e cuidadoras. Tal censura deve-se ao fato de o corpo falar, muitas vezes mais do que o
pretendido, do que o desejado.
É nesse sentido que se diz, de maneira paradoxal, que se pensa sempre
com o corpo: o discurso que alguém me faz sobre o mundo (qualquer
que seja o aspecto do mundo de que ele me fala) constitui para mim
um corpo-a-corpo com o mundo. O mundo me toca, eu sou tocado
por ele; ação dupla, reversível igualmente válida nos dois sentidos.
(ZUMTHOR 2000, p.89)
Em análise etimológica de alguns léxicos correlacionados às cantigas de ninar,
Leite de Vasconcelos (1907, p. 806) tece algumas considerações. Segundo o autor, em
Portugal, de acordo com a localidade pode-se dizer arrolar e rolar para designar o canto
acompanhado do movimento do berço, como em Castelo Branco. Todavia, em Fozca
usa-se apenas rolar. Sua origem seria o arrulhar, som produzido pelos pombos e rolas.
Em Castelo Branco, como termo afim, há o acalentar, empregado para quando as
mulheres cantam às crianças aconchegadas e aquecidas em seu colo.
O étimo destas palavras não é lat. calere, como inexactamente dizem
alguns A.A.;pois o –L– latino devia sincopar-se, como em aquecer=
aqueecer<acaecer=a-caecer<calescere, ao passo que acalentar tem
A. O verbo acalantar vem de calar; o sentido nos é dado pelo
hespanhol acallar “hacer callar”. (...) F. Evaristo Leoni, no Genio
da Lingua Portuguesa, liv. I, 1858, pp. 319-322, estudou êste processo
derivativo, e explicou bem o verbo calentar com derivado de calar.
(LEITE DE VASCONCELOS, 1907, p. 806).
Nos relatos do autor, constam que em regiões onde não se faz uso destas
nomenclaturas, como no concelho de Alandroal, as palavras embanar e embalar trazem
o sentido de movimentar a criança ao berço, nos braços ou colo.
Em Houaiss (2001), o verbo acalantar, com datação do registro conhecido ou
estimado do século XIII, tendo por fonte o Índice do Vocabulário Português Medieval
(p.21), com a seguinte definição: ou relacionada a quente sob a f. calente- (<lat.
calens,entis ‘quente’) ou relacionada ao v. calar na acp. ‘tornar silencioso’;cp. esp.
acallantar ‘fazer calar, aquietar, sossegar’ e port. acalentar (p.38).
28
Cascudo faz referência à definição de acalanto elaborado pela musicista Oneyda
Alvarenga:
Canção para adormecer crianças. É palavra erudita, designando o ato
de acalentar, de embalar. No seu sentido musical equivale, por
exemplo ao da palavra francesa berceuse e da inglesa lullaby, foi
utilizado por extensão e pela primeira vez pelo compositor brasileiro
Luciano Gallet. Popularmente, nossos acalantos são chamados
cantigas de ninar. (CASCUDO, apud Jorge, 1988, p.34).
Na obra Canções do Berço, Leite de Vasconcelos (1907, p.800) propõe uma
forma de organização das cantigas de ninar ao qual denominou por espécies de canções
e seus temas. Optou por agrupar obedecendo a dois princípios gerais: às que servem
como que de prelúdio e às que aludem aos momentos ou fases do sono.
Às que se apresentam como que de prelúdio (p.800), referem-se à fase
anunciadora, predecessora ao estado de sono. Nestas canções são expressos, de modo
geral, os cuidados que as mães dispensam aos seus filhos. Foram colhidas treze canções.
Abaixo uma canção recolhida de Morcovo (p. 821):
A cantiga do rô rô
Minha mãi m’a ensinou;
Quando eu estava no berço,
Logo m’a ela cantou.
Às que aludem aos momentos ou fases do sono (p.800), correspondem desde a
etapa em que a criança demonstra o desejo de dormir, aquando adormeceu de fato.
Este grupo totaliza sessenta e sete canções. A princípio, o estudioso apresenta este grupo
composto por duas espécies de canções, entretanto, mais adiante faz referência a uma
terceira categoria. Explica que esta organização, de fato, serve mais para fins didáticos.
No conjunto, apresenta a seguinte classificação, as cantigas de ninar: a) de acalentar; b)
do berço (ou embalar); c) de uso para o acalanto ou o embalar simultaneamente.
As canções de acalentar (p.808) somam sete canções na obra. Neste grupo não
uso do suporte material. Para a função do acalanto lança-se mão dos braços, do colo
29
ou do regaço. Em seu conteúdo podem apresentar o uso da linguagem infantil ou o
contentamento da mãe por ter a criança nos braços, como na canção da região de Minho
(p. 821):
Quem tem meninos pequenos
Alivia a criação:
De dia tem-nos nos braços,
À noite no coração.
Mas, em outros momentos, volta-se nostálgica a rememorar sua vida sem a
responsabilidade do rebento, vê-se assim nesta cantiga de Alvações do Corgo (p. 822):
Quando eu era solteirinha,
Usava fitas e laços:
Agora, que sou casada,
Trago o meu filho nos braços.
No segundo grupo, as canções do berço propriamente ditas (p.808), destinam-se
ao ato efetivo de adormentar as crianças ao berço ou semelhante em movimento. Na
obra, o autor afirma serem as de menor número, todavia, publicou dez canções. Pautada
nos princípios do cristianismo, roga aos anjos, à Maria e ao Cristo proteção ao seu filho.
Em algumas delas, rogasse aos anjos que embalem a criança imprimindo ritmo ao berço.
uma transferência da figura infantil do menino Jesus para a criança a ser embalada,
da mesma forma, a Virgem Maria para a mãe. As letras referem-se aos berços como
cobertos em ouro, tecidos delicados ou por plantas aromáticas. De Valpaços (p. 823):
Rola, rola, meu filhinho,
No teu berço de alecrim...
Lençóis de cambraia fina,
Cobertores de cetim.
30
Por último, estão as canções de acalentar e embalar (p.810), em que se observa
uma maior complexidade, pois pontos comuns, tanto no sentido, quanto na forma.
Este grupo totaliza quarenta e cinco canções. Subdividem-se em quatro etapas:
a primeira (p.810) consta no período inicial do sono infantil. a solicitação
da proteção aos elementos míticos-religiosos, como também um chamamento
ao sono. Aqui também uma personificação mítica do mesmo. O grupo
conta com seis canções. Recolhida em Minho (p. 827):
O menino quer dormir,
O sono num le quer vir:
Anda, sono, anda tu,
para o menino dormir.
a segunda (p.810-811) caracteriza-se ainda com a marca do cristianismo.
Contudo, neste grupo, a mãe deseja entregar a criança aos anjos ou à Virgem
Maria, com a intenção de que a devolva em tempos vindouros, ou com o
intuito de proteção, ou, ainda, por motivos relacionados à necessidade de
trabalho para sustento do lar. São sete as canções desta etapa. Como
ilustração de Moncorvo (p. 829), segue abaixo:
O meu menino é d’ouro,
D’ouro é o meu menino:
Hei-de entrega-lo à Virgem
Emquanto é pequenino.
a terceira (p.811) lança mão do vocabulário infantil, assimilam-se as figuras
da Virgem, do Menino-Jesus e dos Anjos, imputando a José a função de
embalar o neném. O autor acredita que a origem destas cantigas sejam os
períodos natalinos, onde o povo haveria se identificado com a imagem da
Sagrada Família. Outra característica encontrada neste grupo refere-se em
31
solicitar o auxílio da Natureza e das entidades sobrenaturais. Configura o
grupo com maior número de canções recolhidas, somando um total de trinta.
De Fozcoa (p. 836):
Rola, rola, meu menino,
Ca mãizinha logo vem:
Foi lavar os cueirinhos
À fontinha de Belém.
a quarta e última (p.811-812) trata das dificuldades da vida e sugere que a
criança adormeça para ir aos ofícios laborais. Recolhida de Fozcoa (p. 836),
encontra-se uma das duas canções descritas neste grupo:
Dorme, dorme, meu filhinho,
Porque eu tenho o que fazer:
Eu quero ir ganhar o pão
Que precisamos comer.
Tratadas separadamente, são descritas mais trinta e sete canções relacionadas ao
período onde a criança já adormeceu (p.812). O autor retrata a maioria delas onde a mãe
ordena às entidades míticas para não incomodarem o sono da criança. Elas estão
relacionadas ao Papão, às aves entre outros seres fantásticos. Além das canções
propriamente para ninar crianças, o autor descreve também o uso de quadras, trovas,
provérbios e ditados musicados, ou canções populares para a mesma finalidade. As
temáticas geralmente são de origem religiosa, outras voltadas às entidades sobrenaturais
ou atividades do cotidiano. A influência dos textos religiosos, particularmente os
cristãos, é bastante presente na poética popular portuguesa. É comum a recorrência ao
Cristo, à Virgem, ao José, aos Anjos e a um considerável número de santos e santas, de
acordo com as crenças da região. Algumas das crendices populares foram incorporadas à
tradição cristã, santificando-lhes.
32
Os papéis desempenhados pelas figuras religiosas e míticas supracitadas,
encontram-se com o mesmo sentido nas considerações acerca das entidades do
imaginário infantil. Algumas vezes, os entes ou as figuras religiosas são solicitados a
proteger a criança e, outras vezes, para levá-la se não dormir logo.
1.2.1 – DIVINDADES SONÍFERAS
O gigante Argos Panoptes (aquele que tudo vê) tinha cem olhos e quando
dormia, fechava apenas a metade deles. Hera, enciumada com o romance de seu marido
Zeus com a jovem princesa Io, transformou-a em novilha, determinando que Argos a
vigiasse. Zeus, inconformado, mandou Hermes salvar sua amada. Hermes narrou vários
contos, cantou e tocou flauta para adormentar o gigante. Argos dormiu, cerrando todos
os olhos. Hermes cortou-lhe a cabeça, salvando Io para Zeus.
A mítica grega nos mostra essa força encantatória, capaz de derrotar até um
gigante resistente ao sono. É neste imaginário mítico, fantástico, que se descreve um
fato: a palavra, a voz ritmada e a performance quebram as resistências deste outro.
Muitos povos personalizam e mitificam o sono. Hipnos e Sonho eram os deuses
do sono na mitologia grega e romana, respectivamente. O sono pode ser compreendido
como um fenômeno fisiológico do corpo ou como um deslocamento da alma. Estes
posicionamentos derivam da cultura dos povos em questão. De acordo com Leite de
Vasconcelos (1907, p. 889), os Karens da Birmânia, groenlandeses e certos índios da
América do Norte crêem no desprendimento espiritual durante o sono.
um conto alemão onde o rei Gunthram (Leite de Vasconcelos, 1907, p. 890)
dormia e, por estar com a boca aberta, sua alma saiu em forma de serpente. Ainda sobre
o mesmo país, uma crença que ao virar para o lado, a alma poderá esvair-se pela
boca. Uma variante dessa crença conta que se a criança deixar a boca aberta durante o
sono, sai um ratinho branco por ela.
Também, em algumas comunidades indígenas no Brasil, nas cantigas de murucu
recorre-se aos entes acutipuru e murucututu (coruja) para papar os pequenos, que
33
insistem na vigília (Leite de Vasconcelos, 1907, p. 872). Segundo Cascudo (1954, apud
Jorge, 1988, p.37), em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, o acutipuru, também
conhecido por quatipuru ou caxinguelê, significa cutia enfeitada ou salta-sem-barulho.
Assim com ocorre em outros povos, eles crêem que, ao morrer, a alma se deslocaria ao
céu sob a forma de acutipuru. Já em Leite de Vasconcelos (1907, p. 872), a palavra
acutipuru traz como sinonímia o termo macaco.
Para outros povos a alma se encontra associada às aves. No cancioneiro
nordestino de acalanto, encontra-se o Pavão em cima do telhado. Leite de Vasconcelos
(1907, pp.890-891) cogita a possibilidade de nos primórdios da cultura portuguesa,
como em outras culturas, houvesse uma associação entre o sono infantil e a vinda do
papão para levar/comer/papar a alma, personificando o próprio Sono.
Diversas são as entidades míticas encontradas nas cantigas de ninar para espantar
as crianças que se recusam a dormir, em diferentes períodos históricos e em diferentes
culturas. Na cultura lusa, Leite de Vasconcelos (1907, pp.893-897) elencou algumas
delas: o Velho (das Unhas/ do Cobertor/ das Calças Vermelhas); a Preta; a Ronca; a/o
Sarronca; o Papa-ronquilhos; o Gadunha; o(a) Velho(a); a Feiticeira ou a Bruxa; o
Diabo; o Lobo; a Raposa; o Medo; a Moça; a Maria-da-Manta; o Coco (a Côca/ a Cuca);
o Pavão; o Feio. E seguiu com outros povos que também possuem seus seres míticos
terroríficos para o sono dos pequenos: Itália – Strega, il Baú, l’Orco, la Belfana; Espanha
Coco, el Duende, el Bu, la Mano Negra, el Moro, los Judios, Ogre, o Preto, o Homem
do Saco; Romênia Striga; Alemanha - Cão Pastor (negro), Ovelha (preta), a Morte e o
Bubu, Wuotan e Frau Holle; Argélia Beauprétre; Bélgica Knochesur-mer; Escócia
Mab; e dos povos Hebreus– Lilith; Coptos-católicos – Berselia; Persas Aal; e Boêmios
Polednice. A forma como os entes sobrenaturais povoam o imaginário é concebido
como constitutivo dos seres humanos. Quanto ao conceito do feio, mais uma vez
recorrendo à mitologia, tem-se a górgona Medusa e no cristianismo o Diabo. O negro e
o velho também são elementos bastante freqüentes nas cantigas de ninar, esteriotipados
como elementos medonhos, refletindo os valores culturais de uma determinada
sociedade.
34
Popularizada no Brasil pelo escritor paulista Monteiro Lobato, na obra Sítio do
pica-pau amarelo, a Cuca é uma das figuras presentes do universo infantil. Personagem
conhecida por gerações e gerações, presente nos contos populares e nas cantigas de
ninar, muitas vezes sendo substituída pelo Papão. A sua origem é narrada por Leite de
Vasconcelos, oriunda da personalidade Côca portuguesa, que por sua vez, seria um
desdobramento do feminino da palavra coco. O autor relata haver citações em textos de
Gil Vicente e João de Barros (séc. XVI) a respeito do coco.
Também o médico judeo-português Amato Lusitano (séc. XVI),
referindo-se ao côco índico, diz que êste fruto, “como apresenta à
superfície depressões que lhe dão o aspecto de uma cabeça de macaco,
recebêra o nome de côco com que as mulheres costumavam meter
mêdo às crianças. Vê-se desta notícia (a qual concorda com a de João
de Barros) que no séc. XVI não existia o co na imaginação,
como hoje a Côca, mas tinha representação figurada, espécie de
máscara. (LEITE. DE VASCONCELOS, 1907, p. 902).
Máscaras são usadas para assustar crianças ou adultos desde a antiguidade e em
culturas com grau de civilização variado, como no caso da Grécia.
As cantigas brasileiras mais populares são Nana (Dorme) Neném e Boi da Cara
Preta. O cantor e compositor Dorival Caymmi introduziu em sua música Acalanto
(anexo A), como refrão, a canção Boi da Cara Preta. O mítico oral das cantigas de ninar
também esteve representado na abertura dos Jogos Pan Americanos Rio 2007,
interpretado pela cantora Adriana Calcanhoto (Energia do Homem, 2007), na música do
Caymmi. A apresentação intitulada “Energia do Fogo” trazia elementos do universo
onírico infantil e das tradições brasileiras: o Boi da Cara Preta, a Coruja, a Bernúncia (de
Santa Catarina), o Cazumbá (do Maranhão) e a Carranca (da região do São Francisco).
Um estádio embalado pelas vozes de várias vozes. Entram os palhaços para espantar os
bichos feios. O arquétipo da essência humana, onde colidem, dialogam, todos os outros
em todos os eus: o palhaço. O medo no jogo infantil, do temível Papão, passa por um
deslizamento de sentidos. As crenças humanas não podem ser desconstruídas, pois elas
mesmas se adaptam, somam, transmutam.
35
O principal ponto de concordância nas obras de Ana Lúcia Jorge (1988) e nas
trinta e quatro cantigas de ninar registradas por Leite de Vasconcelos (1907) pauta-se na
constatação do Papão como entidade do imaginário infantil mais recorrente nas cantigas
de ninar. Personificando o sono, tem-se o Bicho-papão, que em seu deslocamento
assume diversas conotações, mas mantendo-se na função de assustar as crianças mais
resistentes à hora de dormir. O Papão Negro se apresenta como variante do Papão.
O teórico (1907, p.889) descreve a aparição do Papão de duas formas: num caso
as mãis falam nêle para amedrontarem o menino, e êste dormir ou se aquietar; no outro
esconjuram-no para que se vá, e deixe repousar o menino. Em sua descrição do Papão, o
autor relata um ser malévolo e perseguidor das crianças. Abaixo a canção recolhida da
região de Fozcoa (p. 838):
Vai-te d’aí, ó Papão,
De cima dêsse telhado,
Deixa dormir o menino
O soninho descansado.
Sobre o elemento medo presente nas cantigas de ninar, Leite de Vasconcelos
(1907, p.797) relata que em sua obra Tradições Populares de Portugal, publicada em
1882, haver inserido algumas poesias do berço, formando um capítulo sobre “Mêdos
das crianças”, com versos populares. Tendo o mesmo objeto de estudo à luz da
Psicanálise, Jorge (1988) discorre sua obra O Acalanto e o Horror. Nesta mesma área do
conhecimento, Nayra Ganhito (2001) traz diversas reflexões pertinentes a este estudo,
em Distúrbios do Sono.
A simples existência das cantigas de ninar evidencia a necessidade da
intervenção de uma segunda pessoa neste processo da elaboração do estado do sono.
Portanto, cantar, ninar, acalentar, embalar, de fato, é um desejo do adulto, segundo Jorge
(1988, p.35). Segue a autora (p.33) só há acalanto se há algum conflito: a dialética entre
um medo indeterminado ou angústia, e uma relação reasseguradora.
36
O bebê, acordado no meio da noite, perscruta na escuridão os signos
que anunciam a chegada de sua mãe: o ritmo de seus passos, sua voz,
o seu cheiro, uma fresta de luz que se acende embaixo da porta. A
vigília como espera, o sono como separação e, ao mesmo tempo,
tentativa de reencontro com o objeto materno das primeiras
satisfações: “quando ela era o alimento e o sono”. O bebê dorme
com a mãe, a mãe tranqüiliza-se ao ver o seu bebê dormir. Quem
espera quem, quem adormece quem? (GANHITO, 2001, p. 43)
Este duo consta de um desejo materno de complementaridade, fundamentado no
desamparo infantil (Jorge, 2001, p. 40). A relação de maternação poderá ser efetuada,
não apenas pela mãe, mas por outra pessoa que esteja nesse lugar. Como já posto
anteriormente, muitas vezes a ama assumia este papel integralmente. A relação mãe-
bebê se apresenta como a mais comum em nossos dias, devido às conquistas dos
movimentos sociais pelo direito à licença maternidade para as mães trabalhadoras.
Refazendo a cena: a mãe e seu bebê entremeados por uma cantiga de ninar. Esta
cantiga de ninar, comumente traz em seu conteúdo, um elemento mítico-folclórico ou
mítico-religioso. Assusta/acalma, entrega à sorte/protege; atrai/afasta; chama/manda ir
embora. Interdita. A mãe ao mesmo tempo em que elabora esta separação necessária
para o filho, o faz também para si própria, tanto através dos elementos lingüísticos,
como extralingüísticos. Ao invocar os mitos, a aceitação da não onipotência materna,
implicando na Lei da Interdição.
Um Papão, um significante metonímico do medo e da angústia presente na
relação mãe-bebê, instrumentalizada de modo doce, terno, suave. Jorge, (1988, p.41) cita
Veríssimo de Melo (1949) que verifica esta contradição pertinente aos elementos
lingüísticos das cantigas de ninar. Jorge continua (idem): uma relação de
complementaridade (da qual (a e) tem saudade, fonte de ternura) barrada por uma
Lei que corresponde ao recalcamento do desejo edipiano. Na teoria freudiana, a
angústia infantil permanece presente na maioria dos adultos, sendo reativada por
elementos exteriores, em detrimento de convicções aparentemente resolvidas de seus
complexos infantis recalcados. Entenda-se complexos infantis recalcados aqueles que se
nuclearizam em torno do Complexo de Édipo (Jorge, 1988, p. 58). Os princípios
freudianos tratam da diferenciação conceitual do medo e da angústia, onde o medo
37
encontra-se relacionado ao elemento concreto (real ou imaginário) e a angústia ao que
figura no desconhecido. Sobre o medo presente nas cantigas de ninar Jorge (idem, p.49)
afirma ser mais apropriado falar em um medo de nível simbólico, pois trata-se de uma
representação através dos mitos folclóricos da angústia frente à interdição (...) que se
opera na separação diária pelo sono. A psicanalista afirma ser uma etapa delicada no
cotidiano na relação mãe-bebê.
Para o bebê, ele e a mãe compreendem um uno. A identidade da criança se
constitui através do olhar da mãe
3
, ao passo que a mãe se complementa com o olhar do
bebê. A ação complementar funciona articulada pelo fantasma, isto é, pelo desejo de
união do par imaginário perdido, mas este sofre a interdição da Lei. Mãe-bebê
apresentam o medo e a angústia da separação simbolicamente representada nas cantigas
de ninar, seja por um ser folclórico medonho (temer) ou um ser religioso (adorar), ou
com outra configuração, mas cumprindo a mesma proposta, pela labuta materna
(conformar-se). um movimento de ausência/presença/ausência. Este fantasma ou
desejo de união é que pode fazer com que se acalentem bebês ainda incapazes de
corresponder ao adulto no plano simbólico (Jorge, 1988, p.50). O elemento responsável
pela interdição, um terceiro, encontra-se personificado nas cantigas de ninar: o Papão, a
Cuca, a Virgem, os Anjos, o trabalho materno.
As cantigas de ninar tomam o contorno de um jogo repetitivo, em que a mãe assume
o papel de reasseguramento da criança. O adulto como agente responsável por garantir à
criança o descanso (separação simbólica) necessário. A repetição se significa na cadeia das
ações, buscando responder ao vazio do desejo de complementação. Para Lacan (Jorge,
1988, p.65) separar é criar o desejo de reunir, desejo impossível. Há, então, o que a
psicanálise denomina por fantasma, isto é, a representação do elemento a ser substituído
pela separação em nível imaginário. Sustentada pela relação narcísica, o olhar especular
mãe-bebê cumpre a função para ambos como suporte do fantasma.
Na célula narcísica, para a criança a mãe é o que se chama de eu-de-puro-
prazer, daí que sua ausência apareça como desprazer. Até aí, além da mãe
_________________________
3
O olhar pode ser compreendido subjetivamente, como (re)conhecimento e, ainda, no plano denotativo. Nas
crianças e/ou nas mães com deficiência visual total ou baixa visão, outros mecanismos substituem a função do
olhar na perspectiva fisiológica.
38
nada existe para a criança, por isso é fálica. E se a mãe é tudo, é porque
nada existe além dela. No entanto, pelo discurso da mãe apresenta-se a
referência à Lei. Pela palavra, a mãe torna-se castrada simbolicamente,
pois algo além dela: o mundo da cultura que sua linguagem
representa. Falar é nomear o ausente. Então, mesmo ausente, há um outro
além da mãe. (JORGE, 1988, p. 67)
Portanto, a mãe suficientemente boa, isto é, aquela na qual a interdição se processa
de maneira satisfatória, trazendo a presença do Outro (para Lacan) ou do terceiro (para
Freud). A sua presença afasta a necessidade do fantasma, pois ele se concretiza na
linguagem ou em presença física do pai ou quem substitua o seu papel. Jorge (pp. 176-184)
sistematizou oito grupos para as cantigas de ninar de acordo com seus temas, partindo de
preceitos psicanalíticos.
1.2.2 - A PRESENÇA DAS AMAS NA CULTURA DO NINAR
As amas se apresentam como sujeitos marcantes na primeira infância. Denominadas
por amas-de-leite, quando na função de amamentadoras que poderão também ser
cuidadoras e amas-seca, apenas como cuidadoras. Conforme Leite de Vasconcelos (1907,
p.31), registra-se a presença das amas-de-leite pelo poeta romano Pérsio no ano primeiro da
era cristã. No curso da história, as amas poderiam ser trabalhadoras livres ou mão-de-obra
escrava.
A partir de registros em dois cordéis
4
portugueses do século XVIII, a historiadora
Maria José M. Santos ([1987] 2008, pp. 213-226) investigou as condições sócio-históricas
das mulheres que exerciam a atividade como amas-de-leite. Descreveu-as em dois tipos
gerais: as internas e as externas.
Na Europa Central, as amas internas se apresentavam comumente nas camadas
sociais mais abastadas. Entretanto, esta prática ecoava em grupos de menor poder
aquisitivo, possivelmente, como forma de ascensão social. A ama atuava profissionalmente
_____________
4
“Alcorão das Amas de Leite” e “Entretenimento (...) acerca das Amas de Leite”. Manuel Rodrigues
Maia, Lisboa: Miscelâneas da Biblioteca Pública Municipal do Porto, 1786. (apud Santos, [1987] 2008,
p.213)
39
e possuía boa remuneração. O período recomendado ao aleitamento chegava a dois anos,
aos quais a mulher deveria cumprir abstenção sexual. Neste caso, possibilitava à mãe
usufruir de sua vida conjugal e social, deixando esta cessão a cargo da ama-de-leite. Havia
um cuidado criterioso na alimentação de tais mulheres, o que para uma parcela delas
indicaria melhora na qualidade de vida, como se pode ver: V.M. não sabe o que he hir ser
Ama (...) Elle pode haver cousa melhor debaixo do Sol, do que hir huma de nós (...) para
huma casa, onde he tratada às mil maravilhas (...) a troco de numas gotinhas de leite que a
gente a huma creancinha?... (Entretenimento, p. 9 apud Santos, [1987] 2008, p. 219).
As amas externas poderiam ser funcionárias de particulares ou trabalharem para órgão
público, como as Casas dos Expostos. (Santos, p.221), também conhecida como Casas da
Roda.
A Casa da Roda pernambucana foi fundada em 1786, de acordo com a pesquisadora
Alcileide Nascimento (2007, p. 80). Apoiada nos aproximados 70% de óbitos dos expostos
institucionalizados, a historiadora refuta o discurso humanizador, de enfrentamento do
infanticídio e do abandono por parte do poder público, afirmando ser um modo de depurar
a experiência da morte, enclausurá-la, retirá-la do espaço público e construir outras
sensibilidades coletivas e individuais na esteira do investimento civilizatório.
Ainda nos estudos históricos, Isabel G. ([1994], 2008), investigando sobre as
amas-de-leite das Casas dos Expostos, define a função como uma ocupação
especificamente feminina e própria de sociedades pré-industriais em que o
desenvolvimento tecnológico não tinha ainda criado alternativas eficazes ao aleitamento
(idem, p. 235). As amas de maior valia constavam nas de pouca idade, com apenas um
parto, poucos dias de parida, gozando de boa saúde. A vigilância da família era constante
no trabalho das amas particulares. Poderiam atuar na casa dos patrões ou em sua própria,
onde ficava com a criança. (idem, p.236) toma como exemplo a Casa da Roda do Porto,
fundada em 1689, constituindo em uma entidade de acolhimento das crianças abandonadas.
Estas crianças eram colocadas em uma roda que entremeava o muro da instituição,
possibilitando o anonimato do depositante.
Um grupo específico constava nas amas que atuavam nas Casas dos Expostos.
Havia as que prestavam serviços particulares e as que atuavam internamente para
instituições públicas/caritativas. As amas dos expostos poderiam ser as amas de dentro,
40
com rendimentos superiores (mensalistas) e o primeiro contato dos bebês, em contrapartida,
mais susceptíveis à contração de doenças; as amas de empréstimo atuavam externamente
como prestadoras de serviço (diaristas); as amas de fora, responsáveis pelos sete primeiros
anos da guarda da criança, recebimento trimestral. A autora analisa dados de 1699 a 1776
(idem, pp.248-249), referentes à adoção das crianças por parte das famílias da amas,
constatando uma variação decrescente entre 90% a 51%. Ressalta a presença dos laços
afetivos construídos na família, sendo freqüente nos documentos constarem citações como:
pelo muito amor que lhe tem.
Herdadas das tradições lusas, a presença das amas no Brasil foi exercida,
principalmente, pelas africanas escravizadas e suas descendentes. Estrangeiras brancas, em
menor número, também exerceram tal atividade, de modo remunerado. Os documentos
elencados para esta pesquisa não registram esta prática entre os escravos ameríndios.
Em uma visão mais romântica, diversos autores brasileiros (romancistas, poetas) se
referem às amas-de-leite, mães-pretas ou mucamas em suas obras, advindo das suas
próprias experiências com as narrativas orais, influenciando de modo singular o universo
literário.
A velha negra, ama das crianças, adquire um estatuto paradigmático e
se fixa no imaginário brasileiro como um mbolo no qual os
romancistas investem uma carga emotiva que a remete à mãe
arquetípica, ao veio original, ao leite primeiro. Como os seios fartos
da mãe preta, as palavras jorraram, fluíram e fertilizaram a escrita
nacional como sua representação legítima. Desloca-se tanto a velha
índia como força motriz, nativa e autóctone, como a voz e a imagem
da avó européia, em favor da voz sonora da mãe preta, enquanto
símbolo nacional do contador de historias à ninhada branca brasileira.
(COUTINHO, 2006, p. 41)
Yeda Pessoa de Castro (1965, 1990, 1995, 199?), etnolingüista especialista em
literaturas africanas e imortal pela Academia de Letras da Bahia, refere-se à condição da
mulher africana no Brasil de ama escrava como
no papel de dublê, silente e anônimo, (...) servindo de mãe-preta, (...) sem
perdão pelo erro, na função ingrata de criar o filho da mulher branca do
colonizador europeu, autores e executores reconhecidos do seu drama
(...). Sua personagem representava a imagem do conformismo, feito de
uma abnegação irracional, quase covarde, perante uma platéia tão alheia
à sua condição humana de mulher e mãe que a identificava como preta da
41
cor de um animal ou de uma coisa inanimada circundante à margem de
um elenco de protagonistas brancos, que, no entretanto, dela extorquiam
o instinto maternal e o afeto, em benefício próprio. (CASTRO,1990, p.1).
Leite de Vasconcelos (1907, p.901) corrobora o exposto por Castro na associação da
cor preta aos elementos negativos, oriundos da superstição de diversas nacionalidades
européias, concluindo ser natural a sua vinculação ao elemento Papão das cantigas de ninar.
Do mesmo modo, à conhecida cantiga Boi da cara preta” assume um caráter
preconceituoso (Castro, 199?, p.2), aludindo ao povo negro um juízo de valor entre
branco/belo/puro e preto/horrendo/medonho. Neste sentido, Castro traz No canto do
acalanto (1990), um título polissêmico aludindo ao canto das cantigas de ninar e ao cantar à
margem, estigmatizado das escravas. Reporta-se ao antagonismo da relação de
repulsa/atração pelo pequeno em seus braços. Boa parte das vezes, o seu rebento lhe havia
sido arrancado para executar a função maternal com o menino branco, quiçá, um futuro
algoz do seu povo. Uma questão de vida ou morte para si e seu bebê. Entretanto, seu
instinto maternal aflorava nas canções de acalanto, como também o fazia em resistência, de
forma sutil e ardilosa, como se pode observar na cantiga de ninar cantarolada pela
população baiana ainda nos dias atuais, segundo Castro (1990, p. 2):
Su, su, su, menino assu
Cara de gato, nariz (inho) de peru
Su, su, su, menino mandu
Cara de gato (pato) nariz de peru
Su, su, su, menino mandu
Quem te pariu que te dê caruru
As escravas ladinas, isto é, que tem por segunda língua o português, afrontavam
os seus opressores, sem que os mesmos o percebessem. A sonoridade marcante pela
repetição do /u/ desvia a atenção de seu discurso irônico. Castro (1990, p.2) analisa as
suas significações: “assu” aço, branco ou alguma espécie de bichinho estranho, de
cara esquisita; “mandu” visualizado com a delicadeza infantil de um boneco fora do
comum. Na última sentença, também pode ser dita com a variante “quem te pariu, que te
beije no cu”, traz o sentido do seu inconformismo em ser obrigada a assumir o
aleitamento e a responder pela criação indesejada do estranho e pequeno branco.
42
Na qualidade de negra nascida no Brasil, ou crioula, a mãe negra apresentava
certo grau de hibridismo cultural, intensificado a cada geração. A mãe negra dialogava
entre as culturas de dois mundos, o afro e o europeu, interagindo na intimidade da casa-
grande, particularmente, através dos seus herdeiros, em um movimento implícito de
africanização do português e, em sentido inverso, do aportuguesamento do africano
(Castro, 1990, p. 3). O poder impetrado pela língua do dominante aos negros bilíngües,
implicitavam a sua capacidade cognocente e de intercâmbio entre os dois espaços. Como
maioria absoluta da população no Brasil de 1822, totalizando 75% (Castro, 1995, p. 25),
os negros contribuíram nos mais diversos aspectos lingüísticos e socioculturais. No
aspecto da linguagem, introduziu componentes do seu universo simbólico e emocional,
(...) contos populares e cantigas de ninar (...) seres fantasmagóricos, expressões de afeto
e de repúdio, crenças e superstições (idem, p. 33).
A representação social da mãe-preta como um sujeito submisso e avesso às
rebeldias, como figura doce e suave da infância dos colonizadores portugueses e seus
descendentes, atendia aos propósitos de um
processo constante de luta, paciente e corajosa, contra a crueldade
brutal de que era duplamente vítima, como mulher e mãe.
Desmascarando, portanto, todo o tipo de preconceito contido sob a
conotação afetiva que foi dada à alcunha de mãe-preta pelo seu
criador, a começar da cor preta que qualifica animais e objetos, é
possível revelar e reconhecer a atuação daquela mulher solitária e
heróica na História que ela, com carinho, se dedicou a fazer para o
Povo Brasileiro, mais por uma tenacidade sobre-humana do que pela
comiseração do seu sofrimento dramático, romanceado pela literatura
brasileira em prosa e verso. (CASTRO, 1990, p. 4)
1.2.3 – O GÊNERO CANTIGA DE NINAR
As cantigas de ninar ou acalantos compreendem um dos primeiros gêneros para a
maioria das crianças, em diversas partes do mundo, possivelmente surgido no início das
interações da linguagem humana. Este gênero trabalha de modo singular o imaginário, o
43
mítico, o lírico, o afetivo, o mélico, o lingüístico, enfim, os elementos socioculturais e
lingüísticos de um povo.
Apesar dos registros da oralidade relacionados à infância apenas terem se
constituído como tal a partir do século XVII, as cantigas de ninar forjaram-se em todos
os tempos nas relações humanas. Uma tradição da oralidade pouco estudada até os dias
atuais. Este é um gênero oral, prioritariamente feminino e doméstico. Há, então, um
círculo de exclusão. As questões a cerca da oralidade foram tratadas no capítulo 1.1 do
presente trabalho. Os itens feminino e doméstico transitam no mesmo campo de
discussão. A representação social projeta no feminino o menor, o menos produtivo, o
secundário, o menos qualificado. O preconceito sexista coabita os espaços sociais ao
longo dos tempos, ora mais explícitos, ora travestidos pelo princípio da igualdade das
minorias. Minoria em relação às relações de força e poder. Em Também mulher, imagem
de Deus (199?), Castro reflete sobre a condição de ascendência da mulher na sociedade:
foi sempre no interior dos canais tidos como apropriados para um tipo
determinado de mobilidade social. Isso em outros termos, (...)
“conhece o seu lugar”, ou seja, a mulher em ofícios domésticos (as
chamadas prenda domésticas”) ou atividades afins no campo
profissional (entre outras secretária, enfermeira, assistente social).
CASTRO, 199?, p.1)
Uma imagem construída para delimitar os espaços sociais. Talvez não seja de tal
modo uma surpresa as cantigas de ninar serem um gênero de parcas investigações, assim
como tudo o que está relacionado às ditas minorias, mulheres, negros, idosos, surdos,
índios. A comunicação humana se constitui através dos inúmeros gêneros. Estes, por sua
vez, finitos. Estudo centrado inicialmente na literatura, nas últimas décadas passou a ser
objeto do interesse da Lingüística, com maior foco nos estudos discursivos. Segundo
Marcuschi (2008), os estudos sobre gênero no Brasil podem ser organizados da seguinte
forma:
1) Uma linha bakhtiniana alimentada pela perspectiva de orientação
vigotskiana sócio-construtivista (...) Schneuwly/Dolz e pelo
interacionismo sócio-discursivo de Bronckart. Esta linha
(...)desenvolvida (...) na PUC/SP; 2) Perspectiva (...) de gêneros de
44
Swales (...) UFC, UFSC, UFSM e outros pólos; 3) Uma linha (...)
sistêmica-funcional (...) de Halliday com interesses na análise
lingüística dos gêneros; 4)(...) perspectiva menos marcada por essas
linhas e mais geral, com influências de Bakhtin, Adam, Bronckart e
autores alemães (...) desenvolvidas na UFPE e UFPB e em parte na
UNICAMP e USP. (MARCUSCHI, 2008, p. 3)
Ao trazer o tema nero para o foco das suas investigações, o pesquisador suíço
Bernard Schneuwly (2004), apresenta-o inicialmente como instrumento psicológico na
perspectiva do interacionismo social de Vigotsky, assim como se apóia nos princípios
bakhtinianos. Schneuwly (2004, cap. 1, p. 25), propõe gênero como instrumento. Explicita
(2004, p. 23-24) os mecanismos do interacionismo social como composto pela tríade: ação/
instrumento/ intervenção. Em leitura para o gênero cantiga de ninar, tem-se, então: o ninar/
a canção/ a performance. O ninar ou acalantar, como resultado do produto socialmente
construído, ao longo das gerações; a canção, instrumento determinador do comportamento
do sujeito sobre o objeto/situação vigente; por fim, a performance, a materialização da
intervenção do instrumento, mediando-lhe a forma e o uso. Continua o autor refletindo a
cerca do instrumento mediador, a partir de Rabardel, que o descreve em dois pontos: o
artefato material ou simbólico (a cantiga de ninar), o elemento de concretização da
atividade proposta, com sua formatação (performance); e o sujeito (a mãe) o qual responde
aos esquemas de possibilidade de uso, uma vez apropriados pelo mesmo.
A apropriação da cantiga de ninar, como tipo relativamente estável, se nas
trocas das esferas sociais, considerando nos sujeitos participantes as suas propostas de
enunciação e a forma como um e Outro interagem, de acordo com os postulados de Bakhtin
(1953/1979, apud Schneuwly, 2004, cap. 1, p. 26). Os gêneros podem ser organizados
como primários e secundários, na concepção bakhtiniana. No caso das cantigas de ninar,
classificam-se como neros primários, pois se constituíram em circunstâncias de uma
comunicação verbal espontânea, ao passo que os secundários aparecem em circunstâncias
de uma comunicação cultural, mais complexa e relativamente mais evoluída,
principalmente escrita: artística, científica, sócio-política (Bakhtin 1953/1979, p. 281 apud
Schneuwly, 2004, cap. 1, p. 29). Os gêneros primários possibilitam a instrumentalização da
linguagem na criança, neste contexto, as cantigas de ninar contribuem de modo ímpar.
Pode-se tomar como ilustração de uma cantiga de ninar de gênero secundário, a canção
45
Acalanto do Dorival Caymmi (anexo A), pois apresenta uma elaboração complexa, sendo
um acervo da cultura musical brasileira, sem perder as características pertinentes ao gênero,
de modo análogo ao que Leite de Vasconcelos (1907, pp.794-795) apresenta alguns acervos
de Gil Vicente. Como metáfora, Schneuwly (2004, p. 28) considera o gênero como um
“mega-instrumento”, como uma configuração estabilizada de vários sub-sistemas
semióticos (sobretudo lingüísticos, mas também paralingüísticos), permitindo agir
eficazmente numa classe bem definida de situações de comunicação.
Os gêneros são atividades discursivas socialmente estabilizadas que se prestam aos
mais variados tipos de controle social e até mesmo de poder. (...) são a nossa forma de
inserção, ação e controle social (Marcuschi, 2008, p.7). Esta relação de força, poder e
controle social se estabelece e se explicita na relação mãe-bebê desde a enunciação dos
primeiros cantos.
Fazendo alusão ao suporte escolhido para fazer a criança para ser acalantada,
além dos braços, o colo, os berços, os cestos, as cadeiras e as redes, variando de
cultura para cultura. Os suportes organizam práticas sociais, influenciando na expressão
do comportamento humano. Já para Bakhtin seria a voz e os gestos (sinais). Zumthor
acrescentaria o olhar performatizado.
Alguns berços são descritos por Leite de Vasconcelos (1907, pp.800-805) como
embaladeiras (fig. 2) compostas por tábuas de madeira. Este suporte cumpre função
semelhante ao moisés para bebê, quando traz em alguns modelos contemporâneos, a
base curva para embalar os pequenos. Algumas regiões, como o Alentejo, utilizam
móvel (fig. 3) semelhante ao que conhecemos nos dias de hoje, com detalhe para os pés
abaloados. Em Trás-os-Montes, usa-se a canastra (fig.4), que permite ser posta sobre a
cabeça e quando tem um formato que possibilite maior movimentação são chamadas
canastra (ou berço) de verga (fig.5), encontradas nas feiras em Fozcoa.
(Fig. 2) (Fig. 3)
46
(Fig. 4) (Fig. 5)
Ini, assim a tribo tupinambá nomeava na língua tupi o que conhecemos hoje por
rede. Em 1500, por Caminha, houve o primeiro registro desta palavra, graças à
semelhança às redes de pescar, segundo Dias (1972). O estudioso relata que no século
XVII, os jesuítas ofereceram ao Conde de Nassau uma rede, dentre outros regalos. De tal
modo impressionou ao Nassau e sua comitiva, que em diversas obras dos pintores Franz
Post e Albert Eckhout a mesma se encontra presente.
Luís da Câmara Cascudo (2003, p.15) em sua obra Rede de Dormir a descreve
desta forma: A rede toma o nosso feitio, contamina-se com os nossos hábitos, repete,
dócil e macia, a forma do nosso corpo. Desloca-se, incessantemente renovada, à
solicitação física do cansaço. A rede colabora com a movimentação dos sonhos.
Elemento da herança indígena, incorporada às tradições da cultura nacional, a
rede de dormir constitui um elemento de referência nas relações da maternação, de modo
singular nas regiões norte e nordeste do país, em suas diversas camadas sociais. Cascudo
(apud Jorge, 1988, p.37) em Dicionário do Folclore cita que em nheengatu, macuru,
significa berço, daí as cantigas de mucuru. A primeira referência ao termo rede data de
1899, no Novo Dicicionário da Língua Portuguesa, de acordo com Houaiss (2001,
p.1807). Confeccionadas originalmente com palhas de árvores, as redes hoje podem ser
encontradas a partir de diversos materiais, como algodão, nylon etc. Uma rede é um
abraço de corpo inteiro.
A cadeira de balanço é outro artefato comumente utilizado para a função do
acalanto. Há um mito americano que atribuiria a Benjamin Franklin a invenção da
cadeira de balanço, entretanto, em sua biografia não dados confirmando tal
informação. Em Designboom (2008) encontram-se registros do mobiliário em meados
do século XVIII e acredita-se ser derivada dos princípios dos berços com arcos (fig.6) e
dos cavalos de balanço (fig.7). Consta ainda, que a palavra inglesa rocker significou no
47
século XV pessoa responsável por balançar o berço e no século 18, um orador que
coloca outras pessoas para dormir, da qual se originaria mais tarde rocking chair
(cadeira de balanço).
(Fig. 6) (Fig. 7)
O uso das cadeiras de balanço no Brasil se deve aos portugueses. Um artefato
que na memória de muitos estão ancoradas lembranças suaves, podendo-se até ouvir o
seu barulho em movimento, em performance, pronto para acolher a quem quer que
chegue. Ainda hoje, elemento fundamental em um quarto de bebê para um acalanto
delicado, à espera da voz da mãe, que alimenta o corpo e a alma. Podem ser de
madeira, de madeira e palhinha, acolchoadas ou mais populares, feitas com ferro e fios
plásticos coloridos.
Contemporaneamente, em função secundária, o carrinho de bebê também
funciona como outro suporte utilizado para acalentar as crianças. Em muitos casos,
enquanto canta e balança o carrinho para que seu filho adormeça, a mãe exerce outras
atividades.
1.3 – A PESSOA SURDA
Múltiplos recortes foram atribuídos às pessoas surdas ao longo dos anos. Uma
trajetória percorrida podendo ser descrita sob três aspectos: o primeiro deles é o
caritativo, advindo da influência do pós-cristianismo, como segundo apresenta-se o
médico-clínico, onde a concepção de (a)normalidade, da doença, deficiência, da falta e
por último, o da diferença política, pautado nos princípios de constituir-se em uma
48
minoria lingüística, da identidade, da alteridade e da diversidade humana. Entende-se
por diferença não uma sinonímia de deficiência, tampouco de diversidade, mas como
construção política e social expressa pelo discurso, assim postulada por Skliar (1998,
p.6) afirmando ser um processo e um produto de conflitos e movimentos sociais, de
resistências às assimetrias de poder e de saber, de uma outra interpretação sobre a
alteridade e sobre o significado dos outros no discurso dominante.
Para o senso comum, as pessoas surdas são denominadas, equivocadamente, por
surdas-mudas ou simplesmente mudas. Isto porque a implicatura do termo mudez e seus
congêneres referem-se à ausência da fala e/ou da voz. Há, então, dois aspectos a serem
discutidos: fala e voz das pessoas surdas. Desconhece-se não somente que a comunidade
surda possua a sua língua, a língua de sinais, como também não a reconhece como uma
língua falada, uma vez que falar é fazer uso de uma língua. A língua de sinais é a língua
natural das comunidades surdas, pertencente à modalidalidade espaço-visual, enquanto
as línguas orais, à modalidade oral-auditiva (Quadros, 1997, p.46). As línguas de sinais,
ao contrário do que uma significativa parcela da sociedade acredita, não são universais,
logo que apresentam todos os parâmetros lingüísticos de qualquer língua oral-auditiva.
Oliver Sacks (1998) registra o pesquisador William Stock, nos Estados Unidos, na
década de 60, como responsável pelos primeiros estudos lingüísticos, no sentido estrito
do termo, acerca das línguas de sinais.
O segundo aspecto a ser observado é a mudez como sinonímia da ausência da voz
nas pessoas surdas. A produção vocal é o resultado da ação dos aparelhos respiratório e
digestório, respectivamente. Em um conceito clínico simplificado, as pessoas surdas são
aquelas com perda da acuidade auditiva, em graus variados. O aparelho auditivo com
suas estruturas é o responsável pela audição. Portanto, não relação fisiológica entre a
produção da voz e o déficit auditivo. O que geralmente ocorre na sociedade é uma
distorção do conceito de voz, língua e fala, uma vez que o modelo de representação da
“normalidade” encontra-se relacionado ao “seu modo” de expressão da linguagem, isto
é, oral e auditivamente.
Os estudos etnográficos de surdo-mudo, segundo Houaiss (2001, p. 2645) traz
seu primeiro registro em 1858 na obra do Antonio de Morais Silva, na 7ª. edição do
49
Diccionario da Lingua Portugueza, ao passo que para sordo datação do século XIII e
século XIV para surdo, conforme o Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua
Portuguesa, de autoria do Antonio Geraldo da Cunha, publicado em 1982. Logo, entre o
registro de um e outro termo um hiato de seis séculos. Tal constatação,
provavelmente encontrará suporte na necessidade de nomear a ausência não apenas da
audição, como também o fora considerado, a ausência da fala. Esta perspectiva aponta
na direção do surgimento da Filosofia Oralista, em 1880, na Itália, no evento que ficou
conhecido como o Congresso de Milão, onde as línguas de sinais foram proibidas na
maior parte dos países do mundo.
De fato, a ligação do conceito de mudez às pessoas surdas encontra-se no lugar
da negação da diferença. Os referencias hegemônicos de saúde, de perfeição, de
normalidade, mostram-se um continuum na nossa sociedade.
Os termos Surdo e surdez trazem este modo de entender alinhado ao da
pesquisadora Perlim (1998, p.4) é uma marca que identifica nós os surdos em crescente
posição de termos próprios no interesse de gerar poder para si e para os outros”. Os
surdos são surdos em relação à experiência visual e longe da experiência auditiva. as
palavras Surdo e surdo compreendem diferentes modos de conceber a pessoa com
surdez. Ao se fazer uso do “S” para Surdo, implica a referência de identidade de um
determinado grupo nos seus diversos desdobramentos: lingüísticos, políticos, culturais,
antropológicos etc. O termo surdo com “s”, relaciona-se à pessoa com perda auditiva,
todavia, se distancia das questões pertinentes a uma construção identitária. Esta
distinção "s/S" foi feita pela primeira vez em 1972, pelo sociolingüista James
Woodward, mas agora é amplamente compreendida e usada pela maioria dos escritores
no campo (Wrigley, 1996, p. 29).
As pessoas surdas apresentam uma singularidade em detrimento a outras
minorias lingüísticas, uma vez que se encontram no seio de uma língua majoritária, isto
é, crianças surdas nascidas em famílias ouvintes, na maioria dos casos da surdez.
Segundo Skliar (1997, p.128-129), 4% ou 5% das crianças surdas segundo as
estatísticas internacionais – nasce e se desenvolve em seus primeiros anos de vida
dentro de uma família com pais surdos. É uma parcela significativa da sociedade que
50
coabita os mesmos espaços sociais, todavia, uma barreira comunicativa entre estes
segmentos: surdos e ouvintes. Barreira esta, evidenciada pela própria modalidade
lingüística, sendo uma espacial-visual e outra oral-auditiva.
As línguas de sinais são línguas espaço-visuais, ou seja, a realização dessas
línguas não é estabelecida através dos canais oral-auditivos, mas através da visão e da
utilização do espaço (Quadros,1997, p.46). Ser surdo ganha, então, uma conotação de
um estrangeiro em seu próprio país.
O reconhecimento legal das línguas de sinais pode ser considerado
historicamente como uma conquista recente das comunidades surdas. No Brasil, apenas
em 2002, com a aprovação da Lei Federal 10.436 de 24 de abril, deu-se a
oficialização da Língua Brasileira de Sinais e sua regulamentação com o Decreto
5.626 de 22 de dezembro de 2005.
Pesquisas no campo da lingüística sobre as línguas de sinais contam com
relevantes contribuições dadas por Brito (1993,1995), Felipe (2001), Quadros (1997) e
Quadros e Karnopp (2004), a partir da década de 80. Em outros campos, como a
educação de surdos em estudos sócio- antropológicos temos Skliar (1997, 1998, 1999),
Skliar e Quadros (2000) e ainda os estudiosos surdos no Brasil, tais como Perlim (1998),
Perlim e Miranda ([2003], 2008), Rangel (2006), Strobel (2006, 2007).
A marginalização de uma língua marcada pela ignorância com fulcro da
intolerância ouvintista tentou calar os falares surdos durante séculos, não fossem os
segmentos de resistência organizados socialmente por esta comunidade em manter a sua
língua e a sua cultura. O ouvintismo pós-colonialista, termo oriundo dos estudos de
Carlos Skliar (1997), lingüista e pesquisador da Educação, imprime um modelo de
normalidade às comunidades surdas, desconsiderando-as nas suas diferenças
lingüísticas, culturais, estéticas, históricas, através da imposição da língua majoritária, a
oral-auditiva, e suas implicações sócio-culturais e políticas. Os princípios da alteridade e
da diversidade humana nos mostram os surdos como sujeitos visuais e, como tal,
apresentam um modo particular de apropriação de mundo.
51
aqui a possibilidade de uma contribuição para o desmitificar do julgo do
preconceito e da desinformação os falares surdos como incapazes, reduzidos, simplórios,
concretos.
Hoje, um empoderamento dos povos surdos nos mais diversos setores da
sociedade e uma ruptura com os antigos paradigmas, principalmente com o
reconhecimento e respeito a sua língua. Wrigley (1996) discute a questão das definições
e limites da identidade e do conceito de etnia surda. Segundo o autor, como um processo
pertinente a qualquer grupo no qual há o movimento de resistência aos elementos
opressores, busca-se as similitudes e os aspectos excludentes que caracterizariam o
pertencimento ou não a um determinado grupo. Um dos elementos de maior exercício de
poder é o lingüístico. A partir dele e seus desdobramentos, o conceito de cultura, de
identidade e de etnia se constituem. Além dos Surdos e dos surdos ainda navegando
neste meio os sujeitos ditos periféricos, no falar de Wrigley: os pais ouvintes, os filhos
ouvintes ou CODA
4
, os educadores de surdos, os tradutores/intérpretes.
Como ilustração do exposto por Wrigley, Castro (1965, pp. 41-55) relata
condições de similitude relativas a duas mulheres negras descendentes de escravos
africanos, que retornam à capital da Nigéria, Lagos, em 1962, como membros da
“Brasilian Community”, assim denominada por ser constituída em sua quase totalidade
por descendentes de brasileiros. A brasilidade inerente aquele grupo em terras africanas,
explicita-se no uso do português e suas tradições, tais como o catolicismo, utilizado
como estratégia para evitar a reabsorção pela cultura africana, e a arquitetura. Outro
fator de identidade jaz no sentimento de inconformação por não mais estarem em seu
país, por força da vontade dos avós das senhoras em pesquisa, sem o seu consentimento.
Mesmo passadas cadas, os membros daquela comunidade permaneciam com a língua
de sua referência identitária. Não está posto em discussão quaisquer juízos de valor em
relação à comunidade afro-descendente, mas analisar as estratégias que a mesma lançou
____________________
4
CODA é a sigla em ngua inglesa, Children of Deaf Adults, usada para identificar pessoas ouvintes
filhas de pais surdos. Podendo ser traduzido por filhos de surdos adultos ou ainda por filhos de pais
surdos. (SKLIAR, C.; QUADROS, R., 2000, p. 14)
52
mão, no intuito de resistência para a manutenção de sua identidade escolhida.
Movimento de exclusão e de inclusão, pela força motriz da língua: português sim, ioruba
ou inglês não. Eles formavam o povo brasileiro.
A surdez na perspectiva da diferença política compreende a língua como uma
construção social produzida historicamente pela humanidade. O modelo sócio-
antropológico surge a partir da década de 60, onde dois aspectos provocaram
antropólogos, sociólogos e lingüistas relacionados à surdez. Por um lado, o fato de que
os surdos formam comunidades cujo fator aglutinante é a língua de sinais, argumenta
Skliar (1998, p.140-141) e prossegue com o segundo aspecto, onde há a confirmação de
que os filhos surdos de pais surdos apresentam melhores níveis acadêmicos, assim como
uma identidade surda constituída. Percebe-se, então, o fracasso da concepção dos
ouvintes acerca dos surdos e da surdez, uma vez que a língua de sinais demonstra-se
uma unidade de resistência, de poder e de representação das comunidades surdas.
O conceito de povos surdos ganha concretude no Brasil com os estudos de
Strobel (2006) e traz a colaboração das identidades surdas defendida por Perlim (1998).
Strobel (2006, p.17) diferencia o conceito comunidade surda e povo surdo. Para a autora,
o primeiro refere-se aos surdos e ao conjunto dos atores que participam e compartilham
os mesmos interesses, presentes em associação de surdos, federações de surdos, igrejas
e outros. Quanto ao povo surdo, afirma ser um
grupo de sujeitos surdos que tem costumes, história, tradições em
comuns e pertencentes às mesmas peculiaridades, ou seja, constrói sua
concepção de mundo através da visão, isto é, usuários defensores do
que se diz ser povo surdo, o mesmo seria o grupo de sujeitos surdos
que não habitam no mesmo local, mas que estão ligados por um
código de formação visual independente do nível lingüístico.
(STROBEL, 2006, p.18)
Não se trata de uma bandeira a mais em tantas excluídas em/por nossa
organização social. A bandeira da comunidade ou dos povos surdos reverbera no
princípio do direito à diferença. Diferença, que deve ser respeitada, precisa ser
53
entendida não como uma construção isolada e sim como construção intercultural, no
dizer de Strobel (2006, p. 21).
1.3.1 – A VEZ DO CANTAR SURDO
Pensar a pessoa surda íntegra é pensá-la em um modo próprio de ser, sem valorar,
por ser pertencente à unidade humana. E no conjunto desta pessoa está, dentre outros
elementos, a sua voz e o seu cantar. Voz do surdo, cantar surdo?
Ao se ingressar em uma aula de canto, a primeira tarefa é aprender a respirar.
Inspiração. Pausa. Expiração. Pausa. Um movimento contínuo automático, mas passível de
coordenação voluntária. Ar que se desloca, alterando os batimentos cardíacos. Emoção que
desloca o ar e pulsa o coração. O som evocado pelo ato de expirar, movido pela emoção. Se
cantar é respirar e, portanto, seu ritmo e tonalidade expressam o nível de ansiedade e o
estado das emoções de quem canta cantar equivale a outras “expirações”, como o riso e
o choro (Jorge, 1988, p. 192).
O cantar surdo extrapola os conceitos convencionais e eruditos. Rompe paradigmas,
isto é, quebra com modelos engessados pela valoração de uma ótica limitadora do belo, do
certo, do agradável, do harmonioso. Uma das relações mais imperiosas no que concerne à
música e ao cantar, relaciona-se às figuras dos Anjos. A eles se atribuem a arte de
(en)cantar. Quem ousaria competir com um mito litúrgico? Apenas os iluminados por eles
ou os que “cantam como anjos”. Leite de Vasconcelos (1907, p.859) chamou a atenção para
a reiteração da máxima da voz e canto dos anjos pelas artes plásticas, quando os
representou freqüentìssimamente com harpas, rabecas e outros instrumentos, ou em
posição de cantarem, assim como na poesia literária, afirmando que os fatos são tão
conhecidos que não vale a pena fazer citações (Leite de Vasconcelos, 1907, p. 860).
As pessoas surdas cantam com suas inspirações e expirações, com suas
experiências, com suas emoções, com as suas pulsações, com seus falares, com suas
vozes. Cria o seu próprio ritual musical ao embalar seus pequenos. Um ritual repleto de
sentimento, autêntico por natureza, pois não referências sobre o que ou com que
entonação as mulheres ouvintes cantam aos seus filhos quando os ninam. Cantam com as
54
vozes e cantam com as mãos, de modo consecutivo e harmônico. Os signos se
engendram em uma linguagem de encantamento, cumprindo com excelência todo o
ritualismo mágico do ninar. Mauss disse:
Eis porque dizemos que não verdadeiramente ritos mudos, pois o
silêncio aparente não impede este encantamento que é a consciência
do desejo. Deste ponto de vista, o rito manual é apenas a tradução
desse encantamento mudo; o gesto é um signo e uma linguagem.
Palavras e atos equivalem-se absolutamente; por isso vemos que
enunciados de ritos manuais apresentam-se como encantamentos. Sem
algum ato físico formal, por sua voz, por seu sopro, ou mesmo por
desejo, um mágico cria, destrói, expulsa faz todas as coisas.
(MAUSS, apud JORGE, 1988, p.193)
A este ritual mudo, leia-se, sem o uso da voz/ língua. Retomando a afirmação dos
sertanistas Villas-Boas descrita na presente pesquisa (p. 32), entre as tribos do Alto
Xingu não registros do uso da fala cantada e, sim, de um chiado sibilado como de
uma cobra. Todavia, a Lei da tribo reconhece o direito ao olhar mútuo durante todos os
primeiros anos da criança, (...) talvez se possa deduzir que o olhar mútuo prescinde da
simbolização pela linguagem articulada (Jorge, 1988, p.39). O som vocalizado
associado ao olhar em ritual acalantador. Um encantar da resistência ao sono dos
pequeninos. Um canto sem cantar. A estes bebês, o som da voz de suas mães significam,
do mesmo modo que o canto das mães surdas significam para seus filhos.
uma outra perspectiva na leitura para o cantar não-ouvinte, não-erudito, não-
colonizador. O canto surdo não necessita da autoridade ouvinte para existir. Ele está na
história de muitas famílias de e com pessoas surdas. Equivalente às experiências das
pessoas ouvintes, não são todas as mães surdas que ninam com suas vozes. Para tanto,
deve-se considerar alguns aspectos: uma avaliação negativa e frustrada no uso da própria
voz, a partir da perspectiva de aproximação do modelo ouvinte, imposta pela filosofia
oralista; o desejo de não mais usar a voz em oposição política aos cem anos de silêncio,
isto é, de proibição da livre expressão nas línguas de sinais em quase todos os países do
mundo; a não identificação com o processo do acalantar vozeado, algumas vezes apenas
embalado.
55
A respeito da imposição ao surdo do modelo vocal ouvinte, o depoimento do ator
e contador de histórias Bernard Braga, no vídeo For a deaf son (1994), relata uma
experiência pessoal da sua infância. Ele e seus colegas de classe eram repreendidos pelo
modo como davam risadas. A professora lhes disse ser desagradável para os ouvidos das
pessoas normais. Obrigava-os a seguir uma seqüência de inspirações e expirações com
as mãos sobre o abdômen, posteriormente, introduzir o som há, há, há, há (neste
momento, Braga exprime um ar tonto voltando o rosto para os lados com olhar vago, e o
“sorriso” no rosto). O riso saía do abdômen e o da mente, disse Braga. E prossegue:
Então ela dizia: o som está bonito, tão agradável que nenhum ouvinte iria saber que são
surdos. Braga ainda relata agressão física a um colega que não executava
satisfatoriamente o treinamento oral. A este conjunto caricatural de movimentos, o seu
modelo ouvinte chamou de “sorriso adequado”.
Em analogia ao proposto por Zumthor (1993, p. 158) sobre a canso (gênero
composicional do trovador medieval), está a produção vocal da pessoa surda: a voz é
pura, gesto sonoro que emana das pulsões primordiais; prolonga, semantizando a cada
dia, o grito do nascimento. É a linguagem que gera o relato. E sua narrativa exige a
constituição de actantes, eu, o objeto, o Outro que fala de nós. Acrescenta o autor:
O discurso poético valoriza e explora um fato central, no qual se
fundamenta, sem o qual é inconcebível: em uma semântica que abarca o
mundo (...), o corpo é ao mesmo tempo o ponto de partida, o ponto de
origem e o referente do discurso. O corpo dá a medida e as dimensões do
mundo; o que é verdade na ordem lingüística, na qual, segundo o uso
universal das línguas, os eixos espaciais direita/esquerda, alto/baixo e
outros são apenas projeção do corpo sobre o cosmo. É por isto que o
texto poético significa o mundo. É pelo corpo que o sentido é
percebido. O mundo tal como existe fora de mim, não é em si mesmo
intocável, ele é sempre, de maneira primordial, da ordem do sensível: do
visível, do audível, do tangível. (ZUMTHOR, 2000, p.90)
Identidades múltiplas para o canto e o acalanto. (Re)conhecer, conviver e
respeitar os diferentes modos da linguagem, proporciona aos representantes dos grupos
majoritários um enriquecimento de experiências. A voz da pessoa surda não é a da
ouvinte, nem precisa ser. O modo de apreensão do mundo por via da visão pelo ouvinte,
não precisa ser igual ao do surdo. A singularidade posta está na diferença. Zumthor
56
(1993, pp. 149-150) fala sobre a condição de humanidade que rege a todos: a voz dos
portadores de poesia não cessa (como voz mesmo e o que quer que ela diga) de
proclamar essa identidade.
57
CAPÍTULO II
ASPECTOS METODOLÓGICOS
Neste capítulo consta o detalhamento dos procedimentos metodológicos
aplicados à presente investigação. A organização do mesmo descreve as etapas
percorridas para a execução da pesquisa, desde sua fase inicial até a fase de tratamento
dos dados.
Para a presente investigação, optou-se pela utilização de pesquisa de campo com
metodologia mista, com abordagens qualitativas.
2.1 - AS CONDIÇÕES DA PESQUISA
O enfoque desta investigação consta na análise do gênero cantiga de ninar com
pessoas ouvintes e pessoas surdas em suas performances. Cabe reforçar que não se trata
de uma análise oposicional. Refuta-se a perspectiva do modelo ouvinte como
“normalidade”, trazendo para tanto o posicionamento teórico pautado no respeito à
diferença humana, por conseguinte, da pessoa surda como sujeito da diferença,
constituído caracteristicamente por sua visualidade e sua cultura.
Propôs-se a análise de dados que elucidem o seguinte questionamento:
a) haveriam aspectos convergentes e divergentes no gênero cantiga de ninar de
mulheres ouvintes e de mulheres surdas em suas performances?
E como questionamento secundário:
b) qual o significado do ninar surdo para um ouvinte filho de pais surdos
(CODA)?
Do ponto de vista operacional a pesquisa foi estruturada com as seguintes etapas:
58
a) Captação da imagem de duas mulheres ouvintes em performance de acalanto;
b) Captação da imagem de duas mulheres surdas em performance de acalanto;
c) Captação da imagem de uma mulher ouvinte CODA com depoimento;
d) Produção e edição do vídeo, adequando-o aos objetivos propostos.
2.2 - A CONSTITUIÇÃO DO CORPUS
Dentre o amplo repertório das cantigas de ninar, respeitando o critério da
seletividade, a canção Neném quer dormir, de domínio público, foi a escolhida para a
efetivação deste trabalho. Assim como em diversas canções populares, esta cantiga
também apresenta algumas variações. A variante postulada para o trabalho em questão
será denominada por variante 1 ou de referência. Esta e as demais variantes recolhidas
encontram-se registradas no anexo A.
O corpus está composto pela cantiga de ninar Neném quer dormir cantada por
duas mulheres ouvintes e o ninar de duas mulheres surdas e suas performances. Conta,
ainda, com o depoimento de uma mulher ouvinte, sobre sua experiência como CODA,
com suas apreciações sobre o cantar surdo e suas repercussões, e no uso da voz ao ninar
crianças surdas.
As coletas foram realizadas em ambientes residenciais, a fim de garantir uma
situação mais próxima do cotidiano. Para as quatro performances com o acalanto,
realizou-se uma intervenção intencional, uma vez que as imagens foram produzidas para
fins didáticos. As imagens foram coletadas na região metropolitana do Recife, no
segundo semestre de 2008.
2.3 - SOBRE OS SUJEITOS DA PESQUISA
59
A pesquisa apresentou um instrumento para a coleta de dados: a produção de um
vídeo. Como critério de seleção para grupo das pessoas surdas participantes da
investigação, optou-se pelas que se auto-definissem identitariamente como sujeitos
surdos. Este critério se apóia em dois dos principais elementos de referência da
constituição de uma identidade surda, como sendo o uso da língua de sinais e como um
sujeito visual de participação ativa na comunidade surda. As pessoas auto-definidas
como deficientes auditivas o apresentam estas características, portanto, não possuem
perfil compatível com o corpus desta investigação, que traz por princípios a identidade
ouvinte e a identidade surda (Perlim, 1998).
Entretanto, para os sujeitos surdos que participaram da pesquisa, a surdez foi
descrita clinicamente, a fim de eliminar quaisquer dúvidas da relação estabelecida pelas
informantes em relação ao seu uso da linguagem oral, uma vez que, além de falarem em
sinais naturais e LIBRAS, também fazem uso da linguagem oral. Dos participantes do
vídeo oito sujeitos colaboraram diretamente com a pesquisa. Das oito pessoas, três são
crianças e cinco adultos, onde uma participa com depoimento. No total das mulheres que
acalantam, duas são ouvintes e duas são surdas.
A constituição identitária de AS1 e AS2, segundo manifestação das informantes,
é de sujeito surdo. Quanto à caracterização da surdez, os sujeitos apresentam etiologia de
natureza congênita hereditária, do tipo neurossensorial bilateral de grau profundo, com
período de instalação pré-lingüística. São falantes de sinais naturais e Língua Brasileira
de Sinais concomitantemente e nunca participaram de terapia de reabilitação oral. A
família das informantes é formada em quase cinqüenta por cento por pessoas surdas,
portanto, período de aquisição da língua de sinais apresenta-se adequado.
A caracterização dos sujeitos da pesquisa quanto à faixa etária e escolaridade
encontram-se descritas abaixo:
Adultos ouvintes: AO1 - 69 anos, Ensino Fundamental I incompleto; AO2 -
52 anos, Ensino Fundamental I incompleto; AO3 - 31 anos, Ensino Médio
incompleto.
Adultos surdos: AS1 - 62 anos, não alfabetizada; AS2 - 58 anos Ensino
Fundamental I incompleto;
60
Crianças ouvintes: CO1 - 04 meses; CO2 - 08 meses; CO3 - 04 - anos,
Educação Infantil;
2.4 - INSTRUMENTOS E COLETA DOS DADOS
Os instrumentos utilizados com o objetivo da coleta e formação do banco de
dados, conforme já citado anteriormente, foram a captação das imagens e posterior
produção de um vídeo, contando com a participação direta de mulheres ouvintes e
mulheres surdas. A transcrição do vídeo encontra-se presente no corpo do trabalho.
A primeira fase desta pesquisa contou com o levantamento das participantes
ouvintes e surdas para a produção do vídeo. A partir dos dados colhidos em deo,
elaborou-se as análises. Solicitou-se às duas colaboradoras ouvintes que embalassem as
crianças, cantando a canção variante de referência Neném quer dormir (anexo A).
As imagens foram coletadas em um final de semana, devido aos equipamentos só
poderem ser disponibilizados para empréstimo neste período. O primeiro sujeito a ser
filmado foi AO2 com a participação de CO2, em uma residência de bairro popular na
cidade do Recife-PE. Não consangüinidade entre AO2 e CO2, a qual foi convidada
através da sua mãe a participar da filmagem.
A fotografia do vídeo foram produzidas pela pesquisadora, como uma leitura das
performances das cantigas de ninar vivenciadas nas comunidades de classes populares
de uma parcela significativa do povo brasileiro, contendo elementos que o pudesse
representar, tais como: a cadeira de balanço de ferro e fios plásticos coloridos, uma
antiga máquina de costura ainda em uso, um café preto em copo americano, tendo por
fundo uma parede pintada sem reboco. O espaço utilizado foi a sala de estar. Os sons
incidentais foram mantidos, buscando a maior aproximação de uma vivência real.
Para que AO2 e CO2 se sentissem confortáveis mutuamente, a captura das
imagens foi feita após um tempo de adaptação à situação do acalanto. O mesmo não
foi necessário com a dupla AO1 e CO1, pois entre elas consangüinidade e contato
constante. Mesmo tendo havido uma produção para a elaboração do vídeo, este contém a
61
fidedignidade do objeto em estudo, uma vez que o acalantar deu-se de modo natural. A
resposta a esta questão pode ser verificada com o adormecer tranqüilo de CO2, embalada
pela canção e pelo acolhimento de AO2.
A segunda etapa consta da coleta das imagens das informantes AS1 e AS2, em
outro bairro popular, situado na cidade do Paulista, localizada na Região Metropolitana
do Recife-PE. Para as colaboradoras surdas, a solicitação referiu-se não a canção da
música em português, mas que ninassem de modo similar ao que acalantavam seus
familiares quando bebês. Nestas filmagens não foi possível a presença de crianças em
idade de acalanto. Com a ausência de um bebê real, propôs-se o cancelamento da coleta
de dados, contudo, as colaboradoras afirmaram não haver problema e sugeriram fazer
uso de uma boneca envolta em uma manta, sendo aceito de pronto pela pesquisadora. As
imagens foram coletadas na varanda (ou terraço) de uma residência, tendo por suporte
uma rede de algodão. Como tela de fundo há uma planta e uma poltrona infantil.
A forma elocutória de AS1 e de AS2 é composta pelo uso de sinais naturais e
pela LIBRAS. Na situação de acalanto, além destas duas expressões da linguagem
espaço-visual, as informantes também fizeram uso da linguagem oral espontânea. Para
fins de transcrição fidedigna dos dados, contou-se com a participação da pesquisadora
do presente trabalho e de um membro da família das informantes surdas, também
tradutor e intérprete da LIBRAS. Pode-se constatar ao final da produção do vídeo tanto
com AS1, quanto com AS2, resultado com vasta produção lingüística, potencializada por
uma entrega poética e emocional de ambas as informantes.
A próxima etapa contou com a participação de AO3 com CO3. Neste caso, não
se trata de uma performance de acalanto, mas de um depoimento de uma CODA,
narrando suas experiências no lugar de alguém que experienciou ser ninado por pessoas
surdas e suas apreciações a respeito da temática. O espaço físico e o suporte do acalanto
utilizado para a coleta das imagens foram os mesmos de AS1 e AS2. Não houve
intervenções quanto aos elementos presentes na cena. O depoimento de AO3 deu-se em
situação de acalanto, apenas com o embalar a rede. Em um dado momento, CO3
demonstra-se inquieto e AO3 o ajuda a descer da rede, continuando o seu relato.
62
As imagens do vídeo encontram-se distribuídas da seguinte maneira: CENA 1 -
apresentação narrada pela pesquisadora. Como pano de fundo encontram-se imagens de
AO-1 (adulta/ouvinte) em performance com CO-1 (criança/ouvinte) e a canção Neném
quer Dormir cantada também pela pesquisadora; CENA 2 - performance de AS-1
(adulta/surda) em situação de simulação de um bebê. Como suporte há uma rede; CENA
3 - performance de AO-1 (adulta/ouvinte) com CO-1. (criança/ ouvinte). O suporte
utilizado é uma cadeira de balanço; CENA 4 - performance de AS-2 (adulta/surda) em
situação de simulação de um bebê. uma rede utilizada como suporte; CENA 5 -
performance de AO-2 (adulta/ouvinte) com CO-2 (criança/ ouvinte). A cadeira de
balanço é o suporte para o acalanto; CENA 6 - performance e depoimento de AO-3
(adulta/ouvinte/CODA) com CO-3(criança/ouvinte). O suporte para esta cena é uma
rede; CENA 7 - conclusão pela pesquisadora, contendo o mesmo pano de fundo da cena
1. Apresentam-se frases de Zumthor e Barthes.
Para fins didáticos, o depoimento da informante AO3 se encontra dividido em
seis blocos definidos da seguinte forma: bloco 1 – apresentação; bloco 2 – o ninar surdo:
a intolerância, o aconselhamento, a voz; bloco 3 o aconchego, a mélica; bloco 4
ninar ouvinte e ninar surdo; bloco 5 – o sujeito surdo; bloco 6 – surdo: sujeito visual.
A última etapa de coleta das imagens realizou-se em outro bairro popular, ainda
na cidade do Paulista, onde foi possível registrar as imagens de AO1 e CO1 em situação
de acalanto. Os elementos de composição da cena não foram manipulados, apenas
alterou-se a posição da cadeira de balanço, visando um melhor enquadramento. O
suporte material do acalanto também constou de uma cadeira de balanço de ferro com
fios plásticos. AO1 posicionou CO1 verticalmente, abraçando-a com os dois braços. Por
ter certo grau de autonomia, devido à sua idade (oito meses), CO1 se reposicionou de
modo a sentir-se mais confortável, ficando de costas para AO1, apoiada no braço direito
do adulto. A razão pela qual o sujeito que teve a sua performance coletada inicialmente
não receber a numeração AO1 e sim AO2, deve-se ao fato da informante denominada
neste trabalho por AO1 ser a fonte de recolhimento do objeto em estudo.
A fase da edição das imagens contou com a colaboração voluntária de
profissionais da área, tendo a direção da presente pesquisadora. Como critérios para a
63
edição foram observados tempos equivalentes em suas performances para todas as
informantes e apenas para AO1 e AO2, suas performances mais significativas. O critério
do tempo teve por referência as performances de AS1 e AS2. A pós-edição resultou no
material que totaliza o tempo de quatorze minutos. Um novo vídeo em formato reduzido
foi elaborado a fim de apresentação à banca examinadora, uma vez que as imagens
poderão expressar os elementos do corpus que fogem às melhores descrições e análises.
2.5 - TRANSCRIÇÃO DOS DADOS
Os dados coletados serão transcritos observando os aspectos relativos aos
informantes surdos e aos informantes ouvintes.
Quanto aos informantes surdos, a transcrição da Língua Brasileira de Sinais
(LIBRAS) e dos sinais naturais utilizados nas imagens do vídeo em situação de acalanto,
apóia-se em convenções lingüísticas utilizadas por Tanya Felipe (2001). Para tanto a
pesquisa serve-se do Sistema de Notação em Palavras (SNP), o qual aproxima a
representação dos sinais por meio de palavras escritas da modalidade oral-auditiva do
país (idem, p. 21). Além da ngua de sinais, em alguns momentos os sujeitos fizeram
uso da linguagem oral natural e da linguagem oral natural cantada.
Em relação aos informantes ouvintes, a modalidade oral da Língua Portuguesa
será transcrita para a modalidade escrita.
Para todos os sujeitos, será descrita a linguagem em seu conceito mais amplo, isto
é, contemplando o universo constitutivo da comunicação em toda a sua performance, em
todas as formas que o próprio ser humano utiliza para comunicar e expressar idéias e
sentimentos além da expressão lingüística (expressões corporais, mímica, gestos etc)
(Quadros, 2004, p.8)
Considera-se para fins desta pesquisa por linguagem oral natural, a comunicação
utilizada por pessoas surdas pré-lingüísticas, de perda sensorial de grau profundo, a
emissão de pequenas cadeias sonoras significativas adquiridas apenas pela observação
da oralidade das pessoas ouvintes, sem nunca terem sido submetidas à terapia
64
fonoarticulatória. A linguagem oral natural nas pessoas surdas, geralmente, é
compreendida pelas pessoas ouvintes do seu convívio pessoal e/ou doméstico. Os
episódios de uso da linguagem oral natural em estudo referem-se aos momentos do
acalanto.
Cada evento enunciado apresenta a identificação do sujeito da pesquisa, e a
indicação da modalidade de língua utilizada. Zumthor (1993) recorda a limitação natural
em se deslocar uma obra, entendendo-se como o que é poeticamente comunicado, aqui e
agora, (...) a totalidade dos fatores da performance (p.220) para um outro suporte,
afirmando que o que tenho diante dos olhos, impresso ou manuscrito, é apenas um
pedaço do tempo coagulado no espaço da página ou do livro (p.221).
SISTEMA DE NOTAÇÃO SIMPLIFICADO
Como forma de notação da modalidade de língua espaço-visual, este estudo
apresenta uma compilação do Sistema de Notação em Palavras (SNP) (Felipe, 2001, pp.
21-23) e do Sistema de Notação Simplificado apoiado nos estudos de Quadros
(Brochado, 2003, pp.123-126).
LIBRAS REPRESENTAÇÃO EM SNP/SNS
1. Sinal simples. 1. Itens lexicais da Língua Portuguesa.
Ex.: CASA; ESTUDAR; CRIANÇA
2. Sinal composto. 2. Palavras separadas por hífen.
Ex.: CORTAR-COM-FACA “cortar”;
QUERER-NÃO “não-querer”
3. Sinal composto por dois ou mais
sinais.
3. Palavras separadas pelo símbolo ^.
Ex.: CAVALO^LISTRAS “zebra”
4. Datilologia (alfabeto manual).
Usada para nomes próprios ou
outras palavras que o possuam
sinal.
4. Palavra separada por hífen, letra por
letra.
Ex: J-O-Ã-O; A-N-E-S-T-E-S-I-A
5. Sinal soletrado (soletração
rítmica), por empréstimo da LP.
5. Soletração total ou parcial em itálico.
65
Possui movimento próprio,
podendo apresentar todas as letras
ou parte delas.
Ex.: R-S “reais”; N-U-N-C-A.
6. A) Gênero o apresenta sinal
próprio.
B) Se o contexto exigir, usa-se o
sinal de HOMEM ou MULHER
posposto.
A) Para marcar a ausência da desinência
de gênero, usa-se @.
Ex.: AMIG@ “amiga ou amigo”, FRI@
“fria ou frio”
B) Ex.: AMIG@ HOMEM “amigo”
7. Traço não-manuais: expressões
facial e corporal simultâneos ao
sinal.
7. A) Tipo de frase: uso simplificado por
sinais convencionais das língua orais-
auditivas, ou seja . ! ? ?!
B) Advérbios de modo ou um
intensificador sobrescrito, em negrito :
interrogativa exclamativo muito
Ex.: NOME; ADMIRAR; LONGE
C) Topicalização: OSV (objeto-
sujeito-verbo), elevação de ambas as
sobrancelhas. Uso de uma linha acima do
item ou da frase, completada por “t” no
final do traço.
_____t
Ex.: CASA, MARIA IR.
8. Verbos com concordância verbal
(pessoa, coisa, animal), através de
classificadores.
8. Os classificadores serão representados
pelas letras CL, em caixa alta, seguidos de
dois pontos e a configuração de mão.
Ex.: ANDAR-PARA-LÁ PARA-CÁ CL:V
9. Verbos com concordância de
lugar ou número-pessoal
9. Uso do movimento direcionado, em
subscrito.
A) Variável para lugar:
i = ponto próximo à 1ª pessoa
I = ponto próximo à 2ª pessoa
K e k’ = ponto próximo à 3ª pessoa
e = esquerda
d = direita
B) Pessoas gramaticais: dual, trial,
quatrial, plural
Ex.:
66
1s, 2s, 3s = 1ª, 2ª ,3ª pessoas do singular
1d, 2d, 3d = 1ª, 2ª ,3ª pessoas dual
1p, 2p, 3p = 1ª, 2ª ,3ª pessoas do plural
1s
DAR
2s
“eu vou dar para você”;
2s
PERGUNTAR
3p
“você pergunta para
eles/elas;
Kd
ANDAR
k’e
“andar da direita
(d) para a esquerda (e).
10. Não há desinência para o plural 10. Pode-se usar a repetição do sinal,
aumentar a tensão ou alongar o
movimento. Representada por uma cruz
no lado direito sobrescrito.
Ex.: MUIT@ “muito(s), muita(s);
ÁRVORE
+
“muitas árvores”
11. Sinal feito com uma das mãos
ou dois sinais feitos pelas duas
mãos simultaneamente.
11. Registra-se um abaixo do outro, com
a indicação das mãos: direita (md) e
esquerda (me).
Ex.: IGUAL(md)
IGUAL (me)
pesso@-muit@
ANDAR(me)
pesso@
EM PÉ (md)
Para fins didáticos, foram utilizadas as seguintes convenções afim de notação
anteriores a cada enunciação: Língua Brasileira de Sinais (LS) e sinais naturais (SN):
como exposto no quadro acima; linguagem oral natural (LON) e linguagem oral natural
cantada (LOC). Quando simultânea ao uso da LS ou SN, sobrescrito em itálico,
conforme Brochado (2003, p.126); para qualquer evento de comunicação, as
performances encontram-se descritas entre parênteses; pausas [PAUSA]; e para
enunciação não compreendida usa-se (...) (Brochado, 2003, p.126). Para a marcação de
expressões não-manuais, além das contempladas nos estudos acima, a pesquisadora fará
uso de expressões utilizadas em bate-papo pela internet, assim como descrições
detalhadas, quando necessário. Por exemplo: para boca arqueada :( ; para sobrancelhas
elevadas e boca arqueada <:( ; para sobrancelhas elevadas, boca arqueada, com a língua
para fora <:p ; expressão de choro :’( . A direção do olhar para marcação do sujeito e
todas estas transcrições não-manuais encontram-se em sobrescrito e negrito.
67
Para a transcrição dos sinais naturais, primeiro segue sinal efetuado e entre
parênteses o sinal oficial da LIBRAS. Será utilizada imagem da configuração de mão
que no contexto não seja sinal na LIBRAS.
TRADUÇÃO DA LIBRAS PARA O PORTUGUÊS
Para possibilitar uma leitura dos dados a partir de um outro instrumento, optou-se
pela tradução da língua de sinais para a LP. A tradução-interpretação pode ser executada de
duas formas: simultânea ou consecutiva. Consoante a Quadros (2004, p. 9 e 11), o
profissional tradutor/intérprete atua na interação entre nguas. Na tradução a presença
da escrita na língua fonte, ou seja, a primeira a ser recebida, e/ou na língua alvo, a língua
destinatária. Na interpretação, o processo da língua fonte para a língua alvo envolve as
línguas faladas/sinalizadas, ou seja, nas modalidades orais-auditivas e visuais-espaciais
(idem). Na tradução e interpretação simultânea, isto é, concomitantemente. Isso significa
que o tradutor-intérprete precisa ouvir/ver a enunciação em uma língua (língua fonte),
processá-la e passar para a outra ngua (língua alvo) no tempo da enunciação (idem,
p.11).
Na tradução e interpretação consecutiva, o profissional atua em tempos diferentes,
ou seja, após cada enunciação. É possível fazê-la em tempo real ou a posteriori. No tocante
a esta pesquisa, as imagens foram captadas e posteriormente interpretadas. Contou com o
trabalho de duas profissionais experientes, sendo uma delas qualificada também em sinais
naturais. Com fins de simplificação, não se optou pela transcrição fonética da LON. Neste
caso, usa-se a representação grafo-fônica.
TRANSCRIÇÃO DO PORTUGUÊS ORAL
Esta transcrição refere-se ao depoimento da informante ouvinte AO3, uma vez
que AO1 e AO2 apenas cantam a cantiga de ninar. A transcrição da Língua Portuguesa
oral para a modalidade escrita, conta com alguns dos princípios descritos acima:
performances descritas entre parênteses; pausas [PAUSA]; enunciação não
68
compreendida usa-se (...). No caso de prolongamentos e hesitações os mesmos estão
representados pela repetição do grafema.
69
CAPÍTULO III
A Análise
3.1 – A CANÇÃO
Neném quer dormir, cantiga de ninar de domínio público, incorpora a tradição de
maternação doce, ao mesmo tempo lamuriada ao ter que deixar seu pequeno amado para
o sono o embalar sozinho.
Neném quer dormir (variante 1 ou variante de referência)
Vai dormir neném,
Eu tenho o que fazer
Vou lavar, vou engomar
As roupinhas pra você
As roupinhas do neném
Não se lava com sabão
Se lava com lírio branco
Água do meu coração
A, a, a, a, a...
Neném quer dormir!
Esta obra foi recolhida em 2004 de uma senhora nascida no agreste da Paraíba e
adotada na juventude por Pernambuco, com a qual foi ninada e ninou seus filhos e, hoje,
seus netos. As cantigas de ninar perpassam as gerações, percorrendo o mesmo trajeto de
todas as expressões da oralidade. Como tal, a presença de variantes torna-se previsível.
70
Da origem da cantiga de ninar analisada, além das quatro variantes oriundas de
uma mesma informante (ver anexo A), registram-se outras cinco em língua portuguesa,
recolhidas no Brasil de Bom Retiro e Pari (SP), Propriá (SE) e Minas Gerais; em
Portugal, de Valpaços; e duas na Espanha de Burgos e de Salamanca. Totalizando onze
variantes. Sobre a presença de variáveis de uma mesma canção em língua espanhola,
deva-se, talvez, graças à proximidade geográfica e/ou aos períodos de ocupações
relatados pela história. Leite de Vasconcelos (1907, p.919) conclui que outras
semelhanças, quer entre estas, quer entre as nossas canções e as de várias nações da
Europa extra-peninsulares, dependerão de relações étnicas antigas.
Pensar sobre a resistência de uma mesma cantiga em terras brasileiras e em
diferentes regiões, sofrendo diferentes influências étnicas possibilita a reflexão da língua
portuguesa ser a de prestígio dentre as relações de poder e dominação estabelecidas com
os principais grupos formadores da cultura brasileira: o indígena e o africano. A seu
favor, os colonizadores portugueses contavam com uma única língua falada, ao passo
que os dois grupos étnicos possuíam uma considerável diversidade lingüística, muitas
vezes os obrigando ao uso de pidgin.
Vista através do prisma zumthoriano (1993), a cantiga de ninar compreendeu
inicialmente o tipo primário ou puro da oralidade, onde inexistia a escrita. Na
contemporaneidade, circunscreve-se no tipo secundário, pois preserva sua característica
de vocalidade apoiada nas tradições culturais, artísticas, maternais, mesmo coabitando
com o registro escrito. A sua natureza poética voltada para um determinado auditório
perpassa as cinco operações históricas, são elas (Zumthor, 1993, p.18): a produção, a
comunicação, a recepção, a conservação e a repetição, em um processo intermitente,
mítico e mágico, materializada na performance.
Para além do espaço-tempo de cada texto, desenvolve-se outro, que o engloba e
no bojo do qual ele gravita com outros textos e outros espaços-tempos; movimento
perpétuo feito de colisões, de interferências, de transformações, de trocas e de rupturas
(Zumthor, 1993, p.150).
Sob a perspectiva de Bakhtin (1953/1979, p. 281 apud Schneuwly, 2004, p. 29)
vista neste trabalho, esta cantiga de ninar se inscreve como gênero primário. Assim,
71
pode-se verificar em Neném quer dormir como fruto de um processo acumulativo dos
saberes culturais dos povos através da linha do tempo. Performance vozeada em forma
de acalanto a um auditório específico, conservada na memória individual e na memória
cultural coletiva, repetida a cada nova experiência de maternação.
Sobre a repetição, Jorge (1998, p.189) se reporta a Mauss e Lévi-Strauss em seus
estudos acerca da magia, quanto ao efeito ritualístico da cantiga de ninar. Diz a autora,
que o cantar se repete, às vezes uma canção chega mesmo a insistir pela repetição. Pela
canção, algo procura solução. Pelo encantamento? Uma repetição macro, da essência
da condição humana em cuidar dos seus descendentes, de sua própria continuidade. A
insistência da própria canção, no dizer de Jorge, pode ser considerada uma instância
intermediária da repetição. Tantas vezes cantada, outras tantas repetidas
ritualisticamente. Posteriormente, em uma etapa micro, repete-se no interior da cantiga.
Castro (1965, p.46) revela que das cantigas de ninar cantaroladas na Bahia, por
ordem de popularidade, encontra-se a Boi da cara preta, seguida por Menino Mandu.
Esta última foi encontrada pela autora (1965, pp. 41-55) em 1962, na Nigéria, na
memória da tia” Maria, uma bahiana descendente de nigerianos, com a variante mais
conhecida no estado, iniciada por um sonoro Su, su, su, menino mandu (...) e a recifense,
dita à época “ricifiana”, “tia” Romana, nascida em 1877, também da comunidade
brasileira daquele país, variando com a nasalização Sum, sum, sum, como posto acima
no item 1.2.2 ( p. 41). A autora aponta a similitude desta sonoridade com o “sùn” da
língua Iorubá, significando dormir. Afirma ser procedente tal análise, à medida que foi
para a Bahia e outros estados do nordeste que a maioria dos escravos nagôs, como ali
são chamados os Iorubás, durante os últimos séculos de tráfico, ao lado de terem sido
os mais cotadas nos mercados, principalmente para os trabalhos domésticos (1965, p.
50).
Leite de Vasconcelos (1907, p.780) inicia a sua obra afirmando ser do
conhecimento do senso comum o efeito de repetição na cantiga de ninar, da acção
soporizada que exerce em nós, principalmente quando estamos em repouso, a repetição
rítmica de um e mesmo som. Gil Vicente (1946, apud Castro, 1965 p. 46) se reporta às
formas européias arcaicas do “ro, ro, ro” e “ru, ru” e a estas neumas, Leite de
72
Vasconcelos (1907, pp. 794, 795 e 873). Um som, uma vogal ou sílaba como na obra
pesquisada: “A, a, a, a, a. Neném quer dormir”. Por fim, em uma repetição nano, a que
ecoa no interior de cada um, vozeada pela mãe, resgatada em processo mnemônico. Uma
macro. Uma circularização.
Seguindo com o Leite de Vasconcelos (1907, p. 800), ao analisar a cantiga
Neném quer dormir, consoante à classificação proposta em relação à função das canções
do berço, a mesma caracteriza-se como as que aludem aos momentos ou fases do sono,
tendo dupla função acalentar e embalar. Esta cantiga descreve um discurso laborioso,
portanto, reporta-se ao quarto tipo do acalanto, onde se deseja que a criança durma para
prosseguir com os afazeres domésticos.
nesta canção particularidades, quando comparadas ao conjunto das cantigas
de ninar pesquisado. A ausência das entidades tico-folclóricas do imaginário infantil,
como o Papão, a Cuca, o Tutu. Um considerável número das cantigas de ninar possui um
ente sobrenatural, fantástico, fantasmagórico, conforme descrito neste trabalho no item
intitulado Divindades Soníferas” (pp. 32-38). Não nomeação de elementos mítico-
religiosos das entidades cristãs, característica comum na expressão poética das canções
do berço portuguesas e de tantas outras européias, dos quais herdamos um significativo
repertório (idem, p. 41).
Atentando às considerações de Jorge (1988) e Ganhito (2001) detalhadas no
presente trabalho no capítulo supra-citado (pp.34-38) acerca das questões subjetivas do
inconsciente, a cantiga em análise apresenta elementos lingüísticos pertinentes a um
discurso reassegurador da relação mãe-bebê. a explicitação do desejo materno da
separação necessária na primeira estrofe, pois a labuta faz a interdição do uno mãe-bebê.
Na segunda, reelabora a sua ausência, tanto para si, quanto para o bebê, justificando-se
em forma de um lamento lírico e reafirmando o sentido de complementaridade.
Na canção Neném quer dormir o narrador aparece na primeira pessoa do
singular. Não personificação do narrador, conforme se verifica em outras canções.
Implicitamente, trata-se de uma figura feminina, uma vez que as funções domésticas
culturalmente destinam-se às mulheres. As figuras da ama, do pai, da avó, da madrinha,
73
da tia presentes como variantes nas cantigas de ninar, cumprem a função materna como
denomina Lacan (Jorge, 1988, p.136).
Um destaque deve-se ao fato das variantes registradas da cantiga de ninar em
questão, apenas as recolhidas pela informante AO1 apresentarem duas estrofes, o que
leva a supor uma contribuição além da comprovada portuguesa. Ao fazer o levantamento
das mesmas ocorreu em Paulista, Pernambuco, todavia, sua informante migrou para esta
cidade vinda do agreste da Paraíba. A ocorrência das duas estrofes aparece restrita a uma
região geográfica, visto que Pernambuco e Paraíba fazem limite geográfico, o que leva a
apontar a contribuição de origem africana. Ambos os estados foram prósperas capitanias
no período colonial, recebendo um considerável contingente de negros escravos para
atuarem na agricultura e nas atividades domésticas. No item “A presença das amas na
cultura do ninar” (pp. 38-42), encontra-se as considerações a respeito das relações
estabelecidas entre os senhores da casa-grande os negros escravizados. As amas negras,
na condição de ladinas, intervinham com seus valores culturais no uso das canções
voltadas aos filhos dos senhores. Uma situação natural de bilingüismo na qual estas
mulheres se encontravam. Mais adiante, mesmo com uma identidade brasileira, as
descendentes africanas adaptavam as canções portuguesas aos seus saberes e aos seus
valores.
Em Casa-Grande e Senzala, o sociólogo Gilberto Freire (1964, pp.455-456, apud
Castro, 1965, p.48) discorre sobre a influência da mãe negra na formação dos pequenos
brasileiros. Afirma que ao cantarolarem as canções do berço, as amas as alteravam,
trazendo elementos de sua própria cultura, dialogando com a cultura indígena.
Assim sendo, os traços marcantes de influência regional em nossos
acalantos devemos à sensibilidade da mãe-preta africana que, não
chegou a alterar nêles palavras portuguêsas, como até mesmo a
substituir aquelas sem expressão para ela por outras de sua própria
língua, cujo efeito significativo, harmonioso e sonoro lhe facilitaria
mais ainda a tarefa de fazer o ioiôzinho, adormecer (FREIRE, 1964,
pp.455-456, apud Castro, 1965, p.48).
74
As desigualdades sociais não permitem uma análise ingênua sobre a composição
do povo brasileiro. As relações entre os brancos portugueses e os negros africanos
sempre foram tratadas no lugar da pretensa superioridade cultural européia. Sem falar
nos povos indígenas, que se nos primórdios da colonização eram alvo de interesse de
jesuítas de uns poucos intelectuais, hoje possuem apenas pouco mais de 180 línguas
vivas e nenhuma delas oficializada.
Entretanto, também não se pode negar a singeleza e a brandura trazidas pelas
contribuições africanas. Ao fechar dos olhos é possível ver a ama-de-leite acolhendo em
seu colo a criança da senhora de engenho, que por ser escrava, tem tantos outros
afazeres, contando com um sono eficaz e reparador do rebento que traz aos seus
cuidados. Portanto, cabe apontar a composição da segunda estrofe da cantiga de ninar
Neném quer dormir na direção da influência da cultura negra, marcadas pela presença
das questões sensoriais olfativas do sabão, negando-o e a do lírio como o aroma que
tenha a suavidade cabida a uma criança, a sensação da visão através da flor, a sensação
térmica, acústica e cinestésica da água. O dia-a-dia da ama negra ao cuidar do seu
branco mandu.
Deste modo prefaciada, segue a análise da cantiga de ninar em suas etapas. Para
tanto, estarão identificadas da seguinte forma: as estrofes representadas por A, B e C em
letras maiúsculas, respectivamente, e cada verso pelas letras minúsculas a, b, c e d.
Todas as sentenças e suas sinalizações encontram-se em itálico. Todas as variantes desta
canção encontram-se no anexo A.
Aa Vai dormir neném
O uso do imperativo na ordem indireta, reforça a relação de poder da mãe sobre o
filho. Coloca a interdição necessária na relação mãe-bebê. A mãe como elemento de
controle da relação. Enunciação encontrada em outras variantes com pequenas
mudanças, reiterada por Zumthor (1993, 223) sobre a intervenção dialógica. Diz o autor:
a fórmula tem mais energia fática quando apresenta um pedido, uma ordem ou um
apelo à ação; por vezes, ela se cristaliza na forma de um clichê (...) com suas variantes.
Ab – Eu tenho o que fazer
75
Após o comando, a justificativa. Introdução do elemento de separação do Outro
tratado por Freud ou o terceiro elemento: a labuta. O emprego do verbo “ter” marca a
ausência de opções. Justificada pelo medo e pela angústia da separação da mãe para o
bebê e vice-versa. Esta enunciação encontra-se registrada em variantes quase
integralmente, inclusive em espanhol.
Ac – Vou lavar, vou engomar
Referência às funções domésticas desenvolvidas pela necessidade da
intervenção. O verbo lavar remete aos cuidados com as vestimentas infantis e
subjetivamente, com o seu objeto de amor. Remete, ainda, à limpeza por analogia ao uso
da água que protege como o ventre materno, a água que mantém a vida. Engomar, para
dar forma. O mesmo que carinhar com o calor do ferro-de-engomar (ou de passar
roupas). Modelar ao gosto da mãe. Mais uma vez, sob o controle da mesma.
Ad – As roupinhas pra você
Ad complementa o enunciado de Ac. O objeto direto descreve os elementos de
proteção da pele e define através do objeto indireto o objeto da ação do laboro, o seu
objeto de amor. Elementos esses, de proteção que configuram a substituição da proteção
do olhar, do calor do toque, do abraço, do aconchego, do cheiro da voz materna ou do
objeto da teoria freudiana.
Ba – As roupinhas do bebê
uma repetição do conteúdo do último verso da estrofe Ad. Ao retomar o
conteúdo, propõe uma reafirmação do elemento protetor de Ad, contudo o apresenta no
diminutivo, indicando a delicadeza denotada em “pra você”, direcionando a ação. Leite
de Vasconcelos (1907, p. 915) atenta para o uso do diminutivo como recurso para dar
meiguice à linguagem, por se estar falando com crianças. Neste verso, o objeto indireto
indica o pertencimento do qual a mãe se volta, à proteção do bebê. Subjaz um olhar
direcional nesta referência ao auditório. Tem-se a troca na díade mãe-filho.
Bb – Não se lava com sabão
A presença do elemento indeterminante se, aponta na leitura de inviabilizar a
ação de ruptura da díade verificada em Ba, nem pela narradora, nem por uma terceira
76
pessoa ou pelo Outro freudiano, materializado na substância sabão. Este último,
responsável pela limpeza, pela eliminação da sujeira. Traz a função do expurgo ou o que
põe medo. Dito de outra forma, elimina toda a ternura depositada nas “roupinhas” em Ad
e Ba. Não se lava para o corte efetivo e definitivo, mas com o elemento de retorno de
negação da separação e agora é o filho quem precisa dar o corte, castrar-se.
Bc – Se lava com lírio branco
O lírio branco também conhecido como lírio da paz traduz um dos elementos
mais freqüentes em rituais religiosos. O lírio é associado à limpeza (espiritual ou
energética), à pureza ou à simplicidade, estando presente em diversas religiões. Em
Pernambuco e na Paraíba com maior expressão tem-se o catolicismo, a umbanda e o
candomblé.
O substituto do sabão que higieniza e branqueia, mas é rude, abrasivo,
exterminador. O lírio branco de puro olor, pureza, formato delicado, textura macia, no
sentido metafórico, como a pele do bebê, como o próprio amor materno.
Bd – Água do meu coração
Complementa o sentido proposto em Bc. A pureza que brota dos olhos, do olhar
da mãe. Um olhar íntimo de reciprocidade. A mãe que sofre a angústia , a dor da perda
do filho para o sono, resgatando o recalque infantil quando, um dia, era ela mesma a
perder a sua mãe-metade para o sono. Águas que em ondas embolam o rosto da mãe que
chora a perda. As águas de maior proteção, o útero materno, deslocando seu sentido para
o meu coração. Não para qualquer lugar ou para qualquer pessoa, mas àquela da qual se
vem e se vai continuamente, a mãe.
Ca – A, a, a, a, a
Uma das características de maior visibilidade nas cantigas de ninar. Uma
expiração sonorizada contínua, intercalando as notas (vide anexo A - partitura),
remetendo ao movimento do embalar. Distancia e reaproxima. A repetição do fonema
/a/, o mais aberto dentre todos, vozeado pelo coração que derrama a sua água (Bd). A
sensação acústica com a repetição de a, considerando um modo nordestino de acalentar
as crianças apenas com a sua aliteração. Repete-se para o preenchimento do vazio da
77
criança e da mãe pela interdição. A repetição circula do espaço macro ao nano, conforme
explicitado acima (pp. 89-90).
Cb – Neném quer dormir
Aqui a mãe evoca o desejo do adormecimento, poderia aparentar como sendo
o da criança, todavia a presença do imperativo, não deixa dúvidas da manipulação do
desejo de separação. Desejo do descanso para ambos, necessário para a reelaboração
metabólica e psíquica.
Do repertório das cantigas de ninar arrolado, somam-se nove variantes, conforme
dito anteriormente. Destas, o primeiro verso varia apenas no léxico, sendo o segundo
mantido quase sempre nomeando o sujeito da ação, completada com a expressão tenho
(tem) o que fazer, incluindo as duas em espanhol, que tengo que hacer. O terceiro e
quarto versos falam de atividades domésticas a serem executadas: lavar, engomar
roupas, coser ou executar atividades remuneradas para trazer o alimento para o lar.
3.2 – AS VOZES, AS PERFORMANCES, OS NINARES
As duas participantes adultas ouvintes, AO1 e AO2, cantaram a mesma canção,
objetivando ampliar o material selecionado para a análise da presente investigação. O
suporte físico do acalanto utilizado para as duas performances foi a cadeira de balanço
de ferro com fios plásticos coloridos.
Em análise das performances das mulheres ouvintes, o cenário do acalanto de
AO1 constou em uma cadeira de balanço instalada na copa de uma residência, ladeada
por uma mesa de jantar antiga de estilo colonial, sobre a mesma, um jarro branco em
forma de cisne e, por outro, um armário de copa. Posicionada em plano mais alto, a
imagem foi capturada inicialmente com CO1 acomodando-se ao colo da AO1. A criança
muda de posição, voltando-se para frente em busca de seu maior conforto. CO1
inicialmente, movimenta-se bastante, mas com o balanço associado ao ato do cantar,
observou-se a chegada do sono como resposta, nos primeiros quinze minutos.
78
AO1 abraça a criança em seu colo, porém, a posição não permite o contato
visual. Sua voz é suave, doce e tremula levemente, característica vocal presente em
parcela significativa das pessoas idosas e também pela emoção que a embarga nos
primeiros versos. O registro daquele acalantar significava a cada momento algo mais
para aquela mulher. Um mergulhar em si, pelo desejo materno de complementaridade,
fundamentado no desamparo infantil (Jorge, 2001, p. 40). Uma realização de
maternação, no instante da obra (zumthoriana), por ela mesma como acalantada e pelos
que acalantou ao longo de sua vida. Com olhos inebriados por lágrimas, abraça mais
fortemente a pequena, respira fundo e retoma de maneira forte a canção. Tomando a fala
de Zumthor:
O discurso que ela pronuncia, ligado mais do que outros às formas
experimentadas, mais sujeitos às pegadas de um incontrolável
passado, é também mais eficaz do que qualquer outro; o que diz essa
boca parece mais opaco, requer atenção de maneira mais insistente,
penetra mais fundo na lembrança e fermenta, confirma ou resolve
os sentidos vividos, alarga misteriosamente a experiência que eu,
ouvinte, creio ter de mim mesmo, de ti e desta vida.(ZUMTHOR,
1993, P.150)
A atitude da voz e da fala é firme, mostrando autoridade diante da pequena CO1.
A repetição encontra-se presente e a variante “vovó tem” foi utilizada algumas vezes, em
substituição de “eu tenho” no verso Ab. O mesmo fenômeno é descrito por Leite de
Vasconcelos (1907. pp. 810-811), podendo relacionar-se à região ou mesmo às escolhas
pessoais. O autor cita alterações de ordem morfossintática e semântica. Por exemplo, na
ordem da semântica apresentou substituições dos personagens míticos do imaginário
infantil ou de entes religiosos: côca por cuca; a Virgem pelo Menino-Jesus. A relação
corpórea da dupla CO1 e AO1 mostrou uma interação intensa. Ao final das imagens, vê-
se a chupeta da criança se soltar suavemente da boca, em uma entrega total ao sono.
Na performance de AO2 com CO2, o cenário compõe-se por uma cadeira de
balanço, tendo lateralmente uma antiga máquina de costura de ferro em uso, meio copo
americano com café preto, aludindo à necessidade da mãe manter-se acordada nas
madrugadas acalantando seu bebê. Não consangüinidade entre os sujeitos. CO2
mostrou-se tranqüila e sorridente nos braços de AO2, chegando acordada ao local da
79
filmagem. Inicialmente, AO2 ficou um pouco insegura quanto à reação da criança, mas
tudo transcorreu com naturalidade. A relação de corporeidade mostrou-se confortável
para ambas. CO2 se aconchegou nos braços de AO2. O posicionamento da criança
permitiu o contato visual, mantido em período quase integral. A voz afinada e suave de
AO2, possibilitou uma doçura extra à canção. A receptividade de pequena CO2 foi um
elemento facilitador da composição da obra. Houve um diálogo performatizado,
trazendo o calor do contato, onde o ouvinte-expectador é, de algum modo, co-autor da
obra (Zumthor, 1993, p.222). À medida que a canção ganhava cadência, o sono dava
seus sinais, em tempo aproximado de dez minutos.
No ninar das mulheres surdas os discursos se apresentaram sob forma de diálogo
espontâneo. Ambas fizeram uso do canto com suas vozes e suas performances. A
performance destas mulheres particularizam-se no uso do seu corpo expresso pelo olhar.
As suas memórias se apresentam em sua visualidade, havendo uma reiterabilidade no ato
comunicativo do (o seu) corpo com o (outro) corpo. Com o olhar primordialmente se lê e
se fala, em alguns momentos, ainda mais que com os gestos.
O ninar da AS1 tem seu embalar dialogado, com intervenções da voz cantada e
seu discurso se apresenta em sinais naturais e sinais da LIBRAS, em uso concomitante.
Reitera-se que nem a AS1, nem a AS2 freqüentaram terapia de oralização, nem
apresentam resíduos substanciais da audição, portanto, a expressão oral trata-se de um
uso da vocalidade natural da pessoa surda.
As participantes AS1 e AS2 tiveram suas imagens capturadas no mesmo
ambiente, o qual contava como suporte do acalanto uma rede de algodão bege, ao fundo
um vaso com planta e uma poltrona infantil amarela. Como exposto anteriormente,
não presença de uma criança, o que de fato verifica-se com as imagens não haver
interferência substancial nas suas performances, o que foi legitimado por AS1, AS2 e
AO3 como sendo a mesma forma como ocorreu com as crianças de sua família.
Desenvolveu-se a performance com uma boneca de aproximadamente cinqüenta
centímetros, envolta em uma manta branca de bebê. Solicitou-lhes que ninassem tal
como faziam com as crianças de sua família. Durante o processo do acalantar houve um
80
rememorar das experiências das mulheres surdas com o ato do acalantar explicitado no
afeto depreendido e materializado na performance, assim como nos seus discursos.
A postura corporal das mulheres surdas analisadas se mostrou similar:
posicionavam o “bebê” verticalmente, trazendo-o rente ao tronco, apoiado no braço
esquerdo, sendo a mão direita a de maior movimentação. Esta postura possibilita em
ambos os sujeitos a reverberação do som através da união das caixas torácicas, o calor da
voz próxima à face, assim como favorece o sentido olfativo e a intimidade na interação
do olhar mãe-bebê. O ninar surdo apresenta referências particulares, está marcado pela
visualidade da sua cultura. Estabelece um diálogo com a criança entremeado pelo uso
melodioso da voz. O uso da voz que poderia ser depreendido com referencia ao universo
ouvinte, perde seu poder de argumentação, pois as informantes são oriundas de um
espaço social composto basicamente por sujeitos surdos.
Possivelmente alguns ouvintes poderão associar o ninar surdo ao pretenso desejo
de uma reprodução da modalidade oral-auditiva, não obstante, as mulheres surdas
investigadas encontram-se distanciadas deste referencial, por apresentarem uma
identidade positiva de não estarem "contaminadas" pelo mundo dos que ouvem e suas
limitações epistemológicas do som seqüencial (Wrigley, 1996, p.32). Para apoiar esta
reflexão, a fala do autor aparece em caráter pertinente a estas considerações em sua obra
Politics of Deaf. Discute acerca das questões das identidades étnicas da surdez,
alvitrando um ponto de vista ouvinte em associar práticas de expressão surda à díade
normalidade/ anormalidade.
Para aquele que ouve, a surdez representa uma perda de comunicação,
a exclusão a partir de seu mundo. Em termos cosmológicos, é uma
marca de desaprovação. Ela é a Alteridade, um estigma para se ter
pena e por isso, exilada às margens do conhecimento social. Seu
"silêncio" representa banimento ou, na melhor das hipóteses, solidão e
isolamento. (WRIGLEY, 1996, p.31-32)
Quando este “silêncio” de voz e de fala (também política) referendado por
Wrigley é quebrado em uma perspectiva que não a ouvinte, não como normalidade,
descortina-se a obra (zumthoriana) do ninar surdo como objeto constitutivo do humano,
81
com seus modos de oralidade, gestualidade, espacialidade, visualidade. As mulheres
surdas e seus ninares trazem componentes universais do acalanto e a integralidade da
relação mãe-bebê: o aconchego, o balançar, o universo feminino, os elementos
lingüísticos próprios do gênero discursivo, tais como: as referências religiosas, a
exaltação do amor maternal, as repetições, o uso da função fática para que a criança não
chore e para o seu adormecer. O corpo não se manifesta apenas como um suporte de
apoio para a criança. As mãos falam e tocam constantemente este outro corpo, somando-
se aos sorrisos, aos beijos e aos abraços. A concepção zumthoriana sobre a memória do
corpo fala sobre
a existência de uma lembrança orgânica das sensações, dos
movimentos internos do corpo, ritmo do sangue, das vísceras, toda
essa vida impressa de uma maneira indelével em minha consciência
penumbral daquilo que eu sou, marca de um ser a cada instante
desaparecido, e no entanto sempre eu mesmo. Ora, o corpo tem
alguma coisa de indomável; de inapreensível. O corpo não pode
jamais ser recuperado. (ZUMTHOR, 2000, pp. 92-93)
O sujeito AS1 sinalizou predominantemente com a mão direita. A mão esquerda
serviu de apoio para o corpo do “bebê” em quase todo o discurso, eventualmente
utilizada na sinalização. Diferente do sujeito AS2, que preferiu utilizar a ngua oral
natural falada e cantada. A seguir, as análises serão apresentadas adotando a
metodologia proposta no cap.2, pp. 64-67, deste trabalho. Seguindo o mesmo padrão
para a transcrição da canção descrita com as mulheres ouvintes, a tradução
LIBRAS/Língua Portuguesa será organizada na ordem alfabética em letras maiúsculas
na indicação de cada estrofe, seguida de letras minúsculas indicando o verso, ambos em
itálico. Nas linhas consecutivas seguem na seguinte ordem (quando houver): LIBRAS
(LS); sinais naturais (SN); linguagem oral natural (LON) ou linguagem oral natural
cantada (LOC), conforme cap. 2, p.66. Imagens de configuração de mão foram
adicionadas, quando necessárias para indicar a ausência de sinal na LIBRAS. Marcas
não-manuais seguem o modelo de expressões faciais aplicadas no período inicial dos
chates de bate-papo na internet, representados em sobrescrito e negrito. A localização
das transcrições aproxima-se na mesma direção, objetivando ao leitor verificar a
simultaneidade das diversas formas de comunicação utilizadas pelo sujeito no decorrer
82
da sua expressão. Seguem-se as transcrições e as análises abaixo, inicialmente com AS1
e depois com AS2.
Sujeito AS1
Aa – Amor, que saudade!
LON: Amôô saunaum!
Ab – Estava pensando em você.
olhar 2s .
LS: PENSAR(md)
SN:
1s
(Fig. 8)
LON: Avapeumneum vô.
Ac – Não precisa chorar.
negativa
LS: PRECISAR(md).
LON: Pessi naum soâum.
Ad _ Você não está com fome.
negativa :(
SN – FOME (COMER) TERMINAR(md/me) (NADA)
LON - Naum.
Ae – E chora. Sonha!
LS – CHORAR(md) SONHAR.
LON – Soeâum pesoêaum.
Af – Amor, você precisa de leite. Sorria [PAUSA]. Pede para brincar.
LS – PRECISAR(md) SORRIR(md) [PAUSA]. PEDIR(md/me)
BRINCAR(md/me)
LON – Abôô lêê sôeum piêip.
83
Ag- É sim!
LON - Éum
afirmativa :(
LN -
Ah – Você chora muito, chora, né?
olhar2s confirmação <:(
LS – MUIT@
SN – (Fig. 9) (movimento semicircular em sentido antero-posterior)
LON – Sôa muum sôa.
Ai – Vamos passear, vamos. Tá bom.
afirmativa :(
LS – PASSEAR IR
LON – Passaum baum aum.
Aj – Você está com sono. Tá bom.
afirmativa :(
LS – SONO
LON – Sopum aum.
Al - Eu amo você para sempre.
LS – AMOR SEMPRE.
LON – Amôô pisium.
Am – Quer a mim, não quer papai. Fale! Tá bem.
afirmativa :(
LS – EU NÃO FALAR
LON – Eum papa ûueí fau um.
SN –
3s
(Fig. 10) (apontação)
84
An – Nem papai, nem titia e pronto. Tudo bem.
afirmativa :(
LS – U-A-I TIA NÃO ACABAR
LON – papa û titia aum.
Ao – Você quer a mamãe, amor.
olhar2s
LS – AMOR.
SN –
1s
(Fig. 11) (dois toques)
LON – amamã amô.
LOC – A-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá
Ba – Amor (...).
LOC – Amôô ale.
Bb – Você vai crescer, estudar (...)
LON - ûlê ûemâ uceu maum.
Bc – Precisamos passear.
LS – PRECISAR ANDAR-PARA-LÁ CL:V.
LON – pesum passa.
Bd – Vamos passear um pouco. Tudo bem.
afirmativa :(
LS – MIM POUC@
LON – Vô passa poium.
Be – Podemos ir.
afirmativa
LS – IR
85
LON – Poum.
Bf – Você fica chorando.
<:p
LS – CHORAR(md/me em espaço neutro)
LON – Vô pium êêê.
Bg – É chato!
LS – CHAT@ (md/me)!
LON – Soelôe.
Bh – Não precisa chorar. Chorar pra quê?! Não?
:’( interrogativa/exclamativa negativa
LS – PRECISAR(md) CHORAR(md) PRA-QUÊ(md) ACABAR(md)
LON – pessi um aum.
LOC – Ãããã-lá
Ca – Eu não sei por quê. Eu não sei.
negativa/interrogativa (dar de ombros) :(
LS – PENSAR-NÃO EU
LON – Apeaum eum.
Cb – Você pensa que eu falo?
- interrogativa- :(
LS – PENSAR EU FALAR
LON – Peum.
Cc – Pensa? Eu não sei falar nada.
negativa :(
LS – PENSAR? NADA (ACABAR)
LON – Peum? naum.
86
Cd – Só sou eu e você, não é?
:* :(
LS – EU-SÓ EU-VOCÊ
LON – Só eum.
Da – Lá-lá-lá. Amor, amor
<:o <:o
LOC – Lâ-lâ-lâ Amôô, amô.
Db – Deus do Céu, do Céu
<:o <:o
LOC – Bu céu bu céu
Dc - Amor, Deus do Céu
<:o <:o
LOC – Abôô zabu céu
Dd – Seja feliz! É pra estudar.
:) <:)
LS – FELIZ (md, espaço neutro)!
LOC – Eizi! ééé uá
De – (...) estudar (...).
LOC – Euba zuda (...)
Df – Desculpa, desculpa,.
<:( <:(
LOC – Deupa deupa.
Dg – Deus do Céu.
LOC – Céu.
Dh – Toma muito amor todo dia.
87
LOC – Toma mui amo
SN – TODO-DIA(md) (Fig. 12) (movimento repetitivo no sentido
vertical em espaço neutro) (Fig. 9) (me - posicionada lateralmente como apoio, sem
contato)
Di – Calma.
<:)
LOC – Auma.
um lirismo latente no discurso Amor, que saudade!/ Estava pensando em
você diz a AS1, nas primeiras linhas e ao final referenda o sono da criança ao Senhor,
pedindo a clemência divina. A concomitância das diversas expressões de AO1 traz uma
plasticidade performática. um vozeamento espacial ao integrar movimentos que se
interligam em um jogo simbólico em importar toda a emoção ao olhar, às expressões
faciais, corporais e à sonoridade da sua voz.
No imaginário da acalentadora ali está uma pequena criança que chora resistente
ao sono, tal como se observa em Ac, Ae, Ah, Bf, Bh, Ca. Este último enunciado traz a
idéia inclusa do choro infantil, diz: Eu não sei por quê (você chora). Eu não sei. O sono
encontra-se presente em Aj. O alimentar o corpo em Ad e Af é complementado com o
alimentar o amor em Ab, Ab, Al-Ao, Ba, Da, Dh e Di. Uma relação onde o terceiro de
Lacan, nas figuras do pai e da tia (Am e An), é apresentado e expurgado da relação mãe-
bebê. Esta fala se inicia com Eu amo você para sempre, isto é, ninguém mudará o que a
mãe sente por seu objeto de amor, também expresso em Cd, reforçado pela expressão
facial de confirmação da simbiose ali preterida. Ao mesmo tempo em que impede a
intercessão da Lei, a (re)constrói subjetivamente lançando mão do passear, sair do lugar
nas duas primeiras estrofes: Ai, Bc, Bd e Be. O diálogo ninado ganha forma de
aconselhamento, continuando a sua interdição em Bb, Dd e De, com ênfase no aspecto
do crescer e estudar. O crescer e o estudar ao mesmo tempo se configuram nas relações
de poder e força da mãe sobre a criança, pois cabe culturalmente ao elemento feminino a
responsabilidade pela orientação e educação da prole.
88
A voz de AO1 é intensa, forte. Muitas vezes, cadenciada por prolongamentos
vocálicos e repetições de sílabas, observadas, principalmente na vocalização cantada da
palavra amor e nas lalações.
Cantar é expressar pela sonoridade vocalizada a falta básica, a solidão
fundamental humana. Acalentar é embalar pela melodia esta falta que se
repete inexoravelmente num ritmo onde ecoa lenta e cadenciadamente a
repetição do desejo de complementaridade versus a repetição da Lei.
(JORGE, 1998, p. 193)
SUJEITO AS2
Não sinalização no ninar de AS2. bastante expressão facial, sorrisos e
gesticulação em forma de afagos e carinhos. A voz é usada com pouca intensidade,
suave e doce. Alguns trechos não são compreensíveis.
Aa – Mamãe, (nome da filha) saudade!
:)
LON – A mãim (...) saudade!
Ab – (...) filha, que saudade!
:)
LON – (...) firaaa saudade!
Ac – Vamos dormir.
LON – Vã dumi.
Ad – É a mamãe (...) Papai do Céu e mamãe.
:)
LON –mã (...) papá cé mamã
Ae – (...) amor.
:)
LON – A pu sa amo.
89
Af – Coração, saudade!
:)
LON – Corassãu, saudade!
Ag – Chora não!
negativa
LON – soraum!
Ah – Filha, cuidado!
<:|
LON – Fira cuidad!
Ai – Vamos dormir.
LON – Vã domi.
Aj – Chora, chora (...)
LON – sorum, sorum (...)
Al – Depois toma o leite.
LON – Depô leitô
Am- A mãe, a mamãe dá muitos beijos.
:)
LON – A bai, ababai bá bá betjo, betjo.
An – Dorme.
LON – Dumi.
Ao – (...)
: * :)
LON – uááá (onomatopéia do beijar)
Am – Meu Deus!
LON – Meu deusu.
90
Ba - A ra, ra, ra, ra! Amor!
:)
LOC – A ra, ra, ra, ra! Abô!
Bb – Lá, ra, lá!
:)
LOC – Lá, ra, lá!
Bc – (nome da filha) não chora!
>:(
LON – (nome da filha) soruum!
Bd – Quer chupeta?
LON – zupeta?
Be – Olha a lua, amor.
LON – A rua, amo.
Bf – (...)
Bg – Calma (...)
LON – Cauuma (...)
Bh – Eu amo meu filho (nome do filho).
________t :)
LON – Abô (nome do filho) meu
Bi – Meus cinco netos (nomes dos neto 1, 2 e 3)
________t :)
LON – Cico nitu meu (nomes dos neto 1, 2 e 3)
Bj – Eu amo a todos.
1s
3p
(Fig. 11 - )
:)
LON – Abô
Bl – Amo sim.
91
afirmativa :)
LON – Abô.
AS2 desenvolve mais o ato do cantar e sua fala enfatiza os cuidados e o afeto por
sua filha e toda a sua família. A fala de AS2, a mesma diz: Coração, saudade/Chora
não! Observa-se a aproximação quanto ao conteúdo da cantiga de ninar elaborada por
AS2 e a canção recolhida por Leite de Vasconcelos (1907, p.844): Porque choras, meu
menino?/ Porque choras, meu amor?/ As tuas lagrimas, meu menino,/ Cortam o meu
coração com dor.
A presença o item estudar nos dois ninares refletem a pouca condição de
escolaridade enfrentada pelas informantes. Sobre esta questão, Quadros e Massutti (2007,
pp. 241-242) atesta a precariedade das ofertas de ensino às pessoas surdas nas décadas de
30 e 40, até então os estados de São Paulo e Rio de Janeiro dispunham de escolas para
surdos. No nordeste, Pernambuco teve sua primeira instituição na década de 50. Muitos não
tiveram qualquer tipo de educação, e isso também dependia da situação econômica da
própria família (idem, p.241). O desejo das mulheres expressa a importância que elas
atribuem à Educação para a vida de seus descendentes.
A repetição verificada em AO2 dialoga no mesmo lugar de todas as outras
canções de ninar. Nana-na, dorme-dorme, rola-rola, cala-cala são naturais começos das
canções de todos os povos. O nosso verbo nanar “dormir” (em linguagem infantil)
pôsto que de origem obscura, tem, como se vê, paralelos noutras línguas românicas.
(Leite de Vasconcelos, 1907, p.876). Todavia, uma peculiaridade da repetição como
elemento de (en)cantamento do amor desprendido por seu “bebê”, expressamente em
substituição à sua filha, quando em linguagem oral natural ela diz: A bai, ababai
betjo, betjo. O som que se repete é o movimento entre lábios que beijam, que dizem
mamãe. Traz à exterioridade o amor para o seu campo visual refletido no olhar do seu
bebê. Mais uma vez, recorre-se à narração de Jorge para discorrer sobre o encantamento.
A função de encantamento do canto aparece nos estudos sobre magia e
atos mágicos de Mauss e Lévi-Strauss, mas não se especifica tal função
pela melodia porém pelo texto mesmo quando “mudo” ou sub
entendido, como viu Mauss. Sobre a melodia, porque se canta, há
92
silêncio. Ou quase. Pois a função do encantamento pelo canto aparece
no léxico, na literatura, e em certas reflexões sobre elas. (JORGE,
1998, p. 189)
O universo lexical e a estrutura sintática do ninar de AO1 e AO2 são congruentes
e simples. A similaridade na estrutura inicial de ambas pode ser observada nos dois
primeiros enunciados, para AO1 Amor, que saudade!/ Estava pensando em você. e AO2
Mamãe, (nome da filha) saudade!/ (...) filha, que saudade! Tais características podem
ser verificadas também nos ninares da cultura oral-auditiva. Destaca-se a delicadeza de
AO2 em todo o seu vozeamento e no enunciado Be, com referência à lua, elemento da
visualidade. referências do elemento religioso cristão na figura do Deus do Céu ou
Papai do Céu em AO1 (Db, Dc e Dg) e AO2 (Ad e Am). AO1 se reporta ao mesmo
tempo implorando a clemência divina para a eliminação de todo e qualquer mal ao seu
objeto de amor protegendo-o, expressa também, com a veemente elocução em Toma
muito amor todo dia. Com um sorriso de “agora está tudo bem, a mamãe está aqui”,
conclui com a sua bênção dizendo: Calma. AO2 também conclui com o acalmar a
criança, relacionando aos que ela devota o seu amor, finalizando com: Eu amo a todos./
Amo sim.
Nas cantigas de ninar surdas se encontram os traços do grão de Barthes: o grão
da voz, quando a voz tem uma postura dupla, uma produção dupla: de língua e de
música (apud Almeida; Queiroz, 2004, p. 162). A voz do surdo não-oralizado que canta
às suas crianças corrobora para a ruptura das regras sociais homogeneizante. Para que
não se crie a tolerância da aparência, é preciso confrontar o politicamente correto. O
surdo é um sujeito com marcas sociais singulares pela modalidade natural de sua língua
e pela expressão da sua cultura. Aceitar o outro na sua diferença longe está em apagar os
conflitos culturais. Pensar a diferença se aproxima do outro, quando algo move, quando
visibilidade, senão não poesia, nem voz, nem corpo, nem existência. Rebelar-se
para sorrir e estudar e se alimentar e sonhar e falar a sua língua e ser amado. É deste
lugar que o ninar surdo dialoga. Com sua corporeidade essencialmente lingüística.
3.3 – A EXPERIÊNCIA CODA NO NINAR
93
Este item apresenta uma filha ouvinte de pais surdos (CODA) e suas
considerações acerca da sua experiência como criança ninada por mulheres surdas. Além
do exposto, reflete sobre o olhar do mundo ouvinte (filho ou não de surdos) no tocante
às cantigas de ninar do mundo surdo. Visto a riqueza de informações dispostas no
depoimento da informante CODA, esta análise fará alguns recortes. O que seria ser uma
pessoa CODA? Quadros e Massutti (2007) compreendem que
a experiência de nascer, viver e crescer em meio a uma família de pais
surdos faz com que a percepção das representações culturais, sociais,
políticas e lingüísticas sejam atravessadas por substratos filosóficos,
éticos e estéticos marcados por tensões em zonas fronteiriças de
contato. O universo surdo e o ouvinte marcam as fronteiras dos
CODAs. Pratt (1999, 2000) define a zona de contato como aqueles
espaços sociais em que as culturas se encontram, e se constroem em
linhas de diferenças, em contextos assimétricos de poder. (QUADROS;
MASSUTTI, 2007, p.246)
AO3 é filha de pais surdos, tendo aprendido português aos quatro anos de idade,
sendo considerada surda até o momento de seu ingresso à escola. A língua de
modalidade espacial-visual como primeira língua para uma criança ouvinte, apresenta as
possibilidades de construções cognitivas, sociais, afetivas, culturais similares à de
modalidade oral-auditiva, resguardando as especificidades peculiares a visualidade da
expressão surda e suas implicaturas. Após este acontecimento, passou períodos com sua
avó ouvinte. Assumiu o papel de intérprete de seus parentes mais próximos e dos amigos
surdos desde muito pequena.
Para o depoimento de AO3, o cenário permaneceu o mesmo das informantes
surdas. CO3 posicionou-se na rede aconchegando-se junto à mãe, apoiando a cabeça em
seu colo (tronco). Na performance de AO3, sua voz oscilava diversas vezes entre
tranqüila e fortemente emocionada, outras, chegava a falar de modo embargado. Seu
corpo se dispunha deitado com uma das pernas flexionadas, envolvendo o pequeno CO3
com seus braços, mas deixando mobilidade para as mãos se expressar livremente.
Apresenta-se a seguir a transcrição do depoimento de AO3 estando sua narrativa
organizada em seis blocos, dispostos por conteúdos significativos e representados por
94
títulos em itálico. Para fins de simplificação, a transcrição segue o modelo grafo-fônico.
A transcrição apresenta prolongamentos representados pela repetição da letra; para os
breves intervalos na elocução [PAUSA]; para hesitação, o uso de ... ; para os trechos
cantados uso em itálico.
SUJEITO: AO3
Bloco 1 – Apresentação
Têm, têm nove surdos na minha família. Éé sou filha de pai e mãe surdos,
tenho um irmão surdo, sobrinha de seis surdos, entre eles, três tias surdas, três tios
surdos e a minha primeira língua foi LIBRAS. Tive que aprender por necessidade.
[PAUSA] Tinha que me comunicar com todo mundo. Aonde eu tinha minha que
falava. E eu tinha de diferenciar quem era ouvinte, quem era surdo.
Bloco 2 – O ninar surdo: a intolerância; o aconselhamento; a voz
Minha tia que cuidava de mim, também ... ela ... me ninava. Minha mãe, me
ninou muito. Na hora da dor, assim, muitas vezes, eu, pequenininha, minha contava,
que minha mãe me ... cantava muito de madrugada e muito alto. E os vizinhos ficava, às
vese, zombando da minha mãe, porque ela cantava alto. Como se ela quisesse passar pra
mim o conforto. Aquelas palavras pra mim, pra ela é como se dissesse: “Cala-te,
neném!. Mamãe aqui. dormir! Amanhã você vai boa. Mamãe te ama. Você vai
crescer, vai se formar uma mulher”. Sempre é como se fosse um conselho. Nina... a
ninada de um surdo é como se fosse um conselho de surdo, é como se tivesse passando
amor dele, nas palavras dele. Ele num olha se tá falando errado ou certo. Pra ele, ele fala
com o coração. E deixa que a voz nasc... saia natural. Tá! Ééé, a música dele é natural.
Certo? É a música dele é... passando o verdadeiro amor que ele sentindo por aquela
criança.
95
Bloco 3 – O aconchego; a mélica
E... eu me lembro quando eu fui internada, quando eu tavaa... no soro, lá.
Minha mãe me colocar no braço, no meio do hospital. Ficava cantando lá e alguém
carregando o... um... um pede... o... o apoio do soro e minha tia também, minha tia me
educou. Ela cantava demais. Minha tia... a música da minha tia só é amor, amor,
saudade! E que a gen... vai me amar sempre. E o amor dela éé e desde pequeninha que
escuto isso: amor, amor! O amor dela parece vai esticando assim um ó ó amôôô! É
muito bonito, é muito bonito um surdo ninar. É muito natural. Ele num leva estresse para
a criança. Ele é natural, é assim mesmo. Ele passa o amor dele, aonde a minha mãe, elaa
ninou meus filhos, ninou. Minha tia também, meu filho mais velho. Minha mã, minha tia
cantava no meio da rua. Muitas veze, ela... ficava olhano assim... ela ficava olhando pro,
pra rua (CO3, filho de AO3, ficou inquieto na rede e ela o colocou para descer). Nem
ligava que o povo tavaa olhando para ela. Se ela tava cantano certo ou errado. Pra ela,
ela tava cantando para ninar mesmo, preu dormir, pro meus filhos dormirem.
Bloco 4 – Ninar ouvinte e ninar surdo
Nós ouvimos a avó da gente cantar. Depois, a gente ouve o vizinho cantá e
passa, para nossos filhos. E... o surdo, não. O surdo fala com o coração, fala como um
conselho, fala com a alma! É maravilhoso ser filha de surda.
Bloco 5 – O sujeito surdo
– E... eu tenho muito, muita tristeza, filho de surdo. Muita tristeza. Filho de surdo
que cresce falando LIBRAS e chega a um certo ponto aonde, tem vergonha do surdo, do
grito do surdo. Se pega um filho para ninar, diz : “Não! Canta baixinho!” Não pode!!! A
gente tem que ser natural. A gente tem que aceitar. [PAUSA] Hoje, eu olho o surdo com
o coração. E respeito muito, muito, muito, muito... o surdo! Sempre vou respeitá.
Bloco 6 – Surdo: sujeito visual
96
E... se um dia Deus me der oportunidade, de sempre passar isso pra todo
mundo, todas as pessoas que tiver do meu lado, que fale com surdos, com os olhos, com
o coração.
Se hoje eu tivesse um filho surdo, eu não ia, jamais, cobrar isso de Deus.
Jamais! Eu ia agradecer sempre, sempre! Deus, muito obrigada, porque é...o Senhor me
deu uma dádiva, me deu um presente, é um novo mundo.
No primeiro bloco AO3 contextualiza o seu lugar de CODA em uma família de
maioria surda e destaca as suas descobertas dos mundos ouvinte e surdo. O segundo,
envereda na sua experiência de criança ninada por mulheres surdas, falando inicialmente
da tia e depois da mãe. Traz a figura da avó como referência para relatar a mãe a
ninando. Expressa em sua fala faces da intolerância ao Outro surdo, quando descreve a
postura dos vizinhos que zombavam da mãe surda por cantar alto.
Os filhos de pais surdos passam a perceber tais estereótipos quando
começam a interagir com os ouvintes. Eles sofrem e passam por crises
de identidade, pois precisam entender as diferenças existentes entre
ser surdo e ser ouvinte, entre ser surdo do ponto de vista surdo e do
ponto de vista ouvinte com seus estereótipos de surdez. (SKLIAR;
QUADROS, 2000, p.20)
AO3 quando afirma que o surdo ao ninar não olha se falando errado ou certo.
Pra ele, ele fala com o coração. E deixa que a voz (...) saia natural, (...) a música dele é
natural, aponta para a consciência da mulher surda sobre o olhar colonial em relação à
sua expressão de amor materializada no seu canto, evidenciando na reflexão sobre o não
se importar com a apreciação de errado ou certo, que para Skliar e Quadros (2000, p.
06) encontra-se localizada no extremo negativo de certas dualidades culturais. Este é
um discurso que se constitui em um espaço discursivo colonial, consoante Carbonell e
Cortés (1998, apud Skliar e Quadros, 2000, p. 06), como um conjunto heterogêneo de
interesses e práticas que tem como objetivo principal a instauração de um sistema de
domínio e sua perpetuação. Uma representação sobre a alteridade, circunscrita neste
Outro. As diferenças existem independentemente da autorização, da aceitação, do
97
respeito, da tolerância, da oficialização ou da permissão outorgada desde a
normalidade (idem, p.09).
O bloco 3, descreve a mélica da cantiga de ninar surda, o prolongamento da
vogal ao cantar o amor à criança, a beleza da sua naturalidade expressa. O depoimento
de AO3 ilustra o exposto neste trabalho (p. 55) sobre o uso da voz, reportando-se a
Zumthor (1993, p. 158) a voz é pura, gesto sonoro que emana das pulsões primordiais.
Em sua fala no bloco 4, AO3 descreve o uso e a transmissão das cantigas de
ninar da comunidade ouvinte e faz um paralelo ao uso do gênero por pessoas surdas. Aos
ouvintes a tradição da repetição por via oral se faz secularmente, entre as pessoas mais
próximas. Mesmo com as conquistas tecnológicas, não mídia que substitua o afagar
da voz, o calor do corpo. O ninar surdo é descrito pela informante por um falar passional
e um aconselhamento. Também Leite de Vasconcelos (1907, p.813-814) descreve o
fenômeno do aconselhamento em duas cantigas de ninar, sendo uma de Sardenha no
qual a mãi pertende que o filho seja belo de maneiras, vida e confôrto do pai, alegria de
todos, esplendor e honra da família, nascido para o bem e cheio de prudência; e uma
segunda canção de Spinoso a qual deseja plena felicidade ao pequeno e que cresça tão
alto como o sol e a lua.
Os relatos da AO3, nos blocos 2 e 5, trazem algumas questões relativas à não
aceitação da diferença, mesmo em famílias de pessoas surdas. A língua de sinais é visual
na recepção, portanto, predominantemente marcada pelo movimento. A necessidade de
comportamentos homogeneizantes condiciona as relações sociais ao cumprimento das
normas que, no caso, é falar oralmente. O conceito de “normalidade” precisa ser
transgredido. Afirmar que a maioria das pessoas fala a modalidade oral-auditiva,
teremos por oposição uma minoria falante da modalidade espaço-visual. Esta é uma
proposição de natureza da diferença, pois se sabe ser menor o universo da população
surda em detrimento à ouvinte. Contudo, trazer esta discussão para o lugar da
normalidade, suscita a necessidade da reflexão do que é ser normal. Falar uma língua de
modalidade espaço-visual seria então uma anormalidade?!
Finalmente, o último bloco trata da visualidade do sujeito surdo e do olhar
CODA por este mesmo prisma. O que é importante é “ver”, estabelecer as relações de
98
“olhar” (que começa na relação que os pais surdos estabelecem com os seus bebês).
(...) A experiência é visual desde o ponto de vista físico (...) até ponto de vista mental
(Skliar; Quadros, 2000, p. 21). A experiência visual é proposta pela informante como um
novo mundo, isto é, o lugar de discussão da diferença.
3.4 – CRUZANDO DADOS
No gênero discursivo cantiga de ninar, pautado nos princípios bakhtinianos, traz
seu objetivo inscrito na função do adormecer a criança através do uso da voz cantada em
performance, independente se esta se estabelece entre mulheres ouvintes ou mulheres
surdas.
Os aspectos gerais do gênero, portanto, os elementos convergentes: cantiga de
ninar como prática discursiva; cantar por herança materno-cultural; relações de controle
social, força e poder na relação mãe-bebê; linguagem materializada para o exercício da
mãe suficientemente boa.
Quanto à estrutura composicional, o gênero cantiga de ninar apresenta as
seguintes características: performance do corpo em balanço; performance da voz;
presença do olhar mãe-bebê; letras simples.
As convergências quanto ao conteúdo temático elencam-se em: temas tico-
religiosos; temas sobre o amor materno; temas sobre o choro infantil; temas referentes à
relação mãe-bebê; tema sobre alimentação (leite); temas a respeito ao ato de “dormir” e
“chorar”.
No tocante ao estilo: estrutura sintática simples; vocabulário simples e muitas
vezes infantil; repetição de sons e enunciados; função fática.
Em seguida, encontram-se descritos os aspectos divergentes do gênero cantiga de
ninar do grupo ouvinte e do grupo surdo em análise.
No ninar ouvinte: a intensidade da voz é mais baixa; há preocupação com
afinação/entonação; a canção é pré-existente; o diálogo é reproduzido apenas com o
próprio texto da canção; pouco uso das mãos, usa-se mais como apoio para o bebê;
99
uso exclusivo da linguagem oral-auditiva; maior distância corporal; razoável
comunicação com o olhar; prestígio social; vocalidade aprendida.
No ninar surdo observa-se: a intensidade da voz mais alta; não preocupação
com afinação/entonação, a voz é usada de modo natural; canção improvisada; diálogo
explícito; uso mais freqüente das mãos para afagar, apertar o bebê junto ao corpo; uso da
linguagem oral-auditiva natural e espacial-visual; maior proximidade corporal; grande
comunicação com olhar; desprestígio social; vocalidade espontânea.
Estes dados são pertinentes ao universo investigado e não se deve compreender
tais análises em um viés reducionista, posto está, que poderão haver alguns elementos
com apresentação diferentes dos encontrados no presente trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A amplitude deste objeto de estudo exigiu recortes maiores do que, de fato, era o
desejo da pesquisadora. Não obstante, este é um final. Estes são cantares oriundos de uma
maternação universal: ninares surdos, ninares ouvintes.
A interlocução vivida em todas as performances apresentou-se como resultado de
situações organizadas para fins acadêmicos, entretanto, a conclusão das mesmas deixa
evidenciada que a obra, o aqui e agora, não pode ser manipulada. É um momento único e
irretornável. As performances analisadas nos acalantos comprovam a premissa da
importância do vozeamento, baseado nos princípios zumthorianos, na relação afetiva e
social e na realização da obra no instante.
Os elementos que compuseram as bases desta pesquisa possibilitaram uma leitura
ampliada das contribuições pertinentes ao tema cantiga de ninar. A rede, o berço, os
braços, o colo, todos estes suportes propiciam o balançar que nina a história de cada um.
A mãe negra que trouxe o “dengo” para a linguagem do acalanto (Castro, 199?, p. 4)
também pariu a brasilidade, expôs em sua oralidade o seu poder de resistência e a
grandeza do seu amor reportado aos pequenos brancos, fazendo deles pessoas mais
100
humanas. Enfim, as amas de todas as épocas, doadoras do alimento, do afeto, das
performances.
Em Canções do Berço, Leite de Vasconcelos (1907, p. 919) conclui sobre a
existência de elementos comuns às canções de outros povos. Destaca as fórmulas do
começo, as quais afirma serem indepedentes das circunstâncias históricas e as origens
relativas às condições que reflectem crenças cristãs. Segue em suas conclusões (idem, p.
920): Se nas canções elementos que, segundo mostrei, vieram de longe, muitos
outros que lhes pertencem como próprios; e em qualquer caso a forma poética é
genuïnamente nacional. A constatação do autor reforça as premissas lançadas para a
discussão e análise nesta investigação. As duas hipóteses propostas puderam ser
comprovadas, aspectos de convergência e de divergência nos ninares ouvintes e nos
ninares surdos. Assim como o nero cantiga de ninar transita entre os ouvintes com
elementos de congruência, do mesmo modo o faz nos espaços ouvintes e nos espaços
surdos. As especificidades dos ninares surdos fortalecem a identidade da pessoa surda na
figura da mulher surda inteira, íntegra, com o referencial da sua performance com sua
língua, com sua visualidade, com sua voz, com seu canto, exercendo sua função de
maternação. A co-autoria dos ninares surdos e ouvintes por um espectador pré-
lingüístico impele a uma reflexão alinhada ao discurso zumthoriano na qual a
obra performatizada é assim diálogo, mesmo se no mais das vezes um
único participante tem a palavra (...). Desde que exceda alguns
instantes, a comunicação oral não pode ser monólogo puro: ela requer
imperiosamente um interlocutor, mesmo se reduzido a um papel
silencioso. Eis porque o verbo poético exige o calor do contato; e os
dons da sociabilidade, a afetividade que se espalha (...). Mas também
porque o ouvinte-espectador é, de algum modo, co-autor da obra.
(ZUMTHOR 1993, p.222)
Refletindo a partir de algumas considerações de Barthes (2004), é possível
perceber o quanto nossa sociedade ocidental, desconhece o humano. Cada vez mais
dependente da tecnologia, descorporificando-se e sem transcendência. A linguagem, a
cultura e o poder mantêm uma relação íntima e simbiótica. Questionado sobre como
pensar a cultura, Barthes (2004, p. 110) disse que para responder, precisamos a despeito
101
do paradoxo epistemológico do objeto, arriscar uma definição. A mais vaga possível,
bem entendido: a cultura é um campo de dispersão. De quê? Das linguagens. As
linguagens são elementos de concretude da humanidade. A possibilidade de
convivermos na diferença: na oralidade e na escritura, nas línguas orais-auditivas e nas
línguas espaciais-visuais, no vozeamento acústico e no vozeamento espacial, no ser
surdo e no ser ouvinte. Dialogar, acordar e entrar em conflitos, é necessário quando se
caminha para os deslocamentos das verdades redutoras dos eus e de todos os Outros.
Acalantar o onírico, ouvir com os olhos, falar com as mãos, sentir na pele o grão
da voz em uma materialidade não escrita. Inscrita. Parafraseando o falar zumthoriano
diante desses universos áporos que são os ninares ouvintes e surdos, cabe-nos jouer e
jouir (brincar e aproveitar) no que há de essencialmente humano: embalar o amor.
Na intimidade noturna que este gênero oferece, encontra-se a criança pousada
nos braços da mãe, aconchegada no seu amoroso ninho. Um amor para o crescer, para
fazer voar. Talvez, não acidentalmente, as palavras finais da concretização de um
período de investigações, descobertas, confirmações de hipóteses, indignações,
encantamentos recorra-se ao menino passarinho com vontade de voar.
102
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108
ANEXOS
109
ANEXOS A
Cantigas de ninar
Quadro 1 - VARIANTES DA CANÇÃO NENÉM QUER DORMIR
Partitura “Neném quer Dormir”
Acalanto
VARIANTES DA CANÇÃO NENÉM QUER DORMIR
(QUADRO 1)
Variantes Variante 1 ou de
variante de referência
Variante 2
Variante 3
Variante 4
Variante 5: Jorge nº 69
Estrofe
1
Vai dormir neném,
Eu tenho o que fazer
Vou lavar, vou engomar
As roupinhas pra você
Vai dormir neném,
Eu tenho o que fazer
Vou lavar, vou engomar
Camisinhas pra você
Vai dormir neném,
Vovó (ou papai) tem o
que fazer
Vai lavar, vai engomar
As roupinhas pra você
Vai dormir (o nome do bebê),
Eu tenho o que fazer
Vou lavar, vou engomar
As roupinhas pra você
Dorme ne
Mamãe tem que fazer
Lavar e engomar
A roupinha de você
Estrofe
2
As roupinhas do neném
Não se lava com sabão
Se lava com lírio branco
Água do meu coração
Camisinhas de neném
Não se lava com sabão
Se lava com lírio branco
Água do meu coração
As roupinhas do neném
Não se lava com sabão
Se lava com lírio branco
Água do meu coração
As roupinhas de (o nome do
bebê),
Não se lava com sabão
Se lava com lírio branco
Água do meu coração
X
Refrão
A, a, a, a, a...
Neném quer dormir!
A, a, a, a, a...
Neném quer dormir!
A, a, a, a, a...
Neném quer dormir!
A, a, a, a, a...
Neném quer dormir!
X
Recolhida
em:
Paulista, PE, por
Adriana Di Donato.
Paulista, PE, por
Adriana Di Donato.
Paulista, PE, por
Adriana Di Donato.
Paulista, PE, por
Adriana Di Donato.
Bom Retiro, SP, por
F. Fernandes
(Jorge, 1988, p.139)
111
Variantes Variante Jorge
nº 70
Variante Jorge
nº 77
Variante Jorge
nº 78
Variante Leite de
Vasconcelos nº77
Variante Jorge
nº 71
Variante Leite de
Vasconcelos A
Estrofe
1
Menino, vá dormir,
Eu tenho que fazer
Vou lavar ou engomar
Vou sentar para coser.
Dorme meu filhinho
Mamãe tem que fazer
Quem não trabalha
Não pode viver
Dorme, filhinho
Mamãe tem que fazer
Quem não trabalha
Não tem que comer
Dorme, dorme, meu filhinho,
Porque eu tenho que fazer:
Eu quero ir ganhar o pão
Que precisamos comer.
Duermete, mi niño
Que tengo que hacer,
Lavarte la ropa
Ponerme a coser
Calla, niño, calla
Que tengo que hacer
Lavar los pañales,
Poner-me á coser.
Estrofe
2
X
X
X
X
X
X
Refrão
U, u, u, u, u...
X
X
X
X
X
Recolhida
em:
Propriá, SE, por
E. Trigueiros
(Jorge, 1988, p.137)
Pari, SP, por
F. Fernandes
(Jorge, 1988, p. 139).
MG, por L. Gomes.
(Jorge, 1988, p. 139)
Valpaços (PT)
(Leite de Vasconcelos,
1907 p. 836).
Tamares, Salamanca
(ESP), por Lorca.
(Jorge, 1988, p. 137)
Olmeda, (ESP)
Folk-Lore
de Burgos, p. 43
(Leite de
Vasconcelos,
1907 p. 884).
Partitura Neném quer dormir
Variante 1 ou variante de referência
Partitura: Givanildo Amâncio (maestro; 2008)
113
Acalanto
É tão tarde
A manhã já vem
Todos dormem
A noite também
Só eu velo por você, meu bem
Dorme, anjo
O boi pega neném
Lá no céu deixam de cantar
Os anjinhos foram se deitar
Mamãezinha precisa descansar
Dorme, anjo
Papai vai lhe ninar
Boi, boi, boi
Boi da cara preta
Pega essa menina
Que tem medo de careta
Compositor: Dorival Caymmi (Projeto Acalanto, 2008)
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